Jogo de luta ou luta a sério? Como distinguir para decidir?

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Jogo de luta ou luta a sério? Como distinguir para decidir?
: INVESTIGAÇÃO
Jogo de luta ou luta a sério? Como distinguir para decidir?
Amália Rebolo Marques . Escola Básica Integrada da Quinta do Conde - Instituto Superior de Estudos Interculturais
e Transdisciplinares (Instituto Piaget)
Introdução
Alguns professores e educadores ficam surpreendidos com a capacidade das crianças
para passarem os tempos de recreio escolar em actividade física contínua, como se a
sua capacidade energética fosse inesgotável; ficam ainda mais surpreendidos porque
para algumas crianças estes tempos servem
apenas para lutar com os colegas, lutas estas que os adultos procuram travar por as
considerarem perigosas, porque desconhecem exactamente o que se passa e apenas
as crianças os podem informar se a luta era a
brincar ou se estavam realmente zangados.
Quando as crianças, espantadas pelas interrupções dos adultos, os informam acerca do
seu jogo, ficam surpreendidas com as reacções dos adultos, que parecem não acreditar
nas suas histórias, fazem recomendações,
falam de acidentes e de acontecimentos
mais ou menos graves. As crianças parecem
ter prazer e necessidade deste tipo de jogos,
o que coloca dúvidas aos educadores, professores ou outros adultos sobre como agir.
Claro que algumas situações de confronto físico são lutas a sério e é bom que um adulto
possa intervir evitando acidentes. No entanto, é muito frequente o adulto ouvir reclamações de quem estava apenas a divertir-se.
Este é um tipo de erro que podemos considerar positivo. Noutras ocasiões, o adulto
considera como jogo algo que é uma luta
a sério e pode deixar que aconteçam situações mais ou menos graves. Este é um erro
que podemos considerar negativo. É então
preferível errar por se interromper uma brincadeira a errar por se deixar continuar um
conflito sério.
Para evitar erros, podemos aprender a olhar
para as crianças em confronto de outra forma? Como podemos, só por observação, perceber exactamente o que se passa?
A definição de jogo (play)
Rubin et al. (1983, p. 698) referem-se ao jogo
como uma “disposição comportamental que
ocorre em contextos que se podem descrever
e reproduzir manifestando-se através de um
conjunto de comportamentos observáveis”.
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Cadernos de Educação de Infância n.º 90 Ago/10
Bateson (2005) refere-se ao jogo como algo
que as crianças e os animais jovens fazem,
mas a que os adultos não dão importância
nem percebem o sentido, e também como
um mecanismo eficaz para facilitar a inovação e encorajar a criatividade que implica fazer coisas novas sem necessidade de justificação. O jogo é o meio utilizado pela criança
para explorar, influenciar e controlar o seu
envolvimento físico e social, permitindo a
descoberta do Mundo (Frost, 1991; Landreth,
1993; Pessanha, 1995; Zoels, 1996).
Para Landreth (1993), o jogo é a linguagem
das crianças e por vezes os brinquedos são
as palavras. Chateau (1979) considera o jogo
resultado da relação da criança com o seu
meio, e afirma: “todo o jogo provém de actividades elementares que se reúnem num
comportamento mais ou menos complexo”
(p. 220). McCune (1998) destaca a “intrusão”
da realidade no jogo, afirmando que, deste
modo, jogo e aprendizagem são sistemas
mutuamente suportados nas actividades escolhidas livremente pela criança.
Pelo movimento (actividade física) a criança
interage com o seu mundo para o conhecer,
sendo difícil distinguir as actividades físicas
que se desenvolvem para aprender daquelas
que são realizadas apenas por brincadeira.
Frequentemente a actividade da criança é
uma mistura da curiosidade, ou da investigação de algo, com o prazer de uma nova
realização. Neto (1997) refere-se ao jogo em
situações não formais, como “o processo
de dar liberdade de a criança exprimir a sua
motivação intrínseca e a necessidade de explorar o seu envolvimento físico e social sem
constrangimentos”.
O jogo das crianças tem frequentemente
uma componente de vigor físico e pode ser
chamado jogo de actividade física, jogo locomotor ou jogo de exercício, e muita da actividade física da criança pode ser vista como
jogo, porque não é controlada pelos adultos
e as crianças parecem divertir-se sem procurar um determinado fim (Pellegrini & Smith,
1998).
