SnpGua_Debates2 - Sinpro Guarulhos

Transcrição

SnpGua_Debates2 - Sinpro Guarulhos
Debates
Sinpro Guarulhos
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Sumário
Editorial........................................................................ 7
Pensamento crítico
A Lei e o Direito Autoral, o Território e o Direito à
Informação: Pirataria de Livros e Ensino Superior
no Brasil..................................................................... 19
A Autoavaliação Institucional Potencializando a
Gestão Democrática em uma Escola de Educação
Infantil....................................................................... 45
Educar Para Quê?....................................................... 59
A Proposta de “Educação Internacional Americana”
de Arthur Orlando (1910): o Currículo como
Ferramenta Ideológica da Integração Continental....... 67
Cultura e Educação: Para Além dos Muros da Escola.. 89
Aspectos Atuais do Sistema Educacional de Cuba ...... 99
Resenha
A Educação para Além do Capital,
de István Mészáros...............................................123
Leitura de arte
Qualquer Semelhança com os Fatos é Pura
Coincidência: O Realismo Crítico
em “Escola de Samba, Alegria de Viver”,
de Carlos Diegues (1962) ..........................................131
Edgar Allan Poe e “The Raven”..................................155
Litteras
Apaguem as Luzes da Idade da Razão........................167
Memorial docente
Recuperar, na Luta Direta, o Sentido da Dignidade
Política.......................................................................175
Práxis
Ainda as Reformas Neoliberais na Educação:
O Caso do Ensino Médio ........................................ 183
Um plano de previdência.......................................... 197
editorial
6
7
Editorial
Antes de apresentar o panorama de nossas preocupações centrais
nesta segunda edição da revista Debates SINPRO Guarulhos – EDUCAÇÃO, cabe documentar a importância que teve o primeiro número.
Trabalho de esforço coletivo de indivíduos nomeados ou não, mas
todos merecedores de reconhecimento. O valor da primeira edição está
presente nas manifestações espontâneas dos professores – até aqui todas
positivas –, ainda que possamos reconhecer falhas comuns para uma
investida inédita na história do SINPRO Guarulhos. Esta devolutiva
apreciadora nos dá segurança de que estamos no caminho certo ao
promover conhecimento que possa servir como arma espiritual para o
enfrentamento da realidade.
Nós do SINPRO Guarulhos reconhecemos que a classe trabalhadora
encontra-se em meio a uma multiplicidade de fatores que predominam
favoravelmente aos proprietários dos meios de produção. A título de
exemplo, vemos o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC-CUT propor
a flexibilização das relações de trabalho por meio do “Acordo Coletivo
Especial” (ACE), desconsiderando as lutas e as conquistas históricas
dos trabalhadores. Como problema particular do magistério, vemos a
implantação do EaD(Ensino à Distância), como forma de amplificação
e manipulação da força produtiva dos professores, beneficiando os ricos
proprietários das universidades privadas, já que se trata evidentemente
de precarização e intensificação das relações de trabalho, bem como da
atividade docente.
Além disso, vivemos ainda as péssimas condições de trabalho
dos professores que, com salários indignos, têm de dobrar a jornada,
aumentando consideravelmente o volume de obrigações extraclasse.
Vitimado por assédio, descumprimento das leis do trabalho, fadiga,
baixos salários, o professor sofre, por consequência, a despolitização
e o desânimo para o envolvimento com as questões de classe, a lassi-
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dão, a desesperança e o desinteresse em reagir e lutar. Prova disto é o
esforço dos professores da Rede Pública Estadual que, neste momento,
empenham-se numa paralisação que, se não mobilizou toda a categoria,
ao menos retumbou nacionalmente em 22 estados, ainda que a mídia
burguesa não tenha noticiado em nenhum de seus veículos.
Estes apontamentos, que evidenciam a existência de uma “categoria adoecida”, estão fundamentados na experiência que o SINPRO
Guarulhos tem colecionado ao longo destes 12 anos de luta junto aos
professores da Rede Particular de Educação. Conhecimento prático
que, de forma categórica, passa pela opção declarada em relação ao
seu posicionamento político, que prefere a não negociação dos direitos
mínimos do trabalho, o apoio incondicional aos movimentos populares e dos trabalhadores de uma forma geral, bem como uma postura
política claramente alinhada com o pensamento e com a prática de
esquerda.
Para além da luta cotidiana, temos encaminhado nosso projeto
de formação política e de produção do conhecimento crítico, em
parte objetivado nesta revista e também em outras atividades, como:
as Palestras dos Autores, o Grupo de Estudo Ontologia em Marx, o
Som no Sinpro, além de cursos de Formação Cultural e Artística que
o SINPRO Guarulhos desde a sua fundação teve a preocupação de
oferecer devolutivamente à classe dos trabalhadores em educação.
Ocorre que, ainda precisamos amadurecer um movimento acerca
do fundamental papel político dos professores junto ao SINPRO
Guarulhos. Parte dos trabalhadores ainda parece temer sua filiação ao
sindicato, muito embora este tenha oferecido conquistas significativas
aos professores da Rede Privada desta cidade.
Como incondicionais defensores dos que penam pelas injustiças
postas no mundo do trabalho, face às predileções da classe dos patrões
– em geral associados em seus sindicatos patronais – e de conquistas a
serem realizadas rumo à emancipação dos trabalhadores – algo bastante
evidente nas ações, bem como nas posturas políticas e filiações especificas de nossos diretores, ainda que diversas, mas sempre de interesses
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humanista e de esquerda – cabe neste editorial recuperar em essência
dois artigos publicados por Friedrich Engels no jornal sindical inglês
Labour Standard, de 1881, acerca dos apontamentos que fez quanto ao
papel do sindicato para que venhamos a avaliar e dimensionar no presente, com vistas a um futuro próximo, a importância da participação
ativa dos professores associados.
No primeiro dos dois artigos, designadamente Os Sindicatos (I),
iniciou considerando o modo como as associações dos trabalhadores
se colocavam em contraposição aos patrões para forçá-los a praticar
a “lei econômica do salário”. Tema ainda importante para a categoria
laboriosa, já que, no tocante ao mundo do trabalho, a pauta política
está comprometida em promover, ainda que por meio de subterfúgios,
a malfadada reforma sindical. Não são poucas as iniciativas de parlamentares que consideram a CLT um documento obsoleto e demasiado
oneroso para os patrões.
Engels se propõe à resolução do seguinte problema: “…como podem
os capitalistas baixar o salário, se o salário médio está regulamentado
por uma lei econômica específica e bem determinada?” Clarifica-se o
dilema diante da inquestionável existência da lei econômica dos salários
(ENGELS, 1980, p. 133).
No caso inglês, tratava-se não de um salário mínimo, mas médio
e que gerava certa flexibilidade, já que neste caso o arrocho significava
uma redução direta e correspondia a uma adaptação do trabalhador a
uma condição de vida materialmente mais simplificada. Outra forma
de elevar o acúmulo de capital sobre o trabalhador seria, de modo
indireto, aumentando a carga horária da jornada diária de trabalho ou
ainda pela intensificação do trabalho e ampliação das forças produtivas
sem que houvesse elevação salarial.
Estas práticas são estimuladas pela competitividade entre os proprietários dos meios de produção. Uma forma de baixar os preços sem
perder excessivamente os lucros é rebaixar salários. A necessidade de
lucros elevados é de fato imperativa ao processo de acúmulo. O próprio
desenvolvimento de tecnologias está intimamente relacionado com
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o processo de acumulação indireta do capital: ampliação das forças
produtivas com manutenção salarial ou redução mediante ao processo
metabólico específico pela “desespecialização” dos trabalhadores.
Os trabalhadores que não dispõem de organização também não
oferecem resistência contra este aviltamento. Engels explica que, nas
indústrias em que os operários não demonstram organização de classe,
os salários tendem a baixar, bem como o volume de trabalho expresso
em horas ou intensidade tende a elevar-se. Este processo se acelera com
a depressão na concorrência ou diminui na propriedade da mesma.
Assim o trabalhador segue acostumando-se com níveis de vida cada
vez mais miseráveis.
Realidade não distinta para a classe dos professores em face do que
se pode chamar de “Indústria da Educação”, evidenciada de imediato
nas universidades privadas que se multiplicaram com cursos de curta
duração, parcialmente presencial, promovendo “salas virtuais” com
o ensino à distância – “salas” que chegam a ter bem mais que 1000
alunos em alguns casos, sem que isto signifique retorno em valor substancial acrescido à hora/aula do professor – a hora/digital que resulta
em aumento de trabalho doméstico do professor e substituição de força
de trabalho nas secretarias – estes trabalhadores são simplesmente
dispensados, gerando desemprego e consequente acúmulo de capital.
Estas instituições seguem tornando-se verdadeiras fábricas de diplomas
e, via de regra, com subsídios do governo, seja por meio do PROUNI,
do FIES, ou ainda através de programas de anistia de dívidas como é o
recente caso do PROIFES.
Ratifica-se aqui a forma cruel com a qual se evidencia a luta de
classes. Se, de uma parte os sindicatos são legalizados historicamente
desde 1824 na Inglaterra e, de uma forma muito peculiar e retardatária
no Brasil desde 1943, de outra parte os capitalistas sempre aparecem
organizadamente sem a formalidade estatutária, cargos etc., isto porque
a característica de manter relações sociais substitui a necessidade de
organismo associativo, a não ser nos casos em que defendem um ramo
da produção específico: O sistema S, e as associações patronais da edu-
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cação no estado de São Paulo, nomeadamente, SIEEESP, SEMESP,
além da AEG, no caso particular dos patrões da educação privada em
Guarulhos.
Em oposição, os trabalhadores precisam construir uma organização
que seja forte, estatutária e com responsabilidades delegadas a funcionários. Desde sua origem no século XIX com o reconhecimento legal
de sua associação, os operários se converteram em força política. Nas
palavras de Engels: “As massas, antes sem força por estar dividida em
frações opostas, já não eram importantes” (ENGELS, 1980, p.134).
Como consequência de tal associação, formou-se um caixa de
expressiva soma que deveria servir à resistência, fato que alterou por
completo a condição de luta da classe produtora. Ao proprietário
tornou-se complicado baixar os salários ou elevar o número de horas de
trabalho exigidas ao produtor. Assim, é desde as origens o ódio despendido pela classe capitalista contra os sindicatos. Não é de espantar que
a classe dos proprietários tenha expressado sua insatisfação e declarado
ter sido lesada em direito e propriedade. De certo que no caso brasileiro
a fragmentação do sindicato dos trabalhadores em categorias, bem
como o dispositivo legal de sua institucionalidade funcional arcando
com as despesas do setor público (aparelhamento estatal) que cuida da
mediação das tensões, próprias à luta de classes em nível executivo e
judiciário (Ministério e Justiça do Trabalho), trouxe perdas significativas a toda massa dos que, para sobreviver, não possuem mais que a
própria força de trabalho disposta como mercadoria.
Engels bem observou o amadurecimento da classe trabalhadora
após décadas de luta positivando em certa medida o reconhecimento de
sua institucionalidade pela ativa regulamentação dos salários e jornada
de trabalho, conquistas que se somam na legislação fabril da época.
Mas tal amadurecimento também ensinou aos hábeis proprietários a
importância de seu corporativismo.
É fato que a organização e disposição à luta sindical impuseram a
lei dos salários aos proprietários com o auxílio da legislação do Estado
que os levou a estabelecer o tempo de trabalho, por exemplo, mas isto
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reconheceu Engels ser o máximo que os sindicatos poderiam conquistar e ainda assim a um preço elevado, seja pela força, seja pela estrutura
institucional a arcar financeiramente. No caso brasileiro, tem-se o
processo que decorreu desde a institucionalidade legal da prática sindical na década de 10 do século passado, conquista dos trabalhadores
organizados em torno das greves de 1917, seguida do impedimento de
estrangeiros como associados, boa parte deles anarquistas e socialistas,
e mesmo a partir de 1934 com o corporativismo, forma de amarração
do sindicato com o Estado.
Contudo, ressalta Engels, os trabalhadores organizados têm de recomeçar a sua luta toda vez que as flutuações econômicas cancelam tudo
ou quase tudo que os trabalhadores organizados haviam conquistado,
colocando-os diante da situação de terem de reiniciar todo o processo
sob novas circunstâncias históricas. Este processo coloca cada indivíduo da classe trabalhadora em um “círculo vicioso” interminável de sua
condição de “escravo assalariado”. O papel do sindicato, conclui Engels
na primeira parte de seu artigo, deve ser o de romper este círculo maldito, fixando como escopo um movimento de luta pelo fim do trabalho
assalariado.
No segundo artigo, Engels destacou uma dentre as funções que os
sindicatos assumem: limitar-se a regulamentar o salário médio e dar aos
trabalhadores alguns instrumentos de resistência para a luta que desferem contra o capital, em geral nos limites do próprio estado burguês.
O sentido da existência dos sindicatos, no entendimento do pensador
alemão, é o de consubstanciar o instrumental para a luta dos operários
em oposição ao capital, pois ainda que os defensores do capital digam o
oposto, que tal luta em verdade não existe, e, mesmo que os trabalhadores não se envolvam diretamente no embate, uma vez que o tempo do
trabalho exigido impede uma maior participação efetiva e politizada,
nesta infernal contenda, ainda assim estará plasmada socialmente a luta
do trabalhador frente ao capital.
Não há como mascarar a divisão de classes que expõe uma maioria
a condições aviltantes nas mais diferenciadas circunstâncias da vida
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cotidiana. O fato é que a luta entre produtores e proprietários se converte em luta política, uma vez que a finalidade da classe dominante é
a manutenção de seu poder.
Assim, os trabalhadores, ao tempo de Engels, lutavam para fazer
parte do processo eleitoral para que deste modo pudessem alterar as leis
a seu favor. Sempre que o embate se acirra, a classe dominante concede
certos direitos constitucionais aos trabalhadores organizados. Não sem
antes dar-lhes provas de sua brutalidade.
A organização dos trabalhadores é sua melhor arma contra os interesses do capital. As centrais sindicais, desde há muito não passaram
despercebidas do governo, sejam liberais ou conservadoras e muitas
foram cooptadas. Daí a alteração do modelo que originou a CUT e que
fora traído, em princípios, por seus dirigentes “marionetizados” pelo
capital e seu escritório público, o Estado.
No século XIX, os sindicatos cumpriam a função de apenas regular
os salários e a jornada de trabalho, contrapondo-se às leis que se seguiam
desfavoráveis à classe trabalhadora. Contudo, a classe dominante, vil
alcatéia, já possuía uma consciência sobre a relevância política e social
dos sindicatos, maior que da própria classe produtora. Por este motivo,
concedeu o direito de voto já sabendo que o baixo nível teórico ou
mesmo a simplicidade formal dos trabalhadores davam a certeza de que
não trariam transtornos à institucionalidade do estado burguês.
Desse modo, se de um lado os representantes da classe trabalhadora
puderam ser eleitos, de outro “os sindicatos esqueceram seu dever de
vanguarda da classe operária” (ENGELS, 1980, p. 136).
O filósofo observa que, apesar de tal arma política estar disponível
à classe que representa, raramente fora utilizada, e alertou para o fato
de que, uma vez não atendendo aos interesses da classe produtora não
poderia manter-se no poder. Com espanto o autor de A luta de classes na
Inglaterr, expôs a contradição existente entre se poder eleger ao menos
4 a 5 dezenas de representantes diretos da classe trabalhadora e, ainda
assim, se contentar em ser representada por capitalistas. A atualidade
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desta observação é simplesmente impressionante. Este fato dimensiona
a amplitude do problema da representatividade parlamentar.
A classe trabalhadora tem de desvencilhar-se desta lógica para que
os sindicatos mudem sua posição. É na união geral dos trabalhadores
categoriais que reside a força maior de uma organização operária de
expressão política.
As organizações sindicais devem levar em conta a necessária participação no parlamento e entender definitivamente que a luta por salários
melhores e menor jornada de trabalho não pode constituir um fim em
si, mas antes deve ser um recurso para se alcançar um objetivo mais
elevado que é a “abolição do sistema de trabalho assalariado”.
Considerando a particularidade histórica do caso inglês, Engels
aponta em direção a uma saída: “Para que o trabalhador plenamente
representado no parlamento e para preparar a abolição do sistema de
trabalho assalariado, os sindicatos devem organizar-se não só como
seção para cada ramo da indústria, mas como corpo único da classe
operária” (ENGELS, 1980, p. 137).
Com estas considerações, dialogadas com um dos grandes expoentes
do socialismo científico, buscou-se a compreensão de que muitos dos
problemas enfrentados pela classe trabalhadora do século XIX ainda
não foram superados em nossos tempos, ao contrário, o que se vê é um
estado de retração ou recuo das conquistas.
Nós do SINPRO Guarulhos temos claro que o momento em que
vivemos configura-se tão complexamente que temos de lutar contra
o esfacelamento das conquistas de toda organização da classe trabalhadora, ainda que em nossa particularidade histórica tais conquistas
constituam um dos expressivos paradoxos de nosso caminho colonial
de desenvolvimento no sistema do capital, e que temos que aprender a
superar.
Historicamente, nossa CLT surgiu como instrumento que regulamenta a contradição maior do sistema do capital (propriedade privada
dos meios de produção da vida/trabalho assalariado), tendo sido elaborada no contexto do avanço do totalitarismo fascista da primeira
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metade do século passado e que, por este fato, trazia em sua propositura
constitutiva de sindicato uma organização estruturada no estatismo
corporativista, amarrada pelos impostos sindicais, com uma organização fragmentada em categorias e de hierarquias associativas federativas
e confederativas que acabou por se naturalizar em amarras da classe
trabalhadora. Mas havemos de reconhecer que é nosso dever lutar com
as armas que temos para romper os limites que nos encerram.
Não há força que resista ao poder da classe operária organizada,
“como um todo único”, por isto convocamos a todos os professores a
se filiarem e terem, por meio deste instrumento que é a revista Debates
SINPRO Guarulhos, uma prova a mais de nossas reais intenções frente
ao objetivo maior que é a emancipação geral dos trabalhadores.
Sindicato é pra lutar!
Referência bibliográfica
−− ENGELS, F. Os Sindicatos (I e II). Tradução de Rosa Maria Vieira e
Ricardo Antunes. In: revista Escrita Ensaio, Ano IV - n°7. São Paulo: Escrita,
1980.
pensamento crítico
19
A Lei e o Direito Autoral, o Território
e o Direito à Informação: Pirataria de
Livros e Ensino Superior no Brasil
Fábio Tozi1*
Uma breve introdução: direitos autorais, pirataria e
ensino no Brasil do século XXI
Historicamente desigual, o território brasileiro combina distintas
manifestações de fartura e de carência. Com a globalização, uma nova
intimação a modernizar-se se apresenta, mesmo que etapas anteriores
estejam ainda longe de se democratizarem. O sistema de ensino e o
acesso à informação corolário, em todos os níveis e esferas, não é exceção.
Por seu turno, as leis nacionais relativas aos direitos autorais são
eficientes na manutenção de um mercado restrito de acesso ao conhecimento concretizado em livros e outras obras impressas, excluindo
grande parte das pessoas – alunos ou não – e dos lugares dessa
dimensão fundamental do sistema de ensino, como se procurará mostrar especialmente a partir da situação paulistana, incorporando-a,
todavia, numa discussão nacional e global. Consequentemente, nessa
situação, a pirataria, isto é, a reprodução não autorizada de obras, é
um elemento inextirpável. Ademais, ela é um fenômeno revelador das
contradições brasileiras do atual período histórico. Por isso, faz-se
necessário compreendê-la socioespacialmente, como manifestação
das novas formas de organização que, a despeito de sua provável
ilegalidade, apresentam-se legítimas.
1 * Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da FIG UNIMESP (Guarulhos) e UNIESP (São Paulo).
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Quando pensada para além da esfera produtiva restrita ou da sua
ilegalidade, o que a pirataria traz à cena são novas relações que subvertem aquelas anteriormente estabelecidas. Tratá-la somente dentro das
esferas jurídica e criminal não impedirá sua continuidade, não permitirá compreendê-la em seu presente e muito menos possibilitará pensar
na criação de novas relações a partir do que hoje se dá. Ora, enquanto
o sistema normativo procura oprimir as piratarias, a organização do
território (disposição e acesso dos objetos e informações) e as novas
tecnologias da informação as incentivam. Assim,
defende-se
que o debate sobre direitos autorais, no Brasil, não pode ausentar-se do
reconhecimento de que livros e bibliotecas são elementos fundamentais
e negligenciados da formação universitária. Portanto, o objetivo, neste
texto, é o de mostrar o papel ativo do território nas discussões sobre o
direito autoral e a pirataria a partir da organização do sistema universitário público e privado nacional. A categoria meio geográfico tornase, então, essencial. Este meio, hoje técnico-científico-informacional
(SANTOS, 1994, p. 121 ss.), é a base geográfica da globalização, isto é,
o meio geográfico agregador das variáveis-chave do presente em combinações particulares e seletivas.
Do autor ao detentor do direito autoral: a apropriação
privada do conhecimento
É preciso constatar que, mesmo tida como natural e definitiva,
a concepção de autoria é variável ao longo da história. A conquista
da ideia de sujeito, legado da Modernidade, se expressa também na
valorização do autor, uma vez que, até então, a concepção do sujeito
como autor dissolvia-se na predominância comunitária das instâncias
cotidianas da vida. Concomitantemente, a expansão de um meio
geográfico tecnicamente mais denso permitiu a reprodução em série
das obras. As novas capacidades técnicas de impressão, mais simples e
baratas, levaram à análoga proliferação de editores e, em decorrência,
de cópias não autorizadas. A invenção da imprensa de tipos móveis é
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um evento marcante, ainda na primeira metade do século XV. A primeira decorrência normativa da configuração desse novo meio técnico
foi a promulgação, no Reino Unido, em 1710, do Estatuto de Anne,
diploma jurídico que introduz a concepção de cessão de direitos autorais a terceiros, os editores.
Kant, em um ensaio de 1785, apresenta o debate sobre os diversos
modos de vista então existentes, discutindo a ilegalidade da reprodução de livros e a legalidade da reprodução de obras de arte. Para
esse autor, a partir de uma discussão fundada na ideia de direito
natural, uma obra escrita é uma opera e não pode, consequentemente,
ser transferida a um terceiro, uma vez que o livro é um meio, um
objeto que contém as ideias de um autor. Assim, um editor não pode
falar ao público em nome de outro, ou seja, apresentar o discurso de
outrem, o autor. O autor pode, evidentemente, permitir a um editor
reproduzir as suas ideias, falar ao público por intermédio de outro.
No entanto, ninguém pode falar em nome de outro, pois as ideias
pertencem exclusivamente à pessoa do autor, isto é, trata-se de um
direito inalienável (jus personalissimum).
A autoria, para Kant (ibidem) é, portanto, a expressão das ideias de
alguém que toma a forma de livros para que possa ser difundida. Assim,
Kant defende que, se uma obra literária for modificada por um editor
a tal ponto que não coincida mais com as ideias do autor original, tal
fato não constituiria uma reimpressão, mas uma obra nova. Não se
trataria, dessa maneira, de uma prática a ser interdita. Igualmente, a
tradução de uma obra para uma língua estrangeira não caracterizaria
uma reimpressão, pois não equivaleria ao mesmo discurso original do
autor, que só pode fazê-lo em sua própria língua, mesmo que as ideias
em ambos possam ser exatamente as mesmas.
As obras de arte, ao contrário, não possuiriam as mesmas características uma vez que são consideradas obras (opus), isto é, possuem existência por elas mesmas e podem ser copiadas, reproduzidas e vendidas
ao público, mesmo sem a autorização do autor do original, desde que
legitimamente compradas.
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Autoria, direito autoral, direito de reprodução e meios de reprodução não são, portanto, sinônimos. O conteúdo está separado da forma.
A conformação legal que tomará corpo nos séculos seguintes, hoje
mundializada, significou a decantação de debates filosóficos e interesses
corporativos que se tornaram leis.
Contemporâneo de Kant, Fichte (1793) também debate a distinção
fundamental entre forma e conteúdo, e de como a autoria (ideia) se
expressaria como direito legal. Segundo o autor, a porção intelectual
de um livro é abstrata em relação à sua expressão física e será sempre
propriedade do seu autor. O livro, como exemplar, é de propriedade de
quem o compra, enquanto as suas ideias, uma vez publicadas, tornamse algo comum, partilhado, entre o autor e seus leitores.
Para Fichte (ibidem, pp. 447-448), podem-se distinguir dois aspectos
de um livro: o físico (o papel impresso) e o ideal. O primeiro pode ser
comprado, lido, relido, emprestado, destruído ou queimado e ninguém
poderia impedir seu proprietário de fazê-lo. O segundo é formado
tanto pelas ideias que se articulam em frases quanto pelo modo como
se combinam coerentemente para transmitir um pensamento. O livro
pode ser comprado, mas não as ideias de seu autor que, evidentemente,
não se transmitem para o comprador com a simples posse do objeto.
Entretanto, o século seguinte vislumbra uma nova fase da mundialização do mundo na qual alguns eventos são decisivos para a compreensão do processo recente da história da planetarização das técnicas. Uma
vez que o meio técnico-científico expande-se mais aceleradamente, as
relações, antes mais simples, entre técnica, Estado e território se tornam
cada vez mais complexas, pois, como observa Gille (1993 [1948], p.
1340), os progressos da técnica transbordam para o plano internacional. Era preciso criar os marcos regulatórios mundiais apoiadores da
expansão técnica em voga. Assim, em 1896, toma corpo a Convenção
de Berna, que estabelece a proteção comum, entre todos os países signatários – incluindo o Brasil –, dos direitos dos autores. Posteriormente, a
Convenção de Roma, de 1961, amplia o escopo de proteções presentes
no texto de Berna. Todavia, é apenas com a Convenção de Genebra, de
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1952, que uma proteção tendencialmente mais global se impôs, pois ela
representou a adoção do sistema de copyright pelos países signatários da
Convenção de Berna. Doravante, as obras publicadas em qualquer país
signatário devem conter o símbolo “©” ao lado do nome do titular do
direito autoral e do ano da primeira publicação, nas páginas iniciais.
Atualmente, o mercado editorial brasileiro, discutido adiante, é
controlado por grupos editorais cujas políticas de edição e de combate
às cópias interferem nas instituições de ensino. A análise da situação
brasileira contemporânea revela o conflito entre as desigualdades do
território nacional, o sistema de ensino e a vinculação jurídica nacional
ao sistema globalizado de normas de proteção ao direito autoral. O
meio geográfico incorpora uma dialética entre opressão e novas possibilidades de agir.
Autores, editores, livros e leitores – as fotocópias e o sistema
universitário
Em 1939, José Ortega y Gasset, no prefácio do seu livro Meditação
da técnica, protesta contra os “pirateiros” de seus textos. O autor tratava
especificamente das anotações de um de seus cursos ministrados em
Buenos Aires e publicadas dominicalmente no jornal La Nación, que
haviam sido reproduzidas sem sua autorização. Não deveriam, por
sua imaturidade, segundo suas próprias palavras, tais anotações serem
publicadas em volume. No entanto, diz o filósofo:
Mas, vejo que os editores fraudulentos do Chile recortavam
do La Nación estas informais prosas minhas e formavam
com elas volumes. Em vista do que, decidi fazer concorrência a esses piratas do Pacífico e cometer a fraude de publicar
eu estes livros seus, que são meus [Buenos Aires, 27 de outubro de 1939] (ORTEGA Y GASSET, J., 1963 [1939], s/p.).
Se o protesto do autor é legítimo, considerando o seu direito e,
consequentemente, a sua liberdade de publicar ou não as suas ideias, as
mudanças do mundo impõem, a cada nova geração, um novo conjunto
moral acompanhado de um novo conjunto técnico. O meio e o período
24
técnico-científico modificaram a ideia de autoria, não apenas no que
tange à sua apropriação ou plágio, mas também naquilo que concerne
à visibilidade das ideias de qualquer um. É próprio do meio geográfico
que se estabelecia que as informações fossem difundidas.
Em 2010, o escritor peruano Daniel Alarcón informava que em seu
país ser pirateado é o critério mais eficiente que um autor pode ter para
saber o sucesso editorial de seus livros. O autor descreve o funcionamento do imenso mercado de libros de bajada que funciona em Lima,
além de pequenos comércios espalhados pela cidade e seu entorno e dos
vendedores ambulantes de livros reproduzidos sem consentimento. O
escritor narra sua alegria quando, finalmente, encontra seu livro sendo
vendido por um ambulante num dos grandes congestionamentos da
cidade. Ele o compra, mesmo notando sua qualidade gráfica inferior,
que o desagrada. Ao menos, conclui, seu nome e sua foto foram preservados. Sua autoria lá está, respeitada, o que, segundo suas palavras,
nem sempre é a regra. Essa narrativa nos remete à provocativa expressão
do artista inglês Banksy (2005): o copyright é para perdedores (copyright
is for losers).
Esses dois momentos simbolizam dois entendimentos distintos face
às concepções globalizadas dos sistemas de proteção de direito autoral.
A grande circulação e capilaridade da informação possuem, igualmente,
um rebatimento no ensino. A queixa é frequente entre os professores:
os alunos plagiam. Ora, para além das questões que envolvem o fazer
científico, no qual a cópia deveria ser banida, é preciso considerar que
as bases técnicas e informacionais contemporâneas da sociedade não
apenas facilitam, mas incentivam e induzem à reprodução do que quer
que seja. A digitalização de todas as formas de informação, doravante
transformadas em bits intercomunicáveis, os bancos de teses e artigos
em linha, permitem que a prática do plágio se acentue, exigindo, em
contrapartida, maior aprofundamento das discussões éticas acerca da
seriedade e responsabilidade do fazer acadêmico.
Ademais, a recente expansão do ensino superior brasileiro, apoiada e
sediada por empresas privadas e envolvendo alunos cujos rendimentos
25
são incompatíveis com os preços dos livros, valoriza a fotocópia de fragmentos de obras e o uso daquilo que, gratuitamente, esteja disponível.
A facilidade, inimiga do trabalho científico rigoroso, torna-se a regra.
Por outro lado, é necessário considerar que a comunhão global entre
grandes corporações e sistemas jurídicos transferiu a centralidade antes
cabida ao autor, aquele que possui um direito moral – e normalmente,
econômico – sobre sua obra para os proprietários dos direitos autorais, isto é, empresas detentoras dos copyrights (literalmente, direito de
copiar/reproduzir).
Todavia, são numerosos os autores e instituições que questionam
a sobrevalorização do poder dos proprietários de copyright, que teria
reorientado a produção intelectual e artística a partir de princípios
mercadológicos. Uma das críticas mais enfáticas a essa autonomia da
propriedade sobre o conteúdo foi feita, sintomaticamente, nos Estados
Unidos, país responsável pela expansão do sistema jurídico do copyright sobre aquele do droit d’auteur. Na coda a seu romance Fahrenheit
451 (1953), Ray Bradbury critica os editores, proprietários dos direitos
de publicação, por esfoliarem, desmontarem, encurtarem e destruírem
romances, peças teatrais, poesias e prosas. Os motivos para tais práticas eram diversos: palavras e construções gramaticais consideradas
excessivamente complexas, minorias que se sentem discriminadas
ou ainda o desejo de simplificar textos para aumentar suas vendas.
No Brasil, a ação das editoras não é distinta, mas, com suas características próprias adota um modelo que corrompe o conhecimento
em benefício das vendas. O consumo antecede a produção em duas
variações importantes: 1. um livro não se torna best-seller graças ao seu
conteúdo, resenhas ou vendas, mas é concebido para tanto; 2. os livros
didáticos, por sua vez, tornaram-se um produto que destina-se, após
sua aprovação pelo MEC, ao farto e garantido mercado do ensino nos
níveis fundamental e médio. Internacionalmente, outros países pobres
comungam a prática da fotocópia: a situação peruana parece existir
também na Índia, onde um relatório do governo, valorizando seus
esforços em adequar-se aos acordos da Rodada Uruguai do GATT
26
(General Agreement on Tariffs and Trade, ou Acordo Geral de Tarifas e
Comércio, cujos debates se estenderam entre 1986 e 1994) e ao TRIPS
(do inglês Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property
Rights ou Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, 1994), demoniza o comércio popular de livros
(entre outras mercadorias) a baixos custos, muitos dos quais traduzidos
ilegalmente de outras línguas e reproduzidos em pequenas gráficas2.
No Brasil, não há relatos sistemáticos de tais práticas. O mercado
“profissional” de produtos piratas concentra-se em outros itens, do vestuário às peças de carro, de alimentos a perfumes. Entretanto, a reprodução ilegal de livros é abundante no país, criando cópias integrais ou
parciais de obras cujas disponibilidades acompanham a especialização
dos lugares. Os campi universitários, as proximidades de colégios e
centros de ensino e formação são pontos de apoio à reprodução não
autorizada, considerando-se a importância capital que é ter acesso ao
conteúdo de um livro no percurso da formação técnico-científica exigida
pela própria modernização do meio geográfico. Se não há, no Brasil,
obras piratas prontas à venda, como no Peru, é possível encomendar
reproduções em copiadoras a partir de um original: um eficiente sistema just-in-time e just-in-place que elimina os desnecessários estoques
e permite ao comerciante precaver-se das flutuações das encomendas de
suas mercadorias e da fiscalização policial. Poder-se-ia mesmo dizer que,
dadas as condições do ensino superior nacional, essas práticas são um
elemento central da sua própria estrutura e funcionamento. O circuito
inferior da economia urbana3 satisfaz essa demanda de consumo que,
diga-se de passagem, cresce junto à expansão do ensino universitário
público e privado posto em prática nos últimos anos.
