De escrava resgatada a santa missionária: o culto a santa Bakhita
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De escrava resgatada a santa missionária: o culto a santa Bakhita
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA Andréia Kelly Marques DE ESCRAVA RESGATADA A SANTA MISSIONÁRIA: o culto a santa Bakhita na cidade de Santos, 1992-2014 Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do grau em Mestre em História (História e Historiografia). Orientador: Prof. Dr. Jaime Rodrigues Guarulhos 2014 MARQUES, Andréia Kelly De escrava resgatada a santa missionária: o culto a santa Bakhita na cidade de Santos, 19922014 / Andréia Kelly Marques. – Guarulhos, 2014. 120 páginas. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2014. Orientador: Prof. Dr. Jaime Rodrigues. Título em inglês: From Slave Rescued to Missionary Saint: The Cult to Santa Bakhita in Santos, 1992-2014. 1.História do Brasil. 2. Santos. 3. Devoção popular. 4. Hagiografia. 5. História Oral. 6. Historiografia Andréia Kelly Marques De escrava resgatada a santa missionária: o culto a santa Bakhita na cidade de Santos, 1992-2014 Dissertação apresentada à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do grau em mestre em História Orientador: Prof. Dr. Jaime Rodrigues Aprovada em: ___/___/_____ ____________________________________________ Profª Drª Patrícia Teixeira Santos (titular interno) EFLCH-UNIFESP ____________________________________________ Profª Drª Lucia Helena Oliveira Silva (titular externo) UNESP/Assis ____________________________________________ Prof Dr Luigui Biondi (suplente interno) EFLCH/UNIFESP ____________________________________________ Profª Drª Olga Brites (suplente externo) PUCSP Á minha avó Maria Izabel Guilherme (in memorian) e ao avô José Guilherme. SUMÁRIO Agradecimentos Resumo Apresentação Cap. 1 - Biografia, hagiografia e historiografia: o caso de Bakhita Cap. 2 - Catolicismo e evangelização: algumas comparações Cap. 3 - Apropriações e significados da devoção: Baixada Santista, 1992-2014 Considerações finais Anexos 5 6 7 13 47 73 100 104 116 Fontes e bibliografia Agradecimentos À minha mãe, Elizete Maria Guilherme, referência e inspiração cotidiana de minha vida. Ao Gabriel Godinho Sampaio, meu companheiro na vida que parou muitas vezes para me ouvir e me apoiar. Aos meus irmãos Izabel e Douglas que me acompanharam e me apoiaram a vida toda. À minha Tia Eliana, minha segunda mãe. Aos amigos pelos momentos de descontração durante o período da pesquisa. Ao Professor Jaime Rodrigues que me acompanhou e me orientou nesse desafio pessoal de me tornar uma historiadora, meu eterno agradecimento. À UNIFESP- Guarulhos, seus professores e funcionários, por estes anos de formação. Ao CNPQ, pelo financiamento desta pesquisa. A meus ancestrais que sempre estão ao meu lado. Guarulhos, junho de 2014. Resumo Este trabalho tem como objetivo analisar o culto a santa Josephina Bakhita na cidade de Santos entre 1992 e 2014. A religiosa sudanesa Bakhita foi beatificada em 1992 e canonizada em 2000, devido a um suposto milagre ocorrido em Santos, cidade localizada no litoral do estado de São Paulo. Sua história é contada pelas suas várias hagiografias como a trajetória de uma santa obediente que foi salva da escravidão devido a sua aceitação do cristianismo. Outro aspecto abordado neste trabalho foram documentos que levaram ao entendimento sobre o plano de evangelização da Igreja católica no período estudado. Neste trabalho, a devoção a santa Josephina Bakhita é entendida não apenas pelo seu viés institucional, mas também por meio da metodologia de História Oral, que contribuiu para a compreensão de como os devotos vivenciam sua devoção a esta santa africana. Palavras-chave: História do Brasil - Santos - Devoção popular - Hagiografia - História Oral – Historiografia. Abstract This research seeks to analyze the cult of Saint Josephine Bakhita in Santos - Brazil, during the period of 1992 to 2014. The Sudanese religious Josephine Bakhita was beatified in 1992 and canonized in 2000, due to a supposed miracle that occurred in Santos, a city in coast of the state of São Paulo. Her story is told by its various hagiographies as the trajectory of an obedient saint who was saved from slavery because of her acceptance of Christianity. Another aspect analyzed in this study are documents that led to the understanding the evangelization plan of the Catholic Church during the studied period. In this work, the devotion to St. Josephine Bakhita is understood not only by its institutional bias, but also through the methodology of Oral History, that contributed for the understanding of how the devotees experience their devotion to this African saint. Keywords: History of Brazil - Santos - Popular Devotion - Hagiography - Oral History Historiography 7 APRESENTAÇÃO O culto aos santos é uma das formas mais populares de vivenciar o catolicismo. Dentre as várias devoções existentes no Brasil, conta-se o culto a Santa Josephina Bakhita, uma santa negra e africana canonizada devido a um suposto milagre ocorrido na cidade de Santos. Entender como se desenvolveu o culto a esta santa no Brasil e, mais especificamente, na cidade onde teria ocorrido o milagre, foi o que motivou inicialmente essa pesquisa. Além disso, surgiram outras questões em decorrência dessa preocupação inicial que também nortearam a dissertação. Qual a relação desse culto com a devoção aos santos pretos existente no Brasil desde o período colonial? Como uma santa africana acabou se tornando popular no Brasil no tempo presente? Como esse culto se insere na proposta de evangelização da Igreja católica no período estudado? Como esse culto é entendido pelos devotos da santa? O período recortado nesta pesquisa vai de 1992, ano da beatificação de Bakhita, até 2014 – o que inclui o marco de 2006, ano da construção da primeira Igreja em sua homenagem na diocese de Santos. No primeiro capítulo, desenvolvi uma análise das hagiografias com o intuito de entender quem foi a religiosa Josephina Bakhita e como sua exemplaridade de santa foi construída nos textos que se dedicaram a contar a vida da religiosa. A exemplaridade dos santos é importante para o catolicismo também na atualidade, haja vista o que disse João Paulo II ao declarar que os santos devem ser olhados neste novo milênio como parte da família e símbolos inspiradores de comportamentos cristão nos tempos que correm. Essa declaração foi feita no dia 1º de janeiro de 2000, na Praça de São Pedro. Dessa forma, buscar entender a construção da exemplaridade da vida de Josephina Bakhita foi a indagação que motivou esse capítulo. As igrejas dedicadas a santa Bakhita na diocese de Santos localizam-se em regiões consideradas de nível sócio econômico baixo. Entretanto, não são frequentadas exclusivamente pela população negra e pobre, visto que atualmente, embora tenhamos espaços de convivência diferentes entre ricos e pobres, qualquer indivíduo pode adentrar esse espaço religioso. Trata-se de realidade diversa dos períodos colonial e imperial, nos quais a hierarquia social dividia as posições entre escravos e libertos, separando essas populações também no espaço religioso. Naquele momento, isso exigiu da Igreja a elaboração de estratégias 8 específicas de catequização da população africana e afrodescendente1. Entre essas estratégias, o estímulo à devoção aos santos pretos e a organização dos africanos e descendentes em irmandades religiosas foram frequentes no Brasil, criando uma tradição de devoção a esses santos. Ao analisar a devoção a São Elesbão e Santa Efigênia no Brasil do século XVIII, Anderson de Oliveira demonstra que a Igreja teve que formular um discurso específico para realizar o projeto de catequização dos africanos e seus descendentes, devido à estrutura hierárquica que colocava esses homens e mulheres em situação subalterna aos brancos. Além disso, os negros constituíam o maior contingente populacional da América portuguesa, dado que exigia da Igreja a definição de um projeto cristão em diálogo com a perspectiva escravista e dela constituinte. No entanto, a devoção a santa Bakhita situa-se cronologicamente distante do momento histórico no qual o africano encontrava-se escravizado. O catolicismo modificou-se no tempo e, por meio das resoluções do Concilio Vaticano II, propôs adaptações ao mundo contemporâneo. Também as instituições do catolicismo brasileiro, como a CNBB, discutiram formas de enfrentar a evangelização no novo contexto. O projeto de evangelização da Igreja católica sob a luz do Vaticano II é o assunto do segundo capítulo, no qual busco comparar como a Igreja pretendeu desenvolver sua ação evangelizadora no período aqui recortado. Entretanto, apenas a visão institucional sobre Josephina Bakhita não tornaria possível compreendermos como se desenvolveu o culto à santa. Por isso, no terceiro capítulo, trato de apresentar como se deu o culto e como os devotos e religiosos nele envolvido refletem sobre a santa e seu papel frente às novas demandas. Neste capítulo, o uso da metodologia da História Oral foi a condição sem a qual não poderíamos prosseguir com a pesquisa. Essa metodologia se fez necessária não apenas para identificarmos informações que nos faltaram nos documentos escritos, mas mostrou-se um instrumento relevante para compreendermos como os fieis se relacionam com a santa e verificar se a exemplaridade construída pela Igreja por meio das hagiografias tem ressonância na forma como os devotos vivem sua devoção em torno de santa Josephina Bakhita. Entrevistei um total de 8 pessoas. Dentre elas, dois eram padre. Cada um contribuiu de forma importante para este trabalho e proporcionou condições para demonstrar como este 1 OLIVEIRA, Anderson José Machado. “Devoção e identidades: significados do culto de Santo Elesbão e Santa Efigênia no Rio de Janeiro e nas Minas Gerais nos Setecentos”. Topoi, v. 7, n. 12, jan.-jun. 2006, p. 60-115. 9 culto foi recebido pelos devotos. As entrevistas foram elaboradas a partir de uma questionário prévio, mas que foi alterado a partir da interação com os entrevistados e de questões surgidas no decorrer das entrevistas. Seu Roberto Teles de Oliveira, conhecido como mestre Sombra, nasceu em 1942, na cidade de Santa Rosa de Lima, em Sergipe. Veio para a Baixada Santista em 1962, para trabalhar no porto de Santos como estivador. Aposentou-se em 1963 desde então dedica-se exclusivamente à capoeira. A entrevista com Roberto foi realizada em sua loja, que vende produtos para a prática da capoeira. A loja está localizada no centro de Santos, quase em frente à Catedral da cidade, lugar em que teria acontecido o suposto milagre. Mas ele não frequenta a igreja católica e, embora não tenha se declarado membro de nenhuma religião, percebe-se, por sua entrevista, que ele tem uma relação mais forte com as religiões de matriz africana. Durante a entrevista, Roberto explicou que resolveu colocar o nome Senzala na academia porque em sua cidade natal havia muitas senzalas e também porque não pode colocar Zumbi, como gostaria, já que quando registrou seu negócio existiam muitas academias e associações de capoeira com o nome Zumbi. Além de capoeirista, Roberto foi sindicalista, membro do Partido Comunista e integrante do Conselho de Participação da Comunidade Negra de Santos. Sua escolha para compor o grupo de entrevistado se deu pelo fato de o mestre capoeirista manter um quadro com a imagem de santa Josephina Bakhita na vitrine principal de sua loja. Outro entrevistado que se relaciona com a cultura negra e com a militância é a advogada Tatiana Evangelista Santos. Ela tem 43 anos, nasceu em Santos e mora na cidade até hoje. A advogada é a atual Presidente do Conselho de Participação da Comunidade Negra. Uma das ações tocadas por ela à frente do Conselho da Comunidade Negra é a missa afro na igreja de santa Josephina Bakhita. Dois religiosos compuseram o grupo de entrevistados. Entrevistei Padre Aluízio Antônio da Silva por intermédio de uma amiga frequentadora de sua paróquia, que me relatou que o padre, em suas missas, sempre conta a história de Santa Josephina Bakhita, além de ter levado o quadro para esta paróquia e feito um altar em homenagem a ela. Padre Aluízio é natural do Recife, Pernambuco. Nasceu em 1962 e veio com sua família para Cubatão, cidade situada na região metropolitana da Baixada Santista. O religioso conheceu a história de santa Josephina Bakhita enquanto terminava sua formação como padre na Catedral de Santos, que na época não tinha estava sob a liderança de José Paulo (o outro padre entrevistado). Padre 10 Aluízio trabalhou na Catedral de Santos durante o período que o processo de canonização de Bakhita se encerrava. A entrevista com padre José Myalil Paul nasceu na Índia em 1963 e veio para Santos em 1992 e trabalha na igreja Catedral de Santos desde 2000 . Consegui entrevistá-lo marcando dia e hora com sua secretária. No dia em ele me atendeu, expliquei os objetivos da pesquisa e, antes de permitir que gravássemos a entrevista, ele pediu que eu fizesse as perguntas antes. Fiz como ele me solicitou e lancei as perguntas. Houve outras questões que ele não me permitiu gravar, diante das quais José Paulo contou com mais detalhes como foram os dias de festividades em torno da canonização de santa Bakhita. O trecho de nossa conversa que não foi gravado deteve-se principalmente na construção da igreja que foi iniciada e concluída quando ele já estava à frente da Catedral de Santos. José Paulo coloca-se na condição de quem pode falar oficialmente a respeito da igreja e sobre a canonização. Antes de entrevistá-lo, tentei entrevistas com a secretária da paróquia de santa Josephina Bakhita e de um bazar que leva o nome da santa, todos mantidos e organizados pela Catedral santistas. Tanto a secretária como os voluntários, embora tenham conversado muito comigo sobre o que sabem a respeito da canonização, me disseram que só o padre José Paulo poderia me conceder a entrevista. Outra entrevistada foi Dona Maria Cristina J. Soares,nascida em 1960 em Marília, interior de São Paulo, veio para a Baixada Santista com sua família quando tinha três anos. Atualmente, Cristina trabalha como empregada doméstica. Eu a conheci em uma missa festiva no dia 8 de fevereiro, dia de santa Bakhita. Ela foi escolhida pelas senhoras que organizavam a liturgia para fazer parte do ofertório, junto de outras senhoras que também foram escolhidas. As voluntárias vestiram as senhoras, todas elas negras, com panos amarrados sobre suas roupas, imitando como seriam as vestes usadas por africano. Também amarraram panos na cabeça, para que o visual de africanas ficasse completo. Cada uma das senhoras levou um elemento que lembraria momentos da vida de santa Bakhita, como que elas fossem uma representação da religiosa em momentos de sua vida. Dona Cristina carregou um chicote até o altar. Convidei-a para que ela fosse uma das entrevistadas e ela aceitou. Inicialmente, marcamos na residência dela, no Humaitá, bairro em que padre Aluízio faz seu trabalho na paróquia Beato José de Anchieta, por sinal frequentada por Dona Cristina. Ela pediu que a entrevista fosse realizada em minha casa, o que aceitei. A entrevistada disse sempre ter sido católica e, além de santa Josephina Bakhita, é devota de Nossa Senhora Aparecida e conhece 11 São Benedito, embora não seja tão devota. São Benedito lhe foi apresentado por sua mãe, esta sim devota do santo. Seu Antônio de Jesus Rigonato, nasceu em Bebedouro, interior de São Paulo e veio para a Baixada Santista em 1981, para trabalhar em um banco. Notei a existência de sua marcenaria passando defronte ao seu comércio, que se chama Santa Bakhita Marcenaria. Logo entrei em contato e depois de alguns dias a entrevista foi feita. Antônio orgulha-se de ter sido procurado por padre José Paulo para contribuir na construção da igreja de santa Josephina Bakhita: sua participação foi na confecção do armário da sacristia. Embora tenha tido uma formação católica, seu Antônio atualmente se identifica com o espiritismo kardecista, que segundo ele o ajudou a entender aspectos da vida que o catolicismo não ajudava, mas mantém sua fé tanto em santa Josephina Bakhita como em outros santos de sua devoção: são Jorge e santo Antônio. Ele não vê problema em manter a fé em seus santos católicos e frequentar o kardecismo porque, segundo ele, tudo o ajuda. Dona Francisca da Silva tem um bar atrás da igreja de santa Bakhita, em Vila Mathias, que se chama Bar Santa Bakhita. Fui até lá indagar quem havia colocado o nome no estabelecimento e um funcionário chamou Francisca. Expliquei a ela sobre a pesquisa e imediatamente ela aceitou gravar a conversa. A entrevista foi realizada em seu bar e por isso houve muitas interrupções, já que além de seu lugar de trabalho, dona Francisca mora em cima de seu estabelecimento comercial. Seu Manoel do Nascimento nasceu em Fátima, Bahia, no ano de 1944 e veio para São Vicente em 1968. Trabalha como marceneiro, na Santa Bakhita Marcenaria, e é funcionário de Antônio. Manoel foi o responsável por construir o armário que Antônio doou à igreja de santa Bakhita. Julguei mais apropriado apresentar e qualificar os entrevistados neste espaço da dissertação. As falas deles serão analisadas no terceiro capítulo. Ressalto, por fim, que a escolha desses homens e mulheres para serem entrevistados não se deveu apenas aos critérios de representatividade já assinalados. Houve, também, um olhar lançado à cidade e seus moradores. Tratou-se de um olhar de que observou os indícios da devoção a partir de caminhadas dirigidas, feito por quem se utiliza da cidade e nela circula com atenção redobrada, na busca pelas evidências que me permitissem construir uma versão da devoção a Bakhita a partir dos devotos, e não exclusivamente da fala oficial, hagiográfica e ligada à hierarquia da Igreja católica. Nesse sentido, meu papel como pesquisadora iniciou-se 12 antes mesmo das entrevistas, fruto do compromisso em construir uma história que contemplasse mais sujeitos do que as versões oficiais pressupõem. 13 CAPÍTULO 1 Biografia, hagiografia e historiografia: o caso de Bakhita A problemática dos gêneros de narrativas A biografia é um gênero textual que se transformou e se adaptou ao longo do tempo e de cada intenção e uso de quem a praticou. François Dosse e Sabina Loriga2 apresentam essa trajetória, mostrando como a biografia se desenvolveu, os vários usos pelos quais passou e os usos que este gênero assume hoje. Para Dosse, a História relaciona-se com o gênero biográfico desde a Antiguidade Clássica, ressaltando que ele se situa entre a ficção e a história. O gênero biográfico seria, então, híbrido desde o início de seu desenvolvimento. Ora como literatura, ora como texto historiográfico, a biografia lida com a problemática sobre o estatuto de verdade que pode assumir. Se, por um lado, conta a história de vida de alguém que existiu de fato, faz isso através de uma mistura de fatos reais, suposições e hipóteses, quando não há como comprovar situações que não constam em documentos e recursos estilísticos que podem transformar o biografado em um herói, vilão ou coadjuvante. Para Dosse, a biografia encontra-se sempre nesse entroncamento entre a ficção e a realidade, e ele assim o define: Gênero híbrido, a biografia se situa em tensão constante entre a vontade de reproduzir um vívido real passado, segundo as regras da mímesis, e o polo imaginativo biógrafo, que deve refazer um universo perdido segundo sua intuição e talento criador. Essa tensão não é, decerto exclusiva da biografia, pois a encontramos no historiador empenhado em fazer história mas é guindada ao próprio gênero biográfico que depende ao mesmo tempo da dimensão história e da dimensão ficcional3. A partir dessa definição, Dosse propõe a periodização da biografia em três: heroica, modal e hermenêutica, a partir do cruzamento entre o momento em que surge cada tipo de biografia e seus usos. Essas categorias apresentam uma trajetória cronológica, porém, podem coexistir no mesmo período, ou seja, aparecem em momentos históricos diferentes, mas o aparecimento de um tipo de biografia não implica no desaparecimento de outras formas biográficas. A idade heroica, que se origina em um discurso das virtudes, objetiva apresentar 2 Os trabalhos referidos são, respectivamente, DOSSE, François, O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009 e LORIGA, Sabina. “A biografia como problema”. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998, p.225-249. 3 DOSSE, O desafio biográfico, p. 55. 14 características morais exemplares; cabem neste modelo também as hagiografias 4. A idade modal seria um gênero biográfico que recusa o individual, ou melhor, a história que exalta a ação dos “grandes líderes”. Esse momento da biografia relaciona-se com a proposta da História como ciência, no final do século XIX. Entendendo o gênero a partir de sua relação com a historiografia, a biografia modal visa, por meio de uma figura específica, pintar um tipo idealizado que só tem valor na medida em que ilustra o coletivo. O singular se torna uma entrada no geral, revelando ao leitor o comportamento médio das categorias sociais do momento5. Idade hermenêutica insere-se na crítica aos paradigmas interpretativos, sobretudo os de base marxista. Dentro dessa crítica, a biografia apresenta-se como uma forma de escrita da História e como um método historiográfico em que o indivíduo pode ser estudado a partir de vários aspectos: “Os estudos atuais se caracterizam pela variação do enfoque analítico, pela mudança constante de escala que permite chegar a significados diferentes com respeito às figuras biografadas”6. Sabina Loriga faz observações semelhantes acerca da trajetória do gênero biográfico. Ela também constata a relação entre a biografia e a historiografia e, assim como Dosse, aponta para uma mudança na relação que atribui à preocupação renovada dos historiadores com o cotidiano e com os excluídos. Anteriormente, os excluídos eram estudados com base em uma perspectiva quantitativa, inseridos em grupos numerosos, visto que as análises centravam-se em suas atividades econômicas e políticas. Loriga aponta como marco na mudança dessa perspectiva o final das décadas de 1970 e 1980, quando a crise dos paradigmas totalizantes levou a uma reflexão sobre os destinos individuais. A partir desse ponto de inflexão, Loriga destaca que as biografias atualmente se fundamentam em outras bases teóricas: Numa tal perspectiva elaborada nos últimos anos pela micro-história, não é necessário que um indivíduo represente um caso típico. Ao contrário, vidas que se afastam da média levam, talvez, a refletir melhor sobre o equilíbrio entre as especificidades do destino pessoal e o conjunto do sistema social7. A biografia, atualmente, pode ser entendida como um gênero literário e também como 4 5 6 7 DOSSE, François. “A inserção na intriga biográfica”. In: A história, p. 137. DOSSE, O desafio biográfico, p. 95. Idem, Ibidem, p. 359. LORIGA, op. cit., p. 248-249. 15 um modo de escrita da História que implica no uso de uma metodologia diferente das biografias escritas nos termos mais convencionais com o objetivo de exaltar um personagem ou criar modelos de comportamentos desejáveis. Esse caráter metodológico da biografia não descarta a existência de outros tipos de narrativas biográficas, sendo a hagiografia uma delas. As hagiografias são escritas segundo regras específicas, que seguem uma lógica na qual a vida do santo só ganha sentido na medida em que sua santidade é reconhecida pela Igreja. Em outras palavras, a vida do santo ganha sentido após sua morte, pois ele precisa continuar agindo mesmo depois de acabar seu tempo de vida terrena e os fiéis precisam, de antemão, acreditar que existe vida pós-terrena. Para uma hagiografia fazer sentido para o leitor, ao menos no sentido que a Igreja ambiciona produzir, é necessário que esse leitor estabeleça um pacto com o texto que lhe permite aceitar o fato de que um indivíduo agiu como intercessor junto a Deus. A hagiografia caracteriza-se por uma estrutura na qual as virtudes do santo norteiam a forma de escrita do texto. As hagiografias de Bakhita serão, aqui, fontes para a compreensão dos significados atribuídos a essa personagem pelos desígnios da hierarquia católica. Biografias como fontes para o estudo do caso de Bakhita A primeira hagiografia tem o título de Bakhita: da escravidão à liberdade8. Foi publicada em 1993, um ano após a beatificação de madre Josefina Bakhita, e escrita por Maria Luísa Dagnino, religiosa canossiana, mesma ordem à qual Bakhita esteve vinculada. Nada na capa ou no título do livro faz alusão à beatificação; o que se anuncia é a trajetória de uma personagem egressa da escravidão e chegando à liberdade. Na apresentação, a autora ressalta o interesse no perfil biográfico de Josefina Bakhita, afirmando que a terceira edição da obra esgotou-se em um ano. Ela explica o sucesso editorial dizendo tratar-se de uma verdade apresentada com simplicidade, atribuindo ao fato de haver na narrativa as próprias palavras de Josefina Bakhita que, segundo a hagiógrafa, “com palavras humildes e sinceras”9 ditou a outra religiosa, em 1910, um relato em que conta sua vida do momento que foi capturada até sua decisão de tornar-se religiosa, relato este reproduzido na edição. Dagnino também explica que, antes de reproduzir o relato ditado por Josefina, fará uma nota à fonte histórica com o objetivo de “preencher lacunas e eliminar 8 9 DAGNINO, Maria Luíza. Bakhita: da escravidão à liberdade. Edições Loyola: São Paulo, 2000. Idem, Ibidem, p.7. 16 divagações, a princípio supostas e depois repetidas por muitos biógrafos em mais de vinte idiomas.”10 Este relato ao qual Dagnino refere-se é base para todas as hagiografias de Santa Bakhita. Ele foi registrado por outra religiosa a pedido da madre superiora do convento da Ordem das Filhas da Caridade Canossianas, em Schio, na Itália. Após a apresentação do Sudão, a autora inicia a narrativa da vida de Bakhita, descrevendo o momento de sua captura no capítulo intitulado “Emboscada”. Esse capítulo é apresentando antes da reprodução do relato da própria biografada. A opção de interromper a narrativa se dá devido à constatação de que a história da religiosa é cheia de situações complexas e difíceis de entender sem uma intervenção textual. Após a contextualização da vida de Bakhita, Dagnino faz uma observação a respeito da principal fonte utilizada por ela na hagiografia. Quem solicitou a narração foi irmã Margarida Bonotto, superiora da Comunidade Canossiana da Via Fusinato, em Schio. De acordo com a autora, este documento encontra-se nos arquivos da Cúria Geral Diocesana de Roma e considera essa a única fonte confiável sobre as origens de Bakhita. Outra fonte mencionada por Dagnino é a hagiografia escrita por Ida Zanoli em 1961, entretanto, ela rejeita a utilização desse documento. A autora critica o fato de Zanoli não ter explicado o contexto no qual Bakhita nasceu. Um dos pontos criticados é a explicação para o fato de Bakhita nunca ter lembrado seu nome de nascimento - Zanoli explicou que a religiosa teria esquecido o próprio nome devido ao susto de ter sido raptada. Para Dagnino, a hagiografia de 1961 não conseguiu captar a forma pela qual eram impostos os valores islâmicos e qual era a condição real de ser escravo. Há outra hagiografia de autoria de Dagnino, muito semelhante a esta11, escrita quando Bakhita já fora canonizada. A obra segue o padrão dos livros de bolso: sua primeira edição deu-se em 2000 e, nessa altura, Bakhita já era conhecida em vários lugares, como o Brasil, visto que nessa data o processo de canonização já havia sido concluído. A apresentação mostra que o livro destina-se a uma leitura rápida. Essa hagiografia não é diferente em termos de ideias e mensagens quando comparada à outra escrita por Dagnino. Também declara que é fiel aos fatos, à história e à cronologia, e afirma que o livro mostra a verdadeira identidade da santa, cuja vida é narrada da seguinte forma: “A descrição das crueldades sofridas ergue-se como pedestal daquele dote que jamais se fez moda o 10 11 Idem, Ibidem, p.7. DAGNINO, Maria Luíza, Bakhita: um canto de liberdade. Verona: Figlie della Carità Canossiane, 2000 17 perdão”12. Assim como na hagiografia Bakhita: da escravidão à liberdade, Dagnino acrescenta uma nota para situar historicamente o leitor, mas expõe de forma mais clara o que considera ser o inusitado na vida de Bakhita: Como aconteceu que uma escrava capturada no centro da África, tenha chegado à fonte batismal em Veneza é à glória de São Pedro em Roma, é justamente o assunto desta história as experiências vividas pela jovem protagonista são tão profundas e surpreendentes a ponto de deixar o leitor, ora comovido ora confuso, mas sempre admirado dos desígnios de Deus13. A associação entre a vida de Madre Josefina Bakhita e a vida dos negros e de todas as pessoas de um modo geral está presente de forma mais sistematizada na hagiografia escrita por Roberto Zanini, Bakhita: mulher negra, escrava, santa. Uma fascinante história de liberdade14. O título é repleto de adjetivos que enumeram as características da protagonista. A sequência escolhida mostra que a trajetória de santidade segue o percurso improvável exposto nas hagiografias escritas por Dagnino: como uma mulher negra africana se tornou santa católica? Essa edição pretende ser mais completa e correta que as anteriores; traz muitas notas de rodapés, referências a documentos e aos arquivos consultados. Em 1993, quando da publicação da obra de Dagnino, não havia menção alguma sobre o Brasil. Na obra de Zanini, há uma apresentação exclusiva à edição brasileira. Além disso, temos outras menções a respeito de como tem se desenvolvido o culto a Santa Bakhita no Brasil. Isto porque o milagre que concedeu à religiosa o título de santa teria ocorrido no Brasil, na cidade de Santos, dias após a sua beatificação. O autor escreve alguns parágrafos a fim de preparar o leitor para encarar a leitura do relato. Isso também ocorre no texto de Dagnino, porém com mais dedicação em situar o leitor naquilo que ele deve observar na narrativa. O autor comunica-se com leitor pressupondo que este não conhece a África, o Sudão ou cogita a possibilidade de uma africana ser considerada santa. O inusitado é a marca dessa hagiografia. Parece que o autor considera que o leitor julgará inusitada a trajetória da religiosa: Para iniciar a leitura da narrativa com o espírito adequado, ou melhor, com o espírito de Bakhita, é importante começar apresentando aquilo que ela própria pensava de tudo o que se havia escrito, ou se estava escrevendo, sobre a sua vida. (…) Palavras que permitem compreender a humildade e a visão cristocêntrica com a qual a irmã sudanesa interpreta a sua 12 Idem Ibidem, p. 8. Idem, Ibidem, p. 9. 14 ZANINI, Roberto. Bakhita: mulher negra, escrava, santa. Uma fascinante história de liberdade. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 2000. 