blow.up.ensaio

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blow.up.ensaio
Uma Sinopse
Estaremos a ler algo realista. Algo representativo de algo, tentativa de representar.
Realista e não real. E porque faremos dessa forma é o que saberemos ainda. Ou tentaremos
descobrir nesse ensaio. Podemos expor, para fazer uma previa do que virá que, o real nos é
apresentado de forma desconexa, obscura, já o realismo seria linear. Ao menos, buscamos
significações para estarmos sempre realizados. E realizado pode ser aquilo que é realidade
como existência concreta. Sabemos, no entanto que nunca conseguiremos contar algo, seja
o que for, na sua forma mais verdadeira. Estórias, sempre contaremos estórias. Se formos
capazes ainda de contá-las. Estaremos a princípio, tentando contar a verdade de uma
personagem, ou a verdade que nós espectadores veremos sobre uma personagem.
Claramente o que nos diz Julio Cortázar é: “Vai ser difícil porque ninguém sabe quem é que
verdadeiramente está a contar, se sou eu ou isso que aconteceu ou o que estou a ver..., ou
se simplesmente conto uma verdade que é apenas a minha verdade, e então não é a
verdade, a não ser para o meu estômago, para essa vontade de fugir e acabar de qualquer
modo com isto, seja o que for”.
Primeiro filme em língua inglesa do diretor italiano Michelangelo Antonioni, BlowUp, inspirado no conto de Julio Cortázar, Lãs Babas Del Diablo (1), leva-nos para uma
viagem no tempo através de belíssimas imagens, imagens de um lugar em construção,
assim como a realidade no seu processo permanente de esquematizar um mundo exterior.
Toda visão de subjetividade do diretor se propaga no filme: um tempo; uma realidade que
não contém total significação para o protagonista; existência de um rosto indiferente que se
torna perturbado na sua má solidão.
Iniciado com cenas que também terminam a seqüência de 111 minutos, filmada na
cidade de Londres da década de sessenta, ano de 1964, o protagonista Thomas (Davis
Hemmings) e um grupo de mímicos são filmados nos “cenários” da cidade; bonitas cenas
que fazem referência direta à representação. Thomas está saindo de trás dos portões de uma
pensão. Fotógrafo, com movimentos despreocupados e sem se importar muito com as
regras do mundo fora das lentes, estivera fotografando para um álbum de impressões
particulares sobre a cidade. Imerso nessa função, na atmosfera de uma “visão recortada
pelo buraco da fechadura da câmera escura (2)”. Sai da pensão e vai direto para casa,
onde também é seu estúdio e lá fotografa a modelo Verushka – pois trabalha também, como
fotógrafo de moda. Durante todo o filme as referencias à subjetividade (3) são muitas. Em
uma delas, Thomas chega à casa da sua ex-mulher, encontrando o atual marido, Bill (John
Castle). Bill começa falando de um de seus quadros. Seu discurso é uma demonstração de
como encontrar naquele quadro uma forma justificável para uma pintura abstrata. Além
disso, as cenas passadas na casa da sua ex-mulher farão referência ao que virá acontecer
com o próprio fotógrafo no filme. Depois de voltar para o estúdio e olhar algumas fotos
recentemente reveladas, Thomas sai de carro, até chegar a um antiquário procurando por
paisagens fotografadas ou pintadas. Perto dali, em um despreocupado passeio, outra
paisagem lhe chama a atenção: um parque arborizado e quadras poli-esportivas. No parque
um casal de idades bem diferentes faz com que ele comece imediatamente a fotografá-los
em uma longa e silenciosa seqüência, terminando com Jane (Vanessa Redgrave)
reclamando as fotografias de forma insistente e desesperada, mas sem conseguir o que
queria, as fotos dela e de seu suposto namorado, indo embora logo em seguida.
Antonioni tenta enganar o espectador. Não é totalmente claro o que nos é permitido
ver na tela, também não fica claro se Thomas tem certeza sobre estar sendo seguido (como
saber?) fazendo do espectador e do protagonista joguetes submetidos às ações
aparentemente ilógicas do olhar do diretor. A maneira como Jane chega de repente em seu
estúdio, quando Thomas está para entrar, pode confirmar que havia algum tipo de
perseguição anterior, novamente sem nenhuma certeza sobre isso.
