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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA INARA FONSECA FERREIRA MANDU DA SILVA “NADA BÁSICO!”: MODA E CONSUMO DE ROUPA NO CAMELÓDROMO DE CUIABÁ CUIABÁ-MT 2012 INARA FONSECA FERREIRA MANDU DA SILVA “NADA BÁSICO!”: MODA E CONSUMO DE ROUPA NO CAMELÓDROMO DE CUIABÁ Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea na Área de Concentração Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa Poéticas Contemporâneas. Orientadora: Prof(a). Dr(a). Ludmila de Lima Brandão Cuiabá-MT 2012 _______________________________________________________ Prof(a) Dr(a) Rita Morais de Andrade Examinador Externo (UFG) ___________________________________________________________ Prof(a). Dr(a). Patrícia Silva Osório Examinador Interno (ECCO/UFMT) ___________________________________________________________ Prof(a). Dr(a). Ludmila de Lima Brandão Orientador (ECCO/UFMT) Cuiabá, 26 de março de 2012. À Lancelot, meu inestimável companheiro AGRADECIMENTOS Escrever os agradecimentos da construção deste trabalho é um exercício tão árduo quanto a própria produção dele, pois dentro de tantas colaborações efetivas e afetivas ser seleta e decidir quem não mencionar tornou-se deveras complicado. Agradeço à minha mãe, Walkyria Fonseca, pelo amor e carinho, pelo exemplo de força e dedicação. Pelo investimento de sua própria vida na minha. Por acreditar em mim e permitir que eu seja quem sou plenamente, a despeito de suas próprias idealizações e planos. À minha orientadora, professora Ludmila Brandão, por ter me acolhido como sua aluna em 2007, mesmo eu sendo de outro curso. Por ter me incentivado a seguir e pela primeira ligação parabenizando pela aprovação no mestrado – fato que não esquecerei. Pelo espírito ousado e pelas palavras de ânimo nos momentos de desespero acadêmico. Durante esses quase cinco anos mais do que uma professora, tive ao meu lado uma amiga. A todos os professores do ECCO, que tanto colaboraram com meu desenvolvimento, em especial a professora Patrícia Osório a quem admiro e cujas aulas ministradas foram fundamentais para desenvolvimento deste trabalho e para descobertas tanto pessoais quanto profissionais. Ressalto também a participação da professora Dolores Galindo, que incutiu novas ideias na minha mente com a “perturbadora” teoria ator-rede, e do professor Yuji Gushiken – que acompanhou minha trajetória acadêmica desde 2006, sendo sempre acessível e acolhedor. À professora Rita Andrade por ter aceitado participar do processo de construção desta pesquisa, contribuindo com questionamentos que se de um lado incomodaram minha mente, de outro me permitiram enxergar além. À minha avó, Aedna Fonseca, pelo amor, carinho, apoio, torcida e orações. À Goddman Andrade pelo apoio irrestrito, pelo excesso de intimidade, por todos os perdões e por permanecer dentro de todas as nossas impermanências. À Júlia Ferreira, minha prima e minha irmã que há 15 anos enche meu caminho de mel e girassóis. Aos amigos Juliana Curvo, Bruna Rafaelle, Emily Ferreira, Lia Epstein, Rodolfo Polzin e Sinara Álvares que tanto me ouviram nos meus momentos de angústia lispectoriana. Sei que se não fosse o amor, o carinho, a compreensão, a generosidade e a lealdade de vocês não teria conseguido. Agradeço especialmente a Haya Del Bel pelo surgimento inesperado e oportuno em 2011, e por ter neste curto espaço de tempo acrescentado vida aos meus dias. À Diego Leite, técnico do ECCO, pelos esclarecimentos, ajudas e principalmente pelos diversos “galhos quebrados”. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela bolsa concedida durante os anos de curso. Finalmente, e mais importante, agradeço a Deus e ao tempo que têm sido extremamente generosos comigo. “Eu antes tinha querido ser os Outros para conhecer o que não era Eu. Entendi então que eu já tinha sido os Outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o Outro dos Outros: e o Outro dos Outros era Eu”. Clarice Lispector RESUMO Através da prática banal, mas complexa, do consumo de roupas no Shopping Popular, pretendemos investigar e analisar o fenômeno do consumo contemporâneo e apropriação de moda entre os frequentadores do camelódromo de Cuiabá (vendedores e consumidores), em sua maioria pertencente às classes subalternas. Para isso, serão estabelecidos diálogos com autores Néstor Canclini, Arjun Appadurai, Massimo Canevacci, Gilles Lipovetsky e Walter Mignolo. Palavras chaves: moda, consumo, camelódromo. ABSTRACT By the trite and complex practice of the clothing’s consumption at the Shopping Popular we intend to investigate and analyze the phenomenon of the contemporary consumption and appropriation of fashion between the parties at the Cuiabá’s camelódromo (sellers and buyers), the most of them coming from a subaltern class. For this reason, will be realized conversations with the authors Néstor Canclini, Arjun Appadurai, Massimo Canevacci, Gilles Lipovetsky and Walter Mignolo. Keywords: fashion, consumption, camelódromo. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................14 I- Moda, Consumo E Modernidade: Reinventando corpos e espíritos 1.1 O nascimento da moda ......................................................................................................25 1.2 A nova subjetividade do século XXI .................................................................................26 1.3 Alta Costura e moda no último século ..............................................................................27 1.4 A rua invade as passarelas .................................................................................................29 1.5 A Era da moda consumada ................................................................................................32 1.6 Sociedade de consumo ......................................................................................................33 1.7 A Economia Moda.............................................................................................................35 1.8 Consumo e cultura..............................................................................................................37 1.9 Consumo e cidadania.........................................................................................................39 II- Circuito Subalterno de Consumo: Da América Latina a moda no Shopping Popular 2.1 Sobre circulação, fluxos e globalização.............................................................................42 2.2 A América Latina e o camelódromo ................................................................................45 2.3 Shopping Popular x Shopping Center ...............................................................................55 2.4 Uma volta pelo camelódromo ..........................................................................................58 III- Gosto Subalterno: Apropriação e táticas de resistência na moda do Shopping Popular 3.1 Calça da Gang: um estudo de caso ...................................................................................71 3.2 “Piriguete” Style .........................................................................................................77 3.3 Gosto se discute..........................................................................................................84 3.4 O vestuário como significado .............................................................................................89 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................96 REFERÊNCIAS BIOBLIOGRÁFICAS ...............................................................................98 Lista de Figuras Figura 1/p.47 Retirada dos camelôs do Centro para o bairro do Porto, em 1992. Foto: Arquivo pessoal do vereador Misael Galvão. Figura 2/p.48 Policiais convocados para expulsão dos camelôs em 2011. Foto: Secretária Estadual de Comunicação Social (SECOM-MT). Figura 3/p.49 Dona Jandira Augusta Moraes, há 20 anos vendedora de café e salgados por R$ 1, não possui outra fonte de renda ou aposentadoria. Foto: Secretária Estadual de Comunicação Social (SECOM-MT). Figura 4/p.49 Vendedores ambulantes recolhendo material de trabalho. Foto: Secretária Estadual de Comunicação Social (SECOM-MT). Figura 5/p.50 Três dispositivos sociais: polícia, imprensa e governo - fiscal da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano. Foto: Secretária Estadual de Comunicação Social (SECOM-MT). Figura 6/p. 51 Sede da Associação dos Camelôs do Shopping Popular, localizada nos fundos do camelódromo. Foto: Inara Fonseca. Figura 7/p. 52 O camelô e vereador Misael Galvão. Foto: Sandra Carvalho. Figura 8/p. 53 Frota de táxi em frente ao Shopping Popular. Foto: Inara Fonseca. Figura 9/p.53 Moto taxista sentado de colete laranja enquanto aguarda clientela. Foto: Inara Fonseca. Figura 10/p.57 Vendedora faz o pé na lateral da banca enquanto aguarda cliente. Foto: Inara Fonseca. Figura 11/p.57 Praça de alimentação. Foto: Inara Fonseca. Figura 12/p.58 Estacionamento a céu aberto e gratuito. Foto: Inara Fonseca. Figura 13/p. 59 Shopping Popular. Foto: Ludmila Brandão. Figura 14/p. 61 Criança dormindo em frente a uma banca de Moda masculina do tipo “comércio familiar”. Foto: Inara Fonseca. Figura 15/p. 64 Banca de Moda masculina que trabalha exclusivamente com camisas de times de futebol. Foto: Inara Fonseca. Figura 16/p. 65 Banca de Moda Infantil. Foto: Inara Fonseca. Figura 17/p. 66 Banca especializada em réplicas de bolsas da marca Prada. Foto: Inara Fonseca. Figura 18/p.67 Banca especializada em bolsas: réplicas e outros modelos. Foto: Inara Fonseca. Figura 19/p.67 Banca especializada em tênis falsificados. Foto: Inara Fonseca. Figura 20/p.68 Banca especializada em acessórios e bolsas. Foto Inara Fonseca Figura 21/p.72 Box 267. Foto: Inara Fonseca. Figura 22/p.73 Modelos de calças gang. Disponível em: www.gang.com.br Figura 23/p. 76 Arara apenas com modelos de jeans com pedraria e strass. Foto: Inara Fonseca. Figura 24/p.77 Angela e o marido em frente a sua banca de roupas. Foto: Inara Fonseca Figura 25/p.77 Cartão do box. Foto: Inara Fonseca. Figura 26/p.79 Enquete veiculada pela www.revistatpm.com.br edição 98 da revista TPM. Disponível em: Figura 27/p.81 Musa das piriguetes: a cantora de funk Valesca e um dos vestidos de sua coleção. Disponível em: www.egoglobo.com Figura 28/p.84 Look apresentado em uma das bancas do Shopping Popular. Foto: Inara Fonseca. Figura 29/p. 92 Look apresentado no Shopping Popular. Foto: Inara Fonseca. Figura 30/p.93 Look apresentando no Shopping Center. Foto: Inara Fonseca. Figura 31/p.94 Adolescentes vestidos de acordo com a Moda colorida . Foto: Natália Sauer. Disponível em: http://wp.clicrbs.com.br Figura 32/p.95 Look à esquerda, da banca do Shopping Popular, inspirado nos integrantes da banda Restart. Foto: Inara Fonseca. Lista de gráficos e tabelas Tabela 1/p.54 Histórico do Shooping Popular. Tabela 2/p.68 Barracas que trabalham com Moda no Shopping Popular. Tabela 3/p.87 Crescimento de barracas indianas após a novela "Caminho das Índias". Gráfico 1/p.88 Crescimento de barracas indianas após a novela "Caminho das Índias" INTRODUÇÃO Todos os dias os indivíduos se deparam com a seguinte questão, o que vestir? Ao abrir o armário, as opções são apresentadas e, de acordo com o que se possui, as combinações são feitas. É bom lembrar que esse “armário” ou “guarda-roupas” (pequeno ou grande), é construído sistematicamente a partir do universo bem maior de roupas que constitui a cadeia de lojas e vendedores de vestimentas de sua cidade e das cidades que eventualmente visita. Este gesto de tão corriqueiro pode aparentar insignificância, entretanto, o ato de se vestir, de escolher o que utilizar, se relaciona (reafirmando ou contrariando) com todo um mundo de significados, de práticas de classe, de gênero, de grupo, etc. Mais do que um gesto que atende a uma necessidade de proteção, ou seja, funcional e civilizado, vestir-se é afirmarse, é projetar/comunicar um modo de ser percebido pelo outro, correspondendo ou não às expectativas que o outro pode ter em relação àquele que se veste e se expressa por meio do que veste. Vestir-se é comunicar esse projeto. Embora o vestir-se possa ser compreendido como expressão individual, é grande o número de autores que apresentam e criticam essa suposta “expressão individual” como submissa ao sistema da moda e, por sua vez, às manipulações da indústria e do capital. Ramos (1987) afirma que, no Brasil, a novela é a passarela ideal para a moda. É por ela que desfilam as novas opções de vida e que a classe dominante indica o ideal para os demais. É fato que os meios de comunicação influenciam na moda. Não só o que é exibido nas telas pode virar tendência para as classes subalternas, como também os artistas podem ser transformados em verdadeiros ícones sociais. Mas será que a sociedade recebe tudo que a mídia oferece? Que a Moda não poderia ser utilizada como expressão? Notando a interferência social que a moda exerce no comportamento dos indivíduos, me interessei pela temática e através de um projeto de iniciação científica, orientado pela professora Ludmila Brandão, pude entre o período de 2008 e 2009 estudar o fenômeno de moda no circuito subalterno de consumo, ou camelódromo. A pesquisa estudou os hábitos de consumo da classe subalterna focando, principalmente, sua relação com a moda midiática e teve um caráter mais quantitativo do que qualitativo: o que não me causou grandes questionamentos metodológicos. Na época, a novela Caminho das Índias era exibida na Rede 14 Globo de Televisão, no horário “nobre”, e a apropriação das roupas indianas pelas classes subalternas que frequentavam o Shopping Popular foi o principal foco do estudo. Após a iniciação científica, escolhi continuar a trajetória acadêmica e estender a pesquisa, novamente sob a orientação da professora Ludmila Brandão. Este novo trabalho nasceu de um questionamento sobre as operações dos consumidores de moda do Shopping Popular, supostamente entregues à passividade. O intuito é oferecer a partir de sondagens e hipóteses caminhos possíveis para compreender este ato de fazer das classes subalternas. Como a moda fala em abundância do vestuário, escolhemos para análise apenas casos referentes à indumentária, portanto, o uso de adereços, sapatos e outros itens não serão estudados. Na pesquisa, não questionaremos a qualidade, entendida aqui como juízo de valor, da Moda do camelódromo. A tentativa é mostrar que a prática banal do consumo de roupas no camelódromo possui uma lógica interna guiada por um gosto próprio. Tal gosto pode funcionar, por vezes, como uma tática. Conceito criado por Certeau (2009), as táticas são vistas como enunciados os quais falam das diferentes recepções feitas pelo consumidor. Também queremos esclarecer que a análise desta prática do cotidiano não supõe um retorno ao indivíduo. Pelo contrário, nossa análise pretende mostrar que é sempre uma rede de relações a qual permite a compreensão da realidade, podendo o indivíduo ser ator ou não desta rede. Durante o trabalho nos apropriaremos do método de Barthes (2009) e escreveremos Moda com maiúscula no sentido de fashion para mantermos a oposição entre a Moda e o sistema moda. O método Para compreender a prática de consumo de roupa no camelódromo, um espaço fruto de um projeto global, mas repleto de localidades, adotamos o método da etnografia. Inicialmente, o intuito era aplicar algumas das técnicas da pesquisa de campo para estabelecer um diálogo com os “nativos”. Entretanto, ao longo do percurso ficou claro que a inserção no campo seria uma das maiores dificuldades. 15 Por seu caráter ambíguo, ao mesmo tempo ilegal e legal, os vendedores do Shopping Popular vivem num clima de permanente tensão. Qualquer pessoa é suspeita, principalmente, uma pesquisadora que pretende analisar a prática de consumo de moda no camelódromo. George Marcus em Identidades passadas, presentes e emergentes: requisitos para etnografias sobre a modernidade no final do século XX ao nível mundial discute as dificuldades da pesquisa etnográfica moderna. Para o autor, a etnografia nos moldes clássicos, nos quais a análise de campo está amparada em uma experiência vivenciada em nível local, não é suficiente para uma contemporaneidade com um mundo cada vez mais para além das fronteiras onde a identidade dos objetos estudados é formada da interação de forças que promovem a integração global e as que recriam uma autonomia global (1991:197). Neste enquadre, o desafio do etnógrafo modernista está ligado principalmente à noção de identidade e sua compreensão seria obtida através de processos, no caso, de resistência e acomodação. Ao problematizar etnografia em espaços transnacionais, Stoller (1998) enuncia que o etnógrafo contemporâneo, diferentemente dos clássicos - como Evans-Pritchard (1937) ao centrar-se nas feitiçarias dos Azande - não pode mais se dar ao luxo de focar a narrativa em um único elemento cultural. A preocupação com a escrita etnográfica e a subjetividade do observador (etnógrafo) não é recente. Se Malinowski (1992) em Argonautas do Pacífico Ocidental inaugura uma espécie de escrita etnográfica, composta de descrição metodológica e cinematográfica (a narrativa de elementos cênicos é fundamental para situar o leitor no campo e a sinceridade metodológica se apresenta como uma exigência do fazer etnográfico), Geertz (1989) afirma que a etnografia é uma forma de escrita, uma descrição densa, a qual deve ser problematizada, pois o antropólogo é um ser autoral, fruto de uma época, e portanto,possui um lugar de fala. Não existe, assim, um texto etnográfico anônimo, o discurso presente expõe, entre outras coisas, as relações de poder diferenciadas entre o autor do relato e o relatado. Outra tensão, anunciada por Geertz e Eckert e Rocha (1998), é quanto ao “estar lá” (trabalho de campo) para escrever aqui (“estar aqui”). O “estar lá” para escrever aqui é mais uma tentativa de mediação, uma ponte entre o eu, o Outro e o texto. Ambos os autores também trabalham etnografia como campo literário. Ao analisar Tristes Trópicos (1955), Geertz afirma que parte do sucesso de Lévi-Strauss está pautado em seu estilo. Tristes 16 Trópicos, pelo seu caráter autorreflexivo, permite ao leitor uma análise da produção da narrativa do próprio Lévi-Strauss. Voltando a Marcus (1991), uma das principais diferenças apontadas pelo autor entre a etnografia clássica, nomeada por ele como realista, e a modernista é que embora ambas sejam contextuais, a primeira é amparada nas estruturas (local ou sistema de signos importantes para se entender o local) e a segunda não apresenta idéia de totalidade, mas se pensa em arranjos: e de “arranjos metodológicos” é feita esta pesquisa. Crendo conhecer a realidade do campo de pesquisa, minha primeira estratégia de inserção no campo foi através do presidente da Associação do Shopping Popular, Misael Galvão. Após apresentação do projeto de pesquisa, Galvão propôs que eu andasse pelo camelódromo com dois seguranças do próprio Shopping Popular, o que, segundo o presidente, facilitaria minha locomoção no ambiente e a aproximação dos comerciantes informais que se sentiriam seguros para falar comigo, já que estava acompanhada de funcionários do próprio local. Engano. O clima de hostilidade era permanente. Os vendedores se recusavam a falar comigo, mesmo se abordados pelos seguranças. A desconfiança que minha presença gerava nos vendedores era evidente e uma antipatia rapidamente foi instaurada, assim como minha vontade de desistir. Meu objeto de pesquisa me ignorava, ou pior, se recusava a estabelecer contato e a pesquisa parecia travada. O campo, que havia começado em maio com visitas quinzenais, não rendia. Mas o grande desespero veio no mês de julho. Para a pesquisa, precisava de uma entrevista semi-estruturada de algum vendedor de roupas. Quando uma senhora concordou em conversar comigo, senti que teria minha primeira coleta de dados significativa, mais do que isso, senti que teria minha primeira vitória dentro daquele espaço. Cheguei ao local no horário com as perguntas formuladas