13 18 vida, convicta de que a mão de Deus a guiou desde o primeiro instante. Palavras que, ao mesmo tempo, permitem supor que nem toda a dor e nem toda a parte mais íntima da espiritualidade de Bakhita tenha chegado ao nosso conhecimento 15. A primeira parte da biografia escrita por Zanini contextualiza o Sudão, apresentando sua localização geográfica, composição étnica e religiosa. No texto, aponta-se como teria sido a infância de Bakhita, inferida a partir da infância de outras crianças das etnias que vivem no Sudão atual e que não são adeptas do islamismo. Mostra-nos também alguns fatos marcantes da história daquele país. A partir deste ponto, Zanini reproduz o manuscrito e faz algumas intervenções. Pelos testemunhos de quem ouviu muitas vezes a narrativa de madre Josefina, sabemos que ela pertencia a uma família abastada. Seu tio era o chefe da aldeia e os seus pais cultivavam cereais em algumas terras próximas. Falando dos pais, afirma diversas vezes que eram bondosos; seu pai tinha uma só esposa, e Bakhita foi educada, assim como os seus irmãos, no respeito do ser humano e da natureza16. Aqui, como nas outras hagiografias, há a preocupação de associar Bakhita a uma vida tranquila, no entanto, essas informações advêm mais da interpretação de quem ouviu a história de Bakhita, e menos do relato ao qual ele se refere como principal fonte histórica. Além disso, o que significa ser abastada na região onde nasceu? O fato de o pai dela ter somente uma esposa não quer dizer que futuramente ele não contrairia matrimônio com outra ou outras mulheres. Essas lembranças de tranquilidade perene foram transmitidas por Bakhita e se referem a um passado vivido em sua infância que não podem ser alterado com o tempo. Em outras palavras, em um lugar constantemente invadido pelos comerciantes de escravos, a tranquilidade era permanente, ou a escravidão naquela região não modificou tanto assim a vida das pessoas. Alternando trechos em que o relato é produzido e trechos em que contextualiza a vida da religiosa, Zanini comenta sobre a presença turca no Sudão. O que mais chama a atenção é a insistência em apresentar o cristianismo como antecessor do islamismo e a propagação desta última religião como causadora de conflitos com os cristãos que viviam no Sudão. A hagiografia escrita por Zanini se esforça em transmitir ao leitor, com o máximo de precisão, como era a religiosa Josephina Bakhita, o que se percebe desde o título do capítulo, que qualifica a religiosa por sua cor e por seu poder intercessor. Ela é descrita a partir de sua 15 16 ZANINI, op. cit., p. 27. ZANINI, op. cit., p. 31. 19 simbologia, mais do que por suas ações; o que ela representa é mais importante que suas ações e pensamentos. Este tom segue por todo o capítulo: um pouco italiana, extracomunitária antes mesmo de existir. A palavra extracomunitária é definidora, pelo autor, dos imigrantes oriundos de países que não fazem parte da Comunidade Europeia. Para entendermos com quem a figura de Bakhita dialoga, aqui há um esforço de associá-la a um contexto de globalização. Ela é ao mesmo tempo africana, extracomunitária e italiana, embora tenha vivido o século XIX, o começo e a primeira metade do século XX. Sua condição e trajetória de vida encontram eco na vida de pessoas que vivem atualmente, sobretudo na Europa, continente no qual os imigrantes oriundos da África são uma população crescente. Quando o hagiógrafo descreve o ambiente no qual Josephina Bakhita viveu enquanto esteve no convento em Schio, recorre a uma linguagem literária e metafórica para explicar o que há no cômodo ocupado pela religiosa. Por meio de sua descrição, imaginamo-nos visitando aquele aposento descrito pelo autor como se a religiosa ainda morasse ali. O equilíbrio entre mostrar uma impessoalidade e, ao mesmo tempo, a presença de Josefina Bakhita, é destacado em um parágrafo do prólogo: O quarto não tem dona, mas as pobres coisas que lá estão são a impressão de que ela esteve ali há pouco. O quarto não tem conforto, mas é acolhedor. Você está em pé e o corpo ressente, mas é como se o espírito estivesse sentado a vontade, desconfortável no físico, confortável no espírito. Parece um slogan publicitário, mas não há nada para se vender aqui. Tudo é despojado, tudo é nu, a não ser a inusitada arvorezinha feita de arame e de contas de vidro coloridas. Se havia alguma coisa, foi doada, mas muito provavelmente nunca entrou aqui 17. As características do quarto traduziriam características da antiga moradora: pobre, desconfortável, sem luxo algum, apenas uma pequena árvore que anteriormente o autor disse estar iluminada por uma luz vinda da janela. Bakhita é caracterizada nesta e em outras hagiografias como uma santa humilde, que nunca fez questão de viver confortavelmente, sempre ajudou aos pobres e suportou com esperança todo o tipo de sofrimento. Portanto, o que faz as pessoas permanecerem no local é a companhia espiritual de Santa Josefina Bakhita àqueles que visitam o quarto. O cômodo descrito por Zanini possui as características de Madre Josefina Bakhita: De pé, o quarto, o tempo. O tempo passa, e não entra mais ninguém. O que fiz até aquele momento? Acho que rezei. Se o silêncio devoto é oração, então rezei. Olho a árvore, olho o travesseiro. Penso no cartão da jovem mulher. No tempo e nos longos gestos que foram 17 ZANINI, op. cit., p. 16. 20 necessários para escrevê-lo18. Neste trecho, vemos Zanini mostrando ao leitor seu estado de meditação dentro do quarto de Madre Josefina, desejando que o leitor partilhe com ele esse momento de oração, dividindo sua fé com a fé do leitor. O hagiógrafo descreve outras pessoas que lá estiveram enquanto observara o quarto de Bakhita, dando destaque às pessoas que chegavam ao local e deixavam bilhetes sob o travesseiro. Isso provoca no autor a vontade de verificar o que estaria escrito naqueles pequenos papéis. Ele então conta o que encontrou embaixo do travesseiro, comparando a descoberta a um enigma: (…) E embaixo dele, há outras dezenas de bilhetes. Ao todo, deve haver mais de cem. Alguns não têm envelope. Outros são simples folhas de papel escritas e dobradas. Há muitas fotos de famílias e crianças. Em algumas, somente a dedicatória. Em outra, um simples “obrigado”. Uma está escrita em árabe. Outras, em inglês e em francês. Duas foram escritas em alemão. Numa folhinha de papel quadriculado, um homem pede ajuda para ter de volta a serenidade perdida em sua família19. Após ler alguns bilhetes, ele crê ter conseguido desvendar o mistério contido sob o travesseiro e termina sua descrição do quarto sem dar muitas explicações sobre a real descoberta, deixando um espaço para interpretarmos o que esse enigma significa a partir da ideia da devoção a Bakhita espalhada por vários lugares. Roberto Ítalo Zanini mostra o que desenvolverá ao longo da obra e toma a liberdade de se colocar inteiramente no texto, demonstrando sua ligação com a personagem central. Afirma também que, para conhecer a história dela, caminhou por alguns lugares pelos quais Bakhita também caminhou, tornando-se conhecedor em profundidade da trajetória de sua biografada. Vemos nessa hagiografia uma construção mais elaborada do que a trajetória da religiosa pode representar para o leitor. Digo leitor e não devotos, porque nem todos os devotos irão ler essa obra; no entanto, os padres e religiosos que fazem parte do culto a Bakhita leem materiais que lhes ajudam a construir as homilias de suas missas. Dessa forma, a imagem construída de Bakhita influi na forma como os religiosos pensam essa figura. Negra como uma sudanesa e italiana como um vêneta. E como tantas mulheres do meio rural da região do rio pó da época. Quase não sabe ler, não sabe escrever e é pobre, desejando mesmo ser pobre. Tão pobre que depois da sua morte, na única caixinha do seu quarto foram encontrados apenas um pequeno crucifixo, um terço e um livrinho de orações 20. 18 19 20 Idem, Ibidem, p. 17. ZANINI, op. cit., p. 19. ZANINI. op. cit., p. 20. 21 Neste trecho, vemos mais uma vez o autor descrever Bakhita como representante de todo um grupo e, além disso, demonstrar como ela era recatada e modesta em seus hábitos, desejos e posses. Mas então quais seriam os milagres dessa negra anunciados no título da hagiografia? O milagre que proporcionou sua canonização não está destacado nesse momento do texto: o que ele descreve é a penetração do conhecimento de Santa Bakhita ao redor do mundo. Nenhum milagre é descrito. Descreve-se sua fama, sua popularidade e suas características. Para comprovar essa afirmação, temos a evidência. Com os seus sofrimentos e sua morte, Bakhita como que multiplicou a graça que Deus derrama sobre os homens. Intercessões de todo o tipo, curas, ajustamentos de famílias e de litígios. Uma trilha misteriosa e interminável de amor, fecundidade e força espiritual, desejo de diálogo e de restabelecimento da paz que atravessa o mundo inteiro e que está dando muitos frutos, sobretudo na África. 21 Nesta citação, temos a resposta de qual é o milagre anunciado no título. Não é o milagre da beatificação ou o da canonização: importa o milagre do restabelecimento espiritual e da paz do mundo inteiro, principalmente na África. Os milagres “verdadeiros”, portanto, não são apenas os reconhecidos pela Igreja: o que acontece depois disso também é milagre, ou seja, a utilização de sua imagem e história como forma de dialogar com a população pobre, negra e africana que está presente em qualquer canto do mundo. Essa intenção também fica clara em outro trecho: “Em cada lugar, a devoção a esta santa chega e se difunde seguindo os caminhos misteriosos da pobreza, da espontaneidade, da humildade”22. O trecho impõe uma reflexão. O autor afirma que a relação entre Bakhita e a população pobre é espontânea. Este pensamento também existe nas outras hagiografias: a ligação entre Bakhita e os “humildes” de forma espontânea e natural. Porém, a existência desta ligação abre a questão: há uma predisposição da Igreja em relacionar Bakhita aos negros e pobres ou são os pobres e os negros que se identificam com ela? As outras hagiografias não fazem relação direta entre a escravidão vivida por Bakhita e a escravidão dos africanos durante o período colonial e o Império no Brasil. A associação entre a negritude e a escravidão de Bakhita e a negritude e a escravidão dos descendentes de africanos no Brasil é necessária para dar sentido ao discurso que identifica esses dois grupos. Nas outras hagiografias, há a associação ente a escravidão de Bakhita e a dos africanos, mas 21 22 Idem, Ibidem, p. 21. Idem, Ibidem, p. 22. 22 isso recai principalmente sobre o sofrimento e violência que sofreu, vinculado ao sofrimento e à violência sofrida hoje pelos africanos em seus territórios. Santa Bakhita: a escrava de Deus23 está na 4ª edição, revista e ampliada, com fotos da canonização. Quem a escreve é Mildred Daysy Miguel de Sousa, e quem apresenta a obra é d. David Picão, bispo da diocese de Santos na época. A apresentação data de 1999, quando o processo de canonização já havia sido concluído e fora marcada a data oficial da canonização da então beata Josefina Bakhita para 1 de outubro de 2000. Além disso, esse bispo já atuava na diocese de Santos havia algum tempo e acompanhou o processo de canonização. O texto mostra alguns elementos importantes para entendermos a trajetória de Bakhita enquanto santa no município de Santos e na Baixada Santista. Esta edição pretende ser popular e, por isso, não apresenta muitos detalhes e construções linguísticas elaboradas, para transmitir a mensagem que se quer ao leitor entendido como público amplo. Fica mais evidente o entendimento que as pessoas devem ter sobre a vida de Bakhita, como a Igreja quer que o leitor entenda o significado da vida da religiosa, diferentemente, por exemplo, das hagiografias escritas por Zanini e Dagnino. Ele inicia a relato de como a Catedral de Santos tomou conhecimento da história de Bakhita. A trajetória se iniciara em 1948, com a chegada das irmãs canossianas que realizavam um trabalho na associação “Prato de Sopa” e, posteriormente, na pastoral de assistência social na Paróquia Catedral. O bispo afirma que já antes Josefina Bakhita era conhecida na paróquia, porém não apresenta elementos da anterioridade à qual se refere. Vale também lembrar que as canossianas chegaram a Santos uma ano após a morte da religiosa, e quando ainda não fora concedido a Bakhita nem o título de venerável, o que nos leva a pensar que a divulgação da vida de Bakhita começou sem a autorização oficial de Roma, informalmente, na região. O bispo segue a apresentação mostrando que desde a chegada das canossianas até o acontecimento do milagre, os féis tem dedicado cada vez mais sua devoção a Bakhita devido às graças que teriam alcançado. Logicamente, D. David Picão dá destaque ao milagre recebido por Eva da Costa, entre as graças que menciona24. Esta hagiografia é importante porque quem a escreveu participava ativamente nas atividades da catedral e, por isso, escreve o livro pensando nas pessoas da região que 23 24 SOUZA, Mildrey Daisy Miguel, Santa Bakhita: a escrava de Deus. São Paulo: Loyola, 2004. A referência ao milagre será apresentada no Capítulo 3. 23 frequentam a comunidade e poderiam ler o texto. Na introdução, Souza mostra como começou seu trabalho na Catedral de Santos e aí conheceu a religiosa. Uma coisa, porém, me chama a atenção de forma especial: antes e depois da missa, pude constatar que um grande número de pessoas dirigia-se a um dos altares laterais da igreja e lá ficava por longo tempo em oração ou simplesmente em contemplação. Isso despertou minha curiosidade, e grande foi meu espanto ao constatar que ali não se encontrava nenhum santo já conhecido por mim, mas sim a foto de uma bonita negra de olhar bondoso e sorriso amigo 25. Muitos fiéis conheceram a imagem de Bakhita por um quadro existente em um altar lateral da Igreja Catedral de Santos. Chamo a atenção para o momento dessa descrição do contato entre a hagiógrafa e a imagem de Santa Josefina Bakhita, que é o momento em que ela diz se indagar quem era aquela negra. A cor da religiosa parece ser algo fora do comum para uma santa. Quando surgiu a oportunidade de escrever este livro, fiquei feliz em poder tentar mostrar, numa linguagem simples, que é a linguagem da maioria dos devotos de Bakhita, a vida desta santa, para que nós, outros católicos, fôssemos inspirados por ela a tentar também ser santos 26. Há aqui a necessidade de dialogar com a população pobre, mas quem doou o altar foi uma família rica, para fomentar a fé entre as pessoas pobres. Podemos dizer que Bakhita tem devotos entre todas as classes sociais, mas que a Igreja observa a figura desta religiosa como um elemento de diálogo com os pobres e negros, quase que exclusivamente. A disputa entre catolicismo e islamismo fica bem evidente na hagiografia Bakhita: a escrava que encontrou Cristo. Trata-se de uma história em quadrinhos, na qual dois gêneros narrativos se fundem e são direcionados aos jovens. A história começa quando um professor em uma sala de aula italiana pede para um dos alunos ler a reportagem de um jornal francês na qual duas crianças sudanesas são escravizadas por árabes do norte do país e, posteriormente, compradas por um homem ocidental que as devolve para a família. A partir daí, o professor conversa com os alunos dizendo que a irmã proclamada santa em 2000 também era uma escrava sudanesa. A partir deste ponto, a história de Josefina Bakhita é narrada, com imagens e diálogos que ressaltam principalmente a ação dos povos islamizados do norte do Sudão como os causadores do sofrimento de Bakhita. Mais que as outras hagiografias, a oposição entre catolicismo e islamismo é frisada nesta história em quadrinhos, que lançou mão de outra linguagem discursiva para ser lida por outro público. 25 26 SOUZA, op. cit., p. 11. Idem, Ibidem, p. 12. 24 As hagiografias são escritas sob paradigmas rígidos que, se forem modificados, fazem o santo deixar de ter santidade. Por elas, é preciso provar em vida que ele é predestinado ao seu fim. Logicamente, a vida de cada santo tem seu significado, mas o que podemos depreender das hagiografias de Bakhita é que as ideias de Antônio Comboni27 de criar um plano específico para a conversão de africanos não ficou esquecida e ecoa nestes textos, sobretudo através da frase atribuída a Bakhita: “Se eu encontrasse os negreiros que me raptaram e também aquelas pessoas que me torturaram, eu me ajoelharia para beijar-lhes a mão, porque se não tivesse acontecido tudo isso, eu não seria hoje cristã e religiosa” 28. A frase, destacada em todas as hagiografias, é o que move a construção destas narrativas. Por ser tão repetida, interpretada e reinterpretada, é a chave para entendermos o que a Igreja quer dizer com o exemplo para a vida daqueles que se inspiram em Bakhita. Bakhita, uma trajetória de vida Segundo as hagiografias, Bakhita teria nascido por volta de 1869, na região de Darfur, Sudão. Sua infância praticamente não é contada nas hagiografias, a não ser que ela vivia com seus irmãos e o restante da família em um ambiente feliz. Sobre sua mãe nada é contado e sobre o pai a única coisa narrada é que ele era irmão do chefe da aldeia e, por isso, as hagiografias concluem que ele era um dos homens de mais posses. O relato inicia-se com Bakhita contando como era sua vida e como sua irmã mais velha já fora capturada por mercadores de escravos. Daí, podemos concluir que a ameaça da escravidão era comum naquela região. Um dia, a mãe de Bakhita resolveu ir, na companhia de todos os filhos, até as plantações de propriedade da família, a fim de fiscalizar o trabalho na lavoura. A filha mais velha sentiu-se indisposta e por isso ficou em casa acompanhada de uma das filhas caçulas, enquanto o restante da família foi à lavoura. Chegando ali, ouviram barulhos, voltaram rapidamente à aldeia e viram que a irmã mais velha de Bakhita fora levada por negreiros. Quem contou o ocorrido foi a irmã caçula, que conseguiu se esconder e por isso não foi capturada. Bakhita, durante o relato, não descreve sua família com detalhes, provavelmente porque não se lembrava ou porque a vida com os pais não era a vida no cativeiro, como a 27 28 As ideias do religioso serão apresentadas adiante. DAGNINO, Bakhita: um canto de liberdade, p. 67. 25 madre pediu que fosse registrado. Minha família morava bem no centro da África em um subúrbio de Darfur, chamado Olgossa, perto do monte Algilerei. Era formada pelo meu pai, pela mãe, três irmãos, quatro irmãos e de outros quatro que eu não conheci, porque morreram antes que eu nascesse. Eu era gêmea de uma irmã. Dela, bem como dos pais, nada mais soube desde que fui roubada 29. Esse é o único momento em que o relato transcrito nas hagiografias apresenta mais detalhes da família de Bakhita. Nenhum outro dado é apresentado, como nomes, hábitos cotidianos ou práticas culturais. O relato, no livro de Maria Luísa Dagnino e nas outras hagiografias, tem a função de conferir credibilidade à narrativa, além de mostrar como Bakhita vivia antes de ser aceita como religiosa. Em todo livro, estão presentes imagens referentes à arte africana e frases que tentam aproximar os valores oriundos das tradições africanas com os católicos. Como exemplo, a reprodução de uma escultura representando uma mãe ajoelhada, segurando no colo seu filho, como se o estivesse oferecendo a Deus. A legenda informa: a maternidade é um valor das culturas tradicionais africanas. Além disso, Dagnino descreve a religião na qual Bakhita fora criada como animista, que para a autora seriam as religiões que cultuam seres orgânicos e inorgânicos, definidos por ela como “objetos sensíveis”. Para a autora, a religião animista entende que por detrás desses “objetos sensíveis” emanaria um poder com características humanas, mas superior aos humanos. Destaca o respeito dedicado aos mais velhos e às crianças, por estarem mais próximos dos mortos, e conclui: “através desses laboriosos costumes chega-se, de alguma forma, à ideia de um Ser supremo onipotente, onipresente, e sempre temível”. Por volta de 1876, quando tinha nove anos, Bakhita relata ter ido até a floresta com uma amiga brincar. Percebendo a chegada de homens, ela e a amiga tentaram fugir, mas um deles a impediu e pediu para que ela buscasse um pacote na mata, separando, dessa forma, as duas meninas. Aproveitando que as duas se distanciaram, um homem a capturou. Após sua captura, Bakhita caminhou durante muito tempo até chegar à aldeia onde os comerciantes de escravos moravam. Nesse ponto, ela recebeu o nome de Bakhita. Nenhuma hagiografia, nem a escrita por Ida Zanoli, que entrevistou a religiosa, diz que nome Bakhita recebera de sua família. Sobre isso, registra-se que a religiosa teria esquecido ou não queria lembrar seu nome familiar. 29 DAGNINO, Bakhita da escravidão à liberdade, p. 37. 26 A hagiografia escrita por Zanoli foi a primeira a ser escrita a respeito de Bakhita. O texto não foi traduzido para o português, mas segundo as hagiografias de Zanini e Dagnino, Zanoli entrevistou a religiosa. Entretanto, os dois outros autores não a utilizam como fonte principal de seus livros, já que o consideram as interpretações desta hagiógrafa equivocadas. O momento do novo nome recebido é retomado em várias biografias, devido à explicação para o seu significado. Bakhita significa Afortunada em árabe, e as hagiografias apresentam esta acepção como uma ironia e também um sinal de que ela estava sendo protegida por Deus, sendo este entendido como um dos sinais de sua santidade: Não é por acaso que escolhem um nome árabe muito comum. Bakhita vem do masculino Bakhit e quer dizer, como explica justamente Ida Zanoli, Afortunada ou Fortunata. Não está excluída a possibilidade de que na imposição do nome houvesse ironia, ou talvez vontade de humilhar. O certo é que, daquele momento em diante, com o nome árabe, Bakhita começa um percurso que a levará a ser conhecida no mundo inteiro como uma santa cristã. 30 Zanini mistura às informações suas observações, sempre caminhando no sentido de construir uma narrativa coerente com o fato de a religiosa ter sido declarada santa. Por isso, dedica-se a apontar onde os sinais de sua santidade estariam manifestados nos fatos de sua vida. O nome que Bakhita recebeu dos comerciantes de escravos passa a ser não um sinal de violência, mas sim um sinal de santidade. Na sequência, afirma-se que ela foi vendida pela primeira vez, juntamente com outras pessoas. Conta que a viagem durou cerca de oito dias, sem citar os lugares pelos quais ela teria passado. Ao chegar a uma localidade onde se fazia a venda de escravos, não foi vendida no primeiro dia e, naquela noite, junto com outra menina, foi obrigada a servir aos comerciantes de escravos, debulhando milho para alimentar os cavalos da caravana. Neste momento, ela e a menina que a acompanhava na atividade perceberam que não estavam sendo vigiadas e começaram a correr para fugir. Correram durante um tempo até encontrarem um homem, que lhes perguntou onde elas estavam indo. As duas meninas apontaram um lugar a esmo e ele respondeu que iria ajudá-las a chegarem até o local apontado. Este homem as levou para a casa dele e as fez escravas novamente, mais tarde levando-as até uma caravana que transportava escravos. Chegaram então a uma cidade e foram levadas até a residência do chefe da caravana. Ali, Bakhita passou a ser serva das filhas 30 ZANINI, Bakhita, mulher negra, op. cit., p. 34. 27 desse senhor para ser treinada e presenteada ao filho desse homem rico, cujo nome não é citado em nenhuma das hagiografias. Nesta casa em que trabalhava, conta que um dia cometeu um erro, não descrevendo qual, e apanhou muito. Ficou desacordada e foi vendida pela quarta vez para um general do exército turco. Ela não cita o nome desse general e o episódio é situado na biografia de Dagnino31 por volta de 1881. Sob o domínio desse militar, Bakhita ficou a serviço da esposa e da mãe do general, e relata que nessa casa foi muito maltratada e apanhava com frequência. Ela teve que se submeter a uma prática de sua dona, que era a realização de vários cortes de navalha em seu abdômen. Sobre os cortes se passava sal grosso e deixava-se cicatrizar. O episódio conta como se ela tivesse quase morrido, pois ficou desfalecida por duas semanas e com cicatrizes para sempre. Nas hagiografias, o acontecimento ganha grande destaque como uma prática cultural árabe e violenta. Na hagiografia escrita por Roberto Zanini existem duas versões para explicar como a religiosa foi para a Itália. As duas versões às quais ele se refere se relacionam ao fato de haver uma confusão em relação à data de ida de Bakhita para a Itália. Porém, cabe destacar uma questão. Das hagiografias aqui analisadas, somente esta conecta diretamente a ação de D. Danielle Comboni com a ida de Bakhita para a Itália. Ele faz isso pelo esforço de aproximar os passos do missionário no Sudão em direção aos passos de Calisto Legnani, o responsável por levar Bakhita à Europa: Na função de agente consular italiano, Legnani vai até ao hotel onde está de passagem o general turco, que ele provavelmente conhecera em El Obeid, e resgata a jovem africana, que iria ajudar a criada nos serviços domésticos. Resgatar jovens escravos era um gesto frequente entre os europeus que exerciam um cargo importante na África é, portanto, bem provável que Legnani tenha conhecido Comboni e que este, de alguma forma, o tenha influenciado. Não por acaso, leva pra a Itália, além de Bakhita, um outro ex- escravo sudanês, igualmente muito jovem32. Depois de um tempo ausente, o general reapareceu com o objetivo de retornar à Turquia, onde também tinha propriedades. Devido à quantidade de escravos que possuía e impossibilitado de levar todos na viagem, vendeu alguns – entre eles Bakhita, comprada por um agente do consulado italiano: Calisto Legnani. Em 1885, Legnani teria de viajar à Itália. Ao saber disso, Bakhita teria pedido para ser 31 32 DAGNINO, Bakhita: um canto de liberdade. ZANINI, op. cit., p. 58. 28 levada ao país europeu junto com ele. Calisto, seu amigo Augusto Michieli, um menino africano e Bakhita embarcaram, então, para a Itália. O grupo partiu de Cartum e foi de camelo até Suakim, onde recebeu a notícia de que Cartum fora devastada pelas tropas do exército mahadista33. Bakhita declara que, se estivesse lá, com certeza teria voltado à condição de escrava. Um mês depois da partida de Suakim, chegaram a Gênova e alojaram-se em uma pensão, cujo proprietário era amigo de Calixto Legnani. Ali, Bakhita foi dada de presente a Turina Michiele, esposa do amigo do cônsul, que indagou ao marido porque ele não havia comprado uma africana para ela e a filhinha. Bakhita foi feita de presente para esta família e nunca mais viu Calisto, tornando-se babá da filha da família Michieli. A narrativa de Bakhita não cita se ela teve ou não escolha de ficar com essa família, o que nos leva a deduzir que, quando chegou à Itália, não era vista como livre, mas ainda era tratada como escrava. De Gênova, foi para Mirano Venziano e, por três anos, foi babá da filha do casal Michieli. Após esse tempo como babá, Bakhita e a patroa voltaram para Suakim, onde Augusto Michieli era proprietário de um hotel. Ficaram por lá durante nove meses e, após esse período, Augusto resolveu que toda a família deveria se estabelecer em Suakim. Então Turina Michieli, Bakhita e a filha do casal Milchieli voltaram à Itália, pois Turina teria que vender propriedades e resolver outros problemas ligados à mudança definitiva da família. O processo de venda dos bens demorou e por dois anos Bakhita ainda foi babá. Ao final desse tempo, Turina Michieli teve que voltar a Suakim e não queria que a criança enfrentasse a longa viagem. A solução foi confiar a criança e Bakhita a um colégio para receberem um pouco de instrução. A congregação escolhida foi um catecumenato dirigido pelas Filhas da Caridade Canossianas. Bakhita logo foi aceita, mas a filha de Turina não, devido ao fato de que já fora batizada. Pela intervenção de Illuminato Checcini34, as duas permaneceram juntas no catecumenato. A espera da resposta positiva para que Bakhita ficasse 33 Revolução Islâmica que ocorreu no final do século XIX devido ao crescimento do processo de ocidentalização do Sudão ocorrido e a expansão do cristianismo, fruto das missões católicas, além da repressão militar ao tráfico de escravos. Esta situação criou condições para que diversos povos do Sudão se unissem em torno da figura de Muhammad Ahmad, que se intitulou Mahadi. Muhammad liderou um estado islâmico no Sudão. Sobre o tema, ver SANTOS, Patrícia Teixeira. Dom Comboni: profeta da África e santo no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2000. 34 Illuminato Checcini era administrador da casa Michieli, também atuava como organizador de associações católicas. Ver ZANINI, Roberto,Bakhita: mulher negra, escrava, santa. Uma fascinante história de liberdade. Cidade Nova: Vargem Grande Paulista, 2000, p. 63-64 29 junto com a filha do casal Michieli durou cerca de um mês, tempo durante o qual Checcini deu a Bakhita um crucifixo e explicou o que aquilo representava. Este fato é muito valorizado, pois simbolizaria a entrada de Bakhita no mundo cristão. Nessa instituição, em 1890, foi catequizada e batizada. Porém, antes de ser batizada, nove meses depois de Turina ter partido, voltou de Suakim para buscar Bakhita e a filha. Bakhita recusou-se a ir. Durante esses nove meses, teve a oportunidade de conhecer a vida no convento e sabia também que, se voltasse à África, continuaria escrava, ainda que na Itália também fosse escrava de Turina, que tentou retirá-la do catecumenato para obrigá-la a voltar a Suakim. Turina recorreu ao superior da casa, que por sua vez escreveu ao Patriarca de Veneza e este recorreu ao rei da Itália para decidir o que poderia ser feito. A resposta foi a seguinte: “Estando eu na Itália, onde não existe o comércio de escravos, eu permaneceria livre”35. Entretanto, Bakhita só pôde ficar no catecumenato porque permaneceu sob a tutela da instituição. Caso a instituição não se comprometesse em receber Bakhita, ela teria que voltar ao domínio da família Michieli. Esta situação configura que Bakhita vivia uma escravidão doméstica, visto que, sem a tutela de um europeu, não poderia permanecer na Itália. Josephina Bakhita começou a demonstrar o desejo de se tornar religiosa através de uma confidência que fez à irmã que era sua catequista e outras pessoas do convento, indagando se uma africana poderia ser uma religiosa. Relatou essa dúvida ao seu confessor, que a orientou a falar com a madre superiora. A irmã considerou possível o desejo de Bakhita. O Instituto Canossiano abrira missões desde 1860 e já havia algumas religiosas não europeias, na maioria vindas da Ásia. Mas essa decisão causou certo conflito entre Iluminatto Checcini e Bakthita. Ele é colocado como o condutor de Bakhita à vida cristã, quem deu a ela o primeiro crucifixo, pagou a pensão para ela ficar no catecumenato. Segundo as hagiografias, ele supunha que Bakhita iria morar com a família dele após ser batizada, provavelmente trabalhando como empregada. No entanto, Bakhita não quis juntar-se à família e requisitou sua formação como noviça. Bakhita preferiu ficar no convento a voltar e fazer parte da família Checcini. Não temos como afirmar que ela seria uma escrava doméstica. Permanecer em um convento com regras hierárquicas rígidas e trabalhando em funções subalternas se afigurou como opção 35 ZANINI, op. cit., p. 75. 