Conferência sobre os primeiros capítulos do livro do Génesis
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Conferência sobre os primeiros capítulos do livro do Génesis
1 E Deus viu que o mundo era bom Os primeiros capítulos do livro do Génesis 0. Introdução Ao longo de todos os tempos, as grandes questões de fundo que o ser humano se põe são basicamente as mesmas: – Quem sou eu? – Donde venho e para onde vou? – Que é que há para além desta vida? Trata-se de perguntas decisivas para a vida, para as quais se tentou dar resposta nas mais diversas culturas desde o Extremo Oriente ao Ocidente: de Confúcio da China, passando pelos Veda da Índia, até à Grécia de Homero, Platão e Aristóteles. E assim também no Médio Oriente: da Mesopotâmia ao Egipto, passando pelos livros sagrados de Israel, que constituem a Bíblia. Esta obra monumental tem como frontispício o Génesis, isto é, o “livro das origens”. Também este começa por oferecer a resposta àquelas questões humanas fundamentais, uma resposta clara: Deus está na origem do mundo e do homem; e Ele tem um projecto de beleza, bondade e felicidade para a sua obra: “No princípio criou Deus o Céu e a Terra…”; “E viu Deus que era bom”. Mas este primeiro livro da Bíblia tem um objectivo ainda mais concreto: mostrar a origem do Povo de Israel, com o qual Deus fez uma aliança de amor e que constituiu como depositário de promessas messiânicas de salvação. Os 50 capítulos que constituem a obra constam de duas partes nitidamente distintas: – A pré-história do Povo Escolhido desde o início da criação até Abraão: capítulos 1 a 11; – A história deste povo até à sua fixação no Egipto: capítulos 12 a 50. 1. A linguagem dos primeiros capítulos do Génesis De modo particular os três primeiros capítulos do Génesis falam de tempos que não se podem controlar de modo algum pela história, pois se referem aos tempos do início do universo e da humanidade. Fala-se da criação do mundo em 6 dias e de Deus a descansar desse trabalho, da criação do primeiro homem a partir duma estátua de barro na qual Deus insufla um sopro de vidas pelas narinas, da formação da mulher duma costela de Adão anestesiado pelo sono; fala-se dum jardim de delícias onde nada falta e onde Deus passeia pela brisa da tarde; fala-se duma serpente que seduz a mulher e esta induz também o homem a desobedecer a Deus, vindo ambos a ser expulsos do Éden como castigo da sua rebelião, mas não sem que Deus lhes deixe uma esperança de futura libertação do poder da serpente maligna. Um olhar superficial sobre esta história de encantar, aparentemente ingénua, pode levar o leitor moderno a ficar decepcionado: Não será que tudo isto não tem valor, pois parecem contos de criança, uma pura ficção? Habituados ao rigor científico das Ciências da Natureza, da Astronomia, da Biologia, da Antropologia e da História, não teremos de pôr de parte tais relatos, em nome da Ciência? No entanto, desprezar estes textos em nome da Ciência é que seria uma falta de rigor científico! Com efeito, estamos em face de “uma obra prima da Literatura universal, que é um ponto de referência para a compreensão da cultura contemporânea”1. Mas a verdade é que estes textos estão redigidos segundo moldes de outros tempos e culturas, que precisamos de conhecer para podermos captar-lhe não só a beleza da forma, mas sobretudo o valor do seu conteúdo. O Povo de Israel não era um gueto isolado dos povos vizinhos, fixo num território definido por fronteiras, e, por isso mesmo, partilhava da cultura vigente nos povos de Canaã, Mesopotâmia e 1 F. VARO, Las claves de la Biblia, Madrid, Ed. Palabra, 2007, p. 21. 2 Egipto. Nos tempos modernos chegámos ao conhecimento dos mitos que circulavam entre esses povos. Ora esses mitos, com grandes semelhanças com os relatos dos primeiros 11 capítulos do Génesis, não podem ser considerados como histórias sem verdade. Eles devem ser vistos como expressões simbólicas de realidades que não se podem exprimir através duma linguagem conceptual, e que também não se podem enquadrar nos esquemas da história daquilo que acontece num determinado tempo. Estas culturas antigas, em que Israel estava imerso, recorriam a mitos para dar a razão de ser dos deuses nas suas mútuas relações, para explicar a origem do universo e do ser humano, assim como o actuar das forças da natureza. Os mitos que povoavam o antigo Médio Oriente encerram páginas de grande beleza, carregadas de luz e sentido no que se refere ao mistério das origens. E estes mitos foram escritos, em geral, muito antes da redacção do Génesis e das suas fontes. Estas semelhanças devem-se a que os escritores sagrados de Israel não rejeitaram sistematicamente a cultura dos povos com que conviviam, mas, na redacção da história das origens, souberam aproveitar essa linguagem e os elementos literários que lhes convinham para transmitir, de modo adequado e inteligível para a mentalidade e sensibilidade da época, a mensagem religiosa que Deus queria comunicar ao seu Povo. No Génesis os relatos bíblicos das origens pertencem a duas tradições, a Sacerdotal e a Javista, que hoje se pensa que foram redigidas na época do exílio de Babilónia (séc. VI a. C.) ou depois. Sendo assim, é fácil de compreender que os autores sagrados pudessem conhecer a fundo as tradições mesopotâmicas sobre as origens e que nelas buscassem a sua fonte de inspiração. “É certo que a Bíblia, para expressar o mistério das origens, se serviu em grande medida dessa linguagem tão importante na antiguidade, que é a linguagem dos mitos. No entanto, na Bíblia essa linguagem está despojada do seu carácter politeísta e ritual, e impregnada da fé no Deus de Israel. Deste modo foi possível manifestar, dum modo inteligível para todos, verdades fundamentais sobre o mundo e sobre o homem, e, por conseguinte, verdades que têm uma conotação histórica, como a criação, a dignidade do homem e a existência do mal”2. 