SUMÁRIO - Fundação Magda Tagliaferro

Transcrição

SUMÁRIO - Fundação Magda Tagliaferro
SUMÁRIO
Prefácio
3
Abertura das Comemorações do Centenário de Nascimento
da Pianista Magda Tagliaferro
5
Cycle Magda Tagliaferro 1996 / Ambassade du Brésil à Paris
Expo “10 Ans sans Magda”
11
Ciclo Magda Tagliaferro 1996 / Embaixada do Brasil em Paris
Expo “10 Anos sem Magda”
13
Discurso Proferido por Magda Tagliaferro
por Ocasião da Criação da Fundação Magda Tagliaferro
15
Discurso Proferido por Magda Tagliaferro
por Ocasião da Criação da Fundação Magda Tagliaferro
16
Encerramento do Curso de 1952
19
Encerramento do Curso de 1946
20
Reunião com Sá Pereira
21
Homenagem à Memória de Jacques Thibaud
23
Curso de Alta Interpretação e Virtuosidade de 1941
26
Encerramento do Curso de Interpretação e Estética Musical de 1942
32
Encerramento de Curso de 1944
35
Abertura do Curso de Alta Interpretação Musical de 1948
37
Encerramento do Curso de Alta Interpretação Musical de 1948
39
Abertura do Décimo Curso de Alta Interpretação Musical de 1950
46
A Escola Moderna Francesa
53
César Franck - Variações Sinfônicas para Piano e Orquestra
59
Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1943
60
César Franck - Variações Sinfônicas para Piano e Orquestra
61
Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1941
Camille Saint-Saëns
63
Reflexões Sobre a Vida e a Obra de meu
Eminente Mestre: Gabriel Fauré
67
1
Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1941
Gabriel Fauré
72
Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1951
O Estilo de Gabriel Fauré
76
Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1941
Claude Achille Debussy
79
Curso de Aperfeiçoamento e Interpretação de 1940
85
Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1941
A Obra de Maurice Ravel
90
Preleção de Magdalena Tagliaferro Relativa às Obras de
Reynaldo Hahn e Darius Milhaud
94
O Movimento Romântico - Franz Liszt
96
A Música Espanhola
99
Palestra Sobre L. Van Beethoven
104
Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1951
Três Autores Clássicos: Bach, Mozart e Beethoven
111
Beethoven - Concerto op. 73, em Mi Bemol
117
Beethoven - Sonata op. 78, em Fá Sustenido Maior
119
Beethoven - Sonata op. 81 - O Adeus, A Ausência, O Retorno
121
Beethoven - Sonata op. 27, n.º 2
122
Beethoven - Sonata op. 53, Aurora
123
Beethoven - Sonata op. 31, n.º 2 / Comentários
124
Beethoven - Sonata op. 90, em Mi Menor
125
Beethoven - Sonata op. 90, em Mi Menor / Comentários
127
Beethoven - Sonata op. 57
128
Robert Schumann - Sonata op. 11, em Fá Sustenido Menor
133
Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1951
Robert Schuman - Fantasia op. 17
144
Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1944
Maurice Ravel - “Sonatine”
143
Textos Incompletos
149
Anedotas
155
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PREFÁCIO
Em 1940, Magda atende ao apelo do Brasil.
“Já que a guerra não lhe permite voltar à França, traga seus ensinamentos
também a este país que a viu nascer. Precisamos criar pianistas” ao que
acrescentou Tagliaferro... “e também criar um público para ouvir esses
pianistas”.
Com este convite, do então Ministro da Educação e Cultura, Gustavo
Capanema, ela implantou na Escola Nacional de Música, Rio, o “I Curso
Público” com seis aulas, ao qual seguiram-se outras 30 aulas, também em São
Paulo, em todo o Brasil e assim por diante.
Em Paris, os cursos públicos de Magda Tagliaferro nasceram do convite de
Mme. Yvonne Brisson então Presidente dos “Les Annales”, onde ela ilustrava
as conferências ali proferidas. Convocada a vencer as dificuldades de passar
da palavra ao piano, ou seja, das mãos frias ao sangue afluindo ao cérebro, e
vice-versa, Magda ilustrou sua própria palestra, intitulada “Un bouquet d’auteurs
modernes” divulgando compositores franceses: Claude Debussy, Reynaldo
Hahn, Jean Rivier, Jacques Ibert e Darius Milhaud na Salle Gaveau. Nos idos
de 1939, como delegada do governo francês, segue para Nova York a fim de aí
divulgar esses mesmos compositores.
No entanto, ao voltar de Nova York a Recife, em um vôo clipper, recebe o
convite do Ministro das Relações Exteriores para tocar na rádio pela
comemoração do aniversário do Presidente Vargas e para dar mais oito recitais.
A partir de então, Magda Tagliaferro desencadeia uma verdadeira revolução
musical no Brasil, por causa de sua técnica muito pessoal, de suas
interpretações muito próprias e de seus vestidos de Paris, que nunca se
repetiam...
Ao comemorar seus 30 anos de criação, a Fundação Magda Tagliaferro, no
esforço de compilar, revisar e digitar esta preciosa coletânea de apenas
algumas palestras proferidas por Magda Tagliaferro por mais de uma década,
põe à disposição do seu devoto público, alunos, professores, assistentes e
amigos, os textos referentes aos seus cursos públicos ministrados no Brasil.
Embora há muito pretendêssemos fazer essa compilação, só agora nosso
esforço se concretiza com esta edição sobre sua atividade pedagógica
destinada ao grande público. Iniciada com o convite do então Ministro da
Educação e Cultura, Gustavo Capanema, é coroada, em 1983, com a outorga
da comenda de “Ordem Nacional do Mérito Educativo” pela Ministra da
Educação e Cultura, Esther de Figueiredo Ferraz.
As palestras refletem a competência da professora, a lucidez da pedagoga e o
humor da artista, sempre atenta em não só corrigir mas também em agradar
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seu público cativo. O sucesso de suas palestras é fruto de uma longa
experiência na carreira de virtuose e da sua vocação de professora.
Nas conferências-palestras, voltadas a um público predominantemente leigo,
Magda usava uma linguagem leve, não técnica, numa leitura romanceada de
História da Música, atraindo o público, seus constantes ouvintes. Os textos aqui
contidos foram fielmente transcritos dos originais e manuscritos por ela
deixados.
Aprendendo também com os alunos, adverte para o uso da “técnica como meio
a serviço da música”, para a busca da pureza do estilo, da descoberta
harmônica, da arte do pedal e das vibrações sonoras.
Em 1956, a pedido dos alunos de Paris, ministra na Salle Pleyel, tendo como
modelo seus cursos públicos no Brasil, aulas intituladas “As cores na harmonia”;
“sem colorido a música torna-se monótona”, dizia Tagliaferro.
Os textos apresentados a seguir foram reunidos em cinco grupos, sem
preocupação cronológica, de acordo com os assuntos a que se referem:
1. Discursos, discursos de abertura e encerramento de cursos.
2. Palestras sobre História da Música.
3. Análise.
4. Textos incompletos.
5. Anedotas.
Lêda M. de Figueiredo Ferraz
Presidente da Fundação Magda Tagliaferro
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ABERTURA DAS COMEMORAÇÕES
DO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO
DA PIANISTA MAGDA TAGLIAFERRO
DISCURSO PRONUNCIADO PELA
PROFESSORA ESTHER DE FIGUEIREDO FERRAZ
15 DE JUNHO DE 1993
Convocados pela Fundação Magda Tagliaferro, aqui nos achamos reunidos
para dar início às comemorações do centenário de nascimento da grande
brasileira, incomparável artista, extraordinária mulher que foi Magdalena
Tagliaferro, criatura invulgar cuja passagem pelo mundo fascinante e mágico da
música aí deixou impressas em traços de ouro as marcas imperecíveis dos
seus dedos. Aqueles dedos ágeis, adestrados, seguros e inspirados que
durante quase um século se movimentaram, infatigáveis, sobre a superfície dos
teclados, daí extraindo obras de arte sonora que, sempre e cada vez mais
intensamente, extasiaram os ouvintes, transportando-os, como em sonhos, para
as esferas superiores onde reina a Beleza em toda a sua plenitude.
Quis a Fundação fosse eu a encarregada de proferir as palavras iniciais
enunciativas das razões que a levaram a promover este evento, e a realizá-lo
no âmbito do Museu de Arte de São Paulo, local onde a grande artista se exibiu
por mais de uma vez em concertos e em aulas de alta interpretação musical
que marcaram época nos anais da vida artística paulistana.
Explico o porquê de minha designação para tão honrosa tarefa, quando muitos
entre os aqui presentes, alguns mesmo seus ex-alunos e hoje consagrados
pianistas, melhor do que eu fariam a louvação que se espera de quem se refira
à grande “mestra do teclado”.
É que, nos idos de 1942, naqueles anos para mim dourados porque
correspondentes à fase de minha vida acadêmica, tive o privilégio de ser aluna
de Magdalena nas aulas que ministrava à Rua Bahia, na casa de Ana Esméria
Leite de Barros, tendo como assistentes as pianistas Georgette Pereira, Nellie
Braga e Menininha Lobo. E até hoje guardo como verdadeira relíquia o álbum
contendo as doze “Sonatinas” de Clementi, o texto básico sobre o qual recaíam
nossos exercícios diários de técnica onde a professora, em sua caligrafia
inconfundível, ao mesmo tempo nítida e imperiosa, anotava as falhas,
certamente numerosas, de minha hesitante execução.
Muitos anos mais tarde e já na qualidade de Ministra da Educação e Cultura do
Governo João Figueiredo, coube-me a honra de fazer-lhe a entrega da
Comenda da “Ordem Nacional do Mérito Educativo”, que lhe outorgara o
Presidente por Decreto de 28 de junho de 1983. E num pequeno discurso que
lhe dirigi ao final do belíssimo concerto com que brindou a assistência
comprimida num dos salões do Teatro Nacional de Brasília, assim justifiquei a
procedência e a oportunidade da homenagem que lhe prestava o País naquele
momento: “Se a Ordem Nacional do Mérito Educativo que foi instituída com a
finalidade de “premiar personalidades nacionais e estrangeiras por excepcionais
e relevantes serviços prestados à educação”, ninguém mais do que a senhora
merece essa láurea que em tão boa hora lhe é conferida pelo Governo da
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República. Pois mestra em sua arte, e mestra entre os mestres, como
francamente reconhecem quantos lhe acompanham a longa e luminosa
trajetória; mestra de gerações e gerações de jovens pianistas que, em
uníssono, lhe proclamam os dons de garimpeira de talentos, incentivadora de
vocações, impulsionadora de carreiras; mestra no grande magistério da vida,
que poucos terão sabido, como a senhora, fazer da existência uma
demonstração diuturna de fé, de coragem, de combatividade, de irresignação à
mediocridade e de incontida ambição no sentido de atingir sempre o melhor, o
mais puro, o mais perfeito, a senhora é, na verdade, uma grande educadora e,
a esse título, faz jus em grau superlativo à condecoração que dentro de
instantes passará a ornar-lhe o peito e – ouso crer – figurará, entre tantas que
já lhe foram outorgadas aqui e alhures, como uma das mais significativas, das
mais caras ao seu coração”.
É, pois, com intensa emoção que aqui venho dizer algumas breves palavras
sobre a vida e a obra dessa extraordinária artista que a crítica mundial
especializada, condensando numa expressão bastante significativa o
entusiasmo, o fervor com que lhe acompanhava o desempenho pianístico,
passou a designar como “a fada”, “a mágica” do teclado.
Nascida em Petrópolis, aos 19 de dezembro de 1893, já com 5 anos o pai,
Paulo Tagliaferro, a colocou sobre a banqueta de um piano e lhe ensinou as
primeiras notas, deslumbrando-se com sua facilidade em aprender, seu
empenho em bem executar, vencendo com galhardia as limitações impostas
pelas suas mãozinhas de criança ainda em idade pré-escolar. Com apenas 11
anos deu em São Paulo, no Salão Steinway, seu primeiro concerto. E
acompanhando os pais à França, por motivo de doença do chefe da família,
conseguiu desde logo ser aceita como aluna pelo Conservatório Nacional de
Paris, e aí obteve o primeiro prêmio em memorável concurso de que
participaram vinte e duas candidatas vindas de vários países do mundo. Tocara
lindamente o primeiro movimento da Sonata de Weber em Lá bemol, e o
presidente do júri, Henry Marechal, justificou a outorga do prêmio à brasileirinha
de 14 anos por ter sido quem melhor traduzira o pensamento do autor,
colocando-se, pelo seu encanto, sensibilidade e delicadeza, acima das demais.
A premiada passou a ter como professores, a partir daí, entre outros, Alfredo
Cortot, de Piano, e Gabriel Fauré, de Harmonia, ambos empenhadíssimos em
que a nova aluna, verdadeiramente genial, fizesse uma carreira à altura de seus
méritos. E foi o que aconteceu, sendo certo que dentro de espaço de tempo
relativamente curto Magdalena começou a aparecer no noticiário da imprensa
européia, reservando-lhe a crítica especializada em tratamento verdadeiramente consagrador. “Magda Tagliaferro é a maior das pianistas atuais”,
proclama Louis Vierne, in Courrier Musical. “Essa maravilhosa fada do teclado
criou em torno de si todo um universo sonoro que é um encantamento
perpétuo”, afirma Stan Golestan, in Le Figaro. “Na arte prodigiosamente
cultivada de Magda Tagliaferro vive o espírito claro e puro da música francesa”,
assegura Heinrich Strobel, in Berliner Borsenkurier. “Uma técnica sem defeitos,
a serviço de um temperamento genial”, assim se pronuncia Aloys Fornerod, in
Tribune de Lausanne. “Uma finura de expressão e ao mesmo tempo um
domínio soberano da técnica”, diz o Tageszeitung de Viena. E assim por diante,
numa constante louvação convergente e cada vez mais entusiasta.
Logo após o início da II Grande Guerra Mundial, e sendo já professora do
Conservatório Nacional de Paris, Magdalena vai aos Estados Unidos, enviada
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pelo Ministère des Affaires Étrangères para se desincumbir de importante
missão: divulgar as obras dos compositores franceses contemporâneos. Estréia
triunfalmente em 1940, tocando no Carnegie Hall com a orquestra Filarmônica
de Nova York, regida por John Barbiroli. E percorre a seguir várias cidades do
país, sempre bem recebida, sempre louvada, sempre ovacionada, o que não a
impediu de retornar aos Estados Unidos apenas 39 anos mais tarde, em 1979,
nas condições que logo adiante serão mencionadas.
Em 1940 regressa ao Brasil, país onde nascera e do qual, embora
materialmente afastada durante muitos anos, jamais se desligara
sentimentalmente. Tanto assim que continuava a falar fluentemente, tal qual
uma autêntica brasileira, o português, sem hesitação, sem um sotaque, como
se jamais se houvesse expressado a não ser na bela língua de Camões.
É recebida no Rio de Janeiro triunfalmente, “como se ainda fora”, diz ela, “a
criança prodígio”. E desde logo se vê envolvida em verdadeiro furacão de
compromissos, chegando a dar, só no Rio, “oito recitais seguidos, com salas
repletas”. Tais concertos deflagraram, confessa Magdalena, “uma verdadeira
revolução musical”, em razão de sua técnica “muito pessoal” e de suas
interpretações, havendo ainda os vestidos de Paris, “um para cada concerto”.
Durante esses concertos, lembra ela, podia-se ouvir de Mário de Andrade,
“gritando de um camarote de onde só faltava despencar sobre a platéia:
Magdalena, eu te amo!”.
Informado desse sucesso, o então Ministro da Educação Gustavo Capanema
convida-a para uma entrevista e inicia o colóquio dizendo: “já que a guerra não
lhe permite voltar à França, traga também um pouco de seus ensinamentos a
este país que a viu nascer. Precisamos criar pianistas”. E encarrega-a de
ministrar cursos públicos de Interpretação Musical e Virtuosidade, na Escola
Nacional de Música os quais provocaram enorme interesse, ao ponto de nele se
matricularem, entre muitos inscritos, vários professores do Rio e de São Paulo.
E começou, assim, a atividade pedagógica de Magdalena Tagliaferro no Brasil.
Em novembro de 1941 realizou-se em São Paulo, sob os auspícios do jornal A
Gazeta e em seu auditório, mais um Curso de Interpretação Musical e
Virtuosidade, sendo conferidos diplomas a 23 pianistas, entre eles Oriano de
Almeida, Heitor Alimonda e Iris Bianchi. E seguiram-se conferências, aulas e
outras manifestações didáticas, tudo isso levando a uma completa modificação
do panorama pianístico do País, ao ponto de chegarem alguns a afirmar que o
ensino da música no Brasil se dividiria em dois períodos – antes e depois de
Magdalena Tagliaferro –. Mas o certo é que Magdalena, sem sua presença,
suas lições, sua energia, seu exemplo, sua vibração, sua confiança na
musicalidade natural do povo brasileiro, não teríamos conseguido obter a
necessária “massa crítica” para sustentar essa reação em cadeia que levou à
formação de um excelente quadro de pianistas. De grandes pianistas como,
exemplificadamente, estes dois intérpretes e professores que hoje abrilhantam
a homenagem prestada à antiga mestra – Deisy de Luca e Gilberto Tinetti – que
demais representam mais do que condignamente.
Em 1949, já então nossa Magdalena retorna à França, onde continua a brilhar
como estrela de primeira grandeza nos campos tanto da interpretação musical
quanto do ensino do piano. Isso sem prejuízo de suas regulares vindas ao
Brasil onde passaram a prendê-la, além de outros vínculos, alguns filhos
nascidos de seu amor à arte e de seu patriotismo – as Escolas Magda
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Tagliaferro, em São Paulo e no Rio de Janeiro, e a instituição da Fundação
Magda Tagliaferro, responsável pela realização desta cerimônia.
Em 1979, o empresário Harold Shaw, impressionado com o êxito obtido por
Magdalena em concerto realizado numa das grandes capitais européias,
convidou-a a se exibir nos Estados Unidos, país do qual se mantinha afastada
desde 1940. Trinta e nove anos haviam decorrido desde então, e o público
americano que a vira jovem, ao ler o noticiário em que se aludia à reaparição de
uma “old pianist”, imaginou que adentrasse o palco do Carnegie Hall uma “velha
senhora”, curvada ao peso dos anos, possivelmente conduzida por uma
acompanhante. Mas quando se abriram as cortinas de proscênio, aí viu surgir
uma linda e elegantíssima mulher, ostentando um vestido cintilante, tendo nas
mãos um lenço da mesma cor de sua cabeleira cor de fogo, e dirigindo-se ao
piano com o andar de uma deusa. Irrompeu, então, em delirantes aplausos que
duraram muitos minutos, todos eles endereçados não ainda à concertista que
se faria ouvir daí a instantes, mas, sim, à criatura mágica que parecia haver
descoberto o segredo da eterna juventude. Fossem os nova-iorquinos como
são os parisienses, e tê-la-iam descrito como fez o crítico francês Émile
Vuillermoz, em 1957, ao vê-la penetrar na sala de concertos do Thèâtre des
Champs Élysées: “réstia luminosa de cetim resplendoroso e uma cabeleira
incandescente – longa haste cambiante em cujo cimo desabrocha uma flor de
fogo”. Quanto ao concerto propriamente dito, colocou-se ele à altura da
aparência da artista, tendo sido genial a forma como interpretou Bach, Chopin,
Fauré, Debussy, e todo o Carnaval de Schumann. A apreciação da crítica não
poderia ser melhor: “desde Rachmaninoff e Friedman não se ouvia um Carnaval
assim”, escreveu o New York Times. E assegurou o New York Post: “O
Carnaval interpretado por Tagliaferro trouxe sonoridade e colorido nunca
ouvidos, e que marcarão época. A peça será reestudada e reavaliada a partir
de Magda”.
É de se salientar que os governos francês e brasileiro sempre renderam a
devida homenagem a essa grande mulher que soube, sem deixar de
permanecer brasileira, ser também gaulesa. E são inúmeras as condecorações
que recebeu no decorrer de sua longa vida, figurando entre as mais importantes
as de “Officier de la Légion D’Honneur”, em 1937 (ordem em que ingressara em
1925); “Grand Officier de l’Ordre National du Mérite”, em 1975, concedida pelo
presidente francês Giscard D’Estaing; “Oficial da Ordem do Rio Branco”, em
1962, e “Grande Oficial da Ordem Nacional do Mérito Educativo”, em 1983,
ambas conferidas pelo presidente José Sarney; finalmente, uma condecoração
concedida post mortem pelo presidente François Miterrand.
A entrega das comendas se fez algumas vezes em condições que
emocionaram profundamente a homenageada, fazendo-lhe virem lágrimas aos
olhos. Assim é que, em 1975, quando chegou ao Élysée para receber o título
conferido por Giscard D’Estaing, foi acolhida “por sua própria música”, e durante
toda a cerimônia tocou-se um de seus discos. E, já agora em terras brasileiras,
ao condecorá-la, o presidente José Sarney a saudou com uma “declaração de
amor” que começa por esta frase: “quem lhe escreve é um país jovem, o seu
país, o Brasil”. E que assim termina, lindamente: “Por isso, esta é uma carta de
amor, de amor por quem somente encheu de orgulho o Brasil, com sua
extraordinária arte, com a magia de suas mãos, com a beleza de sua vida”.
“Neste dia compartilho a honra de inscrevê-la no Livro de Mérito da nossa
Pátria como um dos maiores instantes da inteligência e da alma brasileira”...
“Aos seus pés, Alteza, reverencio a graça”.
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Em 1985, apresenta-se pela última vez com Orquestra Sinfônica (tendo como
regente Fábio Mechetti) no Teatro de Cultura Artística de São Paulo. E falece
no Rio de Janeiro em setembro de 1986, em plena primavera, sem sequer
perceber, num passeio de automóvel pela Cidade Maravilhosa, que lhe deixara,
afinal, de pulsar o coração. O brioso coração que lhe permitira, por quase um
século, viver a grande aventura da vida mergulhada na Arte, em contato
permanente com a Beleza. E vêm-me ao espírito as palavras com que encerra
sua biografia – Quase tudo – pequenina jóia de nossa literatura feminina:
“Chego ao porto sem fadiga, feliz como um barco que tenha longamente
navegado no belo”.
Desenhada assim, do princípio ao fim, a curva da existência de Magdalena
Tagliaferro, correspondente à curva de sua alma, cabe-nos perguntar: qual o
segredo do sucesso que sempre obteve no exercício das atividades artísticas,
em quaisquer dos planos em que se desenvolveram? E qual o segredo do
fascínio que exercia sobre os alunos, os professores, os amigos, o público
especializado, ao ponto de prendê-los à sua pessoa como fãs incondicionais
mesmo depois que se foi para outras paragens?
Ela própria nos dá a resposta quando, indagada sobre “o que é preciso para ser
um bom artista” assim respondeu, fornecendo ao argüente a seguinte e sábia
receita, em percentuais: “60% de talento, 30% de energia e perseverança no
trabalho e finalmente 10% de sorte”.
A fórmula se adapta perfeitamente ao seu caso pessoal.
Pois que tinha talento, isso o tinha, e o fato saltava aos olhos de quem
possuísse olhos para ver, e penetrava nos ouvidos de quem os tivesse para
ouvir. Uma evidência que se impunha particularmente a seus mestres, desde o
pai, seu primeiro professor, até Fauré, Cortot e outros, que a tiveram como
aluna no Conservatório Nacional de Paris e desde logo lhe perceberam a
genialidade.
Que trabalhava como moura para alimentar esse talento, isso também é exato,
e é ela própria quem no-lo informa quando escreve, referindo-se ao quanto
precisou lutar par chegar a ser o que foi: “na verdade, minha carreira foi feita, se
assim posso dizer, à força dos meus punhos”.
Finalmente, que foi bafejada pela sorte, impossível negá-lo, pois possuía em
alto grau qualidades de espírito, de sensibilidade, de caráter, raramente
encontráveis numa só e mesma pessoa: a generosidade, o altruísmo, a
cordialidade, o senso do companheirismo, a capacidade de se aproximar do
“outro”, do ”próximo”, o otimismo, a alegria de viver, o charme enfim. Além do
que Deus a fizera bela, não apenas de traços mas sobretudo de porte, e isso
também tem seu valor, haja vista o que afirmava, carregando nas tintas, o poeta
doublé de músico que foi o nosso Vinícius de Morais: “beleza é essencial”...
Senhoras e Senhores
Quando alguém pretende estender a própria vida para além de seus limites
físicos, de maneira a permitir que sua obra permaneça e continue a beneficiar
terceiras pessoas, cria uma entidade, uma pessoa jurídica, que venha a ocupar
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o espaço deixado vazio em razão de sua ausência, de seu embarque naquela
nau em que se empreende a chamada “viagem de retorno”. Dar origem a essa
entidade corresponde de uma certa forma a permitir esse retorno, essa
permanência no mundo dos vivos ao qual, sabendo-nos embora mortais, nos
encontramos todos solidamente vinculados.
Em 1969, dezessete anos antes de falecer, Magdalena Tagliaferro houve por
bem de promover a criação da Fundação que lhe traz o nome, entidade cujos
objetivos são, entre outros ligados ao desenvolvimento da arte musical, os de:
a) ajudar a formar e desenvolver talentos musicais, beneficiando os possuidores
de dons e de vocação artística no terreno da música; b) outorgar bolsas de
estudos aos merecedores de tal ajuda; c) instituir prêmios escolares a outras
modalidades de auxílio e incentivo, visando ao aprimoramento de ensino
musical no País; d) organizar concertos e recitais para virtuosos principiantes ou
laureados; e) promover anualmente a realização de Cursos Públicos e de
Master Classes.
Para a consecução de tais finalidades a Fundação se tem valido, em grande
parte, das Escolas Magda Tagliaferro, instaladas em São Paulo e no Rio de
Janeiro, sendo seus cursos autorizados e fiscalizados pelos órgãos
competentes dos respectivos sistemas de ensino.
Posso assegurar que o trabalho desenvolvido pelos que administram a
Fundação ou dirigem as Escolas tem sido verdadeiramente notável. E quero
crer que a melhor forma de se homenagear a memória de sua fundadora será,
certamente, a de prestigiar as obras nascidas da sua inquebrantável decisão de
servir à cultura, máxime à cultura musical de nosso País, tão necessitado que
se acha de “crescer” no plano das coisas do espírito. “A thing of beauty is a joy
for ever”, e em matéria de beleza nada há que se possa comparar à Música, a
mais imaterial das artes, o mais natural instrumento de comunicação entre os
homens e, por isso mesmo, um testemunho universal da grandeza do próprio
homem. Ela é, a expressão autorizada do maior dos músicos, Ludwig Van
Beethoven, “a manifestação mais convincente do que toda a sabedoria e do
que toda a filosofia”. Prestigiemo-la, pois, todos nós – os governos, as
empresas, as famílias, as entidades culturais, as igrejas, os sindicatos, a
comunidade em geral – que essa é uma causa nossa, uma causa nobre, e o
homem, como disse alguém (René Maheu, ex-Diretor Geral da UNESCO), é
“essencialmente disponível para as nobres causas”.
Muito obrigada, em nome da Fundação Magda Tagliaferro.
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CYCLE MAGDA TAGLIAFERRO 1996
AMBASSADE DU BRÉSIL A PARIS
EXPO “10 ANS SANS MAGDA”
Discours prononcé en 12 Décembre, 1996 par Mme. Lêda Maria Maranhão de
Figueiredo Ferraz, Présidente de la Fondation Magda Tagliaferro à São Paulo.
Mesdames et Messieurs,
Tout d’abord, je voudrais remercier aux organisateurs du “CYCLE MAGDA
TAGLIAFERRO” de nous avoir invités à participer à cet hommage rendu à la
grande Magda.
En fait, cette invitation a eté interpretée par nous, que répresentons la Fondation
Magda Tagliaferro au Brésil, comme une convocation. Et c’est avec le plus
grande enthousiasme que nous nous associons à tous ceux qui, comme une
grande famille, vennant de plusieurs continents, rendent hommage à leur
maître.
L’accueil de Monsieur l’Ambassadeur du Brésil – M. Carlos Alberto Leite
Barbosa, et le prestige que sa présence accorde à cette cérémonie ne viennent
que renforcer les liens crées par notre Ambassadrisse de la Musique au Brésil
et en France.
Voilà dix ans qu’elle est disparue. Au Brésil. À Rio de Janeiro. Et poutant, elle se
fait vivante dans nos mémoires, comme le symbole d’une nouvelle mentalité
musicale, révolutionnaire par sa technique, son interprétation créatrice et par les
couleurs de sa sonorité.
A partir de 1940, l’enseignement du piano au Brésil prenait un nouvel essor
avec la création de l’École Magda Tagliaferro, engagée dans une oeuvre de
formation de jeunes talents. Cette action s’est élargie par la mise en oeuvre de
la Fondation, conçue par Magda Tagliaferro, elle-même, en 1969, pour décerner
des bourses d’études à de jeunes pianistes et les lancer dans la carrière
internationale.
Aujourd’hui, revitalisée par les efforts d’un groupe d’ex-élèves idéalistes, la
Fondation poursuit sa mission, toujours au service de projets culturels, visant à
diffuser et à multiplier son oeuvre artistique et éducationnelle.
C’est ainsi que, dans la double intention de former l’élève et le public auditeur,
nous nous sommes lancés dans des activités comprenant la réalisation de
concours, de concerts et de “master classes”, celles-ci rendues possible grâce
au concours de professeurs invités, de renommée internationale, comme Flávio
Varani, Cristina Ortiz, Deisy de Luca, Silvia Tuxen-Bang, pour en citer quelquesuns. Un vrai succès depuis 1993.
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Parallèlement, le besoin de préserver les einsegnements et l’histoire de Magda
Tagliaferro nous a menés à développer l’idée du Musée Biographique,
constituant ainsi la mémoire de son oeuvre enregistrée, écrite et filmée.
Des archives sonores ont été formées para la collection et la réunion
d’enregistrements provenant de différentes sources.
À la suite, nous avons pris en charge l’actualisation de ces archives par la
production du premier CD de Magda Tagliaferro, 1991, lancé sous le nom
“Revival” et détenteur du prix de l’Association des Critiques d’Art de São Paulo
(APCA).
Les archives se sont enrichies de films vidéos faits à partir de ses concerts et
intervews pour la télévision et des commentaires de personalités du monde
musical sur sa carrière.
A cela s’est ajouté le précieux film de François Reichenbach, “Magda Noble et
Sentimentale”.
En ce qui concerne la documentation écrite, outre l’organisation de ses
conférences, de ses lettres, de son livre autobiographique et de toute sorte de
références à sa carrière et à sa personalité, la Fondation a pris l’initiative de
concervoir et de publier le Catalogue Commémoratif du Centenaire de Magda
Tagliaferro (1893-1993), sponsorisé par le Sécretariat de Culture de l’Etat de
São Paulo, qui a vraiment été une réussite éditoriale et culturelle.
Nous avons encore des projets en voie de réalisation: prévue pour mars 1997:
édition en portugais du livre de son ancienne élève Asako Tamura, déjà publié
au Japon, visant à la divulgation de la technique pianistique systematisée par
Magda Tagliaferro et, encore, pour bientôt, la publication des conférences
qu’elle a proferées depuis les années 1940.
Tels sont nos défis et les résultats de nos efforts dans cette enterprise qui ne
cesse de nous pousser à aller plus loin, en cherchant à sensibiliser de nouveaux
sponsors et collaborateurs réunis autour de la confiance et de la foi dans
l’éducation par la musique.
Enfin, je voudrais évoquer les paroles de Magda Tagliaferro qui constituent le
support et le guide de notre action.
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CICLO MAGDA TAGLIAFERRO 1996
EMBAIXADA DO BRASIL EM PARIS
EXPO “10 ANOS SEM MAGDA”
Discurso pronunciado em 12 de dezembro de 1996 pela Sra. Lêda Maria
Maranhão de Figueiredo Ferraz, Presidente da Fundação Magda Tagliaferro em
São Paulo.
Senhoras e Senhores,
Inicialmente, gostaria de agradecer aos organizadores do “Ciclo Magda
Tagliaferro” por nos ter convidado a participar desta homenagem à grande
Magda.
Na verdade, este convite foi considerado por nós, que representamos a
Fundação Magda Tagliaferro no Brasil, como uma convocação. É pois, com
grande entusiasmo que nos associamos a todos que, como uma grande família,
vindos de vários continentes, rendem homenagem à sua Mestra.
A acolhida do Senhor Embaixador do Brasil – Sr. Carlos Alberto Leite Barbosa –
e o prestígio de sua presença nesta cerimônia, só reforçam os elos criados por
nossa Embaixatriz da Música no Brasil e na França.
Há dez anos desaparecia Magda Tagliaferro. No Brasil. No Rio de Janeiro. E,
no entanto permanece viva em nossa memória, como símbolo de uma nova
mentalidade musical, revolucionária pela sua técnica, pela sua interpretação
criadora e pelas cores de sua sonoridade.
A partir de 1940, o ensino do piano no Brasil tomava novo impulso com a
criação da Escola Magda Tagliaferro, engajada no trabalho de formação de
jovens talentos.
Esta ação ampliou-se com a implantação da Fundação concebida pela própria
Magda Tagliaferro, em 1969, para conceder bolsas de estudo a jovens pianistas
e os lançar na carreira internacional.
Hoje, revitalizada pelos esforços de um grupo de ex-alunos idealistas, a
Fundação persegue sua missão, sempre a serviço de projetos culturais, visando
difundir e multiplicar sua ação artística e educacional.
Desse modo, na dupla intenção de formar tanto o aluno como o público ouvinte,
dedicamo-nos às atividades que englobam a realização de concursos, de
concertos e de master classes, contando com a colaboração de renomados
professores internacionais, tais como; Flávio Varani, Cristina Ortiz, Deisy de
Luca, Silvia Tuxen-Bang, para citar alguns. Verdadeiro sucesso desde 1993.
13
Paralelamente, a necessidade de preservar os ensinamentos e a história de
Magda Tagliaferro nos levou a desenvolver a idéia do “Museu Biográfico”,
constituindo-se, assim, na memória de sua obra gravada, escrita e filmada.
Formamos um arquivo sonoro, coletando e reunindo gravações vindas de
diferentes fontes. Em seguida, promovemos a remasterização desse arquivo,
produzindo o primeiro CD - Revival - de Magda Tagliaferro em 1991, detentor
do prêmio da Associação dos Críticos de Arte de São Paulo (APCA).
Os arquivos enriqueceram-se com a aquisição de vídeos de seus concertos e
entrevistas para a televisão e com pronunciamentos de personalidades do
mundo musical sobre sua carreira. Acrescentamos a tudo isso, ainda, o
precioso filme de François Reichenbach, Magda Noble et Sentimentale.
No que diz respeito à documentação escrita, como à organização de suas
conferências, de suas cartas, de seu livro autobiográfico e de toda sorte de
referências à sua carreira e à sua personalidade, a Fundação concebeu e
publicou o Catálogo Comemorativo do Centenário de Magda Tagliaferro (18931993), patrocinado pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo,
alcançando verdadeiro sucesso editorial e cultural.
Temos ainda alguns projetos em curso, previsão para março de 97, da edição
em português, do livro de sua ex-aluna Asako Tamura, já publicado no Japão,
visando a divulgação da técnica pianística sistematizada por Magda Tagliaferro
e ainda, em breve, a publicação de suas palestras proferidas desde os anos 40.
Tais e tantos são os desafios e os resultados de nossos esforços nesta
empreitada, que não cessam de nos motivar a ir mais longe, buscando
sensibilizar nossos patrocinadores e colaboradores que confiam e acreditam na
educação pela música. Ao terminar, gostaria de lembrar as palavras de Magda
Tagliaferro que constituem o suporte a guiar nossa ação.
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DISCURSO PROFERIDO POR
MAGDA TAGLIAFERRO
POR OCASIÃO DA CRIAÇÃO DA
FUNDAÇÃO MAGDA TAGLIAFERRO
La mission musicale à laquelle j’ai consacré ma vie est depuis un certain temps
destinée à léguer par mes enseignements aux jeunes le fruit de mon labeur et
de ma longue expérience dans la carrière de virtuose.
Toutefois je considerais cette mission comme incomplète si je ne faisais naître
cette Fondation qui habite en mon esprit depuis longtemps et que je considère
l’aboutissement de mes principes de solidarieté humaine.
Devant la crise très grave que la musique traverse dans le monde et
particulièrement en France, je ne me reconnais pas le droit de ne pas songer
aux talents qui désormais et encore plus que par le passé, n’auront pas d’issue,
aussi bien dans leur formation que dans leur éclosion et que dans leur
lancement.
On ne saurait imaginer le nombre de talents très prometteurs qui ne
s’accomplissent pas du fait d’un manque de moyens vitaux.
Ceux qui, une fois parvenus, à suite d’années d’effort, de travail e de sacrifice, à
mettre leur talent au point pour se présenter en public puis finalement gagner
leur vie, n’ont pas les moyens financiers pour le faire ou les relations qui
consentent à les aider.
En un mot celà se résume à des vocations perdues et à des vies marquées.
Je souhaite donc :
1. Révéler de jeunes et réels talents ;
2. Créer des bourses d’étude leur permettant de se réaliser ;
3. Les lancer dans la carrière de virtuose.
Voilà concretisé le triple noble but que je propose à ceux qui, comme moi,
estiment que, si les jeunes sont le monde de démain, la musique, elle, est un
lien éternel entre les peuples, puisque son langage est international et par làmême, le plus sûr et le plus direct rapprochement du coeur de l’humanité.
São Paulo, 1969
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DISCURSO PROFERIDO POR
MAGDA TAGLIAFERRO
POR OCASIÃO DA CRIAÇÃO DA
FUNDAÇÃO MAGDA TAGLIAFERRO
A minha missão, à qual consagrei minha vida, é, desde um certo tempo,
destinada a legar aos jovens, através de meus ensinamentos, o fruto da minha
longa experiência na minha carreira de virtuose.
Entretanto, consideraria esta missão incompleta se eu não criasse esta
Fundação que habita o meu espírito desde muito tempo e que considero o
coroamento de meus princípios de solidariedade humana.
Diante da crise tão grave que atravessa a música no mundo e particularmente
na França, não me dou o direito de não sonhar junto a esses talentos, que
doravante, e sobretudo pelo seu passado, não terão sucesso, tanto na sua
formação quanto na sua profissionalização e no seu lançamento junto ao
mercado de trabalho.
Não se poderia imaginar o grande número de talentos promissores que não
completam a sua formação pela falta de meios vitais.
Após longos anos de esforços, de trabalho e de sacrifício para desenvolver seu
potencial e, finalmente, ganhar sua subsistência como músicos, esses talentos
não possuem os recursos financeiros necessários e nem o apoio de pessoas
que poderiam ajudá-los a se tornarem profissionais.
Numa palavra, isso se resume a vocações perdidas e a vidas ceifadas.
Espero portanto:
1º
2º
3º
revelar jovens e verdadeiros talentos,
criar bolsas de estudo permitindo-lhes seu aprimoramento,
lançá-los na carreira de virtuose.
Eis aí, concretizada, a tríplice e nobre finalidade que eu proponho aos que,
como eu, acreditam que, se os jovens são o mundo de amanhã, a música, ela
própria, é um elo eterno entre os povos, já que sua linguagem é internacional e
por isso a mais segura e a mais direta aproximação do coração da humanidade.
São Paulo, 1969
16
1
Discursos
17
18
ENCERRAMENTO DO CURSO DE 1952
Não vou fazer um discurso !
Desejo apenas anunciar que após a última obra a quatro mãos inscrita no fim
do programa desta audição, haverá um número extra!
Acontece que eu também resolvi, em última hora, me inscrever para tocar na
audição de hoje, a fim de deixar às minhas “filhas e filhos” do Curso Infantil uma
pequena lembrança musical antes da minha partida para a Europa, participando
juntamente com vocês desta esplêndida demonstração do trabalho realizado
este ano pelos professores assistentes da nossa Escola.
Não me sendo possível tocar com cada um de vocês, escolhi a mais antiga das
alunas do Curso Infantil, que, aliás, passa no ano que vem para o Curso Juvenil
e que portanto se apresenta pela última vez nesta audição, a fim de
executarmos, juntas, duas composições de Gabriel Fauré para quatro mãos: a
“Berceuse” e “Mi-a-ou”, de “Dolly”.
Encerraremos pois este programa com essas duas obras, na execução de Lêda
Maria Maranhão e Magdalena Tagliaferro.
Dezembro de 1952
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ENCERRAMENTO DO CURSO DE 1946
Minhas Senhoras, meus Senhores,
Meus Caros Alunos,
Devemos ao imortal escritor francês, Anatole France, uma das observações
mais concisas e penetrantes sobre o objetivo do ensino.
“Toda a arte de ensinar”, dizia o autor do Le Lys Rouge, “reside apenas na
faculdade de despertar a curiosidade natural dos jovens espíritos, a fim de leválos a encontrar, mais tarde, o meio de satisfazer essa curiosidade”.
No plano do ensino musical, coincide perfeitamente essa definição com a
finalidade deste Curso de Alta Interpretação, o qual, durante os seis anos da
sua existência, tem visado a proporcionar a dezenas de jovens e talentosos
pianistas os recursos necessários para satisfazerem a sua curiosidade
interpretativa e captar o clima específico a cada obra do repertório pianístico.
As lisonjeiras palavras que acaba de proferir o Sr. José Magalhães Graça,
porta-voz oficial dos pianistas participantes e dos ouvintes deste Curso, me
levam a acreditar que não estamos longe de ter alcançado esse elevado
objetivo. Aliás, torna-se patente o caminho percorrido, tanto pela importância
das obras escolhidas, como pela qualidade e o aprimoramento das execuções
realizadas neste palco, e não posso deixar de felicitar calorosamente os
pianistas que se fizeram ouvir este ano, e que têm revelado, cada um na sua
esfera, mais um grande passo para frente, na arte de reproduzir a comovente
mensagem deixada pelos grandes Mestres da Música, e também de transmiti-la
ao ouvinte na sua mais genuína expressão.
No que diz respeito à repercussão deste ensino no meio do público desta
Capital, que continua demonstrando com sua assídua presença o seu interesse
pela valiosa iniciativa do Sr. Ministro da Educação, basta se referir ao relatório
que vou ter a honra de entregar ao Ministro, sobre o Curso de Alta Interpretação
Musical de 1946, e que contém, além do resumo das nossas atividades
artísticas, uma relação pormenorizada dos ouvintes inscritos, cujo número
atingiu, este ano, o total de 1293.
Provas tão eloqüentes tornam supérfluo qualquer outro comentário. Desejo
apenas renovar aqui os meus sinceros agradecimentos ao Sr. Ernesto de
Souza Campos, Ministro da Educação, pela confiança que se dignou depositar
em mim, pela atenção dispensada desde o início deste Curso e também por
outro fator, de valor inestimável para nós todos, a presença do Sr. Ministro a
algumas destas aulas, que tanto nos sensibilizou e nos honrou.
Rio de Janeiro, 1946
20
REUNIÃO COM SÁ PEREIRA
Meus Caros Amigos,
Conheceis a anedota que contam a respeito de Mark Twain e um dos seus
amigos, também escritor e humorista, que deviam ambos falar na ocasião de
um banquete em Nova York. Mark Twain falou durante 20 minutos e seu
discurso foi recebido com caloroso entusiasmo. Quando chegou a voz do seu
amigo, este se levantou e disse apenas: “Ladies and Gentlemen, antes de
sentarmos nesta mesa, resolvemos, Mark Twain e eu, trocar entre nós os
discursos que tínhamos preparado. O Sr. Twain acaba de pronunciar o meu, e
fico-lhes sinceramente grato pela acolhida que lhe destes. Lamento, porém, ter
extraviado o discurso dele e não poder me lembrar, de maneira alguma, do que
ele tinha a dizer”.
A não ser a verve, a eloquência, e o espírito marktwainiano do meu ilustre
amigo, o professor Sá Pereira, o caso, hoje é bastante diferente.
Em primeiro lugar, tinha ficado entendido que não haveria discurso, e foi
somente hoje à tarde, no momento de sair de casa, que soube dessa “traição”
de última hora.