A actividade motora é um dos aspectos menos estudados do jogo, preocupados que es-
tiveram os investigadores com o jogo dramático e o jogo simbólico no desenvolvimento
cognitivo das crianças.
Byers (1998) considera que são duas as razões pelas quais não tem sido estudado o
jogo de actividade física:
1) os humanos como criaturas cognitivas têm
um especial fascínio pelo estudo da cognição;
2) no jogo de actividade física1 as crianças
melhoram a forma física; assim é facilmente
explicável como sendo a forma de as crianças melhorarem a sua condição física.
Jogo de actividade física
Este tipo de actividade é agradável e as
crianças estão mais preocupadas com os
meios do que com os fins, parece mesmo
não ter qualquer objectivo; pode envolver
actividade simbólica e jogos com regras.
Pode ser uma actividade social ou solitária
que se distingue pelo contexto de diversão
combinado com actividade física moderada a
vigorosa, como, por exemplo, correr, trepar e
lutar a brincar. De acordo com o desenvolvimento da criança, são consideradas no jogo
de actividade física três fases consecutivas
que apresentam picos de maior frequência
relacionados com a disponibilidade motora e
o relacionamento social da criança.
Estereotipia rítmica: fase caracterizada por
movimentos grosseiros de pontapear e balancear aparentemente sem objectivo, cuja
duração aumenta até cerca dos 6 meses de
idade, momento a partir do qual começa a
diminuir, quase desaparecendo a partir do
12 meses. Algumas interacções familiares
fornecem à criança outras experiências para
jogo de actividade física como, por exemplo,
balançar no colo, atirar ao ar, jogar às lutas.
Jogo de exercício: é caracterizado por movimentos locomotores grosseiros realizados
com grande vigor físico no contexto do jogo,
1. Consultar: Pellegrini & Smith (1998) Physical Activity Play:
The Nature and Function of a Neglected Aspect of Play,
no qual é apresentada a especificidade, as fases, a sua
importância e função no desenvolvimento da criança como
ser global.
Figura 1 – Fases do jogo de actividade física (adaptado de Pellegrini & Smith, 1998)
sendo observável a partir do segundo ano
e até cerca dos 6 anos. De forma solitária
ou em interacção com os pais e os amigos,
a experiência motora da criança cresce em
complexidade, tanto ao nível da locomoção
como da manipulação de objectos. “O pico
do jogo de exercício verifica-se aos 4 ou 5
anos, a idade em que as crianças aperfeiçoam padrões motores como correr ou saltar,
sugerindo que a ocorrência alegre destas
actividades está relacionada com a mestria
desenvolvida recentemente (McCune, 1998).
Jogo de luta e perseguição: caracterizado
por comportamentos vigorosos aparentemente agressivos como lutar, agarrar, cair.
Este jogo social que implica a relação com o
outro começa nos primeiros jogos de luta e
perseguição com os pais e vai aumentando
nos contactos com os amigos.
O jogo de luta é observável em diferentes espécies, entre crianças em diferentes partes do
Mundo, entre pais e filhos nos primeiros anos,
entre meninos, e mais raramente envolvendo
meninas. É semelhante em diferentes espécies incluindo o homem: não se observam
comportamentos de ameaça, os movimentos
têm fraca intensidade e os intervenientes
apresentam musculatura relaxada, os animais
evitam morder e têm as unhas retraídas, não
se verificam relações de dominância, trocando-se frequentemente de papéis.
Aldis (1975) destaca as semelhanças do jogo
em diversas espécies, sendo mais agressivo
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entre os machos (para defender o território,
competir pelas fêmeas ou lutar contra predadores), que fazem grupos separados das fêmeas, em particular a partir do momento em
que o seu jogo se torna demasiado agressivo. Nas crianças, os rapazes e as raparigas
brincam juntos até cerca dos 6 anos, quando
o jogo dos rapazes se torna progressivamente mais duro e as afasta.
Sendo o contacto físico importante, o jogo
de luta é uma forma de comunicação social
entre crianças que ajuda a lidar com os sentimentos. Pelo facto de se tratar de “lutas a
brincar”, a criança é obrigada a assumir as
regras e a evitar ultrapassar os limites (Johnson et al., s/d).
Pellegrini (2004) afirma que o jogo de luta é
uma forma normal e boa de jogo para crianças, em especial os rapazes, e provavelmente
a sua prática permite aprender a codificar e
descodificar informação social:
• A alternância de papéis permite a percepção de perspectivas diferentes.