e o gravador em mãos, cinco minutos depois a entrevista havia se tornado mais uma expectativa frustrada. Por mais que eu me esforçasse em obter respostas, a senhora se resumia a monossílabas e frases soltas que em conjunto não possuíam coerência. Aos meus olhos, a vendedora não havia falado nada de relevante, além de ter caído em contradição. Com as questões da pesquisa já pré-formuladas não conseguia enxergar que as negativas do meu objeto as quais me aparentavam um silêncio, na verdade estavam falando sobre a própria realidade dele. A entrevista que inicialmente me pareceu frustrada, permitiu, depois algum tempo, uma revelação mais profunda: havia uma tensão entre as minhas 17 questões e a realidade do campo. Meu esforço era em encontrar no meu objeto minhas expectativas. Era preciso avaliar a construção da minha identidade como pesquisadora. Eckert e Rocha (1998) nomeiam essa tensão como problema ético-moral e propõem a hermenêutica do si. Com uma proposta de antropologia extremamente reflexiva, a mediação aqui não é mais somente entre mundos, mas também uma mediação de si mesmo. A partir deste momento, deram-se início os meus próprios questionamentos como pesquisadora: Como trabalhar em espaços onde coexistem pensamentos locais e globais ao mesmo tempo? Será que o “estar lá” seria suficiente? Será possível realizar a tal da “observação participante”? Se Geertz (1989) reclamava da sua condição inicial de invisibilidade em Bali, a invisibilidade tornou-se, aos poucos, na minha trajetória, uma necessidade, ao ponto de celebrar cada momento de invisibilidade. A realidade é que a pesquisa só caminhava quando eu era mais uma consumidora transeunte. Para não levantar suspeitas, não levava mais o gravador para o campo. Anotava tudo em um pequeno caderno. Os diálogos e observações que me pareciam mais importantes eram automaticamente anotados, os demais, tentava registrar na memória para anotar em outro momento. Entretanto, com todos os cuidados, as poucas anotações realizadas em caderninhos na frente dos vendedores levantaram suspeitas. Certo dia me sentei no corredor final do Shopping Popular, em frente a uma banca de “bugigangas” ( uma barraca que não era alvo da minha pesquisa) para anotar uma conversa que considerei de extrema relevância. Alguns minutos depois fui abordada. Vendedora: “A moça vai querer comprar alguma coisa?” Pesquisadora: “Não, só estou dando uma olhadinha...” Vendedora: “Hum, é que você está olhando pra mercadoria e anotando depois nesse caderno. O que você tá escrevendo aí?” Pesquisadora: “Estou fazendo trabalho de escola” Desconfiada, a vendedora se escondeu atrás de outra barraca e começou a me observar de longe. Vi quando ela cochichou algo a meu respeito com outra vendedora. Naquele momento, os papéis se inverteram. Eu era a observada. Nervosa e com medo, fui embora. A troca de papéis, observador x observado, ocorreu inúmeras vezes, principalmente no início do meu trajeto, quando me apresentava com seguranças. Assim como Stoller (1998) não conseguiu fazer uma observação participante com os camelódromos de Manhattan, eu 18 também não consegui com os de Cuiabá. Se a observação participante, tão difundida como parte do método, fosse a única técnica válida do fazer etnográfico estaria com sérios problemas metodológicos. O grande suspiro aconteceu após a leitura de Mignolo (2003), assim como o autor optei por adotar as conversas como método de pesquisa. Mais do que entrevistas estruturadas ou semi-estruturadas, foram as conversas informais no camelódromo que se fixaram em minha mente, modificaram ou reforçaram argumentos e, em grande parte, possibilitaram o desenvolvimento do trabalho. Posso afirmar que, assim como Mignolo (2003), “um grande sussurro anônimo constitui os dados deste trabalho”. O subalterno Controverso pela associação negativa que os seus ouvintes fazem, o termo subalterno foi escolhido para designar o consumo realizado por parte da classe social que está à margem dos processos hegemônicos. Longe de ter um sentido pejorativo, o subalterno foi resgatado pelo Grupo de Estudos Subalternos do Sul da Ásia retomando o sentido gramsciano da palavra. Para Gramsci, subalterno designa todo e qualquer sujeito marginalizado do sistema. Para além do sujeito, Moreiras (2001) utiliza a palavra para designar qualquer pensamento contra hegemônico, em qualquer momento. O autor indica que o subalterno surge como uma forma de resistência ao hegemônico. De acordo com Dipesh Chakrabarty (2000), os estudos sobre subalternidade começaram na década de 80, na Índia. Em 1982, o periódico Estudos Subalternos: escritos sobre a história e a sociedade indiana foi lançado com o objetivo de intervir no debate sobre a narrativa da história moderna da Índia. Com o fim do domínio imperial britânico sob a Índia, em agosto de 1947, diferentes vertentes intelectuais sobre o resultado do colonialismo e do nacionalismo na sociedade indiana brotaram. Em 60, historiadores indianos contrariam a perspectiva “original” (aquela contada pelos documentos oficiais do governo britânico e pela história tradicional ensinada) de que o domínio da Inglaterra favoreceu a Índia sócio-economicamente e politicamente. Para esses estudiosos, o colonialismo teve efeitos catastróficos para o desenvolvimento econômico e cultura do povo indiano. Com um pensamento extremista, o historiador de Cambridge, Anil Seal, apresentou o nacionalismo crescente na época colonial como construção de uma 19 pequena elite indiana formada em instituições educacionais britânicas que colaboraram com o império inglês com o intuito de conseguirem poder e privilégio. Em 73, Seal descartou qualquer idealismo e ideais da história da Índia estabelecendo os interesses políticos e econômicos como os únicos agentes históricos. Para Seal, essa era a conseqüência da penetração do colonialismo nas estruturas do poder local. Outra visão extrema foi apresentada pelo historiador Bipan Chandra que enxergou a história colonial da Índia como uma batalha épica entre as forças do nacionalismo e do colonialismo. Recorrendo a Marx e às teorias latino-americanas de dependência e subdesenvolvimento, Chandra argumentou que o colonialismo foi uma força regressiva que distorceu o desenvolvimento da sociedade e da política indiana. Diferente de Seal, para Chandra, o nacionalismo era a força regeneradora capaz de unir e produzir o povo indiano contra os britânicos. Nos anos 70, nenhuma das duas correntes era considerada válida no meio acadêmico. De um lado, não podia se pensar em uma política nacionalista totalmente sem ideais. De outro, o nacionalismo exacerbado já estava desgastado. É nesse contexto que surgem os estudos subalternos com uma alternativa para fugir tanto da perspectiva dos historiadores de Cambrigde, quanto dos nacionalistas. Para Ranajit Guha, editor até 1988 da série Estudos Subalternos: escritos sobre a história e a sociedade indiana, ambas as visões dos historiadores sobre o nacionalismo estavam de acordo com a perspectiva das elites, sejam elas britânicas ou indianas. Nas duas teorias não havia a contribuição da ação do povo indiano na formação e desenvolvimento do nacionalismo, isto é, não tinha aquilo que a população fez para e por si mesma. Amparados em Gramsci, os estudiosos do Grupo de Estudos Subalternos descartaram a leitura determinista de Marx e tentaram produzir análises históricas com os grupos subalternos sendo sujeitos da história. Para isso, a razão histórica foi articulada com os grandes movimentos democráticos da Índia. A idéia de Guha era que o povo ou a classe subalterna se organizou, durante o domínio britânico, de maneira diferente da elite. Enquanto a política da elite era feita verticalmente, a dos subalternos era horizontal. Enquanto a elite era mais legalista e confiava na adaptação indiana às instituições parlamentares inglesas, a política das classes subalternas dependia de organizações tradicionais ligadas ao parentesco e a territorialidade. 20 Chakrabarty (2000) recorreu a Guha (1984, VII) para explicar o principal objetivo do Grupo: “Nós oporemos, em realidade, a prática prevalecente na historiografia acadêmica (...) já que essa fracassou em reconhecer o subalterno como criador de seu próprio destino. Esta crítica se encontra no coração de nosso projeto”. A separação de Guha entre a política da elite e dos subalternos teve implicações radicais para teoria social e historiográfica. Por exemplo, enquanto a tendência marxista dos anos 70 analisava a revolta campesina indiana (organizada pelo parentesco, religião e casta) como um anacronismo dentro da modernidade, Guha insistia que os campesinos foram uma forma de contemporaneidade dentro do colonialismo, mais do que isso a revolta campesina, para o estudioso, foi parte fundamental da modernidade da Índia colonial. Ao invés de enxergar a insurreição campesina como pré-política, assim como os historiadores da elite e marxista, Guha via a revolta como uma luta para destruir os símbolos de prestígio social e do poder das classes dominantes. No final de década de 80 e início de 90, o Grupo de Estudos Subalternos do Sul da Ásia causou grande impacto entre os estudiosos da América Latina nos EUA e os próprios intelectuais da América Latina. Em 88, as ideias do grupo foram traduzidas pela Selected Subaltern Studies, em Nova York. Atualmente, os estudos subalternos estão em múltiplos campos. Ultrapassando o projeto original, o subalterno adentrou as discussões póscolonialistas e pós-modernas. Mignolo (2003) aponta que um dos avanços dos estudos subalternos é tentar rearticular a noção de processos civilizatórios. Ao invés de dicotomizar a história, substituir semelhança x diferença, por semelhança na diferença. Portanto, a ideia dos estudos subalternos é colocar o sujeito marginalizado como construtor de seu próprio destino, produzindo ouvidos para a sua voz. Assim, o termo subalterno é totalmente aplicável ao camelódromo lócus por excelência de subalternidades. Os capítulos A dissertação está exposta em três capítulos. O primeiro apresenta um breve histórico sobre a moda, o consumo e revela o embasamento teórico que fundamenta este trabalho. Inicialmente, utiliza-se de perspectivas teóricas que mostram como a moda, através dos séculos, foi agente de transformações que originaram as sociedades modernas – sendo palco e 21 vitrine de mudanças de valores e de processos de individualização de períodos diversos – e conjugou desde seu nascimento princípios de distinção e mimetismo: sendo instrumento de representação, afirmação e pretensão social. Além disso, o capítulo explica como na sociedade de consumo o sistema de moda não está presente apenas em um segmento fechado, mas perpassa todas as áreas: organizando a produção e consumo de massa sob a lei da obsolescência, da sedução e da diversificação (Lipovestsky 2008) (Brandini 2009). Em seguida, é realizada uma apresentação histórica sobre as teorias em torno da prática de consumo. Prática intrínseca nas sociedades ocidentais contemporâneas, estudar o consumo torna-se cada vez mais relevantes para a compreensão dos mecanismos que nos guiam socialmente. De acordo com pesquisas realizadas em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Data Folha, o consumo no Brasil cresce de maneira acelerada tendo o poder de compra do brasileiro atingido R$ 2,2 trilhões em 2010, o equivalente ao PIB da Espanha. Amparada em Canclini (2006) e Appadurai (2008) a visão aqui adotada é que o consumo – nas sociedades contemporâneas – mais do que estabelecer vínculos de diferenciação, desenha traços de pertencimento. O objetivo deste capítulo é construir bases para, junto à análise empírica, refletir sobre o consumo de Moda no Shopping Popular de Cuiabá. O segundo capítulo inicia narrando o contexto socioeconômico em que o Shopping Popular nasceu: longe de ser exclusivo do cenário cuiabano, o crescimento do comércio informal se deu em toda a América Latina devido, principalmente, ao alto índice de desemprego. Em seguida, através de descrições e fotos, o ambiente do camelódromo localizado no Porto é contextualizado, mostrando como a população do Shopping Popular fissurou ao longo dos últimos anos o sistema no qual está englobada. Posteriormente, dados sobre o consumo de vestuário de roupa e da moda no Shopping Popular são apresentados e analisados. No terceiro capítulo, através da descrição de algumas práticas cotidianas dos consumidores e vendedores do Shopping Popular e dados empíricos daqueles que consomem o vestuário do camelódromo, é analisado o gosto de consumidores da classe subalterna que freqüenta este espaço. Dialogando com Certeau (2010), Barthes (2009), Bourdieu (2008) é mostrado como todo vestuário comentado coincide com o ser da Moda e como essa é signo de diferenciação pessoal. Além disso, é explicado como a moda praticada no camelódromo funciona como uma tática para fugir do julgamento estético social hegemônico. 22 Finalmente, a discussão apresentada neste estudo pretende acrescentar dados acerca do vestir, do ser e dos modos de fazer das classes subalternas, através do recorte realizado no Shopping Popular de Cuiabá. Aproprio-me de Barthes (2009) para esclarecer que aqui não serão encontradas as certezas de uma doutrina, nem conclusões invariáveis de uma pesquisa, mas crenças, tentações e provações de uma aprendizagem. O convite é que o leitor reflita sobre as várias poéticas de ser e existir. 23 I – MODA, CONSUMO E MODERNIDADE: REINVENTANDO CORPOS E ESPÍRITOS 24 1.1 O nascimento da moda No Ocidente, a moda assumiu tamanha proporção que até mesmo os indivíduos ditos "anti-moda" acabam, de alguma forma, assujeitados a ela. Entretanto, este sistema tão presente na sociedade moderna não pertenceu a todas as épocas e civilizações. Segundo Lipovetsky (2008), a moda, como reino do efêmero sistemático, das rápidas flutuações sem amanhã, tem começo localizável na história: Idade Média, momento do nascimento e desenvolvimento também do mundo moderno ocidental. Em seu sentido mais estrito, a moda não surge antes da metade do século XIV, quando as togas únicas são substituídas por trajes diferenciados para os dois sexos. A partir deste momento as mudanças começam a se precipitar, passam de fenômeno acidental para regra. Muitos foram os fatores que tornaram possível o aparecimento da moda na Europa Ocidental depois do ano mil. O crescimento econômico a partir do século XI possibilitou o renascimento monetário, o comércio e o impulso das cidades. O feudalismo permitiu cortes ricas ávidas em ostentar demonstrações de luxo. A intensificação do comércio com estabelecimento de feiras e feitorias distantes enriquece a burguesia. Mas a reviravolta perpétua da moda mais do que as situações socioeconômicas está associada a novas valorizações sociais, essas ligadas a uma nova posição e representação do indivíduo em relação ao conjunto coletivo. Desde o seu surgimento, a moda – através dos trajes – atuou como um dos principais agentes de transformação social, permitindo que o sujeito saísse de um sistema fechado para um aberto a mudanças, a personalizações. Valéria Brandini (2009) afirma que antes do século XIV a busca pelo prazer estético e sexual era exterior à composição indumentária. Segundo a pesquisadora, nos séculos seguintes (XVI e XVII) a moda consolidou-se como prazer estético, elemento de individualização das aparências, de diferenciação como elemento de ambição e tentativa de mobilidade social. Lipovetsky (2008) também afirma que são nestes séculos que a moda reforça um sentimento de pertencimento a uma comunidade política e cultural. A moda na era aristocrática é uma moda nacional e o individualismo nacional presente nesta sociedade gera um individualismo estético, pois embora a moda imponha uma regra conjunta deixa espaço para manifestação de um gosto pessoal. É preciso ser como os demais, mas não inteiramente iguais a eles. É preciso seguir a corrente e, ao mesmo tempo, destacar um gosto particular. É preciso conjugar mimetismo e individualismo. 25 Signo de individualidade estética, a moda a partir do século XVII ganha um caráter mais hedonista como na prática do prazer frívolo, da sedução, da representação do amor cortês – heterossexual e homossexual –, veículos da vaidade humana e projeção da exuberância dos seres. Os trajes sexualizam a aparência, desenham os atrativos dos corpos. O vestuário masculino desenha a cintura no gibão curto, o feminino faz aparecer nos decotes os ombros e o colo. Valéria Brandini (2009) afirma que estudiosos da época aristocrática associam a busca pelos prazeres da construção da imagem pública através da moda a uma forma de escapismo, semelhante à consagração das novelas e do amor romântico. A moda como vitrine da consagração da vida pública. Mas é somente no século XIX, nas emergentes metrópoles orientadas pela modernidade onde novas estruturas sociais e familiares nasciam, que a moda passa a atender as necessidades do indivíduo como membro de um grupo. É nesta época que os trajes masculinos e femininos se diferenciam ao extremo (antes até mesmo os tecidos eram os mesmos), tornando a moda essencialmente feminina. E foi sob a influência da moda urbana ocidental deste século que a realidade atual da moda do século XXI constituiu-se, agora sob o signo da pós-modernidade. 1.2 A nova subjetividade do século XIV Com o êxodo rural, o desenvolvimento industrial e a ascensão do capitalismo, novos guetos, comunidades e culturas se desenvolveram com a mesma velocidade que as máquinas geraram novos padrões socioeconômicos e étnicos nas cidades europeias. A vida nas metrópoles do Ocidente trouxe consigo não só a redefinição de valores e códigos morais, mas também uma revolução no âmbito do privado, gerando novos padrões de feminilidade e apresentação da imagem pública. E a moda foi, a um só tempo, palco e agente destas mudanças. A figura do homem aristocrata, elegante e soberbo, é substituída pela imagem do homem empreendedor, austero. Os trajes masculinos, símbolos de poder, são substituídos pelo traje preto e, mais tarde, o terno. A moda torna-se essencialmente feminina. A mudança na indumentária masculina representa uma mudança na própria identidade da sociedade. O vestuário aristocrático representa a banalização do luxo ostentatório que não 26 cabe para a nova sociedade burguesa defensora de ideais igualitários. Acrescenta-se aqui também o fato de que os trajes masculinos ostensivos passaram a ser, em geral, associados ao homossexualismo que, em muitos países europeus, como a Inglaterra, estava sendo condenado. Com a industrialização houve uma tendência de padronização, as novas tecnologias de produção acompanhavam a propensão para certa uniformização da imagem pública do sujeito, exposta principalmente na indumentária masculina. Brandini (2009) recorre a Richard Sennet para explicar que o capitalismo industrial pressionava a cultura pública urbana em direção à privatização, ao mesmo tempo em que ‘mistificava’ a vida material em público, especialmente em termos de roupas, em face da produção e distribuição em massa. A preocupação com a exposição do “eu” na vida pública e com a captura da personalidade, através dos trajes ou dos signos da moda, produz uma mistificação aos objetos. Ao contrário dos séculos anteriores pré-revolução industrial e antes do advento da moda, em que a indumentária revelava a classe social do indivíduo, a partir do século XIV o que se pretende expor, através de uma construção de imagens, é o “eu” do sujeito, com drásticas conseqüências (inclusive atuais) para as relações sociais, particularmente em torno da mistificação da imagem, já que ela seria reveladora da essência do sujeito. O século XIV – o século do advento da moda – é, portanto, um momento de quebra, de renovação de mente e valores, de adoção de novas práticas derivadas daquilo que conhecemos como modernidade. 