Não temos competência para decretar um milagre!

Transcrição

Não temos competência para decretar um milagre!
Prof. Daniel Serrão, presidente da Comissão
para a Verificação das Curas Extraordinárias ao jornal NOTÍCIAS MÉDICAS
“Não temos competência
para decretar um milagre!”
Em Portugal, há uma comissão médica cuja função é analisar os casos apresentados como milagres e decidir se
têm ou não uma explicação racional, à luz dos conhecimentos actuais. A Comissão para a Verificação das Curas
Extraordinárias, assim designada, é presidida pelo Prof. Daniel Serrão, um “católico ostensivo”, como o próprio
reconhece, mas não é uma organização religiosa e a religiosidade dos seus membros em nada afecta o seu carácter laico. Eles não representam esta ou aquela Igreja, não professam esta ou aquela fé, não defendem Deus
em oposição à ciência. Independentemente de acreditarem ou não na intervenção divina, não lhes compete decretar milagres. Isso fica para outras instâncias.
Em cerca de 20 anos de existência, a Comissão ainda não foi chamada a pronunciar-se sobre nenhuma ocorrência, o que o responsável entende como perfeitamente natural. Afinal, um milagre é “um acontecimento raro
e excepcional, resultante da intervenção da transcendência no mundo”.
Mesmo assim, quando a medicina não sabe dar respostas, Nossa Senhora aparece, frequentemente, como a
derradeira salvação. Vendo nela uma “mãe espiritual”, os crentes rogam-lhe pelas suas vidas ou pelas vidas de
entes queridos (claro que há casos em que pedem que lhes saia a lotaria ou coisas do género). Se o pedido não
é satisfeito, não falta quem fale em castigo ou em injustiça. E, no entanto, ninguém conhece os desígnios de
Deus. No dia em que tal acontecer, diz o médico, o ser humano deixará de existir.
Numa altura em que os fiéis se preparam para mais uma peregrinação internacional ao Santuário de Fátima
para celebrarem o 88º. aniversário da aparição da Virgem, a 13 de Outubro, o NOTÍCIAS MÉDICAS foi saber
o que pensa o Prof. Daniel Serrão
Como surgiu a Comissão para a Verificação das Curas Extraordinárias?
A Comissão para a Verificação das Curas Extraordinárias foi criada, há cerca de 20 anos, por um decreto episcopal de D. Alberto Cosme do
Amaral, à altura Bispo de Leiria-Fátima, por proposta de um médico do Porto, o Dr. Jacinto Amaral, que trabalhava nos serviços de acolhimento
aos doentes em Fátima e que tinha conhecimento da existência de uma comissão do género em Lourdes, onde ia com frequência. Actualmente,
é composta por médicos de várias especialidades, como Pediatria, Medicina Interna, Ortopedia, Oncologia, Psiquiatria e Neurologia.
O que motivou a criação desta Comissão?
Era uma questão de credibilidade. Até aí, os milagres eram anunciados, mas não eram formalmente estudados e registados como tal. Não há
documentação de espécie alguma. Só acreditava quem queria. Conheci uma senhora que era bilheteira na estação de S. Bento e, como me conhecia, disse-me: ‘Sabe que eu sou miraculada de Fátima’. Eu ouvi, paguei o bilhete e fui embora. A verdade é que não havia qualquer registo
oficial desse acontecimento.
A Comissão já teve oportunidade de verificar algum milagre?
Não nos foi comunicado nenhum caso. Houve apenas indicação de um caso de uma senhora italiana que teria sido curada de um carcinoma da
mama. Dirigimo-nos ao bispado a que pertencia e pedimos que nos enviassem o processo clínico, mas não obtivemos resposta e, como tal, não
pudemos avaliar esse caso. O caso que serviu de base à beatificação dos videntes de Fátima, como se sabe, foi tratado directamente no Vaticano,
em Roma, numa comissão semelhante, constituída por médicos e teólogos.
Porquê será que esses casos não chegam ao conhecimento da Comissão?
Há pessoas que têm uma convicção interior profunda de que foram escolhidas por Deus, através de Nossa Senhora de Fátima, para serem miraculadas, mas não querem que isso seja conhecido e divulgado. Esses casos não têm expressão pública. A Comissão nunca teve de dar nenhum
parecer, mas, se tivesse de o dar, fá-lo-ia com suporte científico e publicamente, para que pudesse ser apreciado por outras pessoas. Se fosse caso
disso, faríamos uma entrevista, os especialistas fariam a sua observação, ouviríamos os médicos. Seria um processo perfeitamente rigoroso,
transparente e aberto, não estaria confinado ao interior da Igreja, não seria secreto.
Qual a função da Comissão?