30 melhor do que fazer parte de uma família, que poderia enxergá-la como propriedade. Além disso, pertencer a uma congregação religiosa lhe dava um prestígio que não teria caso fosse uma empregada doméstica. Por maior que fosse a ligação dela com a família de Checcini, a alternativa de fazer parte de um convento foi o que a fez sentir-se mais protegida. Talvez, observando a vida das religiosas canossianas, Bakhita tenha percebido que aquele ambiente, mesmo organizado sob regras rígidas, proporcionava uma vida melhor. Ao menos as regras eram claras e estabelecidas. Ficando na casa dos Cecchini, não saberia de antemão, como sabia no convento, o que esperar, estando sempre à mercê dessa família. Assim, a vida religiosa apresentava-se como forma de encontrar uma estabilidade e adquirir respeito diante das pessoas. A vida religiosa poderia ter representado um momento de conversão sincera e encontro de natureza insondável com a divindade católica, mas também uma estratégia de sair da condição de escrava doméstica, à qual provavelmente voltaria caso optasse por permanecer junto à família de Checcini. No relato autobiográfico, a explicação para ela fazer essa escolha é o chamado divino. Bakhita poderia ter escolhido viver no convento por motivação religiosa. Porém, é difícil aceitar apenas essa possibilidade quando se pensa acerca da vida de uma mulher escravizada na infância. Como aceitar que alguém cuja vida sempre foi determinada pela compra e venda, pela mudança de proprietários, que sempre teve de pensar bem em seus atos para não ser castigada, não pensasse uma estratégia de liberdade que pudesse lhe garantir mais segurança? A meu ver, Checcini foi uma das pessoas que possibilitou a Bakhita conseguir realizar seu objetivo de sair da condição de escravidão doméstica, e a gratidão pela família poderia ser também relativa a isso. Cabe destacar que, antes de ser comprada por Legnani, Bakhita passou por cinco donos – ou sete, se somarmos o cônsul e a família Michieli. Nessa altura, ela já teria percebido que as mudanças ocorridas na vida dos seus proprietários interferiam diretamente na dela e que, nesses momentos, pouco podia fazer para escolher o melhor para si. Em 7 de dezembro de 1893, Bakhita iniciou sua vida de noviça e, em 1896, concluiu as várias fases para ser admitida e fez seus votos como religiosa. Este momento é descrito no relato de irmã Febretti, responsável por escrever o relato ditado por Josefina Bakhita, como um momento de renascimento e constituição de uma nova fase em sua vida. A vida como religiosa é tratada principalmente por Roberto Zanini. Primeiro, ele a descreve a vida de Bakhita como noviça, em Veneza, nos Catecúmenos. As funções da 31 religiosa na instituição entre 1896 e 1902 foram de cozinheira, sacristã e porteira. Segundo o autor, durante esse tempo a religiosa aprendeu mais sobre a fé cristã, mas nunca exerceu a função de catequista. O autor justifica esse aspecto da vida de Josefina Bakhita dizendo que ela pouco sabia ler: São também os anos de sedimentação da fé e da serenidade que ela conhecera havia pouco, e do aprofundamento destas (na medida do possível, numa época em que as congregações de modo geral são de pouco interesse à formação cultural das religiosas e dos religiosos de origem humilde e semianalfabetos que, ademais, não pedem explicitamente essa formação), por meio da oração e dos ensinamentos afetuosos de madre Marietta Febretti36. Explica ainda porque Bakhita é descrita apenas por suas ações e pouco por suas ideias: ela não tinha uma instrução que lhe permitisse escrever seus próprios textos ou mesmo ler e interpretar os textos religiosos de modo a ensinar os valores cristãos. Porém, em diversos momentos, o autor mostra como ela ensinou o “amor a Cristo”, dizendo não ser ela a única nessa condição e que era comum, entre os religiosos de origem humilde, a ausência de instrução formal oferecida pela instituição. Mas, ao mesmo tempo, crítica os religiosos que não dizem “explicitamente” que querem ter uma “formação cultural”. Bakhita é comparada a outros santos católicos. Essa comparação nos mostra a expectativa que a Igreja tem em inventar uma tradição para esta santa dentro da Igreja, visto tratar-se de figura nova, se comparada aos santos tão antigos da Igreja, que tiveram sua conversão construída e difundida em um contexto de expansão e não de declínio no número de fiéis. Esta comparação recupera a tradição e faz com que ela continue através a renovação da Igreja frente ao mundo de hoje. Ao contrário de outras figuras de santos, em Bakhita a santidade não surge como um trabalho progressivo. Bakhita dá a sensação de ser santa desde o momento em que e capturada pelos dois saqueadores árabes. Ao lermos a sua história, logo temos a certeza de estarmos diante de uma predestinada, de uma pessoa guiada por Deus 37. A captura é vista como uma ação providencial para mostrar aos outros cristãos que, mesmo sofrendo tanto, a religiosa conseguiu a liberdade, se adequou ao ambiente italiano e adotou a fé cristã por vontade própria. O santo escolhido para a comparação é Santo Agostinho, figura importante para os fundamentos teológicos da Igreja católica e referência na 36 37 ZANINI, op. cit., p. 84. Idem, Ibidem, p. 117. 32 construção do pensamento filosófico ocidental. O autor segue desenvolvendo o argumento de que Josefina Bakhita já nasceu santa e assim era julgada em Schio: “Uma das características da santidade de Bakhita, e talvez a mais atraente, é o fato de que, desde os primeiros tempos da sua presença em Schio, as pessoas que a conhecem e têm alguma conversa com ela, ao deixá-la tem jubilosa convicção de terem falado com uma santa”38. No formato das hagiografias, só se é santo quando se foi destinado a isso. Isso não impede o leitor de entrar nessa estrutura circular e perceber como ela foi construída, visto que a vida de Bakhita não foi circular, mas a forma de contá-la leva o leitor a entender assim. Por isso, é preciso construir a santidade como algo que se dá na estrutura textual e argumentativa, e não no plano da realidade social. Zanini mostra o estado da devoção a Bakhita em vários cantos do mundo, apresentando uma perspectiva de expansão deste culto e como ele se espalhou. Há algumas pistas para entendermos os caminhos escolhidos pela Igreja ao promover a devoção a esta santa, principalmente nas regiões de missões. Ele inicia o capítulo com a definição de João Paulo II para a vida de Bakhita: Uma capacidade extraordinária de falar ao nosso tempo; uma espiritualidade espontânea que parte das coisas simples; a tranquilidade de se posicionar diante da morte e dos grandes questionamentos da vida; a confiança incondicional em Deus e a necessidade constante de confrontar-se com ele; a bondade extraordinária, que se traduz no desejo de perdão e de redenção para com quem a escravizou e a torturou; o distanciamento das principais fontes de prevaricação em relação ao próximo, com a presunção a intolerância, a vingança, o desejo de autoafirmação, o orgulho e a certeza de estar com a razão 39. Mais adiante, vemos delinear-se de forma mais precisa como a Igreja pretende difundir o culto a Bakhita. Ela tem o título de irmã universal, mas sua vida não retrata uma trajetória de vida comum a todos; em outras palavras, existem aspectos de sua vida que são contados de forma a entendermos que ela sofreu como todos poderiam sofrer algum dia. Bakhita superou suas dificuldades como todos poderiam superar e passou por tentações pelas quais todos poderiam passar, mas perdoou seus inimigos como poucos perdoariam e aceitou ser obediente como poucos aceitariam. Embora Bakhita tenha devotos no mundo todo, o autor faz questão de destacar as manifestações de devoção relacionadas, sobretudo, com o continente africano e com os 38 39 Idem, Ibidem, p. 119 ZANINI, op. cit., p. 159. 33 descendentes dos africanos na diáspora na América: “Na África, a devoção de Bakhita vem crescendo de maneira acelerada, mesmo em áreas muito distantes das missões canossianas. (...) O bem-aventurado Daniel Comboni dizia sempre que Jesus morreu também pelos africanos e que os africanos também são filhos de deus. Hoje isso parece natural, mas foi Bakhita que o tornou realidade para a África. (...) No Brasil aconteceu o milagre (...) decisivo para a canonização de Bakhita. E ainda no Brasil em algumas comunidades, Bakhita substituiu nos cultos populares cristãos-sincretistas a figura da 40 escrava Anastácia, enquanto ex-escrava resgatada e elevada à santidade.” Pelo exposto sobre o período desde a captura até seus votos religiosos, percebemos uma narrativa cuja impressão passada ao leitor já estava definida na capa e no subtítulo: “Uma fascinante história de liberdade”. Para Zanini e também para Dagnino, a entrada da ex-escrava Bakhita (depois dos votos, Josefina Bakhita) na vida religiosa é o que marca a liberdade. Podemos entender o evento de forma figurativa: como liberdade em Cristo, liberdade encontrada por meio de um encontro com a vida espiritual possibilitado a uma jovem sinceramente convertida ao catolicismo. Acredito que estas explicações impõe a interpretação de como de todas as hagiografias construíram seus caminhos narrativos. Um é o que considera os recursos retóricos dentro da lógica sobre a qual as hagiografias são construídas, e outro que enxerga na estrutura da hagiografia um espaço para pensar como a narrativa hagiografia transpõe a explicação “real” num argumento cuja explicação sempre é providencial. Todas as hagiografias contam a venda para o comerciante italiano como se fosse o primeiro passo de Bakhita rumo à liberdade. Na verdade, ela ainda era propriedade de Calisto Legnani quando chegou à Itália, e em nenhum momento teve a possibilidade de escolher onde ir e vir. Mesmo tendo tomado decisões para sair da condição de cativa, o fez em meio a possibilidades restritas. Isso quer dizer que ela não foi livre em termos formais, já que sempre permaneceu sob a tutela de alguém. A diferença é que Bakhita não era mais de propriedade de um muçulmano: agora, ela era cativa de um europeu e, por isso, abriu-se a possibilidade de conhecer o mundo cristão. O batismo de Bakhita é descrito com as seguintes palavras: “Transcorrido o tempo de instrução, recebi o Santo Batismo com uma alegria que só os anjos poderiam descrever. Era o dia 9 de janeiro de 1890”41. Dagnino dá relevância a este fato, entendido por ela e pelos outros hagiógrafos como o “renascimento” da mulher que, nesse momento, passa a ser chamada 40 41 ZANINI, op. cit., p.173-175 DAGNINO, Bakhita: Da escravidão à liberdade. p.72 34 Josephina Bakhita. O batismo é destacado como um renascimento e, por isso, o sentido de receber um novo nome. Aqui vemos uma contradição importante na narrativa construída em torno do nome da Bakhita, pois é criticada a forma como ela recebeu este nome dos mercadores de escravos. Mais tarde, ela recebe outro nome, ou seja, sua identidade foi modificada mais uma vez. No entanto, o significado de Bakhita é sempre descrito como ironia, visto que o nome significa afortunada; ao mesmo tempo, o nome é a entrada para a escravidão e o início da “salvação”. Mesmo considerando um desrespeito à humanidade de Bakhita o fato de ela ter sido nomeada de forma arbitrária pelos mercadores de escravos, o seu nome já marca a trajetória e as provações e permite vislumbrar o destino que teria ao encontrar a religião católica. O nome recebido dos árabes conta o final da história. Dagnino42 narra como a religiosa passou de cristã batizada a noviça. Quando Bakhita pediu para ficar no catecumenato, conseguiu seu intento porque teve a proteção da congregação religiosa. Porém, um ano após ser batizada, a religiosa poderia sair do convento e escolher ir para outro lugar. Depois de anos em Verona, ela vai para a cidade de Schio, no ano de 1902. O lugar é descrito como um vilarejo de pessoas cordiais, trabalhadoras de indústrias e que durante a Primeira Guerra Mundial viveram graves bombardeios. Apenas são relatadas as funções de Bakhita durante o tempo em que ali viveu: porteira, cozinheira, trabalhadora de serviços manuais. Nunca exerceu, durante o tempo em que foi religiosa, funções de catequização entre os frequentadores das escolas e outras obras do convento. O contato de Bakhita falando da palavra de Deus sempre é descrito em momentos informais, quando as pessoas curiosas em saber como foi sua vida lhes perguntavam o que ela pensava sobre os ensinamentos. Na descrição da comemoração do aniversário de 50 anos de Bakhita, Dagnino43 destaca que a data do nascimento era 8 de dezembro de 1943, mas a data escolhida para comemorar o seu aniversário não tinha relação com o dia do nascimento. 8 de dezembro de 1896 foi quando ela fez os votos temporários, ou seja, seu nascimento “religioso”, uma existência iniciada quando ela resolveu se comprometer com a vida religiosa. Isso significa que o importante na vida da religiosa foi o fato de ter se comprometido 42 43 DAGNINO, op. cit. p.72-85 DAGNINO, op. cit. p.93 35 com os valores da vida cristã, levando a entender que o destino da sua vida foi ter se entregado a Cristo: "Ela, humilde e modesta, tudo aceita e agradece por tudo com ar de quem pede desculpas por ter causado tanta confusão. E houve realmente confusão, porque todo o mundo de Schio queria agradecer à sua 'protetora‟ e congratular-se com ela"44. Aqui, vemos um discurso no qual a religiosa é observada pelos habitantes de Schio como uma figura importante e admirável. Em vida, a admiração de suas características de santa já faz parte da ideia de que ela era diferente de outras pessoas. Os últimos anos da vida da religiosa, quando passou a desenvolver doenças crônicas como artrite e asma, foram marcados também por uma pneumonia que agravou a sua situação respiratória. O desenvolvimento da artrite a levou a usar cadeiras de rodas e, aos poucos, as doenças foram piorando sua condição física. Na estrutura formal das hagiografias, o momento da morte de um santo é extremamente importante para detectar os sinais de santidade: Irmã Josefina estava perfeitamente consciente de seu estado. À proposta de receber os sacramentos, respondeu: “Sim, sim, porque quero entender tudo”. Ainda que penosamente, seguiu todas as orações. Esteve absorta e tranquila por algum tempo. Depois, no delírio da febre alta, implorou: ’Alarguem as minhas correntes: elas pesam!’ Recuperou-se depois e, vendo-a um pouco aliviada, disseram-lhe: “Ir. Josefina, como sentes? Hoje é sábado”. Depois de alguns minutos, murmurou: “Como estou contente! Nossa Senhora! Nossa Senhora!” Foram as suas últimas palavras que se pôde ouvir. Algum tempo antes, quando uma irmã lhe perguntou como estava, ela, escolhendo as palavras, respondeu: “Vou-me devagarinho para a eternidade... Vou com duas malas: os méritos infinitos de Jesus Cristo. Quando eu comparecer os méritos de Nossa Senhora. Depois abrirei a outra e apresentarei os méritos de Jesus Cristo. Direi ao Pai: 'Agora julgai o que vedes! Estou segura de que não serei rejeitada! Então me voltarei para São Pedro e lhe direi: Pode fechar a porta porque eu fico!”. E lá ficou. Eram 20h10 do dia 8 de fevereiro de 1947. Estava finalmente com aquele que desejara amar antes mesmo de o conhecer45. Essa é a descrição da morte de Bakhita, na qual a narradora pontua a descrição com as frases que teriam sido proferidas pela religiosa no momento em que recebia os últimos cuidados. O que se segue é a descrição do funeral. Segundo a descrição da religiosa, a forma como ocorreu a morte da Irmã Josefina Bakhita segue os passos clássicos da morte de um 44 Sua popularidade junto aos moradores de Schio se deve principalmente ao fato de que durante a Segunda Guerra Mundial Josephina Bakhita teria profetizado que nenhum civil de Schio morreria por causa da guerra, por isso as mães e as esposas que tinham filhos e maridos na frente de batalha tinham Bakhita como referência. Segundo as hagiografias somente uma fábrica foi atingida pelos bombardeios durante a Segunda Guerra e nenhuma residência sofreu danos. ZANINI, op. cit. p.99-100. 45 DAGNINO, op. cit., p. 95. 36 santo: Os restos mortais foram levados para o velório, junto à Igreja, no domingo, 9 de fevereiro. O corpo conservou-se flexível, tanto que as mães tomavam o braço de Ir. Josefina e o colocavam sobre a cabeça dos seus filhos como sinal de proteção. O aspecto do rosto da falecida era natural e sereno: tanto que como ela mesma dissera, nem as crianças tinham medo de se aproximar. A afluência das pessoas foi muito numerosa e variada: tanto de pessoas humildes como das de classe alta. Os mistérios e os caminhos da providência 46. Josephina Bakhita faleceu no dia 8 de fevereiro de 1947, na cidade de Schio, devido a complicações pulmonares. A primeira explicação sobre o motivo de sua santidade reside no seguinte trecho da Bíblia: “O Senhor teu Deus, te amou e te escolheu, porque és a menor” (cf. Dt. 7,7). Quem agiu através dos mercadores de escravos foi a vontade divina. Aqui, então, põe-se uma questão contraditória no discurso da Igreja, ao apontar a civilização árabe como a responsável pelo sofrimento de Bakhita. Foi a vontade divina a responsável por Bakhita ter percorrido o caminho do sofrimento até chegar a salvação, culminando nos seus votos para se tornar membro de uma congregação ou foram os árabes que, devido ao sistema escravista vigente no Sudão, escravizaram Bakhita? É possível entender a relação entre a captura e o resgate de Bakhita em termos históricos. Isso implica dizer que ela foi capturada porque havia um sistema escravista no Sudão e foi resgatada porque havia uma intenção da Igreja e das potências europeias em penetrar no território sudanês, o que ocasionou a revolta mahadista. A vida de Bakhita pode ser explicada a partir do contexto em que viveu, aliada as atitudes e decisões que tomou ao longo de sua vida, como todos os sujeitos históricos tomam a partir das possibilidades que se lhes apresentam. No entanto, a Igreja explica tudo por meio da ideia de que a religiosa foi escolhida para ser capturada por vontade divina. Como todo santo, nasceu para esse destino e passou por sofrimentos, cuja intenção é provar que aquele indivíduo tem as características exigidas para a santidade. Ao tratar do tema da castidade de Josefina Bakhita, Dagnino mais uma vez recorre ao testemunho da religiosa para provar que ela nunca foi abusada sexualmente ou teve relações sexuais com alguém. Talvez esse ponto não seja importante para todos os leitores e devotos da africana, mas com certeza é importante para a Igreja: 46 DAGNINO, op. cit., p. 96. 37 Interrogada, discretamente, se durante a sua longa escravidão, fora molestada, respondeu: “Eu estive no meio da lama, mas não me sujei”. Muitas vezes, repetiu, “Graças a Deus, fui sempre preservada”. “Nossa Senhora me protegeu, ainda que eu não a conhecesse”, e repetiu: “Em várias ocasiões me senti protegida por um Ser Superior 47. A hagiógrafa não trata o assunto com desenvoltura: ela pinçou frases para mostrar e provar a castidade de Bakhita. Dizendo que não foi diante de todos que tais palavras foram proferidas, a resposta atribuída a Bakhita é dúbia, mas deixa claro que sua castidade foi mantida, mesmo sofrendo tantos abusos. Dagnino sorteia outras frases, explicando como foi possível à religiosa não ter sido abusada sexualmente. As expressões “graças a Deus”; “Nossa Senhora sempre me protegeu” e “o poder superior sempre me protegeu” dão credibilidade ao testemunho e põe em dúvida a fé de quem desconfia das palavras de Bakhita. Ou seja, se Deus foi grande e forte o suficiente para torná-la cristã, porque não teria sido forte o suficiente para protegê-la da violência sexual? Mais uma vez, a verdade do discurso vem da lógica da vida de uma santa, que precisa ser casta para obter respeito. Mais uma vez, é a estrutura da narrativa hagiográfica que dá verossimilhança ao fato de, mesmo tendo passado por tantos donos, não perdeu sua castidade. As hagiografias apresentam a biografia de Bakhita como um caso raro de uma mulher negra levada à Europa no final do século XIX. Contudo, sabemos de outras mulheres e homens africanos que, assim como Bakhita, foram para a Itália. Muitos deles foram resgatados pelas campanhas missionárias no Sudão durante a segunda metade do século XIX. Destaco aqui a biografia de Mary Josephine Zeinab. Sua trajetória assemelha-se a de Josefina Bakhitta. Zeinab era o seu nome de garota e, assim como Bakhitta, ela fora capturada enquanto brincava e feita escrava. Não há a data provável de sua captura, mas em 1854 foi comprada por um padre italiano, Nicholas Olivieri, e com ele havia outras onze jovens. Olivieri comprava jovens de ambos os sexos e os levava para as missões. Em 1856, ele teria enviado Zeinab para um convento em St. Clarire em Belvedere, Ancona. Lá, a menina tornouse religiosa e morreu em 24 de abril de 1926. Essa foi uma das várias jovens que foram à Itália e ingressaram na vida religiosa48 devido ao projeto missionário da Igreja no continente africano. Este ingresso era parte de um projeto missionário pensado por D. Danielle Comboni. 47 DAGNINO. Bakhita: da escravidão à liberdade, p. 69. SANTOS, Patrícia Teixeira. “Santas e dóceis ou insubmissas e desgraçadas? Uma análise de trajetórias de mulheres resgatadas da escravidão na áfrica central no contexto colonial (1870-1945)”. Revista de História, 155 (2º sem.2006), p. 145-160. 48 38 Antônio Daniele Comboni, vigário apostólico da África Central, nasceu em 1831, em Limone Sul Guarda e morreu em 1881, em Cartum. Foi o fundador de importantes institutos missionários, estudou estratégias para a ação missionária que pretendia iniciar no Sudão e uma experiência que pudesse servir como base para a evangelização dos africanos e a inclusão da África na sociedade ocidental. Desenvolveu um plano para a evangelização, tentando encontrar uma metodologia apropriada para a catequização dos povos africanos. Para alcançar seus objetivos, e com o financiamento de várias potências europeias, Comboni comprou terras em região não islamizada ao sul do Sudão e formou a colônia de Malbes, composta por africanos resgatados da escravidão ou cristianizados. Observando a estrutura das sociedades africanas, ele percebeu a importância das mulheres e deu ênfase à evangelização feminina. Ponto importante em seu plano de “regeneração” foi também a aproximação de pontos da cultura africana tradicional com o cristianismo, o que ele chamava de “regenerar a África pela África”49. O plano de evangelização desenvolvido por Comboni estava no contexto da expansão colonialista europeia da segunda metade do século XIX. Nessa expansão, havia uma missão civilizadora que as potências aplicavam, baseadas em teorias raciais formuladas também naquele século, pelas quais a África seria um continente a ser civilizado50. Dentre as hagiografias de Bakhita, aquela escrita por Zanini é a que mais se dedica a tratar do tema da escravidão. Para explicar como entende o tema, o autor dividiu a escravidão no continente africano em dois momentos: ontem e hoje. Desde o século XVII, a África foi grande fornecedora de escravos para a América e Oriente Médio. Deste ponto, ele parte para o século XIX, mostrando como foi o processo da abolição da escravidão nas Américas, apresentando a contradição de que esses governos proibiram o tráfico de escravos, mas ao mesmo tempo formulavam estratégias para a manutenção de práticas escravistas. Zanini aponta a contradição principalmente na Inglaterra e na França. Estados Unidos, Portugal e Espanha quase não aparecem e quando Portugal é citado, o é apenas em uma nota de rodapé, como uma das nações que mais enviaram escravos ao Brasil (sic). O autor não faz nenhuma referência ao papel da Igreja no processo de colonização das Américas e relaciona o advento da escravidão ao interesse dos comerciantes. 49 SANTOS, Patrícia Teixeira. Dom Comboni: profeta da África e santo no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2000. 50 SANTOS, Patrícia Teixeira. Fé, guerra e escravidão: uma história da conquista colonial do Sudão (1881-1898). São Paulo: Fap-Unifesp, 2013. 39 A escravidão no Ocidente seria o contexto da escravidão de ontem, do passado. A escravidão de hoje, do tempo contemporâneo, seria a que Bakhita experimentou: Passados cento e trinta anos, no início de mais um novo milênio, a história de Bakhita continua absolutamente atual. Naquelas regiões, a captura de negros africanos não muçulmanos (sobretudo jovens mulheres e crianças) prosseguiu com altos e baixos por todo o século XX por obra de tribos islâmicas africanas e de vários exércitos regulares51. A escravidão a que ele relaciona Bakhita está inserida no mundo árabe e na religião muçulmana. Diferentemente da descrição sobre a escravidão ocidental, Zanini não inclui os interesses comerciais como fator explicativo da escravidão no Sudão. Não questiona o fato de Bakhita ter ido para a Itália também na condição de escrava e ter sido tratada como tal por seus patrões até conseguir permanecer no convento, como estratégia de salvação da condição de escravidão doméstica em que vivia com seus patrões. Nem Dagnino nem Zanini explicam qual era esse governo islâmico ou como era o islamismo vivenciado no período. Também não apresentam dados que comprovem ser a escravidão comum até o século XX, criando, dessa forma, a ideia de que o Islã como um todo foi responsável pela escravidão de Bakhita. A escravidão no Sudão se desenvolveu dentro do contexto da dominação egípcia. O Sudão era considerado pelo Egito um território fornecedor de mão de obra escrava para as lavouras. Além disso, muitos escravos recrutados no Sudão entre os séculos XIII e o final do XVIII eram enviados ao Cairo a fim de se tornarem mamelucos, escravos preparados para serem guerreiros profissionais. O Império Otomano, dominando o Sudão no início do século XIX, manteve essa forma de recrutamento militar, além de recrutar escravos para comporem a administração do império e escravizar mulheres para servirem de concubinas dos sultões abastados. Essa estrutura escravista tornou-se cada vez mais complexa devido ao desenvolvimento do comércio, sobretudo de marfim, que demandava uma grande quantidade de escravos para trabalharem no transporte e estocagem que se realizava em fortificações chamadas dems e zeribas52. Essa estrutura escravista atraiu comerciantes europeus. Alguns se envolveram no tráfico atlântico, tornado uma substancial fonte de riquezas. A atividade escravista e comercial foi abalada pela intromissão militar e política inglesa, que pressionou o Império Otomano a 51 52 ZANINI, op. cit., p. 40. SANTOS, Dom Comboni, op. cit. 40 abolir a escravidão em suas possessões. No entanto, apesar dos ataques desferidos aos traficantes pelas patrulhas europeias, estes continuaram com o poder cada vez mais forte, porque puderam contar com a colaboração e a conivência das autoridades egípcias, já que o controle da atividade traficante estava nas mãos dos mercadores sudaneses e egípcios. O apoio que Danielle Comboni recebeu para desenvolver seu plano missionário se dá nesse contexto, no interior do qual a escravidão atrapalhava o interesse das potências colonialistas europeias e também seu plano evangelizador, pois o movimento populacional causado pela escravização inviabilizava a exploração da mão de obra e a constituição de uma comunidade religiosa cristã na África, objetivo do missionário. A campanha abolicionista acusava o Islã de causador da escravidão no Sudão, afirmando que a religião islâmica era favorável ao cativeiro. A escravidão no Sudão, de fato, tem relação com os povos árabes adeptos do islamismo. No entanto, quando Zanini se refere à escravidão ocorrida na América, nada cita do envolvimento da Igreja Católica. O pouco que fala mostra como algo do passado que não mais ocorre; no limite, coloca a Igreja como vítima dos interesses comerciais europeus e reafirma sempre a importância da Igreja no resgate de Bakhita. Maria Luísa Dagnino dedica uma parte do livro à descrição do cristianismo no Sudão, apresentando ao leitor a anterioridade da religião católica em relação à islâmica, dizendo que desde o século VI havia, no Sudão, uma expansão missionária católica. Lamenta, porém, que isso não continuasse devido à expansão do Islã na região: “A Igreja aparentemente perde suas batalhas, mas vence a guerra”. A frase refere-se ao que ela considera como a interferência do islamismo no desenvolvimento do catolicismo naquelas paragens.53 Entretanto, o que mais nos interessa aqui é como a figura dessa santa é construída. Essa contradição apresenta um aspecto importante no discurso da hagiografia que também observamos em outras narrativas. Dagnino faz questão de dizer que isso ocorreu porque o projeto de inserção do cristianismo na África foi interrompido devido à chegada do Islã na região em que Bakhita vivia. Ela torna-se, assim, o símbolo desse projeto interrompido e, como consequência, a instalação da escravidão naquele país e a captura de Bakhita pelos árabes seria o sinal dessa interrupção. Sua salvação se deu justamente devido a um projeto missionário creditado a Dom Daniele Comboni. 53 DAGNINI, Op. Cit. p. 14-20. 41 Ao ressaltar que há uma disputa entre o islamismo e o cristianismo, Dagnino abre-nos a possibilidade de entendermos seu discurso a partir da disputa entre as duas religiões na região sudanesa. Assim, tenta nos fazer enxergar a figura de Santa Bakhita como símbolo dessa luta. Não é objeto dessa dissertação a disputa entre o catolicismo e o islamismo, mas sim a construção da figura de Santa Bakhita em suas hagiografias. Santa Josefina Bakhita é descrita como alguém humilde, passiva, generosa, obediente e naturalmente cristã, ou seja, essa religiosa é apresentada como uma representante dos povos não cristãos do Sudão. Podemos entender que esse povo é visto como naturalmente cristão e a conversão para o islamismo seria um desvio dessa certeza construída pela Igreja católica em torno da figura do povo sudanês. A narrativa escrita por Souza54 sobre a trajetória de vida segue os mesmo passos das outras hagiografias, tentando simplificar a linguagem e retirando a explicação do contexto vivido por Bakhita. Em uma narrativa em prosa, a autora coloca textos em verso que repetem o conteúdo da prosa: Bakhita nasceu no Sudão, a mais vasta nação da África. Lá, o clima e a vegetação são variados, indo desde o deserto até ricas culturas às margens do rio Nilo. É da África, o Sudão, A mais vasta nação. Tem desde o deserto, até rica cultura. Por lá passa o Nilo, trazendo fartura55. Esses trechos em versos fazem parte de um texto teatral escrito pela autora. Utilizando uma linguagem infantil, a autora também descreve o povo sudanês de forma infantilizada: “É um povo hospitaleiro, leal, bondoso e acolhedor. Assim, e também devido à pouca cultura, pôde ser facilmente dominado por um outro grande „mal da humanidade‟: a escravidão”56. Também chama a atenção o modo como ela descreve o islamismo: O islamismo é uma religião monoteísta (acredita em um único Deus), que se baseia no livro Corão ou Alcorão, que teria sido ditado por Deus a Maomé. Considera Jesus Cristo não como o Filho de Deus, que morreu e ressuscitou por nós, mas simplesmente como um profeta, e considera, ainda, Maomé, que nasceu bem depois de Cristo, o seu maior profeta, portanto mais 54 55 56 SOUZA, Mildrey Daisy Miguel, Santa Bakhita: a escrava de Deus. SOUZA, op. cit., p. 14. Idem, Ibidem, p. 15. 42 importante que Ele. Islã significa submissão, e tudo na vida do muçulmano (ou islamita) tem aspecto religioso57. Em outras hagiografias, não há uma explicação sobre o que é o islamismo. Na narrativa escrita por Souza58, por considerar que o público é menos informado, a autora sente a necessidade de explicar, mas, ao fazer isso, deixa claro que o islamismo é uma religião que deslegitima a base do cristianismo ao considerar Cristo não como o filho de Deus, mas como um profeta que nem foi o mais importante, retirando a Bíblia de seu lugar central e colocando o Corão neste lugar. Ao construir a imagem de missionária de Josephina Bakhita, as hagiografias precisam mostrar como a religiosa teria exercido essa vocação mesmo não exercendo atividades que exigiam a evangelização. Devido a isso, seus hagiógrafos são obrigados a criarem uma explicação de como suas palavras podiam transmitir valores cristãos. Abaixo, a citação de uma declaração em forma de oração espontânea dada por Bakhita em 1896, quando fora ordenada. Ó senhor, se eu pudesse voar lá para longe, entre a minha gente e proclamar a todos em alta voz a Tua bondade: oh! quantas almas eu poderia conquistar para Ti! Entre os primeiros, a minha mãe, o meu pai, os meus irmãos, a minha irmã, ainda escrava... todos, todos os pobres negros da África, faze, ó Jesus, que também eles te conheçam e te amem!59 Bakhita é descrita sempre como pessoa pouco conhecedora das letras, mas que falava italiano e o dialeto da cidade de Schio. Estamos analisando uma tradução, e vemos que essas palavras se estruturam dentro de uma linguagem típica de oração, e dela podemos depreender alguns fatores importantes para a constituição da religiosa como beata. Esta declaração foi publicada na obra de Dagnino, quando o processo de beatificação já fora concluído e, portanto, Bakhita já fazia parte do grupo de intercessores divinos da Igreja católica. Era necessário mostrar justamente essa vontade que a religiosa teria em levar as palavras do Senhor a todos, ou seja, ela teria que mostrar a disposição de religiosa em 57 Idem, Ibidem, p. 15 SOUZA, op. cit. 59 DAGNINO, op. cit., p. 80. 