1.3 Alta Costura e moda no último século A instalação da moda ao longo da segunda metade do século XIX se deu com a consequente implantação de um sistema de produção, difusão e consumo que se estabelece até hoje. Lipovetsky (2008) caracteriza esta fase, que vai da metade do século XIX até a década de 1960, como a “moda dos 100 anos”, nas palavras do filósofo, a primeira fase da chamada moda moderna, seus momentos históricos e sublimes. A moda moderna é formada em torno de duas indústrias novas: a Alta Costura, inicialmente chamada de “Costura”, e a confecção industrial. Segundo Vincent-Ricard (1989), a Alta Costura surge conjugando as belas artes, o rigor técnico e um processo de 27 personalização, da escolha individual, da sedução que torna o corpo objeto de desejo, de paixões e de prazer estético. Embora a confecção industrial tenha precedido o surgimento da Alta Costura, em 1820 – longe da era da mecanização – instala-se na França uma produção de roupas novas, em grande escala e barata, somente a Alta Costura desfrutou do status de “celebridade mundial”: só ela se beneficiou da publicidade regular e acelerada imprensa especializada, além de somente ela ter conseguido mover leis contra falsificação e plágio. Com a Alta Costura, a moda chega à era moderna não só como empresa de criação, mas também como espetáculo publicitário e fomentadora da economia. Na metade dos anos de 1920, a moda (representada pela indústria de luxo da Alta Costura) ocupará o segundo lugar no comércio exterior. Para entender a proporção da influência da Alta Costura na moda moderna, deve-se ressaltar que é a primeira vez que a moda atinge os sujeitos numa escala global. Desta vez, os países, principalmente os industrializados, como os Estados Unidos, compram o direito de reprodução em grande série das confecções em seus territórios. A moda moderna, representada pela Alta Costura, é, portanto, a primeira manifestação de um consumo de massa, homogêneo, estandartizado e indiferente a fronteiras. Por que não dizer que a moda moderna não é um dos primeiros passos do mundo global? Sob a égide parisiense da Alta Costura, a uniformização mundial da moda. Se por um lado há centralização, internacionalização e homogeneização, por outro, a moda moderna também ordena a democratização de si própria. Com as novas estruturas e padrões sociais, no início do século XX o luxo torna-se signo de mau gosto e a verdadeira elegância está na discrição1. Esta discrição clean acompanha toda uma estética moderna na arte e na literatura, no design, na arquitetura. Não é um fenômeno exclusivo da moda. É o gosto moderno sendo forjado por regras rígidas de combinação entre elementos, formas, cores, quase sempre primando pela “simplicidade”, despojamento, economia e cautela no uso das cores. Isso é ser moderno. Nos anos 10, as mulheres saem dos lares e começam a trabalhar fora, suas roupas então perdem a elaboração e começa aqui um processo de nova aparência resultado da democratização do mundo do 1 Brandini (2009) associa a discrição do vestuário, iniciado no século XIX, a um novo contexto sócio-cultural Ocidental em que, segundo a autora, a rua enquanto território da vida coletiva torna-se um verdadeiro palco onde as subjetividades são protegidas em função de “personas”, máscaras sociais que valorizam detalhes da personalidade que, exposta em público, pode revelar indícios das subjetividades omitidas. 28 trabalho e também da moda. Nos anos 20, comandadas por Coco Chanel2, as mulheres trocam o luxo vistoso por vestidos justos e simples, chapéus em forma de sino, calças de malha e lã. 1.4 A rua invade as passarelas Com o fim da moda dos 100 anos, coincidentemente o fim da hegemonia da Alta Costura e a introdução do sistema prêt-à-porter3, um novo período da moda se instala na sociedade, denominada por Lipovetsky (2008), como “moda aberta”. O período após a Segunda Guerra Mundial foi marcado por um forte sentimento consumista gerado pela euforia e prosperidade financeira que os Estados Unidos passavam. O desejo de moda, nesta época, expandiu-se se tornando um fenômeno comum a todas as classes sociais. O fortalecimento do individualismo e de uma cultura hedonista generalizada, do bemestar, da felicidade imediata e do lazer acarretou, nas palavras de Lipovetsky (2008), a última etapa da legitimação e da democratização da moda. Na década de 60, uma cultura juvenil, certamente ligada ao baby boom4, invade as estruturas sociais. O jovem possui, nesta época, poder de compra e cria sua própria moda. As empresas de moda, por sua vez, correm para atender a nova clientela. Conscientes desse novo mercado consumidor e de sua voracidade, as empresas criaram produtos específicos para os jovens, que, pela primeira vez, tiveram sua própria moda, não mais derivada dos mais velhos. Aliás, a moda era não seguir a moda, o que representava claramente um sinal de liberdade, o grande desejo da juventude da época. (GARCIA 2008:45) O jovem dos anos 60 utiliza o corpo para expressar sua rebeldia e desnudá-lo torna-se uma tendência. A transparência das blusas deixa à mostra as lingeries, a minissaia torna-se ícone. E a maior influência dos estilistas deste período é a rua. 2 Com estilo e elegância, Gabrielle "Coco" Chanel revolucionou a década de 20, libertando a mulher dos trajes desconfortáveis e rígidos do final do século 19. Um verdadeiro mito, Chanel reproduziu sua própria imagem, a mulher do século 20, independente, bem-sucedida, compersonalidade e estilo. Sua moda, atemporal e elegante, é referência até os dias atuais. (Disponível em http://almanaque.folha.uol.com.br, acesso em 20/09/10) 3 Expressão que significa “pronto para vestir” ou “pronto para usar”. Indica roupas confeccionadas em série, como resultado da industrialização da moda. Até então, as roupas eram feitas sob encomenda e sob medida. O sistema prêt-à-porter cresceu principalmente nos Estados Unidos, onde as técnicas de produção de massa já estavam bem desenvolvidas. (Disponível em http://www.termbases.eu, acesso em 30/09/2009) 4 A definição mais aceita da Geração Baby Boomer é que ela compreende as pessoas nascidas entre 1946 e 1964. O ano de 1946 marcou o início do aumento dos nascimentos nos Estados Unidos e os números, embora tenham atingido seu pico em 1957, permaneceram estáveis até que, finalmente, começaram a diminuir em 1965. (Disponível em http://pessoas.hsw.uol.com.br/, acesso em 30/09/2009) 29 Nos Estados Unidos, Bill Blass, Anne Klein e Oscar de la Renta, influenciados por elementos da art nouveau5, criaram um estilo próprio que variava entre o psicodélico ou geométrico e o romântico. A moda se fundia a todo um sentimento juvenil próprio da época de liberdade e rebeldia e dialogava com as manifestações artísticas e culturais emergentes: a Arte-Pop, o cinema nouvelle vague (carregado de críticas sociais) e o rock and roll. Era o fim da moda única, e o advento de uma moda cada vez mais ligada ao comportamento. O vestuário deixa de ser distintivo social e impõe-se como distintivo individual e estético, emblema da própria modernidade. Segundo Garcia (2008), a moda dos anos 60 incorpora as roupas antes reservadas às classes operárias e camponesas, como é o caso da calça jeans que de roupa funcional (de operário) é transformada em peça fundamental e básica do guarda-roupa ocidental da segunda metade do século XX e segue sendo nos dias de hoje. Dos anos 70 em diante, a moda está cada vez mais ligada a tribos urbanas. As roupas e acessórios definem pertencimentos e territorializam o sujeito. Os hippies dos anos 70 são identificados por sua batas coloridas, saias compridas, roupas indianas e flores no cabelo. Nos anos 80, o movimento punk difunde as roupas escuras, as correntes e os cabelos eriçados. Simultaneamente, o conceito de griffe (do verbo griffer, marcar com a unha) ressurge com os novos jovens profissionais ingressos no mercado de trabalho. Um novo gesto se dissemina na moda: o de estampar as marcas do mundo fashion. A etiqueta que antes estava escondida no avesso da roupa é deslocada e especialmente concebida para ser exibida na roupa. Isso vem acompanhado com um impressionante processo de construção de um “espírito” da marca e na fetichização do seu uso como atribuidor de qualidades e distinção ao indivíduo. Com a globalização e a intensificação de circulação de objetos, pessoas e informações, a moda adentrou o século XXI muito menos tribal e muito mais híbrida. Atualmente, não existe hoje no mundo da moda, uma forma mais comunicativa do que a street wear ou moda de rua. Além de discursar sobre realidades e abstrações do cotidiano, a moda urbana altera o fluxo dos padrões de consumo por meio da criação de “designers que influenciam o grande 5 A Arte nova (do francês Art nouveau), foi um estilo estético essencialmente de design e arquitetura que também influenciou o mundo das artes plásticas. (Disponível em http://www.termbases.eu, acesso em 30/09/2009) 30 mercado do vestuário (sobretudo, os designers da nova vanguarda inglesa), torna-se o corpo de mensagens de crítica e até mesmo autocrítica acerca do universo da moda”6. Diferente dos anos iniciais da modernidade, em que a Alta Costura era parâmetro através do contexto burguês, os novos designers, principalmente da vanguarda inglesa, buscam inspiração nas ruas, incorporando valores desta urbe: pólo desterritorializado de convergência de muitos dos valores e idéias vivenciados na sociedade contemporânea. O movimento de colocar nas passarelas o “ordinário” começou com Hussein Chalayan7, Alexander McQueen8 e Vivienne Westwood9 que transportaram para a lógica do luxo a vivência de tribos urbanas que habitam as ruas de grandes metrópoles como Londres, Milão, Paris e São Paulo. A esta nova forma de fazer moda, Brandini (2007: 24) denomina de eXtrema e a conceitua como : “a transformação da expressão de moda clássica em seu oposto: a elegância e a distinção sucumbem frente ao belo conceitual do bizarro e da inserção do Outro, da diferença, da alusão aos excluídos num universo outrora regido pelo glamour”. Segundo a autora, esta moda eXtrema que veste a rua, se veste de rua, incorporando símbolos que representam a rua, seu tempo, sua cultura, a crise dos gêneros, da fé, da família. A moda destes designers mais do que estilo e tendência, torna-se “objeto de ação expressiva, de comunicação de mensagem, de transmissão de significados, não apenas referencial de status, mas forma de arte, forma de comunicação” 10. Vale ressaltar que neste caso o vestuário não se restringe à comunicação. A criação mais radical, muitas vezes, aposta justamente no estranhamento, no embaralhamento dos códigos, transformando moda também em arte. Na Inglaterra, é tal o impacto do trabalho desses designers/artistas que suas coleções passam a ser expostas em museus. Conhecer o vestuário é conhecer a história, o pensamento, a cultura das sociedades. As roupas comunicam, expressam discursos sobre a realidade vivida no mundo contemporâneo. Em 2005, após os ataques em Londres, Westwood lançou uma camiseta com 6 Bradini (2007:24) Nascido em 1970, o estilista é considerado gênio da moda por misturar em suas criações aspectos da cultura contemporânea, como o a virtualização e o robotismo do mundo. 8 Nascido em 1969, foi considerado o bad boy da moda inglesa por seu estilo controverso e “chocante”. 9 Nascida em 1940, a estilista é considerada mãe do movimento punk e fundadora do movimento new wave moderna na moda. 10 Bradini (2007:25) 7 31 a frase “Não sou terrorista, por favor, não me prenda”, em protesto contra as leis antiterroristas adotadas pelo governo inglês. McQueen, por sua vez, dá voz aos excluídos colocando em seus desfiles Sophie Dahl (uma manequim gorda) e modelos com deficiência física. Em 2006, Chalayan utilizou materiais tecnológicos para sua coleção. O vestido “Airborne” foi construído com 15 mil mini-lâmpadas e o vestido “Before Minus Now”, com materiais de construção de aviões, que muda de forma quando ativado por controlo remoto. O vestido “Readings”, por sua vez, foi confeccionado com 200 lasers que se movimentam produzindo um efeito de pirotecnia. No Brasil, Alexandre Herchcovitch, em 2007, utilizou trouxe o universo dos boiasfrias para as passarelas. A grife Blue Man, nos Arcos da Lapa, também no ano de 2007, teve como abertura da coleção homens negros com velas na mão, numa referência ao sofrimento dos negros trazidos ao Brasil em calabouços de navio. A coleção nomeada "Samba King", por sua vez, exaltava em suas peças, biquínis e maiôs, as praias brasileiras e a cultura afro. A moda hoje, principalmente a urbana, é vitrine da sociedade contemporânea, “registro histórico, corpus antropológico, ideológico, também futurista – a moda veste a rua”. 11 1.5 A era da moda consumada Gilles Lipovestky (2008) pergunta-se onde começa e onde termina a moda na era da explosão das necessidades, da mídia, da publicidade, dos lazeres de massa, das estrelas e dos musicais. Para o filósofo francês, o período em que o universo dos objetos, da cultura, dos discursos de sentido e até da própria política se reorganizam na forma moda é denominado “moda consumada” e se instala na sociedade a partir do século XIX. Para entender este novo período é preciso desterritorializar a moda, tirá-la de um setor periférico e específico, e colocá-la como uma “forma geral em ação no todo social”12. Não mais a moda caracterizada pelo luxo das aparências e a superfluidez dos adereços, mas como sistema que modela a sociedade contemporânea: imersa na tripla operação que define a moda 11 12 Brandini (2009:29) Lipovetsky, O Império do Efêmero, 1989. 32 propriamente: o efêmero, a sedução e a diferenciação marginal. Uma nova sociedade que saída das ideologias rígidas (que caracterizavam as sociedades democráticas inaugurais) e entregue à frivolidade, entra no seu momento mais flexível, comunicacional e inconstante. Todavia, engana-se quem entende esta nova fase como a decadência de uma sociedade esvaziada de valores superiores e entregue ao esnobismo. A era da moda consumada não é sinônimo do fim de conteúdos sócio-políticos, mas de uma nova relação com os ideais democráticos, de uma renovação de mente que dissolve os grandes referenciais tradicionais e elege como valor a “mudança” das coisas, dos sentidos e a autonomia dos sujeitos. A esta nova sociedade comandada pela forma moda, ou seja, que vive sob a lógica do efêmero, do passageiro e do gosto pelo novo, Baudrillard nomeou (1970) de sociedade de consumo. 1.6 Sociedade de Consumo Para compreender a sociedade de consumo é necessário voltar a sua gênese. Com o surgimento do capitalismo comercial no século XV, inicia-se um novo período econômico e cultural que nega os valores católicos feudais, baseados no mercantilismo13, enfraquece a nobreza e aumenta o poder econômico e político da burguesia. Com a Revolução Industrial, iniciada no século XVII na Inglaterra com a mecanização do sistema de produção, a burguesia enriquece e precisa de novos aparatos não só na produção de bens, mas também para a produção de sentidos para si e para esse mundo. Era necessária uma nova ideologia que explicasse e legitimasse a avidez pelo lucro e pelo desenvolvimento acelerados burgueses. Surgiram, então, filosofias iluministas como a de John Locke que pregava o fim dos Estados absolutistas e a plena liberdade econômica, sem intervenção do Estado. Simultaneamente aos novos ideais políticos, constituiu-se uma nova ética, denominada por Max Weber de ética protestante. Com a tradicional condenação do acúmulo das riquezas, e, portanto, do lucro, a Igreja Católica era um obstáculo ao crescimento da burguesia emergente que irá se refugiar num cristianismo revisitado, isto é, reformado, que crê na predestinação divina para a riqueza: os ricos seriam os escolhidos por Deus, quanto mais riquezas mais se confirma sua predestinação. 13 Tota e Bastos (2000) afirmam que o mercantilismo visava manter o tesouro dentro do Estado, cuja regra fundamental era vender caro e comprar barato. 33 Capoia e Caniato (2005) afirmam que o acúmulo incrível de capital, extremamente necessário para o desenvolvimento da primeira fase do capitalismo, só foi possível graças a esta nova ética que não tornava o lucro pecaminoso, mas também não permitia que o indivíduo gastasse acima do necessário. O consumo deliberado era visto como relegado a pessoas sem fé debruçada sobre os prazeres mundanos. Talvez pela condenação do consumo, em sua primeira fase, o capitalismo voltou-se mais para o setor primário, de produção de bens industriais voltados para a produção, renegando o setor secundário, de bens industriais não duráveis. A super produção do setor primário em detrimento do segundo gerou a crise de 29. O capitalismo, então, precisou ser reformulado e adequado a nova realidade social, já não se podia mais condenar o consumo, pelo contrário dever–se-ia estimulá-lo e, para isso, a sociedade precisava ser reeducada na cultura do consumo, criando nela o desejo de coisas novas e melhoras. Fica evidente, portanto, que a sociedade de consumo surge da necessidade de manutenção do sistema de produção vigente, para que este não faleça, ou seja, da necessidade de transformação do capitalismo industrial para o capitalismo de consumo. Pautada em ideais de liberdade e igualdade, a sociedade de consumo nasceu mais por necessidade histórica do que por desejo próprio, mas o fato é que sua renovação mental só foi possível pela flexibilidade pertencente à nova sociedade contemporânea. Baudrillard (1970) afirma que a aspiração à liberdade e felicidade de todos os indivíduos, arquitetada pelo Iluminismo, é a referência máxima da sociedade de consumo. Para o filósofo, a sociedade de consumo repousa sobre a lógica da distinção social e nela estão estabelecidas as novas relações entre os objetos e os sujeitos. A sociedade de consumo, com sua obsolescência programada, não é senão uma imensa produtora de signos. Para Baudrillard, numa era em que a hierarquia de nascimento foi banida, não se consome pelo prazer do novo, mas para se diferenciar socialmente, se reinscrever em novas posições, para produzir valores de signo que manifestem quem o sujeito é ou quem gostaria de ser. Os objetos adquirem valores de distinção social, sendo signos de posição ou aspiração social. O valor de uso14 da mercadoria não impulsiona o consumidor, mas sim o poder de comunicação do objeto. O consumo aqui não tem como motivação a ideologia hedonista, mas sim a competição por status. 