A função desta comissão é apenas verificar se determinada situação clínica tem ou não tem uma explicação científica no estado actual dos conhecimentos médicos. Não temos competência para decretar um milagre. Esta não é uma comissão dos milagres, mas uma comissão de verificação de curas apresentadas como extraordinárias. Nós temos de saber se são extraordinárias ou se, afinal, são ordinárias.
Esse não é um juízo arriscado?
A medicina é uma ciência. Nós argumentamos apenas no plano científico-objectivo. Não vamos entrar na subjectividade da pessoa. Só há lugar à intervenção da nossa comissão nas doenças com lesão. As doenças sem lesão não podem ser avaliadas objectivamente. Se uma pessoa me
disser que estava profundamente deprimida, que foi a Fátima e curou a depressão, eu fico muito contente, mas não posso dizer que é uma cura
extraordinária. Na maior parte das vezes, as pessoas atribuem à intervenção divina uma transformação profunda da sua forma de estar no mundo
e de ver as relações humanas. São coisas que não são avaliáveis em termos científicos.
Tem conhecimento dos casos de milagres analisados em Lourdes?
Em Lourdes, os casos analisados e com laudo positivo da respectiva comissão são orgânicos, designadamente metástases ósseas que desapareceram rapidamente. Não temos, neste momento, nenhuma explicação científica para isso. Pode ser que daqui a algum tempo haja. Faz-se sempre esta reserva: a análise tem em conta o estado actual dos conhecimentos. Outro caso de que me recordo era o de uma tuberculose multivisceral demonstrada, que desapareceu de um dia para o outro.
“A actividade médica é uma concorrência à vontade de Deus”
Será que a religião faz mesmo bem à saúde? Acredita no potencial terapêutico de uma simples oração?
Hoje há um grande interesse, a nível mundial, pela intervenção psíquica nas curas. Levanta-se a hipótese de que a oração funcione como um
placebo. Hoje está praticamente demonstrado que algumas doenças evoluem mais favoravelmente quando a pessoa tem fé numa transcendência, em qualquer religião, e se dirige a essa transcendência solicitando ajuda. O efeito placebo pode explicar isso. Sabemos que, se tivermos dois
grupos de pessoas com hipertensão e dermos a um grupo um medicamento e ao outro dermos nada, as tensões deste grupo também baixam.
A religião não é, então, uma concorrência aos médicos?
Podemos dizer que a actividade médica, em geral, é uma concorrência à vontade de Deus porque todos temos de morrer. Então, os médicos
não deviam existir, não deviam fazer tratamento nenhum porque, quando estão a tratar, estão a impedir a evolução natural para morte, que é um
desígnio de Deus para cada um, isto é, estamos a contrariar a vontade de Deus, estamos a lutar contra ele… Se alguém me diz que tem fé e que
vai pedir a Deus para ser curado, não devo nunca criticar. O que eu recomendo é que faça o tratamento médico existente.
Mas também as pessoas podem cair no erro de, confiando demasiado num milagre, deixarem de seguir as orientações dos médicos?
Podem, assim como vão às bruxas, fazem tratamento com escorpiões, teias de aranha ou procuram a benzedura deste ou daquele. Se o médico
não tem já nenhuma intervenção terapêutica que possa ser eficaz e a pessoa estiver, inexoravelmente, a morrer, o médico não tem de criticar o
que ela quiser fazer para contrariar esse processo. Se ele não tem mais nada a fazer, porquê não hão-de intervir outros que julgam que são mais
capazes? O médico, céptico, científico, como lhe convém, pode dizer que estas mezinhas não vão servir para nada e que a pessoa irá morrer dentro do prazo previsto. Mas, enquanto a pessoa está a fazer tratamento alternativos, de qualquer tipo, ela está a sentir-se melhor e conserva a esperança que a medicina não sabe ou não pode dar. Por isso, os cuidados paliativos devem incluir o apoio espiritual para as pessoas que o desejem. Não devem ser impostos.
Mas não há médicos que poderão fazer um certo ar de troça daqueles doentes que acreditam num milagre?
Nos cuidados paliativos, não. Fora disso, o médico pode virar as costas, encolher os ombros ou fazer alguma observação desagradável, mas
não deve fazê-lo. Hoje, anda muita gente, se calhar até alguns médicos, com umas pulserinhas que curam e dão felicidade. Eu acho graça, não
faço troça nenhuma. Se as pessoas acham que, trazendo aquilo no pulso, a vida lhes vai correr bem, é deixá-las andar. Todas as semanas, as revistas trazem o horóscopo a dizer o que é que as pessoas devem fazer. Há quem acredite nisso. Não vale a pena contrariá-las. O mito sempre fez
parte da relação do homem com a natureza e com os outros homens. O mito tem o seu valor, tem a sua importância, ajuda as pessoas a encontrarem alguma tranquilidade e alguma paz. Numa posição de cepticismo absoluto, poder-se-á dizer que todas as religiões são mitos. Mas os mitos têm uma missão. Lévi-Strauss demonstrou isso muito bem, quando disse que o mito era importante na pacificação do Homem porque a nossa
inteligência e a nossa sensibilidade nos criam, permanentemente, angústia. Ninguém está bem no mundo. A vida no mundo é difícil, estamos
cercados de perigos e temos a morte como horizonte. Tudo isto constitui um permanente sofrimento, que é aliviado pelo mito.
