Leituras de Maquiavel - Revista de Ciências Sociais

Transcrição

Leituras de Maquiavel - Revista de Ciências Sociais
Leituras
de Maquiavel
Volume 45 - número 2 - 2014
ISSN.BL 0041-8862 Fortaleza
Universidade Federal do Ceará - UFC
Departamento de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Revista de
Ciências Sociais
Leituras de Maquiavel
ISSN.BL 0041-8862. Fortaleza, v. 45, n. 2, p. 06 - 245, jul./dez., 2014
ISSN, v. eletrônica 2318-4620. Fortaleza, v. 45, n. 2, p. 06 - 245, jul./dez., 2014
Ficha Catalográfica
Revista de Ciências Sociais – periódico do Departamento
de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da Universidade Federal do Ceará – UFC
n. 1 (1970) – Fortaleza, UFC, 2014
Semestral
ISSN.BL. 0041- 8862
ISSN, v. eletrônica 2318-4620
1. Maquiavel; 2. Política; 3. Poder; 4. Conflito; 5. Modernidade.
I- Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades
Comissão Editorial
Edição
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Menezes, Antônio Cristian
Saraiva Paiva, Irlys Alencar
Firmo Barreira, Isabelle Braz
Peixoto da Silva e Jakson Alves
Aquino.
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Conselho Editorial
Revista de Ciências Sociais
Volume 45 – número 2 - 2014
Publicação do Departamento
de Ciências Sociais e do
Programa de Pós-Graduação
em Sociologia do Centro de
Humanidades da Universidade
Federal do Ceará
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ISSN.BL 0041-8862
ISSN, v. eletrônica 2318-4620
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Oliveira (UFC), Maria Helena
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Della Cava (ILAS), Ronald H.
Chilcote (Universidade da
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Sumário
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45
n. 2, 2014
// DOSSIÊ: LEITURAS DE MAQUIAVEL
11
Leituras de Maquiavel (apresentação)
Maria Francisca Pinheiro Coelho
19
Perfis da modernidade: Maquiavel e Hobbes sobre política e
moral
Karlfriedrich Herb
31
Maquiavel: os segredos do mundo da política
Maria Tereza Sadek
47
E se Norbert Elias fosse um leitor de Maquiavel?
Andréa Borges Leão
65
A dialética do desejo e o conflito no republicanismo de
Maquiavel
Marilde Loiola de Menezes
83
Maquiavel na soleira da modernidade
Paulo Nascimento e Martin Adamec
103
Hannah Arendt: uma leitora de Maquiavel
Maria Francisca Pinheiro Coelho
ARTIGOS
125
“Sociologia ou imaginação”: aspectos da recepção do livro O
estrangeiro, de Plínio Salgado
Alexandre Pinheiro Ramos
155
O poder (in)visível da violência sexual: abordagens sociológicas
de Pierre Bourdieu
Alba Jean Batista Viana e Eduardo Sérgio Soares Sousa
185
Federalismo no Brasil e o debate sobre o rateio das receitas do
petróleo
Denise Cunha Tavares Terra, Joseane de Souza e Leonardo
Camisassa Fernandes
211
Matreirice e discurso político: a moral da política mineira
durante a Primeira República
Luciano Senna Peres Barbosa
RESENHAS
241
Lowy, Michael. La cage d´acier. Max Weber et le marxisme
wébérien e Lowy, Michael (org.). Max Weber et les paradoxes de
la modernité
André Haguette
Contents
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45
n. 2, 2014
// DOSSIER: READINGS OF MACHIAVELLI
11
Readings of Machiavelli (presentation)
Maria Francisca Pinheiro Coelho
19
Profiles of modernity: Machiavelli and Hobbes on politics and
moral
Karlfriedrich Herb
31
Machiavelli: The secrets of the world of politics
Maria Tereza Sadek
47
What if Norbert Elias was a reader of Machiavelli?
Andréa Borges Leão
65
The dialectics of desire and the conflict on Machiavelli’s
republicanism
Marilde Loiola de Menezes
83
Machiavelli at the threshold of modernity
Paulo Nascimento and Martin Adamec
103
Hannah Arendt: A reader of Machiavelli
Maria Francisca Pinheiro Coelho
ARTICLES
125
“Sociology or imagination”: Aspects of the reception to the book
“O estrangeiro”, by Plínio Salgado
Alexandre Pinheiro Ramos
155
The (in)visible power of sexual violence: sociological approaches
of Pierre Bourdieu
Alba Jean Batista Viana and Eduardo Sérgio Soares Sousa
185
Federalism in Brazil and the debate on the allotment of oil
revenue
Denise Cunha Tavares Terra, Joseane de Souza and Leonardo
Camisassa Fernandes
211
Matreirice and political discourse: the moral of Minas Gerais
politics during the First Republic
Luciano Senna Peres Barbosa
REVIEW
241
Lowy, Michael. La cage d´acier. Max Weber et le marxisme
wébérien and Lowy, Michael (org.). Max Weber et les paradoxes
de la modernité
André Haguette
Dossiê:
LEITURAS DE MAQUIAVEL
Leituras de Maquiavel
(apresentação)
Grandes pensadores – a lista é significativa e aberta –
não apenas nos possibilitam um deslocamento no tempo ao
descreverem figurações e processos de uma determinada época,
como também nos provocam com questões e inquietações sobre
o presente. Evidentemente, o plural aqui “nos possibilitam” é
impreciso porque as leituras e o diálogo com o pensamento de
um autor, além de incomensuráveis, são irredutíveis a um todo,
pois são próprios de um olhar particular.
Por sua vez, o autor sobre o qual se faz a leitura está
em uma comunhão de localização e tempo histórico. Hipoteticamente, se pudesse se manifestar no debate contemporâneo,
talvez não se reconhecesse nas reconstruções de suas ideias ou
até mesmo mudasse suas concepções, diante das diferenças de
contextos e experiências.
Certamente, na galeria de grandes pensadores, e alvo de
muitas interpretações, se inclui Niccolò Machiavelli. Referir-se a
Maquiavel como um homem que compartilha do espírito de uma
época (o Zeitgeist) não deixa de ser um elogio pela grandeza do
período em que viveu, o Renascimento italiano; porém, não é
suficiente para classificar o alcance de seu pensamento político.
Atribuir a ele a expressão de Pinder “a não contemporaneidade do contemporâneo”, citada por Mannheim em seu
brilhante ensaio O problema das gerações, também não se
adéqua porque o hábito de Maquiavel de conversar com os
antigos e aprender com seus escritos e experiências não era
para imitá-los, mas constituía uma fonte de ensinamentos, um
método para compreensão do presente. A leitura e o retorno aos
clássicos também foram um costume do período.
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LEITURAS DE MAQUIAVEL (APRESENTAÇÃO)
Talvez o mais apropriado seja classificá-lo como um contemporâneo
do futuro por ser ele precursor de uma série de mudanças que viriam a
acontecer na sociedade. Sua concepção da história como uma combinação
entre contingências e ação, movida essa pela necessidade ou escolha, bem
como sua análise da natureza da política como uma esfera pertinente aos
assuntos do mundo, é inaugural no pensamento político moderno e encerra
uma epistemologia do conhecimento social. Sua obra, ao mesmo tempo
que conversa com tradição, constitui-se absolutamente original e de ruptura ao se remeter às transformações do presente e antever as revoluções na
modernidade.
A preocupação central de Maquiavel é com as coisas do mundo
(cose del mondo), coisas humanas (cose umane) – mundo esse retratado, à
sua época, como de instabilidade política marcada por invasões, disputas
territoriais e guerras entre estados. O pano de fundo de suas reflexões é a
luta pela reunificação da Itália, fragmentada pelas disputas entre estados.
Ao se tentar abranger o leque mais amplo das contribuições do autor
– uma tarefa nada fácil porque nem sempre existe uma harmonia em seus
escritos –, pode-se identificar na arquitetura do seu pensamento uma inter-relação entre três grandes teorias: da história, do conflito e do poder. Em
termos de uma teoria da história, seu pensamento se volta para a percepção
da ‘verdade’ objetiva, a realidade; para ele, nada mais do que a verdade factual, a veritá effetuale, que orienta as ações dos homens. Maquiavel procura
apreender a história nua e crua, sem uma visão evolutiva, nem teleológica.
Em geral, utiliza o termo “história” com referência a eventos e
experiências individuais específicas. Para ele, as histórias são fontes dos
exemplos, tanto do passado como do presente. Os fatos são transmitidos e
reconstruídos por meio dos relatos. Os conselhos que dá aos Príncipes valem
para os homens em geral: as pessoas reais e não imaginárias são avaliadas
segundo os traços que lhe valem elogios ou vitupérios.
A história baseada na veritá effetuale, a verdade da experiência, não
contém uma visão preconcebida nem determinista dos fatos. A combinação
extremamente perspicaz e inteligente que faz entre a fortuna (acaso, sorte,
circunstâncias) e a virtù (qualidades e virtudes) expressa com clareza sua
compreensão da história, que envolve tanto a realidade, o momento objetivo,
quanto o sujeito, o momento subjetivo. Em outras palavras, a história abarca
as noções de circunstância e ação.
Desse modo, em sua concepção da história está implícita uma teoria da
ação, do sujeito como agente, nos moldes posteriormente tematizados pelas
ciências sociais como ciências interpretativas e não positivistas. Maquiavel
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MARIA FRANCISCA PINHEIRO COELHO
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antecipa questões epistemológicas que envolvem a relação entre sujeito e
objeto, que serão trabalhadas por Max Weber em sua reflexão sobre a escolha
pelo sujeito do sentido social da ação.
Há em Maquiavel um sujeito responsável pelas suas escolhas, pelo
menos das ações não movidas pela necessidade, cujo sentido único é inevitável. O livre arbítrio responderia pela metade dos nossos atos, cabendo às
circunstâncias responder pela outra metade. No entanto, só são boas, seguras
e duráveis as defesas que dependem de nossa própria capacidade. De acordo
com o autor, considerando as circunstâncias e escolhas individuais, é feliz
quem age de acordo com as necessidades de seu tempo.
Profundamente inter-relacionada com uma teoria da história baseada
nas experiências, há em Maquiavel uma compreensão do conflito como iminente às interações sociais e à sociedade, dividida entre os que dominam e
os que são dominados. Existe na sociedade uma relação de luta permanente
pelo poder. A modernidade de Maquiavel, como vai argumentar Karfriedrich
Herb, em artigo deste dossiê, não alimenta qualquer esperança de uma
superação política do conflito.
Não só o homem, mas também a república está condenada a viver
arriscadamente. As dissensões conservam a liberdade. As leis a favor da
liberdade nascem da desunião. A essência verdadeira de uma sociedade
livre está não no consenso, mas no conflito. A condição de saúde dos estados não reside na harmonia forçada, mas no conflito que corresponde à
primeira proteção da liberdade. Em síntese, Maquiavel defende uma ordem
republicana que acredita na participação dos cidadãos e que se aproveita de
forma produtiva do conflito social.
Ao elaborar uma concepção da história e do conflito, como parte
integrante das interações sociais, o foco de Maquiavel é o estudo do poder,
concretamente da luta pela conquista e manutenção do poder. À dupla antitética virtù-fortuna, Maquiavel vai adicionar a de violência-consentimento
– ambas categorias-chave da análise do poder. Segundo ele, o poder pode
ser conquistado pela virtù, pela fortuna, pelas armas ou pelo consentimento dos concidadãos. Em O Príncipe, na exposição sobre cada uma dessas
formas, a análise de Maquiavel é clara: a virtù prevalece sobre a fortuna;
e o consentimento, sobre a violência. No entanto, cada uma dessas formas
deve ser analisada de acordo com as circunstâncias.
Em sua visão, a violência pode conduzir ao poder, mas não à glória.
O conceito de “glória” compreende a noção de reconhecimento público. A
perpetuação da violência leva à ruína do poder. Como nos antigos, para ele,
a glória é o critério para se avaliar a política. Do mesmo modo, a coragem,
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LEITURAS DE MAQUIAVEL (APRESENTAÇÃO)
e não a bondade, constitui a virtude do político. Essas considerações são
importantes para avaliar o papel da violência no pensamento de Maquiavel
como uma característica comum na luta pelo poder, mas não um fator isolado
e predominante em relação a outros fatores.
Em sua teoria do poder, voltada para a conquista do poder do Estado,
como principado ou república, Maquiavel se refere às virtudes e características do homem de ação política. A visão do político como homem de ação
que mede seus atos em função dos objetivos almejados e das consequências
previsíveis da ação orienta sua reflexão sobre a natureza laica da política.
Nesse sentido, no percurso de uma concepção da história, do conflito
e do poder, há também elementos no pensamento de Maquiavel para se
pensar as origens do conceito de vocação política – como distinta de outras
vocações –, sendo sua insistência, à época, na separação entre as esferas
política e religiosa. De acordo com ele, aqueles que estão preocupados
com a salvação da alma não deveriam ter lugar na vida pública, voltada aos
interesses das cose del mondo.
Esses esboços da compreensão de vocação política – embora Maquiavel não use o termo – vão se expressar em suas histórias florentinas
quando menciona que seu amor por Florença é maior do que a salvação de
sua alma, trecho citado por Weber em seu ensaio sobre a vocação política.
A partir dessas distinções das motivações das ações, pode-se pensar outras
vocações, como a ciência, analisada por Weber. Maquiavel é uma referência
tanto de Weber, em seu ensaio sobre a política como vocação, quanto de
Hannah Arendt, em sua diferenciação das atividades do pensamento e ação,
conquanto essas separações sejam conceituais.
1. A ideia da elaboração deste dossiê surgiu por ocasião da Sessão
Especial “Os 500 anos de O Príncipe: reflexões sobre poder e violência”, no
XVI Congresso Brasileiro de Sociologia, em setembro de 2013, em Salvador.
A sessão tinha como objetivo debater a importância inaugural dessa obra
no pensamento político moderno. Na oportunidade, foram discutidas, com
grande interesse do público presente, as contribuições desse autor franzino,
preso acusado de traição e censurado por séculos pela Igreja Católica por
se voltar contra os modelos das virtudes cristãs.
O Príncipe esteve no Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros
Proibidos) da Igreja Católica, de 1559 a 1929. Ainda que o opúsculo tenha
circulado nas cortes absolutistas da Europa e no meio literário, o reconhecimento da obra de Maquiavel veio tardiamente, quase como um pedido de
perdão em seu epitáfio, citado no final do artigo de Tereza Sadek, na Igreja
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MARIA FRANCISCA PINHEIRO COELHO
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de Santa Cruz, em Florença: “Tanto nomini nullum par elogium” (“Não
há elogio que esteja à altura de sua reputação”). Também só tardiamente
foi alcançado o objetivo que tanto moveu suas reflexões: a unificação do
Estado-nação na Itália, só concretizada na segunda metade do século XIX,
em 1861.
Desde a publicação de O Príncipe, o pensamento político dialoga
com essa obra precursora da modernidade, tanto pelas reflexões que suscita
sobre a natureza da política quanto pela sua concepção de poder. A partir das
contribuições de Maquiavel, o pensamento político identificou o conceito
de “poder” com o Estado, que, de uma maneira ou de outra, sempre esteve
vinculado ao exercício da dominação.
As contribuições do autor florentino certamente são significativas
para uma rica reflexão sobre a relação entre poder e violência. Há nuances
no tratamento dessa problemática e ambiguidades geradas em situações
que envolvem poder e violência, considerando as possíveis aproximações
e distâncias entre esses dois fenômenos. Nos termos do autor, a violência é
um instrumento da política, mas não o único instrumento possível, tampouco
um fator inexorável.
Enfim, várias questões são suscitadas nos artigos que compõem este
dossiê: em que as leituras de Maquiavel de autores como Claude Lefort e
Hannah Arendt trazem novas dimensões de sua obra e ampliam suas contribuições? Qual a representação de Maquiavel na literatura da época sobre
o poder e nos costumes das cortes, a ponto de influenciar hábitos e gostos?
Em que as formulações de Maquiavel, comparadas com as de autores como
Hobbes e Weber, motivam o aprofundamento do pensamento político sobre
o poder no contexto dos modelos democráticos na atualidade?
2. O nome do dossiê – “Leituras de Maquiavel” – foi escolhido pelo
diálogo que alguns artigos constroem com o pensamento do autor, mediado por
interpretações de sua obra advindas de outros autores. Abre o dossiê o artigo
de Karlfriedrich Herb, que discute os perfis da modernidade em Maquiavel
e Hobbes. De acordo com o autor, Maquiavel e Hobbes são considerados
pensadores políticos modernos par excellence, mas, malgrado a premissa
cética da política, ambos oferecem orientações políticas opostas. Enquanto
Maquiavel defende uma ordem republicana, que aposta na participação dos
cidadãos e que se aproveita de forma produtiva do conflito social, Hobbes
localiza a liberdade privada no silêncio das leis e alimenta a esperança da
unidade do corpo político.
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LEITURAS DE MAQUIAVEL (APRESENTAÇÃO)
O artigo de Maria Tereza Aina Sadek apresenta um Maquiavel como
analista político, e assinala caminhos para a interpretação do autor que
visam escapar de algumas encruzilhadas presentes em seus escritos e a fim
de salientar suas propostas consideradas cruciais para a interpretação da
realidade política. A autora destaca em Maquiavel importantes paradigmas
para uma análise política realista, centrada na separação entre as esferas
pública e privada, nos efeitos da correlação de forças e na distinção entre
aparência e essência.
O foco do texto de Andréa Borges Leão é situar O Príncipe na longa
história que orienta o processo de civilização no Ocidente. Partindo do contexto de produção e recepção do livro, a problemática apontada entre poder
e violência, contingências sociais e psiquismo humano é reintroduzida na
teoria do processo de civilização, de Norbert Elias. A autora sustenta que,
no contexto de formação dos Estados e monopólio da violência, O Príncipe
evoca o problema sociológico e histórico comum às fontes usadas por Elias.
Em seu artigo, Marilde Loiola de Menezes reconstrói a leitura de
Maquiavel realizada por Claude Lefort em sua importante obra Le travail de
l’oeuvre Machiavel. Baseada em Lefort, a autora discorre sobre a oposição
irreconciliável identificada em Maquiavel entre o desejo dos Grandes de
comandar e oprimir e o desejo do povo refratário à dominação. Tendo como
referência analítica a dialética do desejo explorada por Lefort nos Discorsi,
o artigo demonstra que o sonho iluminista de uma sociedade reconciliada,
ausente de conflito significaria, para Maquiavel, a eliminação da liberdade.
Paulo Nascimento e Martin Adamec discutem a proximidade das
ideias políticas de Maquiavel com o pensamento moderno, por meio de
uma comparação entre sua concepção sobre o Estado e a ação política com
a sociologia de Max Weber e seus tipos de dominação. O artigo destaca
ainda a importância que Maquiavel atribui a valores da Antiguidade clássica
como a glória, mas coloca-o na soleira da modernidade pelo seu realismo
e sua compreensão do poder.
O artigo de Maria Francisca Pinheiro Coelho explora a presença do
legado de Maquiavel no pensamento de Hannah Arendt. Reporta-se ao interesse e à leitura de Hannah Arendt de Maquiavel, a partir de uma reconstrução
das referências e interpretação das ideias do autor nos escritos de Arendt. O
objetivo do artigo é dimensionar a recepção do pensamento de Maquiavel
em formulações analíticas de Hannah Arendt, a partir da construção, pela
autora, dos conceitos de fundação: esferas pública e privada; política e ação;
pensamento e ação.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 11-17
MARIA FRANCISCA PINHEIRO COELHO
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A reconstrução das leituras de intérpretes de Nicolau Maquiavel neste
dossiê e a contribuição própria dos autores aqui reunidos que mantiveram um
intercâmbio de ideias sobre o autor florentino demonstram a abrangência e
a riqueza da reflexão que o seu pensamento continua a suscitar. Quinhentos
anos se passaram da redação do De Principatibus (Dos principados), título
original em latim de O Príncipe, e dos Discorsi sopra la prima deca di Tito
Livio (Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio), e sua obra continua
provocando inquietações que se remetem diretamente à política contemporânea. Todavia, a preocupação com as cose del mondo, tão constante no
pensamento de Maquiavel, nem sempre se constitui um horizonte para os
que atuam na esfera política.
Maria Francisca Pinheiro Coelho
(organizadora do dossiê)
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 11-17
Perfis da modernidade: Maquiavel e
Hobbes sobre política e moral1
Karlfriedrich Herb
Estudou Filosofia, Psicologia e Ciência Comparativa da Religião na Universidade de
Bonn, Alemanha. Em 1986, foi promovido a Dr. phil. com a obra intitulada Filosofia
do Estado em Jean-Jacques Rousseau. Em 1997, fez Habilitação na Universidade
de Munique com uma investigação sobre Conceitos Modernos de Liberdade. É
autor dos seguintes livros: Hobbes ueber die Freiheit, Wuerzburg (Koenigshausen
und Neumann, 1988, em parceria com G. Geismann), Rousseaus Theorie legitimer
Herrschaft Wuerzburg (Koenigshausen und Neumann, 1989) Buergerliche Freiheit.
Politische Philosophie von Hobbes bis Constant, Muenchen / Freiburg (Alber
Verlag, 1999), Tocqueville, Frankfurt (Campus Verlag, 2005, em parceria com
O. Hidalgo), Rousseau-Brevier. Schluesseltexte und Erlaeuterungen, Paderborn
(Fink Verlag, 2012, em parceria com B. Taureck) Rousseaus Zauber. Lesarten der
Politischen Philosophie, 2013, Wuerzburg (Koenigshaus und Neumann, 2013,
em parceria com M. Scherl). Desde 2001, ocupa a cátedra de Filosofia Política e
História das Ideias na Universidade de Regensburg. Foi professor visitante nas
universidades de Paris, Brasília, Recife, Campinas e São Paulo.
Endereço eletrônico: [email protected]
PRETENSÃO E LEGADO
Na história do pensamento político, Nicolau Maquiavel
e Thomas Hobbes são vistos como fundadores da Modernidade.
Seu legado é tão rico quanto difícil. Heróis e descobridores para
alguns; sedutores e facínoras para outros, com suas obras Maquiavel e Hobbes escreveram uma história de escândalos. As qualidades comumente atribuídas ao florentino são de conhecimento
geral. Foi chamado de Galileu da política (CASSIERER, 1966,
1 Texto traduzido do alemão para o português por Markus Hediger e revisado por
Gerson Brea.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 19-30
20
PERFIS DA MODERNIDADE: MAQUIAVEL E HOBBES SOBRE POLÍTICA E MORAL
p. 130), de Curandeiro do poder (KÖNIG, 1979, p. 338) e de Mestre do
mal (STRAUSS, 1958, p. 9). O Leviatã, de Hobbes, vem sendo perseguido
desde sempre: como símbolo do despotismo (ROUSSEAU, 1762) e como
exemplo do regente totalitário (ARENDT, 1951). Em histórias das ideias
[Ideengeschichten] menos exaltadas, o nome de Maquiavel é vinculado à
ideia moderna da autonomia do político, enquanto Hobbes representa o
projeto moderno da política como ciência de rigor. Ambos se viram como
inovadores em tempos de crise: em Maquiavel, é a luta pela unidade da Itália
que o leva a abandonar o idealismo do pensamento político clássico; em
vista da guerra civil em seu próprio país, Hobbes se vê literalmente obrigado
a ocupar-se com a filosofia política, escreve o Leviatã com a intenção de
encerrar, de uma vez por todas, a guerra filosófica das espadas (De Cive,
1640). Ambos os pensadores estão cientes de que os desafios de sua era só
podem ser vencidos por meio da refutação da tradição. Hobbes vincula essa
refutação à pretensão de ser o primeiro a praticar a teoria da política como
ciência. Na verdade, a scientia civilis não seria mais antiga do que seu De
Cive. E também Maquiavel se vê como inovador, reclama para si um novo
tipo de verdade, baseada na experiência:
Como é meu desejo escrever coisa útil para aquele que a entende, mais
conveniente me pareceu buscar a verdade das coisas, do que aquilo que
delas se venha a supor. E muita gente imaginou repúblicas e principados
que jamais foram vistos e nunca tidos como verdadeiros. Tanta diferença
existe entre o modo como se vive e como se deveria viver, que aquele
que se preocupar com o que deveria ser feito em vez do que se faz, antes
aprende a própria ruína do que a maneira de se conservar (Il Principe,
XV, I).
Já aqui se evidencia que, por trás do gesto compartilhado do novo e
revolucionário, transparecem fisionomias teóricas distintas. Em Maquiavel,
domina a tensão entre Il Principe e os Discorsi, ou seja, entre a tecnologia
do poder e o renascimento do republicanismo clássico. Em Hobbes, a moderna lei natural rivaliza com a invenção do Leviatã, à nova reivindicação
da soberania estatal. Ambos se ocupam com a pergunta sobre a origem e a
preservação do poder estatal – fazem-no, porém, de modos bem distintos.
Na reinstituição da filosofia política – esta a tese deste estudo –, ambos seguem perspectivas e intenções divergentes, até contrárias. Ao pensamento
político dominante em Maquiavel, o republicanismo, o Leviatã de Hobbes
opõe uma teoria genuinamente antirrepublicana e liberal.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 19-30
KARLFRIEDRICH HERB
21
VIDA ARRISCADA – A VIRADA ANTROPOLÓGICA
Malgrado as diferenças marcantes, existe uma premissa antropológica
comum que garante a modernidade de ambas as obras e descreve um ponto
de partida idêntico. Estamos falando do famoso pessimismo antropológico,
que incita a aversão de ambos os pensadores à tradição e desde sempre é
considerado um prefixo da filosofia política da Modernidade. Tanto Maquiavel
quanto Hobbes acreditam que concepções antigas e medievais do homem
não servem para criar um Estado. O homem é mau, afirma Maquiavel de
forma apodíctica. O homem é lobo do homem, constata Hobbes em vista
da Natural Condition of Mankind (Leviathan XIII). E de fato, para ambos, a
visão desconfiada da natureza humana resulta em uma impressionante lista
de máculas humanas. Não há dúvida: Maquiavel e Hobbes dão a mesma
resposta à famosa pergunta de Carl Schmitt, que indaga “se o homem é um
ser perigoso ou não-perigoso, um ser que traz riscos ou é inofensivo, sem
riscos” (1963, p. 59). Perigo e risco descrevem a tonalidade fundamental
do novo sujeito político. Aparentemente, esse desencantamento do mundo
moral do homem é o preço a ser pago pelas novas teorias de Estado e política.
Aqui, Maquiavel deixa sua marca com Il Principe. Seus conselhos ao
dominador sedento de poder documentam a profunda desconfiança diante
das predisposições morais do homem. Há muito, o homem não é mais o
ser pacífico e sociável imaginado pelos filósofos da Antiguidade. Não é um
zoon politikon, mas um indivíduo orientado por seus interesses com cobiça
insaciável. A palavra-chave dessa antropologia pessimista é ambizione. Esta
orienta a ação do homem por propósitos os mais diversos: ambição, fama,
posse, lucro e poder são motivos do desejo humano. Nas palavras do autor:
A causa deste fenômeno se encontra no fato de que a natureza criou os
homens de tal forma que, apesar de cobiçarem tudo, não conseguem
alcançar tudo. Visto que o desejo de adquirir algo sempre é maior do
que a capacidade de alcançar tal fim, surge disso uma insatisfação com
aquilo que se possui e também o reconhecimento de quão pequena é a
satisfação concedida pela posse (Discorsi I, 37).
O que se evidencia aqui não é, de forma alguma, o vício dos poderosos, mas a constante fundamental da natureza humana como tal. Cada um
procura dominar o outro para não ser dominado por ele. “Pode-se afirmar
dos homens em geral que são ingratos, inconstantes, insinceros, hipócritas,
temerosos e avarentos; e enquanto lhes demonstrares algum favor, eles perRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 19-30
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PERFIS DA MODERNIDADE: MAQUIAVEL E HOBBES SOBRE POLÍTICA E MORAL
manecerão completamente submissos.” (Il Principe, XVII). Ou seja, quem
quiser preservar seu poder político precisa levar em conta essas grandezas
negativas. “Precisa partir do pressuposto segundo o qual todos os homens
são maus e sempre cedem às suas tendências más, assim que se lhes oferecer
uma oportunidade.” (idem). Como já foi dito: a maldade da natureza humana
não é nem hipótese pessimista nem representação momentânea da crise,
é antes o triste fato que, aos olhos de Maquiavel, determina toda política.
Para demonstrar esse pessimismo, Maquiavel não precisa recorrer
à doutrina cristã do pecado original do homem como a fonte de todo mal
humano. Seu argumento não transcende este mundo: como disposição fundamental, o terror terreno é completamente suficiente. Na política, vale contar
com o pior e apostar na produtividade do mal. O protagonista de Maquiavel,
o príncipe, libera a fertilidade do mal. Ele cultiva as flores do mal.
No que diz respeito aos fundamentos, a antropologia de Hobbes aparenta, à primeira vista, consistir do mesmo material. Sua teoria De Homine
serve, sobretudo, para desmascarar a concepção tradicional da pacificidade
da natureza humana. Nem reflexos sociais nem a razão comum conseguem
unir os homens. Homo Homini lupus est – o homem é o lobo do homem –
é a fórmula escandalosa da antropologia hobbesiana, mas à qual Hobbes
contrapõe imediatamente a fórmula Homo Homini Deus (De Cive). Assim,
ele remete a triste verdade sobre o homem, a evidente natureza lupina, de
modo inequívoco ao estado natural, ou seja, ao convívio do homem fora da
sociedade burguesa. Ali domina a guerra de todos contra todos.
Na verdade, Hobbes não fala aqui do homem como tal, mas da relação primordial dos homens em sua comunidade meramente natural. O que
aparenta ser um essencialismo moral é, em Hobbes, de natureza estrutural.
O diagnóstico não revela um escândalo moral, mas um estado de emergência judicial, que pode e deve ser superado com a ajuda da razão humana.
O pessimismo de Hobbes pode ser remetido à ideia fundamental segundo
a qual, por natureza, os homens precisam ter medo uns dos outros. Não
importa se o homem tem medo de perder sua vida nua ou se seu direito à
vida permanece precário – em todo caso, vive em conflito constante em sua
relação natural com seus próximos. O que determina a conditio humana não
é a harmonia mútua, mas conflitos por toda parte.
É na base dessa ideia originária que Hobbes constrói sua filosofia
política. A partir daqui ele define a função mais fundamental do Estado: a
delimitação, até mesmo a resolução do conflito. Disso resulta a meta mínima
liberal do Estado: sua obrigação não é a realização do summum bonum, mas
o impedimento do summum malum, da morte violenta. Com o commonwealth
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 19-30
KARLFRIEDRICH HERB
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by institution, ou seja, a legitimação contratual do Estado moderno, Hobbes
desdobra como podemos pensar a gênese desse Estado sob pontos de vista
normativos. Até hoje debate-se se o Leviatã apresenta traços liberais ou se
ele serve como precursor do totalitarismo. Existem, porém, bons motivos
para reconhecer nas determinações fundamentais do Leviatã a matriz do
Estado democrático. Pois a mensagem democrática se manifesta em voz alta
e clara. Por mais poderoso e absoluto que o soberano possa ser, ele deve sua
legitimidade única e exclusivamente ao autocomprometimento do indivíduo.
Assim, Hobbes postula de modo paradigmático a primazia incondicional da
liberdade individual sobre a dominação do geral.
HISTORIOGRAFIA COM INTENÇÃO LIBERAL E REPUBLICANA
A narrativa de Hobbes sobre a instituição do Estado segue, desde o
início, propósitos normativos. Trata da questão de validade da dominação
estatal, que proíbe qualquer recurso a gêneses históricas. Na opinião de
Hobbes, a história não fornece lições políticas. No cânone da civill science,
a civill history não tem lugar. Aqui se manifesta uma diferença fundamental em relação à descoberta da política moderna de Maquiavel. Apesar de
Hobbes contemplar a Antiguidade com competência e paixão semelhantes
às de Maquiavel, sua retrospectiva não revela qualquer potencial normativo
ou saudade nostálgica. Hobbes se revela antes como crítico intransigente
da imitação da Antiguidade. Aquele que recorre à Antiguidade em questões
políticas cometeria um fatal acte manqué. O recurso às antigas fontes do
republicanismo evocaria apenas o perigo da anarquia:
Através da leitura desses autores gregos e latinos, os homens passaram
desde a infância a adquirir o hábito (sob uma falsa aparência de liberdade)
de fomentar tumultos e de exercer um licencioso controle sobre os atos
de seus soberanos. E por sua vez o de controlar esses controladores, com
uma imensa efusão de sangue. E creio que em verdade posso afirmar que
jamais uma coisa foi paga tão caro como estas partes ocidentais pagaram
o aprendizado das línguas grega e latina (Leviathan XXI, 9).
Assim, Hobbes refuta decisivamente a historiografia republicana de
Maquiavel. O legado do republicanismo clássico serve ao Leviatã no máximo
para um distanciamento polêmico.
Há muito tempo, os escritos principais de Maquiavel têm sido lidos
como diagnósticos concorrentes da crise. E realmente o autor reage ao fraRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 19-30
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PERFIS DA MODERNIDADE: MAQUIAVEL E HOBBES SOBRE POLÍTICA E MORAL
casso da república florentina com duas opções distintas. No Principe, sugere
a Lorenco di Medici a construção de uma ordem estatal estável, capaz de se
impor tanto para dentro quanto para fora. Aquisição e preservação de poder
ocupam aqui o primeiro plano. A intenção dos Discorsi é completamente
diferente: eles incentivam – bem no espírito do humanismo – a imitatio antiquorum. Recorrendo ao exemplo do Estado romano, Maquiavel verbaliza
a origem e as regularidades do governo republicano e identifica a possibilidade de fortalecer a república em termos institucionais e mentais: a razão
do Estado deve ser expressa com o vocabulário da política do cidadão. Aqui
e ali, o conceito da virtude ocupa uma função central.
MORAL POLÍTICA E PAIXÃO REPUBLICANA
Maquiavel enriquece o discurso da modernidade sobre a virtude
duplamente: por um lado, enfraquece o conceito tradicional; por outro,
confere-lhe um novo significado duplo. Por trás da reinterpretação cínica
da virtus antiga, no sentido de uma pura política de poder, transparece um
novo conceito republicano da virtude. Este se encontra além dos tradicionais valores do bem e do mal. É evidente que Maquiavel, também sob as
condições da Modernidade, se atém à virtude burguesa como fermento da
ordem republicana. O ceticismo antropológico do Principe de forma alguma
está ausente nos Discorsi. Os argumentos de Maquiavel se apoiam num
fundamento antropológico idêntico. Nos Discorsi ele não conta com a boa
vontade dos envolvidos, mas sim com sua teimosia e seu antagonismo. O
conflito natural deve ser controlado e preservado no interior da república.
Mais do que isso, o conflito entre os cidadãos se manifesta como lei interior da política. Muito longe de pretender delimitar e suspender o conflito,
Maquiavel o torna fértil dentro do corpo político. Hobbes é atormentado
por um medo-pânico de que o conflito natural dos homens possa irromper
novamente no estado burguês. Consegue perceber o antagonismo social
apenas como ameaça mortal do Leviatã, como frustração da finalidade do
estado burguês. O ideal da unidade não tolera o pensamento de um conflito
social permanente. Em comparação com Maquiavel, Hobbes se apresenta
aqui como mais radical e, ao mesmo tempo, mais convencional. Pois por
mais absoluta e inovadora que a soberania do Leviatã possa ser, esta continua
a se movimentar dentro dos limites das leis naturais, dentro da esfera do
autocomprometimento moral. Apesar de o Leviatã ser o autor exclusivo de
direito e lei e, portanto, legibus solutus em virtude da autorização contratual,
ele permanece preso moralmente – in foro interno – por sua consciência.
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A autonomia do político vale aqui apenas em termos jurídicos; em termos
morais, o soberano permanece sujeito à lei natural. O Leviatã de Hobbes não
possui a mesma liberdade do Príncipe de Maquiavel. Hobbes retém o direito
natural como impedimento interior à liberdade do soberano. Evidentemente,
sua autorrestrição moral é imprescindível: afinal de contas, deve compensar
a ausência de uma restrição institucional ao poder estatal. Onde se ausenta
o direito, deve intervir a moral.
A comparação com Hobbes revela o radicalismo com que Maquiavel
já se liberta das delimitações tradicionais da política. Ele está disposto a pagar
pela autonomia do político com a banalização de todas as normas morais.
Ele pode agir sem se preocupar com quaisquer exigências morais – sua única
obrigação é seu sucesso pessoal. Bom e certo é tudo aquilo que serve ao seu
poder e garante sua preservação. O fim justifica todos os meios políticos. A
subversão moral se realiza sob o manto de conceitos tradicionais. Na imagem
do uomo virtuoso de Maquiavel, o conceito da virtude perde seu matiz moral. Aos olhos da tradição, era evidente que a virtù do regente representava
a boa ação política. Utilidade e justiça se harmonizam aqui. O Príncipe de
Maquiavel destrói essa harmonia; ele abandona a orientação pelo bem-estar
e pela justiça. Decisivo é unicamente o sucesso da ação política. Tudo serve
à vontade de poder. “Trate, portanto, um príncipe de vencer e conservar o
Estado. Os meios que empregar serão sempre julgados honrosos e louvados
por todos, pois o vulgo se deixa levar por aparências e pelas consequências
dos fatos consumados, e o mundo é formado pelo vulgo” (Il Principe). A
nova política de poder também se apodera do conceito tradicional de prudência. Agora, a prudentia obedece a fins contingentes. Prudente é aquilo
que serve aos fins. A prudência do príncipe ignora tabus morais. O cálculo
do poder se transforma em nova virtude do principe nuovo.
VIRTUDE EM VESTES REPUBLICANAS
A reinstituição da república vive do gênio do uomo virtuoso, mas
no dia a dia republicano agem outras regularidades. Tendo em vista a vida
interior da república, Maquiavel verbaliza também a dimensão normativa
da política. Nisso se revelam novamente diferenças marcantes em relação
a Hobbes. Aquilo que é banido do Estado do Leviatã deve agora fornecer
duração ao regime republicano: a dominação das leis e as instituições.
Maquiavel se revela como antípoda de Hobbes, quando ele faz da participação dos cidadãos a condição fundamental da existência da república. A
constituição republicana só é duradoura se muitos contribuírem para isso
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PERFIS DA MODERNIDADE: MAQUIAVEL E HOBBES SOBRE POLÍTICA E MORAL
(Discorsi I, 9). O apelo à participação deixa claro: para Maquiavel, o cálculo do poder e o da política republicana dependem um do outro; política
de poder e política civil se entrelaçam. Em tempos de crise, a dominação
de um indivíduo pode muito bem ser apropriada como medida provisória,
mas, sob condições normais, a república depende de uma ampla participação
por parte dos cidadãos. Ela depende essencialmente da virtù dos muitos. Os
Discorsi desdobram o vínculo indispensável entre república, participação,
virtude e liberdade. Em longo prazo, a república não consegue sobreviver
sem a liberdade do cidadão; nem a liberdade, sem a virtude do cidadão.
Vivere civile – esta é a fórmula para a política civil republicana (POCOCK,
1975; DESCENDRE, 2014).
Em sua acepção mais geral, a liberdade para a república e para seus
cidadãos é idêntica. Trata-se da liberdade de coação exterior, ou, em palavras positivas: trata-se da reivindicação de governo e dominação próprios.
Apenas aquele que domina a si mesmo e que está sujeito às próprias leis
pode ser livre. Para a república como um todo, essa condição é evidente e
essencial. Apenas quando a cidade está – desde o início – livre de qualquer
dependência exterior (Discorsi 12), ela pode crescer e florescer. A república
é o berço privilegiado da liberdade civil. Maquiavel está convencido de que
a liberdade do cidadão encontra suas maiores chances de desenvolvimento
na república. Pois aqui os cidadãos desfrutam não só das vantagens da segurança – que também podem ser oferecidas pelos monarcas legítimos –, mas
também do direito de participar da vida pública e de assumir cargos políticos.
Hobbes se oporá com veemência a ambas as condições fundamentais.
Sem maiores problemas, a sua crítica fundamental à imitação do conceito
antigo da liberdade pode ser aplicada também a Maquiavel. Essa crítica
já se manifesta nas primeiras obras de Hobbes. Já em De Cive, nega que
a democracia possua qualquer primazia sobre outras formas de Estado
em questões de liberdade. A crítica de Hobbes possui peso sistemático e
consequências de longo alcance: para a liberdade do cidadão, a forma específica de Estado é absolutamente irrelevante. Já Aristóteles teria ignorado
a essência da liberdade (De Cive X, 8). Hobbes se recusa insistentemente
a reconhecer a participação na legislação como indicador positivo para a
liberdade individual. Assim, ele já antecipa o paradigma do conceito liberal
da liberdade civil negativa (cf. CONSTANT, 1819; BERLIN, 1969). Como
para os liberais dos séculos XIX e XX, a participação de forma alguma representa uma garantia para a liberdade do cidadão. Por vezes, a participação
dos cidadãos em assembleias populares pode até impedir que eles sigam
seus interesses privados. É evidente que a preocupação com a commodity
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of living (Elements of Law II, 28, 4) representa já para o Hobbes inicial a
verdadeira vocação do cidadão como ser humano. O cidadão de Hobbes é,
por assim dizer, um bourgeois segundo o modelo de Rousseau. Por isso,
Hobbes está apenas sendo consequente quando se recusa a demonstrar entusiasmo pela liberdade da Antiguidade. A essência de sua crítica consiste
em reconhecer a liberdade da Antiguidade não como liberdade do cidadão
individual, mas exclusivamente como liberdade do Estado em suas relações
externas. Assim, a liberdade dos atenienses se transforma simplesmente em
liberdade da polis: “Os atenienses e romanos eram livres, quer dizer, eram
Estados livres. Não que qualquer indivíduo tivesse a liberdade de resistir
a seu próprio representante: seu representante é que tinha a liberdade de
resistir a um outro povo, ou de invadi-lo” (Leviathan XXI, 8).
Para Hobbes, a orientação pela Antiguidade perdeu sua inocência.
Os danos políticos causados pela imitatio antiquorum são evidentes. Ela
é fatal para a subsistência da ordem estatal. “É coisa fácil os homens se
deixarem iludir pelo especioso nome de liberdade [...]. E quando o mesmo
erro é confirmado pela autoridade de autores reputados por seus escritos
sobre o assunto, não é de admirar que ele provoque sedições e mudanças
de governo”. (Leviathan, XXI, 9).
MOMENTOS MAQUIAVÉLICOS E HOBBESIANOS
Hobbes utiliza sua interpretação polêmica da Antiguidade para apoiar
a intenção sistemática de sua teoria política: a despotencialização radical
da participação política e a alergia sistemática a qualquer conflito dentro da
comunidade estatal. Como que de passagem, Hobbes se livra do conceito
clássico do republicanismo: o sucesso do Estado do Leviatã já não depende
mais da virtude política como fator de motivação subjetiva. A identificação
com o todo político é substituída pelo terror of punishment. O Leviatã precisa
administrar bem esse recurso escasso. Para o Estado hobbesiano, já vale o
que Kant postulará para a república moderna: ela precisa ser realizável até
mesmo para um povo de demônios (KANT, Zum Ewigen Frieden, 1795,
AA VII, 366). No entanto, Hobbes se despede da virtude política apenas
timidamente. No que concerne aos cidadãos, está disposto a abrir mão completamente de suas disposições morais; mas, no caso do soberano, depende
de sua virtude – pois apenas assim os fins da dominação liberal podem ser
alcançados. Podemos entender esse conceito de cidadão com perfil inferior
também como consequência de suas premissas liberais. Aqui, uma pretensão menor realmente promete mais. Certamente Hobbes teria desdenhado a
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PERFIS DA MODERNIDADE: MAQUIAVEL E HOBBES SOBRE POLÍTICA E MORAL
interioridade do republicanismo moderno. E certamente não teria chegado
a um acordo com Maquiavel.
Ao longo dos debates pós-modernos, pós-nacionais e pós-democráticos, nós nos acostumamos a reconhecer a essência verdadeira da democracia
contemporânea não no consenso, mas no conflito. Deste ponto de vista, o
pensamento de Maquiavel certamente nos oferece mais critérios de conexão
do que o autor do Leviatã. No sentido de uma atualização, o machiavellian
moment poderia ser fixado novamente no pensamento político da Modernidade. Esse momento consistiria em uma nova história topográfica e ideal
do republicanismo, e também na descoberta da divisão primordial e imprescindível da sociedade. Claude Lefort reconheceu a ação dessa dimensão
na obra de Maquiavel (LEFORT, Le Travail de l’œuvre Machiavel, 1972).
Nem Maquiavel nem Hobbes deram muita importância à natureza do
homem. Tudo indica, porém, que com seu pessimismo, Maquiavel penetrou
mais profundamente na fisionomia do pensamento político do que Hobbes
com seu mal-estar com a natureza. Enquanto Hobbes aposta na autodisciplina do soberano, Maquiavel pretende civilizar a natureza antagônica do
ser humano dentro do campo de forças da república. A modernidade de
Maquiavel nos compele a desistir de qualquer esperança de uma superação
política do conflito social. Evidentemente, não só o homem – mas também
a república – é condenado a viver arriscadamente:
Digo que os que censuram as dissensões contínuas dos grandes e do povo
parecem desaprovar as próprias causas que conservaram a liberdade de
Roma, e que eles prestam mais atenção aos gritos e aos rumores que essas
dissensões faziam nascer, do que aos efeitos salutares que produziam.
Essa gente não quer notar que existem em cada governo duas fontes de
oposição: os interesses do povo e os interesses dos grandes; que todas as leis
que se fazem a favor da liberdade nascem dessa desunião. (Discorsi I, 4).
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BIBLIOGRAFIA
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PERFIS DA MODERNIDADE: MAQUIAVEL E HOBBES SOBRE POLÍTICA E MORAL
Palavras-chave:
antropologia; república; liberdade; participação;
Antiguidade.
Keywords:
Anthropology, republic,
freedom, participation,
Antiquity.
Resumo
Com seu pessimismo antropológico, Maquiavel e Hobbes
são considerados pensadores políticos modernos par excellence. Malgrado essa premissa cética da política, ambos
oferecem orientações políticas opostas. Maquiavel defende
uma ordem republicana, que aposta na participação dos
cidadãos e que se aproveita de forma produtiva do conflito social. O Leviatã, de Hobbes, por sua vez, dispensa o
conceito clássico do cidadão; localiza a liberdade privada
no silêncio das leis e alimenta a esperança da unidade do
corpo político. Ao contrário, em Maquiavel, a participação
e o conflito só podem ser compreendidos como patologias
do político.
Abstract
With their anthropological pessimism, Maquiavelli and
Hobbes are considered modern political thinkers par
excellence. Despite this sceptical premise about politics,
both offer opposing political orientations. Maquiavelli
defends a republican order which encourages citizens‘
participation and views social conflict with positive eyes.
Hobbes‘ Leviathan, on the other hand, puts aside the classic
concept of citizenship. He considers private liberty only
exists when not curbed by laws, and puts his hopes on
the unity of the political body. Contrary to Machiavelli,
participation and conflict for him are considered political
pathologies.
Recebido para publicação em agosto/2014. Aceito em outubro/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 19-30
Maquiavel: os segredos do mundo da
política1
Maria Tereza Aina Sadek
Graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP); mestre em Ciência Política pela mesma instituição; doutora em Ciência
Política pela Universidade de São Paulo (USP). Fez pós-doutorado na Universidade
da Califórnia e na Universidade de Londres. É professora de pós-graduação na
USP, diretora de pesquisas do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais
(CEBEPEJ) e professora em Escolas da Magistratura, do Ministério Público e da
Defensoria Pública. Possui livros e artigos sobre teoria política, poder judiciário,
Ministério Público, Defensoria Pública, sistema de justiça e acesso à justiça.
Endereço postal: Rua Maranhão, 251, apto. 21. CEP: 01240-001, São Paulo–SP.
Endereço eletrônico: [email protected]
Ler, reler, voltar a ler as obras políticas de Maquiavel,
especialmente O Príncipe, é um desafio. Um desafio porque o
caminho é tortuoso, repleto de armadilhas. Escapar de ciladas é
recompensador: equivale à possibilidade de ingressar no mundo
da política. Não o mundo do dever ser; não o mundo de verdades
absolutas; não um mundo de perfeições e boas intenções; mas um
universo repleto de incertezas.
Com efeito, não é tarefa tranquila defrontar-se com conflitos, crises, violência, interesses, instabilidade. Tampouco é banal
1 Retomo aqui muitas das ideias desenvolvidas em meu livro Maquiavel: a Política
como ela é. São Paulo: FTD, 1996.
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MAQUIAVEL: OS SEGREDOS DO MUNDO DA POLÍTICA
assumir que o poder sempre esteve, está e estará em toda parte. Mais grave
ainda é admitir que o poder seja multifacetado; ao mesmo tempo, visível e
invisível, destruidor e também fiador da convivência entre os homens. Enfim, é-se levado a aceitar que o poder é um fato absolutamente necessário,
irrevogável, sendo, pois, aniquilados sonhos de suprimi-lo, ou a possibilidade
de uma sociedade absolutamente harmoniosa, sem poder.
Revelar o que está oculto; discorrer sobre o que não se ousa enunciar;
desvendar artimanhas; questionar supostos vistos como verdadeiros; desmistificar preceitos; interpelar valores tradicionais; antepor-se a argumentos
de autoridade – eis os propósitos, nem sempre explícitos, de Maquiavel.
Esse conjunto de traços impõe a referência a Maquiavel para muito
além de seu tempo. Suas reflexões não exprimem apenas a realidade do
século XVI; ao contrário, são ensinamentos que embasam a análise política. Maquiavel torna-se imprescindível, indutor do realismo na análise da
realidade política, na consideração da política tal como ela é.
Este artigo propõe apresentar uma contribuição para a leitura de
Maquiavel – analista político –, destacando seus supostos, como escapar de
algumas das muitas encruzilhadas e salientar variáveis cruciais da realidade
e da análise política. Antes, porém, uma rápida nota sobre a vida de Maquiavel, para contextualizar seus achados, ainda que as lições maquiavelianas
ultrapassem barreiras geográficas e de tempo.
MAQUIAVEL: NOTA BIOGRÁFICA
Nicolau Maquiavel nasceu em Florença, na segunda metade do
século XV (1469). A península itálica encontrava-se, então, inteiramente
fragmentada, marcada por conflitos, instabilidade política, e extremamente
vulnerável às invasões de estrangeiros. Apesar da agitação política, a vida
cultural e a atividade econômica eram bastante expressivas. O florescimento
das artes e das letras, ao lado do desenvolvimento do comércio, dos bancos
e das indústrias, propiciava um esplendor inigualável à região. Um número
notável de artistas e literatos compunha esse cenário. Dentre eles, bastaria
citar Leonardo da Vinci, Botticelli, Rafael, Michelangelo.
Maquiavel recebeu uma educação clássica; com apenas doze anos,
já redigia no melhor estilo clássico e dominava a arte da retórica greco-romana. Cresceu durante o poderio dos Médici, tendo assistido à expulsão
dessa família devido à invasão francesa e à proclamação da República sob
a liderança de Savonarola – esse monge permaneceu no poder por quatro
anos, até ser deposto e queimado vivo.
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MARIA TEREZA SADEK
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Com a queda de Savonarola, Maquiavel, com 29 anos, conseguiu
um cargo no governo, como Secretário da Segunda Chancelaria. Em tal
posição, foi encarregado de missões diplomáticas na península e fora dela.
Nessa oportunidade, teve contato com importantes lideranças europeias e
locais – aproximou-se de César Bórgia, duque de Valentino, filho do Papa
Alexandre VI.
Essa fase de intensa atividade, contudo, não foi duradoura. Devido
a uma nova mudança política, Maquiavel foi afastado do governo, preso,
torturado e, por fim, exilado. Proibido de abandonar o território florentino
e de ter acesso a qualquer prédio público, passou a viver na área rural. Em
1513, foi considerado suspeito e acusado de ter participado de fracassada
conspiração contra o governo dos Médici. Além de obrigado a pagar uma
pesada multa, foi novamente torturado – desta vez, também condenado à
prisão. Naquele momento, os Médici viviam sua melhor fase: um deles se
tornou chefe da Igreja católica, sob o nome de Papa Leão X.
Graças à intervenção de seu amigo Francesco Vettori, embaixador
em Roma e ligado aos Médici, Maquiavel conseguiu a libertação, mas não
o retorno à vida pública. Exilado em sua própria terra e impedido de exercer
sua profissão, passou a viver na propriedade que havia herdado de seu pai e
seus avós, em San Casciano. Foi nesse período que produziu a maior parte
de suas obras.
Nunca desistiu, entretanto, de voltar às funções públicas. Chegou,
inclusive, a acreditar que o seu O Príncipe poderia abrir as portas para tal
seu retorno. Seus esforços, porém, não foram bem-sucedidos; só em 1520
conseguiu um emprego, não em funções políticas, como tanto almejava, mas
como historiador. Foi, então, encarregado pela Universidade de Florença,
presidida pelo cardeal Júlio de Médici, de redigir anais e crônicas sobre a
cidade. Sua obra Histórias florentinas resultou dessa tarefa.
A vida política de Florença sofreu nova mudança com a morte de
Lourenço II. A queda dos Médici e a restauração da República propiciaram
condições para Maquiavel retornar à atividade pública. Suas funções, contudo,
se restringiram a missões diplomáticas de menor importância, muito distintas
daquelas que exercera antes da prisão. Não permaneceu, entretanto, no posto
por muito tempo. Os republicanos julgaram que, porque havia trabalhado
como historiador para os Médici, teria ligações com os governantes depostos.
Afastado, uma vez mais, da vida pública, dedicou-se exclusivamente
às atividades de escritor. Frustrado, faleceu aos 58 anos, em 22 de junho
de 1527.
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MAQUIAVEL: OS SEGREDOS DO MUNDO DA POLÍTICA
NOVOS SUPOSTOS E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Na construção de sua interpretação, Maquiavel rejeita a tradição idealista de Platão, Aristóteles e São Tomás de Aquino. Distancia-se igualmente
de seus contemporâneos, elegendo a realidade concreta como seu ponto tanto
de partida quanto de chegada. Busca os fundamentos de suas análises em
historiadores antigos, como Tácito, Políbio, Tucídedes e Tito Lívio.
A verdade efetiva das coisas – verittà effettuale – constitui o princípio
máximo para a análise da realidade. Nesse sentido, há uma substituição radical dos preceitos que orientavam a filosofia anteriormente. O domínio do
dever ser é subjugado pelo império do ser. Maquiavel sustenta existir uma
radical diferença entre a aparência e a essência, entre aquilo que os homens,
especialmente os governantes, dizem e o que de fato fazem. Essa oposição
também se reflete no contraste entre o ideal e o real; entre a imaginação e a
realidade; entre a ideologia e o mundo das relações concretas.
As profundas mudanças tanto nos diagnósticos quanto nas terapias
referentes ao universo das relações políticas constituem as consequências
mais significativas dessas orientações. Há claramente um questionamento
das explicações convencionais, sejam elas de autoria dos considerados “sábios” ou provenientes do senso comum. Assim, Maquiavel estabelece como
princípio para uma análise realista a desconfiança de respostas fáceis ou de
dogmas. Em decorrência, argumenta, torna-se imperioso buscar a essência
dos fatos, ainda que essa busca provoque a ira ou a indignação por parte dos
poderosos ou do saber dominante.
Maquiavel tem consciência da revolução decorrente de suas opções.
De fato, “enveredando por um caminho ainda não trilhado”1, suas ideias
provocam uma reinterpretação do poder, das relações entre dominados e
dominantes, da constituição do Estado. Ele observa que as relações de poder
resultam de feixes de forças, provenientes de ações concretas dos homens
em sociedade, salientando que nem todas as suas facetas têm origem na
racionalidade e são reconhecíveis de imediato.
A crença de que nada é natural e de que nada é permanente compõe
os pilares da análise. Esses fundamentos sustentam a questão central de
sua proposta: descobrir como poderia ser resolvido o ciclo inevitável de
estabilidade e de caos.
Nesse sentido, a ordem se transforma em uma possibilidade – não é
natural, nem eterna, nem fruto do acaso e menos ainda a materialização de
1 Cf. Discorsi ou Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.
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uma vontade extraterrena ou divina. A ordem resulta da atividade política,
de ações deliberadas, é uma construção humana.
A política passa, pois, a ser uma atividade de primeira grandeza.
A vida em sociedade, o convívio entre os homens, depende da atividade
política. O homem, devido às suas possibilidades de agir e de optar entre
alternativas, transforma-se em sujeito da história. Deixa de ser uma marionete que se movimenta de acordo com vontades estranhas a ele, reagindo
a imposições que não consegue controlar. Esse sujeito não é, contudo, um
senhor absoluto, dotado de uma vontade que tudo pode. A realidade impõe
limites. A política encontra restrições determinadas pela realidade. Assim,
Maquiavel rejeita simultaneamente tanto a visão baseada na predestinação
quanto o voluntarismo.
NATUREZA HUMANA E HISTÓRIA
Guiado pela busca da “verdade efetiva”, Maquiavel faz uma leitura
inovadora da história. A partir da análise das diferentes formas de manifestação do poder, conclui que são permanentes alguns fatores associados à
história e à natureza humana.
Seu diálogo com os textos da Antiguidade Clássica e sua experiência
como homem público levam-no a sustentar que, por toda parte, e em todos
os tempos, os homens apresentam os mesmos traços, a despeito de se tratar
de diferentes sociedades ou de distintas épocas.
Com efeito, afirma ele, em O Príncipe, capítulo XVII: “Dos homens,
em realidade, pode-se dizer genericamente que eles são ingratos, volúveis,
fementidos e dissimulados, fugidios quando há perigo, e cobiçosos” (MAQUIAVEL, 2012, p. 81). Na mesma direção, escreve nos Discursos sobre
a primeira década de Tito Lívio, livro I, capítulo III:
Como demonstram todos os que escreveram sobre política, bem como
numerosos exemplos históricos, é necessário que quem estabelece a
forma de uma Estado, e promulga suas leis, parta do princípio de que
todos os homens são maus, estando dispostos a agir com perversidade
sempre que haja ocasião (Idem, 1994, p. 29).
Os atributos associados à natureza humana provocam conflitos e
instabilidade. Desse ângulo, o que existe de natural é a desordem, já que o
desentendimento entre os homens resulta de sua própria natureza.
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MAQUIAVEL: OS SEGREDOS DO MUNDO DA POLÍTICA
Por outro lado, a constância dessas qualidades negativas transforma a
história em preciosa fonte de ensinamentos. Em consequência, o estudo do
passado não é entendido como mero exercício de erudição, mas visto como
um recurso valioso à compreensão de causas e à análise de soluções para
enfrentar a instabilidade. Maquiavel extrai do exame do suceder de fatos
os fundamentos de sua visão da história: um movimento no qual haveria
uma repetição cíclica dos acontecimentos, com a alternância de situações
de ordem e de situações de desordem.
As repetições cíclicas provêm do fato de não haver meios absolutos
ou definitivos para “domesticar” a natureza humana. Situações de ordem
ou de estabilidade são sucedidas por situações de desordem ou de instabilidade. As variações estão inteiramente contidas nas possibilidades de acerto
decorrentes da atividade política. Em outras palavras, um tempo mais longo
de estabilidade depende de escolhas políticas adequadas; escolhas erradas
geram instabilidade. Nesse sentido, a análise da história contribui para a
construção de diagnósticos e de soluções.
Maquiavel escreveu nos Discursos, livro I, capítulo XXXIX:
Quem estudar a história contemporânea e da antiguidade verá que os
mesmos desejos e as mesmas paixões reinaram e reinam ainda em todos os governos, em todos os povos. Por isto é fácil, para quem estuda
com profundidade os acontecimentos pretéritos, prever o que o futuro
reserva a cada Estado, propondo os remédios já utilizados pelos antigos
ou, caso isto não seja possível, imaginando novos remédios, baseados
na semelhança dos acontecimentos (1994, p. 129).
PODER POLÍTICO
O poder político tem, pois, para Maquiavel, uma origem mundana;
nasce das próprias características da natureza humana. Em sua concepção,
a atividade política se reveste de uma qualidade de primeira grandeza:
trata-se da possibilidade de enfrentar o conflito, de estabelecer a ordem, de
garantir estabilidade.
Para Maquiavel, o poder político não é artificial, mas uma característica
básica, uma virtualidade presente em todo e qualquer agrupamento humano.
Ignorar a onipresença do poder redunda em engano, em uma ilusão perigosa,
uma vez que impede o conhecimento da realidade e, em consequência, a
possibilidade de se buscar soluções para enfrentar a desordem resultante
dos traços definidores da natureza humana.
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Aos traços negativos presentes em todos os homens e em todos os
lugares, Maquiavel acrescenta um importante fator responsável pela instabilidade: a presença, inevitável, em todas as sociedades, de duas forças opostas:
os grandes e o povo. Afirma, em O Príncipe, capítulo IX: “(...) em qualquer
cidade se encontram estas duas disposições contrárias, as quais decorrem
de que o povo não deseja ser comandado nem oprimido pelos grandes e de
que estes desejam exatamente o inverso” (2012, p. 47). A mesma oposição
entre as duas forças está nos Discursos, no capítulo IV: “(...) há em todos
os governos duas fontes de oposição: os interesses do povo e os da classe
aristocrática” (1994, p. 31).