2 Government of India (INDIA, 1999).
3 Há, para Santos (2004 [1975]), dois circuitos intercomunicantes e interdependentes da economia urbana: o circuito superior da economia implica que áreas selecionadas da cidade sejam
modernizadas, criando uma divisão do trabalho especializada, enquanto outras, características do
circuito inferior, convivem com um meio urbano não renovado, no entanto apto a abrigar uma
multiplicidade de divisões do trabalho menos específicas e rapidamente mutantes.
27
Mais grave é a constatação de que a quase totalidade da produção
de livros técnicos e científicos nacionais é fruto do acúmulo histórico
de pesquisas financiadas com dinheiro público, isto é, as editoras raramente são as financiadoras das pesquisas cujos resultados se transformam em livros. Dedicam-se, ao contrário, às funções mercadológicas
de impressão-reprodução, distribuição e comercialização das obras.
A questão é, portanto, pertinente: se historicamente a figura do
pirata sempre foi associada àquele que se apropria de algo de outrem,
não seria hoje necessário discutir, igualmente, a apropriação desse
conhecimento público pelas editoras como uma forma de usurpação
do trabalho alheio visando lucros? Basta constatar que as porcentagens
do preço de venda de um livro destinadas aos autores variam de 4%
a 7% nos contratos mais generosos. Entretanto, a ideia de pirataria, a
mais difundida, é doutrinada pelas próprias empresas e pelos governos
conduzindo a discussões parciais da situação brasileira.
Ademais, como esclarecem Earp e Kornis (2005, pp. 86-87) e Craveiro; Machado e Ortellado (2008, pp. 19-22), os subsídios públicos para
a indústria de livros compreendem a isenção de impostos desde a década
de 1960. Desde 2004, acrescentou-se a não incidência de impostos nas
contribuições PIS/PASEP (Programa de Integração Social e Programa
de Formação do Patrimônio do Servidor Público, respectivamente) e
COFINS (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social),
além da redução do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e do
ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Produtos). Assim,
de acordo com a estimativa dos autores (CRAVEIRO; MACHADO;
ORTELLADO, 2008), os subsídios às editoras correspondem a aproximadamente 34% do seu faturamento. Em 2006, o valor total desses
subsídios foi de R$ 978 milhões. Essas políticas, pautadas no princípio
do interesse público de difusão de conhecimento, tornaram-se um
dado da contabilidade das corporações envolvidas, explicitando o apoio
estatal ao circuito superior da economia urbana.
Além disso, o Governo Federal é o principal comprador de livros
no Brasil, respondendo por cerca de 50% do total comercializado,
28
especialmente por meio do Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD) destinado ao Ensino Fundamental, Médio e Ensino de
Jovens e Adultos. Para o ano de 2012, o orçamento comprometido
com o Programa foi de R$ 1,327 bilhão para a compra de 162.392.410
livros, atendendo 37.422.460 alunos em 192.724 escolas em todo o
país. As encomendas realizadas a cada editora beneficiada pelo PNDL
são feitas em milhares e milhões de exemplares, criando um enorme
e garantido mercado para as empresas4.
Nesse sentido, é necessário mencionar a participação de Paulo Renato
Souza (PSDB, falecido em 2011), ex-secretário da Educação (entre
2009 e 2010) de José Serra (PSDB) e ex-ministro da Educação (entre
1995 e 2002) de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Em 2003, o
ex-ministro funda a “PRS Consultores”, uma empresa especializada na
“indústria do conhecimento”. Entre seus clientes, as maiores indústrias
editoriais do Brasil e do estrangeiro, que a partir dos conhecimentos do
ex-ministro, puderam prosperar nos seus negócios, visando, particularmente, o rico e garantido mercado de livros didáticos fornecidos ao
PNLD. Mas, este não é o tema deste texto.
De retorno à relação entre leitores e detentores de direitos autorais, a pesquisa sobre a produção, consumo e uso de livros técnicos e
científicos no Brasil, coordenada por Craveiro, Machado & Ortellado
(2008), esclarece a disputa entre editoras e leitores em voga no país e a
função social da pirataria na difusão de conhecimentos. A metodologia
adotada pelos autores (idem, ibidem, pp. 23-25) selecionou seis cursos
universitários entre instituições públicas e privadas “de excelência” ou
de “sucesso comercial” (Biologia, Física, História, Medicina, Direito e
Engenharia Civil), criando, a partir das ementas de cursos, um banco
de dados com 1910 títulos.
Os autores informam que entre 26% e 31% dos livros recomendados
estavam esgotados, fato por si só grave. Nos cursos classificados como de
“excelência acadêmica”, um percentual de 86% dos livros cujos autores
atuam no Brasil procedem de investimento público direto em ensino
4 De acordo com os dados oficiais do Programa, disponíveis na página do Ministério da Educação.
29
e pesquisa, isto é, os autores trabalham em instituições públicas em
regime de trabalho classificado como de dedicação integral ou exclusiva
(docentes ou pesquisadores). Quando considerados os livros resultantes
de teses e dissertações, o financiamento público evidencia-se mais uma
vez, já que apenas 10% do investimento num livro resultante de tese
de doutorado é privado, sendo esse percentual de 18% no caso de uma
dissertação que se faça publicada (idem, ibidem, p. 33).
Nessas situações, o financiamento das pesquisas, que tomam anos
de trabalho, bem como os custos gerais de manutenção do sistema
universitário são, em sua totalidade, públicos. Essa situação é extremamente vantajosa para os editores, mesmo considerando-se os “riscos” da
cadeia produtiva do livro, que envolvem agentes e elementos autorais,
editoriais, gráficos, produção de papel e de máquinas gráficas, distribuição, atacadistas, livreiros e bibliotecários, como destacam Earp e
Kornis (2005, p. 18 ss.).
Se, por um lado, a renda dos estudantes é impedimento à compra
dos livros sugeridos nas ementas dos cursos universitários (CRAVEIRO; MACHADO; ORTELLADO, 2008, p. 35), as editoras, por
outro lado, insistem em manter suas políticas de preços elevados em
relação à economia concreta do território. Como são, na maioria das
vezes, os detentores dos direitos autorais, as empresas podem gozar de
tal liberdade5. Nas palavras de Earp e Kornis (2005, p. 25), estamos
diante de práticas de concorrência monopolística.
A pirataria de livros, tanto na sua forma mais tradicional que é a
cópia parcial ou total de exemplares (seja doméstica, seja em copiadoras) quanto na sua versão informacional, os downloads de edições
digitalizadas e tornadas públicas, é forma essencial de acesso aos
conteúdos utilizados pelos agentes diretamente envolvidos no sistema
universitário: a instituição ela mesma, os professores e os alunos. As
primeiras autorizam a existência de copiadoras dentro de seus campi e
5 Conforme entrevista concedida pela Sra. Anna Lúcia Gomes, Secretária Executiva Adjunta do
Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP – vinculado ao Ministério da Justiça), em 03 de
setembro de 2009. Exceção deve ser feita às compras estatais de livros didáticos.
30
fornecem, através de suas bibliotecas, as matrizes para reprodução; os
segundos também cumprem a função de fornecer os originais à cópia
para que, finalmente, os alunos possam, então, obter os conteúdos –
muitas vezes mutilados – necessários à sua formação. Cria-se, assim,
um conjunto lugarizado de solidariedades orgânicas que tornam o
acesso ao conhecimento um direito humano menos difícil.
É válido remarcar que, em seu Artigo 46, do Capítulo IV – Das
Limitações aos Direitos Autorais, a Lei 9.610 (1998) proíbe toda reprodução de obras literárias ou científicas que contemple lucro. Uma vez
mais, norma e organização do território se desencontram, pois, para
garantir o direito do autor ou do reprodutor, as condições concretas
do território são excluídas. A única exceção permitida pela lei é o seu
Item C, II, que autoriza “a reprodução, em um só exemplar, de pequenos
trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito
de lucro”. Tal ação, mesmo tendo sido facilitada pela banalização de
scanners domésticos é, entretanto, seletiva em relação ao conjunto de
alunos universitários, particularmente aqueles que, nos últimos anos,
compõem a nova fase de expansão do ensino superior privado no Brasil.
A opção assumida por alguns países que adotam normas próximas
às brasileiras é oferecer máquinas copiadoras em livre-serviço, isto é,
operadas pelo próprio usuário nas bibliotecas. Nesse caso, como não há
uma empresa envolvida, não há lucro e o copista é o responsável pelas
reproduções que realiza. Essa prática, todavia, é raríssima no Brasil,
pois aqui, dadas as particularidades da divisão territorial do trabalho,
as copiadoras assumiram tal atividade.
A principal entidade representativa dos interesses das editoras, a
ABDR (Associação Brasileira de Direitos Reprográficos), é um dos entes
que participa do Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP),
na cota às empresas interessadas na proteção aos direitos de propriedade
intelectual. As ações do Conselho se concentram particularmente em
campanhas educativas e apoio organizacional em parcerias com estados
e municípios e associações empresarias. Os interesses representados pela
ABDR são, entretanto, mais pragmáticos e a Associação adotou outra
31
estratégia6: com apoio jurídico e policial, passou a desenvolver ações
como a notificação de copiadoras, apreensão de pastas de professores
contendo cópias de textos, processando-os e efetuando prisões7. Nos
processos contra as copiadoras, professores universitários cujas pastas
foram apreendidas são citados nos inquéritos policiais como possíveis
criminosos por fornecer textos cujos direitos de reprodução eram legalmente protegidos8.
Na onda de medo promovida pela ABDR e sua escolta jurídicopolicial, muitos estabelecimentos passaram a adotar, mesmo que provisoriamente, normas mais rígidas para a reprodução de livros9. Mesmo
o Comut (Programa de Comutação Bibliográfica, criado em 1980 pelo
Ministério da Educação) sofreu reclamação de “ilegal” pela ABDR.
Ora, uma atribuição do Programa é, entre outras, a de prover o acesso
a obras que não existam em alguma instituição universitária a partir
do empréstimo ou cópia fornecida por aquelas que a possuem, não
havendo, portanto, finalidade lucrativa.
Nesse ínterim, grandes universidades brasileiras como a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Unicamp (Universidade Estadual
de Campinas) e USP (Universidade de São Paulo) manifestaram-se
contra as ações empreendidas pela ABDR. A Resolução Nº 5.213 de
02 de junho de 2005 da Universidade de São Paulo regulamentou as
6 Idem.
7 Como a proprietária de uma copiadora em Casa Amarela (Recife), presa em 2009 por possuir
400 cópias de livros em seu comércio, nas proximidades da Universidade Católica do município.
Seu marido já havia sido preso pelo mesmo crime, em 2006 (Fonte: <http://www.abdr.org.br/site/
textoview.asp? id=31>. Acesso em: 16/09/2012).
8 De acordo com entrevistas realizadas com dois professores universitários citados em processos
deste tipo. Ambos lecionavam, em 2009, num Centro Universitário em Guarulhos quando tais
fatos ocorreram. É necessário dizer que ambos tiveram apoio acadêmico e jurídico da instituição
universitária.
9 A experiência narrada por um doutorando em linguística da USP (Universidade de São Paulo)
é esclarecedora, pois escancara a irracionalidade da presença desta racionalidade, qual seja, a
aplicação ipsis litteris da lei apoiada na expansão do medo: em março de 2009 o aluno desejava
realizar uma cópia de um artigo seu publicado em um livro coletivo, mas o funcionário da copiadora
recusou-se a fazê-lo sob a justificativa de que ele era o autor do texto, mas não o detentor dos direitos
autorais sobre a obra. Criticando o poder dos copyrighters, Dowbor (2011) descreve sua indignação
ao descobrir que deveria “pagar pedágio” de USD 25 para ler seu próprio artigo publicado na Latin
American Perspectives em 2011.
32
cópias reprográficas de livros, revistas científicas e periódicos na Universidade, autorizando a reprodução, sem fins lucrativos, de trechos
de obras, como capítulos de livros e artigos de revistas ou periódicos,
para uso individual. Além disso, autorizou-se a reprodução integral de
obras esgotadas e/ou publicadas no exterior pertencentes ao acervo da
Universidade e indisponíveis no mercado nacional e o fornecimento,
pelos docentes, do material destinado às disciplinas. A Instituição comprova, assim, que no Brasil a pirataria não é uma imoralidade ou uma
ilegalidade, mas uma necessidade.
A Unicamp também edita, em 25 de junho de 2010, uma Resolução
de conteúdo similar, institucionalizando a prática da pirataria:
Visando garantir as atividades-fins da Universidade, será
permitida a extração de cópias de pequenos trechos, como
capítulos de livros e artigos de periódicos ou revistas
científicas, mediante solicitação individualizada, sem
finalidade de lucro, para uso próprio do solicitante (UNICAMP, 2010, s/p.)
Outra decisão com o mesmo objetivo foi tomada pela UFRJ, após
a apreensão, pela Polícia Civil e agentes da Delegacia de Repressão aos
Crimes Contra a Propriedade Imaterial (DRCPIM), no dia 13 de setembro de 2010, de duzentas pastas com textos que estavam depositados
na copiadora da Escola de Serviço Social da Universidade. A Resolução
foi aprovada na reunião do Conselho Universitário de 23 de setembro
de 2010 e se fundamentou na autonomia didático-científica e administrativa assegurada pela Constituição Nacional10 e na sua função social
de garantidora do direito de acesso à informação por alunos, docentes
e pesquisadores. Ademais, a Resolução proíbe a presença policial nos
espaços universitários sem mandatos para tanto11. O uso do território,
10 “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e
patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (Art. 207
da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).
11 FRANCO, B. UFRJ regulamenta o direito à informação. In: Jornal da UFRJ, setembro de
33
ou seja, a vida pautada nas necessidades e nas limitações que os lugares
oferecem se sobrepôs à lei de direitos autorais.
A questão central trazida por essa sucessão de eventos não se resume,
entretanto, apenas aos debates sobre a seletividade da informação no
território brasileiro e a possível violação da autonomia universitária. Os
Relatórios Especiais 301 (Special 301 Report) permitem compreender
a relação de tais eventos com elementos da política de propriedade
intelectual defendida pelos Estados Unidos12.
No relatório anual de 2007, da IIPA (International Intellectual
Property Alliance ou Aliança Internacional para a Proteção à Propriedade Intelectual), subsídio para o Special 301 Report do mesmo ano
(no qual o Brasil é reposicionado da Lista de Observação Prioritária
para a Lista de Observação), há referências específicas à Resolução
Nº 5.213, de 2005, aprovada pela USP, como um dos eventos mais
perturbadores no país, naquele ano. Diz o texto:
Entre os eventos mais perturbadores de 2006 está a aprovação
e implementação da Resolução n º 5213/2005, uma portaria
da Universidade do Estado de São Paulo (USP). Esta regra
permite que (1) a cópia reprográfica de partes de livros por
copiadoras comerciais, visando lucro, e (2) a cópia de obras
estrangeiras (ou talvez toda obra que não esteja em Português) que “não são disponíveis no mercado brasileiro” sem a
necessidade de licença. Esta última disposição aplica-se até
2010. Disponível em: <http://www.ufrj.br/mostraNoticia.php?noticia=10618_UFRJ-regulamentao-direito-a-informacao.html>. Acesso em: 16/09/2012.
12 Em 1988, com a promulgação da Lei Omnibus Trade and Competitiveness Act, passam a ser
produzidos, anualmente, relatórios sobre os países com os quais os Estados Unidos mantêm relações
comerciais mais intensas. Além disso, no caso de superavit de algum deles, o Secretário do Tesouro
estadunidense deve investigar a conduta desse país e abrir negociações para reverter a situação desfavorável aos Estados Unidos na balança comercial. Os relatórios não são, oficialmente, reconhecidos
pelas Uniões, Convenções e Tratados Internacionais, embora sejam elementos centrais da política
comercial estadunidense. A proteção à Propriedade Intelectual é o objeto principal desses relatórios,
denominados Special 301 Report, elaborados pelo USTR (The Office of the United States Trade
Representative), que classificam os países em três listas, de acordo com o maior ou menor respeito
à Propriedade Intelectual estadunidense: Lista de Observação Prioritária; Lista de Observação;
Monitoramento e Países Estrangeiros Prioritários.
34
mesmo à cópia de 100% de uma obra. Esta decisão apresenta
vários problemas no conjunto das normas internacionais e
deve ser revogada. Não deveria ser dada carta branca a entidades com fins lucrativos para que possam copiar obras fora
dos limites normativos de uso internacional.
Além disso, não está claramente definido o “não estar disponível no mercado brasileiro”, e as indústrias denunciam que,
na prática este dispositivo está sendo usado para copiar em
massa todas as obras estrangeiras. Autoridades estaduais e
nacionais (incluindo o Ministério da Educação) deveriam
intervir para revogar essa regra, ou, no mínimo, revisá-la
para enquadrá-la nas obrigações internacionais do Brasil
sob o Acordo TRIPS e [Convenção de] Berna (IIPA, 2007,
pp. 216-217. Grifos nossos. Tradução do autor).
Para a IIPA, a Resolução da USP deve ser revogada, com base em
acordos como a Convenção de Berna e o TRIPS. Essa ordem baseiase na interpretação corporativa e globalizada do direito e se sobrepõe,
nesta leitura seletiva, à Constituição de 1988. O citado Ministério da
Educação e outras autoridades nacionais não estão autorizados, portanto, a intervir nesta contenda, como também observam Craveiro,
Machado & Ortellado (2008, p. 18).
O Relatório Especial final de 2007 do USTR não menciona a decisão da Universidade de São Paulo. Porém, no ano de 2010, há uma
reincidência da crítica, pela IIPA, à instituição. Entre os esforços legislativos que deveriam ser tomados pelo Brasil, a Associação afirma que a
Universidade deveria reverter sua prejudicial Resolução e o país deveria
instituir regras para controlar outras universidades que a seguiram:
A Universidade de São Paulo (USP) deve reverter sua
prejudicial norma administrativa que permite a cópia
reprográfica generalizada de parte de livros por copiadoras comerciais visando lucro, e instituir orientações para
35
outras universidades que seguiram os passos da USP (IIPA,
2010, p. 141. Grifo nosso. Tradução do autor).
O Relatório Especial 301 de 2010, mais uma vez, não menciona esse
anseio da IIPA, concentrando seus julgamentos especialmente à função
da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) nos processos
de patenteamento de drogas, fármacos e seus processos industriais.
Critica, todavia, as universidades e autoridades chinesas pela liberdade
dada às cópias de obras impressas (USTR, 2007, p. 44 ss.), o que comprova, novamente, que a situação brasileira não é uma exceção.
A cizânia entre universidades e a ABDR repercute também na revisão da Lei de Direitos Autorais (9.610/1998)13. O texto apresentado
para discussão pública em 2012 propõe, em seu Capítulo IX – “Da
Reprografia”, que as copiadoras deverão possuir uma autorização
prévia dos autores ou detentores dos direitos autorais para exercer sua
função, além do pagamento de uma taxa pelas cópias realizadas. O
parágrafo 1º, do item II, do Artigo 88 menciona ainda que tais estabelecimentos devam manter um registro das reproduções no qual conste
a identificação e a quantidade de páginas reproduzidas de cada obra.
O texto em consulta, um projeto de lei, será enviado para apreciação e
votação institucional e essa proposta poderá tanto ser aprovado como
modificada ou rejeitada.
Sabe-se de antemão, todavia, quais são os agentes, seus interesses
e suas capacidades de ação a partir dos quais o debate seguirá. Essa
situação não é exceção: as influências corporativas, especialmente
representadas pela Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica
de Pesquisa), foram decisivas para a definição da nova Lei de Patentes
brasileira (Lei 9.279, de 1996 – Lei da Propriedade Intelectual ou LPI).
Pode-se imaginar, caso esse artigo seja aprovado, a nova demanda
organizacional que será exigida das copiadoras, em sua maioria pequenos estabelecimentos do circuito inferior da economia urbana, como
13 Texto em consulta pública nº 7863, elaborado pelo Ministério da Cultura, relativo ao Projeto de
Lei que altera e acresce dispositivos à Lei de Direitos Autorais. Disponível em: <http://www.cultura.
gov.br/consultadireitoautoral/consulta/>. Acesso em: 09/09/2012.
36
contrapartida às somas vultosas que serão direcionadas para o circuito
superior da economia.
Como alternativa às “cópias ilegais”14, a ABDR propôs a criação
de um serviço eletrônico, o sítio “Pasta do Professor”, criado em 2011,
que oferece a venda, em linha, de textos que podem ser encomendados pelos alunos a um dos “pontos de venda”. Essa tentativa de
apropriação, pelos agentes hegemônicos da edição, das formas de
organização e difusão do conhecimento técnico e científico típicas
do circuito inferior parece não ter logrado êxito: uma pesquisa realizada no confuso sistema de buscas oferece apenas 32 títulos com a
palavra-chave geografia. Para gestão, entretanto, há 686 registros e,
para direito, 1085. O número de pontos de venda é de apenas 32 em
todo o município de São Paulo15.
Ademais, a escassez e a seletividade territorial de livros e bibliotecas
são a característica marcante da política pública no município de São
Paulo, como revelam os mapas seguintes.
O sistema universitário não fornece os livros necessários à formação
de seus alunos, que, ainda, não podem contar com a estrutura pública
municipal para suprir essa necessidade. O acervo de livros para adultos no município é concentrado e desigual. A situação revela-se mais
precisa se forem comparados os livros disponíveis por habitantes nas
diferentes subprefeituras.
Entretanto, a perversidade das políticas dos proprietários de copyrights tem gestado propostas alternativas que rediscutem a autoria e a
propriedade autoral, dentro do que se denomina copyleft. O Creative
Commons (CC), administrado por uma organização estadunidense,
permite a autores manter sua autoria sem cobrar pela reprodução das
obras, isto é, pela difusão e uso de ideias, sejam elas textos, músicas,
filmes, softwares ou outras obras intelectuais, desde que seus autores
sejam mencionados. Embora seja uma ideia recente, nascida no período
14 Ilegais para a interpretação da ABDR, legais e legítimas para as universidades.
15 Sítio oficial: <https://pastadoprofessor.com.br/portal/>. Informações com base no último acesso,
em: 03/09/2012.
37
Mapa 01 – São Paulo (Município): Acervo de livros em bibliotecas ou
Pontos de Leitura, por Subprefeitura (2010)
informacional da história (foi posta em prática há pouco mais de uma
década), mostra-se uma alternativa ao sistema de copyright hoje hegemônico, baseando-se, todavia, na mesma ideia de uma estandardização
mundial da produção intelectual baseada em agentes e decisões centralizadas. O Creative Commons (CC) incorpora, entretanto, a noção de
“compartilhamento”, uma das concepções definidoras das tecnologias
da informação, particularmente aquelas vinculadas à internet na qual o
público é um agente como o autor. Assim, alguns princípios históricos da
autoria são rediscutidos à luz do presente.
38
MAPA 02 – SÃO PAULO (Município): Acervo de livros em bibliotecas
ou Pontos de Leitura, por habitante, por subprefeitura (2010)
Internacionalmente predomina, entretanto, um mercado digital
de ideias que cria agentes exponencialmente mais hegemônicos,
cujos poderes crescem acompanhando a internacionalização em
marcha forçada das universidades, professores e alunos, levando, nas
palavras de Contel & Lima (2008, p. 19), a uma verdadeira “commoditização” do ensino superior. Novos agentes sociais se estabelecem,
como as grandes corporações proprietárias de periódicos científicos,
39
entre elas Elsevier, Wiley-Blackwell e Springer Science+Business Media
que, de acordo com os seus relatórios financeiros, apresentam lucros
anuais de bilhões de dólares16. Numa contradição característica da
inserção brasileira na globalização, as mesmas universidades que
defendem o direito de seus alunos à reprodução de textos essenciais
são incentivadoras do produtivismo científico que beneficia a monopolização do conhecimento17. Se se contrapõem ocasionalmente às
políticas lesivas dos detentores dos direitos autorais, as Universidades
contribuem, continuadamente, para a expansão da política de mercantilização do conhecimento.
Algumas considerações finais: território,
conhecimento e futuro
Vive-se, no território brasileiro, na encruzilhada entre a necessidade de informar-se e formar-se, um imperativo do nosso tempo, e
a apropriação privada do conhecimento, esse bem público que a toda
humanidade pertence. Por isso, pode-se afirmar que a pirataria de
livros, legalmente um crime, é legitima como resistência aos arranjos
socioespaciais criados pelo Estado e pelo mercado.
Face à distribuição seletiva e controle privado da informação, é sintomático, portanto, que os acervos digitais brasileiros de obras acadêmicas estejam entre os maiores do mundo: dada a escassez de bibliotecas,
a insuficiência da renda, a raridade das livrarias, a descontinuidade
das edições e seus preços elevados, a internet possibilita novas formas
de circulação da informação a menores custos. Mas, reafirmamos, é
16 De acordo com os relatórios anuais disponíveis em: Elsevier: <http://www.elsevier.com/wps/
find/intro.cws_home/financial> ; Wiley-Blackwell: <http://www.wiley.com/WileyCDA/Section/
id-301733.html;> e Springer Science+Business Media: <http://www.springer.com/about+springer/
company+information/annual+report?SGWID=0-175705-0-0-0>. Acessos em: 14/03/2012.
17 É sintomático desse processo o convênio firmado em agosto de 2012 entre a Universidade de
São Paulo e a BioMed Central, parte da Springer Science+Business Media. Pelo acordo, os autores
da Universidade terão 25% de desconto no pagamento da publicação de seus artigos em qualquer
revista da Biomed Central (no total são 243 periódicos) e a Universidade receberá, em contrapartida, uma cópia gratuita do artigo.
40
preciso ser crítico: saber o quê e onde procurá-la, saber diferenciá-la
(um texto de um blog não possui a mesma densidade científica de um
artigo ou livro acadêmico) e, evidentemente, usá-la criticamente. Nesse
sentido, a facilidade criada pelas redes telemáticas trouxe novos desafios
intelectuais. Há que se considerar ainda que o acesso facilitado a acervos em outros países faz com que o aprendizado de línguas estrangeiras
torne-se indispensável: não para qualificar-se para o mercado, mas para
conhecer, analisar e usar a produção intelectual exógena. Entre outros
exemplos, basta pensar naquela que outrora fora uma das principais
bibliotecas do mundo, a Medicea Laurenziana, em Florença, Itália,
cujos livros, traduzidos ou reproduzidos manualmente, estavam restritos apenas a alguns privilegiados do clero, das ciências e da aristocracia.
Hoje, este precioso tesouro está disponível on line, ao Mundo. Tempos
novos, nos quais a distância requalifica-se pela instantaneidade do
acesso à informação.
A resistência às políticas corporativas ligadas ao conhecimento
também se expressa no acesso gratuito a muitas revistas científicas
brasileiras e latino-americanas, especialmente aquelas dedicadas às
humanidades e às artes, o que nem sempre é a regra em outros países do
mundo e áreas do conhecimento. Há, assim, valiosas brechas novas que
se abrem para um diálogo intelectual latino-americano, que, mesmo
tendo sido historicamente preterido, é necessário como nunca.
Contudo, os agentes editorais avançam na tentativa de apropriação
dos novos artifícios tecnológicos, fazendo deles extensores técnicos de
suas estratégias territoriais de ação. Nessa direção, é mister destacar
o crescimento da importância das vendas eletrônicas de livros – um
oligopólio controlado por empresas estrangeiras –, que substituem
as já raras livrarias tradicionais, concomitantemente ao aumento dos
catálogos digitais das editoras nacionais. Todavia, ambas priorizam
os best-sellers à qualidade dos textos. No Brasil, o catálogo digital das
12 maiores editoras, em 2012, dobrou em relação ao ano anterior
(COZER, 2012 s/p.).
41
É preciso atentar-se, igualmente, ao fato de que a nova onda da
expansão do ensino superior privado no Brasil também se apóia nas tecnologias contemporâneas. De acordo com o INEP (2010, pp. 42-43),
15% das matrículas no ensino superior em 2010 foram realizadas na
modalidade “Ensino à Distância” (EAD), totalizando 930.179 alunos,
mais de 80% deles vinculados ao ensino privado e predominantemente
em cursos de licenciatura (46%). Mas, será essa a modalidade mais
adequada para atender às necessidades e carências dos alunos e da
sociedade? Aqui, reposiciona-se, novamente, a questão dos livros e de
suas cópias, pois o Ensino à Distância, em grande medida, abandona
as obras de referência em troca de conteúdos apostilados. Considera-se,
de nossa parte, que a complexidade do mundo contemporâneo exige
aprofundar, e não abrandar a formação teórica dos alunos, valorizando
a abstração como requisito para a compreensão das situações concretas.
Acelera-se, no tempo presente, a novidade e a sua banalização. A
intercomunicação técnica permite outras experiências de cognoscibilidade que engendram novas formas de pensar o mundo, de vivê-lo e de
usá-lo. Antes de diminuir a importância do ensino como um todo e do
ensino superior especificamente, essas características do presente reforçam a necessidade do conhecimento profundo dos processos em curso,
pois a avalanche de informações, por si só, não significa conhecimento,
tampouco comunicação, seu corolário. Ademais, a complexidade do
mundo atual exige que sistemas sólidos e igualmente complexos de
ideias sejam pensados com pleno rigor científico.
Mas, embora legítima, a pirataria de obras no Brasil não pode ser
vista com olhares ingênuos: ela é expressão das desigualdades socioespaciais do país. Ela manifesta formas organizadas de reprodução da
pobreza e, evidentemente, da concentração de riqueza, aí incluída a
informação, fator produtivo contemporâneo.
A pirataria de livros, como todas as outras piratarias, é portadora
de alternativas no seio do próprio modo de produção capitalista: ela é
representativa do desenvolvimento de técnicas e práticas sem as quais
o próprio sistema não se renovaria, no entanto, simultaneamente, ela
42
o desestabiliza. Essa contradição se expressa, com soberba, no território nacional.
Referências
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University of Cambridge, 2010.
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conhecimento. Bauru: Canal 6, 2008.
−− CONTEL, F. B.; LIMA, M. C. Internacionalização do ensino superior no
Brasil: commoditização do ensino e uso corporativo do território. In: Anais
do Encontro Internacional Geografia Tradições e Perspectivas. São Paulo,
2008.
−− COZER, R. Catálogo digital de editoras mais que dobrou em 2012. In:
Folha de São Paulo, 26/12/2012.
−− DOWBOR, L. Criatividade ou lucro: o professor e a propriedade intelectual. In: Le Monde Diplomatique Brasil, 30/09/2011.
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BENTLY, L.; KRETSCHMER, M. (ed.). Primary Sources on Copyright
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fevereiro de 2010.
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India). Study on copyright piracy in India. Government of India, 1999.
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43
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(original: Petits écrits relatifs au droit, Paris, Auguste Durand, 1853) [1785].
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Regula a extração de cópias reprográficas de livros, revistas científicas e periódicos
no âmbito da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, UNICAMP: 25
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−− USTR (The Office of the United States Trade Representative). Section 301
Annual Reports (2004-2006). Washington: Executive Office of the President
of the United States, 2007.
45
A Autoavaliação Institucional
Potencializando a Gestão Democrática
em uma Escola de Educação Infantil
Sálua Domingos Guimarães1*
Introdução
Este artigo pretende mostrar como um processo de Autoavaliação
Institucional (AI)2 está conseguindo potencializar a gestão democrática
em uma escola de educação infantil da rede municipal de Campinas3.
Relataremos a origem do processo e a formação dos vários coletivos,
em que passaram a se concentrar os grandes debates sobre o cotidiano
escolar, para demonstrar o quanto essa organização, criada pela própria
dinâmica da AI, tem conseguido elevar o nível democrático da gestão
daquela escola. Por último, comentaremos aspectos que inibem e outros
que fortalecem a participação democrática no cotidiano escolar.
Origem do processo
A rede municipal de educação de Campinas inclui em seu calendário escolar um evento chamado Reunião Pedagógica de Avaliação
Institucional (RPAI). Essa reunião é sempre realizada em dia não
letivo para garantir a participação da equipe educacional e das famílias. Cada escola tem autonomia para elaborar sua pauta de avaliação.
1 *Pedagoga, mestre em Educação na área de Ciências Sociais pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales de Buenos Aires, Argentina e orientadora pedagógica da rede municipal de Campinas.
2 Doravante, sempre que nos referirmos à Autoavaliação Institucional, usaremos a sigla AI (N. do E.).
3 A escola atende por volta de 500 crianças, de 0 a 6 anos, e sua equipe educacional é constituída
de aproximadamente 80 profissionais, incluindo todos os segmentos.
46
Como primeira iniciativa de organização do evento que está na origem
deste relato, apresentamos à direção da Unidade Educacional (UE) o
documento “Indicadores de Qualidade na Educação Infantil”4, elaborado por um conjunto de especialistas e instituições e publicado pelo
Ministério da Educação.