Ou seja, a oração pode não curar, mas pode ser um lenitivo?
As pessoas sentem-se melhor. Tenho acompanhado algumas pessoas que vão morrer e a verdade é que o facto de estabelecerem uma espécie
de conversação directa e pessoal com Deus, sem ser através da Igreja ou dos sacerdotes, dá uma capacidade de aceitação do processo de morte.
Pelo contrário, há pessoas que se revoltam porque vêem que, apesar de serem muito católicas, de muito rezarem, de muito irem à
Igreja, não conseguem curar-se. Como lidar com o reverso da medalha?
É difícil. A fé na intervenção da transcendência ou de Deus, como se lhe quiser chamar, na vida de cada pessoa é rara. Os católicos acreditam
naquilo que a Igreja ensina ou têm uma fé pessoal, mas é difícil aceitar que há uma intervenção directa da vontade de Deus em todos os instantes da vida. Isso faz com que algumas pessoas digam: ‘Então eu, que sempre acreditei que tinha um anjo da guarda e que Deus me iria proteger, estou nesta situação e aquele que sempre disse que Deus era uma história da carochinha e que não existia, afinal está de perfeita saúde e
curou uma doença igual à minha? Onde está a justiça de Deus?’. Este é um problema em todas as religiões. É mais seguro acreditarmos que
cada um de nós está no mundo para realizar, segundo a sua própria liberdade e autonomia, um projecto de vida pessoal. Deus não vai intervir sobre este projecto de vida porque respeita a liberdade de cada um e nós só podemos ser responsáveis perante Deus na medida em que somos livres. Se tudo aquilo que nos acontece é segundo a vontade de Deus, não cometemos pecados. Se eu matar alguém, foi porque Deus quis que eu
o matasse? Não podemos admitir que haja uma intervenção directa e em cada instante da vida sobre as decisões da pessoa. A liberdade envolve
uma responsabilidade e uma angústia. Porque eu ascendi ao conhecimento do mundo, consigo distinguir entre o bem e o mal e consigo ter consciência do meu próprio corpo e do outro (veja-se a metáfora de Adão e Eva), eu sou responsável.
Mas o que os católicos pensam é que, por muito pecados que tenham cometido, Deus e Nossa Senhora irão ajudá-los... Aqui não entra a noção de castigo?
Não há resposta nenhuma para isso. No plano teológico, diz-se que Deus criou o mundo e os homens com determinadas características, actuando segundo as suas regras próprias. Mas este Papa sublinhou muito a Misericórdia de Deus, que está sempre pronto a perdoar os seus erros
porque sabe que a possibilidade de cometer erros está inscrita na sua própria natureza. O único pecado é a não-aceitação de Deus.
Acha que Deus poderá fazer um milagre a um agnóstico, a um ateu, ou a alguém que não acredita sequer na aparição de Fátima,
mesmo não havendo uma relação interna com a divindade?
Acho que pode. Jesus Cristo era, de facto, ocupado pelo espírito de Deus; era uma materialização, uma manifestação inteligível de Deus,
quando, para os hebreus, a figuração de Deus era o maior pecado que se podia cometer. Era como conhecer Deus face-a-face. Então, Jesus fez
um conjunto de actos, demonstrando aos judeus do seu tempo que ele não era um homem qualquer, que tinha uma qualidade própria, que era filho de Deus, não no sentido de filiação, mas de emanação. O espírito santo também é uma manifestação de Deus, mas a sua intervenção faz-se
mais sobre o nosso espírito do que sobre o nosso corpo. Devemos pedir a salvação do espírito e não do corpo. É na vida espiritual que acontece
a fé e a negação e que acontece a tentativa de um relacionamento directo com a divindade, com a transcendência. A fé não resulta da aprendizagem. Não é preciso ler livros. A fé é revelada internamente a cada um de nós.
“Os crentes vêem Maria como a sua mãe espiritual”
O que explica a relação tão especial que muitas pessoas estabelecem com Nossa Senhora, mãe de Deus?