Essa divisão é de natureza social. O confronto entre os dois grupos
não encontra solução na força, já que um deles quer dominar e o outro não
quer ser dominado. Se todos quisessem o domínio, o mais forte venceria e
se imporia. Porém, Maquiavel sublinha que a maioria não quer ser dominada. Esse choque tem alto potencial para provocar a instabilidade. Daí a
necessidade imperiosa da política, para que se encontre uma alternativa com
capacidade de lidar com a correlação de forças presente em um determinado
momento, em uma dada sociedade.
Ademais, infere-se da existência dos dois grupos que a sociedade
não é homogênea; os homens não são todos iguais, ainda que todos sejam
marcados pelas mesmas características impressas pela natureza humana.
As divisões marcam todas as sociedades. A origem das diferenças pode ser
diversa: religiosa, social, econômica, militar etc. A despeito da base que dá
origem à diferença entre os dois grupos, dela decorrem a cisão política e,
consequentemente, a instabilidade.
O problema político, por excelência, será, pois, encontrar mecanismos
que imponham a estabilidade das relações sociais e sustentem a correlação
de forças.
Maquiavel extrai de suas concepções a respeito da natureza humana, da história, do confronto entre os que querem dominar e os que não
querem ser dominados os parâmetros que indicarão as alternativas vividas
pelas sociedades: a anarquia ou a desordem; o Principado; e a República.
A anarquia resulta da total ausência de soluções; significa deixar a natureza
humana e o conflito se manifestarem livremente, sem nenhum tipo de lei
ou de instituição com capacidade de estabelecer regras de convivência e de
cercear abusos. Quanto à escolha entre Principado e República, não se trata
de mero ato de vontade ou de considerações de natureza abstrata, mas da
opção pela alternativa condizente com a situação concreta. Não cabe, pois,
a discussão sobre o Estado ideal.
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MAQUIAVEL: OS SEGREDOS DO MUNDO DA POLÍTICA
Um Principado, afirma Maquiavel, é necessário quando a nação se
encontra ameaçada de deterioração, quando a corrupção se alastra, quando
a instabilidade impede o convívio social. Nessa situação, é indispensável
um governo forte, que crie e utilize seus recursos de poder para inibir a
livre manifestação das forças desagregadoras e centrífugas. Já a opção pela
República só se torna possível quando reina a estabilidade no jogo de forças
que compõem a sociedade.
O Príncipe, na concepção do pensador florentino, não é um ditador.
Como dirigente máximo de um principado, é, mais propriamente, um fundador
do Estado, um agente de transição, essencial em uma fase em que a nação
se encontra ameaçada de decomposição. Por essa razão, quando a sociedade
já encontrou formas de equilíbrio, a estabilidade permitiu a construção de
instituições, a República se transforma em uma opção. Nesse regime – que,
por vezes, Maquiavel chama de liberdade –, o povo é virtuoso, as instituições
são estáveis e contemplam a dinâmica das relações sociais.
A República se caracteriza por possuir um grau significativo de
institucionalização das relações sociais. A institucionalização não implica
a inibição ou o abafamento dos conflitos, mas a sua manifestação por meio
de canais apropriados.
Maquiavel, diferentemente de seus contemporâneos, percebe os
conflitos como fonte de vigor, sinal de uma cidadania ativa – portanto, são
até mesmo desejáveis. Escreveu no capítulo IV dos Discursos:
Os que criticam as contínuas dissensões entre os aristocratas e o povo
parecem desaprovar justamente as causas que asseguraram (...) a liberdade
de Roma, prestando mais atenção aos gritos e rumores provocados por
tais dissensões do que aos seus efeitos salutares (1994, p. 31).
A FORÇA E A LEI
A “verdade efetiva” indica que o poder funda-se basicamente na
força. Essa é a sua essência. Na aparência, o poder pode se manifestar com
roupagens douradas, episcopais, cavalheirescas, com ou sem espada. Com
essa asserção, Maquiavel se contrapõe frontalmente ao saber dominante,
segundo o qual haveria uma história regulada pela providência ou, ainda,
um suceder impulsionado pelo acaso. Ao considerar a força como elemento
integrante de todo e qualquer domínio político, contesta a crença de governantes ungidos ao poder por direito divino.
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Outra importante consequência da consideração da força como variável
integrante da vida política é a admissão de que nenhuma ordem existente é
intocável e permanente – sempre poderá ser ameaçada por um poder rival.
Nessa situação, a contingência se transforma em ponto central de
toda a análise e de todo o agir político. Isto é, as ideias sobre a incerteza
e sobre as possibilidades passam a integrar a argumentação e a atividade
políticas. Em decorrência, o problema político por excelência é resumido
nesta questão: como conquistar e como manter o poder? Essa indagação está
envolta pela contingência. A incerteza se manifesta tanto na conquista, na
aquisição do poder, como nos esforços que se fazem imprescindíveis para
tornar o poder duradouro.
A força está na origem da conquista do poder ou da fundação do Estado, diz Maquiavel. Tal afirmação afronta a crença dominante, fundada na
distinção entre poder legítimo e poder ilegítimo. Para o pensador florentino,
todos os domínios que existiram e que existem foram fundados por meio
do uso da violência. Dessa forma, a distinção entre Principados novos ou
recém-conquistados e Principados hereditários ou mais antigos não está na
origem. Em todos eles, em seu nascimento, a força esteve presente. O que
separa os principados novos dos antigos não é, pois, como se dizia, a legitimidade; mas, sim, a permanência no tempo. Um principado hereditário,
no passado, foi um principado novo. Em decorrência, é questionada a qualificação tradicional imputada aos usurpadores, de governantes ilegítimos.
A consideração da força não deve ser entendida como se Maquiavel
estivesse fazendo uma apologia da violência. Ao desmitificar a origem dos
domínios, ele traz para o centro do debate a situação real. O emprego da violência será sempre determinado pelas condições objetivas, daí a necessidade
de se levar em conta se o fundador do Estado tem o apoio dos “grandes” ou
do povo; se se trata de um domínio acostumado a viver em liberdade ou de
um Estado que vive sob o domínio de um tirano; se era governado por um
príncipe do qual todos os demais eram servidores ou por um príncipe que
dividia o poder com barões; se seus habitantes falam a mesma língua e têm
os mesmos costumes ou não.
A manutenção do poder, segundo Maquiavel, é um problema mais
complexo do que a conquista; a dificuldade é permanente, muitas variáveis
devem ser levadas em consideração. É prioritária a construção de instituições, que regulem os comportamentos e providenciem mecanismos para
estabilizar a correlação de forças.
A construção de uma nova ordem não é, portanto, um mero ato de
vontade; está sujeita às condições reais. Por outro lado, nenhum governo
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MAQUIAVEL: OS SEGREDOS DO MUNDO DA POLÍTICA
se mantém exclusivamente pelas qualidades de seu dirigente, por mais
excepcional que esse príncipe possa ser. A possibilidade de manutenção do
poder se baseia em alicerces: boas leis e boas armas. Afirma Maquiavel no
capítulo XII de O Príncipe:
[...] o quão necessário é para um príncipe contar com sólidas bases,
bases sem as quais torna-se inevitável a sua ruína. Os mais importantes
alicerces de qualquer Estado, seja ele novo, velho ou ainda misto, são
as boas leis e os bons exércitos 2012, p. 59).
Com efeito, da combinação entre as leis e as armas dependerão a
durabilidade e a grandeza de uma determinada ordem social. Boas leis e
armas adequadas têm a possibilidade de inibir a livre manifestação dos traços
negativos característicos da natureza humana, regular os conflitos entre as
duas forças sociais, criar e dar vida às instituições. Em outras palavras, o
ajuste na medida adequada entre a força e as leis propicia a institucionalização do poder, a permanência de uma determinada ordem político-social.
Daí a seguinte asserção: “o governo deve ter vida mesmo depois da morte
do príncipe”.
Para Maquiavel, a atribuição de “boas” para qualificar as leis não se
faz a partir de preceitos ou valorações abstratas. As leis não são boas ou
más em si. “Boas” significam leis adequadas, condizentes com as situações
concretas, com os objetivos da ordem política que se deseja construir. As
leis têm a faculdade de modelar o homem e a sociedade.
A força é enquadrada pela lei, quando se trata de manter o poder e não
apenas de conquistar. Mas, sem a força, dificilmente a lei se impõe. Assim,
é absolutamente indispensável o equilíbrio entre ambos os alicerces. Maquiavel, na exposição sobre a força, inclui ponderações sobre os diferentes
tipos de exército e sua relação com a situação concreta. Daí sustentar que
nos domínios recém-constituídos as boas leis dependerão de boas armas,
enquanto nos antigos a relação se inverte.
A VIRTÙ E A FORTUNA
Uma decorrência dos supostos desenvolvidos por Maquiavel é sua
primorosa e sarcástica crítica à concepção dominante sobre o destino e a
predestinação. O analista florentino retoma os ensinamentos dos antigos que
investiam no destino com os traços de uma deusa generosa, aliada potencial
dos homens que apresentassem qualidades. Como uma deusa feminina, para
seduzi-la, um homem deveria demonstrar coragem, tornar evidente sua virtù.
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O cristianismo havia derrotado inteiramente essa crença, substituindo-a pela convicção da existência de um “poder cego”, inabalável, isento
de qualquer sedução, e que distribuía seus bens de forma inteiramente
indiscriminada.
Maquiavel inicia o penúltimo capítulo de O Príncipe com uma referência explícita ao pensamento fatalista comungado por seus contemporâneos.
Com ironia, afirma que ele próprio se inclinou a concordar com essa opinião.
O desenrolar do argumento, contudo, indica claramente que se tratava de
uma concordância estratégica, uma artimanha com o intuito de não afastar
seu leitor. Assim, logo após admitir o domínio absoluto da fortuna, exalta as
potencialidades positivas do livre-arbítrio, concedendo ao alvedrio humano
o domínio de pelo menos a metade das ações. Escreve no capítulo XXV:
E eu a comparo [a fortuna] a um destes rios torrentosos que, em sua
fúria, inundam os plainos, assolam as árvores e as construções, arrastam
porções do terreno de uma ribeira à outra: todos, então, fogem ao seu
irromper, nenhum homem resiste ao seu ímpeto, cada qual incapaz de
opor-lhe um único obstáculo. E, em que pese assim serem [esses rios],
aos homens não é vedada, em tempos de calmaria, a possibilidade de
obrar preventivamente diques e barragens, de sorte que, em advindo uma
nova cheia, as suas águas escoem por um canal ou que o seu ímpeto não
seja nem tão incontrolável, nem tão avassalador. De um modo análogo
intervém a fortuna, a qual manifesta o seu poder onde não há forças
(virtù) organizadas que lhe resistam (2012, p. 120-121).
Essa analogia tem por intenção dissuadir ou, pelo menos, levar
seu leitor a reexaminar suas crenças. Um rio sem diques é equiparado a um
homem sem vontade, uma marionete nas mãos do porvir. O caráter radical
da argumentação vai ainda mais longe, Maquiavel termina esse capítulo
XXV evidenciando a possibilidade de a virtù conquistar a fortuna: “Dito
isso, concluo que, sendo a sorte (fortuna) inconstante e os homens obstinados em suas formas de agir, estes serão felizes pelo tempo em que com ela
convergirem e desditosos quando dela divergirem.” (2012, p. 123-124).
No cenário construído por Maquiavel, o agir humano tem capacidade
de conter ou de amortecer a força do destino. A maior ou menor capacidade
dependerá do que caracteriza como virtù. A virtù não é a virtude cristã, voltada para recompensas extraterrestres, mas qualidades mundanas guiadas por
objetivos políticos: o poder, a honra e a glória. O exercício da capacidade
da virtù incorpora um feixe de qualidades. Essas qualidades não são traços
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 31-45
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MAQUIAVEL: OS SEGREDOS DO MUNDO DA POLÍTICA
dados de antemão; ao contrário, são exigências variáveis, determinadas pelas
circunstâncias, pela correlação de forças.
Daí Maquiavel asseverar que, muitas vezes, algo com aparência de
virtude pode gerar a ruína de um Estado, enquanto algo com aparência de
defeito pode conduzir a uma situação de segurança e bem-estar. A escolha
das qualidades é perfilada pelo fim político; essa é a “razão de Estado”.
A virtù está, pois, delimitada pela distinção entre moral pública e
moral privada. Os preceitos que regem a vida privada devem ser considerados pelo dirigente político. Essa consideração, contudo, não se traduz em
uma camisa de força para o seu comportamento. Trata-se, ao contrário, de
valores que o príncipe deve aparentar possuir, sem que necessariamente os
ponha em prática.
MAQUIAVELISMO E MAQUIAVÉLICO
Ao longo dos tempos, a política e os políticos têm sido execrados.
Comportamentos sem escrúpulos, pérfidos, astuciosos encontram um qualificativo e um substantivo para identificá-los: maquiavelismo e maquiavélico.
Esses termos, entretanto, não são aplicados apenas no universo da vida
pública; na linguagem comum, classificam também condutas e situações
na vida privada.
De forma resumida, pode-se afirmar que a utilização do termo “maquiavélico” é uma forma, nada sutil, de desqualificar comportamentos e
também o inimigo, caracterizando-o como a encarnação do mal.
Certamente, um leitor atento da obra de Maquiavel rejeitaria por
completo a utilização dos termos maquiavelismo e maquiavélico, como
expressões minimamente atinentes aos argumentos desenvolvidos em O
Príncipe. Porém, como ensina o próprio Maquiavel, adjetivos e substantivos
não são neutros, servem a determinados objetivos. O fato de esses termos
estarem descolados da obra não significa que não devam ser considerados,
analisados e interpretados.
A despeito das múltiplas leituras que se possam fazer da obra de
Maquiavel, não haveria como negar que o autor florentino representa um
marco na história das ideias e no saber sobre o Estado e a vida política. Sua
análise põe em dúvida muitas das crenças consideradas verdades inquestionáveis. Para começar, há um forte questionamento sobre os impulsos
responsáveis pelo desenrolar da história das sociedades. Os caprichos do
acaso ou a predeterminação são substituídos pelas possibilidades do agir
e do enfrentamento das circunstâncias. Maquiavel introduz em sua análise
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características centrais para o saber sobre a vida política: a ideia da incerteza;
a noção de alternativas; a separação entre valores da vida pública e valores
da vida privada.
Trata-se da proposição de uma nova matriz, de um novo paradigma
para orientar a percepção da realidade e, em decorrência, o agir. Nesse
sentido, os ensinamentos de Maquiavel se convertem em um norte para a
análise do poder e de suas manifestações. A partir deles, analistas adquirem
conhecimentos que permitem distinguir o real do ideal, reconhecer a força
das circunstâncias e admitir o imponderável.
Hoje, passados tantos anos e, mais importante ainda, com a criação e
consolidação de cursos de Ciências Sociais e o desenvolvimento da Ciência
Política, poucos discordariam de que Maquiavel é o fundador da análise realista, da autonomia da esfera do político, dos paradigmas que, ao descartar
os idealismos, nos impõem a análise da política como ela é. Maquiavel, mais
do que inspiração, é uma presença. Uma presença obrigatória, mesmo se não
reconhecida como tal. Como expresso na lápide de seu túmulo, “Tanto nomini
nullum por elogium” (“Nenhum elogio está à altura de tão grande nome”).
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BIBLIOGRAFIA
MAQUIAVEL: OS SEGREDOS DO MUNDO DA POLÍTICA
MACHIAVELLI, Niccolò. O Príncipe. Tradução de Antonio Caruccio-Caporale. Porto Alegre: L&PM, 2012.
MACHIAVELLI, Niccolò. Comentários sobre a primeira década de
Tito Lívio. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Editora da Universidade
de Brasília, 1994. 3ª edição.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 31-45
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MARIA TEREZA SADEK
Palavras-chave:
Maquiavel; política; realismo político; virtù e fortuna;
correlação de forças.
Resumo
Keywords:
Machiavelli; policy;
political realism; virtù and
fortune; correlation of forces.
Abstract
Esse artigo se propõe a apresentar uma contribuição para a
leitura de Maquiavel – analista político –, destacando seus
supostos, sugerindo caminhos para escapar de algumas
das muitas encruzilhadas que estão em seus escritos e
salientando variáveis, propostas pelo autor, consideradas
cruciais para a interpretação da realidade e para a análise
política. Os achados políticos de Maquiavel, especialmente
em O Príncipe e nos Discursos sobre a Segunda Década
de Tito Lívio, embora datem do século XVI, ultrapassam
barreiras impostas pelo tempo e pela geografia. Importantes
paradigmas para uma análise política realista, centrada na
separação entre a esfera pública e a privada, nos efeitos
da correlação de forças e na distinção entre a aparência e
a essência estão contidos nessas obras.
This article is a contribution to the reading of Machiavelli
as a political analyst. It highlights some of the ideas which
are crucial to his interpretation of reality and suggests ways
to circumvent some of the multiple crossroads contained
in the author’s writings. Machiavelli’s political findings,
especially in The Prince and the Discorsi, although written
in the XVI century, have a reach that goes well beyond
the barriers of time and geography. His political analysis,
centered on the difference between private and public spaces
and appearance and essence, are important paradigms for
a realist approach of politics.
Recebido para publicação em setembro/2014. Aceito em outubro/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 31-45
E se Norbert Elias fosse um leitor de
Maquiavel?1
Andréa Borges Leão
Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal do Ceará. Realizou estágio pós-doutoral em História Cultural
no Centre de Recherche sur le Brésil Contemporain da École des Hautes Études en
Sciences Sociales, Paris, e na Université de Versailles Saint-Quetin-en-Yvelines,
França, sobre a circulação transatlântica dos livros e manuais juvenis no século
XIX. Atualmente desenvolve pesquisa sobre o Brasil na edição juvenil francesa,
as traduções dos clássicos juvenis europeus e os best-sellers juvenis no Brasil.
Coordena o Grupo de Estudos em Cultura, Comunicação e Arte (GECCA).
PSICOGÊNESE DE O PRÍNCIPE
Se Norbert Elias tivesse sido um leitor de De principatibus,
de Nicolau Maquiavel, escrito em 1513, assim como foi um leitor
de Utopia, de Thomas More, publicado em 1516 (ELIAS, 2014),
os usos da força na conquista e manutenção do poder revelariam
não apenas a situação do Estado, mas também os códigos de
conduta destinados a conter as emoções na vida da corte. Para
compreender e explicar o longo processo civilizador, de acordo
com o sociólogo, foi necessário investigar as mudanças simultâneas
na sociogênese das instituições e na psicogênese dos indivíduos.
Elias apoiava-se no estudo de um corpus documental formado
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 47-64
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E SE NORBERT ELIAS FOSSE UM LEITOR DE MAQUIAVEL?
pelos manuais de civilidade lidos nos círculos absolutistas dos séculos XVI
e XVII. Os manuais são suportes de observação dos efeitos de explicitação
das normas e, por conseguinte, do equilíbrio na balança do poder entre as
diferentes camadas e formações sociais. Em virtude disto, como observa
Martin van Creveld (2004, p. 241), o que hoje se entende como ciência
política era publicado nos livros de aconselhamento para os governantes.
Por meio deles e dos efeitos que provocavam, definia-se o que era a política.
No trabalho de pesquisa que realizou nos arquivos da Biblioteca do
Museu Britânico, no início dos anos 1930, Elias se deparou com o tratado
renascentista de Erasmo de Rotterdam, de 1534, De civilitate murum puerilium, que o levou ao estudo de textos do mesmo gênero publicados em outros
períodos. Assim, foi reunindo um conjunto empírico para a elaboração de
seu livro O processo civilizador. A leitura que o sociólogo faz do passado
por meio de fontes impressas como corpus documental, no entanto, conduz
a uma questão: por que a ausência de O príncipe, o famoso manual político
de Maquiavel? Porque, responde Elias, o ponto de vista assumido é o do
monarca. Maquiavel preocupava-se em justificar a raison d’état e, com isso,
deixara as regras do convívio social e os jogos da corte fora de seu horizonte
de observação. O mesmo ponto de vista arbitrário de um único indivíduo,
continua Elias, não se encontra nos outros manuais da ação cortesã: por
exemplo, no livro do francês Amelot de la Houssaie, o Oraculo manuale,
publicado em 1647 e tornado popular nos séculos XVII e XVIII com o título
L’Homme de cour. Para Elias, em comparação a O príncipe, o livro de Amelot
de la Houssaie “constitui, em certo sentido, o primeiro manual sobre a psicologia da corte da mesma maneira que o livro de Maquiavel sobre o príncipe
foi o primeiro manual clássico sobre a política absolutista” (1993, p. 290).
Este artigo tem o propósito de rever a resposta de Elias. Parte da lógica
da exclusão de O príncipe, e tenta situá-lo, ao lado dos outros manuais, no
arcabouço empírico da teoria da civilização. Não se pode perder de vista
que as obras de Maquiavel, Thomas More e Erasmo fazem parte da mesma
rede de conhecimentos produzida no século XVI, período em que a Europa
vivia o Renascimento das letras e artes, tendo como pano de fundo uma
instabilidade política marcada por invasões, disputas territoriais e guerras
entre os Estados. A escrita e a recepção de O príncipe cristalizam um ponto
no longo processo dos comandos e proibições necessários ao amadurecimento
das instâncias psíquicas, o que Elias, na esteira de Freud (ELIAS, 2010),
chama de superego. E cristalizam também um momento em que era impossível, conforme Martin van Creveld (2004, p. 246), distinguir a política dos
assuntos da intimidade que delineavam a esfera privada dos governantes.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 47-64
ANDRÉA BORGES LEÃO
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Os textos renascentistas, dos mundanos aos políticos, dos mais intimistas aos de conselhos para uso na vida pública, partilhavam modelos
de escrita. É comum a explicação do presente pela leitura dos clássicos da
Antiguidade. A compreensão do moderno, incluindo um novo conceito de
Estado, atualiza formas do passado. As regras e preceitos das narrativas eram
justificados por máximas como “deveis” e “evitareis”, formas de controle
externo necessárias ao convívio, mas que não representavam uma lei moral,
nos diz Elias (1993, p. 291). Seguindo o mesmo estilo, De principatibus foi
um manual entre manuais. Escrito após 15 anos dos estudos de Maquiavel
sobre o Estado, de julho a dezembro de 1513, passou a circular em 1514 e,
após vários retoques, foi, enfim, publicado em 1532, por Antonio Blado, um
editor de Roma, que lhe conferiu o famoso título de O príncipe, sem consultar
Maquiavel (PROLONGEAU, 2010). A troca do título não ficou sem consequências na longa história da recepção do livro. No mínimo, a intervenção
editorial de Blado coloca um problema ao nosso propósito: levando em conta
a intenção original do autor de apresentar uma análise sobre as formas de
governo, do despotismo à República, um leitor da posteridade não seria levado
a privilegiar a ação de um indivíduo particular ao buscar correspondência
entre o título e o conteúdo? Antonio Blado pode ter sido guiado por razões
comerciais ou por uma tentativa de burlar a vigilância eclesiástica: afinal,
nos informa Jean-Jacques Chevallier (1998: 45), a impressão do manuscrito
deveu-se a uma licença do papa Clemente VI, em 1531, quatro anos após a
morte de Maquiavel, em 1527, e foi dedicada a um cardeal.
A partir do século XVI, O príncipe é traduzido por toda a Europa. O
Vaticano o coloca no Índex de 1559 a 1929, porque seu autor se voltara contra
os modelos das virtudes cristãs. A obra é denunciada em 1557 pelo papa Paulo
IV, que a envia ao Concílio de Trento. Na argumentação de Maquiavel, as
dissimulações, astúcias e bajulações aproximavam o soberano dos atos de
violência física e podiam ser necessárias aos exercícios do poder, de acordo
com os possíveis que orientam cada ação. Na sua visão, pouco importava se
um governante fosse para o inferno após a morte. Na visão do historiador
israelense Martin van Creveld (2004, p. 247), o que distingue Maquiavel
dos seus contemporâneos - como Erasmo de Rotterdam que publicou um
manual cristão sobre a educação dos príncipes - é o tom secular da sua obra.
A partir dele, a teoria política deixa de ser um ramo da teologia.
Por sua vez, Maquiavel queria ser ouvido e, se possível, lido pelos
governantes que o baniram da vida pública de Florença e o conduziram ao
exílio voluntário na propriedade da família, em São Casciano (SADEK,
2006)2. O príncipe é dedicado, não por acaso, a Giuliano de Medici, embora
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E SE NORBERT ELIAS FOSSE UM LEITOR DE MAQUIAVEL?
isso não tenha levado seu autor a um momento de triunfo enquanto vivia.
A dedicatória foi uma projeção do que Maquiavel possuía de mais íntimo:
o conflito entre a razão política e o desejo de obter favores a fim de rever
sua posição na administração do Estado. Os grandes in-fólio típicos do
Renascimento, esplendidamente ornados com iluminuras, nos diz Anthony
Grafton (1997, p. 215), ofereciam os resultados das pesquisas filosóficas
aos protetores dos humanistas, os quais eram homenageados nas primeiras
páginas pelos autores e editores.
O manual de Maquiavel, apesar dos pesares, não permaneceu prisioneiro de sua época. Durante o conflito religioso no interior do cristianismo,
que opunha católicos e reformados, algumas obras se dedicam a julgá-lo:
E os protestantes abominam Maquiavel como jesuíta. Mas os jesuítas
não menos vigorosamente o denunciam à indagação católica. O livro do
jurisconsulto protestante Innocent Gentillet, publicado em 1576, Discurso
sobre os meios de bem governar, contra Nicolau Maquiavel Florentino,
terá por complemento, em 1592, o Julgamento de Nicolau Maquiavel,
pelo padre jesuíta Antoine Possevin, que, aliás, só leria Maquiavel através
de Gentillet. Os jesuítas de Ingolsdadt, na Baviera, pedem para queimá-lo
em efígie (CHEVALLIER, 1998, p. 46).
Outro traço comum aos intelectuais renascentistas são as práticas
de leitura na organização do estudo dos textos antigos. É conhecida a carta
que Maquiavel escreveu ao amigo Francesco Vettori, em 10 de dezembro de
1513, contando detalhes da sua vida intelectual na companhia dos grandes
homens da Antiguidade3. Durante a composição de O príncipe, no campo e
no escritório, Maquiavel lia enquanto escrevia. O elenco que passava diante
de seus olhos era formado por autores “menores”, como Tibulo e Ovídio, e
por “maiores”, como Dante ou Petrarca, confessa ao amigo. Anthony Grafton
(1997) utiliza essa carta como documento histórico sobre a leitura humanista.
Nela, Maquiavel declara ler dois tipos de livro e, por conseguinte, praticar
dois tipos de leitura: uns, eram livros de pequeno formato e fácil manejo,
provavelmente, nos diz Grafton, edições populares de Aldo Manunzio que
estimulavam o sonho, as paixões e os amores em leituras feitas durante
os passeios no campo; outros, os clássicos de erudição, que estimulavam
o pensamento e pediam leitura concentrada em ambientes privados. Na
leitura destes últimos livros, Maquiavel interrogava os autores, conversava
com eles a cada noite, na solidão do escritório, sobre os motivos das ações
e as virtudes da humanidade, e eles lhe respondiam, durante quatro horas
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 47-64
ANDRÉA BORGES LEÃO
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seguidas. Em O príncipe, continua Grafton (1997, p. 210), identificamos
os grandes homens do Estado que Maquiavel tomava como modelos de
sabedoria prática para enfrentar o maior desafio de sua época: o problema
dos monopólios estatais da violência física e dos tributos. Cícero, Plutarco,
Tito-Lívio eram certamente lidos por Maquiavel nos grandes in-fólios e em
latim. O elenco austero e elegante não o distraía, mas o instruía, evocando
a eloquência e a recitação entre os cortesãos ou, quem sabe, um paraíso
perdido recriado na cultura do Renascimento:
Mais c’était un paradis perdu imaginaire, plus que l’évocation historique
d’un monde disparu, qu’ils offraient aux lecteurs. Les deux manières
qu’avait Machiavel d’aborder les classiques, poésie amoureuse in-octavo
ou hauts faits des héros antigues dans des in-folio austères, dans une
campagne propice au rêve ou dans la solitude studieuse de son cabinet,
reflétaient toutes deux l´économie et l’esthétique de la pratique éditoriale
de la Reinassance (GRAFTON, 1997, p. 220).
Uma das atualidades de O príncipe é o trabalho do autor sobre a
história de seu tempo, o que nos oferece uma chave de interpretação: a importância dos manuais de orientação política nos círculos renascentistas. Se
Maquiavel privilegiava as experiências de governo e conquistas de poder na
lógica argumentativa de seu próprio livro de prescrições, era porque antevia
os efeitos provocados na leitura. Além do desejo de se afirmar como analista
político, diz Anthony Grafton (2010), o autor, quem sabe, oferecia a narrativa
do “novo príncipe” a um público mais amplo, que vivia a experiência social
das mudanças na organização política. Nesse ponto, Norbert Elias faria uma
boa interlocução com um autor que lidava com problemas específicos no
contexto de formação do Estado. Em um tempo marcado pela renovação nas
tecnologias da impressão e, portanto, pela difusão massiva dos livros nas
línguas vernáculas, os manuais cumpriam função de liga entre as estruturas
mentais e sociais por meio dos laços reciprocamente estabelecidos entre autores e leitores. Nos manuais, a leitura torna-se, por si só, um convite à ação.
Os bons e os maus comportamentos previstos indicam os bons e os maus
usos dos livros que os veiculam. As cortes monárquicas deviam tornar-se
tão didáticas quanto seus manuais, irradiando estilos de vida para as outras
camadas da sociedade, provocando cobiça e desejos secretos de imitação,
tornando-se verdadeiras escolas de maneiras (LEÃO, 2007).
O suposto diálogo entre Elias e Maquiavel poderia continuar seguindo
a problemática das figurações de poder no curso do processo de civilização.
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52
E SE NORBERT ELIAS FOSSE UM LEITOR DE MAQUIAVEL?
A ideia difusa de uma civilité já se encontraria formalizada em O príncipe?
Quais modelos de identificação o livro produziu na corte, por exemplo, de
Luís XIV? Partindo da dinâmica de cada uma das casas que governavam as
cidades italianas - os Sforza, os Bórgia, os Médici -, se poderia aliar a crueza
à galanteria, as táticas de terror mediadas pela astúcia ao jogo da etiqueta
cortesã? O que pensava Maquiavel sobre as relações entre os soberanos e os
súditos, personagens que viviam de modo distinto uma experiência social
de organização do Estado? Os últimos, é bom lembrar, sempre prontos a
traições e conjuras. E quanto ao equilíbrio entre controle externo e interno
da violência física por um exército nacional e o autocontrole das emoções
de inimigos e aliados? Afinal, as virtudes, traições e crueldades ilustram o
equilíbrio de tensões, tão bem formulado na controvérsia do “novo príncipe”,
entre ser amado e ser temido.
O primeiro manual político do absolutismo, nas palavras do próprio
Elias, situa-se na produção de textos que ilustram o processo social de
formação das identidades nacionais europeias. Mas por que o sociólogo
preferiu, ao espelho dos príncipes4 pragmáticos e não idealizados, o manual
de civilidade de Erasmo de Rotterdam? Pode-se também indagar por que
Elias não elegeu outro livro de Erasmo, o Institutes Principis Christianis
que, fazendo coincidir título e conteúdo escrito durante o serviço do autor
ao futuro Carlos V, publicado em 1517, versava sobre a boa educação do
príncipe humanista e cristão, conforme nos informa Martin van Creveld
(2004, p. 244).
O príncipe é uma narrativa de práticas fundada em trajetórias exemplares dos que concentram o poder. Desde Moisés, nos tempos bíblicos, a
Alexandre VI, o papa Bórgia, e seu filho César, personagens contemporâneos. Uma narrativa inspirada e orientada para a ação política. Por isso,
Maquiavel a organizou na forma de conselhos, advertências e censuras. Não
se pode perder de vista que o manuscrito assumiu o formato impresso após
19 anos de redigido. O deslocamento de significado operado no título pelo
editor Antonio Blado talvez tenha determinado a superposição do ponto de
vista de um indivíduo ao da figuração social. Abordar um livro tão popular
na materialidade de sua forma é um ponto de partida necessário para a
compreensão das reviravoltas interpretativas na história de sua apropriação.
As reflexões sobre as artes da guerra e o estudo da economia psíquica dos governantes, como a atenção à natureza humana no refreamento
dos afetos e o manejo dos conceitos de fortuna e virtú, produziram efeitos
duradouros no pensamento político moderno. Mesmo com a distância que
o separa de nós, pode-se ler o opúsculo de Maquiavel do ponto de vista das
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ANDRÉA BORGES LEÃO
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regras de construção de uma posição e um habitus político que atravessa o
processo de civilização, muito além do século XVI.
NO ESPELHO DOS PRÍNCIPES, AS FIGURAÇÕES DO PODER
No estudo, de 1933, consagrado às cortes dos reis da França do Antigo
Regime, entre Francisco I e Luís XIV, publicado no livro A sociedade de
corte, Norbert Elias (2001, p. 219) chama a atenção para o fato de que as
pessoas, em pleno século XX, ainda se referiam ao absolutismo como “se a
concentração de poder nas mãos de governantes centrais se explicasse, em
cada país, a partir dos grandes feitos de determinados reis ou príncipes”.
Para a análise sociológica da realeza, importava a apreensão das nuances
do convívio social entre o rei, os nobres e os súditos. A formação das interdependências, figurações e processos, lembra Roger Chartier (2001, p.
11), inscrevia a corte como figura central tanto da constituição do Estado
como de um processo civilizador que transformava a economia psíquica
dos indivíduos.
Aproximadamente cinquenta anos após – entre 1980 e 1981 –, no
estudo do livro Utopia (2014, p. 47), de Thomas More, realizado no âmbito de um programa coletivo de pesquisa da Universidade de Bielefeld,
Elias assinala a importância nas cortes europeias de uma literatura sob o
signo do absolutismo. Por conseguinte, reconhece O príncipe como sendo
a expressão de um momento em que “les chances des princes de détenir le
pouvoir, comparées à celles des différents ordres, s’accruent dans de nombreux États d’Europe”. Elias considera o livro de Maquiavel uma síntese
conceitual e lugar de observação da mudança na forma do Estado. Mas,
os usos puramente descritivos do termo absolutismo acabam, argumenta o
sociólogo, esquecendo que ele deriva de uma mudança estrutural rumo a
uma nova fase do desenvolvimento social europeu. Justamente essa nova
fase torna propícia a emergência de figuras fortes, capazes de tomar o poder
central nas próprias mãos. E mais, a mudança de rumo no desenvolvimento
europeu só se torna visível na medida em que os indivíduos se percebem
diante de novas experiências e novos problemas que demandam respostas
no âmbito das práticas e representações sociais. Desse modo,
Les experiences et problèmes nouveaux se manifest toutefois fréquemment dans l’émergence de nouveaux mots ou bien d’anciens mots qui
deviennent vecteurs de nouveaux concepts. Ce n’est absolument pas un
hasard si, à la même époque, le nouveau concept d’État, originaire d’ItaRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 47-64
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E SE NORBERT ELIAS FOSSE UM LEITOR DE MAQUIAVEL?
lie, commence à s’imposer dans les langues vernaculaires des différents
États européens (ELIAS, 2014, p. 47-48).
Ao situar a obra de Maquiavel no período de formação das cortes
europeias, Elias observa que o conceito lo stato, que se impôs em vários
locais e em diversas línguas, não foi apenas uma tradução do conceito
res publica, amplamente utilizado por aqueles que falavam latim. Para a
maioria falante das línguas vernáculas, tanto fazia se referir aos reinados,
aos principados ou às repúblicas. Lo stato traduzia a experiência social dos
homens de erudição, em um nível conceitual mais abstrato, mas também
dizia respeito à população em geral. Ambos estratos precisavam designar
o que se desenrolava sob seus olhos e causava não poucas mudanças nas
rotinas de vida, seja na forma de principados, reinados ou repúblicas. Elias
nos faz entender que lo stato é uma categoria elaborada simultaneamente
no pensamento e na experiência.
O crescimento do controle social dos governos tornava possível uma
nova figura de príncipe, que ia tomando distância, pouco a pouco, dos soberanos medievais. O novo dirigente comandava ofensivamente suas guerras, a
princípio com a ajuda do exército de mercenários, depois com a formação de
exércitos permanentes. Nas guerras contra os inimigos externos, as espadas
e as armas de cavalaria iam sendo postas de lado em proveito dos usos da
tecnologia militar das armas de fogo. Os exércitos nacionais comandados
pelos novos príncipes,
[...] autorisaient en même temps une surveillance plus étroite et complète de leur prope population. Ce nouveau type de prince fit d’abord
son apparition dans le cadre réduit des États italiens. Les Sforza, les
Borgia, les Médicis appartenaient à cette catégorie de princes. François
I de France et Henri VIII d’Angleterre, seigneur et maître de Thomas
More, en étaient les exemples les plus célèbres au début de l’époque de
l’absolutisme. (ELIAS, 2014, p. 49).
O enredo de O príncipe se desenvolve em 26 capítulos. Os 11 primeiros
são sobre os tipos de principados, os meios para conquistá-los, administrá-los
e precaver-se das perdas, realçando a discussão em relação à disparidade
de forças entre eles. Fica evidente um sistema de classificação e hierarquia
entre os tipos de governo. Mas há regras gerais para se tornar príncipe, seja
por meio da fortuna, a força cega das ocasiões e contingências, ou por meio
da virtude, a vontade de agir própria do indivíduo. A virtude pode transforRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 47-64
ANDRÉA BORGES LEÃO
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mar a fortuna em oportunidade. Nesse ponto, são evocados os atos cruéis
e as manobras de César Bórgia, o Duque Valentino. Visto na perspectiva
do presente, Bórgia é o exemplo mais convincente e a ser imitado pelos
aspirantes a novo príncipe.
Nos capítulos seguintes, com destaque para o XII e o XIII, são apresentados os métodos, ofensivos e defensivos, adotados por cada modelo de
soberano. Às leis devem sobrepor-se as armas. Maquiavel passa a criticar
as milícias. Na defesa do Estado contra as invasões estrangeiras, é preciso
dispor de um exército próprio, como o do Duque Valentino, e mover os
ataques com a ajuda dos súditos, cidadãos e vassalos, para que nenhum
príncipe se veja à mercê da fortuna, “não tendo virtude que o defenda com
fé nas adversidades”. Afinal, a guerra, com suas “disposições e disciplinas”,
é a única arte que se espera de quem comanda (MAQUIAVEL, 2010, p. 94).
A conexão narrativa entre os capítulos acaba colocando o problema
da política como “conflitualidade”, na feliz expressão de Cutinelli-Rendina
(2007, p. 99). As figurações do poder são pensadas como relações de força
sob a forma da guerra e nas quais sempre haverá vencedores e vencidos;
homens que comandam e os que obedecem; os que se esforçam para manter
o equilíbrio das coisas e os que querem tudo reverter. Assim, observa Maria
Tereza Sadek (2006), Maquiavel acaba desnaturalizando a ordem política,
que, a partir dele, não é mais vista como atributo de Deus ou da natureza.
A política torna-se produto da ação concreta dos homens na sociedade. No
capítulo XV, o narrador declara escrever coisas úteis e reais destinadas a
eventuais interessados. Ou melhor, os conselhos de inteligência prática do
livro tinham o propósito de orientar a ação do novo príncipe.
Na sequência, Maquiavel realça a importância dos fios que ligam os
soberanos a seus súditos. O observador político do Renascimento confirma
o modelo figuracional de Norbert Elias: as interdependências impõem limitações e obrigações mútuas de uns para com os outros. O príncipe teria que
enfrentar o problema de lidar com duas forças opostas, o povo e os soberanos.
Já os vínculos entre o príncipe e o povo, na medida em que todos os homens
são maus por natureza, deveriam ser firmados com base no equilíbrio entre
amor e punição. Maquiavel tem sempre em vista que é bem mais seguro a
um soberano ser temido que amado.
No capítulo XVIII, as virtudes de um príncipe ― coragem, astúcia,
prudência, habilidade e crueldade ―, assim como os defeitos a serem
evitados, não resultam de uma saga do bem contra o mal. Virtudes e vícios
formam uma codificação que, certamente, não foi inventada pelo autor, mas
pela sociedade de corte da qual fazia parte.
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E SE NORBERT ELIAS FOSSE UM LEITOR DE MAQUIAVEL?
Para que não percamos de vista a sequência da trama, vale destacar as
lições sobre as aparências. A representação pública das virtudes é o que as
torna úteis, na medida em que um príncipe deve voltar-se à direção em que
sopram os ventos da fortuna, imitando a natureza feroz do leão e a astúcia
da raposa. Maquiavel quer nos dizer que o uso da força contra os inimigos
e a galanteria a favor dos aliados, dependendo da ocasião, são impulsos e
tendências de um mesmo processo civilizador. Todos os homens, no fundo,
necessitam do controle físico e emocional de um novo príncipe. Tanto os
poderosos, pela ambição desmedida, quanto o povo, pela insolência e permanente ameaça de traição. No último capítulo de O príncipe, Maquiavel
conclama o “redentor” ao exercício de uma autoridade capaz de centralizar
territorialmente o poder e, com a formação de um exército nacional, monopolizar a violência física. Uma Itália unificada em grande reino assistiria à
gênese de uma nova ordem política.
Nesse ponto do processo civilizador, Elias (1993) verifica a emergência
do rito social da etiqueta em funcionamento nas cortes, locais de coexistência entre um maior número de pessoas. Os castelos isolados perdem o
sentido. Sob o olhar vigilante do rei e em meio a alianças e disputas mais
cerradas entre os indivíduos, a etiqueta garante o autocontrole das emoções,
conduzindo à pacificação. Aí, uma nobreza belicosa é substituída por outra
de conduta mais civilizada (ELIAS, 1993, p. 216).
O primeiro manual político do absolutismo, nas palavras de Elias,
teve a boa fortuna de ser escrito por um antigo conselheiro dos príncipes
que realizou diversas missões diplomáticas no exterior, ainda que estivesse
afastado de suas funções. Esse detalhe da biografia de Maquiavel nos permite dimensionar as condições sociais de produção do manual. Ao situá-lo
na cadeia dos impressos renascentistas, Anthony Grafton (2010, p. 31-32)
chama a atenção para a importância de outras abordagens sobre o mesmo
tema, como os estudos humanistas de Francesco Petrarca, Bartolomeo Sacchi detto il Platina e Francesco Patrizi. Este último escreveu Do reino e da
educação do rei, dedicado ao Papa Sisto IV. Todos eles, igualmente apoiados em exemplos tirados dos textos clássicos, discorrem sobre a educação
política dos príncipes italianos.
Os tratados de aconselhamento dedicados aos príncipes, segundo ainda
Quentin Skinner (1996, p. 138), conheceram seu apogeu no século XV, e
muitos dos humanistas ao redigi-los já tinham em mente “tal ou qual príncipe
em particular”. Um dos primeiros tratados a inaugurar o gênero “espelho
dos príncipes” foi o de Diomede Carafa, publicado em 1480, intitulado O
perfeito cortesão e dedicado ao governante da corte de Nápoles. Não se
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pode perder de vista a popuparidade de O livro do cortesão, de Baldesar
Castiglione, escrito entre 1513 a 1518, mas que só conheceria a sua primeira
edição dez anos após (SKINNER, 1996). Esse é um dos manuais do século
XVI eleito por Elias (1994).
CULTURAS DO IMPRESSO E CIVILIZAÇÃO
Desde a pesquisa para Sociedade de corte, nos anos de 1930, a grande
questão que acompanha Norbert Elias é saber por qual motivo o problema
do Estado, ainda que na esteira de Cícero e Platão, assumia o centro do interesse dos pensadores renascentistas. E a partir daí, tenta construir o modelo
teórico de um processo de civilização. Para Pierre Bourdieu, a grande questão formulada por Elias no âmbito da análise da constituição do Estado diz
respeito às dependências recíprocas nas relações de poder. Quanto mais um
indivíduo, como um rei ou príncipe, concentra o poder, maior e mais complexa
é a formação das redes de interdependência (BOURDIEU, 2012, p. 209).
No livro mais importante de Elias, O processo civilizador (1994),
vemos que o conceito de civilité tem sua gênese na cultura impressa renascentista e deve sua difusão à adoção pelas cortes europeias, a partir de 1530,
de um pequeno tratado intitulado De civilitate murum puerilium, de Erasmo
de Rotterdam. Os manuais tiveram a importância de cristalizar os processos
sociais em curso, difundindo a prescrição de modos de comportamento, a
adoção de maneiras de conduzir a vida na esfera pública e a sedimentação
de costumes para a boa educação dos nobres. A cultura que se afirma após
a invenção da imprensa por Gutenberg, em 1450, oferece a garantia de uma
duradoura conservação, nos objetos livros, das mais diferentes cópias dos
manuscritos. Para a compreensão dos efeitos sociais do manual de Maquiavel
não se pode perder de vista as intervenções póstumas, incluindo prováveis
revisões de sintaxe e conteúdo, de Antonio Blado nos originais do De principatibus, a começar pelo título.
Já o conceito precedente de courtoisie ilustra o padrão medieval das
normas sociais discutidas pelas ordens religiosas e pela nobreza guerreira
e ganha significação através das recomendações de boas maneiras tanto às
crianças quanto aos adultos, indistintamente. Através dos conceitos de courtoisie e civilité as classes dominantes deram expressão à sua autoimagem.
A unidade de comportamento medieval encontra-se em clara transição para
os padrões de decoro e emoções que ilustram o período da Renascença. Os
preceitos veiculados nos livros dos humanistas, porém, são rudimentares
em comparação com as etapas subsequentes.
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E SE NORBERT ELIAS FOSSE UM LEITOR DE MAQUIAVEL?
No primeiro volume de O processo civilizador, Elias (1994) faz
longos comentários sobre as recomendações e reprimendas dos antigos
tratados de civilidade, como a discussão sobre o lugar certo para jogar os
ossos roídos após as refeições, que não deveriam ser repostos nas travessas,
mas atirados ao chão. Usar a mão para limpar o nariz era prática costumeira,
devido à inexistência dos lenços. E, à mesa, não se deveria limpar o nariz
nas toalhas. O estudo dessas condutas, que geram a intimidade dos que
faziam o aprendizado da distinção, revela a correspondência entre os atos
mais banais do cotidiano e as redes de interdependências mais complexas
que iam sendo definidas.
A teoria do processo de civilização aponta para o desenvolvimento
conjunto do aparelho psíquico, a formação das instâncias do decoro e da
censura, e das cadeias de relações mais amplas formadas pelos indivíduos
na sociedade, a exemplo da constituição do Estado, órgão administrativo
detentor legítimo dos monopólios da violência física e dos tributos. A primeira dimensão, a psicogênese, e a segunda, a sociogênese, encontram-se
entrelaçadas. Os modelos do processo não podem ser apreendidos como
entidades abstratas, fora das dinâmicas concretas de cada experiência histórica
singular, razão pela qual Elias os localiza nos gestos e nas demonstrações de
afeto os mais desinteressados, desde as maneiras nos círculos de cortesãos
que gravitavam em torno dos senhores feudais, representadas pela courtoisie passando pelas mudanças de comportamento durante a Renascença,
as quais estão presentes no manual de Maquiavel e podem ser expressas no
conceito de civilité, até o período moderno, quando o conceito de civilização
se encontra por toda parte.
Certamente há passagens entre um estágio e outro, alguma equivalência
e transmissão nos usos e nas apropriações das formas sociais, até mesmo
permanências no tempo. O que prevalece é a propriedade, em maior ou
menor grau, de inibição das emoções individuais presente nas duas formas
de regulação da conduta.
Em vista disso, a civilização não supõe percursos uniformizados nem
mentalidades abstratas e comuns a um dado período da história. A civilização
funciona muito mais em termos de pertencimento a grupos ou a situações
sociais concretas.
No momento da centralização dos Estados e organização dos exércitos,
os intelectuais esforçavam-se para estetizar suas opiniões e transformá-las
em narrativas de conselhos aos governantes. Muitos dos humanistas não
conseguiam escapar das influências dos círculos da corte. Tornou-se célebre
o gênero “memória da corte”, como a arte de descrever as pessoas, tão bem
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ANDRÉA BORGES LEÃO
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praticada por Saint-Simon. Por sua vez, os cortesãos tinham uma marcada
compulsão por representar o bom gosto, e tudo o que se revestisse de valor
literário e artístico era decidido no círculo da nobreza. Uma ilustração dessa
dinâmica é a economia do desperdício, na qual o consumo de bens não era
de forma alguma guiado pela utilidade; apenas servia para a ostentação e a
garantia de prestígio. Na interpretação de Elias,
O cortesão representava-se primordialmente em suas palavras e em seus
atos ― atos de uma espécie característica. Seus livros, portanto, nada mais
eram que instrumentos diretos da vida social, passagens das conversas e dos
divertimentos em sociedade ou, como é o caso da maioria das memórias
de corte, conversas que foram impedidas; por um motivo qualquer, pela
ausência de um interlocutor apropriado. Desse modo, foi nos livros de
corte que se conservou para nós, diretamente e em bom estado, a atitude
que as pessoas adotavam em suas próprias vidas (ELIAS, 2001, p. 122).
Os atos da representação e da conversação são os momentos e os
lugares em que o poder assume toda a sua teatralidade. E isso nos traz de
volta ao ponto de partida da argumentação desenvolvida neste artigo, que é
relacionar a teoria da civilização ao opúsculo de Maquiavel. Evidentemente,
como uma obra publicada no século XVI, O príncipe foi apropriado pelas
cortes absolutistas do século XVII. Na França de Luís XIV, O príncipe
foi traduzido por Jacques Gohory, em 1571, e Amelot de la Houssaie, em
1682. Este último escreveu o Oraculo manuale que, do ponto de vista de
Elias (1993), foi o primeiro manual sobre a psicologia da corte, da mesma
maneira que o livro de Maquiavel sobre o príncipe foi o primeiro manual da
política absolutista. Considerando a distância temporal entre os modos de
apropriação – o da forma manuscrita, voltada para um público restrito, e o
da forma impressa, destinada a popularizar o livro espacial e temporalmente
–, o tradutor francês de Maquiavel orientou-se pelas convenções e gosto de
sua época; o que levanta uma série de questões. A mais importante delas
diz respeito às práticas da leitura e às mudanças nas interpretações, em cada
corte por onde circulava O príncipe.
Jean-Jacques Chevallier (1998, p. 46) nos conta, em maiores detalhes, sobre os destinos do “espelho dos príncipes”, que se tornou o livro de
cabeceira para muitos dos soberanos e primeiros-ministros, antes das apropriações modernas que faria dele Rousseau no Contrato social. Em 1641,
inspirado na leitura de O príncipe, Richelieu encomenda ao cônego Machon
uma Apologia de Maquiavel e, no mesmo ano, o bibliotecário de Mazarino,
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E SE NORBERT ELIAS FOSSE UM LEITOR DE MAQUIAVEL?
Gabriel Naudé, publica Considerações políticas sobre os golpes de Estado,
que é apontado como manual da educação do filho de Luís XIV. Anthony
Grafton (1997, p. 216), por sua vez, nos conta, que Alphonse d’Aragon tinha
o costume de convidar os escritores humanistas à sua corte para uma ore del
libro, a fim de ler e discutir passagens mais obscuras do Discurso sobre a
primeira década de Tito Lívio, outro famoso tratado de Nicolau Maquiavel.
As fontes selecionadas por Elias para a construção da teoria da civilização que representavam uma civilização do renascimento, no entanto,
foram organizadas em função de uma questão específica: as ligações de
interdependência entre a estrutura psíquica dos indivíduos e as formas de
organização social formam conjuntos de figurações variáveis ao longo da
história. De acordo com a estrutura da sociedade, há manuais de civilidade,
inclusive, que se cristianizam, travestindo as restrições da vida mundana
em moralidade religiosa, caso do livro Les régles de la bienséance et de la
civilité chrétienne, do padre La Salle. O jogo da civilização pode ter regras
fixas, mas suas rotas não são predeterminadas; definem-se pelo aprendizado
e pela assimilação, nem sempre conscientes ou voluntários, de todos esses
esquemas do comportamento.
A perspectiva adotada pela sociologia de Elias privilegia a análise das
estruturas sociais em movimento. Não por acaso, o problema da formulação
e controle do modelo de análise face às dinâmicas históricas atravessa a obra
do autor. Para a justa compreensão da figuração da corte, não basta partir do
estudo de um indivíduo, por maiores que tenham sido seus feitos e o poder
que porventura tenha monopolizado, mas da dinâmica das transformações
por que passou essa sociedade durante séculos. Indivíduo e posição social se
encontram presos na mesma teia de dependências. Para a devida explicação
do Estado absoluto, é necessária uma teoria da civilização capaz de conectar
o desenvolvimento dos aspectos psicogenéticos aos sociogenéticos.
O projeto sociológico de Elias diz respeito à investigação das posições
e das redes de pressões sociais que caracterizam as interdependências humanas. Num dado estágio do processo de civilização, o soberano altamente
dependente de seus súditos, presa dos cerimoniais da etiqueta, encena as
regras de civilidade como uma das exigências das mudanças na estrutura
das emoções, agora mais contidas, bem como do monopólio da violência
nos Estados em formação.
A pacificação das relações sociais também resulta desse processo e,
mais importante, origina a formação dos regimes políticos e, por fim, dos
Estados absolutistas. O psiquismo individual e a constituição das instâncias
políticas estão, na visão de Elias, irremediavelmente entrelaçados.
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ANDRÉA BORGES LEÃO
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Por isso, em comparação com os nossos padrões de comportamento,
os sentimentos e as condutas de um soberano aconselhado por Maquiavel
parecem terrivelmente assustadores. Um homem nessa posição não costumava
medir as consequências de seus atos, submetê-los a uma racionalidade ou
tomar medidas de prevenção. Em decorrência disso, o olhar retrospectivo
revela a crueza da agressividade de suas atitudes. Faltava ao cavaleiro maior
estruturação de seu autocontrole, uma capacidade de autodeterminação, o
que Elias chama claramente de superego.
No período medieval, era muito mais fácil para a nobreza resolver
os conflitos recorrendo às lutas sangrentas do corpo a corpo, ao rapto e
aos saques, visto que as instâncias exteriores reguladoras da violência e
da força física, como as instituições políticas, também não se encontravam
suficientemente maduras, quer dizer, centralizadas. Daí se conclui que,
assim como na vida em sociedade, as emoções humanas estão submetidas
a estágios de controle, e somente as experiências e o tempo podem levá-las
a uma maior diferenciação.
Os problemas entrevistos em O príncipe não escapam à teoria da
civilização. Resta saber o motivo pelo qual a teoria deixou de contemplar
a dinâmica política das relações de interdependência entre os indivíduos
e a coletividade no contexto de indefinições, cruezas e perplexidades das
ocupações estrangeiras e guerras italianas. As cortes italianas bem poderiam
ser mais um ponto de observação, além da gênese do Estado moderno, das
mudanças de normas sociais nas figurações humanas.
Ao longo desse período, o termo civilité comportava múltiplas significações. A astúcia com a qual se armava o príncipe imaginado por Maquiavel
só se efetivaria por meio de estratégias de autocontrole das pulsões e afetos.
Ora, os costumes e os sentimentos mais íntimos refletem as mudanças nas
balanças de poder. O termo civilité, remete a duas grandes referências da
época: à forma do regime político em vigor e ao estilo de vida que deveria
adotar um bom súdito de um principado ou a comunidade de cidadãos da
República. De um lado, o emprego da força na guerra de conquista, e, do
outro, a astúcia como prática da ação política de negociação poderiam
remeter à noção de civilité, inscrevendo O príncipe no vasto patrimônio
escrito da civilização.
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NOTAS
E SE NORBERT ELIAS FOSSE UM LEITOR DE MAQUIAVEL?
1 Este artigo resulta da comunicação apresentada na Sessão Especial
Os 500 anos de O príncipe. Reflexões sobre poder e violência, realizada
durante o XVI Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, 2013,
em Salvador/BA.
2 A respeito do que se passava na vida do autor durante a redação de O
príncipe, consultar, entre outros: Sadek, Maria Tereza. Nicolau Maquiavel:
o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtú. In: Weffort, Francisco (org.).
Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2006.
3 Esta carta é citada por Sadek (2006, p. 4) e Grafton (1997, p. 208).
4 A expressão “espelho dos príncipes” é utilizada por Hubert Prolongeau
(2010), para designar um gênero do impresso de uso popular nas cortes
italianas desde a Idade Média, os manuais de bom comportamento para
os dirigentes.
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ANDRÉA BORGES LEÃO
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Palavras-chave:
Sociologia histórica;
teoria da civilização; Norbert
Elias; Nicolau Maquiavel;
figurações do poder.
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RESUMO
O foco de interesse do artigo é situar O príncipe, de Nicolau Maquiavel,
na longa história que orienta o processo de civilização no Ocidente.
Partindo do contexto de produção e recepção do livro, a problemática
apontada entre poder e violência, contingências sociais e psiquismo
humano é reintroduzida na teoria do processo de civilização, de Norbert
Elias. Escrito de julho a dezembro de 1513, o manuscrito de O príncipe
passa a circular em 1514 e, após vários retoques, é publicado em 1532.
A partir daí, é traduzido por toda a Europa. Os conselhos de inteligência
prática que veicula tornam-se lugares de observação e inspiração dos
soberanos nas cortes absolutistas. No contexto de formação dos Estados
e monopólio da violência, O príncipe evoca o problema sociológico e
histórico comum às fontes usadas por Elias.
ABSTRACT
Keywords:
Historical sociology;
civilization theory; Norbert
Elias; Nicolau Maquiavel;
power figurations.
The focus of this article is to set The Prince, by Nicolau Maquiavel, in
the long history that guides the Western civilization process. The problematic between power and violence, social contingency and human
psychic is reintroduced in Norbert Elias’s civilization process theory
from the context of the book’s production and reception. Written from
June to December of 1513, The Prince manuscript starts to circulate in
1514 and after several retouches is published in 1532. From then on, it
is translated all through Europe. The practical intelligent advices that the
manuscript brings become the sovereign’s sources of observation and
inspiration in the absolutist’s courts. In the context of State formation
and violence monopoly, The Prince evokes the sociological and historical
issue common to the sources used by Elias.
Recebido para publicação em setembro/2014. Aceito em outubro/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 47-64
A dialética do desejo e o conflito no
republicanismo de Maquiavel
Marilde Loiola de Menezes
Doutora em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales
(EHESS), Paris-França. Fez pós-doutorado em Teoria e Filosofia da História,
Centre Louis-Gernet de Recherches Comparées sur les Sociétés Anciennes (CLGRCSA), na EHESS, Paris-França. É Diretora do Instituto de Ciência Política
da Universidade de Brasília.
Endereço eletrônico: [email protected]
INTRODUÇÃO
Claude Lefort é considerado um dos mais célebres leitores
de Maquiavel. Seus estudos sobre o autor convivem com a interpretação política hegemônica dos anos sessenta do século XX,
que, de forma simplificada, situava-se em torno de duas grandes
correntes: os marxistas e os weberianos.
Para os marxistas, os conflitos sociais da modernidade poderiam ser explicados através da história das relações de produção.
Para os weberianos, a modernidade não poderia ser analisada somente pela instância econômica visto que outros fatores culturais,
religiosos não podem ser negligenciados da análise histórico-social.
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A DIALÉTICA DO DESEJO E O CONFLITO NO REPUBLICANISMO DE MAQUIAVEL
Nesse universo intelectual, Lefort extrai da obra do autor florentino
a seguinte tese: longe de ser acidental ou contingencial para Maquiavel,
os conflitos sociais, o confronto de interesses e de valores irreconciliáveis
constituem-se os principais fundamentos da liberdade e da sociedade política.
Em Maquiavel, essa oposição irreconciliável identificada pelo desejo
dos Grandes de comandar e oprimir e o desejo do povo refratário à dominação
expressa o núcleo não decomposto, isto é, irredutível, da sociedade política.
Tendo como referência analítica a dialética do desejo, explorada por
Lefort nos Discorsi, este artigo demonstra que o sonho iluminista de uma
sociedade reconciliada, isenta de conflito, significaria, para Maquiavel, a
eliminação da liberdade e do jogo das forças sociais da sociedade política.
A VIRTÙ NA REPÚBLICA ROMANA
No prefácio dos Discorsi, Maquiavel adverte seus contemporâneos
quanto à necessidade de rever a política de “imitação dos Antigos”. Tal
imitação poderia ser encontrada em todos os domínios do conhecimento:
entre artistas, entre juristas, entre médicos. Mas, por outro lado, nos diz o
autor, quando se trata de servir de inspiração às instituições ou às condutas
políticas, tais princípios estariam completamente ausentes:
Com maior espanto ainda vejo que, nas causas que agitam os cidadãos
e nos males que afetam os homens, sempre se recorre aos conselhos dos
jurisconsultos pretéritos, as quais, codificadas, orientam os modernos
juristas. A própria medicina não passa da experiência dos médicos de
outros tempos, que ajudam os clínicos de hoje a fazer seus diagnósticos.
Contudo quando se trata de ordenar uma república, manter um Estado,
governar um reino, comandar exércitos e administrar a guerra, ou de
distribuir justiça aos cidadãos, não se viu ainda um só príncipe, uma só
república, um só capitação ou cidadão, apoiar-se no exemplo da Antiguidade (MAQUIAVEL, 2000, p. 17).