2. O primeiro relato da Criação: o mundo criado em 6 dias Gn 1, 1 – 2, 4a A obra da criação é apresentada em 4 partes: a) a criação inicial (vv. 1-2): “No princípio criou Deus o céu e a terra…” bar’a” (acção exclusiva de Deus: ex nihilo); a terra era informe e vazia – o caos primordial – tohu (tehom = abismo – Tiamat deusa do mito babiblónico) e bohu (Baau fenícia = deusa fenícia identificada com a noite) b) a obra da distinção e organização do caos, criando três compartimentos para virem a ser habitados pelas diferentes criaturas: o no 1º dia é criada a região da luz, para ser habitada pelo Sol, Lua e Estrelas, os habitantes a serem criados no 4º dia; o no 2º dia é criada uma separação – o firmamento – entre as águas inferiores das superiores, dando lugar ao espaço com ar, ficando a água para os peixes e o ar para as aves, os habitantes a serem criados no 5º dia. o no 3º dia, é criada toda a vegetação, para as criaturas do 6º dia: os animais e o homem c) a obra do povoamento destes três espaços: a. no 4º dia: Sol, Lua e Estrelas b. no 5º dia: os peixes e as aves 2 Ibid., p. 24. 3 c. no 6º dia: os animais e o homem d) a consumação da obra e a santificação do 7º dia Por aqui já se vê que na redacção do relato há um artifício literário notável, que se torna mais evidente pelo esquematismo das fórmulas utilizadas, que se repetem sistematicamente para cada dia da criação: – Deus disse, – faça-se, – e foi assim, – o relato da execução, – a imposição do nome (e Deus chamou) – a bênção – e viu Deus que era bom – e houve tarde e houve manhã Por outro lado está subjacente a este relato uma concepção cosmológica simplista: a terra como uma grande ilha flutuante; a água do mar em comunicação com a as águas superiores; o firmamento como uma abobada de cristal em que giravam os astros. 3. Relatos extra-bíblicos da criação do mundo Não vamos falar dos mitos da criação índios, fenícios e egípcios, para agora apenas nos referirmos brevemente ao mais célebre mito mesopotâmico, aquele que é conhecido pelas suas palavras iniciais: Eunuma Elix, conservado em 7 tabuinhas de argila, com um total de 1.000 linhas em caracteres cuneiformes, achado em 1875 na biblioteca de Assurbanípal; o texto actual é do séc. VII a. C. mas corresponde a um poema sumério do séc. XX a. C. Segundo este mito, no princípio existia um caos aquoso formado por Apsu (as águas doces) eTiamat (as águas salgadas), do seu seio nascem os deuses. Vejamos alguns trechos: – "Quando no alto não se nomeava o céu, e em baixo a terra não tinha nome, do oceano primordial (Apsu), seu pai; e da tumultuosa Tiamat, a mãe de todos, as águas se fundiam numa, e os campos não estavam unidos uns com os outros, nem se viam os canaviais; quando nenhum dos deuses tinha aparecido, nem eram chamados pelo seu nome, nem tinham qualquer destino fixo, foram criados os deuses no seio das águas". As divindades recém-criadas revoltam-se contra Apsu, que diz à sua esposa Tiamat: “Cansam-me os seus estratagemas: Durante o dia não descanso e de noite não me deixam dormir. Vou destruí-los e aniquilar os seus estratagemas” Apsu é morto no combate dos deuses; Marduk luta contra Tiamat: Marduk, que representa a inteligência por cima da desordem inicial, decide criar o mundo a partir do corpo da sua vítima, Tiamat, que é esquartejada em duas partes, estabelecendo assim a separação entre as águas superiores e as inferiores. Depois Marduk adorna a parte superior com as estrelas e a Lua, cuja missão era assinalar os dias, os meses e as estações (cfr Génesis 1, 16-18) Por fim (na 6ª tabuinha), Marduk criou o homem, amassando-o com o sangue do deus Kingu, um partidário de Tiamat. 4 É fácil de ver que há umas características comuns de todos os relatos cosmogónicos com o relato bíblico. Assim: a) todos atribuem ao seu deus a criação do mundo visível, b) todos concebem o mundo de forma semelhante; c) todos falam duma massa caótica inicial com águas que vêm a ser separadas por meio dum firmamento que dá lugar ao espaço aéreo entre as águas superiores e as águas inferiores. Mas no relato bíblico não há luta de deuses, pois Deus é único, e os elementos cósmicos que neles apareciam personificados, na Bíblia são criaturas que obedecem a Deus. Por outro lado há outro elemento que não aparece fora da Bíblia, a saber: a criação do mundo em 6 dias e o descanso de Deus no sétimo dia. 4. Interpretações do Hexaeméron Se tomássemos à letra o relato da criação em 6 dias, teríamos que reconhecer que o homem apareceu na terra quando não havia mais que três dias de obra criadora, quando a ciência fala de muitos milhões de anos! A formação da crosta terrestre também implica milhões de anos, quando o Génesis fala de poucos dias, para já não falarmos da formação dos astros. As plantas teriam nascido antes da criação do Sol, etc. Não vamos fazer aqui a história da interpretação dos 6 dias da criação, apenas referir que já