14 Segundo Karl Marx, em “O Capital”, valor de uso é aquele atribuído pela utilidade de uma coisa, que não surge no ar. É determinada pelas qualidades físicas da mercadoria e não existe sem isso. 34 Por também compreender a lógica da moda como fruto do gosto do sujeito pela diferenciação social, Baudrillard analisa a forma moda como espinha dorsal da sociedade de consumo. Lipovetsky (2008), entretanto, tem uma perspectiva diferenciada da moda consumada e da sociedade de consumo em si. Para o filósofo, numa era em que os gostos se individualizam, a imagem do produto está para além da vinculação social. Não que os objetos não possuam função de signo e sejam agregados de significantes sociais, todavia, o que move o consumo de massa é o prazer próprio, a satisfação privada. Mesmo que haja ainda o consumo para distinção, denominado por Lipovetsky como consumo prestigioso, ele se difere do modelo de consumo de massa, que repousa bem mais nos valores privados de conforto, de prazer de uso funcional. Consome-se, portanto, mais pela lógica da individualização, própria do sistema de moda, e cada vez menos para ofuscar o Outro. Assim, o objeto não desempossa seu dono, mas o sujeito desempossa o objeto. O consumo engendrado na forma moda se torna meio e não fim. O hedonismo de massa (epicentro cultural da moda consumada) impulsiona a autonomia individual e gera uma nova economia, denominada por Lipovetsky como frívola ou economia moda. 1.7 A Economia Moda Para Lipovetsky, a sociedade de consumo é definida estruturalmente na generalização do processo moda, ou seja, a produção e o consumo de massa são orquestrados sob a forma da lei da obsolescência, da sedução e da diversificação. Nesta, até mesmo a indústria de consumo se baseia nos três princípios inaugurados pela Alta Costura. Resumindo, a sociedade de consumo é aquela que passa o econômico para a órbita da forma moda. A forma moda perpassa toda lógica econômica, que tem no efêmero sua principal regra para produção e consumo de objetos. Para continuar no mercado as empresas precisam lançar continuamente novos artigos, sejam eles inovações ou uma versão melhorada do mesmo produto. Na era da moda consumada, a mudança e a instabilidade próprias deste sistema são características inerentes à produção e ao consumo de massa. Surge, assim, uma sociedade de ordem econômica organizada como a moda, uma economia moda, em que até mesmo a lei de oferta e procura funciona pelo Novo, o qual 35 aparece como o imperativo categórico da produção e do marketing, a economia-moda caminha na sedução insubstituível da mudança, da velocidade e da diferença. Numa economia baseada no novo, o gadget (do inglês, “a mechanical contrivance or device”) ou “dispositivos mecânicos engenhosos destinados a satisfazer pequenas funções particulares da vida diária”15, torna-se a essência do objeto de consumo: utensílio nem realmente útil, nem realmente inútil. São exemplos de gadget, o descascador de batatas, o tostador elétrico de torradas, o aparelho de som estéreo com entrada USB e leitor de MP3, ou seja, toda a gama de objetos que parece ter uma gratuidade técnica mais ou menos ostensiva. Segundo Baudrillard, por possuírem uma natureza artificiosa, embora tenham função técnica, ao gadget é atribuída uma relação de consumo muito mais lúdica do que utilitária. Consome-se não porque o objeto possua inovações ou pequenas alterações que trazem conforto e mais eficácia, mas sim por uma doença engendrada na nova sociedade que Lipovetsky denomina, amparado em Abraham Moles, de “patologia do funcional”. Entretanto, Lipovetsky critica a ideia da inutilidade patológica e atenta para o fato de o gadget traduzir a nova sociedade de consumo que vê nos “acessórios a mais” contidos nesses objetos exemplos de operatividade ótima. Com a forma moda consumada na economia o que vemos com mais freqüência é a despadronização dos produtos, oferecendo ao consumidor a possibilidade ampla de escolhas e opções. Se antes só o vestuário era diferenciado pelos pequenos adereços, agora todos os objetos de consumo de massa o são. A Coca-Cola, por exemplo, pode ser Coca Diet, Coca Light, Coca Zero. Ao invés da unicidade, a economia moda inaugura o império da semelhança pelas pequenas diferenças, compatível com a individualização crescente dos gostos. A economia moda fabrica um universo de produtos ordenados pela micro-diferença. Ainda que a forma moda tenha se arraigado na sociedade, o que teria permitido que a economia moda também tivesse se firmado e sido tão bem aceita? Segundo a lógica de que as leis que regem a economia padrão, de oferta e procura, também governam a economia moda, acreditamos que a análise deva começar por esse ponto. Do lado “oferta” as razões para essa aceitabilidade estão na gênese do capitalismo o qual, juntamente com seu sistema da concorrência econômica, tem raiz no mundo efêmero generalizado. Já do lado “procura” a análise é mais complexa. O que faz uma novidade ser aceita? O que faz a economia se engendrar na lógica das pequenas diferenças combinatórias? Para 15 Moles apud Leodoro (2008:5) 36 Baudrillard (1970) e Bourdieu (2008) a sede pela novidade surge de uma orquestração objetiva de duas lógicas relativamente independentes, mas funcionalmente homólogas: de um lado, a lógica da concorrência inerente ao campo da produção; de outro, a lógica das lutas simbólicas e das estratégias de distinção das classes que determinam os gostos de consumo. É o encontro destas duas lutas internas, de diferenciação da produção de bens e de gostos, que gera a economia moda, que encontra seu lugar na luta de classes. Entretanto, a lógica marxista da luta de classe não é suficiente para explicar, por exemplo, como as diferentes colorações de um mesmo modelo de tênis constituíriam “dominantes x dominados”. A lógica da distinção não dá conta da escalada sem fim da diversificação e da superescolha industrial, as quais só poderão ser compreendidas no âmbito da produção de valores culturais. 1.8 Consumo e Cultura Não houve um momento na história da humanidade em que o consumo estivesse estritamente ligado a economia. Pelo contrário, seu peso cultural e representacional foi constante. Assim como o mercado não é somente um local para compartilhamento de produtos, mas também para interações sociais e simbólicas, o consumo não é apenas um lugar de satisfação de necessidades e apropriações de bens. Consumir é pertencer, distinguir-se, integrar-se, é criar uma ordem de significados e posições sociais sobre si mesmo. Uma das primeiras teses sobre o motivo do consumo nasceu na teoria econômica utilitarista, a qual afirmava que o sujeito quer bens por dois motivos: para atender suas necessidades e por inveja. Por “necessário”, esses teóricos entendiam somente aquilo que estava diretamente relacionado à sobrevivência física. O consumo de quaisquer coisas que fujam a manter-se vivo se daria apenas por inveja. Entretanto, o conceito de “necessário” pode variar de acordo com a classe econômica. Um romance clássico, para as classes populares pode ser considerado supérfluo e dispensável, já para a classe alta pode ser uma necessidade. Aos pobres nada mais que o direito a comida, aos ricos também diversão e arte. Qualquer tentativa de apropriação de bens para além do kit alimentação, moradia e saúde para as classes subalternas é tida como pura manifestação da inveja humana. Sobre esta lógica incoerente, Brandão (2007) ironicamente afirma: 37 Isso nos obriga a concluir que a riqueza seria a única possibilidade de ser virtuoso, ao passo que na categoria de irracionais e invejosos estariam todos os pobres do mundo capitalista que ousassem consumir algo além de comida e proteção para o corpo. (BRANDÃO 2007:95) Mary Douglas & Isherwood (2004) propõem o fim da dicotomia “supérfluo x necessário” e propõem uma nova definição para o consumo, agora compreendido como prática social. Assim, os autores preferem entender o consumo de bens como necessário para dar visibilidade e estabilidade às categorias da cultura. Como para Douglas & Isherwood a grande questão da vida social é manter estável por determinado tempo os significados conferidos a algo, o consumo viria como rito que prolongaria determinado sentido. A grande inovação teórica no estudo do consumo é proposta por Canclini (2006), diferentemente das demais concepções que dividiam, estabelecendo o vínculo do consumo na diferenciação, Canclini propõe o consumo como uma forma de integração. Para além da racionalidade econômica, que entende o consumo para reproduzir a força de trabalho e aumentar a lucratividade dos produtos, da racionalidade sociopolítica (marxista), que compreende o ato de consumir como campo de disputa das lutas de classes, Canclini avança para uma “teoria sociocultural do consumo” que atenta para o fato de que o objeto de consumo antes de conseguir estabelecer uma diferenciação, precisa ter algum sentido compartilhado. É no consumo que se constrói a “racionalidade integrativa e comunicativa de uma sociedade”. O ato de escolha no momento do consumo não é aleatório e involuntário, ao consumir vai se construindo territórios de significação. Canclini (2005) define cultura como “(...) conjunto dos processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social”. Para o autor, cultura é um sistema em constante transformação, criado a partir de teias tecidas entre os grupos. Se outrora para pertencer a um grupo social bastava o pertencimento a uma mesma identidade territorial e quase sempre monolingüística, agora, na sociedade contemporânea globalizada, as identidades “são transterritoriais e multilingüísticas. Estruturam-se menos pela lógica dos Estados do que pela dos mercados” 16. Extrapolando a fronteira, a territorialização do sujeito é feita de acordo com outras lógicas. 16 CANCLINI (2005:59) 38 Voltando à economia moda, só se pode entender a razão de uma novidade ser aceita a partir de seu valor cultural, porque, como exposto até aqui, no mundo globalizado, a manutenção do grupo de referência se dá por meio do próprio consumo. A moda, portanto, como expressão máxima da sociedade de consumo, para além do ato de consumir é prática cultural. 1.9 Consumo e Cidadania Antes de pensarmos na relação entre consumo e cidadania, é melhor tentarmos conceituar o que é cidadania. A conceituação da palavra ainda é bastante debatida nas ciências sociais. O que torna um sujeito cidadão? Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, criada em 1948, é de direito do indivíduo o trabalho, a alimentação, a saúde, a propriedade, a educação, a liberdade civil e religiosa. Compreende-se que este conjunto de direitos resulte na cidadania. Canclini afirma que: Para vincular o consumo com a cidadania, e vice-versa, é preciso desconstruir as concepções que julgam os comportamentos dos consumidores predominantemente irracionais e as que somente veem os cidadãos atuando em função da racionalidade dos princípios ideológicos. Com efeito costuma-se imaginar o consumo como o lugar do suntuoso e do supérfluo, onde os impulsos primários dos indivíduos poderiam alinhar-se com estudos de mercado e práticas publicitárias. Por outro lado, reduz-se a cidadania a uma questão política, e se acredita que as pessoas votam e atuam em relação às questões públicas somente em função de suas convicções individuais e pela maneira como raciocinam nos confrontos de idéias. (CANCLINI 2005:45) Canclini tem razão, para associar consumo à cidadania é necessário ir além dos conceitos estabelecidos. Ora, seria somente a participação pública através do voto que torna um sujeito cidadão? E o direito à informação, à cultura? Acreditamos que o consumo também tenha relação com a cidadania, com o direito ao acesso de certos bens e serviços. Seja no âmbito da cultura em geral (tendo acesso às informações que circulam nos meios de comunicação), seja no dos bens culturais (livros, filmes, obras de arte). Na sociedade contemporânea, baseada no efêmero, o consumo perpassa por todos os setores sociais e o que Canclini percebeu é que o indivíduo moda, mais do que lutar pelos direitos fundamentais, quer se sentir inserido. Um exemplo disto é citado por Lyra (2001), 39 quando a estudiosa relembra a ida dos integrantes do Movimento dos Sem-Teto (MTST) ao shopping Rio Sul que produziu pânico entre os comerciantes, a ponto de ser acionada a polícia militar. O que faziam os sem-teto no shopping? O que eles reivindicavam? Não é preciso ir longe, em 2009 um ambulante foi morto, espancado, ao entrar no shopping Goiabeiras em Cuiabá. Ao contrário dos sem-teto, ele não protestava, queria somente se alimentar. Mas, pelo conjunto de vestuário mais adereços, ele foi marcado como não pertencente àquele espaço social. O que tornou aquele comerciante menos cidadão dos que os demais que circulavam no ambiente? Certamente, alimentação, moradia e trabalho ele possuía. Face obscura do consumo: faz a separação entre “quase cidadão” e os “Outros”. Mas fugindo do negativismo, na ânsia de produtos culturais, o consumo integra diferentes classes em um dos mais democráticos comércios criados na sociedade contemporânea: o camelódromo. Voltando a lógica da forma moda proposta por Lipovetsky (2008), para além da diferenciação de classes, o camelô une ricos e pobres ávidos por uma só coisa: novidade e o consumo irrestrito de bugigangas ou gadget. Ao consumo transnacional de objetos made in China, falsificações e quinquilharias, Brandão (2007) nomeou como “circuito subalterno de consumo”. 40 II CIRCUITO SUBALTERNO DE CONSUMO: DA AMÉRICA LATINA A MODA NO SHOPPING POPULAR 41 2.1 Sobre circulação, fluxos e globalização “Essa crioula tem o olho azul Essa lourinha tem cabelo bombril Aquela índia tem sotaque do Sul Essa mulata é da cor do Brasil (...) Häagen-dazs de mangaba Chateau canela-preta Cachaça made in Carmo dando a volta no planeta” Paralamas do Sucesso O trecho da música dos “Paralamas do Sucesso” mostra o encontro e a mistura de etnias, continentes, bens de consumo, e, finalmente, de culturas. Em tempos de globalização, em que a intensificação dos fluxos aumenta a circulação de pessoas, objetos e informações de maneira sistemática, questões como hibridez, mistura, miscigenação, sincretismo, bricolagem, transculturação e tantos outros termos utilizados para designar fusões, tornam-se uma constante nas reflexões sobre cultura contemporânea. A circulação entre os povos, de um modo geral, pode ser encontrada em diferentes escalas na história da humanidade. A própria globalização, tida como o momento máximo dessa intensificação dos fluxos, não é exatamente algo recente, já que a noção de um mundo interligado, segundo Gruzinski (1999), é presente desde a época das grandes navegações. Entretanto, não há muitas semelhanças entre o cruzamento dos oceanos de Vasco da Gama em busca das Índias e a globalização atual. O que vivemos hoje é um processo complexo de interações sócio-econômicas, políticas e culturais, o qual incide em todas as práticas sociais. Com a queda das barreiras comerciais, a livre circulação de capital, as constantes inovações tecnológicas e a rapidez na circulação das informações, as mudanças na sociedade ocorrem de forma contraditória, desigual, plural em conteúdo e direção, e com uma velocidade jamais vista. Marc Abélès (2001), no prefácio de Aprés Le colonialisme, de Arjun Appadurai, destaca o fato de o pensador indiano afirmar que a circulação, mais do que estruturas e os organismos estáveis, é o fenômeno que define o mundo contemporâneo. Com um discurso homogeneizante, o fenômeno da globalização, parece ter tido, ao menos no primeiro momento, a pretensão de tornar os indivíduos iguais, finalmente 42 realizando aquilo que foi concebido como uma aldeia global. Entretanto, com o surgimento de tecnologias e mídias as quais permitem a circulação de informação de forma praticamente instantânea, a exemplo das mídias virtuais, não somente o contato com o Outro, e todas as suas diferenças, tornou-se inevitável e intensificado como também as transformações ocasionadas por esses encontros. Em Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade, Néstor Canclini se remete à exposição performática de Yukinori Yanagi, The World Flag Ant Farm, na Bienal de Veneza de 1993 e, posteriormente, em 1996, na 23ª Bienal Internacional de São Paulo, para demonstrar o potencial de transformação da circulação no cenário contemporâneo. The World Flag Ant Farm reunia inúmeras caixas de acrílico transparente cheias de grãos açucarados coloridos compondo, cada uma, uma bandeira nacional. As caixas se intercomunicavam através de tubos plásticos. No primeiro dia da exposição, um grupo de formigas foi colocado no sistema que se caracterizou, a partir daí, por um intenso trânsito de formigas que perambulavam17 entre os “países”. Com o passar dos dias, a perambulação das formigas vai misturando os grãos coloridos até dissolver os limites e marcas identitárias daquelas “nações”. Para Canclini, a metáfora criada por Yanagi, além de expor as variadas interações culturais que ocorrem entre os povos, também sugere que eles estão em uma constante e indiscriminada interatividade. No interior dos tubos plásticos que ligam as caixas, co-existem sujeitos distintos que ao entrarem em contato se misturam sistematicamente. “Os tubos plásticos, enquanto entre-lugares de passagem e aproximação, representam os fluxos multidirecionais de uma diferença cultural em processo de mescla e fragmentação”. (BARBERENA 2008: 138) Segundo Hannerz (1997), a idéia de fluxo sugere uma espécie de continuidade e passagem. Termo extremamente ligado com a globalização, fluxo designa mobilidade. Amparado em Scott Lash e John Urrry, Hannerz afirma que somos a sociedade do fluxo e por isso a palavra perpassa todas as áreas. Hannerz ainda apresenta duas noções de fluxo, sendo que a primeira refere-se ao deslocamento de algo, de um local para outro, num determinado tempo, estando ligada a uma 17 Perambular é um conceito muito apresentado nos trabalhos de Yanagi. Para o artista, perambular é cruzar as fronteiras, os limites. 43 questão territorial. “A segunda é essencialmente temporal sem implicações espaciais necessárias”. (HANNERZ 1997: 11) Considerar o fluxo como tempo é pensar nele em termos processuais, se opondo, portanto, ao pensamento estático. Já o fluxo numa dimensão espacial implica em pensar suas direções, e o sentido deles (origem → destino) é uma questão que divide pesquisadores. Hannerz (1997) afirma que para os que ainda associam globalização a americanização, a origem dos fluxos tenderia a vir sempre do centro dominante, no caso uma mistura de Nova York, Hollywood e a sede do Banco Mundial, o que traria como conseqüência a uniformidade global. Mas existem aqueles que já pensam na multicentralidade dos fluxos, admitindo fluxos entrecruzados e contra fluxos. No extremo da tendência “americanizadora”, estão aqueles que tendem a uma total descentralização, como Appadurai (2001) que não considera nem a possibilidade de múltiplos centros18. Hannerz parece ocupar uma posição curiosa em relação ao tema, pois, embora defenda a existência de fluxos entrecruzados e contrafluxos, acredita, ao contrário de muitos pensadores contemporâneos, que seja totalmente possível distinguir os centros das periferias, visto que vários exemplos podem ser observados na “disseminação de algumas habilidades fundamentais e formas institucionais centrais que denominamos como modernidade”. (HANNERZ 1997: 14) A perspectiva de Hannerz é a que mais nos interessa, pois admitir sentido de passagens é admitir também que existe uma demarcação a ser ultrapassada, um limite. Como as formigas de Yanagi, que cruzavam os tubos ultrapassando as “fronteiras das nações” e misturando seus respectivos traços identitários, existe um obstáculo a ser “vencido” para que os fluxos culturais entre centro-periferia possam ocorrer. Como encontrar a unidade ou ponto, ou seja, o limite dos fluxos, no atual mapa de diversidade cultural é um trabalho praticamente impossível, os antropólogos começaram a utilizar o termo zona fronteiriça. Diferente de limite, a zona fronteiriça não é uma linha definida, mas uma região onde uma coisa gradualmente se transforma em outra, onde há incertezas e ambigüidades. Resumidamente: uma zona de convergência de correntes culturais. 18 Essa reflexão foi desenvolvida mais detalhadamente no texto “O camelódromo e a Cidade”, de Ludmila Brandão, publicado na Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, em 2009. 44 É neste “local” que ocorrem as recombinações culturais e que as identidades nacionais vão se diluindo, como as bandeiras de açúcar de Yanagi. A intensificação da circulação pela globalização permitiu o surgimento de zonas promotoras de contato com a diferença, e como conseqüência, as transformações. É algo como uma crise identitária generalizada instalada tanto no âmbito das práticas socioculturais quanto das ciências, no trato com a dimensão cultural e suas dinâmicas. E é na zona de fronteira que surge o espaço para o agenciamento da cultura. Embora muito utilizada no decorrer deste texto, não entraremos na discussão dos vários usos da palavra cultura, que em 1952 já tinha quase 300 definições catalogadas no livro de Kroeber e Klukhohn. Para este estudo, optamos pela definição provisória que Canclini propõe para cultura como sendo o “(...) conjunto dos processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social” (CANCLINI 2005: 41). Provisória porque para o autor, apesar de podermos pensar na cultura como um sistema em constante transformação, já nos distanciando da perspectiva essencialista e substantivadora da cultura, ele acabará preferindo, como Arjun Appadurai (2001), falar em “dimensão cultural” ao contrário de cultura, evitando definitivamente toda e qualquer retificação e simplificação do conceito. De um processo homogenizador, a globalização passa a permitir o “permanente fluxo e reorganização do inventário cultural de toda a humanidade” (HANNERZ 1997: 20). É deste permanente fluxo e da globalização que surge o lócus da nossa pesquisa: o Shopping Popular de Cuiabá. A noção de circuito subalterno de consumo, no qual se insere o camelódromo, foi desenvolvida por Brandão (2007). No artigo O “camelódromo”, a cidade e os fluxos globais subalternos, Brandão esclarece que o comércio informal, especialmente o praticado pelos camelôs, é um fenômeno do mundo globalizado, que explodiu no Brasil na década de 90. De tanto crescerem, os camelôs obrigaram as gestões municipais a criarem alternativas de espaço para esta forma de comércio, conhecidos hoje como camelódromos ou shoppings populares. No artigo, Brandão explica que o comércio nos camelódromos desenha fluxos globais subalternos. 