Não posso alegar, por outro lado, que o professor Sá Pereira tenha permutado
seu discurso com o meu, pela simples razão que ele introduziu,
propositalmente, entre outras coisas que eu poderia ter dito, palavras de elogio
sobre o meu modesto trabalho que eu seria, naturalmente, incapaz de
pronunciar.
Enfim, cada vez que se manifesta em mim a veleidade de falar em público,
surge na minha memória a história que Joseph Chamberlain gostava de contar
e que ele garantia ser autêntica.
O Primeiro Ministro Britânico (não se trata de inventor do guarda-chuva mas
bem do seu antecessor) presidia, numa cidade do norte da Inglaterra, festiva
cerimônia de inauguração, iniciada com um grande almoço oficial. O prefeito da
cidade, na hora em que iam servir o café, se aproximou do convidado de honra
e lhe disse discretamente: Senhor Chamberlain, será que deixamos toda essa
gente se divertir mais um pouquinho ou acha Vossa Excelência melhor fazer o
seu discurso agora?
Por todos esse motivos, e já que não posso encontrar palavras que traduzam,
como eu queria, limitar-me-ei em dizer-vos meu profundo reconhecimento por
esta hora de afeto mútuo e por esta inesquecível manifestação de vossos
sentimentos para comigo.
Agradeço do fundo do coração ao meu grande amigo Sá Pereira e os que
tiveram a idéia desta carinhosa reunião e souberam, por meio de tão feliz
realização, me proporcionar a grande alegria de encontrar aqui assistência tão
21
representativa da nossa elite artística e social, tantos verdadeiros e queridos
amigos.
Agradeço a todos vós este ensejo de estreitar e consolidar ainda os laços de
recíproca compreensão e confiança que nos unem, e de afirmar com tanta
eloqüência nossa fé na elevação e difusão da nossa cultura, no futuro dos
nossos jovens talentos musicais, tão brilhantemente representados aqui e
nossa inabalável confiança no glorioso destino artístico da nossa terra.
A todos vós, por tudo quanto fazeis e ainda fizerdes, a fim de assegurar o êxito
dessa grande obra cultural no desenvolvimento da qual será sempre para mim
motivo de imenso orgulho ter modestamente contribuído, um grande, muito
grande obrigado!
Rio de Janeiro, encerramento do curso de 1946
22
HOMENAGEM À MEMÓRIA DE JACQUES THIBAUD
Magdalena Tagliaferro no programa radiofônico França Eterna,
comemoração ao segundo aniversário da morte do ilustre violinista.
em
Por iniciativa da grande pianista Magdalena Tagliaferro, representante na
América do Sul do Comitê Jacques Thibaud – constituído na França após o
trágico desaparecimento do célebre violinista francês – será promovida na
próxima quarta-feira, às 20 horas no programa da ............ (França Eterna), uma
especial homenagem em comemoração do segundo aniversário da morte desse
inesquecível virtuose.
Esse programa constará de uma alocução por Magdalena Tagliaferro e outra,
especialmente gravada em Paris para este fim, pelo eminente Ministro Marcel
Edmond Naegelen, presidente do mencionado Comitê Jacques Thibaud.
Encerrar-se-á essa homenagem com a execução ao piano de duas obras do
músico francês interpretadas por Magdalena Tagliaferro que comparecerá
pessoalmente no estúdio da PR.......nessa ocasião.
Decorrem, amanhã, exatamente dois anos do
musical abalado pelo trágico desaparecimento
Jacques Thibaud, vitimado pela explosão, num
avião “Constellation” que o conduziria ao Japão
levar a supremacia e o requinte da sua arte.
dia em que ficou o mundo
do célebre violinista francês
morro do Sul da França, do
onde, mais uma vez, ele iria
Associando-se às comovidas homenagens, prestadas no mundo inteiro à
memória daquele incomparável mestre, e enquadrando-se perfeitamente neste
vibrante programa de “França Eterna”, unem-se hoje, através deste microfone,
duas vozes em uníssono: a voz da França, na palavra do Exmo. Sr. Ministro
Marcel-Edmond Naegelen, deputado das “Basses Alpes”, ex-Ministro da
Educação Nacional e ex-Governador da Argélia, que ouvireis numa gravação
especialmente dedicada a esta comemoração, e, em vosso nome, uma voz do
Brasil, isto é, a voz de um país que, desde sua história mais remota, acha-se
ligado à França, à cultura e ao espírito francês e, conseqüentemente, aos
grandes vultos aos quais se deve esse espírito, essa cultura.
O Ministro Naegelen desempenha, juntamente com o Sr. François Mauriac, da
Academia Francesa, o cargo de Presidente de Honra da Sociedade “Les amis
de Jacques Thibaud”, fundada sob o alto patrocínio do Exmo. Sr. Presidente da
República Francesa e do Sr. Presidente Herriot, Presidente de Honra da
Assembléia Nacional, com o intuito de perpetuar a gloriosa memória do maior
expoente da arte violinística francesa. Fazem parte do Comitê de Honra dessa
Sociedade, além do atual titular da pasta da Educação Nacional e de outros
personagens oficiais, o Diretor do Conservatório de Música de Paris: Sr. Marcel
Dupré, o Diretor da Ópera e dos Teatros Nacionais: Sr. Jacques Ibert, os
Maestros Paul Paray e Charles Münch, o Sr. Fernand Gregh, da Academia
Francesa, o grande violinista Fritz Kreisler, a baronesa Edouard de Rothschild e
minha modesta pessoa. Os trabalhos dessa Sociedade são dirigidos por um
Comitê Executivo de cinco membros, encabeçado pelo eminente mestre Jules
23
Boucherit, e pelo Sr. Philippe Thibaud, filho do grande Jacques Thibaud, sendo
secretários o Sr. Marcel Diamant-Berger e a violinista Denise Soriano, e sendo
tesoureiro o Sr. du Villars.
Ouviremos agora alguns trechos da alocução do Ministro Marcel Naegelen,
Presidente da Sociedade “Os Amigos de Jacques Thibaud”.
...................................................................................................
Na prestigiosa linhagem de vultos imortais que forjam a história do nosso
universo, ocupa certamente lugar privilegiado o inesquecível virtuose, eleito dos
deuses, em que se fundiu o gênio interpretativo latino na sua mais pura
essência e perfeição, em que a emoção artística nunca se deixou superar pela
simples virtuosidade e cuja suprema sensibilidade e sutileza emprestavam à
sonoridade do seu instrumento e à magia das suas atuações, aquele “Charme”
inconfundível que sempre foi o predicado exclusivo de Jacques Thibaud.
Chamavam-no os seus amigos e discípulos pelo apelido de “L’Enchanteur” e
não era sem razão. Raramente tem chegado outro artista a irradiar, tão
generosamente quanto o fez Jacques Thibaud, as vibrações da sua prestigiosa
personalidade. Poucos são também os virtuoses que, ao alcançar a
celebridade, souberam, como ele, conservar a simplicidade, a bondade, a
juventude do coração e aquele instinto que o levava, sempre, a embelezar tudo
o que a vida tinha de material.
Foi com ele que realizei a minha primeira tournée na Europa, pouco tempo
depois de me ter formado no Conservatório de Paris. Essa excursão artística,
de uma menina de 15 anos, no início da sua carreira, e de um violinista já
famoso, que abrangeu, entre outras, a capital e as grandes cidades da Rússia,
com programas de sonatas de Mozart, Beethoven e César Franck, estabeleceu
entre nós laços indestrutíveis de uma amizade sempre crescente, que foi se
enraizando cada vez mais e culminou com nossa estreita colaboração na banca
do Grande Júri do Concurso Internacional que ele fundou em 1943, juntamente
com Marguerite Long, Júri do qual ele, Thibaud, ainda participara ao meu lado,
seis semanas antes daquela pavorosa catástrofe do “Constellation”.
O golf e o tênis eram os esportes prediletos de Thibaud. Nunca esquecerei as
nossas partidas em Paris, no Clube de Tênis de Auteil, na época em que o Trio
Cortot-Casals-Thibaud se tornara o mais célebre do mundo. Thibaud costumava
vir me buscar para me levar ao clube, onde Cortot sempre chegava primeiro,
pelo motivo de que Thibaud costumava se demorar comprando doces na
Confeitaria Coquelin. Casals também jogava ou assistia às partidas em que
numerosos músicos compareciam para enfrentar Thibaud que sempre se
distinguia, assinalando-se o seu jogo pela mesma elegância que ostentava na
rua, no palco e nas suas inesquecíveis interpretações.
Jacques Thibaud era, de
máxima do virtuose ao
simultaneamente com a
assombrosa sucessão de
fato, o “Charmeur” por
poder de aristocrática
gloriosa consagração
declarações de amor e
24
excelência, unindo a arte
sedução que lhe valeu,
do seu talento, a mais
irrestrita admiração jamais
dirigida a um artista – que não fosse do cinema – por seus fãs de todas as
partes do mundo.
Apesar de vivermos uma época bastante caótica, em que as emoções
violentas, pela freqüência dos acontecimentos, muitas vezes perdem o seu
caráter impressionante, o desaparecimento de Jacques Thibaud veio,
entretanto, chocar brutalmente as fibras mais profundas da nossa sensibilidade.
Ficou enlutado todo mundo da música, o público de todos os continentes, e
mais dolorosamente atingidos foram, além dos seus amigos mais íntimos, os
jovens violinistas de tantos países que perderam um amparo precioso, um
braço possante e pronto a auxiliá-los.
Eis porque, nesta data, cabe aos músicos do Brasil e das Américas juntar o seu
pensamento comovido ao dos músicos da França e outros países do velho
continente, para recordar a memória do mestre deslumbrante e genial, do
amigo insubstituível, do artista incomparável, reafirmando em nosso coração e
em nosso espírito, o culto e a admiração pelo saudoso Jacques Thibaud,
“L’Enchanteur”.
Encerrando as palavras que, em nome da Sociedade “Os Amigos de Jacques
Thibaud”, acabo de dirigir aos ouvintes de França Eterna, interpretarei agora
uma das obras pianísticas que o meu ilustre amigo Jacques gostava mais ouvir:
é o comovedor prelúdio de Debussy intitulado “La Cathédrale Engloutie”.
................................................................................................................................
Encerraremos agora esta comemoração do segundo aniversário da morte do
grande violinista francês, com a audição de uma das obras-primas do seu
repertório, a célebre “Havanaise” op. 83, de Saint-Saëns, que ouviremos em
gravação original, e acompanhamento de Tasso Yanopoulos ao piano, na
prodigiosa interpretação do próprio Jacques Thibaud.
25
CURSO DE ALTA INTERPRETAÇÃO
E VIRTUOSIDADE DE 1941
INTRODUÇÃO
Primeira aula, segunda-feira 14 de abril de 1941
Senhoras, Senhores,
Caros Alunos,
No dia da Abertura dos cursos de Sociologia, na Universidade de Cincinnati,
nos Estados Unidos, o professor Eubank iniciou este ano a sua aula,
entregando a cada um dos estudantes presentes um “centavo” com a efígie do
antigo Presidente Lincoln, após o que escreveu no quadro-negro a seguinte
data “Ano 3.000 da Era Cristã” e disse:
“Suponhamos que o Congresso Internacional de Etnologia, seja convocado no
ano 3.000 da Era Cristã, para uma reunião especial a fim de discutir uma
descoberta importante, pertinente à civilização de 1941, da qual todos os
vestígios estivessem perdidos até então. A 300 metros de profundidade, declara
o Presidente do Congresso, achamos alguns pequenos discos de cobre, dos
quais cada um dos membros aqui reunidos possui um exemplar. Vocês terão de
se servir unicamente dos seus conhecimentos das línguas antigas, de se por no
ambiente do século ao qual me refiro, e dizer quais as deduções sugeridas ao
seu espírito pelo exame dessas peças de cobre, relativamente à civilização
daquela época.”
O professor deu aos alunos cinco minutos, para examinar o centavo e resumir
as suas observações por escrito.
Eis aqui os fatos que o exame meticuloso e o espírito agudo dos estudantes
permitiu descobrir:
1º Este disco de cobre é, sem dúvida, uma moeda; por conseguinte, a
civilização de 1941 possuía um sistema e uma organização de negócios, de
finanças e de câmbio;
2º
O cobre sendo utilizado, a indústria mineira era conhecida;
3º A metalurgia era também conhecida, pois que o disco de cobre é cunhado
e afinado;
4º
Uma linguagem escrita existia;
5º A prática da agricultura tomava um lugar importante na vida dessa época,
já que as espigas de trigo estão reproduzidas nesta moeda;
6º A cultura do trigo sendo praticada, as condições meteorológicas deviam
ser favoráveis, o clima sendo portanto mais ou menos moderado;
26
7º As artes e a estética faziam parte da educação e da cultura, pois que a
moeda é desenhada com cuidado da forma e da beleza;
8º Aquela civilização tinha conhecimento das civilizações anteriores, esse fato
sendo demonstrado pela data inscrita na moeda e pela frase em língua latina; a
data é também a prova da existência do calendário;
9º As palavras United States (Estados Unidos) indicam que o país possuía
uma forma de governo; a palavra Liberty (Liberdade) prova que o governo era
uma forma democrática, isto é, dirigido pelo povo;
10º Uma forma evoluída de vestuário era conhecida;
11º A religião dessa época era baseada sobre o monoteísmo quer dizer, sobre
a existência de um único Deus.
Essa história, absolutamente autêntica, e aliás bem típica da psicologia norteamericana, não tem só por fim revelar-vos uma fórmula de ensino original e
bastante feliz, na união do estudo e do recreio.
Se os estudantes de Universidade de Cincinnati puderam, em cinco minutos, e
à custa, apenas, de um pequeno esforço de inteligência, descobrir tantas coisas
importantes numa minúscula peça de cobre, pode parecer estranho constatar
que tantos executantes, apesar do estudo prolongado de uma obra musical,
não consigam, na maioria dos casos, descobrir, nela, toda a beleza e todos os
acentos sensíveis e profundos, que o autor semeou na sua composição.
É verdade que a escritura musical não divulga mais do que a parte estrutural de
uma obra; mas, a moeda tampouco não revela, à primeira vista, todos os fatos
que acabo de vos enumerar, e que surgiram por força do raciocínio, da intuição,
do espírito dos estudantes da classe de sociologia, depois de terem
“interpretado” o sentido das inscrições e dos desenhos reunidos no cunho do
centavo.
No domínio da música, o espírito, a forma, o pensamento de uma obra, e tudo
o que o autor pôs nela de suas paixões, de seus sofrimentos, de seus
entusiasmos, de suas decepções, da vida enfim, tudo isso nem se define nem
se grava com caracteres musicais, esse últimos, às vezes, verdadeiros
hieróglifos, suficientes apenas para explicarmos o lado técnico da execução.
O magnífico resultado da fusão, da oposição e do choque dos sons, é
expressão do belo, do intenso dinamismo, da dor ou da alegria, só podem
chegar a uma forma tangível e comovedora na alma do ouvinte, quando esse
conjunto consegue despertar, no cérebro e no coração do intérprete, os ecos
verdadeiros das intensas vibrações do autor.
Com efeito, a emoção artística que o intérprete procura comunicar ao público,
na execução de uma obra musical, não pode ser uma mera aproximação, esse
labirinto mágico e perturbador que se chama “‘interpretação”, essa porta aberta
à sensibilidade, à intuição, às divagações do espírito e do coração, tem que
obedecer, apesar de tudo, a uma regra imutável: a realização integral do
pensamento do seu criador.
27
O segredo da boa interpretação musical não reside somente à mestria do
executante no domínio técnico, mas sobretudo nessa faculdade, nesse poder
que ele deve possuir, de dar vida à peça executada. As grandes obras de arte,
sob o impulso do espírito e da alma do intérprete que nelas se incorpora,
renascem assim, cada vez com mais potência e esplendor, e os que
conseguem dar uma vida nova a uma obra musical são verdadeiramente os
únicos que realizam a sua missão.
Sim, meus caros amigos, a carreira musical é uma missão, e o grande erro de
tantos intérpretes é justamente não se terem suficientemente compenetrado
desse preceito fundamental. No decorrer destas aulas, terei várias
oportunidades de expor-vos algumas idéias minhas sobre os múltiplos aspectos
dessa missão; porém, posso confessar-vos desde já que a finalidade deste
curso não é somente procurar abrir novos horizontes musicais aos jovens
artistas da nossa terra e revelar-lhes as qualidades de espírito, de
compreensão, de sensibilidade e todo o áspero trabalho que exige a arte da
interpretação. Minha maior ambição, minha profunda aspiração, ao ministrar
estas aulas, é conseguir ao mesmo tempo encaminhar os nossos jovens
executantes para a concepção verdadeira do que deve ser um ideal de artista.
Atingir essa sublimidade não é coisa fácil, mas, para poder vencer os
obstáculos, as dificuldades materiais, as ciladas que invariavelmente se
apresentam nesse caminho, é imprescindível convencer-se, desde o início, que
a carreira musical, seja a de virtuose ou de professor, é realmente um
“apostolado”. E, esse apostolado, essa missão elevada, só podem ser
cumpridos se essa carreira permanece colocada bem alto no domínio do
espírito, e se essa profissão se desenvolve constantemente num ambiente de
perfeita dignidade e de integridade absoluta, sem as quais não há grandes
artistas, mas somente comedores de notas ou cabotinos.
Convencido dos deveres e das responsabilidades inerentes à sua carreira, o
intérprete-missionário não poderá executar uma obra-prima, sem ressentir a
mais íntima emoção, e o respeito mais admirativo, diante do conjunto de
fatores, tão diversos, e um tanto milagrosos por eles mesmos, que se acham
concretizados nessa obra. Não vos parece, com efeito, comovente, o fato de
um indivíduo, na aparência igual a qualquer outro, possuir no seu cérebro,
modelado pela mão de Deus, o germe do gênio que originará essa faísca da
qual surge a obra-prima ?
Refletindo sobre tudo isso, o artista-intérprete chegará a apreciar com maior
serenidade e julgar, com mais reverência, a beleza e a grandeza de tudo o que
o artista-criador pôs de si mesmo, na sua composição.
O fato, infelizmente tão freqüente, de ver intérpretes mutilarem uma obra, seja
na sua forma, seja na sua expressão, revela-se, então, como um verdadeiro
crime, crime que poderia ser evitado se o artista fosse sempre digno desse
nome e realmente consciente da sua responsabilidade e da sua missão. Essa
responsabilidade é evidente e indiscutível, e o intérprete que tem a audácia de
executar uma obra, antes de tê-la estudada a fundo, e antes de ter-se
impregnado das verdadeiras intenções do seu autor, assim como o que usurpa
o direito de deformá-la ou de amputá-la cometem um ato de vandalismo
imperdoável. Nisto, eles ficam sendo, o que poderíamos chamar, os gangsters
da música, e já que o Código Penal ainda não considera os seus delitos como
sendo puníveis pelos tribunais, é ao público, aos críticos musicais, ao tribunal
28
dos desejosos de preservar intacto, o maravilhoso patrimônio artístico, e a
herança dos imortais compositores, é a nós todos, que incumbe o dever de
infligir a esses criminosos, sob a forma do desprezo o mais absoluto, a pena
que eles merecem.
..................................................
Tencionando dedicar, nas aulas da próxima série, duas preleções ao estudo
pormenorizado da “Interpretação Musical” em geral, e à realização prática de
árduo processo da “Interpretação Pianística”, limitarei hoje às observações de
conjunto que acabo de resumir esse meu primeiro esboço de tão importante
assunto.
Porém, a fim de pôr-vos desde já em contato com certos aspectos dos inúmeros
problemas que teremos de resolver, no decorrer destas aulas, dar-vos-ei agora
algumas ilustrações ao piano, escolhidas propositalmente entre obras
conhecidíssimas, as quais focalizarão no vosso espírito o papel primordial que a
interpretação deve desempenhar para nos permitir entrever a infinita beleza da
verdadeira expressão musical.
A identificação do executante com o pensamento do autor é imprescindível para
determinar o gênero da interpretação que exige uma obra. Esse pensamento se
reflete, na maioria dos casos, nos títulos dados pelo autor, ou, quando esses
não são bastante sugestivos, nas indicações de andamento, e outras,
geralmente suficientes para revelar o caráter de uma composição, e a palavra
“Interpretação” resume claramente o conjunto de fatores que o executante deve
exteriorizar para conseguir interpretar fielmente todas as intenções do
compositor.
Quando este intitula uma peça: “Noturno”, quando o andamento indicado é
vagaroso, quando tudo mostra que se trata de uma obra poética e expressiva,
mal se compreende ouvir, por exemplo, o 4º Noturno de Chopin, tocado em
forma de valsa, como me aconteceu constatar recentemente – não aqui em São
Paulo, naturalmente, mas digamos, – numa ilha longínqua. Conheceis esse
noturno, dos mais encantadores. Pois bem, eis aqui, quase sem exagero, o que
ouvi:
(imitação)
Pessoalmente, eu acho melhor respeitar o desejo de Chopin, e conservar o
caráter de Noturno:
(Execução)
O caso dessa aluna, que não conhecia a diferença entre uma valsa e um
noturno, me lembra o exame de admissão ao Conservatório de Paris, ao qual
assisti há alguns anos e no decorrer do qual o diretor perguntou a um
candidato:
— Quantas sinfonias escreveu Beethoven?
— Três, responde o aspirante, com absoluta convicção.
— E quais são as três, por favor?
— A Pastoral, a em Dó Menor e a Nona!
Voltando às minhas ilustrações interpretativas, procurarei agora reproduzir uma
inesquecível execução – que poderia até qualificar de capital – da Polonesa em
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Lá Bemol Maior, que ouvi – na mesma ilha – tocada como uma “Romança sem
Palavras”, é mais ou menos assim:
(imitação)
No entanto, sabeis que essa Polonesa, chamada de “Heróica”, deve ser tocada
com majestoso entusiasmo, e evocar as maiores proezas guerreiras, isto é,
(Execução)
Conhecemos, todos, o amador de música, que acredita que tocar com
sentimento consiste em derreter-se sobre cada nota, e o qual, no caso de
“Sonho de Amor” de Liszt, nos oferece, por exemplo, a seguinte interpretação:
(Imitação)
Em vez de que é tão mais simples tocar essa obra, realmente “Expressivo”
executando-a apenas conforme está escrita, com simplicidade:
(Execução)
Tocar apenas como está escrito. É curioso que seja este o ponto mais fraco de
tantas interpretações. E os executantes que omitem ou acrescentam tão
inesperadamente notas, pausas, inflexões ou pedais, nem sempre podem
invocar a anedótica desculpa do trombone da orquestra de Richter.
Hans Richter, o famoso regente e intérprete das obras de Wagner, ensaiava
uma ópera com a orquestra de Viena quando, durante uma pausa claramente
indicada na partitura, o trombone toca, de repente, uma nota. Richter,
surpreendido, pergunta ao instrumentista a razão dessa investida imprevista!
– Mas, maestro, esta nota existe sobre minha partitura, responde o trombone.
– Deixe ver esta música, grita Richter, pouco convencido.
O trombone apanha sua partitura, mas ao mesmo instante descobre com
espanto que a nota tinha voado fora.
– Era apenas uma mosca, maestro, disse ele meio aterrorizado, e acrescentou
com perfeita candura: “e no entanto, eu a executei”.
Existe, também, o intérprete que considera o piano como se fosse um esporte e
que escolhe uma execução musical para se classificar como campeão de
corrida. É assim que ouvimos com freqüência o final da “Sonata Apassionata”
de Beethoven, tocada do modo seguinte:
(Imitação)
Como o podemos constatar, trata-se neste caso para o pianista, de ganhar a
corrida custe o que custar, e de engolir para esse fim, todos os obstáculos que
se apresentam sob a forma de respirações, pausas e tantos outros sinais, que
lhe parecem supérfluos. No entanto, o caráter deste final acha-se nitidamente
indicado pelo título da Sonata, Apassionata, pelos silêncios, pelo ritmo e a
expressão da mão esquerda e por tantos outros pormenores, que permitem dar
a esta execução seu verdadeiro sentido:
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(Execução)
Acho bom pôr aqui um ponto final, pelo menos para hoje, a estes exemplos que
poderiam vos levar a pensar que a música está em perigo de vida !
Felizmente para nós todos, a música é e continuará sendo imortal, e continuará
trazendo aos que dela sabem se aproximar esse sopro de verdade, essa
claridade radiante que nos eleva acima da humanidade.
Ministério da Educação
Rio de Janeiro, abril de 1941
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ENCERRAMENTO DO CURSO DE INTERPRETAÇÃO
E ESTÉTICA MUSICAL DE 1942
Senhoras, Senhores,
Meus Caros Alunos,
Numa revista de arte que recebi há alguns dias, de Nova York, um musicólogo
norte-americano, fazendo sinopse de meticulosas estatísticas e de anos de
estudo pormenorizado, chega à conclusão que, nos Estados Unidos, dentre a
minoria da população que ouve música, em geral, seja através do rádio, nos
cinemas, nas salas de concerto, em gravações ou sob qualquer outra forma,
setenta por cento prestam atenção exclusiva à música e às canções populares,
enquanto que dez por cento, apenas, manifestam certo interesse no que
chamamos de música pura; e esse, impiedoso estatístico acrescenta que,
desse minúsculo conjunto, dois por cento, apenas, tomam parte ativa no
movimento musical, tocando, cantando, estudando ou ensinando música fina.
Se nos Estados Unidos, onde o ritmo do progresso, em todos os domínios, é
considerado, sobretudo neste último século da sua civilização, como um dos
mais rápidos e poderosos do mundo, se, nesse país onde os meios de
vulgarização cultural são quase ilimitados, e atingem todas as classes e todos
os públicos, o número de afeiçoados da verdadeira música não vai além de tão
ínfima proporção, a capital paulista pode, a justo título, se vangloriar de ter
alcançado percentagem muito maior e de possuir, talvez, um dos públicos mais
compenetrados de beleza artística e de gosto musical de todo este continente.
E se me fosse preciso apagar qualquer dúvida que pudesse expressar a esse
respeito o erudito musicólogo que acabo de citar, bastaria convidá-lo a assistir,
neste teatro, a uma aula deste Curso de Interpretação e Estética Musical, o qual
forneceu, durante quatro meses consecutivos, a prova mais flagrante e tangível
do magnífico desenvolvimento desta culta capital e do seu constante desejo de
aprimoramento artístico.
Sim, meus caros amigos, a calorosa acolhida que fizestes a esta nova fórmula
de divulgação musical que estou procurando propalar através do Brasil, o valor
indiscutível das execuções ouvidas neste palco e o crescente interesse e apoio
que demonstrastes pela vossa assídua e numerosa presença, desde o início
destas aulas, constituem a prova irrefutável de que a compreensão da música
pura não é reservada, em São Paulo, apenas a uma pequena minoria de
privilegiados e que, ao contrário do que tanta gente acredita, não é preciso ser
escolhido pela Providência para entender, para sentir essa música e para tirar
dela a máxima alegria e a mais vibrante emoção. E se a esplêndida
repercussão destas aulas nos meios musicais desta capital é para mim motivo
da mais legítima e profunda satisfação, essa projeção traz também a
confirmação deste curso corresponder a uma imperiosa necessidade, e não
posso deixar de expressar aqui ao Excelentíssimo Senhor Fernando Costa,
dignamente representado aqui pela sua Excelentíssima Senhora, meu sincero
apreço pelo esplêndido impulso que sua feliz iniciativa permitiu realizar nesse
domínio inexplorado na nossa terra, até a efetuação dos meus cursos do Rio e
de São Paulo.
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A imprensa vos anunciou que esta aula encerra o Curso de Interpretação e
Estética Musical, iniciado no mês de maio, que foi ministrado em vinte aulas,
todas públicas etc. etc., e vou talvez causar certa decepção aos dentre vós que
esperam ouvir as palavras que costumam proferir na ocasião de todo
encerramento. É que, para mim, esta vigésima aula do nosso curso, longe de
pôr termo a qualquer ciclo arbitrário ou efêmero, representa, bem pelo contrário,
uma inauguração: a abertura prática e definitiva de um novo caminho, a pedra
angular de um edifício talvez muito mais alto que todos os arranha-céus que
embelezam esta cidade, e cujo objetivo é aproximarmo-nos, todos, músicos ou
ouvintes, da divina verdade que a música irradia quando conseguimos penetrar
os seus segredos e imbuir-nos da sua incomparável e comovedora beleza.
TO BE OR NOT TO BE! Ser ou não ser!, dizia Hamlet! Se Shakespeare me
permitisse interpretar também suas palavras e transpô-las no plano musical, eu
vos diria: Ser um grande artista, ou apenas um pianista! É nisso que reside o
problema!
Não vejo consagração mais evidente desse preceito fundamental do que todas
as horas que tive a alegria de passar convosco neste templo de arte e de
estudo, culminando na solenidade que vos reúne hoje. Existe, porém, mais
ampla tarefa para nós, não somente na exaltação da fé de todos os que se
dedicam à carreira musical, mas, também, na preservação do patrimônio que
acabamos de adquirir aqui. E para conseguir esse fim, incumbe a nós todos o
dever de impedir que se propalem falsos sacerdócios e de lutar para a
formação de apóstolos, convencidos da missão confiada ao artista verdadeiro, e
dignos, por sua vez, de levarem a boa semente.
Não esqueçamos as inúmeras vocações condenadas desde o início ao fracasso
mais absoluto, por terem sido mal encaminhadas ou erroneamente estimuladas.
Não esqueçamos os descoroçoamentos que esperam o estudante após anos
de árduo trabalho, por ter ele seguido um caminho errado ou incompatível com
suas atitudes. Não esqueçamos enfim, que para compenetrar-se do encanto e
da verdadeira significação da linguagem imorredoura da harmonia, o futuro
virtuose, professor ou concertista, precisa antes de tudo criar, desenvolver e
manter para sempre a harmonia, no seu próprio coração, nos seus sentimentos,
nos seus atos!
É a realização desse apostolado que desejaria que vós todos, executantes ou
ouvintes, colaborásseis, e estou convencida que, com vosso apoio, do qual já
me destes tantas espontâneas e convincentes demonstrações, alcançaremos
esse ideal que é minha verdadeira razão de ser, ideal ao qual sempre dediquei
e continuarei a dedicar todos os meus esforços, e que posso resumir com estas
palavras: formar artistas sinceros e imbuídos da missão que incumbe ao
intérprete, fornecer-lhes os meios de vencer os inúmeros escolhos que
encontrarão nessa carreira tão árdua, porém tão cheia de compensações, e
também formar, para os talentos e as vocações excepcionais que enchem o
Brasil e que precisam apenas ser guiadas e estimuladas, um público capaz de
sentir as irradiações da arte verdadeira e de distinguir um pianista talentoso de
um intérprete criador de emoção e de beleza.
Encerrando essas breves reflexões, dir-vos-ei quanto estou satisfeita dos
progressos, da compreensão e dos resultados revelados aqui pelos pianistas
que participaram deste curso, e também toda a minha confiança na seriedade e
na capacidade de trabalho, características do estudante paulista, graças as
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quais, alguns estarão em breve, em condições de cooperar ativamente na
concretização do nosso elevado objetivo.
Como sabeis três dos pianistas participantes serão escolhidos para serem
convidados a tocar, cada um num concerto com orquestra, a convite do
Departamento Municipal de Cultura. Os nomes dos três laureados, que vão
depender da apuração das notas consecutivas à última audição de hoje, serão
divulgados oportunamente na imprensa. Espero também poder anunciar em
breve os nomes dos novos pianistas a serem convidados a tocar no Rio de
Janeiro conforme o programa de intercâmbio musical que iniciou este ano, o
qual já permitiu a três pianistas desta capital atuarem na Escola Nacional de
Música no curso patrocinado pelo Ministério da Educação e a quatro pianistas
do Distrito Federal serem ouvidos neste palco.
São Paulo, 19 de agosto de 1942
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ENCERRAMENTO DE CURSO DE 1944
Senhoras, Senhores,
Meus Caros Alunos,
A fim de não perturbar a atmosfera de festividade e alegria que assinala,
inevitavelmente, o encerramento de cada um destes cursos, limitar-me-ei, pois,
a usar da palavra para agradecer, muito sinceramente, as lindas palavras que o
senhor José Magalhães Graça acaba de pronunciar em nome dos participantes
deste Curso de Alta Interpretação Musical, e dizer-vos do meu profundo
reconhecimento por esta carinhosa manifestação de vossos sentimentos para
comigo, e pelo presente, com certeza, muito lindo.
Não resta dúvida que, cada ano, cada grupo de aulas vem estreitar e consolidar
ainda, os laços de recíproca compreensão e confiança que nos unem, e afirmar,
com crescente eloqüência, a nossa fé na elevação e difusão da verdadeira
cultura musical, e, também, a nossa fé no futuro dos jovens e novos talentos
musicais, que essas aulas permitem revelar e afirmar.
É neste contato espiritual, nas esplêndidas concretizações do vosso estudo e
deste ensino, no alto valor das execuções ouvidas neste palco, na qualidade
cada vez mais elevada, mais apurada, mais genuinamente artística de tais
execuções, que encontro essa profunda satisfação compensadora de todos os
esforços, esse estímulo e apoio moral, indispensáveis à realização do meu
objetivo no campo da cultura musical. Uma das maiores alegrias da minha
carreira é justamente poder devolver à minha terra uma parcela de tudo o que
ela me deu e procurar, com todos os recursos ao meu alcance, guiar nossa
juventude, nosso público, nosso povo, no árduo caminho do aprimoramento
musical, e trazer desse modo minha contribuição ao magnífico destino
reservado às forças espirituais do Brasil.
Conto com vocês, meus caros alunos, para que, durante esse intervalo de
alguns meses, e até o reinício das aulas no ano vindouro, seja reservado todo o
tempo necessário ao estudo assíduo das novas obras que ouviremos e
comentaremos, certa que essas execuções e a escolha que fizerem de obras
cada vez mais importantes e de maior alcance e responsabilidade revelarão,
como foi o caso este ano e nos anos precedentes, novos e sensíveis
progressos, possibilitando desse modo, a uma nova turma de executantes, o
ensejo de se apresentar em breve em concertos e recitais, tanto no Rio, como
em São Paulo e no interior.
Desejando-vos a vós todos, e ao meu caro e fiel público, boas férias e todas as
felicidades no ano vindouro, digo-vos, pois, até muito breve, e mais uma vez um
grande, muito grande, obrigado!
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ÚLTIMA AULA
Na aula de hoje, com a qual encerraremos o curso de 1944, far-se-ão ouvir os
seguintes pianistas participantes: Sr. Homero Magalhães, no Scherzo nº 3 de
Chopin, o Sr. Heitor Alimonda, representando o Curso de Interpretação e
Estética Musical de São Paulo, que interpretará a Grande Sonata em Fá
Sustenido Menor de Schumann. Haverá em seguida um breve intervalo.
Enfim, encerramos a aula e o curso, com a execução do Andante com
Variações a dois pianos de Schumann que será interpretado pela sra. Hermínia
Roubaud Carneiro de Souza e a senhorita Ylara Gomes Grosso.
Rio de Janeiro, 1944
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ABERTURA DO CURSO DE
ALTA INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1948
Minhas Senhoras,
Meus Senhores,
Meus Caros Alunos,
Visitando, há alguns dias, este Auditório onde estão sendo efetuadas obras que
virão ainda embelezar e ampliar este palco, lembrei-me do trocadilho que se
deve ao famoso escritor francês Jean Cocteau, o qual comentando os perigos e
os exageros do desenvolvimento musical contemporâneo escreveu numa
revista de arte:
“Estou cansado de ver em toda parte, cartazes com a advertência: Cuidado
com a pintura! Porque será que nunca se vê, nas paredes e nos parques,
também cartazes com a menção: Cuidado com a música!?”
No entanto, os danos causados pela tinta fresca não resultam em sérias
conseqüências podendo as manchas ser geralmente removidas. O caso é bem
diferente com a Música, cujos estragos podem ser bastante graves e às vezes
irremediáveis, quando uma orientação incerta ou inadequada vem a ser
imprimida no ensino ou na divulgação dessa arte.
Cuidado com a Música!
Jean Cocteau tem absoluta razão em querer ver, pendurados nas ruas e nos
edifícios, cartazes chamando a atenção do público, e mormente da juventude,
sobre essa necessidade primordial de preservar o magnífico patrimônio deixado
por gerações de ilustres compositores e de garantir também o futuro da arte
sonora pondo-a ao abrigo dos perigos que a ameaçam.
O Curso de Alta Interpretação Musical, instituído pelo Ministério da Educação e
Saúde, tem justamente como objetivo orientar, em primeiro lugar, o estudo de
música já possuidor de suficiente técnica e preparo, para o caminho da
interpretação que lhe permitirá encontrar o sentido exato da obra executada e
transmiti-lo ao ouvinte na sua integral beleza.
Outro objetivo dessas aulas é também associar o público a esse trabalho de
restituição do pensamento do compositor, oferendo-lhe assim maiores
possibilidades de apreciar, nas salas de concerto, no rádio ou de qualquer outra
forma, os valores que lhe são apresentados.
Ao iniciar hoje as aulas do curso de 1948, desejo assinalar que se eleva a 35 o
número de pianistas inscritos como participantes, tendo sido necessárias duas
audições preliminares para escolher os que serão ouvidos no decorrer deste
primeiro turno de dez aulas.
Não me foi dado ainda o número de inscrições dos ouvintes deste ano, mas já
sei que passou de 1500 e não duvido que este venha a atingir 2000 antes do
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fim do curso, sendo essa a demonstração mais eloqüente do interesse
despertado por essas aulas, que muito me sensibiliza e pelo qual faço questão
de lhes agradecer nessa aula inaugural, assegurando-lhes que não pouparei os
meus esforços para manter e elevar ainda o nível atingido por esse ensino cuja
repercussão até os mais diversos e longínquos recantos do nosso grande Brasil
e também no estrangeiro vem provar quanto a iniciativa do Ministério da
Educação e Saúde corresponde à verdadeira necessidade.
38
ENCERRAMENTO DO CURSO DE
ALTA INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1948
Exmo. Sr. Ministro,
Minhas Senhoras,
Meus Senhores,
Meus Caros Alunos,
O deslocamento para o Novo Mundo das atividades e dos valores musicais que
foram, durante tantos séculos, o apanágio exclusivo da Europa, constituirá, sem
dúvida, um dos aspectos marcantes da história do movimento musical do século
vinte.
Bastaria, para comprová-lo, o invulgar desenvolvimento já alcançado nesse
setor, nos Estados Unidos onde, além de se encontrarem ali radicados alguns
dos maiores vultos da música contemporânea européia, está se difundindo
agora, num terreno excepcionalmente fértil e acolhedor, a grandiosa herança
musical do velho continente.
Mais de cem orquestras sinfônicas atuam diariamente nos diversos estados da
terra de Tio Sam, com seus programas irradiados através de oitocentas
estações emissoras, e sob a batuta dos mais famosos regentes. Entre os
meses de novembro e março, atinge a quinze milhões o número de famílias que
aguardam, todos os sábados à tarde, a irradiação do espetáculo de Ópera do
Metropolitan de Nova York. Deixando bem longe atrás os “recordes” de
assistência registrados nos matches de baseball, o público freqüentador de
recitais, concertos com orquestra e bailados, alcançou, em 1947, o número de
trinta milhões de pessoas. Enfim, a temporada musical organizada no verão de
ano passado, no pitoresco cenário das colinas do Berckshire, no Estado de
Massachussetts, atraiu maior número de turistas e afeiçoados da música
clássica, do que os célebres festivais de Salsburgo e Bayreuth, na época do
seu mais glorioso esplendor.
Outra cabeça de ponte desse imponente “avanço” musical encontra-se, embora
numa forma menos espetacular e numa fase menos desenvolvida, no nosso
Brasil.
Já tive freqüentes oportunidades de assinalar, falando-vos deste palco, as
múltiplas facetas da notável evolução presenciada nestes últimos anos da
nossa terra, no campo da cultura musical, o número sempre crescente de
manifestações musicais, seja em salas de concertos ou no rádio, a diversidade
de espetáculos, recitais e concertos sinfônicos a cargo de elementos nacionais
ou estrangeiros, o interesse cada vez maior demonstrado pelo nosso povo,
tanto nas capitais como nas cidades do interior dos estados pelas irradiações
de música de classe, a compreensão acertada e profunda que os músicos e
artistas de renome internacional atuando entre nós encontram junto ao nosso
público, e também o ardoroso desejo da nossa juventude de desenvolver, ao
mesmo tempo que o seu gosto inato pela música, os meios necessários para
melhor compreendê-la e penetrar os seus segredos.
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Nesse último plano, convém lembrar que, mesmo nos Estados Unidos, não
existem exemplos de um Curso Público de Piano contar com 2.000 ouvintes
inscritos como é o caso do nosso Curso de Alta Interpretação Musical, que, em
São Paulo onde realizo curso similar no Teatro Municipal, alcançou 2.700 o
número de inscrições desde o terceiro ano de existência.
Visando, por um lado, o aprimoramento dos nossos jovens músicos que se
destinam à carreira pianística e abrindo-lhes o caminho da arte interpretativa
que os levará a transmitir nas suas execuções em público a verdadeira
mensagem sintetizada em cada composição musical, divulgando, por outro
lado, no meio do grande público das capitais e do interior do Brasil, uma fórmula
nova e acessível a todos, que faz conviver o ouvinte com o trabalho de
recriação de uma obra-prima, habilitando-o para apreciar outras execuções
dessa mesma composição quando ouvidos ulteriormente na interpretação de
outros virtuoses, implantando, enfim, num terreno cada vez mais apropriado e
receptivo, a semente capaz de tornar realmente proveitoso o intercâmbio com
os outros países e a fusão com as tradições artísticas da Europa, o Curso de
Alta Interpretação Musical vem trazendo ao Brasil, ano após ano, sua modesta
e persistente contribuição à grande obra de elevação dos nossos valores
culturais.
Agrupando cada ano no seu âmbito novas plêiades de executantes que vêm,
progressivamente, se colocar entre os mais apreciados da nossa jovem
geração de pianistas, pondo-os, graças às suas execuções realizadas neste
palco, em condições de enfrentar com êxito público, esse terrível juiz que
decidirá em grande parte da carreira do nosso virtuose, pondo ao mesmo tempo
o público em condições de usar com critério do seu senso crítico e fazer assim
obra realmente construtiva, promovendo junto ao Governo Brasileiro e aos
representantes dos países estrangeiros a concessão de bolsas de estudos e
prêmios de viagem que virão ampliar a bagagem artística do jovem concertista
e auxiliá-lo na sua luta e nas suas conquistas, estreitando pelo contato
permanente com as personalidades mais destacadas do mundo musical, dentro
e fora do Brasil, os laços culturais com outros países da Europa e da América, o
Curso de Alta Interpretação Musical constitui, hoje, apreciável patrimônio para o
país e granjeia no estrangeiro o maior prestígio, graças ao êxito alcançado por
cada um dos representantes, seja em concursos ou nas atuações em público.
Convém lembrar a esse respeito que o nosso aplaudido e talentoso pianista
Homero Magalhães acaba de chegar em Paris, tendo sido premiado com uma
bolsa de estudos de um ano, concedida pelo Governo Francês, em recompensa
das suas brilhantes atuações neste Curso, e tendo também recebido do
Ministério da Educação o mais valioso apoio para a feliz realização dessa
viagem.
A cerimônia que marca hoje o encerramento do Curso de Alta Interpretação
Musical do ano de 1948 reveste-se de particular brilho e significação para nós.
Efetivamente, conforme foi anunciado, deverão ser conferidos hoje os diplomas
que, por determinação do Exmo. Sr. Ministro da Educação, virão, de agora em
diante, premiar anualmente os pianistas participantes deste curso.
De acordo com as normas estabelecidas, poderão ser contemplados com um
diploma apenas os pianistas executantes que terão participado com êxito e
regularmente, durante dois anos seguidos no mínimo, das aulas deste curso.