os judeus da diáspora, em especial em Alexandria recorriam a uma interpretação simbólica, para se coadunarem com a cultura grega. Santo Agostinho arranjou maneira de manter que Deus criou simultaneamente todas as coisas, mas afirmava que os 6 dias deviam ser entendidos de forma alegórica: Deus ao criar tudo ao mesmo tempo, infundiu na matéria as rationes seminales (a semente) de todos os seres que se haveriam de desenvolver no tempo simbolizado naquele 6 dias do Génesis. Nos nossos dias, embora isto pareça incrível, ainda há quem mantenha a criação do mundo em 6 dias e já num estado perfeito! Trata-se de grupos reduzidos de fundamentalistas, que procuram demonstrar cientificamente a sua teoria e sobretudo rebater teorias como a da evolução e a do Big Bang, apelando para certas incongruências que nelas encontram. Estas posições fundamentalistas encontram-se nos Estados Unidos, em certos ambientes protestantes, o que se pode explicar pelo valor absoluto dado à Bíblia, ao prescindirem de mais outra autoridade. Apelidam-se indevidamente da designação de “criacionistas”, como se não houvesse outra alternativa ao evolucionismo radical ateu. De facto a fé bíblica não se opõe a teorias científicas como a do Big Bang ou a da evolução, desde que estas não excluam a acção criadora e providente de Deus. Como já dizia Galileu, a Bíblia não diz “como vai o céu, mas como se vai para o Céu”. A interpretação hoje corrente entre os católicos é a chamada interpretação históricoartística-litúrgica: Histórica porque mantém o carácter histórico do relato quanto à criação de todas as coisas por Deus; artística pelo esquema literário artificiosamente concebido; e litúrgica, porque obedece à intenção de apresentar a obra de Deus e o seu descanso como uma imagem do trabalho semanal e do descanso sabático. Como ensinamentos fundamentais deste primeiro relato da criação podem ser considerados os seguintes: – Todas as coisas foram criados pelo Deus Único (não se fala aqui expressamente da criação a partir do nada, como nos Escritos Sapienciais da Bíblia, mas fala-se de modo equivalente duma acção exclusiva só de Deus; o verbo hebraico bará (criou), diz-se apenas de Deus). – Ficam em evidência os atributos divinos: a sua transcendência, pois Ele não se confunde com a matéria e o seu actuar é descrito como o de quem é o Senhor que está acima de 5 – – tudo (assim, os verbos hebraicos em hifil: não se diz que Deus faz, mas que manda fazer!); a sua omnipotência ao criar tudo com a força da sua palavra; a sua sabedoria ao ordenar todo o universo e declarando a bondade de todas as coisas saídas da sua mão; a sua providência ao prover o sustento dos animais e dos homens. Sublinha-se a supremacia do homem sobre todas as coisas, que é constituído como colaborador de Deus com o trabalho no desenvolvimento da criação e como o seu guarda e com domínio sobre ela. Apresenta a mais elevada concepção antropológica do ser humano, como imagem e semelhança de Deus, bem como a dignidade do matrimónio. 5. O ser humano imagem e semelhança de Deus O cume de toda a obra da criação é o homem. Isto é posto em evidência ao repetir três vezes no v. 27 o verbo bar´á para designar a acção grandiosa de Deus: “E criou Deus o homem à sua imagem: à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. Assim se deixa ver que se trata duma obra única, por isso também se apresenta Deus a deliberar: “façamos” (v. 26). A palavra “homem” tem um sentido colectivo = ser humano. João Paulo II comenta esta deliberada criação do homem à sua imagem e semelhança: “significa não só racionalidade e liberdade, como propriedades constitutivas da natureza humana, mas, além disso, desde o princípio a capacidade duma relação pessoal com Deus, como «eu» e «tu», e, por conseguinte, uma capacidade de aliança, que terá lugar com a comunicação salvífica de Deus ao homem” (Enc. Dominum et Vivificantem, nº 24). Isto equivale a dizer que Deus cria o homem para estabelecer com ele uma história de amor! E o v. 28 acrescenta imediatamente: “E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra”. Deus abençoa a união do homem e da mulher; assim abençoa o amor de nossos pais, tornando-se presente na vida de cada um de nós3. 6. O segundo relato da Criação O Génesis recolhe ainda uma outra tradição para exprimir a obra criadora de Deus, chamada Javista, por designar a Deus com o nome de Javé; “o Senhor Deus”; ao passo que o primeiro relato, da tradição sacerdotal dizia simplesmente “Deus”. A esta mesma tradição javista pertence o relato do primeiro pecado. Vejamos o texto com breves explicações4 . 6.1. Deus cria Adão e põe-o no Éden (2, 7-9) «7 O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, insuflou em suas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivo. 8 Depois, o Senhor Deus plantou um jardim no Éden, a oriente, e nele colocou o homem que tinha formado. 9Fez nascer na terra toda a espécie de árvores, de frutos agradáveis à vista e bons para comer, entre as quais a árvore da vida, no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal.» 3 Cfr ibid. p. 26: “Assim como Deus deixou impresso o desígnio da sua sabedoria nas leis que regem a Criação com uma ordem admirável, assim também tem um projecto de amor para cada ser humano. A todos Ele chama à Bemaventurança do Céu. Mas fez cada um de nós com uns traços e psicológicos singulares, que configuram uma personalidade irrepetível e também lhe marca um caminho pessoal para vir a alcançar a sua perfeição humana e chama-o a percorrer esse caminho. Somente seguindo esse itinerário pessoal é possível realizar plenamente todas as capacidades que o Senhor lhe pôs no coração” 4 As explicações aqui apresentadas correspondem à notas que publicámos na revista «Celebração Litúrgica». 