58 43 interceder junto a Cristo segundo os valores cristãos. E aqui ela se dirige especificamente a um grupo. A palavra conquistar revela a existência de uma disputa. Ela diz que gostaria de conquistar a cristandade: primeiro sua família, depois todos os pobres e negros da África. Na hagiografia, não há nenhuma referência de onde essa frase foi registrada, quem a ouviu ou se foi pronunciada exatamente dessa forma. Mas o que importa é que ela foi atribuída a Bakhita, e o que vemos é uma retórica na qual a religiosa mostra saber qual é a sua função enquanto membro daquela instituição: comunicar-se com um grupo que está fora dali, que não esta na Itália. Dagnino diz o que entende como fato explicador dessas frases: “Foi essa inspiração altamente missionária que caracterizou a Irmã Josefina”60. Ou seja, como a religiosa, mesmo quase sem nunca sair do convento, pode ser considerada missionária. A vida do santo não acaba quando ele morre. Sua história, suas palavras, seus objetos e sua vida são continuamente ressignificados através da leitura, dos fiéis e dos religiosos que estão envolvidos em seu culto. Maria Luísa Dagnino61 faz isso também quando lança mão de uma série de imagens representativas da vida de Bakhita, construindo uma narrativa visual da trajetória da religiosa. Primeiro, mostra-se como era uma aldeia no Sudão; depois os costumes daquela região, o caminho pelo qual Bakhita teria passado através das áreas secas do Sudão, e termina-se com a imagem da Praça de São Pedro, no Vaticano, no dia de sua beatificação. Atribui-se, assim, um sentido à vida dela: sair da África e tornar-se santa diante dos católicos no centro da Igreja católica. Tudo se completa com a imagem mais famosa de Madre Josefina Bakhita. Abaixo, um trecho da homilia do Papa João Paulo II. Beata Josefina Bakhita, testemunha eminente de amor paterno de Deus, sinal luminoso da atualidade perene das Bem-aventuranças; Ela é-nos dada de novo pelo Senhor como irmã Universal, para que nos revele o segredo da felicidade mais verdadeira. A sua é uma mensagem de bondade heroica, à imagem da bondade do Pai celeste. Ela deixou-nos um testemunho de reconciliação e de perdão evangélico. Eis aqueles que, de geração em geração, seguiram Cristo: “através de muitas tribulações, eles entraram no Reino de Deus”62. A santidade precisa adquirir um sentido na narrativa proposta pela Igreja, que pretende atribuir-lhe uma postura exemplar. No entanto, a vida de Bakhita impõe ao hagiógrafo um 60 Idem, Ibidem, p.80 DAGNINO, op. cit., p. 65. 62 Idem, Ibidem, Anexo 5. 61 44 desafio: boa parte da vida da religiosa, principalmente sua experiência na escravidão, deu-se diante de olhos não cristãos. Ela só passou a ser observada por europeus quando foi comprada por Calisto Legnani; antes disso, a única forma de provar que Bakhita sempre viveu de acordo com os valores cristãos mesmo sem o saber é através da comparação de atitudes que tomou quando já era propriedade de seu senhor italiano. Este problema impõe à análise hagiográfica a utilização do testemunho oral da religiosa como fonte principal para a história de sua vida antes de ser comprada por europeus. É preciso, então, criar uma forma discursiva capaz de construir um clima plausível a respeito da santidade da religiosa. Os autores procuram isso na análise da personalidade da religiosa, comparando as reações que ela teve e os testemunhos que deu: fazem isso utilizando exemplos probatórios da mesma coisa. Bakhita sempre teve uma atitude passiva e, quando agiu, sempre foi inspirada por uma força que não conhecia. Esse aspecto da hagiografia mostra como esse gênero relaciona-se com a ficção: não pode deixar lacunas nem vazios, pois a narrativa deve seguir a lógica do gênero no qual a vida do santo não pode expressar outra coisa além da comprovação do que é venerável. Dito isso, as contradições da hagiografia não se mostram como contradições discursivas: são parte da própria lógica do gênero, que cumprem a função de mostrar ao leitor porque Josefina Bakhita deve ser vista como santa. É possível que o leitor pode perceber esses recursos e desconfiar do que aconteceu; recorrer a outras fontes para entender melhor a situação das escravas durante o período em que Bakhita permaneceu nessa condição. Mas independentemente das incoerências e desconfianças, o discurso hagiográfico não precisa sempre de um documento que corrobore os fatos narrados, visto que ele é eleito como verdadeiro por uma comunidade de pessoas que tem o poder, após um processo de canonização, de reconhecimento da santidade. No anúncio de canonização, Josefina Bakhita recebeu o título de Irmã Universal. Agora, não se tratava mais de uma beata sudanesa, mas de uma santa sudanesa cujo milagre ocorrera no Brasil, país que recebeu muitos africanos que, como Bakhita, foram escravizados. Bakhita, portanto, não era mais apenas um exemplo para as mulheres africanas, mas para todo o mundo, e se tornou um modelo de vida para o novo milênio, como declaram sempre seus hagiógrafos. Em 1992, Bakhita foi beatificada. Naquele ano, João Paulo II visitou Cartum e declarou: 45 Caros catequistas: eu tenho grande confiança em vocês. Eu tenho grande orgulho de vocês, eu estou tomado pelo conforto. Vocês são o centro da comunidade local, frequentemente organizados em pequenas comunidades cristãs. É sua tarefa falar as palavras de Deus em uma língua que esteja tão próxima quanto possível das necessidades e experiências dos seus irmãos e irmãs. Através das suas palavras e ações cristo aproxima-se das lutas diárias de seu povo. De fato, através de vocês na extensão de que vocês assimilam a mensagem do evangelho, Cristo se torna verdadeiramente sudanês. Que o exemplo da beata Bakhita, que nunca perdeu a confiança e esperança não importando quão difícil as condições de sua vida, inspire vocês com amor e misericórdia compaixão a todos63. Neste trecho da homilia papal, diante de cristãos e autoridades do Sudão, apresenta-se o significado da vida de Josefina Bakhita para a Igreja. Aqui, o papa utiliza-se dela como um exemplo a ser seguido por todos os sudaneses e cristãos, inspirando-os a não perderem a fé e a acreditarem nos preceitos da Igreja católica. Em toda a homilia, João Paulo II prega a convivência e a tolerância entre os sudaneses de todas as religiões, mas apela para que surja uma identidade cristã cada vez mais forte entre os cristãos sudaneses. A oração de Josefina Bakhita, escrita em português e formulada por Dom Jacyr Francisco, bispo de Diocese de Santos quando da canonização, orienta seus devotos a praticarem as seguintes virtudes: fé, esperança, caridade, humildade, castidade, fraternidade e obediência. Estas palavras sintetizam o que as hagiografias constroem como as principais virtudes de Santa Josefina Bakhita e, por conseguinte, as virtudes que seus devotos teriam ao menos de admirar. A hagiografia, gênero circular em que tudo caminha no sentido de provar a santidade do hagiografado, mostra que os fatos são interpretados de acordo com o final. A possibilidade do desvio não existe e o que referenda isso, mais do que a fé de seus devotos, é a posição da Igreja católica que, institucionalmente, considera essa vida exemplar. As hagiografias aqui referidas não apresentam grandes diferenças quanto à imagem que pretendem construir da religiosa. Diferem, apenas, em relação à linguagem e ao público ao qual se destinam. As hagiografias contribuem para mostrar uma religiosa que foi salva de uma vida de escravidão, o que não ocorreria caso não tivesse sido levada para a Itália. Santa Josefina Bakhita não tem apenas devotos africanos ou negros. Seus devotos são de todas as etnias, classes sociais e continentes, e suas hagiografias foram traduzidas em 63 POPE JOHN PAUL II. “Address of the holy father to priests, religious, seminarians and catechists”. In: Pastoral visit to the Sudan, 1997, p. 33. 46 várias línguas. No entanto, o discurso construído pela Igreja em torno da santa, mais do que estimular um comportamento subalterno em seus devotos, demonstra o que se espera da formação de uma religiosa negra. As hagiografias ilustram o que a Igreja pensa oficialmente ser Josephina Bakhita, sobretudo a hagiografia escrita por Zanini. Essa hagiografia também nos permite vislumbrar qual o motivo de tanta felicitação em verificar que o culto a Santa Josephina Bakhita tem se espalhado pelo mundo. 47 CAPÍTULO 2 Catolicismo e evangelização: algumas comparações O Concílio Vaticano II, proposto e liderado pela instância máxima da Igreja católica, foi recebido na América Latina com entusiasmo. A partir dele, a Igreja latino-americana pode fazer parte do processo de amadurecimento da Igreja católica como um todo, com foco na diversidade cultural, regional e religiosa. À luz das orientações do Concílio Vaticano II, as propostas de evangelização pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (doravante CNBB) deixam entrever uma preocupação em incluir, tanto nas reflexões teológicas como nas práticas litúrgica, as mudanças proposta pela assembleia conciliar que, dentre os vários temas abordados, enfatizou o diálogo com culturas e religiões diferentes. Nesse sentido, o conceito de inculturação ganhou importância neste trabalho, visto que foi a partir dele que a Igreja católica buscou entender como a diversidade cultural poderia fazer parte do catolicismo sem que este fosse modificado em sua essência. O Concílio Vaticano II, a evangelização e a ação da CNBB, a inculturação e sua importância, as irmandades como experiência histórica de referência nesse processo: esses serão os temas tratados aqui, embora não em ordem estritamente cronológica. A intenção é traçar um quadro das formas de atuação institucional da Igreja em sua busca por adeptos para o catolicismo. Concílio Vaticano II O Concílio Vaticano II pode ser considerado o grande acontecimento do catolicismo no século XX. Ele realizou-se em duas fases: uma de anúncio e preparação; outra, na qual se deu o encontro propriamente dito. A fase de preparação ocorreu entre 1959-1962, quando foram constituídas dez comissões, três secretariados e uma comissão central. A segunda fase ocorreu entre os anos de 1962 e 1965 e nela houve quatro reuniões conciliares sucessivas64. Esse concílio surgiu de uma série de experiências que já ocorriam no interior da Igreja católica. José Oscar Beozzo afirma que diversas experiências na Igreja do século XX de certo modo prepararam o advento do concílio e suas reformas. Entre elas, o movimento litúrgico 64 FRANÇA, Dilaine Sampaio. Áròyé: um estudo histórico-antropológico do debate entre discursos católicos e dos candomblé Pós- Vaticano II. João Pessoa: Ed. Universitária UFPB, 2012, v. I, p. 67. 48 desencadeado em 1909 na França por Próspero Gueranger, o Movimento Bíblico, a preocupação ecumênica herdada de Newman de Maecier e a renovação dos estudos patrísticos com um melhor conhecimento das riquezas do Oriente Cristão e o apostolado dos leigos, sobretudo sob forma da Ação Católica especializada, a renovação teológica em países como a França, Alemanha e Bélgica, bem como o movimento missionário65. O Concilio teve uma forte repercussão na sociedade ocidental, porque nele se conseguiu alterar as relações internas da instituição, incluindo os fiéis, as estruturas burocráticas da própria Igreja, os outros governos e as outras Igrejas. Na América Latina, a Conferência do Conselho Episcopal Latino Americano (CELAM) de 1968, em Medelín, é considerado um encontro no qual o Vaticano II foi recebido de forma original66, já que nele a Igreja católica latino-americana foi tida como o início da formulação de uma Igreja popular. Tal Igreja passou a ser pensada pelo CELAM devido ao contexto social e político vivenciado na América Latina, no qual as ditaduras militares e a desigualdade social estimularam o surgimento da Teologia da Libertação, das comunidades eclesiais de base e de uma "leitura militante das escrituras"67. No Brasil, o movimento teve intensa participação da CNBB desde 1952, atuando em nível latino-americano com o CELAM desde 1955. A Igreja brasileira e latino americana consideravam a opção preferencial pelos pobres como o caminho a ser seguido pela Igreja católica. Ainda que no texto do Concílio Vaticano II a preocupação com os pobres não tenha sido o tema de maior relevância, essa foi a questão mais importante para a Igreja latino americana na época. O Vaticano II pode ser considerado um evento político-religioso, devido ao contexto nacional e internacional no qual ele estava inserido e também devido às próprias características da Santa Sé, uma instituição de direito público e internacional que fala pela Igreja católica e, simultaneamente, um Estado sui generis, pois mantém relações diplomáticas com outros Estados dos cinco continentes, sendo membro praticamente de todas as grandes organizações internacionais de caráter governamental ou não e ainda possui estatuto, assim como a Suíça, de "observador permanente das Nações Unidas" 68. 65 66 67 68 BEOZZO, José Oscar. "O Concílio Vaticano II: vinte anos depois". In: Vida Pastoral, 296: maio/jun.2014, p. 7. FRANÇA, op. cit. BEOZZO, op. cit, p. 8 FRANÇA, op. cit. 49 A peculiaridade que faz dessa instituição religiosa também um Estado confere caráter político institucional inegável à Santa Sé, o que também se observa nos textos da CNBB. Daí a forte preocupação em pensar o que a ação evangelizadora da Igreja católica no âmbito da realidade brasileira trouxe aos documentos da Conferência em termos de reflexões sobre as desigualdades sociais no Brasil. Dilaine Sampaio de França estudou a documentação emanada do Vaticano II, além dos documentos produzidos pela Igreja católica brasileira. O objetivo da historiadora foi perceber como se construíram as relações entre Igreja e religiões afro-brasileiras no período posterior a 1954. Para ela, o Concílio Vaticano II trouxe uma renovação à Igreja católica, criando a atmosfera simbólica de uma igreja "com mais liberdade, novas experiências, em busca de diálogo com o mundo, com as outras igrejas e religiões". Esta visão, com base nas observações do teólogo José Libânio, condiz também com os documentos conciliares que, desde seu anúncio, transmitiram a mensagem de que a Igreja católica precisaria se renovar69. Essa visão torna evidente a expectativa de mudanças gerada pelo anúncio e a surpresa de alguns setores da hierarquia da Igreja católica, que não esperavam um Concílio aberto ao diálogo com outras denominações religiosas. Passados vinte anos do evento, o papa João Paulo II convocou um Sínodo Extraordinário, com o intuito de debater o significado e a aplicação das proposições do Vaticano II. Segundo Beozzo, construir uma Igreja renovada para enfrentar os desafios do mundo moderno não significou romper com as tradições consolidadas, o que é possível perceber na seguinte preocupação do autor: para América Latina, foi experiência de Igreja, vivida graças à liberdade trazida pelo Concílio, nos diferentes povos e regiões onde ela está implantada. Seria desastroso para todos nós se se impusesse uma visão uniforme que não mais corresponde à realidade e se interrompesse o curso desta busca de encarnação da Igreja nas realidades e cultura locais com vistas a sua evangelização e redenção.70 Portanto, para Beozzo, a preocupação do Concílio Vaticano II em se adaptar às mudanças do mundo moderno e culturas diversas deve ser uma baliza para a Igreja, sobretudo da América Latina. Esta inquietação a respeito da imposição de uma forma única de evangelização a toda a Igreja católica é uma resposta à avaliação do então Cardeal Joseph 69 70 FRANÇA, op. cit. BEOZZO, José Oscar. Op. Cit. p 8 50 Aloisius Ratzinger (posteriormente, papa Bento XVI e papa emérito Bento XVI) ao Concílio Vaticano II e às consequências deste encontro. Tendo como mote de sua crítica a observação de que a decadência da Igreja católica se deu a partir da reivindicação de um suposto espírito de Concílio, que seria a ruptura com tradição antiprotestante e hierárquica religiosa que, segundo o Cardeal, acabou por desacreditar a Igreja católica diante da comunidade, levando a divisão entre a ala progressista – que considera o Vaticano II superado – e a ala conservadora que atribui a decadência da Igreja católica ao concílio em questão. Para Beozzo, é prejudicial à Igreja, sobretudo à da América Latina, a postura do cardeal Ratzinger a respeito do Vaticano II. Nas palavras do teólogo, o cardeal constrói suas avaliações a partir do que ocorre entre as classes médias ao redor do mundo e desconsidera a experiência religiosa dos pobres na América Latina, relevando o etnocentrismo do cardeal. José Comblin também avalia de forma negativa a visão do então cardeal ao que ocorreu com a Igreja após o concílio. Contextualizando a posição de Ratzinger para depois criticá-lo, Comblin mostra que o cardeal expressa sua aprovação aos documentos oriundos do concilio; contudo, considera os resultados desde evento desastrosos, visto que os últimos vinte anos foram desfavoráveis para Igreja católica71. A interpretação de Ratzinger de que o concílio não criou nenhum efeito positivo gera para Comblin a conclusão de que o episcopado e os papas foram incapazes de orientar a Igreja em direção às mudanças que almejavam, significando para o autor o questionamento da hierarquia católica e ocasionando o afastamento de parte dos católicos em relação à Igreja. Visões discordantes a respeito do significado do Vaticano II entre os teólogos brasileiros e Ratzinger são evidência da característica multifacetada da Igreja católica. Nas Diretrizes Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil (doravante Diretrizes), podemos vislumbrar essa disputa interpretativa. Ao mesmo tempo que vemos o Concílio ser retomado nos documentos para promover no sentido de mudanças, esse mesmo texto é referido para lembrar que há uma tradição católica que não deve ser perdida. É possível observar nos trabalhos do Concílio os grandes temas propostos por João XXIII: a abertura ao mundo moderno, a unidade dos cristãos e a Igreja dos pobres. Entre estes temas, o que recebeu maior atenção da assembleia conciliar foi a necessidade de diálogo com 71 COMBLIN, José. O silêncio de Ratzinger In O Vaticano II e a Igreja Latino-Americana. São Paulo: Edições Paulínas, 1985 51 o mundo no qual a ciência e a tecnologia eram cada vez mais presentes, e a democracia e os direitos humanos passaram ser reivindicados não apenas na Europa72. Outro ponto importante foi a perspectiva ecumênica que objetivava a unidade entre os cristãos. Essa perspectiva foi a aberta a partir do reconhecimento dos "valores salvíficos em outras confissões cristãs", como foi denominado pelo Vaticano II. Esse reconhecimento abriu espaço para o diálogo com as religiões não cristãs que, na visão das autoridades reunidas no Concílio, podem conter as "sementes do Verbo"73. A expressão "sementes do verbo" é recorrente nas hagiografias para explicar motivo pelo qual Josephina Bakhita, "natural" e "espontaneamente", teria aceitado o catolicismo. Utilizada pelo Vaticano II, esta expressão não significa somente o reconhecimento do valor das religiões não cristãs. Mais do que isso, dizer que há sementes dos valores cristãos em culturas e religiões tão diversas do catolicismo é entender que basta um contato com a palavra cristã para que brote um catolicismo "adormecido". Ou seja, durante e após o Concílio, o cristianismo reafirma possuir um dado universal e presente, em alguma medida, nas diferentes culturas espalhadas pelo mundo74. Ação evangelizadora da Igreja no Brasil Dentre os vários documentos produzidos pela CNBB, serão analisadas aqui as Diretrizes Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil, que objetivam traçar um norte para essa ação. Outro motivo que levou à escolha desses documentos é o fato de que eles apresentam algumas respostas às perguntas condutoras desta pesquisa, ou seja, entender como o culto de Santa Josephina Bakhita se insere no contexto geral da Igreja católica brasileira e da evangelização pretendida. As Diretrizes apresentam informações relevantes para entendermos como a Igreja compreende a realidade brasileira, como ela deve agir nessa realidade e quais são as prioridades nas ações propostas. Esses documentos também são importantes por se dirigirem aos bispos, às dioceses e aos leigos, o que os torna exemplares de como a Igreja tem estabelecido o diálogo com vários setores institucionais e sociais mais amplos. 72 GUTIERREZ, Gustavo. O Concílio Vaticano II na América Latina. In O Vaticano II e a Igreja LatinoAmericana. São Paulo: Edições Paulínas, 1985. 73 IGREJA CATÓLICA. Concílo Vaticano II: Mensagens, discursos e Documentos. Trad. Francisco Catão. São Paulo. Paulinas, 1998. P. 341. 74 CNBB. Diretrizes Gerais da ação pastoral da igreja no Brasil: 1991-1994. Documentos CNBB, 45. São Paulo: Edições Paulinas, 1991. 52 A partir do quadriênio 1995-1998, as Diretrizes Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil passam a ser nomeadas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil. Esta mudança – de ação pastoral para ação evangelizadora – é fruto de reflexão ocorrida em 1994 na Assembleia Geral da CNBB, que dividiu a ação da Igreja como destinada aos católicos ditos praticantes, aos católicos afastados da Igreja e também aos não católicos: a ação evangelizadora refere-se aos grupos de batizados que perderam o sentido vivo da fé, conduzindo a vida distante de Cristo e do Evangelho (...). A ação pastoral é a que se destina às comunidades cristãs que possuem sólidas e adequadas estruturas eclesiais 75. A alteração dos vocábulos no título do documento foi uma expressão da mudança dos objetivos da Assembleia Quadrienal da CNBB de 1995. Tendo isso em consideração, este documento será analisado segundo a perspectiva de que as mudanças vocabulares e as palavras utilizadas para transmitirem as mensagens pretendidas pela CNBB são sinais de que elas conectam-se a uma realidade mais concreta. A mudança, de "pastoral" para "evangelizadora", aponta para dois caminhos. Um é o que mostra a preocupação da Igreja em tentar trazer os cristãos batizados e que cumprem alguns sacramentos para uma prática católica mais efetiva; outro é o de que essa preocupação também indica a diminuição cada vez mais acelerada no número de católicos76. Embora importante, apenas a visão da CNBB não daria a dimensão de como esse movimento evangelizador se expressa na Diocese de Santos, recorte espacial privilegiado nesta pesquisa. Santos é a principal cidade da região metropolitana da Baixada Santista. É o município mais populoso e também o que apresenta maior autonomia econômica, devido, sobretudo, à existência do maior porto da América Latina em sua área. Além de Santos, fazem parte da região metropolitana os municípios de São Vicente, Guarujá, Cubatão, Bertioga, Peruíbe e Itanhaém. Santos localiza-se cerca de 60 quilômetros da capital paulista, mantendo com a área metropolitana de São Paulo uma relação econômica intensa e antiga77. Estas características fazem da Baixada Santista e, principalmente, de Santos, uma região extremamente urbanizada, cuja atividade rural é diminuta. Embora existam comunidades indígenas e caiçaras, a maioria da população concentra-se nas áreas urbanas da 75 CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: 1995-1998. Documentos CNBB 54. São Paulo: Edições Paulinas, 1995. 76 CNBB. Diretrizes Gerais da ação pastoral da igreja no Brasil: 1991-1994. Documentos CNBB 45. São Paulo: Edições Paulinas, 1991. 77 Ressaltada em autores como PRADO JR., Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos. 6ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1969. 53 cidade tornando, muitas vezes, quase imperceptível a presença dos pescadores e agricultores no cotidiano e também na economia da cidade e da região. Junto a esses documentos da CNBB, utilizei os documentos da diocese santista para, a partir deles, perceber como as ideias propostas pela CNBB foram recebidas pela comunidade católica local. Vale a pena mencionar que, mesmo após mais de vinte anos do Vaticano II, o texto das Diretrizes refere-se frequentemente ao texto do último Concílio, bem como ao espírito de renovação e a preocupação com a velocidade das mudanças da sociedade mundial. Muitos são os caminhos para analisar os documentos da CNBB. Aqui, os temas tratados terão relação com os objetivos desta pesquisa. Esses temas foram eleitos por meio da comparação entre a realidade que os documentos descrevem e a realidade da região na qual a pesquisa foi desenvolvida. Nos documentos, não há menção direta ao culto de Santa Bakhita ou a qualquer outro santo. Porém, a devoção aos santos é um tema presente nas Diretrizes. Por outro lado, o desenvolvimento desse culto ocorre em um contexto no qual a Igreja se preocupa em entender as necessidades dos brasileiros, desenvolvendo seu papel social a partir do conhecimento e das necessidades constatadas. Evidentemente, a Igreja não produziu esse documento de forma deliberada para que o culto de Santa Bakhita surgisse, entretanto, o fato de ele emergir em determinado período abre a possibilidade de relacionar a visão da Igreja com as hagiografias e a apropriação que os devotos fizeram de sua história para entendermos a forma pela qual a história de um indivíduo como Josefina Bakhita continua a fazer sentido em um contexto aparentemente tão distante daquele em que a religiosa viveu. Santa Josephina Bakhita viveu em um determinado momento e época e agiu segundo as condições que lhe foram apresentadas. Todavia ao canonizá-la, a Igreja transformou esse indivíduo real em um sujeito mítico, modificando, portanto, a forma pela qual esse sujeito histórico é entendido. Para a Igreja católica, importa o sujeito mítico e a exemplaridade que ele transmite aos devotos; mas como sujeito histórico, nos interessa pensar a constrição dos significados que fazem com que sua vida dialogue com valores dos séculos XX e XXI. Por isso, a escolha em confrontar a forma como as Diretrizes enxergam a realidade brasileira com a visão construída nas hagiografias de Santa Josephina Bakhita. 54 Objetivos das Diretrizes Os objetivos das Diretrizes são o elemento textual do qual partem todas as outras observações. No início do texto, os relatores deixam claro que as propostas de evangelização foram construídas olhando desde o objetivo. O primeiro documento refere-se ao quadriênio 1992-1995 e seu objetivo repete-se nas Diretrizes de 1995-1999: Evangelizar com renovado ardor missionário, testemunhando Jesus em comunhão fraterna, à luz evangélica opção preferencial pelos pobres para formar o Povo de Deus e participar da construção de uma sociedade justa e solidária a serviço da vida e da esperança nas diferentes culturas, a caminho do reino definitivo 78. Destaco neste trecho algumas palavras-chave para, a partir delas, traçar uma comparação com os outros objetivos dos documentos em análise. A primeira expressão é "renovado ardor missionário": como explicitei anteriormente, o Vaticano II teve entre seus principais objetivos renovar a fé católica, de forma a adequar os valores cristãos à sociedade moderna. Por isso, em 1991, a ideia de renovação se fazia presente nos documentos da CNBB, o que remete esta análise ao texto do Concílio, cuja a proposta de renovação não é a de uma mudança imediata ou radical79. A segunda expressão relevante é "opção preferencial pelos pobres". Aqui, é importante retomar outro ponto do Vaticano II e a recepção deste encontro na Igreja latino-americana: a pobreza não foi o ponto central do Concílio, mas, na América Latina, esse foi o ponto de maior impacto devido à desigualdade social vivida no continente, além do desenvolvimento da Teologia da Libertação. Por isso, é importante vermos que há mais de uma visão a respeito de como a Igreja brasileira entendeu essa expressão. Luiz Eduardo Wanderley estudou a Igreja católica brasileira popular, e toca nessa questão quanto mostra que há visões diferentes sobre o que se entende acerca da Teologia da Libertação: Na questão central da TL – pobre e opção preferencial pelos pobres, essencial também para os anti TL – surge a diferenciação entre ambos os grupos. A TL vê o pobre como dominado e religioso ao mesmo tempo. Pobre inserido na teia de relações sociais, econômicas, políticas e culturais, inclusive a dimensão religiosa. O grupo oposicionista vê no pobre primordial e predominante sua dimensão religiosa e bíblica. É como um dado solto autônomo que aparece esta dimensão religiosa nos escritos da oposição. Aquela vê a pobreza como situação historicamente concreta, corporificando a imensa maioria da população brasileira, religiosa e 78 79 CNBB. Diretrizes Gerais...1991-1994, op. cit. CNBB. Diretrizes Gerais... 1991-1994, op. cit. 55 pobre a um tempo, a questionar a sua fé. Este desloca sua atenção para considerá-lo prioritariamente na dimensão cultural e religiosa, abrindo com isso um espaço onde a hierarquia pode ser vista em sua autoridade e a evangelização sob a égide desta80. Os documentos não se posicionam contra ou favor da Teologia da Libertação mas, a partir da diferenciação posta pelo autor, podemos ver que a concepção dos documentos da CNBB aproxima-se da visão do pobre como naturalmente religioso. Em todos os documentos, descortina-se a visão de que – para além da diminuição do número de católicos, principalmente a partir de 1995 – a Igreja entende que o brasileiro é religioso, sobretudo o morador das áreas rurais. Porém, os documentos também demonstram a preocupação com a cultura urbana que, cada vez mais, oferece aos habitantes das cidades um leque maior de religiões e também o aumento do número de pessoas que se dizem sem religião ou ateias. O objetivo das diretrizes de 2003 foi assim expressado: Evangelizar a Boa Nova de Jesus Cristo, caminho para a santidade por meio do serviço, diálogo, anúncio e testemunho de comunhão evangélica, à luz da evangélica opção pelos pobres, promovendo a dignidade da pessoa, renovando a comunidade formando o povo de Deus e participando da construção de uma sociedade justa e solidária, a caminho do Reino definitivo.81 A única alteração no objetivo é observada em 2003, destacando-se mais uma vez as palavras-chave. Evangelizar não era mais um ato condicionado pela expressão "renovado ardor missionário". O que determinava o objetivo de levar a fé cristã eram os seguintes passos: diálogo, anúncio e testemunho. Essas palavras representam a forma com a qual a ação evangelizadora devia ser seguida e, no entanto, não estão expressas no objetivo. Levando em consideração que cada documento novo é o resultado da avaliação do documento anterior, o acréscimo destas palavras nos mostra que a Assembleia Geral da CNBB considerou importante destacar como esse anúncio do evangelho deveria ser transmitido. Considerado em seu todo e comparado aos anteriores, o documento passa a ter uma forma mais objetiva, na qual as Diretrizes são escritas como se fossem orientações mais rígidas. A palavra renovar, tão importante para o Concílio Vaticano II, deixa de aparecer. Na verdade, essas foram as primeiras diretrizes formuladas no século XXI e a Igreja católica, no documento anterior, teve a preocupação de anunciar que os cristãos e a Igreja deveriam se preparar para os desafios do Novo Milênio. Neste documento, a Igreja apresenta pela primeira vez seu desconforto com luta de 80 81 WANDERLEY, Luiz Eduardo. Democracia e Igreja popular. São Paulo: Educ, 2007, p. 29-30. CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: 2003-2006. Documentos CNBB 61. São Paulo: Edições Paulinas, 2003 56 setores sociais para conquistar os direitos reprodutivos, o aborto, o uso de células tronco e a eutanásia. À medida que os documentos vão sendo reescritos, referem-se a um público cada vez mais abrangente e assumem um discurso no qual entram não somente questões e palavras familiares ao Concílio da Vaticano II, como temas destinados a promover a dignidade da pessoa humana. Os aspectos mais comumente mencionados como característicos dessa modernidade são os seguintes: individualismo e emergência da subjetividade; pluralismo religioso e cultural, contradições sociais e causas estruturais. As respostas para esses desafios seriam a valorização da pessoa e da experiência subjetiva; a vivência comunitária e a diversificação de formas de expressão eclesial; a presença eclesial. A modernidade apresentada no documento não é aquela que vê apenas o desenvolvimento econômico e a individualidade como características predominantes. Os documentos apresentam a diminuição intensa da população rural e o aumento da migração como consequência da modernização da sociedade brasileira82. Pensando na região metropolitana da Baixada Santista, apresentada sumariamente, percebemos uma relação forte entre suas características e a preocupação da Igreja católica em desenvolver uma ação evangelizadora junto a um público cada vez mais urbano. Por exemplo, a atenção dada no documento às cidades é expressa da seguinte forma: "Na cidade é que se encontram em gestação os novos modos de cultura. Daí a necessidade de se buscar caminhos, na experiência e na imaginação para a pastoral urbana"83. Como foi descrito, Santos concentra sua população na área urbana, privilegiada para a ação pastoral. O fato motivador do conhecimento dos habitantes da Baixada Santista acerca da história de vida de Josephina Bakhita na década de 1990 foi o trabalho missionário das irmãs canossianas, que acompanhavam algumas famílias da área central de Santos, uma região onde pessoas vindas de outras regiões em busca de trabalho encontram o primeiro lugar para se instalarem. A canonização de Bakhita é fruto de uma ação evangelizadora entre os moradores da cidade que, no entender da Igreja, tendem a apresentar uma fé invisível. O milagre propiciador da abertura do processo de santificação teria ocorrido com uma mulher pobre, que dependia da caridade da Igreja local. Voltando aos documentos da CNBB, percebemos que uma das ações propostas pela Igreja para enfrentar os desafios impostos pela modernidade é a dedicação aos pobres, 82 83 CNBB. Diretrizes Gerais... 