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Serão conferidos, conforme o valor das execuções, os progressos realizados e
o conjunto de notas obtidas por cada um, três categorias de diplomas:
1º O Diploma de Aproveitamento, àqueles que terão cumprido
satisfatoriamente com as condições que acabo de citar, isto é, que terão
participado com êxito destas aulas durante dois anos seguidos ou mais.
2º O Diploma de Aperfeiçoamento Artístico, àqueles que, durante o referido,
período ter-se-ão distinguido pelos progressos constatados nas suas
execuções, já atingiram um nível adiantado de execução pianística e
alcançaram o conjunto de notas estabelecido para esse fim.
3º O Diploma de Alta Interpretação Musical, que será reservado aos pianistas
que não somente mais se distinguiram pelo alto valor de suas execuções, mas
que também já se acham em condições de atuar em público e de se apresentar
seja em recitais ou em concertos com orquestra.
Junto com o diploma conferido nesta categoria, terá direito, o laureado, a um
recital ou concerto com orquestra organizado ou promovido pelo Ministério da
Educação e Saúde.
Enfim, os pianistas do Curso de São Paulo que tiverem atuado, mesmo uma só
vez no Curso do Rio, serão contemplados com um diploma somente no caso da
sua execução nesta capital coincidir com o período mínimo de dois anos de
participação no curso realizado em São Paulo, o qual se enquadra no programa
de divulgação musical organizado pelo Ministério da Educação e Saúde.
Os Diplomas de Aproveitamento e Aperfeiçoamento Artístico são conferidos
com ou sem distinção, de acordo com as notas obtidas. No que diz respeito ao
Diploma de Alta Interpretação Musical, este é conferido sem distinção já que,
por si só, constitui a maior das distinções deste curso.
A fim de que de não fossem prejudicados os que participaram do curso nos
primeiros anos da sua existência, isto é, antes de passar a ser realizado neste
Auditório, determinou o Sr. José Mariani que as normas fixadas para a
obtenção do diploma, em geral, terão efeito retroativo, tendo pois o direito a
essa recompensa os executantes que participaram dessa aulas desde a
instauração do Curso, em 1940, desde que tenham satisfeito as condições que
regem a outorga desse diploma em cada uma das respectivas categorias.
Tive a honra de submeter, a semana passada, à aprovação do Exmo. Sr.
Ministro da Educação, a relação dos nomes dos pianistas participantes do
Curso de Alta Interpretação Musical, estabelecida de acordo com as bases
indicadas e as notas obtidas em cada execução, com a respectiva classificação
em cada uma das três categorias de diplomas com a qual tinham direito de ser
contemplados. Tenho hoje a maior satisfação em informar-vos que o Sr.
Ministro dignou-se concordar integralmente com a proposta que lhe foi
submetida, autorizando-me a anunciar hoje os nomes dos pianistas premiados
e os respectivos diplomas que lhes são conferidos.
São os seguintes os pianistas participantes do Curso de Alta Interpretação
Musical, que obtiveram um diploma pelo conjunto das suas atuações no curso:
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DIPLOMA DE APROVEITAMENTO
• ANO DE 1941
Luiza Botelho da Cruz
Thereza Botelho da Cruz
• ANO DE 1942
Cléria Maria de Araújo
Leonor Graça de Araújo - com distinção
Mariana Irineu de Souza
• ANO DE 1943
Alice Hansen
Altino Pimenta
Margarida Araújo - com distinção
• ANO DE 1944
Heloisa Futuro - com distinção
Lygia Messeder - com distinção
Maria Acatuassú Nunes
Marina Lorenzo Fernandez
• ANO DE 1945
Eliane Carvalho de Azevedo
Odete Dalbello
Rosina de Assis - com distinção
• ANO DE 1946
Maria Josefina de Castro
Marina Hespanha - com distinção
Murilo Tertuliano dos Santos - com distinção
Ziva Blatman Tzakinowsky - com distinção
• ANO DE 1947
Eliane Fayni
Yolanda Antonello
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• ANO DE 1948
Elsa Guillon
Helena Pachachewsky - com distinção
Henriqueta Penido Monteiro
Inez Ribeiro
Jenny Perelman - com distinção
Raymunda Vianna Magalhães
DIPLOMA DE APERFEIÇOAMENTO ARTÍSTICO
• ANO DE 1942
Maria Augusta Menezes de Oliva
Rodolfo Frish (São Paulo) - com distinção
• ANO DE 1943
Não houve Diploma de Aperfeiçoamento Artístico
• ANO DE 1944
Maria Dirce Rodrigues de Almeida (Piracicaba)
• ANO DE 1945
Lúcia de Salles Penteado (São Paulo) - com distinção
• ANO DE 1946
José Magalhães Graça - com distinção
• ANO DE 1947
Lourdes Gonçalves - com distinção
Maria Lúcia Gregori (São Paulo)
Marina Ramalhete
Mary Benaion
• ANO DE 1948
Aleida Ferrari da Silva - com distinção
Hebe Araújo de Mattos
Letícia Delamarre - com distinção
Maria Adelaide Moritz - com distinção
Maria Aparecida Prista - com distinção
Maria Lúcia de Faria Pinho - com distinção
Myrian Freire de Castro
Wally Freire de Souza - com distinção
Wanda Latini
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DIPLOMA DE ALTA INTERPRETAÇÃO MUSICAL
• ANO DE 1942
Isabel Mourão (São Paulo)
Oriano de Almeida
• ANO DE 1943
Julinha Wagner Cohin
Neusa França de Almeida
• ANO DE 1944
Heitor Alimonda
Ylara Gomes Grosso
Vera Cruz Pientznauer
Zeila São João (São Paulo)
• ANO DE 1945
Menininha Lobo (São Paulo)
• ANO DE 1946
Não houve Diploma de Alta Interpretação Musical
• ANO DE 1947
Célia Zaldumbide
Homero Magalhães
• ANO DE 1948
Nellie Braga
Cabe-me comunicar aos pianistas premiados que os diplomas lhes serão
entregues dentro de poucos dias, após assinados pelo sr. Ministro da Educação
e Saúde, e por mim, devendo os interessados ser oportunamente informados
da data em que terão que comparecer ao Ministério para esse fim.
Mais de 70 pianistas executantes perderam a oportunidade de conquistar o
diploma por terem participado durante um ano apenas das aulas deste curso ou
por não terem obtido o mínimo de notas desejado.
E, agora, resta-me agradecer aos meus queridos alunos e aos meus caros e
fiéis ouvintes pela comovedora expressão do seu apreço, dirigida em nome dos
pianistas participantes pela Sra. Maria Lúcia de Faria Pinho e em nome dos
ouvintes pela Srta. Nelly Wanderley.
Sinto-me realmente lisonjeada, mas acho que não mereço tantos elogios. Se é
verdade que esteja me dedicando, de todo o coração e com todos os recursos
ao meu alcance, às edificações de uma obra considerada como sendo de alto
valor educativo, que tem tido certa repercussão no movimento musical de minha
44
terra, é simplesmente porque considero ser o meu dever procurar devolver ao
Brasil tudo o que lhe devo e guiar a nossa talentosa juventude no caminho que
escolhi. Vossa cooperação da feliz realização dessa tarefa, vossa compreensão
e vosso afeto são, para mim, a fonte de uma das maiores satisfações da minha
carreira e sou eu que lhes fico grata por ter tão bem sabido me compreender e
auxiliar.
Agradeço particularmente aos meus alunos e ouvintes pelas lindas flores que
me enviaram, ficando realmente sensibilizada com a atenção dos ouvintes
deste curso que tão gentilmente se uniram para me oferecer este presente que
não duvido seja lindíssimo.
Dirijo, também, a todos que me acompanharam pelo rádio a difusão dessas
aulas, os meus sinceros agradecimentos pela atenção que estão dispensando a
esse ensino e os meus votos para que o número desses ouvintes continue
crescendo, conforme me foi comprovado este ano nas inúmeras e entusiastas
cartas que recebo de todos os recantos do país.
Enfim, desejo expressar publicamente aqui toda a minha gratidão ao Exmo. Sr.
Prof. Clemente Mariani, pelo valiosíssimo e constante apoio que me tem
demonstrado em tudo o que se refere à organização dessas aulas e graças ao
qual o nosso curso tem alcançado resultados tão positivos, hoje concretizados
nos diplomas que vêm tão justamente coroar o nosso trabalho.
Muito obrigada, prezado Dr. Leal da Costa e Dr. Paulo Fontes, pela sua tão
preciosa e constante colaboração.
Um grande abraço para todos vós, e... até o ano que vem.
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ABERTURA DO DÉCIMO CURSO DE
ALTA INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1950
Exmo. Sr. Ministro,
Minha Senhoras, Meus Senhores,
Meus Caros Alunos,
Tendo dedicado esses longos meses de ausência, por um lado, à intensa
atividade artística na França, em diversos países da Europa e no Próximo
Oriente, por outro ao cumprimento da honrosa missão de que me incumbira o
Exmo. Sr. Ministro Prof. Clemente Mariani, visando o estudo – sem ônus para o
Governo – da evolução e das modificações introduzidas no ensino das artes
musicais e nos vários conservatórios da Europa, é com imensa alegria que me
encontro novamente na minha terra natal e particularmente entre vós, para
inaugurarmos, hoje, o Décimo Curso de Alta Interpretação Musical.
Essa alegria me permite, aliás, esconder a profunda emoção que sinto diante
de vossa calorosa acolhida e de todas as provas de afeto e amizade que me
foram dispensadas, desde o meu desembarque há quinze dias no aeroporto,
que continuo recebendo diariamente e pelas quais quero expressar-vos toda a
minha gratidão.
Já pude verificar, no decorrer da Audição Preliminar e também pelo grande
número dos pianistas que participarão do Curso deste ano 1950, que os nossos
jovens músicos souberam aproveitar essa pausa prolongada na realização
destas aulas públicas, e não duvido que a audição, neste palco, do vasto
repertório de obras em que se inscreveram, venha nos revelar em breve o fruto
desse trabalho.
Por falar neste assunto, posso acrescentar que eu, também, tenho trabalhado
bastante... e bastante!
Não me refiro somente à série relativamente importante das minhas atuações
em concertos, recitais etc., dos mais, limitar-me-ei em recordar, entre outros:
• Os três concertos para piano e orquestra: Mozart, Schumann e Saint-Saëns
que toquei com a Orquestra Colonne sob a regência do Maestro Paul Paray,
na minha rentrée, no Teatro dos Champs-Elisées, em Paris;
• O meu recital, no mesmo Teatro dos Campos-Elíseos, com a “Sonata op.
111” de Beethoven, a “Fantasia e Fuga” de Bach-Liszt, obras de Villa-Lobos,
Fauré, Reynaldo Hahn, Debussy, e uma parte reservada a Chopin;
Ao qual se seguiram, ainda em Paris e no mesmo teatro:
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• O Concerto com a Orquestra da Societé des Concerts du Conservatoire, na
regência de André Cluytens, no qual interpretei o Concerto de Reynaldo
Hahn;
e mais tarde:
• O concerto com a Orquestra Nacional da Rádio-Difusão Francesa, sob a
regência de Roger Desormières.
assim como:
• O meu recital Chopin, em comemoração do Centenário do imortal romântico,
a convite da Comissão Central Francesa, pouco depois da minha atuação
em Varsóvia, na vice-presidência do Grande Júri do Quarto Concurso
Internacional Chopin;
Sempre na França, toquei ainda, seja em concertos com orquestra em recitais
ou em ambos:
• Em Bordeaux, Lyon, Marseille, Nice, Cannes, Deauville etc., além do
Festival Internacional de Música de Besançon do qual participei, ao lado de
Furtwängler, Segovia, Wilhelm Kempff e outros.
Dos outros países da Europa, citar-vos-ei:
• A Espanha, com recitais em Bilbao e São Sebastião;
• A Suíça, com recitais em Genebra e Lausanne;
• A Turquia, com recitais e concertos com orquestra em Istambul e Ankara,
onde o Presidente da República, Sr. Ismet Ineuné, e Sua Exma. Esposa me
honraram com suas presenças e me dispensaram tanta gentileza e atenção;
• A Polônia, com recitais e concertos com orquestra em Varsóvia;
• A Grécia, com três recitais em Atenas;
e também, no Próximo Oriente:
• A Palestina, com três concertos com a Orquestra de Tel-Aviv, que
coincidiram com a permanência do famoso regente Paul Paray à frente
daquele notável conjunto sinfônico;
• O Líbano, com dois recitais em Beirute etc., etc.
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Isso, sem falar nos diversos concertos na rádio, nas atuações de caráter
especial, tal aquele inesquecível recital organizado no Grande Salão da
Academia Francesa, em Paris, em comemoração do terceiro aniversário da
morte de Reynaldo Hahn, no qual toquei, entre outras, composições daquele
autor para dois pianos, que tenciono apresentar este ano aqui, em primeira
audição.
No que diz respeito ao lado “pedagógico” na minha atividade, e ao estudo
pormenorizado que fiz da evolução do ensino nos vários centros musicais da
Europa, dir-vos-ei, apenas, que, tendo essas indagações me levado a
aprofundar quase todos os ramos da atividade musical daquele continente,
resolvi juntar o abundante material recolhido desde o início da minha viagem,
com o fim de concretizar e expor numa breve conferência ou preleção – a ser
realizada ainda no decorrer deste curso se o tempo o permitir – as conclusões e
os fatos salientes dessa minha convivência com os meios artísticos e musicais
do velho mundo, assim como alguns resultados concretos que esse trabalho me
permitiu alcançar e que não deixarão de interessar nossos jovens músicos e
mormente os pianistas participantes destas aulas.
Estabelecer um balanço dos múltiplos fatores que regem o desenvolvimento da
arte musical que duas guerras mundiais travadas em menos de trinta anos
vieram abalar nas suas raízes mais profundas; discernir o caminho certo, a
linguagem verdadeira da música, seja que ela se dirija a uma elite ou ao povo;
descobrir os rumos dominantes da composição contemporânea no meio da
confusão de valores e da instabilidade características da nossa época; focalizar
os grandes movimentos visando a iniciação do povo, das massas, da jovem
geração, para que a música, longe de ser uma estrangeira encontrada por
acaso, se revele uma companheira fiel na vida de cada um; manter a
imparcialidade do senso crítico diante da variedade das interpretações e das
liberdades que se outorgam alguns virtuoses, freqüentemente movidos por
considerações extra-musicais; penetrar simultaneamente com os dedos e com o
cérebro toda a riqueza harmônica do “piano”, desse instrumento milagroso que
tanto contribuiu em salvaguardar os elevados interesses e as comovedoras
aspirações da música pura, mantendo-lhes o seu completo equilíbrio
arquitetural; encontrar na Música o meio de disciplinar, idealizar e transfigurar
os prosaicos elementos da nossa vida diária para afirmar a magnífica vitória da
arte sobre as servidões terrestres...
Eis, entre tantos outros, alguns dos temas que mais ocupam, hoje em dia, as
diversas correntes do mundo musical europeu, e que as próximas aulas me
darão certamente o ensejo de desenvolver diante de vós, pelo menos em parte,
na medida das composições a serem ouvidas neste Auditório, para que cada
um, possuidor dos elementos necessários a um tal julgamento, cheque,
individualmente, nas conclusões mais compatíveis com seus anseios e sua
própria natureza.
Uma palavra ainda a respeito da imponente floração de jovens virtuoses e
principalmente de pianistas que tomam cada ano lugar mais marcante no
“calendário” das salas de concertos no outro lado do Atlântico. Se falta a alguns
desses talentosos artistas o poder de comover as platéias com as suas
interpretações no teclado, a maioria consegue no entanto se impor à atenção
do público, pelo acabamento das execuções e do domínio da técnica. Minha
participação em diversos júris: no Concurso Anual do Conservatório de Paris,
no concurso para a atribuição do prêmio Long-Thibaud, no Grande Concurso
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Pianístico Internacional de Varsóvia que reuniu na banca algumas entre as
maiores sumidades dos 19 países aí representados, assim os inúmeros
contatos pessoais que tive com jovens estudantes de música, alunos e
concertistas, ansiosos de corresponder à expectativa em torno de seus nomes,
enfim, toda a minha experiência pessoal desses últimos meses de pesquisa
nesse campo, me levam a uma conclusão imperativa: tudo o que esses jovens
têm demonstrado nas suas apresentações em público não é apenas a natural
consagração do talento, mas, também, não o esqueçamos, o fruto de muito
trabalho, de árduos esforços e de uma absoluta continuidade e disciplina no
estudo.
É com essa observação que encerrarei o breve relato da minha excursão
artística, sobre a qual terei ampla oportunidade de falar, especialmente no que
tange ao ensino da música, em geral, e à repercussão do nosso Curso de Alta
Interpretação Musical nas esferas européias. O fato pode parecer
surpreendente, mas é pura verdade: não existe na França, na Inglaterra, na
Espanha, na Itália, na Bélgica, na Suíça, nem em qualquer outro país da
Europa, Curso Público de Interpretação ou mesmo Curso Público de Música,
que desperte interesse e freqüência de parte do público (e que suscite ao
mesmo tempo a atenção dos poderes públicos), capaz de ser posto em
confronto com este Ensino, como o podereis constatar, aliás, pelos lisonjeiros
comentários da imprensa estrangeira a respeito dessa esplêndida realização
que devemos aos sucessivos ministros da educação que todos eles tão bem
têm sabido compreender a importância destas aulas.
Temos como prova de interesse sempre crescente para estas manifestações o
fato de levarem-se as inscrições ao expressivo número de 48 executantes – um
verdadeiro record sobre os outros anos.
Depois da audição preliminar, escolhi 40 desse pianistas para serem ouvidos no
decorrer destas aulas.
Como vêem, teremos este ano um programa bastante carregado, e é de
esperar que todos toquem muito bem para que me seja possível dar conta do
recado...
Quanto às inscrições de ouvintes, já alcançamos o número de 1.100 que nos
faz prever um número impressionante até o fim do curso de 1950.
Lembro, também, que adiamos a entrega dos diplomas conferidos na última
série de aulas para a próxima chegada do Sr. Ministro Clemente Mariani,
atualmente na Europa.
Já tive ocasião de participar, pela imprensa, o presente régio que trouxe da
França para nossos jovens pianistas.
No decorrer de uma longa palestra com o Diretor Geral das Relações Culturais,
Sr. Toxe, lembrei-lhe a possibilidade de ser criada, pela França, uma bolsa de
estudos, reservada unicamente aos pianistas participantes deste curso, bolsa
que seria disputada em concurso entre os que obtivessem o Diploma de Alta
Interpretação Musical. Podem avaliar a minha satisfação quando o Sr. Toxe,
que muito se interessou pelo nosso trabalho e que revela o maior desejo de
estreitar o laço cultural entre os nossos dois países, me declarou estar de
acordo com o meu projeto e que ficava estabelecido que a Embaixada da
49
França no Rio de Janeiro instituiria anualmente este prêmio. Parece-me
desnecessário insistir sobre o estímulo e o benefício que representará tal bolsa
para os nossos jovens pianistas, que terão a oportunidade de conhecer de perto
uma verdadeira fonte de Arte e Cultura.
Assegurei ao Sr. Toxe, de antemão, o regozijo que tal notícia despertaria no
Brasil e manifestei-lhe antecipadamente toda a nossa gratidão.
Com tudo que acabo de expor, não me parece, pois, excessivo adiantar, numa
alteração um pouco audaciosa das palavras da Santa Escritura, que a esta
Magdalena talvez “muito será perdoado pelo muito que trabalhou… ”.
50
2
Palestras sobre
História da Música
51
52
A ESCOLA MODERNA FRANCESA
Depois da morte de Frédéric Chopin, o mais célebre, o mais adulado dos
representantes da literatura pianística, e depois da volta de Franz Liszt para sua
terra, a virtuosidade sentimental assim como a ópera espetacular chegam, na
França, ao seu apogeu, ocupando toda a atenção do público no plano musical,
e satisfazendo todas suas aspirações.
Com efeito, os amadores de música dessa época estavam fascinados,
sobretudo, pelas óperas dramáticas pomposas e cheias de efeitos cênicos
sensacionais, como as de Meyerbeer, e pelas execuções de obras pianísticas,
marcadas por floreios excêntricos ou lânguidas efusões, que parodiavam os
acentos chopinianos e as realizações orquestrais de Liszt.
A música de Bach ou Mozart e o grande movimento de renascença
schumanniana eram quase desconhecidos, sendo a cultura musical limitada a
algumas raras audições de sinfonias de Beethoven, às quais um círculo afetado
e estreito assistia com deferente enfado.
É verdade que um pequeno núcleo se formara, com um grupo entusiástico e
ardente de poetas, de estudantes e de pintores, em volta do único verdadeiro
artista musical desse período: Hector Berlioz.
Infelizmente, mesmo depois do seu épico esforço, na realização de magníficos
“frescos” líricos, e de ter escrito esses dois momentos da música dramática: La
Damnation de Faust e Les Troyens, Berlioz foi incapaz de contrabalançar a
opinião da burguesia elegante. Esse compositor genial, esse potente criador,
ficou isolado e incompreendido do grande público que não soube apreciar, entre
outras, essa obra-prima de ternura e de delicadeza: A Infância do Cristo.
Após um efêmero triunfo, que foi, antes, um sucesso de curiosidade, Berlioz,
reconhecido como uma grande figura, porém admitido com ásperas reservas,
tornou a ser abandonado por um público que só procurava, na música e no
teatro, um divertimento fácil e um prazer imediato.
Esse divertimento, esse prazer, se concretizaram desta vez na opereta.
Efetivamente, tudo o que podia se expressar de modo superficial, amável,
banal, alegre e pueril, achava-se reunido nesse gênero musical, do qual
Offenbach foi o mestre incontestável, e a opereta, na sua floração gloriosa,
alcançou facilmente a mais extraordinária popularidade. Mas, ao mesmo tempo
que esses estribilhos eram popularizados através a Europa, a preguiça e a
incompetência do público iam crescentes, atrasando a verdadeira cultura
clássica, reduzindo os recursos técnicos dos compositores e agindo a uma
desmoralização realmente perigosa para o futuro da música. A França do
Segundo Império devia ficar nessa grave estagnação artística, até a vinda de
Charles Gounod e a representação da sua obra-prima: Faust.
Essa feliz adaptação ao teatro lírico, do poema de Goethe – apesar de ser
inferior, sob certos pontos de vista, às obras escritas sobre o mesmo tema, por
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Berlioz, Liszt e Schumann –, revelou, repentinamente, uma inspiração profunda,
uma dignidade e um conjunto de qualidades técnicas, que consagraram
Gounod, como um grande compositor e um músico verdadeiro. Ele teve, antes
de tudo, o mérito excepcional de ter podido se apaixonar pela grande música,
numa época marcada por preocupações tão fúteis, e, se é difícil considerá-lo
como um precursor pelas suas inovações, no domínio musical ou dramático,
esse grande mestre foi sem dúvida um precursor, por ter restaurado com a arte
da melodia um ideal abandonado e por ter tomado a direção de um movimento
de renascença, que devia levar a música, dramática e sinfônica até um nível
digno da antiga tradição.
A mais de “Faust”, que pode ser considerado como o maior acontecimento
musical daquele período, Gounod, cuja carreira gloriosa se manteve até sua
morte em 1893, compôs, entre outras obras célebres: Mireille, Philémon et
Baucis, e Roméo et Juliette, que se assinalaram por esse gosto da beleza, essa
concepção graciosa, essa escritura fácil e agradável, e esse fervor imbuído de
fé religiosa, tão característicos do seu gênio.
Depois da derrota militar de 1870, a reação iniciada por Gounod se manifestou
no espírito do público francês, pelo desejo de aperfeiçoar sua educação
artística e de conhecer outra música que a da pomposa ópera, ou banal
opereta, enquanto que, nos meios musicais, o estudo técnico tornou a ser
admitido como base indispensável.
Conheceis a ousada tentativa de Georges Bizet, que morreu em 1875 – aos 37
anos – do desgosto causado pelo veredicto injusto do público, a respeito das
suas composições. Ele nunca imaginara que essa hostilidade se converteria,
poucos anos mais tarde, numa homenagem universal à sua obra. Apesar dela
não ter conseguido influenciar diretamente a música da sua época, a produção
de Bizet com: La Jolie Fille de Perth, L’Arlésienne, e, particularmente, com
Carmen, ópera tão berlioziana, colorida e realística, abre uma outra página
importante na história da música.
Jules Massenet herdou do fervor que o grande público manifestara por Gounod.
Esse técnico prestigioso deixou, ao mesmo tempo que algumas maravilhosas
obras-primas, tais: Werther e Manon, numerosas outras obras, que refletem
demasiadamente sua preocupação de agradar e de conquistar o público.
Mesmo assim essas óperas ou outras composições conservam o encanto e as
felizes inspirações, que elevaram Massenet, durante algum tempo, ao apogeu
do proscênio musical.
Citar-vos-ei, também, dois compositores menos favorecidos pelo destino, no
decorrer da sua existência, e cujo renome só se verificou mais tarde: Emmanuel
Chabrier, deslumbrante colorista da orquestra, autor de Gwendoline e outros
dramas líricos, assim como dessa famosa rapsódia España, que alcançou
grande voga, no início deste século; e Edouard Lalo, que revelou, com o Roi
d’Ys, tanta ousadia anti-wagneriana, e escreveu, a mais de um delicioso bailado
Namouna e da admirável Rhapsodie Norvegienne, alguns concerti e
interessantes obras sinfônicas.
Teria desejado, nesta altura do nosso estudo, falar-vos de modo
pormenorizado, das lutas curiosas e ardentes suscitadas na França, pelo
“wagnerismo”, e da crise que resultou no mundo musical desse país, depois da
morte do gênio de Bayreuth em 1883. “Esse músico talvez genial, porém
54
incompreensível, cacofônico, feio e enfadonho” – é assim que a crítica francesa
o descrevia – causou durante 50 anos a divisão da opinião pública, entre dois
campos nitidamente desiguais e opostos, até que a tenacidade de uma minoria
e os esforços de Lamoureux, culminando na representação do Ouro de Reno
na Ópera de Paris, em 1909, conseguiram despertar o delirante entusiasmo do
público e quase transformar em adoração o ódio manifestado até então, para
com Wagner e sua obra.
As conseqüências desse movimento foram ainda mais curiosas e inesperadas,
do que as polêmicas:
a) no domínio técnico, uma das verdades, as mais evidentes e
acessíveis que surgiram, foi o emprego da polifonia, que devia
modificar quase que por completo a orquestração contemporânea;
b) no plano ideológico e literário, o simbolismo e a adoção do
“verso livre” foram um outro resultado imediato do wagnerismo, que
trouxe a transformação total do antigo libretto;
c) enfim, a terceira conseqüência foi a decadência da vetusta
ópera, cuja concepção era incompatível com heróis dignos dos
gregos, de Shakespeare ou de Racine, tais: Tristan, Lohengrin,
Brünnhilde ou Parcifal.
Porém, os músicos esqueceram que o wagnerismo era realizável, à condição
de possuir tanto gênio quanto o seu inventor. Tendo levado o drama lírico a
uma tal perfeição, Wagner deixara pouco a fazer depois dele, obrigando seus
sucessores a imitá-lo, porém com meios menos potentes.
Os compositores os mais hábeis se confinaram, pois, em empregar recursos
sinfônicos e em adaptar ao palco assuntos alegóricos, do mesmo gênero que
Reyer lançara – com bastante êxito –, representando Sigurd e Salamboo. Os
outros músicos, que desejavam demonstrar mais personalidade ou sinceridade,
ficaram parados e estorvados pelos seus escrúpulos e amplificaram a crise e o
mal-estar, que iam sempre crescendo.
Foi nesse momento que um homem, desconhecido na França até então,
encontrou a solução do problema e mostrou como podia-se sair desse dilema,
sem copiar Wagner e sem ficar improdutivo. Esse homem, convencido que
Wagner precipitara abusivamente a arte musical no campo da filosofia
simbólica, revelou de que modo a música pura permitia resistir a esse
arrastamento, focalizando a atenção do espírito sobre a forma essencialmente
musical, em lugar de dirigi-la unicamente para o palco.
César Franck, nascido na Bélgica em 1822, e descendente de uma talentosa
dinastia de pintores da Wallonia, teria sido com certeza um brilhante
desenhista, ou mesmo um célebre pintor, sem a intervenção do seu pai. Com
efeito, esse banqueiro autoritário, grande amigo das artes, decidira que, apesar
das suas notáveis disposições para o desenho, seu filho seria músico!
A decisão paterna caiu, nesse caso, num terreno maravilhosamente adequado,
e, aos onze anos, o menino realizava, através da Bélgica, sua primeira tournée.
Dois anos mais tarde, tendo César completado seus estudos musicais em
Liège, sua cidade natal, o pai Franck, desejoso de oferecer aos dons invulgares
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do seu filho a possibilidade de se expandirem, no ambiente o mais propício, não
hesitou em fechar o seu banco, e em se fixar em Paris, onde César, depois de
assíduos estudos de fuga, de contraponto e de composição, foi admitido, em
1837, no Conservatório Real. Ele tirou o seu prêmio de piano, no primeiro ano,
depois de um concurso singular e memorável, cuja história merece ser contada.
Após sua execução, de maneira magistral, do Concerto em Lá Menor, de
Hümmel, que era a peça exigida no concurso, o jovem pianista, em lugar de
tocar, à primeira vista, a outra peça indicada, tal qual estava escrita, se divertiu
em transportá-la uma terça mais baixo, tocando nesse outro tom a obra inteira,
sem um erro e sem a menor hesitação. Uma tal ousadia, não prevista nos
estatutos do conservatório, e a liberdade tomada por esse rapaz de 15 anos
pareceram tão irreverenciosas ao velho Cherubini, que era nessa época o
diretor desse austero templo da música, que ele recusou, obstinadamente, em
atribuir ao jovem candidato um primeiro prêmio, no entanto tão merecido.
Porém, a fim de não parecer injusto para com esse temerário e talentoso aluno,
ele propôs ao júri conferir-lhe um prêmio especial hors concours, que foi
pomposamente denominado: “Grande Prêmio de Honra”. (Uma recompensa
desse gênero nunca mais foi concedida no Conservatório de Paris.)
No ano seguinte, César Franck tirou, com surpreendente facilidade e à
unanimidade do júri, o primeiro prêmio de fuga, apesar de um tema
particularmente difícil, escolhido por Cherubini; e alguns meses mais tarde,
depois de uma execução, igualmente marcada por uma extraordinária façanha
e outras peripécias imprevistas, o primeiro prêmio no Concurso de Órgão.
Foi, entre os 20 e 25 anos, que César Franck, procurando formas originais,
desenhos desconhecidos e harmonias de uma sonoridade inaudita, escreveu
seus primeiros trios, suas primeiras composições para piano, assim como
algumas Fantasias e transcrições brilhantes, que constituíam, naquele tempo, a
bagagem obrigatória do pianista compositor.
Em 1848, em plena insurreição francesa, os revolucionários que enchiam a
praça Notre Dame de Lorette, em Paris, ajudaram, em certo dia, um jovem
casal a passar por cima das linhas de barricadas, que eles defendiam, e a
chegar salvos,até a Igreja, que se tornaria inacessível atrás dessas poderosas
fortificações. Foi nessas condições que se realizou, na própria igreja onde ele
era organista, o casamento de César Franck com a jovem atriz pela qual ele se
apaixonara.
Depois de uma tentativa bastante infeliz na composição da sua primeira obra
dramática, que o deixou esgotado durante dois anos, Franck foi nomeado
organista na grande Basílica de Santa Clotilde, na qual fora instalado um novo
órgão, considerado, naquela época, como uma verdadeira obra-prima de
mecânica e de sonoridade.
Esse ambiente de simplicidade, de misticismo e de serenidade, foi o berço da
exteriorização do seu talento, pois, durante 30 anos, todos os domingos e todos
os dias feriados, César Franck, sentado a esse órgão, deixou seu gênio se
manifestar, em tantas admiráveis improvisações, e encantou seus ouvintes,
com as sublimes melodias de um canto quase sobrenatural.
Franck, vivendo sua simples e quieta existência de organista e de professor,
que lhe deixava apenas duas horas por dia para seu trabalho de composição,
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escreveu, no início desse período, música exclusivamente religiosa, dedicando
a maior parte desse tempo à grande obra que devia imortalizá-lo: Les
Béatitudes. Essa magnífica epopéia musical, em oito partes e um prólogo,
escrita para soli, coto e orquestra, e somente acabada em 1879, constitui um
dos mais grandiosos monumentos da música sagrada, e pode ser comparada,
em beleza, grandeza e inspiração, aos mais célebres oratórios de Bach e de
Haendel. Esses oito cantos que são oito poemas, proclamando a beatitude
prometida pelo Cristo à humanidade sofredora, reúnem um misticismo ideal,
uma ternura de efusão e um fervor quase primitivo, aos recursos de uma
técnica que é, ao mesmo tempo, a mais clássica e a mais inovadora.
A primeira audição desse oratório, que teve lugar na própria casa de César
Franck, foi assinalada pela incompreensão total dos seus convidados.
Apresentada por Colonne, quatorze anos mais tarde, essa obra foi recebida
com glorioso entusiasmo; infelizmente César Franck já falecera, três anos
antes.
Essa falta absoluta de compreensão foi também característica da recepção feita
pelo público às suas Variações Sinfônicas para piano e orquestra, executadas
num andamento errado, sob a regência do velho Pasdeloup, num festival
dedicado às obras do Mestre, assim como à sua Sinfonia em Ré Menor, que foi
tão duramente criticada por ter César Franck ousado incluir um corno inglês,
numa obra sinfônica!
A Sonata para Piano e Violino, escrita para Isaye, que foi executada com
grande êxito, durante a tournée desse ilustre violinista através o mundo, foi
talvez, para Franck, a primeira fonte de alegria a respeito das suas
composições.
Não é exagerado afirmar que o único triunfo pessoal ao qual Franck teve a
felicidade de assistir se realizou somente seis meses antes de sua morte.
Foi na audição do seu Quarteto para Cordas, em 1890, que esse extraordinário
fenômeno se produziu. Depois de ter-se convencido que era o próprio autor que
o público homenageava tão delirantemente, César Franck, cumprimentando a
assistência, disse em voz baixa, a um dos diretores da Sociedade Municipal
que patrocinara esse concerto, que era esse, o seu primeiro verdadeiro êxito, e
acrescentou: “Será que o público já começa a me compreender?”. Ele tinha
então mais de 68 anos!
Essa felicidade devia ser muito breve. Poucos meses depois dessa
consagração, um estúpido acidente de ônibus, agravado por uma pleurisia, pôs
fim a essa existência tão humilde quanto maravilhosa. Poucos dias antes de
falecer, ele insistira em ser transportado até o seu órgão, na Basílica de Santa
Clotilde, a fim de completar a registração dos seus três grandes ”Corais”, que
ele deixou, da mesma forma que Bach, como supremo testamento musical.
César Franck formou numerosos alunos e discípulos, entre os quais o mais
notável foi Vincent D’Indy, o célebre autor da Symphonie sur un Thème
Montagnard que continuou a nobre tradição da música pura instaurada por seu
grandioso mestre.
A obra de César Franck o coloca no plano dos maiores músicos do seu século.
Entre suas composições para piano, o Prelúdio, Coral e Fuga e o Prelúdio, Ária
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e Final, que tive o ensejo de tocar neste teatro há alguns dias, exemplos da
mais impecável estrutura musical, realizam num espírito inteiramente novo, os
felizes efeitos da tonalidade, com recursos puramente pianísticos, do órgão, e
conseguem, com uma rara perfeição, a justaposição dos profundos sentimentos
humanos e da majestosa irradiação divina.
A mais de revelar uma mestria dos aspectos arquiteturais da música de piano,
inigualada desde as últimas sonatas de Beethoven, a obra de Franck se tornou
saliente no domínio da sinfonia, que ele soube libertar do wagnerismo, e a qual
deu mais uma vez, um lugar de honra.
Verdadeiro reorganizador do grande movimento iniciado em 1890, e que se
continua até hoje em dia, César Franck, não somente contribuiu para
aperfeiçoar e adiantar o gosto da música moderna na França, mas também, e
sobretudo, ele deu a essa música uma forma que pode ser considerada, como
lógico desenvolvimento da herança beethoveniana!!
Rio de Janeiro, 15 de agosto de 1941
58
CÉSAR FRANCK
VARIAÇÕES SINFÔNICAS
PARA PIANO E ORQUESTRA
César Franck, a cuja longa e fecunda carreira dediquei uma preleção inteira,
numa das aulas do Curso de 1941, escreveu apenas cinco grandes obras para
piano, das quais três, consideradas como ocupando um lugar de honra entre as
supremas obras-primas de toda a literatura pianística, são suficientes para
colocar esse compositor entre os maiores expoentes da música pós-romântica e
moderna: Estas três composições, bem conhecidas de vós todos, são: o
Prelúdio, Coral e Fuga, as Variações Sinfônicas para piano e orquestra, e o
Prelúdio, Ária e Final, para piano solo.
As Variações Sinfônicas que vêm nos revelar a genial mestria do organista no
domínio da orquestração se assinalam pelo fato da parte de piano não focalizar
exclusivamente todos os pontos de interesse, cabendo à orquestra um papel
igualmente importante, o que permite ao autor deixar sua imaginação se
exteriorizar com a maior liberdade e espontaneidade nos soli confiados ao
piano.
Por essa razão, as Variações Sinfônicas podem ser consideradas como um
exemplo quase único da engenhosa combinação do piano e da orquestra, isso
apesar do imponente número de obras desse gênero, reunidas no repertório
sinfônico.
Entre as outras características dessa obra, assinalar-vos-ei também: o notável
desenvolvimento da primeira variação, o místico ordenamento que domina a
maior parte da execução, o jorro faiscante acompanhando o solo de violoncelo
e a riqueza sugestiva das vozes secundárias, enfim, o brilhantismo da
peroração ampliado pelo acompanhamento dos instrumentos de arco de um
complexo e deslumbrante efeito virtuosístico.
Outra inovação reside na importância concedida ao segundo tema, anunciado
por intermédio de expressivo solo de piano na tonalidade de fá sustenido
menor, e cujas variações, freqüentemente entrelaçadas com as do primeiro
tema, dão a essa obra o caráter de um inteiro conjunto de variações duplas.
Essa obra, que ouviremos na execução do Sr. Homero Magalhães, sendo a
parte da orquestra confiada à Sra. Neusa de Almeida, testemunha do profundo
conhecimento técnico de César Franck, da nobreza dos temas que escolheu e
do prestigioso valor desse extraordinário gênio musical.
Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1943
59
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE
E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1943
CÉSAR FRANCK
PRELÚDIO, FUGA E VARIAÇÃO
Depois de Johann Sebastian Bach, que abriu no repertório pianístico o ciclo
desse gênero de composição, conservando-lhe no início o caráter de um
desenho rítmico ou melódico persistente, para lhe conferir ulteriormente aspecto
mais complexo, foram sobretudo Mozart e Mendelssohn que abarcaram a forma
da fuga, da qual já tive a oportunidade de falar, numa preleção do ano passado.
Com César Franck reaparece, numa intensa e poderosa expressão, o
sentimento cristão, a fé religiosa que fizeram toda a beleza da arte do grande
Bach. Como dizia um biógrafo do autor das Variações Sinfônicas: “Se a religião
de César Franck não é exatamente a mesma que no caso de Johann
Sebastian, pouco importa, já que as duas músicas são a expansão do mesmo
ideal artístico, da mesma emoção, do mesmo fervor”.
É essa atmosfera de sublime comunhão com o criador que César Franck
concretizou ao órgão no Prelúdio, Fuga e Variação, que vamos ouvir agora,
tocado pelo Sr. Heitor Alimonda, numa transcrição de Harold Bauer para piano.
Rio de Janeiro, 2 de agosto de 1943
60
CÉSAR FRANCK
VARIAÇÕES SINFÔNICAS
PARA PIANO E ORQUESTRA
Embora nascido na Bélgica, César Franck é considerado como sendo um dos
grandes e autênticos expoentes do gosto e da tradição musical francesa, tendo
contribuído com a sua obra e a dos seus numerosos e ilustres discípulos, à
restauração da música pura no seu país de adoção onde desempenhou tão
fecunda atividade criadora.
Durante sua longa carreira iniciada no Conservatório de Paris, onde obteve o
Grande Prêmio de Honra aos 15 anos e onde voltou aos 50 anos para assumir
a cátedra de órgão substituindo, na mesma classe seu professor Benoist, César
Franck tornou-se célebre tanto pela sua imortal contribuição ao patrimônio
musical como pela sua notável atividade pedagógica, destacando-se entre seus
alunos, os nomes de Vincent D’Indy, Henri Duparc, Chausson, Lekeu, Gabriel
Pierné, Samuel Rousseau e tantos outros protagonistas do movimento musical
contemporâneo.
Foi Franz Liszt um dos primeiros em reconhecer e divulgar a grandeza do autor
do Prelúdio, Coral e Fuga, uma das obras-primas de César Franck, que além de
prestigioso organista também afirmou sua genial mestria no domínio sinfônico e
orquestral, no plano da música de câmara e na música lírica enriquecida com
monumental produção, culminando com o incomparável oratório Les
Béatitudes.
As Variações Sinfônicas para Piano e Orquestra, escritas em 1885 isto é aos 63
anos, e 5 anos apenas antes do fim de sua gloriosa carreira, se assinalam pelo
fato da parte do piano não constituir o foco exclusivo de interesse, cabendo à
parte orquestral papel igualmente importante, o que proporciona ao autor o
meio de deixar sua imaginação se expandir com maior liberdade e
espontaneidade nos soli confiados ao teclado.
É essa a razão pela qual constituem as Variações Sinfônicas exemplo bastante
raro de engenhosa superposição de piano e da orquestra em que os temas se
desenvolvem até o máximo de variedade e originalidade virtuosística, sem
prejudicar a parte sensível e melódica.
Dessa obra-mestra do repertório para piano e orquestra convém assinalar: o
interessante desenvolvimento da primeira variação, o místico ordenamento que
domina a maior parte da obra, o jorro faiscante de idéias musicais, a riqueza
sugestiva das vozes secundárias, e, mormente, o brilhantismo da peroração
ampliado pelo acompanhamento dos instrumentos de corda e levado ao seu
ponto culminante num complexo e deslumbrante efeito virtuosístico. Outra
inovação reside na importância dada pelo compositor ao segundo tema,
anunciado por expressivo solo de piano na tonalidade de fá sustenido menor, e
cujas variações, entrelaçadas com a do primeiro tema, emprestam a essa obra
o caráter de conjunto inteiro de variações duplas.
61
Foi exatamente cinco anos após a primeira audição dessa obra que César
Franck, ao atravessar uma rua em Paris, foi atropelado por um ônibus.
O tempo escasso de que dispomos não permite nem sequer esboçar a
descrição da grande obra que nos deixou esse prestigioso compositor.
As Variações Sinfônicas para piano e orquestra, que ouviremos agora,
destacam-se entre as composições de César Franck pela mestria com a qual
soube desenvolver um tema essencialmente profundo e expressivo, e até
doloroso, aproveitando ao máximo a variedade de recursos pianísticos e
orquestrais para levar essa variações às culminâncias do enriquecimento e da
ampliação sonora.
Caberá agora ao Sr. Caio César Pagano interpretar para nós essas Variações
Sinfônicas ficando o segundo piano, que substituirá a orquestra, a cargo da
professora Nellie Braga.
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CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE
E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1941
A ESCOLA MODERNA FRANCESA
(Ciclo de Palestras sobre a História da Música – Terceira Série)
CAMILLE SAINT-SAËNS
Ao mesmo tempo que a escola de César Franck, esse grande músico da
“alma”, popularizava na França a beleza e o gosto da “música pura”, um outro
grande compositor surgiria, e devia trazer à arte da sinfonia e à opera dramática
uma imponente contribuição e vir a ser um dos ilustres artesãos da renascença
musical francesa do fim do século dezenove.
Camille Saint-Saëns, nascido em 1835 – isto é treze anos depois de César
Franck –, foi tão precoce que parece seu contemporâneo, apesar de pertencer
nitidamente à geração seguinte. Sua fecundidade se explica, em primeiro lugar,
pelos seus dons excepcionais e, também, pela sua longevidade, tendo
dedicado à composição 70 anos da sua longa e frutuosa existência.