6 Insistimos em que o “relato” bíblico das origens não pode ser lido ingenuamente como um relato histórico daquilo que sucedeu no início do Universo e do ser humano, porque, como ensina o Catecismo da Igreja Católica, “não se trata de saber quando e como surgiu materialmente o cosmos, nem quando é que apareceu o homem; mas, sobretudo, de descobrir qual o sentido de tal origem: se foi determinada pelo acaso, por um destino cego ou uma fatalidade anónima, ou, antes, por um Ser transcendente, inteligente e bom, que é Deus. E, se o mundo provém da sabedoria e da bondade de Deus, qual a razão do mal? De onde vem o mal? Quem é responsável pelo mal? E será que existe uma libertação do mesmo?” 5 7 “Pó da terra… sopro de vida”: a narrativa tem como ponto de referência não só o facto de que, pela sua corporeidade, o homem pertence à terra e, ao morrer, se reduz a pó, mas também o facto de que, na língua hebraica, “homem” (adam) se diz com o mesmo vocábulo com que se designa a terra avermelhada (adamáh); mas, ao mesmo tempo, o homem está animado por um princípio (“sopro”) de vida, que não vem da terra. A representação de Deus como “oleiro”, independentemente das notáveis semelhanças com outros relatos extra-bíblicos, parece sugerir que o homem está nas mãos de Deus como o barro nas mãos do oleiro (cfr Is 29, 16; Jer 18, 6; Rom 9, 2021; Job 34, 14-15). 8-9 Um jardim. Nos LXX lê-se “parádeisos”; daqui a habitual designação de “paraíso (terrestre)”. O jardim de “delícias” (éden) permite que o leitor pense, mais que num lugar geográfico, num estado de felicidade original e de comunhão com Deus; a “árvore da vida” simboliza a vida em plenitude e a imortalidade (cfr Gn 3, 22); “a árvore da ciência do bem e do mal” é o símbolo da fonte do recto actuar moral, o projecto do Criador, que o homem não pode manipular nem alterar a seu bel-prazer sem cavar a sua ruína. 6.2. Deus cria a mulher e dá-a ao homem (2,18-20) «18 Disse o Senhor Deus: “Não é bom que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele”. 19Então o Senhor Deus, depois de ter formado da terra todos os animais do campo e todas as aves do céu, conduziu-os até junto do homem, para ver como ele os chamaria, a fim de que todos os seres vivos fossem conhecidos pelo nome que o homem lhes desse. 20O homem chamou pelos seus nomes todos os animais domésticos, todas as aves do céu e todos os animais do campo. Mas não encontrou uma auxiliar semelhante a ele. 21Então o Senhor Deus fez descer sobre o homem um sono profundo e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma costela, fazendo crescer a carne em seu lugar. 22Da costela do homem o Senhor Deus formou a mulher e apresentou-a ao homem. 23 Ao vê-la, o homem exclamou: “Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem”. 24Por isso, o homem deixará pai e mãe, para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne.» A narrativa conserva, na linguagem e no estilo, todas as características da tradição jarvista, em particular, uma grande vivacidade de expressão, e, de acordo com o modo de pensar e de falar da época a que o texto pertence, uma rica linguagem simbólica ou mítica. No entanto, mesmo quando se vê que adopta elementos comuns aos mitos cosmogónicos da antiguidade, esta linguagem é cuidadosamente purificada de toda a magia e politeísmo que os impregnam, de tal modo que Deus aparece como Senhor transcendente e Pai providente. Sem dificuldade, sob o estrato da antiga narração, descobrimos aquele conteúdo verdadeiramente admirável no que diz respeito às qualidades e à condensação das verdades, que nele estão encerradas (cfr João Paulo II, numa série de Audiências Gerais de 1979/80, que tomamos como pano de fundo destas notas). O texto deixa claro que a atracção dos sexos é algo querido por Deus e que a diferenciação sexual encerra um 5 Catecismo da Igreja Católica, nº 284. 7 sentido intrínseco, não arbitrário, e que não foi introduzida no mundo por nenhum princípio maléfico misterioso. 18-20 Deus é apresentado em linguagem antropomórfica, isto é, à maneira humana, como um “oleiro”, e a deliberar no sentido de ir aperfeiçoando a sua obra, num texto que se presta a veicular ricos ensinamentos de antropologia teológica. “Não é bom que o homem esteja só”: a solidão do homem, sentida por ele (v. 20) e reconhecida por Deus (v. 18), traduz, por um lado, a interioridade do ser humano, capaz de perceber a sua própria solidão (coisa de que os animais não são capazes), e, por outro lado, como este foi criado por Deus para a comunhão inter-pessoal. “Um auxiliar semelhante”. O facto de se dizer auxiliar, ou ajuda, não contradiz a dignidade da mulher, como se esta ficasse reduzida a uma simples muleta para o homem, pois estamos perante uma complementaridade que é mútua; de qualquer modo, não se diz que é uma serva ou uma propriedade do marido, destinada dar-lhe frutos, à maneira de uma terra fecunda, como então se pensava. Por outro lado, também de Deus se diz que Ele é um auxiliar para o homem; além disso, a palavra hebraica (‘ézer, auxílio), ao