2003- 2006, op. cit. CNBB. Diretrizes Gerais... 2003- 2006, op. cit. 57 incluindo aí o desenvolvimento de pastorais sociais84. Nota-se que o milagre é condicionado historicamente e que os objetivos da Igreja, embora não digam textualmente que se deva canonizar ou divulgar o culto de determinado santo, criam condições para que o conhecimento de santa Bakhita chegue à população que se quer atingir. Neste caso, quem fazia o trabalho comunitário eram as irmãs canossianas que já desenvolviam um trabalho de caridade. Inculturação No documento de 1992, surge o termo inculturação, um neologismo da linguagem cristã utilizada no discurso missiológico que significa “um longo processo, que tem por sujeito o povo que acolhe o Evangelho em sua cultura e que exige dos evangelizadores uma atitude de solidariedade, mas também de discernimento ou crítica”. No conjunto do documento, o conceito não tem grande relevância, mas vai cada vez mais sendo aprofundado e apontado como caminho de conversão de católicos não praticantes, afrodescendentes e indígenas. À medida em que a CNBB percebe a realidade brasileira cada vez mais plurirreligiosa, a ideia de inculturação passa a ter maior importância. Nos documentos da CNBB e também nos da diocese de Santos, percebemos a preocupação com uma evangelização dentro de um contexto pluricultural, multirreligioso e com valores urbanos que não propiciam a vivência do catolicismo na forma como a Igreja católica propunha até então. Além disso, há a preocupação expressa textualmente com a adaptação do catolicismo ao contexto contemporâneo. Em resposta a este desafio, a Igreja católica brasileira lança mão da inculturação para entender e desenvolver uma prática litúrgica na qual a cultura do grupo foco da evangelização seja integrada ao catolicismo romano. Quando Patricia Teixeira Santos analisa a história da ação missionária dos combonianos no Brasil, destaca a proposta da inculturação como um dos legados que d. Daniele Comboni teria deixado a partir de sua proposta de evangelização da África pela África. O termo Inculturação passa a fazer parte do repertório da teologia sobretudo a partir de 1974, quando foi defino por Pedro Arrupe como “encarnação da vida e da mensagem cristã em uma área cultural concreta de modo que não somente esta experiência se exprima com os elementos próprios da cultura em questão (o que 84 CNBB. Diretrizes Gerais... 2003- 2006, op. cit. 58 ainda não seria senão uma adaptação), mas que esta mesma experiência se transforme em um princípio de inspiração, a um tempo norma e força de unificação, que transforma e recria esta cultura, encontrando-se assim na origem de uma “nova criação”.”85 No início, o termo inculturação caracterizava a ação da Igreja Católica na Ásia, África e Oceania. O conceito foi pensado para a Igreja católica como alternativa à Teologia da Libertação que, na década de 1990, passou a ter sua influência limitada, principalmente devido ao que a instituição entendeu como um excesso de crítica e também a visão marxista que essa teologia propunha. Nos documentos, o termo inculturação passa a ter mais presença a partir de 1998, o que podemos entender como o caminho escolhido pela cúpula da Igreja ao preferir a inculturação à Teologia da Libertação em sua ação evangelizadora. Porém, a escolha impôs um problema: a inculturação pode ser entendida de várias formas, como por exemplo, a concepção de Lonardo Boff86, que leva ao entendimento de que o enraizamento do evangelho em determinada cultura pode não significar a subordinação dessa cultura ao catolicismo romano. Esse problema para implantar o conceito de inculturação e o diálogo interreligioso foi destacado nos documentos como algo conduzido sem pressa, com muito conhecimento e com o objetivo de respeitar a cultura do outro. Mas, em longo prazo, a intenção era transformar essa cultura em algo que tivesse o catolicismo romano como paradigma de comportamento, gerando, no caso da prática missionária dos combonianos, uma ação voltada para a população negra. Por parte da Igreja católica, ao canonizar Comboni em 2003 e dar-lhe legitimidade institucional, a congregação destacou a obediência como característica desse santo e a Igreja o transformou em um símbolo da inculturação. Além das canossianas, os combonianos consideram a imagem de santa Josefina Bakhita, um referencial simbólico para a congregação, entretanto, pelas hagiografias, percebese que sua história de vida pode descrever como deve se dar a inculturação a partir do entendimento de Roma. Bakhita nasceu em uma cultura não cristã, foi exposta ao islamismo, pode eventualmente ter sido muçulmana, foi resgatada por um cristão, conheceu a doutrina católica a partir da convivência com os valores romanos e se tornou uma divulgadora desta fé entre seus irmãos africanos. Nesse sentido, a canonização de Bakhita em 2000 trouxe para a 85 86 ARRUPE, Pedro. Escrits pour évangelizer. Paris: DDB, 1985, p.169-170. Apud, TEIXEIRA, Faustino. Inculturação da fé e pluralismo religioso In: Rede Ecumênica Latino-Americana, P.01-08. SANTOS, Patrícia Teixeira. Op. Cit. P.53-55 59 Igreja católica em Santos, lugar do suposto milagre, um exemplo poderoso de como a cultura cristã pode ser salvadora dos negros com passado na escravidão e que, na visão da Igreja, vivem em uma prática de sincretismo que não corresponde ao catolicismo desejado por ela87. O conceito e a prática de inculturação não se referem apenas aos povos indígenas ou aos afro-brasileiros. Ele também é aplicado ao que a Igreja católica denomina de cultura urbana, pois, segundo a CNBB, "a evangelização nos seus diversos aspectos tem como critério geral a inculturação. Na América Latina hoje, a evangelização é desafiada a inculturar-se: 1) nas culturas afro-americanas e mestiças; 2) na cultura moderna e urbana"88. A inculturação como alternativa para a evangelização leva ao diálogo com outras religiões, um dos pontos propostos pelo Vaticano II. Umas das formas da Igreja católica aproximar-se da população afro-brasileira foi a criação dos grupo dos Agentes Pastorais Negros, fundados em 1983 e constituído por bispos, religiosos, padres, leigos católicos e também não católicos. O grupo surgiu com o objetivo de resgatar a identidade negra dentro da Igreja católica. Quando o documento foi formulado, a intenção era construir um diálogo principalmente com as denominações cristãs e com os judeus. Porém, no Brasil, as religiões afro-brasileiras fazem parte do universo religioso e tem grande visibilidade. Essas religiões foram formuladas a partir da experiência da diáspora africana, na qual os escravos viveram novas experiências e resistiram à escravidão – escravidão essa feita com a anuência da Igreja católica de Portugal. Desde o inicio, este trabalho indaga se o culto a santa Bakhita relaciona-se ao culto dos santos pretos introduzido no Brasil desde o período colonial. Nas hagiografias, não vemos menção a isso; então, em uma primeira abordagem, as únicas semelhanças seriam a origem africana e a cor da pele. Mas assim como a experiência das irmandades negras e o culto aos santos pretos estavam inseridos em um contexto no qual a Igreja católica visava incluir os africanos e seus desdente no cristianismo, santa Josephina Bakhita insere-se em um contexto no qual a exemplaridade de sua vida mostra alguém que não nasceu em uma cultura cristã, mas teria sido salva pelo cristianismo. Por isso, ao nos depararmos com o conceito de inculturação apresentado nas 87 88 CNBB.Diretrizes Gerais... 1991-1999. P. 208 CNBB.Diretrizes Gerais... 1991-1999. P. 210 60 Diretrizes, percebemos nesse ponto uma preocupação mais específica de enfrentamento da questão do pluralismo religioso. O conceito de inculturação traz uma forma de dialogar com culturas distantes da Igreja católica; porém, a dificuldade de tratá-lo se refere principalmente ao fato de os religiosos não conhecerem profundamente as religiões afro-brasileiras e também de esse conceito não ser formulado como prioridade dentro da própria Igreja. No entanto, é por meio da pastoral afro que vemos a Igreja tentar construir uma proposta na qual a tradição e a cultura da população negra possa fazer presente na liturgia católica e na formação de sacerdotes. Segundo Sampaio, a pastoral afro-brasileira é para a CNBB um instrumento para a eliminação do preconceito e do racismo, e principalmente de animação pastoral da comunidade afrodescendente. Tendo esse objetivo em mente, a pastoral afro-brasileira considera importante desenvolver ações que promovam a melhoria de condições de vida da população negra e resgate da tradição cultural e religiosa dos negros, na perspectiva de “recuperar a memória como uma forma de legitimar a trajetória da igreja com relação à população afrodescendente, destacando novamente os negros que viveram a graça do batismo de maneira exemplar”. Entre esses negros que, para a pastoral afro-brasileira, viveram a graça do batismo estão: Nhá Chica, São Benedito, assim como Josephina Bakhita.89 Josuel dos Santos Boaventura, padre e missionário no Quênia, escreve seu artigo como fruto da reflexão de sua dissertação de mestrado, além de ser integrante ativo das pastorais afro no e Instituto Atabaque. É um padre negro que reflete sobre a teologia negra. A relação do texto de Boaventura com o das Diretrizes se deve à preocupação de entendermos quais são as orientações da Igreja católica para evangelização, já que como foi exposto, o objetivo do trabalho também é entendermos como a Igreja age para que o culto de santa Bakhita se desenvolva na região de Santos. Nesse sentido, este documento nos mostra como as Igrejas deveriam agir, ou pelo menos orientar suas ações diante dos desafios constatados na análise feita pela CNBB. Se nas Diretrizes a preocupação com o pluralismo religioso é resolvida com a inserção da inculturação e da ação pastoral social, o teólogo citado faz uma proposta mais elaborada. Ele aprofunda seus argumentos e ensaia uma forma de a cultura africana e a história dos afro-brasileiros se inserirem em uma nova forma de catolicismo. 89 FRANÇA, Dilaine Sampaio de. Op. Cit. p.213. 61 No entanto, ao nos depararmos com um artigo de Boaventura, percebemos que a relação entre o culto a santa Bakhita e o culto aos santos pretos no período colonial que permanece até hoje tem uma relação não tão óbvia, porém perceptível. É importante apresentarmos quem é esse teólogo e entendermos o lugar de onde ele fala. O catolicismo no Brasil contempla uma especificidade desde a sua chegada: a apropriação, pelos africanos, de elementos de sua cultura de origem que, por sua vez, também incorpora aspectos da liturgia católica. Nesse contexto, pensar sobre a presença dos agentes pastorais negros e das pastorais afro também é entender as formas de luta do movimento negro durante o século XX. Boaventura afirma ser possível pertencer à religião dos orixás e deixar-se impregnar pelas mensagens de Cristo. O texto parte do pressuposto da centralidade e universalidade da mensagem cristã, encontradas também em outras religiões. A mensagem cristã encontrada de forma indireta em outras religiões foi sintetizada no Vaticano II por meio da expressão "sementes do Verbo". É importante destacar que essa mesma ideia aparece nas hagiografias quando narram a infância de Bakhita90. Para o autor, as "sementes do Verbo" em contato com a mensagem cristã levariam à plenitude as culturas que até então não tinham contato com o cristianismo. A partir disso, o autor aponta a vinda dos africanos para o Brasil, a inserção deles no cristianismo e a perseverança das culturas africanas mesmo sob o regime escravista. Com o reconhecimento de que os africanos haviam sido inseridos no cristianismo a partir da chegada ao Novo Mundo de forma imperativa, e de que o catolicismo não foi aceito passivamente pelos escravos, o autor formula perguntas para entender como o "povo negro" reagiu à imposição da mensagem cristã. As respostas foram dadas pelo teólogo, mas antes de apresentá-las, cabe fazer minhas próprias indagações às propostas do autor. O autor entende o que houve de proveitoso nessa inserção dos africanos e seus descendentes no cristianismo, mesmo lamentando que essa inserção tenha ocorrido de forma compulsória? Ao perguntar se é possível celebrar Deus de um jeito católico sem os afro-brasileiros se considerarem a parte da comunidade católica geral, ele está se referindo a inculturação? Boaventura inicia sua síntese teológica remetendo aos sistemas de linhagens e à 90 BOAVENTURA, Josuel dos Santos. "Comunidades afro e experiência cristã". Teocomunicação. Porto Alegre, 37(155): mar. 2007, p. 62. 62 devoção aos orixás. Embora situe essas duas características como oriundas do Daomé e da Nigéria, ele descreve as manifestações culturais como algo característico de toda a religiosidade dos africanos e seus descendentes no Brasil. Credita à escravidão o fim do que ele chamou de "culto das linhagens", mas afirma que o culto aos orixás sobreviveu a partir de uma experiência vivenciada na diáspora e que, por isso, esse culto nas terras brasileiras é diferente do culto africano. Sobre o catolicismo e sua relação com as religiões de matriz africana na escravidão, isso teria ocorrido devido à necessidade da Igreja em inserir os escravos na religiosidade católica, fomentando a organização dos africanos e seus descendentes em irmandades religiosas e a devoção aos santos pretos. Nessa leitura, as irmandades religiosas seriam uma forma de inserção dos escravos no catolicismo, mas tal inserção se deu de forma a segregar os negros em um espaço apartado dos brancos para vivenciar a religião. A despeito disso, os negros tiveram "fortes experiências com Deus" nesses espaços91. Ao propor uma teologia na qual os negros estão inseridos, o artigo apresenta elementos importantes para pensarmos como santa Bakhita pode se encaixar na realidade litúrgica dos católicos brasileiros e como ela pode ser apropriada pelos cristãos. Embora santa Bakhita não seja citada textualmente, ela faz parte dessa lógica na qual Cristo e Deus são negros, o sofrimento deles foi e é o sofrimento dos negros africanos trazidos para a América. O sofrimento de Bakhita, portanto, é o sofrimento de Deus e o dos negros, no caso brasileiro. As irmandades e a devoção aos santos pretos A bibliografia que trata da devoção aos santos pretos no Brasil refere-se, principalmente, aos séculos XVIII e XIX. Essas pesquisas, de modo geral, abordam os mecanismos utilizados pela Igreja católica para conversão dos africanos e seus descendentes no Brasil e como esta população entendeu e se apropriou do cristianismo a partir da experiência da diáspora. Para entender o culto a estes santos, as pesquisas estudam também o tema das irmandades de “homens pretos”, visto que estes cultos encontravam nessas irmandades o lugar para o desenvolvimento de sua prática. Demarcar o significado das irmandades de negros no Brasil é uma tarefa que exige entender como as confrarias religiosas se organizaram, como a Igreja católica enxergava estas 91 BOAVENTURA, "Comunidades afro e experiência cristã", op. cit., p. 61-87. 63 associações e quais os significados e as funções dessas irmandades para os africanos e seus descendentes. As irmandades religiosas deste período podem ser compreendidas como associações juridicamente subordinadas ao Estado e à Igreja. As confrarias religiosas deveriam ter os compromissos reconhecidos oficialmente tanto pela autoridade civil como pela eclesiástica. Os compromissos e o estatuto deveriam conter os objetivos da irmandade, explicar seu funcionamento, as obrigações de seus membros, assim como os direitos adquiridos quando um indivíduo se filiava a essas associações. As irmandades experimentaram o ponto mais alto de sua força e visibilidade na época colonial, embora ainda no Império elas fossem um importante lugar de aglutinação de africanos e seus descendentes, assim como de brancos católicos. O estímulo à criação de irmandades de negros diz respeito a uma política de evangelização da Igreja, que tem um de seus elementos fundamentais no incentivo à devoção a santos católicos. A escolha de uma estratégia específica para a conversão dos africanos e seus descendentes ocorreu devido à necessidade da instituição católica dar uma solução para o problema da catequização deste grupo, importante na época para o projeto colonial. Lucilene Reginaldo92 foca seu trabalho em uma história atlântica das irmandades religiosas negras. Para isso, a historiadora utilizou fontes que permitiram ver como essas irmandades, sobretudo as organizadas em torno de Nossa Senhora do Rosário, passaram a existir em Portugal, Angola e no Brasil. Essa abordagem nos mostra que a popularidade das confrarias negras entre os africanos não pode ser entendida apenas no âmbito da história do Brasil. As irmandades de pretos surgiram em Portugal quando, no século XV, os primeiros escravos africanos ali chegaram. O primeiro registro de uma irmandade religiosa na qual havia negros se deu em 1460: trata-se da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Mosteiro de São Domingos93. Organizada em Lisboa, esta irmandade foi criação de brancos, mas, a partir do século XVI, foi sendo ocupada por negros. Essa ocupação fez com que a irmandade ficasse divida entre os irmãos pretos e os brancos portugueses. Em 1565, os irmãos negros conseguiram a aprovação de seu primeiro compromisso pela autoridade régia. 92 REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista. São Paulo: Alameda, 2011. 93 SOARES, Mariza. “O império de Santo Elesbão na cidade do Rio de Janeiro, no século XVIII”. Topoi, Rio de Janeiro, 9(5): mar.2002, p. 59-83. 64 Outras irmandades de negros foram criadas em Lisboa e em outras regiões de Portugal, o que revela o crescimento da população africana e a importância dessa organização para os africanos e seus descendentes no Reino. As confrarias negras não ficaram restritas a Portugal e ao Brasil. No final do século XVIII, havia irmandades também em Luanda. Os responsáveis por levar a fé católica aos africanos foram, principalmente, os missionários jesuítas e franciscanos. Os jesuítas tiveram maior sucesso na região congolesa: o catolicismo foi aceito pela realeza do Congo como forma de se relacionar com o poder português, porém, não era praticado e entendido como os religiosos esperavam: A aceitação do catolicismo não significou, de modo, algum, o abandono das antigas crenças e dos costumes tradicionais. Os soberanos do Congo tinham seu próprio quadro de referências culturais, bem como interesses objetivos na adoção do cristianismo. Questões em torno da poligamia ou da prática de cultos tradicionais foram fontes inesgotáveis de conflitos entre os convertidos centro-africanos e missionários de várias épocas94. Os congoleses entenderam o cristianismo a partir da visão de mundo forjada entre eles e, por isso, mais que insucesso dos objetivos missionários dos jesuítas, a autora enxerga uma apropriação particular da fé cristã no Congo. No Brasil, as irmandades religiosas surgiram da necessidade de catequizar e controlar a população de africanos que chegava à colônia pelo comércio massivo de escravos. No século XVIII, Salvador foi uma das localidades que mais concentrou cativos e, em cada povoado ou vila, havia uma igreja e irmandades religiosas de negros e de brancos. A existência das irmandades negras foi uma realidade em toda América portuguesa. Antônia Aparecida Quintão mostra o funcionamento dessas irmandades em São Paulo durante a segunda metade do século XIX, período tratado pela autora como sendo de transição do trabalho escravo para o assalariado. Quintão analisa o funcionamento de várias irmandades e afirma que “a devoção a Nossa Senhora do Rosário supera todas as demais” 95. A historiadora explica o motivo da popularidade deste culto: relata que a devoção ao Rosário de Nossa Senhora se iniciou em Portugal no século XV, mas não relaciona a origem portuguesa à popularidade de Nossa Senhora do Rosário entre os escravos na América. Em sua pesquisa, Quintão utilizou como fontes os livros de atas de algumas 94 REGINALDO, op. cit., p. 39. QUINTÃO, Antonia Aparecida. Irmandades negras: outro espaço de luta e resistência (São Paulo, 1870-1890). São Paulo: Annablume; Fapesp, 2002, p. 38. 95 65 irmandades religiosas da cidade de São Paulo, compromissos dos irmãos, livros de receitas e despesa, de assentamento de irmãs e irmãos, inventários de bens e jornais. A autora descreve o funcionamento das irmandades, a organização econômica, as obrigações dos irmãos e os serviços prestados a seus membros. Apresenta também modificações ocorridas no catolicismo romano praticado no Brasil do século XIX, trazendo alterações ao que vinha sendo feito e, além disso, relaciona essa modificação ao fim da escravidão. Assim como Reginaldo, Quintão menciona a relação entre as tradições africanas e a organização dos africanos e descendentes dentro das irmandades, quando descreve uma das festividades promovidas por essa agremiação: a coroação do Rei do Congo. Descrevendo a festa, Quintão explica que foram africanos de origem banto os que mais aderiram às irmandades negras. Para tanto, recorreu às concepções religiosas desse povo, ao explicar sua afinidade com o catolicismo. Ambas as historiadoras relacionam a importância da presença dos povos bantos, oriundos da região central atlântica da África, que hoje corresponderia às regiões de Angola, República Democrática do Congo e Gabão. No entanto, percebemos uma diferença quanto ao que essa presença significou na análise de cada uma das autoras. O desenvolvimento dos estudos sobre a vida escrava no Brasil trouxe a questão da origem dos africanos para entender a dinâmica dessa população durante a escravidão. A ampliação desses estudos modificou e expandiu a possibilidade de análise a respeito das irmandades religiosas. É possível entender essa diferença apenas como interpretações diferentes do mesmo fenômeno. Porém, se olharmos com mais vagar, verificaremos que as fontes e a importância dos estudos africanistas no trabalho de Lucilene Reginaldo permitiam a ampliação na análise da popularidade das irmandades de Nossa Senhora do Rosário no Brasil. A contribuição dos estudos africanistas ao estudo das irmandades propiciou a revisão do conceito de etnia, que nesse contexto não é associado a um grupo estável saído de determinada região da África e chegado ao Brasil. As etnias que participavam das irmandades religiosas foram forjadas na experiência da escravidão, na qual foram criados laços de solidariedade que permitiram a aglutinação de grupos étnicos diferentes no outro lado do Atlântico. Diferentemente de Quintão, Reginaldo considera importante observar as experiências identitárias dos africanos e crioulos para o entendimento das dinâmicas existentes em uma irmandade negra: Para os homens e mulheres africanos que viveram na Bahia setecentista, a etnicidade não era vivida com a mesma “clareza” que antropólogos e cientistas sociais gostariam de encontrar. Isto porque as experiências identitárias não eram, tão somente, constituídas a priori, mas se 66 definiam no cotidiano das relações entre os africanos de várias procedências e entre eles e os outros personagens do cenário social para o qual foram transpostos. O reconhecimento das alianças entre africanos na formação das confrarias na Bahia setecentista oferece um excelente panorama dos arranjos da etnicidade96. As irmandades negras dedicadas a Nossa Senhora do Rosário foram muito populares, entretanto, outros santos foram objeto da devoção dos africanos e crioulos – caso de santa Efigênia e santo Elesbão. A devoção a estes santos foi pesquisada por Anderson José de Oliveira97, a fim de entender o culto dos santos no Brasil colonial, focando o culto a santo Elesbão e santa Efigênia. O historiador entende que a política de evangelização da Igreja tem no incentivo às devoções um dos seus elementos fundamentais, e isso auxilia no entendimento da religiosidade colonial, sendo exemplos de virtudes e atitudes orientadas a partir dos valores da Igreja católica. Os santos foram aliados importantes no controle religioso da população negra e branca do Brasil colonial. Porém, no caso específico da devoção a santo Elesbão e santa Efigênia, o incentivo deu-se pela necessidade de inclusão dos africanos na cristandade. O autor constrói seu percurso de pesquisa buscando, primeiramente, entender como a religiosidade dos africanos e as ações catequéticas da Igreja se inseriam no quadro de subordinação dos escravos. O primeiro ponto é a Ordem do Carmo e o projeto de evangelização de frei José Pereira de Santana. Os carmelitas chegaram ao Brasil em 1580, junto à armada que visava à reconquista da Paraíba sob domínio francês. A ação missionária dos carmelitas começou com a fundação de sua primeira casa em Olinda, em 1583. Em seguida, fundaram outras casas: na Bahia, em 1589; em Santos e no Rio de Janeiro, em 1590. Seguiram em expansão durante os séculos XVII e XVIII, fundando casas em Sergipe, Angra dos Reis, Mogi das Cruzes, Recife, Goiás e Vitória. Oliveira destaca a fundação dessas casas como indício do alcance e importância da ordem nesse período. Também relaciona seu crescimento ao poder que ordem também tinha no território português. Ingressar na ordem dos carmelitas era visto por muitos, no Brasil colonial, como uma forma de ascensão social. É dessa forma que o autor, ao fazer um estudo biográfico de frei José Pereira de Santana, responsável pela escrita das hagiografias de santo Elesbão e santa Efigênia, enxerga a opção do frei pela vida religiosa. Na biografia, Oliveira estuda principalmente a formação intelectual do frei, com o objetivo de entender sua intenção ao escrever as hagiografias dos 96 REGINALDO, op. cit., p. 160 OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet; Faperj, 2008. 97 67 santos pretos. O historiador associa a visão do religioso sobre a vida desses santos à formação religiosa que, inicialmente, foi feita pelos jesuítas e carmelitas. Frei José teria incorporado valores, sobretudo dos carmelitas, nas hagiografias que escreveu. Oliveira não apresenta o frei como um simples repetidor dos valores católicos e carmelitas. Ele mostra como o religioso, embora divulgasse esses valores, o fez por meio de um processo complexo, no qual sua individualidade também emerge. Individualidade esta construída a partir das várias relações estabelecida pelo religioso ao longo de sua vida e que serviram como experiência para escrever hagiografias adequadas aos objetivos catequéticos na colônia. As hagiografias de Elesbão e Efigênia foram escritas para que os padres, ao se comunicarem com os africanos, utilizassem suas histórias e a cor da pele desses santos como simbólicos para a população que se pretendia catequizar. Estes santos não foram escravos; lutaram pela Igreja e a cor de suas peles foram mencionadas, segundo autor, para que a mensagem chegasse aos africanos da forma pretendida: A cor como acidente, no entanto, deveria ser enfatizada, embora as virtudes fossem capazes de atenuar o caráter acidental da pele. Tal fato acabava por reforçar o fato de que a mensagem que se desejava passar deveria ficar bem clara para o receptor. Não se poderia ter qualquer dúvida que os santos eram “pretos”, até porque os alvos principais daquela mensagem eram os homens que possuíam aquela cor. Era importante, ademais, incutir a consciência de que a cor preta demarcava um castigo, mas que este poderia ser superado diante a aceitação de uma vida virtuosa conduzida dentro dos parâmetros da fé. Elesbão e Efigênia eram a prova cabal de que o acidente da cor não corrompia a essência humana que era divina 98. Esta situação mostra que a escolha de uma estratégia para a conversão dos africanos e seus descendentes se deu pela necessidade da instituição católica em catequizar esse grupo. A catequese tinha o intento de aumentar o número de católicos na colônia e, nesse processo, a conversão dos africanos era importante para o controle dessa população, que crescia cada vez mais. Mas a estratégia da conversão e catequese teria de enfrentar uma realidade dinâmica, sendo essa a outra dimensão da pesquisa do autor: como se deu a difusão do culto a santo Elesbão e santa Efigênia. Oliveira deu-se conta da circulação da hagiografia escrita objetivando o público letrado e, principalmente, religioso. Frei Santana contava com a difusão da história desses santos. Anderson de Oliveira faz uma análise da circulação dessas hagiografias e da ação de outro padre carmelita, Antônio de Oliveira, que simplificou a narrativa hagiográfica e criou condições para que ela circulasse entre os católicos por meio 98 OLIVEIRA, op. cit., p. 230. 68 das novenas. O sucesso do culto a santa Efigênia e santo Elesbão pode ser entendido sob os seguintes prismas: Num aspecto a difusão desta devoção entre os negros deve ser compreendida como um indício de sucesso do projeto de catequese formulado pela Ordem do Carmo. Todavia, enquanto prática estruturada, a devoção também deve ser compreendida enquanto um processo de construção de coesão de grupo que, não necessariamente, estava incluso no projeto de catequese, apontando assim para alguns dos limites desde próprio projeto 99. Mais do que uma expressão da fé católica, o culto aos santos pretos revela um todo complexo que permite ao historiador compreender uma série de injunções sociais, políticas e culturais que assinalaram o processo de colonização da América portuguesa, marcado por contradições e limites do poder, pelo trânsito e pela relação entre escravos e seus senhores, brancos e africanos. O estudo biográfico feito por Regina Célia Xavier100 revela como, mesmo em condição subalterna, os africanos e os escravos encontraram estratégias para alcançar a liberdade. Acompanhando a vida de Tito de Camargo e sua dedicação para construir a igreja de São Benedito, é possível ter outra dimensão dos estudos que se dedicam a pensar a vida dos africanos e seus descendentes no Brasil e as irmandades religiosas. Tito era africano, mas quase não viveu em seu continente de origem. Transitava entre a elite campineira devido à sua atividade de curandeiro, mas também cumpria essa mesma atividade entre os escravos, ou seja, ao mesmo tempo, participou de realidades sociais diversas. O primeiro registro de Tito de Camargo é de 1829. O africano tinha onze anos e morava na fazenda de Floriano de Camargo Penteado, um dos homens mais ricos da então Vila de São Carlos (atual Campinas). Na propriedade ocorreram muitos conflitos e revoltas e, muito provavelmente, Tito observou alguma delas. Em 1838, era casado com Joana e tido por um dos curandeiros mais respeitados da região onde vivia. Juntou dinheiro trabalhando como curandeiro, comprou sua alforria em 1865, a de sua mulher, depois dos filhos e dos netos. A identificação com são Benedito surgiu quando Tito fez uma promessa para não adoecer de varíola, pois ia a lugares infectados exercer sua ação de curandeiro. Transformara-se em curandeiro e líder religioso porque, a partir dessa promessa, passou a pedir esmolas e a liderar a construção da capela de são Benedito. A construção da igreja tornou-se uma obstinação: o 99 Idem, Ibidem, p. 323. XAVIER, Regina Célia Lima. Religiosidade e escravidão, século XIX: Mestre Tito. Porto Alegre: UFRGS, 2008. 