Criado por sua mãe e por uma tia pianista, que pusera as mãos do menino
sobre o teclado, ao mesmo tempo que ele começava a falar, Saint-Saëns aos
cinco anos tocava em público, no salon da Sra. Violet, uma “Sonata para piano
e violino” de Beethoven, inventava lindas melodias para as quais improvisava o
acompanhamento ao piano, e procurava nas partituras de Mozart (Don
Giovanni entre outras), que decifrava sem o menor erro, o verdadeiro recreio
para seu espírito.
A Illustration daquela época descreve do modo seguinte seu triunfal concerto na
Salle Pleyel: “Acabamos de assistir ao primeiro concerto de um encantador
menino de 10 anos que revelou o mais admirável talento e a memória mais
prodigiosa, tocando inteiramente de cor o quarto concerto de Mozart com
grande orquestra, e em seguida uma Fuga e uma Ária de Haendel, uma
Toccata de Kalkbrenner, um prelúdio e uma fuga de Bach, e finalmente o
Concerto em Dó Menor de Beethoven. O êxito foi extraordinário!”
Aluno de Halévy, na classe de piano, e de Benoist, na classe de órgão do
Conservatório de Paris, onde ele tirou o primeiro prêmio logo no primeiro ano,
Saint-Saëns apresentou em 1853 sua Primeira Sinfonia, que foi executada sem
que o nome do autor fosse mencionado. O público e a crítica, que aclamaram
essa obra, ficaram assombrados ao ouvir alguns dias mais tarde que o
compositor ainda não tinha 18 anos.
Nomeado organista da Grande Igreja de Sta. Magdalena em Paris, e
cumulando esse cargo com o de professor na famosa escola Niedermeyer,
63
Saint-Saëns exerceu durante duas gerações inteiras, a mais benéfica influência
sobre seus alunos, entre os quais: Gabriel Fauré, meu ilustre mestre, André
Messager, Eugéne Gigout, assim como sobre a evolução musical francesa em
geral.
Há poucos exemplos, no mundo musical moderno ou contemporâneo, de uma
atividade igual, ao mesmo tempo de uma tal diversidade na sua produção.
Saint- Saëns, de quem Gounod dizia que “já aos cinco anos, lhe faltava
inexperiência”, não somente abarcou todos os gêneros da música, mas também
alcançou, quase em todos, os maiores êxitos. Iniciados por esse prodígio
virtuose, na idade em que tantos outros artistas nem mesmo chegaram ainda
aos exercícios elementares, seus brilhantes sucessos foram sempre crescendo,
até mesmo prejudicar sua própria carreira, pois o público admite raramente, ou
mesmo não quer admitir às vezes, que um músico possa conseguir a mestria
em gêneros demasiadamente diversos. Essa concepção, tão errada,
particularmente a respeito de Saint-Saëns, foi, aliás, claramente demonstrada,
pelo destino que tiveram duas das suas mais prodigiosas obras-primas: a
famosa ópera Samson et Dalilah”, e a sua Terceira Sinfonia (em dó menor), que
foram triunfalmente aplaudidas ulteriormente, porém fracassaram por completo
nas suas respectivas estréias.
Tendo decidido tomar parte em 1867 no famoso concurso de música da
Exposição Universal em Paris, Saint-Saëns, receando a mesma hostilidade de
parte do Júri, esqueceu, propositadamente, de assinar seu manuscrito, e foi até
pedir a um amigo, que morava na Inglaterra, que mandasse de Londres essa
composição ao “Comité do Concurso”, a fim de evitar qualquer suspeita.
Naturalmente, foi ele quem ganhou o prêmio. Todavia ele teve que reclamar e
lutar durante alguns anos, antes de conseguir que sua composição fosse
executada.
No início da sua carreira, Saint-Saëns se assinalara pelos seus dons pianísticos
e provocara a admiração de Liszt e de Berlioz, não somente pela sua
virtuosidade, mas sobretudo pelo emprego inteligente das suas faculdades na
interpretação, num estilo impecável, dos mestres do teclado. Um pouco mais
tarde, sua produção orquestral revelou, simultaneamente com sua obra
dramática, esse magnífico desenvolvimento da sua personalidade. Erudito, de
uma inteligência superior, respeitoso das obras-primas do passado, SaintSaëns ofereceu o exemplo de um espírito metódico, disciplinado, doutrinário, e
procurou, às vezes de modo excessivo, reter seu temperamento musical,
fogoso e espontâneo, e dominar seus ímpetos apaixonados, deixando sempre
em primeiro lugar o amor do gosto, a distinção e a claridade harmoniosa,
qualidades que prevalecem e se refletem tão maravilhosamente nas suas
composições.
Saint-Saëns reservou na sua produção uma parte preponderante à música
sinfônica, notável pelo número de obras que ele escreveu, assim como pela sua
incomparável variedade. Entre as composições que formam esse majestoso
conjunto, citar-vos-ei: Suite Algérienne, o Quinteto, o Septeto (com trombeta),
suas Sinfonias, e particularmente a Segunda e a Terceira, que marcam seu
apogeu nesse gênero. A Terceira Sinfonia, para órgão e piano, dedicada a
Franz Liszt, da qual vos contei há pouco a estréia infeliz, é uma das mais belas
criações e um dos monumentos incontestáveis da Escola Francesa desses
últimos cem anos, pela sua admirável beleza, pela harmonia das suas
proporções, pela variedade e a riqueza rítmica, pelo colorido sombrio e ardente,
64
enfim pela eloqüente peroração realizada magistralmente com a intervenção do
órgão.
Os seus Concerti para piano, para violoncelo, para violino, dos quais alguns
vieram a ser o cavalo de batalha de tantos virtuoses, nos revelam até que grau
de perfeição Saint-Saëns aprofundara o estudo de cada um dos instrumentos
para os quais ele escrevia, além de uma escritura impecável, viva e engenhosa,
e de uma mestria técnica absoluta.
Foi Saint-Saëns quem reintroduziu na França, com brilhante êxito, a forma do
“poema sinfônico”. Numa das minhas preleções anteriores, dedicada a Franz
Liszt, divulguei-vos como esse ilustre compositor, aproveitando a notável
inovação de Berlioz que o público francês não soubera apreciar naquela época,
porém modificando-a, e elevando-a, até o auge da perfeição, trouxe pela
primeira vez o Poema Sinfônico à Alemanha. Alguns destes foram
apresentados, mais tarde, em Paris, cujo público, decidido a ver exclusivamente
em Liszt um prestigioso e deslumbrante virtuose, não prestou atenção a essas
tentativas.
Saint-Saëns soube apreciar o gênio de Liszt que era muito seu amigo, e
conseguiu, numa forma um pouco diferente, apresentar aos parisienses, uma
sucessão de “poemas sinfônicos” que são verdadeiros modelos desse gênero
de produção musical, e que obtiveram, como Le Rouet d’Omphale, Phaeton, La
Danse Macabre, La Jeuneusse d’Hercule, e tantos outros, um êxito triunfal.
Na Fantasia, Saint-Saëns atingiu uma rara mestria, com essa estranha e
deliciosa facécia zoológica, em quatorze breves episódios, intitulada Carnaval
des Animaux, outra obra-prima que foi somente revelada ao público em 1922
por Gabriel Pierné, tendo o seu autor interdito que essa peça fosse
representada enquanto ele vivesse.
No domínio da música vocal e religiosa, encontramos trinta coros, sessenta
melodias, numerosas cantatas, motetos, missas, uma coleção de obras para
órgão, e esse magnificente poema bíblico para soli, coro, e grande orquestra:
Le Déluge.
Dir-vos-ei enfim algumas palavras a respeito da “obra dramática” de SaintSaëns, marcada por tantas decepções, tantas dificuldades, tantas lutas, até o
triunfo de Samson et Dalilah no teatro de l’Opéra em Paris, em 1892. Depois de
todos os teatros da capital francesa terem recusado encenar essa obra, e
graças à iniciativa de Liszt, esse grandioso drama lírico foi aclamado na
Alemanha (Weimar) em 1877. Cinco franceses assistiram a esse triunfo, mas a
imprensa de Paris manteve um silêncio quase absoluto a esse respeito. Quinze
anos mais tarde, essa mesma imprensa não achava bastantes palavras – e
superlativos – para elogiar essa ópera.
Efetivamente, Samson et Dalilah, verdadeira obra-prima, pela qualidade da sua
música, senão pelo seu libretto, é agora a preferida entre todas a composições
dramáticas de Saint-Saëns, das quais citar-vos-ei ainda: Henri VIII, que foi
representada 31 vezes durante o primeiro ano da sua encenação, oferecendo
ao autor, com esse êxito, uma pequena compensação para os desgostos da
sua primeira tentativa; Proserpine, Ascanio, Les Barbares, Déjanire merecem
igualmente ser assinaladas entre as óperas escritas ulteriormente. Le Timbre
d’Argent, La Princesse Jaune e Phhryné são outras obras musicais, de caráter
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mais leve, porém cheias de invenção, de ironia, de encanto e de vida, e
também de sátiras veementes, contra todos os que não o souberam
compreender, cujo efeito foi, infelizmente, aumentar o número dos seus
inimigos.
Todavia, o que prejudicou a popularidade de Saint-Saëns foi, em primeiro lugar,
sua atitude para com o wagnerismo que ele exaltara durante um certo tempo,
antes de tomar – provavelmente por patriotismo – nitidamente posição contra
esse movimento, e de procurar diminuir o valor daquele gênio da música – com
o fim de eliminar a fórmula wagneriana. Saint-Saëns fez voltar a ópera,
legendária ou histórica, a uma formula mais parecida com a de Meyerbeer,
porém com uma orquestração muito mais apurada e complexa, e um esforço
notável em expressar com a própria música a vida psicológica dos seus heróis.
Com tudo isso, devemos hoje reconhecer que a música de Saint-Saëns é uma
das mais felizes construções do espírito. Mesmo se a sua obra revela
raramente essa emoção profunda, que, como dizia Beethoven “vem do coração
para alcançar outros corações”, é indiscutível que esse compositor genial nos
deixou em todos os domínios obras maravilhosas das quais algumas apenas
seriam suficientes para imortalizá-lo e colocá-lo entre os maiores músicos da
escola moderna.
Rio de Janeiro, agosto de 1941.
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REFLEXÕES SOBRE A VIDA
E A OBRA DE MEU EMINENTE MESTRE:
GABRIEL FAURÉ
Meus caros amigos
Nos arredores da pitoresca cidade de Foix, no sul-oeste da França, a modesta
capela de Montgauzy, abrigava, desde o século nove, uma milagrosa estátua
de Nossa Senhora. Durante quase trinta gerações, esse santuário foi o centro
de comoventes romarias, costumando os peregrinos subir de joelhos o sinuoso
e íngreme caminho que levava até o convento. Apesar das revoluções e das
guerras de religião, o culto de Notre Dame de Montgauzy se manteve vivaz até
que, em meados de século passado, o prédio da Escola Normal veio a ser
erguido sobre as ruínas do antigo convento. A capela, porém, reconstituída na
época do império permanece intacta e continua sendo visitada, desde então,
por numerosos romeiros e também por alguns turistas, atraídos pela serena e
sedutora beleza dessa região.
Gabriel Fauré tinha quatro anos apenas, quando o seu pai foi nomeado diretor
da Escola de Montgauzy. Nos majestosos plátanos e magnólias que rodeiam o
austero edifício, no deslumbramento primaveril das cerejeiras e das macieiras,
no esplendor da paisagem que descortina de todos os lados desse jardim
encantado, a poesia do mundo se revela espontaneamente a esse menino.
Na capelinha, o pequeno Gabriel encontra o refúgio onde ele pode se recolher,
sendo sua maior alegria ouvir tocar o modesto órgão, cuja música oferece a
essa alma infantil uma expansão natural e ainda inconsciente, à torrente diária
e ao frescor das suas emoções. É nesse ambiente de pureza, espiritualidade e
meditação, que se desperta, entre os seus quatro e nove anos, a percepção
artística dessa prodigiosa criança, que nada, nas suas origens, predestina à
música e que, no entanto, durante a sua longa e exemplar existência, não fará
outra coisa senão viver pela música, da música, e exclusivamente para a
música.
Uma capela, e um jardim! É da fusão sonora dessa duas misteriosas e
dominantes atrações da sua infância, que irão nascer, ao mesmo tempo: uma
linguagem das mais pessoais e encantadoras de toda a música moderna, e
aquela força imaginativa que permitirá a Fauré cantar a vida e todos os seus
matizes de alegria, esperança ou ansiedade, comum a voz tão irresistível que
eleva, purifica e consegue ultrapassar a própria realidade.
Uma capela, e um jardim! Às vibrações do velho órgão que desde o início,
veicularam o seu juvenil e vibrante pensamento, à sua desmedida admiração
pela obra do Criador, originada no decorrer dos longos passeios em Montgauzy
e nos morros vizinhos, Fauré conseguirá dar mais do que uma substância
harmônica ou uma forma melódica. Longe de recorrer aos possantes efeitos
orquestrais, longe de traduzir numa música descritiva, as manifestações da
natureza, Fauré deixará o piano, as vozes, as cordas expressarem livremente,
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sem grandiloqüência, sem artifícios sonoros, tudo o que ele sente, transpondo
instintivamente, no plano musical, sua ardorosa vibração pessoal e procurando
apenas, na sua música, como ele mesmo nos dirá mais tarde, respeitar essa
regra imutável: “fazer pouco barulho, porém sempre dizer alguma coisa!”.
Durante os seus estudos musicais na famosa Escola Niedermeyer, em Paris,
aquelas penetrantes influências, aqueles dignos preceitos, iluminarão e guiarão
os passos do jovem e brilhante aluno de Saint-Saëns que, aos quinze anos, já
demonstra, na sua primeira melodia Le Papillon et la Fleur, a ambição de
expressar, numa só efusão do pensamento, e por meio do mais simples e
comovedor desenho melódico, a maravilhosa união da música e da poesia.
Rodeado de preciosas e entusiastas amizades, tais a de Messager, Henry
Dupare, Gigout e do próprio Saint-Saëns que veio a ser seu verdadeiro guia
espiritual, Gabriel Fauré inicia aos vinte anos, ao sair daquele modelar
estabelecimento de ensino, a primeira grande etapa da sua carreira artística, à
qual devemos a Sonata para Piano e Violino, os dois Quartetos, vinte
encantadoras melodias, notável produção pianística e a Balada para Piano e
Orquestra originalmente escrita para piano só.
Para esse jovem compositor, ainda desconhecido, porém decidido a nunca
admitir o avassalamento da sua arte, a um efeito de estilo ou qualquer fim que
não seja integralmente musical, para esse autor requintado, que nunca
escrevera pelo simples prazer de compor, ou para ganhar a vida, mas sim para
expressar, com absoluta espontaneidade, o magnífico canto interior da sua
genuína e constante inspiração, a carreira de compositor se revela
particularmente árdua, levando-o a assumir durante alguns anos, o cargo de
organista numa pequena igreja da Bretanha, antes de ele poder voltar a Paris,
onde o chamam suas ardentes aspirações. Ele não conseguirá, todavia, se
dedicar exclusivamente à composição, sendo obrigado a lecionar e aceitar as
funções de organista, em diversas igrejas da capital francesa, a fim de
assegurar a existência do seu lar, nesse período que coincide, entretanto, com
a fase mais fecunda e resplandecente da sua produção vocal e instrumental. A
sua nomeação, aos 51 anos, para Professor de Composição no Conservatório
de Paris, na Cátedra anteriormente ocupada por Massenet, e a concretização,
no mesmo ano, do grande sonho da sua juventude, o encargo de Grande Órgão
da Igreja da Madeleine, marcam para Gabriel Fauré, ao mesmo tempo que sua
libertação das preocupações materiais imediatas, a primeira consagração
oficial, na vagarosa, porém ininterrupta, e tão gloriosa ascensão, que levará o
sutil renovador da composição harmônica e da moderna canção francesa ao
prestigioso lugar que ele ocupa, hoje em dia, no cenário musical
contemporâneo.
Meu primeiro contato com Gabriel Fauré se deu no dia em que me apresentei
ao Concurso de Admissão ao Conservatório de Paris, do qual ele fora nomeado
diretor. Eu tinha treze anos, acabava de chegar do Brasil e estava bem longe,
naquela ocasião, de suspeitar o importante papel que iria desempenhar em
toda minha formação artística, esse senhor tão simples e delicado, que presidia
o imponente júri, e que eu tinha visto de longe, poucos dias antes, em frente à
porta daquela célebre instituição, para a qual convergiam então todas as
minhas esperanças. Quando fui chamada para tocar, na sala onde estava
reunido o imponente júri, tive que passar bastante perto da mesa da diretoria,
antes de chegar ao piano, procurando reprimir a todo custo minha emoção, sob
a aparência a mais hermética. Não pude deixar, todavia, de ouvir o breve
comentário que Gabriel Fauré que presidia a bancada fez a meu respeito ao
68
seu vizinho, o ilustre pianista Harold Bauer: “Aquela menina, disse Fauré, deve
tocar muito bem! Eu já constatei que os candidatos que têm como ela aquele
olhar de soslaio tocam, geralmente, muito melhor do que os outros”. Fiquei,
pois, bastante desnorteada quando, após ter tocado doze ou quinze compassos
da Terceira Balada de Chopin, fui interrompida pela campainha do Presidente,
que era o sinal convencional para significar ao executante que os seus juízes já
haviam ouvido bastante. Saí daquela sala num estado de absoluto desespero,
convencida que o júri me achara imperfeitamente preparada, e ouvindo, no
inesperado toque de campainha, a minha irremediável condenação.
O que sucedeu foi, felizmente, o contrário do que imaginara, tendo sido as
poucas linhas daquela execução ao piano, julgadas suficientes para que, como
já acontecera outras vezes, o candidato fosse admitido sem outra formalidade.
Foi logo no início do ano letivo, algumas semanas depois da minha admissão
ao Conservatório, que tive, inesperadamente, minha primeira conversa com
Gabriel Fauré. Meu professor Antonin Marmontel, para cuja classe fora
designada, estava encerrando uma de suas aulas quando, após ter
insistentemente batido à porta, um contínuo entrou e disse, em alta em
pomposa voz: “O Senhor Diretor manda chamar: la petite brésilienne. Devo
confessar que, se durante o trajeto entre a minha classe e a sala da diretoria, o
meu coração deu sinais de profunda perturbação, não era somente devido à
honra de ser recebida pelo genial autor de Promethée, chegado naquela época
ao auge da celebridade, mas também, ao temor de eu ser admoestada por
Deus sabe que travessura minha. Essa entrevista, no entanto, na qual eu falei
do Brasil e das lindas hortênsias da minha cidade natal, e Gabriel Fauré, da
música, que era sua única linguagem, foi a primeira de muitas e muitas outras,
em que iam sempre crescendo o meu entusiasmo e o meu fervor por esse
músico excepcional de quem me tornei, desde então, dedicada discípula e
incondicional admiradora.
Nunca esquecerei as incomparáveis lições de estética musical desse invulgar
professor, cuja personalidade, doçura e encanto se refletiam num olhar de
sonho e imaterialidade, e que não reprimia, naquele ambiente de deliciosa
camaradagem, o fundo jovial e folgazão da sua fascinante natureza. Eu era,
naquela época, uma menina bastante levada e não posso deixar, hoje, de ficar
comovida ao evocar a indulgência e a bondade do meu ilustre mestre que
nunca censurou a petite brésilienne e até se divertia como uma criança com as
minhas repetidas diabruras.
Guardo, fervorosamente entre as mais vivas e gratas recordações da minha
carreira, a lembrança das sucessivas e maravilhosas tournées de concertos
“com meu ilustre mestre, através das grandes cidades da Province francesa, no
decorrer das quais, Fauré não hesitava quando faltava a orquestra, em tocar a
meu lado a parte do segundo piano, para acompanhar a minha execução da
sua célebre balada.
Da sua índole humorística e do seu gosto da fantasia que Fauré nunca deixou
transparecer nas suas composições, e constituem talvez faceta menos
conhecida do seu caráter, encontramos significativa ilustração, na autêntica
história que ele gostava de nos contar, a respeito da primeira execução em
público do admirável Sexto Noturno. Visivelmente impressionada pela
extraordinária pureza de sentimentos que dimana dessa obra, uma senhora que
se julgava bastante entendida e provavelmente à espera de uma resposta
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sensacional, perguntou ao mestre, nos bastidores da Sala de Concerto, qual
era o céu luminoso que inspirava essas harmoniosas páginas. “Acredite ou não,
minha senhora, respondeu o autor, idealizei o Noturno num dia de chuva ao
atravessar o túnel do Simplon, no trem que me trouxe da Suíça o ano
passado!”.
Esse homem, essencialmente bom e generoso, sabia também ser enérgico e
severo, conforme veio provar o radical programa de reformas que ele aplicou
durante sua atuação à frente do Conservatório de Paris, com uma implacável
tenacidade, que parecia tão contrária à sua natureza. “Dizem, confiou-me um
dia o meu mestre, que está soprando nesta velha casa, um vento de revolução!
Não vá contar a ninguém o que vou lhe dizer: Esse sopro é apenas o da
música!”
Distinguida pela preciosa e sincera amizade desse genial animador da moderna
escola musical francesa, iniciou-se, logo depois, para mim, o inolvidável período
durante o qual, tendo eu ultimado o estudo da maior parte de sua música de
piano e câmara, Gabriel Fauré (informado por Alfred Cortot, das minhas
possibilidades no plano da arte vocal) fez questão que estudasse com ele
quase todas as suas melodias.
A música de Gabriel Fauré! Quem podia defini-la, melhor do que ele mesmo,
com essas poucas palavras escritas à sua mulher, depois de compor o primeiro
Quinteto (em 1906): “tenho a impressão, escrevia ele, que a minha música
ainda não está ao alcance de todos”.
Houve efetivamente na França uma época, felizmente já remota, em que, nos
meios artísticos, a incompetência de certos críticos se media pela sua
incompreensão da música de Fauré. A arte sumamente requintada do autor de
Penélope foi considerada, durante aquele período, como sendo o apanágio de
uma pequena “elite” fora da qual não podiam ser apreciadas, em toda a sua
plenitude, as qualidades de sensibilidade, reserva e pureza dessa música
exclusivamente arquitetada para o espírito e o coração.
As múltiplas e vibrantes manifestações que assinalaram, no Brasil, as
comemorações do centenário do nascimento de Gabriel Fauré, e, por outro
lado, a calorosa acolhida proporcionada, em todo o país a diversas obras do
seu admirável repertório, abrangendo todos os gêneros, vocal instrumental e
orquestral, constituem a prova indiscutível de que, neste país, não fica restrita a
uma elite a penetrante beleza da música pura, e também a prova de que, o
público não se deixa unicamente arrebatar pela exuberância e os efeitos
sonoros, conseguindo num sussurro confidencial, fazer igualmente vibrar a
alma ouvinte.
Ao encerrar essas breves reflexões sobre a eminente figura do meu saudoso e
querido mestre, não posso deixar de evocar a imagem da magnífica
consagração da carreira de Gabriel Fauré, à qual tive a felicidade de assistir,
em 1922, no Grande Anfiteatro da Sorbonne. Todo o mundo oficial, todos os
seus amigos, alunos e discípulos, todos os músicos, virtuoses e compositores,
grandes e pequenos, toda a França musical e também inúmeros admiradores
anônimos estavam reunidos no suntuoso Teatro da Universidade de Paris, para
tributar a Gabriel Fauré, que já tinha quase oitenta anos, a gratidão e o apreço
do seu país, num incomparável festival em que seus colegas, entre os mais
70
ilustres, tocaram ou regeram sucessivamente algumas das suas imorredouras
composições.
Sentada bastante perto e em frente ao glorioso homenageado, o qual, ao lado
do Presidente Mitterand, assistia com comovida satisfação, porém sem orgulho,
às entusiásticas aclamações de um mundo definitivamente conquistado pela
magia e o “charme” do seu genial pensamento, pude perceber, na serenidade
do seu olhar, a visão longínqua de uma grande saudade. Gabriel Fauré,
Membro da Academia, Diretor Honorário do Conservatório, que o Governo
Francês acabava de condecorar com o mais alto grau da Legião de Honra,
festejava tranqüilamente o seu triunfo, evocando naquele instante o berço
encantado da sua infância: “Uma capela, e um jardim!”
71
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E
INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1941
Ciclo de Palestras sobre a História da Música
Terceira Série
A ESCOLA MODERNA FRANCESA – GABRIEL FAURÉ
Entre as recordações da minha infância, uma das mais belas, e que deixaram
em mim, para sempre, a mais profunda impressão, são as horas de encanto e
de emoção artística que tive a felicidade de passar ao lado desse genial
animador da Escola Moderna Francesa: Gabriel Fauré, meu ilustre mestre.
Nunca esquecerei as maravilhosas tournées que fizemos na França, tocando,
eu com ele, a dois pianos, sua famosa Balada, e ouvindo-o acompanhar o
violinista e a cantora que faziam parte do nosso grupo. Quantas vezes o vi se
divertindo com ninharias, revelando o caráter mais jovial e folgazão que se
possa imaginar. Ele era, aliás, todo doçura e ternura, e sua natureza requintada
se refletia na expressão, quase indefinível, do seu olhar, que trazia, ao mesmo
tempo, o ar de sonho e de imaterialidade que lhe era tão próprio.
Insuficientemente apreciado durante sua modesta e trabalhosa existência,
Fauré, cuja glória começou realmente a se difundir através do mundo só depois
da sua morte, em 1924, será sem dúvida ainda mais avaliado pelas gerações
futuras, que o colocarão, talvez, na primeira fila dos compositores, não somente
de sua terra, mas também do mundo inteiro.
Do mesmo modo que Brahms, na Alemanha, é considerado como a encarnação
da alma do seu país, pode-se dizer que não há gênio musical mais
especificamente “francês” do que Gabriel Fauré.
É verdade que a música fala uma linguagem universal que todos podem
entender, e que passa por cima de todas as fronteiras. É incontestável, porém,
que esse modo de expressão com Gabriel Fauré, canta o pensamento de um
músico que se acha forçosamente enraizado, pelo seu coração e seu espírito,
pela sua educação e sua ascendência, na terra na qual foi criado, no país e na
época aos quais ele pertence. Se Mozart não tivesse nascido em Salzburg, e
vivido em Viena, ele não teria escrito o mesmo Don Giovanni nem o mesmo
Cosi Fan Tutte, e se Wagner soube tão maravilhosamente exteriorizar, em
Tristan et Isolde, sua paixão por Mathilde Wesendonck, não é unicamente a
esse sentimento ou ao seu gênio, mas também ao seu atavismo, aos poetas, e
à filosofia que inspiraram sua juventude, e à essência da Alemanha daquela
época que se deve essa prodigiosa ópera.
Fauré, como Franck, Debussy, d’Indy, encarnou essa renascença musical
graças à qual a França atingiu novamente, desde o fim do século dezenove, o
lugar de honra que ela ocupava no tempo de Rameau, e enriqueceu
72
magnificamente a linguagem musical da sua terra, com uma obra de grande
pureza artística que prolonga a mais bela tradição francesa, mesmo quando ele
parece afastar-se dela. Efetivamente, Fauré compreendeu que, em matéria de
música, “inovar” podia às vezes ser sinônimo de redescobrir o que estava
esquecido, restituir um tesouro perdido, ou, simplesmente, tornar acessíveis,
por meio de uma linguagem mais adequada, tantas belezas que certas formas
arcaicas não permitem perceber. Se as novas harmonias que Fauré inventou
são tão originais que marcam inconfundivelmente suas composições, é
interessante notar que sua obra nos lembra, muitas vezes, os antigos mestres
do fim da Idade Média, enquanto os adoráveis arabescos das suas melodias
despertam o eco adormecido dos velhos cânticos orientais do século 16.
Essa ponte espiritual que Fauré lançou para ligar uma época tão distante com
as aspirações do mais recente modernismo, esse milagre realizado pela fusão
dos poetas da Grécia Antiga e da música dramática contemporânea, no mesmo
desejo e no mesmo ímpeto de liberdade, constitui, a meu ver, a característica
essencial de seu gênio.
Examinando a sua obra, tão diversa e abundante, que se estende sobre 60
anos de fecunda produção, podemos constatar a esplêndida evolução, ou
melhor, a constante ascensão da sua notável personalidade. Mesmo quando,
aos 20 anos, ele nos deixa ainda perceber suas origens, assim como certas
influências bem nítidas, sua originalidade surge, com audácia e potência. E
pouco a pouco, até chegarmos à segunda metade da sua vida, cada uma das
suas obras se revela mais apurada do que a precedente, mais libertada dos
seus enfeites, e se aproxima cada vez um pouco mais da luz verdadeira e
deslumbrante para nos descobrir enfim, desta vez, até o fim da sua carreira, a
mais pura e genuína irradiação do seu genial pensamento.
Na escola de Música Religiosa Niedermeyer, onde ele foi admitido aos 9 anos,
Fauré estudou ao mesmo tempo com Messager e Gigou. Sua grande ambição
era de vir a ser organista e, quando um certo dia, passeando com um dos seus
camaradas em cima da Butte Montmartre, Fauré lhe disse brincando e
mostrando os magníficos monumentos da Capital: “Você terá a Igreja de St.
Augustin! Eu terei a da Madeleine” ele não podia imaginar que isso se
realizaria.
Foi durante seus árduos estudos nessa escola que Fauré se imbuiu do sentido
profundo da música “eclesiástica”, ao mesmo tempo que ele se apaixonava pela
obra de Mozart, curioso contraste que devia ser uma das originalidades do seu
gênio. Saint-Saëns, que foi seu mestre antes de vir a ser seu grande amigo,
revelou a Fauré a música de Schumann e de Liszt, e levou-o à Alemanha na
época da encenação de Samson e Dalilah, em Weimar. Mais tarde, Fauré
falando do seu mestre, para o qual ele sempre conservou uma infinita gratidão,
dizia: “É a ele (Saint-Saëns) que devo tudo!”. Maravilhosa palavra que honra
tanto o aluno quanto o professor, que suscitou um tal elogio.
Fauré escreveu uma grande parte da sua obra para vozes, piano e
instrumentos de música de câmara. Foi somente mais tarde que ele abordou a
música dramática. Ele gostava, aliás, tão pouco do trabalho da instrumentação,
que não hesitou em confiar a dois dos melhores alunos a orquestração de
algumas obras-primas, entre as quais, uma composição para canto que veio
enriquecer o repertório dos concertos sinfônicos: L’Horizon Chimérique.
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Os primeiros sucessos de Fauré foram obtidos na composição dessas
encantadoras melodias: La Chanson du Pêcheur, Lydia, Aprés un Rêve,
Mandoline, Les Berceaux, e dessas ternas e sutis harmonizações dos poemas
de Paul Verlaine, que o consagraram como um dos renovadores do Lied na
França, ao mesmo tempo que Ernest Chausson e Henri Duparc. À antiga
Romança de Gounod ou de Massenet, Fauré substituiu uma obra vocal, na qual
o canto, a prosódia e o comentário se juntam para criar, como o fez Schumann,
uma harmoniosa obra de conjunto.
Evitando o uso de títulos sugestivos, que Debussy devia mais tarde tornar tão
popular, Fauré compôs uma imponente obra para piano e música de câmara,
entre outros: numerosos noturnos, dois quartetos para piano, dois quintetos, um
quarteto para cordas, duas sonatas para piano e violino, uma para piano e
violoncelo, a redução para piano da sua célebre Balada para Piano e Orquestra,
o brilhante Thème et Variations, etc. ...., conjunto maravilhoso no qual dominam
a riqueza e a originalidade harmônica, a nobre grandeza, a graça poética e a
sutil elegância que dão a toda a sua música esse imorredouro perfume!
No domínio do drama lírico, citar-vos-ei Promethée, cuja música é de uma rara
perfeição, apesar da sua ousadia, e Pénelope, que nos leva, com um libretto de
um poeta contemporâneo, e depois de um admirável prelúdio, à idílica beleza
de uma legenda homérica, e ficará para sempre, como uma das maiores obras
primas da música dramática francesa. Nas duas suítes de Shylock e de Pelléas,
assim como no coro de Caligula, encontramos a mesma discreta e transparente
poesia, unida à escritura de uma requintada concisão, que imortalizaram suas
melodias.
Um dos meus colegas do Conservatório de Paris, que teve a feliz oportunidade
de assistir outrora a uma aula de Fauré (ele foi professor de Composição antes
de ser nomeado diretor dessa Academia Musical), me contava que, longe de
ser um professor como tantos outros, ele era mais um conselheiro, e um guia
para seus alunos, dedicando a maior parte do seu ensino a interessantes
palestras estéticas e deixando apenas alguns instantes para a correção dos
exercícios que eles traziam.
Ele exigia, antes de tudo, dos seus alunos, a pureza da forma, a ciência do
vigoroso desenvolvimento, indignando-se com o desejo de brilhar, e ambição do
sucesso que, segundo ele mesmo dizia, “sempre levam os músicos às piores
concessões”.
Nas suas aulas, nada de solene ou de dogmático, nada que pudesse intimidar o
executante, o qual sempre encontrava essa deliciosa familiaridade, essa cordial
camaradagem, pelas quais todos o amavam.
Com modéstia, seu desdém da glória, numa época em que os mais medíocres
conseguiam fazer tanto barulho, prejudicou notavelmente a carreira desse
compositor, conhecido sobretudo pelas suas melodias, e que não fazia o menor
esforço a fim de impor ao grande público suas obras mais importantes.
Sua carreira foi tão modesta quanto sua pessoa, e se Fauré, rodeado somente
pela admiração dos verdadeiros músicos e pelos intelectuais, adquiriu em
numerosas ocasiões, no decorrer da sua longa existência, a convicção absoluta
que suas obras iriam crescendo na compreensão do público e que um dia o
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mundo lhe faria justiça, isso não impede que ele tenha pago essa certeza com
tantos desgostos, tantas dúvidas, e mesmo tantas humilhações.
É difícil acreditar que, no dia da morte desse grande músico, o Ministro da
Educação daquela época, François Albert, solicitado a prestar ao antigo Diretor
do Conservatório uma ultima homenagem oficial, tenha perguntado: “Fauré!
Quem é esse senhor?”. Koechlin, discípulo e amigo íntimo do compositor, que
chefiava a delegação do Ministério da Educação, teve a maior dificuldade em
obter que o Governo fizesse a esse “pobre desconhecido”, no entanto membro
da Academia, exéquias nacionais.
A arte de Fauré, toda de ternura e firmeza, de elegância e de vigor, foi nesses
últimos anos, freqüentemente comparada à de Mozart, com a qual existem
realmente, sob certos pontos de vista, indiscutíveis analogias. Como o autor da
Flauta Mágica, Fauré possui um estilo de uma transparência tão nítida, que
perde uma grande parte da sua beleza, se um detalhe, aparentemente
insignificante, for omitido na execução. Como Mozart, ele se distingue pela sua
graça elegante, pelo encanto do seu espírito, pela nobreza da sua inspiração, e
pela pureza da sua escritura. Enfim, como é o caso em Mozart, a música de
Fauré é matizada pelas misérias e pelos sofrimentos humanos, ficando todavia
sempre sensível à beleza, e elevando a humanidade até esferas mais altas
onde a arte sonora possa aliviá-la e confortá-la.
Apesar de seus últimos anos terem sido marcados por uma surdez, talvez mais
trágica ainda do que no caso de Beethoven, pois essa se manifestava por
perturbações que falseavam a percepção dos sons, Fauré soube, como Mozart,
dominar qualquer grito de revolta, e ficar, até o seu último fôlego, mestre de si
mesmo, e digno da maior admiração pelo seu indomável gênio!
Rio de Janeiro, agosto de 1941
75
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE
E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1951 – 5a Aula
O ESTILO DE GABRIEL FAURÉ
Na preleção que dediquei a Debussy na aula inaugural do Curso deste ano,
referi-me à barreira, em aparência intransponível, erguida contra a expansão da
arte popular, na França, pela escola “debussista” cuja produção, inspirada por
excessivo individualismo, requinte e abstração, não conseguiu alcançar senão
uma pequena minoria, pelo fato dessas obras não falarem uma linguagem
universal, pretensa definição da arte musical.
No entanto, o verdadeiro precursor daquela música do espírito e daquelas
audácias harmônicas que marcaram durante mais de meio século a evolução
da música francesa contemporânea, foi Gabriel Fauré, nascido quase vinte
anos antes do autor de Pélleas et Mélissande e em cuja obra já germinavam
quase todas as conquistas e as temerárias antecipações da escritura moderna.
Foi, efetivamente, Fauré o primeiro a revelar aos músicos da sua época, que o
enriquecimento e o desenvolvimento daquela escritura, só poderiam resultar
dos progressos da harmonia, já que, no plano do “contraponto” era difícil
encarar qualquer meio de exceder o grau de absoluta perfeição atingido por
Bach, ao passo que eram necessárias repetidas e constantes inovações no
plano do “mecanismo harmônico” a fim de ampliar um vocabulário sempre
julgado insuficiente pelos compositores para traduzir todos os seus
pensamentos e seus sonhos.
Pondo em prática esse conceito com a maior naturalidade, Fauré agregou à
encantadora elegância e originalidade do seu fraseado recursos harmônicos
desconhecidos até então, incorporando às cadências gregorianas da sua paleta
uma inesperada diversidade de coloridos de rara finura e delicadeza,
transpondo no plano musical um conjunto de sutis emoções, de carícias e
frêmitos misteriosos, de ecos e ressonâncias inauditos, manobrando com
incrível destreza os equívocos tonais, os encadeamentos de acordes assim
como as mais imprevistas modulações, e envolvendo esses maravilhosos
poemas da inteligência com aquele halo imponderável e com aquele cativante
perfume que pairam sobre essa genial produção.
Outro grande mérito de Gabriel Fauré foi ter realizado essa obra milagrosa,
quase que com o único recurso da escritura pianística, ao invés de Debussy e
Ravel que, para captar semelhantes graduações e matizes, tiveram de recorrer
à orquestração. Ele não pensava orquestralmente e, confinou-se em
instrumentar, sempre com simplicidade e às vezes com o auxilio de um ou outro
dos seus discípulos, aquelas obras que pareciam exigir intervenção orquestral,
o que se deu, por exemplo, com a célebre Balada, a Fantasia e Dolly, todas
essas escritas originalmente para piano, quatro mãos ou dois pianos.
76
Quando Fauré recorreu à voz humana para concretizar seu devaneio, foi
também ao piano, e ao voluptuoso envolvimento da linha melódica, que ele
pediu para traduzir diretamente o sentido íntimo do poema, deixando quase
sempre o pianista ultrapassar a cantora na interpretação do texto. Mais de cem
melodias, escritas entre os quinze e setenta e sete anos e abrangendo os mais
diversos poemas, de Théophile Gautier e Victor Hugo até Verlaine e Baudelaire,
imortalizaram, desse modo, numa infinita variedade de acentos e sensações um
gênero estritamente pessoal. Situado a meio caminho do Lied e da romança e
ensejando ao seu autor o perfeito congraçamento da encantadora linha
melódica com as profundas volúpias de uma sensibilidade harmônica sem igual,
o estilo faureano consegue esgotar, com alguns compassos apenas, todo o
conteúdo de sonho e de infinito, do poema que o inspira.
Voltando a sua esplêndida eclosão pianística que reúne, entre outras obras
primas, treze barcarolas, treze noturnos, quatro Valses-Caprices, três
Romanças sem Palavras, uma lindíssima Mazurka, o monumental Tema com
Variações, os cadernos de Dolly e da Fantasia, dir-vos-ei que toda essa
produção encarna, com absoluta espontaneidade, as qualidades de discrição,
gosto e requinte do modesto compositor que sempre se recusou em admitir o
avassalamento da sua arte a um efeito de estilo ou a qualquer fim que não
fosse integralmente musical, limitando-se a expressar, fielmente, o magnífico
canto interior da sua genuína inspiração.
Se Debussy foi um ambicioso, um conquistador, animado – desde a juventude
pelo desejo de fugir da sua aldeia natal e de se elevar, Fauré, pelo contrário,
embora ciente do seu próprio talento, ficou sempre compenetrado da
relatividade dos esforços humanos e desdenhoso – das honrarias que vieram
coroar sua gloriosa carreira, assinalando-se, na sua existência como na sua
obra, pela sobriedade, pela modéstia, pela discrição e conseguindo a rara
felicidade de realizar o seu sonho, por ter sido aquele sonho imbuído do gênio
de um sábio e das tradições ancestrais de uma sólida e modestíssima família
francesa.
Talvez permaneça verdadeira, por algum tempo ainda, a definição que o próprio
Fauré deu, numa carta à sua mulher, depois de compor o Primeiro Quinteto (em
1906) a quem ele escrevia: “Tenho a impressão que minha música ainda não
está ao alcance de todos!”
No entanto, as múltiplas e vibrantes manifestações que, durante os meses de
maio e junho de 1945, assinalaram no Brasil a comemoração do centenário do
nascimento do meu ilustre e saudoso mestre, e também a calorosa acolhida
proporcionada antes e depois desta data às obras do seu prodigioso repertório,
constituem a prova indiscutível de que, neste país, não fica restrita a uma elite a
penetrante beleza e o sutil perfume da música de Gabriel Fauré de quem
ouviremos hoje, em primeira audição integral no Rio, uma das composições
mais características intitulada Dolly.
As páginas admiráveis reúnem sob esse título (que quer dizer Bonequinha, em
português), seis quadros singelos chamados respectivamente
Berceuse
Mi-a-ou
Le Jardin de Dolly
Kitty Valse
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Tendresse
Le pas espagnol
Embora escritas para o divertimento de uma criança e, por conseguinte num
estilo e num espírito às vezes aparentemente infantil, irradiam na realidade a
quintessência da emoção, do humor e do espírito faureano. Não duvido, pois,
que este primor da literatura pianística contemporânea, de carretar tão delicado
e penetrante, impressione igualmente os meus ouvintes “adultos” que talvez já
conheçam a transcrição para duas mãos do primeiro quadro “Berceuse”, que
tive ensejo de tocar no Rio em diversos recitais.
Tenho, pois, imenso prazer em oferecer-vos e interpretar hoje essa obra, no
seu conjunto, sendo que, escrita por Fauré para quatro mãos, Dolly ser-vos-á
apresentada com a colaboração de mais duas mãos – e da fina musicalidade
da pianista Laís Prado Vasconcellos.
Rio de Janeiro, 8 de agosto de 1951
78
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E
INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1941
Ciclo de Palestras sobre a História da Música
Terceira Série
A ESCOLA MODERNA FRANCESA
CLAUDE ACHILLE DEBUSSY
Na época da morte de Wagner, em 1883, o mundo musical parecia ter acabado
sua grande revolução lírica e realizado suas maiores ambições artísticas.
Na França, as sociedades de Concertos Pasdeloup, Lamoureux e Colonne
difundiam por meio das suas famosas orquestras a grande obra de Wagner,
apresentando, no início, fragmentos sinfônicos, e, mais tarde, cenas e atos
inteiros extraídos dos seus dramas, criando desse modo um público não
somente apaixonado de música, mas também capaz de compreender um
gênero de obras que teriam ficado inacessíveis à geração precedente ou que a
teriam simplesmente deixado indiferente.
Simultaneamente, com essa ação tão benéfica, uma verdadeira renascença se
produzira por aquele punhado de artistas que fundou a Société Nationale de
Musique, entre os quais César Franck e Saint-Säens, e que empreenderam a
nobre tarefa de restituir à música francesa sua dignidade e seu prestígio, e de
revelar ao grande público que a música de câmara e a sinfonia eram, também,
formas superiores da arte sonora.
O momento era, pois, psicologicamente oportuno para o aparecimento no meio
do mundo musical, de alguém bastante genial para lhe trazer exatamente o que
esse mundo esperava naquela hora, e para suscitar essa prodigiosa vibração
que Goethe chamava: “o melhor do homem”!