Após breve análise do texto, a equipe gestora5 aprovou a sua adoção,
considerando-o útil à operacionalização da AI. Trata-se da primeira vez
que se usou um documento base para apoiar o processo de avaliação
nessa Unidade Educacional.
Na etapa seguinte, o documento foi apresentado às professoras no
encontro de Trabalho Docente Coletivo (TDC), na semana que antecedeu a RPAI. Para as monitoras e as agentes de educação infantil, ele
foi explanado no encontro do Grupo de Formação. E para os demais
funcionários da escola, a proposta foi apresentada por setor, com uma
rápida e sintética explicação sobre o que é a AI e como iríamos realizála. Foram fixados dois murais na unidade com o intuito de mobilizar os
profissionais a participarem do processo. Os pais integrantes do Conselho de Escola foram convidados, por telefone, a participarem da RPAI.
Apesar desses convites, apenas as pessoas que atuam diretamente
na escola participaram efetivamente da RPAI. A ausência dos pais e
responsáveis deveu-se, provavelmente, ao fato de a comunicação ter
sido feita apenas na véspera da reunião.
O planejamento da RPAI ocorreu na semana do próprio encontro, o que inviabilizou um debate mais amplo sobre a aplicação do
documento acima mencionado. Apesar disso, observamos que houve
diferentes níveis de adesão ao processo.
Esse instrumento do MEC operacionaliza a própria AI, com base em
parâmetros de qualidade na Educação Infantil, definidos em documentos
oficiais da política educacional vigente no Brasil. Expressa determinada
qualidade por meio de indicadores. Apesar de ter sido aplicado na íntegra, várias adaptações foram realizadas em nossa experiência.
4 Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/indic_qualit_educ_infantil.pdf>.
5 A equipe gestora é formada por uma diretora, duas vice-diretoras e uma orientadora pedagógica.
47
Adotamos esses indicadores porque não tínhamos fôlego para criar
os nossos. De modo geral, pesquisadores (Bondioli, Dalben, Freitas) que
se debruçam sobre a qualidade negociada, defendem que os indicadores
sejam criados a partir do projeto político-pedagógico da escola. Por
exemplo, Freitas sustenta: “os indicadores têm de ser uma construção
social que se legitima e se desenvolve no interior da instituição escolar
e têm seu lugar natural no curso da avaliação institucional, induzida
e acompanhada pelas políticas públicas…” (FREITAS, 2005, p. 922).
Dalben afirma:
como a escola é um espaço comum e público, onde múltiplos e distintos interesses estão em jogo, essa característica
conceitual da qualidade é essencial no desenho do processo
avaliativo, ou seja, antes de avaliar é necessário que a
qualidade almejada seja negociada. Evidentemente, nesta
negociação devem ser inseridos os patamares mínimos que
competem à escola, especificados pela sociedade e pelo
poder público (DALBEN, 2010, p. 136).
Além disso, ambos coincidem que a negociação começa na definição
da qualidade que queremos para a escola, desdobrando-se desse debate a
elaboração dos indicadores. Entretanto, em nossa escola a dinâmica foi
diferente, pois a aplicação do instrumento do MEC criou um movimento
de ir dos indicadores para o Projeto Político-Pedagógico (PPP) e deste
para os indicadores. Em alguns aspectos, os indicadores nos ajudaram a
avançar no debate e a legitimar práticas que não eram aceitas por parte
dos profissionais da escola. Por outro lado, existe um consenso na equipe
educacional de que o documento do MEC representa muito daquilo que
queremos para uma escola de “crianças pequenas”.
Vale lembrar que o PPP apresentava conteúdos fragmentados e,
muitas vezes, incoerentes entre eles. Partes dele foram construídas por
vários sujeitos coletivos que já não estavam mais na escola. Outros trechos haviam sido elaborados às pressas por uma orientadora pedagógica
48
recém-ingressada na escola. Além disso, um número6 significativo de
professoras e agentes de educação infantil ingressou na rede em 2009 e
não se identificava com aquele projeto.
Decorridos três anos da largada do processo de AI, percebemos que
a decisão de utilizar o documento do MEC como referência, contribuiu
para a construção da identidade do grupo. No debate entre os sujeitos
coletivos inevitavelmente acontecia comparação e contraposição de ideias
expressas no PPP e nos indicadores. A qualidade negociada foi se constituindo nessa discussão. Quanto mais as práticas reais apareciam nos
argumentos, mais os indicadores influenciavam a construção do PPP.
A RPAI estava prevista para acontecer em três momentos: 1) exposição dialogada sobre avaliação institucional; 2) constituição de Grupos de
Trabalho (GTs) por dimensão7; 3) plenária para apresentação, discussão,
apreciação e aprovação das propostas dos GTs.
As discussões nos GTs foram coordenadas e registradas por duplas
indicadas pela equipe gestora, formadas por uma professora – no papel
de coordenadora – e uma monitora ou agente de educação infantil – no
papel de relatora. A participação das demais pessoas foi organizada por
meio de prévia inscrição em um GT de sua preferência. As vagas foram
limitadas por segmento.
No decorrer da RPAI o planejamento teve de ser alterado, pois o
trabalho em grupo exigiu muito mais tempo do que havia sido previsto.
Isso ocorreu porque consideramos importante aumentar o tempo de
discussão, pois isso poderia ajudar no fortalecimento de vínculos entre os
profissionais. A plenária ocupou, ao todo, dois períodos de trabalho, após
o recesso de julho de 20098. Na última sessão, os participantes elegeram
6 Por volta de 60% ingressaram na rede municipal (e na escola) naquele ano, incluindo os membros da equipe gestora.
7 As dimensões consideradas são: 1) Planejamento institucional; 2) Multiplicidade de experiências e
linguagens; 3) Interações; 4) Promoção da saúde; 5) Espaços, materiais e mobiliários; 6) Formação e
condições de trabalho das professoras e demais profissionais; 7) Cooperação e troca com as famílias e
participação na rede de proteção social; 8) Eventos. Esta última dimensão não está no documento do
MEC.
8 Por causa do surto de gripe provocado pelo vírus Influenza H1N1 (gripe suína), o recesso de
julho foi ampliado para as crianças. Isso proporcionou mais tempo para os profissionais da escola
concluírem a plenária de avaliação institucional.
49
uma comissão que, sob a coordenação da equipe gestora, deveria elaborar
o plano de ação da escola.
Nas RPAIs o debate por GTs é a base da metodologia; nesses grupos
procuramos assegurar a representação de todos os segmentos que atuam
na escola. O objetivo é garantir que a equipe educacional se aproprie
dos diferentes assuntos e conheça as demandas dos diferentes setores.
Muitas vezes, por causa do cotidiano dinâmico da escola, diminuem-se
as oportunidades de determinado setor conhecer as dificuldades e as
práticas de outro, que ocupa lugar diferente na estrutura organizacional
da unidade. Por isso, o trabalho em grupo é fundamental para o enriquecimento do diálogo no processo da AI.
Deflagramos, assim, o trabalho de AI na e da escola. O processo
passou a ser coordenado, planejado e organizado pela comissão que se
transformou em grupo de AI. Essa escolha baseou-se na ideia de que
não é possível construir uma cultura de avaliação como processo de
autoconhecimento e de autoavaliação, sem a participação daqueles que
têm relação com a escola.
Considerando a demanda de trabalho da AI e a responsabilidade
do grupo pela coordenação do processo, percebemos que não seria
possível cumprir todas as tarefas contando apenas com a jornada
regular dos educadores. Ou seja, as pessoas desse grupo necessitavam de mais tempo de dedicação. Acreditávamos, também, que
essa dedicação não deveria ser voluntária, mas remunerada. Diante
desse impasse, buscamos orientação das coordenadoras pedagógicas
do Núcleo de Ação Educativa Descentralizada (NAED)9, da região
Sudoeste, que indicaram a possibilidade de implantação da HoraProjeto10 de Autoavaliação Institucional.
9 A Secretaria Municipal de Educação atua de modo descentralizado por meio dos cinco Núcleos
de Ação Educativa Descentralizada (NAEDs), divididos de acordo com as regiões geograficamente
definidas pela política de descentralização da Prefeitura de Campinas.
10 A jornada do docente da Rede Municipal de Campinas é formada por tempos pedagógicos de
efetivo trabalho com as crianças, de trabalho individual e coletivo e de planejamento, totalizando
32 horas-aula semanais. Essa é a jornada básica. Além disso, o docente pode receber até 9 horas-aula
semanais, chamadas “hora-projeto”, para a formação e para projetos desenvolvidos na escola.
50
Desse modo, ao processo de AI, foram destinadas 26 horas-aula por
semana, distribuídas entre as quatro docentes do grupo, que tiveram
sua jornada ampliada para essa finalidade. A remuneração de horas
para dedicação a projetos é uma prerrogativa apenas dos docentes. Os
demais integrantes do grupo não puderam usufruir dessa possibilidade.
Isso fez com que a definição de quantidade de tarefas e horários de
trabalho de cada membro tivesse como critério a quantidade de horas
remuneradas dedicadas à AI. Lamentavelmente essa realidade cria
tensões na gestão do processo. Gerir essas tensões tem sido um desafio!
A primeira grande tarefa do grupo foi elaborar o plano de ação da
escola e apresentá-lo em uma plenária da equipe educacional, para
apreciação e aprovação, no final de 2009, com base nos dados coletados
na RPAI de julho do mesmo ano.
Os espaços-tempos e coletivos da Autoavaliação
Institucional
Os espaços-tempos da AI são constituídos por encontros de: a)
Reuniões Pedagógicas de Avaliação Institucional (RPAIs), com participação de toda a equipe educacional, que ocorrem no início do ano,
com foco no planejamento; e em abril, julho e dezembro, com foco
no levantamento e discussão de dados e no planejamento e execução
de ações; b) reuniões de trabalho da equipe de AI, com periodicidade
semanal; c) reuniões das comissões temáticas11, cuja periodicidade
depende da demanda de ações.
A participação dos sujeitos coletivos no processo de AI se concretiza
por meio dos encontros e dos diálogos, para que o debate e o confronto
de ideias aconteçam e se transformem mediante acordos firmados de
modo transparente. A cada momento o processo deve ser revisto e aprimorado, de acordo com os interesses e convicções do grupo. Mas não
basta o voluntarismo. Todos devem contribuir conscientemente para
que sejam criadas as condições objetivas para a concretização da AI.
11 Posteriormente, neste texto, iremos descrever a metodologia de trabalho da comissão temática.
51
Acreditamos que o processo de AI tem potencializado uma cultura
de análise do cotidiano, fundamentada nos princípios declarados no
PPP, enfrentando, desse modo, a tentação de realizar críticas ligeiras,
sem fundamentos.
Aperfeiçoar as práticas e aproximar-se do cotidiano da escola, identificando aspectos relevantes para a melhoria da sua qualidade, estimula
o crescimento da consciência de mudança dos coletivos de educadores.
Isso também impulsiona a construção da cultura de avaliação institucional como processo de autoconhecimento e de autoavaliação.
Avaliar uma realidade educativa significa acionar um mecanismo de crescimento geral do grupo envolvido, partindo
da exigência de observar o próprio cotidiano, de atribuir um
juízo de valor com base em instrumentos cientificamente
confiáveis que permitem coletar os dados de maneira sistemática, refletir sobre os dados coletados para atravessar
processos de mudança e de aprimoramento em relação à
situação inicial (BEEBY, 1997; FERRARI, 1994, apud
FERRARI, 2003, p. 23).
Os profissionais da escola se organizam em diversos coletivos para
garantir a realização da AI. Apresentamos, em seguida, cada um deles:
•Equipe educacional – Maior coletivo da AI, sempre presente
nas RPAI. Os sujeitos coletivos desse fórum participam por convocação, e isso produz grande impacto nas adesões ao processo
de participação. De modo geral, uma parte da equipe se envolve
efetivamente, enquanto outra apenas se faz presente. É nele que
são apreciadas e aprovadas as decisões relacionadas com a AI.
•Equipe de coordenação do processo de AI – A origem desse
coletivo se confunde com a do próprio processo. Foi criada em
princípio como uma comissão de representantes de segmentos
52
da escola12, responsável pela elaboração do plano de ação, em
2009, como vimos. Porém, no decorrer do processo acabou
assumindo a coordenação da AI, ao lado da equipe gestora.
Os objetivos desse coletivo são: a) liderar o processo de AI; b) definir
prioridades a partir dos dados produzidos pelos diversos grupos de trabalho; c) elaborar proposta de plano de ação; d) sugerir procedimentos de
monitoramento das ações; e) acompanhar e avaliar a execução do plano.
Em síntese, seu papel é coordenar, planejar e organizar todo o processo.
Por meio desse coletivo, o processo de AI começa a ocupar o espaço
de gestão da escola, no que diz respeito à articulação política. As grandes
decisões passam a ser tomadas coletivamente nos encontros da equipe
educacional. A gestão da participação passa a ser realizada por essa
equipe. As profissionais que a compõem começam, também, a assumir
papéis diferentes daqueles atribuídos tradicionalmente às professoras e
aos agentes de educação infantil.
•Comissões temáticas de trabalho – Com a finalidade de
garantir a continuidade do planejamento e execução de ações,
com impacto direto no trabalho com as crianças, a equipe da
AI elaborou uma proposta baseada na organização do trabalho
por comissão temática, que foi aceita por atender os princípios
defendidos no processo de AI e por garantir a operacionalização das ações.
Atualmente duas das comissões previstas já estão em atividade: uma
responsável pela (re)reformulação do parque e outra pela redação do
regimento interno da escola. Ambas foram constituídas por adesão
voluntária dos interessados. As duas comissões servirão como experiência-piloto para avaliar seu potencial democrático e de operacionalidade.
12 Monitores e agentes de educação infantil, professoras de diferentes turmas e períodos, funcionários e equipe gestora.
53
Para garantir o bom funcionamento delas, a equipe de AI elaborou um
guia de orientações sobre a organização do trabalho, dividido em cinco
itens: funcionamento, horário de trabalho, registro, desconto de horas
e disposições finais.
Os membros de cada comissão são responsáveis pela execução,
acompanhamento e manutenção das ações do Plano relacionadas com
sua temática. A equipe de AI se reúne a cada três semanas com os
seus integrantes para acompanhar e avaliar as tarefas. O cronograma é
definido conjuntamente pela comissão e pela equipe de AI.
Os horários de trabalho são diferentes para profissionais de cada
segmento participante das comissões: os professores devem realizar as
atividades fora de sua jornada básica; os agentes de educação infantil e
os monitores, preferencialmente, dentro de sua carga horária obrigatória, priorizando o horário de sono das crianças ou ao final do dia, no
período de saída delas. Caso o tempo não seja suficiente, eles poderão
usar horas fora de sua jornada, desde que em comum acordo com a
direção. Esse modo de organizar o trabalho ainda está em processo de
elaboração. Suas ações são (re)elaboradas e (res)significadas constantemente, com o propósito de aperfeiçoar os processos de participação.
Esses momentos são “cavados” pelos coletivos acima conceituados,
muitas vezes em conflito com a direção, pois as jornadas de trabalho
dos educadores (professores, monitores e agentes de educação infantil),
em geral não favorecem a realização coletiva das atividades necessárias.
Por isso, ter uma direção criativa, disposta a assumir riscos, a desburocratizar a gestão da escola, em suma, a garantir as condições para que as
mudanças se realizem, é fundamental para a consolidação de avanços
nessas práticas.
Para garantir a participação de todos, devemos primar pela organização desses coletivos garantindo o questionamento
…de forma rigorosa e sistemática de todas as atividades e
favorecendo a produção e consolidação das relações que
possibilitam o conhecimento e a atribuição de valor sobre
54
a instituição sem, no entanto, ter a finalidade de punir ou
de premiar. Deve ainda dar legitimidade política e ética ao
processo, sem as quais não se constrói a confiança intersubjetiva necessária para que todos tenham uma visão ampla
da instituição e os conhecimentos específicos da área de
avaliação (DALBEN, 2010, p. 136).
Essa organização dos coletivos contribui para a desconcentração do
poder, tanto na tomada de decisão, quanto na realização das ações. Percebemos, desse modo, que isso tem potencializado a gestão democrática
na escola. Observamos um movimento em ascensão caracterizado pelas
atitudes dos sujeitos coletivos que se expõem mais, procuram fundamentar suas posições, suas intervenções e se (co)responsabilizam pelas
decisões tomadas coletivamente. Tudo isso aumenta a complexidade
do processo, pois explicita o jogo das relações de poder no processo
de tomada de decisão (FREITAS, 2005). Por fim, esses coletivos assumem, também, a articulação política (que é a convivência entre sujeitos
com interesses diversos, cf. PARO, 2010) do processo de AI, com fortes
impactos na elaboração do PPP.
Reflexões sobre a prática real
Pretendemos aqui destacar alguns elementos que, de acordo com a
experiência relatada, inibem ou colaboram na efetivação da AI.
a) Elementos inibidores
Participação como sinônimo de presença ou de “tarefismo”. Ao
contrário do que alguns pensam, estar presente em uma reunião ou
executar tarefas de forma mecânica não significa participar. Participação é muito mais do que isso. Trata-se de um valor democrático,
pois significa compartilhar o poder e assumir as responsabilidades correspondentes. Exige conhecimento e habilidade, mas implica também
desejo e compromisso com os ideais coletivos.
55
Compreensão equivocada do processo. O processo de discussão
democrática é complexo e demorado. Uma de suas características é
promover um maior fluxo de informações em todos os sentidos. Essas
características fazem com que o processo entranhe riscos e dificuldades,
como, por exemplo, a possibilidade de compreensão distorcida dos conceitos e práticas envolvidos. Uma ideia preconceituosa ou mal assimilada
pode comprometer o andamento dos trabalhos quando disseminada.
Falta de envolvimento da direção. Como diz Anna Bondioli, “cada
ator social (…) propõe um ponto de vista próprio em relação à qualidade da creche, a partir da própria ótica (…) e age dentro da creche
de acordo com fins e modalidades nem sempre sinergéticos” (BONDIOLI 2004, p. 14). Se a direção fica alheia aos trabalhos dos coletivos
mencionados, não participa das reuniões da equipe de coordenação da
AI e não toma conhecimento das atividades das comissões, fragiliza
o processo de construção da gestão democrática. Em primeiro lugar,
acentua um grande conflito nas relações de poder: enquanto os coletivos
procuram transformar em rotina a tomada de decisão como resultado
da discussão de todos os envolvidos, a direção tenta manter a decisão
verticalizada, ainda que veladamente. Em segundo lugar, por causa da
falta de envolvimento, a função de articulação política que poderia e
deveria ser assumida pela direção, fica vaga. Desse modo, sua atuação se
concentra apenas na dimensão administrativa da gestão. Não é parceira
na ampliação da participação de todos na gestão da escola.
É evidente que uma situação como a descrita pode desmotivar e até
desmobilizar os participantes da AI. Mas pode, por outro lado, propiciar uma nova oportunidade de crescimento para os sujeitos coletivos,
ao gerar debates e reflexões sobre o próprio conflito em jogo. Nesse
caso, o espírito democrático terá criado raízes entre os profissionais da
unidade educacional.
Falta de participação das famílias e de profissionais de apoio.
Sabemos das dificuldades inerentes a processos como esse para garantir
a participação de funcionários da cozinha, da limpeza, da secretaria e
da vigilância na equipe de AI ou ainda nas comissões temáticas. Outro
56
grande desafio é conseguir a participação das famílias dos alunos. Os
horários rígidos da equipe educacional e as falhas de comunicação com
as famílias não favorecem a sua presença na escola. Como observa
Ângela Antunes
não bastam o discurso favorável e o lançamento de campanhas, convidando à participação. É preciso ter um plano
estratégico de participação e um cuidado especial com a
comunicação. Se, de um lado, é um dever da população
participar da gestão pública, por outro, ela tem o direito de
ser informada” (ANTUNES, 2002, p. 190).
b)Elementos favoráveis
Capacidade formativa. Acreditamos que um dos elementos fundamentais da AI é a sua capacidade formativa, que impulsiona os
profissionais da escola a refletirem sobre suas práticas. A produção e a
discussão de informações sobre o cotidiano, visando o aperfeiçoamento
do PPP, levam a uma postura mais consciente sobre o que é feito e sobre
o que é necessário ainda fazer. Isso estabelece uma espiral ascendente de
conscientização, que desnuda as práticas executadas por mero hábito e
mostra a importância de outras, mais críticas e reflexivas.
A concretização de um PPP de escola – de “crianças pequenas”
– é parte de um processo complexo de negociação entre aqueles que
o constroem. Ao exigir a participação ativa, que leva à reflexão, a AI
influencia diretamente nos processos formativos individuais e coletivos e
desencadeia a criação de uma cultura colaborativa e de trabalho coletivo.
Esse processo impulsiona um movimento e uma ação de esculpir a
fisionomia da escola, assim como faz o escultor para dar forma à matéria.
No nosso caso, são vários os sujeitos coletivos envolvidos na ação. Percebemos o quanto caminhamos, quando estes expressam, por meio de seus
discursos e de suas práticas, as formas que a escola está adquirindo.
Fazer a gestão democrática. Exercitar a gestão democrática é uma
tarefa difícil e trabalhosa, mas também capaz de gerar círculos virtuosos
57
em todas as áreas. Potencializar a conscientização da equipe educacional
para perceber a nossa capacidade de mudança e de transformar as práticas, baseadas no fazer por fazer, transformando-as em um fazer reflexivo,
investigativo, fundamentado, pensado e discutido entre os pares.
É possível dizer, no caso relatado, que já há grande desenvolvimento pessoal e profissional de todos os envolvidos, resultado de
experimentação de situações novas, de estudos aprofundados, de
organização e realização de reuniões, de tomadas de decisão sobre
prioridades e sobre aquilo que é considerado urgência ou que pode
aguardar um pouco mais. Um dos grandes desafios é abrir mão
daquilo que é particular e pessoal, sem perder sua identidade, em
nome dos desejos coletivos, respeitando e tendo como centro do
processo a ampliação das experiências de nossas crianças.
Não há como se tornar educador reflexivo se não nos arriscarmos
a experimentar; assim como não há possibilidades de falar em gestão
democrática se não a vivenciarmos. Nosso desafio é viver essa experiência. Nessa breve reflexão sobre nossa experiência, concluímos que a
AI tem sido funcional para os processos de decisão; portanto, é um
instrumento de gestão que pode ajudar a olhar a escola, mapeando
suas necessidades, definindo prioridades e desenhando um caminho
que busque a melhoria da educação infantil na unidade educacional.
Para concluir, tomamos as palavras de Antonio Machado, poeta
espanhol, para dizer que esse processo de AI, aqui relatado, está em
construção:
Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.
58
Referências
−− ANTUNES, Ângela. Aceita um conselho? como organizar o colegiado
escolar. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire, 2002.
−− BECCHI, Egle e BONDIOLI, Anna (orgs.). Avaliando a pré-escola: uma
trajetória de formação de professoras. Campinas: Autores Associados, 2003.
−− BONDIOLI, Anna. O projeto pedagógico da creche e sua avaliação.
Campinas: Autores e Associados, 2004.
−− BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Indicadores da Qualidade na Edu­cação Infantil. Brasília: MEC/SEB, 2009.
−− DALBEN, Adilson. Avaliação institucional na escola de educação básica:
uma aproximação orientada pelos princípios da participação. Educação:
teoria e prática, Rio Claro, v. 20, n. 35, jul-dez, 2010, pp. 133-146.
−− FREITAS, Luiz Carlos de. Qualidade negociada: avaliação e contraregulação na escola pública. Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 92,
2005, pp. 911-933.
−− FERRARI, Monica. Um percurso de formação em Pistóia. In: BECCHI,
Egle e BONDIOLI, Anna (orgs.). Avaliando a pré-escola: uma trajetória de
formação de professoras. Campinas, autores associados, 2003.
−− MACHADO, Antonio. Antología poética. Buenos Aires: Bureau Editor,
1999.
−− PARO, Vitor Henrique. A educação, a política e a administração: reflexões
sobre a prática do diretor de escola. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n.
03, set.-dez. 2010, pp. 763-778.
59
Educar Para Quê?
Cinthia Creatini da Rocha1*
Para que educamos nossos filhos? A resposta pode estender-se para
distintas direções, afinal, em geral, nós, euro referentes, somos ávidos
por “educar”. A “educação” está na pauta de inúmeros debates e reflexões, sejam eles do universo da academia, da política ou especialmente
daquelas famílias, cujos pais estão preocupados em “educar” seus filhos,
antes que a escola ou a sociedade em geral (mídia, amigos, etc.) faça isso
por eles. A “educação” é enfim, um produto de nossa “cultura” imbuído com valores que lhe são caros. Portanto, investigar “a educação” é
necessariamente investigar “a cultura”.
Roy Wagner, antropólogo britânico em seu célebre livro A invenção
da Cultura esclarece que:
nossa palavra “cultura” deriva de uma maneira muito tortuosa do particípio passado do verbo latino colere, “cultivar”,
e extrai alguns de seus significados dessa associação com o
cultivo do solo. (…) Em tempos posteriores “cultura” adquiriu um sentido mais específico, indicando um processo de
procriação e refinamento progressivo da domesticação de
um determinado cultivo, ou mesmo o resultado ou incremento de tal processo. (…) O sentido contemporâneo do
termo – um sentido “sala de ópera” – emerge de uma metáfora elaborada, que se alimenta da terminologia da procriação e aperfeiçoamento agrícola para criar uma imagem de
1 * Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em
Antropologia Social e Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa
Catarina. Co-diretora do documentário Mbyá Rekó Pyguá, a luz das palavras (2012) que retrata os
processos da educação no interior de uma aldeia Mbyá Guarani. E-mail: [email protected].
60
controle, refinamento e “domesticação” do homem por ele
mesmo (WAGNER, [1981] 2010, pp. 53-54).
É, portanto, desse modo, que se atinge o conceito “institucional” de
“cultura”, ou nas palavras de Wagner:
o verdadeiro cerne de nossa cultura, em sua imagem convencional, é sua ciência, arte e tecnologia, a soma total das
conquistas, invenções e descobertas que definem nossa idéia
de “civilização”. Essas conquistas são preservadas (em instituições), ensinadas (em outras instituições) e ampliadas (em
instituições de pesquisa) mediante um processo cumulativo
de refinamento. Preservamos uma vasta panóplia de idéias,
fatos, relíquias, segredos, técnicas, aplicações, fórmulas e
documentos como “nossa cultura”, a soma de nossas maneiras de fazer as coisas, a soma do “conhecimento” tal como o
conhecemos (idem, pp. 55-56).
Não à toa, se torna evidente que para nós, educação2 e cultura 3 são
conceitos muito próximos, definitivamente amarrados um ao outro
(para quem ainda estiver em dúvida, basta comparar as notas 1 e 2
2 Educação: sf (lat educatione) 1 Ato ou efeito de educar. 2 Aperfeiçoamento das faculdades físicas
intelectuais e morais do ser humano; disci­pli­na­mento, instrução, ensino. 3 Processo pelo qual uma
função se desenvolve e se aperfeiçoa pelo próprio exercício: Educação musical, profissional etc. 4
Formação consciente das novas gerações segundo os ideais de cultura de cada povo. 5 Civilidade. 6
Delicadeza. 7 Cortesia. 8 Arte de ensinar e adestrar os animais domésticos para os serviços que deles
se exigem. 9 Arte de cultivar as plantas para se auferirem delas bons resultados. (Fonte: Dicionário
Michaelis online).
3 Cultura: sf (lat cultura) 1 Ação, efeito, arte ou maneira de cultivar a terra ou certas plantas.
2 Terreno cultivado. 3 Biol Propagação de microrganismos ou cultivação de tecido vivo em um
meio nutritivo preparado. 4 Biol Produto de tal cultivação. 5 Biol O meio junto com o material
cultivado. 6 Utilização industrial de certas produções naturais. 7 Aplicação do espírito a uma
coisa; estudo. 8 Desenvolvimento que, por cuidados assíduos, se dá às faculdades naturais. 9
Desenvolvimento intelectual. 10 Adiantamento, civilização. 11 Apuro, esmero, elegância. (Fonte:
Dicionário Michaelis online).
61
que apresentam os significados encontrados no dicionário Michaelis
para cada uma dessas palavras). E, essencialmente, ambos se consagram na institucionalização de seus termos. Ora, não se precisa ser
nenhum antropólogo, nem ir muito longe, para dizer que, diante à
diversidade dos coletivos humanos (e também não humanos), não
existe uma única educação ou uma única cultura hegemônica – ainda
que alguns povos e governantes estrategicamente insistam nesta
posição. Mas, isso já seria assunto para outro debate. O ponto é
que, independente do lugar de onde se fale, ou seja, das referências
socioculturais do coletivo ao qual pertencemos, deve-se admitir que
“educação” e “cultura” são conceitos plurais e que, necessariamente,
eles caminham lado a lado.
Nesse contexto, de partilha de outras “educações” e outras “culturas” – além das nossas –, caberia perguntar também, para quê esses
“outros” educam seus filhos. E, já que partilhamos a esfera de um
mesmo planeta, quem sabe tal informação possa nos interessar ou
acrescentar algo que realmente faça sentido a nossa própria prática de
saber educar. Desde que iniciei meus estudos junto a distintos coletivos
indígenas, nos anos de 1998, sempre me interessei pelas maneiras diferenciadas com que eles tratavam suas relações interpessoais, fossem elas
da ordem política, familiar, de gênero, espiritual, econômica, enfim,
da ordem que lhes fosse significativamente importante. E foi por isso
que enveredei pelo caminho da antropologia, especialmente da etnologia indígena. Ao longo desses anos, realizei pesquisas (acadêmicas
ou institucionais, como consultorias e projetos) junto aos Kaingang
(RS, SC, PR), aos Mbyá Guarani (RS, SC, PR), aos Xokleng (SC)
e aos Tupinambá (BA). E com cada um desses coletivos indígenas
aprendi muitas coisas, sendo grata a todos eles por sua bondade em
repassar parte de seus conhecimentos. Aos poucos, fui me dedicando
a tentar compreender melhor como os povos indígenas – guardadas
suas especificidades socioculturais, históricas e políticas – conduzem
a “arte de educar”.
62
O povo Guarani ou qualquer povo indígena, já é cidadão
desde o nascimento. No momento em que ele se entende
como gente, ele já adquire isso. A educação indígena é
plena, desde sua concepção, no momento em que ela [a
pessoa] tem o entendimento como indígena, ele já tem
essa educação, até para lidar com o outro [humanos ou
não humanos]. Assim é que, a primeira escola que a gente
fala é dentro da Casa de Reza, onde estão os mais velhos
e as lideranças decidindo com relação à vida da comunidade. Ali, as crianças já estão vivenciando a educação,
observando como as lideranças se comportam dentro
daquela sociedade(Hyral Moreira, cacique da Aldeia de
Biguaçu/ SC).
A fala do cacique Mbyá Guarani coloca a “educação” como um
princípio vital, diferente do modo como nós não indígenas a compreendemos. Nesse sentido, a educação indígena não necessita passar por um
processo de refinamento institucional, pois ela é, desde sempre, o princípio pleno – e supremo – que permite aos indígenas compreenderemse como humanos. Sob as influências do contato com a sociedade não
indígena, os Mbyá Guarani passaram a afirmar que é na tradicional
Casa de Reza (Opy), espaço sagrado, onde encontram a primeira escola
da aldeia. Ali, toda a comunidade reúne-se em torno do fogo para ouvir
as palavras proféticas (orientações) dos mais velhos, especialmente do
karaí (líder espiritual) e das demais lideranças (consideradas os professores e o cacique) da aldeia. Esses são momentos oportunos para os mais
jovens observarem as atitudes e condutas que devem ser seguidas na
vida social, pois, futuramente, também serão eles que irão repassar tais
ensinamentos que seguem de geração em geração. Os comportamentos
são para os Guarani modos de existência indispensáveis, que significam
estar em boa relação com os seres visíveis e invisíveis.
Os mais velhos são valorizados por sua sabedoria e experiência,
portanto, ocupam posição de destaque na vida social indígena. Jamais
são deixados de lado (seja por abandono ou descrédito) e suas colo-
63
cações são sempre bem-vindas, pois são considerados os verdadeiros
professores da aldeia. Em uma sociedade onde o respeito é a palavra
de ordem, asilos, orfanatos e instituições corretivas são simplesmente
estruturas abomináveis.
Para os Guarani a educação se movimenta. Ela é viva.
Depende do lugar e das pessoas que estão naquele lugar.
Ainda que o objetivo seja o mesmo, o que muda é o jeito de
passar a convivência no lugar. O conhecimento e a educação
guarani são um quebra-cabeça, um tem que se encaixar no
outro. O respeito é a base da educação: não quebrar um
galho, não destruir uma árvore, etc. (Vanderley Moreira,
professor da Aldeia de Biguaçu/ SC).
É comum que a narrativa de histórias míticas se preste para estabelecer os parâmetros éticos e morais valorizados em diferentes culturas.
Na sabedoria indígena, os mitos anunciam verdades, enquanto que para
nós não indígenas, são na maioria das vezes fábulas mal contadas – o
que prejudica bastante o uso de tal ferramenta pedagógica.