Determinado a “salvar os homens desse erro” ao denunciar a impotência de seus contemporâneos no domínio da política e da guerra, Lefort
justifica a audácia do empreendimento maquiaveliano como uma indicação
do reconhecimento da virtù dos Antigos, circunscrita por Maquiavel no
modelo da República Romana (LEFORT, 1986, p. 465).
Tal como seus contemporâneos, Maquiavel ressalta as virtudes dos
antigos romanos e, ao mesmo tempo, destaca o vício que macula a Itália
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MARILDE LOIOLA DE MENEZES
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contemporânea. Mas, diferentemente da tradição humanista, Lefort sugere
que Maquiavel não se propõe simplesmente a lembrar aos homens de seu
tempo a experiência da Antiguidade da qual estariam se desviando. Ao
contrário, trata-se de reconstituir esse passado à luz da experiência da história
florentina do presente: “La tâche implique un va-et-vient constant entre le
pôle de la République Romaine et le pôle de la Republique Florentine, ou,
plus généralement, entre le pôle de l’Antiquité et le pôle de la Modernité.”
(LEFORT, 1986, p. 17)1.
Nessa perspectiva, Lefort analisa os Discorsi nos quais Maquiavel
realça a sabedoria dos legisladores romanos, a virtù de suas instituições e
de seus cidadãos, enaltecendo, ao mesmo tempo, a potência de seu império.
A história romana se desenrola de forma concatenada desde a fundação do
Estado, passando pelas condições nas quais se forma a cidade, bem como
pelos motivos que levaram os homens a se agrupar e a forjar uma organização
política. O Estado romano – quer seja considerado autóctone ou conquistado
por estrangeiros – se estabelece sob o signo da liberdade: “Il est certain,
nous dit l’auter, qu’elle connut d’emblée la liberté; et, qu’établie sur un sol
propice à sa croissance, elle acepta, em assumant le risque de la corruption,
de s’imposer les contraentes que firent sa force.”1 (LEFORT, 1986, p. 468).
Ao contrário, Florença, nascida sob a autoridade romana, se revela
marcada por sua servidão primitiva. Nesta linha divisória entre o benéfico
e o nefasto, o racional e o irracional, Maquiavel situa, de um lado, Roma
próxima aos reinados do Egito e, do outro, Florença ao lado de Alexandria,
que também carrega o estigma de sua tradição servil.
A análise das diferentes formas de governo e das características da
constituição de Roma confirma a hipótese de Lefort de que Maquiavel não
se afasta dos princípios nos quais se subscrevem os homens do seu tempo,
herdeiros e admiradores da tradição clássica. Assim, Maquiavel não se furta
a elogiar a excelência de Esparta e os méritos de Licurgo:
Feliz é a república à qual o destino outorga um legislador prudente, cujas
leis se combinam de modo a assegurar a tranquilidade de todos, sem
que seja necessário reformá-las. É o que se viu em Esparta, onde as leis
foram respeitadas durante oito séculos, sem alteração e sem desordens
perigosas. (MAQUIAVEL, 2000, p. 23).
Em relação a Roma, esta não poderia ser como Esparta, visto que as
leis foram surgindo gradualmente de acordo com os acontecimentos. Mas,
diz-nos Maquiavel, apesar de Roma não ter tido um legislador da estirpe de
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A DIALÉTICA DO DESEJO E O CONFLITO NO REPUBLICANISMO DE MAQUIAVEL
Licurgo, os accidenti provenientes da desunião que reinou entre o Senado
e o povo, por outro lado, foram determinantes na construção da República
Romana.
Assim, aquilo que fora obra de um sábio para Esparta, no caso da
constituição romana, se afirma na esteira dos acontecimentos gerados a partir
da desunião entre o Senado e o povo, ou do “conflito de classes” como quer
Claude Lefort.
A argumentação de Maquiavel, antes construída a partir do estudo
dos clássicos, tendo como modelo a constituição de Esparta, sofre uma importante inversão. O paradigma de um Estado harmonioso, sem discórdias,
como modelo de uma república ideal é confrontado com o êxito da República
romana cujo esplendor seria fruto da luta entre o povo e o Senado. A perfeição ou a virtù da República romana, acrescenta Lefort, estaria vinculada
aos accidenti provenientes da desunião entre Senado e plebe.
A República romana, retendo os cônsules e o Senado, representou a
mistura de duas das três formas de governo: a monarquia, a aristocracia e o
governo popular. Nas palavras de Maquiavel,
A sorte favoreceu Roma de tal modo que, embora tenha passado da
monarquia à aristocracia e ao governo popular, seguindo a degradação
provocada pelas causas que estudamos, o poder real não cedeu toda a sua
autoridade para os aristocratas, nem o poder destes foi todo transferido
para o povo. O equilíbrio dos três poderes fez assim com que nascesse
uma república perfeita. A fonte dessa perfeição, todavia, foi a desunião do
povo e do Senado, como demonstraremos amplamente nos dois capítulos
que se seguem. (MAQUIAVEL, 2000, p. 26).
Lefort constrói a tese de que, sob a esteira da teoria clássica – Aristóteles, Platão, Políbio –, Maquiavel redireciona o pensamento político,
considerando as relações que se estabelecem entre as formas de regime e
as classes sociais. Nesse sentido é que a desunião entre o povo e o Senado
teria sido a causa da grandeza e da liberdade da República romana:
[...] Ainsi s’ébauche une thèse toute nouvelle : il ya dans le désordre
même de quoi produire un ordre; les appétits de classe ne sont pas
nécessairement mauvais, puisque de leur entrechoc peut naître la puissance de la cité; l’histoire n’est pas seulement dégradation d’une bonne
forme primitive, puisqu’elle porte à titre de possible la création romaine
(LEFORT, 1986, p. 470).3
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MARILDE LOIOLA DE MENEZES
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A tese de Lefort nos leva, então, a reconhecer que os Discorsi representam a revolução filosófica de Maquiavel em relação ao pensamento
político clássico. A conclusão do autor é de que, ao analisar a história da virtù
de Roma, Maquiavel subverte os princípios do pensamento político clássico
através de um argumento que coloca às claras a relação que se estabelece
entre a lei, a liberdade e o poder.
OS DOIS HUMORES DA REPÚBLICA
Na primeira parte dos Discorsi, Maquiavel se interroga sobre as
condições objetivas que proporcionaram a criação de uma instituição considerada responsável pelo aperfeiçoamento do governo da república: os
tribunos romanos (MAQUIAVEL, 2000, p. 30).
A leitura de Maquiavel acerca desse acontecimento histórico não parece
fugir da metodologia adotada pelo conjunto da obra: reporta-se aos antigos,
lê os acontecimentos recentes e, na sequência, elabora as conclusões. Nessa
démarche, duas vertentes de análise se destacam: a busca pela verdade efetiva
das coisas e o exame da situação concreta das circunstâncias do tempo.
Para a literatura clássica, todos aqueles que estiverem no comando
do Estado e na promulgação das leis devem partir do princípio de que todos
os homens são maus, estando dispostos a agir com perversidade sempre
que a ocasião seja propícia. Se essa maldade se oculta durante um certo
tempo, isso se deve a alguma causa desconhecida, que a experiência ainda
não desvelou; mas o tempo – conhecido justamente como o pai da verdade
– vai manifestá-la.4
Tendo como objetivo a compreensão do papel dos tribunos na
República Romana, Maquiavel inicia sua argumentação descrevendo os
acontecimentos que se seguiram após a expulsão dos Tarquínios, cujo reino
se caracterizava pela concórdia entre o povo e o Senado. Durante o seu reinado, os nobres, “despojados do seu orgulho”, aceitavam, dentro dos limites
da pacificidade, a convivência com o povo, mesmo aquele de classes mais
modestas: “Esta aparente união durou, sem se saber o porquê, enquanto os
Tarquínios viveram. A nobreza, que os temia, tinha medo também de que
o povo, ofendido, dela se afastasse; por isso o tratava com moderação.”
(MAQUIAVEL, 2000, p. 29).
Entretanto, logo após o desaparecimento dos Tarquínios – responsáveis que eram pelos limites impostos aos aristocratas –, os nobres passam a
demonstrar soberba e desprezo em relação ao povo. Mediante o crescente
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A DIALÉTICA DO DESEJO E O CONFLITO NO REPUBLICANISMO DE MAQUIAVEL
dissenso e mesmo agressões entre o povo e o Senado, foi necessária a interferência de leis capazes de substituir o próprio Tarquínio em sua imensa
capacidade de promover a paz.
Contrariando o pensamento político clássico no qual o homem comum,
no estado natural – uma figura irracional, movido pelas paixões – antecede o
surgimento do Estado guiado pela justiça e pelas leis, Maquiavel identifica no
estado político a prova da intemperança do homem expressa não pelo comportamento bestial da foule mas pela postura insaciável da classe dominante.
Sob a explicação corriqueira de que, sendo o homem de “natureza”
perversa as leis seriam boas e oportunas, Lefort testemunha a indiferença de
Maquiavel face à imagem do “homem natural”. Isto é, do homem que não
teria ainda acesso ao estado político, como quer Políbio em suas explicações
sobre a origem da humanidade. Ao conceberem a maldade como constitutiva
da “natureza humana”, essas doutrinas subtraem todas as formas de conflitos
sociais. Sendo a lei considerada como obra da razão, esta seria refratária às
paixões e irracionalidades provenientes do povo:
C’est, nous donne-t-il à penser, dans l’espace de la société politique qu’il
convient d’interroger l’origine de la loi et, tout à la fois, les conditions
dans lesquelles elle se fait et se défait; c’est à connaître la tendance qui
port “naturellement” les Grands, dans la société, au déchaînement de
leurs appétits que nous pouvons entrevoir le lien entre la loi et le frein
mis à l’oppression (LEFORT, 1986, p. 473).5
Com efeito, ao falar da lei, Maquiavel não se refere ao cumprimento
de obrigações. Ao contrário, para ele, “todas as leis que protegem a liberdade nascem de sua desunião” (MAQUIAVEL, 2000, p. 33). A lei só se
torna indispensável diante da incapacidade dos aristocratas e plebeus de
salvaguardar a liberdade. Escreve o autor:
Em consequência, só depois dos distúrbios das contínuas reclamações
e dos perigos provocados pelos longos debates entre nobres e plebeus é
que se instituíram os tribunos, para a segurança do povo. A autoridade
desses novos magistrados foi cercada de tantas prerrogativas e prestígio
que puderam manter o equilíbrio entre o povo e o Senado, oferecendo
obstáculo às pretensões insolentes da nobreza (MAQUIAVEL, 2000, p. 29).
Assim, Maquiavel julga exemplar a criação dos tribunos pelas leis
romanas, atribuindo a essa importante instituição o mérito de impor os limites à insolência dos grandes logo nos primeiros anos da República romana.
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MARILDE LOIOLA DE MENEZES
71
Para Lefort, esta ordine – como os tribunos são nomeados – certamente
representa o produto de uma lei, mas não de uma lei comum: mais do que
isso, representa os fundamentos da constituição romana.
O esplendor da República Romana deve-se, assim, não ao talento
solitário de um legislador, mas à desunião entre o povo e o Senado. A
criação dos tribunos contribuiu para o aperfeiçoamento do governo e da
República Romana.
Essa é a razão pela qual Maquiavel refuta todas as críticas que
enquadram a República Romana como sendo tumultuada ou desordenada
– inferior a todos os outros governos da mesma espécie, salva apenas pelo
fato de que a sorte e a disciplina teriam contribuído para a manutenção do
poder de Roma. Por outro lado, suas frequentes desordens teriam tido como
consequências deixá-la completamente em ruínas:
Os que criticam as contínuas dissensões entre aristocratas e o povo
parecem desaprovar justamente as causas que asseguraram que fosse
conservada a liberdade de Roma, prestando mais atenção aos gritos e
rumores provocados por tais dissensões do que aos seus efeitos salutares. Não querem perceber que há em todas as Repúblicas duas fontes
de oposição: os interesses do povo e os da classe aristocrática. Todas
as leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião, como prova
o que aconteceu em Roma, onde, durante os trezentos anos e mais que
transcorreram entre os Tarquínios e os Gracos, as desordens havidas
produziram poucos exilados, e mais raramente ainda fizeram correr o
sangue (MAQUIAVEL, 2000, p. 31).
Tais dissensões não poderiam ser funestas a uma república que deu
inúmeros exemplos de virtude, de boa educação e de boas leis:
De fato, se se examinar com atenção o modo como tais desordens terminaram, ver-se-á que nunca provocaram o exílio, ou violências prejudiciais
ao bem público, mas que, ao contrário, fizeram nascer leis e regulamentos
favoráveis à liberdade de todos (MAQUIAVEL, 2000, p. 31).
A radicalidade do pensamento maquiaveliano poderia, no limite, ser
resumida na seguinte tese: Roma atingiu a perfeição graças à desunião entre a
plebe e o Senado. Diante de tal afirmação insólita, Lefort interroga-se: como
aceitar a ideia de que as virtudes romanas teriam como efeito a desunião dos
cidadãos, que os tumultos são a causa da liberdade, e que a boa educação
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A DIALÉTICA DO DESEJO E O CONFLITO NO REPUBLICANISMO DE MAQUIAVEL
e as boas leis florescem no seio de uma guerra civil? Como enfrentar os
sábios de Florença que repetem, de geração em geração, que o mal da cité
é proveniente da desunião de seus membros que deveriam se tratar como
irmãos? O que fazer quando estes afirmam que o Estado prospera quando
a virtude é honrada, quando reinam as boas maneiras, quando se mantém
respeito aos idosos e as boas leis são responsáveis pela educação do cidadão?
Na contramão dessa bela imagem do Estado, Maquiavel não acredita
que boas leis sejam forjadas por sábios iluminados. Ao contrário, o surgimento das leis estaria enraizado nos conflitos sociais. Maquiavel sugere
igualmente, diz-nos Lefort, que o elogio à união, típica do pensamento
conservador, seria decorrente da tentativa de esconder a divisão de classes.
A consolidação desse falso consenso levaria, necessariamente, à destruição
da liberdade romana.
Todos que condenam os tumultos da Roma Antiga desconhecem o
fato de que toda república detém, no seio de sua sociedade, dois humeurs
diferentes – um proveniente dos grandes, e outro proveniente do povo –,
e todas as leis que se fazem a favor da liberdade nascem, precisamente,
dessa divisão.
Ao exprimir o poder da lei, os tribunos tinham como objetivo proibir
a ocupação do poder por uma pessoa – quer seja príncipe ou oligarca – ao
mesmo tempo que mantinham o equilíbrio entre o povo e o Senado.
A tese de Lefort não somente assegura que, para Maquiavel, a desunione conduz Roma à perfeição, mas considera o conflito como fundamento
da sua liberdade.
A DIALÉTICA DO DESEJO
O republicanismo de Maquiavel nos ensina que, subjacente aos
fundamentos da lei e da liberdade, encontra-se a divisão des humeurs do
corpo político. Para Lefort, nos Discorsi, Maquiavel desfaz a ideia errônea
do consenso no interior da república ao mesmo tempo em que sublinha a
fecundidade da luta de classes: “O desejo que sentem os povos de ser livres
raramente prejudica a liberdade que nasce da opressão ou do temor de ser
oprimido” (MAQUIAVEL, p. 32).
Dissipa ainda a ilusão de que, na luta entre povo e Senado, os dois
adversários ocupam uma posição simétrica e que o conflito seja bon en
soi. Não deixa, igualmente, dúvidas de que um legislador, estando fora do
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MARILDE LOIOLA DE MENEZES
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conflito e “na adversidade da luta de classe”(LEFORT, 1986, p 476), possa
encontrar uma solução capaz de assegurar o entendimento e a paz no conjunto do corpo social.
Segundo Lefort, ao explicar as razões pelas quais não se pode classificar
o povo romano como “desordeiro”, Maquiavel “obriga” o leitor a abandonar
a posição de testemunha, juntando-se ao “partido do povo”.
No pensamento de Maquiavel, nos diz Lefort, a lei não poderia ser
pensada sob o signo da medida, nem colocada em uma instância do razoável
determinada a estabelecer limites aos apetites humanos. Ela deve expressar
os costumes e as ambições próprias de cada república e do imensurável
desejo de liberdade.
Ao discorrer sobre a desunião entre o povo e o Senado como a causa
fundadora da liberdade da República Romana, Maquiavel conclama: “Sejamos, portanto, avaros de críticas ao governo romano; atentemos para o fato
de que tudo o que de melhor produziu a república provém de uma boa causa,
o povo, desta forma, assegurou participação no governo. (MAQUIAVEL,
2000, p. 32).
Contudo, sendo os tribunos considerados os guardiões da liberdade
romana, a quem se deve confiar com mais segurança a defesa da liberdade:
aos aristocratas ou ao povo? Quais seriam aqueles que teriam mais motivos
para instigar desordens: os que querem adquirir ou os que querem conservar
o poder?
As interrogações de Maquiavel são interpretadas por Lefort como se
o autor estivesse diante de duas teses igualmente convincentes: uma de inspiração aristocrática e outra de inspiração democrática. Ao longo da leitura,
a postura de neutralidade se desfaz e a posição de Maquiavel revelar-se-ia
crítica em relação à via aristocrática – ao mesmo tempo em que, a partir de
seus princípios, ele elege a tese democrática.
Assim, como em todos os Estados existem aristocratas e plebeus,
pode-se perguntar em que mãos a liberdade estaria melhor salvaguardada.
Tomando como exemplo os romanos, Maquiavel responde que se deve
sempre confiar um “depósito” a quem tem por ele menos avidez:
De fato, se considerarmos o objetivo da aristocracia e do povo, perceberemos na primeira a sede do domínio; no segundo, o desejo de não ser
degredado – portanto, uma vontade mais firme de viver em liberdade,
porque o povo pode bem menos do que os poderosos ter esperança de
usurpar a autoridade (MAQUIAVEL, 2000, p. 33).
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74
A DIALÉTICA DO DESEJO E O CONFLITO NO REPUBLICANISMO DE MAQUIAVEL
Desse modo, se os plebeus têm o encargo de zelar pela salvaguarda da
liberdade, é razoável esperar que o cumpram com menos avareza e, posto que
não poderiam apropriar-se do poder, não permitiriam que outros o fizessem.
Por outro lado, os defensores da ordem estabelecida em Esparta e
em Veneza consideram razoável satisfazer a ambição dos grandes diante
do perigo em delegar o poder ao povo, visto que, sendo este portador de
índole inquieta, poderia provocar dissensões e distúrbios capazes de levar
a nobreza a algum “gesto de desespero”.
Resumo do debate: à pergunta inicial se a liberdade é mais ameaçada
por aqueles que querem adquirir do que por aqueles que não querem perder o poder, Maquiavel responde que em ambas as situações, desejo pode
se converter em paixão perigosa, excitando práticas comuns de violência.
Para Maquiavel, conservar ou adquirir o poder seriam duas faces da
mesma moeda: sendo o desejo dos Grandes insaciável, quanto mais possuem
mais têm sede de poder. E o que é mais funesto: a ambição desenfreada dos
grandes acenderia no povo o desejo de posse: seja como vingança, para
despojar os inimigos, seja para compartilhar as honrarias ou “fazendo uso
ilícito das riquezas” (MAQUIAVEL, 2000, p. 35).
Nessa perspectiva, a tese de inspiração aristocrática afirma-se em
torno de um equívoco: ao desejo dos grandes de conservar o poder estaria
subjacente o desejo de aumentar o poder, posto que este seria insaciável.
Trata-se de uma falsa questão e, portanto, o desejo de adquirir não seria
produto da miséria do povo, mas sim relacionado ao prazer, sem limites, da
possessão, do poder e do prestígio dos grandes.
Maquiavel aponta, assim, a mistificação alimentada pelos conservadores cuja habilidade é fazer crer que são os defensores insuspeitos da
paz civil. Suas teorias advertem: por ser o homem naturalmente mal, cujos
apetites devem ser reprimidos, o pensamento conservador encobre – enfatiza
Lefort – a divisão de classes, deslocando o foco para uma falsa dicotomia
entre a essência do homem e a essência da lei.
A falsa divisão entre os grandes e o povo sustenta, por outro lado, que
os homens cujos apetites estão satisfeitos estariam “naturalmente” ligados
à defesa da ordem e da lei, razão pela qual os grandes seriam considerados
os guardiões da lei e da paz civil.
“Machiavel leur oppose en substance que la nature se déchiffre dans la
société, que la violence de l’appétit est visible dans la conduite de ceux
qui dominent, q’ils sont naturellement portés à étendre leur puissance et
ne se soumettent à la loi que sous la contrainte» (LEFORT, 1986, p. 479).6
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Ao analisar a ligação comumente estabelecida entre a moderação
daqueles que são proprietários e a manutenção da ordem, Lefort parece abrir
a caixa de pandora maquiaveliana da tão propalada divisão de desejos. Ao
negar a existência de uma oposição entre o desejo de adquirir e o desejo de
conservar, admitindo que o medo de perder não se distingue da vontade de
adquirir (poder, bens, honrarias), Lefort aprofunda a análise em uma outra
divisão: ao ato de se reforçar o desejo de obter qualquer coisa – poder, bens,
honrarias –, tem-se como contrapartida o desejo de não ser oprimido. Tal
divisão deixa o desejo sob o signo do positivo e do negativo, em relação
à impossível conquista de seu objeto. Essa dialética do desejo presente na
leitura de Lefort comandaria, secretamente, a lógica dos Discorsi: “Machiavel
ne critique pas seulement la thèse des conservateurs; il établit la sienne sur
des prémisses qui sont incompatibles avec l’éthique démoratique vulgaire.”
(LEFORT, 1986, p. 479).7
Na interpretação de Lefort, ao expor a oposição entre o desejo de
conservar e o desejo de adquirir, Maquiavel estaria evidenciando a vontade
no pensamento conservador em dissimular as contradições constitutivas da
divisão de classes sociais.
A “teoria dos desejos” é ilustrada por Maquiavel através do exemplo
histórico de Esparta, representante dos antigos, e Veneza, representante dos
modernos.
Em princípio, Maquiavel enaltece as vantagens do modelo veneziano: diante de uma população pouco numerosa, teria sido bastante hábil na
exclusão do povo dos negócios públicos. Essa forma de governo nasceu e se
manteve sem distúrbios, posto que, originalmente, todos os habitantes foram
incluídos, de alguma forma, na rede de poder. Os que vieram posteriormente
encontraram o governo completamente organizado e sem possibilidade de
“instigar o tumulto”, visto que os governantes controlavam com pulso firme,
sem dar direito à população de ocupar qualquer cargo público que pudesse
lhe proporcionar a mínima autoridade.
Esparta – governada por um reino e um Senado –, com população pouco
numerosa, pôde igualmente viver durante muito tempo na mais completa
harmonia. Essa concórdia teve duas causas principais: a reduzida população,
que tornava possível o governo com poucos magistrados; e a rejeição aos
estrangeiros, impedindo que o número de habitantes ultrapassasse os limites
impostos pelos governantes.
Ao examinar os dois modelos, Maquiavel foge da “tentação” sobre
a escolha da melhor forma de governo, tão comum ao pensamento clássico
(Platão e Aristóteles). Está fora de questão a proposta de um regime ideal,
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A DIALÉTICA DO DESEJO E O CONFLITO NO REPUBLICANISMO DE MAQUIAVEL
em que crises, tensões e dissensos tendam a desaparecer. No seu projeto,
Maquiavel não tem dúvidas sobre as limitações inerentes a qualquer tomada de decisão: ao se remediar um inconveniente, o efeito dessa ação será
o surgimento de uma outra dificuldade a ser superada. Assim, diz o autor:
Assim, se quisermos um povo guerreiro e numeroso, que estenda o
domínio do Estado, será necessário imprimir-lhe um caráter tal que o
tornará difícil de governar; se se quer restringi-lo dentro dos limites
estreitos, ou mantê-lo desarmado a fim de melhor governa-lo, ele poderá
conservar suas conquistas, ou se tornará tão covarde que será presa fácil
do primeiro agressor (MAQUIAVEL, 2000, p. 38-39).
Dessa forma, a República romana jamais teria trilhado o seu caminho
de grandeza, caso não tivesse consentido o crescimento da população, arcando com as consequências da natural multiplicação das fontes de conflitos.
Maquiavel não explora a escolha da melhor cidade – se Esparta, Veneza ou Roma –, tampouco idealiza um modelo de sociedade alicerçada na
ideia platônica do “dever ser” ou das qualidades do “filósofo rei”. O exame
dos prós e dos contras deve apresentar a alternativa menos inconveniente
abraçando-a como a melhor, visto que jamais se encontrará algo que seja
perfeitamente puro, isento de quaisquer vícios ou perigos:8
Assim, se alguém quiser fundar uma república, deverá decidir se o seu
objetivo é como o de Roma, aumentar o império e o seu poder, ou, ao
contrário, mantê-los limitados dentro de justos limites. No primeiro caso,
seria preciso organizá-la como Roma, deixando as desordens e dissensões
gerais seguirem seu curso da maneira que pareça menos perigosa; sem
uma população importante, bem armada, nenhuma república poderá
jamais crescer (MAQUIAVEL, 2000, p. 39).
No segundo caso, poder-se-ia imitar a constituição de Esparta ou de
Veneza. Contudo, pondera Maquiavel, como para as repúblicas desse tipo “a
sede de crescimento é veneno”, o fundador do novo Estado deverá proibir
as conquistas com todos os meios ao seu alcance. Contrária à tradição das
duas cidades, a tese de Maquiavel é de que toda conquista de um Estado
fraco terminaria por arruiná-lo.
Esparta, após ter conquistado quase toda a Grécia, demonstrou, no
primeiro revés, a fraqueza dos fundamentos do seu poder; depois da
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revolta de Tebas provocada por Pelópidas, as outras cidades se levantaram, derrubando aquela república. Veneza também se tinha apossado
de uma grande parte da Itália, antes pela sua riqueza e política do que
pelas armas. Quando quis prová-las, perdeu, num só combate, todos os
Estados que possuía (MAQUIAVEL, 2000, p. 39).9
Para Maquiavel, a solução do dilema seria fundar uma república
escolhendo o “caminho mais honroso”, organizando-a de tal maneira que,
caso surja a necessidade de crescer, ela possa fazê-lo conservando suas
antigas conquistas.
Qualquer que seja a alternativa, torna-se impossível, diz-nos Lefort,
fundar uma república que, sob o pretexto da “raison d’etat”, se presta a
combater o desejo do povo. Os fundamentos da república não podem ser
assegurados sob o signo do equilíbrio, da segurança e da conservação: “Acho
que é preciso tolerar a discórdia que possa surgir entre o povo e o Senado,
considerando-a como um mal necessário para alcançar a grandeza romana”
(MAQUIAVEL, 2000, p. 40).
De uma maneira mais formal, a tese de Lefort poderá ser assim
anunciada: para Maquiavel, a existência de um poder político pressupõe
igualmente a existência de uma oposição irreconciliável – entre dois desejos – que divide a sociedade em duas classes: o desejo dos grandes, cujo
ímpeto é comandar e oprimir, e o desejo do povo refratário à dominação.
A oposição desses dois desejos constitui o núcleo não decomposto, isto é,
irredutível, da sociedade política.
Assim, para Lefort, no modelo político de Maquiavel, o poder extrai
a sua existência e sua razão de ser do interior do conflito que divide a sociedade em classes sociais. Ao contrário, se o conflito de classes em torno
da dominação não existisse, essa seria a prova contundente da inexistência
de qualquer poder.
Colocado nesses termos, o problema político se situa em torno de
duas soluções possíveis: o poder se identifica com uma pessoa à qual toda
a sociedade se encontra subordinada – trata-se do poder do príncipe, da
monarquia; - ou, por outro lado, o poder é anônimo, proveniente da lei. Esse
é o caso da república ou, nos termos de Maquiavel, essa é a base constitutiva
da própria liberdade.
A distinção entre esses dois regimes encontra-se exatamente nos
dispositivos que normatizam o “conflito de classe” (Lefort). No primeiro, a
dominação dos grandes em relação ao povo é substituída pela dominação
do Príncipe sobre as duas classes. Sendo a república o regime da liberdade,
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A DIALÉTICA DO DESEJO E O CONFLITO NO REPUBLICANISMO DE MAQUIAVEL
o conflito de classes é equacionado de tal forma que ninguém se sujeita a
outra pessoa:
Machiavel le dit san ambages, que les uns désirent commander et
opprimer e les autres ne l’être pas. Leur existence ne se determine que
dans cette relation essenctielle, dans le heurt de deux “appétits”, para
principe, également “insatiables”. Ainsi, à l’origine du pouvoir princier,
et sous-jacente à celui-ci une fois que’il s’est établi se trouve le conflit
de classe (LEFORT, 1986, p. 382).10
Lefort deixa clara a irredutibilidade do conflito social, bem como
a impossibilidade de o Estado conduzir, harmonicamente, o conjunto da
sociedade. Tal com Marx, localiza a esfera política no mesmo patamar do
conflito de classe. Mas, ao contrário do autor de O Capital, Maquiavel não
sustenta que tal oposição não possa ser contornada. A origem desse conflito
não pode ser resumida à desigualdade de riqueza e de poder (Marx), tampouco ao primado da cultura, da política, da religião, do direito (Weber).
No republicanismo de Maquiavel, os regimes políticos são marcados
pelas contradições que resultam da oposição natural entre interesses e desejos
díspares. Nesses termos, a crise é constitutiva da vida política e o reflexo das
desordens faz nascer leis e regulamentos favoráveis à liberdade de todos.
Para Maquiavel, conclui Lefort, o regime de liberdade é a expressão
de diferentes aspirações, posições e consenso, resultante do conflito de classe,
do jogo das forças sociais organizadas.
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MARILDE LOIOLA DE MENEZES
NOTAS
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1 “A tarefa implica um vai e vem constante entre o polo da República romana
e o polo da República florentina, ou, de uma maneira mais abrangente,
entre o polo da Antiguidade e o da Modernidade.” (Tradução da autora).
2 “É certo, nos diz o autor, que ela (Roma) conheceu imediatamente a
liberdade; e, que estabelecida sobre um solo propício ao seu crescimento,
aceita, assumindo o risco da corrupção, se impor às restrições que fazem
a sua força.” (Tradução da autora).
3 “Assim se esboça uma tese integralmente nova: há no interior da desordem os elementos para se produzir a ordem; os apetites de classe não
são necessariamente maus, vez que no seio de seu embate pode nascer a
potência da cidade; a história não é somente de degradação de uma boa
forma primitiva, uma vez que ela se expressa, de forma justa, a possibilidade de criação romana.” (Tradução da autora).
4 Essa ideia é, inclusive, bastante desenvolvida em O Príncipe, de Maquiavel.
5 “Isso nos faz pensar que é o seio da sociedade política o local adequado
para se interrogar sobre a origem da lei, bem como sobre as condições sob
as quais ela se faz e se desfaz; é através do conhecimento da tendência
atribuída naturalmente aos Grandes na sociedade, na violência de seus
apetites, que poderemos entrever a ligação entre a lei e o freio colocado
na opressão.” (Tradução da autora).
6 “Maquiavel se opõe a eles (os conservadores) de forma substantiva,
argumentando que a natureza se decifra no seio da sociedade; que a violência de apetites é visível na conduta daqueles que dominam; que eles
são naturalmente levados a agir com violência e a não se submeterem à
lei que se lhes pareça prejudicial”. (Tradução da autora).
7 “Maquiavel não critica somente a tese dos conservadores; ele estabelece
a sua tese sob premissas que são incompatíveis com a ética democrática
comum.” (Tradução da autora).
8 Esse princípio metodológico de Maquiavel fica mais explícito no capítulo
XV de O Príncipe: “Porém, sendo a minha intenção escrever coisas que
sejam úteis a quem se interesse, pareceu-me mais conveniente ir direto
à verdade efetiva das coisas que à imaginação em torno delas” (p. 97).
9 Lefort destaca aqui a enorme contradição de Maquiavel quando este
elogia a estabilidade de 800 anos de regime espartano e, ao mesmo tempo,
demonstra a fraqueza do referido regime (LEFORT, 1972, p. 481).
10 “Maquiavel diz, sem embaraços, que uns desejam comandar e outros
não querem se deixar ser comandados ou oprimidos. A existência de ambos
se determina nessa relação essencial, isto é, no vigor de dois apetites, por
principio, igualmente insaciáveis. Assim, na origem do poder do príncipe,
e subjacente a esse poder, uma vez que se estabelece, encontra-se o conflito
de classes.” (Tradução da autora).
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BIBLIOGRAFIA
A DIALÉTICA DO DESEJO E O CONFLITO NO REPUBLICANISMO DE MAQUIAVEL
LEFORT, Claude (1986). Le travail de l’oeuvre Machiavel. Paris: Gallimard.
LEFORT, Claude (1980). “Préface”, em MACHIAVEL, Nicolas. Discours
sur la première décade de Tite-Live. Traduit de l’Italien par Toussaint
Guiraudet. Paris: Bibliothèque Berger-Levrant, Collection Stratégies.
LEFORT, Claude (1999). Desafios da escrita política. São Paulo: Discurso Editorial.
LEFORT, Claude (1986). Essais sur le politique. Paris: Éditions du Seuil.
MACHIAVEL (1952). Oeuvres complètes. Paris: Gallimard.
MAQUIAVEL (2000). Comentários sobre a primeira década de Tito
Lívio. Editora da Universidade de Brasília, 4ª edição.
MAQUIAVEL, Nicolau (2010). O Príncipe. São Paulo: Companhia das
Letras / Penguin Companhia.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 65-81
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MARILDE LOIOLA DE MENEZES
Palavras-chave:
Maquiavel, Lefort, poder,
república.
Resumo
Em Maquiavel, há uma oposição irreconciliável identificada
pelo desejo dos grandes de comandar e oprimir e o desejo
do povo refratário à dominação. Tendo como referência
analítica a dialética do desejo explorada por Lefort nos
Discorsi, o artigo demonstra que o sonho iluminista de
uma sociedade reconciliada, isenta de conflito, significaria,
para Maquiavel, a eliminação da liberdade e do jogo das
forças sociais da sociedade política.
Abstract
Keywords:
Maquiavel, Lefort,
power, republic.
In Maquiavelli there exists an irreconcilable opposition
between the desires of the powerful to rule and the people
to avoid oppression. Having as reference the dialects of
desire put forward by Claude Lefort’ readings of Maquiavelli’s Discorsi , the article argues that the dream of
enlightenment about a society without conflict would mean
for Machiavelli the end of freedom and disputes among
social forces in political society.
Recebido para publicação em setembro/2014. Aceito em outubro/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 65-81
Maquiavel na soleira da modernidade
Paulo Nascimento
Professor do Instituto de Ciência Política, da Universidade de Brasília (UnB).
Doutor em Ciência Política pela Columbia University, Nova York (2002).
Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Áreas de
interesse: teoria política clássica e moderna, nacionalismo e identidade nacional.
Coordenador de estudos sobre identidade nacional do grupo de pesquisa CIVES
(Conceitos, Identidades e Valores Políticos) do Instituto de Ciência Política
da UnB. Organizador da coletânea Hannah Arendt: Filosofia ou Política?
(São Paulo: Annablume, 2010) e autor do artigo “Dilemas do nacionalismo“
(Revista Brasileira de Informação Bibliográfica, SP, 56, 2/2003 p. 3-124).
Endereço eletrônico: [email protected]
Martin Adamec
Professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutor em Ciência
Política pela Universidade de Brasília (UnB / 2014) e membro do grupo de
pesquisa CIVES (Conceitos, Identidades e Valores Políticos), do Instituto de
Ciência Política da Universidade de Brasília.
Endereço eletrônico: [email protected]
O propósito deste artigo é discutir o caráter e significado modernos da obra e pensamento de Nicolau Maquiavel.
Atentando para dois de seus principais escritos, O Príncipe e os
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, buscaremos
identificar e interpretar pontos de contato e referência com um
dos paradigmas mais influentes nas ciências sociais do século
XX: a sociologia de Max Weber. O intuito é analisar em que
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 83-101
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MAQUIAVEL NA SOLEIRA DA MODERNIDADE
medida a modernidade e o Estado moderno, como tipos ideais, podem ser
contextualizados a partir da obra de Maquiavel.
Antes, entretanto, de aferir a modernidade ou não de sua obra segundo
um prisma contemporâneo, mostra-se essencial contrastar o pensamento de
Maquiavel com desenvolvimentos anteriores – antigos e medievais. Afinal,
apenas desse modo conseguiremos apreciar não apenas as rupturas, mas
também as continuidades que permeiam seus estudos políticos.
MAQUIAVEL: UM MODERNO DIANTE DOS ANTIGOS
A obra de Nicolau Maquiavel, com vistas ao seu contexto histórico,
pode ser enquadrada numa acepção de modernidade como devedora dos
clássicos. Seu teor humanista expressa admiração pelo passado, mas, ao
mesmo tempo, trai uma perspectiva de que, inspirando-se justamente nos
clássicos, ainda seria possível alcançar e, quiçá, superar a Antiguidade. Seu
tratamento da história como magistra vitae é exemplar dessa conjuntura:
deveria esta prover o governante de inspiração e exemplos a serem seguidos.
É também desse contexto, embora não de Maquiavel em si, que advém a
famosa referência aos anões sobre os ombros dos gigantes1.
Simultaneamente, contudo, a obra de Maquiavel é notável por operar
uma crucial ruptura com esses mesmos clássicos – não é à toa que o autor
é considerado o primeiro teórico político eminentemente moderno. Se
contrastarmos seu pensamento com a produção intelectual do medievo, a
diferença torna-se flagrante.
Maquiavel escreveu O Príncipe, sua obra mais referenciada, seguindo
um estilo literário peculiar, chamado de espelho dos príncipes. Sua origem
é comumente atribuída a Cícero, e seu intuito era fazer recomendações ao
bom governante, devendo este seguir preceitos morais positivos (MIGUEL,
2007). Utilizado por diversos pensadores ao longo dos séculos, um espelho
dos príncipes sempre enquadrava a ação política num contexto de busca
do bem comum e do aprimoramento da população sujeita aos governantes.
Como referido, isso seria possível apenas se os políticos possuíssem, eles
mesmos, em sua essência, boas características morais. Com o desenrolar da
Idade Média e a crescente influência da Igreja católica, pensadores e teólogos
afirmam a necessidade de orientar e gerir a sociedade com vistas à salvação
das almas da população, à fruição divina após a morte, o que seria possível
apenas se o próprio governante fosse um bom cristão.
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PAULO NASCIMENTO e MARTIN ADAMEC
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Um notável exemplo desse estilo é Do governo dos príncipes: ao rei
de Cipro. Nessa obra, São Tomás de Aquino adapta uma lógica aristotélica:
indivíduos racionais, viventes naturalmente em sociedade política, deveriam
ser governados por um único líder, dotado de bondade cristã essencial. Estabelece, assim, uma explícita ligação entre a atividade política e uma moral
religiosa, repercutindo na subordinação do Estado a uma ordem extraterrena.
Aquino vê o Estado como elemento crucial para possibilitar a fruição divina
pós-morte, tanto para o governante como para seus súditos. Sua visão de
bem comum se expressa justamente pela salvação divina. É com vistas a
esse fim último que se estabelece a preponderância da Igreja sobre o Estado
secular (AQUINO, 1956).
Nada mais distante do espelho dos príncipes de Maquiavel, O Príncipe.
Os indivíduos por ele descritos estão longe dos seres racionais, naturalmente
sociais e políticos, de Aristóteles ou Aquino. Portanto, o governante também
não poderia se dar ao luxo de ser necessariamente bondoso e agir sempre
buscando o bem comum e a fruição divina. A perspectiva de superioridade
da Igreja sobre os detentores de poder terreno nesse contexto é altamente
contestável – o que vale é o poder material de fato, não apenas palavras de
salvação (MIGUEL, 2007).
O diferencial da obra de Maquiavel torna-se claro em sua própria
abordagem metodológica da política. Longe de discutir um Estado idealizado, dando conselhos imbuídos de preceitos religiosos, ele afirma estudar
a veritá effettuale, ou seja, a realidade como ela é, e não como alguém
desejaria que fosse. A partir disso, uma vez que o Estado e os governantes
não têm mais finalidade extraterrena, a ação política deixa de ser julgada sob
uma perspectiva ética religiosa/transcendental, e passa a operar de acordo
com uma lógica própria, cada vez mais secular. É a autonomia da política
tornando-se cada vez mais manifesta.
Curiosamente, o afastamento que o autor opera não é total e absoluto,
apenas traz uma especialização da política e instrumentalização da religião.
A Igreja continua tendo seu poder legitimado, mas apenas à medida que
consegue mantê-lo também com bases materiais. A religião em si deixa de
ser a principal norteadora do convívio social e político, tornando-se apenas
mais um dos instrumentos a serem utilizados pelo príncipe para se manter
no poder. Tudo isso não deixa de ser um marco a caminho da secularização
do Estado, tão cara à modernidade.
Ou seja, é fundamental frisar o papel de Maquiavel como o primeiro
a tratar a política como algo autônomo, diferente e distinto da ética. “A
moralidade e a religião são ingredientes essenciais da política, mas como
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MAQUIAVEL NA SOLEIRA DA MODERNIDADE
instrumentos. [...] A política tem suas leis próprias, que o político ‘deve’
aplicar” (SARTORI, 1981, p. 162-163). Neste contexto, o que vale é o caráter
instrumental da política, notadamente numa expressão material; de nada
adiantaria o discurso ou a afirmação de se estar buscando alguma espécie
de “bem comum”. Para Maquiavel, o que importa são os meios materiais
que possibilitam a imposição da vontade do príncipe, ou seja, seu poder.
Afinal, “segue-se daí que todos os profetas armados vencem, enquanto os
desarmados se arruínam [...]” (MAQUIAVEL, 2001, p. 25).
Passemos agora a uma discussão preliminar da perspectiva teórica de
Max Weber, com o intuito de melhor compreender e situar a modernidade
do pensamento de Maquiavel em termos mais contemporâneos.
WEBER E A MODERNIDADE
Ao falarmos sobre modernidade em Weber, é essencial atentarmos,
antes de mais nada, para seus pressupostos teóricos basilares. Para compreendermos dada instituição, dada realidade social, é necessário antes
compreender a ação social que a engendra – uma ação orientada conforme
a conduta de outros, à qual o próprio agente confere sentido. O conceito de
sentido aqui se refere à compreensão subjetiva do agente no contexto da
ação, e, em última instância, também à sua própria motivação.
O indivíduo, de fato, mostra-se aqui o elemento fundamental, que
possibilita a compreensão das diferentes esferas sociais – econômica, política, religiosa, etc. Estas não existem e interagem a priori, por si sós, mas
apenas por intermédio dos indivíduos que, agindo e interagindo, conferem
subjetivamente a substância a cada uma delas. O “[...] agente individual
[...] é a única entidade em que os sentidos específicos dessas diferentes esferas de ação estão simultaneamente presentes e podem entrar em contato”
(COHN, 2008, p. 29).
Nesse contexto, Weber apresenta uma classificação típica das ações
individuais com vistas a seus sentidos e motivações. Assim, temos as ações
racionais com respeito a fins2, ações racionais com respeito a valores3,
ações tradicionais4 e ações afetivas5. A modernidade seria caracterizada
pela gradual predominância de um tipo de ação específica: a ação racional
com respeito a fins. O ocidente cristão estaria passando por um processo
cada vez mais agudo de “desencantamento”, caracterizado pelo gradual
abandono das interpretações de ação tradicionais ou com respeito a valores
(religiosos, notadamente), em detrimento de uma lógica instrumental, de
eficiência racional (ARON, 2008). Dessa forma, a lógica da modernidade
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estaria intimamente ligada à racionalização das ações individuais, em todos
os campos das relações humanas – inclusive o político. É justamente o meio
político, sua materialização por intermédio do Estado, que vai nos levar à
interface entre a análise weberiana e a de Maquiavel.
Uma vez que é a ação que define as estruturas sociais, nada mais
natural que a estrutura política ser caracterizada por uma ação também política. Essa ação, em Weber, está intimamente ligada ao exercício (ou busca)
de poder – não qualquer tipo de poder, mas o poder do Estado. Ou seja, ao
falarmos da esfera política no pensamento de Weber, estamos necessariamente
nos referindo ao Estado. Para o sociólogo alemão, Estado é, antes de tudo,
[...] um agrupamento de dominação que apresenta caráter institucional
e que procurou (com êxito) monopolizar, nos limites de um território, a
violência física legítima como instrumento de domínio e que, tendo esse
objetivo, reuniu nas mãos dos dirigentes os meios materiais de gestão
(WEBER, 1993, p. 62).
Sob essa perspectiva, a dominação é vista como uma forma específica
de poder, um poder legítimo, referente à obediência impreterível a ordens
e ordenações concretas. De uma forma ou de outra, constitui, em última
instância e como ultima ratio, a operacionalização da força física como
violência. Obviamente, o uso legítimo da violência não é o único meio à
disposição do Estado, mas sim aquele que lhe é peculiar (WEBER, 1993).
Em suma, um Estado, qualquer que seja, não passa de uma dominação
de caráter institucional. Esta dominação, vista como relação de mando e obediência legítima, para ter um mínimo grau de estabilidade e capacidade de se
perpetuar (institucionalizar), necessita de três elementos: uma liderança, um
estado maior administrativo (inclusos os meios de gestão) e uma população
sobre a qual a dominação é exercida. Apenas com base nas características
conjunturais e da dinâmica relacional desses três elementos é possível caracterizar um Estado e apontar em que medida ele é moderno ou não.
Ignorando, por ora, o papel do povo – uma vez que entra nestas
considerações apenas à medida que os indivíduos que o integram de fato
legitimam a estrutura de dominação vigente (o que, curiosamente, não deixa
de coadunar com as teorias contemporâneas da democracia) –, vamos nos
ater à liderança política e à administração.
Para além da constatação genérica de que qualquer líder político
necessita de uma dose de carisma para ascender ao comando estatal, fato é
que a conjuntura na qual ele o faz e a razão última que leva a população e a
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administração a obedecê-lo mudam significativamente ao longo da história.
Assim, mais uma vez, a modernidade seria caracterizada pelo abandono da
legitimação exclusivamente carismática ou tradicional, em prol da racional
legal. O líder ascende e exerce o poder político orientado por preceitos formais
bem delimitados. O critério de modernidade, portanto, seria a legalidade.
Antes de passar à interpretação maquiaveliana do Estado nos termos
propostos, acreditamos ser importante ressaltar a impossibilidade de se afirmar,
seja com base em Weber, seja com base em qualquer outro autor, a existência
de um único padrão de modernidade. No próprio cabedal weberiano, o convívio contínuo e a mescla entre diversos tipos de dominação (por extensão,
de Estados) se mostram não apenas possíveis, mas “normais”. Não se trata
de um processo evolutivo pelo qual uma forma suplanta a outra numa direção
predeterminada. Uma vez que não há “[...] uma linha unívoca nem um curso
objetivamente progressivo no interior da História [...]” (COHN, 2008, p. 12),
a própria modernidade não é um fim necessário, apenas um estado específico
alcançado por alguns países ocidentais à época de Weber. Do mesmo modo,
sua existência não implica uma sociedade plenamente “modernizada”. A
presença de formas de ação e dominação anteriores, mais antigas, é assim
“natural” e por vezes necessária à manutenção da ordem social em si.
Na passagem do século XV ao XVI, período de vida de Maquiavel,
o direcionamento da Europa à modernidade weberiana pode ser atestado ao
olharmos para a própria conjuntura geopolítica. França e Espanha dominavam o continente, sendo sua atuação de notável importância e eficiência,
inclusive no contexto italiano:
O diferencial das grandes potências da época era exatamente o grau
maior de unificação que haviam conseguido alcançar. Elas estavam
realizando a tarefa fundamental da construção do Estado moderno, que
era exatamente a centralização do poder – superando o modelo feudal,
no qual uma pirâmide frágil de relações de vassalagem era encabeçada
por um monarca com pouco domínio efetivo (MIGUEL, 2007, p. 14).
Invariavelmente, esse contexto marcaria profundamente a obra do
autor florentino. A preocupação com a unificação italiana fica explícita ao
longo de suas principais obras políticas.
Passamos, agora, a uma análise mais detalhada do corpo teórico
maquiaveliano, com o intuito de asseverar em que medida reflete não apenas uma preocupação com a centralização política italiana, mas também os
outros elementos da modernização weberiana.
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NATUREZA HUMANA E AS BASES DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA
A obra de Maquiavel – frequentemente interpretada com vistas unicamente à figura de um príncipe segundo a qual tem que manter o Estado a
qualquer custo, orientado pela lógica dos fins que justificam os meios – pode
ser, na realidade, interpretada em dois momentos distintos. Deve-se notar,
inclusive, que nenhum deles inclui a comumente referenciada ideia dos “fins
justificando os meios”; o máximo que pode ser retirado de uma análise mais
sistemática da obra de Maquiavel é que há certos fins que justificam certos
meios, e nada mais.
De qualquer forma, os dois momentos se referem às duas formas de
governo tipificadas por Maquiavel já no primeiro capítulo de sua mais conhecida obra, O Príncipe: “Todos os estados, todos os domínios que tiveram
e têm poder sobre os homens foram e são ou repúblicas ou principados.”
(MAQUIAVEL, 2001, p. 3). Assim, podemos apontar para um Maquiavel
mais conhecido, transformado em clichê, voltado à política principesca,
orientada pelo pragmatismo, ao abordar a natureza humana, mas sem esquecer-se de sua contraparte republicana, voltada à valorização da igualdade
e liberdade como valores fundamentais à boa vida em sociedade. Não se
trata, entretanto, de uma distinção entre uma visão empírica contraposta
a uma idealização em termos de dever-ser, mas sim de uma única visão
pragmática cujo fim é garantir a estabilidade e, por que não, um mínimo de
bem-estar à sociedade.
Para compreender essa ligação, é essencial apreendermos o elemento
básico que dá sustentação à digressão teórica de Maquiavel. Como bom
humanista, podemos inseri-lo no âmbito de uma cultura de revalorização do
papel do homem e seu livre arbítrio no universo em geral e na vida política
em particular. Afinal, nas palavras de Pico della Mirandola: “Deus dotou
o ser humano de uma gama enorme de possibilidades para que ele pudesse escolher entre se elevar até os céus, como os anjos, ou decair até uma
condição abjeta, como os animais mais primitivos.” (BIGNOTTO, 2007,
p. XXV). Dessa forma, em primeiro lugar, temos que compreender a visão
de Maquiavel acerca do ser humano e de sua natureza.
A natureza humana para o autor – apesar de ser frequentemente interpretada como essencialmente negativa, voltada à perfídia, traição e egoísmo
– pode ser expressa, na pior das hipóteses, como errática e aleatória, alçada
justamente na condição de livre arbítrio. Se, de um lado, os homens são “[...]
ingratos, volúveis, simulados e dissimulados [...]” (MAQUIAVEL, 2001,
p. 80), ao mesmo tempo “[...] os homens não são tão desonestos a ponto de
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oprimir-te dando tamanho exemplo de ingratidão” (MAQUIAVEL, 2001, p.
107). De fato, um príncipe deve, “[...] se quiser manter-se, aprender a poder
não ser bom e a se valer ou não disto segundo a necessidade.“ (MAQUIAVEL,
2001, p. 76). Do mesmo modo, “Raríssimas vezes os homens sabem ser de
todo maus ou de todo bons” (MAQUIAVEL, 2007, p. 89), como refere o
título do capítulo 27 dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.
Seria possível atribuir essas referências apenas à necessidade que o
príncipe de virtù tem de buscar e usar a bondade somente como instrumento,
em termos de aparência. Entretanto, se o príncipe tem de ser capaz de agir
de maneira boa, mesmo sendo mau, por que a recíproca não poderia ser
verdadeira, seguindo a referência a ele ter de saber também não ser bom?
Do mesmo modo, o título do capítulo 42 dos Discursos - “Da facilidade
de se corromperem os homens” (MAQUIAVEL, 2007, p. 131) - também
indica nessa direção: um homem tem de ser minimamente decente para ser
corrompido em primeiro lugar.
Assim, seria possível afirmar que o ser humano, dotado de livre arbítrio, tem a aptidão intrínseca de fazer tanto o mal quanto o bem. A afirmação
comumente negativa da dita natureza pode ser associada à necessidade do
julgamento e ação pragmática por parte do governante. Assim, por mais
que os homens raramente sejam totalmente maus ou totalmente bons, um
príncipe virtuoso não pode se dar ao luxo de esperar o melhor da natureza
humana. Pelo contrário, seria característico de sua virtuosidade se preparar
para o pior e, quiçá, ficar agradavelmente surpreso quando os homens agirem
de forma positiva.
De certo modo, essa instabilidade da natureza humana é tida como
uma constante ao longo da história. “Quem considere as coisas presentes e
as antigas verá facilmente que são sempre os mesmos os desejos e os humores em todas as cidades e em todos os povos, e que eles sempre existiram.”
(MAQUIAVEL, 2007, p. 121). Entretanto, esses humores que integram
a natureza humana não são necessariamente idênticos e homogêneos em
todos os homens. É possível apontar duas tendências, vontades, associadas
aos seres humanos viventes em sociedade. Falamos aqui sobre os contínuos
conflitos entre dois estratos sociais específicos – os grandes e o povo6. Esses
estratos sociais entram nas considerações sobre a ordem na sociedade, desde
a Antiguidade clássica, sendo o equilíbrio entre ricos e pobres essencial para
a paz e a tranquilidade sociais já em Aristóteles.7
A rigor, é a soma desses dois fatores – a aleatoriedade da natureza
humana e a existência dos dois humores dentro de qualquer sociedade – que
leva à necessária criação do Estado (SADEK, 2003). É possível, com inúmeras
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ressalvas, associar a perspectiva maquiavélica à lógica do contratualismo – a
natureza humana, quando deixada sem freios ou restrições, tende ao caos e à
desordem, situações estas impedidas apenas mediante o estabelecimento de
uma ordem estatal. Assim, no primeiro capítulo dos Discursos, Maquiavel
afirma que uma das modalidades de fundação de uma cidade (vista como
unidade política) é a união entre conterrâneos para fins práticos. Do mesmo
modo, mais adiante, afirma que, “quando falta o bom costume, a lei logo
se faz necessária” (MAQUIAVEL, 2007, p. 20). Contudo, as semelhanças
acabam por aí. A priori, não se estabelece aqui uma relação representativa
entre o governante e o povo, típica do contratualismo, sendo impensável a
própria concepção de um contrato calcado em direitos naturais positivados.
Com base na lógica segundo a qual o Estado surge para tentar controlar
uma natureza humana errática, podemos apontar para um dos pressupostos
fundamentais da obra maquiavélica: o Estado não é mais um produto da
natureza ou da vontade divina, mas sim resultante da ação intencional de
seres humanos. Sendo um produto do empenho humano, os meios utilizados
na sua criação e manutenção também são humanos. Deixam de ter um referencial transcendental e podem ser julgados e questionados como tais. Aqui
é curioso apontar para mais um traço do pensamento humanista presente
em Maquiavel, qual seja, a revalorização do pensamento político clássico,
afastando-se dos ideais e doutrinas medievais.
O Estado não é eterno, mas sim inserido numa realidade em contínua
transformação, buscando trazer um mínimo de estabilidade a uma conjuntura
errática. Maquiavel retoma, assim, o pensamento de historiadores romanos
como Políbio e Tito Lívio, para os quais é patente a existência de um ciclo
de degeneração e regeneração, que pode ser refreado justamente por uma
organização estatal específica. Voltando ao que foi explicitado no início,
Maquiavel vê duas possibilidades de organização estatal: o Principado e a
República – ambos seriam capazes de cumprir o papel de frear o caos descrito.
De um lado, um príncipe deveria agir de maneira virtuosa, utilizando
todos os instrumentos necessários e adequados para manter a estabilidade
dentro de seu Principado. De outro, o mesmo papel seria cumprido, numa
República, por leis e instituições capazes de canalizar os conflitos sociais.
É justamente por sua capacidade mais eficiente de se opor à degeneração
que a República é vista como superior nesse quesito. Enquanto o Principado
depende da capacidade de apenas um indivíduo, a República pode escolher
seus governantes de acordo com as necessidades, sendo assim capaz de se
opor de maneira mais flexível às intempéries da fortuna8 (MAQUIAVEL,
2007, p. 79).
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MAQUIAVEL NA SOLEIRA DA MODERNIDADE
A República abordada por Maquiavel segue de perto as teorizações
já apontadas de Políbio e Tito Lívio. Quando estes discorrem sobre o ciclo
degenerativo/regenerativo da história e sobre as possibilidades de refreá-lo
de alguma maneira, atestam o caráter pernicioso das seis formas clássicas
e simples de governo9 para tal. De fato, justamente por serem simples, não
se mostram estáveis o suficiente. Daí a necessidade de uma sétima forma, o
tão louvado “governo misto”. Este se apresenta como uma fortuita mistura
entre as três formas de governo “boas”, sendo naturalmente expresso pela
Roma republicana. Assim, Maquiavel usa este precedente para afirmar que a
República ideal para se opor às ditas intempéries da fortuna deveria seguir o
exemplo romano, “[...] porque, quando numa mesma cidade há principado,
optimates e governo popular, um toma conta do outro.” (MAQUIAVEL,
2007, p. 17). Surge aqui um curioso precedente à engenharia constitucional
operacionalizada por, entre outros, Montesquieu, no sentido de contrapor /
equilibrar um poder social em relação a outro.
Maquiavel não trabalha a relação entre Principado e República de
modo linear, por vezes dando a entender que sua instituição se deve ao arbítrio dos governantes e/ou do povo. Contudo, nem todos os contextos são
propícios à instauração de uma República. De fato, esta necessita de virtude
cívica, calcada na boa educação (intimamente relacionada à religião) e no
valor da liberdade:
De tudo que dissemos acima provém a dificuldade, ou a impossibilidade,
de nas cidades corrompidas manter ou criar uma república. Mas, em se
precisando criar ou manter uma, seria necessário, antes, reduzi-la ao estado
régio do que ao estado popular; para que os homens insolentes que não
pudessem ser corrigidos pelas leis fossem de algum modo freados por uma
autoridade quase régia. E torná-los bons por outros meios seria empresa
crudelíssima ou de todo impossível [...] (MAQUIAVEL, 2007, p. 76).
Isso explica, de certo modo, o capítulo 26 d’O Príncipe, clamando
pela “Exortação a tomar a Itália e libertá-la das mãos dos bárbaros”. Apesar
de a República ser mais estável e favorecer a vida em liberdade e igualdade,
existem contextos nos quais ela simplesmente não pode ser implementada.
Países nos quais o povo não está acostumado a obedecer leis fixas, canalizando seus conflitos de maneira institucional, mostram-se impróprios a um
regime republicano. Nas palavras do próprio Maquiavel, o ideal é, nesse
caso, instituir um Principado, com o fim de “domesticar” a natureza humana,
tornar os homens bons.
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Fato é, contudo, que o autor via a República como superior: “A salvação de uma república ou dum reino, portanto, não está em ter um príncipe
que governe com prudência enquanto vive, mas em ter um que ordene tudo
de tal modo que, embora morto, tudo se mantenha.” (MAQUIAVEL, 2007,
p. 52). “E isso só pode ser explicado por serem melhores os governos dos
povos que os dos príncipes.” (MAQUIAVEL, 2007, p. 171).
PRINCIPADOS E REPÚBLICAS: DE MAQUIAVEL A WEBER
A partir do disposto, tendo em vista uma organização política calcada na relação entre liderança, administração e povo, segundo as premissas
weberianas analisadas anteriormente, podemos apontar duas estruturas de
poder distintas na obra de Maquiavel: o Principado e a República.
A priori, o primeiro seria autocrático, dependendo exclusivamente
do arbítrio do governante. A efetividade dessa autocracia depende, contudo, do tipo de principado em questão. Notadamente os principados civis,
eclesiásticos e hereditários sujeitam o governante a controles legais ou tradicionais, se os analisarmos sob uma perspectiva de dominação weberiana
(MAQUIAVEL, 2001) – os civis, pelas normas que levaram o príncipe ao
poder em primeiro lugar; os eclesiásticos, pelas tradições e sacramentos
religiosos, e os hereditários, pelo valor da tradição em si.10
Outra referência aos tipos de Weber – especificamente os de administração patriarcal/patrimonial e estamental no âmbito de uma dominação
tradicional – pode ser feita se nos voltarmos à estruturação administrativa
do poder num principado. Maquiavel afirma:
[...] os principados dos quais se tem memória são governados de dois
modos diversos: ou por um príncipe de quem são servidores todos os
outros, que, na qualidade de ministros por sua graça ou concessão, o
ajudam a governar aquele reino, ou por um príncipe e barões que detêm
a sua posição não pela graça do senhor, mas pela antiguidade do sangue.
(MAQUIAVEL, 2001, p. 17).
De uma forma ou de outra, o governante deve ficar atento à ambição
e virtù de seus ministros e funcionários, “que serão bons ou maus de acordo
com sua prudência” (MAQUIAVEL, 2001, p. 111). Mesmo existindo barões
que detêm sua posição por direito próprio, continua cabendo exclusivamente
ao príncipe a forma pela qual se dará a relação de dominação.
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MAQUIAVEL NA SOLEIRA DA MODERNIDADE
Por sua vez, o povo tem um papel deveras interessante num principado.