• As destrezas aprendidas e treinadas na infância são utilizadas noutras formas de interacção social recíproca, como nos jogos
cooperativos durante a adolescência.
A evolução equipou as crianças com predisposições para se envolverem em diferentes
formas de jogo, sendo que a capacidade de
aprender permite adaptar o comportamento
a condições específicas do meio. As predisposições biológicas não se manifestam sem
que as condições ambientais apropriadas estejam presentes para as activar. Por exemplo,
o estilo de jogo masculino dos rapazes pode
necessitar da presença de outros pares masculinos para ser activado (Maccoby, 2003).
São os rapazes os principais envolvidos em
jogos de luta, por razões hormonais (as hormonas masculinas actuam sobre o cérebro e
o sistema nervoso e consequentemente sobre o comportamento) e sociais (a sociedade
reforça os comportamentos mais vigorosos e
agressivos dos rapazes).
Para distinguir o jogo de luta da luta a sério
têm sido utilizadas dimensões como comportamento, afectividade, consequências, papel,
número de observadores, entre outras (Humphreys & Smith, 1987; Boulton, 1994; Smith
& Boulton, 1990; Pellegrini, 1995, 2004; Smith, Cowie & Blades, 2003; Fry, 2005):
Também o riso e a expressão corporal parecem ser sinais importantes para distinguir as
situações de jogo das de não-jogo, a mensagem auditiva e visual do riso e os movimentos de intensidade mais baixa e frouxos, com
a locomoção lenta e exagerada, provocam o
outro, que responde ao desafio do jogo.
A maior parte das interacções entre as crianças, incluindo o jogo de luta e perseguição
acontece entre crianças da mesma classe. As
crianças escolhem os seus amigos para jogar
às lutas e em especial os mais próximos em
termos de força, porque:
• não são actividades agressivas e dão-lhes
prazer (Smith & Boulton, 1990; Smith, Cowie & Blades, 2003).
• evitam interpretações erradas do seu comportamento e posterior envolvimento em
lutas agressivas (Humphreys & Smith, 1987;
Boulton & Smith, 1989; Pellegrini, 1995).
•tentam controlar o risco de acidentes, acontecendo estes jogos normalmente em áreas
espaçosas, amplas e de preferência com superfícies macias de relva ou areia (Humphreys
& Smith, 1987; Boulton & Smith, 1989).
Com uma bola, os rapazes jogam com os pés
e as raparigas com as mãos. Também nos
: INVESTIGAÇÃO
Tabela 1 - Dimensões que permitem distinguir jogo de luta de luta a sério
Dimensões
Jogo de luta
Luta a sério
Comportamento
Movimentos vigorosos (bater, caçar), sem contactos, ou com as
mãos abertas
Movimentos vigorosos com contacto físico
voluntário e intencional
Afectividade
Positivo, faces sorridentes, relaxadas, boca aberta (face de jogo)
Negativo, faces franzidas, boca fechada (dentes
cerrados)
Consequências
Ficam juntos após a luta
Afastam-se após a luta
Estrutura ou Papel
Reciprocidade: as crianças alternam os papéis de caçador e caça
Sem mudança de papéis
Nº de Alunos
Pode envolver várias crianças em simultâneo
Quase sempre acontece entre duas crianças
Ecologia
Frequentemente acontece em superfícies macias
Acontece em qualquer área
Observadores
Não tem observadores
Atrai muitos observadores
jogos de luta se observam diferenças de género: raramente as raparigas lutam no chão
e a atitude das participantes é muito passiva,
quase sempre fazem luta fragmentária (puxar, empurrar e abraçar). Nas raparigas é comum a chapada a brincar com a mão aberta,
por vezes imitando o bater dos adultos.
Bater a brincar é quase sempre um golpe
de fraca força dirigido ao tronco. Por vezes
é dirigido à face, mas a outra criança tem a
guarda levantada e os golpes não a atingem.
O pontapé a brincar é uma forma de ataque
quase tão comum como bater com a mão. A
força é inibida e raramente é dirigido à face,
acontecendo principalmente no jogo em pé.
As crianças mais pequenas batem de cima
para baixo, enquanto as outras batem na horizontal, a partir do peito.
A frequência dos diferentes tipos de luta depende das circunstâncias:
Se as superfícies forem macias, ou o espaço
for grande, ou se existirem poucos brinquedos, estimulam os rapazes para a realização
de jogos de luta (Boulton & Smith, 1989).