Nós ocidentais, acreditamos que as crianças devam frequentar
uma escola com o intuito de serem educadas para “serem alguém no
futuro”. Esquecemos que somos o futuro de nossos antepassados e o
passado das gerações futuras, somos de fato, o presente. Acreditamos
ainda, que nosso modelo – de educação, de cultura, de pensamento,
de valores, enfim, de tudo – deveria ser universal, e por isso, o introduzimos, na maior parte vezes, de modo drástico e violento àqueles
povos e sociedades que são diferentes de nós.
A educação pro povo Guarani já vem desde criança. Então o
modelo de educação que temos são duas versões. Uma delas
é dentro da estrutura da escola. Mas, a educação indígena,
não só a Guarani, já vem desde que nasce, pois ela convive,
já se relacionando para ser respeitado e respeitar. Essa é
a forma que ela já adquire. A gente tem uma dificuldade
64
dentro da estrutura da escola que é convencional, que é
dado pela sociedade (não indígena) e é o inverso da cultura
guarani. Uma escola fora da aldeia, uma escola convencional, tem o objetivo de formar um cidadão. Porém, para o
povo Guarani ou qualquer outro povo indígena, a pessoa já
é cidadão desde o nascimento (Hyral Moreira).
No Brasil, os povos originários, desde o contato com os não indígenas, têm vivenciado realidades muito distintas daquelas que realmente
gostariam. Poderíamos elencar diversas situações nas quais o desrespeito para com os indígenas instaura insegurança e desigualdade social.
Insegurança em viverem suas culturas, educações e tradições de forma
autônoma, respeitando-se seus direitos diferenciados. Desigualdade
social, no sentido de que as populações indígenas, ainda que resistentes
a todos os massacres vivenciados e agentes da história humana, continuam sendo oprimidas e negligenciadas pelo Estado e pela sociedade
envolvente.
Hoje, os povos indígenas precisam (con)viver com os elementos
da cultura não indígena e, sabiamente o fazem – algo que deveríamos
aprender com eles, já que está mais do que na hora de também (con)
vivermos com os elementos da cultura indígena. Em algumas circunstâncias, tais apropriações se revelam em desencontros e rupturas, mas
mais que isso, observo que para os povos indígenas, a captura de elementos externos se dá pela via do desafio e da tradução. Como explica
o cacique da aldeia de Biguaçu, a casa de reza é a primeira escola, assim
como a escola convencional e toda sua estrutura também pode ser
chamada de Casa de Reza.
A gente também chama a escola, o prédio, de Opy (Casa
de Reza) porque lá tem toda uma sabedoria. É um filtro do
mundo de fora e do mundo de dentro da aldeia. Hoje a gente
tá levando dois mundos juntos. Um é o conhecimento que a
gente tem e o outro é o conhecimento de fora. Então, [a escola
65
convencional] é um avanço que a gente tem, até mesmo para
registrar [a sabedoria indígena] e ter a nossa defesa.
Cada aldeia apresenta uma realidade distinta e do mesmo modo,
também a educação é “viva e se movimenta”, como bem explicou o
professor indígena Vanderley. Eu ainda era uma estudante de Ciências
Sociais (na Universidade Federal do Rio Grande do Sul) quando me
tornei estagiária no Núcleo de Educação Indígena da Secretaria de
Educação do RS. No final dos anos 1990, a equipe da qual eu fazia
parte foi solicitada a acompanhar as reuniões junto aos Mbyá Guarani
de Santa Catarina que iniciavam o processo de introdução das escolas
formais em suas aldeias. Naquele momento, não havia um consenso
entre os indígenas, principalmente entre os mais velhos e jovens, sobre
a efetiva necessidade de aceitarem a presença das escolas na vida das
comunidades. Da parte dos mais velhos, diziam que já existindo a
educação própria dos Mbyá Guarani, qualquer instituição externa era
dispensável. Por sua vez, os jovens achavam necessário se aproximarem
da educação não indígena para utilizarem os conhecimentos adquiridos
em defesa e benefício dos próprios povos indígenas.
Com o passar do tempo e a realização de muitos debates, reuniões e
conversas entre os Mbyá Guarani, as escolas acabaram se consolidando
nas aldeias. O que acho mais interessante disso tudo é que, ao contrário
dos temores da época, a escola formal não atropelou a educação tradicional dos Mbyá, mas passou a operar como mais uma ferramenta de
manutenção e valorização do nhande reko (nosso costume, nosso modo
de ser Guarani). Isso porque os Mbyá Guarani foram (e são) agentes de
sua própria história, de sua própria educação e de sua própria cultura.
Certamente, se as rédeas desse processo não tivessem sido tomadas
por eles mesmos, talvez tudo fosse diferente. Mas, a questão é que,
ao envolverem a escola em todo o sistema de organização da aldeia,
fazendo uso do espaço e do currículo escolar como algo que lhes passou
a pertencer – e não o contrário, como algo que pertencia a um não
indígena –, os Mbyá nos mostraram para quê educam seus filhos.
66
Referências Bibliográficas
−− CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify. 2003 [1974].
−− CULTURA. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/ portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=cultura”palavra=cu
ltura>.
−− EDUCAÇÃO. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/
portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=educa%E7%
E3o>.
−− ROCHA, Cinthia Creatini da. Adoecer e Curar: Processos da Sociabilidade Kaingang. Dissertação de Mestrado, PPGAS/ UFSC. 2005.
−− ______. Estudo de Avaliação da Metodologia Utilizada pelo Prapem/
Microbacias 2 junto às Populações Indígenas de Santa Catarina – Relatório
Final. Epagri/ SC.(unpublished). 2008.
−− WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify: 2010
[1981].
67
A Proposta de “Educação
Internacional Americana” de Arthur
Orlando (1910): o Currículo como
Ferramenta Ideológica da Integração
Continental
Alex Ubiratan Goossens Peloggia1*
Any Marise Ortega 2**
O presente estudo se insere, por um lado, no campo da educação e,
por outro, naquele da política e das relações internacionais, uma vez
que procura verificar a função de uma proposta curricular pensada
como instrumento de integração política no continente americano.
Quanto ao primeiro aspecto, entramos nos campos da história da
educação, uma vez que se trata de uma proposta efetuada em um
contexto histórico determinado, somente podendo ser compreendida
em tal particularidade, e do currículo, conquanto se trate de verificar
uma concepção prescritiva de conteúdos educacionais. No que diz
respeito ao segundo aspecto, configura-se a análise da proposta como
pensamento político, também próprio às circunstâncias da época, mas
refletindo uma concepção do relacionamento internacional na qual a
educação se afirma como elemento ideológico impulsionador de um
projeto político.
1 * Geólogo, Doutor em Ciências (USP), professor e psicanalista: Centro Universitário SENAC
(SP), Faculdade SENAI de Tecnologia Ambiental (SBC-SP) e Centro Universitário Metropolitano
de São Paulo (Guarulhos, SP).
2 ** Historiadora, pedagoga, Doutora em Ciências Sociais (PUC-SP), professora e psicanalista.
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e Centro Universitário Metropolitano de São Paulo
(Guarulhos, SP).
68
Estamos nos referindo, especificamente, à proposta de uma
“Educação Internacional Americana”, veiculada por Arthur Orlando
(1858-1916) em artigo de idêntica denominação publicado na edição
de março de 1910 da Revista Americana, uma publicação notadamente
voltada para as questões políticas (particularmente as internacionais),
mas também para diversos outros aspectos da vida intelectual e cultural
do continente.
O estudo será apresentado procurando mostrar a proposta da educação internacional americana em seus próprios termos, através da análise
imanente do texto de Orlando, bem como a inserindo em seu contexto
histórico particular, o que propiciará o entendimento de sua função
ideológica, propósito e razão de ser.
O autor e a obra em seu contexto
Arthur Orlando (1858-1916), pernambucano do Recife, formado
pela Faculdade de Direito, foi advogado, jornalista e político. Ingressou
na política e na administração com o advento da República, exercendo
o cargo de diretor da Instrução Pública de Pernambuco, sendo eleito
deputado, senador estadual e deputado federal. Figurou entre os redatores do jornal A Província, na década de 1890, e dirigiu o Diário de
Pernambuco entre 1901 e 1911. Pertenceu às academias Pernambucana
e Brasileira de Letras e integrou, juntamente com intelectuais como
Tobias Barreto, Sílvio Romero e Clóvis Beviláqua, dentre outros,
a chamada “Escola do Recife”, corrente dedicada ao pensamento
jurídico, sociológico e filosófico, e é considerado um continuador do
neokantismo no Brasil (PAIM, 1967, p. 144; PAIM, 1975, p. 7 e ss.;
MACHADO NETO, 1969, pp. 136-137).
Conforme anota Paim (1975, p. 14 e ss.), o movimento intelectual
da “Escola do Recife” surge no bojo e como diferenciação no assim
chamado “surto de idéias novas” dos anos 70 do século XIX, e que
tratou inicialmente do combate aos suportes teóricos da monarquia.
Tratar-se-ia de uma “frente cientificista”, divergente do positivismo,
69
e que se notabilizou pela reforma da compreensão do direito, mas
também em outros diversos campos (“da poesia à política”, como
anota o autor citado), e tendo como elemento unificador a filosofia.
Orlando foi, dentre os integrantes do movimento, o único a exercer
prolongada militância política.
Orlando contribuía com a Revista Americana, publicação veiculada
entre 1909 e 1919 e da qual participavam, como articulistas, outros
intelectuais provenientes da “Escola do Recife”, como Romero e Beviláqua. Estava-se vivendo, então, um período particularmente interessante da história mundial, cujo contexto mais amplo era a expansão
européia do fim do século XIX, uma época frequentemente marcada
pelos historiadores, cronologicamente, como iniciada em 1871 (com
a guerra Franco-Prussiana e a emergência do Estado alemão unificado) e terminada com a I Guerra Mundial: o que Hobsbawn (2002)
denomina “era dos impérios”, assinalando que a particularidade do
período em questão foi justamente o desenvolvimento desse novo tipo
de imperialismo, caracterizado pelo “império colonial” e pela “zona
de influência”. E os principais traços da conjuntura internacional do
período são sintetizados da seguinte forma por Bueno (1995, p. 19):
o imperialismo econômico (ou colonialismo explícito, nas áreas mais
atrasadas); a disputa interimperialista por áreas de influência ou fatias
de mercados, e a divisão internacional do trabalho entre países industrializados e agroexportadores.
Seja como for, a “era dos impérios” reflete, a partir de 1870,
profundas modificações no âmbito mundial do capitalismo: “em
1861-65, a escravidão é abolida nos Estados Unidos, ao mesmo tempo
em que a servidão é abolida na Rússia; entre 1868 e 1870, se dá a
unificação da Itália e da Alemanha, o que cria condições propícias
à rápida industrialização desses países; em 1867 se dá a Revolução
Meiji, que tem as mesmas consequências para o Japão; finalmente
é por este período que as potências coloniais européias ‘abrem’ a
África negra ao capitalismo” (SINGER, 1989, pp. 347-348), com a
Guerra dos Zulus, a aquisição da Costa do Ouro (dos Holandeses,
70
pelos britânicos), a Guerra dos Ashanti (década de 1870), a descoberta
do ouro do Witwatersrand e a fundação de três grandes companhias
britânicas na África, na década de 1880.
Anote-se que, por necessidades de eficiência, as novas indústrias
exigiam grandes investimentos de capital em unidades produtivas de
grande escala, estimulando o desenvolvimento de mercados financeiros
e instituições bancárias e, enfim, contribuindo para elevar a escala
geográfica das operações das nações industrializadas, uma vez que as
grandes empresas possuíam recursos para pesquisa de âmbito mundial
e exploração de matérias primas essenciais (MAGDOFF, 1979, pp.
36-37). Configura-se, assim, o fenômeno por vezes denominado de
“primeira globalização”:
Sob a pressão e as oportunidades das últimas décadas
do século XIX, uma parte cada vez maior do mundo foi
explorada como produtora primária para as nações industrializadas. Dissolveram-se na economia mundial regiões
econômicas auto-suficientes, envolvendo isso uma divisão
internacional de trabalho, com as principais nações industrializadas fabricando e vendendo produtos manufaturados
e o resto do mundo abastecendo-as de matérias-primas e
alimentos (MAGDOFF, 1979, p. 37).
Enfim, como resume Hobsbawn (2002, p. 95), tratou-se de criação
de uma economia global única, atingindo progressivamente os lugares mais distantes e configurando “uma rede cada vez mais densa de
transações econômicas, comunicações e movimentos de bens, dinheiro
e pessoas ligando os países desenvolvidos entre si e ao mundo não
desenvolvido”.
O Brasil, neste contexto, vivia justamente como um país agroexportador inserido de forma subordinada na divisão internacional do
trabalho, e com um setor de mercado externo extremamente especializado e dependente de um só produto (SINGER, 1989, p. 349). Assim,
com um grau de desenvolvimento capitalista relativamente baixo, no
71
plano da política externa, o período histórico de 1889 a 1918 é dividido
por Bueno (1995, p. 11 e ss.) em dois momentos. O primeiro, até 1902,
marcado pelo redirecionamento da política internacional brasileira
para o contexto hemisférico, e o segundo, até 1918 – fase de apogeu
da República Velha – caracterizado por relativa tranquilidade política,
realizações materiais e, especialmente, pela figura do Barão do Rio
Branco à frente do Ministério das Relações Exteriores.
O americanismo e a Revista Americana
Como relata Cândido (1993, p. 134), a Revista Americana, publicada entre 1909 e 1919, foi uma iniciativa importante e que marcou, no
Brasil, a manifestação de uma política de aproximação entre os países
do continente, com o objetivo de promover maior conhecimento recíproco entre as nações latino-americanas, e privilegiando colaborações
referentes à expressão das culturas próprias de cada país, ao tema do
pan-americanismo, à integração continental e à cultura europeia.
O pensamento político presente na Revista Americana foi extensamente estudado por Ortega (2000, 2003), cujas reflexões fundamentam as próximas considerações referentes a essa publicação.
Esta teria como sua razão de ser a ideia da aproximação intelectual
entre os povos americanos (em seu todo), o que seria feito a partir da
divulgação de manifestações espirituais e do acompanhamento da
evolução político-econômica do continente, visando “tornar-se um
traço de união entre as figuras representativas da intelectualidade
desta parte do mundo”, como se lê no editorial do número de janeiro
de 1911, da referida publicação.
No contexto da época, o pan-americanismo situava-se como traço
marcante dentro da política externa brasileira (de Rio Branco). As
expressões desse ideário podem ser consideradas integrantes de uma
ideologia que buscava a integração das Américas com o objetivo de
possibilitar o acesso de suas partes mais frágeis (a América Latina e,
particularmente, o Brasil) ao progresso e à segurança frente ao con-
72
turbado quadro internacional antecedente a I Guerra Mundial, que
vimos acima. Tal processo de construção ideológica se daria, então,
de duas formas: primeiro, pela iniciativa da aproximação intelectual
entre as nações americanas e, enfim, pela tentativa de criação de uma
opinião pública pan-americana.
Na verdade, a política externa do Barão do Rio Branco pode ser
entendida através de três categorias explicativas relacionadas a diferentes níveis de escala de análise geográfica: no nível mundial, tratava-se de
evitar os prejuízos que poderiam advir de um conflito europeu em larga
escala; no nível hemisférico, admitir como fato a predominância norteamericana, convivendo com ela como possível, e, no nível regional,
garantir o apoio norte-americano para a sustentação da influência brasileira, tendo em vista especialmente o enfrentamento com a Argentina.
Nesse quadro, utilizando a concepção expressa por Ricupero que
se refere à convergência ideológica, ao pragmatismo e ao esforço de
harmonização de interesses como os três elementos constituintes da
estratégia política de Rio Branco – o primeiro paradigma de nossa história diplomática –, a Revista Americana aparece como parte integrante
do primeiro elemento. Assim,
(…) a Revista Americana congregava uma tendência intelectual dominante pan-americanista, que se esforçava por
construir um modelo de americanidade que, afastado de
uma perspectiva propriamente latino-americana, calcava-se
na aceitação da hegemonia norte-americana (não só em
termos econômicos ou militares, mas como modelo cultural
a ser espelhado), e que se coadunava, como esforço ideológico, aos objetivos da política externa brasileira da época,
levada a cabo por Rio Branco. Esta, em síntese, reconhecia
suas próprias fraquezas frente às potências mundiais, mas
procurava propiciar ao Brasil ocupar um papel de potência
regional: marchar com os Estados Unidos sempre que possível, reconhecendo-lhe a esfera de influência e garantindo-se
um relacionamento amigável (e um mercado aberto), e refu-
73
tar os imperialismos europeus, propugnando pela solução
pacífica e arbitrada das questões internacionais (ORTEGA,
2003, pp. 253-254).
Não existiria, no entanto, paradoxo entre tal concepção política,
reconhecidamente realista, e o discurso predominantemente idealista
(voltado para o apelo aos tratados e negociações institucionalizadas),
uma vez que, ao se identificar a fragilidade e a situação subordinada do
Brasil em relação ao poder econômico e político, tratava-se de “contrabalançá-los” com o poder ideológico. A estratégia seria a apropriação
da idéia de monroísmo3 (proveniente justamente daquele que se quer
atenuar as demais dimensões de poder, ou seja, os Estados Unidos)
e sua utilização em proveito próprio. Assim, uma política “realista”
lançava mão, nestas circunstâncias, de instrumentos ideológicos “idealistas” (ou “legalistas”), voltados para a criação de uma opinião pública
internacional (expressão da vontade geral nas relações internacionais)
favorável, ou seja, legitimadora de posições políticas e voltada para a
defesa do direito internacional.
Este “amálgama entre idealismo e realismo” poderia então ser
entendido como, usando uma expressão de Miguel Reale, um “ato de
conciliação e compromisso teórico”, e que seria característico da tradição do pensamento brasileiro, pautado historicamente pela apropriação
de idéias exóticas que, ao serem utilizadas como instrumentos de ação,
reorientam-se “ao sabor do clima local” (uma antropofagia teórica) e
podem desempenhar funções e assumir conotações por vezes bem
distintas das originais.
Fundamentos políticos e objetivos da proposta
educacional de Arthur Orlando
Arthur Orlando, na Revista Americana, representava especificamente, conforme também mostrou Ortega (2003) – cujas reflexões
3 O termo se refere à Doutrina de Monroe, conhecida pela máxima “a América para os americanos”.
74
continuam nos servindo de base para este tema –, um pensamento
que se caracterizava pela inserção da ideia de relativização do conceito
de soberania e pela defesa da necessidade de uma organização internacional dos Estados, e que via nas fronteiras as funções de comunicação, penetração, entrelaçamento e solidariedade, ou seja, como
“órgãos sociais da vida internacional”. E que, além disso, vislumbrava
que as questões industriais e comerciais tendiam a ser o objeto prioritário das chancelarias, defendendo a organização jurídica das relações
econômicas internacionais. Em particular, defendia Orlando a proposta de uma “União das Repúblicas Americanas”, assentada sobre
bases jurídicas de códigos de direito internacional público e privado,
cujas bases seriam a arbitragem como meio regular para a solução de
conflitos e o estabelecimento de uma lei internacional e de tribunais
permanentes.
O pensamento de Orlando sobre as relações internacionais, que
poderíamos aqui considerar como “idealista”, de forte acento kantiano
(ou “legalista”, no sentido atribuído por RESENDE, 2002) e cunho
político liberal, representava, enfim, um pensamento “além da época”,
ou melhor, que via possibilidades de desenvolvimento do sistema internacional sob um prisma de integração e cooperação que só bem mais
tarde foi algo propiciado.
Destaca-se, ainda, a tentativa de caracterização da América, feita
pela Revista Americana, como um novo mundo original e diferenciado,
o que expressaria um caráter americano próprio, fruto de seu desenvolvimento histórico particular. Nesse sentido, no artigo “Educação
Internacional Americana”, Orlando define o “ideal americano”:
O continente americano é formado de um povo de Estados que respiram uma mesma atmosfera política e aspiram
a um mesmo ideal, o Ideal Americano, que, à maneira
dos corpos celestes, age iluminando e ilumina agindo. O
Ideal Americano não significa despotismo militar ou plutocrático, nem quer dizer imperialismo particularista ou
comunário: traduz a aspiração tão nobre quanto elevada
75
de articular as três Américas em um grande todo especial,
com o fim de garantir à civilização do Novo Mundo seu
pleno desenvolvimento e fazer girar toda a terra sobre o
eixo econômico da riqueza de mãos dadas à justiça. Não
colimando o Ideal Americano outro fim senão harmonizar o nacionalismo e o humanismo, as duas grandes
forças, a que, no mundo físico, correspondem à atração
e a repulsão, os Estados que forem envolvidos em sua
órbita nada sofrerão em sua autonomia, independência e
integridade, embora tenham de ceder um pouco de sua
ilusória soberania (ORLANDO, 1910, p. 351).
Assinale-se que o autor estudado considera que, mesmo sendo
possível colocar-se em dúvida a existência de uma “alma americana”,
não se poderia negar que os povos americanos (politicamente similares)
“sentiriam a necessidade” de realização do “ideal da supremacia pela
organização”, de modo a alcançar-se a paz e a justiça sem sacrifício da
independência, costumes, tradições, tendências e aspirações.
De fato, como anota Paim (1975, p. 10), a preocupação de Artur
Orlando com a política americana se verifica em sua atuação como
redator-chefe do Diário de Pernambuco, na primeira década do século
XX, quando a questão “merece sempre toda a atenção”. Em 1906,
Orlando publica a obra Pan-americanismo, em que, também conforme
Paim (1975, p. 12), “desenvolve a hipótese de que à América estaria
reservada a tarefa de levar à esfera econômica a obra civilizatória e
humanizante que ao cristianismo incumbira no âmbito da religião”.
Tratar-se-ia, assim, de “organizar o pan-americanismo em defesa da
nova concepção de justiça, de moral, de religião, de arte”. E a preocupação com a educação, por sua vez, decorre provavelmente, podemos
pensar, em grande medida de sua atuação pública, fica registrada em
discurso de 1907 sobre a “Reforma do Ensino”, considerado por Paim
(1975, p. 12) uma “amostra significativa da amplitude com que se lançava à análise dos problemas”.
76
É neste contexto histórico e intelectual particular, e com tais preocupações, que se insere a proposta de uma Educação Internacional
Americana, lançada por Orlando na Revista Americana em 1910. Devese ressaltar, todavia, que a proposta de Orlando sobre a questão educacional não foi uma iniciativa isolada. Como mostra Kuhlmann (2001,
p. 146 e ss.), além da discussão dos aspectos políticos, econômicos e
diplomáticos, a questão da congregação continental produzia eco no
plano científico e cultural.
Assim, especificamente na área educacional, a movimentação é
registrada pelo menos a partir de 1882, com a realização do Congresso
Pedagógico Internacional em Buenos Aires, seguindo-se os Congressos
Científicos Latino-Americanos (Buenos Aires, 1889; Montevidéu,
1901; Rio de Janeiro, 1905; Santiago, 1908-9), dentre outros eventos
(KUHLMANN, 2001, pp. 146-147). Nesse contexto, no Congresso
do Rio, em 1905, por exemplo, na sessão de Ciências Pedagógicas
foram discutidos temas como a obrigatoriedade do ensino primário,
recomendando-se que este princípio fosse “inscrito na legislação dos
povos latinos sul-americanos”.
O “currículo americano”
Como é sabido, o conceito de currículo, em educação, pode ser
entendido em níveis diferenciados de abrangência e especificação.
Inicialmente empregada para referência ao conjunto de conteúdos a
serem estudados em um curso, a expressão teve seu uso diversificado.
Se tomarmos a proposta da “Educação Internacional Americana” de
Arthur Orlando como um plano curricular4 – e de fato o é – podemos
identificar nela os diversos elementos estruturadores do currículo.
O primeiro elemento, ou seja, suas premissas ou fontes, foi visto acima:
tratam-se, em essência, dos esforços de construção da integração política
4 Basicamente, o currículo pode ser considerado de dois modos básicos: como plano e como
processo. No primeiro caso, que é o que aqui se apresenta, tem a função de explicitar um projeto –
ou seja, as intenções e o plano de ação – que presidirá uma atividade educativa. Configura-se, assim,
em um guia ou instrumento de orientação (COLL, 2002, pp.43-44).
77
e econômica no continente. O segundo elemento estruturador são os
objetivos educacionais (ou seja, as intenções subjacentes ao currículo e que
dão respostas à pergunta “por que ensinar?”). Para Orlando, seria de todo
vantajosa a organização de uma educação internacional americana como
passo prévio e precedente para a edificação de uma “Constituição Política
do Novo Mundo”, ou seja, a integração política do continente americano
(ORLANDO, 1910, p. 355). Tal providência seria mais importante, para
o autor, que qualquer outra organização, mesmo a militar.
Devemos lembrar que, para Orlando, a nova união americana deveria se assentar em bases jurídicas. Todavia, citando Michelet, o autor
considera que todo sistema de legislação se torna impotente quando não
se coloca a seu lado um sistema de educação: “antes de tentar qualquer
reforma, é preciso que o ensino faça do cidadão o sujeito vivo da lei,
para que esta não tenha a sorte de hóspede importuno” (ORLANDO,
1910, p. 357; grifo nosso). Portanto, temos aí os objetivos: formar um
cidadão ativo e defensor da organização legal da sociedade.
O terceiro elemento estruturador do currículo é o conteúdo e sua
forma de estruturação (respondendo à questão “o que ensinar?”). Temos
aqui o currículo em sua acepção mais específica e restrita, ou seja,
uma “grade” ou “matriz curricular”. Nesse sentido, Orlando, no artigo
que estamos analisando, em primeiro lugar considera que a educação
internacional americana (seus conteúdos) deveria ser organizada “de
acordo com a economia do meio social, sob cuja influência ela será
articulada e sobre o qual, por sua vez, ela terá de influenciar”. Portanto,
o critério básico de organização do currículo é a correspondência do
que é ensinado com a própria realidade social, que fornece os conteúdos
da educação que, por sua vez, deverá voltar-se para a própria realidade
que a originou, influenciando-a. Tal entendimento “dialético” da reciprocidade entre sociedade e educação será retomado, como sabemos,
por diversos autores posteriormente.
Em decorrência disso, na concepção exposta por Orlando, seriam as
ciências sociais que articulam os conteúdos da educação internacional
americana, estes que se constituem em:
78
1. Ensino de Geografia:
mas da Geografia que se ocupa da Terra, esta considerada
como um organismo cujas partes estão todas numa dependência recíproca, da Geografia que dá aos fatos telúricos toda
a sua significação e alcance e oferece a imagem fiel de uma
evolução contínua, da Geografia que mostra como a vida das
plantas e dos animais se harmoniza com as fórmulas terrestres, e como esse todo se reflete e se imprime nos fenômenos
vitais da humanidade (ORLANDO, 1910, p. 358).
Tal concepção de uma geografia ecológica e sistêmica, expondo
conceitos como dependência recíproca e uma formidável visão de
conjunto muito cara à moderna ciência ambiental, e que não fica a
dever a nenhuma concepção atual de educação ambiental, mostra
outra vez o alcance e modernidade das idéias de Arthur Orlando.
Na verdade, a referência ao papel do estudo geográfico em concepção ampla já aparece esboçada no discurso Reforma do Ensino:
Um mais exato conhecimento de nossa geografia, tomada a
palavra geografia em sua mais larga acepção, no sentido não
somente de descrição pitoresca da superfície da Terra, das
montanhas que se elevam tantos metros acima do mar ou dos
rios, tantas léguas de curso, mas ainda de influência climatérica (meteorologia), de influência geométrica e aritmética
(território e população), de influência física e química do solo
e subsolo (geologia e mineralogia), influência das plantas e
animais (botânica e zoologia) nos fará compreender melhor
nossa história, escrever melhor nosso futuro, e dirigir melhor
nossa política interna e externa, nossa economia nacional e
nossa higiene social (ORLANDO, 1975 [1907], p. 272).
Para Orlando, seria do ponto de vista geológico que o conhecimento
da geografia viria a se impor, em relação à economia ou à “higiene social”:
79
Pelo que vem dito se podem avaliar as grandes vantagens
que para a higiene social resultam do conhecimento do solo
e da organização das cartas geológicas, sobretudo para o
que diz respeito à captação das águas potáveis e à luta contra
a poluição deste imprescindível elemento de vida. /…/ Mas,
além de importância capital das investigações geológicas
na solução do grande problema das águas potáveis, elas se
prendem intimamente ao desenvolvimento das indústrias
extrativas, pelas relações existentes entre a natureza dos
terrenos e os diversos minérios, pedras preciosas e metais
(ORLANDO, 1975[1907], pp. 273-274).
É de se notar na concepção geográfica exposta pelo autor um
acento de estilo de Eliseu Reclus (este de fato citado por Orlando
no artigo que estamos analisando), bem como uma analogia com
o pensamento de Euclides da Cunha, este também ligado, como se
sabe, e como Orlando, ao círculo de colaboradores mais próximo
do Barão do Rio Branco. Esta analogia se assenta essencialmente na
preocupação da aplicação prática do conhecimento na resolução dos
problemas históricos seculares da sociedade brasileira, postulando-se
então formas diferenciadas de apropriação do território e de manejo
de seus recursos, num espírito “desenvolvimentista” que seria destacado a seguir por Monteiro Lobato.
2. O Ensino de História das Ciências, Letras, Artes, Indústrias
e Religiões:
“em uma palavra, do que Sylvio Romero chama as ‘criações
fundamentais da humanidade’” (ORLANDO, 1910, p.
358). Nota-se, portanto, a valorização do patrimônio cultural herdado socialmente, identificando-se aqui um sentido
“conservador” da educação como fato social.
É aplicável a esta concepção de Orlando a caracterização realizada
por Álvaro Vieira Pinto (1997, pp. 30-31), em Sete Lições Sobre Educação
80
de Adultos, conquanto a educação, referindo-se à sociedade como um
todo, é determinada pelo interesse de integrar todos os seus membros
à forma social vigente (reproduzindo-se), a própria dinâmica da educação, atuando em sentido oposto, engendra o progresso social, ou seja, a
“diferenciação do futuro em relação ao presente”.
3. O Ensino da Etnologia ou Sociopsicologia dos Povos:
…cujo conhecimento é indispensável para a solução
do problema da colonização ou, melhor, da importante
questão da adaptabilidade ou inadaptabilidade de certas
raças às condições especiais do continente americano. Os
povos do novo mundo são interessados em que as migrações se operem de modo que não venham prejudicar o
desenvolvimento gradual e progressivo das nacionalidades
(ORLANDO, 1910, p. 358).
Observa-se aqui que Orlando é, todavia, um homem de seu
tempo, preocupando-se com as questões palpitantes do momento (e
os grandes movimentos migratórios, de europeus e asiáticos, para o
território americano, certamente foram objeto importante da reflexão
sociológica contemporânea), o que se reflete em conteúdos educacionais
“instrumentais”, práticos: “para estudar as criações fundamentais da
humanidade é preciso conhecer os fenômenos sociais, distinguir seus
caracteres internos e externos e saber classificá-los” (ORLANDO,
1910, p. 358). Note-se, ainda, o cunho naturalista e evolucionista do
discurso, que possivelmente reflete o naturalismo spenceriano5 muito
influente, como se sabe, no pensamento da Escola do Recife.
4. O Ensino da Ciência Econômica:
Orlando, mesmo rejeitando o marxismo e expondo uma concepção,
em essência, de cunho liberal, considera que então ninguém imaginaria
5 Relativo à doutrina social de Spencer, que procura explicar os fenômenos sociais e econômicos a
partir do biológico.
81
“a importância capital do fator econômico da solução dos problemas
sociais”. Veja-se:
Além de que todos os fenômenos sociais trazem mais ou
menos o cunho do elemento econômico, sucede que a
igualdade abstrata perante a lei, consagrada nas modernas
constituições políticas, fez os homens pensarem em uma
igualdade efetiva na sociedade. Já não há homens excluídos
da propriedade, todos podem vir a ser proprietários e, então,
o grande problema é fazer desaparecer a flagrante contradição
entre a igualdade jurídica e a desigualdade econômica, entre a
apregoada igualdade de direito e a monstruosa desigualdade
de fato (ORLANDO, 1910, pp. 358-359).
No entanto, para Orlando, a solução se daria pela associação da
ideia de justiça à economia, pela organização jurídica das relações
econômicas, mas “sem abalos nem violências, de modo pacífico, sem
ataque aos direitos individuais”. E, para a efetivação da justiça nas
relações econômicas, através do Direito Econômico, far-se-ia necessário
“encarar as relações econômicas sob o ponto de vista de uma justiça
internacional” (p. 359).
5. O Ensino da Higiene Internacional:
uma vez que “no estado atual da civilização, a facilidade e
rapidez das comunicações, a tendência cada vez mais cosmopolita das relações humanas, sejam usos, costumes ou
instituições, deram às moléstias um caráter internacional
até hoje desconhecido” (ORLANDO, 1910, p. 360).
Talvez aqui, mais importante do que o conteúdo em si, o que se deva
ressaltar é a percepção do autor em relação ao seu contexto, ou melhor,
o reflexo no currículo da interpretação do mundo feita por Orlando,
em que se percebem e ressaltam várias características de uma época
82
de desenvolvimento das relações internacionais, que como vimos pode
ser referida como “primeira globalização”, e em decorrer do que certos
temas, antes pouco lembrados, passam a integrar o campo de interesse
comum de diversas sociedades.