100 69 curandeiro participava da Irmandade de São Benedito sempre criando formas de outros irmãos encamparem seu objetivo. O controle exercido pelo Estado, pelos párocos locais e a elite campineira, que exigiam a atualização constante dos vários documentos (livros de assentamento, livros de tombos ou inventário, livro de receitas e despesas), impossibilitou a irmandade de arcar com os custos dessas burocracias e por isso, em muitos momentos, ela foi declarada abandonada. Em 1877, a irmandade estava nessa situação, mas Tito continuou a recolher fundos mesmo assim. Angariou o apoio da elite, que o ajudou na arrecadação do dinheiro necessário para terminar a igreja. Tito não viu a igreja ser inaugurada, pois morreu antes da conclusão da obra. Seu enterro encheu a cidade de comoção e foi noticiado pela imprensa local. A inauguração da igreja aconteceu em 1885 e, nas décadas seguintes, ela passou a ser um espaço para a comunidade negra. Regina Xavier destacou as estratégias que ele e seus irmãos adotaram para viver em uma sociedade violenta e hierarquizada. Em que pesem as diferenças nas análises historiográficas, é possível afirmar que as irmandades negras foram espaços importantes no período colonial e durante o Império. Nelas, os africanos e seus descendentes puderam se organizar e criar formas de viver em uma sociedade escravista. As confrarias também foram um espaço concedido pela Igreja católica, mas que não foram ocupadas unicamente a partir das expectativas que a instituição religiosa formal tinha. Ao mesmo tempo em que os africanos e afro-brasileiros apropriaram-se dos valores cristãos, também inventaram uma forma própria de viver a religião, na qual a origem africana e a experiência da escravidão interferiram na prática do catolicismo por esses sujeitos. Boaventura, mesmo reconhecendo nas irmandades um lugar no qual os africanos e seus descendentes puderam preservar a religiosidade africana, entende a experiência das irmandades religiosas e o culto aos santos pretos como uma antecipação interpretativa desses africanos, que teriam entendido a mensagem de Cristo como “libertador dos povos oprimidos”. É justamente essa leitura que teria levado à resistência dentro desses espaços concedidos aos negros. Para o religioso, as irmandades religiosas eram como espaços de organização política nas quais o entendimento de Cristo passava pela construção da liberdade. Evidentemente, os membros das irmandades não anteciparam as orientações do Concílio Vaticano II, nem perceberam que o alvo principal da Igreja Católica eram os pobres e os oprimidos. Eles 70 viveram sua experiência e dela retiraram significados políticos para sua ação individual ou coletiva. A historiografia deixa ver que as irmandades religiosas foram espaços onde os africanos e seus descendentes reinventaram e reconstruíram suas identidades a partir da experiência da diáspora, e que isso não significou uma rejeição ao catolicismo nem sua completa aceitação. Os historiadores entendem as irmandades religiosas, sua difusão e importância a partir do contexto da escravidão, o que condicionava a atuação dos negros em limites nos quais a liberdade jurídica não significava a igualdade em relação aos brancos. Boaventura considera que a relevância das irmandades como antecipação do conteúdo da mensagem cristã da libertação dos oprimidos. Retomando a ideia colocada no Concílio Vaticano II e frisada pelo autor de que "as sementes do Verbo" podem existir em qualquer religião, podemos concluir que, embora não negue que as irmandades possibilitaram a manutenção e preservação dos valores religiosos africanos no Brasil, para entendermos a experiências dos africanos inseridos nas irmandades é determinante o encontro com a fé Cristã. Por isso, a luta dos escravos pela libertação é sinônimo do entendimento do deus cristão como libertador. A fim de comprovar seu argumento teológico, o autor lança mão de citações contidas em documentos da pastoral afro, sem levar em conta que esses documentos são textos católicos nos quais os negros teriam antecipado a informação de que Deus tem os oprimidos entre os grupos pelos quais mais zela. É como se a força para lutar contra a opressão viesse da compreensão de que Deus também é negro, e não da constatação das condições subalternas na qual os negros se encontrava durante a escravidão e até hoje. Seu argumento, de caráter bíblico, baseia-se na comparação entre negros e hebreus, libertados a partir da crucificação de Jesus: "Fazendo essa experiência universal e, ao mesmo tempo, particular, os afrodescendentes realizam um novo tipo de encontro com Deus, que, certamente, não é o Deus que os seus brancos senhores pregavam, legitimando a escravidão"101. Se os negros fizeram a leitura de Deus como aliado dos oprimidos, era necessário pensar sobre o Deus de seus opressores, que era o mesmo. Com este argumento, Boaventura acaba respondendo a uma de suas perguntas: como ser católico e negro nos dias atuais? É possível vivenciar uma identidade negra e católica, 101 BOAVENTURA, "Comunidades afro e experiência cristã", op. cit., p. 72. 71 primeiramente, considerando todo esse passado; em seguida, entendendo que foi não foi o catolicismo que contribuiu para a manutenção da escravidão, mas sim a leitura equivocada dos brancos a repeito da presença de outras religiões e também da população negra. Dito isso, o teólogo cria uma forma de criticar a postura da Igreja sem criticar o cristianismo e, com isso, justifica as ações da Igreja católica frente à escravidão. Toda essa argumentação que se esforça em inserir a experiência das irmandades religiosas conclui que é possível ser católico e afrodescendente nos dias atuais, já que o Concílio Vaticano II teria aberto um espaço para os movimentos sociais e permitido que a cultura dos afrobrasileiros pudesse integrar, sobretudo, a liturgia católica. Nesse sentido, a inculturação aparece como um conceito importante no trabalho de Boaventura102. Frequentando em algumas ocasiões as missas na igreja de santa Josephina Bakhita, em Santos, percebi nas celebrações comemorativas o esforço dos padres em manter presentes, na liturgia, símbolos representativos da origem e africana da santa, além de abrirem espaço para os representantes das religiões de matriz africana participem da missa. Se, para a Igreja católica, a celebração de uma missa afro é um diálogo com outras religiões e com a tradição religiosa dos negros no âmbito do catolicismo, neste trabalho se observa a apropriação da história de uma mulher negra, africana, resgatada na escravidão, tornando-se uma figura exemplar para os católicos e devotos dela. Por fim, é preciso ressaltar a diferença decisiva entre historiografia e teologia. Na historiografia, é preciso estudar o processo histórico, enquanto na teologia, os destinos e desfechos estão traçados desde o início, desde a palavra divina, cabendo ao teólogo identificar e interpretar os pontos chaves do livro sagrado. Ao historiador não são dadas essas liberdades. Não temos um oráculo e precisamos colher evidências diferentes em lugares diversos. Meu esforço, aqui, foi colher evidências a partir das perguntas que formulei: quais foram as estratégias de evangelização da Igreja em perspectiva histórica e, principalmente, no tempo recente, quando da canonização de Bakhita a partir do milagre em Santos, e as implicações dessas estratégicas em diferentes tempos históricos. Neste trabalho, os textos teológicos não são explicativos, mas reveladores dessas estratégias. O recorte dos temas aqui abordados relaciona-se com a preocupação central desta dissertação: entender o culto a Bakhita, santa missionária apesar de nunca ter tido uma 102 BOAVENTURA, "Comunidades afro e experiência cristã", op. cit., p. 83. 72 experiência missionária em vida. O foco é Santos, lugar onde teria se dado o suposto milagre. A canonização e o estímulo ao culto de Bakhita, como estratégias de evangelização, têm intenções que dialogam com a história da ação missionária da Igreja. Mas isso não significa que a intenção da Igreja é absorvida sem reflexão pelo público-alvo da evangelização. Este último tema será o objeto do terceiro capítulo. 73 CAPÍTULO 3 O culto a Santa Bakhita em Santos A história da religiosa Josephina Bakhita descrita nas hagiografias é construída, segundo as hagiografias, como uma trajetória inalterável, não há contradições em sua vida, porque o destino da personagem já está traçado de antemão, arquitetado em um texto que transmite ao leitor a exemplaridade de sua vida. Entretanto, Josephina Bakhita não é apenas fruto de ficção ou de construções retóricas. Ela foi alguém que de fato viveu, percorreu uma trajetória de vida própria e peculiar, mas ao entrar no rol dos “heróis católicos” ainda passa a viver, não apenas na memória, mas também a partir da crença de seu poder intercessor. Isso posto, ressaltarei, neste capítulo, como devotos da santa entendem a vida dessa religiosa. O grupo de pessoas entrevistadas é composto por padres e devotos e como, exposto na Apresentação desta dissertação, têm perfis diferentes; por isso, nos proporcionam visões diferentes sobre o culto a santa Josephina Bakhita. Na perspectiva de que os sentidos a respeito de sua representação são construídos a partir da relação dos entrevistados com o mundo, percebo que as hagiografias, embora importantes para divulgarem a vida de Bakhita aos religiosos, não são determinantes para os depoentes, já que alguns nem conhecem detalhes de sua vida, enquanto outros tomam a liberdade de a interpretarem sem a tutela da Igreja, deslocando os sentidos propostos pelas hagiografias de uma religiosa humilde, paciente e obediente, para outros significados que serão expostos adiante. A metodologia da História Oral foi a forma encontrada para dar andamento a dois pontos importantes desta pesquisa: compreender como devotos e religiosos entendem o culto a santa Bakhita e como este culto se difundiu na Baixada Santista. A História Oral apresenta algumas características próprias, como aponta Verena Alberti103. A autora apresenta a impossibilidade dos documentos escritos (jornais, documentos cartoriais, panfletos etc) reproduzirem o passado tal qual foi: eles contribuem para que o historiador compreenda o passado, mas não permitem a construção do fato tal qual ele foi vivido. Com uma entrevista de História Oral a lógica é a mesma; porém, segundo a 103 ALBERTI, Verena. Introdução. In: Ouvir Contar: Textos em História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. P.09-43 74 pesquisadora, há nas entrevistas de história oral: uma vivacidade, um tom especial, característico de documentos pessoais. É da experiência de um sujeito que se trata; sua narrativa acaba colorindo o passado com um valor que nos é caro: aquele que faz do homem um indivíduo único e singular em nossa história, um sujeito que efetivamente viveu – e, por isso dá vida a – as conjunturas e estruturas que de outro modo parecem tão distantes 104. Por se tratar de um documento pessoal, a entrevista traz a oportunidade de identificarmos como um indivíduo viveu ou vive, agiu ou age no contexto escolhido pelo historiador. Ela contribui para entendermos como um indivíduo atuou na realidade passada de forma a contribuir não apenas com o preenchimento das lacunas deixadas pelos documentos escritos, mas porque "privilegia a recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu"105. Não apenas as entrevistas foram utilizadas para termos a dimensão de como a recepção do culto acontece em Santos. As visões da imprensa também foram importantes para alcançarmos os objetivos propostos. Para melhor expressar minhas considerações em torno do culto a santa Bakhita, dividi o texto e as entrevistas em alguns temas que foram recorrentes nas entrevistas: canonização, difusão do culto e características de Josephina Bakhita. Canonização Wolfgang Beinert define canonizar como inscrever alguém na lista de pessoas santas. Em sentido bíblico, o santo merece ter um culto litúrgico, um dia dedicado a ele no calendário, e pode ser considerado patrono de uma Igreja ou um lugar106. A devoção a pessoas ou seres considerados santos é comum em várias religiões. Mas foi a instituição católica romana que criou procedimentos burocráticos centralizados em Roma para reconhecer a autenticidade da santidade de um cristão. A santidade desse cristão se materializa por meio da rememoração de sua existência, que pode ser vivenciada na liturgia católica. Esses procedimentos foram simplificados por João Paulo II mas, mesmo assim, ainda é um processo bastante burocrático. Chama atenção a quantidade de beatificações e canonizações feitas por esse papa. Segundo Beinert, entre 983, ano em que ocorreu a primeira canonização papal, e 1978, 104 ALBERTI, Verena. Introdução. In: Ouvir Contar: Textos em História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p.20 . 105 Idem. Ibidem,p 22 106 BEINERT, Wolfgang. ¿Qué son lós “Santos”? In: Selecciones de Teologia. Vol 42, Nº 166, Abril-Junho, 2003. http://www.seleccionesdeteologia.net/selecciones/llib/vol42/166/166_beinert.pdf, acesso em: 09/06/2014. 75 ano de início do papado de João Paulo II, houve 1553 canonização e beatificações (1260 beatos e 293 canonizações). Entre 1978 e outubro de 2002 aconteceram 59 beatificações e 53 canonizações, sendo que essas 112 causas superam o total de um século. Para o autor, isto ocorre também devido ao fato de João Paulo II considerar haver um privilégio entre as pessoas consideradas santas ou beatas: na Igreja católica, a maioria dos santos são espanhóis, franceses e italianos, por isso, suas beatificações prestigiam as Igrejas locais dos vários lugares no qual a Igreja católica está presente107. Tanto a canonização quanto a beatificação foram importantes para a visibilidade de santa Josephina Bakhita na cidade de Santos, porque foi a partir dela que o altar foi construído e também a impressa passou a noticiar fatos importantes para o culto da santa. É importante lembrar que a canonização representa como um marco não só no culto em Santos, como também em termos mundiais. Para esta pesquisa, a dimensão local é importante, já que, no Brasil, Santos ganha destaque devido ao fato de o suposto milagre ter ocorrido nesse município, destaque esse dado em duas hagiografias analisadas anteriormente. Em uma delas, há uma apresentação à edição brasileira na qual o escolhido para apresentar o livro é um cidadão morador da cidade de Santos. Na edição brasileira da hagiografia escrito por Zanini, José Carlos Nascimento fez o prefácio explicando o significado da canonização de madre Josefina Bakhita para o Brasil, para Santos e, logicamente, para ele. Nascimento apresenta a obra de Zanini como “mais uma fonte e oportunidade de reflexão sobre a santa considerada por João Paulo II um modelo neste milênio recém iniciado”108. Nascimento também se apresenta, objetivando justificar a autoridade para apresentar o texto ao leitor brasileiro: ele não é religioso, mas ressalta seu envolvimento com o trabalho das canossianas. Revela sua identidade étnica, auto declarando-se negro e afirmando que ainda hoje a população negra sofre as consequências da escravidão e do preconceito. Para ele, pouco importa se Bakhita foi escrava no Brasil, no Sudão ou na Itália: os rótulos de escrava negra fazem com que ele se identifique com a religiosa. Ele destaca a virtude mais importante: 107 108 BEINERT, Wolfgang. Op. Cit. ZANINI, Bakhita: mulher, negra, escrava, santa, p. 9. 76 (...) devemos destacar a valiosa virtude e o exemplo de Bakhita, que em nenhuma ocasião demonstra sentimento de vingança, revanchismo ou rancor contra os “brancos” que tanto a maltrataram e desprezaram, esquecendo que qualquer humano, independente de sua raça, cor, credo religioso, origem, social, etc. e merece tratamento digno 109. O trecho alinha-se à ideia de exemplo cristão ressaltada por ele no início do texto, ao mencionar que o papa considerou vida de Bakhita como exemplar para o novo milênio. Se analisássemos esse texto publicado em outro lugar, ficaria difícil fazer as afirmações que se aventaram aqui. No entanto, o lugar dele é em uma hagiografia escrita sob encomenda do Instituto Canossiano, e isso nos dá respaldo e condições de relacioná-lo com o que a Igreja pretende difundir com a vida exemplar de Bakhita. Há devotos e templos católicos em homenagem a santa Josephina Bakhita em outras cidades. Porém, para Santos, a canonização ter acontecido devido a um fato ali ocorrido dá um motivo a mais para que a localidade a veja como uma santa mais próxima. O milagre teria ocorrido, de acordo com a hagiografia escrita por Zanini110, no ano de 1992, na cidade de Santos, mesmo ano em que foi beatificada. O milagre atribuído a Bakhita foi recebido por Eva Onishi, nascida em 1931, em Iguape, como Eva da Costa. Ela casou-se com Yoziro Onishi e, em 1976, recebe a notícia que sofria de diabetes melito111. Eva não se tratou por falta de tempo e dinheiro e, com isso a doença se agravou até que, em 1991, soube que teria de amputar a perna devido a sinais de gangrena. Eva Onishi continuou o tratamento prescrito pelo médico, porém não obteve melhora. Em 24 de abril de 1992, Onishi recebeu em sua casa a visita da irmã madre Regina dos Santos, da comunidade canossiana de Santos, que fazia visitas aos doentes conhecidos da paróquia Catedral de Santos. Ao observar o estado de saúde de Eva, madre Regina sugere que a enferma frequente o grupo de oração da terceira idade em homenagem à beatificação de Bakhita. Onishi seguiu a sugestão da madre e passou a frequentar o grupo. Em uma destas reuniões, madre Regina leu o trecho da vida de Bakhita em que a religiosa sofre tortura quando ainda era escrava e, ao ouvir esse trecho, Eva teria pedido para que Bakhita a curasse 109 110 111 Idem, Ibidem. p.09, ZANINI, Bakhita: mulher negra, escrava, santa, op. cit. “O diabetes é um grupo de doenças metabólicas caracterizadas por hiperglicemia e associadas complicações, disfunções e insuficiência de vários órgãos,especialmente olhos, rins, nervos, cérebro, coração e vasos sanguíneos. Pode resultar de defeitos de secreção e/ou ação da insulina envolvendo processos patogênicos específicos, por exemplo, destruição das células beta do pâncreas (produtoras de insulina), resistência à ação da insulina, distúrbios da secreção da insulina, entre outros.” http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diabetes_mellitus.PDF. 77 da enfermidade nas pernas. Isso teria ocorrido em 27 de maio. No dia 3 de junho, Eva voltou à novena e, diante de cerca de 80 pessoas, entre elas a então conselheira geral das canossianas Maria Luísa Leggeri, que no momento falava com entusiasmo sobre Bakhita, resolve contar sua história e mostrar suas pernas curadas. O primeiro registro público que encontrei no qual o nome de Josephina Bakhita é citado é justamente esse no qual teria ocorrido o milagre. No entanto, as irmãs canossianas, congregação à qual a religiosa esteve filiada, desenvolvia um trabalho de caridade com os moradores do centro de Santos desde 1947, ano em que começaram os trabalhos da Associação Prato de Sopa. A Associação fora criada em 1943 e em 1947, foi estabelecido um convênio entre a Igreja católica e as freiras canossianas, vindas da Itália. Elas viviam no andar superior da Associação, existente até hoje. O objetivo da Associação, em princípio, era fornecer pratos de sopa à população pobre que vivia na região central de Santos. Em 1967, o convênio com a Igreja católica foi desfeito, mas as freiras canossianas continuaram seu trabalho de caridade na Catedral, encerrado em 2012, segundo o padre José Paulo. Hoje, a Associação desenvolve um trabalho de alfabetização e de assistência social. Por isso, é provável que, desde antes do milagre, Bakhita fosse conhecida das pessoas que frequentavam a catedral santista. A canonização foi um momento importante para a divulgação da história da religiosa na cidade, pois foi a partir de seu anúncio, em 1999, que a diocese passou a organizar os festejos e a ida de uma comitiva da cidade para a celebração oficial da canonização de Josephina Bakhita. Em razão da canonização, anunciada em 1999 por João Paulo II, foi construído em Santos um altar em homenagem à então beata Josephina Bakhita, em agosto 2000. Tal altar se encontra na igreja Nossa Senhora do Rosário, catedral de Santos. O altar foi doado pela família Santini (dona do jornal A Tribuna e da TV Tribuna, que retransmite o sinal da Rede Globo). A igreja Nossa Senhora do Rosário localiza-se na região central da cidade; ao seu lado fica também o principal edifício do Fórum. Dessa forma, além de localizada na região central da cidade, também fica ao lado de espaços públicos que atraem um número grande de pessoas. Foi também em uma sala dessa igreja que as canossianas faziam seu encontro de oração quando ocorreu o suposto milagre, em 1992. Observamos a dimensão simbólica assumida pela canonização de Bakhita em várias circunstâncias na sociedade santista, dimensão essa que vai além da devoção em si. 78 A primeira manifestação desta importância simbólica de Bakhita para a cidade é o projeto de lei n° 18/2001. O projeto, de autoria da ex-vereadora Suely Morgado, entrou em tramitação no dia 16 de fevereiro de 2001, meses depois da declaração oficial da canonização da religiosa. O assunto do projeto é o acréscimo, no calendário oficial do município, do dia de Santa Bakhita e das providências necessárias para que o dia da santa se torne oficial. Na apresentação do projeto ao plenário da Câmara Municipal, a vereadora justificou seu projeto informando a data da canonização e o fato de o milagre ter ocorrido em Santos, fazendo um breve resumo sobre a vida da religiosa. Pelo contido no projeto de lei, é possível afirmar que as informações foram retiradas das hagiografias; no entanto, se compararmos as duas fontes, vemos que algumas informações, sobretudo as relativas às datas, não condizem com as hagiografias. A justificativa também ressalta a ação das irmãs canossianas à frente da comissão que cuidou do processo de canonização e o texto termina ressaltando "Por esta honra que a cidade de Santos recebeu de ter acontecido aqui o milagre da santa negra Bakhita, apresento o seguinte projeto de lei (...)" No parecer ao projeto de lei, o relator reitera o fato de o milagre ter ocorrido em Santos e não faz nenhuma objeção à natureza do projeto, a não ser a respeito da dotação orçamentária que deve ser considerada para sua aprovação, propondo uma nova redação. Outra observação do relator é em relação à interferência do projeto nas decisões do poder Executivo, já que, segundo ele, a lei interferiria no artigo 2° da Constituição Federal "que estabelece o princípio da independência e harmonia dos poderes, na medida em que pretende dar atribuições ao Poder Executivo”. O projeto de lei foi aprovado pela câmara de vereadores santista em 10 de maio de 2001 e sancionado pelo prefeito Beto Mansur em 18 de maio de 2001, tornando-se a lei nº 1936. Em nenhum momento houve observação relativa ao conteúdo do texto. A preocupação foi apenas adequar o sentido do projeto à legislação vigente. Porém, o que torna interessante haver o projeto antes mesmo de existir a igreja é a importância dada pela vereadora ao fato do milagre ter acontecido em Santos. Por esse motivo, percebemos que a canonização, mesmo sendo um ato institucional católico, acaba por legitimar a apropriação de outras instituições e instâncias. O dia de Santa Bakhita instituída pelo município não é o mesmo comemorado pela Igreja católica. O município adotou o 1º de outubro, dia da canonização, e não o 8 de 79 fevereiro, dia da morte de Josephina Bakhita. Assim, por mais que a lei interesse à diocese, visto que ela destina recursos para a comemoração, para o município a data da canonização é mais relevante, talvez por esse ser o primeiro elo entre Bakhita e a cidade de Santos. Canonizar e imortalizar um indivíduo cria condições para que ele “apareça” em momentos distintos e assim continue a agir, e as instâncias do poder estatal parecem concordar com essa visão. Essa dimensão simbólica expressou-se, entre os entrevistados, na fala de padre José Paulo, padre Aluízio e do sr. Roberto. Cada um deles explica o que vem a ser a canonização. Os religiosos destacam a dimensão sagrada do ato da Igreja, mais que a política. Para padre Paulo, a canonização consta até na Mão de Deus, ele que acolheu ela muito mais tempo que nós, mas aqui em Santos foi uma grande festa, um grande dia de ação de graças para o povo santista. Através dessa celebração aqui na catedral, em 2000, primeiro de outubro foi num domingo, às nove horas. Foi um grande momento para o povo santista agradecer a Deus pela graça de Santa Bakhita. Padre Paulo inicia sua fala dizendo que Deus antecipa a própria ação da Igreja católica, porque ele acolheu Josephina Bakhita e por isso ela foi acolhida por "nós", ou seja pela sociedade, que nesta fala é a sociedade santista. Padre Paulo é indiano e, embora more há muito tempo no Brasil, apresenta um sotaque que evidencia a sua origem estrangeira. O padre apresenta-se como o responsável por cuidar da Igreja de Santa Josephina Bakhita, inaugurada em 2006. A igreja localiza-se em Vila Mathias, próximo da região central da cidade e do porto. A canonização é importante para os religiosos. Para padre José Paulo, ela dá visibilidade ao trabalho da paróquia e padre Aluízio explicou o que vem a ser a canonização para ele. A partir da observação do que chama de "ação de Deus" na vida de Bakhita, descreveu o milagre na vida dela e, consequentemente, a canonização: O sistema se identifica muito com os escravos né? Negra e de família também pobre. Quer dizer, tudo isso contribui para mostrar a ação de Deus na vida dela. Lógico que para a gente poder compreender a vida, Deus numa vida de um Santo, a gente nunca sabe se aquela pessoa nasceu para ser aquilo (...). O que comove (...) é ver a força que ela teve para poder suportar todas as contradições da vida (...) sendo escrava, vendida... me parece que foi cinco vezes que ela foi vendida para vários donos e inclusive foi marcada no seu corpo também como tipo animal que era marcado (...) o próprio Deus vai fazendo com que esses caminhos ou essas histórias das vidas das pessoas, vão chegando a um determinado ponto que vai mostrando que aquela pessoa é de Deus (...) assim aparecer pessoas que (...) pela sua intercessão e proteção foram curadas. Nós temos ai o caso da Catedral (...). Diz que uma senhora tem um problema na perna e ela veio, nessa época eu tava na Catedral, mas o milagre já tinha 80 acontecido, já há alguns anos e eu estava lá e segundo a irmã chamada Diana (...) ela trabalhava na Catedral e foi ela que justamente trabalhou na canonização da Bakhita e ela fazia santinho, ela sempre tava assim rezando, pedindo a proteção dela. Então essa irmã Diana, foi ela que trabalhou na causa da Bakhita. E a mulher apareceu lá (...) estava com uma doença na perna e foi justamente aí que ela foi rezar perto do altar lá do Santíssimo e ali ela tinha recebido o santinho da Bakhita e segundo ela (...) ela pega esse santinho e reza e passa na perna e faz a oração pedindo que a Bakhita ajudasse e intercedesse junto de Deus para ela receber a cura (...). Para a Igreja a canonização é a autorização para que um cristão seja considerado exemplar e venerável, criando para isso um procedimento jurídico. Dessa forma, a Igreja controla a devoção dos fiéis para que ela aconteça dentro do que é considerado correto. Entretanto, esse controle não é totalmente eficaz, na medida em que, ao trazer a devoção para sua vida particular, o devoto passa a conhecer no santificado uma figura com poder intercessor, identificando uma figura que merece ter sua vida conhecida e admirada. É o que vemos na entrevista do sr. Roberto, ao tratar da beatificação. Roberto é um mestre de capoeira de tradição angolana e, além de uma academia chamada Senzala, ele é dono de um comércio cuja vitrine principal tem um quadro com a imagem de Santa Bakhita. Quando perguntado sobre o significado e motivo de expô-lo, respondeu reconhecer que a beatificação de Josephina Bakhita ou a beatificação de qualquer pessoa é o reconhecimento de uma instituição que considera a vida de um indivíduo deve ser divulgada: O que é ser beatificado por uma igreja? Eu vejo assim como simplesmente um dado pela direção daquele segmento, então esse mesmo segmento julga essa pessoa na sua forma do que foi e que merece um retorno para o respeito para a vida e essa pessoa passa a modificar também com sua história. Quando você tem a felicidade de saber essa historia ou simplesmente pela modificação no andar, como já aconteceu de algumas pessoas passarem por aqui olhar e perguntar “quem é essa mulher?”. Olha ela foi uma africana da região da África do Sudão, uma pessoa sofrida, aí você começa a contar uma historia pra ela e a pessoa fala “não sei por que mas gostei dela” eu digo tá bom (risos). E isso é bom porque a pessoa passa a gostar e se identificar com um santo sem saber quem é (...) porque quando ela está numa posição de santa, ou seja, no seu gesto parado, numa posição com as mãos ou de joelho ou orando, pela posição ela é santa, mas a imagem que se tem dela é mais uma foto normal (...). Aí eu fico só analisando o comportamento dessas pessoas perante aquilo que ela está olhando e se identificando “olha, não sei porque, mas eu gostei” e é isso que acontece fala “olha, eu sonhei com essa mulher, quem é?” (...) “e onde eu posso encontrar mais sobre ela?” Olha tem a igreja dela na rua República lá do mercado (...). Outros perguntam se eu comprei e se eu quero vender essa ai e não tem como entendeu?. Entre os religiosos entrevistados, a canonização é vista primeiro por uma dimensão mística na qual há, antes do reconhecimento da Igreja católica, o reconhecimento da força divina que determinou sua trajetória de vida para que esta se unisse à trajetória da Igreja 81 católica, de modo a possibilitar que a instituição a reconhecesse como santa. Este reconhecimento institucional é a dimensão política da canonização, visto que, como relatou padre Aluízio, a partir do momento em que irmã Diana agiu institucionalmente para a canonização de Bakhita, foi preciso respeitar os trâmites criados pelos homens dessa instituição religiosa para que a vida de uma mulher africana escravizada e mais tarde tornada religiosa fizesse sentido para os religiosos e leigos da instituição. Para a cidade, a canonização significou o reconhecimento de Santos no interior da instituição católica. Como foi posto no projeto de lei da vereadora Sueli Morgado, a importância de Santa Josephina Bakthita é o fato de o suposto milagre ter acontecido na cidade. Já para Roberto, capoeirista e militante do movimento negro, a canonização significa o reconhecimento e a valorização de uma mulher negra africana por parte da Igreja católica. Por este motivo, vemos que a canonização definida por Beinert, exposta no início do capítulo, representa mais que autorização da Igreja para haver um processo litúrgico e muito mais do que a exemplaridade. À medida que a canonização recebe publicidade, ela é ressignificada a partir dos interesses de quem a ela se refere. Difusão do culto A devoção a Santa Josephina Bakhita pode ser considerada nova, tendo em vista a recente canonização da religiosa e também ao fato de Bakhita ter morrido em 1947. Lopes 112 considera que as novas devoções não são diferentes das antigas em termos litúrgicos ou corporais; porém, o pragmatismo com o qual as devoções são encaradas pelos fiéis é uma marca. Nesse âmbito, a exemplaridade não é o importante para os devotos, mas sim a necessidade de alcançar seus objetivos pessoais através da intercessão da santa. Embora afirmem quem faz o milagre é Deus, os religiosos também dizem que devem pedir pela interseção do santo, estabelecendo uma orientação dupla. Nesse sentido, o que toma corpo é essa forma pragmática de se pedir algo. Isso abre um precedente para o que observamos na apropriação no culto a santa Bakhita: os entrevistados comuns não se sentem capazes de imitá-la e nem tem coragem, e alguns nem conhecem os detalhes de sua vida, mas os devotos militantes, ao entenderem que Bakhita sobreviveu utilizando estratégias de resistência se sentem imitando esse comportamento, pois associam esse comportamento com 112 LOPES, José Rogério. Velhas devoções, Novas devoções: Mediações e mudanças no cristianismo devocional contemporâneo, In: PLAURA, Revista de estudos de religião, Vol. 01, Nº01, 2010, p.109-135. 