Aliás, o caminho já fora aberto por Gabriel Fauré cuja obra tive a oportunidade
de esboçar na minha última preleção, e que foi um dos primeiros, com a
introdução dessas harmonias que lhe são tão próprias e com a sua
remodelação da técnica sonora, em descobrir esses horizontes que seus
discípulos e seus sucessores souberam tão maravilhosamente explorar.
O homem que teve a felicidade de surgir, na França, na época em que o seu
gênio podia melhor se desenvolver e ter a maior repercussão, o compositor que
devia revolucionar a música do mundo inteiro, e libertá-lo de tantas áridas
tradições, o músico, enfim, cuja glória iguala a de Wagner, foi Claude Achille
Debussy!
Nascido em 1862 – 17 anos depois de Fauré, – em Saint-Germain-en-Laye
perto de Paris, Debussy, ao contrário de quase todos os compositores que
estudamos nestas aulas, teve a sua infância e seu primeiro ambiente totalmente
desprovidos de música. Seu pai, modesto comerciante de louça, se preocupou
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muito pouco com sua educação e deixava o menino vadiar, passear, dançar
com seus pequenos camaradas e colecionar borboletas, em lugar de forçá-lo a
freqüentar a escola primária com regularidade.
Aos nove anos, sua madrinha, que morava no sul da França e que gostava
muito dele, convidou-o a passar as férias na sua residência em Cannes, onde
ele começou a estudar piano com um italiano chamado Gerutti, o qual nada
percebeu de notável nas atitudes pianísticas do seu aluno.
Ao voltar à sua casa, porém, o pequeno Claude desdenhando suas distrações
habituais e a companhia dos seus amigos se divertia em tirar acordes do mau
piano do qual podia dispor, e procurava reproduzir nesse instrumento as peças
que a banda militar costumava tocar perto da sua casa.
Uma senhora amiga da família, e antiga aluna de Chopin, Mme. Mauté,
percebeu imediatamente os dons do garoto e decidiu tomar conta dele depois
de ter convencido o pai Debussy que seu filho, ignorante de tantas coisas, e
sem cultura nenhuma, achara no piano o elemento que lhe era o mais natural, e
devia se dedicar à carreira musical.
Foi o precioso ensino de Mme. Mauté, professora inteligente e desinteressada,
e sua admirável devoção a essa criança, que parecia predestinada a um papel
tão preponderante, que encaminharam Debussy para seu glorioso destino.
Em 1873, isto é, apenas dois anos mais tarde, Debussy era admitido no
Conservatório de Paris. Gabriel Pierné, que pertencia à mesma turma, o
descrevia do modo seguinte:
“Esse rapaz esquisito os surpreendia com sua execução, que era ainda mais
singular do que a sua pessoa. Não sei se era por falta de jeito ou por timidez,
mas ele se arremessava literalmente sobre o teclado, forçando todos os efeitos!
Ele parecia tomado de uma espécie de raiva contra o instrumento,
arrebentando-o com gestos violentos e impulsivos, e soprando barulhentamente
ao executar os trechos. Às vezes defeitos iam se atenuando, e ele obtinha
então efeitos sonoros de uma admirável suavidade e de uma inesperada
doçura. Com esses defeitos e essas qualidades, sua maneira de tocar sempre
deixava uma impressão estranha e muito particular”.
Esses detalhes são verdadeiramente significativos, já que nesse espírito de
combatividade, nessa rebelião contra a ditadura da tradição, Debussy, aos 12
anos, revelava repentinamente, essa rara personalidade e esse espírito
revolucionário, sem os quais toda a música moderna teria, talvez, seguido um
rumo diferente.
No Conservatório, Lavignac, seu professor de solfejo, se entusiasmou pela
extraordinária sensibilidade desse aluno que lhe fazia esquecer as horas, com
suas observações sobre a partitura de Tannhäuser ou outras obras dramáticas.
Na classe de piano, Debussy manifestava, sem dissimulação nenhuma, sua
aversão em se conformar com a ginástica severa que Marmontel, professor
exigente e autoritário, procurava impor aos seus alunos, e sua preferência para
a leitura, nas horas de trabalho, das obras-primas da época clássica e do
romantismo. Marmontel, muito aborrecido com esse discípulo fantasista, que
improvisava “prelúdios” de um aspecto tão barroco e de tonalidades tão
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longínquas, dizia dele, no primeiro ano dos seus estudos: “Ele não parece
gostar muito do piano, mas ele gosta muito de música”. Esse julgamento
estava, aliás, completamente errado, no que tange à primeira parte, pois,
Claude, bem pelo contrário, gostava intensamente do instrumento do qual ele
veio a ser um dos magos mais perturbadores. Todavia, ele trazia, no
aproveitamento dos recursos pianísticos, uma personalidade demasiadamente
audaciosa para não chocar um professor tão conservador.
Seus companheiros não adivinharam os dons geniais desse rapaz “tímido,
desajeitado, brusco e um pouco selvagem”. O próprio diretor do Conservatório,
Ambrosio Thomas, não gostava dele, nem das suas interpretações, ao seu ver,
demasiadamente expressivas, do Cravo Bem-Temperado de Bach, considerado
naquela época como “um caderno de exercícios secos e polifônicos”.
Isso nos explica, pelo menos até um certo ponto, que Debussy não tenha
conseguido tirar, ao se apresentar ao concurso no primeiro ano, senão um
segundo accessit. Ambicionando, como todos os alunos, o primeiro prêmio, ele
se apresentou novamente, no ano seguinte, tirando apenas um primeiro
accessit. No terceiro ano, o júri decidiu que sua execução da Sonata 111 de
Beethoven não merecia recompensa nenhuma. Debussy, mais teimoso do que
nunca, se apresentou no ano seguinte, pela quarta vez, com a Sonata em Sol
Menor de Schumann; ele conseguiu apenas tirar um segundo prêmio e chegou
à amarga conclusão que não podia, com o que todos chamavam “seus
defeitos”, aspirar à mais alta recompensa.
Sem desanimar, continuou seus estudos musicais na classe de
acompanhamento de Bazille, tirando um primeiro prêmio, em 1880, apesar das
suas proezas na realização das modulações e das harmonias!
Foi nessa época, cheia de wagnerismo e do culto de Bayreuth – ao qual
Debussy não escapou, apesar da originalidade da sua linguagem musical
nascente – ele foi recomendado a uma grande dama russa, que o contratou
como pianista, levando-o até Moscou, onde se familiarizou com a música de
Borodine e dos novos compositores desse país, e em seguida a Viena, onde ele
assistiu à representação de Tristan et Isolde dirigido por Hans Richter, e a
Veneza, onde teve a felicidade de falar pessoalmente com o ídolo da Europa
inteira, com o deus da música, chegando naquele momento, ao cume da sua
glória: Richard Wagner. Naquele dia, Debussy não pôde prever que ele mesmo
empreenderia, mais tarde, uma cruzada de libertação contra a arte do próprio
gênio de Bayreuth, pelo qual ele teve, no entanto, durante anos, a mais
entusiasta paixão.
Depois de seis anos de estudos, de composição e harmonia, Debussy, em
1885, tomou parte no concurso para o Grand Prix de Rome apresentando uma
cantata L’Enfant Prodigue, na qual pode-se constatar ainda a nítida influência
do maneirismo amável de Massenet. Essa composição ganhou o Grande
Prêmio tão cobiçado, porém ao receber essa notícia Debussy logo teve a
sensação que sua estada em Roma, apesar das múltiplas possibilidades que
lhe ofereceria, seria dificilmente compatível com seu desejo de liberdade e suas
aspirações à mais completa independência.
Com efeito, a Villa Medicis, em Roma, não o seduziu e antes mesmo de
completar os seus três anos de permanência nessa capital, no entanto tão
81
cheia de beleza e de encanto, ele voltava a Paris, único lugar onde podia
realmente trabalhar a seu gosto, e seguir o curso natural da sua inspiração.
Nessa capital, a influência dos escritores e dos poetas se revelou muito mais
forte sobre Debussy que a dos músicos, dos quais – com a exceção de Paul
Dukas, Vincent d’Indy, Chausson, Pierné e Emmanuel – ele não gostava.
Efetivamente, sua maior alegria em palestrar com os numerosos amigos que
tinha no mundo literário, e particularmente com Pierre Louys, o qual, com a
mais encantadora cordialidade, se encarregara de aperfeiçoar a educação
artística incompleta do jovem compositor, e lhe proporcionou sob todas as
formas, em todos os momentos e até seu glorioso apogeu, o mais precioso e
indefectível amparo!
Falando mais tarde desses amigos tão dedicados, com os quais ele devia
sempre manter a mais íntima colaboração, Debussy dizia: “Verlaine, Mallarmé,
Laforgue me traziam novas sonoridades. Projetando sobre suas palavras uma
luz nunca vista até então, e empregando meios desconhecidos dos poetas das
gerações precedentes, elas conseguiam dar à matéria verbal os mais
inesperados efeitos de sutileza e de força. Concebendo os versos e a prosa
como se fossem músicos, e rodeando esses versos e essa prosa de um
verdadeiro carinho de músicos, eles combinavam, do mesmo modo que os
músicos o teriam feito, as imagens e sua correspondência sonora”.
Impressionismo, simbolismo, realismo poético se confundiam nessas reuniões,
num grande entusiasmo de curiosidade e de paixão intelectual. Todos, pintores,
poetas, escultores, decompunham a matéria, interrogavam-na, deformando e
reformando-a à sua fantasia e aplicando-se a tirar das palavras, dos sons, das
cores, do desenho, das nuvens, sentimentos novos e espontâneos.
Foi nessa atmosfera – favorável como a de uma estufa à eclosão de uma flor
delicada –, nesse ambiente sincero e original, que o talento e o gênio de
Debussy se desabrocharam.
Decidido a dar uma forma definida ao gosto instintivo, às idéias pessoais e à
nova linguagem, dos quais ele já possuía todos os elementos, e também com o
fim de dissipar sua dúvidas e suas inquietações, Debussy fez uma primeira
romaria a Bayreuth. Ao ouvir Tristan, Os Mestres Cantores, Parsifal, ele ficou
profundamente impressionado e comovido, e seu entusiasmo pelo wagnerismo
atingiu seu apogeu. Porém, de volta a Paris, ele logo percebeu que uma tal
emoção podia vir a ser destruidora da sua própria personalidade, e que
Wagner, com seu gênio, tornara inacessível esse domínio no qual ele, Debussy,
tinha a intenção de penetrar.
Sua segunda viagem a Bayreuth o deixou mais insensível, e a fim de escapar
definitivamente a uma influência que às vezes o enfeitiçava por completo, e de
poder com inteira liberdade forjar suas armas para a vitória final, ele decidiu
esquecer Wagner, ignorá-lo e destruí-lo em si mesmo.
Imbuído novamente da música russa, das sonoridades brilhantes e exóticas de
Moussorgsky, ele voltou à França, onde encontrou finalmente seus verdadeiros
aliados contra o lirismo romântico, na poesia, no simbolismo, nesse mundo de
símbolos e de encantos, onde “les parfums, les couleurs et les sons se
répondent”.
82
Foi um poema de Mallarmé que inspirou esse magnifico e sutil poema sinfônico
Prélude à l’Après-Midi d’un Faune, obra que nos revela um Debussy
inteiramente libertado das influências passadas, e uma linguagem musical
inédita, que tantos músicos deviam mais tarde procurar imitar.
O Quarteto para Cordas, escrito no mesmo ano, é de uma originalidade similar,
desde as primeiras notas, e se a crítica daquela época não quis admitir sem
algumas reservas, essa arte um pouco desconcertante, o fato é que o Prélude
foi triunfalmente bisado no dia da sua estréia e posto, desde então, bem em
evidência no repertório sinfônico.
Debussy encontrara, finalmente, o “clima” e o modo de expressão da sua arte.
Desejoso de confirmar sua conquista, e entusiasmado pela misteriosa tragédia
de Maeterlinck, Pelleas et Melisande, ele decidiu escrever um drama lírico, de
uma fórmula nova, na qual segundo ele mesmo dizia, “a música começa no
ponto em que a palavra é incapaz de expressar, já que a música é feita para o
inexprimível” e, também, mais adiante, “os personagens desse meu drama,
procuram cantar como pessoas naturais e não numa língua arbitrária, feita de
tradições antiquadas”. Essa obra, à qual Debussy dedicou dez anos de intenso
trabalho, encontrando a hostilidade de um público refratário a tantas inovações,
fracassou por completo, na sua estréia, no palco da Opéra-Comique de Paris
em 1902. Porém, a tenacidade do compositor assim como a compreensão de
um núcleo de amigos e admiradores conseguiu impor Pelleas et Melisande dois
anos mais tarde, e não somente alcançar o triunfo que essa obra-prima do
simbolismo devia perpetuar desde então, mas também, e sobretudo, consagrar
Debussy como o criador de uma verdadeira religião musical.
Entre as maravilhosas contribuições de Debussy à música sinfônica, devo
também assinalar Les Nocturnes, longínquo deslumbramento de uma Festa
imaginária; La Mer, prodigioso tríptico que evoca, com o mais perfeito e
alucinador realismo, todos os aspectos das ondas. Images, poema sinfônico em
três partes: “Gigue”, “Ibéria”, e “Rondes de Printemps”, no qual a virtuosidade
músico-pictural consegue, com um poder infinito de sugestão plástica, nos
revelar um colorido orquestral de uma rara sedução. Enfim, Le Martyre de Saint
Sébastien, cuja música foi escrita em 1911, sobre um poema de Gabriele
d’Annunzio, que a crítica considerou como o Parsifal de Debussy.
No que diz respeito à música de piano, Debussy soube captar sua verdadeira
beleza antes de procurar inová-la. É por isso que, para bem interpretá-la, devese procurar penetrar seu segredo, ler essa música com inteligência, e descobrir
as suas claridades sonoras com a arte de um pintor. Tocando ao piano as obras
de Debussy, o intérprete deve fazer abstração da velocidade pianística
“habitual” e procurar reproduzir esse conjunto de claridades, essa fluidez, essa
transparência, esse som suspirado, essa doçura, e, também, passar sem
transição aos acentos da mais veemente energia, do mais sombrio vigor,
diversidade tão característica do seu estilo. É essa prestigiosa palheta, e a essa
estupenda imaginação que devemos entre tantas outras obras: as duas
Arabesques, a Suite Bergamasque – o “Prélude”, “Sarabanda” e “Toccata”,
Estampes que reúne três peças muito conhecidas: “Pagodes”, “Soirée de
Grenade”, “Jardins sous la Pluie”; as duas séries de Images, das quais
“Poissons d’Or” e “Reflets dans l’Eau” são os mais tocados. Falar-vos-ei numa
próxima aula da visão exótica e deslumbrante revelada por essa maravilhosa
obra-prima: L’Isle Joyeuse, que analisarei também ao ponto de vista
interpretativo. Conheceis todos os dois volumes de Préludes, que reúnem em
83
vinte e quatro obras, a quintessência da volúpia sonora, e descrevem com
recursos originais de uma incomparável variedade, a grandeza e o mistério da
natureza, o espírito e a fantasia, os perfumes evocadores, as paisagens e as
impressões imponderáveis de um mundo imaterial, rodeado por esse encanto
indefinível que a música sabe exalar quando baseada sobre o sentimento
poético. Enfim, Children’s Corner que nos divulga as influências inglesas das
quais Debussy soube tirar um tal proveito e os Doze Estudos, nos quais o
compositor desenvolveu com tanta mestria todos os recursos da técnica
pianística.
Encontramos a mesma irradiação da arte mais sutil na sua música de câmara, e
particularmente no Quarteto para Cordas, na Flûte de Pan e nas suas três
sonatas, a primeira para violoncelo e piano, a segunda para flauta, harpa e alto,
e a terceira para piano e violino, que foi uma das suas últimas composições.
Das suas obras vocais, inspiradas pelos poemas mais raros, a esse compositor
requintado que os soube cantar novamente com tanto amor, citarei somente:
Proses Lyriques, Ariettes Oubliées, Chansons de Bilitis, essas últimas sobre
poesias de Pierre Louys, Trois Ballades de François Villon, e esse admirável
conjunto de melodias inesquecíveis que mereciam ser enumeradas uma por
uma.
No dia 17 de março de 1918, Debussy assinou sua carta de candidatura à
Academia. Nove dias mais tarde, no momento em que a Alemanha lançava sua
ofensiva contra Paris, ele sucumbia, aos 56 anos, a uma grave moléstia,
destruindo, no momento de morrer, uma Cantata e duas outras obras que ele
não conseguira acabar.
Numa carta que ele escrevia a Pierre Loys em 1895, isto é, no início apenas da
sua prodigiosa carreira, encontramos a seguinte e tão comovente profecia: “Eu
estou trabalhando em certas coisas que serão somente compreendidas pelos
netos do vigésimo século! Somente essas futuras gerações poderão constatar
que os antigos ídolos da música eram em realidade, tristes esqueletos, cobertos
por um véu que não deixava perceber a verdadeira expressão musical”.
Felizmente, Debussy não teve que esperar tanto para que o mundo lhe fizesse
justiça, e aclamasse o homem que transformou a própria noção da música, para
abrir um horizonte talvez ilimitado ao material inteiro da expressão musical.
Não é exagero afirmar que sua influência é e será ainda mais geral, mais
profunda e mais fecunda do que a do wagnerismo. O fato é que não existe hoje
em dia um só jovem compositor de valor, na Europa, que escreva como se
Debussy nunca tivesse existido!
Rio de Janeiro, agosto de 1941
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CURSO DE APERFEIÇOAMENTO E
INTERPRETAÇÃO DE 1940 – 5º AULA
Senhoras, Senhores,
As minhas quatro primeiras aulas desse Curso de Aperfeiçoamento e
Interpretação foram dedicadas aos quatro compositores entre os mais
representativos das escolas clássica e romântica: de um lado, Mozart e
Beethoven; por outro, Schumann e Chopin.
Já que essas “conferências” são confinadas à primeira parte desse Curso – as
cinco aulas que compõem a segunda parte devendo ser exclusivamente
reservadas às execuções –, resta-me somente esta aula para tratar da música
moderna.
O único compositor moderno marcado no programa das execuções de hoje é
Debussy. Todavia, julgo mais aproveitável, apesar do pouco tempo do qual
disponho, em vez de limitar os meus comentários a esse ilustre mestre, fazervos um pequeno bosquejo de alguns dos traços característicos da música
qualificada de “moderna”.
Para muitos, o termo moderno, no domínio que nos interessa, é sinônimo de
música dissonante, extravagante, povoada de cacofonias, ou bem implica que
ela deve trazer-nos um conjunto de elementos novos, ou de sensações
desconhecidas senão heteróclitas.
Ora, em realidade, a apelação “música moderna” não significa nada mais que o
fato de pertencer à nossa época ou ao nosso século. Seria, por conseguinte,
mais correto denominá-la: música “contemporânea”, o que pouparia a certas
pessoas muitas desilusões na perseguição do estranho e do inédito!
Efetivamente, não há uma música moderna, mas várias músicas modernas.
Tanto em música, como em pintura ou qualquer outra arte, não existe só uma
escola moderna. Há um mundo entre, por exemplo, a concepção musical de um
Reynaldo Hahn, inspirado na forma pelo clássico-romantismo, ou de um
Richard Strauss, inteiramente wagneriano, e a concepção de um Hindemith,
geométrico percuciente, ou de um Darius Milhaud de quem conheceis o
constante intento de sonoridades inéditas e inesperadas.
Os “títulos” descritivos tão empregados na música contemporânea já eram
freqüentemente usados no século XVIII. Couperin os prezava muitíssimo, e
deixou-nos, notadamente, peças intituladas: As Barricadas Misteriosas, O
Murão, A Voluptuosa, O Despertador, Os Velhos Galãs etc., todos estes títulos
eminentemente sugestivos.
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Grande número de compositores, depois de Couperin, se absteve, quase por
completo, de empregar este meio de aclarar-nos sobre as significações das
suas inspirações.
Certos “românticos” puseram de novo em prática o título evocador;
particularmente, Schumann com: Papillons, Carnaval, Scènes de Bal, Tableaux
d’Orient, Humoresque, Scènes d’Enfant etc.
O próprio clássico Beethoven, que já era um grande romântico – que se queira
ou não – denominou igualmente certas das suas obras, como a maior parte das
que ouvimos anteontem, assim como: a Pastoral, a Primavera, o Momento
Glorioso, a Heróica, e tantas outras.
Chopin, ele, afastou-se desse processo quase completamente. E sabemos, no
entanto, quanto a sua música presta-se a todas as divagações do coração e do
espírito!
O “impressionismo” incitara os seus adeptos a usar novamente os títulos
indicativos. Liszt, que foi o precursor deste modo particular de expressão
musical, lançou-se deliberadamente nas denominações descritivas, e lhe
devemos numerosas composições, reveladoras neste sentido.
Acontece, com freqüência, um autor dar a uma das obras um título ao qual ele
não presta a sua real significação.
É por isso que, salvo no caso de uma indicação bem determinada do autor, eu
considero que as evocações sugeridas pelos títulos são o direito exclusivo do
intérprete.
Gabriel Fauré, que não era particularmente um descritivo, e cujo gênio faz mais
apelo às emoções interiores, consentiu raramente livrar, pelos seus títulos, o
verdadeiro sentido das suas inspirações. Seria talvez unicamente por pudor?
Afinal não o creio! Tive o grande privilégio de conhecê-lo muito, e, antes, atribuo
esse fato ao respeito que Fauré professava para com a liberdade da concepção
alheia. (Confesso-vos que Fauré era um homem encantador. Durante uma
tournée que fizemos juntos, na França, tocando a sua famosa Balada para dois
Pianos, nada o divertia mais que ver-me descascar as laranjas à moda da
nossa terra, deixando somente o centro da fruta no garfo).
Quantas imagens, pelo contrário, nos sugerem os títulos da música de Ravel:
Pavanne pour une Infante Défunte, Alborada del Grazioso, Les Miroirs, e quase
todos os outros !
Falando de Ravel – de quem, infelizmente, não teremos a fortuna de ouvir, hoje,
nenhuma obra, assim como eu o teria desejado, – sempre lutei contra certos
amadores, críticos e músicos que só querem ver neste compositor um relojoeiro
astucioso, sábio e inventivo, que soube tirar partido de muitas coisas, porém
não conhece os arremessos do coração. Na verdade, Ravel ressente
perfeitamente os impulsos da sensibilidade, todavia ele os exprime com certo
pudor na efusão! Além disso, a sua natureza o leva a um estilo muito apurado,
que incita facilmente o público ao equívoco!
Debussy, ele, fez inteiramente sua a fórmula do título sugestivo, e isso com real
maestria. Na sua produção para piano, os dois livros de Prelúdios, com doze
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prelúdios em cada um, são um flagrante significativo do título evocador! Poderia
citá-los todos: Brouillards, Feuilles Mortes, Les Fées sont d’Exquises
Danseuses, Ondine, Feux d’Artifices, La Fille aux Cheveux de Lin, Les Collines
d’Anacapri etc. etc. Cada um deles é uma pedra preciosa da grande obra-prima
que estes dois livros representam.
Não garanto, todavia, que o título seja meio infalível de facilitar a compreensão
dos textos em geral.
Em todos os casos, para certa música futurista, somos bem felizes, de ter um
título sobre o qual apoiar-nos, pois que, sem ele, não poderíamos nem mesmo
adivinhar a significação de notas tão abracadabrantes quanto multiplicadas.
Acrescento, aliás, que nesse caso é freqüente, apesar do título, que não
estejamos mais adiantados!
Com Debussy, não há que temer semelhante inconveniente. É indiscutível que
os seus títulos contribuem amplamente a fertilizar a nossa imaginação, e podem
até fazer-nos, às vezes, ultrapassar as suas intenções. “Eu não me esperava a
tanto!”, poderia ele ter dito em certos casos. Felizmente, essa escolha é
geralmente evitada, pois é mais habitual ver-se trair um autor por falta de
compreensão que por excesso!
Ao meu ver, nada é pior, no que diz respeito à interpretação, que a indiferença.
Mais vale ainda enganar-se, porém agir, o elemento vida, sobretudo na música
moderna, sendo absolutamente primordial.
Ainda mais que, se os clássicos se limitavam com preferência à exaltação do
espírito, os românticos, sobretudo às devassidões do coração, os modernos,
eles, acharam em numerosos assuntos novos, múltiplos motivos de
exteriorização musical. E isto, com meios técnicos que entram por muito em
conta na possibilidade de sugestão total.
A água, sob seus diferentes aspectos, terá desempenhado um grande papel,
desde o início da música impressionista, e é esse um elemento que a nova
escritura musical soube evocar prodigiosamente. Entre as ilustrações as mais
conhecidas desse maravilhoso elemento da natureza, citar-vos-ei: Liszt, com À
Beira de uma Fonte, São Francisco de Paula caminhando sobre as Ondas, Les
Jeux d’Eau de la Villa d’Este; Ravel, com Jeux d’Eau; Debussy, com Les Jardins
sous la Pluie, e tantos outros.
Não há dúvida que Debussy tenha sido, na sua época, um libertador, e
compreende-se facilmente que a fluidez iriada da sua escritura, a essência das
suas sonoridades emanavam de um gênio, de antemão pouco disposto a um
amor imoderado dos acentos massivos beethovenianos.
É assim que, ao ensaio geral do seu bailado Jogos, e antes da execução,
Debussy virando-se para os músicos da orquestra, lhes dizia: “Sobretudo uma
recomendação: não toquem a minha música como a do velho surdo!”. É inútil
dizer-vos o espanto dos músicos diante do que eles consideravam como uma
profanação.
Debussy, como o sabeis, abarcou todos os domínios da música. Teria tanto
desejado falar-vos da obra mais importante que ele nos deixou: Pelleas et
Melisande, essa admirável ópera, inspirada do drama de Maeterlinck, que foi
87
estreada em Paris em 1902. Com essa obra, Debussy trouxe ao teatro lírico
uma nova orientação, um estilo novo, tanto na melodia vocal como no
comentário orquestral que cresce e decresce com tanta poesia, segundo a
intensidade da ação cênica, envolvendo as vozes num ambiente sonoro,
culminante no quarto ato, com os recursos de uma estética discreta e refinada
que representa o maior contraste com a concepção wagneriana.
Que dizer da sua música para orquestra que não levasse a palestrar
infinitamente!
A sua música de câmara é dominada pela Sonata para Piano e Violino,
verdadeiro primor de fantasia!, e também pelo Quarteto para Cordas que
indiscutivelmente é, no seu gênero, a produção a mais feliz da música de hoje.
A respeito de quarteto, vem-me ao espírito uma anedota sucedida ao Quarteto
Capet do qual já vos falei no outro dia.
(Anedota)
Debussy – humorista quanto poeta, penetrou com rara felicidade a maior parte
dos segredos da natureza da qual ele tinha uma compreensão admirável.
Todos os ruídos ou sussurros que ela espalha, Debussy os transformava em
harmonias.
De fato, a qualidade que, em música mais o comovia, ele a definiu como segue:
“Uma transposição sentimental do que é invisível, na natureza”.
É muito disso que é feita toda a sua música, tantas vezes e extraordinariamente
comentada, porém, sem embargo, nunca se conseguirá determinar de todo,
porque não se define o indefinível!
Entre os vários prelúdios que ouviremos hoje, escolho dizer-vos só algumas
palavras sobre A Cathédrale Engloutie, que é uma das ilustrações as mais
manifestas da diversidade de inspiração que Debussy possuía e da sua
prodigiosa faculdade de assimilar-se integralmente ao assunto tratado.
Não é assim tão simples descrever verbalmente essa Catedral, com o seu
aspecto grave e grandiosamente sombrio na qual o jogo de sonoridades dos
sinos, longínquos ou próximos, estabelece uma atmosfera fervorosa.
Eu a suponho surgindo das vagas, na névoa de um país nórdico. A neblina se
dissipa, a Catedral resplandece em toda a sua soberana majestade. Logo,
alguns compassos nos dão a sensação confusa do perigo que mina essa
massa possante – mais alguns compassos, tão dolorosos, e os sinos fúnebres,
desta vez, nos fazem sentirmos o soberbo símbolo da fé, ferido em pleno
coração. Por fim, o redemoinho no qual a Catedral soçobra e se absorve,
pacífica, a despeito de tudo!
Palavras estas minhas bem fracas diante de uma obra tão magnificente!
Os outros prelúdios e as outras peças que serão tocadas agora vos trarão mais
uma confirmação de que Debussy permanece, sem dúvida, o compositor que
88
mais libertou a música das fórmulas já totalmente exploradas e o inovador
incontestável dos sentimentos e das exteriorizações musicais deste século.
Apesar de que muitos dentre vós acham, provavelmente, que durante estas
minhas aulas eu monopolizei o piano ao ponto de não permitir quase aos
participantes desse curso de tocarem, e atendendo ao pedido que me foi feito,
vos tocarei, como despedida até a semana próxima, uma das peças de
Debussy que escolhi para vós entre as eleitas do meu coração: L’Isle Joyeuse.
São Paulo, 23 de outubro de 1940
89
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E
INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1941
Ciclo de Palestras sobre a História da Música
Terceira Série
A ESCOLA MODERNA FRANCESA
A OBRA DE MAURICE RAVEL
Nascido em 1875 em Ciboure, pequena cidade do Sul da França, vizinha da
fronteira espanhola, Maurice Ravel não revelou na sua infância os dotes
precoces que foram o apanágio de tantos ilustres compositores. Todavia, se
não contam a seu respeito anedotas fabulosas, parecidas com a do bebê
mitológico que aos dois meses estrangulou duas gigantescas cobras no seu
berço, e se ele não foi tampouco o mais brilhante aluno da sua classe no
Conservatório, ele soube, desde suas primeiras obras, afirmar sua ousada e
lúcida personalidade, e trazer desde então, à música francesa moderna, com
uma presciência infalível, e numa constante ascensão, uma das mais originais e
notáveis contribuições.
Suas primeiras composições: Sérenade Grotesque, Les Sites Auriculaires, e
Habanera foram escritas em 1896, isto é, aos 20 anos, logo depois de ter
completado, no Conservatório de Paris, seus estudos de piano, contraponto e
harmonia, porém dois anos antes de ser admitido na classe de composição de
Gabriel Fauré. Já se pode constatar nessas obras, e particularmente em
Habanera, cujo tema deveria ser aproveitado mais tarde, pelo próprio autor, na
sua Rapsodie Espagnole, as qualidades de claridade, de inteligência e de
ingênua ternura velada pela ironia, que encontraremos nas composições
escritas em plena maturidade.
Seu estudo com Fauré e a maravilhosa irradiação desse mestre encantador
desenvolveram em Ravel a distinção, a eloquência do “pianíssimo”, o poder da
evocação, em surdina, e o cunho desse ensino se percebe nitidamente – ao
mesmo tempo que a influência de Emanuel Chabrier – na sua primeira obraprima, Pavane pour une Infante Défunte. Originalmente escrita para piano, a
versão sinfônica regida pouco depois por Ravel, revelou com eloqüente mestria,
o suave encanto, e as sonoridades longínquas da frase melódica, repetida cada
vez com um acompanhamento diferente, e alcançou e continuou alcançando
um grande êxito no repertório orquestral.
Os célebres Jeux d’Eau, também escritos nessa primeira época, já nos levam a
uma atmosfera libertada de influências alheias, e magistralmente evocada,
tanto pela escritura duma original fantasia, quanto pela sutil e sensível poesia
do desenho melódico. As quintas e as quartas que flutuam com tanta beleza
sobre os transparentes arpejos da mão direita, as fluidas harmonias que
envolvem tantas sonoridades originais para reproduzir a brilhante vivacidade
das águas que surgem e das gotas que caem, enfim a frescura da poesia,
milagrosamente contida numa forma quase clássica, explicam que esse
90
deslumbrante “Capricho” seja hoje em dia a obra pianística mais popular de
Ravel e a que melhor satisfaz a maioria dos virtuoses.
Tendo descoberto novamente, e engenhosamente desenvolvido o segredo
dessa técnica cintilante e desse impressionismo de reflexos e de sonoridades,
Ravel, depois de ter escrito um drama lírico Scheherazade, e seu Quarteto para
Cordas tão cheio de graça, de mistério e de ironia, inicia, então, o período
incomparável e feliz durante o qual, de 1905 até 1918, ele devia enriquecer a
literatura pianística com tantas maravilhosas obras-primas.
Conheceis, todos, a Sonatine, sua construção perfeita e sua poética intimidade,
e Miroirs, suíte de cinco imagens descritivas, nas quais Ravel, num constante
espírito de invenção e de descoberta, manifesta seu notável poder imaginativo.
Entre essas cinco pinturas do mais poético impressionismo, a mais conhecida é
a “Alborada del Gracioso”, que reúne, sob a cadência nervosa de um ritmo
espanhol, cenas de danças e de canto, perfeitamente estilizadas, e que foi
orquestrada mais tarde, com a máxima fidelidade.
Foi também a Espanha que inspirou a primeira obra escrita por Ravel
diretamente para Orquestra: Rapsodie Espagnole, na qual, segundo um dos
seus biógrafos, o compositor, “sorridente geômetra do mistério, soube dosar,
sobre as balanças mais certas e mais sensíveis, os imponderáveis da
substância sonora”, assim como L’Heure Espagnole, poema sinfônico
alucinante de espírito e da mais infinita variedade.
Essa linguagem profundamente pessoal, essa deslumbrante mestria, se
assinalam talvez mais ainda, nas “Fantaisies” de Gaspard de la Nuit, na
esplêndida realização pianística das miragens sedutoras do mar, dos sinos
diabólicos e fúnebres, e das sonoridades pitorescas, que caracterizam
respectivamente cada um dos três poemas, reunidos nessa engenhosa
composição.
A suíte de Ma Mère l’Oye, encantadora coleção, escrita para dois pianos, de
anedotas infantis, transportadas numa língua moderna, atrás das quais o
sorriso enigmático do compositor se percebe a cada instante; as oito Valsas
Nobres e Sentimentais, que evocam com tanta poesia as peripécias de uma
linda história de amor, no meio duma festa elegante, o sublime “Trio” tão
exuberante e sugestivo nas suas cores; enfim, esse admirável bailado Daphnis
et Chloé, baseado sobre a legendária história do rapto de Chloé, e que contém
algumas das mais belas páginas sinfônicas, escritas até hoje, são as mais
célebres entre as obras de Ravel, nessa segunda época que vai até a guerra de
1914-1918, na qual o compositor tomou parte ativa.
Depois da guerra, e até a sua morte, em 1937, constatamos na obra de Ravel
uma reação, que se manifesta por mais simplicidade, por uma disciplina mais
austera, e um controle às vezes heróico do seu gosto natural da sonoridade
vibrante e instrumental. A produção pianística dessa última época se reduz,
além de dois Concerti, em sol e em ré, dos quais o segundo escrito somente
para a mão esquerda, a uma obra-prima, dedicada inicialmente a um dos
maiores cravistas franceses, e à qual a guerra devia dar um caráter mais
patriótico: Le Tombeau de Couperin. A última parte dessa suíte, a célebre
Toccata, encerra numa irradiação gloriosa, esse hino à memória dos que
morreram para a pátria, no qual o compositor revela as qualidades mais
significativas do seu gênio.
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Ravel era já ilustre. Porém, ele alcançou verdadeiramente a popularidade com o
Boléro. De um dia para o outro, ele se tornou o favorito do grande público, com
essa única frase, dó, si, dó, ré, dó, si, lá, dó, dó, lá, dó, que as crianças
assobiavam nas ruas de Montmartre e nos arredores de Paris, e que o rádio e o
gramofone difundiram com uma fulgurante rapidez, só atingida até então, pela
glória das estrelas do cinema. Essa obra sinfônica, de uma mestria tão
desconcertante, estreada em 1928 por Ida Rubinstein, no Teatro da Ópera de
Paris, foi aliás tanto criticada quando idolatrada por esse ritmo obsedante da
dança espanhola, realizado sem o auxílio de castanholas, nem dos outros
instrumentos, geralmente empregados nesse gênero de evocação, que vai
crescendo até a violência, sem qualquer modificação rítmica, e que acaba numa
rasgão realmente alucinante.
A Valsa, outra obra sinfônica, escrita também naquela época, se assinala por
uma concepção nitidamente diferente das suas Valsas de 1910, e deixa
adivinhar a catástrofe que transtornou o mundo para criar uma Europa nova.
Enfim, a Sonata para Piano e Violino, o Duo para Violino e Violoncelo, L’Enfant
et les Sortilèges, assim como numerosas outras obras vocais, entre as quais
seu “canto” supremo, Don Quichotte à Dulcinée, escrito em 1934, três anos
antes da sua morte, terminam a enumeração, muito rápida, e forçosamente
incompleta, das composições mais distintivas desse grande músico.
Durante a primeira parte da sua carreira, os críticos e o mundo musical
procuraram ver na obra pianística de Ravel uma espécie de continuação da arte
de Debussy. Porém, a personalidade de Ravel e a originalidade do seu gênio
logo se assentaram, tornando mais saliente com cada nova obra, as diferenças
e até as divergências entre as duas concepções. Não procurarei definir os
aspectos nitidamente característicos da música de Ravel, no que tange às suas
realizações pianistas, às suas tendências a um virtuosismo engenhoso, à
escolha dos temas, à mobilidade, à fantasia, à construção orquestral da sua
música de piano, a todo esse conjunto de fatores e de qualidades que lhe
permitiram afirmar as conquistas de Debussy, colocá-las sobre o plano da
inteligência, em vez de exteriorizá-las somente num mundo sensível, e
desenvolver com seu instinto lógico, e imbuído de classicismo, as maravilhosas
inovações da arte impressionista.
Dir-vos-ei somente, encerrando esse meu esboço da sua obra, que o gênio
lúcido e requintado de Ravel, a perfeição da sua escritura, sua intensa e
misteriosa poesia e sua engenhosa fórmula pianística constituem os mais
irresistíveis títulos da sua glória, e explicam sua profunda influência sobre os
músicos da sua época, mesmo fora da França e da Europa.
Ele soube enriquecer a música moderna, conseguindo expressar alguma coisa
que ninguém definira antes dele, e dizer com a sua música, o que tantos outros
dizem, menos bem, com palavras.
A única coisa que faltou a Ravel, para igualar a Debussy, diante da história e do
mundo, foi, talvez, não ter sido o primeiro!
_______________
92
Diante do número de executantes a serem ouvidos nestas duas últimas aulas,
do Curso deste ano, tenho que encurtar a preleção de hoje, e também a da aula
de sexta-feira, e deixar para um curso ulterior, o estudo da Música Moderna nos
outros países da Europa. Eu teria desejado encerrar o esboço da Escola
Moderna, à qual dediquei as preleções desta terceira série, com um breve
estudo de conjunto, através da Rússia, da Hungria, da Itália, da Áustria, da
Espanha, e tornar salientes as tendências e as realizações musicais dos vários
países, do mesmo modo que o fiz para a Alemanha e a França.
Resumindo as minhas observações sobre a evolução da música moderna, devo
acrescentar que, com o progresso da ciência e dos meios de comunicação, com
o extraordinário desenvolvimento do gramofone, e do rádio, que permite, hoje
em dia, a maior vulgarização das produções musicais, e um intenso intercâmbio
entre todas as partes do mundo, a Música Moderna e a Música
Contemporânea, caracterizadas por uma tal abundância e tanta diversidade,
atingem a uma universalidade desconhecida nos séculos passados. As novas
idéias e as novas concepções se desenvolvem quase simultaneamente, e se
manifestam por movimentos paralelos, em diversos países, e pode-se afirmar
que jamais a música teve tanta vitalidade, tanta fecunda curiosidade e tantos
recursos inventivos para impor-se com firmeza e convicção a um público
sempre crescente.
E aos que podem ainda pensar que a música já chegou ao seu apogeu, e que
será difícil a futuros criadores abrirem um caminho glorioso, depois de gênios
como Beethoven, Chopin ou Debussy, lembrarei somente a profecia de
Théophile Gautier, que dizia ao seu filho, há mais de 80 anos:
“Meu caro filhinho, nunca deixes alguém dizer que uma arte qualquer veio a ser
esgotada pelo gênio de qualquer homem! Depois de Shakespeare, escreveramse ainda obras dramáticas e teatrais; depois de Victor Hugo, compôs-se versos
franceses; e depois de Beethoven, ainda se inventou música! Richard Wagner
que admiras, e que eu fui o primeiro em revelar à França, será ainda superado
em ousadia, e teus filhos o julgarão arcaico! Não esqueças que o espírito
humano é lento e rebelde, e que o mundo, mais cedo ou mais tarde, acaba
admirando e elogiando o que durante anos procurara destruir. Olha com
respeito uma pintura que a gente qualifica de insensata, escuta até o fim a
música que assobiam, lê até a última linha o livro ridicularizada pela crítica, e
lembra-te!! Artista, fala sempre segundo o impulso da tua consciência, e deixa
tua alma aberta a todas as manifestações imprevistas da arte... Beethoven foi
vilipendiado, Schumann foi tratado de bárbaro bêbedo, Wagner veio a Paris
arriscando sua vida. Porém a música é imortal, e todos os músicos até hoje,
foram apenas precursores!”
Rio de Janeiro, agosto de 1941
93
PRELEÇÃO DE MAGDALENA TAGLIAFERRO
RELATIVA ÀS OBRAS DE
REYNALDO HAHN E DARIUS MILHAUD
Antes de iniciar as execuções para dois pianos com as quais encerraremos este
turno de aulas, dir-vos-ei algumas palavras dos dois autores, cujas obras serão
ouvidas hoje, tratando-se não somente de compositores que se acham inscritos
pela primeira vez no programa das audições deste Curso, mas também de
obras que ouvireis em primeira audição integral no Brasil.
REYNALDO HAHN
Uma das grandes figuras da música francesa contemporânea. Nascido na
Venezuela, em Caracas, em 1874; veio à França aos 3 anos, ingressou aos
onze anos no Conservatório de Paris, estudou com Massenet, revelando um
talento e uma precocidade que, desde os 14 anos, o tornaram conhecido pelo
requinte da sua arte, pelas triunfais incursões que realizou no campo da
melodia, da opereta e pelo estilo que conseguiu manter em toda sua obra numa
época artística em que, na França, soprava uma certa desordem e confusão no
plano artístico em geral e na música em particular.
Considerado hoje, apesar de todas as lutas que enfrentou, como um dos
protótipos da escola musical francesa contemporânea, Reynaldo Hahn, mais
conhecido do grande público pela sua obra melódica, incorporou a mesma
elegância e o mesmo espírito característicos do seu gênio em toda sua
produção da qual destacarei o Concerto para Piano e Orquestra que me é
dedicado e que tive ensejo de tocar no Rio, sob a regência do maestro Charles
Münch e com a Orquestra Sinfônica Brasileira.
As cinco valsas que ouviremos hoje em primeira audição fazem parte de uma
importante obra escrita para dois pianos, intitulada Le Ruban Dénoué e
nitidamente representativa dessa sensibilidade, desse sentido poético, e dessa
graça elegante que ele soube defender até sua morte – em 1947, época em
que atuava como Diretor da Ópera de Paris.
DARIUS MILHAUD
Deste outro grande compositor francês, nascido em Aix-en-Provence em 1892,
talvez mais conhecido dos brasileiros por ter sido durante a guerra de 1914-18
adido à legação francesa no Rio de Janeiro, dir-vos-ei apenas que foi o poeta-
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diplomata Paul Claudel sob cujas ordens Milhaud atuava no Rio quem lhe
forneceu o libreto das mais importantes entre as suas obras dramáticas.
Quando voltou à França em 1919 após ter colhido no Brasil os temas de várias
composições, entre as quais os três cadernos de obras intituladas Saudades do
Brasil, assim como os das três peças que ouviremos hoje, reunidas sob o título
de Scaramouche, Darius Milhaud, desempenhou relevante papel no famoso
Grupo dos Seis ao qual aderiram Honegger, Georges Auric, Germaine Taillefer
e Jean Francix, cuja obra reveste-se do cunho de Erik Satie no plano musical e
de Jean Cocteau na forma estética.
A obra de Darius Milhaud é monumental e reúne todos os gêneros, sendo que
sua última composição, uma ópera evocando a epopéia de Bolivar, foi estreada
na Ópera de Paris há dois meses apenas.