A encarnação é uma condição fundante do Cristianismo. Nossa Senhora, ou seja, aquela judia chamada Maria ou Myriam, foi uma peça humana
fundamental para que nela se pudesse dar a revelação de Deus aos Homens, através da geração e criação daquele judeu chamado Emanuel, que significa Deus connosco. O facto de ter servido essa missão dá-lhe um valor extraordinário porque se tratava de uma rapariga como qualquer outra e
foi escolhida para uma função grandiosa. Isso dá-lhe um título muito especial: ela é a mãe de Cristo, é o corpo no qual o embrião de Cristo se desenvolveu, esteve lá nove meses e depois nasceu. Tudo da forma mais comum que se possa imaginar, com excepção da própria fecundação.
É por isso que os católicos vêem nela uma mãe?
Há uma relação de cada um de nós com uma mãe. Temos necessidade de ter uma maternidade. Os crentes vêem Maria como a sua mãe espiritual, mas fazem sempre uma comparação com a sua mãe corporal. Isso leva a uma grande aproximação porque todos nós tivemos uma mãe e
admitimos ter uma maternidade corporal e uma maternidade espiritual. Mas o recurso à mãe é antiquíssimo, é muito anterior ao Cristianismo.
Veja-se o mito da mãe natural, que foi a terra – Gaya - inicialmente. E de facto, a terra era a mãe porque foi da terra que emergiu toda a vida. Nós
somos feitos de terra, de elementos da terra. Temos uma mãe natural, que é a terra, temos uma mãe corporal e temos uma mãe espiritual. E todos nós precisamos de ter uma mãe porque a mãe tranquiliza. Quando uma criança está chorar, encosta-se no seio da mãe e fica imediatamente
em paz. Há muitas explicações para isso. Uma delas é que a criança memoriza, durante a vida intra-uterina, o bater do coração e sente-se bem.
O bater do coração da mãe evoca uma vida feliz, a vida dentro do útero, que é uma coisa formidável, seguramente. Repare-se que todas as mães
encostam os filhos ao seu lado esquerdo.
Os doentes sentir-se-ão, também, consolados por Nossa Senhora, sentem que a mãe espiritual está a protegê-los?
Voltam a sentir bater o coração. Como se sabe, a utilização do coração, na religião, é muito grande. Fala-se no Coração Imaculado de Maria.
O coração é um músculo, é uma bomba, não consta que sirva para mais nada, mas dizer que tudo isto se passa na região supra-talâmica não mexe
com ninguém. Nunca se ouviu dizer que uma pessoa tem um bom tálamo, que tem um tálamo muito grande…
“Os milagres são uma tradução da existência da transcendência”
O que pensa do facto de a ciência estar sempre a tentar explicar tudo e mais alguma coisa, inclusivamente a fé e os milagres. A ciência não está a imiscuir-se num terreno que não é o seu?
Acho absolutamente natural que a ciência tente explicar. Tudo o que aconteceu, na hominização, partiu da necessidade de conhecer. Perseguir
a verdade é uma necessidade absoluta do ser humano. O Homem tem de estar sempre a encontrar uma explicação racional para as coisas. Hoje,
a neurobiologia esforça-se por tentar explicar por quê somos bons ou maus. O progresso das neurociências vai alterando a interpretação das razões das decisões humanas. Mas o fundamento da religião é o mistério da transcendência. Se a transcendência fosse conhecida cientificamente,
não era um mistério, não era fundamento de religião nenhuma. Muitas vezes, os cientistas dizem que só tem fé quem não sabe, quem é ignorante.
A minha convicção é de que o conhecimento da transcendência é impossível. Como dizem os rabinos, toda a vida tentamos entender a transcendência e, no dia em que entendemos, morremos.
O que são, então, os milagres?
Os milagres autênticos são uma tradução da existência da transcendência. Uma alteração da ordem da natureza só pode ser produzida por quem
tem poder sobre a natureza, por quem a criou. Quem não a criou, não pode lá mexer. Nós conseguimos fazer a bomba atómica, mas não conseguimos criar energia. Só a utilizamos, transformamo-la. Diz-se que o espírito de Deus é a energia que circula em todos os corpos.
Acha que ciência vai, algum dia, explicar os milagres e a transcendência?
A ciência vai continuar a produzir conhecimento, vamos saber tudo sobre o conhecimento do cérebro, até chegarmos ao limite de conseguir
perceber a nossa vida espiritual. Quando isso acontecer, acaba o mundo porque já não há necessidade de existirem seres humanos. Quando os
seres humanos ascenderem ao conhecimento absoluto, que é o conhecimento da transcendência e do seu significado, quando puderem compreender totalmente o que é o espírito de Deus, acabam os seres humanos.
“A Saúde é uma religião”
Até lá, a medicina, a ciência e a fé devem caminhar lado a lado?