Jane chegou até Thomas novamente insistindo sobre as fotografias, não entendemos
porque elas podem trazer algum tipo de problema àquela moça. E continuamos, pensando
que Thomas não precisaria entregar os negativos. Ele concorda com nossas expectativas,
falando em entregar os negativos somente depois de verificar a utilidade deles para seu
trabalho. A contínua insistência da moça faz com que Thomas se convença em lhe dar os
negativos. Percebemos que não é o verdadeiro rolo de negativos, o das fotos no parque.
Sem saber disso, satisfeita por ter conseguido o que queria, a mulher vai embora fazendo
com que a curiosidade de Thomas, junto com a nossa, desperte-se ainda mais. Envolvidos
pela vontade de verdade, irrequietos, queremos saciar o desejo que atormenta um sujeito
diante de uma mudança de perspectiva, – principalmente o fotógrafo de olhar impregnado.
Thomas então começa a se ocupar imediatamente em revelar os negativos, aparentemente
não há nada de mais nas imagens.
Instigado; levado pelo desejo, a importância que tem aquelas imagens para a moça o
faz mergulhar em uma análise cuidadosa: lente de aumento, olhando cada detalhe;
verificando se havia ali, algo não visto durante seus movimentos para conseguir sempre um
melhor ângulo, um melhor enquadramento, a melhor imagem para cada fotografia que
tirava e, nas palavras de Roland Barthes, acerca da fotografia, ”repete mecanicamente o que
nunca mais poderá repetir-se existencialmente (4)”. Os olhos fixados agora, em porções da
realidade impressas ali na sua frente e, nesse caso, a verdade de um filme todo, verdade
essa que não se tornará forma. O momento que Thomas perdeu foi uma experiência única,
instantânea que nunca mais se repetirá e estará configurada como imagem e sortida de
dúvidas.
Guiado através de um olhar - o olhar de Jane - direcionado para um lugar especifico,
traçando uma trajetória linear até um arbusto atrás das cercas do parque é lá exatamente
onde o fotógrafo (o olhar é indireto) vê a custo a aparência física de uma arma de fogo –
aparência geométrica ou a silhueta; talvez uma projeção de sombras que geram uma forma.
Daí partindo, nos é mostrado então, uma seqüência de quinze fotografias que, expõe a
montagem de cada repetição mecânica, chegando a uma possível tentativa de assassinato.
Começamos junto com Thomas a imaginar que um assassinato foi evitado, mas é só depois
que o fotógrafo percebe que existe mais uma coisa que ele não viu em uma das fotografias:
atrás do arbusto, estirado no chão, algo se parece com um corpo, tendo de ser ampliada
muitas vezes, fazendo parecer uma das pinturas sem forma de Bill. Desconfiando sobre
algo presente nessa específica fotografia, surge então “Blow-Up”: um processo de
ampliação fotográfica; e em uma de suas traduções quer dizer também explosão, ou a
explosão da imagem em forma abstrata, pontos (como pequena parcela; pequeno espaço de
tempo; instante); e que mesmo quando tenta abarcar o todo é perdido pela totalidade
abstrata do real. Acontece então o contrário à pintura abstrata de Bill, Thomas parte da
representação fiel de paisagens (através da fotografia), mas chega à frustração de não
conseguir a exatidão que promete a fotografia. Não encontra algo justificável, como dizia
Bill.
Acreditando (depois da ampliação e através e, somente, pelas fotografias) que
testemunhou um assassinato e nos levando junto, para ter certeza e nos dar certeza, o
fotógrafo volta ao parque – encontrando atrás dos arbustos um suposto corpo, mais
parecendo uma imagem do que um verdadeiro corpo, mera representação cinematográfica
verossimilhante (aproximando-se mais do realismo, menos contida de real; como saber
mais uma vez?). Verdadeiro ou não, no corpo não havia sinais de ferimentos à bala, já que
existiu um revólver, mesmo que a arma possa não ser verdadeira (novamente não sabemos
a verdade) como podemos contar, falar sobre essa arma; ela existiu?. Ora, nem o corpo nem
uma suposta arma pode-se conhecer. Para reforçar: não é possível ouvir algum barulho de
tiro durante a sessão de fotos no parque, devemos lembrar disso.