designar habitualmente o socorro que Deus concede ao seu povo (15 em 21 vezes no A. T.), indicia que o relato está redigido com base na noção de aliança: a relação homem-mulher aparece então como um reflexo da relação Deus-homem, uma relação de aliança (M. Merode). “O homem deu nome a todos os animais”, é uma forma de pôr em relevo a superioridade do homem e o seu domínio sobre eles, que ficam postos ao seu serviço (cfr Gn 1, 28). Adão aparece como um rei que passa revista a todos os seus súbditos. Impor o nome significava frequentemente ter direito sobre algo ou alguém, assim como o mudar o nome correspondia a assinalar uma nova missão. Não se pretende ensinar que os animais foram criados só depois do homem (nem antes!), apenas o autor visa dramatizar a situação do homem solitário e enaltecer a Providência amorosa de Deus, que instituiu a sociedade conjugal para bem do próprio homem e num plano de grande dignidade, sublinhando que até os próprios animais maiores eram “behemáh”, isto é, (animais) mudos, que não estavam ao nível do homem. Nesta encenação poderia haver também, em segundo plano, a condenação da bestialidade, frequente entre os cananeus e os egípcios (cfr. Lv 18, 23-25) – um pecado que a Lei punia drasticamente (Ex 22, 18; Lev 20, 15-16; cfr Dt 21, 21) –, e ainda a rejeição do paganismo, que com frequência prestava culto a animais divinizados, uma aberração absurda, dado que Adão é superior e nem sequer encontra algum que, ao menos, lhe seja semelhante. 21-22 Ao arrepio da mentalidade da época, a mulher aparece em toda a sua dignidade, não como os animais, que são tirados da terra (v. 19); com efeito, ela é tirada da costela do homem, isto é, “da substância de Adão”, como esclarece S. Gregório de Nissa, igual por natureza. Para isso – não para o anestesiar, como às vezes se diz – conta-se que adormeceu profundamente o homem (v. 21), a fim de que, sem que ele se apercebesse, lhe satisfizesse os seus ideais e anseios: formou a mulher e apresentou-a ao homem (v. 22). O “sono profundo” nada tem a ver com alguma espécie de sono de anestesia; o termo hebraico – tardemah – envolve uma certa conotação de mistério, pois é a palavra que se usa, quando durante um sono assim designado, ou logo após este, se verificam acontecimentos de grande alcance (cfr Gn 15, 12; 1 Sam 26, 12; Is 29, 10; Job 4, 13; 33, 15), de modo que até os LXX não traduziram este termo por hypnos, mas sim por ékstasis (êxtase). É assim que se pode ver como a criação da mulher está envolta em mistério, pois aparece como uma especial acção divina que se insere no âmbito do mistério da Aliança, no próprio coração da história da salvação. Assim como em Gn 15, 12 o sono de Abraão é o sinal de que este se deixa ultrapassar por Deus, que lhe revela a Aliança, assim também aqui o sono de Adão é o sinal de que, pela bissexualidade humana, Deus nos revela o mistério do matrimónio como imagem de Deus (cfr Gn 1, 26-28). “Em ambos os casos, segundo os textos em que (...) o livro do Génesis fala do sono profundo (tardemah), realiza-se uma acção divina especial, isto é, uma aliança carregada de consequências para toda a história da salvação: Adão dá começo ao género humano, Abraão ao povo 8 eleito” (João Paulo II, Audiência Geral de 1/11/19). Note-se que costela, – em hebraico tselá‘ – sugere um significativo jogo de palavras: o étimo sumério de tselá‘ significa vida e o nome Eva – em hebraico haváh – também significa vida. 22 “E apresentou-a ao homem”. Também é significativo que não se diga que é o homem a fazer aparecer a mulher ou a descobri-la: tudo é dom e iniciativa divina, e a relação do homem com a mulher enquadra-se na relação fundamental do homem com Deus. 23 “Ao vê-la, o homem exclamou”. As palavras que o hagiógrafo coloca na boca de Adão são a expressão dum entusiasmo eufórico, próprio dum coração enamorado, em linguagem poética, com ritmo, elegância, paralelismo e jogo de palavras, logrando-se um belo efeito literário: Adão, ignorando como a mulher tinha sido formada, verifica que ela corresponde plenamente ao seu ideal; formada do lado ou da costela sobre o coração, a mulher procedia do coração do homem, respondendo às suas profundas aspirações. “Osso dos meus ossos...” Trata-se duma expressão corrente para designar parentesco, comunidade de natureza (cfr Gn 29, 14; Jz 9, 2; 2 Sam 5, 1; 1 Cron 11, 1). Esta afirmação é dum alcance extraordinário, transcendendo de longe as mais avançadas civilizações em que a mulher sempre foi considerada um ser inferior, quanto à natureza e direitos. Ela tem a mesma natureza e os mesmos direitos que o homem, por isso “chamar-se-á mulher”, num jogo de palavras em hebraico: ’ixáh (“virago”: a forma feminina de ’ix, “varão”); ela já não é mais a beulat-baal (a propriedade dum senhor – Dt 22, 22). Sem diluir diferenças e peculiaridades, há uma igualdade fundamental entre o homem e a mulher, mesmo quando o relato apresenta o homem a ser criado em primeiro lugar; a mulher, embora surja como um auxiliar, ela é criada semelhante a ele (v. 18). Notar que as expressões “osso dos meus ossos” e “carne da minha carne” são uma espécie de superlativo hebraico (como “cântico dos cânticos”), equivalente a dizer que é mesmo carne e osso meu, um “alter ego”, correspondendo a: “é igual a mim quanto à natureza e quanto aos direitos”, segundo as categorias do nosso pensamento abstracto. 