Aparentemente, não passa de um objeto à mercê do príncipe e dos grandes,
esperando apenas não ser oprimido. Contudo, ao mesmo tempo, detém um
poder significativo, uma vez que é dele que o governante depende para se
manter. A lógica lembra a que Étienne de La Boétie utilizaria quase meio
século mais tarde, em sua obra Sobre a servidão voluntária11. O ponto central de sua obra é a discussão da legitimidade natural do poder de Estado.
Assim, qualquer tipo de Estado seria sustentado pela vontade dos governados, do povo. Não se trata de uma relação em termos de soberania popular
ou representação, mas da simples constatação de que, em última instância,
qualquer governo se mantém única e exclusivamente pela aquiescência da
população. A referida servidão voluntária se desenvolveria gradualmente,
ao longo da história, e seria mantida por diversas razões, como tradição,
hábitos, manipulação, embustes e engodos. Além disso, um governante se
manteria principalmente pelo caráter difuso de seu poder, graças à estrutura
administrativa (LA BOÉTIE, 2001).
Dessa forma, talvez com referência também às aptidões políticas do
povo numa República, Maquiavel recomenda ao príncipe não prejudicá-lo
ou ofendê-lo em demasia. “Portanto, a melhor fortaleza que existe é não ser
odiado pelo povo, porque ainda que tenhas fortalezas, se o povo te odiar,
elas não te salvarão, pois jamais faltam aos povos sublevados estrangeiros
que os auxiliem” (MAQUIAVEL, 2001, p. 103).
A ação política ligada a esse tipo de estrutura e exercício de poder
não pode deixar de ser expressamente pragmática. As orientações acerca
do agir virtuoso, ora como homem, ora como animal, sempre se adaptando
às circunstâncias e às expectativas do povo e de seus possíveis ou reais
oponentes, marcam esse caráter de maneira exemplar. É importante notar,
contudo, que isso não implica a já citada noção de que os fins justificam
os meios, geralmente direcionada à perspectiva de que qualquer coisa vale
para se manter no poder.
Para além do pragmatismo puro, Maquiavel estabelece certo padrão
moral para a ação do bom governante. Isso fica patente no capítulo VIII d’O
Príncipe, em que são descritos e avaliados os atos violentos como forma
de ascensão ao poder. “Não se pode propriamente chamar de virtù o fato de
assassinar seus concidadãos, trair os amigos, não ter fé, piedade nem religião.
Deste modo, pode-se adquirir poder, mas não a glória” (MAQUIAVEL, 2001,
p. 38). Ou seja, o padrão de referência para avaliar a ação do príncipe não
seria sua permanência no poder a qualquer custo, mas sim sua capacidade
de alcançar a glória (MIGUEL, 2007).
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Assim, alcançar a glória significa entrar para a história, estar entre
os grandes nomes que lideraram os homens ao longo dos séculos. A maior
glória, neste contexto, não estaria associada apenas a ações militares ou algo
do tipo, mas fundamentalmente à fundação de boas leis, como exemplifica
o próprio caso da ordenação de uma República.
Tendo por base as recomendações e os comentários de Maquiavel
acerca do funcionamento e das relações sociais num governo republicano,
podemos chegar à constatação de que uma República não passa de uma
espécie de príncipe coletivo. Enquanto no Principado a estrutura de poder
tende a um único ponto na figura de um só governante, na República há três
focos de poder em equilíbrio – de qualquer forma, ambos sujeitam-se às
mesmas regras de ação política discutidas n’O Príncipe e expandidas nos
Discursos. Existem inclusive, mesmo num regime republicano, figuras quase
principescas que se destacam por sua virtù e têm por móvel a conquista do
poder e da glória – a diferença, como dito, é que eles não governam sozinhos, mas são controlados pelos outros estratos sociais via instituições fixas.
O que marca esta distinção entre governo único e coletivo, em termos
institucionais, é a ordenação legal. Enquanto um Principado pode ou não ter
leis que controlem o príncipe, na República elas se mostram obrigatórias e
necessárias. As leis em si, como ora comentado, decorrem da necessidade
de se opor à natureza humana. O controle daí advindo, precário e instável
nas mãos de um príncipe, passa aqui a ter caráter e apoio institucionais. Uma
vez que “os homens nunca fazem bem algum, a não ser por necessidade
[...], são as leis que os tornam bons” (MAQUIAVEL, 2007, p. 20). Assim
também “[...] nada há que torne mais estável e firme uma república do que
ordená-la de tal modo que a alteração dos humores que a agitam encontre
via de desafogo ordenada pelas leis” (MAQUIAVEL, 2007, p. 33). Ou seja,
por ser a lei a melhor forma de compor uma coletividade humana e sendo a
República o governo das leis, esta se mostra mais uma vez como superior.
Essa estrutura legal mostra-se essencial se lembrarmos de que o propósito de um governo republicano é, para além da estabilidade, a garantia da
liberdade. Esta se apresenta aqui em termos clássicos, como expressão da
virtude cívica, do sacrifício do bem individual em nome da sobrevivência,
moral ou física, da coletividade.12
Neste sentido, se a virtude cívica é essencial para manter liberdade e
igualdade, podemos apontar para as características da administração. Assim
como existem conselheiros e ministros no principado, eles também existem
na república – inclusive, podem ser o próprio povo. Intimamente associada
à questão da igualdade está a impropriedade da administração estamental
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citada n’O Príncipe, uma vez que é perigosa à república a existência de
gentis-homens – ou seja, nobres com autonomia, poderes e recursos próprios, superiores aos cidadãos comuns. A essência da república e de sua
administração é a ideia de igualdade, estando a forma de administração
dos “grandes” mais ligada mais a preceitos aristocráticos (MAQUIAVEL,
2007). Além disso, a “arbitrariedade” na escolha dos funcionários ganha
uma operacionalização diferenciada na república. Enquanto o príncipe faz
uso de sua virtù para escolher os homens mais apropriados, numa República
essa escolha é feita com base em sorteios ou eleições. Ou seja, de um lado,
temos o estabelecimento de um sistema legal, que dá chances iguais a todos os cidadãos de fazerem parte da administração do Estado; de outro, os
funcionários continuam sendo escolhidos com base em critérios subjetivos,
mas, no lugar de um só julgamento principesco, há o julgamento de todo
um grupo, estamento ou de toda a sociedade.
Em suma, trata-se de uma organização coletivista, ordenada legalmente,
nos moldes dos exemplos clássicos exaltados por Maquiavel. O ideal seria
manter uma estrutura de poder com participação equilibrada entre muitos,
poucos e um só. Assim, o povo seria essencial ao bom funcionamento do
sistema, tendo a capacidade e obrigação legal tanto de eleger seus representantes como de censurar os outros dois estamentos.
É curioso notar que os preceitos que regem as relações entre os três
estamentos permanecem, de certo modo, semelhantes àqueles d’O Príncipe.
Assim, se de um lado os princípios de ação ligados ao governo republicano
são notadamente cívicos, garantindo e incentivando a liberdade e a igualdade, de outro não deixam de apresentar traços do bom e velho pragmatismo
maquiaveliano.
Contudo, não podemos esquecer alguns particulares do governo e da
vida republicanos que conferem uma operacionalização específica a esse
pragmatismo. Enquanto num principado somos levados mais à defesa da
estabilidade e à ordem social, na república as coisas se complicam um pouco,
direcionadas também à proteção e ao incentivo da liberdade e igualdade. Não
podemos esquecer que, onde o príncipe busca o bem particular, a república
busca o bem comum e, fundamentalmente, o incentivo à virtude cívica.
CONCLUSÃO
O presente artigo discorreu sobre as possíveis interpretações da
obra e do pensamento de Nicolau Maquiavel, no que tange à sua modernidade.
Mais especificamente, após identificar algumas rupturas por ele operadas no
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estudo da política (conferindo-lhe maior autonomia e concretude histórica),
buscamos compreender a forma pela qual sua abordagem “se encaixa” na
modernidade como apreendida por Max Weber.
A modernidade seria aqui caracterizada pela gradual predominância de
certo tipo de ação social – a racional com vistas a fins – em todas as esferas
da convivência humana. Nesse contexto, a ação racional para o desenvolvimento do Estado moderno se constitui um de seus principais marcos (ou
pelo menos aquele que nos interessa explicitamente no presente contexto).
O caráter moderno da organização política estaria alçado justamente na
centralização e racionalização do mando, da relação entre governantes, do
Estado maior administrativo e seus governados.
Sob essa perspectiva, a modernidade de Maquiavel se mostra apenas
incipiente. A centralização do poder político é vista como pré-requisito de
um Estado poderoso já há algum tempo, como o demonstram partes importantes de sua obra. Ou seja, nesse âmbito, seu pensamento reflete uma
prática geopolítica já consolidada e direcionada à constituição dos modernos
Estados-Nação.
Do ponto de vista da organização do mando político, é difícil falarmos sobre muito mais do que prenúncios de um Estado racional-legal. O
ideal republicano de Maquiavel é direcionado para a necessidade de “boas
leis”, mas essas se situam num contexto antigo, refletindo uma experiência
política ligada a Roma. Legalidade é uma coisa; racionalidade-legal, outra.
Quanto à relação entre o governante e seu Estado maior administrativo, podemos ver traços de uma dominação ainda tradicional. Mesmo
numa república, onde imperam as leis, a administração não é escolhida
necessariamente com base em suas qualificações profissionais – quando
não dependem da arbitrariedade do governante, dependem de “sorte” ou
de habilidades diversas para serem eleitos.
O próprio Weber encontra, no contexto histórico de Maquiavel, os
princípios da atividade política, que mais tarde se desenvolveria no funcionalismo público e na burocracia moderna. Contudo, mesmo existindo
conselheiros remunerados, estamos longe de uma organização hierárquica
voltada à eficiência que caracteriza a administração moderna.
Por fim, quanto aos princípios racionais que justificam a ação social, e
que fazem parte do conceito de modernidade weberiano, vemos que Maquiavel,
pelo menos em seu tratamento da ação política por parte dos governantes,
apresenta uma característica notadamente pragmática. Ou seja, temos uma
visão clara de que existem determinados fins que devem ser almejados de
determinados modos. Entretanto, não se trata necessariamente de uma lógica
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MAQUIAVEL NA SOLEIRA DA MODERNIDADE
racional através da qual se buscam meios mais eficientes para alcançar fins
específicos. Se compreendermos Maquiavel apenas sob uma perspectiva de
ação política voltada à manutenção no poder, talvez possamos chegar bem
perto dessa lógica. Entretanto, Maquiavel não vê a perpetuação do príncipe
no poder como justificável a qualquer custo – a glória mostra-se como um
fim mais notório que traz consigo uma perspectiva valorativa que se afasta
da racionalidade moderna.
Ou seja, podemos apontar claras rupturas direcionadas à modernidade
se contrastarmos o pensamento de Maquiavel com a Antiguidade e o Medievo. Entretanto, essas rupturas ainda não são suficientes para caracterizar
uma ação política racional num Estado moderno weberiano, ainda a alguns
séculos do grande pensador florentino.
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PAULO NASCIMENTO e MARTIN ADAMEC
NOTAS
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1 De fato, a referência mais citada é Bernardo de Chartres, filósofo francês
do século XII.
2 Ação instrumental, que busca os meios mais eficientes para alcançar
dado fim.
3 Ação orientada pela lealdade a valores (religiosos, políticos, artísticos
etc.) tidos por absolutos e inegociáveis.
4 Ação calcada na inércia, na obediência a padrões tidos como praticamente eternos.
5 Ação emocional, reativa.
6 “Pois, em todas as cidades, existem esses dois humores diversos que
nascem da seguinte razão: o povo não quer ser comandado nem oprimido
pelos grandes, enquanto os grandes desejam comandar e oprimir o povo
[...]“ (MAQUIAVEL, 2001, p. 43).
7 A Politia seria uma forma de governo que consegue intermediar as
relações entre ricos e pobres justamente na direção do convívio pacífico
e propício à tranquilidade social (BOBBIO, 1981).
8 A fortuna é, em conjunto com a virtù e a occasione, um dos principais
elementos da construção teórica de Maquiavel. Grosso modo, fortuna seria
o destino dos homens, sobre o qual não tem qualquer controle a priori, mas
que pode ser conquistado mediante a virtù. Esta seria, assim, a capacidade
humana do agir conjuntural, apreendendo o contexto e inspirando-se na
história para conquistar a fortuna. Por fim, a occasione seria o incentivo,
à possibilidade de se usar a virtù em primeiro lugar. Toda essa construção
reflete, afinal, a noção de livre arbítrio do ser humano, capaz de conquistar
seu próprio destino se assim o desejar.
9 Monarquia, tirania, aristocracia, oligarquia, democracia e oclocracia,
na divisão de Políbio (BOBBIO, 1994, p. 66).
10 Como refere Weber, um líder tradicional tem de se movimentar e
agir constrangido por uma série de normas imemoriais, as quais apenas
dificilmente serão modificadas. Por outro lado, aquilo que a tradição não
proíbe está permitido. “Saibam, portanto, os príncipes que se começa a
perder o estado quando se começa a transgredir as leis e a desrespeitar os
modos e costumes antigos [...]” (MAQUIAVEL, 2007, p. 318).
11 Há controvérsias sobre o ano exato no qual La Boétie teria escrito sua
obra (em torno de 1550). A primeira publicação, contudo, data de 1576.
12 Como afirmou o pensador florentino, “[...] são grandes os proveitos
colhidos pelas cidades e províncias que vivem livres em todos os lugares
[...]. Por esse motivo, os homens competem pelas vantagens públicas e
privadas, e ambas crescem maravilhosamente.” (MAQUIAVEL, 2007,
p. 191).
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PAULO NASCIMENTO e MARTIN ADAMEC
Palavras-chave:
Modernidade, racionalidade, ação social, natureza
humana.
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Resumo
O artigo discute a proximidade das ideias políticas de
Maquiavel com o pensamento moderno, por meio de uma
comparação entre a concepção do pensador florentino sobre
o Estado e a ação política, e a sociologia de Max Weber e
seus tipos de dominação. O artigo destaca ainda a importância que Maquiavel atribui a valores da Antiguidade clássica
como a glória, mas coloca-o na soleira da modernidade
pelo seu realismo e sua compreensão do poder.
Abstract
Keywords:
Modernity, rationality,
social action, human nature.
This article tries to gauge the proximity of Machiavelli’s
political ideas with those of modernity. In order to do that,
it compares Machiavelli’s thought on the state and political
action with Max Weber’s types of domination and human
action. While stressing Machiavelli’s attachment to values
of the classical world, such as the search for glory, the text
points out that his realism and understanding of power and
political action places him on the doorstep of modernity.
Recebido para publicação em setembro/2014. Aceito em dezembro/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 83-101
Hannah Arendt: uma leitora de
Maquiavel
Maria Francisca Pinheiro Coelho
Professora Titular do Departamento de Sociologia, da Universidade de Brasília. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do
Ceará, mestrado e doutorado em Sociologia, pela Universidade de Brasília;
e pós-doutorado na The New School for Social Research, em Nova York,
com pesquisa sobre Hannah Arendt. É autora do livro José Genoino: escolhas políticas (Centauro, 2007) e uma das organizadoras dos livros Política,
ciência e cultura em Max Weber (Universidade de Brasília, 2000); Política e
valores (Universidade de Brasília, 2000); Marx morreu: viva Marx! (Papirus,
1993), entre outros.
Endereço eletrônico: [email protected]
Whether the criterion is glory – the shining out in the space
of appearances – or whether the criterion is justice, that is
not the decisive thing. The decisive thing is whether your
own motivation is clear – for the world – or, for yourself,
by which I mean for your soul. That is the way Machiavelli
put it when he said, “I love my country, Florence, more
than I love my eternal salvation”. That doesn’t mean he
didn’t believe in an after-life. But it meant that the world
as such is of greater interest to me than myself, my physical
as well as my soul self.
Hannah Arendt1
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HANNAH ARENDT: UMA LEITORA DE MAQUIAVEL
O interesse pela obra de Hannah Arendt provém, comumente, de
sua reflexão sobre a política como o espaço da pluralidade e da liberdade.
Viver como ser distinto entre iguais constitui a premissa de seu pensamento
político. A pluralidade é a condição da ação humana “pelo fato de sermos
todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual
a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir” (ARENDT,
1987, p. 16).
E por ser a ação a atividade política por excelência, a esfera pública,
o espaço comum compartilhado, pressupõe a liberdade. O preceito da liberdade foi criado ao mesmo tempo em que o homem: “A liberdade, como
a capacidade interior do homem, equivale à capacidade de começar, do
mesmo modo que a liberdade política equivale a um espaço que permita o
movimento entre os homens” (1989a, p. 525).
A política é uma maneira ampliada de pensar: pensar com o outro e
no lugar de todos os outros. O poder corresponde à capacidade humana não
somente de agir, mas agir de comum acordo. A violência se distingue do poder
por ser uma ação instrumental e, por isso mesmo, precisa de justificativa.
Com base nesses conceitos, como explicar o interesse tão grande de
Hannah Arendt pela obra de Maquiavel e sua frequente interlocução com
o pensamento do autor? Como entender a conexão do pensamento de uma
autora tão preocupada com a dimensão libertária da política com Maquiavel, cuja compreensão da política se vincula à conquista e manutenção do
poder? O presente trabalho procura se reportar à recepção de Maquiavel
no pensamento de Hannah Arendt. A partir das referências de Arendt ao
autor e da interpretação de suas ideias, tenta-se aqui reconstruir os elos do
diálogo entre ambos.
Hannah Arendt foi uma exímia leitora de Maquiavel, como demonstram
seus cursos, livros e entrevistas (2013). Dentre os cursos de teoria política
que ministrou em diferentes universidades nos Estados Unidos, três deles
foram dedicados a Niccolò Machiavelli. Em 1955, em uma série de cursos
sobre “History of Political Theory”, na Universidade da Califórnia, em
Berkeley, no Departament of Poltical Science, um deles foi Machiavelli,
Niccolò – Lectures. Em 1961, na Wesleyan University, Middletown, Connecticut, ministrou Machiavelli, Niccolò – Seminar, cujo conteúdo abrangia
The Prince, The Discourses, The Letters, Florentine History e Mandragola,
praticamente o conjunto de sua obra. Nesse seminário, além dos escritos de
Maquiavel, foi incluída uma bibliografia complementar, Required Reading e
Recomended Reading, com uma lista de comentadores. Em 1965, ministrou
o curso From Machiavellito Marx, na Cornell University, Ithaca, New York,
no qual abordou questões relacionadas a poder, violência e esfera política.
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Nos livros de Hannah Arendt, destacam-se as referências a Maquiavel
em The Human Condition (1989b), publicado em 1958, e em On Revolution,
de 1963. A epígrafe deste artigo foi extraída da participação de Arendt na
conferência The Work of Hannah Arendt, em novembro de 1972, no Canadá, três anos antes de sua morte: “Hannah Arendt was invited to attend the
conference as the guest of honor, but replied that she would prefer to be
invited to participate” (HILL, 1979, 301).2 Durante os três dias do evento,
no curso de intenso intercâmbio, Arendt espontaneamente revelou aspectos
do seu pensamento, esclareceu dúvidas, respondeu questões, assim como
comentou pontos relativos aos papers apresentados.3
Para fins de edição de sua participação no seminário, foi organizado
um paper com o título Hannah Arendt on Hannah Arendt, publicado juntamente com os papers do evento no livro Hannah Arendt: The Recovery of
the Public World (1979). Esse ensaio biográfico é bastante elucidativo do
pensamento de Hannah Arendt, de suas motivações e opções pessoais. Parte
do ensaio é composta de perguntas e respostas, e outra, de depoimentos – um
deles, com o título Thinking and Acting (“Pensamento e ação”).
Nesse ensaio biográfico, Hannah Arendt refere-se algumas vezes a
Maquiavel. Ao retratá-lo por meio da expressão “Eu amo meu país, Florence,
mais do que a minha salvação eterna” quis demarcar a diferença estabelecida
por ele entre a esfera pública e a esfera privada. Desse modo, Maquiavel não
só delimitava o campo da autonomia da política, como também indicava
que essa não era a esfera para os que estavam preocupados com a salvação
da alma.
Contudo, o contexto de interlocução de Hannah Arendt com Maquiavel
também envolve, argui-se aqui, a própria orientação de Arendt como pensadora, ao expressar, nesse mesmo ensaio, sua motivação pessoal para a
atividade do pensamento e não da ação. A autora também sublinha o vínculo
indissolúvel entre as duas atividades. O pensamento está relacionado com a
experiência no mundo e não pode ser diferente: “Eu não acredito que possa
haver qualquer processo de pensamento sem experiência pessoal. Todo
pensamento é ‘re-pensado’: ele pensa depois da coisa.” (ARENDT, 1993,
p. 141). Porém, ao dedicar-se à atividade da compreensão, Arendt afirma
querer se ater à realidade factual, sem modelos a priori: “Eu quero focalizar
a política com os olhos, por assim dizer, depurados de qualquer filosofia”
(ibidem, p. 124).
Assume-se aqui que o diálogo de Hannah Arendt com o pensamento
de Maquiavel faz parte da própria reflexão da autora sobre seu posicionamento entre filosofia e política. Arendt expõe que sua motivação pessoal é
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HANNAH ARENDT: UMA LEITORA DE MAQUIAVEL
para a atividade do pensamento, mas essa atividade é indissociável de sua
experiência no mundo. Sua crítica à filosofia não é a atividade do pensamento, mas a separação dessa atividade do mundo, como se o pensamento
subsistisse sem a experiência.
Sua busca pela compreensão estava a serviço da objetividade do
conhecimento. Como escreve no prefácio à primeira edição de Origens do
totalitarismo, “Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar
deles o inaudito, ou, ao explicar fenômenos, utilizar-se de generalidades que
diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência” (1989a, p. 12).
Em síntese, compreender significa enfrentar a realidade sem preconceitos.
Maquiavel delimita a esfera da política e constrói o modelo do homem de ação, suas paixões, suas virtudes, sua ligação com o mundo, como
preocupações centrais da vida pública. Para destacar os elos da leitura de
Hannah Arendt de Maquiavel, este trabalho se concentra nos seguintes
tópicos: o conceito de foundation; as esferas pública e privada; política e
ação; pensamento e ação.
O CONCEITO DE FOUNDATION
Para Hannah Arendt, Maquiavel é o pai espiritual da revolução. A
questão da pobreza emerge quando os homens questionam a pobreza como
inerente à condição humana:
A secularização – a separação entre religião e política e o surgimento
de uma esfera secular com dignidade própria – é sem dúvida um fato
crucial no fenômeno da revolução. Na verdade, é bem possível que o
que chamamos revolução seja precisamente essa fase de transição que
resulta no nascimento de uma esfera nova, de tipo secular (2011, p. 53).
Em On Revolution, Hannah Arendt desenvolve uma reflexão sobre as
revoluções modernas, configuradas na Revolução Francesa e na Revolução
Americana. O uso do termo revolução no sentido moderno se aplica a essas
duas revoluções pelas suas características de ruptura com uma ordem institucional constituída e de criação de uma nova ordem, independentemente da
sobrevivência nessa nova ordem de elementos do passado, suas heranças e
processos históricos. Nesses movimentos, que se constituem pela luta contra
a opressão e em nome da liberdade, o uso da violência e a manifestação do
poder se confundem.
De acordo com a autora, dois são os elementos da revolução: a convergência entre a ideia de liberdade e a experiência de um novo começo. O
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conceito de foundation é utilizado para definir esse novo começo. No primeiro
capítulo do livro, “O significado da revolução”, Hannah Arendt reserva cinco
páginas para exemplificar como o sentido do conceito de foundation está
contido na compreensão de Maquiavel dos movimentos de unificação na
Itália, embora o sentido de fundação, para ele, fosse de rinovazione. A palavra
‘revolução’ também está ausente “naquele lugar em que mais tenderíamos
a pensar que se faria presente, a saber, a historiografia e a teoria política do
começo do Renascimento na Itália” (ARENDT, 2011, p. 65).
Para Arendt, o que define a grande pertinência de Maquiavel para
uma história da revolução, da qual ele foi um precursor, “é que ele foi o
primeiro a pensar a possibilidade de fundar um corpo político permanente,
constante e duradouro” (ibidem, p. 65). Segundo a autora, Maquiavel já estava
familiarizado com certos elementos marcantes que iriam estar presentes nas
revoluções modernas, como a conspiração, a luta de facções, a instigação
à violência, e acabam por desmoronar o corpo político, bem como as oportunidades que as revoluções criam para os que vêm de baixo e “se elevam
ao esplendor da esfera política, saem da insignificância e se erguem a um
poder a que antes estavam submetidos” (ibidem, p. 66).
No entanto, acrescenta Arendt, o mais importante em Maquiavel naquele
contexto das lutas de unificação da Itália foi o fato de ele ser o primeiro a
visualizar, de um âmbito exclusivamente secular, que as leis e princípios de
ação eram independentes das doutrinas, da Igreja em particular, e dos critérios
morais: “Era por isso que ele insistia que o homem que ingressava na política
devia primeiramente aprender a ‘não ser bom’, isto é, a não agir de acordo
com os preceitos cristãos” (ibidem, p. 66). O traço principal a diferenciá-lo
dos homens da revolução era seu conceito de ‘fundação’, que significava
“[...] a criação de um Itália unificada, de um Estado nacional italiano aos
moldes do exemplo francês e espanhol – entendida como rinovazione, e a
renovação era a única alterazione a salute, a única alteração saudável que
lhe era possível conceber” (ibidem, p. 66).
Arendt argumenta que o movimento de unificação da Itália não era
entendido por Maquiavel como o de fundação nos moldes que vai assumir no século XVIII, mas de renovazione, e que a renovação era a única
alteracione saudável que ele conseguia conceber. Nesse sentido, o pathos
revolucionário de um movimento específico do absolutamente novo era
estranho a Maquiavel. Mas, apesar disso, “ele não estava tão distante de
seus sucessores no século XVIII como poderia parecer” (ibidem, 66), pois
o pathos revolucionário de um início totalmente novo “nascia apenas no
decorrer do próprio acontecimento” (ibidem, p. 66).
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HANNAH ARENDT: UMA LEITORA DE MAQUIAVEL
De acordo com a autora, a maior tentação de deixar de lado a história da palavra e datar o fenômeno da revolução a partir do turbilhão nas
cidades-estado italiano durante o Renascimento surge com os escritos de
Maquiavel. A insistência de Maquiavel sobre o papel da violência no âmbito
da política nunca deixou de chocar seus leitores, mas isso ocorreu também
nas palavras e nas ações dos homens da Revolução Francesa.
A ênfase de Maquiavel sobre a violência era o resultado da dupla
perplexidade em que ele se encontrava teoricamente, e que mais tarde passou
a ser uma perplexidade muito concreta a assediar os homens da revolução.
Essa perplexidade, segundo Arendt, “consistia na tarefa da fundação, no estabelecimento de um novo início, que, enquanto tal, parecia exigir violência
e violação” (ibidem, p. 68).
Mesmo que o sentido de unificação das cidades-estado italianas não
incluísse o significado de algo novo, de início, a tarefa de fundação identificada com a função de unificação vinha acompanhada da tarefa de criar
e impor aos homens uma nova autoridade, que conseguisse ocupar o lugar
da velha autoridade absoluta, conferida por um Deus onipotente. Por isso,
“Maquiavel, inimigo jurado de qualquer consideração de ordem religiosa
nos assuntos políticos” (ibidem, p. 68), ao ser levado a procurar um novo
absoluto para substituir o absoluto do poder divino, vai apoiar-se no poder
da legislação.
Para Arendt, as reflexões de Maquiavel ultrapassavam em muito todas
as experiências concretas de sua época: “A nova palavra que Maquiavel
introduziu na teoria política, e que já era usada mesmo antes dele, foi ‘estado’, lostato” (ibidem, p. 69). Com as revoluções modernas, a libertação no
sentido revolucionário veio a significar que
[...] todos aqueles, não só no presente, mas ao longo da história, não
só enquanto indivíduos, mas como integrantes da imensa maioria da
humanidade, os humildes e os pobres, que sempre tinham vivido na
obscuridade e na sujeição ao poder vigente, iriam se levantar e se tornar
os soberanos supremos da terra (ibidem, p. 70).
Isso quer dizer igualdade de direitos, e essa própria ideia de igualdade como direito inato de todos ao nascer era absolutamente desconhecida
antes da era moderna. Em Hannah Arendt, o conceito de ‘fundação’ vem
acompanhado do sentido de ‘ruptura’, da busca pela liberdade e da noção de
um novo começo. Nessas situações, poder e violência, ainda que fenômenos
distintos, quase sempre aparecem juntos.
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Nem sempre o significado de ‘fundação’, presente em uma revolução
ou em uma guerra, como experiência fundadora de um novo começo é preservado em termos da ampliação do significado do público e do sentido da
república. Nas próprias comparações feitas pela autora entre a Revolução
Americana e a Revolução Francesa, esta, posterior àquela, substituiu um
poder absoluto por outro, o Estado, ou a força da lei; e a primeira centrou
seus ideais na independência e no valor do indivíduo livre. Na Revolução
Francesa, o ódio à desigualdade social foi maior do que o amor à liberdade;
enquanto que, na Revolução Americana, o sentido de fundação portava em
si, de forma duradoura, o princípio da opinião pública e da liberdade.
Embora possa parecer um truísmo, Arendt procura distinguir os conceitos de ‘libertação’ e ‘liberdade’: o primeiro se caracteriza pela luta contra
a opressão e pela conquista de direitos, sempre expresso nas revoluções;
o segundo se caracteriza pela escolha da liberdade como modo de vida. A
libertação pode ser a condição da liberdade, mas de forma alguma conduz
automaticamente a ela. A noção de liberdade implícita à de libertação não
é igual ao desejo de liberdade.
Com essas duas noções de ‘liberdade’, Arendt quis pontuar uma das
principais diferenças entre a Revolução Americana e a Francesa: na Revolução
Americana, o conceito de ‘liberdade’, pública e privada, expressou-se como
uma escolha de modo de vida, na busca da felicidade pública, representada
pelo espírito da república; na Revolução Francesa, o conceito de ‘liberdade’
expressou-se na busca da liberdade pública, representada pela libertação do
estado de necessidade. Na França, a liberdade só podia existir em público,
como uma representação do Estado.
A autora também destacou, entre as diferenças das duas revoluções,
a distinção entre a compaixão e o discurso, a persuasão. O sentido de
compaixão não estava presente na Revolução Americana; na Revolução
Francesa sim, pois a questão social, o problema da necessidade, “invadiu a
esfera pública, a única esfera em que os homens podem ser verdadeiramente
livres” (2011, p. 157).
AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA
Se, para Hannah Arendt, Maquiavel é o precursor do conceito de
foundation ao antever os desafios da formação do Estado italiano, também
para a autora, ao propugnar pela separação entre religião e política, ele se
referia à separação entre a esfera pública e a esfera privada. A experiência
política não é a mesma coisa que uma experiência pessoal. No entanto, as
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HANNAH ARENDT: UMA LEITORA DE MAQUIAVEL
experiências públicas e privadas são interligadas. Elas são tocadas pela
experiência pública política e vice-versa, mas as diferenças permanecem.
Em A condição humana (1987), no capítulo dois, “As esferas pública
e privada”, Arendt discorre sobre a natureza pública da política e suas particularidades. É nesse capítulo, mais especificamente, que a autora dialoga
com Maquiavel sobre as suas contribuições alusivas a esse tema, e de forma
muito particular. Apesar disso, Habermas (1980) e O’Sullivan (1982), nas
críticas à compreensão da política e do poder em Hannah Arendt, vão se
reportar mais à sua influência helenista nessa obra.
Ao analisar o público e o privado, Hannah Arendt recupera os ensinamentos de Jesus de Nazaré para a esfera privada da religião, e os de
Maquiavel para a esfera pública política, com o intuito de explorar distinções
e virtudes de cada uma delas. Ao tratar das diferenças, a autora faz uma
longa digressão sobre a bondade, um ensinamento de Jesus de Nazaré, que
não deve ser praticado na esfera pública em busca de reconhecimento. Para
mostrar o quanto a bondade não é uma virtude da política, Arendt se apoia
em Maquiavel. Como única atividade que Jesus ensinou, a bondade não
deve ser mostrada na esfera pública.
Ao se referir à bondade, Arendt menciona que essa foi a única atividade
que Jesus ensinou, por palavras e atos. E a bondade contém, obviamente,
certa tendência de evitar ser vista e ouvida:
Quando a bondade se mostra abertamente já não é bondade, embora possa
ainda ser útil como caridade organizada ou como ato de solidariedade.
Daí: ‘Não dês tuas esmolas perante os homens, para seres visto por
eles.’ A bondade só pode existir quando não é percebida, nem mesmo
por aquele que a faz; quem quer que se veja a si mesmo no ato de fazer
uma boa obra deixa de ser bom; será, no máximo, um membro útil da
sociedade ou zeloso membro da Igreja. Daí: ‘Que a tua mão esquerda
não saiba o que faz a tua mão direita’ (ibidem, p. 85).
A bondade, como modo sistemático de vida, não é apenas impossível
nos confins da esfera pública; pode até mesmo destruí-la. Para a autora,
talvez ninguém tenha percebido tão claramente essa qualidade destrutiva
da bondade quanto Maquiavel, que, em famosa passagem, tem a ousadia de
ensinar aos homens ‘a não serem bons’:
O critério pelo qual Maquiavel julgava a ação política era a glória, o mesmo
critério da antiguidade; e a maldade, como a bondade, não pode assumir
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o resplendor da glória. Assim, qualquer método pelo qual um homem
possa realmente conquistar o poder político, mas não a glória, é mau. A
maldade que deixa seu esconderijo é imprudente e destrói diretamente
o mundo comum; a bondade que sai de seu esconderijo e assume papel
público deixa de ser boa, torna-se corrupta em seus próprios termos e
levará essa corrupção para onde quer que vá. Assim, para Maquiavel, o
motivo pelo qual a Igreja era uma influência corruptora na política italiana
é que participava de assuntos seculares, e não a corrupção individual dos
bispos e prelados (ibidem, p. 87-88).
O caráter extramundano das boas obras faz do amante da bondade
uma figura essencialmente religiosa. Contraposta à bondade, que não deve
buscar reconhecimento no mundo público, a coisa política está ligada ao
perigo e ao risco:
A coragem é a mais antiga das virtudes políticas e ainda hoje pertence às
poucas virtudes cardeais da política, porque só podemos chegar no mundo
público comum a todos nós – que, no fundo, é o espaço político – se nos
distanciarmos de nossa existência privada e da conexão familiar com a
qual nossa vida está ligada (ARENDT, 1998, p. 53).
A passagem de Maquiavel à qual Hannah Arendt se remete é de O
Príncipe, ao mencionar que a bondade não é uma virtude pública – no livro
XV, “Das razões pela quais os homens, especialmente os príncipes, são
louvados ou vituperados”. Ali, o autor florentino diz não ser a bondade o
critério para medir a eficácia de uma ação política:
Quem quiser praticar sempre a bondade em tudo o que faz está condenado a
penar, entre tantos que não são bons. É necessário, portanto, que o príncipe
que deseja manter-se, aprenda a agir sem bondade, faculdade que usará
ou não, em cada caso, conforme for necessário. [...] Se se refletir bem,
será fácil perceber que certas qualidades que parecem virtudes levam à
ruína, e outras que parecem vícios trazem como resultado o aumento da
segurança e do bem estar (MAQUIAVEL, 1982, p. 106).
Para Maquiavel, o critério para se medir uma boa ou má ação política é o êxito, e o único fim que deve orientar todas as ações do Príncipe
é a manutenção do poder, um fim honroso. O diálogo de Hannah Arendt
com Maquiavel perpassa a todo momento por esse foco na política como
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HANNAH ARENDT: UMA LEITORA DE MAQUIAVEL
coisa pública, pela dessacralização da política, pela abordagem da política
como um campo de atividade que se caracteriza pela ação no mundo e pelo
profundo vínculo com as questões públicas. E essa paixão de Maquiavel
pela política se manifesta em seu amor por Florença, diante da situação
particular da Itália na época.
POLÍTICA E AÇÃO
Em 1965, no curso From Machiavelli to Marx, Arendt apresenta mais
ou menos assim os livros O Príncipe e os Discursos sobre a primeira década
de Tito Lívio: O Príncipe, Maquiavel o endereça ao poder e a todos aqueles
que têm poder; e os Discursos, para todos aqueles que não têm poder. O
Príncipe trata daqueles que têm fortuna sem virtude; e os Discursos, daqueles
que têm virtude sem fortuna. Ele mesmo, Maquiavel, claramente pertence
a esses últimos. Com base no constante estudo da Antiguidade, dedica-se a
estudar as ações dos grandes e a longa experiência dos eventos modernos.
E resume: “He is interested only in the new foundation.”4 Acrescenta ainda
que, para Maquiavel, há alguma coisa arbitrária em todo começo e nada
mais difícil de alcançar e mais incerto do que o sucesso.
Maquiavel demarca o campo da política e do que não se deve esperar do homem político. Ressalta Arendt: “The business with goodness was
not brought up by me but by Machiavelli. It has something to do with the
distinction between the public and the private” (1979, p. 310-311).5
Para Maquiavel, os políticos reais, e não os imaginários, são avaliados segundo suas ações, que lhe valem elogios ou desaprovação. E como é
impossível ter todas as boas qualidades, pois as condições humanas não o
permitem, é necessário que se tenha prudência para evitar vícios que possam
levar à perda do poder.
Na busca pela conquista e manutenção do poder, a estratégia da
guerra é um meio para se alcançar esse fim. Em O Príncipe, nos capítulos
VI, VII, VIII e IX, ao descrever as quatro formas de conquista do poder,
pelo valor (virtù), pela fortuna (sorte), pelas armas e pelo consentimento
dos concidadãos, sua exposição é clara: a virtù prevalece sobre a fortuna; e
o consentimento, sobre a violência (COELHO; MENEZES, 2013).
A violência pode conduzir ao poder, mas é necessário virtù para que
este seja mantido e para que se obtenha a glória. Em Maquiavel, como nos
antigos, a glória é o critério para se avaliar a política. Do mesmo modo, a
coragem, e não a bondade, é a virtude do político. Segundo ele, deve-se
também estar atento à sorte: “O príncipe que baseia seu poder inteiramente
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MARIA FRANCISCA PINHEIRO COELHO
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na sorte se arruína quando esta muda. Acredito também que é feliz quem age
de acordo com as necessidades de seu tempo, e da mesma forma é infeliz
quem age opondo-se ao que seu tempo exige” (MAQUIAVEL, 1982, p. 127).
A guerra e as armas são recursos necessários: “A guerra é justa para
aqueles a quem é necessária; e as armas são sagradas quando nelas reside a
última esperança” (ibidem, p. 130). Maquiavel defende o uso da força como
uma necessidade da luta pela fundação do Estado. A guerra se pré-configura
no pensamento político de Maquiavel como uma luta pela construção do
Estado. Os elementos que fundamentam sua sociologia da guerra, vimos,
estão em sua tipologia das quatro formas de conquista do poder: a virtù, a
fortuna, as armas e o consentimento. Para o autor, é possível chegar ao poder
por qualquer uma dessas formas, mas entre elas a que menos se sustenta sem
a combinação das outras é a violência. O uso da força favorece a conquista
do poder, mas as outras formas são mais consistentes em sua manutenção
(COELHO; MENEZES, 2013).
Max Weber, ao definir as qualidades do político – a paixão, o senso
de proporção e a responsabilidade –, também lida com a separação entre a
esfera política e a esfera privada, e constrói uma representação do homem
que tem vocação política.6 Toma-se aqui de empréstimo de Max Weber o
termo Beruf (vocação), sugerindo-se que ele tem um conteúdo semelhante às
referências de Hannah Arendt, no diálogo com Maquiavel, quando a autora
procura distinguir as ações concernentes às motivações pessoais das motivações políticas. A caracterização de Arendt da ação política se dá no mesmo
campo conceitual das contribuições de Maquiavel e de Weber.7 Tanto Weber
quanto Arendt referem-se a Maquiavel ao distinguirem a esfera política da
esfera privada. Para Weber, quem deseja a salvação da própria alma ou de
almas alheias deve evitar o caminho da política, que, por vocação, procura
realizar tarefas muito diferentes. E cita Maquiavel:
Em bela passagem de suas Histórias Florentinas, se exata minha lembrança, Maquiavel alude a tal situação e põe na boca de um dos heróis
de Florença, que rende homenagem a seus concidadãos, as seguintes
palavras: ‘Eles prefeririam a grandeza da cidade do que a salvação da
alma’ (WEBER, 2004, p. 121).
Esse é também o ponto salientado por Hannah Arendt nas menções a Maquiavel. Para Maquiavel, as pessoas que acreditam que o mundo
é mortal mas que elas mesmas são imortais não estão muito preocupadas
com o mundo. Ele sugere que essas pessoas não devem entrar na política.
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HANNAH ARENDT: UMA LEITORA DE MAQUIAVEL
O homem que tem dever público toma partido, luta pelas suas ideias,
corre riscos, assumindo sempre as consequências previsíveis dos seus atos.
No ensaio “A política como vocação”, ao definir a ética da responsabilidade,
Max Weber (2004) se refere ao paradoxo das consequências, por serem essas
não totalmente previsíveis. A vocação política de Maquiavel se expressava no amor à sua cidade natal; a discrepância entre a vida pública e suas
crenças pessoais não indicava que o autor era ateu e que não acreditava em
salvação eterna.
PENSAMENTO E AÇÃO
A leitura feita por Hannah Arendt do pensamento de Maquiavel, intui-se
neste trabalho, serve também para delimitar as próprias posições pessoais
da autora ao se indagar sobre suas motivações na relação entre thinking and
acting. Sua biógrafa, Elizabeth Young-Bruehl (1997), vai retratá-la com a
expressão “um rosto privado na vida pública”.
Arendt afirma ser sua motivação pessoal mais para a atividade da
compreensão do que para a ação, apesar de seu constante envolvimento com
a vida pública. No último parágrafo de A condição humana, ao discorrer
sobre a atividade de pensar e a liberdade de pensamento, diz que quem quer
que tenha experiência e preferência pela atividade do pensamento, sabe o
quanto eram verdadeiras as palavras de Catão: “Nunca ele está mais ativo
quando nada faz, nunca está menos só que quando a sós consigo mesmo.”
(ARENDT, 1987, p. 338).
Situada principalmente no terreno da compreensão, Arendt não deixa
de mencionar incansavelmente a relação entre as atividades da compreensão
e da política. Mas esse é o dilema da autora, não de Maquiavel, que até o
fim da vida clamou pela política e desejou ser abençoado pela sorte; teve
virtù, mas morreu sem fortuna. Para Arendt, Maquiavel é o exemplo para o
entendimento das questões do mundo público.
Quanto a essa relação entre pensamento e ação, como atividades
distintas mas inter-relacionadas, não resta dúvida sobre a posição de Arendt
no ensaio biográfico mencionado, no tópico Thinking and acting:
I will admit that I am, of course, primarily interested in understanding.
This is absolutely true. And I will admit that there are other people who
are primarily interested in doing something. I am not. I can very well
live without doing anything. But I cannot live without trying at least to
understand whatever happens. […] I have acted in my life, a few times,
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MARIA FRANCISCA PINHEIRO COELHO
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because I couldn´t help it. But that is not what my primary impulse is.
(ARENDT, 1979, p. 303).8
O homem que pensa é o mesmo que age, mas pensamento e ação não
são a mesma coisa: “I really believe that you can only act in concert and
I really believe that you can only think by yourself” (ibidem, p. 305).9 No
momento em que alguém começa a agir, está lidando com o mundo, mas o
objeto do pensamento é a experiência, nada mais. O que ocorre no mundo
é o que lhe interessa, sem desconsiderar, entretanto, que a teoria política,
quando constrói um sistema, lida com abstrações.
Arendt define o ato de compreender como a maneira de nos conciliarmos com o mundo, no qual sempre permaneceremos como únicos e,
portanto, estranhos:
Compreender é infindável e, portanto, não pode gerar resultados definitivos. É a maneira especificamente humana de viver, pois todo indivíduo
precisa se sentir conciliado com um mundo onde nasceu como estranho e
onde sempre permanece como estranho na medida de sua singularidade
única (2008, p. 331).
A compreensão precede e sucede o conhecimento: “A compreensão
preliminar, que está na base de todo conhecimento, e a verdadeira compreensão, que o transcende, têm algo em comum: conferem significado ao
conhecimento” (ibidem, p. 334). A compreensão é um processo complexo
que jamais produz resultados inequívocos.
Assim, a compreensão é uma atividade interminável por meio da qual
tentamos sentir o mundo como a nossa casa. No entanto, esclarece a autora,
compreender não é perdoar:
O perdão não é a condição nem a consequência da compreensão. Perdoar
(com certeza, uma das maiores capacidades humanas e talvez a ação humana mais ousada, na medida em que tenta o aparentemente impossível, a
saber, desfazer o que foi feito, e consegue criar um novo começo quando
tudo parecia ter chegado ao fim) é uma ação única e culmina num gesto
único (ibidem, p. 330).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procurou-se, neste trabalho, focalizar a leitura de Hannah Arendt
acerca de Maquiavel. Destacou-se, pelo menos, três elos do diálogo da autora
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HANNAH ARENDT: UMA LEITORA DE MAQUIAVEL
com Maquiavel: a elaboração do conceito de foundation; a separação entre
as esferas pública e privada; e as atribuições do homem político, que não
deve ser reificado como homem bom.
O público e o privado, independentemente da forma como assumem
em contextos concretos essas relações, são categorias centrais no pensamento
de Hannah Arendt para avaliar situações de conflito e/ou interação entre o
que é comum e o que é particular, se e à medida que essas dimensões se
apresentam como distinções na vida social. Se o privado é público e se o
social também é público são representações a serem tematizadas de acordo
com situações sociais concretas em que se apresentam essas relações. Essas
separações, ou não, apresentam-se em situações reais nas quais se estruturam
ou aparecem os liames entre o individual e o coletivo, o eu e o mundo, como
realidades irredutíveis.
Nos escritos políticos e pesquisas históricas de Hannah Arendt, seu
diálogo com Maquiavel é mais frequente, como foi destacado em seu livro
Sobre a revolução; mas, de um modo ou de outro, o autor está presente na
obra de Arendt, a exemplo de A condição humana, um dos principais livros
da autora. Em todas as referências a Maquiavel, o realce é sempre o mesmo:
apesar da inter-relação entre as esferas pública e privada, o mundo da política
é diferente do mundo privado, pelas suas características e funções sociais;
tem suas próprias regras e virtudes, como a coragem no mundo público, em
contraponto à bondade no mundo privado.
Em A condição humana e no ensaio “Da violência”, é clara a orientação arendtiana de um conceito de ‘poder’ que se distingue da dominação;
mas, sempre que a autora se defronta com análises de situações históricas
concretas de conflito, a violência aparece como uma característica comum
da luta pelo poder: “Como nossas experiências com a política são feitas
sobretudo no campo da força, é bastante natural entendermos o agir político
nas categorias do forçar e ser-forçado, do dominar e ser-dominado, pois
nelas se manifesta o verdadeiro sentido de todo fazer violento” (ARENDT,
1998, p. 133).
Os que se apegam apenas às distinções conceituais entre ‘poder’ e
‘violência’ feitas por Hannah Arendt teriam dificuldade em compreendê-la
também como leitora assídua e herdeira dos ensinamentos de Maquiavel.
Também não aceitariam com facilidade que uma autora que define o poder
como a capacidade humana de construir acordo, e a violência como uma
ação instrumental, pense o fenômeno da revolução – no qual a violência é
uma característica comum – como um ato fundador de poder e de liberdade.
Nos próprios escritos em que trata de forma mais conceitual o poder e
a violência, como no ensaio “Da violência”, Arendt expõe as dificuldades no
tratamento desse tema pelo próprio contexto da época. O texto foi publicado
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MARIA FRANCISCA PINHEIRO COELHO
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em 1970, em um momento de apologia da violência tanto pelos teóricos da
esquerda quanto pelos da direita: “Poder e violência, ainda que fenômenos
distintos, quase sempre aparecem juntos” (1999, p. 129); no entanto, onde
quer que estejam associados, o poder é o fator principal e predominante.
Contudo, as diferenças são claras quando se busca tratar esses fenômenos
com conceitos puros.
Para Arendt, a violência é uma demonstração comum entre guerra
e revolução. Em relação à guerra, sua análise assemelha-se à de Kant em
seu ensaio “A paz perpétua”, no qual o filósofo diferencia o fenômeno da
guerra em si da existência da guerra de extermínio. Na compreensão dos
dois autores, a meta de toda força é a paz.
Para Kant (2002), em uma guerra nada pode acontecer que não torne
possível a paz posterior. Quando a guerra não pressupõe mais a coexistência
das partes inimigas e só quer liquidar os conflitos de maneira violenta, deixa
de ser um meio da política para se transformar em uma guerra de extermínio,
rompendo assim os limites da coisa pública.
Segundo Arendt, têm-se exemplos no passado e no presente desse tipo
de guerra. Ao citar o presente, a autora referia-se aos conflitos que marcaram
a primeira metade do século XX: duas guerras mundiais, o nazismo e o stalinismo. Esse tipo de guerra está associado à forma totalitária de domínio. O
princípio do agir totalitário tende a influenciar o mundo não-totalitário, “Pois
o que é exterminado em uma guerra de extermínio é muitíssimo mais do que
o mundo do adversário derrotado” (1998, p. 123). Nos termos de Maquiavel,
essa formulação seria a seguinte: a violência e a força são métodos “que
podem conduzir ao poder, mas não à glória” (MAQUIAVEL, 1982, p. 91).
Guerras e revoluções têm em comum entre si o fato de serem símbolos
da força, que se esgota quando não há mais o poder. O que mais aproxima
Hannah Arendt e Maquiavel é o entendimento de fenômenos sociais de
ruptura que fundam uma nova ordem, portadora da liberdade. Por isso, na
leitura de Arendt, Maquiavel é considerado o pai espiritual da revolução e
o precursor do conceito de foundation.
Maquiavel e Hannah Arendt – ela ressaltando a dimensão dialógica
do poder sem desconhecer o conflito inerente à política, ele destacando a
arte da guerra sem desmerecer a virtù – têm em comum a compreensão da
política como uma atividade que se caracteriza pela dedicação à coisa pública
em primeira ordem. O compromisso com a Itália se expressa em Maquiavel
por sua paixão pela vida pública. E o compromisso com a questão pública,
despojado das circunstâncias históricas sempre complexas e equivocadas,
é a marca dos que têm amor pela vida pública.
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NOTAS
HANNAH ARENDT: UMA LEITORA DE MAQUIAVEL
1 Hannah Arendt on Hannah Arendt. In: Hannah Arendt: The Recovery of
the Public World. HILL, Melvyn A. (Ed.). New York: St. Martins’s Press,
1979. p. 311. “Se o critério é a glória – o brilho no espaço das aparências
– ou se o critério é a justiça, isso não é a coisa decisiva. O decisivo é saber
se sua própria motivação é clara – para o mundo – ou, para si mesmo, o
que quer dizer para sua alma. Esse é o caminho definido por Maquiavel
quando ele disse: ‘Eu amo meu país, Florence, mais do que a minha salvação eterna.’ Isso não significava que ele não acreditasse em uma vida
após a morte, mas que o mundo, como tal, tinha maior interesse para ele
do que sua vida e sua própria alma” (Tradução nossa).
2 “Hannah Arendt foi convidada para participar da conferência como guest
of honor, mas respondeu que preferia ser convidada como participante”
(Tradução nossa).
3 Na lista dos que fizeram perguntas estavam Hans Jonas, Richard Bernstein e Mary McCarthy.
4 From Machiavelli to Marx. Course. Cornell University, Ithaca, N. Y.
Hannah Arendt Center at the New School University, New York City, N. Y.
The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress. Courses, 1965, p.
023455. “Ele está interessado apenas na nova fundação.” (Tradução nossa).
5 “O negócio de como lidar com a bondade não foi colocado por mim,
mas por Maquiavel. Tem algo a ver com a distinção entre o público e o
privado.” (Tradução nossa).
6 Os argumentos utilizados a seguir para definir a vocação política nos
termos weberianos estão apoiados no texto Amor mundi e o conceito de
“vocação política” em Hannah Arendt. (COELHO, 2013).
7 O terreno do debate é o mesmo: o da orientação distinta de valores em
relação às escolhas de vida. O termo vocação (Beruf), descreve Weber
em A ética protestante e o espírito do capitalismo, tem em sua origem
um sentido religioso, o significado paulino de ‘chamado’, e na tradução
feita por Lutero assume um sentido secular, conservando, todavia, os
dois significados. Segundo Weber (1967, p. 153), não há dúvida de que
a palavra alemã Beruf e a palavra inglesa calling tinham originalmente
conotação religiosa: a de uma tarefa ordenada ou, pelo menos, sugerida
por Deus. Lutero traduz o termo em dois sentidos: mantém esse sentido
religioso paulino de ‘chamado’ e introduz o sentido profissional, como
o entendemos hoje. Desse modo, foi a partir do século XVI que o conceito de Beruf no sentido presente se estabeleceu na literatura secular.
Contudo, mesmo o uso atual secular do termo ‘vocação’ não se traduz no
mero sentido profissional, remetendo a um conteúdo de dedicação a uma
causa, assim como Weber a usou em seus dois ensaios e como também
está presente nas referências de Arendt.
8 “Eu admito que sou principalmente interessada na compreensão. Isto
é absolutamente verdadeiro. E admito que há outras pessoas que estão
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MARIA FRANCISCA PINHEIRO COELHO
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principalmente interessadas em fazer alguma coisa. Eu não. Eu posso
muito bem viver sem fazer nada. Mas eu não posso viver sem tentar ao
menos entender o que acontece. [...] Eu agi na minha vida, algumas vezes,
porque eu não podia deixar de intervir. Mas esse não é o meu impulso
primário.” (Tradução nossa).
9 “Eu realmente acredito que só se pode agir em conjunto e realmente
acredito que só se consegue pensar por si mesmo.” (Tradução nossa).
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122
HANNAH ARENDT: UMA LEITORA DE MAQUIAVEL
Palavras-chave:
Nicolau Maquiavel, Hannah Arendt, Fundação, esfera
pública, esfera privada.
Resumo
Qual a presença do legado de Nicolau Maquiavel no
pensamento de Hannah Arendt? Como compreender a
interlocução de uma autora tão preocupada com a dimensão
libertária da política com Maquiavel, cuja compreensão da
política está vinculada à conquista e manutenção do poder?
Este trabalho se reporta à recepção do pensamento de Maquiavel por Hannah Arendt, a partir das suas referências
ao autor e interpretação das suas ideias. O texto focaliza
os seguintes tópicos: o conceito de foundation; as esferas
pública e privada; política e ação; pensamento e ação.
Abstract
Keywords:
Niccolò Machiavelli,
Hannah Arendt, Foundation,
public sphere, private sphere.
To what extent is Machiavelli’s legacy present in Hannah
Arendt’s thought? How can we evaluate the dialogue
between a thinker so preoccupied with politics’ libertarian
dimension, such as Arendt, and Machiavelli, whose comprehension of politics is linked to the conquest and maintenance of power? This work tries to reconstruct the dialogue
between the two authors through Arendt’s references to
Machiavelli’s works as well as her interpretations of his
ideas. The text focuses on the following topics: the concept
of foundation; the public and private spheres; politics and
action; and thinking and action.
Recebido para publicação em setembro/2014. Aceito em dezembro/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 103-122
Artigos
“Sociologia ou imaginação”: aspectos
da recepção do livro O estrangeiro, de
Plínio Salgado
1
Alexandre Pinheiro Ramos
Bolsista de Pós-Doutorado (PNPD Institucional / CAPES) no Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia (PPGSA/IFCS/UFRJ); Mestre em História pelo
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (PPGH/UERJ); Bacharel em História (UERJ). Publicações: “Uma
‘revolução necessária’: o conceito de revolução nos textos dos intelectuais
da Ação Integralista Brasileira (1932-1937)”, in Dimensões, Vitória, v. 26,
p. 255-276, 2011; “Fixando valores: a fotografia e a transmissão de ideais e
valores integralistas na revista Anauê”. Revista Enfoques, Rio de Janeiro, v.
12, p. 202-225, 2013.
Endereço postal: Rua Valparaíso, 28, apto. 305. Tijuca. CEP 20.261-130 Rio
de Janeiro – RJ.
E-mail: [email protected].
INTRODUÇÃO
Estou respirando forte. Estou suando. Será a doença
dos meus pulmões? Será o suor da minha tysica? É a
Verdade do livro a me abafar. É o suor da Tragédia, que
se consuma, a ungir-me.
(Rodrigues de Abreu, sobre O estrangeiro)
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 125-154
126
“SOCIOLOGIA OU IMAGINAÇÃO”...
O objetivo deste artigo é explorar, analiticamente, a recepção do
primeiro romance de Plínio Salgado, O Estrangeiro2, publicado em 1926.
Em primeiro lugar, situo rapidamente o autor nas redes de sociabilidade das
quais fazia parte para, em seguida, recuperar os comentários e críticas feitos
ao seu livro, ao longo do ano de publicação, analisando algumas questões
suscitadas. Não é minha intenção fazer uma discussão sobre o modernismo,
optando, antes, por este enfoque mais restrito, visto que, até o momento, são
escassos os trabalhos que abordam de modo detido a recepção do livro O
Estrangeiro – geralmente menciona-se apenas seu sucesso3 na época. Deste
modo, tenciono expandir este quadro com o intuito de abarcar as impressões de alguns intelectuais sobre o romance de estreia de Plínio Salgado,
evidenciando um pouco mais do impacto causado na época.
O Estrangeiro foi, nas palavras de Gustavo Sorá (2010, p. 50), um
dos best sellers da década. O livro esgotou-se e ganhou no mesmo ano uma
segunda edição. O jornal Folha da Manhã, de São Paulo, assim referiu-se
àquela publicação4:
Plínio Salgado conseguiu uma grande vitória, com a tiragem da [segunda] edição do seu magnífico trabalho a que bem soube denominar “O
Estrangeiro”. Porque tal sucesso do livro constitue facto seguramente
de pouca repetição. (...)
A crítica foi unânime a tecer-lhe os mais valiosos encômios, unindo-se
[essa] arte ao conceito público.
“O Estrangeiro” impoz-se. Único do gênero, vale como livro de [honra]
na produção literária hodierna (Folha da Manhã, 08/10/1926).
O jornal carioca A Manhã, de 29 de dezembro de 1926, dedica a
primeira parte de sua seção “Os melhores livros de mil novecentos e vinte
e seis” a O Estrangeiro, e afirma: “Sem dúvida alguma, O Estrangeiro do
Sr. Plínio Salgado foi o melhor romance do anno. (...) É provável que 1926
não haja visto um livro superior ao romance do Sr. Plínio Salgado” (A Manhã, 29/12/1926)5. As palavras do próprio Salgado, ao prefácio da segunda
edição, também apontam para o sucesso alcançado por O Estrangeiro: “A
Editorial Helios Ltda. convenceu-me da necessidade de uma edição urgente
de mais alguns milheiros de exemplares, pelo facto de haver-se exgottado
a primeira e recrudescerem os pedidos” (SALGADO, 1937 [1926], p. 9).
Este livro de Plínio Salgado, seu primeiro romance (em 1919, ele já
havia lançado um volume de poemas, intitulado Thabor), recebeu diversas
críticas elogiosas em que eram ressaltados tanto seu estilo quanto as questões
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ALEXANDRE PINHEIRO RAMOS
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por ele trazidas, sobretudo no que dizia respeito à formação da cidade de
São Paulo e aos tipos humanos que aí habitavam. No entanto, a despeito de
sua recepção positiva quando de seu lançamento, o livro não teve a mesma
perenidade que outros advindos do mesmo “espírito” modernista, nem
ganhou igual atenção por parte de pesquisadores, com exceção daqueles
ocupados com uma temática em particular – a Ação Integralista Brasileira
(AIB), movimento político-cultural criado pelo mesmo Plínio Salgado na
década de 1930, influenciado largamente pelas ideias modernistas (a corrente
do verde-amarelismo, da qual Salgado fez parte) e de autores como Alberto
Torres, Farias Brito e Oliveira Vianna, bem como do pensamento católico
(Jackson de Figueiredo, Tristão de Ataíde), e pelo fascismo6. E mesmo assim,
por vezes, O Estrangeiro foi erroneamente visto como diretamente ligado
ao Integralismo, a despeito dos anos que os separaram (a AIB foi fundada
em outubro de 1932) e, principalmente, das contingências do próprio processo histórico – ao fim e ao cabo, se for possível traçar uma ligação, é a de
que as ideias de Salgado na década de 1920 contribuíram para a criação do
Integralismo, e não de que o gérmen deste estivesse presente naquelas. Mas
não é o objetivo deste artigo tratar das relações entre O Estrangeiro e o pensamento integralista de Plínio Salgado. Tal referência visa, antes, apresentar
o que pode ter sido um dos fatores que contribuiu para o contraste entre o
sucesso na época e o aparente declínio da sua importância, posteriormente.
Para Wilson Martins,
É certo, porém, que tanto O Estrangeiro quanto O Esperado [segundo
romance de Plínio Salgado] são as melhores realizações romanescas dos
anos 20. Com o mesmo estilo expressionista de que Oswald de Andrade
havia feito um uso claudicante, Plínio Salgado criará o esboço do que
seriam, na década seguinte, os romances ‘sociais’ e ‘políticos’. O seu
tardio aproveitamento, por parte do autor e dos seus leitores, como documentos de uma ideologia partidária, tirou-as da literatura, e, de resto,
O Cavaleiro de Itararé [seu terceiro romance], em 1933 viria encerrar
lamentavelmente a série (MARTINS, 1965, p. 251).