A catástrofe da gripe espanhola, que se seguiu à I Guerra Mundial,
e que iria devastar inclusive a esquadra brasileira enviada ao “Velho
Mundo”, quando esta estava ainda na África, parece dar uma importância premonitória formidável à preocupação de Orlando com a saúde
pública internacional. Algo que se sente novamente em tempos de “globalização” de epidemias como foram a AIDS (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida) e a SARS (Síndrome Respiratória Aguda Severa, que
popularmente ficou conhecida como “gripe asiática”), surgida na China
em 2002 e que, em alguns meses, atingiu mais de oito mil pessoas e
matou quase 800 ao redor do mundo, em 27 países6.
Este exemplo é tomado por Hobsbawm (2003, p. 1), ao anotar
que a SARS assumiu proporções de fenômeno global, não só de saúde
pública, mas afetando a rede mundial de transportes, o turismo e
outros intercâmbios culturais, os mercados e, mesmo, a economia
de alguns países, e isto “com uma rapidez impensável em nenhuma
outra época anterior”. Como se vê, a frase de Orlando, referindo-se
ao “caráter internacional até então desconhecido” de certas moléstias,
certamente não destoaria se inserida no texto de Hobsbawm.
6. O Ensino do Direito Comparado:
(“principalmente em relação à família e à propriedade”): “sabe-se
que o destino dos povos está intimamente ligado à constituição da
família e da propriedade, de tal sorte que, dada uma transformação
qualquer no regime econômico ou familiar, imediatamente se opera
uma modificação correspondente na vida nacional” (ORLANDO,
1910, p. 361). Note-se que os exemplos de análise comparada citados
por Orlando tomam como modelo os Estados Unidos, em relação aos
6 “China e OMS confirmam novo caso de SARS”. Folha de S. Paulo, 6 de jan. 2004, p. A9.
83
quais são destacadas as virtudes de um ordenamento jurídicos que
propicia, enfim, o desenvolvimento de qualidades como o espírito de
iniciativa, a responsabilidade e a industriosidade. Tomar-se os Estados
Unidos como modelo, então, consistia uma das características marcantes do pensamento americanista brasileiro, por exemplo, em Joaquim
Nabuco (ORTEGA, 2003) ou, depois, em Monteiro Lobato.
7. O Ensino do Direito Internacional:
mas em sentido largo, e não exclusivamente político: “antigamente, eram as questões políticas que preocupavam os
diplomatas; hoje, são os negócios comerciais e industriais
que buscam as chancelarias; e os diplomatas, que por negligência ou ignorância as desprezam, não desempenham bem
o seu ofício e servem mal o seu país” (ORLANDO, 1910,
p. 363). Observa-se aqui um reflexo da percepção realista,
ao estilo de Rio Branco, do papel da economia nas relações
internacionais e da transformação da função da diplomacia
no contexto mundial da “primeira globalização”, de que
tratamos anteriormente.
8. O Ensino da Taxinomia e Praxeologia da Sociedade
Internacional:
Aqui, o autor ressalta a necessidade da compreensão das iniciativas
e hábitos humanos, entendidos como fenômenos sociais que originam
relações internacionais incessantes e por meio das quais “se afirma a
existência de uma verdadeira sociedade internacional, que em cada país
se superpõe à sociedade nacional, sem a fazer desaparecer, sociedade
que é impossível deixar de tomar em consideração” (ORLANDO,
1910, p. 365; grifo nosso). A questão é, assim, como compreender,
portanto, a relação entre a concepção de uma educação internacional e
sua relação com o caráter nacional da educação?
84
O “projeto curricular” descrito por Orlando encerra-se aqui. Como
se vê, não é uma proposta pedagógica (didática) propriamente, mas
conteudista, uma vez que a atenção recai sobre o que ensinar – o que
Coll (2002, p. 44) identifica como primeiro elemento ou capítulo do
currículo, englobando conteúdos e objetivos – e não em quando ensinar (segundo elemento), como ensinar (terceiro elemento), ou, muito
menos, em o que, como e quando avaliar (quarto elemento), temas
caros ao debate educacional atual. Mas que, todavia, certamente não
se colocavam à época. Criticá-lo nesse sentido, portanto, consistiria em
sério anacronismo.
Talvez, no entanto, o aspecto curricular mais importante a
ser considerado aqui seja justamente aquele referente aos objetivos
educacionais, ou seja, sobre a questão de para que ensinar, (o que
modernamente se compreende, por exemplo, como os processos de
crescimento pessoal que se deseja provocar, favorecer ou facilitar
durante o ensino). Para isso, antes de mais nada, convém lembrar que
estamos tratando de um assunto historicamente muito bem determinado, devendo-se destacar, portanto, a concepção de educação do
autor estudado. Nesse sentido, o próprio Arthur Orlando, em Reforma
do Ensino, escreve que:
(…) enquanto não se fizer uma educação que dê o sentimento
da eficácia do trabalho, que coloque a força mental do homem
acima das convenções sociais, que faça do cérebro do homem
um centro de atividade, e ao mesmo tempo um foco de luz,
por mais deslumbrantes que sejam os resultados da civilização,
por mais que melhorem as indústrias, não melhorará a sorte
do trabalhador; pelo contrário, ela se agravará, tornando cada
vez mais desproporcional a troca de serviços, submetendo
cada vez mais o trabalho ao capital. /…/não somente as reformas econômicas, mas ainda as políticas, estão subordinadas
ao problema pedagógico (ORLANDO, 1975 [1907], pp.
250-251).
85
Prossegue o autor citado:
Costumam perguntar (…) se a educação tem um fim individual ou um fim social. Ela tem esses dois fins ao mesmo
tempo; é precisamente a investigação dos meios para por de
acordo a vida individual mais intensa, com a vida social mais
extensiva. /…/ Entendo por educação nacional a que sai do
próprio seio da nação, de harmonia com a economia geral
do organismo social sob a influência do solo, do clima, da
raça, dos costumes, das tradições, de todas as circunstâncias
em cujo meio o Estado vive e se desenvolve (ORLANDO,
1975 [1907], p. 252).
Considerações finais
A proposta apresentada por Orlando é um projeto de caráter reformista, e que pretendia avanços sociais sem, todavia, comprometer-se
com um discurso radical que questionasse os alicerces da sociedade
burguesa: a família e a propriedade. Sendo assim, as contradições internas fundamentais das sociedades são deixadas de lado, passando-se
para o plano internacional-jurídico, bem ao estilo da tradição kantiana,
a solução das desigualdades estruturais, de caráter socioeconômico.
O projeto expressa, no entanto, dentro de sua perspectiva limitada, uma
proposição política teoricamente avançada, assim como uma concepção
de educação inovadora para a época, preocupada ao mesmo tempo
com a conservação da herança cultural, com a resposta a problemas do
tempo e com a preparação para uma transformação, que o autor esperava
decorresse, no sistema internacional e, especificamente, formando um
novo cidadão apto a sustentar as bases jurídicas da nova “sociedade
internacional” em gestação. Neste aspecto reside o caráter ideológico
específico da proposta.
Todavia, a questão é: quem seriam esses “novos cidadãos” inseridos
nessa nova sociedade internacional? Ou seja, a quem se destinava o
“currículo americano”? Se considerarmos que a proposta de Orlando
86
se deu em um país recentemente emancipado da escravidão, e em
que parcela significativa da população, ainda predominantemente
rural, não era sequer alfabetizada e frequentemente não tinha acesso a
qualquer currículo, a reforma proposta por Orlando deixa transparecer
seu caráter elitista. Deixando de lado os problemas básicos de uma
educação nacional não universalizada e incapaz de ser um elemento de
inserção social, o novo currículo volta-se, portanto, àqueles segmentos
privilegiados e limitados da sociedade burguesa que poderiam inserir-se
na “globalização” então em marcha, e não aos imensos contingentes
excluídos e esquecidos do interior rural ou dos subúrbios.
Seja como for, a realidade se encarregou de mostrar que as idéias
de Orlando, atropeladas pelos acontecimentos, não vingaram. Na
verdade, trata-se de um ideário talvez muito mais familiar ao homem
do início do século XXI do que àquele de meados do século XX. Mas,
seja como for, assim como nossas concepções atuais sobre globalização e cultura, foram certamente ideias possibilitadas por uma certa
percepção (conquanto segmentada) do movimento da realidade da
época, em que parecia se afigurar uma perspectiva civilizatória global
(conquanto limitada socialmente) e, todavia, não efetivada. Seja
como for, podemos considerar, de fato, Orlando como um teórico da
“pré-história” da globalização.
Nesse sentido parece ainda ter faltado, enfim, a Orlando, uma análise realista (no sentido político original e legítimo do termo, qual seja,
de tomar-se como ponto de partida e chegada a realidade, examinandoa como ela é, e não como se gostaria que fosse) de sua própria época.
Apesar de, citando Clóvis Beviláqua, identificar a “deficiência orgânica
da sociedade internacional” (que entrava o desenvolvimento de aparelhos jurídicos internacionais), Orlando considera que a “sociedade
internacional é um fato”, colocando apenas a questão de se tratar de
um fato “universal” ou haver distinção entre o Antigo e o Novo Mundo
(Américas). Ao que responde que, diferentemente do “Velho Mundo”,
na América a organização da sociedade internacional seria de caráter
intra-continental e “assentada em princípios que lhe dão feição própria,
87
especial” (ORLANDO, 1910, p. 370). E caberia, assim, à educação
internacional americana a função de sustentar tais princípios e colocálos em ação.
Tal perspectiva, no entanto, poderia encontrar hoje fundamentos
muito mais sólidos, caso fosse “invertida” e pensada, por exemplo, em
uma perspectiva popular da integração das nações latino-americanas.
Sempre defendida e nunca efetivada, a congregação dos povos da Nossa
América tem um potencial emancipatório ainda não explorado, em que
a aproximação cultural poderia lançar as bases para voos mais altos.
Nesse sentido, o papel dos setores progressistas da sociedade seria
duplo: em primeiro lugar, fomentar e consolidar sua articulação com
seus pares nos países americanos; e, após isso, lutar pela transformação
das diretrizes da educação nacional sob tal perspectiva.
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−− SINGER, Paul. O Brasil no contexto do capitalismo internacional 18891930. In: Fausto, Boris (dir.): História geral da civilização brasileira (III. O
Brasil Republicano; 1. Estrutura de poder e economia), 5.ed., Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1989.
89
Cultura e Educação: Para Além dos
Muros da Escola
Valmir de Souza1*
Cenário
O estado de coisa em que vivemos vem gerando graves impactos
sobre a diversidade da vida cultural e educacional. Hoje a educação
cultiva íntimas relações com o universo da cultura como mercadoria
que levou à lógica do consumo pelo consumo, no contexto do modelo
neoliberal que faz submergir os mais pobres, devasta a natureza e se
apropria das riquezas locais de modo avassalador através das transnacionais financeiras e econômicas. Tudo conspira para a perda de
esperança nesses cenários catastróficos. Estes cenários provocam a
devastação do pensamento e do diálogo, em favor do desenvolvimento
de “antivalores” ligados à mercantilização da cultura e da educação nos
vários níveis. Este crime da “deseducação” na cultura brasileira está
relacionado à manutenção de visões que querem educar para servir,
treinando pessoas para o mundo do trabalho.
A tradição iluminista, muito presente nos projetos educacionais,
baseada na predominância da “razão” sobre a “ignorância”, já não
dá conta das novas formas de atuação de grupos sociais que não se
submeteram ao modelo de pensamento ocidental. Essa cultura iluminista perdeu as luzes e só ficaram fantasmas clamando no “deserto do
real”, pois o modelo vigente não conseguiu cumprir as promessas feitas
(ZIZEK, 2003). Enfim, essa “civilização” racionalista não responde
1 * Doutor em teoria literária, professor, consultor de políticas culturais do Instituto Pólis,
membro do Grupo de Políticas Públicas e Acesso à Informação (GPOPAI/ EACH/USP), membro
da Rede Paulista de Pesquisadores de Cultura, Diretor do SINPRO Guarulhos. Autor de Cultura e
literatura: diálogos (2008). E-mail: [email protected].
90
mais, entrando em crise quando faz contato com povos não europeus,
quando não entra em crise consigo mesma. Com isso, procura-se reativar as culturas existentes, fazendo-as operar no registro modernizado e
descaracterizando-as.
Em um mundo “desbussolado”, os universos da educação e da
cultura podem sinalizar alternativas com outras condições de possibilidade para a vida social e cultural. As relações entre estes dois “setores”
têm sido pautadas por uma falta de compreensão de ambos os lados
devido às especificidades das áreas, que ainda são vistas como partes
diferentes dentro do todo. Se, por um lado, a educação vem sendo
praticada de modo rotineiro e automatizado, por outro, a cultura é
vista como dinâmica e trabalhando com processos mais próximos das
realidades sensíveis. Evidentemente estas imagens são representações
gerais que nem sempre correspondem à verdade dos processos culturais
e educacionais. Em grande parte, isso se dá devido à chamada divisão
dos campos de conhecimento, como se fosse possível isolar partes intimamente conectadas.
Hoje a educação já assimilou várias práticas culturais comunitárias,
desenvolvendo atividades e projetos com teatro, música, dança, literatura, etc. Já se percebeu que pensar a educação pela cultura pode
proporcionar a desautomatização dos comportamentos. Assim, a educação e a cultura precisam retomar os chamados “contextos sensíveis”
em que a vida acontece (RANCIÈRE, 2005), quando a comunidade
e a sociedade travam a luta simbólica para se reapropriar do território.
Noções e usos da cultura
Constata-se atualmente uma desintegração e um efeito de dispersão
da vida social e intelectual, sentindo-se a rarefação de conceitos como o
de cultura. O trabalho conceitual de cultura envolve uma enorme gama
de fatores. Um dos modos que podem nos auxiliar a pensar a cultura é
abordá-la através de linhas de força que impulsionam e fornecem bases
91
a um fazer cultural que, junto com a arte, podem servir para estratégias
mais amplas de luta cultural.
Traçaremos sumariamente algumas ideias-força em relação aos conceitos de cultura e a seguir posicionaremos a cultura em relação à educação. Ao longo da história, as palavras cultura e arte vêm associadas a
um pensamento da educação letrada. Durante a Idade Média, elas foram
consideradas atividades relacionadas a práticas eruditas principalmente
da escrita e, depois da Renascença, as artes plásticas constituíram-se em
cultivo exclusivo das elites.
Primeiramente, notamos que a cultura já foi utilizada para legitimar
a identidade de grupos oficiais, por exemplo, quando as marcas de uma
cultura dominante se inscrevem no espaço físico e simbólico das cidades,
que incluem desde nomes de ruas, monumentos, bandeiras e outros
signos instituídos pela atuação do Estado. Junto com essa tendência,
houve uma articulação com a concepção de “belas artes” e “belas letras”,
presente nos discursos desde o Iluminismo europeu. Mais recentemente,
a cultura passou a ser considerada objeto de troca e venda, no contexto
do modelo neoliberal que trata a arte e as manifestações culturais como
mercadorias.
Numa outra perspectiva, há um trabalho cultural de resistência de
grupos e camadas expropriadas que reagem a processos mais amplos de
imposição econômica. As práticas locais são vistas como fator de atraso.
Essa concepção articula-se com a ideia de cultura como reinvenção
do futuro, como “dimensão de projeto” (BOSI, 1995, p. 16). Nesse
aspecto, a cultura projeta novos horizontes e aponta outros processos
de recriação criativa.
Alfredo Bosi divide as culturas em quatro partes: cultura universitária (acadêmicos) e cultura extrauniversitária (criadores culturais), ambas
pautadas e voltadas para a escrita; a indústria cultural (cultura de massa),
voltada para o mercado de bens culturais; cultura popular, em geral vista
como a prática não letrada e “atrasada” (BOSI, 1995). O autor aponta
cruzamentos e interações entre as várias esferas da cultura. Assim como
há uma intensa apropriação cultural pela cultura popular a partir da
92
produção dos meios de comunicação de massa – já que a publicidade
dissemina grande quantidade de imagens que são apropriadas pela população, verificando-se a presença de vasos comunicantes dinâmicos.
Isso remete também às interações com as práticas contemporâneas
da cultura de massa (indústria cultural) e da cultura popular. Nesse
ponto, a cultura contemporânea se reelabora no cruzamento das várias
linguagens, de vários universos culturais, tendo a interculturalidade
como base das “culturas híbridas” (CANCLINI, 1998). As interações
entre mídia, cotidiano e cultura erudita causam um curto-circuito no
campo das artes cotidianas (CERTEAU, 1994). Refazer uma crítica
à sociedade contemporânea do consumo passa pelas elaborações das
novas mídias. O “homem comum” reinventa os materiais culturais de
maneira ativa, manifestando interesse pela cultura e arte, ainda que não
faça parte do mundo “artístico”.
Consideramos, portanto, que a divisão entre produção cultural,
como algo sofisticado, e manifestação cultural, como vivências populares sem o status de produto (CANDIDO, 1999) é problemática, visto
que as práticas culturais, mesmo as das classes altas, possuem interações
com produções de outras camadas sociais. Haja vista também que, com
o avanço da noção de cultura, já não faria mais sentido considerar a
divisão acima.
Pesquisadores como Raymond Williams (1992), Michel de Certeau
(1994) e Edgar Morin (1987) ampliaram o escopo da cultura, considerando-a como “modos de vida” e toda prática cultural de qualquer
classe social. Esta definição inclui produção, apropriação (modos de
usar), símbolos, vivências, atividades, modos de sentir e pensar, costumes, culinárias etc. Construir uma cultura comum é trabalho coletivo e
colaborativo que transcende as práticas restritas das artes consagradas.
Essa cultura parte de experiências da vida em comum, mas também
pode se compor a partir dos meios de comunicação (TV, rádio, internet, cinema), isto é, por esta visão todas as produções culturais da sociedade podem ser apropriadas para se elaborar uma cultura em comum
(WILLIAMS, 2011).
93
O paradigma da educação livre
Aqui consideramos a educação, como a cultura, em seu sentido
mais amplo, como toda uma experiência cultural de vida, como
afirma Paracelso: “A aprendizagem é a nossa própria vida, desde a
juventude até a velhice.” (apud MÉSZÁROS, 2005, p. 47). A escola
seria só um momento dessa educação, ainda que importante. É preciso
observar que a escola vem desempenhando, como aparelho ideológico
do Estado, a função de internalizar valores próprios de uma cultura
capitalista. Nosso conhecimento de mundo não se limita aos muros
da escola. Como afirma Mészáros,
Pois muito do nosso processo contínuo de aprendizagem se
situa, felizmente, fora das instituições educacionais formais.
Felizmente porque esses processos não podem ser manipulados e controlados de imediato pela estrutura educacional
formal legalmente salvaguardada e sancionada (MÉSZÁROS, 2005, p. 53).
Ainda que as influências de fora da escolarização, nossa formação
não formal com amigos, escritores etc., não dêem conta da complexidade da vida contemporânea, sem elas não poderemos ampliar os
sentidos da educação “plena para toda a vida”.
Nesse diapasão, cabe salientar que o diálogo entre cultura e educação,
as duas em sentido amplo, assume forte sentido de interculturalidade
como cruzamentos criativos. Isso já acontece em vários níveis: poder
público e comunidades; arte e sociedade; entre as diversas artes; entre
grupos geoculturais, etc (COLL, 2006).
É preciso considerar os vários níveis de interculturalidade existentes
e as tensões presentes na relação entre culturas, em que a escuta e a fala
podem ser criativas na geração de outras realidades (COLL, 2006). E,
no caso da educação, verifica-se que o desenvolvimento cultural é estimulado pelas experiências artístico-culturais, com o uso de tecnologias,
gerando intenso trabalho de criatividade que integra a vivência cultural
94
e a experiência de vida a partir de um território social da linguagem.
É preciso transformar essas práticas sociais em objeto de reflexão e
transformação da realidade com sentido de emancipação social, pois
se a educação e a cultura não podem mudar sozinhas o mundo em que
vivemos, sem elas também não se pode alcançar outros modos de vida
(MÉSZÁROS, 2005).
Nesse contexto, elencamos algumas propostas para um novo paradigma educativo-cultural, considerando a educação e cultura como
direito. Assim, criar uma educação livre e criativa versus formação instrumental voltada para o mercado, exige uma mudança nos modos de
avaliação (em geral quantitativa, burocratizada e repetitiva), criando
“ilhas de criação” no contexto escolar, propondo um trabalho criativo
em que o professor seja autor de seu trabalho nos contextos de sua
comunidade e com um pensamento atento aos imaginários radicais
(GIROUX, 1994). É preciso recusar o “trabalho morto” (GRUPO
KRISIS) com uma educação voltada para a repetição do palavreado
que circula no mercado educacional.
Criar a esfera pública no campo da educação e da cultura, deslocando as ideologias tecnocráticas e deslegitimando o status quo. A
formação constante que reivindicamos se processa até o final da vida
e ao longo do percurso docente, considerando os saberes trazidos por
professores e estudantes, e encarando a cultura como um projeto aberto
a novos pensares.
Outro aspecto tem a ver com a ocupação de espaços para o debate
sobre produções culturais da população e de artistas, bem como fomentar estratégias de vida cotidiana pautadas pelo fazer e pensar artísticos,
ampliando o acesso da população aos bens culturais da comunidade,
mas também promovendo a criação e produções próprias. Por último,
contra a ideia de uma tecnocultura que teria dominado definitivamente
mentes e corações, a tecnologia e as novas mídias (internet etc.) não são
um mal em si, sendo necessário um redirecionamento de seus usos a
favor de uma educação cultural.
95
Apontamos também algumas contribuições no sentido de alargar
o campo de atuação mais ampla da área de educação, para além dos
muros da escola. Assim:
A educação deve contribuir para a construção da cidadania
para uma sociedade que se pauta por um desenvolvimento
dos valores éticos e solidários. A educação deve contribuir
para aproximar as culturas científica e humana estimulando
a complementariedade entre ciência e tradição nos processos
educacionais. Reconhecer e apoiar a educação não-formal
presente nos movimentos sociais, moradores e meninos na
rua, camponeses, indígenas, sindicatos e outras formas de
educação popular. Incentivar a relação escola-comunidade.
Promover a integração da escola e das comunidades com
os museus, criando serviços educativos que possam fazer
a ponte entre os órgãos públicos de cultura e educação
(FARIA; SOUZA, 1994 p. 126).
Quanto à ocupação de espaços consagrados às artes e à cultura,
é preciso observar que esses lugares devem ser vistos como espaços
públicos de formação do professor e de alunos. Isso ajudaria a romper
com a lógica de exclusão subjacente em concepções de cultura como
“belas artes” e com acesso somente às classes mais abastadas.
Mudando os rumos
Para tudo isso, requer-se uma mudança estrutural nas concepções
que regem a educação e a cultura no país, indo além das “belas artes” e
da “cultura letrada”, bem como exigir um investimento maciço nessas
áreas por parte do Estado (níveis municipais, estaduais e federal),
pois sem essas transformações, vamos continuar pregando no deserto.
Professores e agentes da cultura precisam recusar ser tratados como
objetos, e passarem a sujeitos das mudanças pretendidas. O nome de
96
“coisa”, como enunciado no poema “Eu, etiqueta” (Drummond), não
nos cabe.
Contra a razão cínica e obscena, a tarefa inadiável é a de fazer emergir a política da solidariedade do gênero humano para além da política
institucionalizada e limitada pelos discursos oficiais. E a escola deve ser
um espaço para a “desinternalização” dos valores e metas colocados pelo
modelo mercantilista atual, como “uma bússola para toda a caminhada”
(MÉSZÁROS, 2005, pp. 55 e 61).
É possível inventar e viver práticas socioculturais “para além do
capital” e dos muros da escola, propondo paradigmas que levem em
consideração uma cultura em comum.2
Referências
−− AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo:
Boitempo, 2004.
−− BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 3 ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
−− CANDIDO, Antônio. Iniciação à literatura brasileira. São Paulo: Humanitas, 1999.
−− CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 1998.
−− CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 4. ed. Trad. Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994.
−− COLL, Agustí Nicolau. Propostas para uma diversidade cultural intercultural na era da globalização. 2 ed. São Paulo: Instituto Pólis, 2006.
−− FARIA. Hamilton; SOUZA, Valmir de. Premissas e algumas proposições
para uma política de cultura. In: ______. Projeto cultural para um governo
sustentável. São Paulo, Instituto Pólis, Revista n. 17, 1994.
−− GRUPO KRISIS. Manifesto contra o trabalho. São Paulo: Editora
Conrad, 2004.
2 Agradeço a leitura e sugestões da Professora Joseli Magalhães Perezine para a elaboração deste
texto.
97
−− GIROUX, Henri A.; MCLAREN, Peter. Formação do professor como
uma contra-esfera pública: a pedagogia radical como uma forma de política
cultural. In: MOREIRA, Antonio Flávio; SILVA Tomaz Tadeu da. (orgs.).
Currículo, cultura e sociedade. 7ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 1994.
−− MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. Trad. Isa Tavares.
São Paulo: Boitempo, 2005.
−− MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo
I – Neurose. 7 Ed. Maura Ribeiro Sardinha. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
−− RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: 34, 2005.
−− WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade. Trad. Vera Joscelyne. Rio de
Janeiro: Vozes, 2011.
−− ZIZEK, Slavoj. Bem-vindos ao deserto do Real. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003.
99
Aspectos Atuais do Sistema
Educacional de Cuba
Hideyo Saito1*
A educação escolar é prioridade em Cuba desde o início da revolução, em 1959. Sua primeira grande realização na área resultou em uma
das campanhas de alfabetização mais significativas de nosso tempo.
Em um ano e dois meses, quase 800 mil cidadãos aprenderam a ler e a
escrever, em esforço que teve a participação de mais de 280 mil voluntários. O analfabetismo caiu de 23,6% para 3,9%. Cuba transformouse no primeiro “território livre de analfabetismo” da América Latina em
dezembro de 1961, com reconhecimento da UNESCO (HOFMEISTER, 2007).2 A histórica mobilização desdobrou-se, desde então, em
novas e mais elevadas realizações, até que o país se viu reconhecido
como vanguarda educacional na América Latina e no mundo.
A UNESCO (2010) classificou o ensino cubano como o 14º
melhor do mundo e o primeiro dentre os países subdesenvolvidos,
no Índice de Desenvolvimento da Educação para Todos (IDE), de
2008. O IDE resulta de indicadores como taxa de ingresso universal
à educação, analfabetismo, grau de igualdade de acesso à escola entre
os sexos e proporção de estudantes que concluem a 5ª série. Segundo
o estudo, que examinou 128 países, Cuba registrou IDE de 0,987.
1 * Jornalista formado pela Escola de Comunicações e Artes da USP e especialista em Administração Pública pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso) de Buenos Aires. Morou
dois anos em Cuba, quando produziu reportagens e entrevistas para a Radio Habana Cuba. É autor,
com Antonio Gabriel Haddad, do livro “Cuba sem bloqueio: a revolução cubana e seu futuro, sem
as manipulações da mídia dominante”, publicado pela Radical Livros <www.radicallivros.com.
br>. Este artigo é uma síntese do capítulo “Educação, questão de honra para a sociedade”, desse
livro. Eventuais traduções de documentos originais em inglês ou em espanhol são do próprio autor,
salvo se houver indicação em contrário.
2 Segundo a organização, um país entra nessa categoria quando os iletrados representam menos de
4% de sua população de mais de 15 anos.
100
O Brasil alcançou 0,883, ficando em 88º lugar. Em alfabetização,
conforme a mesma pesquisa, Cuba ocupou a 11ª posição, com índice
de 99,8% entre maiores de 15 anos.
A rede cubana de ensino compreende os seguintes níveis: maternal
(crianças de seis meses a quatro anos de idade), pré-escolar (cinco anos),
primário (de seis a 11), secundário básico (de 12 a 14), pré-universitário
(de 15 a 17) e universitário (a partir de 18). O número de matriculados,
no ano letivo 2007/2008, era de 3,19 milhões, em aproximadamente
13 mil estabelecimentos. O de docentes, incluindo os administrativos,
superava 380 mil, resultando na proporção de um mestre a cada 30
cubanos (ONE, 2008). Nos Estados Unidos, há um professor por 70
habitantes e na América Latina, a média é de um por mais de 100
(RUVIA, 2007). No primário, 91% das salas de aula têm no máximo
20 alunos e no secundário, 15 (MANZANEDA, 2008; HOFMEISTER, 2007).
No ano anterior, o índice de conclusão do primário havia sido de
99,8%, o do secundário, 98,4% e o do pré-universitário, 76,7% (ONE,
2008). Praticamente todos os cubanos na faixa de 15 a 24 anos têm
nove anos de escolaridade. Os universitários graduados chegaram a um
milhão no final de 2009, isto é, 8,8% da população do país.3 No mesmo
ano os matriculados em faculdades representavam 61% dos cubanos de
18 a 24 anos de idade – no Brasil, eram 13,9% em 2008, segundo
TOSTA (2009). Havia 144 mil mestrandos e quatro mil doutorandos.
Os doutores eram pouco mais de 3.400, conforme ONE (2008).
A UNESCO (2008) observa que 100% dos professores cubanos
são adequadamente qualificados e que há um profissional para cada
dez alunos, possivelmente a melhor proporção do mundo. Apesar da
notória escassez de bens de consumo no país, o estudante recebe gratuitamente todo o material didático, assim como as refeições (as escolas
cubanas são de período integral). Os livros devem ser devolvidos no
3 No Brasil, 6,37% dos habitantes com mais de 23 anos têm nível superior (dados de 2006),
enquanto nos países da OCDE essa taxa é, em média, de 22% (NUNES E CARVALHO, 2007). O
índice cubano mencionado é em relação a toda a população.
101
final do ano letivo, para serem usados no período seguinte. No ano
escolar 2008/2009, o país produziu mais de 200 títulos de obras didáticas, com tiragem superior a 14 milhões de exemplares (LEÓN, 2008).
Ainda reportando dados da UNESCO (2007), o gasto público
anual por aluno do curso primário, como proporção do PIB per capita,
variou na América Latina, nos anos de 2004 e 2005, de um mínimo
de 5% na Guatemala para o máximo de 38% em Cuba (no Brasil foi
pouco mais de 13%). Já a participação de gastos das famílias em relação
ao total investido na educação primária e secundária oscilou de 1%
em Cuba (provavelmente em atividades voluntárias de apoio à escola)
a 31% no Chile e 48% na Nicarágua. De acordo com o documento,
o Estado cubano destinou à educação 9,8% do seu produto bruto em
2004. Com a recuperação da economia, já em 2007 esse investimento
foi para 12% do PIB, segundo o MINED, 2008.
A importância conferida à educação em Cuba, contudo, pode ser
constatada por estas simples informações: em 2008, funcionavam em
regiões inóspitas do país 1.398 escolas primárias com até cinco alunos,
204 delas com apenas um (MINED, 2008, p. 30). Todas contam com
o “professor polivalente” e com docentes itinerantes de arte, educação
física e informática (que atendem diversos pequenos estabelecimentos
de uma região), além de equipamentos e materiais de apoio, para que
seus alunos recebam a mesma atenção dada aos estudantes das cidades.
Eis a descrição feita pela revista Nova Escola, da Editora Abril, sobre
uma dessas pequenas unidades
A casa do professor Miguel Perez, em Manaca Ranzola,
município de Fomento, província de Sancti Spíritus, abriga
a Escola Primária Rural Silvério Blanco. Auxiliado por uma
jovem que está concluindo pedagogia, o veterano professor
leciona para quatro turmas: um aluno da 1ª série; quatro
da 2ª; seis da 3ª; e dois da 4ª série. São duas salas de aula
equipadas com televisão, videocassete e três computadores,
nos quais se fazem lições repassadas semanalmente por
professor de informática que se desloca até o povoado. O
102
mesmo acontece com as professoras de educação física e de
arte, por duas vezes semanais.
Na escola não há refeitório. Três dos alunos sentam-se à
mesa do professor e comem a refeição preparada por sua
esposa, que também é auxiliar de serviços gerais do local.
Os demais alunos vão até suas casas para almoçar e retornam em seguida para o turno da tarde, quando trocam os
cadernos e lápis por ferramentas de jardinagem. A horta
fornece legumes para o almoço e frutas para o lanche das
crianças (HOFMEISTER, 2007, s/p).
À parte esses casos extremos, a educação escolar está presente em
todos os recantos do país.
Creche e pré-escola
O maternal e a pré-escola atendem praticamente todas as crianças
de até cinco anos, embora a maioria participe da modalidade não
escolarizada conhecida como “Educa teu filho”, por falta de vagas nos
estabelecimentos existentes. No ano 2007/2008, as 1.130 creches atendiam 117 mil crianças de seis meses a quatro anos de idade. A partir dos
cinco elas vão para as pré-escolas. Havia, no mesmo período, 19.800
educadores para os dois níveis (ONE, 2008). Cada unidade conta ainda
com médico e enfermeiro. Em média, uma educadora se encarrega de
seis crianças de até três anos. Cada grupo de 25 crianças acima dessa
faixa fica aos cuidados de uma professora e de sua auxiliar. A creche
é gerida por um conselho formado por seu diretor, pelos docentes e
representantes dos pais. O objetivo é preparar a criança para a escola
primária, enfatizando atividades que levem ao seu desenvolvimento
integral (OLIVEIRA, s/d.).