A supervisão também tem influência: em
algumas escolas, os contactos físicos são
proibidos e noutras os supervisores têm difi-
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culdades na interpretação das regras (Humphreys & Smith, 1984).
A existência de actividades organizadas no
recreio reduz a frequência dos jogos de luta.
Considerar que a luta a brincar é inofensiva
deixa aos adultos uma série de problemas
tais como:
• Devem encorajar ou apenas tolerar?
• Que jogos devem os pais realizar com os
filhos?
• Até onde se pode deixar ir?
• Com as raparigas deve ser igual?
Normalmente, nos jogos de luta e perseguição, e em particular nos jogos de luta entre crianças, não se verificam lutas a sério,
embora para alguns adultos sejam comportamentos desaconselhados por “provocarem
lutas a sério” (Aldis, 1975). Pellegrini (2004)
identificou as situações em que alguns jogos
de luta se transformam em agressões:
• depois de lesões acidentais durante os jogos;
• quando uma criança julga que está a ser
agredida e responde de forma agressiva;
• quando um dos envolvidos utiliza o jogo
para agredir propositadamente.
Para os professores do 1.º ciclo do ensino
básico, muitos jogos de luta transformam-se em situações sérias, mas esta opinião é
baseada nos poucos casos em que tal acontece (Schafer & Smith, 1996). Para a maioria
das crianças, apenas 1% dos jogos de luta
se transforma em luta a sério (Smith et al.,
2003).
Como identificar as situações
de luta a sério de modo a intervir?
Blatchford (1998) estudou filmes realizados
durante o recreio a partir do tecto de uma
escola, ficando claro para si que a compreensão das perspectivas dos participantes é necessária para que os acontecimentos tenham
sentido. Também Pellegrini (2004) e Smith
et al. (2004) destacam o questionamento
dos participantes acerca do significado dos
jogos de luta e perseguição e dos jogos de
luta para perceber realmente os acontecimentos. A utilização do questionário e do
vídeo, métodos já utilizados para recolha de
informação junto de crianças e jovens, tem
vantagens, mas também implica algumas dificuldades:
Questionários – as crianças distinguem
R&T2 e agressão, conseguem explicar a sua
participação num e noutro tipo de situação,
mas para isso têm de saber ler.
Entrevista – se for individual, implica prevenção para as diferentes interpretações do
acontecimento. Apenas a entrevista simultânea aos diferentes participantes permite
compreender os comportamentos.
Vídeos – excelente meio de recolha de informação, mas tem de ser usado em conjunto
com a entrevista aos participantes, que frequentemente diferem na interpretação dos
acontecimentos:
Quando observam desconhecidos as crianças
conseguem distinguir R&T de agressão e dar
razões. No entanto, as crianças rejeitadas
não o conseguem fazer da mesma forma, e
nas interacções provocativas ambíguas (R&T)
tendem a atribuir intenções agressivas.
Quando se observam a si mesmas na interacção com os colegas, os participantes nos
incidentes concordam entre si sobre o significado de grande parte dos acontecimentos,
enquanto os não participantes e os professores concordam entre si mas as suas interpretações são significativamente diferentes
das dos participantes3. Para perceber efectivamente os acontecimentos as crianças
envolvidas nos mesmos têm de discutir os
vídeos em conjunto.
Poderemos afirmar que “os participantes têm
uma visão única da natureza e motivação do
jogo de luta e das lutas a sério” (Smith et al.,
2004), tendo em conta que as crianças têm um
conhecimento pessoal vivido das suas acções.
Na observação das crianças devem registarse os gestos, a linguagem corporal e as expressões faciais, assim como o tom de voz e
a força de expressão (Smith, 1998), porque
2. R&T do inglês rough and tumble, traduzido para
português por Neto, que lhe atribui o significado de “jogo
de luta e perseguição”, semelhante a alguns dos nossos de
apanhada.
3. Smith et al. (1993, 2004) filmaram crianças no recreio da
escola, focando a atenção nos meninos (são eles que se
envolvem mais em jogos de luta) e mostraram de seguida
os vídeos aos participantes, individualmente, no mesmo dia
dos incidentes registados.
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todo o corpo em acção é fonte de informação. Tendo em conta que os comportamentos apenas são compreensíveis quando
considerados num contexto, Pellegrini (1996)
realça a importância de completar a descrição do comportamento com a explicação
completa dos contextos físicos e sociais nos
quais o comportamento acontece.