2.2 A América Latina e o camelódromo 45 Castells (1983) utiliza o termo hiperurbanização para designar o fenômeno em que a aceleração do crescimento urbano é superior à do industrial. Como conseqüência da modernização tardia, do grande êxodo rural e da urbanização dependente19, a América Latina acabou tendo uma superconcentração populacional nas grandes metrópoles de economia globalizada, “cidade-global”, ou nas ditas cidades médias20. Na América Latina, por volta da década de 70, as cidades abarrotadas e o padrão de acumulação mundial orientado para liberação econômica promoveram um grande número de desempregados que para se manter no espaço urbano buscou formas alternativas de organização da produção, tornando o setor informal e a informalidade21 comuns no cotidiano. No Brasil, na década de 90, a crise econômica e a abertura do mercado, que colocavam a indústria sob a pressão da demanda em queda livre e a ampliavam a concorrência com os produtos importados, fizeram com que um fenômeno do mundo globalizado explodisse: o camelódromo. Manifestação típica das condições de vida na cidade de hoje, o camelódromo se apresenta como uma saída de sobrevivência. Atualmente, este circuito subalterno de consumo dá sustento a um significativo e crescente número de pessoas que diariamente levantam cedo, montam suas barracas, dispõem seus produtos, tudo de um modo organizado a fim de erguer na paisagem urbana uma espécie de obra coletiva, a qual intervém nos contrastantes modos de vida existentes na urbe da América Latina e denuncia-os. Nas grandes capitais do Brasil, o camelódromo é um local onde as classes subalternas ocupam o centro e o utilizam de modo intenso e auto-organizado. É no espaço público do centro da cidade que centenas de pessoas encontram a oportunidade para serem economicamente produtivas. Entretanto, em Cuiabá, somente até 1995, os camelôs puderam ocupar as áreas centrais. Neste ano, por decisão da prefeitura, os comerciantes informais foram deslocados para o bairro do Porto. 19 Segundo Castells (1983), uma sociedade é dependente quando a articulação de sua estrutura social, a nível econômico, político e ideológico, exprime relações assimétricas com uma outra formação social que ocupa, frente à primeira uma situação de poder. 20 Segundo Sposito (2007), cidades que desempenham papéis de intermediação entre cidades maiores e menores no âmbito de diferentes redes urbanas. 21 Segundo Menezes (2009) apud Deddeca, A noção de setor informal como já citado, relaciona-se às atividades econômicas cuja estratégia é a simples sobrevivência das pessoas por elas envolvidas. Já a de informalidade diz respeito às ocupações sem proteção social, isto é, que não contribuem para os sistemas nacionais de previdência social e para os demais fundos públicos da política social. 46 A retirada dos vendedores ambulantes das praças e do centro da Capital ocorreu na administração do prefeito Dante Martins de Oliveira, já falecido. Em 1995, o “menino das Diretas Já”, como era conhecido, adotou como frente de sua gestão a “limpeza” das ruas e praças de Cuiabá, o que significava, entre outras coisas, a remoção dos camelôs. Os ambulantes estabelecidos no centro cuiabano incomodavam a paisagem urbana de duas formas, de um lado os lojistas consideravam os “informais” uma concorrência desleal, do outro os intelectuais e artistas da cidade achavam impossível preservar o patrimônio histórico e arquitetônico de Cuiabá, tombado em 1992. Destaca-se aqui o papel dos ditos intelectuais cuiabanos na marginalização daqueles já excluídos pelo sistema socioeconômico. Em 26 de abril de 1995, com apoio da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar de Mato Grosso, os camelôs foram expulsos do centro e levados para a nova área periférica que, segundo Misael Galvão22, contava apenas com banheiro público, piso e nenhuma estrutura básica. “O telhado era o céu”, afirmou Misael Galvão em entrevista veiculada no dia 11/01/2011 em seu próprio site23. Figura 1: Retirada dos camelôs do Centro para o bairro do Porto, em 1992. Abaixo da seta: Misael Galvão Entretanto, a decisão tomada pela administração municipal foi apenas um paliativo: com o alto índice de desemprego e sem a rigorosa vigilância dos anos iniciais em que os comerciantes informais foral expulsos, gradativamente novos camelôs ocuparam as áreas 22 23 Presidente da Associação dos Camelôs do Shopping Popular (ACSP). www.misaelgalvao.com.br 47 centrais de Cuiabá. Resultado: em 27 de setembro de 2011, após 11 anos, uma nova operação para retirada dos vendedores do centro de Cuiabá foi realizada, devido a uma liminar do Ministério Público Estadual, com as mesmas justificativas: preservação do patrimônio público e do bem-estar social da população. Diferente da operação de 1995, os quase 400 ambulantes expulsos só tiveram um novo local de trabalho definido após 20 dias. Semelhante à operação de 1995, a solução encontrada pela gestão municipal do atual prefeito Chico Galindo foi a construção de um novo Shopping Popular, onde hoje é o atual Mercado Municipal, localizado no bairro do Porto. Déjà vu? Figura 2: Cerca de 200 policiais foram convocados para expulsão dos camelôs 48 Figura 3: Dona Jandira Augusta Moraes, há 20 anos vendedora de café e salgados por R$ 1, não possui outra fonte de renda ou aposentadoria Figura 4: Vendedores ambulantes recolhendo material de trabalho 49 Figura 5: Três dispositivos sociais: polícia, imprensa e governo - fiscal da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano Retornando a primeira expulsão, frente às dificuldades, os camelôs que eram “supostamente entregues à passividade e à disciplina” (CERTEAU 2007 : 37), já que foram expulsos do centro de forma pacífica, iniciam um processo de fissura do sistema e criam a Associação dos Camelôs do Shopping Popular (ACSP), em maio de 1995. Estruturalmente organizados, os camelôs, agora associados, têm poder de negociação com a esfera pública. O impensável, para aquela época, acontece: a edificação e parcial24 legalização de um novo circuito comercial distante dos moldes do comércio oficial. Sem rejeitar o sistema, os comerciantes informais reinventam o cotidiano, através de uma metamorfose interna. Os camelôs descobrem uma maneira de utilizar o que lhes foi imposto driblando os termos do contrato social. Bem estruturada, a Associação emprega hoje: jornalistas, seguranças, secretários, administradores de empresa, advogados entre outros profissionais. Em 2008, mais uma vez os associados mostraram sua força em arranhar a ordem vigente ao elegeram com 3.069 votos o presidente da ACSP e também camelô, Misael 24 Parcial pois os camelôs como comerciantes do Shopping Popular têm a prática do comércio tolerada ou até legalizada, mas enquanto sacoleiros que transitam em busca das mercadorias a serem comercializadas têm sua atividade como ilegal. Appadurai (2001) caracteriza essa situação como “mercado cinza”, pois diferente do “negro” utilizado para designar o comércio ilegal, o “cinza” combina situações de interdição e legalidade. 50 Galvão25. Após seis anos a frente da Associação, Misael tomou posse do cargo de vereador na Câmara Municipal de Cuiabá. Sua principal frente de trabalho, obviamente, foi a favor daqueles que o elegeram: os comerciantes informais. Agora, os camelôs têm espaço no Legislativo. Figura 6: Sede da Associação dos Camelôs do Shopping Popular, localizada nos fundos do camelódromo 25 Misael Galvão começou a trabalhar como ambulante nas ruas de Cuiabá em 1991, depois de ter trabalhado como bancário por alguns anos. Em princípio, vendia eletrônicos e brinquedos. 51 Figura 7: O camelô e vereador Misael Galvão Atualmente, o Shopping Popular possui 393 bancas, gera cerca de 1.200 empregos diretos e indiretos, constituindo um importante braço da economia local. O galpão que outrora tinha apenas dois banheiros, hoje ocupa 5 mil metros quadrados. Com a ampliação do espaço, dois estacionamentos, caixas eletrônicos, uma “praça de alimentação” e aparelhos para climatização foram introduzidos no camelódromo. Além disso, o Shopping Popular conta com um circuito interno de TV com 93 câmeras e cada banca tem acesso a linhas individuais de telefones convencionais, o que permite a utilização de máquinas de cartão de crédito. Para que essa estrutura seja mantida os próprios associados contribuem mensalmente com uma taxa de R$ 370. O grande fluxo de pessoas também impulsionou outras formas de trabalhos nos arredores do Shopping Popular. Frotas de táxi e moto táxi são facilmente identificadas na lateral do camelódromo. De acordo com o taxista Wilson Pereira, que tem sete anos na profissão e três no ponto do camelódromo, a área é movimentada durante o ano, mas nas vésperas de datas comemorativas o lucro dobra. Consolidado como um grande entreposto comercial, hoje, o Shopping Popular é parte intensa da economia do município de Cuiabá. Vale ressaltar que não estamos falando aqui de uma economia informal correndo paralela à formal, mas de operações que se acoplam, que se firmam como dois lados de uma mesma moeda. O que nasceu para estar à margem, torna-se parte constituinte da política, cultura, economia, sociedade e sociabilidade do município de Cuiabá. O que não significa afirmar que os camelôs não figuram mais uma marginalidade dentro do sistema, mas que o Estado e suas margens constituem-se. 52 Figura 8: Frota de táxi em frente ao Shopping Popular Figura 9: Moto taxista sentado de colete laranja enquanto aguarda clientela 53 HISTÓRICO DO SHOPPING POPULAR DATA Abril de 1995 • Camelôs são transferidos do centro de Cuiabá para o bairro do Porto, onde havia apenas piso e banheiro público; • Houve protesto e confronto com a polícia; • Vários camelôs foram presos. Maio de 1995 • Criada a Associação dos Camelôs do Shopping Popular, tendo como presidente Misael Galvão, que hoje está em seu sexto mandato. • Governo do Estado de Mato Grosso oficializa a Cooperativa de Compras do Comércio Popular de Mato Grosso (Coocomp/MT), a primeira cooperativa de camelôs do país com a finalidade de viabilizar compras Janeiro de 2006 legalmente no exterior, por meio da resolução 017. • Evento reúne cerca de 800 camelôs de todo o estado para o lançamento da Coocomp/MT com a presença da primeira dama de MT, Terezinha Maggi, de representantes da CDL, MT Fomento e outras instituições Março de 2006 que apoiaram a iniciativa. • O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, publica a Medida Provisória nº 380 instituindo Regime de Tributação Unificada - RTU para importação de mercadorias da República do Paraguai o que avalizou a Cooperativa de Compras do Comércio Popular Junho de 2007 (Coocomp/MT). • O presidente da Associação dos Camelôs do Shopping Popular de Cuiabá, Misael Galvão, foi a Brasília; • Ele visitou todos os senadores da bancada matogrossense em busca de apoio para a aprovação do projeto de lei; • Misael também pediu aos deputados federais a viabilização de verba, por meio do Ministério do Turismo, para revitalizar o shopping e todo o seu entorno, transformando-o num moderno complexo de compra popular e num novo atrativo turístico na capital do Março de 2008 estado. Dezembro de 2008 • Projeto de Lei é aprovado no Senado e camelôs de Mato Grosso comemoram mais uma vitória na luta pela legalização. 54 • O presidente Lula sanciona a Lei 11.898, a chamada Lei dos Sacoleiros, no dia 08 de janeiro de 2009, instituindo o Regime de Tributação Unificada RTU na importação, por Janeiro de 2009 via terrestre, de mercadorias procedentes do Paraguai. • Audiência Pública no dia 29 de junho de 2009 na Assembléia Legislativa de MT, requerida pelo deputado estadual Carlos Brito para discutir a legalização da Junho de 2009 atividade do camelô. Setembro de 2009 • Publicação no Diário Oficial da União (DOU) do Decreto Presidencial 6956, que institui o Regime de Tributação Unificada (RTU) para os sacoleiros que trazem mercadorias do Paraguai, por via terrestre. Abril de 2010 • Climatização do Shopping Popular. 2.3 Shopping Popular x Shopping Center O histórico do Shopping Popular evidencia a reorganização da ordenação sociopolítica através de processos silenciosos do cotidiano. “Presos” nos dispositivos de vigilância municipal, os camelôs não fogem do sistema que os circunscrevem, mas o subverte pelo modo como reutilizam o espaço originalmente criado como forma de controle social. Parafraseando Certeau (2009), usando inúmeras e minúsculas metamorfoses da lei, de acordo com seus próprios interesses e regras, os camelôs realizam uma bricolagem com e na economia cultural dominante reinventando o cotidiano. Os traços desse patchwork, dessa transculturação entre histórias, as quais ao mesmo tempo em que acompanham a expansão do sistema mundial criam paralelamente um novo imaginário no interior e exterior do sistema, podem ser visualizadas ao compararmos, por exemplo, o Shopping Popular com seu parente: shopping center. A tentativa de aproximação do camelódromo constituído no Porto com os centros comerciais oficiais se dá desde o nome. Em conversa informal, realizada no dia 13/12/2011, na Câmara Municipal de Cuiabá, a assessora jurídica do Shopping Popular, Elaine de Alves, explicou que o batismo do centro comercial subalterno foi feito pela própria prefeitura 55 municipal, sem que nenhum camelô fosse consultado, entretanto, o nome não foi objeto de desagrado justamente por se aproximar do tradicional Shopping Center Goiabeiras. O nome surgiu, a prefeitura deu e ninguém questionou. Até porque a ideia era funcionar organizado como um shopping mesmo: várias bancas vendendo materiais diferentes. Não éramos o Shopping Center Goiabeiras, mas éramos o Popular. Além do mais, era mais bonito, melhor que “mercadão”, por exemplo, o pessoal gostou. (Elaine Alves, advogada do Shopping Popular desde sua criação). A explicação sobre o surgimento do nome revela quatro situações presentes durante o processo de consolidação do Popular: o autoritarismo da gestão municipal, traços de forte colonialismo, a modernização verticalizada nas urbes brasileiras e a busca por legitimação social, principalmente entre as classes hegemônicas, pelas classes subalternas. O nome Shopping Popular soa melhor que camelódromo, permite que os que ali trabalham transitem entre subjetividades diferentes, entre dois mundos. Agora, os comerciantes não são mais ambulantes marginalizados que ocupam o centro da cidade de maneira desordenada, mas empreendedores: proprietários de boxes estabelecidos em um centro comercial popular. Se por um lado a apropriação das palavras de origem inglesa revela a manutenção de esquemas verticais hegemônicos, por outro também permite vislumbrar sonhos de singularização, isto é, possibilita enxergar a diferença singular dentro da totalidade. A história do Shopping Popular, em última instância, é a própria história da mundialização na qual projetos globais são forçados a adaptar-se. Outra questão importante é que assim como um Shopping Center, o Popular também é espaço de sociabilidade. Em algumas barracas é possível encontrar famílias inteiras, inclusive crianças que aguardam o término do dia de trabalho dos adultos. Ali, elas se alimentam, brincam e fazem tarefas. Em outros casos, são os adultos que estão ocupando o tempo com ações corriqueiras como fazer a unha. Ainda há os que frequentam o Shopping Popular pelo lazer. Neste caso, o indivíduo se une aos seus pares para observar os produtos expostos, transitar entre os corredores ou apenas comer na “praça de alimentação”, já que não há gastos extras com estacionamento, por exemplo. Eu trabalho aqui perto e nem sempre venho pra comprar. Às vezes, venho só pra lanchar no final do expediente, sento com as meninas do trabalho, como e converso. É bom que aqui o estacionamento não paga. Eu ando de ônibus, mas uma das meninas tem moto e se tivesse que ir num shopping íamos gastar uns R$ 2,00 só com estacionamento. (Marina, 26 anos, balconista, em conversa informal, 2011) 56 Figura 10: Vendedora faz o pé na lateral da banca enquanto aguarda cliente Figura 11: Praça de alimentação 57 Figura 12: Estacionamento a céu aberto e gratuito Apesar das similaridades de uso entre ambos os centros de comércio, fica clara a forte diferença entre a “arquitetura” dos locais. Interagindo com o ambiente ao seu redor, os shoppings comunicam, traduzem seus públicos. Enquanto no Popular predomina a estética do precário e do improviso, no Center prevalece do luxo e da organização. 2.4 Uma volta pelo camelódromo Shopping Popular26, sexta-feira, 8:30h da manhã. Alguns vendedores organizam as mercadorias em seus boxes27, outros já estão com os produtos devidamente expostos. É véspera de feriado. Dois vendedores reclamam dos feriados seguidos. Vendedor 1: “O mês de novembro tá mais difícil. Já teve feriado semana passada e amanhã outro. Sábado e domingo com tudo fechado complica pra gente”. Vendedor 2: “É ... temos que vender mais hoje pra compensar”. Vendedor 1: “E você sabe que a polícia pegou umas mercadorias minhas, né. Vindo do Paraguai”. 26 Embora pesquise o camelódromo há mais de dois anos, as descrições de campo contidas aqui foram coletadas, pela autora, no dia 19 de novembro de 2010, de 8:30 às 10:30h. 27 Nome utilizado pelo Shopping Popular, de maneira padrão, para designar todas as barracas do local. 58 Em um box uma moça olha as calças falsificadas de grandes marcas, como Carmin e Colcci. Na barraca ao lado uma criança e um homem adulto observam os DVDs piratas. Uma lanchonete que vende pastéis fritos aglomera cerca de 10 pessoas nas mesas de metal. Às 9:20h o fluxo de pessoas já é intenso. Dentro daquele imenso galpão, com teto de alumínio e vazado nas laterais pintadas de azul, jovens, velhos, mães e filhas, pessoas de todas as classes sociais, circulam entre as 393 barracas verdes, fixas, metálicas, numeradas, geralmente retangulares e de tamanhos praticamente iguais. Figura 13: Shopping Popular A maioria dos boxes de roupa está concentrada em único setor. Dirijo-me até ele. Pelo uniforme, é possível perceber que algumas barracas são do mesmo dono. Quatro bancas seguidas possuem moças de blusa lilás, nome do box escrito na camisa e calça jeans. Poderíamos pensar em uma espécie de cartel? As barracas que apresentam funcionários uniformizados tendem a ser mais organizadas. Algumas possuem manequim para expor as roupas, araras e local para medi-las. Uma vendedora do “cartel” me aborda. Vendedora1: “Posso ajudar?” A abordagem no camelódromo é a mesma utilizada por qualquer outro estabelecimento comercial. Pesquisadora: “Só estou dando uma olhadinha”. Vendedora1: “Tá procurando roupa pra quem?” Não querendo revelar minha real intenção, já que todas as tentativas de aproximação nas quais revelei ser pesquisadora foram frustradas, minto. Pesquisadora: “Pro meu namorado”. 