Podem e devem caminhar constantemente lado a lado. As religiões são estruturas formais humanas que procuram manter a noção de que existe
uma transcendência.
Mesmo que os médicos, como disse, estejam sempre a caminhar, aparentemente, no sentido contrário ao de Deus?
Os médicos estão sempre a lutar contra o programa de destruição de seres humanos individuais. Aliás, a convicção firme de toda a gente é que
vamos encontrar a imortalidade corporal. O corpo vai ser imortal. Hoje já se aceita isso. A medicina de transplantação alimenta-se de uma religião da saúde que tem subjacente a imortalidade corporal.
Acredita nisso?
Não! Essa seria uma morte biológica. No dia em que os corpos desaparecerem, não há terra que os sustente. Em vez de seis biliões, seríamos
60 biliões e daí por diante. Se isso fosse possível, seria, também, uma forma de destruição.
Considera, então, que a medicina está a criar uma religião paralela?
Está. Na última reunião da Academia Pontifícia para a Vida, em Roma, esteve um psiquiatra alemão que defendia a teoria da religião da saúde.
Algumas das pessoas que são salvas pela medicina também acreditam que os médicos fazem milagres?
Às vezes dizem isso. A saúde é uma religião e tem os seus santuários. Quem quiser ter uma nova aparência, vai ao Pitangui, ao Rio de Janeiro,
e ele faz um milagre. Quando alguém tem uma doença muito complicada que ninguém sabe o que é, vai à clínica Mayo.
Essa confusão entre os dois conceitos não leva a uma banalização do milagre?
Por isso temos de ter o maior cuidado em dizer que qualquer acontecimento é milagroso.
E a medicina contribui para essa banalização?
Contribui na medida em que diz que ressuscitou um indivíduo politraumatizado que chegou morto ao hospital. As primeiras unidades chamavam-se unidades de ressuscitação, depois de reanimação. Agora, chamam-se unidades de cuidados intensivos. Ainda se usa o termo ressuscitação, mas é uma tolice! É para mostrar a ideia do milagre médico. Assim como Cristo ressuscitou Lázaro, o médico, agora, ressuscita o politraumatizado.
Por outro lado, a medicina não pode contribuir para afastar Deus da vida das pessoas? Ou seja, se a medicina lhe resolve os problemas, para quê ir à Igreja?
Quem acha que a Igreja é um sítio para resolver problemas da vida natural, então para que lá ir se há ali um tipo ao lado que resolve os problemas…
E o que dizer das religiões que vendem milagres?
A Igreja Maná e do Reino de Deus estão sempre a anunciar milagres. No Algarve, vi uma placa na rua a prometer milagres. Com certeza, chamam milagre ao facto de as pessoas serem tão estúpidas ao ponto de lhes pagarem o dízimo! Para essas seitas, o milagre é um grande negócio!
E aquelas pessoas que acham que Fátima lhes fez um milagre querem pagar, querem dar alguma coisa em troca...
No Santuário de Fátima, vemos imensa gente a fazer negócio à conta dos presumíveis milagres. Como comenta?
Isso não se consegue evitar. Esses negociantes são tolerados. À volta de todos os santuários do mundo – estive agora no Brasil e fui ver o Santuário de Nossa Senhora da Aparecida –, há lojas que vendem os terços, as imagens em prata, ouro, prata, alumínio... Como se sabe, desde que
haja procura, é impossível controlar a oferta. Se ninguém quisesse comprar nada, se as pessoas que vão aos santuários se limitassem a ter uma
relação com Deus, o negócio morria de morte natural. É como a prostituição. A prostituição não existe por vontade das mulheres, mas porque
há quem queria usá-las. Quando atacam as mulheres, ficou sempre desesperado. O mesmo acontece com a droga.
“Os milagres não são necessários à fé”
Há também a crença de que determinados objectos são capazes de produzir milagres. Beber a água de Lourdes, por exemplo. O que
pensa disso?
Durante a Idade Média, todas as grandes basílicas tinham de ter relíquias. E arranjavam-nas sempre! Se todos os bocadinhos de madeira que
aparecem nas igrejas e catedrais da Europa toda fossem, realmente, da Cruz de Cristo, era preciso ter uma centena ou um milhar de cruzes! Há
um grande fascínio pela transcendência, mesmo pelos que não são crentes. Já falamos das pulseirinhas…
Esse fascínio é, inclusivamente, intelectual… O esotérico está, definitivamente, na moda. Porquê?