Aldis (1975) afirma que “a melhor maneira de
aprender sobre comportamento é sentar-se
e observar”, mas a observação naturalista
do jogo de luta coloca dificuldades na tomada de decisões: as posturas são de curta
duração, a troca de papéis é uma constante,
é mais fácil observar as posições globais do
corpo do que as partes. O vídeo torna-se a
única forma de estudar a luta a brincar de forma a compreender a sua complexidade, tendo
em conta que muito jogo acontece de forma
tão rápida que apenas a observação do filme
várias vezes, e em câmara lenta, permite uma
melhor recolha de informação.
Justificação e objectivos
do estudo
Considerando que:
As crianças parecem conhecer as diferenças
entre jogo de luta e luta a sério melhor do
que os professores e outros adultos;
As crianças agressivas parecem ter maiores
dificuldades em distinguir jogo de luta de
luta a sério;
Os adultos não sabem ver as diferenças entre jogo de luta e luta a sério, interrompendo
situações de jogo de luta que pensam ser a
sério e deixando que lutas a sério se prolonguem por pensarem ser a brincar;
Realizámos um estudo de observação de
crianças em interacção no recreio com os
objectivos:
Caracterizar e distinguir jogo de luta de luta
a sério com base nas informações das crianças envolvidas;
Identificar os motivos e os momentos (actividades, locais) para jogo de luta e luta a sério;
Identificar os momentos (actividades, locais)
e os motivos que transformam jogos de luta
em lutas a sério;
Identificar características observáveis no
comportamento das crianças (corpo em
acção) que podem ser úteis para ajudar os
observadores a tomar as decisões mais correctas;
Caracterizar as crianças que se envolvem em
jogos de lutas e em lutas a sério.
Metodologia
A amostra foi seleccionada através de questionários de nomeação de pares, tendo sido
seleccionadas para o estudo 83 crianças
de 1.º ciclo de acordo com as categorias:
agressor, vítima, vítima agressiva, gestor de
conflitos, afastamento, apoiante da vítima e
observador.
Cada criança foi observada com registo vídeo em continuum durante três tempos de
recreio, em dias não consecutivos. Após a
observação, as crianças observadas e os grupos com que tinham interagido foram chamados para observar os registos e discutir
em conjunto os acontecimento observados.
Estas conversas foram gravadas em áudio e
posteriormente transcritas de modo a permitir análise de conteúdo. Desta forma, todos
os episódios de contacto físico (pacífico ou
agressivo) foram identificados com clareza e
justificados pelos intervenientes.
Apresentação e discussão
dos resultados
Ao longo das observações foram registados
127 incidentes de jogo de luta e de 100 de
luta a sério. Além disso, foram registados 19
episódios de jogo de luta que se transformaram ou passaram por luta a sério. A maior
parte dos episódios de jogo de luta verificaram-se durante os jogos de futebol (43,9%),
de apanhada (13,3%) ou mistos de luta e
perseguição (16,2%). Quanto às situações de
luta a sério, verificaram-se essencialmente
nos jogos de futebol (64%).
Os participantes justificaram as situações
observadas. Verificámos que os jogos de luta
aconteceram essencialmente por brincadeira (93,7%), não sendo necessária qualquer
justificação adicional. Nas lutas a sério, os
episódios foram justificados como reacção a
: INVESTIGAÇÃO
Tabela 2 - Composição da amostra
Ano
N.º
(%/total)
Agressor
Vítima
Vítima
agressiva
Gestão de
conflitos
Afastamento
Apoio à
vítima
Observador
Totais
(% amostra)
1º ano
nº=64
(21%)
3
(4,0%)
2
(3,1%)
4
(6,3%)
2
(3,1%)
-
2
(3,1%)
-
13
(15,7%)
2º ano
nº=75
(24,7%)
5
(6,7%)
-
3
(4,0%)
3
(4,0%)
-
1
(1,3%)
2
(2,7%)
14
(16,9%)
3º ano
nº=75
(24,9%)
12
(16,0%)
3
(4,0%)
2
(2,7%)
3
(4,0%)
1
(1,3%)
5
(6,7%)
3
(4,0%)
29
(35%)
4º ano
nº=90
(29,6%)
10
(11,1%)
6
(6,7%)
4
(4,4%)
4
(4,4%)
1
(1,1%)
2
(2,2%)
-
27
(32,5%)
Totais
N=304
(100%)
30
(9,8%)
30 ♂
11
(3,6%)
8 ♂
3♀
13
(4,2%)
12 ♂
1♀
12
(3,9%)
8 ♂
4♀
2
(0,7%)
1 ♂
1♀
10
(3,3%)
4 ♂
6♀
5
(1,6%)
3 ♂
2♀
83
66 ♂
17 ♀
ofensas físicas (30%), mas também como a
vontade/necessidade de provocar ou chatear o outro (23%). Em alguns episódios a luta
esteve relacionada com a disputa da bola
(16%) ou a necessidade de ajudar um amigo
(13%).