24 “Por isso, o homem deixará pai e mãe...” Os laços que unem marido e mulher são mais fortes ainda do que aqueles que unem os filhos aos pais: a união matrimonial é estável, (perpétua e indissolúvel, segundo a explicação de Jesus no Evangelho de hoje). É uma união total e íntima, tão profunda que abarca toda a pessoa, desde o físico até ao espiritual, segundo a expressão do original hebraico, “wedabaq”, que a Vulgata traduziu por “et adhærebit”, melhor que a nossa tradução: “para se unir à sua esposa”. O texto permite ver a unidade do matrimónio – um só homem com uma só mulher (a sua mulher) – e a indissolubilidade, pois os dois passarão a ser “uma só carne”. A expressão hebraica “lebassár ehád” (“in carnem unam”) indica não apenas o corpo, mas tudo o que constitui a natureza do homem: corpo e espírito, pensamento e amor, sentimentos e vontade, o que dá azo a João Paulo II para falar do significado esponsal do corpo humano, um significado que só se pode compreender dentro do contexto da pessoa: “o corpo tem o seu significado esponsal porque o homem-pessoa é uma criatura que Deus quis por si mesma e que, ao mesmo tempo, não pode encontrar a sua plenitude senão mediante o dom de si próprio” (Audiência Geral de 16/1/80). O Papa acrescenta que no celibato pelo Reino dos Céus esse significado não se perde, mas é ainda mais pleno, pois se torna mais expressiva a liberdade do dom no corpo humano; o homem só é capaz de doação enquanto pessoa e é doando-se que se realiza como pessoa; e a sua máxima doação é a entrega total (corpo e alma) a Deus. 7. A tentação e o primeiro pecado e a expulsão do paraíso (Gn 3, 1-8) «1 Ora, a serpente era o mais astucioso de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “É verdade que Deus vos disse: ‘Não podeis comer o fruto de nenhuma árvore do jardim’?” 2A mulher respondeu: “Podemos comer o fruto das árvores do jardim; 3mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus avisou-nos: ‘Não podeis comer dele 9 nem tocar-lhe, senão morrereis’”. 4A serpente replicou à mulher: “De maneira nenhuma! Não morrereis. 5Mas Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como deuses, ficando a conhecer o bem e o mal”. 6A mulher viu então que o fruto da árvore era bom para comer e agradável à vista, e precioso para esclarecer a inteligência. Colheu o fruto e comeu-o; depois deu-o ao marido, que estava junto dela, e ele também comeu. 7Abriram-se então os seus olhos e compreenderam que estavam nus. Por isso, entrelaçaram folhas de figueira e cingiram os rins com elas. Num relato simbólico, numa linguagem cheia de imagens muito expressivas, seja qual for a origem literária destas figuras, deixa-se ver que os males de que o ser humano padece não procedem de Deus, mas do pecado, que, desde a origem, destruiu a harmonia do homem com Deus, consigo próprio e com a criação, com consequências desastrosas que afectam toda a humanidade (cfr Rom 5, 12-19). Note-se, porém, que uma interpretação literal fundamentalista desta narrativa corre o perigo de levar ao absurdo de considerar a lei moral como algo caprichoso e extrínseco à natureza humana. 1 “A serpente”, um símbolo do demónio, cfr Apoc 12, 9, onde se fala da “serpente antiga”, o inimigo de Deus e dos amigos de Deus, que aqui aparece também como “caluniador” (este é o significado do seu nome grego, “diábolos”), ao apresentar a ordem divina como má, uma prepotência da parte de Deus (v. 5). Note-se a profunda observação psicológica posta na encenação do processo da tentação: estão aqui representadas as tentações de sempre; primeiro, uma insinuação inocente – “é verdade que Deus vos proibiu...”, a que se segue o efeito de começar a prestar atenção àquele a quem não se pode dar ouvidos; finalmente, uma vez aberto o diálogo, no momento preciso, o tentador entra a matar, mentindo descaradamente (cfr Jo 8, 44) – “de maneira nenhuma! Não morrereis! Mas Deus sabe que...” (v. 5). A Escritura e a Tradição da Igreja vêem no demónio, satanás, ou diabo, um anjo criado bom por Deus, mas que se tornou mau. 5 “Sereis como deuses, ficando a conhecer o bem e o mal”: Isto não significa alcançar a omnisciência divina, nem adquirir o poder de discernir o bem do mal. Este “conhecer o bem e o mal” corresponde a decidir por si o que é bem e o que é mal; trata-se, portanto, de encenar uma tentação de soberba pela qual a criatura não se conforma com a sua condição de criatura, e não aceita o supremo domínio de Deus. 6 “Fruto… para esclarecer a inteligência”. Sendo-nos desconhecido em que consistiu o pecado das origens, porque Deus não no-lo revelou, alguns exegetas procuram então averiguar qual é o tipo de pecado que o hagiógrafo aqui descreve, e vêem nesta linguagem um colorido de magia e feitiçaria (um conhecimento oculto), ou até mesmo uma alusão ao culto das serpentes para a fertilidade, de que o hagiógrafo pretenderia afastar os seus contemporâneos tão atreitos a estes desvios religiosos. 7 “Compreenderam que estavam despidos”. Note-se a fina ironia latente no contraste com a promessa sedutora: “abrir-se-ão os vossos olhos” (v. 6); os olhos abrem-se, sim, mas para contemplarem a própria nudez. Assim fica simbolizado o desgosto e a frustração que se segue ao gosto do pecado, e também a noção teológica da ruptura da harmonia primordial, nomeadamente entre o homem e a mulher (cfr 2, 25). 