59 Vendedora1: “Então hoje é seu dia de sorte! Essa camisa Tommy Hilfiger acaba deentrar na promoção. Faço 25 reais pra você!” Pesquisadora: “Quanto ela custava antes?” Vendedora1: “35 reais!” Pesquisadora: “Passa cartão?” Vendedora1: “Passa... mas se não for à vista o desconto é menor.” Apesar de a aproximação ser similar dos demais centros de comércio e os atendentes receberem salário mínimo e comissão, a liberdade para negociação difere. Ao contrário do comércio “oficial”, em que os vendedores têm limite na concessão de deduções, os do Popular negociam ao máximo com intuito de conseguir a venda. A hipótese levantada é que às condições próprias do Popular (“abatimento” de impostos, por exemplo) permite que o lucro seja alcançado mesmo com grandes reduções, originando uma diferente relação entre os donos e os vendedores (que “ganham” dos primeiros, maior liberdade) e entre os vendedores e os consumidores. Pesquisadora: “Eu vou dar mais uma olhadinha e qualquer coisa volto aqui. Até que horas vocês ficam abertos?” Vendedora1: “Umas 18:30h. Amanhã e domingo não abre, porque é consciência negra. Hoje o dia tem que ser bom. Volta mesmo, somos os melhores daqui do shopping”. Duas barracas depois, uma moça também uniformizada de roxo, vendendo produtos masculinos me aborda. Neste momento, percebo que a vendedora da outra barraca estava me seguindo de longe. Vendedora2: “Posso ajudar, moça?” Vendedora1: “Essa aí é cliente minha. Já estou atendendo”. A realidade do que classifiquei como uma espécie de cartel ainda não é predominante no camelódromo. Ao invés de várias barracas com um único dono e funcionários diversos contratados, o que vemos, geralmente, são famílias inteiras reunidas em uma única barraca. Na banca de camisas de time de futebol uma mãe amamenta um bebê de meses na lateral da banca. Duas crianças brincam sentadas no chão, em cima de fraldas estendidas, ao lado da mãe. Na frente, um homem arruma as camisetas, provavelmente o esposo e/ou pai. A simpatia e obstinação demonstradas pela atendente do “cartel” contrastam com a dos demais: quando os donos oficiais são os próprios vendedores a apatia e o desânimo em relação ao cliente é, às vezes, gritante. Em uma barraca de roupas femininas passei cerca de 60 cinco minutos observando o vestuário sem que ninguém me abordasse: a senhora que cuidava da banca estava ocupada fazendo crochê, sentada em uma cadeira de plástico branca. Em outro box, desta vez de réplicas de blusas de time de futebol, o casal que atendia só estabeleceu diálogo após o meu chamado: a mulher estava concentrada em cuidar da filha pequena e o homem olhava atenciosamente para o celular que possuía sinal de canais televisivos. Nesses boxes em que o ambiente familiar predomina a estética do precário é imperativa: ao invés de araras, o vestuário em cabides ou dobrado de modo empilhado lembra revistas expostas em bancas de jornal. Se a exposição das roupas é pouco atraente nas araras, nestes espaços elas perdem qualquer vestígio de charme possível. O que estaria por trás desta arquitetura? É evidente que os donos de “cartéis” possuem um sistema de comercialização diferente dos demais, pela própria estrutura do negócio: contratação de empregados, folha de pagamentos e outros investimentos que os “boxes família” não possuem. Pelas diferenciações, poderíamos dizer que assim como o sistema capitalista que o engloba, com suas clivagens de produção econômica, o Shopping Popular também possui suas dicotomias: comércio familiar e comércio business, com o perdão da redundância da última categorização. Figura 14: Criança dormindo em frente a uma banca de Moda masculina do tipo “comércio familiar” As formas para atrair o consumidor de roupa são várias. Alguns vendedores vendem juntamente com os vestuários CD’s e DVD’s piratas, os quais são estrategicamente expostos na frente das bancas. Vendedor: “Muita gente para pra olhar os DVD’s e acaba olhando as blusas de time também. E aí leva tudo junto”. 61 Embora nem todas as bancas do Shopping Popular possuam máquina de cartão de crédito, nas barracas de roupas foi unânime seu encontro: provavelmente para facilitar a aquisição de um número maior de peças, com o cartão o alto montante final poderia ser dividido promovendo a compra. Como já foi mencionada, a prática da negociação é muito utilizada, os vendedores, em permanente diálogo com o possível consumidor, oferecem preços diversos na tentativa de comercialização da roupa. Continuando a perambulação pelo corredor das roupas notei o quanto ele é mais escuro que os demais, as roupas empilhadas e a intensa aproximação dos boxes dificultam a ventilação. Em dias excessivamente quentes, comuns em Cuiabá, o espaço torna-se asfixiante e a designação box (do inglês “caixa”) é personificada: o transeunte esta dentro de um caixa retangular tampada cuja estrutura possuía apenas alguns orifícios pequenos que permitem a respiração. Questiono me se o amontoado de roupas não permite a entrada da luz com facilidade ou se o local é tático para venda daqueles produtos, a maioria, falsificados, como as camisas de time. Talvez aqui nem devêssemos falar em “falsificação”, uma vez que o consumidor não está sendo enganado pelo produto. Consumidor1: “Leva a bermuda. Esse tecido de taquetel é bom e essa bermuda parece verdadeira”. Estão comprando bermudas da “marca” Adidas. Vendedora: “Essas bermudas são réplicas muito boas mesmo. Saem muito”. Consumidor2: “E a blusa, que você acha?” Consumidor1: “Não leva. Tá com o preço muito alto pra essa cara de velha dela. Leva duas bermudas da Adidas”. São dois homens comprando. Desde a época da iniciação científica, a falsificação foi item constante. Nos três anos de pesquisa, com o perdão do trocadilho, ela nunca saiu de Moda: principalmente no vestuário masculino. Sem grande variação de tendências, entre os anos de 2008 e 2011 as aproximadamente 20 barracas que comercializam exclusivamente Moda masculina ou mista se apropriaram quase que exclusivamente das camisetas de futebol, também réplicas, e das blusas e bermudas falsificadas de marcas famosas, como Adidas, Nike, Puma. Mesmo com maior variação sazonal, o vestuário feminino também manteve a constância nas réplicas de calças jeans com favoritismo para Colcci, Disparate e Carmim. A assiduidade das falsificações de grandes marcas mostra a influência e o poder das grifes na sociedade Ocidental. Bolsas com monogramas de marcas caras falam sobre a classe 62 social, o status quo de seu possuidor. A ostentação da grife traz consigo não só qualidade e materiais diferenciados, mas também exclusão. Ainda que, muitas vezes, os produtos falsificados não apresentem a mesma qualidade de seus originais, o desejo do consumidor subalterno de se firmar em determinado estilo de vida o leva a consumir, conscientemente, as falsificações. Vale ressaltar aqui o sentido social e histórico da réplica. A apropriação e a tradução de objetos criados pela e para as classes hegemônicas é vista desde o início da Renascença. Com o desenvolvimento das cidades e a organização da vida das cortes produziu-se uma aproximação entre as pessoas na área urbana. Enquanto os burgueses enriquecidos pelo comércio passam a copiar o vestuário da nobreza, para se distinguirem da burguesia, os nobres passaram a variar suas roupas. Começo do primeiro esboço da engrenagem cíclica da moda. Os burgueses copiavam, os nobres inventavam, e assim sucessivamente. Ainda que o traje burguês jamais tenha se igualado, em brilho e ostentação, ao da aristocracia, ocorre naquele momento um movimento lento e limitado de democratização da moda, de mistura das condições da indumentária. Mais do que mimetismo mecânico, a burguesia só reteve da corte aquilo que não feria suas normas e seus valores. Os traços mais fantasiosos do vestuário da nobreza, como as perucas empoadas, os casacos enfeitados de pele e os vestidos com seda pura, foram mais recusados do que incorporados. Um importante traço da moda é exatamente esse mimetismo que vai desde o conformismo mais fiel à imensa variedade de adaptações. O sistema da moda amplia (e em alguns casos, cria) a possibilidade de escolha do sujeito individualmente que opta por rejeitar ou não as novidades. Eis a dialética deste sistema: conformismo e mudança. Se a moda traz consigo um caráter estratificador, também tem seu papel parcial de igualação das aparências. Ao mesmo tempo em que o consumidor subalterno mantém o esquema de “opressão” das grandes marcas, o subverte ao consumir a réplica, nas palavras dele mesmo, de qualidade. 63 Figura 15: Banca de Moda masculina que trabalha exclusivamente com camisas de times de futebol Outro item constante na Moda do camelódromo foi a calça legging: um verdadeiro acessório it que se manteve firme inclusive em época de febres nacionais, como no caso das roupas indianas da novela Caminho das Índias, apresentada pela Globo em 2009 – daremos mais atenção ao assunto posteriormente. Nas bancas que ofereciam vestuário feminino e masculino, as leggings, assim como os tops e roupas de ginásticas reinavam: em comum ambos realçam o corpo. Além das camisetas de time, falsificações e leggings também foi possível encontrar Moda infantil em todos os anos de pesquisa – não utilizarei o termo infanto-juvenil devido à escassez de roupas para o público pré-adolescente, em geral as roupas para crianças não ultrapassaram a faixa dos oito anos. A predominância neste quesito é de roupas femininas: com babados, pedrarias delicadas, motivos florais e estampa em transfer digital (feito a partir de uma impressora a laser e transferido para o tecido por meio de altas temperatura, possui baixo custo unitário e pouca qualidade) de desenhos animados. A Moda infantil tendia a agradar quase todas as mães e avós que circulavam no espaço. Consumidora: “Uma graça! Não parece que é 100% de algodão, mas é de uma maciez”. 64 A cliente é uma senhora na casa dos 60 anos e bem vestida. A análise do vestido branco com gola godê, motivos florais e faixa de cetim branca na cintura foi realizada enquanto aguardava a filha que comprava DVD’s falsificados na banca ao lado. Apesar dos elogios, a senhora não levou o vestido. Figura 16: Banca de Moda Infantil Destaco a importância de se pontuar aquilo que permanece e o que varia na moda. Como “fenômeno coletivo que nos oferece de maneira imediata a revelação do que há de social em nosso comportamento” (Barthes 2009:29) as disparidades de freqüência na moda são importantes, pois informam manutenção de gostos da sociedade, vinculados a um imaginário coletivo de uma época. Entre o usuário e a roupa (objeto) há uma rede de sentidos (palavras e imagens) que estão vinculadas com uma ordem sócio-econômica e cultural as 65 quais criam um simulacro do objeto real, tirando do vestuário sua função mais estrita que é proteção. Obviamente, a moda do Shopping Popular também oferece aos seus consumidores bolsas (a maioria falsificada), acessórios (cintos, relógios, correntes, presilhas) e sapatos (em grande parte, tênis réplicas de grifes). Em qualidade, a moda do camelódromo é inferior à do comércio formal: no vestuário as costuras são frágeis e as falsificações são notoriamente cópias com a logo escandalosamente mal copiada ou recriada (com exceção das bolsas que possuem o acabamento e o símbolo da grife com grande requinte, em contrapartida, o valor do item pode ultrapassar R$ 300).28 Os tecidos que predominam são a malha com fibra de elastano (lycra), o taquetel e o algodão. Figura 17: Banca especializada em réplicas de bolsas da marca Prada 28 A estudiosa Carla Gavilan (2011) trata mais sobre o consumo subalterno de bolsas piratas na dissertação Pirata, mas classe 'A': sobre o consumo subalterno da pirataria de luxo. 66 Figura 18: Banca especializada em bolsas: réplicas e outros modelos Figura 19: Banca especializada em tênis falsificados Foram quantificadas aproximadamente 80 barracas entre os anos de 2010 e 2011 não havendo um grande crescimento no setor. Os números acompanham a própria lógica de expansão do Shopping Popular. Em 2008 o camelódromo possuía 392 barracas. Três anos 67 depois, em 2011, o número havia aumentado para apenas 393 bancas. Um dos principais entraves para novas admissões é a falta de espaço e o alto valor do ponto: o aluguel de um box pode chegar a R$ 1,500. Figura 20: Banca especializada em acessórios e bolsas Barracas que trabalham com Moda no Shopping Popular Anos Barracas 2010 2011 Quantidade (%) Freqüência (%) Femininas 9 12% 10 13% Masculinas e Mistas 20 26% 20 26% Infantis 5 7% 3 4% Adereços 29 38% 32 42% Tênis e Sapatos 13 17% 12 16% 68 Total 76 100% 77 100% Tabela2 Outra peculiaridade na moda do camelódromo é sua trajetória, que não só se difere em origem da realizada pelo comércio formal, como também do informal. Focando exclusivamente no vestuário, para que as roupas cheguem até o Shopping Popular precisam atravessar um longo percurso. Diferente dos demais comerciantes (de eletrônicos, brinquedos e etc.) que obtêm, majoritariamente, suas mercadorias do Paraguai − as rotas mais utilizadas pelos camelôs são Foz do Iguaçu (PR), para compras na Cidade de Leste, e Ponta Porã (MS), com destino em Pedro Juan Caballero −, os vendedores de roupas adquirem parte do produto no Paraguai, como é o caso das camisas de time falsificadas, mas, principalmente, em Goiânia, nas grandes feiras da cidade. Com a cota de compra baixa, US$300 (cerca de R$645, dependendo da variação do câmbio), é grande o número de vendedores que, para compensar a viagem – na Cidade do Leste, por exemplo, a Receita Federal só permite uma compra a cada 30 dias – frequentemente cometem irregularidades ou sonegação fiscal. Em agosto de 2010, a Polícia Federal, em conjunto com a Receita Federal, fechou o Shopping Popular por dois dias. Logo cedo, o camelódromo foi cercado por viaturas e agentes da PF e servidores da Receita Federal. A operação nomeada Àgora contava com 55 servidores da Receita Federal e 95 Policiais Federais, além disso, previa busca e apreensão de mercadorias em 34 bancas, incluindo as de comércio de roupas. Quem tivesse o produto apreendido pela operação teria que apresentar toda a documentação fiscal comprovando a importação das mercadorias estrangeiras, caso fossem comprovadas as irregularidades as mercadorias não seriam devolvidas, além de posterior abertura de inquérito na Polícia Federal. 69 III GOSTO SUBALTERNO: APROPRIAÇÃO E TÁTICAS DE RESISTÊNCIA NA MODA DO SHOPPING POPULAR 70 3.1 Calça da Gang: um estudo de caso “Calça da Gang toda a mulher qué, uns R$200 pra deixa a bunda em pé, só a galera! Calça da Gang toda a mulher qué, uns R$200 pra deixa a bunda em pé., só a galera!”. DJ Malboro, Calça da Gang Às 10h o excesso de pessoas, cores, cheiros e sons performam com o camelódromo. O aparelho de som central toca músicas conhecidas do repertório popular. O boneco de Papai Noel rebola acompanhando o som do sertanejo. Risos altos e soltos atravessam. Crianças choram pelo brinquedo colorido. O cheiro de frituras toma conta do espaço. Os corpos caminham em direção às mercadorias se misturam com elas. Humanos e não humanos se misturam num espetáculo repleto de fetichismo visual. Tudo é sinestésico. Tudo comunica. Os atratores29 saltam. O contexto do camelódromo lembra o da metrópole comunicacional, sendo entrelaçados a partir de fluxos comunicacionais caracterizados por fetichismo visuais que possuem atratores. Os corpos (bodyscape30) e o camelódromo (location) estão unidos por um desejo, o corpo ultrapassa os limites corporais e se liga aos tecidos orgânicos do location. Objeto e sujeito se entrelaçam. A dimensão orgânica se une à inorgânica. Num movimento próprio do contemporâneo. Com o olhar treinado para tentar perceber minúcias no consumo de roupas, me estranho com uma barraca diferente e nova (na última visita ao campo, em julho de 201031, a banca não existia), o vestuário está exposto em estantes de vidro que funcionam como vitrine e em araras, ao invés de metal pintado de verde seu fundo é roxo, além disso, as roupas vendidas não são falsificações de grandes marcas, mas blusas de cotton, sandálias coloridas e com brilho, enfeites de cabelo e calças excessivamente enfeitadas com strass (pedrinhas brilhantes que imitam cristal), justas, de cós baixo e com bastante strech (tecido elástico que permite a roupa se ajustar melhor no corpo). No quesito calças, o box parece trabalhar exclusivamente com os tipos de modelo descritos. 29 “Fragmentos simbólicos que atravessam os modos perceptíveis de um olhar que de modo nenhum é ingênuo ou manipulável, embora condicionado à decodificação”. (CANEVACCI, 2008, p. 15) 30 “Corpo panorâmico que flutua entre os interstícios da metrópole comunicacional”. (CANEVACCI, 2008, p.30). 31 A nova visita foi realizada no final de novembro de 2010. 71 Figura 21: Box 267 Pesquisadora: “Você só tem calça com strass?” Vendedora: “Sim”. Pesquisadora: “Que pena, queria uma sem...” Vendedora: “Mas moças igual você preferem com brilho, porque chama mais a atenção na balada, no dia-a-dia. Experimenta, você vai ficar muito bem. Tem mais glamour. E a gente nunca sabe quando o príncipe pode aparecer, tem que tá sempre arrumada”. Neste box uma calça de strass custava R$97. Tentando encontrar algum consumidor, retornei na banca mais uma vez. Encontrei uma moça, na casa dos 20 anos, comprando uma calça dessas. Intrigada em descobrir a razão de alguém pagar R$97 em uma calça de camelódromo, preço incomum e elevado, puxei assunto com a moça. Pesquisadora: “Cara a calça, né...” Consumidora: “Um pouco. Mas o preço dessas calças é esse mesmo”. Pesquisadora: “Sério? Mas no centro (de Cuiabá) você não acha mais barata e até melhor que essa?” Consumidora: “Mas essa é parecida com a da Gang (calça de marca que popularizou nos bailes funks do Rio de Janeiro) que é bem mais cara. Conhece? No centro não tem desse jeito e eu trabalho aqui no Shopping Popular. Fica mais fácil. Dividi essa calça em 3 vezes sem juros”. 