Para que ninguém ficasse fora da pré-escola, foi criado em 1992 o já
citado “Educa teu filho”, que atendia aproximadamente 540 mil alunos
em 2007. Crianças de até três anos recebem atenção em casa, enquanto
as de três a cinco participam de duas sessões semanais de atividades
103
em locais públicos de cada bairro, a cargo de uma equipe formada por
uma supervisora, uma professora e uma médica. Nos demais dias, elas
prosseguem em casa, aos cuidados de pais ou responsáveis, seguindo
orientação da equipe. Os pais recebem uma cartilha para cada etapa
de desenvolvimento da criança, que esclarece sobre a finalidade e a
importância das atividades. Pais e professores avaliam conjuntamente o
trabalho (OLIVEIRA, s/d.).
Projetos em marcha
Uma série de projetos de aperfeiçoamento pedagógico estava em
implantação no país em 2008. Como em todos os campos, a educação
cubana sofre restrições por causa da crise econômica e dos efeitos do
bloqueio estadunidense. Há dificuldades para a construção de novas
escolas e para reformar as existentes, basicamente pela impossibilidade
de importação de materiais necessários. A devastação provocada pelos
furacões Gustav e Ike, naquele ano, agravou a carência de instalações.
Os legados mais sérios da crise, contudo, foram a evasão de professores e o aumento do número de jovens que se afastaram dos estudos.
São questões com raízes econômicas comuns, cujo enfrentamento
começou ainda na década de 1990. O secundário básico foi o que
mais sentiu o êxodo de docentes (RECONOCE, 2008). No mesmo
período, surgiram indícios de que a escola não estava conseguindo
anular a influência desestimuladora exercida, em muitas situações,
pelo ambiente familiar de alunos originários das camadas menos
instruídas da sociedade. Parte deles não via mais a formação escolar
como imprescindível. Praticamente todos os cubanos concluem o
nono grau, mas 23% não terminam o pré-universitário. Trata-se de
índice considerado insatisfatório em Cuba, embora seja o melhor do
terceiro mundo. Da mesma forma, a taxa de conclusão do curso universitário, de 60%, foi vista pelos dirigentes cubanos com apreensão,
constata Micchelotto (2008).
104
Em palestra para estudantes argentinos, em 2003, o então presidente Fidel Castro falou da persistência, em Cuba, de desigualdades
no acesso aos níveis superiores de educação.4 Disse que isso se referia,
sobretudo, a diferenças de natureza sociocultural. Para exemplificar,
citou estudo de sociólogos de seu país, segundo o qual 19% das crianças
cubanas não moravam com os pais, mas com outro parente. Eram,
em sua maioria, de famílias de baixa escolaridade. Entre pessoas com
mais estudo, segundo a pesquisa, a separação do casal não leva a esse
desmembramento familiar tão radical. Fidel enfatizou como essa
diferença tem impacto sobre a criança. A pesquisa revelou, em suma,
que os universitários via de regra têm pais graduados, em contraste
com os jovens presidiários, que geralmente procedem de famílias de
pouca instrução. Foi para romper esse círculo vicioso, mais resistente
do que se imaginava, que se criou o programa de formação integral de
jovens, com remuneração ao aluno participante (RAMONET, 2006,
pp. 457-460).
As autoridades cubanas decidiram também apressar a redução
do número máximo de alunos por sala de aula (20 no primário e
15 no secundário) e a introdução do professor polivalente, visando
minimizar eventuais repercussões negativas de fatores extraescolares sobre o aprendizado. Por outro lado, em todo o curso básico foi
adotado o turno integral, com a manutenção do calendário escolar
de mais de 200 dias por ano. Tudo isso implicou quase duplicar a
necessidade de docentes, mesmo sem considerar a introdução de
aulas de informática no currículo.
A deficiente preparação de professores adicionais para o primário
e o secundário básico (neste caso, os polivalentes) tem sido apontada
como causa de uma suposta queda do nível de ensino no país (LEITE,
2006; RUVIA, 2007). A questão foi classificada como o mais grave
problema cubano nas assembleias populares realizadas em todo o país
em 2007. O veredicto levou à destituição do ministro da Educação,
4 O texto integral do discurso está em: <http://www.granmai.cubasi.cu/documento/espanol03/016.html>.
105
Luis Gómez, em abril de 2008, e ao anúncio de novas mudanças no
setor (ACOSTA, 2005). A preocupação da sociedade com a educação
e o seu imediato efeito político são bastante significativos, pois a
mídia dominante costuma apontar a pobreza econômica e a escassez
de moradias e de bens de consumo como causas principais da insatisfação em Cuba. Em 2005, a imprensa local informou que alguns pais
estavam contratando aulas particulares para seus filhos. O fato gerou
reações indignadas de professores aposentados, como mostra carta de
leitor publicada no jornal Granma (SAITO; HADDAD, 2012, p. 48).
O balanço do ano escolar 2007/2008, do Ministério da Educação
de Cuba, apresentou um diagnóstico bastante crítico da situação. Os
alunos do secundário básico, segundo o documento, demonstraram
dificuldade com ortografia, redação, geometria e história. O informe
revela que houve déficit de 300 professores do pré-universitário em
duas províncias, enquanto quase 250 escolas secundárias, de cinco
províncias, não conseguiram preencher seus quadros. Faltavam cerca
de oito mil professores do ensino básico, o que encurtou o tempo para
planejamento de aulas, informam Grogg (2008) e Barrio (2008).
Uma novidade do ano escolar seguinte, anunciada pela nova
ministra da Educação, Ena Elsa Cobiella, foi a reincorporação de
cinco mil aposentados, que atenderam apelo do presidente Raúl
Castro para voltarem à ativa acumulando o salário integral e o provento da aposentadoria. Outra foi a significativa redução da perda
de professores (GROGG; ACOSTA, 2008). A situação possibilitou a
alocação, no secundário básico, de oito horas adicionais por semana
para a preparação de aulas. O trabalho dos professores polivalentes
(alguns dão aulas de espanhol, matemática e ciências, enquanto
outros acumulam informática, inglês, educação física e artística)
é completado por “teleaulas” de meia hora, com 15 minutos para
esclarecimento de dúvidas e explicações adicionais. Nas escolas primárias, houve aumento de auxiliares educativos de um a cada cem
alunos para um a cada quarenta.
106
Para viabilizar a incorporação de recursos tecnológicos ao processo
pedagógico, foram instalados coletores solares em 2.400 escolas até
então não eletrificadas. A rede recebeu dezenas de milhares de novos
computadores, aparelhos de TV e vídeo. Em maio de 2002 entrou no
ar a TV Educativa, para transmitir programas educacionais e culturais e
gravar conteúdos a serem reproduzidos nas classes, enquanto os centros
de softwares dos Institutos Superiores Pedagógicos criaram programas
com recursos para contextualizar e integrar as matérias lecionadas
(VALENZUELA, 2008).
Universalização do ensino superior
Os programas de formação de trabalhadores sociais e de universalização do ensino superior procuram trazer de volta às escolas os
jovens que abandonaram os estudos prematuramente. No ano 2000,
foi constituída a primeira turma de trabalhadores sociais, destinados a
atuar em ações de apoio a pessoas em situação precária ou com necessidades especiais. O curso dura um ano e é requisito para ingresso em
uma faculdade de humanas, hipótese em que os alunos continuarão
recebendo a ajuda econômica. Há também cursos semelhantes nas
áreas médicas e de exatas. Na área da educação, o objetivo é formar
professores para o primário e o secundário básico. Em outubro de 2008
já haviam sido graduados 42 mil alunos, destinados a 200 distintos
programas (HORTA, 2005; MANZANEDA, 2008).
A universalização da educação superior consistiu em criar o máximo
de facilidades para que os interessados pudessem graduar-se independentemente do local onde moravam, da idade e até do tempo de que
dispõem para os estudos.5 Foram criados locais para abrigar esses cursos
nos 169 municípios do país, aproveitando instalações já existentes. No
ano 2007/2008, funcionavam 3.150 unidades, ligadas a uma universidade e a um instituto pedagógico. A flexibilidade do modelo consiste
5 Nos cursos regulares, o acesso à universidade se dá mediante processo de seleção que considera
o rendimento do candidato no pré-universitário e o desempenho em exame de suficiência. Não é
admitido repetir por deficiência acadêmica (OCHOA, 2003).
107
em tornar o estudo compatível com outras obrigações do aluno. Não há,
por exemplo, prazo pré-fixado para a conclusão do curso, mas apenas a
exigência de cumprimento satisfatório e integral do currículo. Quando
tiver sido aprovado em todas as disciplinas, o estudante se submete ao
exame de conclusão. Michelotto (2008) observa que a primeira turma
a se formar por esse programa, em junho de 2007, necessitou de seis
anos, em contraste com os cinco nos cursos superiores convencionais.
O programa oferece 46 cursos de humanas, exatas e biomédicas.
Em 2007/2008, havia 75 mil alunos. O corpo docente é constituído
por professores de universidades tradicionais, por profissionais de nível
superior que se transformam em docentes-adjuntos após receberem
formação específica e por monitores selecionados entre estudantes do
último ano de cursos regulares. O programa, que teve início em 1998,
quando a taxa bruta de escolarização universitária era de 21%, elevou-a
para 61% em 2007, patamar só alcançado por países desenvolvidos,
segundo a Comissão Econômica da ONU para a América Latina
(CEPAL, 2007; ONE, 2008).6
O professor cubano, cuja profissão é aprender
Meio século após a campanha de alfabetização, os professores
cubanos são cada vez mais instados a aprender: o seu aperfeiçoamento
contínuo é uma das prioridades do setor. Para o diretor do Instituto
Central de Ciências Pedagógicas (que assumiu, em 2008, a coordenação do Laboratório Latino-Americano de Avaliação da Qualidade
da Educação, da UNESCO), Hector Valdés, uma vez concretizada a
universalização do ensino, em 1970, o desafio passou a ser a contínua
elevação da qualidade. O Instituto coordena os conselhos científicos
provinciais nos estudos que se realizam com esse fim. Funcionam no
6 A Cepal menciona como fontes: LÓPEZ, A. Las tendencias de la educación superior y su expresión en el proceso de universalización de la educación superior cubana. Educación Universitaria.
Havana: 2005; SÁNCHEZ, R. et. al. La Nueva Universidad Cubana. Universalización de la
Educación Superior. Havana: 2006; e BENÍTEZ, F. et al. El impacto de la universalización de la
Educación Superior. Havana: 2006.
108
país 16 escolas de pedagogia, sendo duas na capital e uma em cada
província. O curso é de cinco anos; quando se forma, o novo professor
poderá ser chamado a servir, nos dois primeiros anos, onde houver
maior necessidade. Nos anos 1990 começou-se a solicitar aos melhores
alunos que fossem lecionar nas regiões mais carentes, como contribuição ao esforço nacional pela elevação de qualidade do ensino nesses
lugares (EDUCACIÓN, 2006).
A excelente qualificação dos docentes cubanos costuma ser apontada
como o maior trunfo da educação no país, conforme veremos adiante.
Eles se mantêm em constante aperfeiçoamento, seja participando de
cursos livres e eventos técnicos e culturais, seja fazendo pós-graduação.
Para isso, podem ser dispensados em dias específicos da semana ou em
períodos do dia. Há ainda o “ano sabático”, inteiramente dedicado a
cursos de atualização. Em qualquer dos casos, sem perda de salário ou
das férias remuneradas e ganhando pontos para promoções (MINED,
2008). O desempenho em classe também é monitorado para fins de
ascensão na carreira. O professor mal avaliado é encaminhado a um
“ano sabático” especial, mantendo seu vencimento. Se não for aprovado, é desligado da função, podendo ser remanejado para outra área
do setor. Conforme Valdés, entre 1% e 3% recebem essa avaliação e,
destes, um percentual ínfimo acaba indo para outras áreas (EDUCACIÓN, 2006).
NYT: ensino “dramaticamente superior”
A qualidade do ensino em Cuba tem sido reiteradamente confirmada por estudos de instituições como a UNESCO, o Banco Mundial
e outras, além de pedagogos estrangeiros. O Escritório Regional de
Educação da UNESCO para América Latina e Caribe (OREALCUNESCO, segundo sigla em espanhol), por meio do Laboratório
Latino-Americano de Avaliação da Qualidade da Educação (Llece),
realizou duas pesquisas comparativas na região, que também mostraram isso. Foram avaliações similares ao Programa Internacional
109
de Avaliação de Estudantes (PISA, sigla em inglês), da Organização
de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Resultados
e comentários sobre as duas pesquisas latino-americanas estão em
UNESCO-OREALC (2000 e 2001) e em OEI (2008 e 2008a).
O Primeiro Estudo Regional Comparativo e Explicativo, de 1997,
avaliou o aprendizado em matemática e linguagem de alunos da 3ª e
da 4ª séries da educação básica, de 13 países: Argentina, Bolívia, Brasil,
Colômbia, Costa Rica, Cuba, Chile, Honduras, México, Paraguai,
Peru, República Dominicana e Venezuela. Foram examinados mais de
quatro mil estudantes de cerca de 100 escolas de cada país. Aplicaramse ainda questionários a milhares de alunos, monitores, professores e
diretores, em pouco mais de 1.500 estabelecimentos, para obtenção de
dados complementares. Em linguagem, as crianças cubanas da 3ª série
ficaram com média de 8,6 pontos e as da 4ª, com 8,7. Chilenos, argentinos e brasileiros vieram em seguida, com médias em torno de 6,5 a
6,7. Em matemática, os cubanos da 3ª e da 4ª séries conseguiram 8,8
pontos, enquanto argentinos, brasileiros e chilenos conquistaram entre
6,2 a 6,7 (UNESCO-OREALC, 2001). Segundo Marquis (2001), do
New York Times, o desempenho cubano foi tão “dramaticamente superior” que a UNESCO, por via das dúvidas, refez os testes em Cuba,
com os mesmos resultados. Relatórios do UNESCO-OREALC (2000
e 2001) fazem as seguintes considerações sobre a participação cubana:
É inquestionável o sucesso cubano: além de demonstrar
desempenho expressivamente melhor do que o dos demais
países, seus alunos têm nível sociocultural mais elevado;
pela magnitude de seus feitos, Cuba pode transformar-se
em referência para os demais países;
O desempenho de seus estudantes foi homogêneo tanto nas
metrópoles como em zonas urbanas ou rurais, assim como
sob o enfoque de gênero e de nível sociocultural.
O Segundo Estudo Regional Comparativo e Explicativo (Serce), de
2007, teve provas de linguagem e matemática para a 3ª e a 6ª séries
110
do primário, de 16 países (e o estado mexicano de Nuevo León); e de
ciências para a 6ª série de nove países (e do estado mexicano).7 Os testes
aferiram a capacidade de resolver problemas de matemática e a aptidão
em leitura e escrita, além de conhecimento em ciências. Houve até
questões dissertativas. Foram examinados, em média, 11.500 alunos
e 180 escolas (urbanas e rurais) por país. Foram igualmente reunidas
informações sobre os alunos e suas famílias, os docentes, os diretores
e as próprias escolas, para identificar fatores que mais repercutem no
desempenho escolar.
O Serce reafirmou Cuba como o país com os melhores níveis de
ensino na região. Em todas as disciplinas, os cubanos foram os únicos
a obterem mais de 100 pontos acima da média regional de 500. Num
segundo grupo, vieram estudantes do Chile, Costa Rica, México
e Uruguai, com pontuação até 50 pontos além da média. O Brasil
obteve média equivalente à regional. Cuba colocou alunos na categoria
mais alta (nível de excelência) em todas as áreas e cursos pesquisados
(UNESCO-OREALC, 2008; ESTRADA, 2008).
Para a UNESCO, uma educação democrática
Um estudo da UNESCO sobre a primeira pesquisa identificou
escolas cujos alunos obtiveram, em matemática, rendimento superior
ao que era possível esperar diante do nível educacional do respectivo
país. Foram escolhidas cinco unidades (de cada um dos sete países)
com essas características para receberem especialistas do órgão. Os
estudiosos assistiram a aulas de matemática de diversas séries e examinaram a estrutura física dos estabelecimentos, além de coletarem
dados em conversas com professores e alunos. Abaixo, trechos sobre
as escolas cubanas:
7 Participaram de testes em linguagem e matemática Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa
Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e o estado mexicano de Nuevo León. A avaliação em ciências envolveu
Argentina, Colômbia, Cuba, El Salvador, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e o mesmo estado mexicano.
111
As diretoras compartilham a administração escolar com
professores, funcionários e alunos, observando-se um estilo
democrático de direção. As reuniões mensais do conselho
de direção [composto por pais, professores, estudantes e
representantes da comunidade] discutem os problemas;
Os professores trabalham em ambiente colaborativo. Numa
sessão de preparação metodológica, com a participação do
quadro docente, uma professora deu aula demonstrativa
para a quinta série. A apresentação foi discutida com espírito
crítico, mas amigável. Não se evidenciou qualquer supremacia da diretora durante o debate. Nas escolas primárias há
um órgão denominado “coletivo de ciclo”, cujo responsável
se reúne com os professores para o planejamento de aulas.
O ambiente escolar é muito bom, caracterizado pela disciplina, pela dedicação de docentes e alunos e pelo rigoroso
cumprimento de horários. As relações entre alunos, professores e direção são excelentes. Nos primeiros dez minutos de
aula, os alunos debatem temas diversos sob orientação dos
professores. Em todas as classes observadas, houve boa participação dos estudantes e um aceitável nível de informação
sobre os assuntos abordados.
Os docentes conhecem seus alunos pelos nomes, utilizam
linguagem afetuosa, sem deixar de ser exigentes. Conseguem assim motivar os estudantes e elevar sua autoestima.
Os auxiliares, presentes em todas as escolas, revisam cadernos, convocam pais de alunos que estão com dificuldades,
monitoram atividades extracurriculares, ensinam regras de
urbanidade etc.
O desempenho do estudante é discutido com seus pais.
Estes demonstram empenho em apoiar os filhos e manifestam elevado compromisso com o bom funcionamento da
escola, ajudando na limpeza, no embelezamento e até em
reformas de edifícios.
Apenas 15% das aulas observadas foram baseadas em método
expositivo; nos demais casos, chegou-se ao conhecimento
pelo diálogo heurístico, com boa participação dos alunos.
112
Todos têm atividades extracurriculares: círculos científicos
e técnicos e de orientação vocacional; grupos culturais
(dança, música, teatro, artes plásticas, literatura); turmas
de escoteirismo; atividades esportivas e produtivas (jardinagem, agricultura).
As escolas mantêm estreitas relações com a comunidade.
Nos finais de semana, suas instalações são usados para
recreação e atividades culturais dos moradores (UNESCOOREALC, 2002).
“Por que as escolas cubanas são tão boas?”
Após conhecer os resultados da primeira pesquisa da UNESCO,
o economista brasileiro Cláudio de Moura (CASTRO, 1999) viajou
a Cuba para ver suas escolas. Da visita resultou um ensaio que parte
da seguinte constatação: “Gostemos ou não, a educação de Cuba é a
melhor da América Latina. Por que suas escolas são tão boas?” A seguir,
algumas de suas respostas:
A escola primária tem cinco ou seis horas de aula todos os dias.
Com a prática de esporte, a presença na escola chega perto de
oito horas, em ano letivo de aproximadamente 200 dias.
A evasão escolar é de não mais que 1% nos primeiros seis
anos e tem a ver com mudança de residência. Repetências
não acontecem. A “leitura fluente” é o maior objetivo nos
anos iniciais. Ao terminar o primário, todos são matriculados na escola secundária mais próxima.
No ensino médio, são oito horas e meia na escola, dez meses
ao ano. As tardes são para atividades extracurriculares. Em
casa, mais uma hora de pesquisas e projetos especiais.
Os alunos recebem atenção regular de um médico, um
dentista e uma enfermeira. O almoço da escola procura
assegurar cardápio balanceado. Tudo é gratuito.
113
Os livros são fornecidos gratuitamente e devem ser devolvidos no final do ano. É interessante contrastar os altos gastos
[públicos] na compra de livros com o estado de prédios e
equipamentos. A maioria das administrações escolares de
outros países presta mais atenção aos edifícios que aos livros.
No começo do ano letivo, os pais participam de uma
reunião na escola. Qualquer estudante que se ausentar por
mais de dois dias provocará uma visita a sua casa.
Todos os professores têm diploma universitário, obtido
após cinco anos em instituição especializada. Eles dispõem de um dia útil por semana para aperfeiçoamento
profissional. Na escola que visitamos, todos os 59
docentes faziam mestrado. Além de poder alocar parte
do expediente para o estudo, a pós-graduação leva a um
adicional de salário.
Os professores dispõem de metade das 40 horas semanais
para preparar aulas e atender alunos. Boa parte do planejamento é feita em colegiado. Assim, as escolas são capazes de
individualizar a atenção aos estudantes.
A educação tem elevado reconhecimento social e o salário
do professor é equiparável ao de outros profissionais de nível
superior.
O educador cubano efetivamente tem de prestar contas do
seu trabalho. Um comitê formado pelo diretor e por representantes docentes examina os resultados das provas e concede
adicionais salariais àqueles cujos alunos se saíram bem. Isso
é pagamento por mérito, um sério desafio para qualquer
sistema educacional (CASTRO, 1999, pp. 342-354).
Uma avaliação brasileira do ensino médio
Outro depoimento surgiu de um grupo de educadores ligados ao
Conselho Nacional de Comércio, coordenados por Arnaldo Niskier,
da Academia Brasileira de Letras. Eles estiveram em Cuba, em 2003,
114
para conhecer escolas do ensino médio. Abaixo, trechos do relato do
coordenador Niskier (2004):
No ensino médio vigora o regime de internato. São 350
unidades espalhadas por todas as províncias. O currículo
é o mesmo para todos. Os alojamentos não têm luxo, mas
são decentes. Os alunos ficam no internato até meio-dia de
sábado, regressando no mesmo horário de domingo.
O dia escolar compreende nove aulas de 45 minutos cada.
Nas refeições predomina uma dieta à base de pão, queijo e
iogurte. Há uma TV e um vídeo em cada sala de aula e o
professor trabalha muito com essas ferramentas.
Pudemos falar com os alunos sem restrição. Eles demonstram satisfação com a escola. Não reclamam do trabalho
na horta nem da prática esportiva. As atividades artísticas
estão também presentes, especialmente a pintura.
Não há apreço pela carreira do magistério. O salário
médio do professor é de US$ 26, além de subsídio à casa,
refeições e assistência médico-odontológica8.
A Escola Rachel Pérez González, nos arredores de Havana,
tem 545 alunos (324 mulheres e 221 homens), 25 professores e 50 docentes estagiários. O laboratório de informática
é de boa qualidade, mas os de física, química e biologia são
pífios. A biblioteca de 2.500 exemplares fica aberta o dia
todo, mas os livros não estão atualizados.
A Escola de Ciências Exatas Vladimir Lênin, no município
Arroyo Naranjo, tem 3.239 alunos (dois terços mulheres).
As matérias básicas são espanhol, matemática e história, mas
há um aprofundamento em matemática, física, química e
biologia. Os alunos recebem também aula de política e há
8 É necessário cautela com essa interpretação, pois os demais relatos aqui apresentados coincidem
na afirmação de que os professores desfrutam de elevado conceito social, tendo remuneração equivalente à de médicos e engenheiros. A distorção monetária decorre da peculiar situação econômica
de Cuba, não significando desapreço pela carreira docente.
115
intensa vida cultural e esportiva. Quem não obtiver 85% de
aproveitamento pode ser transferido para outra escola.
A Escola Lênin tem biblioteca, cinema e laboratórios (inclusive de informática) muito bem equipados. Conta com hospital próprio. As piscinas estão desativadas por falta de cloro
no país. Há muito verde em torno da escola. A limpeza e a
conservação da escola são feitas pelos alunos.
Conhecemos também o Instituto Superior Pedagógico
Enrique José Varona, um dos três criados a partir de 1959.
Este tem 15 mil alunos. O que mais nos chamou a atenção
foi a Faculdade de Educação Infantil.
Cada professor tem direito a 20 livros gratuitos por ano,
para aprimoramento profissional. Há grande insistência
para que os futuros professores leiam bastante e estudem
cada vez mais (NISKIER, 2004, pp. 62-95).
Eis, em resumo, um vislumbre do sistema de educação regular de
Cuba. O pedagogo Martin Carnoy (2004), da Universidade de Stanford, contou que começou a se interessar pelo tema ao observar como
os filhos de exilados cubanos vinham se destacando nas escolas dos
Estados Unidos. Suas pesquisas resultaram em livros como A vantagem
acadêmica de Cuba: por que seus alunos vão melhor na escola.9 Espero que
mais especialistas brasileiros se animem a estudar o assunto, da mesma
forma que seu colega estadunidense, e contribuam para que autoridades
do setor também tenham seu interesse despertado para esse autêntico
fenômeno cubano. Quem sabe a experiência do país caribenho inspire
o Brasil a enfrentar com decisão os seus enormes desafios na área?
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em: 20/10/2007.
−−______. A aprendizagem dos estudantes da América Latina e do
Caribe (Resultados do Segundo Estudo Regional Comparativo e Explicativo). Santiago de Chile, 2008. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.
org/images/0016/001609/160926POR.pdf>.Acesso em: 23/6/2008.
−−VALENZUELA, Teresa. Crecimiento vertiginoso del software
educativo en Cuba. Rádio Rebelde, 17.10.2008. Disponível em: <http://
www.radiorebelde.com.cu/noticias/educacion/educacion1-171008.html>.
Acesso em: 9/11/2008.
resenha
123
A Educação para Além do Capital, de
István Mészáros
Gustavo Seferian Scheffer Machado1*
Ao contrário do ordinariamente abordado em resenhas, não propomos a realização de crítica a texto inédito ou atual, nunca dantes tratado
em textos e debates acadêmicos. Pretendemos, sim, enfrentar escrito há
tempos publicado em português, conhecido pelo público universitário e
docente, fruto da pena e do gênio de um dos mais reconhecidos marxistas vivos, o húngaro István Mészáros. Não ainda um clássico, mas uma
obra respeitada e referenciada.
Foi, o livro2 que passamos a resenhar, redigido para a conferência de
abertura do Fórum Mundial de Educação de Porto Alegre, realizado no
dia 28 de julho de 2004. Por conta da sua proposta, e também pela
temática objetivada no estudo, nos parece mais acessível e menos hermético do que as demais obras do autor, nas quais a erudição por vezes
leva a intangibilidade do discurso ao leitor não familiarizado com sua
terminologia ou com a tradição marxista.
Firmando seus alicerces reflexivos em três epígrafes – uma de Paracelso, outra de José Martí e a derradeira de Karl Marx –, o discípulo de
Lukács constrói o que, aos seus olhos, deveria ser o papel da educação
em uma suposta “época histórica de transição” 3 ao socialismo:
1 * Bacharel em Direito e Mestre em Direito do Trabalho pela FDUSP. Bacharelando em História
pela FFLCH-USP. Advogado Trabalhista. Membro do corpo jurídico do SINPRO Guarulhos.
Professor.
2 Elaboramos a presente resenha tomando por base a seguinte edição da obra em menção:
MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. 2ª reimpressão. São Paulo: Boitempo,
2006.
3 MÉSZÁROS, István. Idem, p. 76.
124
o papel da educação é soberano, tanto para a elaboração
de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para a automudança
consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação
de uma ordem social metabólica radicalmente diferente. É
isso que se quer dizer com a visão de uma “sociedade de
produtores livremente associados”. Portanto, não é surpreendente que na concepção marxista a “efetiva transcendência
da autoalienação do trabalho” seja caracterizada como uma
tarefa inequivocamente educacional. 4
Sabendo ser essa a importância dada por Mészáros à educação –
inclusive em uma nova sociedade, cumprindo papel na atribuição de
prioridades e necessidades humanas – nossa consideração inicial acerca
da obra decorre do fato do autor ser um prodígio dos títulos. Seus livros
ordinariamente são encabeçados por propostas sedutoras, quase publicitárias à esquerda. Qual militante socialista não gostaria de ter reveladas as dinâmicas sociais de um mundo para além do capital5? Ou ter
escancaradas quais seriam as alternativas ao capital no século XXI, em
que a máxima de Rosa Luxemburgo – socialismo ou barbárie – assume
atualidade dramática e maior urgência6? Mészáros, todavia, enquanto
marxista consequente, jamais se propôs a ensaiar sobre o incerto, acerca
de condições não determináveis e que se forjarão nas dinâmicas históricas da luta de classes. Não se aventurou na ciência da futurologia. Da
mesma forma se porta neste livro, afirmando que “seria realmente um
absurdo esperar uma formulação de um ideal educacional” 7.
4 Idem, p. 65.
5 MÉSZÁROS, István. Beyond Capital: Towards a Theory of Transition. Londres: Merlin, 1995
[Trad. Bras.: Para além do capital. Trad. Paulo Cézar Castranheira e Sérgio Lessa. São
���������������
Paulo: Boitempo, 2002].
6 MÉSZÁROS, István. Socialism or Barbarism: from the ‘American Century” to the crossroads.
Nova York: Monthly Review, 2001[Trad. Bras.: Século XXI: socialismo ou barbárie? Trad. Paulo Cézar
Castranheira. São Paulo: Boitempo, 2003].
7 MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital, op. cit., p. 26.
125
Em verdade, a eclética seleção de epígrafes pretende e consegue
abarcar um grande espectro de problemas envoltos na questão da
educação e sua funcionalidade para uma e em uma organização social
socialista, sem trazer um modelo ideal para gestão educacional, mas nos
indicando pistas das formas com que devemos abordar a problemática
em sua tarefa emancipadora.
A primeira afirmativa que se depreende do texto é que a ordem do
capital é, em essência, incorrigível. Todas as utopias reformistas educacionais e de sociabilidade – como as referenciadas experiências de
Robert Owen em New Lanark e teorias de Eduard Bernstein – falharam, ou apenas teriam a capacidade de corrigir as consequências mais
nefastas do capitalismo, sem atacar suas características essenciais. Não
há avanço gradual por meio da razão, ou plausibilidade da reforma no
bojo do capitalismo. O humanismo é incompatível com a relação social
do capital e enquanto esta perdurar a tônica socioeconômica será a da
exploração humana – pelo, no e para o trabalho alienado, inclusive nos
momentos em que há distanciamentos formal, espacial e cronológico
do trabalhador para com seu labor.
Em que pese acertada a conclusão, não podemos deixar de mencionar
a completa ausência de chamados à prática revolucionária por parte do
autor, mesmo tecendo em uma série de passagens ser necessária a “transformação social” ou “radical mudança estrutural” na ordem produtiva
do capital. O tributário à tradição dialética-materialista sabe muito
bem distinguir, para todos os efeitos, “radical” de “revolucionário”. A
afirmação da Revolução nos parece, aqui, de todo imprescindível, e não
deveria se limitar a remissões a Marx e Lenin, como feito por Mészáros,
insinuando ser esta pauta datada e distante da contemporaneidade.
A segunda assertiva que depreendemos do texto é que os processos
educacionais estão íntima e indissociavelmente conectados às dinâmicas de trabalho. E isso, por certo, não é fenômeno atual. Com o alçar
do capital à condição de hegemon global e a consolidação do Estado
moderno, a educação institucionalizada passa a ter serventia precípua
de formar trabalhadores assalariados, não apenas dando-lhes conheci-
126
mento técnico, mas também lhes incutindo os valores sociais imprescindíveis à perpetuação desta forma de arranjo político-econômico. E o
faz ao introjetar em cada indivíduo as necessidades do capital como se
destes fossem, inclusive por meio de falsificações grosseiras da realidade
histórica.
Romper com a lógica do capital importaria em romper com estas
formas de internalização, tarefa em que a educação cumpriria papel
fundamental. E Mészáros é explícito ao afirmar que apenas a ação coletiva e consciente poderá romper de forma radical com o capitalismo,
enfrentando o sistema de internalização por meio de uma “contrainternalização”. A questão não pode ser tomada, todavia, enquanto
“milagre monumental”8, mas através de sua factibilidade social, mediatizada pelo processo educacional.
Mas afinal, do que se trataria esse processo? Apenas dos desdobrares da educação institucionalizada? Pensamos, e o filósofo húngaro
também assim pensa, que não. É a partir de Parecelso – e em íntima
ligação à leitura marxista da história e sociedade – que propõe pensar
de forma mais ampla a educação. Educamos aos outros e a nós mesmos
de forma continuada, a cada instante da vida, em toda relação social.
Nessas dinâmicas cotidianas é que nos forjamos enquanto indivíduos
políticos. Em contrapartida, a educação formal se revela elitista em seu
cerne e não pode trazer mudança efetiva na perspectiva de superação da
ordem produtiva capitalista.
Ao afirmar a educação dentro destes marcos, Mészáros a nega
enquanto atividade intelectual de erudição, que exclui a grande parte
da população global. Baseando-se em Gramsci, afirma que “todo ser
humano contribui, de uma forma ou de outra, para a formação de
uma concepção de mundo predominante” 9, alçando, de forma total
e universal, o homem a agente, e não objeto, dos processos culturais e
históricos.