7. Deus julga os prevaricadores e expulsa-os do paraíso (Gn 3, 8-24) «8 E ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim pela hora da brisa; e esconderam-se Adão e sua mulher da presença do Senhor Deus, entre as árvores do jardim. 9O Senhor Deus chamou o homem e disse-lhe: “Onde estás?”. 10Ele respondeu: “Ouvi o rumor dos vossos passos no jardim e, como estava nu, tive medo e escondi-me”. 11Disse Deus: “Quem te deu a conhecer que estavas nu? Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira comer?”. 12Adão respondeu: “A mulher que me destes por companheira deu-me do fruto da árvore e eu comi”. O 10 Senhor 13Deus perguntou à mulher: “Que fizeste?” E a mulher respondeu: “A serpente enganou-me e eu comi”. 14Disse então o Senhor Deus à serpente: “Por teres feito semelhante coisa, maldita sejas entre todos os animais domésticos e entre todos os animais selvagens. Hás-de rastejar e comer do pó da terra todos os dias da tua vida. 15Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Esta te esmagará a cabeça e tu a atingirás no calcanhar”. 20O homem deu à mulher o nome de “Eva”, porque ela foi a mãe de todos os viventes. 21 E fez o Senhor Deus a Adão e à sua mulher túnicas de peles, e os vestiu. 22Então disse o Senhor Deus: “Eis que o homem chegou a ser como um de nós, no conhecimento do bem e do mal; que agora não estenda a sua mão e tome também da árvore da vida e coma e viva para sempre”. 23 Assim, pois, o Senhor Deus lançou-o fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado. 24E havendo lançado fora o homem, pôs ao oriente do jardim do Éden querubins brandindo uma espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da vida.» A narrativa não é um relato jornalístico, pois tudo é descrito numa linguagem simbólica, muito expressiva e densa; a narrativa coloca o leitor perante realidades transcendentes que dizem respeito ao “ser humano” – o adam –, o homem de todos os tempos. O autor sagrado, que deu forma definitiva e inspirada ao Pentateuco, quis dar-nos um panorama coerente da história da salvação – que arranca da eleição divina e se concretiza na aliança e nas promessas de salvação – desenvolvendo-se por etapas correspondentes a um maravilhoso projecto divino, a que não escapa o enigma das origens. Se perdêssemos de vista este plano divino, que conhecemos pela Revelação, a curiosidade científica poderia levar-nos a ficar atolados nos aspectos arqueológicos e episódicos, como poderia suceder a alguém que, para estudar um monumento antigo, se ficasse no estudo das pedras e na análise dos materiais de construção; por mais científica que fosse a sua análise, ficaria sem se aperceber da harmonia do conjunto, do significado histórico desse monumento e da sua verdade mais profunda. A doutrina da Igreja sobre o pecado original, de que Maria foi isenta por singular privilégio, não se fundamenta na narrativa do Génesis; muito menos se pode partir do estudo das fontes do Génesis para negar a existência desse pecado (uma ridícula ingenuidade, além do mais); a doutrina da fé encontra a sua sólida base na obra redentora de Cristo e nos ensinamentos do Novo Testamento, nomeadamente de S. Paulo; no entanto, a fé projecta grande luz sobre esta narrativa simbólica das origens. 10 «Tive medo porque estava nu; e então escondi-me». Deste modo se descreve, com fina psicologia, o sentimento de culpabilidade e de vergonha que não podia deixar de ser estranho ao primeiro pecado e igualmente ao pecado de todo aquele que não empederniu a sua consciência; esta, que antes de pecar era o aviso de Deus, toma-se depois uma premente censura. Este dar conta da própria nudez parece também indicar, por um lado, a enorme frustração de quem, ao pecar, em vão tinha tentado «ser igual a Deus» e, por outro lado, sugere o descontrolo das tendências instintivas (a concupiscência): depois do primeiro pecado, sentem-se dominados por movimentos e apetites contrários à razão, que tentam esconder (v. 7). Não resistimos a citar algumas palavras da profunda reflexão antropológica de João Paulo II, nas audiências gerais de Maio de 1980: “Por meio destas palavras (v. 10) desvela-se certa fractura constitutiva no interior da pessoa humana, quase uma ruptura da original unidade espiritual e somática do homem. Este dá-se conta pela primeira vez de que o seu corpo cessou de beber da força do espírito, que o elevava ao nível da imagem de Deus. A sua vergonha original traz em si os sinais duma específica humilhação comunicada pelo corpo. (...) O corpo não está sujeito ao espírito como no estado da inocência original, tem em si um foco constante de resistência ao espírito e ameaça de algum modo a unidade do homem pessoa. (...) A concupiscência, em particular a concupiscência do corpo, é ameaça específica à estrutura da auto-posse e do autodomínio, por meio do qual se forma a pessoa humana”. 11 14 «Hás-de rastejar e comer do pó da terra». Na narrativa, a sentença é dada primeiro contra a serpente, a primeira a fazer mal. Ninguém pense que o autor quer insinuar que dantes as cobras tinham patas: a sentença é proferida contra o demónio tentador; a expressão designa uma profunda humilhação (cf. Salm 71(72), 9; Is 49, 23; Miq 7, 17), infligida contra o demónio, que é o sentenciado, não as serpentes (cf. Apoc 12, em especial os vv. 9 e 17). 