82 o que passam em seu dia a dia. José Lopes Silvério propõe uma reflexão acerca das novas devoções, apontando quais seriam as mudanças dessas "novas devoções" em comparação às "velhas devoções", partindo da ideia de que o milagre é um fator estruturante da devoção. Para ele, as devoções tradicionais referem-se à dedicação dos santos na difusão do catolicismo. O culto ao santo se insere numa reapropriação do divino, na qual o santo atende o fiel, além de ser o mediador entre o este e o Deus. Padre Paulo afirma que o culto a Santa Bakhita não chegou a Santos, mas sim que a cidade foi o lugar criador do culto à santa: Para se falar a verdade, não se veio para Santos, Santos que criou [o] culto da Bakhita, através de Marcelo Ciano depois da beatificação dela, lá em Roma (...). Mas a sociedade foi falando da santidade Bakhita e em conversa com idosos da Catedral e em conversas desse grupo e foi falando a dona Eva que rezava pra Santa Bakhita à noite e colocava do lado do marido dela, e no dia seguinte já começou. O culto não veio para Santos, Santos criou culto no modo popular para santa Bakhita no mundo inteiro. O culto e a celebração começou por Santos, por causa do milagre que aconteceu. Eu (...) conheço o doutor Teófilo, amigo meu, e ele foi um dos médicos que foi lá comigo e então a catedral se torna a casa de Bakhita e daqui para fora de Santos, pro mundo inteiro. Eu lembro assim de dois padres conhecidos, eles trabalhavam no Sudão, chegando aqui em Santos eles me perguntaram “Padre onde fica a casa de Bakhita?”, então eles foram lá ver Bakhita e depois foram pra minha casa, então veja onde chegou a fé de Bakhita (...). Para afirmar que Santos foi o lugar de divulgação privilegiado do culto a santa Bakhita, padre Paulo escolheu contar a história deste culto a partir da beatificação, remetendose ao dia da canonização e contando o milagre de forma incompleta sem entrar em detalhes. Em um detalhe, vislumbramos porque ele não considera a beatificação em si como o início da devoção. Esta começa com o milagre pois, para ele, antes da canonização já havia culto, mas um culto popular. Ou seja, para ele, Bakhita era conhecida anteriormente nos meios religiosos, embora sua vida não fosse conhecida por um público massivo. Para justificar a sua afirmação de que Santos criou o “culto popular de Bakhita", o padre apresenta a catedral da cidade como a casa de Bakhita, contando um caso em que padres sudaneses perguntaram onde era a casa dela, criando autoridade para dizer que a casa de Bakhita não era exclusivamente o Sudão. Lembremo-nos, neste ponto, o gesto de João Paulo II ao levar a relíquia de santa Josephina Bakhita ao Sudão em 1992 e dizer que ela estaria voltando para casa. Para padre Paulo, a casa de Bakhita está em Santos, pois o milagre ocorreu ali, e por isso ali encontra-se o ponto importante na história de vida da santa. Mas ela 83 nunca viveu no Brasil, sobre o Brasil ou Santos nunca falou e, provavelmente, quando viva, dificilmente deve ter pensado sobre a existência deste país, o que nos faz refletir sobre como, mesmo morta, Bakhita continua viva e tendo novos capítulos passíveis de serem agregados à sua biografia, porque sua história continua viva através do reconhecimento de sua santidade pela Igreja e pela aceitação dos fiéis de sua santidade. Sua imagem e história de vida ganham novos significados. A importância que padre Paulo dá ao fato de Bakhita ser uma santa santista se expressa em termos práticos e não apenas religiosos: 50% das vendas são de artigos religiosos da Bakhita, então a igreja ajudou ela a ter uma casa e ela ajuda a igreja a se manter economicamente. P: Então mesmo a Catedral sendo tão antiga [e dedicada ] a Nossa Senhora do Rosário, [é] a Bakhita que mantêm? R: A Bakhita que domina, só [os] únicos dias [em] que ela não domina é da Nossa Senhora do Monte Serrat, depois a Bakhita que domina. (...) P: Como os jornais e a imprensa retratam a Bakhita? R: a imprensa local retrata como se fosse uma pessoa amiga, fazem reportagem sobre a vida dela (...). P: No Brasil, os católicos a gente vem percebendo que tem diminuído um pouco em relação aos grupos religiosos. Então o senhor acha que a Bakhita se comunica um pouco com a população, com os católicos que estão fora da igreja? R: Muita gente voltou pra igreja, os católicos volt[aram] à ativa religiosa por causa da Bakhita (...) para se sentir a fé através de uma devoção popular, e a Bakhita ajuda. Eu conheço duas pessoas que não ia mais à igreja e que voltaram à igreja. (...) P: O senhor percebe que as pessoas vem por conta de saber que o milagre foi em Santos ou por que estão tomando conhecimento por alguém e pela igreja? R: Eu não acho que é pelo milagre em Santos e sim por causa da santidade e da fé. P: Então o senhor acha que realmente é o apelo à pessoa e não porque o milagre tenha chamado à atenção? R: A maioria nem lembra, não sabe que o nome é Eva e que morou aqui em Santos, ou na dificuldade. Alguém falou que pediu a ajuda dela e não pelo milagre, que metade da população de Santa Bakhita nem sabem muito do milagre. É a figura dela. O padre mencionou o impacto financeiro que a venda de produtos religiosos sobre a santa tem na catedral de Santos. Chaveiros, livros, devocionários, terços, água benta, colares, papel de parede de celular, artigos para decoração, camisetas, filmes, documentários, quadros, fotografias e até uma excursão promovida pela catedral em 2013 estão entre os artigos vendidos em torno ao culto de Santa Bakhita. Nesse sentido, o padre consegue medir o quanto Santa Bakhita é representativa na catedral. Em outras igrejas da Baixada Santista também encontramos esses artigos religiosos e missas dedicadas a elas. O padre destaca que o único momento do ano em que não há uma grande procura aos artigos religiosos de Bakhita é na celebração de Nossa Senhora do Monte 84 Serrat, padroeira da cidade de Santos, cuja devoção vem desde o século XVI, quando o pirata inglês Thomas Cavendish invadiu e saqueou a então vila de Santos, tendo a população se refugiado no Monte Serrat. O padre também nos mostra o quanto Santa Bakhita representa para a igreja porque, segundo ele, muitos fiéis têm voltado devido ao carisma dela. Destaco ainda a contradição em relação à importância do milagre na divulgação e permanência do culto à santa. O entrevistado diz que não é por causa do milagre que as pessoas vão à igreja e conhecem Santa Bakhita, mas sim pelo carisma pessoal da santa. Ou seja, para o padre o milagre justifica o fato de Bakhita ser santista, mas não justifica o fato de haver cada vez mais fiéis dessa santa na cidade. Tal afirmação faz pensar sobre Eva Onishi. Quando iniciei a pesquisa, soube que ela havia falecido e, segundo o padre, sua família não tinha a mesma religião de Eva. Não encontrei entrevistas dela nos jornais e nem pessoas que a haviam conhecido, a não ser padre Paulo, que preferiu não contar em registro oficial os detalhes sobre a vida de Eva. Mas é possível afirmar que ela foi à cerimônia de canonização, como pode ser visto nas fotografias do evento. A investigação sobre sua doença e cura se deu alguns anos após o fato ocorrido na catedral e, anos depois, ela foi procurada pela Igreja para que o processo de canonização se iniciasse. Em 5 de fevereiro de 2002, A Tribuna publicou a matéria Devotos festejam Santa Bakhita, na qual rememora a morte da religiosa sudanesa, cinquenta e cinco anos antes. O texto divide-se em três partes. Uma com informações a respeito das novenas e missas em homenagem à religiosa no dia 8 de fevereiro, sua data celebrativa. Destaca a presença de vários padres da região que, alternadamente, celebram missa na catedral de Santos, além de uma declaração de padre José Paulo, responsável pela catedral e pela igreja de santa Bakhita, frisando que as novenas reúnem cerca de 300 pessoas e o movimento no altar dela inclui fiéis comuns, padres, religiosos e o bispo da diocese de Santos. Outra parte contém o relato de uma devota de Santa Bakhita desde antes da canonização em 1º de outubro de 2000. Trata-se de Neuma Leite Lima Sena, que teria intercedido em 1998 a santa Bakhita em favor de seu filho leucêmico e que hoje se encontra curado. Para essa dona de casa, a cura se deve à intercessão de santa Josephina Bakhita. Moradora da Praia Grande, ela declarou comparecer ao altar dedicado à santa na catedral sempre que pode. Destaca ainda que as pessoas que costumam ir à catedral fazer sua oração à 85 santa têm outras devoções, como Maria Valina, que se declarou devota de Nossa Senhora Aparecida, Santa Edwiges e Santo Expedito. A última parte do texto conta a história de Bakhita – que, na verdade, se resume a um pequeno parágrafo informando o dia de seu nascimento, que ela teria nascido em uma família abastada e ter sido escravizada. Boa parte das linhas escritas nesta parte dedicam-se a contar que o milagre para se obter a canonização de santa Josephina Bakhita ocorreu em Santos. Em 8 de fevereiro de 2005, A Tribuna publicou matéria destacando a primeira santa da cidade de Santos. Não convida os fiéis para as comemorações, mas conta resumidamente os fatos mais marcantes da história de vida dela, dando destaque ao fato de o milagre propiciador da canonização ter ocorrido em 1992 em Santos. Dois anos antes, o mesmo jornal destacara a missa celebrada em razão do aniversário da morte de Bakhita. A matéria também lembra a canonização e ressalta Santos como o lugar do milagre. Na véspera do dia da santa, em 2007, há um espaço comprado pela Diocese de Santos no jornal A Tribuna com uma propaganda da escola católica Liceu Santista e um convite da diocese para a celebração do dia de Santa Bakhita. Acompanhando anualmente o noticiário de imprensa sobre a festa de Bakhita, vemos que no dia 8 de fevereiro de 2004 A Tribuna publicou reportagem a respeito da celebração ocorrida naquele ano. Esta é uma das poucas matérias que apresentam uma fotografia na qual o destaque é uma mulher negra: ela está vestida com panos amarrados no corpo e na cabeça. Nesta matéria, relata-se o que aconteceu na missa, ressaltando ter havido na celebração uma representação afro a respeito da vida de santa Bakhita. Há também o relato Clarice Nascimento, dona de casa, contando ter visto a imagem de santa Bakhita em 1997 e pedido intercessão para seu sobrinho, preso injustamente. Segundo a dona de casa, o jovem saiu da prisão no dia seguinte ao pedido. Desde então, Clarice declara ir todo dia 8 à missa em homenagem a santa Bakhita na catedral. A imprensa assume o discurso das hagiografias e tem como ponto principal de interesse a fato de o milagre ter ocorrido em Santos. Os relatos recolhidos pelos jornalistas e publicados nos jornais sempre ressaltam as dificuldades oriundas da pobreza e a comparação entre as vidas de Eva Onishi e Josephina Bakhita. As matérias entendem que o milagre de fato ocorreu, mostrando a crença na legitimação dos processos oriundos da Igreja católica. O jornal em nenhum momento apresenta informações sobre o contexto histórico do Sudão nem informações que ajudem o leitor a entender como se deu a vida de Bakhita, limitando-se a 86 usar como fonte as informações dadas pela Igreja católica. Padre Aluízio também conta como foi o processo de canonização a partir da constatação do milagre. Enquanto ocorria o processo de canonização, ele terminava sua formação como padre; portanto, não soube de muitos detalhes sobre a mobilização na diocese para que Bakhita fosse canonizada, mas revela que o clima em torno da notícia final do papa João Paulo II era de grande expectativa: Ela [Eva Onishi] passou o santinho na perna e foi para o médico (...) para fazer a averiguação lá e ver os exames (...) ela fez o teste pra poder ser considerado milagre (...). E aí nos exames antigos constava que ela estava doente e nos novos agora já constava que ela não tinha mais aquele problema e era um problema raro, difícil né. Então (...) foi levado para Roma e tudo isso aí a irmã Diana pegou todo o processo, pegou a mulher e também foi, entraram com todas as papeladas e a partir daí então o processo foi correndo durante esse período todo (...). Aí a gente tem a determinação que João Paulo II (...), em 2000, no 1º de outubro, proclama oficialmente sua canonização. Então a Catedral fez uma festa muito bonita onde veio muita gente, todo mundo rezou e aquela coisa toda (...). Tem a oração da Bakhita também ali, e a partir daí (...) quando (...) a pessoa é canonizada, (...) também começa a aparecer a imagem dela, né, a figura da pessoa, a imagem é liberada para colocar nas igrejas (...). Não é ela que é milagrosa, ela é intercessora, então foi praticamente isso que aconteceu com a vida da Bakhita aqui na Catedra. Padre Aluízio frisa que, antes de iniciar o processo de canonização, o milagre é reconhecido pela comunidade médica, como forma de justificar que não é só a Igreja católica a reconhecer a intercessão divina na vida de alguém. Para ele, a canonização é uma processo natural na vida de um santo, porém deixa claro ser poder maior de Deus, não do santo. Entretanto, mostra como a imagem e também o contato que teve com o processo de canonização foram determinantes para a paróquia assumir a imagem e a história de santa Bakhita. Para a comunidade local, a canonização é uma autorização para que se divulgue com mais intensidade a história e a vida da santa. Por ter feito parte da comunidade da catedral de Santos, padre Aluízio explica como ali se utilizava a imagem e a história de Bakhita na catequização antes do término do processo de canonização, bem como materiais sobre sua trajetória de vida para a evangelização dos frequentadores. Os materiais que contam história de vida de Bakhita o auxiliam para contar à comunidade a história da vida dela. Por isso, fez-se necessário entender as hagiografias antes da análise das entrevistas O padre afirma que seu papel é apenas de divulgador e o aumento dos devotos depende dos milagres. Isso também pode ser visto nas entrevistas dos leigos que divulgam Josephina Bakhita para seus amigos e familiares, à medida que consideram que seus pedidos 87 à santa foram atendidos. Padre Aluízio entende que Bakhita não tinha nada, mas contava com proteção divina: Então acho que essa história de Bakhita é uma história muito comovente (...), ela não tinha nada de Deus e tinha tudo de Deus. (...) tinha (...) o padre Baldan que era o pároco e eu entrei lá [na catedral] e fui colocado com d. David (...) prá (...) ser o colaborador do pároco e (...) nisso o processo já estava correndo e eu cheguei lá em 1999 e fiquei ali trabalhando (...) e foi onde apareceu a irmã Diana e tava falando “padre, o processo da Bakhita vai sair, ela vai se tornar santa” toda feliz, mas eu, um padre novo, não tinha a noção do que representava todo isso para a vida da igreja. (...) O Baldan sempre celebrava a missa da Bakhita e (...) pra mim ainda era uma pessoa muito desconhecida (...). Então a gente ficava no caso ficava assim, né, olha que coisa, que novidade é essa, será que a Igreja vai aprovar? Será que isso verdadeiramente é milagre? Lógico que a gente não falava pras irmãs e pras pessoas (...), mas ficava pensando (...) será que isso não é uma invenção? Não é uma historia? Não é um fato? Não é um boato? (...) Mas antes a gente já celebrava algumas missas na Catedral, tinha uma missa especifica dela que a gente rezava (...), mas da minha parte eu não tinha muito conhecimento da historia dela, depois a irmã Diana que trouxe e mostrou uns livrinhos (...) [que] ela trabalhava com as crianças da catequese (...). Outra entrevistada, dona Cristina, contou que conheceu Santa Josephina Bakhita através de um patrão da casa de família onde ela trabalha. Dona Cristina é empregada doméstica (...) a mãe do meu patrão chegou falando de Santa Bakhita e contando a história, aí eu e a nora dela começamos a se interessar e eu vou na catedral, né, aí quando colocaram o quadro, né, da Tribuna santista, eu acompanho tudo dela todos os detalhes, o que sai (...). Teve ate uma entrevista que eu saí no jornal, foi numa festa que teve antes de ter a igreja, foi a última festa que teve na Catedral e a mulher veio fazer entrevista comigo e com uma amiga minha (...). Olha, nossa, nem imaginava, né, foi muito legal. (...) Então saiu no jornal por que eu lia muito A Tribuna, anunciaram que a família Santini ia fazer tipo um altar pra ela, aí (...) na inauguração eu fui. O modo como dona Cristina conheceu a santa mostra como é difícil determinar o início de algo, mas é possível vislumbrar como algo se difunde. Cristina interessou-se pelo assunto por meio de alguém que lhe contou sobre a vida de Santa Bakhita e juntou isso a informações que não sabe explicar muito bem: o altar doado para a Catedral pela família Santini, proprietária do jornal A Tribuna, o que contribuiu para que esse interesse se definisse melhor em uma forma de devoção. E não podemos deixar de lado o fato de ela ser uma mulher letrada ("eu lia muito A Tribuna"). Saber da história por um leigo, se interessar e se identificar com a história de Bakhita, foram movimentos simultâneos ao movimento da Igreja católica em colocar o altar quando a canonização havia sido anunciada, o que contribuiu para 88 que a devoção se solidificasse. A forma como dona Cristina conheceu a santa ainda nos revela a circulação entre pessoas de classes sociais diferentes. Ela é empregada doméstica, seus patrões provavelmente pertencem à classe média e a família Santini pertence à elite santista. Ao que tudo indica, a história de vida de santa Bakhita circula entre pessoas de diferentes classes sociais. De qualquer modo, sabemos que a forma como dona Cristina conheceu a santa não foi a propaganda oficial, veiculada pelas hagiografias ou pelas homilias dos padres em cerimônias católicas. Na verdade, nenhum dos depoentes soube de Josephina Bakhita por meio dos padres das paróquias que frequentam, o que me leva a cogitar que as hagiografias são mais importantes para os padres do que para os devotos. Dessa forma, vemos que o culto à santa se propaga de forma não oficial e popular. Dona Cristina compareceu no dia da missa onde o altar foi inaugurado e contou como se lembra desse momento: Nesse dia (...) como tinha muita gente eu fiquei meia que afastada, aí o padre veio e benzeu, rezou a missa (...). A família Santini tava no dia (...), eu conheço um ou outro. Eu não tenho muita amizade, conheço mais de vista. P: Então no dia de inauguração do altar, a igreja já tava com bastante gente que já conhecia a Bakhita? R: Nossa! Conhecia, ela é bem conhecida bastante, tem um promotor que o nome dele é doutor Otávio, todo mês ele tá lá. (...) Ele aparece muito na televisão, um promotor muito conhecido ele (...). (...) No dia da inauguração (...) tinha uma senhora da Praia Grande que recebeu um milagre dela (...). Então, nesse dia essa senhora estava lá, a igreja estava cheia, ela tem muitos seguidores (...). P: E nesse dia que ela apareceu na igreja o padre falou que ela recebeu a benção? R: Esse padre indiano (...), ele é muito devoto também, aí ele falou lá. Ela também, eu não tenho bem certeza, mas se não me engano o bispo tava também no dia (...). A catedral de Santos é um dos maiores templos da região e o altar de Bakhita fica logo na entrada da igreja. Cristina não ficou próxima ao altar, mas consegue relatar que o padre que estava no dia da inauguração era José Paulo, entrevistado para esta pesquisa. Ela lembra vagamente de Eva Onishi: sabe que essa mulher recebeu o milagre, mas não associa isso à sua devoção. Para Cristina, a figura de Eva Onish é importante por ela ser conhecida, mas não é relevante para a devoção da entrevistada em relação à santa. Cristina não demonstra que o fato de santa Bakhita ter sido canonizada em razão de um milagre ocorrido em Santos seja relevante. A depoente também cita a presença do promotor que, segundo ela, vai à missa todo 89 dia 8 na catedral e também é devoto de santa Bakhita, demonstrando que pessoas de outra classe social também podem ser devotas dela. Assim, Cristina e o promotor se igualam no dia da missa em homenagem à santa, modificando a intenção de Roma que, ao descrever Bakhita como humilde na verdade, dá a Cristina uma sensação de elevação social. Ela também compareceu à inauguração da igreja em Vila Matias: Fui, foi lindo, mas tinha muita gente, muita gente e a igreja é pequena e não cabia ninguém lá dentro. Mas mesmo assim eu e o Vitor [seu neto] entramos, rezamos, saímos, ficamos pro lanche (...),passamos a manhã e a tarde toda lá, só voltamos à noite e até hoje ele lembra (...), Ah, e no dia da inauguração de Santa Bakhita, eles deram folheto com a foto dela (...), tenho uma e dei uma pra nora da minha irmã, mas como [ela] agora é evangélica, jogou fora. Eu queria que ela me desse, mas ela “não, eu joguei fora”. Aí eu não, tudo bem. E meu sobrinho Elton eu falo muito de Santa Bakhita pro Elton, o filho da minha irmã eu falo muito pra ele, aí dei um, aí dei uma imagem dela, ele anda com ela na carteira. A igreja de Santa Josephina Bakhita em Vila Matias é um templo pequeno. Por isso, toda vez que há missas em sua homenagem, pessoas ficam do lado de fora e é instalado um palanque desmontável na rua, interditada para a passagem de veículos. A cena remete a uma celebração pública, aberta e popular. A minha irmã já conhecia, (...) ela frequenta mais a catedral, então ela já conhecia e eu fui casualmente, que ele tava num sai e não sai do serviço né, ai eu prometi pra ela que com o primeiro salário dele [o marido, que buscava emprego] eu ia comprar uma imagem. Isso foi num sábado e quando foi segunda-feira ele recebeu a ligação pra ir fazer a entrevista e assim que ele pegou o dinheiro fomos lá na catedral e compramos a imagem. P: Então a senhora se tornou devota da Bakhita depois que ela já tinha se tornado Santa? R: Foi, eu a conheci na catedral né, (...) eu conheci ela de uns dez anos pra cá. Eu (...) fui saber a partir desse dia, ai me tornei devota dela e peço muito pra Santa Bakhita e eu sinto que ela me dá força, às vezes eu tô assim com uns problemas e eu peço pra ela e eu acho que ela sabe entender (...). Além da divulgação boca a boca, a existência do altar é uma referência para que santa Josephina Bakhita tenha ficado conhecida. O sr. Antônio é dono de um estabelecimento comercial que carrega o nome de “Santa Bakhita Marcenaria”. Ele também conheceu a imagem da santa na catedral e, assim como dona Kika, se identificou com a santa em um momento de dificuldade pelo qual passava em sua marcenaria. Além desse estabelecimento, Antônio, junto com seu sócio Márcio (proprietário de um barco com o nome Bakhita), tem uma empresa de reformas de residências e decoração. A marcenaria foi aberta primeiro, e agora também fornece material para 90 arquitetos. Sobre o momento que conheceu a imagem de Santa Josephina Bakhita, Antônio nos conta: (...) eu falei com o meu sócio, o Márcio, (...) vamos montar a marcenaria prá ficar mais fácil, aí montamos e a marcenaria se sobressaiu mais do que pensávamos, mas até então não havia o nome de Santa Bakhita na história (...). Quando nós resolvemos (...) virar uma empresa (...), com medo de não dar certo, aí eu entrei na catedral pra fazer uma oração (...), tava até meio que apavorado, então eu fui pedir uma força (...) pra começar tudo isso e quando eu entro assim eu vejo uma foto enorme na parede da santa Bakhita e eu não conhecia até então (...). Aí eu fui ali pros bancos eu fiquei de frente a ela (...) uns vinte minutos ali parado olhando pra ela e rezei e pedi pra ela me dar forças pra que se fosse realmente acontecer que vingasse e sai de lá extremamente aliviado, sabe? (...) E depois daquele dia eu não consegui mais ficar sem orar pra ela (...) e aí falei pro Márcio "quando formos abrir aqui vai se chamar Santa Bakhita, o nome da marcenaria", e ele adorou o nome e tudo mais tanto é que hoje tem santa Bakhita no barco em tudo que a gente pode por o nome dela a gente põe, justamente para manter ela viva cada vez mais dentro da gente (...). Antônio não havia ouvido antes a história de Bakhita, também não havia lido no jornal sobre ela. Apenas foi à catedral em um momento de necessidade e se deparou com uma imagem que nunca havia visto. A partir do pedido atendido, santa Josephina Bakhita passou a fazer parte da sua vida e da vida de quem está à sua volta. Para Antônio, carregar o nome de Bakhita em seu comércio é uma mistura de amuleto de proteção, homenagem e agradecimento. Na entrada de sua marcenaria há a imagem de santa Josephina Bakhita em uma espécie de altar improvisado com um banco de madeira que imita um banco de igreja. Ele foi à inauguração da igreja de Bakhita na Vila Mathias e contribuiu com a construção do prédio com a mão de obra de sua marcenaria. Ao colocar o nome de Bakhita em sua empresa, construir um altar dedicado a ela na porta do estabelecimento e distribuir folhetos que contam a vida da santa, ele contribui para a divulgação de sua fama de milagreira. Além disso, torna seu estabelecimento um ponto de devoção, visto que ele relata que pessoas entram na loja para rezar para Bakhita. O altar se constituiu em lugar para a divulgação da imagem da santa. Antônio conheceu Bakhita indo à catedral e olhando a imagem da santa, porém a divulgação boca a boca foi a forma com a qual as pessoas entrevistadas passaram a conhecer a fama de milagreira. Um dos funcionários de Antônio também é devoto de santa Bakhita, mas nunca foi à igreja, e soube dela por intermédio de seu patrão: Santa Bakhita eu conheci por intermédio daqui [marcenaria] né, nós estávamos aqui um dia e falou “você vai fazer um móvel ai pra igreja”. Eu: Que igreja? Ai falou: “A igreja de santa Bakhita” (...). Aí eu comecei a gostar também simpatizei muito por santa Bakhita e aí sou muito devoto dela também (...). Aí eu caprichei mais ainda, eu não cheguei a ir lá (...). Aqui tem um rapaz que passa na frente, todo dia ele chega 91 aqui se ajoelha aqui da um beijo em santa Bakhita e vai embora (...). Eu já fico alegre pra caramba vendo isso ai... eu sinceramente vou falar pra você eu já senti um milagre dela (...). Era em um trabalho que eu estava fazendo e eu não conseguia sair de jeito nenhum. Eu estava até desistindo do negócio, ai eu pedi pelo amor de Deus, minha santa Bakhita me ajude e depois logo assim veio a coisa certinha pra mim fazer e isso ai eu nunca falei mais já aconteceu isso ai. Então que eu me senti tão alegre naquele dia tão contente com santa Bakhita (...) Seu Manoel nunca foi à igreja da Vila Mathias, embora tenha feito o armário que seu patrão doou à igreja. Durante a entrevista, quando perguntei se ele havia ido a igreja, ele disse que não e, após a entrevista, eu o vi exigir do patrão que o levasse até ela. Mesmo sem ir a igreja em homenagem à santa, ele tem em casa produtos religiosos com a imagem de Josephina, adquiridos em outras igrejas da região, provavelmente em São Vicente, cidade localizada próxima a Santos e local de residência de Manuel. O milagre que ele diz ter recebido da santa foi conseguir realizar um trabalho que está acostumado a fazer há muitos anos – Manuel tem 70 anos de idade. Ele também conta como o quadro que seu patrão colocou na marcenaria de fato atrai clientes e ao mesmo tempo difunde a devoção, pois há quem vá à marcenaria venerar a santa e há pessoas que se tornam clientes do estabelecimento porque confiam na imagem que ele transmite, associando seu nome ao nome de uma santa católica. Algo semelhante ocorre com a loja do Roberto, ainda que o sinal da santa não esteja no nome e sim em um quadro. Diferentemente dos outros entrevistados, Roberto não conheceu a história de Santa Bakhita em Santos, mas em uma viagem à Espanha: (...) Na Espanha, onde tem o verdadeiro Monte Serrat, fui fazer uma visita a uma montanha (...). Lá em cima tem [uma] (...) igreja (...) mas quando chegou na sala onde tem aqueles negócios, eu comecei a olhar, aí peguei um vídeo onde tem o Monte Serrat e eu vi essa fita aí comprei. Até então eu desconhecia, se a gente olhar direitinho, ela cultua a cultura dela e não a cultura da Igreja (...). Ela não cultua a roupagem originária de um povo que seja povo africano ou que seja povo europeu e aquilo me chamou a atenção e no meio de vários santos de origem branca e quando você vê o diferente, que o diferente estava sendo eu naquele momento naquela região como turista, olha tem alguma coisa aqui que me identifica, aí fui buscar. Apesar da imagem lá da Nossa Senhora do Monte Serrat, ela é escura, agora eu tô falando escura por que ela era negra (...) e aí foi que eu conheci realmente, aí trouxe essa fita e assisti a fita. Tinha um rapaz que trabalhava aqui comigo chamado Valter, não sei qual motivo ele chegou com esse quadro e colocou ali na vitrine, sabe? (...) Aí tem passado alguém e fica vendo e eu fico aqui fingindo que eu não tô vendo (...) aí vem, olha, passa, comenta com a outra ou quando passa de lá já olha, entendeu?. Roberto é um repeitado mestre de capoeira angola. Alguns de seus filhos moram no exterior e ensinam capoeira em academias europeias, e ele viaja para divulgar essa atividade. 