Assim, o presente artigo concentra sua atenção nos comentários e
críticas feitos ao romance O Estrangeiro. Aqui, procuro evidenciar alguns
aspectos de sua recepção, apontando para questões levantadas pelos críticos.
Antes, porém, de passar a esta análise, parece válido demonstrar a maneira
como o livro de Plínio Salgado chegou ao público. Será uma abordagem
próxima ao que se poderia chamar sociologia da vida intelectual (ou socioRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 125-154
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“SOCIOLOGIA OU IMAGINAÇÃO”...
logia dos intelectuais), feita a partir dos trabalhos de Randall Collins (1998;
2004) e seguindo a linha explorada em trabalho anterior (RAMOS, 2013).
Mostro como a publicação do livro está vinculada às redes de relações sociais
mantidas por Salgado e como influenciou o acesso e a visibilidade do autor
no microcosmo intelectual7.
PLÍNIO SALGADO, O ESTRANGEIRO E AS REDES INTELECTUAIS
A publicação de O Estrangeiro se dá em um contexto sócio-histórico
cujas transformações na esfera intelectual - algumas anteriores à década de
1920 - podem ser consideradas decisivas para compreender seu sucesso.
Se, de um lado, inovações tecnológicas da virada do século XIX para o
XX contribuíram para a criação de novas técnicas de edição e impressão e,
consequentemente, para o barateamento da imprensa (SEVCENKO, 1983,
p. 94), por outro, o crescimento de centros urbanos com uma população
assalariada e alfabetizada viabilizou o surgimento de um público leitor interessado não apenas nos jornais e nas “revistas mundanas” (idem, p. 94),
mas também em livros8, particularmente nos romances de autores nacionais,
mudança que se relaciona com o processo de substituição de importações
de bens simbólicos.
Além disto, como argumenta Alessandra El Far no tocante a São
Paulo, sua “prosperidade econômica (...) contribuiu visivelmente para o
desenvolvimento de novos projetos editoriais” (2006, p. 40) os quais se
diferenciavam daqueles dos livreiros do Rio de Janeiro, que publicavam
obras enfatizando traços metropolitanos e cosmopolitas e se mostravam em
sintonia com as novidades oriundas dos EUA e da França. No caso paulista,
buscava-se valorizar a cultura caipira e os escritores da geração moderna,
culminando naqueles intelectuais ligados ao movimento modernista (idem,
p. 40-41). Neste particular, devem ser mencionados os empreendimentos
editoriais levados a cabo pelos próprios modernistas – como a criação de
editoras e revistas, e a publicação de livros bancados pelo próprio autor.
E a “compatibilização” da atividade jornalística com o status de escritor
(observada desde o início do século XX) (cf. Miceli, 2001, p. 54), somada à
existência de órgãos de imprensa diretamente ligados a determinados partidos
ou facções políticas, garantiram tanto a presença de intelectuais/escritores
nas redações como produtores culturais, quanto a existência de um público
que, identificado com ideias e posicionamentos políticos distintos, poderia
tornar-se leitor daqueles autores que se valiam do espaço nos jornais para
veiculação de seus bens simbólicos.
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Neste sentido, o lançamento do romance de Plínio Salgado e seu
posterior sucesso podem ser compreendidos, em parte, no interior de uma
conjuntura9 na qual se verifica não apenas a existência de um público leitor
mais amplo do que aquele observado em décadas anteriores, mas também
em vistas de sua própria inserção e trabalho em um órgão político, como
argumentarei a seguir.
O Correio Paulistano, jornal ligado ao Partido Republicano Paulista
(PRP), teve papel de destaque na biografia de Plínio Salgado, pois foi a partir
dele que se estabeleceram os principais contatos tanto no ambiente político
quanto no intelectual. Nos primeiros anos da década de 1920, tendo conseguido um emprego de suplente de revisor por meio de um conhecido, o poeta
Nuto Sant’Anna, Plínio Salgado passou a trabalhar no Correio Paulistano,
cujo redator-chefe era Menotti del Picchia. Este, ao descobrir a presença
de Salgado no jornal, como revisor, resolveu convidá-lo para fazer parte da
redação do periódico, utilizando como justificativa uma polêmica travada
com ele quando da publicação de sua obra Thabor, em 191910, conforme
assinalou em suas memórias: “[Salgado] Mostrou que tem talento e é combativo e revelou-se um corajoso jornalista” (DEL PICCHIA, 1972, p. 113)11.
Aliás, em sua coluna de 3 de novembro de 1921 no Correio Paulistano,
Menotti del Picchia não somente relembra este incidente – que qualificou
como briga – como também seu primeiro contato com Plínio Salgado no
jornal e a amizade que daí surgiu:
Ficamos amigos. Amicíssimos. Vimos que todo o nosso combate não
passava de uma destas escaramuças que acabam em arroubos de amor,
como nos romances sentimentalistas. Quase choramos os dois, de ternura,
abraçados no amplexo de uma solidariedade que devia acabar em amizade
fraterna jungidos ambos na mesma carga de labor nocturno, neste acampamento de idéias que é o “Correio Paulistano” (DEL PICCHIA, 1921).
Sua participação na Semana de Arte Moderna, ainda que bem diminuta
– teve alguns poemas seus lidos por Ronald de Carvalho –, foi obra também
de Menotti del Picchia, mas Salgado não aderiu de imediato ao movimento12.
Utilizou o espaço do Correio Paulistano para publicar alguns contos que
foram reunidos e lançados em forma de livro em 1927, intitulado Discurso
às estrelas. Nas palavras do próprio Plínio Salgado (1956, p. 9), foi este
um “período de experiências do estilo moderno”. Seu trabalho no Correio
terminou em 1924, quando se demitiu por discordâncias políticas no interior
do PRP (embora tenha se mantido filiado a ele) e passou a trabalhar no esRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 125-154
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“SOCIOLOGIA OU IMAGINAÇÃO”...
critório do advogado Alfredo Egydio de Souza Aranha, escrevendo também
para o Estado de São Paulo, sob o pseudônimo de Pinus, e para a revista
Novíssima13, na qual trabalhava com Fernando Callage. Manteve, no entanto,
contato com intelectuais, também dissidentes, do PRP, como Cândido Mota
Filho, com quem fez parte do grupo modernista “Verde-Amarelo” juntamente
com Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e Alfredo Ellis.
Durante esse período, Plínio Salgado começou a elaborar O Estrangeiro e quando a redação já estava mais adiantada, Cassiano Ricardo era
uma das pessoas com quem Salgado se encontrava e para quem lia seus
escritos14, o que foi decisivo para sua posterior publicação, pois, ao lado de
Menotti del Picchia, Ricardo havia fundado a editora Helios Ltda., a qual
viria a publicar as obras dos modernistas vinculados ao verdeamarelismo
(através da “Coleção Verde-Amarela”), tendo ainda o intuito de divulgá-las
por todo o Brasil (SORÁ, 2010, p. 50). O romance recém-concluído de Plínio
Salgado saiu, justamente, pela Helios, sendo lançado em princípios de 1926.
Esta breve descrição serve para introduzir alguns pontos que vinculam
a publicação de O Estrangeiro às sociabilidades mantidas por Plínio Salgado na década de 1920, sobretudo àquilo que denominei anteriormente de
redes intelectuais15. Na análise ensaiada aqui, considero tais redes, de modo
mais amplo, como o conjunto de relações sociais envolvendo indivíduos
(sobretudo intelectuais) que compõem e fazem parte da esfera intelectual,
isto é, pessoas diretamente ocupadas com a produção e a divulgação de bens
culturais. De forma mais restrita, estas redes intelectuais se caracterizavam,
também, pela posse de “objetos sagrados”, particulares, partilhados pelos
seus membros – como ideias e obras de determinados autores ou princípios
que são defendidos e seguidos16 –, além do uso de espaços mais ou menos
comuns com os quais os participantes da rede se identificam ou nele atuam de
algum modo. Importam, aqui, as relações interpessoais que constroem e são
afetadas pela estrutura da rede intelectual em cuja organização se destacam
três elementos fundamentais: o espacial, que é o ambiente em que ocorrem
os encontros dos participantes; o interacional, que diz respeito às sociabilidades estabelecidas, em que laços sociais são firmados e reproduzidos; e o
intelectual, relativo a ideias, discussões, temas e questões com as quais os
intelectuais trabalham.
É possível, assim, considerar que a presença de Plínio Salgado no
Correio Paulistano permitiu-lhe ingressar em uma rede intelectual bem definida – e bastante particular, se levarmos em consideração sua estreita ligação
com a esfera política – e estabelecer contatos que foram decisivos para sua
carreira. Para Karl Mannheim (1974, p. 85), “não devemos impedir-nos de
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analisar as condições objetivas que confrontam o indivíduo a cada passo.
Essas condições canalizam e motivam seu comportamento, esteja ele ou não
consciente delas”. No caso da biografia de Plínio Salgado, o emprego no
jornal paulista teve papel crucial ao prover-lhe, claro, seu sustento (visto que
deixara sua cidade natal, São Bento do Sapucaí, para trabalhar e morar em
São Paulo), mas a isto se soma o fato de aproximá-lo de uma figura como
Menotti del Picchia, constituindo-se acontecimento central, aí, a passagem
de Salgado de suplente de revisor para redator, por pedido do primeiro. Tal
mudança coloca-o em constante contato não só com Menotti, mas, com
os demais integrantes do corpo redatorial do Correio Paulistano. Cria-se
uma regularidade social (as interações constantes e o trabalho intelectual),
mediada pelo compartilhamento de um espaço comum, a “sala grande” da
redação. O próprio Plínio descreve o “microcosmo” do jornal:
[...] Eis-me na sala grande [a redação], nossa tenda. A minha mesa é
a que fica perto da porta. Do lado oposto, sempre de pé e em mangas
de camisa, está Wolgran Nogueira, examinando originais, corrigindo
plumitivos bisonhos [...].
Atrás de mim, senta-se Alcides Cunha, de dia oficial de gabinete do
secretário da Justiça e de noite redator do velho órgão [...].
Na mesa à minha esquerda, como um centro-avante da turma, Menotti del
Picchia engendra a famosa crônica de Helios, que encabeça as “Sociais”,
ou manipula a nota política do dia, cuja receita lhe foi dada há pouco no
Salão Nobre, onde o presidente do Estado palestra com Júlio Prestes,
Ataliba Leonel, Carlos de Campos e Flamínio Ferreira.
Menotti faz a pena correr sobre as laudas, fumando cigarros “Sônia”
e enfiando, de vez em quando, os dedos nervosos pela cabeleira loura.
Quando termina a crônica de Helios, a lê em voz alta para ouvirmos. Todos
nos pomos ao seu redor, colhendo em primeira audição os primorosos
pensamentos do poeta (apud LOUREIRO, 2001, p. 134-135).
Condições materiais (as exigências do próprio trabalho) inserem
Plínio Salgado em uma rede intelectual que, ao poucos, se transforma e não
se limita à redação do jornal. Ultrapassa-a, a ponto de fazer com que seus
poemas sejam lidos na Semana de Arte Moderna e lhe permite travar contato
com outros intelectuais como Cassiano Ricardo e Cândido Motta Filho. E,
mesmo quando Salgado deixa o Correio Paulistano, mantém sua presença
nessa rede e dá prosseguimento ao seu trabalho intelectual.
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“SOCIOLOGIA OU IMAGINAÇÃO”...
A publicação de O Estrangeiro ilustra um pouco da continuidade e do
funcionamento e dinâmica da rede intelectual, pois envolve, por exemplo,
desde as relações afetivas mantidas por Plínio com Cassiano Ricardo até
o processo de realização de um empreendimento editorial o qual mobiliza,
por sua vez, os contatos previamente estabelecidos. A margem de ação e
de escolhas de Plínio Salgado liga-se às situações com as quais ele é confrontado – ao mesmo tempo em que estas mesmas situações decorrem de
seu agir no interior da rede de relações sociais da qual faz parte. Contudo,
não se podem considerar unicamente tais “condições objetivas” como o
motor de uma rede intelectual, como o principal mecanismo a reger as ações
individuais no interior de tal microcosmo; afinal, como diz Jean-François
Sirinelli: “Todo grupo de intelectuais organiza-se também em torno de uma
sensibilidade ideológica ou cultural comum e de afinidades mais difusas,
mas igualmente determinantes, que fundam uma vontade e um gosto de
conviver” (SIRINELLI, 2003, p. 248).
No caso do grupo de intelectuais do qual Plínio Salgado faz parte, a
política, sem dúvida, exerce um grande papel na convivência de seus membros,
mas também são relevantes as ideias e posições literárias que partilham; eles
encontram-se juntos nos conflitos entre as correntes modernistas e lutam por
uma posição no espaço de atenção: “The attention space is limited; once a
few arguments have partitioned the crowds, attention is withdrawn from those
who would start yet another knot of argument” (COLLINS, 1998, p. 38).
Além disso, outro fator essencial para a manutenção dessa rede intelectual, das relações interpessoais que nela se processam, são os rituais de
interação (COLLINS, 1998, 2004), os encontros face a face que ocorrem
cotidianamente ou em situações extraordinárias. O trabalho de Plínio Salgado
no Correio Paulistano, o momento em que as pessoas da redação paravam
para ouvir a coluna de Menotti ou os relatos de Salgado ao grupo, falando
do andamento de seu romance são exemplos dos rituais que ocorrem na vida
diária; são componentes de suas sociabilidades e mantêm as relações que
conformam a rede. E, tão importantes quanto, são os momentos extraordinários, em que esses mesmos rituais de interação assumem proporções maiores
e extrapolam a regularidade da vida cotidiana: propôs-se (e foi realizada)
uma homenagem a Plínio Salgado em vista do sucesso obtido por seu livro.
O jornal Folha da Manhã, de 07/07/1926, noticiou este fato: “Um grupo de
intellectuaes aqui residentes, pretende em dia ainda não marcado, prestar
uma homenagem ao escriptor paulista Plínio Salgado, pela publicação do
seu romance ‘O Extrangeiro’, que tanto sucesso tem alcançado”. Dois dias
depois, no mesmo jornal, lê-se:
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Causou a melhor impressão nas rodas intellectuaes desta capital, a
homenagem que um grupo de admiradores e amigos pretende prestar
ao brilhante escriptor paulistano Plinio Salgado, em regozijo do recente
sucesso artístico do seu notável romance “O Extrangeiro”. (Folha da
Manhã, 09/07/1926).
E em matéria do dia 21 de julho de 1926, o jornal não apenas menciona
uma lista com algumas dezenas de pessoas que tomariam parte na homenagem, como revela que estes pretendiam oferecer ao autor “um mimo, como
lembrança do êxito alcançado pelo seu livro” (Folha da Manhã, 21/07/1926).
A cerimônia ocorreu no dia 18 de dezembro de 1926, no salão nobre
do Correio Paulistano. Menotti del Picchia (que substituía Cassiano Ricardo)
e o deputado Gama Rodrigues discursaram na ocasião, ressaltando, como
não podia deixar de ser, as qualidades não só da obra, como de seu autor. Por
fim, foi a vez de Plínio Salgado fazer uso da palavra. A matéria do Correio
Paulistano (19/12/1926) referente ao evento trouxe algumas passagens do
discurso de Salgado, no qual fala de O Estrangeiro:
A impressão que esse livro causou, não se originava das qualidades de
factura de que porventura fosse elle o portador: porém do sentimento
de brasilidade e de inquietude que encerra. Eu não duvido, continuou o
homenageado, em affirmar que esse romance exprime um momento da
consciência brasileira no Estado de São Paulo.
Na oportunidade, foi ofertado a Plínio Salgado um bronze comemorativo, de autoria do escultor José Cucé, intitulado “Juvêncio e os papagaios”,
provavelmente uma referência à seguinte passagem do romance:
[Juvêncio] Agarrou, então, os papagaios [que haviam aprendido a cantar
o hino fascista] [...] e, um por um, os foi estrangulando, atirando-os na
onda brava da catadupa.
- Indignos todos os seres que falam como os papagaios, sem pôr nas
palavras a força e o calor da Terra! Indignos todos os homens que falam
com os lábios e acabam transformando-se na insensibilidade dos fonógrafos. [...] Nós somos uma Pátria, que tem soldados vadeadores de rios,
pântanos, florestas e desertos. Nós somos uma raça que tem sertanistas
e vaqueiros inabaláveis como pregos batidos na dura madeira [...] para
segurar no continente o mapa do Brasil. E somo um povo que tem jangadeiros que fazem uma esteira de caibros couraçados do Espírito da
Terra! (SALGADO, 1937 [1926], p. 266).
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E o próprio Plínio fala dessa homenagem: “No salão, repleto de escritores (...) Menotti fez o discurso. Eu lia nos olhos dos meus companheiros de
trabalho o júbilo com que partilhavam a vitória ‘da casa’” (apud LOUREIRO, 2001 [s/d], p. 140). Esse evento possuiu grande significado para Plínio
Salgado, que na condição de homenageado, era objeto da atenção mútua das
pessoas lá reunidas; em destaque, ele percebe o alcance de sua realização, o
que aumenta sua energia emocional17, permitindo-lhe dar continuidade ao
seu trabalho, além de garantir a ele e ao grupo Verde-Amarelo um lugar no
espaço de atenção do campo intelectual. E por isto a homenagem foi igualmente importante para as pessoas ligadas ao Correio Paulistano, pois, em
última análise, era a celebração do sucesso do próprio grupo; exaltava-se
um feito que, de algum modo, era de “todos” – aliás, como ressaltado pelo
próprio Salgado ao falar na “vitória da casa”.
A realização desse evento não deixa de ser um aspecto da recepção do
livro O Estrangeiro; porém, situa-se no “fim” de um processo que abarca o
lançamento, as críticas e os debates na imprensa e a publicação da segunda
edição. Decerto não se pode atribuir unicamente às sociabilidades de Plínio
Salgado a recepção positiva do romance; é importante, também, investigar
o conteúdo dos comentários feitos. Assim, no tópico seguinte, passo ao
meu objetivo central: explorar de modo mais detido a temática da recepção, utilizando como material para análise algumas críticas e comentários
veiculados à época18.
SOBRE A RECEPÇÃO DO LIVRO O ESTRANGEIRO
Hans Robert Jauss, em A literatura como provocação, ao sublinhar
a importância da recepção na análise das obras literárias – tendo em vista
a compreensão dos efeitos provocados por elas –, destaca o papel crucial
desempenhado pelo público, isto é, pelo leitor, afinal, é a ele “a quem primeiro é dirigida a obra literária” (JAUSS, 1993, p. 56). E ainda ressalta:
Pois também o crítico que ajuíza uma obra nova, o escritor que concebe a
sua obra em função do modelo positivo ou negativo de uma obra anterior,
e o historiador da literatura que situa uma obra na tradição a que pertence
e a interpreta historicamente são, antes de mais, leitores, antes mesmo
de sua reflexão se tornar ela própria produtiva. No triângulo formado
pelo autor, a obra e o público, este último não é de forma alguma um
elemento passivo, que apenas reagiria em cadeia, mas antes uma fonte
de energia que contribui para fazer a própria história. A vida da obra na
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história não é pensável sem a participação activa daqueles a quem se
dirige (op. cit., p. 56-57).
No princípio deste artigo, mencionei a popularidade que O Estrangeiro
teve quando foi lançado em 1926: esgotou-se rapidamente, ganhando uma
segunda edição no mesmo ano, e recebeu inúmeros elogios que culminaram
na homenagem realizada no salão nobre do Correio Paulistano, onde Plínio
Salgado foi agraciado com um presente (uma escultura que representava o
personagem Juvêncio). Ressalte-se, também, que este mesmo jornal veiculou
em suas páginas anúncios sobre o livro. As críticas positivas de diversas
personalidades certamente contribuíram para tal sucesso, mas não basta
indicar unicamente se foram “boas” ou “ruins”, sendo importante observar
o conteúdo dos comentários, a fim de se apreender como o público (pelo
menos, uma parcela dele) recebeu o livro. Limitar-me-ei, desse modo, a
explorar alguns textos, selecionando os pontos a ilustrarem aspectos referentes à recepção do livro de Plínio Salgado. Começo com aquele que dá
título ao presente artigo.
Em 16 de maio de 1926, é publicado no jornal Folha da Manhã um
artigo de Manuel Mendes, intitulado “Sociologia ou Imaginação? A propósito do ‘Extrangeiro’ de Plínio Salgado”. Ali, o autor contra-argumenta
uma apreciação anterior, feita por Mario Graciotti, com o mesmo título
(“Sociologia ou Imaginação?”)19. Mendes inicia seu artigo classificando
O Estrangeiro como um “livro fortemente intencional, procurando fixar
aspectos da vida paulista – vida de fazenda, vida de cidade municipal e vida
da capital”, e afirma que Graciotti “nega o valor da obra sob o ponto de vista
ethnographico e ethnologico para accusar falsas bases de observação”. Em
seguida, Mendes menciona brevemente os objetivos de Graciotti (dissertar
“sobre a personalidade literária de Plínio Salgado, prometendo primeiro
tratar do homem e depois do Artista”) e como este discorreu sobre dois
personagens, Juvêncio e Ivan, chegando à seguinte conclusão: “Lindo, não
resta dúvida, mas é literatura”. Mendes, então, declara que o autor “fere a
questão sociológica do livro” e prossegue: “Creio eu que uma obra de arte,
tratando como tratou do movimento transformador de São Paulo, que será
[...] de todo o Brasil, não é obrigada a estabelecer theorias de livros escolares baseadas em retalhos de princípios pedantes nas suas correlações com
a philosofia” (MENDES, 1926).
Aqui já é possível observar que, na sua leitura, Manuel Mendes traz à
tona duas questões relevantes: a primeira diz respeito ao “valor sociológico”
da obra, vista como um romance que pode muito bem passar por um estudo
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da realidade brasileira; em particular, sobre a complexidade de São Paulo,
com seus tipos distintos e as relações entre estes, na sociedade paulista. Daí
Mendes declarar que “Plínio Salgado nada mais fez que apresentar factos,
aliás conhecidos de todos...” (ibid.). O próprio Salgado, no prefácio ao livro,
escreve que a obra “procura fixar aspectos da vida paulista nos últimos dez
annos” (SALGADO, 1937 [1926], p. 11). Esta característica atribuída a O
Estrangeiro, a qual será ressaltada em outros textos, é ilustrativa da preocupação com a ideia de brasilidade (MORAES, 1978), com o processo de
redescoberta do Brasil e de seus elementos, como o uso da fala popular,
ressaltada por Silveira Bueno em sua crítica: “[...] a língua do povo, com
todos os seus modismos, percucientes curiosos, sóbe a foros de expressões
literárias, não recuando o romancista deante de quaesquer empregos, ainda
que o termo seja apenas da gíria popular, da meia língua de uma cidade
cosmopolita como S. Paulo” (BUENO, 1926).
Este aspecto (retomo-o mais à frente) apresentado na crítica de
Manuel Mendes, que confere ao livro de Plínio Salgado certo status de estudo sociológico, introduz a segunda questão, de certo modo, por uma via
negativa. Ou seja, ao negar em O Estrangeiro um “tipo” de conhecimento,
de forma para se alcançar o “real”, ilustrado não só pela citação em destaque
anterior – quando Mendes fala nas “theorias de livros escolares baseadas em
retalhos de princípios pedantes (...)” – mas também quando censura Graciotti
por “te[r] a obsessão do sociólogo em compendio” (MENDES, 1926).
Eduardo Jardim de Moraes toca nesta questão ao ressaltar, em um
texto de Cassiano Ricardo, o “desprezo pelo saber livresco, identificado à
idéia de sistema, ligado à figura de Ruy Barbosa. O que está em jogo nesta
crítica é o fato de que a adoção de formas sistêmicas de apreensão da realidade exclui a utilização da intuição (...)” (MORAES, op. cit., p. 126). Para
Plínio Salgado, ocorre situação semelhante, como bem destacou Mendes
ao reputar as críticas de Graciotti à sua “obsessão” por um “modelo” de
apreensão da realidade que, em verdade, mostra-se falho e por isto o impede de compreender corretamente o que se poderia chamar de um “método
intuitivo” de conhecimento social, utilizado por Salgado em seu romance.
Como colocado por Leonardo Ayres Padilha: “A literatura de Plínio Salgado (...) desenvolve-se através de categorias estranhas (como a intuição)
à racionalidade iluminista ou à sistemática do pensamento científico que
conceberam o mundo como cada vez mais norteado pelos eixos funcionais”
(PADILHA, 2005, p. 95).
Embora não seja encontrada, no texto de Mendes, nenhuma referência
explícita às faculdades intuitivas para que se chegue a um conhecimento
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direto sobre o real, sobre a nação, é possível, ainda assim, deduzir sua importância quando das críticas expostas anteriormente e que levam o autor a
concluir que Mario Graciotti apreciou O Estrangeiro “vendo, no desenho da
creação, a melodia da Arte através de seu instincto educado. E nada mais”
(MENDES, 1926. Grifo meu). Cria-se, assim, uma situação bastante curiosa:
de um lado, Graciotti parece negar ao livro de Plínio Salgado qualquer valor
científico, sociológico, diante da ausência – pelo que se depreende da resposta
de Mendes – de teorias e do “saber livresco” aplicado à construção da obra;
por isto acaba opondo sociologia a imaginação (em última análise, ele é
puramente Literatura). Manuel Mendes, por sua vez, sublinha este mesmo
caráter sociológico e o defende justamente por não se fiar em teorias, no
recurso ao “saber livresco” e no conhecimento científico comum que gera
aquele “instinto educado”: O Estrangeiro seria uma obra sociológica porque
o “método” utilizado é outro que não aquele do saber livresco e por isto é
o mais capacitado a alcançar a realidade, a perceber a sociedade brasileira
em sua complexidade. Poder-se-ia mesmo dizer que Mendes não opõe
Sociologia à Imaginação, mas as aproxima20. Será Tasso da Silveira quem
apontará, claramente, para a junção entre capacidade intuitiva e Sociologia:
A impressão mais forte que me ficou de Plínio Salgado foi esta: ele é de
fato uma expressão violentamente brasileira. É uma voz da raça. (...) ele
nos aparece como poeta. Poeta nas páginas de pura evocação de beleza,
das de contemplação dos silêncios e das distâncias da grande terra, de
apelo às forças adormecidas, de penetração amorosa das paisagens naturais e humanas, de ânsia por descobrir um sentido na nossa história e
na nossa realidade. (...) Poeta, ainda, nas páginas de eloquencia nova –
uma eloquencia que é a poesia penetrando na inteligencia – e das quais
se serve para transpor em teoria sociológica as puras intuições de seu
entusiasmo criador21 [grifo meu].
Ora, sendo a Sociologia, naquele período, caracterizada por ser
“praticada por intelectuais não especializados, interessados principalmente
em formular princípios teóricos ou interpretar de modo global a sociedade
brasileira” (CANDIDO, 2006, p. 271 [grifo meu]), o meio ideal para se
alcançar tal interpretação é pelo uso da intuição, como faria Plínio Salgado
em seu romance. As “teorias sociológicas” que estariam presentes em O
Estrangeiro seriam, assim, fruto não de uma análise mediada por categorias
“que estão em jogo na lógica do discurso científico” (MORAES, op. cit., p.
123) – ou por teorias e conceitos importados –, mas sim resultado do uso
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“SOCIOLOGIA OU IMAGINAÇÃO”...
das faculdades intuitivas que permitiram a Plínio Salgado entrar em contato
com a realidade brasileira.
Paralelamente à intuição, o sentir como experiência do contato direto
com esta realidade também é ressaltado no livro, desta vez, por Cassiano
Ricardo, colega de verde-amarelismo de Plínio Salgado:
Ser brasileiro não é ter olhos bastantes para contemplar a fisionomia
exterior das coisas que identificam o território [...]. Mas é sentir que
essas coisas terão influído no nosso destino. Em vez de reconhecê-las,
reconhecer-se nelas [...]. Sentir-se ligado a elas, como se todas elas nos
houvessem impregnado de intima comunhão [...]. Ser brasileiro é sentir,
cada um de nós, que não pode viver sem elas, porque elas entraram na
substância de nossas ações, determinaram o curso de nossa existência
vegetativa ou intelectual [...] fizeram florir o tesouro de nossa personalidade
própria. Plínio Salgado está neste caso: é um brasileiro que conseguiu
“viver” o Brasil, penetrar os recantos humildes da terra, fixar-lhe os
aspectos mentais [...]22.
Aqui, Cassiano Ricardo considera que Plínio Salgado possui a capacidade de, na condição de brasileiro, entrar em contato direto com o país,
com a terra; sente o Brasil porque faz parte dele, a comunhão entre ambos
torna-os uma única unidade, indivisível e isto capacita Salgado a “viver”
(a sentir) o país em toda a sua extensão, a alcançá-lo, no plano geográfico,
nas mais longínquas localidades, e no mental, a atingir e compreender os
sentimentos, os pensamentos de seus habitantes. Na crítica de Hildebrando
Siqueira23, Plínio Salgado seria, assim, um “pensador de visão nítida e potente. É sociólogo brilhante (...). O panorama nacional, ele não o fragmentou
para fixá-lo. Integrou-se na alma do Brasil e por isso pode compreende-lo
em sua totalidade”. Se ele foi capaz de pintar um quadro tão ví(i)vido, de
mostrar a realidade brasileira manifesta nos personagens do romance, então,
as críticas e os comentários feitos sobre O Estrangeiro, sobre seu suposto
caráter sociológico, encontrariam justificativa, mesmo que tenha lançado
mão de “método” certamente estranho à Sociologia.
Retorno, assim, àquela primeira questão, visto ser ela recorrente nas
apreciações do livro de Plínio Salgado, o que talvez demonstre como O
Estrangeiro apresentou algo novo (“algo nuevo”, como escreveu Monteiro
Lobato) para a experiência do público leitor, pois este foi apresentado a
uma obra sem igual, ou melhor, quase, porque algumas de suas avaliações
tomaram como referência para comparação e avaliação de seu valor estético
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ALEXANDRE PINHEIRO RAMOS
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outro livro, Os Sertões, de Euclides da Cunha. Silveira Bueno e Tristão de
Ataíde podem ser citados como exemplo. O primeiro, em artigo publicado
na Folha da Manhã, assim iniciou seu texto: “A literatura genuinamente
brasileira possue agora dois livros que ficarão, como marcas de transformações cosmogonicas e ethnographicas: ‘Os Sertões’ de Euclydes da Cunha e
‘O Extrangeiro’ de Plínio Salgado” (BUENO, 1926); e o segundo escreveu
não ser
[...] deslocado evocar ‘Os Sertões’ ao falar de um livro que se prende,
afinal, à mesma corrente de expressão da raça nova, da nacionalidade
em esperança, com seus crimes e suas possibilidades. São ambos livros
barbaros, escriptos menos que gravados a ponta de faca (ATAÍDE, 1936,
p. 261. Grifo do autor).
Deste modo, parece-me que Hans Robert Jauss está correto quando
escreve que uma “obra não se apresenta nunca (...) como uma absoluta novidade, num vácuo de informação, predispondo antes de seu público para
uma forma bem determinada de recepção, através de informações, sinais
mais ou menos manifestos, indícios familiares” (op. cit., p. 66-67). Por isto
“corrigi” a afirmação de que O Estrangeiro era uma obra sem igual, pois
sua recepção foi feita com base em um contexto anterior de experiências,
em um conjunto de leituras e obras que passaram a informar o horizonte de
expectativas dos leitores; e mesmo o “ineditismo” do livro é avaliado por
meio de tais referências anteriores, as quais se utilizam de exemplos tanto
positivos quanto negativos para a análise da obra em questão. No primeiro
caso, o livro Os Sertões constitui-se em uma referência positiva, como
visto anteriormente. Aliás, é válido sublinhar uma questão cara ao livro
de Euclides da Cunha e que é retomada na obra de Plínio Salgado. Para o
primeiro, o sertão é definido “como lugar de nossa ancestralidade, no qual,
à maneira de um mito, se encontra o lar de verdade” e elege-se a terra como
condição fundamental para a realização do homem (VILLAS BÔAS, 2006,
p. 42). No segundo, ideia semelhante é encontrada no personagem Juvêncio,
que pensava de si mesmo: “Seria um monge, si o coração me levasse para
o Céo; mas o meu sangue soffre a attração da Terra” (SALGADO, 1937,
p. 138), e por isto, sempre incomodado com a vida citadina, deslocava-se
constantemente do litoral em direção ao sertão, onde entraria em contato
com o Brasil24.
Ainda no contexto dessa comparação com a obra de Euclides da
Cunha, deve-se mencionar a crítica do ator e dramaturgo Renato Vianna,
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“SOCIOLOGIA OU IMAGINAÇÃO”...
publicada no Correio Paulistano do dia 24 de novembro de 1926. Nela, o
autor manifesta grande entusiasmo pela obra de Plínio Salgado, saudando-a
como “a mais fulgurante expressão literária dos nossos tempos (...). São as
mais verdadeiramente modernas páginas de nossa época, é o mais brasileiro
dos nossos livros – o mais forte, o mais viril, o mais bello”. Em seguida,
escreveu o crítico: “Acho que foi por isso que a crítica artística ficou tonta
e disse sobre elle muita tolice”. Uma dessas “tolices” seria, exatamente, a
comparação com Os Sertões. Escreveu Vianna:
Vejo nas duas grandes obras symbolos distinctos, de expressão differente,
sendo que a d’O Extrangeiro me parece muito mais significativa e ampla,
porque mais profunda. Os Sertões são uma expressão esthetica, porque
política; O Extrangeiro é uma expressão política, porque esthetica. Esta
última é incomparavelmente mais evoluída (VIANNA, 1926).
Neste sentido, o livro de Plínio Salgado era, aos olhos do dramaturgo, superior à obra de Euclides da Cunha, uma etapa posterior em um
processo evolutivo que levava a um aprimoramento estético. Se, nos casos
anteriores, criava-se uma equivalência, aqui, o autor da crítica estabelece
uma hierarquia de valores, a qual se manifesta neste aspecto “evolucionista”
que parece relacionar-se, no encadeamento dos argumentos do texto, a uma
ideia de “espírito do tempo”, cuja existência e efeitos sobre o mundo se dão
independentemente dos próprios indivíduos:
O “rhytmo novo” já batera nas artérias cósmicas do gênio brasileiro. Elles
sentiam o que justamente acontecia – e que acontecera pela fatalidade
do próprio movimento, sem influências exteriores, que nunca, em parte
alguma da história humana, existiram realmente.
O homem, quando toma a resolução de “querer uma coisa” já foi constrangido a resolver isso mesmo.
A hora brasileira que passa não é, pois obras dos “modernos”. Os “modernos” é que são obra da gora que passa (ibid. Grifo meu).
Em sua coluna do dia seguinte, Menotti del Picchia, como Helios,
escreveu uma dura réplica intitulada “Uma crítica em estado crítico...”. Nela,
o autor afirmou sua anuência à comparação feita entre as duas obras, e, em
seguida, questionou a “lógica” do pensamento de Renato Vianna – assinalando o trecho “Os Sertões são uma expressão estética, porque política...”
– nos seguintes termos: “Que diabo disso é aquillo? Que lógica se vê nisso?
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(...) Ora, sr. Renato! Na lógica corrente, tanto faz ‘dar na cabeça quanto na
cabeça dar’” (PICCHIA, 1926). E prosseguiu sua crítica, passando para a
questão mencionada anteriormente:
Outro despropósito oriundo de seu fatalismo histórico: o “espírito
moderno” não é filho dos artistas que marcaram seu rythmo dentro do
nosso pensamento. É autogenético, diz, melhor expressão fatal da lei da
evolução espiritual atuando no tempo... Até ahi morreu o Neves. Nas
cachoeiras do Iguassú, desde os tempos de Raposo, havia milhões de H.
P., em potência, mas somente eles começarão a trotar nos fios eléctricos
quando as usinas se installarem junto das suas titânicas águas. Assim como
somente se humaniza a força quando a actuação humana a desencadeia
na sociedade, assim o “espírito moderno” tem sua causa immediata na
consciência dos artistas que o encarnarem. Elles são “causas” e sua obra,
a irradiação do seu pensamento, sua influência orientadora e remodeladora, a finalidade... (Ibid.).
Como não podia deixar de ser, Menotti del Picchia só concordava com
Renato Vianna no que dizia respeito aos elogios a Plínio Salgado e seu livro,
aproveitando não apenas para reafirmar o valor da obra, mas também para
marcar sua posição intelectual – além de desqualificar de pronto a crítica
de Vianna: “Tirante nelle a parte da exaltação junta a obra monumental de
Plínio – de quem tenho a honra de ser collega verdamarello – achei o resto
de seu artigo sem pé nem cabeça” (ibid.).
Já o escritor Monteiro Lobato (1936 [1926], p. 253) foi ainda mais
longe em sua avaliação de O Estrangeiro, estabelecendo outra comparação:
É mais que um romance. Dá a impressão duma grande obra cyclica, ao
molde da ‘Comedia Humana’, de Balzac; qualquer coisa como notas
estenographadas com mão febril para ulterior desenvolvimento. E talvez
por isso seja tão forte, tão nova a impressão que causa.
Como exemplos negativos utilizados para exaltar o valor estético do
livro, temos a crítica de Silveira Bueno que sublinha, inclusive, o estilo de
Plínio Salgado, aproximando-se do comentário feito por Monteiro Lobato:
A maior qualidade da forma literaria de Plínio Salgado é o seu formidável
poder de synthese, de concisão. No Brasil ainda não apareceu egual;
todos os nossos escriptores, a começar de Ruy Barbosa até Mario Pinto
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“SOCIOLOGIA OU IMAGINAÇÃO”...
Serva, primam todos, como optimos tropicaes que são, pela prolixidade,
pelo derramado e repetido do escrever, vede Alberto Rangel e o próprio
Antonio Torres, que formidáveis parlapatões estirados e bojudos de sonoro
ressoar! (BUENO, 1926. Grifo meu).
É interessante notar que Bueno utiliza Rui Barbosa para fazer um
contraponto ao estilo de Plínio Salgado, além de dar-lhe a alcunha de “tropical”. Cassiano Ricardo, em artigo intitulado “Nem Ruy, nem Jeca” – que
compõe o livro O Curupira e o Carão (1927) –, usa a figura do mesmo
Rui Barbosa para demarcar a diferença dos verde-amarelos, para afirmar o
que era novo: “Ruy foi (...) o maior demônio da intelligencia tropical em
contato com os léxicos (...). Ruy não tinha, entretanto, o senso divinatório e
profundo – a intuição perscrutante dos phenomenos” (RICARDO, 1927, p.
84-85)25. Retornando a Silveira Bueno (1926), é justamente esta característica
estilística um dos pontos altos do romance, e mesmo o fato de o “nosso autor
[ser] tão rápido, tão abreviado, que, muitas vezes, se prejudica na clareza
da expressão” não retira seu mérito que, aliás, liga-se ao uso, ao longo do
livro, da fala popular (como já foi mencionado). Esta “novidade” do estilo
de Salgado – audácias, no dizer de Silveira Bueno – casa-se “perfeitamente
com o assumpto novíssimo do livro”. E prossegue:
Plínio Salgado, apanhando o momento ethnico, actual, da nossa terra,
caldeira formidável onde se estão fundindo os elementos da raça que há
de ser a do Brasil definitivo de amanhã, deu as suas profundas concepções de primeiro sociólogo brasileiro, a roupagem escripta do instante
genésico do país. Guiado por essa directriz, elle não poderia servir-se
da linguagem literária dos outros autores, mas sim da única que seria
capaz de traduzir-lhe com vigor as [ideas] novas, - dessa fala, por vezes
barbara, do nosso quotidiano expressar paulista (ibid.).
Aqui, o romance de Plínio Salgado, além de ser identificado como de
natureza sociológica, é saudado por buscar reproduzir a realidade brasileira
por meio da língua falada no dia a dia, e tal expediente, na medida em que
nega o uso de outras linguagens literárias, artificiais ou mesmo inúteis para a
construção da obra, reafirma a importância do contato, da experiência direta
com o real para a devida apreensão dos caracteres nacionais. A crítica de
Bueno, ao ressaltar este aspecto de O Estrangeiro, parece apontar, naquele
momento, para o eventual aumento de distância, do qual fala Hans Robert
Jauss (op. cit., p. 72), entre o horizonte de expectativa do público leitor e
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o contexto da experiência estética que diferencia as obras literárias “do
domínio da arte ‘culinária’ ou de uma simples diversão”26.
Por fim, menciono a “conversa” entre Cândido Motta Filho e Plínio
Salgado também nas páginas do Correio Paulistano. Iniciada com a crítica do
primeiro, teve a réplica do segundo e, pouco depois, a tréplica. O (primeiro)
texto de Motta Filho, de 2 de maio de 1926, é particularmente relevante na
medida em que encerra questões levantadas por outros críticos e propõe
um debate em torno do principal personagem do romance, o russo Ivan.
Assim, o autor inicia sua crítica recordando o “instinto de nacionalidade”
de Machado de Assis e escreve que, na época do romantismo, a literatura
nacionalista afirmara-se, antes, como uma atitude sentimental, fazendo com
que os temas brasileiros carecessem de alicerces, e “por isso, o parnasianismo apagou esse colorido que vinha nascendo com as cores mansas das
madrugadas...” (MOTTA FILHO, 1926). Mas este quadro se transformava:
“E vem de novo, o intenso desejo de renovação, que parece sahir do limite
do instictivo para se aprumar no amplo recinto do espírito. Assim é que se
vai erguendo o edifício da nossa cultura”. E então o autor faz uma avaliação
da geração de escritores da época:
Acredito mesmo que a geração actual será uma grande sacrificada. Ella
traz em si, ainda, um grande calor de destruição. Falta-lhe certa firmeza
e sobra-lhe dispersidade. Mas é Ella sem dúvida fornecerá para o futuro
uma preciosa colleção de materiais (ibid).
E a partir daí, inicia seu exercício judicativo, afirmando “como é curioso e profundamente nosso, actualista, ‘O Extrangeiro’, de Plínio Salgado!”.
Mais uma vez, Os Sertões (ao lado de Canaã) é a obra de referência, mas o
autor distingue-o de ambos: “O Extrangeiro é bem diverso. Nelle não existe
o poema da terra e nem o poema do homem. Existe uma expressão esthetica
do mundo psychico nacional. Fusão. Integração. (...) Inquietudes. Esperanças,
Doenças e Alma. Brasilidade...”. E então critica o estilo adotado por Plínio
Salgado por considerá-lo semelhante ao de Menotti del Picchia, Oswald de
Andrade e Mario de Andrade; avaliação, aliás, não observada em outros
comentários e críticas. Para Motta Filho, ele possuía o “cunho pronunciado
do modernismo combativo”, desejando que “escrevesse um livro que não
fizesse lembrar os modernistas de São Paulo. Plínio que é nova personalidade literária, forte, integral, deixou o seu estylo bambear-se por influências
desnecessárias”. Critica-o, assim, por tal recurso, e o elogia quando deixa
aflorar o próprio estilo: “Porque quando o estylo incisivo, claro lyrico de
Plínio aparece – os quadros deste livro são verdadeiras obras prima!” (ibid.).
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“SOCIOLOGIA OU IMAGINAÇÃO”...
O diálogo entre Plínio Salgado e Cândido Motta Filho é estabelecido
na discussão em torno do personagem Ivan, que faz o crítico afirmar: “Não
sei porque deu vida a Yvan. (...) Acho-o forçado. Nada tem de russo”. Em
sua réplica, publicada em 20 de maio de 1926, o autor do romance afirma,
em primeiro lugar, que “a figura de Ivan é artificial (...). Ivan é uma sombra.
Os outros personagens, cada um vive a sua realidade, ao passo que Ivan
vive realidades ambientes” (SALGADO, 1926)27 e passa, então, a enfrentar
o questionamento do crítico28. Afora determinadas escolhas feitas para a
própria composição do livro29, é possível captar a principal ideia de Plínio
Salgado nas explicações fornecidas: Ivan era incapaz de entrar em contato
com o ambiente, com a terra ao seu redor, de sofrer sua influência. “É o homem que se torna extrangeiro de todos os países, por fugir as leis imperiosas
do meio”; é um “homem desamparado por todas as forças da Terra”. Em
última análise, Ivan seria “o próprio povo brasileiro, quer em 1824, quer em
1889, sentindo-se extrangeiro no país para o qual tinha que legislar” (ibid.).
A tréplica de Motta Filho dá prosseguimento à discussão: discordando da
representação do Brasil por meio do russo Ivan, argumentando que o país
“muito antes de 1824 revela em sua política nacionalista turbulenta, na sua
arte indecisa, um poderoso instincto de nacionalidade” (MOTA FILHO,
1926a). Considerando tratar-se de um romance de “expressão nacionalista”30,
o crítico justifica parte de sua incompreensão – e antipatia – em relação ao
personagem através desta representação construída pelo autor. E conclui
seu texto com uma última avaliação do personagem em questão: “Assim
Ivan é neste romance, talvez o melhor romance do modernismo, um grande
importuno, um extravagante transformado pela argúcia de Plínio Salgado
num coringa magistral” (ibid.).
Ressalto, nesta “conversa”, não somente mais alguns aspectos da recepção do romance de Plínio Salgado – no qual se evidenciam, novamente, os
elogios, assim como avaliações críticas, por vezes não encontradas em outros
textos –, mas também o tipo de interação construído nas páginas do Correio
Paulistano entre estes dois intelectuais. É uma interação que se aproxima
daquela forma particular sublinhada por Randall Collins, característica das
inter-relações do microcosmo intelectual: o momento no qual não buscam
nem a mera socialização, tampouco serem “práticos”, interessando-lhes, antes,
ao se afastarem de todas as outras redes de sociabilidade que compõe suas
vidas (COLLINS, 1998, p. 25), o debate em torno de um bem simbólico. Tal
interação entre Plínio Salgado e Cândido Motta Filho, ainda que não face
a face, mostra-se como uma atividade do trabalho intelectual e se ocupa,
no caso, com o personagem do romance, procurando-se sua compreensão e
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explicação em um processo dialógico cujo resultado deverá ser algo como
uma “verdade”, isto é, algo inequívoco, a explicitação de uma determinada
ideia sobre a qual se criara uma discussão.
Em outras críticas, repetem-se os comentários sobre o romance
de Plínio Salgado: Agripino Grieco (apud PLÍNIO, 1936 [1926], p. 273)
julgou-a “obra de um literato que se completa no pensador, no historiador,
no sociólogo”; para Afranio Peixoto (apud PLÍNIO, 1936 [1926], p. 273),
“bello e original romance O Estrangeiro: Chronica, pamphleto, sociologia,
historia, realidade, e ficção”. Não vale a pena continuar a reproduzir estes
trechos, com exceção, talvez, de um em particular para concluir este tópico, retomando uma das questões levantadas pelas críticas e comentários
selecionados, e mencionada logo no título deste artigo – o caráter “sociológico” de O Estrangeiro. A avaliação é de Oliveira Vianna, que não se furta
ao estabelecimento de um nítido corte entre o conhecimento sociológico,
científico, e aquilo obtido pela literatura:
Eu subscrevo integralmente o juizo do [Monteiro] Lobato, accrescentando,
porém, que desejaria ver o bello plano do “Estrangeiro” desenvolvido no
domínio dos estudos sociaes, em que fixasse e explicasse o phenomeno
paulista de nossos dias num quadro igualmente profundo e poderosamente
estructurado, mas posto em bases scientificas e não em bases de ficção.
O Talento lhe sobra. Que faça isto (1936 [1926] p. 259. Grifo meu).
Não foi minha intenção investigar diretamente o sucesso do livro
junto a um público de leitores “anônimo”, isto é, buscar os motivos de sua
aceitação por parte deste. Contudo, acredito ser possível conjecturar que,
a partir das evidências encontradas e aqui mencionadas, as manifestações
elogiosas a ele na imprensa contribuíram, junto de outros fatores, para as
vendas de O Estrangeiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo deste artigo é evidenciar alguns aspectos da recepção do
romance O Estrangeiro, de Plínio Salgado, pelo recurso às críticas, comentários, elogios feitos por diversos intelectuais em 1926, ano de lançamento
do livro. Considerado um sucesso de público e crítica na época, o romance
catapultou a carreira literária de Salgado – e decerto contribuiu para sua
trajetória política – e contribuiu largamente para demarcar a presença da
corrente verde-amarelo no espaço de atenção do microcosmo intelectual do
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“SOCIOLOGIA OU IMAGINAÇÃO”...
país. Reconhecendo o caráter infinito do mundo social, busquei reconstruir
o momento em que, seguindo seu lançamento, foram feitas as avaliações
do romance, chegando até a homenagem prestada a Plínio Salgado, ocasião
em que foi realçado não só o seu sucesso individual, mas igualmente o êxito
do grupo integrado também por Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia.
Restringindo-me ao instante imediato de um ano, procurei mostrar as manifestações que acompanharam a publicação de O Estrangeiro, ressaltando
algumas questões em particular.
Neste sentido, examinando o conteúdo de textos veiculados por
jornais como Correio Paulistano e Folha da Manhã, chamo a atenção para
a articulação entre o contexto de experiência e o horizonte de expectativa
do público. Assim, assinalo referências diversas: desde a aproximação com
determinadas obras seminais, como Os Sertões e Canaã, até a presumida
dimensão sociológica do livro, passando, claro, pelas vinculações, mais ou
menos explícitas, ao estilo moderno e, em particular, às ideias defendidas
pelo verde-amarelismo. As discussões em torno desse “caráter sociológico”
são de importância crucial; afinal, mostram aspectos da articulação entre
a recepção do romance e um contexto intelectual mais amplo; ou seja, tais
discussões ultrapassam uma dimensão puramente literária, abarcando outros
elementos que concorrem para o tipo de leitura e avaliação levado a efeito.
Desse modo, a construção de um quadro mais completo, e complexo, torna-se necessária para a captação dos múltiplos aspectos que a recepção traz
consigo e a informam. Sendo assim, O Estrangeiro, de Plínio Salgado, foi
recebido e avaliado sob perspectivas distintas que saudaram suas qualidades
e apontaram problemas a partir da pluralidade de pontos de vista, contribuindo, simultaneamente, para transformá-lo, naquele momento – dada a ampla
atenção a ele dedicada – em um marco da literatura modernista brasileira.
Acredito que seria válido investigar os pormenores da articulação entre
o debate sobre o livro e seu sucesso de vendas, buscando-se sublinhar – para
retomar as reflexões de Hans Robert Jauss –, como a distância estética entre
a obra e as expectativas dos leitores (incluindo, aqui, os críticos) fez com
que estes experimentassem “uma nova maneira de ver que causa admiração
e perplexidade” (JAUSS, 1993, p. 72-73), o que influiria sobre seu impacto
junto ao público. Tratar-se-ia, neste sentido, de explorar a relação entre a
dimensão “social” (as sociabilidades, os comentários, as críticas) e o conteúdo
do romance – ligado aos debates e ideias modernistas e às imagens criadas
por Plínio Salgado para a composição de sua “crônica da vida paulista” –,
buscando-se compreender como a recepção favorável de O Estrangeiro foi
além da crítica especializada.
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Por fim, ao debruçar-me sobre a recepção do romance de Plínio
Salgado, procurei sublinhar como este instante que marca a etapa final da
elaboração de uma obra compõe um processo mais longo que pode ser traçado até as redes de sociabilidades, passadas e presentes, em cujo interior
o autor iniciou sua trajetória, estabelecendo contatos e relações de amizade
que, depois, seriam mobilizados e contribuiriam para suas atividades no microcosmo intelectual. A publicação de O Estrangeiro pode ser considerada,
deste modo, como um resultado das interações e relacionamentos de Plínio
Salgado que remontam à sua chegada ao Correio Paulistano, com os laços
de amizade, de trabalho e intelectuais construídos e reatualizados ao longo
da década de 1920. As críticas e elogios de colegas seus, como Menotti del
Picchia, Cassiano Ricardo e Cândido Motta Filho demonstram como tais
sociabilidades, componentes da vida cotidiana, ao mesmo tempo contribuíram para, e resultaram do sucesso angariado pelo livro, dando azo a uma
série de manifestações por parte de outros intelectuais. Ao fim e ao cabo,
busquei mostrar como a publicação de críticas, comentários ou apreciações
é um ritual de interação (cf. COLLINS, 1998, 2004) da esfera intelectual,
não presencial, mediado pelo texto em que o diálogo ou confronto entre o
autor e sua obra, e os pensamentos do leitor (transformado em autor) sobre
aquela, tomam corpo e podem, inclusive, contribuir para desenvolvimentos
ulteriores das trajetórias individuais.
Em relação a Plínio Salgado, pode-se argumentar que um dos efeitos
imediatos da boa acolhida de seu romance foi o fato de seu nome tornar-se
mais conhecido no ambiente intelectual brasileiro da época – além do
grupo verde-amarelo garantir e firmar seu locus no espaço de atenção. E é
provável que isto tenha pesado na escolha do próprio Plínio Salgado como
candidato às eleições para deputado pelo Partido de Representação Popular
(PRP)31 e em sua vitória. Além disso, diante daquele sucesso, “carregado”
de energia emocional, Salgado deu continuidade às suas atividades intelectuais, lançando outros dois livros em 1927 (Literatura e política e Discurso
às estrelas). Verifica-se, assim, que o momento da recepção de uma obra
inscreve-se no fluxo da vida social que se estende para o que lhe antecedeu
e o que lhe sucederá.
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NOTAS
“SOCIOLOGIA OU IMAGINAÇÃO”...
1 Este artigo é uma versão modificada de um paper apresentado no VII
Seminário de Sociologia da Cultura e da Imagem, realizado no IFCS/
UFRJ. Agradeço os comentários feitos por Eduardo Jardim no Seminário
e as sugestões do Parecerista da revista – busquei incorporar todos da
melhor forma possível.
2 A história do romance gira em torno do personagem Ivan, imigrante
russo que veio trabalhar no Brasil – primeiro no campo e depois na cidade, onde abre uma indústria. A narrativa contém outros personagens,
como o mestre-escola Juvencio, que busca o Brasil verdadeiro no sertão;
o Coronel Pantojo, fazendeiro representante da decadente “aristocracia
paulista”; Carmine Mondolfi, o próspero imigrante italiano, entre outros.
A espinha dorsal do romance é o contraste entre Ivan, vivendo na cidade,
e Juvêncio, no sertão. Para uma descrição detalhada do livro: Chasin,
1978, p. 268-278.
3 Os contemporâneos de Plínio Salgado usavam a palavra “sucesso” para
qualificar seu romance de estreia.
4 Mantive a grafia da época nas reproduções.
5 Essa seção ocupou mais de uma página do jornal, dedicando-se a tratar
de uma série de autores e obras. Vale destacar a presença de Plínio Salgado ao lado de intelectuais como Oliveira Vianna e Mario de Andrade.
6 Os pesquisadores do Integralismo costumam hipostasiar a influência
do fascismo na formação da AIB, colocando-a acima dos outros fatores
de ordem “interna” – ou então tomam-na como dada. Considero isto
um equívoco em vista da pluralidade de influências, o que transforma
o fascismo em mais um elemento mobilizado para criação e atuação da
AIB, sendo articulado com os outros. Para uma crítica desta abordagem:
Ramos, 2013, p. 31-45.
7 Note-se que não pretendo, com este procedimento, afirmar que o
sucesso de público e crítica alcançado por O Estrangeiro vincula-se
unicamente aos laços sociais de Plínio Salgado. Meu objetivo principal,
como enunciado, é outro.
8 “Na década de 1920, o mercado editorial brasileiro vivenciou um período de profundas transformações e inovações. Nestes anos, surgiram nos
grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, inúmeras casas
editoriais que apostaram em edições populares (...). Disseminava-se entre
os livreiros uma nova concepção do livro, que deixava de ser cultuado
como objeto de luxo a ser consumido por uma minoria abastada e passava a ser entendido como um objeto comercial lucrativo a ser consumido
por um amplo público leitor” (FRANÇA, 2010, p. 128). Sobre o livro e
a leitura no Brasil, ver: Hallewell, 1985; Far, 2006.
9 Sobre alguns aspectos do contexto sócio-histórico da década de 1920
e do ambiente intelectual, ver: Costa, De Lorenzo, 1997; Miceli, 2001.
10 Tratei rapidamente dessa polêmica em: Ramos, 2013, p. 72.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 125-154
ALEXANDRE PINHEIRO RAMOS
149
11 Há, aqui, uma divergência entre os motivos que levaram Plínio Salgado à
redação do Correio Paulistano. De acordo com sua biografia (LOUREIRO,
2001), o convite teria sido feito por sugestão de Nuto Sant’anna, diante da
ausência de Menotti para escrever uma coluna política. Salgado, então, a
redigiu e o texto foi bem recebido e publicado (p. 117).
12 De acordo com Hélgio Trindade (1979, p. 40), “A presença do poeta
Menotti del Picchia no Correio Paulistano é muito importante para Salgado,
pois ele o convencerá a abandonar a poesia parnasiana, estimulando-o a
dedicar-se à prosa”.
13 Fundada em 1924 por Cassiano Ricardo, foi, de acordo com Gustavo
Sorá (2010), um “órgão do movimento ‘verde-amarelo’, encabeçado por
Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e Plínio Salgado, que procurava
difundir o ‘pensamento de arte, ciência e literatura’ e, a partir do n. 11, o
‘modernismo, nacionalismo e ibero-americanismo’” (p. 47).
14 Outro leitor de primeira hora do romance O Estrangeiro foi Augusto
Frederico Schmidt, com quem Plínio Salgado desenvolveria grande amizade (RAMOS, 2013, p. 96-99; SORÁ, 2001, p. 140-144).
15 Uma exposição mais detalhada pode ser encontrada em: Ramos, 2013,
Capítulo 2.
16 Poder-se-ia dizer que partilham de uma rede de crenças, que “semelha
uma rede que mapeia a realidade em vários pontos, ali onde esses pontos
se definem pelo modo com que as crenças relevantes se relacionam entre
si. As redes de crença constituem redes de conceitos interligados, sendo
os conceitos, e a conexão entre eles, definidos em parte por crenças acerca
da realidade externa” (BEVIR, 2008, p. 243).
17 A energia emocional [emotional energy] consiste em “the kind of
strength that comes from participating successfully in an interaction
ritual” (COLLINS, 1998, p. 29). Para uma explicação sobre as relações
entre energia emocional e a vida intelectual: Collins, op. cit. p. 33-37.
Para uma análise mais detalhada, Collins, 2004, p. 102-140.
18 Este material foi recolhido no Fundo Plínio Salgado (depositado no
Arquivo Público e Histórico do Município de Rio Claro), em um livro
sobre Plínio Salgado, editado na década de 1930 e nos jornais Folha da
Manhã e Correio Paulistano, ambos de São Paulo.
19 Infelizmente ainda não consegui localizar este texto de Graciotti.
20 Vale lembrar que, como apontado por Leonardo A. Padilha (op. cit.,
p. 76), a imaginação para Graça Aranha – autor fundamental para compreender a discussão sobre este momento do modernismo –, é “um traço
característico coletivo dos brasileiros”.
21 Esta crítica de Tasso da Silveira foi retirada do trecho transcrito no
documento localizado no Fundo Plínio Salgado (número do documento:
086.024.015, página 4).
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 125-154
150
“SOCIOLOGIA OU IMAGINAÇÃO”...
22 Esta crítica de Cassiano Ricardo foi publicada no jornal Correio
Paulistano. Utilizei sua reprodução localizada no Fundo Plínio Salgado
(número do documento: 086.024.015, página 2).
23 Esta crítica de Hildebrando Siqueira foi retirada do trecho transcrito no
documento localizado no Fundo Plínio Salgado (número do documento:
086.024.015, p. 4).
24 Ressalte-se, no entanto, que as relações estabelecidas entre o homem
e a terra na obra de Plínio Salgado e na de Euclides da Cunha possuem
apenas alguns pontos de contato entre si, não sendo completamente
equivalentes. (Cf. PADILHA, 2005, p. 94-95).
25 Para uma análise mais minuciosa das ideias referentes a Rui Babosa,
ver: Moraes, op. cit., p. 126-130.
26 Parece interessante mencionar as memórias de Heitor Marçal, quando
de sua leitura de O Estrangeiro, para ilustrar esta diferenciação: “Nenhum
capítulo de livro deixou de ter para mim essa fragrancia subtil da realidade
humana que tanto interesse me offerecia, convencendo-me de não ter
deante de mim (...) uma dessas obras transitórias que a gente apenas lê,
apenas vae se inteirando do entrecho nas scenas que se sucedem (...)”.
(MARÇAL, 1936, p. 242).
27 Ao fim do romance, no capítulo XLIV (“O autor e o prefácio”), descobre-se que Ivan nada mais era que uma invenção de Juvencio: “Ivan
era uma criação de Juvencio, avultando no meio banal dos outros personagens. (...) Ivan, então, não existia senão no seu sonho”. (SALGADO,
1937 [1926], p. 285-286).
28 Plínio Salgado o faz por meio de quatro perguntas, respondidas logo
em seguida: “1ª) Qual a sua significação no livro?; 2ª) Por que Ivan é
russo?; 3ª) Por que, sendo russo, está demasiadamente occidentalizado?;
4ª) Como se explica a sua tragédia?” (SALGADO, 1926).