8 MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital, op. cit., p. 46.
9 Idem, pp. 49-50.
127
Nesse contexto, conclui Mészáros, seria plausível trazer à agenda
histórica a necessidade de universalização não só da educação, mas,
concomitantemente, a universalização do trabalho não alienado. E é
a conjunção desses fatores que nos leva a afirmar que a leitura feita
por Emir Sader de Educação Para Além do Capital, em seu prefácio
à obra, é de todo equivocada. Ao contrário do que pensa o respeitável sociólogo paulista, não é por meio do controle público exclusivo
da educação formal que os processos educacionais assumirão caráter
emancipacionista. Pelo contrário: o Estado, enquanto garante maior da
circulação mercantil e da manutenção da ordem capitalista, reproduz
a mesma lógica da educação formal privada, e prima pela formação de
indivíduos para inserção no mercado de trabalho10. A universalização
da educação e do trabalho se daria na forma como pretendia Locke –
arauto primeiro do liberalismo econômico e político –, pela criação de
escolas profissionalizantes em todos os rincões. Emancipação não há,
efetivamente.
Diante da leitura da obra, não hesitamos em afirmar que Mészáros
– em que pese todas as críticas que possam ser feitas às suas propostas
e referenciais – aponta uma respeitável nova forma de abordar a educação, visando “uma ordem social metabólica que sustente concretamente
a si própria, sem nenhuma referência autojustificativa para os males
do capitalismo”, onde impere a igualdade material e a autonomia dos
produtores livremente associados. Seu chamado é urgente, e não deve
tardar a ser atendido. De suas lições aprendemos que a educação não é
a-histórica e imutável. É fruto de um arranjo social específico, e passível
de alterações – para não dizer sua destruição completa! – pelas dinâmicas classistas do porvir.
E engana-se aquele que, tomado pelas viciadas leituras “oficiais” de
Marx11, pensa que os embates ideológicos e intelectuais são inócuos,
10 Podemos mencionar, inclusive, que o Estado, mesmo em sociedades pós-capitalistas – como
o burocrático e degenerado estado operário cubano, referenciado acriticamente por Mészáros,
lançando louros a Fidel Castro – , reproduz a lógica de internalização da Educação para o capital,
inclusive com as mesmas falsificações da realidade.
11 Fazemos especial menção à deturpada leitura consagrada pela tradição stalinista da seguinte
128
inofensivos. Eles são perigosos. Forjam, nas lutas materiais – “armadas”! –, a emancipação humana, que não se esgota no discurso. Esse,
aliás, é feito de palavras. “Las armas no, – las armas son de hierro!” 12.
passagem redigida pelo jovem Marx: “É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das
armas, que o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria converte-se em
força material quando penetra nas massas.” (MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.
Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 151).
12 MARTÍ, José. Poesía Completa: edición crítica. T.1, 4ª ed. Havana: Letras Cubanas, 2008, p.
67.
leitura de arte
131
Qualquer Semelhança com os Fatos
é Pura Coincidência: O Realismo
Crítico em “Escola de Samba, Alegria
de Viver”, de Carlos Diegues (1962) 1
Mariana Barbedo2*
O presente artigo tem como propósito a apreensão histórica do
episódio Escola de Samba, Alegria de Viver, dirigido por Carlos Diegues3 em 1962, a saber, um dos cinco curtas-metragens que integram
o filme Cinco Vezes Favela. Com isso, buscamos trazer algumas reflexões acerca da participação artística e política deste diretor de cinema
no Centro Popular de Cultura4 (CPC), movimento emblemático da
1 Este artigo é oriundo da minha pesquisa de doutorado, ainda em andamento, sob o título
original: O Realismo Crítico de Carlos Diegues no Cinema Moderno Brasileiro: Representações do
nacional-popular no Cinema Novo (1962-1969).
2 *Doutoranda em História Social pela PUC-SP e professora da Prefeitura Municipal de São Paulo.
3 Carlos Diegues (nascido em Maceió, Alagoas, em 19 de maio de 1940), está entre os diretores
mais importantes da cinematografia brasileira. Cineasta, cuja trajetória profissional se confunde
com a história recente do nosso país, com mais de 50 anos de carreira, trazendo uma relevante colaboração para a produção artística nacional. Concomitantemente a essa vasta produção, participou
da vida política nacional, pondo-se como indivíduo engajado nos debates, principalmente os que
permeavam o âmbito cultural, ao longo de sua vida e, em particular, a efervescente década de 1960.
4 Fundado em 1961, o CPC era fruto do Teatro de Arena, mais especificamente da peça A maisvalia vai acabar, seu Edgar, cuja utilização de linguagem direta, cartazes, slides e números musicais
facilitavam a absorção dos conteúdos pelo público. Ao final da temporada de exibição da referida
peça, Carlos Estevam Martins, Leon Hirszman e Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha) propuseram à
direção da União Nacional dos Estudantes (UNE) a realização de um curso de filosofia ministrado
pelo professor José Américo Mota Pessanha. Nesse momento, Vianinha saiu do Teatro de Arena
e fundou o CPC, pois, segundo ele, era importante que os artistas se colocassem como agentes
transformadores da sociedade. O CPC seria uma tentativa de suprir as limitações do Teatro de
Arena que, segundo Vianna, tinha se contentado “com a produção de cultura popular”, e não tinha
colocado diante de si “a responsabilidade de divulgação e massificação”. Estava na raiz do CPC o
movimento pela conscientização e mobilização das massas em favor de uma realidade mais “justa”.
Essa ideia de justiça, por sua vez, estava intimamente ligada ao socialismo. Ainda que nem todos
os integrantes desse movimento tenham sido do PCB não podemos negar que este movimento
132
arte engajada do início da década de 1960, que permite o aprofundamento do debate acerca da função social do artista, bem como das
lutas sociais que antecederam o golpe militar.
O referido filme traz cinco histórias sobre as possibilidades do
desenvolvimento da consciência política nas favelas do Rio de Janeiro
daquele período. Quando da abertura do filme, vemos nos letreiros
iniciais a frase lapidar: “Qualquer semelhança com os fatos é pura coincidência”. Esses dizeres tornam claro o objetivo político dessa produção
que, com um toque de ironia, assume a opção estética do realismo
crítico. Uma opção que, tal como propôs o russo Vsevolod Pudovkin
− uma figura representativa de uma estética realista de inspiração marxista − a unidade artística é constituída de modo a cristalizar uma visão
de mundo, um exame do real (XAVIER, 2005).
Longe de querer buscar representações fiéis à realidade, nosso objetivo é pensar o filme historicamente, dito de outra maneira, trata-se de
buscar a representação dos eventos em sua dimensão histórica. Nessa
direção, negamos o intuito de atribuir aos filmes o estatuto de verdade,
pois embora a configuração do cinema – a ilusão a partir da reprodução
do movimento da vida – tenda a subverter a separação (física) entre
telespectador e tela, de modo a carregá-lo para dentro dela e fazer com
que este, por algum momento, confunda arte e vida, é essencial observar que o cinema é um discurso composto de imagens e sons que se põe
como um “fato de linguagem, um discurso produzido e controlado, de
diferentes formas, por uma fonte produtora” (XAVIER, 2005, p. 14).
Partindo desse pressuposto, acreditamos que a obra cinematográfica
em questão nos possibilita pensar as lutas políticas do início da década
de 1960, período marcado por uma prática de efervescência cultural
e política ímpar na história do Brasil, com uma intensa participação
popular, mais especificamente da juventude universitária, na vida política
herdou a política cultural defendida por esse partido. O ponto comum entre os estudantes e o PCB
era a defesa do nacional-popular, como política cultural da esquerda cuja representação de temas
da classe trabalhadora brasileira com um forte apelo da cultura popular se viam como primordiais
para a edificação de uma cultura genuinamente nacional em prol da conscientização das massas,
considerada a base da libertação nacional. A ideia era fazer com que a arte, de modo geral, circulasse
e chegasse à classe trabalhadora (RIDENTI, 2000).
133
nacional. Isso se dá porque esse início de década representa um momento
bastante singular na disputa pelo caminho a ser traçado para a sociedade
brasileira modernizar sua economia, um momento crucial da luta de
classes pelo destino da entificação do capitalismo brasileiro, da modernização brasileira.
Entre seus diretores estavam jovens estudantes de direito, jornalismo,
engenharia e física, cineclubistas interessados na vida política brasileira
em um de seus contextos mais turbulentos. Em meio a esse turbilhão
social temos Um Favelado, de Marcos de Farias, que conta a história
de João, um homem que vive em uma “situação limite”: desempregado,
com esposa e filhos e com o aluguel atrasado, somado a isto, por conta
desse atraso, é espancado pelo proprietário do barraco e seus capangas.
Desesperado, vê situações em que o roubo é propício. Por fim, se junta a
um bandido, o “Pernambuco”, e resolvem assaltar um ônibus. Para seu
infortúnio, o motorista reage. O comparsa foge com o dinheiro e João
é perseguido pelo povo. Encurralado num beco, fere-se nos cacos de
vidro do muro, apanha da multidão e é preso por dois policiais. Zé da
Cachorra, de Miguel Borges, leva-nos a refletir acerca do problema da
falta de moradia a partir da história da família de Raimundo, que chega
à favela e se acomoda num terreno grilado. Zé da Cachorra, espécie de
líder do morro, coloca a família no barraco cujo dono é Bruno que, por
sua vez, quer que a família desocupe seu terreno. No premiado Couro
de Gato, de Joaquim Pedro de Andrade, vemos o esforço de garotos
que, na época do carnaval, roubam gatos para vender porque os couros
são usados na confecção de tamborins pelas escolas de samba. Um dos
garotos pega um de uma mulher rica, brinca e divide a sua comida com
ele. Ele hesita em vendê-lo para o fabricante de tamborins, mas a fome
se torna maior que a afeição pelo animal. Em Pedreira de São Diogo,
de Leon Hirszman, vemos a história de homens que trabalham numa
pedreira na beira de um morro onde fica uma favela, da qual são moradores. A encosta é explodida, avançando ao terreno próximo dos barracos. Os favelados são avisados de que novas explosões podem causar
danos. A comunidade resolve se colocar na encosta, impossibilitando
134
nova explosão. Sem saídas, o encarregado desiste de explodir o morro.
Por fim, Escola de Samba, Alegria de viver, dirigido por Carlos Diegues
e com argumento escrito por Carlos Estevam Martins5, tem como
personagens centrais Gazaneu, que se torna presidente da escola de
samba e sua esposa Dalva, que é militante sindical. Panoramicamente,
o episódio trata do esforço de uma escola de samba para a organização
de um desfile de Carnaval. A história se desenrola numa favela, que nos
é apresentada a partir de um conflito entre a comunidade – a qual vive
de maneira intensa a escola de samba – e a militante sindical Dalva.
Após o conflito arquitetado por Babaú, então presidente da agremiação,
a diretoria da escola se reúne e decide destituí-lo da presidência. Em
seu lugar como presidente, a partir de uma votação entre os diretores,
Gazaneu é eleito. Agora presidente, enfrenta dois problemas: o conflito
com sua mulher, Dalva, por ela militar no sindicato e não participar
da organização junto à comunidade e o impasse com credores que no
decorrer da trama emprestaram dinheiro para financiar o desfile.
Realizado a partir de uma produção independente6, filmado em
cinco favelas cariocas e contando com a participação de atores não
profissionais e moradores das favelas − opções que buscavam, também,
viabilizar a cinematografia brasileira na esteira da dominação do mercado por produções hollywoodianas − os curtas de Cinco Vezes Favela
têm como pano de fundo as contradições sociais oriundas do modo de
produção capitalista, a exemplo da sensível representação do embrutecimento da infância diante da luta pela vida, presente no episódio Couro
de Gato, ou da “situação limite” de um pai de família desempregado e
5 Carlos Estevam Martins, sociólogo brasileiro nascido em 1934, no Rio de Janeiro. Atuou no
ISEB, foi um dos fundadores, o primeiro diretor e autor do manifesto do Centro Popular de Cultura
(CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), fundado em 1961. Doutor em Ciências Sociais,
foi professor da USP e da Unicamp, além de membro do Cebrap e diretor da Fundap. Em suas funções públicas entre os cargos que exerceu está o de assessor especial do governador Franco Montoro.
6 A produção do filme contou com recursos do governo federal, obtidos a partir da ajuda de
Ferreira Gullar, que na época trabalhava no governo federal. O custo total do filme foi cr$ 4,5
milhões, dos quais cr$ 3 milhões foram subvencionados pelo governo e o restante pago com recursos
dos próprios integrantes do CPC. Corrigido para os valores de hoje, o custo da produção foi de,
aproximadamente, R$ 200.000,00 (NETTO, 2012).
135
com o aluguel do barraco atrasado em busca de qualquer solução para
seu problema, discussão chave de O Favelado.
Em torno desse fime discutiu-se, dentre outras coisas, o papel do
cineasta na sociedade: se era viável colocar um problema ao público e
não apontar-lhe a solução, se as mensagens deveriam ser explícitas ou se
o público deveria ter liberdade de formular por si próprio os poblemas,
entre outras questões. Assim, para além do seu valor artístico, Cinco
Vezes Favela marca a história do cinema brasileiro pelo debate cultural
que ele promove, ao nosso ver, sua principal contribuição.
Escola de samba e militância sindical:
uma oposição radical
O ponto central da narrativa fílmica é a constante contraposição
entre o Carnaval e a militância sindical. Vejamos como essa contradição se desenvolve no filme. Na primeira sequência, vemos Gazaneu e
Dalva descendo o morro. No pé do morro estava o presidente da escola
de samba, Babaú, que havia feito um conchavo com homens e mulheres
da comunidade para “dar uma lição” na sindicalista. Este orienta a
comunidade contra Dalva e põe o plano em ação. A lição consistia nas
mulheres da escola cantando, dançando em torno de Dalva e impedindo sua passagem, o que acarretou na derrubada de seu material de
luta – panfletos – que foram pisoteados pelas mulheres do samba.
As personagens nos são apresentadas a partir desse conflito e é em
torno dele que a narrativa se desenvolve. Em sequência que ocorre no
interior do barraco, enquanto Dalva produz uma faixa para o sindicato,
Gazaneu exige mais atenção de Dalva e sua aproximação com a escola
de samba e a comunidade. Em contrapartida a sindicalista argumenta:
“Pra quê? Bater perna nesse barulho vazio. Esquecer o que está certo e
o que tá errado?”. Ao se deparar com a recusa de Gazaneu na discussão,
ela afirma que este tem que ouvir o que não quer, do contrário, tem que
ir embora. A partir dessa discussão eles rompem a relação.
136
Mais adiante, depois de alcançar êxito nos ensaios e preparo do
desfile, Gazaneu vai ao encontro de Dalva na saída do trabalho e leva
consigo um grupo de crianças portando batuques para lhe fazer uma
performance carnavalesca, é assim que ele a surpreende no fim do
expediente. Festivamente, as crianças vão fazendo samba e dançando
enquanto os trabalhadores saem. Dalva avista Gazaneu que, por sua
vez, acena. Ouvimos uma voz em off chamando Dalva e dizendo que
ela parasse de conversar e fosse distribuir folhetos. Era preciso militar.
Dalva, apreensiva, olha para Gazaneu e parte; a câmera continua mostrando Gazaneu que, desiludido, vai embora com as crianças.
No desfecho, a contradição se reafirma. Na última sequência do
curta-metragem, a câmera acompanha Dalva subindo o morro, do alto
ela avista o ensaio da comunidade. Gazaneu está acompanhado por três
homens que realizam os últimos ajustes para o desfile. Ouve-se a voz
de um rapaz chamando aflito por Gazaneu. Dalva ouve o chamado e
desvia o olhar para procurá-lo. A câmera acompanha o rapaz que corre
em direção de Gazaneu e avisa o grupo da chegada dos cobradores. Os
cobradores sobem as escadas em direção de Gazaneu e seus homens; os
dois grupos estão de frente um para o outro. Dalva observa a discussão.
Os homens da escola de samba pedem para estenderem o prazo para
depois do Carnaval. Nesse momento, um dos cobradores ateia fogo
na bandeira da escola de samba; ouve-se um grito de alerta; há uma
agitação; um dos cobradores desfere um golpe no rosto de Gazaneu;
antes de sair, o homem atira a bandeira em chamas contra o rosto de
um dos homens da escola de samba, que tem o rosto queimado. Dalva
desce o morro; um rapaz observa com apreensão. Os homens da escola
de samba se aproximam do ferido para socorrê-lo; o rapaz se afasta.
Enquanto isso a comunidade prossegue animada com o samba.
Nesse último encontro entre o casal não há nenhuma aproximação
ou conversa, mas a bandeira destruída, o homem queimado, a escola de
samba endividada e alheia ao drama que envolve o financiamento do
desfile, Dalva socorrendo o ferido. Todos esses elementos sugerem que
137
Dalva estaria correta em suas críticas e postura, já que as “escolhas” da
comunidade culminaram num destino trágico.
O que torna essa conciliação impossível é a apropriação esquemática
que a obra faz dessas duas instâncias: a escola de samba e o seu caráter
alienante de um lado e a consciência transformadora do sindicato, do
outro lado. Essa contraposição tem um propósito político que é o de
ensinar aos telespectadores, supostamente oriundos da favela, o caminho
a ser seguido para a transformação social. Uma dicotomia que não se põe
na vida, mas numa determinada visão política e/ou esquema teórico.
Para além do dilema em que vivem as duas personagens principais,
há outro elemento que envolve uma tomada de consciência, de desalienação, como componente chave da narrativa fílmica: percorrendo toda
a trajetória da comunidade, vemos a personagem de um rapaz jovem,
que nos aparece sempre observando os acontecimentos, ora pela fresta
da porta, ora agachado na janela do lado de fora. Ele é testemunha
ocular de tudo o que acontece na trama e, após assistir ao desfecho com
os agiotas, retira sua fantasia, abandona o desfile e sobe o morro.
Assim, se Gazaneu vai às últimas consequências com sua atividade
alienada, esse rapaz, que teve o “privilégio” de testemunhar o conjunto
de situações vividas pelas personagens, abandona o seu uniforme de
passista e se embrenha na mata, morro acima – direção oposta a da
comunidade que seguia para o desfile e, não acidentalmente, a mesma
em que ia a sindicalista Dalva. Essa, que é a última imagem do filme,
nos encaminha à possibilidade de transformação. O desenvolvimento
dessa personagem, elemento bastante didático, tem a função de explicitar a tomada de consciência, convidando o telespectador à ação.
Escola de Samba busca cristalizar uma tese sobre a realidade: a escola
de samba é expressão da alienação da comunidade e essa alienação pode
e deve ser superada a partir da tomada de consciência da realidade e
da ação transformadora, com a militância sindical. Tese essa que fora
elaborada no interior do CPC, mais especificamente por Carlos Estevam Martins, enquanto este era diretor do centro de cultura e redigiu
o Manifesto do CPC da UNE de 1962.
138
Em 1961, Carlos Estevam Martins trabalhou no Instituto Superior
de Estudos Brasileiros (ISEB) como assistente de Álvaro Vieira Pinto
que, naquela ocasião, atuava como chefe do departamento de Filosofia
e que era um dos maiores entusiastas da arte estritamente política. No
interior do CPC, enquanto diretor do movimento, elaborou aquele
que seria seu texto mais conhecido, o Manifesto do CPC. Segundo este
documento, havia três formas de arte ligadas ao povo: a arte do povo, a
arte popular e a arte popular revolucionária. As duas primeiras teriam
sido repudiadas pelo CPC, pois não expressavam o povo na sua essência
e mantinham a população imobilizada e inconsciente. A primeira, produto de comunidades economicamente atrasadas, constituía-se através
da afinidade entre o artista e a massa consumidora; a segunda, por sua
vez, foi definida como arte de passatempo. Para o centro de cultura,
ambas dificilmente poderiam receber a denominação de arte e, em
hipótese alguma, merecer a denominação de popular ou do povo. Já a
terceira, arte popular revolucionária, seria a razão de ser do movimento
que via no artista a “arma espiritual da libertação material e cultural do
nosso povo” (Manifesto do CPC, 1962)7.
Escola de Samba, Alegria de Viver busca constituir a cultura popular
revolucionária, entendida pelo CPC como a única capaz de transformar
a sociedade e “passar o poder ao povo”. Ele plastifica uma proposta
político-cultural e, assim, vemos a instrumentalização da arte para
difundir seus objetivos políticos. O filme tem a proposta de funcionar
socialmente enquanto agente revelador da alienação, para indicar ao
povo o caminho a ser seguido para uma transformação social.
Verifica-se que a cultura popular se punha como sinônimo de
tomada de consciência da realidade brasileira, exigindo “compreender
que o problema do analfabetismo, como o da deficiência de vagas nas
Universidades, não está desligado da condição de miséria do camponês,
nem da dominação imperialista sobre a economia do país” (GULLAR,
1980, p. 84). A resolução desses problemas estaria na concretização
de profundas transformações na estrutura socioeconômica e, conse7 In: FÁVERO, 1983.
139
quentemente, no sistema de poder. Desse modo, cultura popular era,
primeiramente, “consciência revolucionária”. No que tange à instrumentalização da arte em prol da política, Ferreira Gullar esclarece:
A arte era vista como um instrumento para nós chegarmos
a essa nova sociedade, para fazermos a justiça social, através
do esclarecimento do povo até chegar lá. Essa era de fato a
nossa visão. Então, a questão estética ocupava, ficava num
plano secundário. A coisa prioritária não era fazer uma bela
peça ou um belo poema, era fazer um poema que tivesse
eficácia política (GULLAR, 2010, s/p).
Inserido nessa compreensão político-ideológica, Escola de Samba
evidencia a proposta nacional-popular. Pode-se falar, tal como o fez
Renato Ortiz referindo-se ao CPC, à “militantes da cultura popular”.
Nesse sentido, falamos em nacional-popular numa perspectiva de ação
política, derivativo imediato da questão dos intelectuais e da organização da cultura (ORTIZ, 2003).
Em verdade, falar de cultura é falar de relações de poder e, pensarmos a construção do conceito de cultura popular nesse momento da
história, é um exercício que só pode ser feito se colocarmos em perspectiva a experiência isebiana8. Os intelectuais do ISEB analisaram a
questão cultural dentro de um quadro filosófico e sociológico: a cultura
significa um vir a ser. Nessa direção, tomavam a cultura, em conjunto
8 O ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) foi fundado no início da década de 1950 e
era constituído por um grupo de intelectuais ligados ao governo de JK. O instituto foi uma referência da produção ideológica ligada ao nacional-desenvolvimentismo. Como assinala Mendonça,
“a agência tornou-se a matriz de um certo tipo de pensamento destinado à mobilização social em
torno do progresso do país”.Imbuídos desse desafio inicial, a composição do grupo conjugava os
intelectuais como: Roland Corbisier, Almeida Salles, Paulo Edmur de Souza Queiroz, José Luiz
de Almeida Nogueira, Miguel Reale e Luigi Bagolini. Do Rio de Janeiro participavam, além de
Helio Jaguaribe, Rômulo de Almeida, Candido Mendes de Almeida, Guerreiro Ramos, Oscar
Lourenço Fernandes, Ignácio Rangel, José Ribeiro de Lira, Israel Klabin, Cid Carvalho, Fábio
Breves, Moacyr Félix, Jorge Serpa Filho, Ewaldo Correia Lima, Ottolmy Strauch e Heitor Lima
Rocha. Ver: MENDONÇA, Sonia Regina de. As bases do desenvolvimento capitalista dependente:
da industrialização restringida à internacionalização. In: LINHARES, 2003.
140
com a atividade educacional, como um difusor de consciência crítica,
podendo aproximar a “massa” da população à realidade do país. A
questão cultural passava a ser encarada como um projeto transformador. Nesse sentido, Renato Ortiz considera o Instituto como “matriz de
um tipo de pensamento que baliza a discussão da questão cultural no
Brasil dos anos 60 até hoje” (ORTIZ, 2003, p. 46).
Nessa perspectiva do vir a ser, foram desenvolvidos conceitos como
o de “cultura alienada”, “colonialismo”, “autenticidade cultural”, todos
produzidos pela intelligentsia do ISEB. Verifica-se que parte dessa
teoria penetra tanto as forças de esquerda marxista quanto o pensamento social católico. Assim, esse instrumento teórico então exclusivo
de alguns intelectuais da cultura brasileira se distribui socialmente e
gradativamente, é integrado nas produções culturais: “a teoria isebiana
ultrapassa o terreno da chamada cultura popular, ela se insinua em duas
áreas que são palco permanente de debate sobre a cultura brasileira: o
teatro e o cinema” (ORTIZ, 2003, p. 48).
Rio, ontem e hoje: arte do povo
No filme, o samba-enredo da escola de samba, Rio, ontem e hoje9
é produzido de improviso pelos compositores: Gazaneu e mais dois
homens dão palpites a respeito da canção, enquanto os dois compositores vão improvisando no canto. Dando continuidade ao canto dos
compositores, abre-se um novo plano onde se ouve esta música cantada
em coro pela comunidade, enquanto esta trabalha na organização do
desfile. Na sequência, a comunidade canta em coro; batem palmas e
realizam performances; batucam tambores; depois de concluir a bandeira da escola de samba, um menino a coloca no mastro e a hasteia
gloriosamente.
9 Vale mencionar que foi com o samba-enredo Rio, ontem e hoje, composto a partir da parceria
de Alcebíades Barcelos (Bide) e João Laurindo em 1961, que a escola de samba Unidos de Cabuçu
venceu o carnaval do 2º Grupo naquele ano.
141
A construção coletiva desse samba-enredo é reveladora, até descritiva,
das manifestações culturais repudiadas pelo grupo que a produziu, o
CPC. Ela nos reapresenta a ideia cepecista de arte do povo, caracterizada
por uma produção na qual o artista emerge da própria massa consumidora e onde ambos vivem “integrados no mesmo anonimato e o nível
de elaboração artística” é tão “primária que o ato de criar não vai além
de um simples ordenar os dados mais patentes da consciência popular
atrasada”. Essa compreensão toma esse tipo de manifestação como
“desprovida de qualidade artística” e restrita à pretensões culturais
toscas e limitadas de exprimir a trivialidade: “é ingênua e retardatária
e na realidade não tem outra função que a de satisfazer necessidades
lúdicas e de ornamentos” (Manifesto do CPC, 1962)10.
O filme nos apresenta uma comunidade alienada, que segue acriticamente as ordens de seus líderes: aplaude e segue os mandos tanto de
Babaú, quanto de Gazaneu. A agremiação carnavalesca reproduz uma
relação de poder na qual a maioria de seus partícipes fica excluída das
decisões importantes. Na sequência na qual ocorre uma reunião com a
direção da escola de samba para a retirada de Babaú da presidência, faz-se
a destituição em portas fechadas; do mesmo modo, o pequeno grupo elege
Gazaneu. Os diretores, homens, decidem o seu destino em um barraco
fechado. A comunidade espera o desfecho do lado de fora, cabendo a ela
apenas espionar pela fresta da porta as decisões tomadas pela direção.
No que tange ao samba-enredo produzido, é saudoso dos velhos
tempos coloniais. Tempo das “belas mansões antigas”, dos “lindos
pregões” e cantigas, dos “majestosos salões imperiais” e das “grandes
nobrezas” de anos atrás. Saudosismo que objetiva exteriorizar o “atraso
da consciência popular”. Atraso claramente combatido na propositura
política do Cinema Novo, já que descolonizar era a palavra de ordem
nesse movimento.
Submerso à reflexão acerca da cultura alienada e do colonialismo,
o Cinema Novo teve como principal horizonte a libertação nacional.
Nesse mesmo sentido, Ismail Xavier afirma que na esfera do cinema, a
10 In: FÁVERO, 1983.
142
emergência das cinematografias nacionais parecia ser “um passo inicial
em direção a uma nova ordem mais pluralizada na produção e consumo
de filmes”, tratou-se, em verdade, de um momento especial da história
da América Latina, marcado pela polarização dos conflitos ideológicopolíticos e pela radicalização de comportamentos, principalmente na
esfera da juventude (XAVIER, 2001, p. 22).
A luta pela descolonização e pelo nacional-popular era o ponto em
comum de diferentes segmentos da esquerda brasileira daquele período,
a partir disso, reforçavam-se as diferenças. Observa-se, assim, que esse
movimento artístico-cultural esteve umbilicalmente ligado ao momento
político brasileiro e internacional, acarretando na sobreposição da voz do
intelectual militante em detrimento da do profissional do cinema. A esse
respeito, Ismail Xavier clarifica:
Assumindo uma forte tônica de recusa do cinema industrial – terreno do colonizador, espaço de censura ideológica
e estética – o Cinema Novo foi a versão brasileira de uma
política de autor que procurou destruir o mito da técnica e
da burocracia da produção, em nome da vida, da atualidade
e da criação. Aqui, atualidade era a realidade brasileira, vida
era o engajamento ideológico, criação era buscar uma linguagem adequada às condições precárias e capaz de exprimir uma visão desalienadora, crítica, da experiência social.
Tal busca se traduziu na “estética da fome”, na qual escassez
de recursos técnicos se transformou em força expressiva e
o cineasta encontrou a linguagem em sintonia com os seus
temas (XAVIER, 2001, p. 63).
A luta por uma cultura nacional no âmbito cinematográfico estava
ligada ao que Roberto Schwarz chamou de hegemonia cultural da
esquerda que, arraigada pelo socialismo difundido no país, empenhouse na luta anti-imperialista. Buscavam, essencialmente, a descolonização do cinema brasileiro. Trazendo um conteúdo que, nas palavras de
Nelson Pereira dos Santos, possibilitasse o reconhecimento da “verda-
143
deira face do povo brasileiro” (SANTOS apud RIDENTI, 2000, p.
90). É nessa direção que caminha Escola de Samba, Alegria de Viver,
empenhado na luta pela conscientização e participação política dos
brasileiros, a partir de um filme que integra-se na luta anti-imperialista
pela busca de uma cultura nacional.
Carlos Diegues, entre o CPC e o Cinema Novo: uma
reflexão sobre a função social do artista no início da
década de 1960
Já vimos como o curta dirigido pelo, então, jovem Carlos Diegues,
busca exteriorizar a tese cepecista sobre cultura popular e cultura revolucionária. Ainda assim, o episódio foi alvo de críticas pelo público e
pelos próprios cepecistas, o que ocasionou dissidências dentro do centro de
cultura. Para Diegues, a produção deste filme de 1962 marca o momento
em que finda sua relação com o CPC. A esse respeito o autor clarifica:
O Cinema Novo não tinha mais nada a ver com o CPC.
Faziam parte do mesmo universo, mas o Cinema Novo
defendia um cinema de autor, havia um culto da liberdade
de expressão, da arte como forma de manifestação pessoal,
que precisava ser respeitada enquanto tal. No CPC, não!
Pois lá reinava a ideia de grande catedral socialista onde
cada um colocava seu tijolo anônimo (DIEGUES, apud
BARCELLOS, 1994, p. 43).
Diegues entende que a cisão se enraizava na acepção que ambos
tinham da função da obra de arte. Após o rompimento, Carlos Diegues
passou a defender com bastante entusiasmo a liberdade artística e o
cinema de autor em contrapartida ao projeto do CPC, que via a arte
como meio de alcançar um objetivo político, o socialismo, e que não
permitia aventuras artísticas, era pragmático. Seus eventos culturais
eram vistos e produzidos para a classe trabalhadora e, por isso, tendiam
144
a certo didatismo. Diegues, sentindo que o grupo não era “tolerante”
com outras posturas artísticas, “proclamou independência” e se afastou
desse grupo. A esse respeito, nosso diretor afirma:
Se, independente da minha vontade, eu me afastei do CPC
foi porque mais ou menos isso (com sinal trocado) começava a acontecer. As pessoas deixam de realizar mesmo para
cumprir tarefas marginais, se destroem e destroem o próprio
sentido de sua função. Mário Faustino dizia certas coisas
para mim que nunca esquecerei. Com toda a porra-louquice
dele (que era a maior centrada num homem só) ele sabia das
coisas. Uma vez, falando dessas coisas, ele me disse mais
ou menos isso: “num país subdesenvolvido é necessário ser
comunista e impossível pertencer ao partido”. É claro que ele
se referia ao partido daquela época, sectário, burro, fechado,
esquemático, dogmático etc. Mas vale também para certas
coisas de hoje. Com isso eu fico sabendo: 1) Não se pode
ser porra-louca sem estar cometendo um crime social; mas
também 2) não se pode enquadrar em esquemas definitivos
se em nossa sociedade está tudo se transformando com a
rapidez de um segundo (DIEGUES, 1963 a).
Não obstante, ele critica a postura de integrantes do PCB, atuantes
desse grupo que, por serem “sectários”, destruíam o próprio sentido
de sua função (transformação social). Pouco mais de dois meses se
passaram e, em correspondências trocadas com Glauber Rocha quando
da produção de Ganga Zumba, Carlos Diegues ainda demonstra estar
abalado com as críticas sofridas pelo episódio Escola de Samba Alegria
de Viver. Em carta, o autor reavalia sua, então, curta carreira11.