15 «Esta te esmagará a cabeça». Todo o versículo constitui o chamado Proto-Evangelho, o primeiro anúncio da boa nova da salvação que se lê na Bíblia. Não se limita esta passagem a anunciar o estado de guerra permanente entre as potências diabólicas – «a tua descendência» – e toda a Humanidade – «a descendência dela». É sobretudo uma vitória que se anuncia. Note-se que essa vitória é expressada não tanto pelo verbo, que no original hebraico é o mesmo para as duas partes em luta (xuf – na Neovulgata conterere), mas sim pela parte do corpo atingida nessa luta: a serpente será atingida na cabeça (ferida mortal, daí a tradução «esmagará»), ao passo que a descendência será apenas atingida no calcanhar (ferida leve, daí a tradução «atingirás»). Mas, pergunta-se, a quem é que designa o pronome «esta» (v. 15)? Segundo o original hebraico, podia ser a descendência da mulher. A verdade, porém, é que esta descendência pecadora fica incapacitada para, por si, vencer o demónio e o pecado em que se precipitara. Assim, o tradutor grego da Septuaginta (inspirado?) referiu o dito pronome ao Messias (traduzindo-o na forma masculina, designando um indivíduo, autós, em vez da forma neutra (designando uma colectividade), autó, referindo este pronome a descendência, (que em grego se diz com a palavra neutra, sperma); esta tradução visava pôr em evidência que quem vence o pecado e o demónio é Ele, o Messias. A tradição cristã, e com ela a tradução da Vetus Latina seguida pela Vulgata, ao traduzir o pronome pelo feminino ipsa, aplicou este texto à Virgem Maria, explicitando um sentido (chamado eminente), que entreviu nesta passagem (se quisesse designar a descendência – semen – teria empregado o neutro ipsum, e não ipsa). Eis como se costuma explicar o sentido mariano da passagem: a vitória é prometida à descendência de Eva, mas quem faz possível essa vitória é Jesus Cristo, com a sua obra redentora. Assim, unidos a Cristo, todos somos vencedores, mas Maria é a vencedora de um modo eminente, porque Mãe do Redentor e Mãe de toda a comunidade dos redimidos, a Igreja. O próprio contexto facilita esta referência a Maria: é que, contra tudo o que era de esperar, a profecia aparece dita a Eva, e não a Adão. Segundo o ensino da Igreja (cf. Bula «Ineffablis Deus» do Beato Pio IX), esta vitória de Maria sobre o demónio, inclui a perfeita isenção de toda a espécie de mancha do pecado, incluindo o original. 23 «O Senhor Deus lançou-o fora do jardim» “O autor sagrado emprega um simbolismo já conhecido para indicar que Adão e Eva, como consequência do pecado, foram inexoravelmente expulsos do paraíso, isto é, ‘daquele primitivo estado de justiça, integridade e imortalidade’”6. “A espada flamejante equivale a um raio de bronze que, colocado entre as portas dos palácios assírios escoltada por duas estatuas de touros alados com cabeça humana, indicava a proibição de entrar na morada do rei”7. 8. Relatos com semelhanças ao relato bíblico do primeiro pecado A ideia dum pecado do homem como sendo a raiz de todos os males da humanidade é uma ideia exclusiva da Bíblia. Mas em vários mitos encontramos muitos elementos semelhantes. Limitamo-nos a aludir ao mais célebre poema babilónico, a epopeia de Guilgamex. Este, rei de Erek, chora inconsolável a morte de Enkidu, um rival que se fez seu amigo. Com medo de também vir a morrer, decide pôr-se à procura do segredo da imortalidade, que um seu antepassado, Utnapixtim, tinha conseguido; este havia de lhe dar o segredo da vida. Mas a morada desse herói era muito longe 6 7 S. MUÑOZ-IGLESIAS, Introducción a la lectura del Antiguo Testamento, Madrid, Ed. Taurus, 1965. Ibidem. 12 e difícil de alcançar. Primeiramente tem de vencer os homens-escorpiões. Depois uma ninfa, Siduri, faz-lhe ver a imensa dificuldade de passar o mar da morte, mas, ajudado pelo barqueiro de Utnapixtim, lá consegue transpor este mar e chegar ao destino. Utnapixtim (em babilónico, longa vida). Após muita insistência, lá lhe revela o segredo: terá de descer ao fundo do mar e apanhar uma planta maravilhosa, chamada “velho, faz-te jovem”. Tendo-a conseguido, regressa triunfante à sua pátria, Erek, No caminho, porém, enquanto toma banho numa fonte, uma serpente arrebatou-lhe a planta e escondeu-lha debaixo da terra. São fáceis de ver as semelhanças com o Génesis. Em ambos os casos estamos no início da Humanidade. No Génesis há elementos literários do poema babilónico, mas a concepção teológica é diametralmente oposta. No poema de Guilgamex os deuses são avaros da imortalidade que reservam só para si, e não querem que esta seja acessível ao homem, ao passo que o Deus verdadeiro, Yahwéh, concede essa imortalidade gratuitamente: o homem tem acesso à “árvore da vida”; se este não possui a imortalidade, fique claro que foi por sua própria culpa. No Guilgamex o herói tem de comer o fruto da planta, mas a serpente arrebatou-lho: no Génesis, ao contrário, o homem não deve comer o fruto da árvore que a serpente o leva a comer. Não há, portanto, no Génesis uma cópia ou adaptação do mito babilónico, mas simplesmente o aproveitamento de vários elementos literários, para um ensinamento teológico próprio. Fátima, 01.11.2008 Geraldo Morujão Bibliografia MUÑOZ-IGLESIAS, Salvador, Introducción a la lectura del Antiguo Testamento, Madrid, Ed. Taurus, 1965, pp. 19-137 ARANDA, Gonzalo, Varón y mujer, la respuesta de la Biblia, Ed. Rialp, 1991 ARANDA, Gonzalo, El comienzo del mundo y del hombre, folhetos Mundo Cristiano n° 548. VARO, Francisco, Las claves de la Biblia, Madrid, Ed. Palabra, 2007, pp. 19-26