29 “Ivan é demasiadamente occidentalizado no meu romance porque o
typo classico de estudante moscovita não se explicava na obra, a menos
que eu quisesse fazer um romance de lyrismo piegas”; “(...) escolhi meu
homem na Rússia, justamente por ser o país que maiores affinidades
offerece com o nosso” (SALGADO, 1926).
30 A dimensão “nacionalista” do romance foi um dos principais aspectos
ressaltados por Jackson de Figueiredo, de modo que falou em “ânsia
da nacionalidade” ao exaltar certo otimismo. Escreveu ele: “Para nós,
nacionalistas racionaes, e não sòmente, ou quase nada sentimentais, este
poema d’O Extrangeiro é, mesmo em seus mais afflictivos e cruéis avisos,
um livro de esperança e de fé” (FIGUEIREDO, 1926).
31 Menotti del Picchia também concorreu e foi eleito, formando, com
Salgado, “a dupla ‘verde-amarela’ que teve marcada atuação naquela
legislatura” (PICCHIA, 1972, p. 219).
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ALEXANDRE PINHEIRO RAMOS
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“SOCIOLOGIA OU IMAGINAÇÃO”...
Palavras-chave:
Plínio Salgado; O Estrangeiro; modernismo; recepção.
Keywords:
Plínio Salgado; The
Stranger; modernism;
reception.
Resumo
O objetivo deste artigo é explorar, analiticamente, a recepção do primeiro romance do escritor modernista Plínio
Salgado, O Estrangeiro, lançado em 1926 e que obteve
expressivo sucesso na época. Recorrendo aos comentários
e críticas publicadas no ano de seu lançamento, apresento
não só os elogios feitos e os problemas apontados pelos
respectivos autores, mas também sublinho algumas questões que surgiram nas suas avaliações. Mostro, assim, que
a recepção deste romance evidencia aspectos que não se
limitam à dimensão literária, pois igualmente referem-se
a um contexto intelectual mais amplo e às redes de sociabilidades de Plínio Salgado.
Abstract
The article aims to explore, in an analytical way, the
reception of the modernist writer Plínio Salgado’s first
book, O Estrangeiro [The Stranger], which was published
in 1926 and had known a huge success at the time. By
recurring to the comments and critiques published in the
same year, I intend to show not only the accolades made,
and the problems pointed out by the critics, but also to
underscore some issues which arose from the evaluations.
Thus, I demonstrate that this book’s reception brings out
aspects that are not limited to the literary dimension, for
they also refer to a broader intellectual context and Plínio
Salgado’s social networks.
Recebido para publicação em setembro/2014. Aceito em novembro/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 125-154
O poder (in)visível da violência sexual:
abordagens sociológicas de Pierre
Bourdieu
Alba Jean Batista Viana
Mestre em Ciências da Nutrição pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). É professora do Centro de Ensino Superior e
Desenvolvimento (CESED – Campina Grande) e integra o projeto de pesquisa
Feminicídio de Paraibanas: estudo dos assassinatos de mulheres por questões
de gênero (CNPq).
Endereço postal: Rua São Gonçalo, 712, apto. 302, Residencial Gênova Manaíra.
58038-330 João Pessoa – Paraíba
E-mail: [email protected]
Eduardo Sérgio Soares Sousa
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba (PPGS/CCHLA/
UFPB). Coordena o projeto de pesquisa Feminicídio de Paraibanas: estudo
dos assassinatos de mulheres por questões de gênero (CNPq).
Endereço postal: Av. Silvino Lopes, 698, Apto. 1501. Edifício Montgallet,
Tambaú.
58039-190 João Pessoa – Paraíba
E-mail: [email protected]
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, procuramos estabelecer a discussão de
aspectos da violência de gênero para o plano simbólico, a fim
de ressaltar os valores, significados e ideologias presentes no
poder simbólico e que perpassam as dimensões do universo
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 155-183
156
O PODER (IN)VISÍVEL DA VIOLÊNCIA SEXUAL...
imaginário e se confrontam no cotidiano dos agentes sociais femininos em
situação de violência sexual. O presente estudo tem por objetivo analisar a
dimensão simbólica da violência sexual contra as mulheres com base nos
conceitos de “poder” e “dominação” do referencial teórico de Pierre Bourdieu.
A pesquisa realizou-se a partir de um levantamento bibliográfico
em periódicos indexados na base SciELO. Os descritores utilizados foram
poder simbólico, poder e dominação, violência de gênero, violência sexual
e violência simbólica. Para tanto, partimos da perspectiva teórica de que a
violência sexual perpetrada contra a mulher se origina nas relações de poder
e dominação, sobrevindas das construções sociais de gênero interiorizadas
que privilegiam o masculino.
O material empírico de que nos valemos adveio de observações registradas nos atendimentos realizados por um serviço público de referência
na atenção às mulheres em situação de violência sexual no estado da Paraíba. Realizamos, assim, recortes nos registros feitos por profissionais, nos
prontuários e livros de ocorrências; demos atenção especial às descrições
das violências sofridas pelas mulheres. A escolha metodológica teve como
propósito estender o olhar para além da violência sexual e estabelecer o
diálogo para o entendimento da dimensão cultural e simbólica, que embora
não seja vista como violência por muitos agentes sociais, também representa
manifestação de violência. Após as análises e interpretações, foi possível
realizar uma aproximação crítica dos autores com o objeto de estudo e
construir a síntese integradora do assunto.
Para elucidação do objeto de estudo, optou-se pela praxeologia do
sociólogo francês Pierre Bourdieu, por esta se apoiar numa variante modificada do estruturalismo, orientada para uma função crítica, na perspectiva
de revelar a articulação do indivíduo com o meio social. De acordo com
Thiry-Cherques (2006, p. 28), o “método que ele adota consta do cerne do
que ele denominou de ‘estruturalismo genético’ ou construtivista, que se
presta à análise dos mecanismos de dominação, da produção de ideias e da
gênese das condutas”. Na discussão, também recorremos à contribuição de
outros autores que tratam do tema em questão.
Ressalte-se que, apesar de Bourdieu não haver trabalhado com um
conceito de gênero propriamente dito, encontramos na sua obra elementos
teóricos que nos ajudam na compreensão dos universos masculino e feminino, e para o entendimento das relações de poder e dominação presentes nas
situações de violência sexual. Por conseguinte, torna-se valioso invocá-lo
para o debate (SENKEVICS, 2012).
Nos estudos de gênero, os conceitos de poder simbólico e dominação
(BOURDIEU) têm sido amplamente discutidos, visto ajudarem a compreender
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 155-183
ALBA JEAN BATISTA VIANA e EDUARDO SÉRGIO SOARES SOUSA
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o papel da mulher e a condição feminina no meio social, além de oferecer
a “oportunidade de uma posição científica epistemológica que não se situa
no polo dos determinismos estruturais como tampouco no dos subjetivistas”
(FONSECA, 2001, p. 21).
A análise da violência sexual contra a mulher, em Bourdieu (2005),
está relacionada ao exercício do poder simbólico. Nessa perspectiva, a mulher é vista como objeto ou símbolo cuja atribuição, no terreno das trocas
simbólicas, é manter o capital simbólico que se concentra em benefício das
forças de dominação, a fim de perpetuar o poder dos homens.
Perceber a violência sexual como resultante das relações de gênero
assentadas em categorizações, presentes na ordem social, possibilita compreender não apenas a posição das mulheres como subordinadas, mas, também,
construir uma proposição de análise a respeito da relação “dominação” e
“poder” a partir da teoria de Pierre Bourdieu, cujo interesse consiste em
revelar as formas implícitas destes conceitos nas sociedades capitalistas
(ANJOS, 2000). Nessa perspectiva, a violência sexual é aqui considerada
como um fato social a ser investigado.
Assim, iniciamos este artigo com uma discussão teórica acerca dos
cenários e modalidades de violência; em seguida, abordamos as relações
gênero e masculinidade e o poder simbólico na violência sexual, utilizando
exemplos de casos de violência sexual de mulheres acompanhados no serviço
de referência anteriormente citado. Os nomes das depoentes são fictícios, a
fim de preservar o anonimato, respeitando, assim, os preceitos éticos. Por
fim, nas considerações finais apresentamos os principais elementos analíticos
constituídos ao longo desse processo.
CENÁRIOS E MODALIDADES DE VIOLÊNCIAS
A violência contra as mulheres acompanha a trajetória da evolução
humana e se manifesta em todas as esferas do convívio social, constituindo uma das grandes preocupações mundiais que afeta sociedades, grupos
populacionais, famílias e indivíduos, indistintamente, de classes sociais,
etnias, religiões e culturas diversas (RIBEIRO; FERRIANI; REIS, 2004;
MEDINA; PENNA, 2008).
As evidências apontam que a violência contra a mulher origina-se
no desequilíbrio de poder existente entre homens e mulheres. Do ponto de
vista sociológico, essa violência vincula-se, também, a desigualdades de
natureza econômica, política, social e cultural, historicamente construídas e
culturalmente enraizadas nos vários segmentos da sociedade, destacando-se
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 155-183
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O PODER (IN)VISÍVEL DA VIOLÊNCIA SEXUAL...
como uma modalidade de violência das mais complexas por estar associada
a danos físicos, psíquicos e morais, envolvendo poder de dominação, coação
e desigualdades sociais (OLIVEIRA, 2007).
No Brasil, ainda que a violência seja reconhecida como uma prática
recorrente na vida de milhões de mulheres, importa ressaltar que não existem estatísticas sistemáticas e oficiais que apontem para a real magnitude
deste fenômeno, com exceção de alguns poucos estudos realizados na área
de violência, demonstrando que os dados sobre o problema ainda são indeterminados (BRASIL, 2011).
Estudos divulgados pela Agência Brasil (2014) a respeito da violência
contra mulher revelaram que, no cenário mundial, a violência sexual constitui
uma experiência habitual para as mulheres, e em algumas regiões é considerada endêmica. Dados divulgados pelo Estadão (2013) sobre a violência
contra a mulher evidenciaram que aproximadamente 35% das mulheres
em todo o mundo, acima de 15 anos, já sofreram violência física ou sexual
em algum momento da sua vida e que, em 30% dos casos, a violência foi
perpetrada pelos seus companheiros.
No que se refere ao panorama da violência cometida contra a mulher, no Brasil, a realidade atual é bastante impactante. Segundo os dados
do Mapa da violência (2012), com uma taxa média nos estados de 4,4
homicídios para cada 100 mil mulheres, o Brasil ocupa a sétima posição
no ranking de 84 países. Nas capitais dos estados, os índices são ainda
mais elevados, correspondendo a 5,1 homicídios. Destacam-se, aqui, pelas
elevadas taxas de homicídios, as seguintes capitais: Vitória, João Pessoa,
Maceió e Curitiba, com níveis acima de 10 homicídios por 100 mil mulheres (WAISELFISZ, 2012). O Mapa da violência de 2013 demonstrou que
no período de 2001 a 2011, o índice de homicídios femininos aumentou
17,2%, com a morte de mais de 48 mil brasileiras nesse ínterim, destacando
que só no ano de 2011 mais de 4,5 mil mulheres foram assassinadas no
país (WAISELFISZ, 2013).
Observou-se que 71,8% das agressões perpetradas contra as mulheres ocorreram na residência ou habitação das vítimas, evidenciando ser no
âmbito doméstico a maior parte dessas ocorrências. Quanto à faixa etária,
os dados demonstraram que as maiores taxas de vitimização concentram-se
na faixa dos 15 aos 29 anos de idade, com preponderância para o intervalo
de 20 a 29 anos, no qual as taxas mais cresceram, entre 2006 e 2010 (WAISELFISZ, 2012).
Com relação aos registros de atendimentos realizados pelo Sistema
Único de Saúde (SUS), no ano de 2011, referentes aos tipos de violência, os
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 155-183
ALBA JEAN BATISTA VIANA e EDUARDO SÉRGIO SOARES SOUSA
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dados evidenciam a predominância da violência física, englobando 44,2% dos
casos; a psicológica ou moral situa-se acima de 20% e a sexual é responsável
por 12,2% dos atendimentos. A agressão física assume destaque a partir dos
15 anos de idade da mulher, enquanto a violência sexual é a mais significativa
na faixa entre 1 e 14 anos. Dentre os atendimentos, constatou-se ainda que
a cada três pessoas atendidas, duas são mulheres em situação de violência
doméstica ou sexual; e em 51,6% dos casos foi notificada a reincidência de
violência contra a mulher (WAISELFISZ, 2012).
No tocante à violência sexual, os dados divulgados pelo Sistema de
Informação de Agravos e Notificação (SINAN) revelaram que, no Brasil,
em 2011, registraram-se 12.087 mil casos de estupros (BRASIL, 2011). As
informações divulgadas no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(FBSP), 2013, evidenciaram que, em 2012, esse número subiu para 50.617.
Corroborando essas informações, Cerqueira e Coelho (2014) ressaltam que,
segundo os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA),
publicados em 2014, no território brasileiro, no ano de 2013, 0,26% dos
habitantes sofreram violência sexual, correspondendo a aproximadamente
527 mil casos dos quais apenas 10% foram denunciados, demonstrando que
os índices podem ser ainda maiores, já que só são levados em consideração
os casos de violência doméstica.
Os dados apresentados revelam que, apesar da luta feminista em torno
da questão, a violência contra a mulher no Brasil e no mundo continua sendo
um grande problema de ordem social, uma vez que ocasiona danos à mulher
e viola os direitos humanos (ARAÚJO, 2008).
Observe-se que a expressão “violência contra a mulher” é bastante
abrangente e, muitas vezes, é empregada como sinônimo de violência de
gênero, conjugal e intrafamiliar. No entanto, apesar da sobreposição desses
conceitos, há especificidades nas práticas de violência, o que exige maior
rigor na utilização de tais conceitos como categorias analíticas (OSTERNE,
2011, p. 137).
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (CIPEVM), 1994, aprovada na Assembleia Geral da
Organização dos Estados Americanos (OEA), definiu como violência contra
a mulher “qualquer ato ou conduta, baseada no gênero, que cause morte,
dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, no âmbito público
como no privado” (OSTERNE, 2011, p. 134). Tal definição de conceito remete às modalidades de violência física, sexual e psicológica (idem, 2011).
Vejamos, a seguir, as distinções que se apresentam para tais modalidades.
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O PODER (IN)VISÍVEL DA VIOLÊNCIA SEXUAL...
Considera-se violência física qualquer agravo produzido através
de força física ou algum tipo de arma ou instrumento com a finalidade de
causar danos à integridade corporal de outrem. Os danos físicos podem
ser compreendidos desde uma leve dor até o extremo de um homicídio
(LIMA, 2013).
A violência psíquica, também reconhecida como violência emocional,
caracteriza-se pela ação ou omissão destinada a produzir danos à autoestima, à identidade e ao desenvolvimento do indivíduo. Nesta modalidade, se
enquadram as agressões verbais ou gestuais com o intuito de “aterrorizar,
rejeitar, humilhar o indivíduo, de modo a restringir a liberdade ou, ainda,
isolá-la do convívio social” (MINAYO, 2009, p. 39). A violência psicológica
é invisível; no entanto, seus efeitos poderão se manifestar através de atitudes
e comportamentos de mulheres em situação de violência (OSTERNE, 2011).
A violência sexual refere-se a toda ação em que, numa relação de
poder – por meio de força física, coerção, sedução ou intimidação psicológica –, se obriga uma pessoa a praticar ou a se submeter à relação sexual
(LABRONICI; FEGADOLI; CORREA, 2010).
Além das modalidades enunciadas, alguns teóricos, na análise dessa
temática, falam também de violência moral e violência simbólica. Assim,
denominam violência moral aquela que afeta direta ou indiretamente a dignidade, a honra e a moral do sujeito; é compreendida como qualquer conduta
que configure calúnia, difamação ou injúria, tratamento discriminatório, dentre
outros (OSTERNE, 2011). Por sua vez, é considerada violência simbólica
aquela que se realiza através de símbolos e signos culturais, se constituindo numa forma de dominação que se ampara em mecanismos simbólicos
de poder a fim de fazer com que as pessoas em situação de violência não
compreendam tal conjuntura como violência, aceitando-a (ABRAMOVAY;
CUNHA; CALAF, 2009). Ela “não ocorre através de atos, da coação, mas
pelo processo de submissão por parte dos dominados através do pensamento, das ideias e dos ideais assumidos pelos dominantes” (CASAGRANDE;
PERUZZOLO, 2012, p. 241).
Todavia, é importante ressaltar que tais tipologias de violência não
se produzem isoladamente; elas fazem parte de uma sequência crescente
de episódios, dentre os quais o homicídio é a manifestação extrema. Por
conseguinte, a depender dos processos de interação e dos contextos sociais,
as diversas modalidades exibidas podem se cruzar e se revelar como parte
integrante de outra categoria. Logo, práticas de violência se envolvem e convertem seus significados de acordo com o processo social (ABRAMOVAY;
CUNHA; CALAF, 2009).
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No cotidiano da dinâmica social, a violência poderá receber distintas
adjetivações, de acordo com: os sujeitos que a praticam, a condição dos
indivíduos em situação de violência, o território onde se instala, e, também,
a forma como se manifesta (OSTERNE, 2011). Vejam-se, a seguir, as respectivas modalidades de violência.
A violência contra mulher é entendida como uma modalidade específica, com ênfase centrada na mulher atingida pelo ato violento (COMISSÃO
PARLAMENTAR..., 2012).
A violência de gênero refere-se à manifestação de poder desigual entre
homens e mulheres (ZUMA et al., 2009). Frequentemente, as expressões
“violência contra mulher” e “violência de gênero” são empregadas como
sinônimo, como já mencionado anteriormente. No entanto, para Saffioti
(2002; 2004), o conceito de violência de gênero é mais amplo, pois pode
envolver não apenas a violência dos homens contra as mulheres, mas também
a violência entre homens ou entre mulheres, contra crianças e adolescentes.
Nessa perspectiva, a violência contra mulher pode ser considerada como
uma das principais modalidades da violência de gênero.
No que concerne às denominações violência doméstica e violência
familiar, a Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha (BRASIL,
2006), no seu Art. 5º, considera como violência doméstica aquela que sucede
no âmbito doméstico por intermédio de pessoas com ou sem vínculo familiar
(GOMES et al., 2007). Já a violência familiar é compreendida como aquela
produzida no âmbito da família, dentro ou fora de casa, “por indivíduos que
são, ou se consideram, aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade
ou por vontade expressa” (BRASIL, 2006). Logo, a violência doméstica se
distingue da intrafamiliar por abranger outros membros, sem função parental,
mas que participam do espaço doméstico, tais como empregados, agregados,
dentre outros (COMISSÃO PARLAMENTAR MISTA..., 2012). A Lei ainda
faz referência à violência conjugal como aquela que se dá “em qualquer
relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com
a ofendida, independente de coabitação” (GOMES et al., 2007, p. 505).
Para Rifiotis (1998), quando tratamos de estabelecer um conceito para
violência, nossa percepção sobre o assunto ainda é limitada, tendo em vista
que se processa uma homogeneização de vários fenômenos, o que conduz
a uma simplificação das suas possíveis causas. Nas palavras do autor:
[...] ao falarmos de violência não estamos nos referindo apenas a realidades concretas, mas a um sistema de classificação e de significação
que orienta a nossa percepção dos fenômenos. Quando procuramos
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O PODER (IN)VISÍVEL DA VIOLÊNCIA SEXUAL...
circunscrever o campo semântico da palavra violência, deparamo-nos
com um jogo de linguagens onde diferentes tipos de fenômenos são
aproximados, enredados numa teia discursiva cuja amplitude equivale
a uma visão de mundo. Assim, aquilo que chamamos violência recobre
fenômenos muito diferentes que não podem ser reduzidos ao crime e à
violência institucional. Desse modo, no nosso cotidiano, referimo-nos
[...] a violência contra as mulheres, contra as crianças, contra a natureza,
a violência física, psicológica, simbólica, cognitiva [...], cuja regra de
formação ainda nos é invisível, pode englobar as relações de força, as
tensões, as hierarquias, as desigualdades sociais e as situações de conflito
em geral (idem, 1998, p. 1-2).
As reflexões de Rifiotis levam em consideração o caráter amplo da
violência devido às prováveis repercussões do fenômeno em determinadas
dimensões da vida social, as quais possibilitam um incessante desenvolvimento do seu campo semântico, o que favorece uma multiplicidade de
formas e significados. Sob esse ponto de vista, afirma, seria mais conveniente
utilizar a expressão no plural para promover uma aproximação do caráter
multifacetado dos fenômenos violentos (RIFIOTIS, 2006b).
GÊNERO E MASCULINIDADE
O conceito de gênero refere-se à construção cultural coletiva dos
atributos de masculinidade e feminilidade. Foi proposto para criar uma distinção da concepção de sexo, que determina as características biológicas de
cada indivíduo, e para argumentar as diferenças e desigualdades existentes
entre homens e mulheres como sendo social e culturalmente concebidas, e
não biologicamente determinadas. Desse modo, para tornar-se homem ou
mulher, é preciso submeter-se a um processo que chamamos de socialização de gênero, baseado em expectativas culturais em relação a cada sexo
(LOURO; FELIPE; GOELLNER, 2008).
Tradicionalmente, observa-se que, na maior parte das culturas dotadas
dessa lógica estritamente binária e hierarquizada, o feminino se manifesta
no lado inferior. Essa expressão de inferioridade se estabelece em decorrência do pensamento simbólico que fundamenta a supremacia do masculino,
originando aquilo que Françoise Héritier (1996) denomina de valência
diferencial entre os sexos, habitual nos sistemas de representação utilizados
pelas sociedades humanas (BOZON, 2004).
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As categorias de masculino e feminino, nas quais todos os seres humanos são classificados, formam, em cada cultura, um sistema de gênero,
um sistema simbólico ou um sistema de significações que relaciona o sexo
a conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias sociais. Nessa
ótica de gênero, a concepção do sexo, nas diferentes culturas, é entendida
como sendo sistematicamente ligada à organização da desigualdade social
(CARLOTO, 2001).
Na compreensão de Romeu Gomes (2008, p. 239), a expressão de
masculinidade é entendida como
[..] um espaço simbólico que serve para estruturar a identidade de ser
homem, servindo de modelo para atitudes, comportamentos e emoções a
serem seguidos. Nesse sentido, a masculinidade – situada no âmbito do
gênero – representa um conjunto de atributos, valores, funções e condutas
a serem seguidos pelo ser homem, variando no tempo e, especificamente,
nas classes e nos segmentos sociais.
Nessa perspectiva analítica, Gomes (2008) argumenta que tal lógica
determina protótipos de masculinidade e feminilidade a serem seguidos e
contribuem para que as identidades de homens e mulheres se consolidem na
proporção em que se estabeleçam aproximações e afastamentos em relação
à concentração de poder no espaço social.
Essas identidades masculinas que agregam maior concentração de
poder tornam-se hegemônicas e se estabelecem a partir de práticas, nas quais
os agentes reproduzem padrões para atingir o status de homens dominantes que, por sua vez, serve de referência para naturalizar as diferenças, as
hierarquias de gênero e concorrer com o modelo hegemônico de masculinidade (CECCHETTO, 2004; CONNEL, 2002). A situação, a seguir, ressalta
características comuns de um modelo hegemônico de masculinidade e de
dominação masculina:
Perpétua, 45 anos, relata que voltava do trabalho quando foi abordada
por um desconhecido que, sob ameaça, levou-a a um matagal e obrigou-a
a atividade sexual. Relata que foi espancada por ter resistido. Informa
que quando contou o ocorrido para seu esposo, o mesmo a abandonou”.
Tal situação expressa particularidades do modelo hegemônico como
a força e o poder, que se traduzem na violência contra a mulher associada
à desvalorização e coisificação em razão de ser do sexo feminino, seja no
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O PODER (IN)VISÍVEL DA VIOLÊNCIA SEXUAL...
âmbito público ou privado. Na compreensão de Chauí (1985), a violência
nega à mulher a possibilidade de ser sujeito e a capacidade de autonomia na
relação, porque aí ela é tratada não como sujeito, mas como coisa, ordenando
uma relação assimétrica e hierárquica.
Apesar das lutas feministas por direitos e igualdade social, a mulher
ainda continua sendo considerada, por alguns, ou muitos homens, como objeto
de poder e dominação pertencente à ordem masculina (SILVA; ANJOS, 2014).
O sistema de gênero ordena a vida nas sociedades contemporâneas
a partir da linguagem, dos símbolos, das instituições e hierarquias da organização social, da representação política e do poder. A estrutura de gênero
também delimita o poder entre os sexos. Pois mesmo quando a norma legal
tem como princípio a igualdade, na vida cotidiana nos defrontamos com a
desigualdade e a iniquidade na distribuição do poder entre homens e mulheres (SOUZA, 2012).
Para Araújo e Mattioli (2004), a violência de gênero produz-se e
reproduz-se nas relações de poder que enredam as categorias de gênero.
Nos casos citados a seguir, observa-se a manifestação da violência contra as
mulheres oriunda da ordem patriarcal, em que o genitor e o ex-companheiro
entendem que têm o direito de dominar e controlar “suas mulheres”:
Maria, 15 anos, contou que foi vítima de violência sexual pelo genitor.
O pai, ao saber que ela já tinha tido relacões sexuais com o namorado,
levou-a a um motel e obrigou-a a manter relacões sexuais, sob ameaça
de arma de fogo.
Caetana, 36 anos, relata que estava na sua residência quando foi agredida pelo seu ex-companheiro. Refere que teve três filhos com ele, mas
estava separada do mesmo há 8 anos. Ele rasgou a roupa dela, agrediu
fisicamente e obrigou-a a manter relação sexual por meio de violência.
Estes exemplos evocam noções de dominação, machismo, imposição
e autoridade, e reforçam diferenças de gênero, depreciação do sexo feminino
em relação ao masculino e ressaltam a representação da violência simbólica. Evidencia-se ainda, a assimetria existente entre os sexos, cabendo ao
masculino o poder e ao feminino a submissão.
Com relação a tais aspectos, Bourdieu considera que o modelo de
masculinidade que tem como eixo central o poder – apoiado numa visão
social em que se concebe o masculino como um gênero superior ao feminino – pode concorrer para que os homens exerçam a dominação sobre as
mulheres, tornando-as submissas a eles. “A visão androcêntrica é assim
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continuamente legitimada pelas próprias práticas que ela determina: pelo fato
de suas disposições resultarem da incorporação do preconceito desfavorável
contra o feminino” (idem, 2010, p. 44).
Na interpretação de Senkevics, a dominação masculina é entendida
por Bourdieu numa perspectiva simbólica, ou seja, ele concebe tal dominação como uma modalidade particular de violência simbólica (SENKEVICS,
2012). O autor denomina como violência simbólica
[a] violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se
exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação
e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do
reconhecimento ou, em última instância, do sentimento (BOURDIEU,
2010, p. 07-08).
Nesse sentido, Bourdieu compreende a violência simbólica como
uma força socialmente tolerável, capaz de impor seu poder por meio de
significações, afirmando a dominação social de uma classe sobre outra. Esse
poder de impor significações é o poder simbólico (SANTANA, 2012), que as
estabelece como legítimas, objetivando dissimular e transformar as relações
de forças subjacentes, de modo a fazer com que a violência exercida não seja
questionada (BICALHO; PAULA, 2009). Podemos reconhecer, no exemplo
a seguir, a representação do homem como parte dominante na relação com
a mulher e sua incorporação pelo senso comum como algo natural:
Manuela, 13 anos, relata que era abusada sexualmente por seu padrinho
desde os 11 anos de idade. Informa que ele tem 56 anos e que dava presentes e dinheiro para agradá-la. Sua mãe tomou conhecimento do caso
através de seu tio, que avisou sobre a ida de sua filha à casa do padrinho
e/ou ao colégio onde o mesmo era vigilante.
Neste caso, muito embora a relação desigual de poder seja aceita
pelos dominados, ela não se constitui numa concordância consciente e deliberada, mas principalmente numa relação de submissão. Ao que se sabe,
frequentemente, as próprias mulheres acabam incorporando essa relação
de poder em suas vidas como algo irreversível, visto que já se encontra
naturalizada na sociedade.
Bourdieu (2010) nomeia de paradoxo da doxa essa condição na
qual a dominação passa a ser considerada como natural pelos dominados.
Segundo ele, dá-se aí o fato de o dominado consentir na dominação, na sua
permanência, aceitando-a.
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O PODER (IN)VISÍVEL DA VIOLÊNCIA SEXUAL...
Para o sociólogo francês, o domínio social da representação sexual se
realiza a partir de uma perspectiva androcêntrica, denominada de cosmologia
androcêntrica, que se constitui através de um conjunto de oposições que
organizam o cosmos, baseado na divisão dos estatutos sociais imputados ao
homem e à mulher. Por sua vez, essa cosmologia sexuada se enraíza numa
ordem de socialização do corpo e em sua localização no espaço social,
propiciando uma sexualidade socialmente significada (SANTANA, 2012).
Logo, essa ordem se estabelece como se a divisão dos sexos fizesse parte da
ordem das coisas, sendo por isso natural e inevitável (Idem, 2012, p. 106).
Bourdieu (2010) entende gênero como um conceito relacional e uma
estrutura de dominação simbólica em que o princípio masculino é tomado
como medida de todas as coisas, produzindo significados no mundo social
que se estendem aos corpos e habitus dos agentes. Assim, o autor explica a
persistência das relações de poder e dominação de gênero a partir do conceito
de habitus, aqui compreendido como:
[...] um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando
todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz
de percepções, de apreciações e de ações e possibilita o cumprimento de
tarefas infinitamente diferenciadas graças à transferência analógica de
esquemas, adquiridos em uma prática anterior (BORDIEU, 2002, p. 261).
Desse modo, para o autor, o habitus refere-se às disposições incorporadas pelos atores sociais ao longo de seu processo de socialização, o qual
integra experiências anteriores, e atua como uma matriz de percepções,
apreciações e ações. Essa matriz, por sua vez, produz os esquemas inconscientes que são internalizados e postos em prática a partir de estímulos
conjunturais de um campo social. Assim, na gênese da prática, ele propicia
a interiorização das estruturas sociais (aquisições) e uma exteriorização das
disposições adquiridas, sem que para isso se requeira a consciência da ação
(BOURDIEU, 2002).
Giddens (2005) afirma que nas divisões constitutivas da ordem social
e, mais precisamente, nas relações sociais de dominação e de exploração
estabelecidas entre os gêneros, homens e mulheres internalizam gradualmente as normas e expectativas sociais que são correspondentes ao seu
sexo, que os encorajam a cultivar uma imagem do corpo e um conjunto
gestual específico de padrões culturais, e que contribuem para que possam
assumir posições desiguais, em termos de poder, na esfera social. Assim,
as diferenças de gênero não são biologicamente determinadas, mas sim
culturalmente produzidas.
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De acordo com Saffioti (1987), os seres humanos nascem machos ou
fêmeas. É através da educação recebida no convívio social que se tornam
homens e mulheres. Logo, o processo de identidade social é construído
com distintas atribuições de papéis, que a sociedade estabelece e espera ver
cumpridos pelas diferentes categorias do sexo. Para Beauvoir (1990, p. 13),
“ninguém nasce mulher; torna-se mulher”.
No campo social, nas articulações entre masculinidade e violência, a
expressão da violência vem se destacando como parte integrante da masculinidade. Do mesmo modo, “nesse cenário de associação mecânica entre o
ser masculino e o ser violento, as relações de gênero podem ser construídas
e reproduzidas a partir de uma lógica de que a violência seria a referência
para se diferenciar o homem da mulher” (GOMES, 2008, p. 240).
Essa naturalização do comportamento agressivo e dos modos violentos pode ser identificada neste exemplo: “Rosário, 35 anos, relata que
vive com o esposo há dez anos. O mesmo a espanca e, depois, tem relações
sexuais com ela. Desta vez, foi espancada e desmaiou. Hoje, entende que
sofre violência sexual e doméstica”.
Para Bourdieu (2010), a violência simbólica está estreitamente associada tanto ao homem quanto à mulher, tendo em vista que estes já nem
percebem mais quando estão praticando a violência em virtude da incorporação do habitus. Desse modo, os aspectos ligados ao ato sexual como
representação de poder são, para o autor, mais um indício da relação social
de dominação, expressando o desejo masculino como desejo de posse e
dominação erotizada sobre o feminino.
Posto isso, a violência sexual perpetrada contra a mulher não se
origina do desejo sexual ou amoroso; ao contrário, ela se impõe como uma
demonstração extrema de poder e dominação do homem sobre a mulher na
subjugação do seu corpo e da sua autonomia como sujeito. Esse tipo de violência não afeta só seu corpo físico; afeta seu ser, sua relação com o mundo,
sua corporeidade; afeta, também, a expressão de seu corpo no espaço social
(LE BRETON, 2010; OLIVEIRA, 2007).
Nessa ordem social, a violência se estende às identidades masculinas e femininas, é aprendida na sociedade e se estabelece nas relações
assimétricas de poder. Portanto, a violência contra a mulher se encontra
legitimada a partir de normas baseadas nas relações de gênero, que reforçam
uma valorização diferenciada para o desempenho dos papéis masculinos e
femininos (ALMEIDA; DINIZ, 2004).
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O PODER (IN)VISÍVEL DA VIOLÊNCIA SEXUAL...
O PODER SIMBÓLICO NA VIOLÊNCIA SEXUAL
Dentre as diversas formas que a violência de gênero assume, a violência sexual é, sem dúvida, a demonstração mais eloquente da desigualdade
existente entre homens e mulheres. Dessa forma, a violência sexual contra
as mulheres é hoje assumida como um problema social de grande relevância
em termos quantitativos, por afetar um número significativo de mulheres, e,
também, como fenômeno, por nos alertar para os conflitos sociais, apontando
as profundas desigualdades existentes entre os sexos. Os estudos de gênero
realizados no território brasileiro indicam que as mulheres constituem alvo
de todo tipo de violência, seja ela física, simbólica ou sexual, principalmente
na adolescência e na vida adulta (MEDINA; PENNA, 2008, PERENTE;
NASCIMENTO; VIEIRA, 2009; BRASIL, 2008).
Vivemos numa sociedade patriarcal na qual o poder de dominar se
revela e se realiza em todas as dimensões das relações sociais. Nessa perspectiva, para Saffioti, o uso do poder nas relações homem-mulher pode se situar
num extremo pela violência sexual, uma vez que, “contrariando a vontade
da mulher, o homem mantém com ela relações sexuais, provando, assim,
sua capacidade de submeter a outra parte, ou seja, aquela que, segundo a
ideologia dominante, não tem direito de desejar, não tem direito de escolha”
(SAFFIOTI, 1987, p. 18).
Por sua vez, Foucault (1993) compreende o poder como uma pluralidade dispersa de relações desiguais, discursivamente construídas em campos
sociais de força, resultantes da construção social dos papéis do homem e da
mulher, propiciando uma relação que interfere na construção da identidade
que cada indivíduo entende como sua. Nesse contexto, pode-se caracterizar
a situação em que um homem consegue bloquear o campo de relações de
poder existentes entre os sexos, tornando estas relações fixas, e, deste modo,
impondo o poder sobre a mulher na forma de dominação.
Na concepção de Weber (1991, p. 33), o “poder significa toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra
resistências [...]. Dominação é a probabilidade de encontrar obediência a uma
ordem de determinado conteúdo [...]”. Nessa perspectiva, para o referido
autor, qualquer pessoa pode colocar alguém em condições de impor a sua
vontade numa determinada situação. No entanto, para que estas relações de
autoridade se concretizem, deve haver o mínimo de pretensão e concordância
por parte da outra pessoa em obedecer. Vejamos estes relatos:
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Sofia, 14 anos, conta que há um ano é abusada sexualmente por um
conhecido da família que ameaça matar seu pai, caso ela conte o fato.
Fala que recentemente ele a levou para uma casa em construção e junto
com mais dois outros indivíduos a molestaram. Além da relação sexual,
sob ameaça, foi fisicamente agredida.
Clarisse, 14 anos, não sabia dizer qual tempo da agressão, mas que conhecia o agressor de vista e que o mesmo já tinha pedido para namorar com
ela, mas ela tinha recusado. Mas que um dia, ao sair do colégio aceitou
carona e que ele levou-a a um matagal e estuprou-a. Não comunicou
a sua genitora, com medo da reação. Mas que quando desconfiou que
estava grávida teve que falar.
Estas situações de violência sexual retratam atitudes de dominação
imposta por ameaças, nas quais Tavares e Rocha (2008) afirmam que, para
que os homens exerçam o domínio sobre as mulheres, é necessário que
elas acreditem e legitimem a situação de desigualdade. Pode-se entender
que esta legitimação aconteça porque as mulheres, assim como os homens,
também interiorizam as concepções do gênero dominante e constroem, em
bases patriarcalistas, as suas percepções de masculino e feminino. Portanto,
a dominação masculina se naturaliza no tecido social sem a necessidade de
se justificar (MEJIA; ARTHUR, 2005).
Na violência sexual, o poder simbólico se estabelece através da relação
sexual constituída por meio de uma relação social de dominação homem
versus mulher, na qual mulher é apenas um objeto de satisfação do desejo
masculino, não sendo portadora de nenhum atributo valorativo. Assim, a
mulher é vista “como um objeto de contemplação pelo outro, perfeito em
sua resignação servindo aos desejos de seu dominador” (SILVA; ANJOS,
2014, p. 5).
Os sistemas simbólicos como estruturas estruturadas associam-se a
um modo de classificação que se fundamenta na hierarquização das coisas
segundo grupos e gêneros, cuja delimitação expressa um caráter arbitrário,
vivido pelos agentes como sendo seu sistema social. Desse modo, “a organização do mundo e a fixação de um consenso [...] permite à cultura dominante numa dada formação social cumprir sua função político-ideológica de
legitimar e sancionar um determinado regime de dominação” (BOURDIEU,
2009, p. xv-xvi).
Joana, 15 anos, conta que se dirigia ao reforço escolar, quando foi abordada
por um rapaz da vizinhança, bem vestido, de aproximadamente 24 anos,
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O PODER (IN)VISÍVEL DA VIOLÊNCIA SEXUAL...
e que o mesmo, inicialmente, a elogiou e desabafou sobre problemas de
sua família. Em seguida, ofereceu um passeio de carro, mas que depois
a obrigou a manter relação sexual com ele. No momento, acompanhada
da sua genitora, que pediu para que o caso não fosse divulgado, nem
mesmo para os outros membros da família.
Neste caso de violência sexual, chamam a atenção: o fato de o agressor
fazer parte do cotidiano da adolescente, a forma como ele se aproximou e a
vergonha expressa pela mãe, através de seu pedido de segredo. As mulheres,
ao vivenciarem situações de violência sexual, atribuem significados negativos
a sua corporeidade. O sofrimento vem acompanhado de uma variedade de
sentimentos, emoções e da necessidade de não revelar a experiência vivenciada, em decorrência das representações sociais negativas.
De acordo com Costa et al. (2007), tal experiência traz como consequência não só o isolamento delas em relação a outras mulheres, mesmo
da família, como também das famílias em relação à família extensa e à
vizinhança. Ao pensar segundo a lógica que predomina na sociedade, se
reforça a violência simbólica.
Para Bourdieu, a visão androcêntrica estabelecida entre os sexos é
continuamente legitimada pelas próprias práticas que ela determina. Em
decorrência de “suas disposições procederem da incorporação do preconceito
desfavorável contra o feminino instituído na ordem das coisas, as mulheres
não podem senão confirmar seguidamente tal preconceito” (BORDIEU,
2010, p. 44).
Bourdieu (2009), ao tratar da instância simbólica, descreve-a como
algo determinado a partir de um processo de formação e consolidação de
uma unidade política que desloca para uma figura simbólica o controle
e o arbítrio das relações cotidianas, não revelando as bases materiais da
dominação vigente.
Marta e Luisa, irmãs, de 12 e 13 anos, respectivamente, relataram que seu
padrasto vinha ameaçando matá-las caso elas contassem que ele as obrigava
a manter relações sexuais, há mais de dois anos, durante a ausência da
mãe para o trabalho; e que recentemente, sua mãe, percebeu “alterações
estranhas” na saúde das filhas. Levou-as para o posto de saúde e foram
diagnosticadas as gestações de quatro e cinco meses, respectivamente.
Ao analisar o caso descrito, é importante atentar justamente para
a imposição da violência simbólica manifestada através do uso de poder
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sobre as adolescentes, fundamentado no consentimento e submissão que
se instituem por intermédio da utilização de símbolos de autoridade verbal
e institucional (instituição familiar) como práticas que instrumentalizam
estratégias de poder.
A concepção de Bourdieu no tocante às práticas simbólicas é que
quando “os dominados nas relações de forças simbólicas entram na luta em
estado isolado, como é o caso nas interações da vida quotidiana, não têm
outra escolha a não ser a da aceitação [...] da definição dominante de sua
identidade [...]” (BOURDIEU, 2005, p. 124).
E ainda nas palavras do autor,
[...] O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende
a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e,
em particular, do mundo social) supõe aquilo que Durkheim chama de
conformismo lógico, quer dizer, << uma concepção homogénea do tempo,
do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre
as inteligências [...]. Os símbolos são os instrumentos por excelência da
integração social (...) eles tornam possível o consensus acerca do sentido
do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da
ordem social (idem, 2005, p. 79-10).
Nesse sentido, Bourdieu considera que, através do habitus, as estruturas
sociais são interiorizadas, se tornando um processo em que o indivíduo não
tem mais consciência, ou seja, ele passa a naturalizar o fato. Quando mulheres
e homens interiorizam um condicionamento que desfavorece o feminino, os
agentes não têm compreensão de sua participação nesse sistema ideológico.
O habitus conserva as ideias, percepções, práticas ou ações dos agentes,
sejam eles dominados ou dominantes, dentro dos padrões de comportamento
e da autocompreensão imputados pelo processo de socialização do sistema
de dominação. Nesse contexto de relações, o habitus ordena as formas de
relacionamento entre as pessoas e ante o sistema de dominação masculina.
Essas experiências de socialização levam os dominados a contribuir para
sua própria dominação (BUTTELLI, 2008).
Em Bourdieu, a função do habitus é orientar as ações dos sujeitos no
campo social, desempenhando o papel de elo articulador entre três dimensões: a estrutura das posições objetivas, a subjetividade dos indivíduos e as
situações concretas de ação, contribuindo para a reprodução das particularidades do seu grupo no mundo social, bem como das estruturas nas quais
foi formado. Portanto, é deste modo que a estrutura de poder e a dominação
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masculina, sobretudo a simbólica, são assimiladas nas relações de gênero
como uma construção social naturalizada. “O habitus traduz, dessa forma,
estilos de vida, julgamentos políticos, morais, estéticos. Ele é também um
meio de ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou
coletivas” (VASCONCELOS, 2002, p. 2).
Todo campo social vive o conflito entre os agentes que dominam e
aqueles dominados pela via da violência simbólica. A dominação, de um
modo geral, se manifesta de forma não explícita, sutil, através de uma violência simbólica julgada legítima dentro do campo social, e que se expressa
doce e mascarada, exercendo-se com a cumplicidade daquele que a sofre, o
dominado. Dessa forma, “a dominação não é efeito direto de uma luta aberta,
do tipo ‘classe dominante’ versus ‘classe dominada’, mas o resultado de um
conjunto complexo de ações infraconscientes, de cada um dos agentes e cada
uma das instituições dominantes” (BOURDIEU, 1996, p. 52).
A concordância deste tipo de poder entre o dominado e o dominador
se dá por não haver um acordo formalmente estabelecido que reconheça a
dominação como legítima, mas em decorrência da ação das forças sociais e
pela estrutura das normas estabelecidas no campo social em que os indivíduos se inserem, e que se incorporam em seus habitus (SANTANA, 2012).
Nos casos dos crimes sexuais contra as mulheres, existe uma série de
fatores que acabam diferenciando-os dos demais e permitindo que, muitas
vezes, eles percam a força de um crime. Esta forma distorcida de encarar a
violência sexual é bastante comum na nossa sociedade, de modo que, em
muitos casos, a própria mulher se torna incapaz de se reconhecer como
vítima do crime.
[...] as próprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às
relações de poder em que se vêem envolvidas esquemas de pensamento
que são produto da incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem simbólica. Por conseguinte, seus
atos de conhecimento são, exatamente por isso, atos de reconhecimento
prático, de adesão dóxica, crença que não tem que se pensar e se afirmar
como tal e que faz, de certo modo, a violência simbólica que ela sofre
(BOURDIEU, 2010, p. 45).
Sobre esse assunto, Silva (2012) ressalta que nos estudos de Bourdieu
a violência simbólica é assentada numa relação implícita de submissão, por
consenso ou por força, sem que os dominados percebam o aspecto coercitivo do poder. De modo que a violência simbólica favorece a naturalização/
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subjetivação das estruturas objetivas através da internalização da crença na
opressão como algo inevitável, que tende a se naturalizar. Nessa perspectiva,
a partir das relações estabelecidas entre dominado-dominante, a mulher em
situação de violência sexual torna-se objeto da violência simbólica.
Para Alves, no entendimento de Bourdieu, os indivíduos têm propensão
a naturalizar o padrão hierárquico da cultura por reconhecê-lo como superior, não reconhecendo a relação de dominação de classe. “É um processo
de transfiguração das hierarquias sociais em hierarquias simbólicas que
permite a legitimação ou justificação das diferenças e hierarquias sociais”
(ALVES, 2009, p. 59).
Como aponta Bonzon (2004, p. 97),
(n)os comportamentos sexuais dos indivíduos, as práticas, os relacionamentos e os significados estão enraizados no conjunto das experiências
que constituem essas pessoas como seres sociais, dentro de cenários
culturais da sexualidade dominantes em suas respectivas sociedades [...].
A desigualdade dos grupos sociais e culturais se expressa em relações
assimétricas entre os corpos e em representações sexuais estereotipadas
do outro cultural ou social, que mais reforçam do que deslocam essas
situações de desigualdade. Ou seja, existe uma tradução sexual das
relações desiguais.
Para Santos (2004), as diferentes formas de violência presentes em
cada um dos conjuntos relacionais que estruturam o meio social, podem ser
esclarecidas se compreendermos a violência como um ato de desmando,
notável, que se verifica no contexto de cada relação de poder e dominação
presente nas relações sociais de produção do social.
De acordo com Selbath et al. (2005), Pierre Bourdieu concebe a história
das mulheres como uma história marcada por relações de dominação que
favoreceu a dominação masculina. Na concepção do autor, como dissemos
anteriormente, a relação de dominação é exercida essencialmente através
da violência simbólica, da imposição de princípios de visão e divisão incorporados, naturalizados, que são aplicados às mulheres e, em particular, ao
corpo feminino. O referido sociólogo “acreditava que a própria mulher faria
a introspecção de se enxergar dominada, o que repercutiria na historiografia.“[...] É por esta razão que ele entendia que a visão feminina era, também
ela, uma visão dominada, ‘que não se vê a si própria’” (idem, 2005, p. 6).
Atualmente, esse posicionamento relativo ao papel da mulher no
processo de dominação masculina tem sido questionado nos diversos segmentos do movimento feminista. Todavia, mesmo considerando a resistência
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por parte dos movimentos sociais em reconhecer a crítica segundo a qual
os dominados contribuíram com a sua própria dominação, Carvalho (2006)
adverte que a consciência da dominação e dos mecanismos de violência
simbólica nem sempre é suficiente para se combater ou superar determinado
estado de submissão arbitrariamente imposto às mulheres. Estas mudanças
atuaram como forças decisivas no sentido não apenas de dar visibilidade à
violência, mas também de impulsionar políticas públicas específicas (LIMA;
BÜCHELE; CLÍMACO, 2008).
Mesmo compreendendo-se que o conceito de violência é dinâmico
e cultural, pode-se dizer que a desnaturalização da violência contra as mulheres pode permitir avanços no entendimento de que a violência não passa
apenas pela materialidade dos corpos femininos, nem tampouco pode ser
minimizada quando aplicada como castigo àquelas mulheres que não estiverem cumprindo com seus “deveres sociais” (SIMIÃO, 2006). Por outro
lado, ao pesquisar “violências”, é importante observar todos os aspectos
que as envolvem, da forma mais sistemática e descritiva possível, para que
se possa avançar nas discussões e ultrapassar os pressupostos negativos,
ora estabelecidos. O fenômeno da violência não é imutável e pode receber
novos significados (RIFIOTIS, 2006a).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreender os modos pelos quais as relações de poder e dominação
são efetivadas na violência sexual contra a mulher constitui, para a sociologia,
uma necessidade de profunda relevância social, tendo em vista que estas
relações se apresentam multifacetadas e situadas nos mais diferentes níveis
de organização social, representando um dos mais graves problemas sociais.
A violência sexual contra as mulheres provém das relações de poder
e dominação exercidas pelos homens, advindas das construções sociais interiorizadas que privilegiam o masculino. Em decorrência desses princípios
antagônicos, homens e mulheres assumem identidades que se inscrevem nos
corpos. Essa relação social assimétrica entre os sexos legitima as agressões
contra as mulheres, em virtude de elas não se ajustarem ao padrão considerado superior no mundo social, fazendo com que se sintam inferiorizadas
por meio da dominação simbólica e que assumam identidades como o polo
que irá sofrer a violência, já que os homens se vinculam ao poder, e, portanto, ao agressor.
Este estudo, ao valer-se das abordagens sociológicas de Pierre Bourdieu, buscou extrair as ideias, os elementos teóricos e os conceitos elaborados
por ele, com o intuito de analisar a dimensão simbólica da violência sexual
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contra a mulher, especialmente no sentido de esclarecer a ordem dicotômica
e as rígidas identidades de gênero, visando contribuir para compreensão da
problemática no contexto das relações sociais.
Nessa perspectiva, a contribuição da obra de Pierre Bourdieu no estudo
da violência sexual contra a mulher foi de suma importância para a análise
das relações de gênero neste trabalho, tendo em vista que o autor trouxe
para o debate a revelação do poder hipnótico da dominação masculina que
se impõe através da violência simbólica.
Em Bourdieu, o conceito de violência simbólica tenta explicar o
mecanismo que faz com que os indivíduos naturalizem as representações
ou as ideias sociais dominantes no meio social; formula ainda o conceito de
“dominação”, o qual envolve as mais variadas formas de relação de “poder”,
e que o autor evidencia como a forma mais insidiosa de violência simbólica.
Na progressão das discussões desenvolvidas neste estudo, foi apresentado um dos conceitos-chave da teoria de Bourdieu, e que marcou profundamente a sociologia: o conceito de habitus, utilizado por ele para esclarecer a
persistência das relações de poder e dominação de gênero. Para o autor, os
princípios de visão e divisão sexual parecem estar relacionados na ordem das
coisas a um sistema de oposições homólogas, que, por sua vez, se encontram
revestidas de significação social e se incorporam nos corpos e no habitus
dos sujeitos, funcionando como esquemas de percepção, de pensamento e
ação, nos quais as estruturas de poder e dominação, sobretudo a simbólica,
são interiorizadas pelos agentes, tornando-se parte da sua natureza.
Dessa forma, a masculinidade hegemônica embrenha-se nas relações
políticas, econômicas e sociais de modo a assegurar os mecanismos de poder
e dominação de gênero. Assim, as diferenças determinadas pelo gênero passam a manifestar atribuições de poder entre os grupos e indivíduos, fazendo
com que homens e mulheres tenham posições diferentes no campo social.
A reflexão sobre a temática a partir do referencial teórico de Bourdieu
enriqueceu a discussão e concorreu para a compreensão da violência simbólica presente nas relações das mulheres em situação de violência sexual,
podendo contribuir para ampliar o debate acerca do problema, assim como
para instrumentalizar ações que visem à transformação dessas relações. Pois,
apesar da luta por princípios legais e reconhecimento social em defesa da
mulher na família e no entorno social, os casos de violência sexual persistem
e não são vistos de maneira uniforme pela sociedade como um crime contra
as mulheres. A complexidade envolvida no fenômeno da violência sexual
precisa ser reconhecida e deve passar pela construção do sujeito feminino
como agente de direito e cidadania.
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ALBA JEAN BATISTA VIANA e EDUARDO SÉRGIO SOARES SOUSA
Palavras-chave:
poder simbólico, poder e
dominação, violência de gênero, violência sexual, violência
simbólica.
Keywords:
symbolic power, power
and domination, gender
violence, sexual violence,
symbolic violence.
183
Resumo
O estudo analisa a dimensão simbólica da violência sexual
contra as mulheres. Trata-se de um estudo realizado por meio
de material empírico de mulheres em situação de violência
sexual; e revisão bibliográfica, a partir dos conceitos de “poder” e “dominação” do referencial teórico de Pierre Bourdieu.
Foram elaboradas categorias de gênero e masculinidade
para servirem de base para compreender a complexidade do
fenômeno. Questionou-se a ordem dicotômica e as rígidas
identidades de gênero vigentes e discutiu-se o mecanismo
que faz com que as mulheres naturalizem as representações
ou as ideias sociais dominantes. Os autores trouxeram para o
debate a revelação do poder hipnótico da dominação masculina
que se impõe através de uma violência simbólica de modo a
contribuir para compreensão do tema pesquisado.
Abstract
The study analyzes the symbolic dimension of sexual
violence against women. This is an exploratory and
descriptive study, conducted through literature review
of the concepts of “power” and “domination” of Pierre
Bourdieu’s theoretical framework. Categories of gender and masculinity have been prepared as a basis to
understand the complexity of the phenomenon. It was
questioned the dichotomous order and rigid gender
identities and it was discussed the mechanism that causes
women acquire the representations or dominant social
ideas. The author brought to the fore the development
of hypnotic power of male domination that imposes
itself through symbolic violence to contribute to the
understanding of the research topic.
Recebido para publicação em setembro/2014. Aceito em novembro/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 155-183
Federalismo no Brasil e o debate sobre o
rateio das receitas do petróleo
Denise Cunha Tavares Terra
Graduada em Ciências Econômicas, pela Universidade Cândido Mendes (UCAM),
mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
(IUPERJ) e doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Professora Associada do Centro de Ciências do Homem da Universidade Estadual do
Norte Fluminense (UENF).
Endereço postal: Av. Alberto Lamego, 2000 - CCH. Parque Califórnia. Campos dos
Goytacazes. Rio de Janeiro. Brasil. CEP: 28.013-602. E-mail: [email protected]
Joseane de Souza
Graduada em Ciências Econômicas, mestre e doutora em Demografia, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora Associada do Centro de Ciências
do Homem, da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).
Endereço postal: Av. Alberto Lamego, 2000 – CCH. Parque Califórnia. Campos dos
Goytacazes. Rio de Janeiro. Brasil. CEP: 28.013-602. E-mail: [email protected]
Leonardo Camisassa Fernandes
Graduado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), mestre em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Doutorando do Programa de Pós Graduação em Sociologia Política da Universidade
Estadual do Norte Fluminense (UENF).
Endereço postal: Av. Alberto Lamego, 2000 – CCH/LGPP. Parque Califórnia. Campos
dos Goytacazes. Rio de Janeiro. Brasil. CEP: 28.013-602. E-mail: [email protected]
1. INTRODUÇÃO
O novo marco regulatório do pré-sal trouxe à tona uma
discussão que não constava da agenda política e nem integrava a
pauta da mídia: o modelo de rateio das receitas do petróleo, em
especial as compensações financeiras (royalties e participações
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
186
FEDERALISMO NO BRASIL E O DEBATE SOBRE O RATEIO...
especiais). Este modelo de repartição, concebido em 1985 e consolidado
em 1997 pela Lei do Petróleo, favorece estados e municípios produtores,
gerando um padrão de superconcentração regional dos royalties devido à
localização das jazidas, tornando-se um modelo insustentável diante das
perspectivas de incremento significativo das receitas petrolíferas.
Essa concentração de recursos coloca em discussão a necessidade de
se buscar uma condição de equilíbrio na repartição dos recursos tributários
entre estados, municípios e União. Para que seja compreendida com clareza
essa questão, se faz necessário discutir a respeito de um pacto federativo
e da busca de uma condição ideal de equilíbrio entre os entes federados.
No Brasil, apesar de a Constituição promulgada em 1988 ter permitido, principalmente aos municípios, maior autonomia tributária, é
inegável a dependência de ambos os entes federados – estados e municípios –, no que concerne a recursos provenientes da União. Portanto, é
vital que os recursos sejam distribuídos de forma menos desigual entre as
regiões brasileiras. O desequilíbrio financeiro gerado pela Constituição
decorre do aumento das transferências do Governo Federal aos estados
e municípios, sem que encargos também fossem transferidos. A análise
do regime fiscal brasileiro permite perceber que estamos longe de uma
situação de equilíbrio na distribuição das receitas tributárias. Por outro
lado, não existem, no regime fiscal, mecanismos que procurem eliminar
as distorções nessa repartição.
Nesse ponto, retornando à questão da distribuição dos royalties e
participações especiais, gerados pela produção de petróleo, o modelo de
1985 provoca uma enorme concentração de recursos em poucos municípios
brasileiros. Para se ter uma idéia, em 2012, os estados produtores – tanto
de produção onshore como offshore – receberam 35% (R$ 11,2 Bi) do total
(R$ 32 Bi). Só o estado do Rio de Janeiro recebeu 75,2% (R$ 8,4 Bi) do
total reservado aos 27 estados da federação.
Assim, a aprovação pelo Congresso Nacional do novo marco regulatório do pré-sal acirrou as discussões a esse respeito; argumentos foram
apresentados tanto pelos defensores do modelo anterior quanto pelos defensores do modelo aprovado pelo Congresso Nacional, em março de 2013.
O principal e mais polêmico ponto do projeto de lei é a determinação
de que a distribuição dos royalties e participações especiais geradas pela
produção de petróleo e gás natural seja feita de forma igualitária entre todos
os estados da federação, o que remete imediatamente à possibilidade de perda
de recursos por parte dos estados e municípios produtores e confrontantes
aos campos produtores, no que se refere à produção offshore.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
DENISE C. T. TERRA, JOSEANE DE SOUZA e LEONARDO C. FERNANDES
187
Para contribuir com esse debate, e diante desse conflito federativo,
este artigo aponta algumas experiências internacionais no trato das receitas
geradas pela produção de petróleo em algumas “petrofederações”, explicitando de que forma são apropriadas e, principalmente, como são distribuídas.
O objetivo é tentar verificar a existência de um padrão de gerenciamento e divisão dessas receitas. A hipótese é a de que o Brasil adota um
modelo de repartição das receitas petrolíferas que se distancia de experiências
internacionais, apresentando um grau de descentralização bastante elevado,
tendo em vista a própria característica mais centralista de nossa federação
e ainda, por se tratar de exploração de petróleo offshore.
O artigo está estruturado em torno de três eixos de discussão: (i) um
breve histórico da experiência brasileira de distribuição das receitas do petróleo; ii) a experiência internacional de distribuição das receitas do petróleo;
iii) contribuições ao debate brasileiro, tendo em vista que as distorções do
federalismo fiscal brasileiro exigem novas propostas que visem a atingir
uma condição mais equilibrada da distribuição de recursos tributários e que
sejam amplamente discutidas por toda a sociedade civil.
2. BREVE HISTÓRICO DA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA DE
DISTRIBUIÇÃO DAS RECEITAS DO PETRÓLEO
Este breve histórico da experiência brasileira de distribuição das
receitas do petróleo é apresentado, aqui, em cinco momentos, de forma a
torná-lo mais didático: i) o modelo antes do governo militar; ii) as modificações centralizadoras do governo militar; iii) a influência do momento de
elaboração da Constituição Federal de 1988; iv) a era Fernando Henrique
Cardoso e a flexibilização do monopólio da exploração e produção de petróleo v) as novas regras demandadas pelo pré-sal.
O MODELO ANTES DO GOVERNO MILITAR
A primeira lei a criar a obrigatoriedade de pagamento de royalties
aos estados e territórios brasileiros onde estivessem localizadas as lavras
de petróleo, xisto betuminoso e a extração de gás foi a mesma que criou a
Petrobras e dispôs sobre a política nacional de petróleo: Lei n° 2.004, de
03/10/53. Em seu artigo 27, esta Lei dispunha que, de uma alíquota de 5%
sobre o valor da produção terrestre, 80% seriam pagos aos estados e 20% aos
municípios em cujo território se realizasse a lavra desses hidrocarbonetos. Os
royalties não incidiam sobre a produção offshore, ainda inexistente. ConsRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
188
FEDERALISMO NO BRASIL E O DEBATE SOBRE O RATEIO...
tata-se um viés localista na origem da política de distribuição dos royalties
entre as esferas governamentais e um direcionamento para a sua aplicação
na produção de energia elétrica e pavimentação de rodovias.
AS MODIFICAÇÕES CENTRALIZADORAS DO GOVERNO MILITAR
Com o início da produção offshore, nova legislação foi elaborada,
mantendo-se, no entanto, a mesma alíquota de 5% sobre o valor da produção.
Trata-se do Decreto Lei 523, de 08/04/69, que manteve inalterada a distribuição dos 5% onshore. Sobre a produção offshore incidiu o pagamento de
royalties, sendo 50% para o Departamento Nacional de Produção Mineral
(DNPM), e 50% para o Ministério da Educação e Cultura. Os royalties
incidentes sobre a produção offshore ainda não beneficiavam estados e
municípios. Leal e Serra (2003) apontam, aí, o traço centralista do governo
militar, que reservou, com exclusividade à União, o recebimento das receitas
de royalties incidentes sobre a produção offshore.