Auditório do Ministério da Educação, 7 de julho de 1950
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O MOVIMENTO ROMÂNTICO
FRANZ LISZT
Os poucos instantes dos quais ainda disponho não me permitem esboçar nem
uma parte infinitesimal do que desejaria dizer-vos a respeito da existência
excepcional e da obra admirável de Franz Liszt.
Nascido numa pequena aldeia húngara, em 1811, dois anos mais tarde que
Chopin e Mendelssohn e um ano depois de Schumann, numa época de apogeu
romântico e instrumental, Liszt foi, indiscutivelmente, o mais cintilante, o mais
realista, o mais magistral dos músicos de sua época.
O gosto de pequeno Franz para a música se manifestou repentinamente aos
seis anos, quando ouviu pela primeira vez o seu pai (que era intendente da
família Esterhazy) tocar ao piano um concerto de Ries, contemporâneo de
Beethoven. Nessa mesma noite, durante o jantar, ele cantou a maior parte
desta obra, sem fazer o menor erro, e declarou que queria estudar música, sem
perder nem sequer um dia!
Desde as primeiras aulas, essa criança revelou as mais prodigiosas faculdades,
transpondo sem hesitação nenhuma em tema de um tom para outro,
acrescentando variações e ligando frases improvisadas por meio de
modulações de uma frescura já expressiva.
Os seus primeiros concertos, realizados no castelo do príncipe Esterhazy,
apenas um ano mais tarde, e nos quais ele já tocava obras de Bach e
Beethoven, e dava como bis improvisações suas sobre temas populares, foram
uma tal sensação que seu pai decidiu se instalar em Viena a fim de assegurar
ao seu filho uma sólida educação musical.
Aos nove anos, Liszt estudava com Carl Czerny, enquanto que Salieri, o último
professor de Beethoven, lhe ensinava a composição e a harmonia. Seus
triunfos diante do público vienense, dois anos depois da sua chegada nesta
capital, não lhe apreciam uma consagração suficiente; seu grande desejo, sua
profunda ambição, era ser ouvido pelo grande Beethoven.
Schindler, uma amigo íntimo do célebre mestre, depois de ter vencido as
maiores dificuldades, a desconfiança inata de Beethoven para com toda criança
prodígio, conseguiu realizar essa memorável entrevista. “Que diabo de menino!”
disse ele, após a execução de uma Fuga de Bach e da primeira parte do seu
próprio Concerto em Dó Menor. “Você deve ser feliz com os seus prodigiosos
dons, mas a coisa mais bela ainda será a felicidade que você dará ao mundo!”
Alguns dias depois, entre as 4.000 pessoas que assistem ao seu grande
concerto do Esdoutensaal, Liszt, cumprimentando o público, reconhece
Beethoven, sentado bem perto, nas primeiras filas. Tremendo pela primeira vez,
Franz olha a fisionomia imponente de “Gênio de Bonn”, ataca a primeira peça,
e, dominando sua emoção, executa, com a mais rara mestria e fantástica
virtuosidade, o Concerto de Hummel, assim como uma das suas próprias
fantasias. Mal ele tinha acabado, no meio do delirante entusiasmo dos
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fragmentos vienenses, Beethoven, apressando-se ao palco, abraça o menino e
lhe dá um beijo sobre a fronte. Essa homenagem do venerado mestre foi mais
cara a Liszt que todos os elogios e os superlativos que os jornais do dia
seguinte dedicaram à sua glória nascente.
Liszt não atingira 13 anos quando seu pai o leva para a França. Os salões de
Paris logo se abrem diante desse jovem, esguio e aristocrático, que tocava com
tanto brilho e que improvisava com tanta facilidade, achando o meio de
apresentar cada vez um programa diferente. Londres o acolhe com o mesmo
carinho, e o rei George IV recebendo-o no Palácio de Windsor lhe expressa sua
admiração, não somente pela perfeição das suas execuções, mas também pela
riqueza das suas idéias.
No ano seguinte, depois de uma tentativa pouco frutuosa, com a apresentação,
na Academia Real de Paris, da sua primeira ópera, Dom Sanche, Liszt, já
consagrado como “Rei dos pianistas” (aos 13 anos), entra na vida e inicia sua
verdadeira carreira.
Dessa carreira, tão longa quanto fértil em acontecimentos maravilhosos e
comoventes, dir-vos-ei somente que, antes de se dedicar à composição original,
Liszt se confirmou na primeira parte da sua juventude à interpretação e às
transcrições de obras célebres, assim como ao desenvolvimento engenhoso de
temas conhecidos. Sua arte da variação, seu poder de vivificar com uma
interpretação bem própria, as obras de outros músicos, suas transposições
geniais e harmoniosas das visões e do pensamento dos pintores e dos
escritores do seu século, enfim, suas faculdades de assimilação e sua rara
cultura o consagraram como o virtuose mais deslumbrante e audacioso, que
superava em potência, em mestria e em realismo, tudo o que fora ouvido até
então.
O fato de ter parafraseado Mozart, Paganini, Rossini, Schubert e tantos outros,
apesar da inteligente compreensão e da verve brilhante que emana desse
gênero de composição, explica, a meu ver, o preconceito da maioria do público
que hoje em dia não sabe apreciar as qualidades da música de Liszt, e para
quem esse nome é unicamente sinônimo de Rapsódia Húngara. É verdade que
são principalmente estas rapsódias e as suas resplandecentes transcrições das
árias e dos temas de sua terra natal que contribuíram em popularizá-lo. Porém,
não devemos esquecer que o verdadeiro Liszt é antes de tudo o criador do
“poema sinfônico” como Faust, Prometeo, Dante, os Prelúdios; o autor místico e
inspirado da célebre Missa de Gran, dos Oratórios e outra imponente música
religiosa; o que enriqueceu o piano e a orquestra de tantas fórmulas novas e
engenhosas, o autor dos Estudos Transcendentais, dos Anos de Peregrinação,
o compositor de Lieder originais e realistas, enfim, o precursor do
“impressionismo musical”, rumo que Debussy devia seguir com tanta
personalidade, alguns anos mais tarde.
É indispensável que todos se convençam que em suas composições
pianísticas, Liszt não tinha por objetivo deixar a virtuosidade tomar sempre o
primeiro lugar. Foram os executantes vindos depois dele que semearam essa
falsa interpretação, talvez por não terem podido resistir à tentação do
virtuosismo nas partes mais brilhantes, e procuraram ir muito mais longe que as
intenções do próprio autor. O fato de Liszt ter sido um pianista prestigioso e o
mestre inigualado da técnica e de todos os recursos pianísticos não é razão
suficiente para o intérprete centralizar suas faculdades nas acrobacias técnicas,
97
em detrimento do lado verdadeiramente musical. Liszt, além de um grande
técnico, foi também um poeta, e dou-vos como prova a primeira parte da
“leggerezza” aliás intitulada por ele mesmo: Caprice Poétique; o Rêve d’Amour;
tantas frases da Grande Sonata em Si Menor; muitas das peças dos três
volumes de Anos de Peregrinação; as Harmonias Poéticas e Religiosas etc. etc.
Efetivamente, a maior parte das obras de Liszt são guiadas pela poesia, sob
todas as formas, lírica, serena, religiosa ou apaixonada; porém, o
temperamento aristocrático e altivo do seu autor o leva ao mesmo tempo a certa
grandiloqüência e mesmo a uma hipertrofia da ênfase e do sentimento
dramático, o que, às vezes, traz alguma confusão na interpretação dessa obras,
cheias do mais belo e patético romantismo.
Conheceis com certeza as circunstâncias dramáticas da morte desse invulgar
gênio que ocorreu em Bayreuth, poucos depois de Tristão e Isolda, à qual
assistira na frisa da sua filha, Cosima Wagner.
Após ter dedicado os vinte últimos anos da sua vida ao serviço da Igreja, na
ordem dos Franciscanos, após uma das carreiras mais extraordinárias e uma
existência inspirada de quatro grandes preceitos: servir o próximo, o amor, a
bondade, a generosidade, o abade Liszt morreu deixando atrás de si, além da
sua obra incomparável, toda a sua fortuna que constava de sua batina, de
alguma roupa branca, e de sete lenços!
Rio de Janeiro, 1940 – 1947
98
A MÚSICA ESPANHOLA
Entre os eminentes historiógrafos dos séculos passados e da nossa era
moderna, são poucos os que souberam avaliar o importante papel que as artes
e as letras desempenharam na história da civilização. A maioria dos que
escrutam as origens e a evolução dos diversos povos restringem seus estudos
às guerras e às dinastias soberanas, à política e aos tratados, olvidando que a
história da humanidade é a síntese das conquistas. É na arte que encontramos
o derradeiro símbolo dessas conquistas, o meio de expressão mais elevado em
torno do qual se realiza a mais completa unidade.
Seria naturalmente exagerado afirmar que o espírito de uma época se reflita
unicamente nas artes e nas letras, sendo cada período, cada civilização, a
resultante tanto da teologia como da ciência, da literatura como da economia ou
da indústria, de todas as formas, enfim, da atividade humana, as quais
escrevem, cada uma na sua esfera, sua página da história universal.
Se é verdade que a concepção artística e as formas de expressão estão
geralmente subordinadas à época e ao ambiente em que vive o pintor, o músico
ou o poeta, deve-se igualmente admitir que os grandes artistas, por seu lado,
contribuíram, desde os tempos mais remotos, em criar os sucessivos
ambientes, dando-lhes um estilo bem definido, e concretizando cada época
através da sua própria personalidade.
No estudo das “Origens e da Evolução da Música Espanhola”, devemos pois,
antes de passar revista às personalidades e às obras dominantes desse país,
nos compenetrar dessa estreita correlação, entre o desenvolvimento cultural de
um povo, e os grandes movimentos políticos da sua história, lembrando-nos
mormente, neste caso, que a Espanha só veio a formar uma nação unida no
século quinze, isto é, relativamente tarde, tendo-se assinalado, até aquela
época, pelo seu caráter estritamente medieval e pelo fato de constituir o país
mais católico de toda a Europa.
Contraste com os territórios vizinhos, pertencentes ao Islã, servia para induzir a
Igreja a ficar constantemente em estado de alerta e vigilância, o que contribuiu,
indiscutivelmente, em manter a Igreja mais unida na Espanha, do que em
qualquer outro país.
Essencialmente católica apesar do seu cunho nacional, a Igreja Espanhola, que
iniciou sua missão na Europa somente após a expulsão dos mouros do seu
território, em 1492, foi pouco atingida pelo Renascimento, e ficou quase
inteiramente fora do alcance do Movimento da Reforma protestante, explicandose essa particularidade seja pela organização modelar das congregações
religiosas, ou pelos seus preceitos escolásticos, ou mais provavelmente ainda,
devido ao voluntário isolamento da Igreja, que lhe permitiu conservar intacto,
seu poderio e sua influência.
Com a vinda da dinastia dos Habsburgos, dinastia cavalheiresca e imperialista,
que elevou, no entanto, a Península Ibérica até o nível de grande potência
99
mundial, as ambições desse país ficaram saturadas com a paixão do
catolicismo, fornecendo desse modo à Santa Sé o mais formidável auxílio, o
qual se concretizou na intensa atividade política de Carlos V e Felipe II, e,
sobretudo, na dominadora personalidade de Inácio de Loyola, cujo papel
histórico é bastante conhecido, e a quem o nacionalismo espanhol deve sua
íntima fusão com o poderoso universalismo de Roma.
É por essa razão que a cultura espanhola não pode ser separada da sua
história religiosa, levando inevitavelmente qualquer estudo das artes e das
letras desse país às portas da Igreja Católica.
Outro importante fator na formação geral da cultura do povo espanhol reside na
extrema diversidade que marca as próprias origens da raça, resultado da fusão
de elementos ibéricos, celtas, bascos. Godos, árabes e berberes, aos quais
essa cultura deve o seu cunho um tanto exótico que segregou, durante alguns
séculos, a Espanha, das outras nações românicas.
É pois do místico ascetismo do espanhol, do seu culto rigoroso da tradição, da
sua fiel perseverança a serviço da Igreja e, sobretudo, da própria alma desse
povo, modelado nas lutas seculares contra os invasores africanos, e endurecido
debaixo do severo clima da rochosa Castilha, que surgiu a cultura, tão original e
específica, desse país.
Apesar dos mouros terem ocupado a Espanha até o fim do século XV, a
influência mourisca, ao contrário do que muita gente acredita, não
desempenhou nessa longa e progressiva evolução, papel realmente
fundamental. Lembremo-nos do aristocrático senso da forma e da ostentação,
oriundo do feudalismo e do cavalheirismo da Idade Média; lembremo-nos da
nobreza da palavra, do caráter poético e da notável habilidade retórica, que
assinalam qualquer manifestação da arte espanhola; lembremo-nos, enfim, que
a tendência oriental à ornamentação, foi sempre matizada na Espanha, por um
incontestável realismo, conforme o vieram demonstrar a implantação do estilo
barroco e tantas outras concretizações artísticas.
No que tange à evolução da arte musical espanhola, durante a Idade Média, o
Renascimento e até o início do Barroco, há pouca coisa a dizer, na ausência
quase completa de autêntica documentação, mesmo em matéria de música
religiosa. Não resta dúvida, todavia, que a vida musical da Espanha tenha sido
extraordinariamente rica naquela época, principalmente na primeira metade do
século XV, durante o reinado de Afonso, o magnânimo, rei de Aragão e
conquistador de Nápoles, que foi um entusiástico e esclarecido protetor das
artes e das letras, e que contribuiu à realização prática, de proveitoso
intercâmbio com a Itália, onde numerosos jovens espanhóis vieram tomar parte
no coro da capela papal, enquanto alguns outros eram admitidos na corte dos
Sforza, em Milão.
Na Espanha, como aliás nos outros países da Europa Central e Ocidental, a
música medieval nasceu da poesia, das romanças que os trovadores iam
cantando de cidade em cidade, acompanhando-se à vihuela, que era uma
espécie de alaúde, e improvisando variações sobre temas de uma ingênua
simplicidade, designados sob o nome de “tonadas”.
Foi somente na primeira metade do século XIV, que o humor espanhol, com as
picarescas fábulas e novelas do poeta Juan Ruiz, recebeu sua consagração no
100
palco, enquanto que os “Cancioneros” estendiam sua influência à fidalguia e à
corte.
Essa maravilhosa união da música e da poesia me foi confirmada de maneira
eloqüente, há poucos anos, quando descobri um dos raros exemplares do
famoso livro de Francisco Barbieri, intitulado Cancionero Musical de los Siglos
XV e XVI, livro que infelizmente deixei na França, e que procurei em vão
encontrar no Brasil. Recordo-me porém que, dentre as 500 canções reunidas
nesse interessantíssimo volume, as da autoria do célebre poeta Juan del
Encina chamaram particularmente a minha atenção, por serem precedidas de
um preâmbulo no qual o autor, para descrever a arte poética espanhola naquela
época, isto é, no fim do século XV, usa as palavras “arte de trobar”!
Melhor do que qualquer descrição pormenorizada, essa expressão “arte de
trobar” me parece suficiente para realçar o antigo preceito da ligação entre a
poesia e a arte musical, entre o poeta e o compositor, ligação magnificamente
posta em evidência, nas baladas e canções daquele período, notáveis até hoje
em dia pela sinceridade profunda, a devoção e o beato encanto que essas
obras refletem.
Juan del Encina, que ocupou os mais altos cargos na corte da rainha Joana de
Castilha, e junto ao papa Júlio II, e empreendeu a viagem até Jerusalém, a fim
de celebrar sua primeira missa na Igreja do Santo Sepulcro, foi, sem dúvida, o
mais notável dos poetas-compositores da sua época, impondo-se com invulgar
mestria, pela frescura da sua inspiração no gênero “pastoril”, pela sua verve
mordaz e uma espécie de maliciosa candura, não desprovida de certa ironia.
Enobrecidas e transformadas pela sua ciência e seu pensamento requintados,
as composições desse grande artista, criador do drama nacional espanhol, se
assinalam pelo seu gosto e sua elegância, até nas mais singelas “eglogas”
como, por exemplo nessa encantadora poesia pastoril dialogada, e entrecortada
por trechos musicais, intitulada “Del escudero que se tornó pastor”, ou numa
outra fábula do mesmo caráter, “De los pastores que se tornáron palaciegos”.
(Palaciegos é a palavra espanhola equivalente a cortesão.)
O cenário da primeira dessa obras nos apresenta uma linda pastora entre seus
dois namorados, um escudeiro a serviço de um rico senhor, e um pobre pastor.
Ao contrário do que acontece geralmente nos poemas e nos contos de fadas, a
moça resolve casar com o primeiro dos pretendentes, tendo ele, o escudeiro,
renunciado ao seu cargo e desistido de voltar à cidade. No meio do enredo, os
versos são interrompidos pela parte musical, de uma graça cativante, que
consta de uma sucessão de canções e de danças, encerrando-se a
composição, com um atraente “Villancico”, sorte de canção amorosa e
encomiástica, com sutil acompanhamento ao alaúde.
Enredo da segunda egloga, parece o lógico desenvolvimento do tema que
acabo de vos contar. Assistimos aqui as melancólicas divagações do escudeiro
que se tornou pastor e que, após um breve período de felicidade no campo,
está com tantas saudades da corte do seu antigo senhor que não pode mais
resistir à tentação de voltar por algum tempo à cidade, levando nessa viagem a
sua mulher e outro casal amigo. Na suntuosa residência do fidalgo, onde foram
hospedados, os quatro protagonistas desse singelo poema não se conformam
com a perspectiva de abandonar tão confortável ambiente, e conseguem ficar
todos a serviço do generoso duque, sendo esse ingênuo drama, narrado com
101
encantadora poesia, e o contraste entre a vida senhorial e campestre, evocado
com picante humor e espírito.
Em todas as obras de Juan del Encina, a influência da arte popular torna-se
evidente e decisiva, inspirando-se o autor diretamente das tradições e do
verdadeiro espírito da sua raça. O hábito, adotado em quase todos os países da
Europa, de escrever poesias para serem cantadas segundo tal ou outro timbre,
e do qual nasceram o Vaudeville francês, o Liederspiel alemão, e o Ballad’s
Opera inglês, nunca existiu na Espanha, onde o poeta era, quase sempre,
também músico e concebia, ao mesmo tempo, os versos e a parte musical.
Essa particularidade encontra incontestável ilustração na obra de Juan del
Encina, que nunca tratou musicalmente senão suas próprias criações,
adaptando maravilhosamente, desse modo, a melodia às necessidades do
texto, sem que o canto venha a dominar a palavra, nem se sujeitar a ela, e
alcançando esses dois elementos folclóricos específicos de cada província,
desenvolvem-se as várias escolas musicais, cada uma com suas características
individuais e facilmente reconhecíveis, das quais citar-vos-ei a escola
“castelhana”, cujo grande mestre e protagonista será o glorioso Tomas Luiz de
Vistoria, a “sevilhana”, ou mais exatamente, a “andaluza”, que será ilustrado por
Cristobal de Morales e Francisco Guerreiro, a escola “valenciana”, com o
original Juan Ginez Perez, enfim a “catalana”, cujas tradições serão mantidas
durante um longo período, graças às atividades do célebre Mosteiro de
Montserrat.
Foi o reinado dos Reis Católicos que inaugurou, na última parte do século XV,
essa era de maravilhoso e inigualado esplendor, que ia se prolongar até a
metade do século XVII. O casamento de Ferdinando e Isabel reuniria as duas
coroas de Castilha e Aragão, poucos anos antes da tomada de Granada, que
pôs, em 1492, quase toda a Península Ibérica, sob o mesmo cetro real. A
descoberta da América, um dos mais importantes acontecimentos da história
universal, realizou-se, também, no mesmo ano, iniciando a maravilhosa era da
expansão colonial da Espanha, que culminou na conquista de um império sobre
o qual o sol jamais deixava de brilhar.
A prosperidade material do país deu-se simultaneamente com o seu magnífico
desenvolvimento cultural, científico e artístico, prosseguindo a música, durante
um século inteiro, na sua ascendente e ininterrupta progressão.
Na corte de Ferdinando e Isabel, a arte sonora ocupava efetivamente, um lugar
de honra, com um imponente estado maior de músicos, organistas,
instrumentistas e trovadores, e um coro, de qualidade, na capela. Ao contrário,
porém, dos outros países do continente, todos esses músicos eram espanhóis
natos, e possuíam profunda tradição musical, conservando a produção musical
daquele período esse caráter nitidamente nacionalista, até a intensa imigração
flamenga, e as outras influências estrangeiras, as quais, aliadas a um excessivo
conservadorismo dos músicos da escola antiga, contribuíram, no caso da
Espanha, em doar à música desse país, um rumo bastante diferente, levando-a
gradualmente, no fim do século XVII, ao declínio e à desintegração.
No princípio, a influência dos compositores flamengos foi aliás de inegável
proveito para música espanhola, cujos protagonistas souberam adaptar sua arte
a esse novo estilo, sem se afastar em demasia, das suas características raciais;
Morales e seu discípulo Tomas de Victoria foram os que melhor escreveram
música no puro estilo polifônico flamengo, o qual veio a ser o estilo polifônico
102
universal do catolicismo, e conseguiram ao mesmo tempo manter nas suas
composições o tradicional e autêntico espírito espanhol.
Falar-vos-ei, na minha próxima preleção, do místico poder visionário e da
estupenda arte contrapontística de Francisco Morales e Tomas de Victoria, da
influência do Barroco, do drama lírico espanhol e de diversas figuras que se
destacam gloriosamente do cenário desse país, onde a música constituía, e
permanece até hoje em dia, parte integral da existência do seu povo.
Rio de Janeiro, 1940 – 1947
103
PALESTRA SOBRE LUDWIG VAN BEETHOVEN
Tenho certeza de que todos aqui presentes conhecem os pormenores da vida
do Titã da música, Ludwig van Beethoven.
Assim sendo, não vou esboçar uma biografia longa e completa. Todavia, nunca
me parece desnecessário relembrar que esse portentoso compositor foi a última
e apoteótica encarnação do classicismo musical, até nos abrir caminho às
primeiras eclosões do Romantismo.
Nós todos sabemos quanto o ambiente pode influir e para sempre se gravar
num cérebro infantil. O fato de ter, em criança, vivido ao lado de um pai
alcoólatra e de uma mãe tuberculosa não pôde deixar de influenciar o caráter, o
humor e a saúde dessa criatura excepcional. No entanto, não resta dúvida que
Beethoven tenha sido escolhido pela Providência como mensageiro da Divina
Verdade entre os eleitos marcados milagrosamente para tornar este Universo
mais ameno, mais nobre e grandioso, para, enfim, aliviar com a beleza da sua
arte, no mundo das sonoridades, a tristeza e a ânsia de tantos corações.
Para bem compreender e penetrar a sua obra, convém não olvidar que
Beethoven tomou contato com a vida através da aflição e da angústia, e que
seu gênio se desabrochou no meio de uma sucessão ininterrupta de
sofrimentos, motivos talvez pelos quais, ele veio a doar à humanidade uma tão
profunda mensagem, já que sabemos que a dor enaltece as almas generosas.
Ora, Beethoven recebera de Deus um coração elevado e, na firme visão de um
nobre ideal assim como no legítimo valor, esse artista genial conseguiu, em boa
hora, encontrar a razão de ser, senão a consolação de uma existência
sobrecarregada de sofrimentos.
Convém salientar um fato às vezes esquecido e que teve, no entanto,
predominante influência sobre o caráter da produção beethoveniana.
É que Beethoven nascera exatamente no ano em que o piano, inventado muitos
anos antes, começara somente a tomar o lugar do cravo, esse instrumento já
tendo sido inteiramente posto de lado, quando Beethoven compôs suas
primeiras obras.
Ao contrário de Mozart e de Haydn, Beethoven teve a seu dispor, desde o início
da sua carreira, um instrumento com novos e múltiplos recursos, dos quais o
seu espírito genial soube aproveitar, a fim de atuar no estilo musical, a uma
expressão mais profunda e mais potente.
As freqüentes alternativas de amor exaltado, de revolta contra o destino, de
efêmera quietude, de irremediável desconsolo, inspiraram uma parte importante
da sua gigantesca produção e mormente desse incomparável conjunto de trinta
e duas obras-primas, que reúne, sob a modesta denominação de “Sonatas”,
uma das mais eloqüentes, poderosas e comovedoras autobiografias
exteriorizadas até hoje através do teclado.
104
Sabemos que, pessoalmente, Beethoven só deu títulos a duas das suas
Sonatas: a Patética e a Appassionata, e todas as outras denominações foram
inscritas pelo seu primeiro editor, à revelia do compositor.
Desejo dar-vos a prova de como desde a sua segunda sonata, a opus 13, a
Patética, Beethoven conseguiu transpor um profundo sentimento de bela
serenidade, cortado na parte mediana por uma frase um tanto dolorosa. Vou
ilustrar estas minhas palavras tocando-vos o Adagio Cantabile da Sonata
Patética.
(Execução)
Foi somente aos 25 anos que Beethoven começou a publicar suas
composições, julgando que as primeiras, por ele compostas desde os treze
anos e até então, eram insuficientemente perfeitas e originais para serem
perpetuadas.
São dois os Trios para Piano, Violino e Violoncelo, encomendados pelo Príncipe
Lichnowsky nos quais ele indicou op. 1, que deviam marcar para as gerações
futuras, o verdadeiro início do primeiro período dessa fecunda e gloriosa
produção, que revela, ao mundo musical, a vigorosa e vitoriosa eclosão desse
gigantesco talento.
Chegamos, assim, ao segundo período dessa épica existência em que
Beethoven, libertado pouco a pouco das influências alheias e procurando
escrever sua própria vida, em lugar de simples música, confia magistralmente,
no plano sonoro, suas paixões, suas emoções, seus sofrimentos físicos e
morais, e nos deixa penetrar até os recantos mais profundos da sua alma,
desvendando-nos fervorosamente os três grandes amores que enchem seu
coração exaltado: a mulher, a natureza e a pátria.
No momento em que a reputação do jovem mestre se estabelecia
brilhantemente em Viena, ele teve a amarga desventura de ser atingido pelo
mais terrível golpe que o destino pode infligir a um músico: a surdez!
Esta começou seus estragos desde os 26 anos do compositor e devia
atrozmente entristecer e afligir o resto da sua vida.
Durante muitos anos, a ninguém disse que zoavam-lhe os ouvidos dia e noite;
nem mesmo aos amigos mais caros; porém, suas faculdades auditivas, apesar
de vários tratamentos sugeridos por eminentes especialistas, iam
enfraquecendo numa inexorável progressão, e não podendo mais ocultar sua
enfermidade, Beethoven procurou fugir do mundo.
Aos trinta e um anos, esse músico, pobre e condenado a viver da música, deve
renunciar a esconder seu angustiante segredo, e, numa carta escrita a seu
grande amigo Wegeler, encontramos essa dolorosa confissão:
“Vivo numa existência miserável! Há dois anos que estou evitando qualquer
companhia, por ser-me impossível conversar. Estou surdo! Se tivesse outro
ofício, ser-me-ia ainda possível, mas, no meu caso, é uma situação terrível e
desesperadora. Que dirão disso os meus inimigos, cujo número não é
105
pequeno? No teatro, devo colocar-me bem junto à orquestra, para entender o
ator. Se fico um pouco distante do palco, não ouço os sons dos instrumentos e
das vozes. Quando falam suavemente mal percebo! Quando gritam não tolero!
Tenho, constantemente amaldiçoado a vida e o mundo ... Plutarco me levou à
resignação! Quero, se for possível enfrentar o destino, mas, há momentos em
que sou a mais lamentável das criaturas de Deus ... Resignação! Que triste
refúgio para mim! E é entretanto, o único que me resta!”.
O mesmo Dr. Wegeler nos conta que Beethoven foi também vítima, durante
essa época, de outro gênero de moléstia: a do amor! Ele se apaixonava a todo
instante. Sonhava com felicidades, logo seguidas de derrotas e de amargos
sofrimentos.
Seus amores, todavia, parecem ter sido sempre de uma grande pureza, seja
por causa das suas idéias bastante intransigentes sobre a santidade desse
sentimento, ou pelo fato de nunca ter ele sido amado como o sonhara.
A religião que sustentava Beethoven, no meio das suas decepções
sentimentais, era sua fé na música e na divina missão da qual fora incumbido.
“Não existe coisa mais bela, escrevia ele, do que se aproximar da divindade, e
de difundir seus maravilhosos raios sobre a humanidade.”
É nessas alternativas de amor exaltado e de revolta contra o Destino,
traduzidas em obras-primas musicais, que se deve procurar a fonte a mais
fecunda das inspirações de Beethoven que conheceu raros momentos de
contentamento e de paz.
Na época em que Giulieta Guicciardi, a coquete e vaidosa Condessa, era o
objeto da sua paixão, ele escrevia:
“Vivo mais suavemente e convivo melhor com os homens. Essa transformação
foi realizada pelo encanto de uma querida jovem, que amo e me ama! De dois
anos para cá, são estes os primeiros momentos de felicidade!”
Ele devia pagar duramente essa momentânea doçura do destino. Esse amor o
fez perceber, ainda mais, a miséria da sua enfermidade e as condições
precárias da sua vida, que tornaram impossível o casamento com o qual
sonhara.
Quando Giulieta casou-se com o Conde Gallemberg, a dor pungente causada
por esse acontecimento inspirou mais algumas obras-primas, entre outras a
Appassionata que constitui, talvez, em todo o repertório pianístico, o mais
comovedor e pungente grito de angústia e desespero que um compositor tenha
conseguido exteriorizar no teclado.
A seu amigo Schindler que lhe pedira a significação da Appassionata,
Beethoven respondeu:
“Leia A Tempestade de Shakespeare!”
A resposta do compositor parecia um tanto enigmática e o vento da tempestade
não sopra, neste caso, somente na ilha nem sobre o mar, mas se desencadeia
106
no coração, num coração que sofre, ruge, ama e finalmente triunfa na sua luta
contra o Destino.
É justamente essa torrente de uma força implacável e quase selvagem, e a
soberania do pensamento, vencedor da matéria e do sofrimento, tão
significativos da arte beethoveniana nessa época de maturidade, que
encontramos nessa magistral evocação, a respeito da qual o compositor disse
uma vez a Teresa de Brunswick:
“Se os que ouvem as minhas obras soubessem em que estou pensando
quando as escrevo, ficariam apavorados!”
A devastação do coração motivada por essa transbordante paixão, no caso de
um indivíduo já enfraquecido pela moléstia como o era Beethoven, arriscou
aniquilá-lo por completo.
Foi este o único momento da sua vida em que ele esteve prestes a sucumbir, e
a crise desesperada que Beethoven atravessou nos é revelada pelo seu
inesquecível “Testamento de Helligenstadt” que o compositor mandou aos seus
irmãos, com a seguinte inscrição: “Para ler e executar depois de minha morte”.
Cada vez que, numa palestra sobre Beethoven, cometi a imprudência de citar
integralmente esse grito de revolta e de dor pungente, não pude conter a minha
emoção e desatei em público num pranto tal, que sempre me deixou
estarrecida, não querendo me expor hoje à mesma inconveniência, limitar-me-ei
em citar-vos apenas algumas linhas desse memorável documento.
“Até aquela grande coragem que me sustinha se dissipou, escrevia ele nesse
testamento. Dê-me ó Providência, ainda uma vez, um dia só de verdadeira
felicidade! Há quanto tempo que o som profundo da alegria me é totalmente
estranho! Quando, oh! meu Deus, poderei encontrá-la? Nunca? Não! Isto seria
demasiadamente cruel!”
Felizmente para a música, sua natureza poderosa não se resignava cair e essa
força colossal, essa energia sobre-humana, fizeram-no adotar uma profunda
filosofia que encontramos no terceiro período da sua obra. Foi com um olhar
confiante e calmo que vai além das estrelas que ele se resignou ao inevitável.
No entanto, sua saúde piorava dia a dia, além da surdez que se tornara
completa. Já nos seus últimos anos, ele se servia, dizem, de uma vareta da
qual uma extremidade era colocada na caixa do seu piano e a outra, entre seus
dentes. Quando compunha usava desse meio para ouvir!
É conhecida a dolorosa conclusão da representação da ópera Fidélio, em 1822.
Beethoven insistira em reger o ensaio geral dessa sua famosa obra. Porém,
desde o dueto, ele não ouvia nada do que se passava no palco. Seguiu-se uma
confusão geral que obrigou Beethoven a deixar precipitadamente o teatro, com
o coração ferido, e tão profundamente que até a sua morte ficou gravada, no
seu espírito, a terrível impressão desse dia fatal.
Emparedado dentro de si mesmo, separado do resto dos homens, só achava
consolo na natureza, onde sua inquietação e seus tormentos encontravam
alguma trégua. Apesar de tudo isso, Beethoven confiava na Divina Providência,
sustentado por uma fé inabalável e invencível.
107
É realmente comovente constatar como a crença em Deus lhe permitiu resistir
aos implacáveis golpes da mais amarga fatalidade, e operou nesse gênio
prodigioso, o que se pode qualificar de verdadeiro milagre!
Foi do fundo desse abismo de tristeza que esse homem infeliz e
constantemente atormentado pela angústia empreendeu celebrar a “Alegria”.
Era o projeto de toda sua vida e ele conseguiu finalmente realizá-lo com a Nona
Sinfonia, intitulada: “Sinfonia, com um coro final, sobre a alegria”.
Foi só nos seus últimos anos de vida que Beethoven atingiu a essa realização,
mas com que grandeza!
A primeira audição da Nona Sinfonia teve lugar em Viena, em 1824, com um
êxito triunfal e um público aplaudindo freneticamente o compositor, o qual, em
pé, perto do regente, e virando as costas ao auditório, não ouvia o entusiasmo
provocado pela sua obra magistral! Todavia, o triunfo foi efêmero, e o resultado
prático nulo para Beethoven, que se viu sempre mais pobre, sempre mais
doente, porém vencedor, vencedor da mediocridade, vencedor do sofrimento,
vencedor do seu próprio destino!
Que conquista pode igualar a glória desse esforço sobre-humano, essa vitória
do Espírito?
Foi esse infeliz, esse pobre, esse enfermo, esse solitário, o próprio sofrimento
feito homem, a quem o mundo recusou a alegria, que criou, ele mesmo a
“Alegria” para doá-la à Humanidade!!!
São Paulo, 12 de julho de 1970
108
3
Análise
109
110
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E
INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1951
Três Autores Clássicos: Bach, Mozart e Beethoven.
Acham-se reunidos no programa das execuções da aula de hoje três
compositores, entre os mais ilustres, e cuja obra se assinala, ao mesmo tempo,
pela abundância e pela qualidade:
Johan Sebastian Bach, que foi talvez o mais representativo dos mestres da
Escola Alemã e que, conforme o dizia um dos seus biógrafos, “procriava suas
cantatas semanais, assim como os seus 22 filhos, para a maior glória de Deus”,
ciente que essas cantatas iam ser executadas uma só vez, e incorporando, no
entanto, em cada uma delas o mesmo fervor, a mesma fé e a mesma ciência da
escritura musical que caracteriza toda a monumental produção.
Wolfgang Amadeus Mozart, cujo gênio escapa a qualquer definição, já que
compunha com a mesma facilidade com que cantam os pássaros, e que teve
uma das mais gloriosas, das mais fecundas, e também das mais curtas
carreiras, na história da música. Mozart morreu aos 35 anos apenas, tendo
conseguido escrever, quase que “brincando”, entre outras obras, 15 missas, 20
óperas ou composições teatrais, 40 sinfonias, 50 concertos para soli e
orquestra, e mais de 100 obras de música de câmara, enfim.
Ludwig van Beethoven, cujo catálogo talvez não tenha alcançado a
produtividade de outros contemporâneos seus, mas que, entretanto,
aproveitando o primeiro os recursos do pianoforte quando esse instrumento
vem substituir o cravo, soube penetrar naquelas zonas até então inacessíveis
da poesia e do patetismo, e enriquecer de sobremaneira com as suas geniais e
poderosas expansões, não somente o repertório pianístico, mas, também, todas
as formas musicais, sendo um dos raros exemplos de um artista elevado ao
auge da popularidade pelo sufrágio unânime dos povos, que tenha merecido,
durante quase dois séculos, o título de Titã da Música que lhe conferiu uma
ascensão a um trono até agora incontestado.
Ouviremos pois a aula de hoje: de Bach-Busoni, a Chaconne na interpretação
do Senhor Luiz Mesquita; de Mozart, a Sonata em Dó Maior que será
executada pela Senhorita Sary Hauser; e de Beethoven, a Sonata op. 81, “O
Adeus, a Ausência, o Retorno” que será interpretada pela Senhora Jenny
Perelman.
Antes de iniciar a aula, desejo atender um pedido de um “ouvinte anônimo”
(pela letra me parece que se trata de “um ouvinte”) perguntando-me qual era a
significação da palavra “Chaconne” e se eu podia dar esse esclarecimento
antes de ser tocada essa peça.
Na origem, a Chaconne era uma dança folclórica mourisca, que os espanhóis já
levaram ao México no fim do século dezesseis, encontrando-se num dos
111
convites para o casamento do rei Filipe III (em 1599) a menção de “uma viagem
à cidade de Tampico par ali dançar a “Chacona”.
Na língua basca (vasconça), a palavra chacona quer dizer “bonita” o que não
parece realmente se aplicar a esse tipo de dança meio selvagem, apaixonada e
até desenfreada descrita por Cervantes como “uma torrente de mercúrio que
sobe e desce no corpo da dançarina”.
Introduzida no século dezessete nas Suítes de Dança tão apreciadas pelas
cortes, na França, na Itália e na Alemanha, a Chaconne se distingue da
Passacaglia pela sua qualidade melódica e vem, pouco a pouco, a ser
executada num movimento mais lento, com variações distribuídas sobre oito
compassos, e foi se afastando da sua forma original até ser consagrada por
Bach, Haendel e Gluck na sua feição atual.
a
A Chaconne de Bach é a mais conhecida, tendo sido escrita para a 4 Sonata
para Piano e Violino, e sendo do famoso mestre italiano Ferrucio Busoni a
transcrição para piano que ouviremos hoje. O tema da Chaconne, tal o
concebemos agora, encontra-se aliás em diversas obras entre as quais convém
citar: as 32 variações de Beethoven, assim como o “Final” da Quarta Sinfonia
de Brahms.
Espero que estas explicações satisfaçam a legítima curiosidade do nosso
ouvinte a quem agradeço esse ensejo de poder esclarecer um assunto
geralmente pouco conhecido.
Rio de Janeiro, 1 de setembro de 1951
(Segunda aula)
112
BEETHOVEN
Concerto op. 73, em Mi Bemol
Este concerto foi escrito por Beethoven em 1809, durante aquele fecundo
período em que nasceram as imortais Sinfonias, as “Ouvertures” de Fidélio,
Leonora, Coriolan, Egmont e outra importante produção orquestral, e em que as
composições para piano só, após as famosas 32 Variações, se limitaram a três
sonatas, entre as quais a do “Adeus”, que tivemos o ensejo de estudar e
comentar numa aula do curso de 1941.
Já na época da sua publicação, o Concerto em Mi Bemol para Piano e
Orquestra fora denominado do “Imperador” por tê-lo Beethoven composto em
homenagem ao príncipe, estadista, arcebispo e herdeiro da coroa da Áustria, o
seu ilustre amigo e discípulo, o arquiduque Rodolfo de Habsburgo, o qual devia
substituir Napoleão, Imperador dos Franceses, para se por à frente do governo
do seu país.
Como sabemos, o arquiduque, além dos títulos já enumerados, era também
uma personalidade notável no plano musical, tendo-lhe Beethoven dedicado
numerosas obras-primas, em retribuição à sincera consideração e amizade que
lhe manifestara, e ao apoio que lhe prestara nos momentos difíceis do início da
sua carreira.
O Concerto em Mi Bemol, do mesmo modo que a sonata “O Adeus, A Ausência,
O Retorno”, é uma peça de “circunstância”, isto é, escrita propositadamente
para celebrar um grande acontecimento, nesse caso, a luta contra a Revolução
Francesa, a reação contra a invasão do território austríaco, e o regresso do
arquiduque vitorioso e libertador. Estamos longe aqui do “Retorno” celebrado na
Sonata op. 81, tratando-se nesta épica composição para piano e orquestra, da
volta do glorioso chefe num imponente desfile de tropas e no meio das bélicas e
frenéticas aclamações do povo em festa.
Naquela época, e apesar das dificuldades que a situação política instável criara
no país, Beethoven conhecera alguns anos de verdadeira e confiante felicidade,
convencido que sua ardorosa paixão pela imortal bem amada, Teresa de
Brunswick, encontraria um eco no coração daquela nobre e linda moça. É aliás
por esse motivo que o caráter doloroso, melancólico ou trágico, que assinala
tantas composições anteriores, quase desaparece por completo nas obras
escritas durante este período, sendo o Concerto em Mi Bemol antes de tudo um
acento triunfal, uma epopéia expressada musicalmente, para exteriorizar ao
mesmo tempo sua íntima felicidade, e os profundos sentimentos que ligavam o
compositor à sua terra adotiva.
A primeira parte desta obra-prima do repertório sinfônico é uma espécie de
idealização, de retrato estilizado, da elevada e nobre figura do arquiduque
Rodolfo, tendo a parte confiada ao piano, caráter de aclamação, altivez,
heroísmo e comovedora expressão. Após o feroz conflito entre o piano e a
113
orquestra, voltamos à atmosfera apaziguada e transparente, seguida pelo ritmo
heróico do “tempo” e a cadência escrita aliás pelo autor.
O “Adagio” é um sonho estático, em que o ouvinte sente a manta celeste caindo
entre acentos de fremente lirismo, e a doçura de um piano que deve ser a
própria sombra da orquestra, substituindo-se este sentimento à apoteótica
exaltação que o precede.
O ritmo do “Final” é significativo do ímpeto, do ardor e da alegria com que é
recebido o Príncipe Vitorioso, indo até evocar uma verdadeira cavalgada, o que
não impede o compositor de manter, no meio dessa heróica e pomposa
evocação, a doçura de expressão e até uma certa graça que vem contrastar
com o tema de dança dessa espécie de rondó.
A característica marcante dessa “Sinfonia Pianística” é talvez o fato do piano
ser posto em oposição à orquestra, retomando e desenvolvendo os seus temas,
como se tratasse de um elemento de natureza inteiramente diferente,
encerrando-se essa grandiosa obra-prima, num final deslumbrante e do mais
alto efeito virtuosístico.
Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical
Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1943
114
BEETHOVEN
SONATA OPUS 78, EM FÁ SUSTENIDO MAIOR
1º Tempo
Apesar de não ser incluída entre as prediletas do grande público, a Sonata op.
78, em Fá Sustenido Maior, escrita por Beethoven em 1809, era muito
apreciada pelo próprio compositor, que dizia a Czerny: “Fala-se muito da
Sonata em Dó Sustenido Menor (a que chamamos hoje impropriamente, aliás,
de “Sonata ao Luar”). Escrevi, entretanto, melhor do que isso. Assim, a Sonata
em Fá Sustenido Maior é outra coisa”.
Se é indiscutível que esta composição iguala em beleza e encanto as mais
célebres entre as trinta e duas obras-primas que constituem essa incomparável
coletânea, o fato permanece que o seu caráter é completamente íntimo, como
em certas peças de Schumann, que não deveriam ser ouvidas nas grandes
salas de concerto, mas, antes, “sentidas” na intimidade.
Ao ouvir o primeiro movimento, cheio de ternura, e até de certa ingenuidade,
movimento que deve ser executado na expressão mais “cantabile” que seja
possível atingir no teclado, já se percebe que esta obra é o reflexo da
intelectualidade e do pensamento beethoveniano, antes do que uma verdadeira
expansão do gênio do autor. Longe de captar a atenção pelos ímpetos
brilhantes e apaixonados, esta música nos comove pela quietude que dimana
da tonalidade igual e delicada, característica desta primeira parte.