72 Dialogando com Canevacci (2008), a primeira hipótese levantada para o fato estava relacionada com o próprio perfil performático do consumidor contemporâneo que ao comprar busca nas marcas e nos produtos o mesmo que procura para o seu corpo, dando organicidade às mercadorias. Figura 22: Modelos de calças gang Uma das grandes diferenças entre a sociedade industrial e a contemporânea é o consumo que ao invés de fim, se tornou meio. Isto é, se na era industrial o consumo era apenas a parte final da produção, hoje ele perpassa todas as lógicas sociais. Não é possível mais separar binariamente sujeito e objeto, mercadoria e corpo, orgânico e inorgânico. Caminhamos para um consumo performático. O consumo de uma roupa não é apenas o consumo de um objeto inanimado, mas de um ser que agregado a minha identidade a mudará. Ao contrário da subjetividade identitária que remete a um suposto núcleo duro e permanente (o “eu” profundo), o sujeito pós-moderno articula, na subjetividade constantemente em processo, uma pluralidade de “identificações” porque está imerso em práticas sociais descontínuas. Talvez não devêssemos nem falar em identidades, já que o tradicional conceito de identidade mesmo modificado hoje dificilmente se mantém, mas sim pensarmos em “multiidentidade”, como propõe Canevacci, um “multivíduo” composto de vários “eus” em um só ser. Assim, o plural de eu não seria “nós”, mas “eu´s”. E é justamente o fetichismo visual contemporâneo que potencializa essa mistura do orgânico com o inorgânico. Se o fetichismo pode transformar coisas em seres, a recíproca também é verdadeira. Uma posição adquirida pela antropologia é a de que não há nada de natural no corpo. O corpo não é natural porque, em cada cultura e em cada indivíduo, o corpo é constantemente preenchido por sinais e símbolos. Não somente não há nada de natural no corpo, mas também a pele não é o seu limite: e quando a pele transpõe 73 seus limites, o corpo não é apenas corporal. O corpo expandido em edifícios, coisasobjetos-mercadorias, imagens, é aquilo que se entende aqui por fetichismo visual. (CANEVACCI, 2008, p. 18) Na sociedade contemporânea, tão visual, a imagem aparece como meio de expor aquilo que, no interior do inorgânico, do reificado, é capaz de provocar um olhar estupefato. O fetichismo visual atual tem o poder de transformar o estranho em familiar, a mercadoria em corpo, sincretizando o vivo e o morto, o orgânico e o inorgânico. Walter Benjamin (1985) afirma que a moda é considerada o “sex appeal do inorgânico”. A atração não vem somente do corpo, mas da vestimenta também. Neste enquadre, a moda surge como potencializadora da transformação do orgânico em inorgânico através do movimento fetichista. As mulheres com seus vestidos, que o autor observa, representam a mescla entre a mercadoria e os corpos. Benjamin ainda mostra que o movimento, que por um lado reifica a sensibilidade humana e por outro concede sensibilidade aos objetos, é característica própria da modernidade, cada vez mais atravessada pela mistura de dimensões humanas e não humanas. A moda prescreve o ritual segundo o qual o fetiche mercadoria pretende ser venerado. (...) Ela consiste na contra posição ao orgânico. Relaciona o corpo vivo ao mundo inorgânico. Percebe no ser vivo os direitos do cadáver. Seu nervo vital é o fetichismo, subjacente ao sex-appeal do inorgânico. (BENJAMIN, 1985, p. 36) Assim, as mercadorias (no caso, as roupas) passam de meros coadjuvantes para atores principais da narrativa história. Na sociedade do espetáculo, a calça não basta cumprir sua função básica de proteção, ela tem que levantar o traseiro, erotizar todo o corpo. O brilho do strass do logotipo expõe, evidencia, chama atenção para a curva do corpo. O erotismo é acentuado. Ainda que não possua a logomarca da Gang, o desejo de se fazer ver está na calças do Shopping Popular, fetichizado não só pela potência da marca, mas também pelos brilhos presentes na vestimenta. Se observarmos bem o próprio logotipo da marca Gang possui o formato das nádegas: arredondado e curvilíneo. Um código de acesso de alto valor fetish. A ideia de um consumo performático fica mais evidente ainda quando se conhece a dona da barraca roxa: Angela. Ao encontrar Angela pela primeira vez, somente onze meses após meu primeiro encontro com o novo box, lembro-me de achá-la extremamente parecida com a cantora pop Kelly Key. Cabelos longos, pintados de loiro e escovados, silicone, barriga tanquinho exposta num corpete florido e justo, calça jeans de strech e strass, Angela era a personificação das roupas que vendia. Mais do que isso, Angela era parte constitutiva de sua 74 barraca, o vestuário vendido em seu box era representação de sua própria história e imaginação. Assim como sua banca, Angela também destoava do cenário do Shopping Popular. Não só pela aparência, as demais vendedoras não possuíam os mesmos traços e características físicas de Angela, como também pelo trato. A necessidade de retornar a banca roxa surgiu após uma lacuna na pesquisa, decidida a encontrar as respostas para minhas dúvidas, ou pelo menos questionamentos novos, voltei ao camelódromo após o período de qualificação, em outubro de 2011. Como usual, mantive a postura de simples transeunte ávida por consumir. Em todas as barracas, fiz o mesmo teatro de costume. Na banca roxa tive um novo choque: as calças de strass haviam aumentado para R$ 110, algumas chegavam ao preço de R$ 250. Depois de fazer umas três perguntas sobre a qualidade das calças e seu valor, a vendedora, que havia sido muito simpática, resolveu me apresentar para dona. Igualmente gentil e após responder as perguntas, Angela conseguiu uma proeza: fazer com que eu me revelasse. Angela: “Você faz muitas perguntas, hein, trabalha em quê?” Pesquisadora: “Sou formada em jornalismo”. Angela: “Que legal!” Não sei se foi a empolgação nas palavras dela ou a simpatia no primeiro contato, mas algo me fez sentir tão bem que, pela primeira vez, não tive medo de dizer minhas verdadeiras intenções. Este feito é mérito dela, minhas experiências anteriores não me levariam à revelação espontânea e gratuita da minha condição de pesquisadora. Pesquisadora: “Na verdade, agora, eu estou como estudante da UFMT, faço mestrado e pesquiso o consumo de moda aqui no Shopping Popular. Acho sua banca muito bacana, super diferente das demais, inclusive nos produtos. Você poderia me ajudar na pesquisa respondendo algumas dúvidas?” Angela: “Claro! Eu gosto de jornalistas!” Sacoleira há três anos, Angela havia decidido se estabelecer no Shopping Popular após o casamento por incentivo do marido, que já trabalhava no local há seis anos vendendo DVD’s falsificados. Com apenas aproximadamente oito meses, Angela explicou que o box era um sucesso devido aos seus produtos diferenciados: as calças de strass. Questionada como era o processo de escolha das roupas, Angela contou que segue o fluxo normal da moda 75 (referindo-se às tendências sazonais), mas que, na verdade, compra o vestuário e acessórios pensando em si mesma. Nunca gostei das roupas vendidas aqui em Cuiabá, comecei a ser sacoleira assim: ia pra fora, voltava e minhas amigas perguntavam de onde era tal coisa, comecei a comercializar o que comprava pra mim. Minha clientela é fixa e depois que comecei a andar aqui pelo Shopping algumas vendedoras querem me imitar e acabam comprando aqui também. As roupas acompanham a estação, agora próximo ao verão estamos com um vestuário mais moda praia, com bastante tops, mas nossa forte são as calças com strass e pedraria. Minhas calças parecem uma jóia, não é? (Angela, proprietária do box 267, em conversa informal, 2011) Figura 23: Arara apenas com modelos de jeans com pedraria e strass Talvez por ser “antenada nas coisas”, como ela mesma descreveu-se, e enxergar na oportunidade uma maneira de divulgação da loja (ressalto que Angela por diversas vezes e em outras ocasiões me identificou como jornalista e não como pesquisadora), talvez por ainda não ter vivido o terror de ver a polícia federal invadindo seu local de trabalho ou talvez por sua própria personalidade, Angela não só falou alegremente comigo, como ainda me entregou um cartão com seu número de celular e se predispôs a colaborar quando fosse necessário. Independente das motivações de sua dona, é notório que a barraca roxa é resultado de uma ação conjunta: Angela juntamente com as calças de pedraria e strass ao mesmo tempo performam e são performadas produzindo uma diferença no resultado final. Vitrine viva, 76 Angela é “a cara” das roupas que vende. Mais ainda, Angela é modelo de um gosto muito comum nas classes subalternas: o “piriguete style”. Figura 24: Angela e o marido em frente a sua banca de roupas Figura 25: Cartão do box 3.2 “Piriguete” Style 77 Saia rodada, blusa rosinha Decote enfeitado com monte de purpurina (...) Vai na micareta Vai no pop rock Festa de axé ela só anda de top Ela usa brilho, piercing no umbigo (...) Foto de espelho na exibição Ela curte funk quando chega o verão No inverno essa mina nunca sente frio Desfila pela night com um short curtinho (...) Ela anda sexy, toda guapetona Ela não é amante, não é prostituta, ela é fiel, ela é substituta Quando ela me vê Ela mexe Piri piri piri piri piri piriguete MC Papo, Piriguete Piriguete, com i, adjetivo utilizado para designar o gênero feminino. O termo nasceu na Bahia e vem de perigosa, os baianos empregam “piriguete” para nomear as mulheres consideradas ditas “fáceis”, ou seja, mulheres com uma conduta sexual liberal. O termo só se espalhou pelo Brasil e tornou-se febre após o MC Papo, rapper carioca de 21 anos chamado Alexandre Materna, ter composto o rap Piriguete. A música foi criada depois que MC Papo ouviu os amigos de escola utilizarem ininterruptamente o adjetivo, assim que retornaram de férias de Salvador, e concedeu ao autor seus 15 minutos de fama. Da família das galinhas, vadias, biscates, piranhas, vagabundas, cachorras e de outros termos utilizados pejorativamente para classificar mulheres que contrariam os contratos sociais de uma sociedade patriarcal, o piriguete gerou ávidas discussões, principalmente nos veículos de comunicação. De acordo com o propagador da gíria, MC Papo, a insatisfação foi tanta que o rapper foi algumas vezes “atacado por várias feministas loucas”. “Elas mandam email falando que eu sou machista e que a música é um absurdo. Mas estou falando de um tipo de mulher. Não estou falando que toda mulher é piriguete”. (MC Papo 2010: edição 98) Enquanto algumas mulheres rechaçavam o termo devido a sua associação com a vulgaridade ou criticavam o machismo explícito da canção, outras orgulhosamente se denominavam piriguetes. A “briga” alcançou seu auge quando a cantora de axé Ivete Sangalo proclamou em um de seus shows que dali em diante ela seria “Piriguete Sangalo”. O episódio despertou tamanha comoção que a revista feminina TPM lançou uma reportagem e uma enquete na edição 98, em 5 de maio de 2010. Intitulada “Será que você é piriguete?” a matéria trazia psicólogos, jornalista e artistas para avaliarem a construção e utilização do termo. 78 As opiniões não podiam ser mais contraditórias, enquanto o filósofo Mario Sergio Cortella considerava o adjetivo sempre ofensivo, a cantora cult Karina Buhr ponderava que ser piriguete era “o máximo”. Hoje piriguete significa uma mulher perigosa ou que está a perigo. O significado é sempre ofensivo. A não ser quando a expressão é usada pelo homem que acha que foi ‘alvo’ de uma piriguete. Nesse caso, ele acha bom, pois a autoestima cresce. (CORTELLA 2010: edição 98) Piriguete é aquela garota que não tem vergonha de descer até o chão, de usar roupa sexy e de se divertir na balada com liberdade, sem ligar para o que os outros estão pensando (...). Se piriguete é uma palavra para designar a mulher que fica com quem ela quer, então, que bom. O mundo é tão machista que se for por isso é legal ser chamada de piriguete. (BUHR 2010 : edição 98) Figura 26: Enquete veiculada pela edição 98 da revista TPM. Note que não há categorização positiva na pesquisa e que a enquete foi realizada em 2010, ano em que o facebook ainda não estava massificado. O que nos leva a concluir que, majoritariamente, mulheres das classes subalternas não constam nos dados O dialeto trazido da Bahia, apropriado agora por todo Brasil, tornou-se estilo: mais do que independência com o próprio corpo e atitude liberal, ser piriguete exigia uma composição 79 indumentária. “A roupa fala muito sobre pessoa. Eu já nasci piriguete. Uso tudo bem curto, sempre. Quanto menor a roupa e com mais brilho, mais piriguete a mulher é”, ensinou a funkeira Priscila Silva na matéria “Musas da Jaula das Gostosudas ensinam como ser piriguete”. 32 Sua colega de profissão, Alinda Araújo, completou: “Outra dica é já chegar 'causando'. Todo mundo tem que ver de longe quando estamos nos aproximando”.33 Com o sucesso do piriguete style, a funkeira Valesca Popozuda, cantora da Gaiola das Popozudas e compositora dos hits “Minha Buceta é o Poder” e “Quero te dar”, lançou em novembro de 2011 uma grife de vestidos voltada exclusivamente para o estilo. Sobre a coleção, Valesca explicou em entrevista: Teremos a linha Vaslesca Glam, que é mais festa, com brilho, renda, decote e transparência e a linha Valesca Pop que será mais para o dia a dia. Aqueles vestidinhos simples, porém chiques para a mulher passear no shopping, ir ao cinema e etc. Amo estampa de onça. Quero todos os tipos de onça na minha coleção, além de zebra, tigre e muito mais. Também gosto bastante das cores flúor. Minha coleção vai fugir do básico. (grifo da autora) Eles não ficam subindo quando a mulher anda e ficam bem ajustados ao corpo. Além disso, tem bojo para aumentar os seios de quem não tem muito e segurar daquelas que têm silicone igual a mim. O drapeado dos modelos modela o corpo e esconde as gordurinhas de quem está fora de forma. (Valesca 2011: site Ego)34 32 Matéria veiculada no site de notícias de celebridades Ego, no dia 16/10/2011. Ibid, idem. 34 Matéria veiculada no site de notícias de celebridade Ego, no dia 06/11/2011. 33 80 Figura 27: Musa das piriguetes: a cantora de funk Valesca e um dos vestidos de sua coleção Apesar do sucesso, as piriguetes e o seu look foram duramente criticados não só pelas classes hegemônicas como também pelos críticos de Moda brasileiros. No programa Esquadrão da Moda, exibido semanalmente em horário nobre pelo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) e um dos poucos programas exclusivamente de Moda da TV aberta brasileira, os apresentadores – a modelo e consultora Isabella Fiorentino e o stylist Arlindo Grund – recriminaram duramente uma participante ao analisarem os vestidos que a moça usava durante o dia a dia, os quais se enquadravam no piriguete style. Sair de casa com essa combinação terrível de estampas de onça. Desse jeito não vamos te levar pro hotel, vamos te levar pra jaula (...). E me fala uma coisa, as pessoas que não te conhecem, veem você vestida assim de piriguete, elas vão pensar o quê? (... ) Isso é pura cafonice. (GRUND 2010)35 Vale lembrar que o Esquadrão da Moda é livremente inspirado no britânico “What not wear” e tem como objetivo, de acordo com o site oficial do programa, “ensinar o telespectador a entender o que vestir e, principalmente, o que ele não deve usar”. Resumidamente, os estilistas ignoram o gosto e personalidade das participantes – que não 35 Programa apresentado no SBT no dia 26/05/2010. 81 pediram para participar, mas foram indicadas por parentes ou amigos que as consideravam com gosto para a indumentária imprópria – e impõem às mesmas as tendências da Moda. A estilista Glória Kalil, ícone mainstream da moda brasileira, também dedicou um artigo em seu site “Chic, Glória Kalil” para alertar as moças como não se comportarem em festa de família: “Nada de make carregado e saltos altíssimos, escolha uma roupa que te deixe linda, sem ser piriguete”. (Kalil 2011)36 Em 2006, a Rede Globo de Televisão apresentou a série televisiva Minha Periferia, apresentada por Regina Casé, que apresentava os códigos culturais das classes subalternas. No episódio Morro de São Carlos, Rio de Janeiro a apresentadora passou a mostrar as singularidades dos adereços dos moradores da periferia, dando destaque às cores e formas, como os shorts curtos das garotas que deviam “atrapalhar a construção civil” (Regina Casé, 26/08/2006), os cortes de cabelo personalizados, com desenhos de letras, folhas e formas geométricas, os bigodes e cavanhaques descoloridos, as unhas coloridas com flores. Nas palavras da entrevistada Shirlene, cabeleireira, na periferia, “[o/a cliente] vai vim fazer unha tem que sempre sair com uma florzinha, seja velho, criança, qualquer pessoa... (intervenção de Regina Casé: porque ninguém aqui na favela gosta de nada básico!) Nada básico!”. A mesma noção “nada básica” utilizada pela cantora de funk Valesca e a cabeleireira Shirlene também aparece no consumo de roupas no Shopping Popular. As calças, por exemplo, que não são falsificações de grandes marcas, são “excessivamente” enfeitadas com strass (pedrinhas brilhantes que imitam cristal), justas, de cós baixo e com bastante strech (tecido elástico que permite a roupa se ajustar melhor no corpo). A revelia das instruções dos ditos formadores de opiniões da moda oficial e hegemônica, o piriguete style (como seus “excessos” nada básicos) se espalhou por todo Brasil, principalmente entre as consumidoras das classes subalternas alcançando nosso objeto de estudo: a moda no Shopping Popular. E aqui adentramos na nossa segunda hipótese para explicar a aquisição no camelódromo de uma calça com um preço, visto que os clientes do espaço buscam entre outras coisas valores abaixo do comércio formal: o gosto. Na coluna do jornal Folha de SP, a psicanalista Anna Veronica Mautner, ao analisar o vestuário das mulheres que utilizam o ônibus como meio de transporte, notou a diferença entre aquilo que é utilizado no cotidiano pelas mulheres das classes subalternas e aquilo que é dito pelos meios de comunicação. 36 Artigo divulgado no site chic.ig.com.br no dia 08/04/2011 82 Basta olhar em volta, no metrô ou à espera dele, no ônibus ou à espera dele, para encontrar mulheres que não se inibem em mostrar os recortes de seu corpo e até das partes... como as chamaremos? Depois, é só olhar a roupa dos ricos, estampada nas revistas, na televisão: as supostas formadoras de opinião se vestem diferente. (MAUTNER, 2008) Mautner indica algo que já suspeitávamos: as classes subalternas não seguem “religiosamente” os ditames do vestir-se concebido pelas elites e veiculado pelos discursos hegemônicos, principalmente os midiáticos; não comungam as mesmas preferências, não seguem todas as tendências e, o que é mais interessante, parece que os meios oficiais da moda não se dão conta disso ou se dão ainda insistem no seu poder de colonização de gostos. O camelódromo, de maneira geral, é um local sem classes sociais bem definidas. Durante o dia, pessoas das mais diferenciadas classes circulam livremente pelos corredores do Shopping Popular. Entretanto, essa lógica não permeia o comércio de roupas. Majoritariamente, o público dos boxes de roupas é composto por consumidores das classes subalternas, os quais possuem suas próprias singularidades na questão do gosto. Assim, se a revolta campesina na Índia pós-colonial foi uma forma de resistência aos padrões dominantes, longe de ser um “mau gosto”, o piriguete style, as preferências dos consumidores de vestuário do camelódromo também o são. Vale ressaltar que quando falamos de resistência não estamos tratando do sentido clássico marxista das lutas de classe ou categorizando a prática do consumo de roupas subalternas como anticapitalista ou précapitalista. Para explicar melhor nossa visão, nos apropriaremos da referência feita por Mignolo (2003) ao filósofo argentino Enrique Dussel. Para o filósofo, toda totalidade é composta do “mesmo” e do “outro”. Enquanto “o Mesmo” seria a totalidade em si, “o Outro” seria tudo que está em seu exterior. Entretanto, Dussel se apropriou de uma sutileza da língua espanhola, que dispõe de duas maneiras para designar a palavra “outro”, para criar uma categoria complementar dentro de “o Mesmo”, designada por lo otro. Assim, enquanto lo otro ainda estaria, para o filósofo, no interior do sistema, el outro estaria no domínio exterior da totalidade. (...) a exterioridade é o domínio dos estrangeiros sem teto, desempregados, ilegais, excluídos da educação, da economia e das leis que regulam o sistema. (...) gênero e diferenças étnicas e sexuais poderiam ser absorvidos pelo sistema (...). Isso é visível hoje nos Estados Unidos na medida em que afro-americanos, mulheres, hispânicos e homossexuais (embora com diferenças sensíveis entre grupos) vão sendo aceitos dentro do sistema como lo outro, complementando a totalidade controlada pelo o Mesmo. (Mignolo, 2003, p. 243 e 244) 83 Mignolo (2003) se apropriou do pensamento de Dussel e traduziu el otro e lo otro como subalternidades exteriores e interiores, respectivamente, sendo que a diferença entre elas está em termos legais e econômicos. Se podemos pensar o camelódromo como mercado cinza, conforme Appadurai, também podemos contextualizá-lo no enquadre de Mignolo. Incorporado pela lógica dominante, o consumo subalterno de roupas no Shopping Popular permanece na totalidade, sendo lo otro. Brandão (2007), refletindo sobre os circuitos subalternos de consumo, explicou que essas práticas “por alguma razão, arranham, perturbam ou até desestabilizam a lógica hegemônica” (Brandão 2007:104). Portanto, o gosto subalterno presente na prática banal do consumo de roupas resiste porque não é imóvel e submisso às práticas hegemônicas , mas produz algo novo através da apropriação e recomposição daquilo que se supôs uma imposição das classes hegemônicas. Figura 28: Look apresentado em uma das bancas do Shopping Popular 3.3 Gosto se discute Contrariando o ditado popular, estudiosos de diversas áreas têm há anos discutido e refletido acerca do gosto. Na Grécia Antiga, Platão já tentava definir o que poderia ser 84 chamado de belo. Na época do Iluminismo, Montesquieu, a pedido de Jean Le Rond, realizou um “Ensaio sobre o Gosto”. Diderot (1761) e Voltaire (1764) também se questionaram sobre o que rege o princípio da beleza. Em 1970, Immanuel Kant, em Crítica da Faculdade do Juízo Estético, define gosto como a faculdade de julgar o belo. Para Kant, o julgamento estético é determinado através das subjetividades individuais, num sentimento de agrado ou desagrado. “O gosto é a faculdade de julgar e de apreciar um objecto ou um modo de representação por intermédio de uma satisfação ou um desagrado, independentemente de qualquer interesse. Chama-se belo ao objecto de tal satisfação” (KANT 2005: 143) O belo na visão kantiana seria um objeto de prazer independente de qualquer interesse. Para Kant, o juízo do gosto é desinteressado e a contemplação estética subjetiva