92 Sua ligação com a cultura afro-brasileira e com a cultura africana transparece em toda a entrevista. Ele conta que conhecer o verdadeiro Monte Serrat faz sentido para os moradores de Santos e da Baixada Santista, porque há na região um morro em que fica a igreja em homenagem à padroeira da cidade, Nossa Senhora do Monte Serrat, por isso a curiosidade em conhecer o Monte Serrat catalão. Mas o que chamou sua atenção foi justamente o vídeo no qual aparece uma mulher negra, vestida com roupas que ele identificou como tipicamente africanas, em meio a um amontoado de santos brancos. Portanto, a motivação em comprar e conhecer o vídeo sobre aquela mulher tem um significado muito mais ligado ao interesse na cultura negra do que devido a uma questão de doutrina católica. Roberto define-se como homem mais ligado às religiões de matriz africana do que ao catolicismo. O entrevistado também foi sindicalista e integrante do primeiro conselho da comunidade negra de Santos. Ele não tem contato com a diocese, não frequenta a Igreja católica e colocou o quadro em sua loja porque o ganhou de presente de um funcionário. Mesmo sem uma ligação católica com Bakhita, afirma sua identidade negra e, para ele, isso é o suficiente para deixar o quadro na loja que vende produtos para a prática da capoeira. Assim como no comércio do sr. Antônio, muitas vezes Roberto é visitado por fiéis e curiosos e, ao contar sobre a vida de santa Bakhita, ele também promove seu culto. Tatiana é advogada e militante do movimento negro que atualmente preside o Conselho da Comunidade Negra de Santos, à frente do qual organizou um culto ecumênico na igreja de santa Josephina Bakhita. A esse culto comparecem religiosos de matrizes africanas, candomblecistas, umbandistas, católicos e militantes negros. Essa celebração faz parte das comemorações do Conselho há muitos anos, mas desde que a igreja de santa Josephina Bakhita foi inaugurada em Vila Mathias, a missa tem ocorrido nesse local. Anteriormente, as missas ocorriam na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, situada no centro de Santos. Ela, porém, conheceu a devoção a Bakhita por intermédio de uma tia candomblecista: (...) a primeira vez que eu ouvi falar foi em casa (...) a minha tia (...) me falou que tinha uma santa negra que ela gosta muito, que ela ia lá fazer os pedidos e me apresentou. Foi ela que me mostrou e a gente foi na igreja, e ela não é católica, e quando ela vai lá, ela vai mesmo em função da santa e, no caso dela, eu acho que a identificação dela é completamente racial, não é muito com a historia da vida dela (...). Então eu acho que a identificação é étnica mesmo, e aí no Conselho todos os presidentes associavam, isso aí tem uma igreja destinada ao culto a santa Bakhita, então eu acho interessante a gente valorizar isso e colocar essa igreja na rota da programação do Conselho pra que as pessoas negras conheçam (...). Por que o 93 catolicismo nos trás um pouco a ideia de uma branquitude um pouco incômoda, eu acho, pra comunidade negra, pra quem não tem essa compreensão se identifique um pouco até com as ideias né, mas não na origem africana nem nada disso e o presidente anterior não tinha essa preocupação (...). A advogada e militante afirma que sua tia se identificou com santa Bakhita por ser negra, mas a decisão em realizar o culto ecumênico advém da manutenção da tradição criada pelos presidentes anteriores do Conselho, um dos quais inclusive era seu pai, que resolveram trocar o local da missa para a igreja da Vila Mathias com o intuito de mostrar às pessoas que há uma santa negra na Igreja católica que a população deve conhecer. É como se a valorização de Bakhita pelos católicos ou pelos frequentadores da Igreja fosse o reconhecimento da cultura negra e do negro na cidade de Santos. Nesse sentido, o fato de ela ser africana não é importante para Tatiana, pois o importante são os negros se identificarem com ela. A inauguração da igreja em 2006 foi importante para marcar a presença do culto a santa Bakhita na cidade, assim como o altar construído em 2000. Mas, mesmo com essas sinalizações institucionais da Igreja católica local em acolher o culto à santa, o culto se difunde de forma popular. Dessa forma, a exemplaridade criada nas hagiografias não tem lugar nos depoimentos. Entre os depoentes Antônio, Cristina e Francisca, as características de Josephina Bakhita são admiradas. Para eles, importa o fato da santa atender seus pedidos. Roberto e Tatiana também admiram Bakhita e enxergam que a forma como ela viveu sua vida, mais que humildade, foi uma estratégia de resistência aos sofrimentos e às condições desfavoráveis que vivia. Por isso, a exemplaridade da santa não é exatamente o que importa: para eles, importa o reconhecimento de uma africana entre os “heróis” da Igreja católica. Quem é santa Bakhita para os entrevistados? Os entrevistados demonstraram compreender o porquê se identificam e se interessam pela santa de forma particular e a partir de suas experiências de vida individuais e do lugar que ocupam na sociedade. Quanto indagado se o fato de Bakhita ser negra e africana influenciam a recepção e difusão de seu culto, padre Paulo considera que: (...) ela foi preparada para levar o anúncio e não haverá negros e negras, não tem nada 94 disso, (...) ela é do povo de Deus, onde tem negro, branco, mulato, amarelo, todo tipo de povo, qualquer um é bem vindo e eu também não atendo nenhuma sociedade específica. Para o padre, a única característica que atrai os fiéis é a santidade dela, não considerando necessário haver um trabalho para uma comunidade específica. Uma visão diferente é mostrada pelo sr. Roberto: (...) a gente vê casos por aí que muita gente que (...) se cansa, (...) chora, quer se matar (..), mas ela teve aquelas coisas todas de ser vendida, escravizada, mas nunca levo. Um exemplo: a questão da África do Sul, a questão do apartheid, (...) duzentos mil com direito a voto onde tinha não sei quantos milhões de negros, aí se perguntavam: poxa, mas como é que a população elege um branco? Aí entra o branco, ele tem o direito do voto, o negro pra votar ele tem que falar o inglês e tem que ter um x de ganho ao ano, onde o branco tinha não sei quantas vezes direito a um salário a mais do que o negro (...). E quando houve a questão [d]o Mandela no poder, o mundo todo, o mundo branco, né, tinha medo e achava que o Mandela ia partir pra vingança e a vingança do Mandela foi totalmente diferente: foi pregar a paz, foi querer a igualdade (...). Eentão quando você compara a questão da Bakhita dentro de todo o sofrimento (...) ela não se negou em ajudar aqueles que precisavam dentro da possibilidade dela de ajudar, ela nunca negou carinho àquelas pessoas que precisavam, ela poderia colocar o passado dela como um exemplo pra poder tomar aquela posição mas não, ela não fez nada disso e aquilo foi o que levou ao reconhecimento da Igreja católica. Para explicar o significado de santa Bakhita, Roberto compara o que ela viveu e o que o regime do apartheid impôs aos negros sul-africanos. Cita o caso de pessoas que enfrentam o racismo atualmente e enxergam a vingança como a solução para a superação do racismo. O sofrimento pelo qual Bakhita passou é comparado com o sofrimento que qualquer negro passa, ou seja, a condição de ter nascido negra foi determinante para ela ter vivido o que viveu. Mandela superou o passado pregando a paz, de modo comparável a Bakhita, que não se revoltou e sempre ajudou os brancos, respondendo ao racismo sofrido. A estratégia de resistência foi justamente inserir-se no mundo que a ela era apresentado para conseguir o respeito e aceitação dos brancos que a rodeavam. Cristina conta ter conhecido os detalhes de vida de santa Josephina Bakhita através de um livro: Tiraram ela dos pais dela e levaram ela num navio, aí ela trabalhava, mas começou a sofrer muito. É isso que eu lembro, que ela ficou muito doente e que ela perdoou as pessoas que fizeram as coisas com ela, é assim que eu lembro. P: E da África a senhora lembra-se de onde que ela foi? R: Não essa parte eu não lembro não, por que eu li só por alto assim no livro, aí só essa parte que eu lembro (...). A única coisa que eu mesmo assim, perdoar todas as pessoas que fizeram maldade com ela eu não tenho coragem (...), ela perdoa tudo que fizeram com ela, tem que ser muito boa de coração. 95 Por sua resposta, podemos ver que ela mistura um pouco o que leu com aquilo que pode estar no imaginário da escravidão no Brasil, com o navio negreiro, um pouco como vemos na obra de Dagnino. Porém, mesmo não lembrando de detalhes, Cristina sabe quais os atributos da santa: perdoar e amar aqueles que lhe fizeram mal. Dona Kika disse algo semelhante: R: Eu tenho o livro, eu comprei (...). Um grande assim, que conta a historia dela (...). Me emocionei, eu achei uma história bonita e triste (...). A história dela me chama a atenção desde o princípio ao fim, ser um ser humano tão simples e aceitar tudo como ela aceitou, por que eu acho que o ser humano é um ser tão raso, tão raso pra aceitar tudo como ela aceitou, eu mesma não aceitaria um quinto de tudo aquilo que ela aceitou e ela achava que Deus tava dando aquilo pra ela porque ela tinha que passar por aquilo, sem ver família, ver outros (...). P: A senhora acha que logo no começo da história dela de ter sido tirada dos pais quando era criança e foi escravizada a senhora acha que essa parte tem a ver, por exemplo com a gente que mora no Brasil, ou a senhora nem pensou nisso? R: Olha eu acho que eu não pensei, por que eu fico tão ligada nela só nela, que eu não pensei mesmo não (...). Quando analisamos as hagiografias, observamos o esforço dos autores em descrever Bakhita como alguém paciente, passiva, obediente e bondosa. De alguma forma, esses esforço ressoa nas falas das entrevistadas, restando um entendimento do fato de Bakhita ter perdoado aqueles que a escravizaram. Assim como Cristina, dona Francisca também leu um livro e se surpreendeu com o sofrimento na vida da religiosa. Ambas não se comparam à santa: limitamse a admirá-la e a reconhecer suas características, mesmo dizendo que dificilmente se comportariam tal como a religiosa. O que podemos extrair das falas das entrevistadas é a constatação de que, por mais exemplar que seja a vida de um santo, esse exemplo nem sempre deve ser seguido à risca. O santo representa uma figura distante da realidade de seus devotos e, para viver na sociedade contemporânea, aqueles atributos não seriam adequados. Mas nem todos os que conhecem Bakhita e sua história a compreendem da mesma forma. O Sr. Roberto vê o material que conta a vida da religiosa em uma chave de leitura que permite compreender estratégias de resistências que os negros, em variadas condições e lugares, inventaram para conseguir sua liberdade ou viver melhor. Assim como Roberto, Tatiana também tem uma atuação política como ativista do movimento negro. Seu pai também é integrante desse movimento social e foi sua ação política e estímulo que a levaram a tornar-se membro do Conselho da Comunidade Negra de Santos. Mas foi como funcionária da organização negra e feminista Casa de Cultura da Mulher Negra que Tatiana conseguiu 96 formular uma visão a respeito de Bakhita, na qual o gênero e a raça constroem um sentido um pouco diverso dos demais entrevistados: (...) Santos é uma cidade extremamente tradicional, e quando a gente fala de tradicionalismo, a gente fala de branquitude, né? Então, é uma cidade tradicional, conservadora, racista... E não só a questão de movimento de vanguarda de abolicionismo, mas os principais quilombos do país aqui. Então eu acredito que isso tenha a ver mesmo com essa questão dos quilombos, nessa questão de Zumbi, nessa questão de Santos ter essa tradição negra, embora não reconhecida (..). A gente vê que teve uma historia negra na cidade, tem impactado a luta negra, então eu acho que talvez a vinda da Bakhita pra cá tenha a ver um pouco com isso, com essa resistência negra que existiu aqui, com os ideais abolicionistas que foram pioneiros aqui, né? Santos foi a primeira cidade em ter a alforria de negros ou algo do tipo, então eu acho que a vinda da Bakhita pra cá tem um pouco a ver com isso, com essa questão (...) de africanidade. Eu acho que Nossa Senhora Aparecida e São Benedito, por serem santos brasileiros, eu acho que deve ser por isso que também não se aponta a negritude deles e ela sempre na historia é reconhecida como vinda de África (...), você tem que falar que ela é preta (...). Eu acho que também tem a ver que o fato do culto dela ser feito aqui por que tem uma imagem dela dentro da Catedral, que é uma igreja (...) vista não só do ponto de vista religioso como também do ponto de vista político. É uma igreja com força, tanto que grandes comemorações são feitas ali (...). Quando perguntada a respeito da força do culto a Santa Josephina Bakhita em Santos, Tatiana demonstra desconhecer o milagre, assim como o Sr. Roberto. A aproximação com a história de Bakhita na cidade se dá em conexão com o ativismo e menos com a devoção religiosa. Isso ajuda a entender o motivo pelo qual uma santa africana tem um culto tão difundido em uma cidade brasileira. Tatiana refere-se a Santos como um paradoxo, uma contradição, porque segundo ela, é uma cidade tradicional por aspectos que ela não menciona precisamente, mas que relaciona à negritude. Entendo que isso tem a ver com o poder político e econômico na cidade estarem nas mãos de brancos, mas ao mesmo tempo, tem em seu passado uma história abolicionista, que segundo ela é pioneira no Brasil, além de ter a cultura negra reconhecida como importante – acredito que ela esteja se referindo ao Carnaval. No contexto apresentado pela advogada, São Benedito e Nossa Senhora Aparecida surgem como santos brasileiros negros. Mas, para a advogada, no Brasil, toda vez que um negro é reconhecido, ele de alguma forma esconde essa negritude. Para Tatiana, a negritude desses santos não é destacada por eles serem brasileiros (sic), mas o fato de Bakhita ter vindo da África e não ser fruto dessa nossa "cultura mestiça" não permite que sua origens negra e africana sejam escondidas. A presença do negro e sua história de luta em Santos proporcionam condições para que esse culto se difunda. Quando indagada sobre o que Bakhita significa, 97 respondeu: Ela usa a religiosidade como forma de resistência e isso é uma coisa que eu acho que é natural do negro usar (...). Quando você está ali, no sofrimento, invés de você se revoltar, é a hora de você se apegar cada vez mais com o espiritual (...). Todas as vezes que você ajuda uma pessoa, às vezes você pensa: “poxa mais eu estou numa situação tão difícil e tão complexa vou pensar no outro pra ajudar”, mas quando você ajuda o outro – e isso eu acho que é dogma de qualquer religião – por que parece que o universo conspira a favor de você e isso simplesmente assim acontece com ela, ela é mesmo uma situação desfavorável ao auxílio ao outro como forma de resistência mesmo e isso reverte em benefício próprio e isso eu me identifico bastante (...). Eu acho que tem haver com ela usar a religiosidade como forma de resistência que ela passa especialmente por ter nascido negra (...). Então, pra mim, eu acho não que foi uma escolha estratégica mas eu acho que era uma vocação normal e que usou isso como forma de resistência natural e eu me identifico com isso. Tatiana sugere que todo negro precisa adotar uma estratégia de resistência e Bakhita, ao entrar para a vida religiosa, criou a sua. A entrevistada compara sua forma de enxergar o mundo com a estratégia de resistência que Bakhita escolheu. Quando perguntada sobre o racismo, a advogada declarou que o momento em que mais se sentiu discriminada foi quando ingressou no curso de Direito na Universidade Católica. Por mais que anteriormente já tivesse vivido entre pessoas brancas com maior poder aquisitivo, foi no ensino superior que percebeu que a cor de sua pele era um fator que a fazia diferente. Por esse motivo, resolveu se dedicar aos estudos e compensar a sensação de exclusão com um ótimo desempenho acadêmico. Sua estratégia de resistência não foi denunciar ou gritar: foi provar, através dos estudos, que ela era igual aos seus colegas. A atitude de Bakhita, que em nenhum momento reagiu com agressividade aos obstáculos que foram lhe impostos, aparece nas falas de Kika, Cristina e padre Paulo como uma capacidade sem fim de perdoar; para Tatiana e Roberto, é uma forma de resistência de para combater o racismo. E para Antônio, o importante é Josephina Bakhita lhe trazer sorte e ajuda em seus negócios. Cada um dos entrevistados mostra uma motivação diferente para sua relação com o culto a santa Josephina Bakhita, sendo que entre os religiosos há uma intenção em destacar o caráter exemplar da vida da santa. Tanto padre Aluízio quanto padre José Paulo consultaram materiais nos quais haviam as principais informações a respeito da vida de Bakhita. Padre José Paulo mostrou-se orgulhoso em ter estado à frente da construção da igreja da Vila Mathias. Credita o sucesso da venda de produtos religiosos ao carisma da santa. Padre Aluízio divulga em suas missas a história de Bakhita e deixa claro que um santo é apenas um 98 intercessor e não o realizador do milagre; porém, cai em contradição quando considera que a fama da santa depende dos milagres que ela é capaz de realizar. Dona Francisca e Dona Cristina identificam-se como católicas e, além de santa Josephina Bakhita, são devotas de Nossa Senhora Aparecida. As duas conheceram a história da santa por intermédio de pessoas de sua convivência e não pela fala dos padres. Embora as duas mencionem ter lido as hagiografias de Bakhita e tenham noção de que sua vida foi sofrida, não procuram pautar suas vidas a partir das características da santa. São características que elas admiram, mas o que as motiva a serem devotas é o fato de Bakhita atendê-las em seus pedidos, estabelecendo uma relação pragmática com a santa, visto que a fé que elas tem cresce graças ao atendimento de seus pedidos. Além disso, como o sr. Antônio, dona Francisca coloca em seu bar o nome de santa Barkhita para homenageá-la e atrair clientes.Assim como Antônio, o sr. Roberto tem em seu estabelecimento comercial um quadro de Bakhita e diz que o mantém lá pra divulgar a história da santa e atrair pessoas. Além de uma estratégia comercial, ele se identifica com a santa por ela ser negra, atitude decorrente de sua trajetória como militante do movimento negro e capoeirista. Roberto também pertenceu à irmandade de São Benedito quando morou em Aracaju, estado de Sergipe, e por isso também é devoto de outro santo preto. Ainda que hoje ele sinta-se mais identificado com as religiões de matriz africana, reconhece na canonização de Bakhita pela Igreja uma forma de valorização do negro. Todavia, diferentemente da Igreja que entende as atitudes de Bakhita como sinônimo de obediência, Roberto lê a vida da religiosa na chave da resistência, para mostrar que não há mágoas entre brancos e negros. Tal visão é próxima da de Tatiana, também militante do movimento negro e candomblecista. A advogada prossegue na tradição de realizar a missa afro na Semana da Consciência Negra, porque os negros precisam saber que há uma santa negra com uma igreja na cidade. Nesta missa, muitos religiosos de matriz africana se fazem presentes e o padre que a celebra não é Paulo, mas sim padre Valfran, da paróquia São Benedito, localizada no morro santista de Nova Cintra. Segundo Tatiana, ele é o único padre que se dispõe a celebrar a missa nesses moldes. Valfran também é negro e, na missa afro que aconteceu em razão da comemoração do Dia da Consciência Negra em 2013, à qual compareci, ele deixou claro que é importante marcar os negros que fazem parte da história da Igreja católica, entre eles santa Josephina Bakhita e são Benedito. Segundo padre José Paulo a Igreja de santa Josephina Bakhita foi construída com a 99 ajuda da comunidade e também com incentivo de um projeto da CNBB de nome “Queremos Ver Jesus – Caminho, Verdade e Vida”. O objetivo do projeto, segundo o padre, é trazer comunidades pobres para a Igreja. O altar foi construído por uma família rica que, ao doá-lo, fez propaganda de si mesma em seu próprio jornal, mostrando para seus leitores que também são fieis de respeito, numa tentativa de estabelecer uma conexão com o leitor devoto. Porém, essas ações institucionais não representam a única forma de difusão do culto e da forma popular do culto a santa Josephina Bakhita. Isso acontece, talvez, em uma velocidade maior do que a Igreja pode mensurar, considerando, por exemplo, a relação observada entre santa Josephina Bakhita e Oxum, orixá cultuado nas religiões da matriz africana. Essa relação pode ser observada no jornal umbandista Umbanda Sagrada113, no qual há um artigo que celebra a existência igreja em Vila Mathias. O autor afirma que muitos dos que foram à inauguração eram umbandista e cultuavam santa Josephina Bakhita em seus altares junto com as imagens de pretos velhos, oferecendo-lhe café e flores brancas. Além disso, compara Josephina Bakhita a Oxum, descrevendo-a como “quase um Oxum encarnada”. Essa relação também foi feita por Tatiana, que identifica Josephina Bakhita com Oxum. Essa discussão ultrapassa os limites desta pesquisa, mas nos mostra que, para além do controle da Igreja, há movimentos dos devotos que, ao se apropriarem do culto, o fazem de forma própria e ressignificada. 113 http://www.colegiopenabranca.com.br/jornais/2010/Ano%2011%20Ed%20123%20Ago%202010.pdf 100 Considerações finais O culto a santa Josephina Bakhita em Santos tem em 1992, ano da beatificação da religiosa, seu marco mais importante, já que teria sido em meio às atividades de um grupo de oração após a beatificação que ocorreu o suposto milagre. No entanto, dada a ação das irmãs canossianas na cidade desde 1948, é provável que a história de vida da religiosa e sua imagem fossem conhecidas antes da década de 1990. Porém, a partir de 1992, ao ocorrer o suposto milagre e o desencadeamento do processo de canonização, efetivada em 2000, essa divulgação se acelerou, levando a construção do altar na Catedral de Santos no mesmo ano da canonização. Em 2001, foi aprovado e sancionado o projeto de lei que instituiu o dia 1º de outubro como dia de santa Josephina Bakhita, e teve início a organização da ereção da igreja a ela dedicada. A igreja foi inaugurada em 2006 e, desde então, a cidade passou a ter um lugar privilegiado para a devoção a santa Bakhita. Sua imagem não divide mais espaço com nenhum outro santo, como acontecia na catedral. A igreja de santa Josephina Bakhita não tem um padre específico: sua gestão é de responsabilidade da Catedral de Santos, e durante os finais de semana as missas são rezadas por padres de outras paróquias da cidade. O movimento negro, representado pelo Conselho da Comunidade Negra de Santos, que inclusive congrega representantes de outras religiões, sobretudo as de matriz africana, modificou o espaço da celebração religiosa realizado todos os anos durante a programação do mês da Consciência Negra. Da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, a celebração transferiu-se para a igreja de santa Josephina Bakhita a partir de 2006. A igreja de Nossa Senhora do Rosário ainda continua no mesmo espaço, mas a decisão da mudança implicou na identificação direta entre Bakhita e os negros. Nascida no Sudão e levada para a Itália, a trajetória de Josephina Bakhita foi o resultado de um contexto colonial no qual as resgatadas da escravidão faziam parte de um projeto da Igreja pelo qual Dom Daniele Comboni pensava em formular um catolicismo em que o continente africano tivesse um projeto específico. Quando Bakhita foi canonizada, João Paulo II a considerou um exemplo para a humanidade devido à sua postura humilde e adaptação ao catolicismo. Além disso, a ausência de rancor quando falava de seus algozes é tida, pela Igreja católica, como fruto da incorporação dos valores cristãos despertados na religiosa na medida em que ela entrou em 101 contato com o catolicismo. Entretanto, Josephina Bakhita é cultuada no Brasil não somente nos termos anunciados pelo Papa, mas porque existe no país devoção aos santos, dentre eles os santos pretos, como uma marca da prática católica. A hagiografia caracteriza-se como gênero circular, formulação textual na qual a vida do hagiografado é narrada para provar sua santidade. Nedste caso, as hagiografias apresentam a condição de cativa vivida por Bakhita no Sudão e a situação de escravidão doméstica vivida por ela na Itália como decorrentes de um plano místico que mais tarde iria se confirmar com a canonização da personagem. Dessa forma, o seu sofrimento foi uma provação divina que serve de exemplo para os devotos que de Bakhita, que deveriam inspirar-se em sua postura abnegada. Mas os devotos transformaram a imagem construída pela Igreja em uma visão própria na qual a humildade e a paciência cederam lugar e se uniram a outras características. Os devotos interpretam as posturas da religiosa a partir de suas próprias experiências e projetam explicações que escapam do conteúdo objetivo das hagiografias. Exemplo disso é a comparação feita pelo sr. Roberto entre santa Josephina Bakhita e Nelson Mandela. Para ele, as atitudes da sudanesa e a do ex-presidente sul-africano se equivalem: ambos, ao invés de pregarem revanche contra os brancos, escolheram perdoar. Para os propósitos âmbito deste trabalho, não importar avaliar comparativamente a complexidade das trajetórias das personagens; aqui, é suficiente dizer que se a Igreja vê humildade na postura de Bakhita, devotos como o sr. Roberto veem a mesma postura como de resistência. Junto a isso, para o mesmo informante, divulgar a imagem da santa também é apresentar à sociedade uma mulher negra cujo comportamento é considerada exemplar pela Igreja católica. Em outras palavras, o reconhecimento de uma instituição majoritariamente lideradas por brancos é a afirmação do valor de uma mulher negra e, consequentemente, de todos os negros. Outros informantes deste trabalho foram na mesma direção. Tatiana atribuiu ao comportamento da religiosa características de quem busca sair de uma condição subalterna por ter consciência de que sofre um tipo de exclusão. Ela compara as escolhas da religiosa de não confrontar diretamente seus escravizadores com as características de Oxum, orixá cultuado nas religiões de matriz africana. Segundo a advogada, para sair de uma situação, buscam-se caminhos nos quais o embate direto não é a primeira opção. 102 O jornal Umbanda Sagrada também associa a postura da religiosa a Oxum, todavia remetendo mais enfaticamente ao aspecto maternal que santa Josephina Bakhita transmitiria. De modo semelhante, o informante Antônio também atribuiu à santa características de uma figura materna, assim como as sras. Cristina e Francisca, que se sentem acolhidas pela figura da santa, além de a considerarem uma santa poderosa, a responsável por terem obtido algumas graças. Outros informantes, como o sr. Manoel, nem a história de Josephina Bakhita conhecem, o que não o impede de se definir como devoto da santa. Se para a Igreja a exemplaridade de santa Bakhita é importante para os devotos, sua história de vida nem sempre é relevante. O padrão nas entrevistas com os devotos é o conhecimento da imagem da religiosa e, posteriormente, o conhecimento da história dela. Em relação ao entendimento sobre a devoção a santa Josephina Bakhita, os padres Paulo e Aluízio destacam que o poder intercessor da religiosa não é maior que a força de Deus, o responsável por operar milagres. No entanto, parecem não interferir na forma como os devotos de suas paróquias se relacionam com a devoção a santa. Essa postura dos religiosos alinha-se à orientação da CNBB, que enxerga na devoção aos santos um aspecto positivo do catolicismo brasileiro porque, embora muitas vezes Cristo não seja venerado como uma figura central, a devoção aos santos aproxima os devotos da Igreja católica. Dessa forma, a construção do templo dedicado à religiosa em Vila Mathias também se configura como uma forma de aproximar a população santista da Igreja católica, por meio do carisma da santa. Esta ação faz parte do projeto evangelizador da CNBB, com o objetivo de desenvolver uma ação pastoral específica para o contexto social urbano, e se repetiu em outras cidades. Na região da Baixada Santista, cidades como Praia Grande e Cubatão também construíram templos em homenagem à santa. Em âmbito nacional, Josephina Bakhita está entre os heróis negros da pastoral afro, junto a São Benedito e Nhá Chica. Esta pastoral tem desenvolvido uma reflexão teológica importante sobre a inclusão do negro na Igreja e no catolicismo brasileiro. Entre essas reflexões teológicas conta-se a de padre Josuel Boaventura, que entende a resistência ocorrida nas irmandades religiosas durante a vigência da escravidão como uma forma de antecipação do que viria a ocorrer, em termos históricos, após o Concílio Vaticano II, que solidificou na Igreja as ideias de respeito às religiões não cristãs e a atenção às demandas advindas das desigualdades sociais. Essa visão apresenta-se diversa na historiografia, que entende a devoção aos santos 103 pretos a partir de um contexto no qual o catolicismo era imposto como religião e as confrarias negras eram espaços concedidos, no qual os africanos e seus descendentes viviam o catolicismo e também mantinham as tradições religiosas trazidas da África, que acabaram por formatar essas irmandades de homens pretos e, por conseguinte, a devoção aos santos. A devoção a Josephina Bakhita alimenta o catolicismo e dá condições para negros e não negros reconheceram nela motivos para venerá-la. Entretanto, essa veneração não acontece estritamente nos termos em que a Igreja teria planejado. Vemos a devoção a santa Josephina Bakhita acontecendo de forma similar a outras devoções no Brasil. Sua canonização pode trazer mais devotos, mas isso não significa a aceitação dos valores propostos pelas hagiografias, nem a vivência da religião católica de acordo com o que as autoridades do Vaticano considerariam a forma correta e ortodoxa. Assim, podemos dizer que Josephina Bakhita, ao ser beatificada e canonizada, foi alvo da intenção de controle de sua história e sua imagem, mas essa intenção não se cumpriu integralmente. Seu culto passou a ter mais força após a canonização, em 2000, e nos anos mais recentes entra em terreiros de umbanda. Sua vida também é referência para militantes do movimento negro. Seu culto não substitui outros cultos populares, mas se soma a eles, ao mesmo tempo fazendo parte do catolicismo brasileiro. 104 ANEXOS Fachada da Igreja Nossa Senhora do Rosário - Catedral de Santos Altar na Igreja Nossa Senhora do Rosário - Catedral de Santos 105 Igreja Santa Josephina Bakhita no Bairro Vila Mathias - Santos Altar de Josephina Bakhita na Igreja Santa Josephina Bakhita 106 Capela Comunidade Santa Josefina Bakita em Praia Grande - fundada em 2005 Igreja São Vicente Mártir - Matriz de São Vicente 107 Quadro de Santa Bakhita na Igreja São Vicente Mártir Fachada da Igreja Nossa Senhora do Amparo em São Vicente 108 Quadro de Josephina Bakhita na Igreja Nossa senhora do Amparo em São Vicente Fachada do comércio “Santa Bakhita Marcenaria” 109 Foto na entrada do comércio Santa Bakhita Marcenaria Missa comemorativa do dia de Santa Bakhita (08-02-2014) realizada em frente a Igreja Santa Bakhita 110 Missa comemorativa do dia de Santa Bakhita (08-02-2014) Missa festiva de Santa Bakhita dentro da Igreja Santa Josephina Bakhita (08-02-2013) 111 Imagem que é anualmente levada em procissão no dia da festa de Santa Bakhita (08-02-2012) Corrente, sal, chicote e navalha usados para representar momentos da vida de Josephina Bakhita durante a Missa festiva anual 112 Foto e objetos que representam momentos da vida de Josephina Bakhita que são ofertados durante a missa anual. Senhora Vestida de Santa Josephina Bakhita ofertando a corrente como símbolo da libertação da escravidão durante a missa anual (08-02-2013). 113 Jovens vestidas como africanas participando do ofertório durante a Missa comemorativa do dia de Santa Bakhita (08-02-2012). Padre Valfran celebrando Missa Afro na Igreja Santa Josephina Bakhita. Abaixo Oferendas feitas por religiosos de matriz africana. 114 À Esquerda cartaz da Exposição Faces Africanas Máscaras e devoções negras, no Museu de artes sacras de Santos, de 24 a 29-9-2013; à direita: Estátua da coleção particular de Dom Jacyr Francisco Braido e pintura expostas no local. 115 Da esquerda para direita- São Benedito, Santa Josephina Bakhita, Santo Antonio do Categeró e Nossa Senhora do Rosário dos Homens pretos, em exposição no Museu de Arte Sacra de Santos. 116 FONTES E BIBLIOGRAFIA FONTES IMPRESSAS BOAVENTURA, Josuel dos Santos. "Comunidades afro e experiência cristã". Teocomunicação. Porto Alegre, 37(155): mar. 2007, p. 62. CNBB. 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Uma fascinante história de liberdade. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 2000. http://www.colegiopenabranca.com.br/jornais/2010/Ano%2011%20Ed%20123%20Ago%202010.pdf 117 ENTREVISTAS Padre Aluizio Antônio da Silva Local da entrevista: Rua Maria Rita S. B. L. Pontes, 509, Humaitá São Vicente- SP Data da entrevista: 20/9/2012 Entrevista concedida a Andréia Kelly Marques Antonio de Jesus Rigonato Local da entrevista: R Frei Gaspar, 3942 - Parque São Vicente, São Vicente - SP Data da entrevista: 28/01/2014 Entrevista concedida a Andréia Kelly Marques Francisca da Silva Local da entrevista: Rua Henrique Hablas, nº 17, Vila Mathias, Santos- SP. Data da entrevista: 27/10/2012 Entrevista concedida a Andréia Kelly Marques Manoel do Nascimento Local da entrevista: R Frei Gaspar, 3942 - Parque São Vicente, São Vicente-SP Data da entrevista: 29/01/2014 Entrevista concedida a Andréia Kelly Marques Maria Cristina J. Soares Local da entrevista: Av. Minas Gerais, 519, Vila Voturuá, São Vicente-SP. Data da entrevista: 28/09/2013 Entrevista concedida a Andréia Kelly Marques Padre José Myalil Paul Local da entrevista: Praça Patriarca José Bonifácio, s/nº, Centro, Santos, SP. Data da entrevista:22/11/2012 Entrevista concedida a Andréia Kelly Marques Roberto Teles de Oliveira. Local da entrevista: Bazar Senzala.Av Sen. Feijó, 136, Centro, Santo-SP. Data da entrevista: 19/09/2012 Entrevista concedida a Andréia Kelly Marques Tatiana Evangelista Santos Local da entrevista: Av. Pedro Lessa, 1628 , Aparecida, Santos-SP Data da entrevista: 28/11/2013 Entrevista concedida a Andréia Kelly Marques 118 BIBLIOGRAFIA ALBERTI, Verena. Introdução. In: Ouvir Contar: Textos em História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. P. BAKHTIN. Mikhail. A Autobiografia e a biografia In: Estética da criação verba.trad Paulo Bezerra. 4 ed, São Paulo :Martrins fontes 2003. 138-152. BEINERT, Wolfgang. ¿Qué son lós “Santos”? In: Selecciones de Teologia. 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