Quem negará a beleza da frase inicial, desse “Adágio”, concretizada pelo genial
compositor, em quatro compassos apenas, os quais não mais aparecerão no
decurso da obra, que constituem, porém, tão melódico prelúdio à terna e pura
atmosfera do “Allegro”, e ao seu primeiro tema, quase lírico e tão
profundamente expressivo. O segundo tema do “Allegro”, que deve ser tocado
num tempo discretamente rubato, pode ser comparado pela suavidade do
início, ao som de uma flauta longínqua, animando-se todavia com os arabescos
de um elemento já ouvido anteriormente, e deixando perceber na atmosfera,
certa ameaça de perturbação. Essa aparente agitação logo vem se desfazer,
aliás, com a reexposição dos temas iniciais.
Hans von Büllow, que revisou e comentou todas as sonatas de Beethoven,
costumava dizer aos seus alunos: “Só é capaz de executar dignamente a
Sonata op. 78 o intérprete respeitoso do andamento que sabe ao mesmo tempo
dominar um perfeito tempo rubato”.
Sendo a execução de hoje a cargo da senhorita Eliane Carvalho de Azevedo,
limitada à primeira parte dessa Sonata, reservo para outra oportunidade, que
espero nos será dada em breve, falar-vos do segundo movimento dessa
Sonata, que é uma espécie de rondó, no qual alternam o humor, a alegria, o
espírito faiscante e a fantasia, e que se encerra numa brilhante e felicíssima
expansão.
115
É primeira parte dessa Sonata, que ouviremos agora, na interpretação da
senhorita Eliane Carvalho de Azevedo.
Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical
Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1943
116
BEETHOVEN
SONATA OP. 81
“O ADEUS, A AUSÊNCIA, O RETORNO”
Beethoven, como verdadeiro Titã da música, abarcou todos os gêneros, com
essa personalidade bem característica de cada uma das suas obras, e com
essa faculdade extraordinária que ele possuía de ser sempre diferente, ficando,
porém, sempre ele mesmo.
Para só falar da sua música de piano, temos disso uma prova irrefutável com as
trinta e duas sonatas, todas irmãs, porém de uma tal diversidade, tanto no
espírito como na forma. A “Appasionata”, tão característica da impetuosidade e
da paixão tempestuosa levada até o seu paroxismo; a Sonata op. 53, chamada
erroneamente de “Aurora”, tão cheia de frescura e de mistério; a sonata op. 27
n.º 2, que uma tradição igualmente errada costuma designar sob o nome de
“Luar”, e que o próprio Beethoven intitulou: “Quasi una Fantasia”; a comovedora
Opus 110, sem dedicatória nenhuma, talvez porque o genial compositor podia
só dedicar a si próprio essa transposição sonora da mais íntima convulsão da
sua vida; a Sonata op. 111, cuja potência de expressão dramática é precursora
do estilo wagneriano, etc. etc. todas imbuídas dessa genialidade, desse poder
emotivo e convincente que foram raramente igualados, sobretudo na forma
musical, sempre um pouco severa, da sonata.
(texto incompleto)
117
BEETHOVEN
SONATA OP. 27, N.º 2
Chamada erroneamente de “Sonata ao Luar”, sendo este apenas um cognome,
dado depois da morte de Beethoven que nada tem que ver com os sentimentos
que inspiraram essa obra.
A única precisão que possuímos a respeito dessa Sonata é a dedicatória: À
Giulietta Guicciardi, por quem Beethoven estava profundamente apaixonado.
Escrita em 1801, isto é, cinco anos após a aparição dos primeiros sintomas de
surdez, essa sonata é o reflexo por um lado da angústia do compositor diante
dos progressos da sua enfermidade, por outro, das alternativas de angústia,
esperança, revolta, ternura e desespero, que lhe inspirou seu amor por
Giulietta.
Escrita ao mesmo tempo que o célebre Testamento de Heilgeistadt, essa
Sonata nos revela, numa forma muito rica e com linguagem veemente e
significativa, os sentimentos que agitavam a alma de Beethoven, antes do
imenso,
.....................................................................
Como já disse além da, já marcada e anunciada para amanhã, sábado incluirão
a audição de mais uma participante da seção de arte vocal e, na seção de
piano a execução do Prelúdio, Ária e Final, de César Franck, do Concerto n.º 5
de Beethoven, para piano e orquestra, do Concerto em Mi Bemol Maior, para
piano orquestra de Liszt e, ainda, a análise interpretativa da sonata
“Appassionata” de Beethoven.
(Texto incompleto)
118
BEETHOVEN
SONATA OP. 53
“AURORA”
A Sonata op. 53 de Beethoven, chamada “Aurora”, foi escrita em 1804. Foi
dedicada ao Conde Waldstein, seu protetor desde os tempos de Bonn. É clara,
arejada e cheia de sol como os campos que Beethoven tanto gostava percorrer
a longos e rápidos passos, é um passeio pelo teclado do qual extrai escalas e
arpejos vividos como um coração que contempla avidamente a natureza. É a
admirável glorificação do tom de dó maior branco como a bruma fina da Aurora.
No primeiro trecho, “Allegro con Brio”, dois temas contrastam vivamente – o
primeiro, algo agitado, um pouco misterioso, com as surdas percussões no
grave, vai-se pouco a pouco se iluminando. O dia nascente afirma-se belo,
radioso.
O seguinte tema, calmo e meditativo, apoiado em largas harmonias, surge na
claridade ensolarada de mi maior. A essa primeira parte segue uma curta
“Introdução” ao “Rondó Final”.
Desde o início, com a primeira oitava na mão esquerda, essa introdução nos
mergulha em pleno mistério.
Há um frêmito interior, uma emoção contida nas pausas da mão direita, que não
podem ser descritas, só podemos senti-los como um belo e nostálgico canto de
violoncelo – mas logo o mistério lhe apaga a voz e no grave começa a lenta
descida para a harmonia que prepara a entrada do “Rondó”.
Este último trecho “Allegretto Moderato” cheio de fantasia, colorido movimento e
vida, não consegue esconder o sentimento interior e latente que o anima.
Para cantar a natureza em festa, Beethoven não fez mais do que ouvir o seu
próprio coração.
119
BEETHOVEN
SONATA OP. 31 N.º 2
COMENTÁRIOS
A Sonata op. 31 nº 2, que a senhorita Vera Cruz Piautznauer vai interpretar, é
um dos mais belos e mais perfeitos poemas que Beethoven tenha concebido.
Ele próprio dedicava a esta obra particular estima e considerou-a, muito tempo,
entre todas as suas Sonatas como a sua melhor realização.
A primeira parte sugere ao nosso espírito um drama interior, entrecortado por
pontos de interrogação, dos quais emana uma atmosfera misteriosa sempre
interrompida pelo destino inexorável, o qual, apesar das súplicas, segue o seu
rumo, semeando, até o fim, a desolação.
Segue, como segunda parte, um dos mais nobres e dos mais elevados
“adágios” beethovenianos. Esta peça exala (irradia) um perfeito sentimento de
calma e de paz, que traz com certeza, pelo menos momentaneamente, a
serenidade na alma dolorosa do pobre Beethoven, sempre tempestuoso ou
perturbado.
Para o final, Beethoven serviu-se do tema de uma sua melodia intitulada Für
Elise. Este final se desenvolve um pouco como um moto perpétuo, prestando
essa continuidade rítmica a cometer um gravíssimo erro ao qual não escapam
até grandes pianistas, que tocam esse “Allegretto” como se fosse um “Presto” e
sem nenhuma intenção musical. Esta concepção dá a impressão de se ouvir
apenas um estudo de técnica, produzindo assim um efeito desastroso, e vai
inteiramente contra a vontade de Beethoven, o qual, repito, inscreveu
“Allegretto” o que permite cantar a frase inicial desse desenho tão encantador.
120
BEETHOVEN
SONATA OP. 90 EM MI MENOR
Após a “Sonata do Adeus”, op. 81, escrita em 1810, que era a vigésima sexta,
dessa prodigiosa série de obras-primas pianísticas, Beethoven se dedicou
durante quatro anos, sobretudo à composição de música sinfônica e música de
câmara, sendo desse período (de 1810 a 1814) a sétima e a oitava sinfonias,
Egmont, a Sonata para piano e violoncelo op. 96, o Quarteto nº 11 e vários
Lieder.
A Sonata op. 90, em Mi Menor, inscrita nas execuções de hoje, foi composta
em 1814, ano em que Beethoven dividia a sua existência entre Viena, onde
passava o inverno e a estação de águas, onde, em meio a tratamentos e
cuidados médicos, compunha sempre em contato estreito com a natureza.
Publicada um ano mais tarde, essa Sonata, dedicada ao Conde Maurício
Lichnowski, foi considerada durante certo tempo como uma das obras mais
originais do Mestre de Bonn. Schindler, um dos mais íntimos amigos do
compositor, dizia que Beethoven tinha dado ao primeiro tempo o título:
“Combate entre a cabeça e o coração”, e ao segunda e último tempo:
“Conversa com a bem-amada”.
Sabemos todos quanto contrária ao temperamento e ao gênio beethoveniano
era a concepção de uma música descritiva ou música com programa, fato que
nos é comprovado pela ausência de título na quase totalidade da sua produção.
O acontecimento pessoal, o fato ocorrido eram apenas pretexto ou causa
psicológica da inspiração, libertando-se logo das contingências objetivas, para
se desenvolver no plano superior da criação artística. Isso não impede, porém,
que certos musicólogos admitam, nesta sonata, a predominância da forma
poética sobre a musical, revelada na limitação dos tempos reduzidos a dois, e
considerem o desfecho em tom maior como significativo de uma história que
acaba bem.
No primeiro tempo, a exposição do primeiro tema se assinala pelo esplêndido
equilíbrio obtido, apesar da poderosa força dos contrastes e da vivacidade com
a qual essa obra deve ser tocada, conforme o indica o próprio Beethoven. Por
meio de novos contrastes, chegamos a um segundo tema, de caráter tão
melancólico que Anton Rubinstein dizia: “cada nota dessa passagem deve ser
uma lágrima!”. Acentuando a poesia com uma rica disposição do
acompanhamento da mão esquerda, o compositor consegue, contudo, manter
em todo esse primeiro movimento, a elegância aristocrática bem de acordo com
a extirpe do Conde Lichnowski, que essa obra era destinada a homenagear.
O segundo tempo, em mi maior, o qual, segundo Beethoven, deve ser tocado
sem apressar e bem cantante, contém, a meu ver, uma das páginas mais
melódicas de toda a produção do grande mestre do classicismo, página da qual
dimana a mais serena felicidade que a música possa expressar.
121
A extraordinária beleza do refrão cheio de ternura, quietude e confiança no
destino, só pode corresponder às ressonâncias de um coração feliz, o que vem
nos confirmar que, apesar da sua enfermidade, apesar dos seus terríveis
sofrimentos físicos e morais, Beethoven conseguia às vezes encontrar a
felicidade e cantá-la numa expansão de lírica ternura, para doá-la aos seus
contemporâneos e às sucessivas gerações que prestam desde então,
incondicional homenagem à sua prestigiosa memória.
É essa Sonata, verdadeira imagem da vida, com suas alternativas de luta e de
alegria, que ouviremos agora, na interpretação da senhorita Lygia Coelho
Messeder.
122
BEETHOVEN
SONATA OP. 90, EM MI MENOR
COMENTÁRIOS
A Sonata em Mi Menor op. 90 é a precursora do grandioso ciclo das últimas
cinco sonatas, tendo a particularidade de ser só em dois tempos.
O primeiro tempo se desenvolve em forma tradicional, porém com uma tal
multiplicidade de acento e de sentimentos humanos, de coloridos e timbre tão
variados que vem a ser uma realização mais orquestral do que pianística.
Energia viva e resignação tranqüila, força e serenidade se enlaçam nesta peça,
cujo caráter é aliás indicado com a maior nitidez pelo próprio Beethoven: “com
vivacidade e sempre com sentimento e expressão”.
A senhorita Menininha Lobo vai certamente nos dar uma fiel execução deste
preceito.
O tema da segunda e última parte é um dos mais suaves, melódicos e
encantadores que se possa imaginar; singelo como uma canção popular, porém
requintado ao máximo.
Em toda esta peça planam uma frescura, uma candura e um pudor de
sentimentos que podem facilmente, se não forem bem compreendidos e
executados, trazer certa monotonia, o que com certeza não será o caso com a
senhorita Lobo.
123
BEETHOVEN
SONATA OP. 57
1º MOVIMENTO - ALLEGRO ASSAI
A sonata surge como uma aparição misteriosa e fantasmagórica, que se
aproximando com ar interrogativo para criar, logo no princípio, esse ambiente
de enigma, que deixa o ouvinte perplexo a respeito do que vai acontecer,
afirmando-se, com a repetição da pergunta, o mistério que dimana dessa
introdução, envolta no entanto de grandiosa majestade:
Exemplo 1
Desde os primeiros compassos do “Allegro”, surge um apelo, obtido com a
repetição de três notas iguais, seguidas de uma nota diferente - neste caso, de
3 ré bemóis e um dó. Este apelo lembra, até um certo ponto, a evocação do
“Destino que bate à nossa porta” imortalizada pelo mesmo Beethoven na sua
Quinta Sinfonia.
No caso da “Sonata Apassionata” eis o chamamento do Destino, cuja repetição
é o preâmbulo dos graves acontecimentos e das dramáticas e tempestuosas
manifestações que seguirão:
Exemplo 2
Após essa irriquieta introdução, irrompe o primeiro elemento da tempestade,
isto é, da violenta agitação que vem perturbando a alma do compositor:
Exemplo 3
Essa inquietação é momentaneamente contida. A reexposição do tema num
dramático e abstrato desenvolvimento abrange a essência da dúvida, do
sofrimento, do desespero humano, através das expansões desse poderoso
gênio. É mister evitar, nessa afirmação da idéia inicial, qualquer modificação de
ritmo, não havendo motivo para precipitar esses acordes, como se se tratasse
de um andamento diferente. Ouvimos comumente:
Exemplo 4
em vez do que está escrito, isto é:
Exemplo 5
A modulação que segue tem por finalidade preparar a entrada da segunda idéia
desta Sonata, transmitindo-nos uma sucessão de acentos angustiosos,
agitados, pungentes, que o autor procura reprimir, ou pelo menos acalmar, num
expressivo rallentando:
124
Exemplo 6
Aqui nasce a segunda idéia, que não é outra coisa senão a intervenção do
primeiro tema, exposto desta vez na tonalidade de lá bemol maior, o que nos
incitaria a evocar o nobre Próspero, da Tempestade de Shakespeare, numa
expansão mais serena e acolhedora:
Exemplo 7
Essa impressão de serenidade deve ser obtida sem prejudicar a unidade de
conjunto, procurando o intérprete para esse fim, tocar “expressivo”, com
tranqüila doçura, sem se deixar ir, no entanto, a um andamento por demais
vagaroso.
Essa quietude terá, aliás, de curta duração, sendo logo entrecortada por
expressiva e dolorosa inflexão que parece quase uma lamentação:
Exemplo 8
À significativa descida que prolonga o doloroso apelo dos trinados, segue-se a
apresentação de novo tema, em lá bemol maior, que suscita na nossa mente, a
visão do monstruoso Caliban, encarnação das forças do mal, que vem provocar
violenta tempestade na alma do nobre duque. Sombrio, de caráter hostil e
quase agressivo, este tema deve ser tocado num ritmo inexorável, alcançandose, assim, uma evocação de extraordinária potência:
Exemplo 9
A essa tumultuosa agitação, sucedem dois compassos de transição em que o
compositor parece meditar, resolvendo afinal recorrer novamente à exposição
do primeiro tema, desta vez em mi maior:
Exemplo 10
Este o leva a um desenvolvimento que conduz à re-exposição da frase tão
expressiva, a própria imagem da resignação, oferecida agora no meio de um
conjunto de perturbadoras modulações:
Exemplo 11
A tempestade que ferve neste coração angustiado chega ao auge do desespero
e irrompe com temível violência, sem conseguir, entretanto, apagar os repetidos
apelos de um destino implacável, evocados com rara maestria por uma
sucessão de rés, tocados fortissimo:
Exemplo 12
Chegamos assim, após novas exposições e desenvolvimento de temas já
conhecidos, ao ponto culminante dessa dramática evocação, dessa tempestade
da alma que o compositor consegue transpor com fogosa e persuasiva
eloqüência:
Exemplo 13
125
Aqui, o apelo do Destino se faz ouvir novamente, num rallentando que deve ser
cuidadosamente graduado.
Exemplo 14
Desse ambiente de tensa expectativa é que surge, então, um último e
estrondoso chamado que vem afirmar a vitória decisiva do destino. Esse grito
de gloriosa conquista inicia uma peroração admirável, que nos levará ainda ao
paroxismo deste conflito antes da dramática evocação final. É, pois, num último
e impetuoso crescendo, no qual as fracas veleidades humanas ficam
aniquiladas pela invencível fatalidade, que Beethoven encerra essa primeira
parte da Sonata, arrastando os seus personagens nas profundezas do nada:
Exemplo 15
2º MOVIMENTO - ANDANTE CON MOTO
O tempo escasso de que dispomos hoje me obriga a limitar esta parte da minha
análise às linhas essenciais.
Se alguns virtuoses costumam interpretar a Primeira Parte e o Final desta
sonata num andamento demasiadamente rápido, eles caem, freqüentemente,
no excesso contrário, ao interpretarem o “Andante”, acreditando que este deve
ser tocado muito vagarosamente.
A indicação do próprio autor, “Andante con Moto”, deveria ser entretanto ser
encarada como uma advertência destinada a evitar excessiva rigidez na
conservação do andamento e autorizando uma imperceptível aceleração na
segunda variação para chegarmos a uma aceleração mais aparente, na terceira
variação.
O que o intérprete deve evitar, em absoluto, é introduzir, nesses vários
períodos, qualquer elemento incompatível com a serenidade contemplativa,
característica essencial desta segunda parte. Procuraremos, pois, manter em
todo esse segundo movimento, o caráter meditativo e a atmosfera, quase
religiosa, de quietude e de paz, que envolve uma alma consolada.
Se o compositor pretende associar a este Andante a figura do duque Próspero,
assistimos aqui à fase da feérica lenda, em que todas as paixões se acham
subjugadas, conforme o vem comprovar esta primeira frase, digna e estática.
Exemplo 1
A primeira variação deve ser interpretada num andamento idêntico ao do tema.
Exemplo 2
Na segunda variação, o tema deve aparecer nitidamente na mão direita,
enquanto a melodia, confiada à mão esquerda, evocará as sonoridades de um
belo violoncelo.
126
Exemplo 3
O “Andante” encerra-se com dois maravilhosos acordes: o primeiro, misterioso
e calmo, tal a superfície do oceano após a tempestade; o segundo, poderoso,
mas também interrogativo, tal um grito angustiado, deixando prever que era
efêmera a serenidade expressa pelo Andante, e que o Final nos colocará
novamente no clima dramático.
Exemplo 4
III - ALLEGRO MA NON TROPPO
Hans von Büllow costumava dizer aos virtuoses que atacavam este movimento
com excessiva velocidade que não se tratava de um exercício de ginástica, mas
sim uma composição musical embebida de paixão, possivelmente concebida
durante uma tempestade noturna.
A impetuosidade desse "Alegro", que foi aliás escrito por Beethoven, antes das
outras partes da Sonata, justifica a narração de Ries, segundo o qual, durante
longo passeio, o mestre cantava e gritava coisas incoerentes, voltando à casa
em seguida para se por ao piano e submeter, durante duas horas, o
instrumento à rude prova da primeira versão deste final.
Eis o início arrebatador, dessa tempestade da alma, admiravelmente transposta
no plano sonoro:
Exemplo 1
Apesar do patetismo dos elementos desencadeados, dos vagalhões furiosos,
do estrondo do trovão e outras empolgantes manifestações da natureza que
servem para evocar toda a tragédia de um coração ferido e que o intérprete
procurará exteriorizar com o mais convincente realismo, esse tumulto não pode
ser inspirado, exclusivamente, pelo efeito rítmico e virtuosístico. No meio deste
ambiente eletrizado, devem sobressair os acentos vibrantes e dolorosos, que se
erguem para concretizar, logo no início, o elemento expressivo deste final:
Exemplo 2
Inicia-se aqui o desenvolvimento da frase que acabo de tocar, após o que
ouvimos comovedores gemidos.
Exemplo 3
Seguem-se várias peripécias, após as quais chegamos a um novo tema que
deve ser tocado expressivamente e, logo depois, em oitavas, ostentar certa
fúria:
Exemplo 4
Com a mesma fúria selvagem transbordam os elementos e as paixões, inclusive
os realísticos acentos de um riso sarcástico obtido por meio de espécie de
trinados de efeito realmente demoníaco.
127
Exemplo 5
O “Presto”, que vem findar a “Sonata Apassionata”, com toda a dramática
potência que o executante é capaz de tirar do piano, é uma verdadeira orgia
sonora evocadora das antigas e frenéticas correrias das “baccantes”,
transpostas no plano do classicismo musical. As bacantes eram, como sabeis,
sacerdotisas do deus Baco, que, na época das celebrações da primavera,
costumavam correr, numa disparada endiabrada, através as ruas da Roma
antiga, de cabeça cingida de hera, cantando, de tirso na mão, dançando, e
enchendo a cidade com seus gritos discordantes.
Os dois primeiros acordes dessa satânica bacanal devem ser tocados
fortíssimo, e retidos a fim de criar a impressão de que um peso enorme os
agarra ao solo.
Exemplo 6
As trepidantes inflexões das colcheias, evocadoras dessa frenética procissão
de bacantes, devem, pelo contrário, ser tocadas piano e, apesar do ritmo
acelerado, com suficiente clareza a fim de que os penetrantes e convulsivos
acordes sejam integralmente ouvidos.
Exemplo 7
Chegamos, agora, aos derradeiros ímpetos dessa exaltação, aos últimos
sobressaltos dessa grandiosa evocação.
Exemplo 8
Três notas apenas, dó, fá, lá, repetidas quatro vezes na mão esquerda e
entrecortadas de outra sucessão de duas notas, são o suficiente, nessa
vertiginosa peroração, para Beethoven nos afirmar, com incisiva segurança, a
inelutável soberania do pensamento.
Nessa decisiva afirmação, o dó e o fá da mão esquerda revestem-se de
primordial importância e devem ser assinalados com devida ênfase; as
primeiras vezes o intérprete procurará evocar o som vitorioso de trombetas e no
fim como se fossem emitidos por graves tímbalos destinados a marcar o
encerramento dessa luta épica, entre o orgulho e a aflição, bem como os
últimos clamores angustiosos, que nos levarão ao cume dessa trágica
confissão.
Exemplo 9
E, do mesmo modo que o compositor infeliz e torturado conseguirá, no fim da
sua gloriosa carreira, celebrar a alegria com a sua famosa Nona Sinfonia,
Beethoven encerra aqui a sonata “Apassionata”, com essa impressionante
exteriorização da vitória do espírito, nessa luta incessante que o deixou cada
vez mais pobre e mais doente, porém sempre vencedor, vencedor da
mediocridade, vencedor do sofrimento e também, até um certo ponto, vencedor
do seu próprio destino!
128
ROBERT SCHUMANN
SONATA OPUS 11, EM FÁ SUSTENIDO MENOR
1. PRELEÇÃO
Schumann adorava Clara Wieck, a qual, por seu lado, retribuía carinhosamente
esta grande paixão. Ele poderia, pois, ser muito feliz! Sim, muito feliz, se não
fosse o pai dela, que era ao mesmo tempo o professor do jovem músico. O
senhor Frederico Wieck, orgulhoso de ter uma filha tão linda, tão moça – ela
tinha apenas 15 anos naquela época – aclamada como um verdadeiro prodígio
e já considerada pelos seus dotes excepcionais como sendo uma grande
artista, não achava digno de tão maravilhoso conjunto de talentos e
possibilidades um simples compositor, apenas um principiante nessa ingrata e
árdua carreira, e que era aliás, mais conhecido como jornalista. E o professor
Wieck, em absoluto, não gostava de jornalistas! Ele fez então, a partir do dia em
que Schumann teve a ousadia de pedir Clara em casamento, todo o seu
possível e até o impossível para contrariar e impedir essa união,
despercebendo que sua vaidade e sua teimosia eram suscetíveis de
comprometer a felicidade de dois seres escolhidos pelo destino para se
compreenderem e se amarem, conforme os acontecimentos que seguiram
vieram confirmar.
Na realidade, Schumann ajudou o destino até certo ponto. Convém
efetivamente lembrar aqui que o compositor, entusiasmado pelas invulgares
capacidades da famosa jovem, que aos seis anos já cantava e tocava piano e
violino, realizando aos treze anos inesquecível execução de uma das suas
primeiras obras Papillons, resolveu estudar com o professor Wieck, mormente
com o fim de se aproximar da sua encantadora filha. Efetivamente, Schumann
se convencera, desde o seu primeiro encontro com Clara, que seria ela a
companheira ideal da sua existência de artista, e é fácil compreender que a
obstinação do pai tenha apenas estimulado seu ardoroso desejo de conquistála para sempre. Forçado pelos seus pais a cursar direito, apesar da sua
evidente vocação musical, Schumann, acumulando os estudos literários e a
composição, conseguiu obter o título de Doutor em Filosofia da Universidade de
Iena, certo que essa alta distinção reservada aos músicos que já alcançaram a
notoriedade venceria a pertinácia do seu mestre. Ele ignorava, porém, que
Wieck tinha outra importante razão para justificar sua atitude: Wieck sabia que a
saúde do jovem compositor era abalada por certas perturbações de origem
nervosa, que a irmã de Schumann morrera aos vinte anos em conseqüência de
graves desordens mentais, e que o fato do autor, já célebre, do Carnaval, e de
outras obras-primas ter assegurado sua situação material não era suficiente
para que escapasse a tão perigoso atavismo.
Foi assim que se passaram cinco anos, durante os quais Clara usou, em vão,
todos os argumentos ao seu alcance, súplicas, carinho, desespero e até
ameaças, sem conseguir todavia que o seu pai abandonasse sua intransigente
atitude. Nesse período, Schumann, passando por alternativas de terrível
abatimento e transbordante entusiasmo, prosseguia numa carreira que, apesar
do seu trágico e prematuro desfecho, aos quarenta e seis anos do genial autor,
129
devia se assinalar como uma das mais fecundas e originais de todo o
romantismo musical.
Após essa demorada espera, Robert Schumann e Clara Wieck, incapazes de
se conformar com tão dolorosa separação, acabaram casando, a despeito da
oposição paterna, tendo o casal recorrido para esse fim à Corte Real de
Leipzig, a qual julgou imprópria e injustificável a recusa do professor Wieck, e
autorizou o casamento, exatamente na véspera do dia em que Clara
completava seus vinte e um anos.
Se as trágicas ocorrências que marcaram a existência de Mozart, Beethoven,
Schubert, Mendelssohn ou Chopin, entre tantos outros, incentivaram até certo
ponto as prodigiosas realizações desses ilustres protagonistas da arte musical,
do mesmo modo, o temporário e inevitável afastamento da eleita do seu
coração e os esforços necessitados pela concretização do seu ambicioso
projeto criaram no espírito de Schumann, levado ao seu paroxismo por
agudíssima e exaltada sensibilidade, o ambiente propício à atividade criadora,
conforme ele mesmo confessou, numa carta ao seu amigo Dorn: “Minha
música, escrevia o grande autor romântico, não pode deixar de ser impregnada
de todas as lutas que me custou a conquista da minha Clara querida”.
Foi o desejo de manifestar com maior clareza os sentimentos apaixonados que
jorravam da sua alma e de revelar a todos a beata felicidade que ia brevemente
alcançar que o levou a acrescentar eloqüentes palavras à sua música. Daí
nasceram as 138 melodias escritas no ano que precedeu o seu casamento, que
são entre os mais maravilhosos cantos de amor, e dos quais dimana tão
vibrante e profundo lirismo, matizado de vez em quando pela nostalgia e as
melancólicas visões do seu espírito atormentado.
Numa carta, escrita à sua cunhada Teresa, encontramos outra frase
significativa da sua confiança no futuro, apesar de todas as vicissitudes: “Não
posso lhe dizer, escrevia Schumann, que nobre criatura é a minha noiva! Ela é,
sem dúvida, única entre todas, e une tantas virtudes que não me sinto
realmente digno dela. Estou convencido, no entanto, que torná-la-ei feliz ... Não
lhe falarei mais nela, já que sentimentos tão profundos não podem ser
traduzidos com palavras… ”.
Cartas como estas são, aliás, bastante raras. Longe de procurar impressionar
sua noiva com ardorosas declarações e frases banais ou frívolas, como é a
regra quase universal entre namorados, Schumann confiou ao piano as
expansões às vezes estranhas, porém sempre sinceras e espontâneas,
reveladoras de uma inesgotável fantasia, dos ímpetos de um desejo indomado,
e também de uma mórbida languidez, aliada ao mais intenso amor da natureza,
sendo todos esses sentimentos imbuídos do notável senso poético, distintivo da
maioria das suas composições.
Felizmente para a música, as cartas de amor que Schumann não conseguiu
escrever a Clara Wieck foram substituídas, tanto durante este período de
angustiosa espera e penosos sacrifícios, quanto nos anos que seguiram, por
admiráveis obras-primas das quais o piano veio a ser o fiel e prestigioso
confidente. Foi assim que nasceram logo após as primeiras tentativas junto ao
inexorável professor, o famoso Carnaval op. 9 – que já tive a oportunidade de
analisar numa destas aulas, e também há dois anos, numa Conferência Musical
promovida pela Cultura Artística do Rio de Janeiro –, os Seis Estudos de
130
Concerto sobre os Caprichos de Paganini, que formam o opus 10, e a grande
Sonata op. 11, em Fá Sustenido Menor, ao estudo da qual será reservada toda
a segunda parte desta preleção.
Dentre o imponente conjunto de composições oriundas de uma separação que
se revelou tão fecunda para o repertório pianístico, e escritas todas do
memorável julgamento da Corte de Leipzig, em 1840, citar-vos-ei ainda: os
Fantasiestücke, em que se sucedem o mistério, a nostalgia, a ternura através
as mais harmoniosas e fantásticas evocações; a Sonata para Piano, em fá
menor, que o próprio autor denominou Concerto sem Orquestra, as Cenas
Infantis, que deixaram os críticos daquela época pasmos diante da rara
maestria do autor, que não tinha ainda 25 anos e criou com essa obra em
gênero inteiramente novo; Kreisleriana, cujo título foi escolhido em homenagem
ao herói de Hoffmann, o mestre de capela de Kreisler, e que nos transmite na
realidade, os ecos dos mais vibrantes gritos de amor; a Fantasia, em Dó Maior
(para piano), que revela a dupla preocupação poética e impressionista, do
compositor, que superpõe ao frenético desenvolvimento da sua inspiração uma
religiosa, sombria e vagarosa interpretação do tema inicial, como uma
majestosa prece que passaria entre dois delírios; Humoresque, a respeito da
qual Schumann contava a Clara: “Passei a semana inteira sentado ao piano, e
compus essa obra, rindo e chorando, quase ao mesmo tempo”, as oito
Novelletes, os Noturnos e Blumenstück, que refletem a genialidade lírica, tão
característica do singular autor romântico, e constituem uma espécie de
autobiografia psíquica, em que alternam a ternura, um irresistível poder
magnético, e um sublime ardor; a Sonata para Piano, em Sol Menor dominada
pela intensidade do pensamento, pelo ritmo complexo e riquíssimo, e a arte da
mais elevada e poética improvisação, os Três Romances, Arabesco e essa
deslumbrante revelação, intitulada Carnaval de Viena, surpreendente poema
pianístico, em que a riqueza dos timbres ultrapassa o instrumento, ao ponto de
se transformar numa cintilante e fogosa orquestração.
Se nos compenetramos do fato quase inacreditável que toda essa prodigiosa
música, cuja enumeração é forçosamente incompleta, foi escrita em menos de
seis anos, entre os 19 e os 25 anos do compositor, não podemos deixar de
avaliar quanto esse amor contrariado se revelou fecundo para toda a história do
romantismo musical, tendo Robert Schumann, graças à sua sensibilidade
exacerbada, e através suas geniais expansões, conseguido converter em jorros
de melodia as tumultuosas aspirações da sua fervorosa natureza.
Tendo-vos esboçado as circunstâncias que suscitaram, entre 1835 e 1840, a
composição de tantas obras-primas, e a criação de um gênero de música
inigualado desde então, falar-vos-ei agora, de maneira pormenorizada da
Sonata op. 11, em Fá Sustenido Menor, escrita no início daquele período, e
dedicada, naturalmente à senhorita Clara Wieck.
Não vejo introdução mais adequada a este estudo do que a opinião expressada
por Franz Liszt, na Gazeta Musical de Leipzig, no ano que se seguiu à
publicação dessa obra, isto é, em 1836.
“As composições de Schumann”, dizia o imortal criador do poema sinfônico,
“pertencem a essa categoria de obras-primas, que ficam escondidas na sombra,
às vezes durante muito tempo, e até que sua beleza, encoberta por misterioso
véu, venha a ser revelada, aos que as estudam com olho atento, carinho e
amor”.
131
É talvez por essa razão que o comum dos mortais passa friamente ao lado de
uma grandiosa criação artística, sem perceber a gloriosa mensagem que ela é
destinada a nos transmitir, como é, por exemplo, o caso da Sonata em Fá
Sustenido Menor, cuja individualidade, cujo encanto e cuja novidade na
expressão nem sempre foram avaliados tanto quanto mereciam, tendo essa
admirável composição levado muitos anos antes de ser verdadeiramente
compreendida e antes de alcançar a popularidade que granjeia hoje em dia.
Não esqueçamos que a “forma de sonata”, oriunda da antiga Suíte de Danças,
atingiria com Beethoven à sua expressão mais universal, levada pela arte do
divino surdo ao apogeu do seu evocador. Após esse incontestado reinado,
todavia, os românticos ainda conseguiram enriquecer esse gênero musical com
um elemento bastante novo. Efetivamente, apesar de respeitarem integralmente
o plano geral, eles introduziram na Sonata a “sensibilidade pessoal”, elevando-a
ao grau de confidente das suas íntimas emoções, sob seus sonhos e das mais
secretas aspirações.
Se o Romantismo foi apenas uma época, na prodigiosa história da arte
universal, pode-se afirmar, no entanto, que esse grande movimento foi, antes
de tudo, no plano musical, o meio mais convincente de expressão do
individualismo.
Foi esse individualismo, ampliado pelos recursos novos, diversos e poderosos,
postos ao alcance dos compositores, após a descoberta e o aperfeiçoamento
do pianoforte, que permitiu aos protagonistas da época romântica dar um
aspecto quase tangível às diversas exteriorizações do seu pensamento, as
quais podiam, agora, ser expressadas com maior intensidade e de modo mais
integral.
É esse mesmo individualismo curvado pelo gênio schumanniano às exigências
da técnica, e às regras estabelecidas, porém sem prejudicar a atmosfera de
poesia em que se acha envolvida, que constitui a particularidade dominante da
Sonata op. 11, uma das mais notáveis produções de todo o repertório
pianístico.
Esta sonata foi apresentada ao público, sob os auspícios de dois personagens
que desempenham, em toda a produção literária e musical schumanniana,
papel tão importante que a análise desta sonata seria incompleta sem algumas
palavras a seu respeito. Trata-se neste caso, de personagens puramente
alegóricos e fictícios, criados pelo espírito inventivo e a fantasia do compositor,
no início das usas atividades como crítico musical em Leipzig, e conhecidos,
respectivamente, sob nome de Eusebius e Florestan.
Dentre vós, os que conhecem o grande Carnaval de Schumann, e assistiram à
minha análise dessa obra, devem certamente se lembrar desses dois
simpáticos senhores, magistralmente evocados nessa cintilante fantasia, o
primeiro por um melancólico adágio, e, o segundo, por uma música tumultuosa.
Sabemos, pois, que esses dois personagens nasceram na época em que
Robert Schumann, desejoso de dar um novo rumo à crítica musical da sua
terra, e de focalizar toda a poesia e o significado estético da música romântica,
criou a sociedade imaginária dos Davidsbündler, em nome da qual foram
lançadas, na Gazeta Musical que ele dirigia, as mais veementes críticas contra
132
os Filisteus, denominação que reunia os seus contemporâneos que Schumann
e seus colegas consideravam como inimigos do progresso e da verdadeira arte.
Desde o princípio da sua carreira, Schumann sentira quanto as diversas facetas
da sua própria natureza reagiam de maneira variável, diante do mesmo
indivíduo, da mesma obra de arte, ou do mesmo pensamento, filosófico ou
amoroso, e foi com o objetivo de expressar toda essa diversidade de emoções,
com amor liberdade e exatidão, que ele inventou um grupo inteiro de
personalidades, para atuarem como membros da sua sociedade imaginária, e
das quais se destacavam dois tipos nitidamente opostos: Eusebius,
concretização da sua índole sonhadora, melancólica e sentimental, e Florestan,
que personificava o lado impulsivo, apaixonado e humorístico do seu próprio
caráter.
Quando a Sonata op. 11 foi executada pela primeira vez, os que ignoravam a
existência desses dois personagens, surgidos da fantasia de um cérebro em
que a excentricidade alternava com o mais íntimo sentimento poético, não
conseguiram captar logo no início como sendo envolvida de certo mistério.
Como podereis constatar, nosso conhecimento do nostálgico Eusebius e do
tempestuoso Florestan se revelará de um valioso auxílio na nossa tarefa de
desvendar esse pretenso mistério, e focalizar toda a beleza, a unidade e a
potência significativas dessa composição, que marca indiscutivelmente uma
data histórica em toda a evolução da Sonata, desde Kuhnau e Filipe Emmanuel
Bach, até Ravel, Paul Dukas e os mestres contemporâneos.
2. ANÁLISE AO PIANO
A Sonata em Fá Sustenido Menor, que estudaremos agora de modo
sistemático, mormente sob o ponto de vista da interpretação, consta de quatro
tempos:
1. Allegro Vivace, precedido de uma breve introdução;
2. Ária;
3. Scherzo – Intermezzo;
4. Final.
1. Allegro Vivace
Os primeiros compassos da “Introdução” são de caráter solene e altamente
expressivo, colocando-nos imediatamente numa atmosfera de intensa
emotividade.
Este início se assinala, a meu ver, por interessante particularidade da sua
escritura musical; o canto, confiado em primeiro lugar à mão direita, e um pouco
mais longe à mão esquerda, permanece em ambos os casos, apoiado sobre um
movimento balançando da outra mão, evocando, desse modo, o verdadeiro
estado de alma do autor. Com efeito, enquanto uma das mãos afirma a
inabalável vontade e o ardoroso desejo do compositor, anunciando o tema com
profunda e comovedora expressão, as flutuações da outra mão são o reflexo da
incerteza e das dúvidas que agitavam a sua alma.
133
Sentimos desde o princípio a presença de Eusebius, sendo a poderosa
intensidade revelada na apresentação da sua imagem inicial, obtida graças à
maravilhosa precisão do desenho rítmico.
Eis o solene e grandioso início dessa Introdução.
Exemplo 1
O elemento doloroso e intenso desse tema vem logo a ser substituído por um
sentimento mais meditado. Eusebius não pode esquecer que ele é, antes de
tudo, de uma natureza terna e afetuosa.
Exemplo 2
Eusebius não procura tampouco ocultar que essa confissão é apenas o prelúdio
e a preparação à inefável expansão amorosa.
Exemplo 3
Essa expansão, interrompida por momentos volta à realidade, acaba levandonos novamente ao cume do sentimento, que se revela desta vez num rasgo de
transbordante paixão:
Exemplo 4
Com isso, se termina a Introdução cuja arquitetura lembra o átrio que precedia
a entrada dos templos antigos, e que os romanos construíam em frente às suas
basílicas, a fim de que os fiéis tomassem o tempo de meditar, antes de penetrar
na igreja. Do mesmo modo, essa introdução incita à meditação, e prepara
perfeitamente o ambiente para o verdadeiro início da Sonata.
Logo no princípio do “Allegro Vivace”, irrompe Florestan, cujas evoluções,
apesar de inspiradas pela mais fremente e espontânea fantasia, são
conduzidas com surpreendente e inexorável lógica.
O primeiro tema deste movimento se repetirá três vezes no decorrer da primeira
parte, e com intensidade crescente a cada vez. É essa idéia aliás que servirá
para todo o desenvolvimento do “Allegro”.
Exemplo 5
Se a saúde de Schumann veio, muito cedo, ser abalada pelos sintomas da
grave neurastenia que ia levá-lo à loucura e ao suicídio, se a arte deste
compositor tão diferente dos outros foi quase sempre dominada pela fantasia,
isso não impede que, em tudo que fazia, ele obedecesse invariavelmente uma
lógica impressionante, convencido que a excentricidade não era,
necessariamente, sinônimo de desordem, como o vem comprovar essa
segunda exposição do tema principal, o qual aparece, no estilo possante,
porém visivelmente ampliado.
Exemplo 6
Ampliando ainda o lógico desenvolvimento dessa idéia dominante, Florestan
nos apresenta uma terceira e mais vigorosa exposição do tema, na qual ele
consegue, desta vez, introduzir interessante episódica diversão.
134
Exemplo 7
Tendo chegado ao paroxismo desse fervoroso apelo, que culmina numa frase
ofegante, em que Florestan sintetiza os transbordos da sua alma apaixonada.
Exemplo 8
Schumann se deixa ir a uns breves instantes de desafogo. Este “più lento” é
destinado aliás a servir de período transitório e a abrir caminho ao segundo
tema do “Allegro”. Eis o período de desafogo, “più lento”.
Exemplo 9
Inicia-se aqui com uma frase de sublime beleza e encanto, escrita na tonalidade
de Lá Maior, o Segundo Tema deste “Allegro”. Estes acordes suscitam
naturalmente ao nosso espírito a imagem da suprema felicidade com a qual
Schumann sonhava, imagem que se torna mais realística ainda com o
minucioso desenvolvimento dessa frase, e os acentos emotivos que vêm findar
essa página admirável, exalando a frescura e a quietude de um coração feliz.
Exemplo 10
Todo o resto do “Allegro” virá a ser agora o desenvolvimento dos temas
precedentes.
Exemplo 11
Temas estes que se repetirão várias vezes com transformações maiores ou
menores, e a idéia primordial passando alternativamente da mão direita à
esquerda, até chegarmos a um novo desenvolvimento da primeira frase da
Introdução.
Exemplo 12
E recaímos novamente numa transposição e re-exposição do desenvolvimento.
Exemplo 13
O “Allegro” encerra-se, enfim, com a mesma frase sublime que vos toquei agora
há pouco, escrita, porém, desta vez na tonalidade de fá sustenido menor, a qual
introduz nessa comovente expansão um elemento de profunda melancolia. Esta
frase, proferida agora, num estado de espírito bem diferente, exala uma tal
nostalgia, que podemos interpretá-la como sendo o triste chamamento à
realidade após um lindo sonho, e do qual o autor duvida que ainda possa voltar.
Eis a encantadora melancolia e as nostálgicas saudades tais quais evocadas
através de gênio de Robert Schumann.
Exemplo 14
O estilo e a lógica imutável à qual obedece este “Allegro” são entre as
qualidades que mais se destacam nas obras deste famoso compositor. Longe
de excluírem a originalidade, tais qualidades imprimem, pelo contrário, a essa
gigantesca produção seu cunho tão exclusivo, e contribuem em criar através da
135
inigualada sensibilidade do autor esse estado de alma, denominado
schumanniano, por ser tão diferente de todos os outros transportos até hoje no
plano sonoro.
2. ÁRIA
A “Ária”, que constitui a segunda parte desta sonata, reúne algumas páginas
entre as mais belas da literatura do piano. Apesar da indicação do próprio
Schumann, que escreveu à margem do manuscrito: “Senza Passione”, isto é,
sem paixão, esta canção de amor extasiado, transmitida por intermédio do
suave Eusebius à adorada Chiarina, é caracterizada, na realidade, pelo mais
apaixonado abandono. É verdade que essa paixão se mantém relativamente
calma, em lugar de se exibir ruidosa e abertamente, dirigindo-se neste caso aos
recantos mais sensíveis e profundos da nossa alma, e incitando-nos à mais
séria meditação.