Os Códigos Da Vinci vendem-se aos milhares ou aos milhões. Há algum desencanto indiscutível pelas religiões e teologias clássicas, incluindo o próprio catolicismo. George Steiner, um filósofo judeu, escreveu um livro chamado “Nostalgia do Absoluto”. Ele argumentou muito bem
que, quando a teologia cristã, tanto protestante como católica, deixou de ter grande influência sobre as pessoas, sobretudo sobre as pessoas mais
cultas, apareceram grandes promessas escatológicas, como o marxismo, que é uma grande religião com fiéis em todo o mundo, o freudismo e a
teoria estruturalista de Lévi-Strauss. Esses três judeus propuseram profecias novas, que faliram. Cristo propôs uma profecia nova e ela permanece ao fim de dois mil anos. Alguma coisa tem de verdade… Apesar das muitas tolices que a Igreja fez, persiste.
Acha que com todos estes novos santuários, alguns deles da responsabilidade dos médicos, os verdadeiros milagres não estão em
crise?
Os milagres não são necessários à fé! Um milagre é algo de excepcional, é uma intervenção directa da transcendência sobre determinada pessoa, sobre as leis do mundo natural. Se acontecessem milagres todos os dias, por dá cá aquela palha, não eram milagres. Por isso, um milagre
tem de ser um acontecimento extraordinário e raro, repetindo as curas miraculosas feitas directamente por Cristo, quer por gestos, quer pela palavra. Os milagres são tão raros que se pode pôr em causa se alguma vez terão acontecido. Nós não temos meios para saber. O único meio era
perguntar a Deus e ele responder-nos. Só podemos dizer que não sabemos explicar aquele acontecimento, mas, se calhar, poderá haver uma explicação. O que é extraordinário, hoje, poderá ser ordinário, amanhã. Se aprofundarmos mais os conhecimentos sobre a própria natureza do homem e sobre a forma como o espírito humano influencia o corpo humano, poderemos saber que o espírito humano poderá ter força para matar
os bacilos de Koch, ou cicatrizar imediatamente as lesões. Agora, se me perguntarem o que é o espírito em cada um de nós, respondo que é uma
parcela do espírito de Deus, é sopro infundido em cada pessoa. O espírito não é uma secreção do cérebro. Aquilo que acontece no meu corpo,
mediado pelo meu espírito, será resultado da intervenção de Deus. Agora, se eu tiver um cancro de pele porque andei ao sol, ou se tiver um enfarte do miocárdio porque tenho as artérias coronárias entupidas pelo colesterol, não é culpa do espírito!
Isso parece castigo! Porque é que alguns obtêm a graça de Deus e outros não?
Deus não castiga ninguém. Deus é amor pelos homens. Nós damos àquilo que nos acontece uma interpretação, achando que mau. É mau morrer, é mau ter uma doença… Como é mau, é um castigo de Deus, dizem. Mas porque é que é mau?
Então, um milagre não é necessariamente uma coisa boa?
Não é necessariamente. Se uma pessoa está paralítica e começa a andar, pode começar a ter imensas dificuldades. Também não sabemos se é
mau a pessoa adoecer ou morrer. O debate entre a liberdade humana e a vida em Deus é complicado.
“Não estamos em posição de criticar as pessoas que vão a pé a Fátima”
E o que se faz para obter um milagre ou para agradecer um milagre? É defensável ou até aceitável para um médico que as pessoas
se sacrifiquem para irem a pé a Fátima ou que percorram o Santuário de joelhos?
Como sou adepto da liberdade, não faço juízos. Todos nós temos direito a tomar as nossas decisões em plena liberdade. Se me apetecesse pintar o cabelo de amarelo ou de vermelho, seria completamente indiferente às críticas. Não estamos em posição de criticar as pessoas que vão a pé
a Fátima, que fazem um sacrifício, que sofrem corporalmente com esse sacrifício. Não devemos fazer nenhum comentário, nem dizer que é bom
ou mau.
A obtenção de um milagre implica sempre uma transacção?
Claro que há aqui alguma negociação. No tempo da guerra colonial, muitas mães prometiam ir a Fátima se os filhos voltassem vivos. Quando
os filhos voltavam vivos, as mães diziam que tinha sido um milagre, que os filhos tinham sido protegidos por Nossa Senhora de Fátima, que deu
ordens aos anjos da guarda para que desviassem as balas, e cumpriam a sua promessa. Até porque tinham medo do castigo se não cumprissem.
Os padres dizem às pessoas que não devem fazer determinadas promessas, mas elas fazem-nas. Uma promessa é um juramento. Os médicos juram por Hipócrates. O fundamento desse juramento é puramente religioso, não é jurídico. Jura-se em relação a alguém que nos transcende.
Quando se vai a tribunal, jura-se. O presidente dos Estados Unidos, quando toma posse, põe a mão em cima da Bíblia e jura.