Pelo Decreto Lei 1288, de 01/11/1973, manteve-se inalterada a distribuição dos 5% onshore e os 5% que incidiam sobre a produção offshore foram
destinados ao Conselho Nacional de Petróleo (CNP), visando à formação
de estoque de combustível para garantia da regularidade e abastecimento
do país na primeira crise do petróleo.
A INFLUÊNCIA DO MOMENTO DE ELABORAÇÃO DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Posteriormente, com a Lei 7.453, de 27/12/85, estados e municípios
confrontantes com os poços de petróleo passam a ser beneficiários dos royalties
incidentes na produção da plataforma continental. A alíquota permaneceu de
5% sobre o valor da produção e passou a ser distribuída da seguinte forma:
30% destinados aos estados confrontantes com poços produtores; 30% aos
municípios confrontantes com poços produtores e àqueles pertencentes às
áreas geoeconômicas dos municípios confrontantes; 20% ao Ministério da
Marinha; e 20% para constituição de um fundo especial a ser rateado entre
todos os estados e municípios brasileiros. Percebe-se nessa legislação o seu
caráter indenizatório, privilegiando os municípios confrontantes e suas áreas
geoeconômicas, ao mesmo tempo em que estabelece mecanismos compensatórios, ao criar um fundo a ser repartido entre todos os entes federativos, por
meio do critério redistributivo do Fundo de Participação dos Estados (FPE)
e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Os recursos dos royalties
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
DENISE C. T. TERRA, JOSEANE DE SOUZA e LEONARDO C. FERNANDES
189
deveriam ser destinados, preferencialmente, para energia, pavimentação de
rodovias, abastecimento e tratamento de água, irrigação, proteção ao meio
ambiente e saneamento básico.
A Lei 7.525, de 22/07/86 é regulamentadora da Lei 7.453, de 27/12/85.
Introduz os conceitos de região geoeconômica (Zona de Produção Principal;
Zona de Produção Secundária e Zona Limítrofe à Zona de Produção Principal), bem como define critérios para identificação da extensão dos limites
territoriais dos estados e municípios litorâneos na plataforma continental.
Estes conceitos são da competência do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE).
Pertence à Zona de Produção Principal (ZPP) o conjunto formado de
municípios confrontantes com os poços produtores e municípios onde estiverem localizadas três ou mais instalações dos seguintes tipos: (i) instalações
industriais para processamento, tratamento, armazenamento e escoamento
de petróleo e gás natural, excluídos os dutos, devendo atender, exclusivamente, à produção petrolífera marítima; (ii) instituições relacionadas às
atividades de apoio à exploração, produção e escoamento do petróleo e gás
natural, tais como: portos, aeroportos, oficinas de manutenção e fabricação,
almoxarifado, armazéns e escritórios.
Entende-se por Zona de Produção Secundária (ZPS) o conjunto de
municípios atravessados por oleodutos ou gasodutos, incluindo as respectivas
instalações de compressão e bombeio, que se destinem exclusivamente ao
escoamento da produção de uma dada área de produção petrolífera marítima.
Pertencem à Zona Limítrofe à ZPP o conjunto de municípios contíguos àqueles que integram a ZPP, bem como municípios que, embora não
atendendo ao critério de contiguidade, possam ser social ou economicamente
atingidos pela produção ou exploração do petróleo ou do gás natural, segundo
critérios adotados pelo IBGE (ANP, 2001).
Em 29 de agosto de 1986, o Decreto 93.189 regulamentou o traçado
de linhas de projeção dos limites territoriais dos estados, territórios e municípios, segundo a linha geodésica ortogonal à costa, ou segundo o paralelo
até o ponto de sua interseção com os limites da plataforma continental, a ser
utilizado pelo IBGE para definição de poços confrontantes.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 20, assegura aos estados,
ao Distrito Federal e aos municípios, bem como aos órgãos da administração
direta da União, participação nos resultados da exploração de petróleo e gás
natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de
outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental,
mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira
por essa exploração. Como nos advertem Nazareth, Salles e Quintanilha
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
190
FEDERALISMO NO BRASIL E O DEBATE SOBRE O RATEIO...
(2011, p. 188), “o caráter compensatório do pagamento das participações
governamentais passou a ser dispositivo constitucional, devido à exploração
se dar nos limites do território dos entes beneficiados”.
Leal e Serra ressaltam:
[...] a extensão dos royalties sobre a produção offshore realizou-se no
período pré-Constituição de 1988, quando “redemocratização política”
e “descentralização fiscal” constituíram, talvez, as principais palavras
de ordem do cenário político nacional. A hipótese aqui sugerida é de
que a regulamentação da distribuição de royalties “pegou carona” na
vaga descentralizadora do momento político de então (LEAL e SERRA,
2003, p. 178).
A Lei Federal n° 7.990, de 28/12/1989, regulamentada posteriormente
pelo Decreto 01, de 11/01/91, altera o rateio dos royalties em terra e na plataforma continental. Em terra, considerando-se a alíquota de 4% do valor da
produção de petróleo e gás, o percentual destinado ao estado foi reduzido de
80% para 70% e, na plataforma continental, o Fundo Especial do Petróleo
foi reduzido de 20% para 10%, para acomodar os 10% que passaram a ser
destinados aos municípios onde se localizassem instalações de embarque e
desembarque de petróleo e gás natural. Além disso, a Lei introduziu novo
critério de distribuição, determinando que os estados passassem a transferir
25% das parcelas das compensações financeiras aos seus municípios, seguindo os mesmos critérios de rateio do Imposto de Circulação de Mercadorias
e Serviços (ICMS), evidenciando uma tendência de municipalização dos
recursos, distante do caráter indenizatório da compensação financeira pela
exploração de petróleo e gás.
Quanto à aplicação dos recursos das compensações financeiras, a
referida Lei vedou sua aplicação em pagamento de quadro permanente de
pessoal e de dívidas. Só com a Lei Federal 10.195/01, passou a ser permitido
que os royalties fossem utilizados para capitalização de fundos de previdência
e pagamento de dívidas contraídas com a União.
A ERA FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E A FLEXIBILIZAÇÃO
DO MONOPÓLIO DA EXPLORAÇÃO E PRODUÇÃO DE PETRÓLEO
Em 9 de novembro de 1995, a Constituição Federal foi alterada, em
seu artigo 177, pela Emenda Constitucional 9 que flexibiliza o monopólio
da exploração de petróleo no país, permitindo que a União contrate empreRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
DENISE C. T. TERRA, JOSEANE DE SOUZA e LEONARDO C. FERNANDES
191
sas estatais ou privadas para a realização das atividades de exploração e
produção de petróleo e gás.
A partir da aprovação da Lei 9.478, de 06/08/97, os recursos dos
royalties se tornaram mais significativos e crescentes, seja em função
da elevação da alíquota, que passou a variar entre 5% e 10% do valor da
produção de petróleo e gás natural, seja em virtude da flexibilização da
exploração e produção, ou das novas regras para a definição dos valores de
referência do petróleo e do gás, sobre os quais são aplicadas as alíquotas dos
royalties. Com a nova Lei, o valor do barril (sobre o qual incide a alíquota
dos royalties) passou a acompanhar a variação dos preços internacionais do
hidrocarboneto, o que não ocorria anteriormente.
A Lei do Petróleo mantém as regras anteriores para a alíquota mínima de 5% (Lei 7.990/89) e cria uma nova regra para distribuir os royalties
excedentes a 5% (Lei 9.478/97), incorporando distintas interpretações sobre
a lógica de distribuição destes recursos entre os entes federados. A nova
distribuição passa a ser a seguinte: (i) até 5%, distribuídos segundo a Lei
7.990/89 e Decreto 01/91. Parcela excedente a 5% se a lavra for em terra:
52,5% aos estados produtores; 25% ao Ministério da Ciência e Tecnologia;
15% aos municípios produtores; 7,5% aos municípios afetados por operações de embarque e desembarque de petróleo e gás natural. Na plataforma
continental, a nova distribuição ficou assim: 25% ao Ministério da Ciência
e Tecnologia; 22,5% aos estados confrontantes com campos; 22,5% aos
municípios confrontantes com os campos; 15% ao Comando da Marinha;
7,5% ao Fundo Especial; 7,5% aos municípios afetados por operações de
embarque e desembarque de petróleo e gás natural, definidas pela Agência
Nacional do Petróleo, criada pela mesma Lei. A tabela 1 facilita a visualização da nova regra na plataforma continental.
O Decreto 2.705, de 03/08/98, mais conhecido como Decreto das
Participações Governamentais, regulamenta os artigos 45 a 51 da Lei do
Petróleo e define os critérios a serem utilizados para o cálculo e a cobrança
das participações governamentais (bônus de assinatura; pagamento pela
ocupação ou retenção de área; royalties e participações especiais). A participação especial é incidente apenas sobre os campos com grandes volumes
de produção ou elevada rentabilidade e é distribuída da seguinte forma:
40% para os estados confrontantes com os campos produtores; 10% para
os municípios, 40% para o Ministério de Minas e Energia e 10% para o
Ministério do Meio Ambiente.
Nazareth, Salles e Quintanilha destacam que a Lei 9.478/97 não
estabeleceu restrições aos estados e municípios quanto à aplicação dos
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
192
FEDERALISMO NO BRASIL E O DEBATE SOBRE O RATEIO...
royalties, permanecendo as restrições previstas na Lei 7.990/89, relativas
aos royalties até 5%. Os autores ressaltam: “Essa lacuna, portanto, pode
levar à interpretação de que as vedações só valem para os royalties até 5%,
podendo as outras participações governamentais ser utilizadas pelos gestores
estaduais e municipais de forma discricionária” (NAZARETH, SALLES,
QUINTANILHA, 2011, p. 191).
Tabela 1 - Repartição dos royalties incidentes sobre a produção na plataforma continental – Modelo vigente.
Beneficiários
Estados confrontantes
Municípios confrontantes e suas respectivas áreas
geoeconômicas
Municípios onde se localizam instalações de
embarque e desembarque de petróleo.
Municípios afetados por operações de embarque e
desembarque de petróleo
Ministério (Comando) da Marinha
Ministério da Ciência e Tecnologia
Fundo Especial
Total
Distribuição da alíquota
Distribuição da
de 5% (Lei 7.990/89
alíquota excedente a
eDecreto 01/91)
5% (Lei 9.478/97 e
Decreto 2.705/98)
Rateio final dos
Royalties entre os
beneficiários
30,0%
22,5%
26,25%
30,0%
22,5%
26,25%
10%
-
5,00%
-
7,5%
3,75%
20%
10%
100,0%
15%
25,0%
7,5%
100,0%
17,50%
12,50%
8,75%
100,0%
Fonte: Serra e Patrão (2003)
AS NOVAS REGRAS DEMANDADAS PELO PRÉ-SAL
Com as descobertas das jazidas de petróleo e gás natural em águas
profundas, na área denominada de pré-sal, que se estende da Bacia do
Espírito Santo à Bacia de Santos, o Governo Federal envia, em 2009, ao
Congresso Nacional um conjunto de projetos que tinham como objetivo
instituir um novo marco regulatório para o setor, destacando-se a alteração
do modelo de concessão para o de partilha de produção para os contratos
de exploração e desenvolvimento das novas áreas a serem exploradas, na
crença de que o novo modelo seria o mais indicado para a preservação do
interesse nacional, mediante maior participação nos resultados e maior
controle da riqueza gerada.
No entanto, do conjunto de regras institucionais e legais que foram
propostas para reformulação, a questão mais polêmica refere-se à distribuiRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
DENISE C. T. TERRA, JOSEANE DE SOUZA e LEONARDO C. FERNANDES
193
ção da riqueza que será gerada pelas atividades de exploração e produção
de petróleo e gás, sendo a única que ainda não entrou em vigor, pois a Lei
12.743/12 que promoveu o rearranjo da repartição das rendas do petróleo
publicada no Diário Oficial de 15/03/13 teve seus efeitos suspensos, a partir
da decisão da Ministra Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF),
em 18/03/13, que apreciou a Ação Direta de Inconstitucionalidade do estado
do Rio de Janeiro (ADI 4917), tendo tomado uma decisão ad referendum,
precisando agora passar pela apreciação do Plenário do STF. Conforme
ressalta Gobetti,
A polêmica deflagrada no País sobre a distribuição das rendas do petróleo
colocou no centro do debate nacional as imperfeições e idiossincrasias do
federalismo fiscal brasileiro. Na ausência de um pacto federativo que trate
de modo adequado o financiamento das políticas e serviços públicos nas
três esferas de governo, governadores e prefeitos começaram a se digladiar
por um recurso de caráter finito e volátil que impõe desafios econômicos,
sociais, intergeracionais que dificilmente podem ser enfrentados em nível
estadual ou municipal, mas que, no curto prazo, são vistos como uma
fonte adicional de receita para seus gastos. (GOBETTI, 2011, p. 109).
Segundo Serra (2013), as principais mudanças trazidas pela Lei
12.743/12 podem ser sintetizadas da seguinte forma: (i) Os estados “produtores” de petróleo reduzem a sua participação de 26,5% (Lei 9.478/97)
para 20% dos royalties. Em relação às Participações Especiais, há uma
redução anual paulatina de 40% até atingir um patamar mínimo de 20%
em 2018; (ii) Para os municípios “produtores” de petróleo, a redução é bem
mais significativa: os royalties são reduzidos ano a ano, da alíquota atual de
26,25% para o patamar mínimo de 4%, em 2019. As Participações Especiais
também seriam reduzidas dos atuais 10% para o patamar mínimo de 4%, em
2019; (iii) As reduções impostas aos “produtores”, adicionadas à redução da
parcela da União, geram o Fundo Especial do Petróleo que será repartido,
meio a meio, entre o conjunto dos estados e municípios “não produtores”,
devendo atingir, no limite superior, em 2019, 54% dos royalties e 30% das
Participações Especiais.
Diante desse conflito de interesses em relação ao rateio das rendas
do petróleo e tendo por parâmetro as particularidades do nosso modelo de
federalismo fiscal, é que se propõe uma reflexão sobre as experiências de
algumas federações produtoras de petróleo, no intuito de melhor embasar
o atual debate.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
194
FEDERALISMO NO BRASIL E O DEBATE SOBRE O RATEIO...
3. EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS DE RATEIO DAS RECEITAS
DO PETRÓLEO
Como a maior parte da produção de petróleo e gás no Brasil é offshore,
buscaremos experiências internacionais de países com extração marítima
deste recurso. Pesquisa realizada por Tolmasquim e Pinto Júnior (2011)
revela que em um total de doze países por eles analisados, mesmo entre
os mais descentralizados, o governo federal é o detentor da propriedade
constitucional ou efetiva dos recursos petrolíferos localizados na plataforma
continental. Apenas em três países deste grupo analisado o governo central
cede (Canadá) ou compartilha (Brasil e Nigéria) as receitas provenientes
da exploração de petróleo offshore, conforme se visualiza no Quadro 1, a
seguir, sistematizado por Gobetti:
Quadro 1 - Propriedade, controle e renda do petróleo em federações (
extração marítima)
País
Propriedade
Controle
ArgenƟna
Austrália
Federal
Federal
Federal
Conjunta
Brasil
Federal
Federal
Federal
Federal
Federal/Estadual
Federal
Federal
Conjunta
Federal
Federal
Federal
Província/Conjunta
Federal
Federal
Federal
Federal
Federal
Federal
Federal
Federal
Canadá
Índia
Malásia
México
Nigéria
Paquistão
Rússia
EUA
Venezuela
Beneİcio Fiscal
Federal
Federal
Federal/Estadual/
Municipal
Provincial
Federal
Federal
Federal
Federal/Estadual
Federal
Federal
Federal
Federal
Fonte: Gobetti, 2011, p. 118.
Existem diversas formas e modelos para contratação e exploração dos
recursos petrolíferos: concessão (pura ou com parceria estatal), contratos
de partilha de produção, contratos de associação e modelos híbridos. Neste
trabalho, analisamos, separadamente, os marcos regulatórios prevalecentes
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
DENISE C. T. TERRA, JOSEANE DE SOUZA e LEONARDO C. FERNANDES
195
em vários países, como forma de alimentar o debate que se iniciou no Brasil,
a partir das propostas de mudanças em nosso marco regulatório.
MODELO DE CONCESSÃO PURA
Na exploração de petróleo e gás sob regime de concessão pura, a
produção pertence à empresa que, após o processo de licitação e tornando-se a vencedora, recebe do Estado a titularidade do produto da lavra, tendo,
em contrapartida, a produção em prazos estabelecidos na licitação, sendo
devido, portanto, o pagamento de royalties. O regime de concessão pura é
adotado nos EUA, Reino Unido, Austrália, Argentina e Colômbia. Foi também o modelo adotado no Brasil com a lei nº 9.478/1997 (TOLMASQUIM
e PINTO Jr., 2011)
Nos Estados Unidos, conforme dito antes, impera o regime de concessão pura, sendo as reservas propriedade do Estado. São cobrados 12,5%
de royalties sobre a produção em terra (onshore), e 16,7%, sobre a produção
offshore. Do percentual cobrado da produção em terra, 50% pertencem ao
estado produtor, 40% constituem um Fundo Federal destinado a financiar
projetos de recuperação de recursos hídricos e os 10% restantes são recursos
não vinculados do Tesouro norte-americano.
Da produção offshore, 27% pertencem ao estado costeiro e o restante
é destinado a compor um Fundo para ampliação e conservação de áreas
federais de recreação (Land and Water Conservation Fund) e Fundo de
preservação do patrimônio histórico (Historic Preservation Fund). (LEAL
e SERRA, 2003)
MODELO DE CONCESSÃO COM PARCERIA ESTATAL
Em outros países (Noruega, Holanda e Emirados Árabes Unidos),
impera o regime de concessão com parceria estatal; ou seja, o Estado participa
como parceiro nos empreendimentos, sendo que a empresa concessionária
deve aceitar essa sociedade como pré-requisito para a concessão da exploração mineral. Dessa forma, o Estado participa da produção, arcando com a
sua parcela correspondente nos custos de produção e, obviamente, participa
também dos seus resultados. (TOLMASQUIM e PINTO JÚNIOR, 2011).
Com 0,8% das reservas mundiais de petróleo e 2,4% das reservas
mundiais de gás natural, a Argélia tem sua produção de petróleo regida por
um modelo de concessão com parceria estatal, sendo o Estado Argelino o
proprietário das reservas. Com relação às receitas geradas pelo setor, em
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
196
FEDERALISMO NO BRASIL E O DEBATE SOBRE O RATEIO...
termos de receitas governamentais, os royalties são negociados a cada contrato firmado e variam em um intervalo de 5,0% a 20%, de acordo com o
volume de produção. Além disso, está vigente um regime fiscal transitório
que se aplica a contratos de partilha de produção, sendo que estes valores
são pagos pela empresa estatal Sonatrach (Societé Nationale pour la Recherche, la Production, le transport, la transformation et la Commercialisation
des Hydrocarbures s.p.a.) a uma taxa de 20% (TOLMASQUIM e PINTO
JÚNIOR, 2011).
Com relação ao México, somente a empresa estatal Petróleos Mexicanos (PEMEX) transfere para o governo federal 60,8% de suas receitas e
39,2% dos lucros extraordinários gerados a partir de um nível de preço de
referência. Do total das receitas geradas pelo setor e arrecadadas pelo governo
federal, parte é transferida a um fundo de participação, que é distribuído para
todas as unidades federadas de acordo com o tamanho de sua população e
sua capacidade de geração de receitas fiscais (GOBETTI, 2011b).
CONTRATO DE PARTILHA DE PRODUÇÃO
Além desses dois regimes de concessão, são adotados por alguns
países os contratos de partilha de produção (Indonésia, Angola, Azerbaijão,
Cazaquistão, Índia, Líbia, Nigéria e Rússia). Nesse regime, uma empresa
estatal é proprietária do produto da lavra, e reparte a produção com a empresa
contratada, como forma de compensação dos custos e dos riscos existentes
na exploração e produção (E&P), ocorrendo pagamentos ao governo na
forma de participações e tributação.
Um dos maiores produtores mundiais, a Rússia, se utiliza de um regime de contratos de partilha de produção, sendo o setor produtor de petróleo
responsável por cerca de 50% do total dos recursos tributários arrecadados
pelo governo russo. A distribuição dessas receitas aos governos supranacionais foi sendo reduzida ao longo da primeira década do século XXI,
partindo de um percentual de 60%, no início do período, até chegar a 0%
em 2002. Portanto, toda receita gerada por este setor produtivo é controlada
pelo governo federal que, na verdade, se utiliza de mecanismos de retorno
do imposto de renda para reduzir as diferenças de renda entre regiões pobres
e ricas (GOBETTI, 2011b).
A Nigéria apresenta um marco regulatório também baseado em um
regime de partilha de produção. Nele, 80% dos recursos gerados pelo setor
petrolífero são retidos pelo governo nigeriano, e 13% destes recursos são
transferidos para os estados produtores (onshore) e adjacentes (offshore). São
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
DENISE C. T. TERRA, JOSEANE DE SOUZA e LEONARDO C. FERNANDES
197
transferidos 47% dos recursos aos demais estados da federação nigeriana,
tendo como critérios população, extensão territorial, arrecadação própria
e necessidade de recursos; os restantes 40% dos recursos são distribuídos
de forma igualitária entre todos os estados federados (GOBETTI, 2011b).
CONTRATOS DE ASSOCIAÇÃO
Por sua vez, os contratos de associação são adotados principalmente
pela Nigéria, Angola e Venezuela. Nesses contratos, uma empresa estatal se
associa a empresas privadas, compartilhando também os custos e os riscos
da atividade produtiva. Essas associações podem ser feitas por meio de
consórcios ou de formação de sociedades comerciais.
Na Venezuela – um dos maiores produtores de petróleo do mundo,
com 12% das reservas provadas –, impera regime de contratos de associação,
além da exclusividade estatal através da empresa Petróleo de Venezuela
(PDVSA), sendo que também as reservas são propriedade do Estado. Com
a adoção da Lei Orgânica de Hidrocarbonetos (LOH), em 2001, os royalties
cobrados atingiram um patamar de 20% para o gás natural e 30% para o
petróleo. Todavia, antes da adoção dessa lei, os percentuais variavam de
1,0% a 16,67%. O total arrecadado referente aos royalties é distribuído entre
estados e municípios de duas formas distintas: um Fundo de Participação,
que é composto por 20% das receitas orçadas e que foram menores que as
receitas efetivamente arrecadadas e que é distribuído de forma igualitária
entre os estados (30%), e os 70% restantes distribuídos para os municípios,
de acordo com suas populações. Além desse fundo, até 2010, vigorava uma
lei de alocação especial com 17,5% das receitas de royalties para os estados
produtores e 7,5% para os demais estados. Essa lei foi alterada naquele ano
(2010) e os recursos foram destinados para um Fundo de Compensação
Interterritorial, sob controle do governo federal.
MODELOS HÍBRIDOS
Tem sido cada vez mais freqüente a existência de formas híbridas
de modelos de contratação, possibilitando a coexistência de dois regimes
em áreas com diferentes condições de riscos exploratórios. Este é o caso do
Brasil que adota duas formas de contratação: i) regime de concessão pura
(para contratos já celebrados e para os contratos vindouros fora do pré-sal
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
198
FEDERALISMO NO BRASIL E O DEBATE SOBRE O RATEIO...
e das áreas estratégicas, no âmbito da Lei nº 9.478/1997) e ii) partilha de
produção (ambiente pré-sal no âmbito da Lei nº 12.351/2010).
A forma de distribuição das rendas do petróleo no Brasil, tanto no
modelo de concessão pura quanto na proposta para o pré-sal já foi apresentada
na seção anterior. Resta conhecer os argumentos utilizados para a adoção
do regime de contrato de concessão e posteriormente a escolha do regime
de contrato de partilha de produção para a área do pré-sal. Verifica-se que
as escolhas estão muito relacionadas ao momento histórico e à ideologia
do grupo político que exerce o poder no momento da definição do modelo.
A argumentação para a adoção do regime de concessão estava ancorada na compreensão de que havia necessidade de atrair capitais privados
para ampliação dos investimentos e conseqüente aumento na produção,
visando à conquista da auto-suficiência e maior modernização e competição
da indústria petrolífera brasileira. Este rearranjo institucional previa a flexibilização do monopólio até então exercido pela Petrobras na exploração e
produção de petróleo e gás, autorizando a contratação de empresas privadas
e regulamentando estas contratações a partir do regime de concessão. O
Estado passaria a ter uma atuação mais relevante nas atividades de regulação, fiscalização e, principalmente na incorporação do capital privado nas
atividades de exploração e produção.
Esta nova concepção do papel e da forma de atuação do Estado não
ocorreu sem embates. Alguns setores sociais mais organizados se manifestaram, considerando tais mudanças uma ameaça ao futuro da Petrobras e
até à própria soberania nacional, culminando com manifestações acaloradas
durante a implementação das primeiras rodadas de licitação realizadas pela
Agência Nacional do Petróleo (ANP) e tendo se arrefecido com o tempo e
com os resultados alcançados pelo setor.
Segundo Zylbersztajn e Agel (2013, p. 68),
[...] foi com o arcabouço jurídico implantado a partir do ano de 1999 e
com o procedimento adotado pela agência reguladora que a produção de
petróleo no Brasil passou de aproximadamente 1,1 bilhão de b/d naquele
ano para aproximadamente 2,2 bilhões de b/d em 2012.
Verifica-se, portanto, que o regime de contrato de concessão mostrou-se eficaz, obteve o reconhecimento internacional, atraiu investimentos
e fez crescer as participações governamentais e a própria Petrobras, que
ampliou o seu espectro de atuação inclusive através da internacionalização
das suas atividades. Além disso, foi o responsável pela descoberta dos novos
campos do pré-sal.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
DENISE C. T. TERRA, JOSEANE DE SOUZA e LEONARDO C. FERNANDES
199
Ao mudar o marco regulatório que vinha dando resultados positivos, o governo alegou a necessidade de ampliação do controle estatal das
jazidas de pré-sal, isto é, para que não fossem controladas por investidores
privados, em especial, estrangeiros. Há uma opção declarada de ampliação
da soberania nacional, já que o petróleo e o gás extraídos pela contratada
continuarão pertencendo ao Governo Federal.
Outro forte argumento utilizado está relacionado à compreensão do
governo segundo a qual os riscos exploratórios do pré-sal são inferiores aos
das demais áreas, alegando que o regime de concessão não seria capaz de
garantir a justa participação do governo no rateio dessa riqueza.
O embate maior, no entanto, não foi em relação à mudança do modelo
– de contrato de concessão para o de partilha a ser adotado no polígono do
pré-sal e nas áreas estratégicas –, e sim, no tocante à forma como as rendas
petrolíferas seriam distribuídas entre os entes federados. Este aspecto será
abordado na próxima seção, quando da discussão do nosso modelo federativo.
Outro país que adota o modelo híbrido é o Azerbaijão, detentor de
0,5% das reservas mundiais de petróleo, sendo que a maior parte da produção é offshore na região do Mar Cáspio. Da mesma forma, lá a produção de
gás natural também é realizada offshore, principalmente no campo de Shah
Deniz. O marco regulatório prevalecente se dá através de duas maneiras: a
partilha de produção e a concessão com parceria estatal, sendo a República
do Azerbaijão proprietária de todos os recursos naturais existentes no país.
Em 2000, o governo do Azerbaijão instituiu o Fundo Estatal de Petróleo da
República do Azerbaijão (SOFAZ, State Oil Fund of the Azerbaijan Republic), que tem como objetivo o financiamento de investimentos estratégicos
(TOLMASQUIM e PINTO JÚNIOR, 2011).
O Cazaquistão é outro exemplo de país que adota, na atualidade, marco
regulatório misto: concessão com parceria estatal e sistema de partilha de
produção. Com 2,7% das reservas mundiais de petróleo e 1,0% das reservas
mundiais de gás natural, o país é apresentado, hoje, como extremamente
dependente da produção de hidrocarbonetos, cuja maior parte é destinada
às exportações. O valor pago na forma de royalties é calculado de acordo
com a produção, com alíquotas de variam de 2,0% – para uma produção
de até 500 mil toneladas – a 6,0%, para produção acima de 5000 mil toneladas. As receitas geradas pelo setor petrolífero, incluindo aqui os royalties
e receitas tributárias, são destinadas ao fundo NRFK (National Fund for the
Republic of Kazakhstan), que tem duas funções específicas, quais sejam:
financiar um desenvolvimento social e econômico estável e constituir um
fundo de poupança para geração de recursos destinados a gerações futuras
(TOLMASQUIM e PINTO JÚNIOR, 2011).
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
200
FEDERALISMO NO BRASIL E O DEBATE SOBRE O RATEIO...
FEDERALISMO BRASILEIRO E CONTRIBUIÇÕES AO DEBATE
A lógica fundamental por trás de toda a discussão a respeito dos ideais
federalistas é equilíbrio, o que significa dizer que todos os entes federados
participam de forma justa das responsabilidades de uma estrutura federalista.
No entanto, no federalismo brasileiro ainda persistem inúmeros mecanismos
que impedem igualdade na distribuição dos recursos arrecadados. Significa
dizer que, em uma situação ideal, os encargos deveriam ser distribuídos de
acordo com a capacidade de cada ente federado, havendo, assim, um critério
fundamentado na abrangência geográfica dos benefícios a serem atendidos
por cada ente federado.
Montoro Filho (1994) afirma:
O Brasil está ainda longe de um autêntico federalismo. As deficiências
de nosso sistema geram extraordinários problemas administrativos e financeiros para o setor público nacional. O enfrentamento dessa questão e
medidas de profundidade para superar os problemas são inadiáveis” (p. 23).
Partindo desse princípio, passa a ser considerada como função precípua
a busca do equilíbrio entre os entes federados e, nesse sentido, a reforma
tributária de 1967 introduziu na estrutura tributária brasileira um inédito
sistema de partilha, com objetivo redistributivo.
Essa reforma teve um caráter fortemente centralizador dos recursos
arrecadados nas mãos da União e, como forma de compensação dessa
centralização, criou mecanismos de redistribuição ancorados basicamente
no Fundo de Participação dos Estados (FPE) e Fundo de Participação dos
Municípios (FPM).
Apesar do ineditismo desse mecanismo de transferências, é justo
considerar que aos municípios restava pouca autonomia tributária e que
esses passaram, como ainda atualmente, a depender fortemente dos recursos
recebidos da União.
Analisando mais detalhadamente esses fundos de participação – e
tendo em mente que não são esses nossos objetivos de estudo –, através dos
critérios de rateio tanto do FPE quanto do FPM podem-se perceber claramente seus aspectos redistributivos. O FPE tinha como critérios coeficientes
determinados pelo tamanho da população dos Estados e pelo valor inverso
da renda per capita estadual.
De acordo com Prado,
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
DENISE C. T. TERRA, JOSEANE DE SOUZA e LEONARDO C. FERNANDES
201
Os critérios de rateio do FPE estão entre os mais duradores critérios fiscais
do sistema federativo brasileiro. Definidos em 1966 (Lei n. 5.172/66),
exigiam que 95% fossem distribuídos segundo coeficientes derivados
do tamanho da população e do inverso da renda per capita. (...) Esses
critérios, em particular a inclusão da renda per capita, têm garantido para
esse Fundo uma atuação fortemente redistributiva. Eles garantiam também
um ajustamento dinâmico satisfatório, na medida em que deslocamentos
ou taxas distintas de crescimento populacionais, assim como diferenças
no ritmo de desenvolvimento econômico, se refletiriam nos critérios de
distribuição (PRADO, 2003, p. 64).
Com relação ao FPM, inicialmente receberiam esses valores municípios que não fossem capitais e seu critério básico se apoiava no tamanho
populacional, privilegiando os pequenos municípios, mas o volume de
recursos transferidos seria reduzido com o crescimento da população.
Esse critério veio a ser alterado através do Decreto-Lei nº 1881/1981, que
determinava: do total a ser distribuído, 86,5% seriam destinados aos municípios interioranos, 10% para as capitais e 3,6% para a Reserva do FPM
(PRADO, 2003, p. 65).
No entanto, apesar da lógica do critério de rateio, de acordo com a
qual municípios menores seriam mais beneficiados como forma compensatória de sua baixa autonomia tributária, a sua aplicação em todo o território
nacional não foi suficiente para reduzir as desigualdades. Considerando os
distintos níveis de renda por município, o tamanho da população torna-se
o principal critério de rateio e, portanto, as desigualdades verificadas entre
regiões tornaram-se o principal empecilho aos objetivos do FPM.
Com a promulgação da Constituição em 1988, novas perspectivas se
abriram para o nosso federalismo, possibilitando a renovação das estruturas
federais, com ênfase na cooperação. Ocorreu uma ampliação dos recursos
fiscais disponíveis dos estados e municípios, mas não houve definição de
forma clara quanto às novas atribuições de cada ente federativo. O governo
federal passou a empreender esforços para coordenar e conduzir as políticas
públicas sem enfraquecer a atuação dos entes sub-nacionais, procurando
reduzir conflitos de competência administrativa em áreas como saúde,
assistência social, habitação, saneamento básico, combate à pobreza e
integração nacional. Essa falta de planejamento quanto à transferência de
responsabilidades de gastos é bem visível em relação aos estados, que não
tiveram uma especificação de atribuições (GIAMBIAGI e ALÉM, 2008).
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
202
FEDERALISMO NO BRASIL E O DEBATE SOBRE O RATEIO...
Adicionalmente, a Carta Brasileira de 1988 apresenta um aspecto mais
descentralizador no que concerne à questão tributária do que a reforma de
1967. Aos municípios que tinham escassa autonomia em virtude do caráter
centralizador de 1967, a Carta de 1988 dava maior autonomia com relação
à capacidade de tributar.
Em segundo lugar, a Constituição de 1988 estabelece elevação da
porcentagem dos impostos federais que compõem o FPE e o FPM, ao mesmo
tempo em que determina o aumento dos gastos do governo federal com as
políticas sociais, implicando um maior desequilíbrio no sistema tributário.
Rezende e Afonso, com relação a essa questão, afirmam:
Na prática, a nova Constituição instalou um regime fiscal duplo. O tradicional, que atribuía poderes tributários na Federação e criava mecanismos
de participação nas receitas, e um novo, relacionado especificamente
ao financiamento de políticas sociais, ao qual se aplicam normas mais
frouxas. Uma vez que mais da metade das receitas arrecadadas pelos
mais importantes tributos federais – imposto de renda e imposto sobre
produtos industrializados – seria transferida aos estados e municípios,
o resultado era fácil de prever (REZENDE e AFONSO, 2004, p. 313).
De acordo com estes autores, o resultado foi a criação de contribuições sociais que financiariam os gastos com as políticas sociais, conforme
determinava a Constituição, reduzindo, por consequência, o aspecto descentralizador que caracterizava a nova Constituição.
Com essas breves observações a respeito dos esforços de distribuição
igualitária dos recursos tributários, pode-se dizer que, apesar da inovação da
reforma tributária de 1967 e da maior preocupação da Constituição de 1988
em descentralizar e dotar os municípios com maior autonomia tributária, o
sistema tributário brasileiro ainda persiste na sua incapacidade de interferir
positivamente nos efeitos perversos das desigualdades regionais. E é neste
contexto que surge o debate ainda inacabado sobre o modelo de distribuição
das rendas petrolíferas que seja mais justo para a sociedade brasileira.
A disputa empreendida entre “estados produtores” e “não produtores”
pela apropriação das rendas petrolíferas foi amortecida pela mídia, após a
decisão da ministra Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), que
acatou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4917) dos dispositivos
da Lei 12.734/2012 que trata da distribuição dos royalties do petróleo, impetrada pelo governo do estado do Rio de Janeiro, com base no entendimento
de potencial ocorrência de “sérias conseqüências financeiras e sociais”.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 185-209
DENISE C. T. TERRA, JOSEANE DE SOUZA e LEONARDO C. FERNANDES
203
Os três principais argumentos utilizados pelos “estados e municípios
produtores e/ou confrontantes” e pelos “estados e municípios não produtores”
foram muito bem sintetizados por Serra e Vilani (2013): os “estados e municípios produtores” alegam que: i) merecem parte significativa das rendas
petrolíferas por serem impactados ambiental e socialmente pela atividade
da indústria petrolífera; ii) as mudanças nas regras significaram quebra de
contrato, sendo, portanto, inconstitucionais, e iii) as rendas petrolíferas hoje
recebidas funcionam como compensação à imunidade do ICMS sobre as
operações interestaduais de petróleo e gás.
Em contrapartida, os estados e municípios “não produtores” alegam
que é justo que sejam mais beneficiados na partilha dessa riqueza com os
seguintes argumentos: i) os recursos da plataforma pertencem à União,
conforme artigo 20 da Constituição Federal e, portanto, pertencem a toda
a sociedade brasileira que deveria ser compensada pela extração de uma
riqueza que pertence a todos os brasileiros; ii) denunciam a falta de critérios
que efetivamente avaliem o impacto da atividade petrolífera offshore no
território, criando os municípios denominados por Serra e Patrão (2003)
de “petrorrentistas”, pois não têm relação com a atividade petrolífera a
não ser pelo fato de receberem bilhões de reais a título de participações
governamentais (royalties e participações especiais) e iii) consideram a
ocorrência de um duplo privilégio para as regiões consideradas produtoras
de petróleo. Em primeiro lugar, alegam que a economia já é aquecida, pois
sedia a maior parte das empresas petrolíferas e fornecedoras; e, em segundo,
são beneficiárias das vultosas rendas petrolíferas.
Tendo em mente o ainda necessário esforço de maior equalização no
rateio dos recursos tributários, a introdução nesse debate do tema polêmico
a respeito dos critérios de rateio dos royalties derivados da produção de petróleo e gás permite perceber que, mais do que nunca, a busca de equilíbrio
e equalização no federalismo fiscal brasileiro se faz urgente.
Considera-se que, com a Constituição de 1988, os estados brasileiros pouco foram afetados pela descentralização e que, apesar da maior
autonomia dada aos municípios para a criação e arrecadação de tributos,
esses entes federados ainda continuam bastante dependentes de recursos
advindos do FPE e do FPM. Portanto, as desigualdades regionais persistem,
como persistem seus efeitos perversos. Considerando também as regras de
distribuição dos royalties e participações especiais antes da implantação
das regras atuais, percebe-se que as desigualdades regionais se agravaram
diante dos critérios de rateio.
Por um lado, há municípios que, por critérios geográficos, são considerados municípios não produtores e que, apesar da maior autonomia
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FEDERALISMO NO BRASIL E O DEBATE SOBRE O RATEIO...
na criação de novos tributos, possuem baixa capacidade arrecadatória, em
função de uma estreita base tributária e dependem basicamente de recursos
que são transferidos através dos fundos de participação. Por outro lado, os
que são considerados produtores de petróleo, também por questões geográficas, passam a ter direito a receber vultosos recursos advindos da produção
petrolífera, que serão somados aos recursos também advindos dos fundos
de participação.
Esses municípios produtores e também os estados beneficiados passaram a ter uma grande capacidade de investimento e a apresentar valores
crescentes para seus produtos internos, pelo fato de os critérios de rateio dos
royalties serem utilizados no cálculo do Produto Interno Bruto (PIB), tanto
dos municípios produtores quanto dos estados, gerando enormes diferenças
no PIB, principalmente entre os municípios produtores e não produtores.
Aprofundam-se, portanto, as distorções existentes no federalismo
fiscal brasileiro.
O critério de rateio vigente tende a gerar uma concentração espacial
da riqueza, agravando, ainda mais, as desigualdades já existentes. De acordo
com Serra e Patrão, “a magnitude destes recursos e a dimensão temporal de
sua permanência, não inferior a algumas décadas, irão produzir alterações
significativas na espacialização da riqueza nacional e, por extensão, na
conformação da rede urbana brasileira” (2003, p. 200).
Desta forma, ao persistirem, no tempo, os critérios de rateio dos
royalties e participações especiais da produção de petróleo e gás tenderiam
a aprofundar as enormes desigualdades existentes entre as regiões, exigindo
da União novas medidas, via políticas compensatórias, para atenuar seus
efeitos perversos.
A adoção de novas regras de distribuição dos royalties do petróleo
tem como pano de fundo a necessidade de se repensar os efeitos perversos
de longo prazo das regras anteriores. Com a redução do percentual a ser
repassado – tanto aos estados quanto aos municípios – e a criação do Fundo
Especial do Petróleo, espera-se reduzir sensivelmente a desigualdade na
distribuição desses recursos, contribuindo para uma melhor equidade no
federalismo fiscal brasileiro.
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205
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise desenvolvida neste trabalho nos leva a afirmar que a sociedade
brasileira encontra-se diante de um momento no qual interesses díspares estão
se confrontando. De um lado, interesses econômicos centrados na riqueza
gerada pela extração de petróleo, principalmente aquela que se destina aos
estados e municípios produtores de hidrocarboneto, mais especificamente
os royalties e as participações especiais. De outro lado, considerando a concentração espacial da produção de petróleo no país, todos os demais estados
e municípios da Federação também interessados em participar dessa riqueza
gerada, procurando quebrar a forte concentração de recursos que é resultado
das alterações recentes forma de distribuição dos royalties.
Com o anúncio da descoberta de novas jazidas na região – conhecidas como pré-sal – e diante das expectativas extremamente positivas do
volume de recursos que podem ser gerados na sua extração, um novo marco
regulatório começou a ser pensado, visando a distribuir de uma forma mais
igualitária tais recursos que, até esse momento, existem mais em termos de
expectativa do que por efetiva geração.
O avanço das discussões implicou acirramento de ânimos, e um
conjunto de variáveis políticas entrou em ação, na busca de se manter, naquele momento, o status quo da distribuição dos recursos, ou na tentativa
de criação de novas regras de distribuição que favoreçam todos os estados
da Federação e não somente os estados e municípios produtores.
Nessa discussão, aberta com tal conflito de interesses, a percepção
de como os recursos de royalties gerados pela extração do petróleo são
distribuídos em outros países também produtores serve como combustível
para alimentar a fogueira teórica que foi acesa. Como visto, de uma forma
geral, os recursos de royalties tendem a permanecer nas mãos, ou nos cofres, dos governos centrais, que controlam, de uma forma mais rígida, sua
distribuição entre todos os entes federados.
Grandes produtores como Estados Unidos, Venezuela e Rússia,
para citar somente alguns, foram analisados neste trabalho, chamando-se
a atenção para a constante preocupação que têm em conservar os recursos
sob controle do governo federal, de forma a buscar uma distribuição mais
igualitária, mesmo que em alguns os critérios escolhidos possam ser criticados. Não há, como se verifica no Brasil, uma distribuição dos royalties de
uma forma tão desproporcional, que tenha como principal efeito uma total
desigualdade e uma concentração institucionalizada de recursos gerando
graves desequilíbrios no federalismo fiscal.
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FEDERALISMO NO BRASIL E O DEBATE SOBRE O RATEIO...
A estrutura da distribuição dos royalties e participações especiais gerados pela indústria petrolífera conduz a um agravamento dos desequilíbrios
verificados no federalismo fiscal brasileiro. Apesar da evolução verificada
na Constituição de 1988 em relação à reforma tributária de 1967, no que se
refere à maior descentralização da capacidade de tributar, principalmente em
se tratando dos municípios, estes e também os estados da federação ainda se
encontram fortemente dependentes das transferências recebidas do governo
federal, via Fundo de Participação dos Estados e Fundo de Participação dos
Municípios. Em que pese a maior autonomia conferida, principalmente aos
municípios, na Constituição de 1988, a capacidade de geração de recursos
próprios ainda é extremamente limitada, em função da baixa capacidade de
geração de renda e produção, verificada na maioria dos municípios brasileiros.
A essa situação se somam os resultados decorrentes da forma como
os recursos do petróleo estavam sendo distribuídos até recentemente. Elevadas somas de recursos passaram a ser distribuídos a poucos municípios
e estados, sendo o estado do Rio de Janeiro e alguns de seus municípios os
maiores beneficiários. A disparidade na distribuição dos recursos acentuou
as desigualdades existentes no nosso frágil federalismo fiscal.
Desta forma, a aprovação no Congresso Nacional de um novo marco
regulatório para a distribuição da riqueza gerada pela extração do petróleo
na região do pré-sal, a despeito das várias tentativas jurídicas para impedir
sua adoção, vem ao encontro da necessidade de se buscar alternativas para
as graves distorções e desigualdades existentes entre os entes federados
brasileiros.
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DENISE C. T. TERRA, JOSEANE DE SOUZA e LEONARDO C. FERNANDES
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DENISE C. T. TERRA, JOSEANE DE SOUZA e LEONARDO C. FERNANDES
Palavras-chave:
Federalismo; petróleo;
regulação; royalties; experiências internacionais.
Keywords:
Federalism; oil; regulation; royalties; international
experiences.
209
Resumo
Esse artigo objetiva trazer contribuições ao debate sobre o
novo modelo de rateio das receitas do petróleo estabelecido
pelo marco regulatório do pré-sal. O modelo vigente gera um
padrão de concentração regional dos royalties que se torna
insustentável diante das perspectivas de volumosas receitas
bem como pelo não atendimento a qualquer objetivo de justiça
intergeracional. A metodologia perpassa por uma discussão sobre
o equilíbrio econômico e fiscal dentro da estrutura federativa
brasileira e pela análise de algumas experiências internacionais
sobre o gerenciamento e divisão das receitas provenientes
desse recurso natural. Os resultados apontam não haver um
padrão único de distribuição dos royalties e o peso relativo do
petróleo nos respectivos PIB’s, a propriedade das reservas e o
grau de (des)centralização fiscal são informações que devem
ser consideradas nesta avaliação.
Abstract
This article aims to bring contributions to the debate on the
new model assessment of oil revenues established by the regulatory framework of the pre-salt. The current model generates
a pattern of regional concentration of royalties which becomes
untenable with the prospect of massive revenue as well as the
non compliance to any goal of intergenerational justice. The
methodology permeates a discussion on the economic and
fiscal balance within the Brazilian federal structure and the
analysis of some international experiences on the management
and division of revenue from this natural resource. The results
indicate there is no single pattern of distribution of royalties
and the relative weight of oil in their GDPs, the ownership of
stocks and the degree of (de) centralization tax is information
that should be reviewed on this snag.
Recebido para publicação em agosto/2014. Aceito em novembro/2014.
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Matreirice e discurso político: a moral
da política mineira durante a Primeira
República
Luciano Senna Peres Barbosa
Doutor em Antropologia, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/IFCS/UFRJ).
Professor Adjunto do Instituo de Ciências Sociais (INCIS) da Universidade
Federal de Uberlândia (UFU), Minas Gerais. Autor do livro Viva o povo de
Juiz de Fora: estratégias discursivas e eleições na Primeira República brasileira.
Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage / Editora da Universidade Federal
de Juiz de Fora (FUNALFA/EDUFJF).
Endereço postal: Rua João Alves Garcia, n° 72/601, Santa Maria, Uberlândia
– Minas Gerais. CEP: 38408020
E-mail: [email protected]
A historiografia da Primeira República brasileira tem
abordado o discurso político através de uma perspectiva negativa1, salvo raras exceções2. Caracterizado por seu verbalismo
exacerbado ou como parte de uma retórica vazia, tudo o que os
políticos no período disseram sobre a sua função, ou seus atos,
é reduzido pela historiografia a uma capa a encobrir a “estrutura
real” de poder – seja a dinâmica econômica que dá sentido à
ação das oligarquias estaduais, ou a força de cooptação do Estado por meio das relações clientelistas. Na busca de realidades
subjacentes, as análises impõem um silêncio aos agentes que
vivenciaram e atuaram no período. Ou seja, conforme essas
abordagens, faz-se necessário silenciar os atores políticos para
se entender o que eles estavam fazendo.
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MATREIRICE E DISCURSO POLÍTICO...
Esse silêncio é quebrado nos trabalhos sobre o imaginário político que,
por sua vez, não deixam de apresentar uma dificuldade de outra natureza, a
saber, a separação entre tal imaginário e as relações políticas em meio às quais
atua (ARRUDA, 1990. DULCI, 1984). Afastado o imaginário das relações
concretas em que opera, resta a esses estudos a análise de representações
tomadas isoladamente. Resultado: cava-se um fosso intransponível entre o
que é definido como a dimensão simbólica e a realidade “mais complexa”
do cotidiano das relações políticas.
Tendo em vista estas considerações, o presente artigo procura resgatar
os efeitos práticos dos discursos políticos na Primeira República. Tomando
por base os jornais de Juiz de Fora – importante centro político de Minas
Gerais –, é meu intuito demonstrar como o texto jornalístico se apresentava
como meio fundamental através do qual os políticos expressavam uma retórica convencional, capaz de fazer valer suas posições frente a seus pares,
e como esse reconhecimento era essencial para que obtivessem postos no
âmbito do poder público.
ELEIÇÕES, PRESTÍGIO E GOVERNO
Localizado na Zona da Mata mineira, o município de Juiz de Fora
era representado em suas publicações jornalísticas do final do século XIX
como centro do progresso econômico e centro cultural do estado.
À frente da construção dessa imagem estavam aqueles que se colocavam como seus representantes: os políticos. Autores dos artigos sobre as
municipalidades em tom panegírico, ou proprietários dos jornais em que
tais artigos eram veiculados, contribuíram, assim, para que a imagem dos
políticos mineiros se confundisse com a imagem de suas respectivas cidades.
No entanto, pelo menos no caso de Juiz de Fora, os políticos não
eram, ao fim do século XIX, representações metonímicas do município – tal
como Arruda (1990) descreveria os políticos mineiros do período –, o que
não diminuía a preocupação dos homens públicos locais com a sua imagem,
como pode ser visto pela publicação de litografias de suas faces na capa
dos periódicos, nas notícias recorrentes sobre as suas viagens, na cobertura
de seus feitos, e, notadamente, nos artigos e manifestos em defesa destes
personagens, geralmente de autoria de um correligionário.
Essa preocupação com a projeção da imagem se justifica em um
contexto em que o acesso a um cargo público eletivo passava mais pelo
juízo que seus pares faziam do candidato do que pela conquista de votos.
Tal se devia, em grande parte, à organização formal do processo eleitoral,
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LUCIANO SENNA PERES BARBOSA
213
que garantia aos próprios candidatos e, através deles, a outras lideranças
políticas, a possibilidade de definir os resultados eleitorais por meio das
comissões de verificação de poderes3. Ou seja, neste contexto, a obtenção
de votos era uma condição necessária, mas não suficiente, para a eleição de
um candidato. Restava ao candidato comprovar a legitimidade da sua versão
dos resultados eleitorais. Para tanto, era essencial que este soubesse justificar
a pretensão de ocupar um cargo público, isto é, construir uma imagem de
seus atos, e, portanto, de sua pessoa, de maneira que fosse capaz de fazer
com que seus pares aceitassem sua eleição4.
A eficácia dessa construção dependia, antes de tudo, da capacidade
do político (e de seus correligionários) de apresentar seus atos conforme as
expectativas socialmente definidas sobre a sua função (HERZFELD; 1980).
Dito de outro modo, tratava-se da necessidade do político em conformar
cada ato seu a um critério social específico de avaliação e percepção da
atividade política.
Inicialmente, esse critério pode ser identificado pelo uso de um léxico
e de um decoro característicos a reger a apresentação dos políticos, ambos
se constituindo em torno da reivindicação da atividade política como espaço
autônomo. Sendo assim, a conduta política ideal se definia em função da
interdição do uso de recursos econômicos, dos instrumentos de violência
física e da expressão de interesses particulares por parte dos homens públicos.
Seguindo este princípio, todo ato, discurso proferido, narrativa apresentada,
ou avaliação, enfatizava algum aspecto da conduta do político como pessoa
ponderada, polida, abnegada, cortês, altruísta, e de trato afável. Conduta
esta que, por sua vez, fazia referência a uma concepção mais ampla de atividade política. Em um plano conceitual, a atividade política era entendida
entre os políticos mineiros como a busca de uma verdade condicionada à
ação desinteressada e altruísta de seus agentes. Esperava-se que a atividade
política fosse um espaço em que homens intelectualmente capazes e portadores destas qualidades morais se reuniriam em discussão – regida pela
ponderação e cordialidade de agentes desinteressados – para, no cumprimento das leis – postulado primeiro da moralidade política –, alcançarem
de forma cooperativa as decisões corretas (a verdade) que os levariam ao
estabelecimento do bem comum e do progresso. Consequentemente, a política
republicana era representada como um modo de superação (e negação) das
demandas conflitivas, uma vez que, conforme esta concepção, políticos bem
intencionados tenderiam a reconhecer unanimemente as decisões corretas5.
No entanto, não bastaria conformar seus atos (verbais ou não) a esta
espécie de decoro para que um político reafirmasse sua legitimidade em uma
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MATREIRICE E DISCURSO POLÍTICO...
dada situação. O reconhecimento da validade do ato de um político dependia
também da posição que este ocupava no universo de relações de força do espaço
político, e da posição daqueles com quem interagia em uma dada situação
(BOURDIEU, 1996). Ou seja, um mesmo enunciado, embora formalmente
correto – i.e., dados os constrangimentos e limites definidos pela concepção
de atividade política socialmente estabelecida –, variava em seu sentido, em
seu valor, e, consequentemente, em seus efeitos, dependendo de quem falava
(a autoridade social do enunciador) e a quem se dirigia (a autoridade social
do interlocutor, e o público mais amplo formado pelos outros políticos que
avaliavam a interação). Poder-se-ia, por exemplo, comparar uma crítica ao
governo partindo de uma liderança política à de um político iniciante para
perceber que, embora fossem empregados enunciados semelhantes, ou, por
vezes, idênticos, estes não continham os mesmos efeitos.
Se, por esta última condição, o prestígio6 – termo pelo qual os políticos mineiros definiam o reconhecimento da autoridade social – indicava
como o político deveria agir em uma dada situação, tal não reduzia a disputa
política a uma técnica de efeitos preestabelecidos. Há que se considerar o
caráter imprevisível das interações, originado do fato de o prestígio de um
político estar em constante atualização. A indicação do prestígio era sempre
uma presunção, fruto de um reconhecimento difuso e circunstancial, em um
espaço público fragmentado de tal forma, que o conhecimento das figuras
políticas e as informações sobre suas tomadas de posição (indispensáveis
para o sucesso de um homem público7) eram tidos como bens escassos.
A ausência de um referencial externo capaz de determinar, de antemão, a posição ocupada por um político em relação aos seus concorrentes,
e, assim, indicar como um ato seria recebido, fazia da projeção do prestígio
não apenas o objetivo, mas também o meio pelo qual se travava a disputa
política. No desempenho de atos públicos, o político buscava apresentar
seu prestígio presumido (fosse enunciando-o de maneira direta8, fosse indiretamente, pela demonstração de respeito ao decoro político) como uma
espécie de credencial que justificaria sua postura, esperando, desse modo,
condicionar a recepção e as possíveis reações de seus interlocutores. Neste
sentido, a apresentação do prestígio pode ser entendida como um enquadre
(GOFFMAN, 1975) habilmente manipulado pelos políticos – em que se
pesem os limites da ação individual – a fim de antecipar, e, especialmente,
controlar as reações de seus interlocutores.
Este saber-fazer da política – pautado na negociação da imagem projetada, e, assim, nas expectativas de conduta a ela atreladas – era concebido
pelos próprios políticos mineiros como a sua matreirice – forma oficiosa de
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representação da função do político. De maneira mais concreta, a matreirice
é identificada a eventos em que o político demonstra astúcia ao lidar com
pessoas e situações a fim de fazer valer seus interesses. O político matreiro é
aquele que sabe manipular, de maneira espontânea, e por vezes improvisada
(de fato, o improviso e a espontaneidade são sinais de astúcia), o encadeamento das ações para driblar um determinado obstáculo moral ou legal,
iludindo seus adversários e/ou obrigando-os a tomar posição a seu favor.
Para tanto, o político matreiro jogava com os sentidos implícitos de
seus atos, especialmente os atos verbais. Por exemplo, quando um político
publicava num jornal um artigo em que afirmava aceitar a indicação de sua
candidatura “com timidez própria de quem sente não ter a inteira competência para a ingente tarefa”9, este estava, de fato, pedindo votos conforme o
decoro político, segundo o qual um candidato deveria demonstrar humildade,
visando, em troca, o reconhecimento espontâneo dos eleitores. Tal como os
linguistas destacam, ao se ater ao sentido literal do enunciado se escapa da
responsabilidade do que está subentendido (FIORIN, 2002, p. 184), no caso,
a divulgação da candidatura tendo em vista a captura de votos.
Jogar com o implícito é também jogar com as normas (i.e. o decoro que
rege a conduta política ideal) em proveito próprio. Neste sentido, a matreirice
se revela como uma estratégia em que o político segue de maneira literal o
decoro de sua função de modo a colocar seu interlocutor em um dilema para
o qual não há saída – um constrangimento lógico (culturalmente específico) como diria Bailey (2009, p. 114). Dito de outro modo: nesta acepção,
a matreirice pode ser entendida como uma forma de mobilizar os limites
colocados pelo decoro (as respostas possíveis são limitadas pela necessidade
de se conformar àquela liturgia política), em uma dada circunstância (i.e.,
levando-se em conta o prestígio dos envolvidos), para direcionar a resposta
do interlocutor. Resultado: o político matreiro estabelece a definição da
situação a seu favor.
Um exemplo recorrente desta estratégia é o oferecimento de celebrações, ou textos com o mesmo objetivo, a um suposto adversário – ou seja,
alguém com quem se mantém uma relação amistosa publicamente, mas que,
reservadamente, é tido como um rival. O ato de elogiar um possível concorrente, se valendo dos enunciados convencionais – como demonstração de
ato desinteressado e polido – era uma prática valorizada, que, idealmente,
concedia prestígio a seu enunciador. Mais do que isto, tal ato, uma vez reconhecida a precedência do executor em relação ao alvo dos elogios, gerava
uma dívida de agradecimento a este último. Consequentemente, o uso desta
estratégia podia colocar o adversário elogiado em uma posição difícil: se
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MATREIRICE E DISCURSO POLÍTICO...
criticasse quem o elogiou, corria o risco de se ver cometendo um ato contra a
sua imagem; se decidisse aceitar a homenagem, acabava se colocando como
devedor em relação ao adversário, o que lhe gerava um constrangimento,
caso se apresentasse como seu concorrente.
Como se vê neste exemplo, esta demonstração de astúcia opera no
espaço intersticial em que as expectativas sobre a conduta do político, em
sua tendência ascética – como prefere Arruda (1990) – se confrontam com a
disputa política. Em outras palavras, havia uma tensão entre a maneira como
os políticos concebiam a sua atividade e a disputa política: como explicar,
entre políticos igualmente prestigiados, a obtenção do cargo público em
detrimento do outro? Ou como justificar a pretensão a um cargo eletivo, se
o acesso a ele se deve, em tese, ao reconhecimento do mérito intelectual e
da correção moral (que implica a demonstração de desinteresse no usufruto
do cargo em benefício próprio) do seu futuro ocupante? Ou ainda, como se
distinguir de um concorrente, quando a crítica é associada ao conflito, e,
consequentemente, à paixão partidária e ao interesse egoísta, num contexto
em que se valoriza a razão, o controle dos sentimentos e a abnegação?
Para entender como a matreirice política era empregada para lidar com
essas questões, revelando assim a forma como os políticos adequavam o modo
de apresentação de suas posições ao contexto de seu emprego, passemos ao
exame de diálogos encetados na imprensa juiz-forana em torno do desempenho de suas lideranças políticas nas eleições municipais de 1900 e 1904.
AS VERSÕES DE UMA ELEIÇÃO
A centralidade econômica e cultural de Juiz de Fora – apregoada tantas
vezes em relatos publicados em jornais locais no início do século XX – não se
refletiria na esfera política estadual. Embora fosse um dos principais centros
da propaganda republicana em Minas Gerais, os republicanos juiz-foranos
se veriam, junto a outros propagandistas do novo regime no estado, alijados
dos centros de decisões do estado, no momento seguinte ao 15 de novembro.
Mesmo após a ascensão de lideranças republicanas locais a cargos de
destaque no poder executivo federal durante o governo de Floriano Peixoto,
os republicanos juiz-foranos – localmente denominados “jacobinos” – se
manteriam no ostracismo, condição similar à de seus adversários no município – os chamados “jagunços” –, no que se refere à política estadual.
Esta situação mudaria já em 1897. Embora estivessem representados
na figura do médico Duarte de Abreu na convenção que fundaria o Partido
Republicano Mineiro (PRM) em dezembro daquele ano – partido que asseRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 211-239
LUCIANO SENNA PERES BARBOSA
217
guraria um monopólio virtual sobre as indicações a cargos no poder público
no estado até 1930 – e mantivessem seu controle sobre a Câmara Municipal
conquistado no pleito de 1894, os denominados republicanos locais veriam,
em contrapartida, a perda de suas posições no plano nacional, fato que reafirmava a continuidade do seu ostracismo na política mineira.
Em meio a esta relativa decadência dos jacobinos, seus adversários,
os jagunços, veem na eleição municipal de 1900 uma oportunidade para
lançar seu libelo contra o situacionismo local, que valia também como
um manifesto em favor da formação de um partido de oposição no plano
estadual. À frente desta empreitada se encontrava sua liderança, Francisco
Bernardino. Político de experiência que remontava ao período imperial,
Bernardino ficara conhecido no estado ao ser lançado em 1894 como
candidato (derrotado) naquele que seria o pleito presidencial mineiro mais
renhido no período em questão. Levando em conta essa sua expressão no
cenário político mineiro, os seus correligionários buscavam no seu nome
uma bandeira capaz de reunir outros descontentes com o regime de partido
único que se instalava em Minas Gerais.