Na primeira parte dessa expressiva confissão, o tema vos é revelado por um
canto de inexprimível beleza.
Exemplo 1
A segunda parte da “Ária”, composta de elementos inteiramente novos, é talvez
mais positiva, menos estática do que a precedente, e vem evocar o canto de
um belo violoncelo, servindo assim de apropriada transição com a última parte.
Eis o original solo de violoncelo e os arabescos que o envolvem.
Exemplo 2
Com a terceira parte, voltamos exatamente ao tema do início, o qual deve
todavia, ser tocado ainda mais piano, e constituir uma mera recordação dos
suaves e felizes momentos evocados anteriormente, encerrando-se numa
reminiscência ainda mais longínqua, em forma de breve conclusão.
A fim de não perturbar a harmonia e a idílica ternura dessa evocação, tocarvos-ei agora esta “Ária” sem interrupção.
Exemplo 3
3. SCHERZO E INTERMEZZO
Após ter mergulhado com Eusebius até as mais inacessíveis profundezas do
pensamento e do sonho, voltamos neste “Scherzo” à verve cintilante de
Florestan, magistralmente evocada nesta primeira parte, chistosa, e cheia de
espírito mordaz.
Exemplo 1
Segue uma parte essencialmente rítmica, em lá maior, notável pelos efeitos
obtidos quando interpretada com toda leveza e a graça exigidas por esse ritmo,
136
que é quase em forma de valsa. Ao executar este trecho, impõe-se ao nosso
espírito a intromissão de Eusebius no meio das evoluções de Florestan.
Exemplo 2
Voltamos aqui exatamente à repetição do tema inicial.
Exemplo 3
Chegamos assim ao “Intermezzo”, surpreendente pelo seu ritmo de Polonesa e
pela riqueza da fantasia inesperadamente introduzida neste trecho, cuja riqueza
musical merece ser assinalada.
Exemplo 4
Esta estupenda e pomposa “Polonesa” se prolonga, conforme o lógico
desenvolvimento significativo de toda essa obra, por uma espécie de recitativo.
Escrito numa forma liberta de qualquer convencionalismo, este recitativo, sem
afinidade nenhuma com o que precede, serve para testemunhar a
independência e o caráter de novidade, que Schumann fez questão de
introduzir nessa forma de Grande Scherzo, apesar das notáveis inovações já
adotadas por Beethoven, nesse gênero de composição. Eis o recitativo
acrescentado por Schumann ao seu Intermezzo.
Exemplo 5
Essa parte intermediária foi também aproveitada para preparar a última parte
deste “Scherzo”, com a repetição do tema já ouvido. Seria um erro considerar a
repetição de algumas frases desta sonata como um sinal de pobreza, sobretudo
numa obra de tamanha importância. Beethoven, cuja autoridade musical não
era mais contestada na época de Schumann, usava freqüentemente da
repetição dos temas, por intermédio da qual ele soube, aliás, levar a arte da
variação ao seu apogeu.
Eis a repetição do tema inicial do “Scherzo”, com a qual encerra-se a terceira
parte desta sonata.
Exemplo 6
4. FINAL
O “Final” inicia-se como se se tratasse da solene abertura de grande salão de
baile, lembrando até o preâmbulo do Carnaval op. 9 que foi escrito dois anos
antes dessa sonata.
Apesar de ser de caráter completamente distinto, o “Allegro un poco Maestoso”,
deixa no entanto perceber que o compositor ainda está sob a influência daquela
deslumbrante coletânea de quadros sonoros. Eis o “Allegro” que abre o final da
sonata.
Exemplo 1
137
Assistimos em seguida, como no Carnaval, às amáveis reverências das
elegantes dançarinas.
Exemplo 2
E logo depois às graciosas evoluções dos numerosos pares, que enchem o
salão de baile, e cuja procissão se desenrola em volta de um tema central. Eis
as evoluções dos pares dançantes.
Exemplo 3
Eis o outro tema de caráter eusebiano, sumamente expressivo,
Exemplo 4
Entrecortado pelo mesmo ritmo de dança.
Exemplo 5
Reaparece novamente o tema central, em toda sua magnificência.
Exemplo 6
Schumann, com extraordinária mestria, desenvolve agora aquela frase
eusebiana, comovedora pela incontestável beleza que irradia,
Exemplo 7
frase da qual surge, com crescente fervor, uma expansão de incomensurável
melancolia interior, seguida de ímpetos apaixonados, reveladores de um
coração torturado, os quais se multiplicam num ofegante crescendo,
Exemplo 8
Ímpetos, cujas potência se desenvolve e se amplia ainda, até chegar ao ponto
culminante dessa romântica evocação.
Exemplo 9
Eusebius e Florestan se sucedem assim um ao outro para exteriorizar seja a
felicidade interior, seja a expansiva alegria de viver, até que a volta de um
sentimento estático os leve novamente à meditação, e aos graves problemas
que estão ainda sem solução.
Exemplo 10
Esse nostálgico sonho nos conduz a uma frase surda e misteriosa, para voltar
novamente ao ponto de partida.
Exemplo 11
Schumann parece ter um pouco abusado aqui dos seus dons geniais no
desenvolvimento das frases musicais, e na transposição dos temas,
multiplicando as repetições de tal modo que a maioria dos intérpretes desta
138
sonata acham-se obrigados de introduzir um corte importante na execução
deste último tempo. Para os desejosos de estudar esta obra com o objetivo de
tocá-la em público, indicarei aos que vierem me procurar com sua música, nos
bastidores, no fim da aula, o corte mais adequado, o qual permite aliviar essa
execução, sem prejudicar a perfeita unidade, e ao normal encadeamento dos
temas.
Exemplo 12a
Exemplo 12b
Este corte, que é aliás o único permitido, reduz de três a quatro minutos a
duração total dessa execução.
Chegamos, enfim, à última e imponente repetição do tema, da qual resultarão a
peroração e a conclusão definitiva desta obra monumental.
Exemplo 13
Este epílogo pode parecer à primeira vista, um tanto caótico; à aparente
desordem, vêm, porém, se sobrepor os acentos do mais vibrante lirismo,
seguidos pela triunfante epopéia sonora que apaga toda a inquietação e a
ansiedade dessa alma aflita, porém orgulhosa e ciente do seu poder.
Ouvindo ou interpretando essa grandiosa obra, compreenderemos todos,
doravante, porque Schumann foi um dos compositores que melhor conseguiram
reconstituir, no mundo das sonoridades, a atmosfera e o pensamento do seu
século. Compreendermos, também, porque o talento deste gênio criador, que
seus contemporâneos chamavam “o músico do inexprimido”, deu ao movimento
romântico esse sublime impulso, graças ao qual aquele período se coloca hoje
em dia entre as épocas marcantes de toda a história do pensamento musical.
Encerrarei agora esta análise, e as minhas ilustrações ao piano, com a
execução da peroração da Sonata op. 11, em Fá Sustenido Menor, de Robert
Schumann.
Exemplo 14
139
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E
INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1951
Robert Schumann, Fantasia op. 17
No dia em que Robert Schumann teve de escolher um pseudônimo para assinar
suas críticas numa revista musical, ele só conseguiu definir sua personalidade,
desdobrando-a e reencarnando-a na forma de dois irmãos gêmeos e
psicologicamente inimigos um do outro: Eusebius e Florestan. O primeiro, tenro,
sonhador, ávido de luar, e vivendo num perpétuo “andante”; o segundo,
turbulento, apaixonado, exaltado por fogoso romantismo, não se sentia à
vontade senão num “allegro furioso”.
Devemos admitir que nessa recriação simbólica da sua própria individualidade,
Schumann tem demonstrado notável clarividência já que toda a existência do
autor de Manfred e do Carnaval ia ser dominada por essa dualidade de
instintos, refletindo-se, esse antagonismo de tendências filosóficas e artísticas,
em quase toda a sua produção musical. Contudo, ele não soube prever o
desequilíbrio interior que ia resultar de tão trágico paroxismo e levá-lo até a
demência e o suicídio!
Sob o ponto de vista da criação artística, essas alternativas de inquietação, de
angústia, de impetuosas expansões em busca de um ideal inacessível, de
fervorosas confissões e harmoniosos arroubos, de líricas efusões e melódicos
acentos, se traduzem em uma escritura pianística de esplêndida riqueza.
Obedecendo aqueles instintos, ao invés de se conformar com uma disciplina
escolástica, Schumann revela, na superposição de ritmos, uma surpreendente
audácia e encontra, nas íntimas pulsações do seu ardoroso coração, uma
torrente de secretas harmonias e misteriosas ressonâncias, que o simples
estudo do contraponto nunca teria suscitado. Modelando uma matéria sonora
mais requintada e alcançando mais rica interposição de timbres e inflexões,
esse genial romântico arranca do teclado efeitos de um pré-modernismo
inesperado, isso alguns anos apenas após a morte de Beethoven cuja
concepção harmônica já nos parece empobrecida, quando posta em confronto
com o “impressionismo” dos quadros schumannianos.
Numa carta que ele escreveu em 1839, isto é, no ano em que foi editada a
Fantasia op. 17, que ouviremos hoje, encontramos esta frase significativa em
que Schumann esclarece um dos aspectos marcantes do seu conceito
pianístico.
“Minha música, diz ele, deve patentear os rastros das lutas que estou
enfrentando para conseguir a minha querida Clara.”
140
Sabemos, efetivamente, que Schumann não se conformou com a resposta
negativa do professor Wieck (com quem ele estudava) e a quem ele pedira a
mão da sua filha Clara, nem todas as manobras arquitetadas por esse pai
irredutível, para afastar aquele “pretensioso” compositor, o qual sofreu cinco
anos de vexames e humilhações antes de recorrer à corte real de Leipzig que
finalmente autorizou o seu casamento.
Quando iniciada a composição da Fantasia, em junho de 1836, Schumann tinha
26 anos e já chegara ao auge da sua paixão por Clara Wieck que, com
dezesseis anos apenas, já era aclamada como talentosa pianista tendo até
alcançado certa celebridade.
Aproveitando o pretexto de uma tournée de concertos oferecidos à jovem
virtuose, o impiedoso professor interrompeu pois um idílio que considerava
impróprio, provocando, na alma já bastante torturada do compositor, profundo
desespero que se concretizou na escritura da primeira parte da Fantasia. Esse
fato nos é claramente comprovado pelo próprio Schumann que, descrevendo
alguns anos mais tarde à sua mulher, a origem dolorosa dessa peça, dizia,
falando dessa primeira parte:
“Essa obra não é outra coisa senão um longo e desesperado grito de amor que
dirijo a você”.
E o autor resume, na mesma ocasião, o significado dessa composição, com
essas palavras:
“Você compreenderá todo o sentido dessa Fantasia somente se se lembrar e
evocar aquele infeliz período do ano de 1836 em que procuraram destruir no
meu espírito a esperança de realizarmos a nossa união.”
Prolongando-se a ausência da bem-amada, Schumann continua desabafando
no piano, em sucessivas improvisações, o seu crescente sofrimento, conforme
nos é comprovado pela frase que encabeça o início dessa composição, e nos
indica como deve ser tocado:
“Num sentimento constante de interpretação apaixonada e imaginativa
inspiração.”
Entretanto, os acontecimentos iam mudar o rumo dessa Fantasia.
Tendo ingressado uma comissão de músicos constituída para erguer um
monumento a Beethoven e desejoso de se inscrever entre os contribuintes
dessa manifestação chefiada por Franz Liszt, Schumann modifica a feição
inicial dessa composição, dando-lhe a forma de uma Sonata para Piano, em
três partes, intituladas respectivamente: “Ruínas”, “Troféus” e “Palmas”,
dedicando-a a Liszt para homenagear aquele que promovera essa iniciativa e
pedindo ao editor encarregado de receber as subscrições, para vender os
exemplares dessa obra, em benefício do monumento.
Um ano mais tarde, e incapaz de se conformar com a idéia de se prevalecer de
uma composição tão cheia do pensamento e da imagem da querida Clara,
Schumann voltando à concepção original, reúne sob o nome de Fantasia, os
três poemas cujos títulos foram novamente modificados para os de: “Ruínas”,
“Arco de Triunfo”, “Formas Estreladas e Poéticas”, simbolizando o primeiro, a
141
ruína momentânea do seu amor; o segundo, a provável correlação com a glória
e a conquista, e confiando à terceira parte o caráter de estático devaneio e de
infinito mistério de uma noite estrelada, toda penetrada de ternura e de amor.
Envolvendo esse conjunto de reminiscências sucessivamente confidenciais,
ofegantes, calorosas, meditativas e transbordantes numa maravilhosa teia
sonora que se estende por meio de sonoridades e vibrações quase imateriais,
Schumann encerra essa obra-prima num ímpeto de irresistível emoção,
exaltando com incomparável eloqüência e sensibilidade as secretas aspirações
de um coração ao qual a música do século dezenove deve os mais preciosos
elementos de patetismo do seu expressivo vocabulário.
Rio de Janeiro, 3 de setembro de 1951
(Terceira aula)
142
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E
INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1944
MAURICE RAVEL
Sonatine
Maurice Ravel, considerado como o maior compositor francês desde Debussy,
nasceu em 1875, numa pequena cidade do sul da França, vizinha da fronteira
espanhola.
Seu pai, que era engenheiro e grande amador de música, encaminhou para o
estudo de piano e de harmonia o menino que até os seus doze anos não
revelara nenhum dos dotes precoces que foram o apanágio de tantos famosos
compositores. Apesar de ele não ter sido o mais brilhante aluno da sua classe
no Conservatório de Paris, Maurice Ravel soube, aos vinte anos, evidenciar
com suas primeiras obras, uma lúcida e ousada individualidade, a qual devia
atingir maior desenvolvimento ainda sob a esclarecida orientação do seu ilustre
mestre Gabriel Fauré.
A personalidade artística do jovem autor afirmou-se logo no início, incitando-o a
afastar-se das clássicas combinações harmônicas e da rigidez acadêmica e
convencional, para deixar sua própria natureza realizar espontaneamente essa
síntese do equilíbrio musical e das audaciosas inovações que assinalam toda a
sua produção e lhe permitiram trazer à música francesa, com uma presciência
infalível e numa constante ascensão, uma das mais originais e notáveis
contribuições.
Suas primeiras composições, Sérénade Grotesque, Les Sites Auriculaires e
Habanera, escritas em 1895, isto é, dois anos antes de ele ser admitido na
classe de composição de Fauré, já patenteiam as qualidades de inteligência,
claridade e ingênua ternura velada pela ironia, que encontraremos nas obras
produzidas em plena maturidade. A cativante irradiação de Fauré e o cunho
inconfundível do seu ensino, com toda a eloqüência do “pianíssimo”, com o
poder da evocação em surdina, com distinção e o encanto característicos da
obra desse grande mestre, percebem-se nitidamente ao mesmo tempo que
certa influência de Emmanuel Chabrier, na primeira obra-prima de Ravel,
intitulada: Pavane pour une Infante Défunte. Escrita originalmente para piano, a
versão sinfônica desta obra, efetuada pouco depois pelo próprio Ravel, revelou
com eloqüente mestria o novo caminho que o autor estava descobrindo no
plano orquestral, marcado pelas suaves e longínquas sonoridades da frase
melódica, repetida cada vez com acompanhamento diferente, pela procura da
perfeição tanto no campo da técnica como no da poesia, e pelas qualidades de
espírito, encanto e sutileza que tanto contribuíram ao grande êxito alcançado
naquela ocasião.
Antes de chegar, porém, ao lugar de destaque que ele ocupa, hoje em dia entre
os protagonistas da música moderna, Ravel teve, do mesmo modo que a
maioria dos inovadores em todos os ramos da atividade humana, que enfrentar
143
árdua e prolongada luta contra uma crítica injusta, contra a oposição acadêmica
e oficial, e também contra a indiferença do público ainda refratário a uma
música que desobedecia, aparentemente, a todas as regras e tradições.
Os célebres Jeux d’Eau, também escritos nessa primeira época, já nos levam a
uma atmosfera libertada de influências alheias e magistralmente evocada por
uma escritura de original fantasia, e também pela sutil e sensível poesia do
desenho melódico. As quintas e as quartas que flutuam com tanta leveza sobre
os transparentes arpejos da mão direita, as fluidas harmonias que envolvem
sonoridades tão originais na evocação da água, enfim, a frescura de uma
poesia milagrosamente contida numa forma quase clássica, explicam que esse
feérico e deslumbrante “Capricho” seja atualmente a obra pianística mais em
voga de Ravel e a que melhor satisfaz a grande número de virtuoses.
Foi no mesmo ano de 1901 que Ravel se apresentou no concurso organizado
anualmente para a escolha do tão cobiçado “Prix de Rome”, conseguindo
apenas ser classificado no segundo lugar. Convencido que sua obra merecia
mais alta distinção, Ravel se apresentou, novamente no concurso do ano
seguinte, e mais uma vez em 1903, porém sem alcançar o primeiro prêmio.
Quando se inscreveu pela quarta vez, em 1905, Ravel nem foi admitido na
prova preliminar, a qual servia apenas para a eliminação dos candidatos
incompetentes. Essa flagrante injustiça causou, como era de prever, veemente
polêmica entre os diversos “grupos” artísticos franceses, a qual resultou na
completa reorganização da diretoria do Conservatório, sem que tal medida
viesse todavia atenuar a hostilidade oficial para com o jovem e talentoso
compositor.
Desistindo pois da compreensão e do apoio das instituições oficiais, Ravel
iniciou, então, aquele período feliz e incomparável, de 1905 a 1918, durante o
qual a literatura pianística enriqueceu-se graças a ele, com tantas maravilhosas
obras-primas. Desenvolvendo engenhosamente o segredo da sua técnica
cintilante, no que, dizia ele, muito o tinham ajudado os concertos de Mozart e de
Saint-Saëns, e o impressionismo de reflexos e sonoridades que lhe é tão
peculiar. Ravel, após ter escrito um drama lírico intitulado Schéhérazade e seu
Quarteto para Cordas, tão cheio de graça, mistério e ironia, tornou mais amplo
o horizonte aberto à literatura do piano, com os célebres Miroirs, suíte de cinco
imagens descritivas, notáveis pelo poder inventivo e impressionista,
condensado nesses curtos quadros; Gaspard de la Nuit, original fantasia que
reúne em três poemas de uma linguagem profundamente pessoal as miragens
sedutoras do mar, a evocação dos sinos diabólicos e fúnebres e as sonoridades
que assinalam a produção desse harmonioso gênio.
Não cabe, no quadro forçosamente estreito desta preleção, passar em revista
toda a obra pianística de Maurice Ravel, da qual destacarei apenas a suíte
infantil, a encantadora Ma Mère l’Oye, escrita para dois pianos, as poéticas e
elegantes Valses Nobles et Sentimentales, e o patriótico e significativo
Tombeau de Couperin, cuja “Toccata” encerra numa irradiação gloriosa um hino
à memória dos que morreram pela pátria, hino ao qual a guerra de 1918
emprestou um caráter de vibrante atualidade.
A Sonatine (inscrita no programa das execuções de hoje) foi publicada no
princípio deste fecundo período, aos vinte e cinco anos do autor, numa fase da
sua carreira em que, apesar de transparecer na sua obra a influência de
144
Debussy, Ravel já atingira um grau de perfeição que ele mesmo conseguiu
dificilmente superar nas suas composições ulteriores.
O título Sonatine leva alguns intérpretes a cometer o erro de encarar essa obra
como se se tratasse de uma sonata fácil. Na verdade, a palavra sonatine
significa apenas que os elementos constitutivos da “sonata” acham-se, neste
caso, condensados numa composição um pouco mais curta e geralmente
reduzida a três tempos. Clementi, Kühlau, Haydn e Mozart escreveram
numerosas sonatinas, podendo também as Sonatas op. 49 e op. 79 de
Beethoven serem incluídas nessa categoria, assim como algumas sonatas da
escola contemporânea, cujos temas e desenvolvimentos vêm freqüentemente
ser reunidos nessa forma musical essencialmente condensada.
Oriunda, como sabemos, da antiga “Suíte” de danças, a “Sonata”, após ter sido
marcada por notável evolução que Beethoven levou ao seu apogeu, volta com
Ravel às antigas tradições dos cravistas franceses, encerrando-se assim, até
um certo ponto, um magnífico ciclo ao qual o repertório pianístico deve algumas
das suas imorredouras obras-primas.
A Sonatine, de Ravel, assinala-se antes de tudo pela sua escritura de uma
absoluta precisão, propositadamente delgada, e quase desprovida, com
exceção do “Minueto”, dos poderosos baixos, na parte da mão esquerda.
Percebe-se desde o ingênuo canto em fá sustenido menor do início, com os
repentinos pianissimi, o colorido delicado e as ardorosas e sutis expansões.
Que o autor mediu rigorosamente o sentido de cada nota, acorde ou inflexão, e
que, por conseguinte, a interpretação dessa obra não admite o menor exagero,
nem ralentandi ou ritenuti, que não sejam claramente indicados, tendo sido
cada termo ou acento, cuidadosamente escolhido e apropriado de maneira a
não permitir qualquer alteração ou excesso.
Basta, por conseguinte, o executante se conformar estritamente com as
indicações do autor para que essa “Sonatina” seja colocada na sua verdadeira
atmosfera poética. Isso, porém, não é suficiente. O intérprete deve se
compenetrar do indefinível e oculto poder descritivo dessa composição, dar às
notas o colorido cheio de expressão e ternura que Ravel incorporou nelas, e
bem compreender que essa escritura discreta não era outra coisa senão um
meio de defesa adotado pelo autor contra os perigos da sua própria
sensibilidade, tantas vezes excessiva. Essa execução deve, logo no início,
evocar no espírito do ouvinte o ambiente imaterial e lendário de uma espécie de
“conto de fadas”, superpondo-se ao frêmito da melancolia ao sorriso quase
imperceptível, expressado nas delicadas quintas, e às ingênuas repetições que
o polegar esquerdo destaca como se fossem uma sucessão de impalpáveis
campainhas, prolongando-se essa atmosfera até as transparentes e nítidas
terças que marcam o fim do primeiro tempo.
No segundo tempo, que é um “Minueto em Trio”, ao qual o autor deu
simplesmente o titulo: “Mouvement de Menuet”, Ravel nos apresenta num fundo
de serenidade um pouco solene, contrastando com a suave vivacidade do
“Modéré”, um quadro fosco e impreciso, no qual evoluem e deslizam vultos
velados, envolvidos de cores pálidas e indefiníveis, e do qual dimana um
sentimento de afetuosa melancolia, nitidamente marcado nos últimos
compassos.
145
O efervescente Final, escrito em estilo de “Toccata”, faz reviver, num ritmo
impetuoso e quase veemente, o canto ingênuo do primeiro tempo, cujas
reminiscências se encontram também flutuando em alguns compassos
vagarosos de Minueto. Esse final, resplandecente e cheio de vida, exterioriza
uma profunda alegria interior, que acusa a cintilante descida de acordes em tom
maior, justapostos até chegarem à rutilante tonalidade em fá sustenido maior e
ao rápido crescendo que encerra, como se fosse um verdadeiro relâmpago
sonoro, essa rica e efervescente evocação.
É essa Sonatina, que o tempo escasso me permitiu apenas analisar
rapidamente hoje, mas que mereceria estudo mais pormenorizado, que
ouviremos agora na interpretação da senhorita Célia Zaldumbide.
Rio de Janeiro, 6 de novembro de 1944
146
4
Textos
Incompletos
147
148
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Enfim, o problema vem a ser quase insolúvel quando procuramos explorar os
períodos mais antigos, em que a atual escritura musical era desconhecida, e
substituída por aquela forma de notação primitiva e imprecisa, chamada de
“neumática”, que, apesar do seu caráter rudimentar, devia constituir até o ano
mil da Era Cristã o único meio de expressão musical.
As “Neumas” (essa palavra deriva provavelmente de neuma que na língua
grega antiga significa: gesto, sinal) eram, como sabeis, sinais em forma de
vírgulas, apóstrofos, acentos agudos, graves e circunflexos, e traços em várias
direções, um pouco parecidos com a estenografia de hoje em dia, que já se
encontram nos manuscritos dos primeiros séculos da nossa era. Esse sinais,
que seguiam geralmente os cantos litúrgicos, não indicavam nem a duração do
som, nem a sua altura exata, mas apenas onde a voz devia elevar-se, abaixarse ou respirar. Apesar da evolução, durante o fim do primeiro milenário, dessa
escritura originalmente legata para uma forma de pontuação staccata, a
notação neumática ficou essencialmente imperfeita e é fácil imaginar a
variedade de teorias e de opiniões, às vezes absolutamente contraditórias, que
podem resultar da interpretação forçosamente aproximativa de textos tão
incompletos.
Devido à ausência de uma escritura bastante clara, até chegarmos à Idade
Média, qualquer estudo da evolução musical anterior a essa época não pode
deixar, por conseguinte, de ser relativo e nitidamente incompleto. Sendo
impossível a reprodução autêntica da música tal ela ressoava na Grécia antiga,
em Roma, ou no século nove, teremos que ficar satisfeitos, nas primeiras
etapas da nossa viagem ao passado musical, com uma certa aproximação
nossas conclusões e mesmo às vezes com meras hipóteses,
..................................................................................................
.............................................................................
No que me diz respeito, a placa que me fizestes a honra de me dedicar vem
apenas concretizar um conjunto de recordações e impressões que ficam e
sempre ficarão gravadas no meu coração. A calorosa acolhida que reservastes
às minhas atuações, desde que voltei à minha terra, o entusiasmo e a
assiduidade com que soubestes corresponder aos meus esforços no campo do
ensino musical, os numerosos talentos que se revelaram durante nossas Aulas
de Interpretação e Estética Musical, consolidando assim a minha fé e
confirmando a grande esperança que continuo tendo no futuro artístico do
Brasil.
149
Na verdade, esta placa constitui uma homenagem à cultura da juventude
paulista, que estabeleceu neste Teatro um recorde mundial que não me parece
ter sido suficientemente divulgado. Efetivamente, nenhum Curso Público de
Interpretação Musical, seja no Conservatório ou na Escola Normal de Paris, ou
nas outras capitais da Europa ou dos Estados Unidos, tem conseguido reunir
um número de alunos e ouvintes tão imponente quanto em São Paulo, onde as
inscrições chegaram a mais de 2700, no último ano da realização do nosso
Curso, o que representa cinco ou seis vezes mais do que o maior número de
ouvintes alcançado em Cursos similares em outras partes do mundo.
Este troféu cabe pois, em toda eqüidade, aos estudantes de música e ao culto
público desta capital, que espero rever em breve, dentro de poucos meses, na
volta da tournée artística que vou empreender na Europa e nos Estados Unidos,
e com quem espero aperfeiçoar a obra de divulgação musical à qual me
dediquei e continuarei me dedicando, mais certa agora do que nunca, que o
nosso povo, a nossa juventude, justificam e sabem corresponder a esse
esforço.
Fico-lhes sinceramente grata por esta tão carinhosa homenagem e pelas lindas
palavras que Paulo Batista Pereira proferiu em nosso nome, e encerrarei essas
palavras dizendo-vos apenas: Até muito breve!, e assegurando-vos que durante
a minha curta ausência da minha terra guardarei fielmente em meu coração
mais essa recordação da vossa amizade e do vosso apreço!
Temos hoje entre nós um ouvinte particularmente distinto que aqui saúdo com
grande prazer: o jovem e já eminente pianista francês, Charles Lillamand – por
muito tempo perdurará na nossa memória entre outras, a sua magistral
execução do Concerto de Ravel para a mão esquerda.
Aproveito, pois, o ensejo da sua presença aqui, para assinalar-vos que Charles
Lillamand teve o generoso pensamento de se oferecer para realizar um recital
em benefício de obras brasileiras e francesas de assistência à criança.
Concerto esse que terá lugar no próximo sábado, 21 de agosto, às 21 horas, no
Teatro Municipal.
Não duvido um instante que diante do valor do recitalista e a nobre causa que
essa iniciativa beneficiará, todos vós tenhais a peito (?) não somente de
comparecer pessoalmente a esse concerto como também de contribuir à maior
propaganda possível a fim de que o Municipal se encontre repleto para essa
noitada onde se conjugarão uma arte elevada e a caridade humana.
150
Meus caros amigos,
No decorrer de uma tournée de concertos na África do Norte, tive a honra de
ser convidada a um almoço que me era oferecido, num quadro evocador da “Mil
e uma noites”, pelo governador da cidade, descendente de uma nobre e ilustre
família que ia buscar sua origem até o próprio profeta Maomé.
Na hora da “champanha”, um dos altos funcionários presentes tomou a palavra
para me homenagear. O discurso foi muito breve, não deixando entretanto de
ser bastante surpreendente a atitude do orador, que dava a impressão de certa
instabilidade, como se arriscasse a cada instante de perder o equilíbrio.
Depois do banquete, não podendo mais dominar a minha curiosidade, e certa
que não fora um excesso de bebida a causa da particularidade que tinha
reparado, já que o vinho era reservado aos convidados não muçulmanos, tomei
a liberdade de perguntar ao nosso fidalgo anfitrião:
“Pode Vossa Excelência me explicar porque o nosso jovem orador parecia tão
instável sobre as suas pernas, durante a linda homenagem que me foi
prestada?”
“Mas como?, respondeu o príncipe com evidente surpresa! Será que a senhora
ainda não conhece a tradição do nosso país?”
E, diante do meu ar admirado, ele acrescentou:
“Pois fique sabendo, minha cara senhora, que numa reunião pública seja que
se trate de um ágape, ou de qualquer outra festividade, cada vez que uma
pessoa toma a palavra, ela o deve fazer, ficando sobre um só pé,
permanecendo nessa posição, até o fim da sua palestra. Essa regra, disse o
Emir, constitui um meio realmente infalível, para termos a certeza de um
discurso não ser comprido demais!”
Pondo em prática esse singular costume norte-africano – que apresenta
incontestáveis vantagens na maioria dos casos – dir-vos-ei, enquanto posso
ficar em equilíbrio, quanto me comove essa carinhosa e original manifestação
organizada com tanto espírito e humor e pela qual vejo que a data da Santa
Magdalena foi mero pretexto.
Sinto-me realmente feliz em conviver num ambiente de tão perfeita harmonia e
estreita camaradagem entre os meus queridos alunos, e faço votos para que
esses laços permaneçam e se afirmem cada vez que nos será proporcionado o
ensejo de nos encontrarmos.
151
Agradeço de todo o coração essa inesquecível homenagem e todos os que
colaboraram na sua tão feliz realização, contando que me seja dada em breve a
alegria de recebê-los todos na minha casa de Campos do Jordão, onde a
esplêndida toalha de mesa que vocês me ofereceram está a espera de outro
ágape, para o qual lhes reservo outro “show”: o espetáculo da natureza, num
lugar privilegiado e quase supraterrestre, onde poderemos também, como hoje,
conhecer momentos de verdadeira felicidade e mútua compreensão.
Mais uma vez, muito muito obrigada!
152
5
Anedotas
153
154
ANTON RUBINSTEIN
Estava de saída, há alguns dias, do hotel onde estou morando para vir aqui, no
Auditório, quando uma senhora se aproximou de mim. Ela se apresentou, me
confiou que ela também morava no mesmo hotel, que ela me ouvia todos os
dias, de manhã e de tarde, estudando durante horas seguidas, e acabou
perguntando:
“Uma coisa eu não compreendo, dona Magdalena! Como é que uma pessoa tão
inteligente, uma virtuose tão ilustre, que tem tocado, como a senhora, no mundo
inteiro, ainda precisa estudar o piano?”
“Minha prezada senhora, lhe respondi! Em primeiro lugar não mereço os
adjetivos lisonjeiros que a senhora me dirigiu. No que diz respeito à sua
pergunta, só posso lhe citar a resposta que deu o célebre compositor Anton
Rubinstein numa circunstância similar.
– A senhora compreenderia logo, dizia ele: Quando fico um dia sem estudar eu
bem percebo! Quando fico dois dias, o público não deixa de reparar! Se eu ficar
três dias sem estudar acho que até a senhora acabaria percebendo!”
E aliás o mesmo Anton Rubinstein, conhecido pela sua franqueza, que
acedendo a um pedido reiterado durante semanas e meses, concordou em
ouvir uma moça que desejava saber se ela devia continuar estudando piano.
“Então, mestre, perguntou ela depois da audição tão esperada, o que é que o
senhor me aconselha fazer?”
“Casar-se o mais depressa possível, respondeu o compositor.”
VON BÜLOW
A respeito da separação de von Bülow e da sua mulher, contam que Cosima
deixou o seu marido para se casar com Wagner, depois de ter assistido à
estréia triunfal da ópera desse compositor: Tristão e Isolda.
Acrescenta-se também, – e esta é a parte a mais anedótica – que logo depois
da estréia da Primeira Sinfonia de Brahms, que obtivera um formidável êxito,
Hans von Bülow, que regia a orquestra nessa ocasião, e que era um homem
muito espirituoso, disse à sua filha, que assistia ao concerto:
“Corra dizer à sua mãe de não perder esta ótima oportunidade de deixar o
Wagner e de se casar depressa com Brahms!!”
Talvez não conheceis a curiosa definição que o mesmo Hans von Bülow dava à
“Fuga Instrumental”. Ele chamava a Fuga assim: Peça de música no decorrer
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da qual os executantes saem uns depois dos outros, enquanto que os ouvintes
saem todos de uma vez!”
MASSENET
Massenet era perseguido por certa marquesa cujo salão musical, em Paris,
tinha grande renome. No entanto, Massenet, com a sua diplomacia habitual
sempre conseguira se livrar dos múltiplos convites dessa grande dama – até
que, um dia ele não pôde deixar de responder a essa senhora, que ao
encontrá-lo lhe disse: “Caro maestro! A sua data, para vir na minha casa será a
minha! Escolha! Que lhe pareceria combinarmos uma festinha para a terceira
quinta-feira do mês que vem?”
Nisto Massenet parece refletir intensamente e responde: “Oh! Cara marquesa,
que pouca sorte! Justamente nesse dia, devo ir a um enterro em Bordeaux, no
qual não posso deixar de comparecer!!
Perguntaram um dia a Reyer o que ele pensava da música de Massenet:
“Tem talento, é certo, mas procura demais agradar ao público, enfim, não
gosto!”
A mesma pessoa, pouco depois foi interrogar Massenet a respeito da música de
Reyer:
“Ah! Que maravilha! Estilo estupendo, belas idéias! Gosto muitíssimo!”
Nisto o tal Senhor, admirado da amenidade de Massenet, e desgostado com a
severidade de Reyer a seu respeito, lhe disse (a Massenet):
“O senhor não sabe, que quando perguntei a Reyer o que ele pensava do seu
talento ele foi muito menos elogioso que o senhor!”
Nisto Massenet replicou:
“É provavelmente porque nem um nem outro dizemos verdadeiramente o que
pensamos!”
GOUNOD
Napoléon III que era muito distraído perguntava com freqüência às pessoas
que, no entanto, ele muito conhecia: “Como é que você se chama?
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A quinta, ou sexta vez, que o Imperador fez esta pergunta ao já célebre
compositor Gounod, este lhe respondeu tranqüilamente: “Continuo me
chamando Gounod, majestade!”
BRAHMS
Um mestre de canto alemão tocava violoncelo como simples amador. Um certo
dia, num círculo íntimo, ele interpretou a última sonata de Brahms para
violoncelo acompanhado ao piano pelo próprio compositor. Brahms martelava o
piano com tal energia que o violoncelista, entre dois tempos lhe disse. “Por
favor, maestro, não bata assim tão forte! Eu não me ouço em absoluto!”
Ao que Brahms lhe respondeu: “Ah! meu velho! Que sorte você tem”.
ROSSINI
Rossini também era de um espírito irresistível. Logo após o falecimento de
Meyerbeer, que fora um pouco seu rival, mas que todavia ele admirava sincera
e respeitosamente, um sobrinho de Meyerbeer, jovem compositor de pouco
talento, foi visitar Rossini, para lhe fazer ouvir a Marcha Fúnebre que ele
acabara de compor, em homenagem ao seu tio, e que ele desejava ver
interpretada nos funerais no dia seguinte.
Depois de ter ouvido essa peça, Rossini bancando o homem distraído disse ao
rapaz: “Que quer que eu lhe diga, meu caro amigo, a respeito dessa
composição! Eu penso, simplesmente que teria sido preferível que o tio tivesse
escrito a “Marcha” e que o sobrinho tivesse falecido!!
BACH
Existem poucas anedotas a respeito de Bach, cuja vida toda de trabalho e de
austera honradez não se prestou a comentários engraçados.
Uma das mais divertidas que ouvi, há alguns anos no sul da França, e que
podeis aliás adaptar a qualquer outro compositor ou homem ilustre, é a
seguinte.
Estava sentado no salão de um grande hotel de Marselha, quando ouvi um
senhor, recém-chegado de Paris contar a um amigo suas impressões da capital,
e entre outras, uma das suas grandes emoções artísticas.
Imagine, meu velho, disse o viajante, que assisti em Paris a um concerto
fantástico, de composições de Bach.
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Tive, aliás, a honra de ser apresentado a esse famoso compositor e ele foi tão
gentil comigo que veio até em acompanhar à estação onde devia embarcar pelo
trem das 7:45 h.
Não me conte histórias respondeu outro amigo, não posso crer que seja
verdade.
– Será que você não acredita na minha palavra?
– Naturalmente que não acredito.
– E posso saber por quê?
– Simplesmente, meu caro, porque o trem das 7:45 h foi cancelado há mais de
duas semanas!
O QUARTETO CAPET
(São Paulo, 12 de junho 1942)
Os quartetos para cordas de Mozart me lembram uma história, absolutamente
autêntica, e que poderá parecer uma anedota aos dentre vós que ainda não a
conheçam.
Alguns anos atrás, o Quarteto Capet, considerado então na Europa como um
dos mais célebres conjuntos desse gênero, deu um concerto numa grande
capital. Certa senhora, mulher do embaixador de um país amigo, assistiu a esse
concerto e quis manifestar o seu grande entusiasmo. Chegando nos bastidores,
junto ao eminente quarteto, ela diz aos quatro músicos, diante dos numerosos
fãs ali reunidos: “Ah! Senhores! Que maravilha! Como os senhores tocaram!
Desejo-lhes a máxima felicidade e faço votos de poderem, em breve, aumentar
o número de músicos da sua pequena orquestra!”
Um momento! A história não acabou!
O mais engraçado é que, como tantas outras anedotas, essa história fez a volta
da Europa, e chegou um dia aos ouvidos da tal embaixatriz, a qual com ar de
superioridade disse ingenuamente: “Imaginem, meus caros amigos, o que
contam por aí, que eu andei dizendo ao Quarteto Capet, como eu não soubesse
que um quarteto é composto por seis músicos!!!”
SAINT-SAËNS
Ensaiando com as cantoras ...
Essa independência das vozes, necessária no contraponto, porém indesejável
em certas outras circunstâncias, me lembra uma anedota que alguns dentro
vós, talvez conheçam.
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Duas cantoras da alta roda ensaiavam com o ilustre compositor Saint-Saëns,
um dueto escrito por ele, que deveriam cantar numa festa de caridade. As
vozes eram bastante lindas, porém, reinava demasiada “independência”, no
compasso das parceiras, até que Saint-Saëns, um pouco irritado, perguntou:
“As senhoras podem me dizer, por favor, qual das duas é que devo seguir?”
Essa interrupção causou um breve instante de emoção, após o que, a mais
atrevida das duas intérpretes, respondeu: “Eu, mestre, se o senhor não se
importa“.
É o mesmo Saint-Saëns quem, assistindo a um ensaio de uma das suas obras
orquestrais, observa a meticulosa precisão com a qual o regente, que era o
famoso Charles Lamoureux, acertava cada golpe de arco. O senhor não acha
que fica melhor assim, pergunta o regente ao mestre, o qual com seu ar irônico
bem conhecido, lhe responde: “Muito bem, meu caro, porém prefiro o que
escrevi!”
Outra vez, uma jovem senhorita, muito tímida fazia a sua estréia numa reunião
mundana, cantando uma melodia de Saint-Saëns, e por cúmulo de
imprudência, acompanhada pelo próprio compositor.
Naturalmente a pobre coitada tremia a mais não poder, e com a esperança de
obter de Saint-Saëns um pequeno encorajamento se dirige ao maestro e lhe
diz: Ah! Maestro! Como estou com medo!” ao que ele responde:
“Não tanto quanto eu!!”
A MAMÃE, O PAPAI E A PROFESSORA
Mal inicia a Lurdinha a sua aula de piano, a professora tem de interromper para
atender a um chamado telefônico.
– Aqui fala o pai da Lurdinha. Ela está em aula agora, não é?
– Sim, começou agorinha mesmo.
– Pois eu queria pedir-lhe o favor de fazê-la tocar logo algumas músicas.
– Mas é muito cedo ainda.
– Ora, ela já tem três meses de estudo e “faço gosto” que toque alguma coisa,
nem que seja popular ...
O cidadão não ouviu o suspiro desanimado da professora que, dias depois,
ouve da mamãe da Xandoquinha, que acompanha a garota à aula, o seguinte
esclarecimento:
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– Olhe, eu dei à menina algumas explicações, segundo o método pelo qual
estudei; a senhora não acha que assim, com a sua orientação e com a minha,
vai muito melhor e mais depressa?
E durante a aula, verifica-se a completa desorientação da aluna, que não sabe
como haver-se ante solicitações contrárias.
Neste assunto de educação musical (talvez mesmo em toda educação) não se
devia começar pela criança, e sim pelos pais. Na maioria dos casos,
manifestam incompreensão total quanto ao que seja formação musical do
educando. Desinteressados, por ignorantes do problema, quanto à marcha dos
estudos, necessariamente lenta e gradual, querem desde logo que algum
resultado apareça, e para eles o resultado é “tocar músicas”, nem que sejam
populares ...
A formação musical vai a par, por determinação deles, com vários outros
estudos, pois a Xandoca deve ter aulas de sanfona (perdão, harmônica), dança,
trabalhos, sapateado, violão, sem falar da escolaridade do curso primário ou
secundário, ao qual a criança não pode fugir, nem das “obrigações sociais”,
também indispensáveis, pois a criança de hoje tem sua roda de amigos,
recebe-os e é por eles recebida (ocasião em que os pais não devem estar
presente), regalando-se então com sorvetes e coca-cola ...
Em outros casos, a mamãe parece que tão-somente suporta que a filha estude.
Diz ela: “Estudar, para quê? Eu também estudei, e afinal acabei deixando tudo
com o casamento”.
E assim, a professora conscienciosa, senhora de um método bem estabelecido,
dedicada e competente, vê seu trabalho prejudicado, senão destruído, pela
incompreensão dos pais, justamente aqueles que deveriam favorecer em tudo e
por tudo, as intenções e o sistema das professoras. Uma destas, após muita
experiência e muito aborrecimento, divide as mamães em três classes: as
alheias e indiferentes, que não acompanham os filhos às aulas, não as
assistem, não ajudam e nem atrapalham diretamente, mas prejudicam por não
proporcionarem à criança, no lar, o ambiente favorável ao desenvolvimento
musical; vêm depois as que acompanham os alunos, assistem à lições
intrometem-se na direção do trabalho docente, dão “palpites”, interferem na
orientação, e, embora bem intencionadas, atrapalham terrivelmente; em último
lugar, as mães que assistem às aulas e colaboram inteligentemente, exigindo
da criança regularidade no estudo, qualidade do resultado, obediência à
orientação pedagógica e didática da professora. Estas, as que ajudam, são
ínfima minoria, mas os seus filhos são, afinal, aqueles que aparecem, que “dão”
alguma coisa.
Por isso, repetimos, a educação da criança começa pela educação dos pais.
Escolhido o professor no qual depositam confiança, sejam coerentes, e
continuem ... confiando. Mas não interfiram, não queiram “ajudar”, porque o
resultado será exatamente oposto àquele que pretendem.
O Estado de S. Paulo
Quinta-Feira, 7 de abril de 1955, p. 6
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