Justificações para a participação
ou não em jogos de luta
As crianças participantes deram algumas explicações acerca da participação ou não em
jogos de luta. De acordo com alguns meninos de 2.º ano (7 e 8 anos), estes jogos são
muito úteis:
•T: Porque corremos muito.
• M1: É para suar muito.
• D: É para fazer ginástica.
• B: Para sermos homens.
• M2: Para ser fortes.
• F: Somos homens e somos fortes.
• T: Para sermos valentes.
• M1: Para sermos muito altos.
• M2: Para treinar a força.
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Os meninos associam os jogos de luta a força, masculinidade e valentia. Já as meninas
de 2.º ano (7 e 8 anos), que não se envolvem nestes jogos ou o fazem muito esporadicamente, encontram explicações para as
necessidades dos meninos e explicam o seu
não envolvimento:
• L: As meninas são mais sossegadinhas.
•Ca: As meninas são mais «finesses» e
aleijam-se mais.
• Cl: Porque os meninos brincam às lutas e
as meninas não brincam.
• C: Porque se aleijam muitas vezes.
• S: Porque os homens são mais fortes e
podem aleijar mais as meninas.
• AS: Eu não brinco para não me aleijar.
• S1: Os rapazes têm músculos.
• L: Às vezes os amigos convidam os outros
para brincar às lutas.
Os dados de observação
A observação repetida dos vídeos permitiu-nos identificar outras características co-
muns, e observáveis com relativa facilidade,
dos jogos de luta e das lutas a sério:
Os incidentes podem acontecer no plano
vertical, em que os envolvidos estão de pé,
mas também podem acontecer no chão
ou em diferentes planos. A esta categoria
chamámos planos de acção e considerámos
as subcategorias: de pé, de pé e no chão e
ainda a alternância de planos;
Durante os incidentes, os participantes
podem utilizar diferentes partes do corpo,
desde a cabeça aos pés, de forma isolada
ou em conjunto; nunca observámos a utilização da cabeça como arma. Chamámos a
esta categoria partes do corpo e considerámos as subcategorias: mãos, pés, tronco
e mãos, mãos e pés e ainda tronco, mãos
e pés;
Os participantes podem realizar os contactos físicos a diferentes distâncias uns dos
outros. Tendo em conta Hall (1971), chamámos a esta categoria distância de contacto e considerámos as subcategorias: física
(distância do abraço), próxima (distância dos
membros), física e próxima, física-próxima e
distante (contacto visual próximo).
Cada episódio foi analisado tendo em conta as categorias e subcategorias definidas,
o que nos permitiu verificar a existência de
diferenças observáveis em situação real (no
momento) sem necessidade de equipamentos sofisticados.
Planos de acção
Em relação aos planos de acção verificámos
comportamentos diferentes durante os jogos
de luta e durante as lutas a sério. Nos jogos
de luta as crianças passaram do plano vertical
(de pé) para o plano horizontal (no chão), subiram e desceram como se fosse o mais desejado, arrastando na queda os seus colegas de
brincadeira; sem se incomodarem com a sua
integridade física, frequentemente voltaram
à luta de pé para de seguida se lançarem de
novo para o chão. Nas lutas a sério, as crianças
evitaram cair ou ser atiradas ao solo, procuraram manter posturas equilibradas que lhes
permitissem atacar e defender-se sem o risco
de cair e ficar presas debaixo do seu opositor.
Também nos jogos que se transformaram em
lutas a sério os envolvidos mantiveram-se de
pé na maior parte dos episódios.