O foco do manifesto dos jagunços são as denúncias de fraude eleitoral. A oposição juiz-forana acusa seus adversários de terem falsificado o
processo eleitoral reiteradamente, impedindo o alistamento de seus correligionários. Crítica que serve de ponta de lança para acusações de caráter
mais abrangente. Nesta perspectiva, a prática de fraude eleitoral não seria
senão uma das evidências que provariam como seus adversários, ao se valerem do exclusivismo, da politicagem, e da opressão, acabavam impedindo
o progresso da comunidade garantido pela adoção do regime republicano.
Essa tentativa de desqualificar seus adversários como atores políticos
legítimos não deixava de ser um modo de escapar da posição moralmente
comprometida de quem lançava críticas de cunho pessoal. Explicando melhor,
os políticos mineiros atribuíam (e justificavam) sua centralidade na política
nacional ao “alto valor moral” de seus homens públicos. Entre os aspectos
que definiam esta qualidade estava a sua capacidade de conciliar interesses
opostos, agindo sempre com moderação e civilidade. Com efeito, a crítica
só se tornava moralmente possível quando seus portadores se colocavam
na posição de restauradores desta liturgia.
Em contrapartida à atitude crítica e combativa dos jagunços, os
jacobinos adotavam a retórica governista, isto é, a dissimulação da disputa
eleitoral (o governo é aquele que age, se colocando acima das disputas e
interesses particulares) e a demonstração de sua vinculação à “situação”
estadual. Assim, o Jornal do Comércio (publicação situacionista) se
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MATREIRICE E DISCURSO POLÍTICO...
restringiria durante a semana em que se daria a eleição a publicar uma
circular em nome do PRM informando os nomes que formavam a chapa.
Não há qualquer menção de resposta às acusações dos adversários. Esta
estratégia de dissimulação reforçava o caráter isento e oficial com que os
jacobinos pretendiam apresentar as suas candidaturas. Atributos também
reafirmados pela vinculação do apoio recebido pelo Executivo estadual.
Durante o mesmo período a que nos referimos, foram publicadas notícias dando conta da elaboração de um parecer sobre as necessidades de
saneamento da cidade, no qual se destacava o trabalho desenvolvido por
componentes do PRM juiz-forano e a sua ligação com o presidente do
estado, a quem seria enviado o tal parecer. Em todo caso, o resultado é o
mesmo: colocar o adversário na difícil posição de quem deve se diferenciar sem se fazer simples “oposicionista” – posição associada às facções
políticas apaixonadas, pelo interesse na posse do cargo público, e, por
conseguinte, à ilegalidade.
Esta disputa em torno da expressão da imagem legítima do político
continuaria após o dia da eleição. Uma vez apurados os votos, as eleições
competitivas10 se transformam numa troca de acusações entre os candidatos
em torno da soma e do modo de obtenção dos sufrágios.
Tem-se, assim, a confirmação de um contexto no qual a avaliação
dos resultados eleitorais e da ação dos “cabos eleitorais” se torna recurso
retórico na tentativa de legitimar a pretensão dos candidatos. Uma vez apurados, os votos só passavam a integrar o prestígio do político após serem
qualificados por uma espécie de tribunal de opinião pública formado pelos
políticos do estado. Nesse contexto, talvez fosse mais exato tomar a soma
de votos apresentados por um candidato como um teste de seu prestígio
frente às lideranças e um desafio lançado ao seu adversário. Ou seja, se por
um lado, a vitória eleitoral sustentada por um candidato não era garantia de
seu acesso ao cargo pretendido, por outro, não significava que os resultados
eleitorais fossem inócuos. O sucesso no pleito, e mesmo a diferença de votos,
valia – antes de tudo – como uma demonstração da extensão do controle
das esferas decisórias do pleito local (as mesas eleitorais e a Junta Eleitoral)
pelo candidato frente aos seus pares no restante do estado. No entanto, não
seria difícil concluir que tal demonstração de força encontrava seu limite
na contradição que encerrava em si mesma. Ora, o controle sobre as mesas
eleitorais também poderia ser lido como sinônimo de fraude. Abre-se a
possibilidade de o candidato “derrotado” subtrair “legalmente” os votos
recebidos por outrem, se valendo, para tanto, do seu reconhecimento junto
a outras lideranças políticas.
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LUCIANO SENNA PERES BARBOSA
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Daí a importância da facção “governista” em descrever a lisura que
teria marcado a eleição municipal de 1900, no dia seguinte à confirmação
de sua vitória:
Procedeu-se ontem, nesta cidade, e em todos os distritos do município,
a eleição para o preenchimento dos cargos da administração municipal
e de juízes de paz.
Nesta cidade, a eleição ocorreu com a maior calma e sem irregularidades.
O direito do voto foi garantido em toda sua amplitude, representando a
verdade incontestável e positiva o resultado das urnas.
O eleitorado, livre e independentemente, sufragou, com grande maioria,
os candidatos do Partido Republicano, que apoia o governo federal e o
governo do estado, e que tem como diretores os Srs. Drs. João Nogueira
Penido Filho, Ambrósio Vieira Braga, Constantino Luiz Paleta, Duarte de
Abreu, João D’Ávila, Assis Fonseca e Antônio Carlos Ribeiro de Andrada.
Os candidatos apresentados por este partido, nesta cidade, saíram completamente vencedores, tendo todos eles reunido a maioria dos votos.
Ninguém, em boa fé, poderá contestar o brilho e a pureza da vitória
conseguida nas urnas pelos republicanos desta cidade [Segue a lista com
os resultados eleitorais].11
A necessidade de qualificar a vitória eleitoral não apenas como o
resultado circunstancial de um embate de forças opostas equivalentes, mas
como a confirmação de quem “realmente” deve expressar a vontade popular
legítima é enfatizada, mais uma vez, através da publicação de notícias dando
conta das manifestações populares pela vitória. Consistindo de préstitos que
se dirigem à residência de cada uma das lideranças vitoriosas, tais manifestações restabeleciam o caráter visível e público do apoio transmutado em
pura soma de votos:
Os Sres. Dr. João D’Ávila, Dr. Antônio Carlos e Dr. Gama Júnior foram
alvos ontem, à noite, de uma manifestação de apreço que lhe fizeram o
eleitorado de Tapera e os eleitores da rua Bernardo Mascarenhas, desta
cidade, em regozijo por haverem triunfado, na eleição de 1 de novembro,
os nomes daqueles três cidadãos, o primeiro dos quais foi eleito agente
executivo e presidente da câmara municipal, o segundo, vereador geral
do município, e o terceiro, vereador especial pela cidade.
Grande massa popular, tendo a frente a banda de música da Tapera, foi
à casa dos três eleitos, aclamando-os pelo triunfo que os seus nomes
obtiveram no pleito municipal.
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MATREIRICE E DISCURSO POLÍTICO...
Usaram da palavra, pronunciando discursos, os Sres. Dr. João D’Ávila,
Dr. Constantino Paleta, Dr. Antônio Carlos, Dr. Gama Júnior, Dr. Epaminondas Alves de Souza e o professor J. Paixão.
No correr da manifestação foram erguidos vivas ao Sr. Presidente do
Estado, Exmo. Sr. Silviano Brandão, ao Sr. deputado federal Exmo.
Dr. Penido Filho, ao Sr. senador Dr. Ambrósio Braga, agente executivo
do município, aos Sres. Dr. Constantino Paleta e Dr. Duarte de Abreu,
vice-presidente da Câmara.
Tanto o Sr. Dr. João D’Ávila como o Sr. Dr. Antônio Carlos tem recebido telegramas e cartões de felicitações pela vitória de seus nomes nas
eleições municipais.12
A reafirmação dos resultados eleitorais por meio da notícia de manifestações públicas marcava simultaneamente o limite da participação dos
eleitores nos destinos do pleito, e a preparação para a etapa seguinte do
processo eleitoral no município: a Junta Eleitoral ou Apuradora. Conforme
a legislação do estado de Minas Gerais, vigente à época, cabia a essa junta
(composta pelos presidentes das mesas eleitorais, os três juízes de paz
mais votados e os três seguintes em números de votos) o reconhecimento
da apuração (assim como de suas possíveis contestações) e a expedição de
diplomas aos vencedores13.
Na prática, essas funções eram limitadas pelo viés político da composição da junta, uma vez que os três juízes de paz da sede do município eram
figuras eleitas atreladas à chapa dos partidos em contenda, e os presidentes das
mesas eleitorais geralmente eram candidatos, vereadores, ou ex-candidatos.
Ainda que sabidamente controlado pela facção situacionista, o recurso
da minoria naquela ocasião, através do envio de protestos à Junta Eleitoral,
não se reduziria a um esforço inútil. O questionamento de alguns procedimentos que pudessem levar à anulação de urnas, ou à apuração de votos
separadamente para posterior verificação por órgão competente (no caso, a
Câmara Municipal) servia como uma manobra para tentar revelar de forma
indireta a arbitrariedade da “situação”. Sendo assim, os candidatos ligados
à facção derrotada encaminhavam suas denúncias de fraude, oficializando-as, o que obrigava os componentes do referido órgão – ligados em sua
maioria à facção vitoriosa – a deliberarem sobre o assunto. A derrota dos
questionamentos apresentados se transformaria, em seguida, em evidência
para balizar as denúncias da oposição. O recurso da minoria junto ao Tribunal de Relação (última instância da justiça estadual) revela como toda a
manobra realizada no interior do órgão visa atingir não apenas os eleitores,
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mas também projetar a denúncia para fora do município, na busca de seu
reconhecimento e da intervenção de outras lideranças políticas, como se vê
no texto a seguir:
Junta Apuradora
Ontem às 11 horas da manhã, reuniu-se a junta apuradora da eleição
municipal, para continuação de seus trabalhos, que tiveram começo pela
apuração da ata da 4ª seção da cidade.
Por ocasião de se proceder a soma de votos constantes da autêntica da
5ª seção, o dr. Josino de Alcântara pediu a palavra para indagar do sr.
presidente se os protestos que tinha sobre esta seção, na qual haviam
votados “fósforos”, segundo documento que exibiu, além de outras
irregularidades, que não eram da competência da junta, deviam ser desde logo formulados ou se podia, sem prejuízo dos seus direitos, deixar
para formulá-los ao final, alegando em um só protesto as irregularidades
referentes a várias seções.
[...]
Pelo sr. presidente foi dito que achava mais crucial a reserva a tais protestos para o final, uma vez que não competia a junta conhecer deles e
assim foi feito. [...]
Passando em seguida a junta a apurar a ata da 14ª seção (Benfica), o Dr.
Josino requereu que não fosse apurada a cópia sem autenticidade remetida a junta ou, em caso contrário, que fossem apurados em separado os
votos a que ele se referia por não ter sido a mesa legalmente organizada,
invocando precedentes e decisões da junta nesta reunião e alegando fraude
e outros vícios na eleição respectiva [...]
Prejudicada a preliminar por 18 votos contra 23, foi em seguida rejeitado
o requerimento do Dr. Josino por 22 votos contra 19.
A vista desse resultado e da incoerência e pouca honestidade revelada
pela junta, no serviço de apuração, os membros do partido oposicionista
a ela pertencentes retiraram-se do recinto e reuniram-se, em seguida,
particularmente, em local diferente, a fim de resolver sobre o modo de
agir, à vista de tais sucessos.
Apesar de grande irritação dos ânimos, é de crer que a oposição mais
uma vez ateste o seu patriotismo, calcando embora ressentimentos justos, em nome de interesses superiores, que o momento torna sobremodo
recomendáveis, e saiba conter-se dentro dos limites da ordem, confiada
nos recursos que a lei fornece.14
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MATREIRICE E DISCURSO POLÍTICO...
O efeito dessa manobra da parte litigante pode ser observado a partir
da reação de seus adversários. As contestações pretendem levantar dúvidas
sobre quem realmente representava o governo no município, isto é, quem era
guiado pelos interesses legítimos, uma vez que as denúncias de irregularidade no pleito insinuavam que a vitória não se dera pelo reconhecimento de
prestígio, mas pela simples imposição arbitrária devido ao controle das mesas
eleitorais. Mais uma vez, a facção vitoriosa buscará construir sua versão da
situação não apenas invertendo as acusações, mas lançando a suspeita de
que era a oposição que estaria tentando modificar o quadro lançando mão
de um recurso ilegítimo, no caso, o emprego de violência física – surgem
boatos sobre a intenção de partidários da oposição em apedrejar a casa de
João D’Ávila (eleito presidente da Câmara Municipal) –, forma acabada de
antítese ao reconhecimento do prestígio:
Contra Protesto
O protesto oferecido pela minoria da junta apuradora tem afirmações
temerárias e que são o fruto do interesse partidário e político ofendidos.
A maioria da junta tem agido com a mais rigorosa coerência e com a
mais firme justiça, inspirando-se, apenas, na lei.
Não teria ela procedido com essa justiça e com essa coerência, nem se
teria conformado com a lei, se houvesse prestado a convir nos intuitos
subversivos, extravagantes e revolucionários da minoria.
A coerência e a justiça das decisões da maioria hão de ter a confirmação
do poder judiciário para onde, felizmente, lembraram-se de recorrer os
membros da minoria facciosa.
Não foi por falta de coerência, nem dessa justiça, que a minoria se retirou,
mas, sim, porque se convenceu da imoroficuidade dos seus esforços na
luta contra aqueles que se fizeram defensores da verdade eleitoral e do
respeito às leis.
Por esta forma, os abaixo assinados contra protestam o protesto da minoria,
aguardando a oportunidade para, perante o poder judiciário, defenderem
e justificarem a sua atitude, cuja correção e nobreza hão de resistir ao
desabafo dos interesses e pretensões com razão repelidos. [Segue a lista
de membros da junta]15
Tendo em vista o papel limitado do poder judiciário no plano eleitoral16, a chegada do embate à justiça funciona mais como outra modalidade
por meio da qual os contendores qualificam sua posição, ao demonstrarem
respeito às leis e capacidade de formalizar suas demandas, do que como
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um espaço de decisão. Com efeito, em janeiro de 1901 a Câmara Municipal
aceita as deliberações da Junta Apuradora, procedendo ao reconhecimento
dos poderes dos vereadores.
O último ato dos derrotados na eleição municipal de 1900 seria a
publicação de um manifesto conclamando lideranças estaduais (que teriam
sido excluídas ou não teriam aceitado o acordo que formara o PRM) para
organizarem um novo partido no estado, tendo como justificativa a necessidade de reagir contra a “farsa ridícula” das eleições patrocinadas pela
“oligarquia dominante”17.
A MATREIRICE MINEIRA
A manobra da oposição juiz-forana renderia frutos. Em 1902, Francisco Sales assume o governo de Minas Gerais, estabelecendo a política
de “congraçamento da família política mineira” – nos termos de Daniel
de Carvalho (1957, p. 157). Tratava-se de um processo dirigido pelo próprio presidente do estado, com a intenção de conciliar as facções locais. A
candidatura e posterior eleição (1902) de Francisco Bernardino – a partir
de então membro do PRM – para uma cadeira na Câmara Federal (na Legislatura que começava em 1903) seria, no caso, o primeiro passo naquela
direção. Simultaneamente, Antônio Carlos de Andrada, primo de Penido
Filho, assume a Secretaria de Finanças. Já no início de 1904, ano em que
ocorreria nova eleição municipal, noticia-se um encontro envolvendo uma
liderança dos jagunços – o coronel Antônio Bernardino Monteiro de Barros
(derrotado na eleição para agente executivo em 1900, tendo sido proprietário
do jornal jagunço O Farol entre 1897 e 1903) – e Antônio Carlos, com a
intermediação do também jacobino Francisco Valadares, com o intuito de
negociar uma possível conciliação.18
A aproximação no plano estadual entre as partes juiz-foranas então
beligerantes teria consequências na disputa local. Uma vez que todas as
lideranças municipais supostamente se encontravam vinculadas ao governo
do estado, a crítica ao adversário local tornava-se uma atitude ainda mais
arriscada, pois poderia ser considerada uma crítica extensiva ao mesmo
governo que lhes garantia sua posição. Assim, a conciliação que pretende
acolher a todos, ou melhor, a todos que conseguem impor o reconhecimento
de seu prestígio, colocava o opositor na posição de “ingrato”, ou daquele
que não sabia reconhecer o seu lugar.
Eventuais constrangimentos, longe de abolirem a disputa política
local, levariam adiante a definição de novos limites e, assim, de novas maRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 211-239
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MATREIRICE E DISCURSO POLÍTICO...
neiras de apresentação das candidaturas. Se o objetivo dos concorrentes é o
mesmo da eleição passada, isto é, representar o governo, este não será mais
pretendido por meio da desqualificação do concorrente, o qual gera toda a
contradição entre os meios (a busca do eleitor, através do ataque ao adversário) e o resultado desejado (se tornar o representante do governo, ou seja,
se apresentado como acima das parcialidades). A estratégia de apresentação
das candidaturas visa agora se aproximar o máximo possível de uma figura
ideal do político, ou seja, aquele que abre mão de seus interesses pessoais,
se colocando acima das parcialidades no intuito de garantir o bem comum.
A primeira consequência desse deslocamento é a dissimulação da
competição e, com ela, a definição da eleição como um momento indesejável, na medida em que coloca em risco a reputação dos envolvidos. Este
mesmo discurso também reestabelece a reprovação da mobilização eleitoral, entendida na perspectiva dos políticos como uma prática que obriga o
candidato a realizar uma inversão de papéis na busca de votos: este deveria
se “rebaixar” para vincular o eleitor, de quem a resposta é sempre incerta.
Neste sentido, Belmiro Braga – escritor que fora candidato, derrotado, na
eleição de 1900, a vereador, pelo distrito de Vargem Grande (atual município
de Belmiro Braga), posteriormente assumindo o cargo, quando da renúncia
de seu adversário – publica no Jornal do Comércio uma “advertência” para
os interessados nos cargos eletivos baseado em sua experiência:
Quem quer que se aproxime do edifício do Fórum nestes últimos dias de
outubro há de notar um movimento estranho de gente desconhecida na
cidade. São os eleitores de fora que vêm buscar os diplomas.
Cada magote é chefiado por um cavalheiro afável e risonho que distribui
abraços e cumprimentos de um modo que causa espanto.
Recebidos os títulos, lá vai o pelotão, a um Café de fundo para a Confeitaria do Chimico, e o leitor que passa pela frente do café apenas ouve
a voz dulçurosa do comandante: dez xícaras aqui; duas mais ali para o
Joaquim Pimenta e o Zeca Geraldo Neca Pinto, olha o café!
E o Neca passa a mão pelo cavanhaque e diz num voizerão de trovoada:
Agradecido; eu já tomi lá no Gracia e mais no Ogustu Penna19.
E o chefe continua: E você, Frutoso? Eu tamem já bebi. O douto Rangé
e o douto Raú pagaro pr’a mim no Arnesto...
Outras vezes o café é oferecido antes da entrega dos títulos.
Todos bebem e alguns chegam a dizer ao chefe: “Seu doutô, café sem
bucha meu boi não pucha”.
E o chefe ri e ri a Confeitaria toda e lá vão eles para o Fórum. Começa
então, a procura de diplomas:
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José Gonzaga do Amor Divino; não está alistado, diz o escrivão. Joaquim
Xubregas, não está alistado; Raphael Petrocini, não está; Frederico Kaufamann não está; Jorge Assed Beiruth, não está; e o chefe rindo o riso
amarelo, indaga-lhes: Mas quando os amigos se alistaram?
- Eu, responde-lhe o Amor Divino, nunca me alistei; e nem eu, lhe diz o
Xubregas; e o Petrocini, e o Kaufamann, e o Beiruth dizem-lhe a mesma
coisa. E o chefe, escabriado, vai se pondo ao fresco, lastimando todo
aquele café com broinhas de fubá mimoso que pagou para os gajos na
Confeitaria Chimico [...]
*
E o cronista, vendo todo este grande entusiasmo pelo próximo pleito
recorda-se entristecido do tempo em que andou também a pleitear
eleições... e cem anos que ele viva há de guardar, nítido, na memória o
estupendo caso que lhe aconteceu em uma delas.
Tinha a vitória certa e na véspera, encontrando-se com o adversário
– um velho experimentado nessas pelejas, desafiou-o: Amigo, vamos
ver amanhã quem tem garrafas vazias... e o dia chegou e com ele uma
derrota formidável.
Os adversários foram inexoráveis, porque além da derrota teve o que
estas linhas subscreve de chuchar com mais de cinco dúzias de foguetes
de assovio.
Ah! Leitor! Tu sabes com certeza o quanto dói uma saudade, mas não
sabes quanto dói um foguete de assovio.
Muitos anos ainda depois da festa a vítima sentia calafrios quando
ouvia o barulho de um foguete, subindo. O desastre foi tão grande que
o candidato vencido não fumava. Deram-lhe um charuto ao começar o
pleito e ele, agradecendo, murmurou: será saboreado depois da vitória.
Conhecido o resultado com o anúncio da foguetaria, tão desnorteado
ele ficou que acendeu um charuto pela ponta e o fumou todo, todo, sem
dar pelo engano...
Estimo-te, leitor; e, por isso, peço que Deus nunca te faça sofrer uma
derrota eleitoral com acompanhamento de foguetes de assovio.
Candidatos! Continuem a abraçar a malta, mas no dia 1 de novembro
não é bom que venham cedo para rua. Esperem em casa ao resultado.
Quem avisa... 20
Num contexto em que as partes em contenda se aproximam do Executivo estadual e do partido hegemônico, os discursos direcionados aos
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eleitores são substituídos pela tentativa de se diferenciar do concorrente
por meio da demonstração de abnegação, em relação ao cargo pretendido,
e de respeito aos adversários. Só assim poderíamos entender a atitude de
Duarte de Abreu – um antigo jacobino, então fora das disputas políticas, e
que fora delegado do PR local, quando da formação do PRM na convenção
de 1897, ocupando posteriormente o cargo de vereador entre 1897 e 1900, se
afastando em seguida, após ter negado seu pleito para candidatura à Câmara
estadual –, em manifesto de lançamento de sua candidatura, agora apoiado
por lideranças anteriormente associadas à facção dos jagunços:
Está em domínio público que um grupo importante de prestigiosos políticos levantou a minha candidatura ao cargo de presidente da Câmara
e agente executivo municipais.
Os termos honrosíssimos do convite insistente e repetido, a liberdade
plena e absoluta de ação que me asseguram, se porventura sair triunfante
o meu nome, levaram-me a ceder, ainda que com grande sacrifício, a
benévola distinção.
Desvanecendo-me sobremodo a escolha de meu obscuro nome, não me
cega, entretanto, a vaidade para desconhecer que ela se funda exclusivamente na situação imparcial que guardo em relação à política local.
Afastado completamente dos agrupamentos políticos, desde que desapareceu o Clube Floriano Peixoto, ao qual estava filiado, em cujo programa
se encontrava a síntese da política republicana, neutro, portanto, às lutas
locais, sempre estéreis e pessoais, grandemente prejudiciais ao bem público
e assim com inteira liberdade de agir, sem precisar ouvir chefes e nem
correligionários que não tenho, em tais predicados encontro justificativa
para a preferência daqueles ilustres concidadãos.
A minha candidatura não tem, pois, em absoluto, feição política; não
solicitei, não solicito e nem solicitarei votos, não escrevi, não escrevo e
nem escreverei cartas em pról das candidaturas dos futuros vereadores
que me possam eleger, – finalmente, a minha eleição, debaixo do ponto
de vista político, é inteiramente incolor.
Só assim, com esta orientação, fica o meu nome à disposição daqueles
que, comungando o mesmo sentir, queiram elevá-lo ao posto demasiadamente espinhoso de administrador do município. Só assim aceitei a
pesada delegação.
Disputar uma eleição para, depois vitorioso, portador de ódios e paixões
partidárias, oriundos da luta, ir administrar o município, a prática demonstra a sua nocividade ao interesse público.
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O diretor político esmaga e absorve o administrador – tirando-lhe a
autonomia de que necessita para cuidar com justiça e calma energia dos
grandes interesses que lhe são confiados.
Não me prestaria a esse duplo papel, hoje que, desligado das agremiações
partidárias, sem aspirações políticas, disponho de ampla liberdade para
agir, consoante à orientação que tenho sobre a ação deletéria da política
no organismo administrativo.
Bem reconheço que as câmaras municipais – em linhas gerais – têm
feição política, mas também não há como fugir que a sua principal e mais
séria função é a administrativa e para esta devem convergir os melhores
esforços do respectivo detentor do poder executivo.
Com este modo de pensar, é claro não cogitarei senão dos interesses
municipais, indiferente completamente aos intuitos partidários dos grupos
existentes, sejam estes quais forem.
Não preciso externar as minhas crenças políticas; estas datam da propaganda republicana, onde, insignificantes e obscuros, prestei alguns
serviços; não preciso acentuá-las porque o candidato se for eleito, irá
somente administrar com sobranceira e imparcialidade.
Viso com estas linhas deixar bem claras a situação e resolução em que
estou em face do próximo pleito o qual o meu procedimento futuro se o
resultado das urnas me for favorável.
Se isto acontecer, cumprirei sem desfalecimentos, sem medir sacrifícios,
o meu programa, que consistirá em severa economia e rigorosa fiscalização na arrecadação das rendas municipais; se, porém, a vitória se decidir
para o lado do meu ilustre contendor, bem direi a minha sorte, a qual,
me proporcionando ensejo de haver correspondido ao benévolo convite
daqueles ilustres conterrâneos, não me afastou, entretanto, da obscuridade
em que vivo e tanto aprecio; finalmente, felicitarei o município de Juiz
de Fora que terá seu serviço as luzes e competência de um administrador
na altura de sua civilização, do seu progresso e de suas necessidades.21
A renúncia às disputas locais (por meio da recusa à iniciativa de pedir
votos), ao abrir caminho para a aplicação neutra do programa (a verdade)
possibilita (com o sacrifício pessoal) alcançar o bem estar da comunidade.
Duarte de Abreu expressa, assim, a retórica que legitima a função do político, apresentando-se como um modelo ideal nesse papel. Toda a isenção do
candidato não estaria completa sem um último ato de anulação do próprio
interesse, quando, ao final do manifesto, o autor elogia seu concorrente,
garantindo que este estaria “à altura” da cidade, se eleito. Ao pretender se
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portar como alguém capaz de elogiar aquele que poderia ser considerado
como seu rival, reconhecendo sua reputação, Abreu se apresenta como um
político de prestígio, reforçando a sua imagem de mediador que engloba
e resolve as divisões existentes, ou seja, como o próprio governo. E não
será diferente a posição adotada pelo “Farol” para avaliar Duarte de Abreu.
Colocando-se como um jornal imparcial, justifica seu apoio ao candidato,
ao mesmo tempo em que elogia o opositor:
Em outra seção desta folha vem hoje publicado o brilhante manifesto que
o Dr. Duarte de Abreu dirige ao eleitorado, a propósito de sua candidatura
ao cargo de agente executivo e presidente da câmara municipal. [...]
Alheios, que somos, às lutas políticas locais, temos entretanto prazer em
aplaudir a linguagem digna e o excelente programa que este manifesto
encerra.
A nossa neutralidade não pode ser incompatível com a justiça e a justiça
manda que proclamemos o ilustre Sr. Dr. Duarte de Abreu como um
candidato capaz de honrar o cargo para o qual foi lembrado o seu nome
prestigioso.
E a mesma razão que nos leva a emitir estes conceitos também nos obriga
a reconhecer no candidato adverso excelentes predicados, que o colocam
em condições de perfeita igualdade, embora o seu cunho de governismo
possa ser encarado como um estigma de inferioridade (da candidatura).
Afinal, há de haver quem diga: ambos são dignos, mas um é candidato
do povo e do governo; o outro, apenas do povo; ora, este caráter de
popularidade é de certo mais agradável a soberania popular...
Mas, é pena que não possam vencer ambos!22
Espécie de avesso da competição política concebida como uma medida de força eleitoral entre elementos equivalentes, portadores de interesses
opostos, a dissimulação do aspecto conflituoso da disputa – por meio da
troca de elogios e pela demonstração de proximidade amistosa entre os adversários – cessa após a apuração dos votos. Cabe agora projetar sua versão
dos resultados, esclarecendo quem é o vencedor, e quais as consequências
daquele resultado para a hierarquia política no interior do município.
Neste sentido, a eleição de Duarte de Abreu será interpretada por seus
defensores como uma “proveitosa lição” aos “governistas” locais que – ainda
conforme esta versão – teriam atacado de todas as maneiras a candidatura
tida como conciliadora (já que reunia antigos adversários), se utilizando dos
benefícios garantidos pela posse de cargos públicos. Ao defender a conciRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 211-239
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liação, a oposição ao PRM local se identificava com o anseio do presidente
do estado em sua tentativa de unir a “família política mineira”. Além de ser
uma forma de se fazer reconhecida a sua vitória junto ao governo do estado,
esta estratégia retórica colocava os jacobinos na difícil posição de criticar
aqueles que defendiam a política do governo que os sustentava – política
esta que expressava um valor primordial para os políticos mineiros. Em
último caso, tratava-se de impedir que os “governistas” locais viessem a
reclamar da apuração dos votos, lançando dúvidas quanto à credibilidade
da vitória, o que, provavelmente diminuiria os lucros que o sucesso eleitoral
da chapa conciliadora garantia junto a outras lideranças do estado, ou até
mesmo, abriria caminho para a intervenção sobre o resultado do pleito. É
neste sentido que os defensores de Duarte de Abreu, ao identificarem como
uma atitude “oposicionista” o combate à candidatura conciliadora (portanto,
moralmente vitoriosa), buscavam impor aos derrotados uma saída: senão o
apoio, ao menos a admissão do novo intérprete do governo no município.
A propósito, veja-se o texto a seguir:
Proveitosa Lição
Está terminado o pleito eleitoral que por tanto tempo trouxe agitado e
tenso o espírito público do município; e, agora, que as urnas já lavraram
o seu veredicto, seja-nos lícito colher dos fatos a lição proveitosa.
[...]
O Sr. presidente do Estado havia se declarado, francamente e por vezes,
pela unificação dos grupos políticos deste município, empenhados de
longa data na mais estéril e prejudicial das lutas; e, fosse pelo receio da
derrota, ou falassem mais altos os deveres de patriotas e os apuros da
situação do município – a antiga oposição, coligando-se a elementos
políticos de valor, advindos de governistas dissidentes, escolhera para
candidato à presidência da nossa câmara e agência executiva municipal – o
Dr. Duarte de Abreu. Jagunços e florianistas, na gíria popular, uniram-se
para sufragar a candidatura do Dr. Duarte de Abreu, que não devia parecer
suspeito aos olhos do governo ou dos políticos locais dominantes, seus
companheiros quase de véspera. À sombra dessa candidatura era de se
supor se viessem acolher, sem pesar ou embaraços – senão pressurosos
e com prazer, aqueles que neste município se dizem os mais devotados
amigos do governo, cujo pensamento traduzem, ao que pretendem, com
a mais escrupulosa fidelidade. [...]
Não obstante, os aqui chamados governistas, tendo a sua frente o presidente da câmara prorrogada, atiraram-se na desabrida e inexplicável
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campanha contra a candidatura que era o sinal provável da almejada
aliança, tornando-a alvo dos mais violentos e insólitos ataques.
Não obstante, o secretário das finanças do Sr. Presidente do Estado,
seu mero auxiliar – braço executor de suas deliberações, de par com as
recomendações do governo aos delegados e subdelegados para que se
abstivessem de influir no pleito – interveio no mesmo por todos os meios
a seu alcance, hostilizando, abertamente, a candidatura conciliadora do
republicano de todos os tempos. [...]
Ou s.ex. era sincero no empenho que não ocultava – da harmonia, da
paz, e concórdia no seio do nosso município, ou s.ex. jamais pensou
seriamente na conciliação, que não passava de simples engodo, e as
urnas demonstraram, de modo iniludível, qual a aspiração deste povo
altivo, operoso e ordeiro.
Ele só aspira a paz; ele só aspira a harmonia, em cujo seio frutifica o
trabalho honesto. Desprezou a paixão partidária para colocar à frente
de seus destinos aqueles que, não excedendo em qualidades pessoais ao
vencido de anteontem, não surgiu empavesado das bandeirolas de grupos
políticos, mas empunhando unicamente a bandeira da República [...].
Proveitosa lição, sem dúvida, e que seja o Sr. Duarte de Abreu o exemplo edificante, a ser seguido, da imparcialidade louvável na gestão dos
negócios municipais.23
A reação dos derrotados revela, mais uma vez, como o resultado da
eleição depende da versão com que esta é retratada. Assim, na perspectiva
do antigo situacionismo local, a reação dos defensores de Duarte de Abreu
é convertida em um ataque à pessoa de Antônio Carlos, então secretário de
finanças. Colocando-se na posição de quem sofrera uma ofensa injustificada
(o que de certa forma identifica os acusadores como uma parcialidade que
se coloca contra a harmonia garantida pela ação de políticos “desapaixonados”), os vencidos pretendiam em sua resposta encobrir o insucesso eleitoral
utilizando os mesmos termos através dos quais foram atacados, ou seja,
convertendo a derrota em uma demonstração de desinteresse, e recusando,
ao mesmo tempo, o papel de parcialidade isolada:
Ao editorial do “Farol” de ontem, não podemos deixar de opor formal
contradita.
A sua nota predominante é de censura ao honrado secretário das finanças,
por intervenção indébita na eleição.
[...]
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LUCIANO SENNA PERES BARBOSA
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Nem havia motivo para essa hostilidade, nem o eminente secretário seria
capaz de movê-la a um amigo pessoal e antigo correligionário político.[...]
Engana-se também o articulista na apreciação dos intuitos do governo.
Este não podia pretender abolir ou suprimir a luta eleitoral, sintoma de
vida, que todos devemos aplaudir e desejar, desde que se fira em terreno
elevado, respeitados todos os direitos. [...]
O que o governo queria, conforme declarou pelo órgão oficial, é que o
eleitorado ‘se manifestasse com a máxima liberdade, escolhendo seus
representantes com a maior espontaneidade’.
Isso se deu, felizmente, com satisfação e aplauso de todos os patriotas,
não sendo os desejos do digno Presidente do Estado contrariados em
nenhum ponto pelo seu secretário. 24
Tem se assoalhado, sem o menor fundamento, que os governistas perderam a eleição municipal.
Não há aqui oposicionistas; todos os grupos apoiam o governo do Estado,
são solidários com ele, aplaudem a elevada e patriótica orientação política
do Sr. Dr. Francisco Sales. Isso mesmo foi acentuado nos diversos manifestos e proclamações eleitorais. Não há aqui oposição, repetimos. [...]
Quer uns, quer outros apoiam, [...], firmemente o benemérito governo
do Sr. Dr. Francisco Sales, que, em Juiz de Fora, como em todo Estado,
é viva e merecidamente prestigiado pela opinião.25
A afirmação de que o resultado reforçava o caráter de neutralidade e
respeito das leis por parte do governo de Francisco Sales, ressaltando assim a
sua proximidade com o governo representado por este último, e a declaração
de que não poderia haver derrota em um pleito em que todos apoiavam a
mesma corrente política, indicam como os jacobinos visavam manter sua
posição de governo e sua precedência em relação a seus adversários, ao buscar
englobar os vencedores, tentando torná-los parte do todo em uma posição
inferior a eles, finalmente, como se a vitória fosse uma dádiva concedida pelos
“derrotados”. Para tanto, a disputa eleitoral é ressignificada, deixando-se de
lado a concepção da eleição como um elemento desestabilizador da política
“moralmente” definida (a eleição como momento de expressão de interesses
particulares), para adotar a concepção formalmente (legalmente) legítima
de eleição, qual seja, como expressão da liberdade política.
Esta solução encontrada pelos contendores para definir o resultado
das eleições acaba por instaurar a ambivalência por parte da antiga oposição, que passará a criticar e elogiar o governo do estado – sobretudo após a
chegada de João Pinheiro à presidência do estado, por indicação de Sales,
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232
MATREIRICE E DISCURSO POLÍTICO...
que se aproximaria de antigos republicanos históricos, especialmente de
Duarte de Abreu –, sem definir se é parte integrante deste ou uma parcialidade discordante; e a ambiguidade dos antigos “situacionistas”, que até
a próxima eleição trariam benefícios para a administração municipal por
meio de liberação de verbas junto a órgãos estaduais e federais, mas sem
definirem tais atos como uma demonstração de apoio ao agente executivo.
Esta indefinição quanto ao vencedor do pleito é retratada no esvaziamento
da Junta Apuradora formada um mês após o pleito. As únicas notícias que
encontramos sobre esse evento anunciam a sua formação e a sua dissolução,
destacando a manutenção dos resultados originais das eleições. Desta forma,
a eleição municipal termina sem o desfecho caracterizado pela projeção do
vencedor para fora do município (PALMEIRA, 2006, p. 141). A conciliação que resulta deste impasse é menos fruto de um acordo – no sentido do
reconhecimento recíproco do lugar que cada um detém na hierarquia dos
postos políticos – do que a consequência eventual dos arranjos resultantes
da competição política.
TROCA DE DISCURSOS E TROCA DE FAVORES
Talvez a maior dificuldade quando nos lançamos na tarefa de analisar os processos políticos na Primeira República seja o ato contínuo de
conceber a disputa política da época a partir de referências que não aquelas
empregadas por seus próprios agentes. Assim, as denúncias reiteradas contra
os obstáculos colocados à participação dos cidadãos; as fraudes eleitorais;
as trocas de favores entre políticos; e ao chamado adesismo parecem desconhecer que a constituição da relação daqueles que querem representar os
poderes estatizados e seus sujeitos, com o estabelecimento de uma rotina
institucional, não se faz em uma trajetória necessária, de estágios pré-determinados. Trata-se antes de um processo gradual em que as partes (governo
e cidadãos, candidatos e eleitores) vão estabelecendo a maneira como seus
papéis (e a disputa política) são vivenciados, e que, posteriormente, enceta
estes enquadres críticos, a meu ver, impostos de maneira apressada sobre
uma realidade que lhe é estranha.
Com este argumento não quero afirmar – fique claro – que basta
reproduzir a visão que os próprios agentes possuem dos processos políticos
em que estão inseridos para entendê-los. Estou longe de desconsiderar a
importância das trocas de favores na estruturação das relações políticas no
período, e de negar a existência das fraudes eleitorais, ou o uso da violência física nos processos políticos. No entanto, procurei chamar a atenção
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para como estes elementos compunham enunciados usados pelos políticos
mineiros em uma disputa por precedência que não pode ser reduzida a uma
lógica utilitarista (na qual, por exemplo, a concentração de bens valorizados, ou de meios de coerção física, garante ao seu portador uma posição
proeminente), ou a regras que definem as mediações necessárias para a sua
realização (as normas, ainda que tácitas, que demarcam com quem se deve
trocar e o que se deve trocar).
Dito de outro modo, só podemos entender a forma como as disputas
eleitorais da época ocorriam se compreendermos o papel do discurso dos
políticos mineiros. Em todo diálogo público travado entre eles estava em
jogo, para além de seu tema específico, a adequação a uma liturgia política,
e, desse modo, a definição do prestígio e precedência entre os interlocutores
(BOURDIEU, 2007, p. 181).
Mas esta afirmação, ao supostamente atualizar a tese do cinismo
como característico aos políticos mineiros (LESSA, 1999, p. 210), não
apenas substituiria a concepção de um discurso que visa ocultar as bases
reais da dominação por outra, em que o discurso é uma fachada a esconder
as pretensões de ascensão política dos seus enunciadores? Recuperar o
debate sobre a veracidade desses enunciados, e sobre a razão última que os
guiava – afinal, o candidato realmente negava sua candidatura, ou era um
cínico? – é simplesmente dar continuidade aos embates políticos de então.
O que me parece mais interessante, insisto, é perceber como o significado
dos enunciados políticos e sua eficácia (no sentido de fazer o enunciado
válido) dependiam do prestígio que o enunciador detinha e, ao mesmo tempo
construía, frente aos pares, ao se posicionar seguindo uma liturgia política.
A “verdade” do discurso não estava somente nas intenções ocultas do político, num referencial externo, ou em sua lógica intrínseca, mas também na
capacidade de se fazer socialmente aceito.
Enfim, a disputa política abordada é entendida não tanto como resultante da opressão dos eleitores, por atores economicamente privilegiados que
lutam pelas benesses do poder público para empregá-las em seu benefício,
mas como um enfrentamento contínuo para estabelecer a precedência em
meio a um colegiado de políticos. Enfrentamento este travado em torno da
imposição da imagem legítima frente a este mesmo colegiado, que termina
por atualizar uma maneira específica de conceber e avaliar a atividade política.
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NOTAS
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1 Essa perspectiva negativa remete à abordagem que descreve o deslocamento – durante os primeiros anos da República – dos embates políticos
baseados em ideais, em direção a uma política dominada por “homens
práticos” (FAORO, 697). A contradição daí advinda, entre os chamados
ideais liberais professados e a prática oligárquica (SOUZA, 1978, p.
167; CARVALHO, 1987, p. 37-39; CARVALHO, 1998, p. 93), permite
que se recuperem as críticas do período à retórica bacharelesca (LESSA,
199, 211-212).
2 Mais recentemente, a historiografia tem buscado recuperar a lógica
das disputas políticas sem reduzir as representações dos agentes nelas
envolvidos à sua condição econômica, ou à influência da ação do Estado.
(Ver, entre outros: Viscardi, 2001; Mello, 2007 e Pinto, 2011).
3 Não é possível neste espaço analisar as leis e procedimentos eleitorais
da época. Ainda assim, cabe ressaltar que não apenas as comissões de
verificação de poderes, mas outros elementos da rotina eleitoral – tais como
o reconhecimento dos eleitores no momento da votação e a apuração dos
votos – foram controlados por aqueles envolvidos e interessados na disputa
política, o que gerava contínua suspeição em relação aos resultados, e,
consequentemente, o descrédito em relação às eleições como modo de
hierarquização dos políticos.
4 É necessário lembrar que a maneira como as contestações eleitorais eram
realizadas seria modificada, seguidamente, tanto no âmbito estadual quanto
no nacional, não cabendo, aqui, um estudo mais detalhado desse processo.
5 Esta interpretação da maneira como a atividade política era concebida
pelos políticos durante a Primeira República é fruto de um diálogo que
estabeleci entre diferentes estudos e elementos da presente pesquisa. Lessa
(1990, p. 167), em sua análise do “modelo político proposto por Campos
Sales”, chamava a atenção para como, nessa concepção, o “bem público
(...) não é o produto da competição entre as diferentes versões parciais
do conflito, mas sim da utilização de instrumentos desinteressados, por
sujeitos cujos atributos pessoais garantem uma relação equilibrada entre
política e verdade”. Também estabelecendo contraste com a perspectiva
do liberalismo político, Hollanda (1999), em sua análise sobre modos de
representação política na Primeira República, examina os discursos de
Rui Barbosa a partir dos quais identifica o que chama de “representação
como verdade”, ou seja, uma teoria de representação que se define “pela
rejeição ao conflito e pela crença em uma verdade extrínseca aos homens
que poderia uni-los em um corpo consciente” (idem, p. 99). Partindo de
outra abordagem, Arruda (1990) identifica uma concepção de política
que seria especificamente mineira, e que é também caracterizada pela
aversão ao conflito, ou, conforme a autora, pela “neutralização das correntes políticas diversas”: a chamada política de “conciliação” (idem, p.
224). Ainda segundo Arruda, nesse “mito político de Minas Gerais”, a
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LUCIANO SENNA PERES BARBOSA
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conciliação é resultado “da habilidade política pessoal”, garantida pelas
“qualidades inerentes a alguns homens”, mais especificamente, o autocontrole e a abnegação (idem, 1990, p. 222-224). Resultaria daí a absorção
dos políticos pelo imaginário social e a indistinção entre o indivíduo e a
dimensão coletiva (idem, 1990, p. 224-225).
6 Os termos em itálico destacam a acepção da palavra tal como utilizada
pelos pesquisados.
7 Pedro Rache (1947), cronista da política mineira da época, destaca a
necessidade dos políticos do estado de “exercer a memória” para saber
como tratar seus interlocutores. O cronista ainda relata casos de políticos
que mantinham um arquivo com recortes de jornais para mapear as ações
de pessoas ligadas à administração pública.
8 Sempre tendo como eixo a trajetória do indivíduo a ser reputado, era
comum que o prestígio fosse reconhecido devido à origem familiar (“filho
de tradicional família mineira”); pela trajetória política destacada (“deputado por diversas legislaturas”); pelo posto ocupado (“quem duvidaria
do prestígio do ilustre deputado mineiro?”); por extensão do prestígio de
outrem (“indicado pelo respeitado presidente do estado”); pela posição de
liderança em uma dada localidade (“a inquestionável liderança do distrito
de Sarandy”); pela habilidade em lidar com demandas conflitivas (“a bondade natural do prócer político nas disputas eleitorais”); pela afirmação
de excelência da conduta moral, ou pela capacidade de manipular seus
pares (o político “matreiro”).
9 Jornal do Comércio, Juiz de Fora, 22 de outubro, p. 2.
10 Ao menos três características da forma como se desenvolvia a competição política da época dificultam a definição da expressão “eleição
competitiva”: o fato de o candidato geralmente não apresentar publicamente
sua intenção de concorrer ao pleito, a inexistência da necessidade de um
registro legal das candidaturas, e o emprego do absenteísmo eleitoral como
estratégia política. Assim, as “eleições competitivas” podem ser mais
bem definidas como os pleitos em que o candidato derrotado reconhece
ou contesta os resultados.
11 Jornal do Comércio, 2 de novembro de 1900, p. 1.
12 Jornal do Comércio, 4 de novembro de 1900, p. 1.
13 Resende, 1976: 118, nota 55.
14 O Farol, 23 de novembro de 1900, p.1.
15 Jornal do Comércio, 24 de novembro de 1900, p. 1.
16 A afirmação refere-se, aqui, a interferência do poder judiciário nas
eleições municipais em Juiz de Fora durante a Primeira República.
17 O Farol, 30 de novembro de 1900, p. 1.
18 O Farol, Juiz de Fora, 3 de março de 1904, p. 1.
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19 Menção a lideranças políticas da época.
20 Jornal do Comércio, Juiz de Fora, 16 de outubro de 1904, p. 1.
21 O Farol, Juiz de Fora, 22 de outubro de 1904, p. 2.
22 O Farol, Juiz de Fora, 22 de outubro de 1904, p. 1.
23 O Farol, Juiz de Fora, 5 de novembro de 1904, p. 1.
24 Jornal do Comércio, Juiz de Fora, 4 de novembro de 1904, p. 1.
25 Jornal do Comércio, Juiz de Fora, 6 de novembro de 1904, p. 1.
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LUCIANO SENNA PERES BARBOSA
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Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 211-239
LUCIANO SENNA PERES BARBOSA
Palavras-chave:
eleições; estratégias discursivas; Primeira República
brasileira; Minas Gerais.
Keywords:
Elections; Discursive
Strategies; Brazilian First
Republic; Minas Gerais.
239
Resumo
O objetivo do presente texto é analisar os princípios de legitimação dos
políticos mineiros durante a Primeira República. Mais precisamente,
trata-se de examinar a maneira como os políticos empregavam estratégias
discursivas para legitimar sua pretensão em ocupar um cargo eletivo na
administração pública. Tomando por base os jornais de Juiz de Fora, importante centro político de Minas Gerais, é meu intuito demonstrar como
o texto jornalístico se apresentava como meio fundamental através do
qual os políticos expressavam uma retórica convencional capaz de fazer
valer suas posições frente a seus pares, e como este reconhecimento era
essencial para que obtivessem postos no poder público.
Abstract
The purpose of this paper is to analyze the principles of legitimation
of the politicians of Minas Gerais during the Brazilian First Republic.
More precisely, my aim in this paper is to examine the ways in which
those politicians employed discourse strategies to legitimize their claim
to hold an elective office in the public service. Based on the journals of
Juiz de Fora, important political center of Minas Gerais, is my intention
to demonstrate how the journalistic text was presented as a fundamental
mean by which politicians expressed a conventional rhetoric able to assert
their positions with their peers and how this recognition was essential to
obtain government positions.
Recebido para publicação em setembro/2014. Aceito em dezembro/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 211-239
Resenhas
La cage d´acier. Max Weber et le
marxisme wébérien
De: Michael Lowy
La cage d´acier. Max Weber et le marxisme wébérien
Paris: Éditions Stock. 2013
Max Weber et les paradoxes de la
modernité
Michael Lowy (org.)
Max Weber et les paradoxes de la modernité
Paris: Presses Universitaires de France. 2012
Por: André Haguette
Ph.D. Professor Titular, de sociologia, do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal do Ceará
Minha primeira intenção era fazer uma resenha do excelente e estimulante livro de Michael Lowy, La cage d´acier.
Marx Weber et le Marxisme Wébérien. Mas logo me pareceu
esclarecedor incluir na resenha um outro livro do mesmo autor
– Max Weber et les paradoxes de la modernidade –, publicado
um ano antes, pois, dessa maneira, poderia ilustrar melhor a
atitude de Lowy diante de Max Weber.
Conhecido no Brasil por seus estudos marxistas, e reconhecido como um intelectual marxista engajado, Michael
Lowy nunca deixou de se interessar pela obra de Max Weber;
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 241-245
242
RESENHA
isso desde o longínquo ano de 1969, quando publicou uma discussão metodológica sobre o livro mestre de Weber, A ética protestante e o espírito
do capitalismo, “visando demonstrar que as críticas que Weber fazia ao
materialismo histórico não eram justificadas” (p. 7). Estudando esse livro,
Lowy descobre o conceito de “afinidade eletiva” que toma de empréstimo
como sua principal ferramenta para analisar a cultura judia da Europa
central, ocasião em que redige Redenção e utopia: o judaísmo libertário na
Europa central, um trabalho magistral, publicado no Brasil em 1989, pela
Companhia das Letras.
Em seguida, Lowy se interessa por estudar Weber na sua relação com
Marx que ele chama, na sequência de Merleau-Ponty, o “marxismo weberiano”. Ao longo desse percurso intelectual, Lowy não renega seu “engajamento
político anticapitalista” nem seu “engajamento teórico marxista”, mas ele
acredita, ao mesmo tempo, que “o marxismo tem a ganhar pela integração
de certos aportes intelectuais de Max Weber” (p. 10-11).
Desta forma, Michael Lowy pôde escrever, na Introdução de Max
Weber et les paradoxes de la modernité, que “poucos autores compreenderam
com tanta acuidade as características da modernidade ocidental como Max
Weber: desencantamento do mundo, racionalidade instrumental, dominação
burocrática racional, diferenciação das esferas, politeísmo dos valores” (p.
9). Daí o atrativo de Weber e de seus paradoxos sobre a modernidade: uma
racionalidade instrumental desejável e sempre crescente sobre as coisas, mas
que invade e arrasta os homens, suas relações humanas, sua subjetividade e
liberdade. A exemplo de Nietzsche, Weber propõe, através da expressão uma
“gaiola de aço” – na tradução inexata, mas comumente aceita, de Parsons,
ou um “habitat duro como o aço” numa tradução julgada mais fiel –, um
“diagnóstico inelutável sem promessa de salvação” (2013, p. 55). Lowy
não esconde seu apreço pelo pessimismo cultural de Weber e seu impiedoso
diagnóstico sobre a civilização capitalista burocrática – dura como o aço – e
a sombria premonição do futuro que anuncia. Esta confissão explica por que
ele dedica a esse tema um capítulo diferente em cada um dos dois livros
objetos desta resenha: A Alegoria da gaiola de aço (2012) e O pessimismo
cultural de Max Weber (2013).
O livro, Max Weber et les paradoxes de la modernité, apresenta uma
novidade de peso: a tradução em língua francesa do texto “Fundamentos
econômicos do Imperialismo”, traduzido e publicado no Brasil no quarto
subtítulo do oitavo capítulo, Comunidades, de Economia e Sociedade,
volume II. A tradução francesa é precedida de uma Apresentação do texto
inédito de Max Weber por Michael Lowy. Os outros cinco capítulos foRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 241-245
ANDRÉ HAGUETTE
243
ram escritos por diferentes autores. Três versam sobre a religião no seu
encontro com a modernidade. O primeiro, de Eduardo Weisz, trata do
judaísmo antigo nas origens da modernidade; o segundo, assinado por
Manfred Gangl, aborda Religião e modernidade e o terceiro, de Gérard
Raulet, discute o método de exposição da Ética Protestante. Enzo Traverso,
por sua vez, se volta para o cientista e a política, ou Max Weber contra os
intelectuais. Finalmente, a filósofa, especialista francesa em Weber, Catherine Colliot-Thélène coloca as análises weberianas da política à prova da
mundialização para concluir que, de um lado, se “uma clara circunscrição
do campo da política, que permitia no tempo de Weber a centralização do
poder no estado, tornou-se impossível”, por outro, “a percepção aguda de
Weber da influência determinante que a economia capitalista exerce sobre
o destino das sociedades modernas fazem de sua obra uma das fontes mais
ricas que a tradição sociológica nos legou...” (p. 156). Limite e riqueza da
obra política de Weber, portanto.
La cage d´acier, por sua vez, é composto de três partes, cada uma
com dois capítulos, todos de autoria de Michael Lowy. O primeiro capítulo,
Marx e Weber: Kapitalismus, retoma, mais uma vez, a comparação das duas
obras. Segundo Lowy, se os verdadeiros e fundamentais desacordos entre
os dois autores são “políticos e metodológicos”, os dois homens têm muito
em comum do ponto de vista intelectual, a começar pelo interesse da análise
do capitalismo como sistema. – “a força que mais pesadamente incide sobre
o destino de nossa vida moderna” (p. 17). Lowy continua comparando as
teses dos dois autores sobre dois temas: as origens do capitalismo e a avaliação crítica do sistema. O segundo capítulo se volta para O Pessimismo
cultural de Weber.
Na segunda parte do livro, o autor discute, no terceiro capítulo, O
conceito de afinidade eletiva de Weber e, no quarto, documenta, de maneira
original, um aspecto da obra de Weber raramente mencionado, a saber: A
ética católica e o espírito do capitalismo: uma afinidade negativa.
Lowy destaca passagens dos escritos de Weber que mostram uma
“incompatibilidade” entre os ideais do crente católico “seriamente convicto”
e a “perseguição comercial” do ganho (p. 103); uma aversão essencial e
insuperável, uma forma de “anticapitalismo”, uma antipatia cultural, “uma
falta de afinidade entre duas substâncias” (p. 109). Esta “inversão da afinidade eletiva” repousa, segundo a análise de Lowy, sobre o caráter impessoal
do capitalismo, uma “escravidão sem mestre” (Weber) que impede toda e
qualquer imputação ética. O advento e contínuo avanço da racionalidade
instrumental colide com a racionalidade substancial, logo pessoal, da ética
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RESENHA
católica. Existe uma tensão radical entre o capitalismo e a ética da fraternidade. Lowy escreve:
A Igreja católica é o principal exemplo de uma desconfiança religiosa para
com a ascensão das forças econômicas impessoais, inevitavelmente hostis
à ética da fraternidade. O Deo placere non potest – ‘não pode agradar a
Deus’ – católico foi durante muito tempo característico de sua atitude
para com a vida econômica. [Apesar de concessões e acomodações] a
tensão era no final das contas dificilmente superável (p. 104).
A terceira parte é consagrada ao que Lowy, seguindo Merleau-Ponty,
em Les Aventures de la dialectique (1955), chama de marxismo weberiano.
Enquanto o capítulo cinco aborda “O capitalismo como religião: Ernst Bloch,
Walter Benjamim e Erich Fromm leitores de Max Weber”, o capítulo seguinte, sexto e último, trata de “Figuras do marxismo weberiano: de Lukács a
Merleau-Ponty” – o autor revisita História e consciência de classe –, Gramsci,
Mariategui, a escola de Frankfurt e a dissociação de Habermas. Lowy lembra
que Merleau-Ponty cunhou a expressão “marxismo weberiano” para designar
a corrente marxista-ocidental mais marcada por algumas ideias de Weber,
notadamente Gyorgy Lukács e seus discípulos que trabalharam a análise da
“reificação”, “como uma síntese poderosa e original da teoria do fetichismo e
da mercadoria, de Marx, e da teoria da racionalização, de Weber”. “Fusionando
a categoria weberiana de racionalidade formal – caracterizada pela abstração,
a ‘coisificação’ e a quantificação – com as categorias marxianas do trabalho
abstrato e do valor de troca, Lukács reformulou a temática do sociólogo
alemão na linguagem teórica marxista” (p. 154). Gramsci, por sua vez, teria
se utilizado de Weber para superar a abordagem economicista do marxismo
vulgar, e por em evidência o papel historicamente produtivo das ideias e das
representações (p. 159). Quanto à escola de Frankfurt, Horkheimer reconhece
a influência de Weber quando compara seus próprios conceitos de razões
subjetiva e objetiva com aqueles de racionalidade funcional e substancial.
“Segundo Horkheimer, a razão subjetiva ou funcional se reduz ao ‘fato de
saber calcular probabilidades, e por consequência de coordenar os meios
convenientes com um fim dado; enquanto a razão objetiva ou substancial (de
Platão a Hegel) visa ‘a ideia do maior bem’ e ‘a maneira de realizar os fins
últimos’ (p. 162). Adorno e Horkheimer, todavia, se distinguem de Weber
“por seus compromissos humanistas e socialistas, sua recusa do capitalismo
e da burocracia enquanto formas inevitáveis da modernidade, e sua utopia
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ANDRÉ HAGUETTE
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de uma sociedade liberta da reificação e da dominação” (p. 175). Lowy vê
uma disseminação do marxismo weberiano na França (Jean-Marie Vincent
e Catherine Colliot-Thélène) e nos Estados Unidos, com Daniel Bell, Irving
Louis Horowitz, Alvin Gouldner, Charles Wright Mills. O capítulo termina
com uma interessante e instigante exposição da “dissociação” de Habermas
que representa na escola de Frankhfurt “a saída do marxismo weberiano”
(p. 176-189).
Lowy conclui seu livro afirmando:
[que] Marx e Weber são indispensáveis para entender o mundo no qual
vivemos, mundo este que, no século XXI, continua capitalista, embora sob
formas diferentes daquelas do século XIX... Continuamos submissos ao
poder total de forças impessoais – o mercado, a finança, a dívida, a crise,
o desemprego – que se impõem como um destino implacável (p. 192).
Creio ter dado razões da pertinência e do interesse do livro de Lowy
que certamente logo será traduzido em português. Sua leitura ajuda a conhecer melhor o pensamento de Max Weber e a entender as imbricações
e incompatibilidades de suas teses com as de Marx. Se um cientista social
pode aderir ou tomar partido de um ou de outro, como o faz Michael Lowy,
ele não pode ignorar um ou ambos. O domínio do pensamento de ambos
continua sendo uma necessidade intelectual e prática. A leitura de La Cage
d´acier e de Max Weber et les paradoxes de la modernidade permite um
diálogo crítico e estimulante.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 241-245
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EXEMPLOS: LIVRO
BALZAC, Honoré. A mulher de trinta anos. Disponível em: <http:// www. terra.
com.br.htm>. Acesso em: 20 ago. 2009.
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Periódico em meio eletrônico
GUIMARÃES, Nadeja. Por uma sociologia do desemprego. Rev. Bras. Ci. Soc*.,
São Paulo, v. 25, n. 74, out. 2010. Disponível em: <http://www. Scielo.br/scielo.
php?script>. Acesso em: 11 mar. 2011.
Jornal em meio eletrônico
* Sem o nome do autor. Quando a matéria não informa o autor,
iniciamos pelo título.
TSUNAMI no Japão. O Povo online, Fortaleza, 11mar. 2011. Disponível em:
<http://www.jornal o povo.com.br>. Acesso em: 11mar. 2011.
* Com o autor
BRÁS, Janaína. Fraternidade: campanha discute proteção à natureza. O povo
online, 11mar.2011. Disponível em: <http://www.jornal o povo.com.br>. Acesso
em: 11mar. 2011.
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Departamento de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
// DOSSIÊ: LEITURAS DE
MAQUIAVEL
Leituras de Maquiavel
(apresentação)
Maria Francisca Pinheiro Coelho
Perfis da modernidade:
Maquiavel e Hobbes sobre
política e moral
Karlfriedrich Herb
Maquiavel: os segredos do
mundo da política
Maria Tereza Sadek
E se Norbert Elias fosse um leitor
de Maquiavel?
Andréa Borges Leão
A dialética do desejo e o conflito
no republicanismo de Maquiavel
Marilde Loiola de Menezes
Maquiavel na soleira da
modernidade
Paulo Nascimento e Martin
Adamec
Hannah Arendt: uma leitora de
Maquiavel
Maria Francisca Pinheiro Coelho
// ARTIGOS
// RESENHAS
“Sociologia ou imaginação”:
aspectos da recepção do livro
O estrangeiro, de Plínio Salgado
Alexandre Pinheiro Ramos
Lowy, Michael. La cage d´acier.
Max Weber et le marxisme
wébérien e Lowy, Michael (org.).
Max Weber et les paradoxes de
la modernité
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