Não haverá, porém, por parte de algumas pessoas que vão a pé a Fátima alguma sobranceria perante quem não vai, pessoas que se
julgam mais próximas de Deus por estarem a fazer aquele sacrifício, pessoas que se sentem mais merecedoras de um milagre?
Há pessoas assim, mas é porque não leram o Novo Testamento. Cristo explica isso muito bem. Os especialistas da religião hebraica estavam
na Igreja e diziam: ‘eu sou bom, eu pago o dízimo, eu cumpro, por isso, sou o mais importante’. Ao fundo da sinagoga estava um desgraçado
que nem tinha coragem para entrar porque era um indivíduo que andava a cobrar os impostos, era odiado por toda a gente. Ele próprio achava
que procedia mal porque tinha aquela profissão. Cristo disse que quem saiu justificado não foi o orgulhoso, mas o outro. Portanto, quem vai a
Fátima com essa postura não sai justificado, não sai perdoado.
As pessoas que trabalham nas Finanças devem adorar essa passagem… (risos)
Claro (risos). Mas Cristo deu muitos exemplos nesse sentido. Não é quem bate no peito que está com Deus. Aliás, Cristo fez uma crítica ao
sistema judicial, quando a prostituta ia ser apedrejada. Os crentes devem perceber o ensinamento fundamental: Amai-vos uns aos outros como
eu vos amei. Só isso!
“Não se pode forçar a transcendência!”
O que é que a Igreja exige para decretar um milagre?
A estrutura da Igreja exige certo número de milagres para transformar as pessoas em santos e santas. Isso pertence à área da burocracia, da organização humana e material da Igreja, só tem expressão na cultura europeia, como resultado da influência da cultura greco-romana. Provavelmente, a beatificação ou a santificação de João Paulo II será rápida.
Mas será baseada em milagres?
Terá de ser, se se mantiver a estrutura da Igreja. Mas não se pode forçar a transcendência. Isso não pode ser. De todo o modo, para mim, é absurdo que um ser humano que é, na terra, a representação efectiva de Cristo não seja santo. Não precisa de cometer milagres. Todos os papas deviam ser santos! Alguns não foram grande coisa… Mas, antigamente, os papas eram todos santos e, se calhar, ninguém perguntou por milagres
nenhuns…
Essa ideia de que os santos têm de fazer milagres não tem posto em cheque a nossa noção de santidade. Antigamente, era costume
dizer-se que um indivíduo muito bom, que fazia bem ao próximo, era um santo. Os santos da Igreja são super-santos?
Aos olhos de Deus, santo é todo aquele que vive segundo as suas leis. Antigamente, dizia-se que um médico capaz de se levantar de noite para
tratar das pessoas era um santo.
Ou seja, os médicos, agora, só fazem milagres, mas já não são santos?
E quando não faziam milagres, quando eram apenas bons, eram santos.
A medicina deveria cultivar mais a santidade?
Tenho insistido muito nesse ponto. A ética das virtudes é fundamental. Um médico só é bom médico se for uma boa pessoa. Não tem de fazer
milagres, precisa é de ser capaz de amar os outros como se ama a si próprio. Quem vive a sua vida com este objectivo, arrependendo-se dos seus
erros, é santo. Não é para os altares porque, se calhar, não são precisos para nada. O protestantismo não tem altares, não tem santos.
Enquanto católico, acredita em milagres e, enquanto médico, acredita em curas extraordinárias?
Enquanto católico, acredito na possibilidade do milagre, mas se me perguntar se um caso concreto é milagre ou não, posso ter dificuldades.
Acredito que Deus tem uma preocupação em relação ao mundo criado e que poderá, se quiser, intervir.■
A oração como placebo
Cientistas defendem que rezar faz bem à saúde
Será que corremos o risco de ver médicos a prescrever “Padres-nossos” e “Ave-Marias” aos seus doentes, da
mesma maneira que prescrevem uma dieta pobre em gorduras e exercício físico? Se a oração funciona como um
placebo, será que poderá ser mais eficaz do que alguns medicamentos? Apesar de suscitar um enorme interesse
por parte da comunidade científica, o assunto está longe de gerar consensos
Alguns estudos já demonstraram que a religião faz bem à saúde e que pertencer a uma Igreja reduz o stress e afasta os crentes de hábitos maléficos, como o consumo de álcool e drogas. Afinal, quem nunca ouviu dizer que a fé move montanhas?
A crença num poder superior, na transcendência, ou em Deus, como se lhe queira chamar, tem sido objecto de observação por parte de médicos e professores de todo o mundo. Há três décadas atrás, o Prof. Herbert Benson, Professor de Medicina na Universidade de Harvard, defendia
que a prática regular de meditação transcendente diminuía o ritmo cardíaco, a pressão sanguínea e a tensão muscular, neutralizando o stress.