Partes do corpo
As partes do corpo que as crianças utilizam
parecem estar relacionadas com margens de
segurança. Ao utilizarem apenas as mãos
ou as mãos e os pés nas situações de luta
a sério, evitaram ficar presos aos adversários, mantendo assim as suas hipóteses de
reacção mais elevadas. Já nos jogos de luta
as crianças pareceram não se importar com
as consequências dos acontecimentos e por
isso não tiveram problemas em utilizar o seu
peso nos episódios, provocando quedas e situações de grande proximidade entre eles.
Distância de contacto
Em relação à distância de contacto verificámos também a existência de diferenças entre jogos de luta e lutas a sério. Enquanto
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nos primeiros as crianças se colaram umas às
outras, abraçando para usar toda a sua força
para provocar quedas mais ou menos controladas aos colegas de brincadeira, nas lutas
a sério as crianças evitaram colar-se umas às
outras durante o conflito; algumas procuraram afastar-se e evitaram ficar presas ao seu
adversário.
Diferenças entre jogos de luta
Verificámos ainda algumas diferenças entre
os jogos de luta de meninas e meninos, assim como entre crianças de diferentes níveis
etários. Os meninos e as crianças mais pequenas procuraram mais o chão com alternância de planos; em relação às partes do
corpo utilizadas, verificámos que as meninas
Tabela 3 - Planos de acção
Jogo passa a luta
Jogo de luta
a sério
Luta a sério
Freq.
%
Freq.
%
Freq.
%
De pé
64
50,4
13
68,4
83
83
De pé para o chão
37
29,1
4
21,1
17
17
Planos múltiplos
26
20,5
2
10,5
0
0
Tabela 4 - Partes do corpo
Jogo passa a luta
Jogo de luta
a sério
Luta a sério
Freq.
%
Freq.
%
Freq.
%
Mãos
36
28,3
1
5,3
44
44
Pés
13
10,2
0
0
16
16
Tronco e mãos
Mãos e pés
19
9
15
7,1
6
10
31,6
52,6
9
16
9
16
Tronco, mãos e pés
50
39,4
2
10,5
15
15
Tabela 5 - Distância de contacto
Jogo de luta
Jogo passa a luta
a sério
Luta a sério
Freq.
%
Freq.
%
Freq.
%
Física
28
22
2
10,5
7
7
Física e próxima
32
25,2
3
15,8
22
22
Próxima
38
29,9
7
36,8
52
52
Física, próxima
e distante
21
16,5
6
31,6
4
4
Próxima e distante
8
6,3
1
5,3
15
15
: INVESTIGAÇÃO
e as crianças mais velhas utilizaram mais as
mãos ou as mãos e o tronco, enquanto os
meninos e as crianças mais novas utilizaram
todo o corpo.
Conclusões
Podemos afirmar que existem formas de identificar jogo de luta e luta a sério no momento
em que os incidentes acontecem, tendo em
conta que algumas características são observáveis e distinguíveis. Verificámos que nos
jogos de luta as crianças agarraram-se mutuamente, puxaram-se para o solo usando
todo o seu corpo e eliminaram as distâncias
entre si, sem medo de caírem ou de ficarem
debaixo do outro, enquanto nas lutas a sério
as crianças evitaram aproximar-se demasiado do outro, evitaram agarrar-se e ir para
o chão. Aparentemente, nas lutas a sério
as crianças assumem que existem riscos e
procuram evitá-los mantendo as distâncias e
posturas equilibradas, e não arriscam cair e
ficar presas debaixo dos outros, o que poderia provocar lesões.
Reconhecendo as diferenças, torna-se mais fácil a educadores, professores e outros adultos
decidir com maior certeza
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Cadernos de Educação de Infância n.º 90 Ago/10
e segurança se determinado incidente é um
jogo que se pode deixar continuar, ou se, por
outro lado, se trata de uma luta a sério que implica a sua intervenção no sentido de pará-la e
evitar que as crianças se magoem.
Este estudo não nos permite afirmar que são
apenas estas as categorias a observar para
identificar e distinguir jogo de luta de luta a
sério. Provavelmente, o estudo deveria ser replicado com amostras maiores e/ou em diferentes níveis de escolaridade, particularmente
os níveis pré-escolar e 2.º ciclo, de modo a percebermos se as categorias identificadas ajudam
a tomar decisões noutros níveis etários.
Ilustração in O Rato do Campo e o Rato da Cidade e João
Grão de Milho, Histórias Tradicionais Portuguesas, Alice Vieira, Editorial Caminho, Lisboa, 2006.
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