Voltando para seu estúdio o fotógrafo é surpreendido pelo roubo de toda a
seqüência fotográfica. Surpreendidos e Desconsolados, nós e Thomas. A única fotografia
que nos resta do roubo – talvez esquecida propositalmente; talvez não vista por quem
roubou - é uma imagem abstrata e separada de um todo que poderia conter correspondência
com a realidade vista pela máquina de Thomas; uma imagem sem poder de conexão; fadada
à condição de ser total, mas sem indicação precisa de algo inteligível, não podendo provar
coisa alguma. Nós estamos juntos do fotógrafo, ele está ainda tentando resolver um
problema, imagina que algo aconteceu e cada vez mais se perde em ruas, becos e contextos
que não lhe dizem nada. A mesma fotografia que iniciou uma cadeia de razão agora termina
a mesma cadeia de razão. Como contar o que aconteceu?
Memória, Solidão e Fotografia.
Colocada em nossas vidas, a catástrofe é porção de realidade que chama a atenção. Um
abalo irreparável ou apenas uma arrumação das “peças” ou personagens do mundo? A
catástrofe nos faz virar a face em direção ao conhecimento mais contido de verdade,
ferindo a familiaridade, incomodando e nos fazendo fervilhar de questões. “Nada como um
desastresinho para ajeitar as coisas” (5), diz o protagonista, mas seu desastre que seria
uma arrumação, vira abalo irreparável. Delírio, a verdade como desvelamento faz Thomas
tropeçar no próprio pano e cair sentado sem saber o que fazer. Idéia fraca sobre o que
aconteceu de real, nós mesmos não sabemos o que de fato aconteceu como sensível de
verificação. Antonioni fez o que queria ter feito, acreditamos. Confundiu sua personagem,
nos confundiu.
A máquina fotografou objetos que não estavam ali para nós e para o fotógrafo,
foram objetos das revelações, podendo ser ilusão, podendo ser confusão de aparência e
realidade. Algo podemos ter em comum com o desleixo de Thomas, a falta de cuidado que
atuamos nas nossas realidades como nos são colocadas à frente dos olhos.
Outros observadores poderiam dar alguma certeza sobre tudo, mas por onde
andavam os observadores? Um deles, olhando a realidade com uma máquina fotográfica à
frente de seus olhos, ocupado em congelar imagens. Outro, nós mesmos, olhando o que o
diretor quis nos mostrar. Percebemos então que a máquina viu mais do que nós, do que ele,
Thomas, começando uma reviravolta de questionamentos antes desapercebidos.
Operando com uma estranha idéia de assassinato, associando o que ele não viu,
fotografias que não conseguem ter ligação com a realidade sensível, os seus cliques
fotográficos perderam a exatidão, não são mais precisos na transmissão ou exposição dos
fatos. Se pudesse voltaria ao parque na hora dos possíveis acontecimentos e prestaria
atenção aos detalhes vistos e não vistos. Nós podemos, podemos voltar o filme com o
controle remoto e tentar ver alguma coisa que não vimos. Mas não funciona. Antonioni não
nos permite ver no parque, mais do o fotógrafo viu. O desapontamento de Thomas agora é
grande – nós ainda esperamos pelo final do filme, alguma realidade representativa pode nos
aparecer para resolver uma questão quase policial. Frustrado, perplexo, entristecido; não
acreditando mais na realidade de onde está. As revelações da sua máquina infalível, ela não
pode mais revelar nada; nada ele pode lembrar, suas lembranças não funcionam, não
existem. A conseqüência é que nada mais Thomas fotografa até o final do filme. O que nos
espera junto do protagonista nos últimos momentos, abala mais ainda a confiança no que
pode ser razão verdadeira sobre o fato em questão, mais ainda, alguma forma de alucinação
toma conta do nosso protagonista, protagonista do filme sim, mas com uma identificação
categórica, emocional, tirando Thomas das telas e chegando até o sofá da sala com uma
força que nos joga à alucinação conjunta.