podendo agradar ou não o sujeito. Kant afirma que apenas o interesse pessoal pelo belo é desinteressado e livre, o que nos leva a crer que a visão kantiana de juízo estético é uma questão privada. Entretanto, a lógica de Kant supõe que o juízo estético de algo belo implica que esse objeto agrade universalmente. Resumidamente, a ideia fundamental do juízo estético kantiano é de um gosto subjetivo e universal. Em 1979, Pierre Bourdieu foge da perspectiva do gosto como uma propriedade inata do sujeito e o apresenta como resultado de um conjunto de condições materiais e simbólicas. Longe de ser universal, o gosto é adquirido social e culturalmente através de distinções de classes. Entre as décadas de 60 e 70, Bourdieu realiza um extenso trabalho quanti-qualitativo no qual conclui que o gosto e o estilo de vida são determinados, em grande parte, pela trajetória educativa e experiência vivida dos sujeitos. As disparidades de escolhas são todas elas distinções de classes frutos de uma relação de força alicerçada na estruturas institucionais da sociedade capitalista, como a família e a escola. “As diferentes posições no espaço social correspondem estilos de vida, sistemas de desvios que são a retradução simbólica de diferenças objetivamente inscritas nas condições de existência”. (BOURDIEU 2008:240) Neste sentido, as distinções de gosto acabam tornando-se base do julgamento social, marcadores de classe que unem ou separam os grupos no espaço social. Bourdieu apresenta o senso estético como princípio tanto para classificar como para ser classificado. Para o pensador, o gosto é a prática que carrega a diferença em si permitindo que essa seja traduzida no bom e no mau gosto numa estratégia de classificação hierárquica da cultura dos segmentos 85 sociais. O mau gosto estaria, obviamente, relacionado às classes subalternas, enquanto o bom e o belo às dominantes. Portanto, não há nada que distinga tão rigorosamente as diferentes classes quanto à disposição objetivamente exigida pelo consumo legítimo das obras legítimas, a aptidão para adotar um ponto de vista propriamente estético a respeito de objetos já constituídos esteticamente – portanto, designados para a admiração daqueles que aprenderam a reconhecer os signos do admirável – e, o que é ainda mais raro, a capacidade para constituir esteticamente objetos quaisquer ou, até mesmo, “vulgares” (por terem sido apropriados, esteticamente ou não, pelo “vulgar”) ou aplicar princípios de uma estética “pura” nas escolhas mais comuns da existência comum, por exemplo, em matéria de cardápio, vestuário ou decoração da casa. (Bordieu, 2008, p. 42) Pierre Bourdieu tem uma concepção relacional e sistêmica do social, enxergando a estrutura social como um sistema hierarquizado de poder e privilégio, determinado tanto pelas relações materiais e/ou econômicas como pelas relações simbólicas (status) e/ou culturais entre os sujeitos. Longe da visão de classes de Bourdieu, Omar Calabrese em A Idade Neobarroca tenta identificar traços de existência de um gosto do nosso tempo, ou seja, tendências que sejam comuns em áreas distintas na contemporaneidade. No início de seu trabalho, Calabrese deixa claro ao leitor que o livro não consiste em analisar a qualidade dos objetos, pois ela está ligada a um juízo estético o qual é “quase sempre acompanhado por um juízo ético, ou passional, ou morfológico”. (Calabrese 1999:35). Através de uma análise atenta dos fenômenos culturais contemporâneos, Calabrese tenta entender a lógica do gosto, visto como tendência para o investimento de valores, presente na nossa sociedade. Adotaremos aqui a perspectiva de Calabrese, pois, mais do que estabelecer um juízo de valor, queremos mostrar que existe um estilo de pensamento e de vida que resiste aos padrões e que se apropria apenas do que lhe convém. Por meio da apropriação de elementos da indumentária hegemônica e tradução para uma adequação de gostos, a moda do camelódromo, com seu look, introduz uma mudança de leitura e/ou de uso do próprio objeto dado, no caso o vestuário, resistindo à simples replicação dos padrões. Para exemplificar a releitura do objeto utilizaremos como exemplo o caso que aqui nomeiei como “febre nacional das roupas indianas”. Como já foi mencionado, comecei a pesquisa o Shopping Popular no segundo semestre de 2008. Na ocasião, meu trabalho in lócus era quantificar as barracas que comercializam itens de moda (vestuário, acessórias, bolsas e sapatos). Após este primeiro 86 contato só retornei ao campo no início de 2009 e, para minha surpresa, constatei que grande parte dos vendedores estava, naquele momento, atuando apenas com o comércio de roupas indianas. Na primeira visita de campo feita ao Shopping Popular (2008), foram quantificadas cerca de 80 barracas que comercializam produtos de moda. Destas, aproximadamente nove eram de roupas exclusivamente femininas, sendo que duas delas vendiam roupas femininas do tipo “indianas” (na verdade, vestidos estampados que poderiam ser considerados parentes do gênero, mas nada realmente especializado). Em 2009, após início da novela global “Caminho das Índias”, as barracas de peças femininas eram unanimemente indianas. A conclusão imperativa para a mudança era a influência da mídia nos padrões de consumo culturais. Com “Caminho das Índias”, as roupas indianas viraram febre nacional, saindo dos guetos hippies e tornando-se vestuário obrigatório daqueles considerados “antenados”. O que outrora era visto como alternativo, foi transformado em padrão. Crescimento de barracas indianas após a novela "Caminho das Índias" Ano Barracas 2008 Freqüência 2009 (%) Freqüência (%) Femininas 7 78% 0 0% Femininas Indianas 2 22% 10 100% Total 9 100% 10 100% Tabela 3 87 Gráfico 1 Que os meios de comunicação influenciam na moda já era fato constatado para mim e isso é válido para todas as classes. Dentro do fato, que eu considerava uma obviedade, algo me chamou a atenção: “as batas da Maya” (protagonista do folhetim) estavam sendo usadas como vestido. Lembro que na ocasião, uma cliente com um corpo mais avantajado mediu uma bata M, o resultado de um número inferior ao seu manequim era: seios saltando para fora e corpo descoberto da coxa para baixo. A vendedora ainda orientava a mulher que utilizasse a bata com salto, o que tornaria o visual “pronto para qualquer balada”. A mulher levou a batavestido que, aos meus olhos, estava visivelmente apertado. Questionei a dona da banca se era comum o uso das batas como vestidos, ela informou que sim, pois as mulheres não gostavam das roupas folgadas. Em conversa informal, outra vendedora me contou que havia chegado a mesma constatação quanto a sua clientela não gostar do vestuário largo indiano e permaneceu comercializando o estilo de roupas femininas que já vendia. “Eu vendo roupa para homens e para mulheres. Já tem muita gente vendendo roupa da novela, daí, resolvi manter minhas blusas de time, leggings e tops mesmos porque as mulheres gostam”. (Vendedora, 2009) Abro um parêntese para narrar algo que na iniciação científica não mencionei, eu mesma era consumidora de roupas indianas – antes do surgimento da novela – e ao presenciar aquela cena no camelódromo meus pensamentos não poderiam ter sido mais preconceituosos, considerava a consumidora que havia comprado “uma-bata-como-vestido-e-ainda-comnumeração-menor-que-a-sua”, no mínimo, “sem noção”. Estava escandalizada. O choque da transformação no uso do vestuário me fez comentar o acontecimento – e todas as minhas 88 impressões – com uma amiga a qual rebateu minhas informações com a categórica frase: “estão vulgarizando a roupa indiana”. - Ufa! Que bom, não sou só eu que penso assim!, pensei, mas não externalizei. Só um ano mais tarde pude analisar com certo distanciamento a situação e o meu próprio desconforto. 3.4 O vestuário como significado “Estão vulgarizando a roupa indiana”(Informante, 2009) De acordo com Barthes (2009) a moda é absolutamente um sistema de signos, composto por “um sistema propriamente lingüístico, que é a língua, e um sistema indumentário” (BARTHES 2009:55), sendo que ambos não estão separados, mas aparecem assumidos um no outro. Uma das principais formas de significante retórico na moda é a composição, o modo de “se fazer” a Moda: objeto de grande investimento, o vestuário possui uma inata disposição poética e é através de sua descrição que ela toma corpo de conotação retórica. O significado retórico da descrição da composição da indumentária, mais do que compor uma ideia individual, compõe uma visão coletiva de modelos sociais. Assim, quando minha amiga escolheu o termo “vulgarizando” ela não apenas descreveu o fenômeno, mas também revelou o lugar dela no mundo. Caso reordenássemos a frase, ela ficaria: Estão tornando a roupa indiana vulgar. Vul.gar adj. 1. Relativo a ou próprio do vulgo. 2. Ordinário; reles; baixo. 3. Sabido de todos; comum; trivial. 4. Diz se da língua corrente do povo. S.m. 5. Coisa vulgar. (LUFT 1999:680) Impregnada de conotações, a descrição do objeto imaginário37 trouxe a luz, através da linguagem, a comutação do objeto. Embora os traços indumentários (formas, matérias, cores e 37 Quando afirmo objeto imaginário é devido a utilização do adjetivo vulgar, repleto de juízos valorativos por trás. Caso fosse descrever o objeto real seria algo como: bata – marrom com detalhes pretos e vermelhos, fendas nas laterais, mangas ¾, decote em V coberto com paetês pretos e tecido de viscose, descrição explícita do objeto. 89 etc.) sejam os mesmos, as diferentes formas de uso do vestuário introduziram uma nova significação de mundo. De um lado temos a bata indiana “alternativa”, de outra temos a bata indiana “vulgar”. O que as difere não é o objeto, mas a leitura e a utilização que é feita pelo indivíduo no cotidiano. Por não ser passivo, mas produtivo, o consumo de roupas no camelódromo produz uma interpretação que muda a própria natureza do objeto no ato do consumo. Certeau (2009) chama de táticas os procedimentos circunscritos em um “lugar próprio”, o qual é controlado por estratégias e fundado sobre um desejo e um conjunto desnivelado de relações de poder, que organizam um novo espaço: o “lugar praticado” – onde há a fuga das estratégias que tentam controlar o espaço social. As táticas são vistas como enunciados que falam das diferentes recepções feitas pelo leitor/consumidor/público. Subjugada pelas classes hegemônicas, a moda nas classes subalternas, representada aqui pela Moda do camelódromo, pode ser pensada como uma tática para fugir do controle e julgamento estético social. Entretanto, afirmar que há um movimento de apropriação no cotidiano da moda oficial, pelas classes subalternas, e conseqüente fissura da ordem através da criação de um novo lugar não é dizer que esta tática subalterna – de tradução – está fora do sistema que a constitui, pois ela ainda está presa à estrutura que a cerca. “Há uma tensão entre o que é admitido pelo poder social que a organiza e o ato de utilizá-la” (CERTEAU 2009: 24) Quando a moça “acima do peso definido como ideal” utiliza uma bata como vestido, ela realiza um duplo movimento: de adequação e readequação. Se por um lado ela se adepta à tendência proposta pela moda midiática (e, portanto, hegemônica), por outro ela traduz e reinventa essa mesma moda para algo que condiz com seu gosto. Assim, o sentido dado pelo sujeito é tanto estruturado – pois está circunscrito a uma estrutura – quanto estruturante, pois dentro daquela estrutura ele promove uma fissura ao readequar os códigos. Retomando a ideia de Dussel, poderíamos afirmar que os movimentos táticos estão dentro do Mesmo ou de “lugares próprios” funcionado como Lo Outro do sistema. Retomando a ideia principal, a moda praticada no camelódromo se configura mais como uma prática de resistência e menos como uma prática de subordinação. Abaixo, a “vitrine” do Shopping Popular e de uma loja de grande marca do Shopping Center. Ambas as fotos foram tiradas no mesmo dia e embora possuam elementos da indumentária parecidos – com traços de mesma tendência – são claras as diferenças na 90 composição. Nas duas há combinação de legging e blusões ou vestidos, mas cada uma com suas particularidades poéticas. 91 Figura 29: Look apresentado no Shopping Popular. 92 Figura 30: Look apresentando no Shopping Center. Outro exemplo de como a recepção do objeto cultural – vestuário – é recebido de maneira fractada gerando novos significados e valores é relativo ao próprio processo de escolha das roupas que serão comercializadas pelos camelôs. Na primeira entrevista semiestruturada que tentei realizar, em junho de 2010, a vendedora e dona da banca afirmou categoricamente que se inspirava nos visuais apresentados nas telenovelas para a escolha do que vender, mas, curiosamente também afirmou que não assistia televisão porque sua religião não permitia – ela era evangélica. A contradição foi protagonista da entrevista que não durou mais do que 10 minutos. Na ocasião, a tendência era a Moda colorida – inspirada nos integrantes da banda adolescente Restart que utilizavam calças de cores vibrantes, típicas dos anos 80. A vendedora, então, apontou para calça amarela ovo que havia comprado e o look 93 criado combinando com a calça com uma mini blusa listrada, também colorida, que deixava a barriga à mostra. Em sua coluna “Moda Urbana” a consultora de moda Natália Sauer deu dicas aos jovens e adolescentes de como ter o “verdadeiro visual da banda Restart” e ilustrou os conselhos com fotos de adolescentes que estariam compondo o look colorido de maneira correta. Nenhum deles deixava a barriga de fora, é claro. Mais uma vez, os elementos da indumentária seguiam uma mesma tendência, mas adquiriam uma nova leitura de acordo com sua utilização no cotidiano. A moda praticada no camelódromo e a moda midiática (e hegemônica) se chocam novamente. Figura 31: Adolescentes vestidos de acordo com a Moda colorida 94 Figura 32: Look à esquerda, da banca do Shopping Popular, inspirado nos integrantes da banda Restart Através dos dados e exemplos expostos aqui e dialogando com Calabrese (2009) podemos afirmar que se existem traços efetivos do que seria um “gosto subalterno”, ele pode ser descrito como o neobarroco de que fala Calabrese. 95 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como um fenômeno produzido e capitaneado pelas elites sociais do mundo, difundido pelos meios de comunicação, mas que atravessa as classes sociais, a moda, no Ocidente, constrói, em larga medida, a sociedade e a cultura, assim como é construída por ambas. Sendo um dos maiores símbolos da sociedade de consumo, o estudo deste sistema nos permitiu compreender que a moda, ao mesmo tempo em que está sujeita a influências externas, como a da mídia, também é agente influenciadora. Como parte do sistema da sociedade, a moda interage com a mesma, ora seguindo o fluxo elite fashion → classes subalternas (ruas), ora originando contra-fluxos: classes subalternas (ruas) → elite fashion. E são nestes contrafluxos que novos padrões sociais de consumo cultural podem acontecer. Barthes38 defende que "se vestir é um ato de significação e, portanto, um ato profundamente social instalado no coração mesmo da dialética das sociedades". Mais do que um ato embutido de significados, a vestimenta com seu conjunto de adornos torna-se, como mostrado no trabalho, costume, elemento de integração social, gera pertencimentos e estabelece relações de identidade. A moda das passarelas, da mídia ou propaganda é semi-coletiva, pois nem todos os indivíduos da sociedade, seus reais usuários, podem expor seus gostos e opiniões neste instante. É no momento em que atinge as ruas e entra nos guarda-roupas, que a moda adquire o aspecto de “fala” – a moda vernacular − , pois comunica sobre seu usuário, e se consuma no traje. O gosto individual passa então a prevalecer e cada um utiliza aquilo que atende às suas necessidades. Para além da indumentária, o sistema da moda expressa e representa as relações sociais entre indivíduos, culturas, políticas. Desta forma, a composição da roupa passa a representar hierarquias, relações de poder, status, posições assumidas e partilhadas nos territórios reais, virtuais e imaginários. Diferentemente das sociedades tradicionais, em que o coletivo sobressai ao individual e as relações sociais acontecem dentro de estruturas mais lineares, fixas e homogêneas, nas sociedades contemporâneas, o indivíduo é mais importante que a sociedade (o todo). Uma marca da individualização, da personalização, da demarcação de territórios e limites é a diferenciação representada pelo código de signos representados pela 38 Apud Renata Pitombo, 2007. 96 composição idas vestimentas. O sujeito se desprende da massa e, ao mesmo tempo, a integra pela representação que faz de si através da forma de vestir-se, de comunicar valores sociais ou aspectos subjetivos que deseja expressar para o Outro. Contextualizada na esfera de produção e consumo de bens simbólicos na atual sociedade, a forma moda “tira” a função das vestimentas de proteção do corpo em relação a agentes externos e a converte em forma de expressão, comunicação e, principalmente, integração, tornando o ato de consumo de moda uma prática cultural. Dentro da esfera do Shopping Popular de Cuiabá, o consumo de roupas no camelódromo mais do que um ato repleto de imposição hegemônica é uma força de resistência, de subversão à ordem. Uma resistência que não foge às referências do sistema no qual se insere, mas o “arranha”, “perturba” através da apropriação daquilo que lhe é oficialmente oferecido. As classes subalternas “assimilam”, no caso da pesquisa, a moda oficial e a modifica de acordo com seu gosto próprio. É através dessa diferenciação realizada no cotidiano, mantida nos procedimentos de consumo, que as classes subalternas criam um novo lugar. Dialogando com Certeau (2009: 40), os consumidores subalternos realizam em uma espécie de bricolagem “com e na economia cultural dominante, usando inúmeras e infinitésimas metamorfoses da lei, segundo seus interesses próprios e suas próprias regras”. É neste patchwork do cotidiano que as táticas do consumo subalterno fissuram o julgamento estético social dominante, tornando possível pensarmos até mesmo em uma moda do camelódromo. Finalmente, ainda que experimental, acredito que este estudo tenha sido capaz de apresentar dados científicos pertinentes sobre o consumo de roupa nas classes subalternas e sobre a própria moda, contribuindo para mais diversas disciplinas, como propõe o Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso. Além disso, creio também que este trabalho poderá colaborar para futuras pesquisas etnográficas em contextos urbanos “glocais”, já que, como em muitos espaços da sociedade contemporânea, fazer etnografia no camelódromo, um objeto tão ambíguo, requer avaliar permanentemente a identidade do etnógrafo, os próprios métodos antropológicos e fugir de uma realidade objetiva e exata para buscarmos uma interpretação. Ao invés de tentar escrever sobre o universo do Outro, trabalhar com o Outro, numa fusão de perspectivas. No caso do Shopping Popular, trabalhar com o Outro é trabalhar com as múltiplas realidades do objeto, os 97 consumidores, os vendedores, a polícia federal, a receita federal, pois todos eles produzem uma diferença no resultado final. Encerro assim, acreditando que muitas outras práticas poderiam ser investigadas dentro do universo do camelódromo e que para cada uma delas há uma versão da realidade, dependendo da perspectiva, pois como disseram Law e Mol (2001:88), “la realidade de una entidad nunca se agota”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABÉLÈS, Marc. “Préface”. Em: APPADURAI, Arjun. Aprés Le colonialisme. Les conséquences culturelles de La globalisation. Tradução do inglês: François Bouillot. Paris: Payot, 2001. ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. “Préfacio”. Em: SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart de Almeida, Marcos Pereira Feitosa, And´re Pereira Feitosa, Belo Horizonte: UFMG, 2010. APPADURAI, Arjun. Aprés Le colonialisme. 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