Mais recentemente, o Prof. Dale Matthews, da Escola de Medicina de Saint Louis, também nos Estados Unidos, afirmava que a medicina do futuro será composta por “oração e prozac”.
A tentação de provar cientificamente que a oração faz bem à saúde comporta, porém, alguns riscos nada desprezíveis, como o de se instrumentalizar Deus, estudando-o tão meticulosamente como se de uma pílula se tratasse, em ensaios duplamente cegos e controlados a placebo, a
fim de determinar a dose mais eficaz e o horário preferencial da toma.
A Igreja, como se adivinha, não vê esta instrumentalização com bons olhos. Em contrapartida, há quem defenda uma nova aliança entre a ciência e a religião. Uma e outra sempre tiveram tendência para delimitar muito bem as suas fronteiras, por uma questão de princípios. Não admitiam interferências. Uma não se imiscuía nos assuntos da outra. A religião sempre reivindicou um certo monopólio sobre a moral, ficando a
ciência com os conteúdos amorais, quando não mesmo imorais, algo que o Dr. Bruno Guiderdoni, investigador parisiense, atribui a um “trágico
mal entendido sobre a necessária interpretação dos textos religiosos”.
Entretanto, quiçá à custa desse mal entendido, vários cientistas foram condenados pela Igreja a uma morte atroz. Os altos dignitários católicos
de outros tempos criticavam certos avanços da ciência como heresias. O tempo veio provar que não tinham razão. Os séculos foram passando e
a Igreja abandonou a velha postura. Deixou de ser intransigente em matérias que estavam, manifestamente, fora do seu alcance, sobretudo depois que o conhecimento se generalizou. No entanto, continua a defender que os cientistas não devem tentar explicar a transcendência, não devem tentar captar Deus através de um qualquer aparelho sofisticadíssimo ao seu dispor. Há mistérios, como os milagres, que não precisam de ser
provados cientificamente. Quem não acredita, deve, pelo menos, respeitar.
Alguns afiançam que ciência e religião poderão coexistir pacificamente. Outros, como o Dr. Guilhaume Lecointre, do Museu Nacional de História Natural, em França, acreditam que está próximo o fim da laicidade da actividade científica. Por sua vez, o Dr. Gilles Cohen-Tannoudji, Professor da Universidade d’Orsay, entende que “a ciência confirma a inteligibilidade, mas não tem vocação de a provar de uma vez por todas”. Ainda segundo o mesmo, “é preciso a humildade e a lucidez de reconhecer os limites da ciência. A ciência não deve ser instrumentalizada para justificar esta ou aquela crença religiosa, ou o ateísmo, ou o agnosticismo”. A verdade é que não faltam exemplos na nossa
história de religiosos que tentaram servir-se da ciência para atingirem os seus propósitos, como foi o caso de Pio XII, que pensava que a utilização da teoria do átomo primitivo (Big Bang) justificava a criação.
Mas há quem, em vez de tentar tirar proveito das teses dos outros, procure uma solução de compromisso. Foi o que fez o Dr. Jean-Michel Maldamé, da Academia Pontifícia das Ciências, quando disse que, “assim como 100% da música é produzida pelo instrumento e 100% pelo
músico”, também no mundo vivo “100% é obra da evolução e 100% é obra de Deus”.
Entretanto, a Genética veio introduzir uma nova querela entre ciência e religião. Os homens estão a aprender a manipular os nossos genes. A
clonagem humana aparece como um fantasma: desejado por alguns, temido por outros, mas, ainda, uma incógnita. No futuro, quem sabe o que
nos reserva? Com a sua ambição desmedida, muitos poderão pensar que poderão substituir-se a Deus. Será o ADN o “deus moderno”, como já
foi sugerido? Seremos capazes de rivalizar com Deus? Poderemos explicar Deus?
Estas questões não são retórica! São dúvidas que mantêm a Humanidade em suspenso. Depois das mitologias, das ideologias e das religiões,
o ser humano procura encontrar o sentido do mundo dentro dos laboratórios, tenta vislumbrar Deus dentro dos tubos de ensaio. Só que, em vez
de encontrar o consolo, a esperança e o conforto perante a doença, a miséria, a dor e a morte, o Homem tem-se deparado com a incerteza, com
a hesitação, com a perplexidade. A ética tem sido muitas vezes chamada à liça. Ciência e ética aparecem, frequentemente, em lados opostos da
barricada, lutando cada qual com as armas de que dispõe, sem que se conheça, ainda, o vencedor.■
Cláudia Azevedo (texto)
Artigo publicado no semanário
NOTÍCIAS MÉDICAS nº.2877 de 12.10.2005

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