A boa solidão do início do filme que proporcionava para Thomas concentração no
trabalho, cega obstinação, termina trazendo outro tipo de solidão. A solidão do espírito
ocioso e divagador, em que caí o protagonista de repente. E nela alimenta suas quimeras.
Impossibilitado de expressar-se, ninguém o compreende, torna-se então um andante
carregando sua incompreensível solidão. Os becos, ruas e contextos dos quais falamos,
agora estão sendo as únicas opções. Ninguém pode compartilhar algo que não pode ser
contado. Ainda em Lãs Babas Del Diablo:
“... quando alguém nos contou uma boa anedota, se sente logo cócegas no estômago e não se fica
descansado enquanto não se senta na sala ao lado e por sua vez se conta a história; só então a gente sossega,
fica satisfeita e pode voltar ao trabalho”.
Imagens que nos serviriam de memória podem não existir mais. A imagem
fotográfica falha na vontade de representar. Comunicamos com integridade tudo o que
queremos transmitir? Nossa convicção depois de Blow-Up é que não, não é possível
descrever exatamente. Antonioni faz com que seqüências do filme surjam como dúvidas
para o espectador. Nossa imaginação é instigada através de seqüências que nos falam que
as transmissões, conseqüente ligação de fatos, podem ser falhas ou fantasiosas. Da mesma
forma percebemos falhas ou fabulações com nossa imaginação. Para Roland Barthes ver a
fotografia do irmão de Napoleão era ver, sentindo-se maravilhado, os olhos que viram o
próprio imperador. Mas dizia que a solidão lhe causou um golpe, pois não conseguia
compartilhar seu entusiasmo com mais ninguém. Seu espanto e deslumbramento foram
sendo esquecidos. Barthes sentia seu espanto como maior do que podia exprimir. Seu
entusiasmo por essa foto, acreditamos, era intransmissível. E dizia Barthes “a fotografia se
esquiva” (6). Nossa imaginação, nossa memória, nos foge também. Parece nunca ser exata.
Talvez ela contenha mais do que nós conseguimos saber. Poderia ser exata: mas a exatidão
pode não ser boa coisa. A exatidão conclui e pronto; e ponto, excluindo outras
possibilidades.
A fotografia, como memória não contém tudo o que queremos saber e nos engana,
pensamos ser aquele momento um momento feliz; um momento triste. Como fotografia e
memória pode nos possibilitar sabermos tudo o que sentimos por tal pessoa ou tal
acontecimento? Podemos saber tudo o que passamos, por fatos encadeados e que são de
algum modo exato, mas nunca teremos todo o real contido em uma fotografia, mesmo a
mais comovente delas. A memória, mesmo a mais comovente delas não é tudo o que já foi.
Sendo exato, então, deixa de conter o todo e faz representação, não abarca a totalidade do
real. Mesmo a totalidade do real, tenhamos atento disso, seja ela talvez o que a filosofia
procura desde sempre.
O exato para se configurar como um corpus, expulsa o que está contido. Quanto
mais exato, quanto mais realista menos real. A fotografia parece não nos expressar o
verdadeiro sentimento, o acontecimento, não me suscita a fazer nascer, sentir estados que
nos levam de volta ao lugar em questão - nada se repete. Ela mais me aponta que o que vejo
agora esteve lá, mas não posso ser tudo o que me ocorreu quando o momento de estar
inteiro já aconteceu. A memória pode nos parecer da mesma forma. Tudo o que já foi
pensado, imaginado, sentido, organizado, não podemos saber deles, ou tirar deles, o que
eles realmente foram. O presente não nos proporciona isso. Para se saber dos fatos passados
e até mesmo dos fatos passantes (o presente) aqueles que nos remexem, através, além das
vidas. Não podemos contar com um tipo de revelação histórica. Como se um fato passasse
para outro fato a verdade, a totalidade contida, imanente.
Eduardo Escarpinelli.