Eu fiz uma merda de filme que todo mundo viu. Eu fiz
um filme que ninguém viu que é razoavelmente razoável
11 Constituída por três filmes de curta-metragem: A Fuga (1959), Domingo (1961) e Escola de
Samba, Alegria de Viver (1962).
145
(Domingo). Mas fica mesmo é a merda (Escola de Samba).
Poucos amigos me disseram isso: É UMA MERDA. É
quase nada. Não adianta agora explicar o porquê. Um dia
estarei muito bêbado ao seu lado e lhe conto “thetruestry”.
Mas por enquanto considero chantagem fazê-lo. Meu filme,
(que ninguém nos ouça) é um relicário de confusões, de
desorganização, de desinteresse. O que eu só compreendi
muito tardiamente. É fruto de situações concretas, mas é
principalmente fruto de um processo de incertezas que eu
sofri naquela época (DIEGUES, 1963 c).
O diretor não queria repetir os erros de Escola de Samba, que o levaram a “evitar” as pessoas, pois não queria comentar seu filme, para ele,
indefensável. Em seguida, afirma que “5x Favela, por todos os motivos,
é um equivoco que, com tudo de bom que teve (e teve muito), não pode
se repetir. V. me entende?” O filme, responsável pelo rompimento de
Diegues com o CPC, era tido por ele como um grande equívoco que
lhe trazia vergonha. Sentia-se “acanhado” quando falava em seu novo
projeto, pois sentia as pessoas “rindo” atrás dele: “hoje mesmo eu abro o
Estadão e vem um tal de S. esculhambando o 5x de modo geral e Escola
em particular e ninguém me dizendo nada, e eu sabendo pelos jornais
o que as pessoas – e o público em geral – acham” (DIEGUES, 1963 c).
Nessas correspondências, Diegues não evidencia quais foram os
“erros” do filme, entretanto, a existência da concepção de “erro” nos
encaminha a pensar quais seriam os filmes “corretos” a serem feitos e
pra quem?
Como vimos, o episódio cuja função era politizar o público a
partir da arte, parte de uma visão bastante esquematizada da sociedade que, segundo Jean-Claude Bernardet, provém mais da leitura
de livros de sociologia do que do contato com a realidade da favela.
As críticas aos episódios se encaminharam nesse sentido. Esmagado
por um esquema abstrato, o episódio parte da seguinte ideia: “Se o
favelado preocupa-se mais em organizar festas da escola de samba do
que participar da vida sindical para alterar a sociedade, tudo ficará
146
na mesma” (BERNARDET, 1967, pp. 42-43). Dessa maneira, não se
deixa à realidade a menor possibilidade de ser mais rica e complexa
do que o esquema exposto e limita-se à interpretação ao problema
enunciado. Além de o problema tender a ser apresentado junto com
a solução, assim a personagem de Escola de Samba toma consciência
de sua alienação e troca o samba pelo sindicato. A consequência dessa
estrutura dramática simplista era a passividade e não era um convite a
politização, já que o espectador não tem de fazer esforço para imaginar
uma solução: ela é dada.
O filme foi duramente criticado pelos cepecistas. Essas críticas
fizeram emergir um debate público entre os cepecistas Estevam Martins, Vianinha e Ferreira Gullar e os cinemanovistas Carlos Diegues,
Arnaldo Jabor e Glauber Rocha. Diegues relata que chegou a ser
expulso de algumas reuniões, pois as tensões levavam à crença, de um
lado, de que a esquerda católica era pequeno-burguesa e, de outro,
de que, para o PC, os fins justificavam os meios (DIEGUES apud
BARCELLOS, 1994).
Em torno desse filme se discutia se o artista deveria abdicar de suas
inquietações pessoais para dedicar-se a um cinema político-partidário.
Nesse ínterim, seu propósito profissional com o projeto de seu próximo
filme, Ganga Zumba, era se projetar enquanto um autor12 importante
no cenário brasileiro: “me preocupa o cinema brasileiro, esta crise de
artesanato. EU SOU ARTESÃO, fazendo filmes de autor. Tudo isso
vai ter no meu filme” (DIEGUES, 1963 b). A sua busca por um cinema
autoral é bastante relevante e expressa uma tomada de posição diante
do debate acerca de Escola de Samba, já que apontava para a recusa da
instrumentalização da arte como braço da luta política. Essa tendência
incidiu sobre o cinema de Carlos Diegues que defendeu a política de
autor como um importante componente do Cinema Novo.
12 A noção de “autor” de cinema se torna fecunda com os jovens críticos de Cahiers du Cinéma, a
partir de 1950, que pretendiam distinguir o cinema autoral do conjunto da produção cinematográfica para elevá-lo à categoria de obra de arte e, assim, livrá-lo das amarras da indústria cinematográfica, destacando o papel decisivo do autor individual sobre a equipe. Vale mencionar o apontamento
de Ismail Xavier, segundo o qual, “aqui, a valorização do autor vinculava-se ao problema chave de
uma cultura nacional e uma postura francamente anti-industrial.” cf. XAVIER, 2005, p. 44.
147
Cinco Vezes Favela e a luta anti-imperialista
A produção e exibição de Cinco Vezes Favela repercutiram na
imprensa. A título de notas informativas, diferentes jornais13 destacaram aspectos de sua feitura, tais como a fonte produtora, o caráter de
novidade estética e o protagonismo juvenil. Artigos de jornais como O
Dia, Diário Carioca e O Metropolitano exaltaram a experiência cinematográfica do Centro Popular de Cultura adjetivando-a como “curiosa
e atraente”; estabeleceram relação entre a obra e a nova cinematografia
francesa, fazendo referência aos cineastas como os “mais representativos membros da nouvelle vague do cinema nacional.”14; e destacaram
sua função social, já que o filme “tem algo a dizer, o que é importante
e merece atenção por parte de todos nós.”15
Desses artigos, destacamos Cinco Vezes Favela, escrito pelo cinemanovista Miguel Borges. O artigo traz uma projeção do que seria o
futuro da cinematografia hollywoodiana, “apenas uma sombra de um
passado próximo” (BORGES, 1962, s/p.). Em verdade, o que acabou
por se transformar em sombra, poucos anos depois, foi o Cinema Novo.
A imperiosa indústria cinematográfica estadunidense triunfou e, com
ela, triunfou a hegemonia política e econômica dos EUA, o que não
podia ser sabido na ocasião da produção do entusiasmado artigo que,
por sua vez, nos fornece vestígios da tessitura social daquele período,
arraigada pela possibilidade da superação histórica do imperialismo.
O cineasta Miguel Borges, assim como tantos outros artistas, cientistas sociais e intelectuais daquele período, alinhava-se a ideais revolucionários e empenhava-se na luta contra as mazelas sociais oriundas
de uma sociedade assentada na exploração do homem pelo homem
e, particularmente, na luta nacional contra a ingerência imperialista.
Esse sentimento anti-imperialista, que teve na Revolução Cubana
uma importante fonte de inspiração, difundiu-se por toda América
13 CINEMATECA BRASILEIRA, 1961-1962.
14 AUTOR DESCONHECIDO(a), p. 1962.
15 ZAMON, p.1962.
148
Latina. Nesse ínterim, o marxismo parecia lógico para os nacionalistas latino-americanos dispostos a liquidar o neocolonialismo (CHASTEEN, 2001).
Lembremos que, no âmbito internacional, assistia-se à Guerra Fria,
na qual o constante confronto entre as duas superpotências que emergiram da Segunda Guerra Mundial – EUA e URSS – tornou-se ponto
central das discussões políticas do mundo. Era crescente a crença de que
o futuro do capitalismo mundial e da sociedade liberal não estava de
modo algum assegurado. Os países beligerantes estavam arruinados e,
provavelmente, propensos à radicalização. Ideias revolucionárias, politicamente incompatíveis com o livre mercado, estavam assombrando o
mundo capitalista. Na América Latina, crescia a admiração pelos libertadores históricos e à Revolução Cubana, que era saudada por grande
parcela da esquerda revolucionária por ser “tudo: romance, heroísmo nas
montanhas, ex-líderes estudantis com a desprendida generosidade de sua
juventude, um povo exultante, num paraíso turístico tropical pulsando
com os ritmos da rumba”( HOBSBAWM, 1995, p. 46). Miguel Borges
olhava nessa mesma direção e é por isso que para ele “Americanos e
europeus perderam aquela tranquilidade com que ofereciam o produto
ao mercado há alguns anos” (BORGES, 1962, s/p.).
Semanas antes da publicação desse artigo, a Argélia tornara-se
independente. Em outubro, os americanos descobrem os misseis
russos e bloqueiam Cuba. Os russos retiram os foguetes em troca de
promessas de que Cuba não será invadida. Naqueles dias acreditava-se
que a guerra nuclear estivesse por um fio. No Brasil, em julho, ocorre
o atentado contra o congresso da UNE, em Petrópolis, com a participação de militares.
Nesse ínterim, o artigo é convidativo à luta política-cultural contra
o imperialismo estadunidense deflagrado, também, a partir da dominação da indústria hollywoodiana. Era preciso, a seu ver, empreender
esforços na resistência cultural a partir da produção de filmes que
promovessem a consciência social. Em continuidade, toma o cinema
internacional, em especial o hollywoodiano, como “retrógrado”, “opor-
149
tunista” e “panfletário”. Nesse momento histórico, no qual o tempo
parecia passar mais depressa que o normal, Miguel Borges afirma:
Os acontecimentos mundiais solicitam cada vez mais a
atenção dos indivíduos e das coletividades, que a eles reagem
com escapismo, a galhofa, a cocaína, a bomba de plástico ou
a greve política. Há clima para um cinema socialmente responsável. Não um cinema propagandístico, panfletário – de
Guerra Fria. Mas um cinema consciente quanto à realidade
social (BORGES, 1962, s/p.).
Em verdade, o cinema propagandístico foi deveras importante para
a construção do clima da Guerra Fria. Em seu artigo, Borges defende
um cinema que se oponha política e ideologicamente ao cinema
hollywoodiano, um cinema “responsável socialmente” que colaborasse
para a luta anti-imperialista. Defesa que vai na esteira da “missão” do
intelectual ou artista de esquerda nos idos de 1960, denunciador do
colonialismo e do imperialismo cultural. Carlos Diegues esteve ao lado
de Miguel Borges nessa luta, que deveria ser travada no âmbito nacionalista a fim de superar o “subdesenvolvimento”.
Breves considerações sobre a inserção do cinema nos
estudos históricos e no trabalho docente
Não se pode ignorar o poder da indústria cinematográfica nas sociedades modernas. Sem dúvida, o cinema se põe como a principal linguagem dos séculos XX e XXI, seja pela grandeza de empreendimentos
econômicos que ele absorve, seja pela quantidade de pessoas que atinge,
envolvendo um significativo número de trabalhadores na sua produção
e mobilizando milhares de telespectadores à sua volta; bem como a
sua legítima condição de manifestante de ideologias e sentimentos, de
canal de expressão de embates culturais e políticos e, conjuntamente,
pela sua capacidade de fazer com que as pessoas se identifiquem e se
transformem diante dele. Assim, o cinema transforma a comunicação,
150
difunde informações, modifica processos de trabalho, imprime novas
formas de pensar e sentir a vida.
A educação não está alheia a esse processo e, nesse sentido, o cinema
pode e já tem se transformado em uma importante ferramenta no processo de ensino e aprendizagem, afirmando-se como um novo sistema
de linguagem no registro da realidade social para ser usado na educação
escolar. Lembramos aqui a indicação do historiador Marc Ferro, para
quem o filme, “imagem ou não da realidade, documento ou ficção,
intriga autêntica ou pura invenção, É HISTÓRIA” (FERRO, 1992,
p. 86). Ou seja, independentemente do gênero fílmico e das intenções
do autor, toda película é produto e produtor social, logo, dotada de
historicidade. Em consonância com esse pensamento está o historiador
Marcos Napolitano, ao afirmar que, encenando ou não o passado, todo
filme é um documento de sua época, é histórico, pois veicula valores,
projetos e ideologias e, na pretensão de retratar o passado, só o faz com
os olhos fixados no presente. Assim: “O passado iluminado pelo cinema
é como se Clio, a musa da história, além do clarim e do relógio d’água,
portasse também uma lanterna, projetando sobre o passado seu foco de
luz artificial” (NAPOLITANO apud CAPELATO, 2008. p. 9).
Isto posto, é importante frisar que, assim como toda e qualquer produção humana, a arte é histórica, pertence a um ambiente, é socialmente
construída e depende de concepções e fins particulares – o que nos leva
sempre à necessidade de buscar a compreensão do objeto por sua historicidade. Dito de outro modo, a arte se configura como necessidade do
espírito humano de compreender o seu mundo prático, exprime a relação
entre o indivíduo e o mundo, sendo o ato de produzi-la uma necessidade
decorrida da interação do sujeito com o mundo exterior.
Se a obra é produto da subjetividade do autor – uma visão de
mundo –, como, a partir dela, podemos apreender a realidade objetiva?
Para responder a esta questão central, partimos da indicação precisa
de que: “não é a consciência dos homens que lhes determina o ser; é,
inversamente, o ser social que lhes determina a consciência” (MARX,
1986, p. 13). Ou seja, a subjetividade do ser/autor não está descolada
151
da sua vida material, de sua sociedade. Parafraseando o filósofo alemão
Karl Marx, os artistas não rompem da terra como os cogumelos, eles
são, sempre, frutos de sua época e extraem da sua realidade as seivas
mais preciosas e as menos notáveis para exprimi-las nas obras de arte.
A subjetividade produtora das ideias estéticas das obras é a mesma que
constrói as estradas e os prédios com as mãos dos operários. Desse
modo, a produção artística, a consciência do artista, a inspiração, assim
como tantos outros elementos que circunstanciam as obras de arte, são
antes determinados socialmente. A obra é a exteriorização da alma do
indivíduo inquieto com a vida. No entanto, ele não domina todos os
aspectos desta, pois muitas características – tanto no conteúdo como
na forma – fogem do controle e da consciência do autor. A obra é determinada socialmente e toma seus contornos a partir das possibilidades
concretas historicamente postas.
Reconhecendo suas amplas possibilidades de reflexões históricas, a historiografia recente tem atribuído significativa atenção aos estudos acerca
de cinema e história. Nos anos 1990, o cinema ingressou de maneira
definitiva no universo do historiador brasileiro. Livros, teses, dissertações
de mestrado atestam a consolidação de um campo de trabalho no qual
o fazer histórico procura integrar a dimensão imagética. Desde então,
intensificou-se a preocupação acerca das reflexões teórico-metodológicas
de uma área de pesquisa já incorporada às atividades docentes e à pesquisa acadêmica.
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ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
155
Edgar Allan Poe e “The Raven”
Vânia Coelho1*
O ponto a que me refiro é que a Beleza é o
único terreno legítimo do poema (Poe)
O escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) inovou a
literatura e o gênero literário com suas obras: ensaios, contos, poesias e
romances. Teve vida conturbada, casou-se muito cedo, escreveu muito,
bebeu mais ainda, ficou órfão de pai e mãe, foi adotado, cresceu com
fartura, mas uma briga com o pai adotivo deixa-o fora da herança.
Sozinho no mundo, vivendo apenas da dor da esposa morta, passa a
beber em demasia. Alcoolista, morre antes de completar 40 anos.
É considerado o pai do romance policial, cujo suspense faz o leitor
pensar e raciocinar por meio do enredo que o autor vai tecendo matematicamente. Seus romances policiais e a criação do francês excêntrico C.
Auguste Dupin são a gênese futura da personagem Sherlock Holmes, um
detetive, também, excêntrico, que trabalha de forma irônica, utilizandose da lógica dedutiva para desvendar mistérios e assassinatos na Inglaterra
do final do século XIX.
Os elementos da narrativa literária utilizados por ele são “customizados”, ou seja, adaptados aos moldes do próprio autor de forma ímpar,
como, por exemplo, a preferência pelos versos acataléticos2 e cataléticos3; o espaço-tempo subvertido ou psicológico; o ambiente, geralmente romântico, sombrio e gótico; a estrutura matemática e lógica;
1 * Vânia Coelho é jornalista, escritora e docente no curso de Comunicação Social-Jornalismo e
Publicidade e Propaganda na Universidade de Guarulhos (UnG).
2 Acatalético: verso que termina com o pé completo, ou seja, na medida exata.
3 Catalético: verso que termina com o pé incompleto, ou seja, faltando uma sílaba.
156
o mimetismo4 (fenômeno no qual uma espécie possui características
que evoluíram para se assemelhar com outras e, assim, confundirem-se;
análogo ao disfarce; imitação e/ou camuflagem) e o conteúdo: texto e
contexto resultando numa criptolinguagem que deve ser desvendada
pelo leitor, primeiramente sentida; depois, decifrada.
A mensagem poética é sempre figurativa. No entanto, na literatura
policial, são a lógica e o pensamento dedutivo que comandam a narrativa e o suspense. A poesia O Corvo, por exemplo, é uma obra que
rendeu muitas adaptações, devido à genialidade de Poe em tratar de
um caso íntimo de um jovem que perde seu grande amor e, a partir de
então, passa a viver da dor que o alimenta e dilacera-o ao mesmo tempo.
A dor de que ele quer livrar-se, mas também, quer infiltrá-la, moldá-la
em si, conviver com ela, como se desejasse castigar-se eternamente pela
perda da amada, aquela que não volta mais: nunca mais!
Este texto pretende discursar sobre a poesia O Corvo, utilizando-se
da crítica já existente e da obra The Philosophy of Composition (2012), um
manual de criação poética para que o leitor possa entender a mensagem
do lirismo. A crítica do poema realizada pelo próprio autor assemelhase a uma bíblia explicativa sobre a construção do poema The Raven.
É Pedro Sussekind (2011, p. 9), poeta carioca, quem apresenta o
livro A Filosofia da Composição, com o prefácio “A Lição aristotélica
de Poe”. Nele, evidencia o quanto é atípico o próprio autor analisar ou
criar um manual sobre a própria obra, salientando como foi construída,
passo a passo. Sussekind cita a concepção de Kant sobre a qual: “o
gênio artístico é um dom, um talento inato a produzir aquilo para o
qual não se pode dar nenhuma regra determinada ou pré-estabelecida”.
Para o poeta brasileiro, o autor norte-americano contraria a concepção
kantiana: (…) “Poe decidiu presentear os críticos e os leitores presentes
e futuros com a sua filosofia da composição poética”. Sussekind fala do
4 Mimetismo literário refere-se, como Aristóteles o coloca na Poética, à capacidade do trabalho
para se parecer com a realidade. Mimesis (cópia) é a capacidade de olhar como a “coisa” real, a
ser uma imagem, uma representação ou um reflexo de fatos, manifesta-se. Mimesis, em Platão,
relaciona-se mais à pintura. Entre os antigos, o valor do trabalho foi baseado em sua capacidade
de representar a realidade. Em suma, o mimetismo é a capacidade de representação da arte como
comunicação.
157
mimetismo aristotélico, cuja poética deve assemelhar-se à realidade, ter
a competência e a habilidade de representar, pela arte, o real.
Na poesia O Corvo, o eu-lírico sofre pela perda da amada e desespera-se, deixa a vida levá-lo e, para onde o vento bater, ele vai. Torna-se
uma pessoa dispersa, taciturna, melancólica, tristonha e totalmente
sombria. Passa a questionar a morte, a perda, a dor pela perda e a vida
como dor existencial. A morte havia levado sua amada, e ele, perdido
na depressão e no luto, vai enlouquecendo pouco a pouco.
Segundo A Filosofia da Composição, o espaço é interno, ou seja,
um quarto, lugar onde se encontra o jovem a ler e, quando está quase
adormecendo, ouve um barulho como uma batida à porta. Em sua
dor, e em meio à solidão que o solidifica, imagina que Lenore esteja
voltando do além. Pergunta quem bate, e o silêncio faz-se presente. No
entanto, minutos depois, ouve novamente o som e imagina ser o vento
que pode ter aberto a janela. De repente, vê um corvo tentando entrar
e o vê como um prenúncio, como um mensageiro que pode aliviar sua
dor, trazendo-lhe notícias da amada. Mas o corvo paira na praça sobre a
deusa grega e intimida-o com os olhos. De dentro do quarto, o amante
vê-se hipnotizado pela ave e entende que esta conhece sua dor. A partir
dessa dedução, passa a fazer perguntas ao corvo sobre Lenore e sua
situação de amargura.
O poema intitula-se O Corvo, uma ave que vive da putrefação da
carne alheia, cujas simbologias se perdem na negatividade da representação sígnica, e é esse bicho que passa a atormentá-lo, num ambiente
sombrio, escuro e macabro. O corvo é uma espécie de mensageiro do
além. O que ocorre é que a ave não deixa o jovem, mas também não
dialoga com ele e, quando questionado, responde somente: “Nevermore”. O corvo vem do lado de lá, e o jovem, então, quer respostas, não
obstante a ave só diz: “nunca mais!”. Segundo o poeta César Magalhães
Borges5, o termo em inglês raven é um anagrama de never, esse jogo
5 César Magalhães Borges é poeta e autor de Passagens, Folhas Soltas, Canto Bélico, entre outras
obras.
158
anagramático dá ao corvo a própria ideia do nunca, em que repousa a
esperança do eu-lírico.
Sem soluções, o jovem, amargurado e a caminho da insanidade,
continua a questionar a ave de mau agouro sobre os segredos do além,
mas a ave só diz: “nunca mais!”. O cenário é sombrio, composto por um
jovem amargurado, um corvo e a luz que emana da estátua da deusa
Pallas, cuja representação, na mitologia, é uma donzela, aquela que é
eternamente virgem, aquela que não se deixa corromper nem seduzir,
filha de Zeus. Talvez, a alusão à deusa Pallas simbolize Lenore. Poe
utiliza-se das técnicas das cenas barrocas como a fusão do claro versus
escuro, trabalhando os detalhes de luz e sombra vindos do busto branco
da deusa em contraposição à penugem escura do corvo, criando um
cenário cinematográfico e pictórico.
O autor humaniza a ave. O corvo escuta, fala, sente e raciocina, é
um ser pensante e misterioso. A repetição das palavras “nunca mais”
da ave para com as questões do jovem vai aumentando o desespero do
amante até entregar-se à loucura e à solidão: “nunca mais!”.
A poesia estrutura-se em 18 estrofes em sextilhas, ou seja, seis linhas
versais em cada estrofe. A última é catalética6, totalizando 108 versos,
cheios de ritmo e musicalidade. São melopéias edificadas em ecos,
paranomásias, assonâncias e aliterações. Logo no início, o autor marca
o tempo: “meia-noite de dezembro”. Mês este que marca o solstício de
inverno no hemisfério norte: “um dado a mais que pode enfatizar a
ideia de escuridão”, afirma o poeta Borges. Portanto, o espaço divide-se
em cenas num ambiente sombrio, escuro, que salienta a figura taciturna
do jovem em seu quarto, ele está a ler. É um ser sem esperanças, a vida
não tem mais sentido, e tudo ficou sem significado, sem resposta, sem
solução: “nunca mais!”.
Quando vê o corvo, aquele que vem do além e tudo sabe, a ave escura
que ouve e entende o amante entristecido pela dor da perda, deseja saber
da amada e elabora questões, mas a ave não responde ao jovem que, em
sua total melancolia, deseja ouvir palavras de misericórdia e de abran6 Ver nota de rodapé 2.
159
damento. No entanto, o corvo apenas repete: “nevermore!”. A frase, à
medida que vai sendo repetida a cada questionamento, vai enlouquecendo
o jovem que vê no corvo a possibilidade de encontrar informações sobre a
amada. Parte dele fora com ela, portanto ficou desprovido de alma, luta
para entender seu destino e vê na ave uma espécie de mensageiro, um
enviado do submundo, do subterrâneo, do inferno.
Observa-se a dualidade com que Poe joga na construção da poesia.
De um lado, a deusa Pallas, mito que representa a humanidade, as
vitórias e a sabedoria; de outro, o inferno. A dicotomia alto versus baixo,
ou seja, Olimpo versus Inferno, faz-se presente, envolvendo o jovem
numa tríade insana: corvo/dor/deusa, isto é, luz, personagem e trevas,
pois o cenário evidencia três elementos simbólicos: um jovem que vive
da dor pela perda da amante; a escura e sombria ave vinda do além, e a
luz que emana da deusa grega, que pode ser Atenas, como na tradução
de Fernando Pessoa, ou Pallas, na tradução de Machado de Assis.
A poesia inicia-se marcando o tempo e adjetivando-o: “numa
meia noite agreste”. O eu-lírico, em primeira pessoa, é claro, além de
evidenciar a noite e as horas, fala do espaço rústico, áspero, silvestre
e nada civilizado, vivendo em estado natural e, evidencia, também, o
estado de alma do narrador-personagem: triste, lê um livro ao mesmo
tempo em que deseja adormecer. É exatamente nesse momento que
ouve o barulho da ave a bater-lhe à janela (umbrais). Com relação ao
tempo, o jovem debate-se no frio (inverno) de dezembro, deixando
clara a ideia de tempo, hora e lugar: noite, estação invernal e num
quarto, sozinho, vivendo o luto.
Ao citar: “uma visita está batendo em meus umbrais”, pode levar o
leitor a pensar nas várias possibilidades conceituais do termo. Em arquitetura, umbral pode designar a entrada da cidade, da casa, por uma
porta ou uma janela, por exemplo. Como termo do ramo da psicologia,
o dicionário aponta para o estudo da relação entre a magnitude de um
estímulo físico e a intensidade com que este é percebido, por parte do
observador. Na psicofísica, umbral é a mínima mudança necessária na
intensidade de uma luz para que a alteração seja perceptível ao espec-
160
tador, ou seja, entre a penumbra da meia-noite e o luto, uma voz ecoa
nos umbrais. No poema, parece designar o corvo batendo à janela do
quarto do amante: “cras, cras, cras…”.
Mas, há, também, outro significado, representando o mundo dos
espíritos. Umbral nomeia o estado mental ou o plano espiritual compatível com espíritos que desencarnaram. Nesse sentido, pode designar
vibração densa, plano astral ou região inferior do mundo espiritual.
Assim, o jovem triste que lê e tenta dormir ao mesmo tempo, deixandose levar, sente uma vibração do além, do mundo dos espíritos, que lhe
vem sonoramente pela batida à janela e pelo canto sombrio e fúnebre
do corvo: “cras, cras, cras…”.
O jovem queria ler e queria dormir para esquecer a perda da amada
Lenore. As noites eram-lhe penosas, doloridas, taciturnas e sombrias. A
noite, para o eu-lírico, é infinita, de paz profunda, porque interminável
e maldita, pois não consegue viver, nem dormir, nem ler, após a perda
do grande amor de sua vida. A noite é treva infernal em que o jovem se
perde e não sabe se sonha ou se vive realmente a dor, fica entre o sonho
e a realidade, um sonho “que nunca ninguém sonhou antes”.
Entre o som (cras) e o barulho na janela, o autor joga com muitas
possibilidades. O jovem imagina que o som pode ser resultado do vento,
mas, ao tentar fechar a janela, vê o corvo, ave escura, inerte. Ela está
no busto de Atenas (Pallas). O corvo, segundo a personagem, é uma
ave estranha e escura, com aspectos tosquiados. É solene, nobre, grave
e ousado e “vem de tempos ancestrais, (…) vem das trevas infernais”.
Ele sente a possibilidade de obter informações da amada e elabora uma
série de questões, pois vê na ave um enviado do mundo subterrâneo, da
pousada dos mortos.
A ave agoureira dos maus tempos ancestrais ri da amargura do
jovem, crava os olhos fatais, e assim fica: cabeça reclinando, ia,
pouco a pouco, cismando, mas sem dizer nada, mudo e quedo, para
desespero do enamorado. De repente, o corvo fala: “Maldito! Deu-te
Deus, por anjos concedeu-te o esquecimento, (…) toma-o, esquece,
com teus ais”. E termina com o enigmático: “nunca mais!”.
161
O jovem, com o rosto sofrido, dor e lamento inerentes, diz ao
corvo: “tu és profeta, demônio ou ave preta? Diabo ou tempestade?
(…) a esse luto, esse degredo, a esta noite e este segredo, a esta casa
de ânsia e de medo, diz a esta alma a quem atrais? Diz se há um
bálsamo?”. E o corvo repete: “nunca mais!”. Desesperado, ele pede ao
corvo que saia do busto da deusa e volte à tempestade, que retorne à
noite escura, que vá para as trevas infernais de onde veio: “Vá e retira
o teu vulto do meu peito e a sombra de meus umbrais, vá, parte”, diz
o jovem ao corvo e este responde: “nunca mais!”.
E o corvo, para imenso desespero do moço, permanece no busto da
deusa, “seu olhar tem a medonha cor do demônio que sonha; e a luz
lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais”. Libertar-se dessa
dor e desse destino, libertar-se desse agouro do corvo nos umbrais:
nunca mais!
Segundo A Filosofia da Composição, Poe estruturou a poesia bastante
romântica, matematicamente, calculando, passo a passo, a criação
poética. Começou a pensar sobre a emoção, pois cada arte deve, num
primeiro instante, emocionar intensamente. Em seguida, criou estratégias para o tom e a peculiaridade: “tendo escolhido uma emoção nova,
em primeiro, e intensa, em segundo, eu penso se ela pode ser melhor
trabalhada por incidente ou tom, se por incidentes comuns e tom peculiar, ou o contrário, pela peculiaridade tanto de incidentes quanto de
tom, procurando em seguida à minha volta, ou de tom, que melhor me
ajudem na construção da emoção”(POE, 2011, p.18), teoriza Edgar.
Depois de pensar na emoção, no tom e na peculiaridade, passou
à seleção e às rejeições, às rasuras e às alterações trabalhosas, tudo
muito bem calculado e, como público-alvo, escolheu a crítica e o gosto
popular. Em seguida, segundo o manual de composição, pensou a
intenção, depois a extensão (longo demais ou curto demais) e a unidade, a totalidade ou a unidade de efeito. Poe criou estratégias para
que o grau de excitação não estivesse nem acima do gosto popular nem
abaixo da crítica.
162
Num outro momento, pensou na impressão (efeito), buscando a
apreciação, a beleza (intensa e pura elevação da alma) e a universalidade. Decide que o tom seria a tristeza, escolhe o terreno e a extensão
e trabalha esses elementos (num sentido teatral), usando a indução: “o
refrão não se limita ao verso lírico, mas depende, para sua impressão, da
forma da monotonia – tanto em som quanto em pensamento. O prazer
é derivado unicamente do sentido de identidade – de repetição (…)
decidi criar continuamente efeitos sonoros pela variação da aplicação
do refrão”. (POE, 2011, p.20)
E assim, Poe inaugura a literatura enigmática, triádica, hermética:
“uma batida originou-se de um desejo de aumentar a curiosidade do
leitor, prolongando-a, e de um desejo de admitir o efeito incidental com
a escuridão, e, então, ter a fantasia de que foi o espírito da amada que
bateu à porta”(POE, 2011, p. 28)
Algumas representações sígnicas
No dicionário de símbolos de Juan-Eduardo Cirlot (1984), há dezenas de simbologias em torno do corvo, todas ligadas às trevas. Nos
Bestiários Medievais, a ave preta significa negatividade em todos os
sentidos, desobediência e anarquia. Pode representar a indolência do
cristão em não aceitar a palavra de Deus e do catolicismo. O canto do
corvo emite a onomatopeia “cras”, cujo termo designa amanhã, ou seja,
o não diálogo, a não conversação e a não comunicação hoje. Não à toa,
Torga, em Bichos, cria Vicente, um corvo que não obedece ao chamado
do anjo de Deus, diante da iminência de dilúvio, e sua desobediência
é tão latente que prefere morrer a obedecer, a mudar de lugar ou de
opinião, não conversa, não responde, não sai do lugar.
Segundo Cirlot (1984, p.187), o corvo está associado à noite e às
trevas pela cor preta; as asas estão ligadas ao céu, ao poder criador e
demiúrgico e às forças espirituais; pelas asas surge a ideia de voo, logo,
mensageiro. Nas culturas clássicas, segundo o dicionário de símbolos,
a ave conserva poderes místicos e um instinto de predizer o futuro,
163
tanto que seu grasnar (cras) era utilizado em rituais de advinhação por
povos antigos. No cristianismo, pode, ainda, simbolizar solidão. Edgar
Allan Poe não escolheu a ave à revelia, mas sim, por meio da lógica e da
dedução, calculando cada simbologia que, ora representa a solidão do
amante, ora a possibilidade do corvo ser o mensageiro do além.
Fialho de Almeida (1857-1911), escritor do Realismo-Naturalismo
luso, no conto Corvo, denota a natureza pútrida da ave de mau agouro,
quando este, já velho e meio apático vê um cadáver a bater nas rochas
do cenário marítimo, e passa a calcular, matematicamente, a forma
de banquetear-se do morto, a começar pelos olhos, de maneira a não
chamar a atenção dos demais corvos que ali habitavam, ficando apenas
ele a comer a carne alheia.
Muitos escritores utilizaram-se, antes e depois de Poe, da figura do
corvo para representar negatividade e mau agouro. No poema Asas
de Corvo, do poeta brasileiro Augusto dos Anjos, a ave é sinônimo de
destino, morte e indústria humana, é sombria e movida pela antítese
morte e vida. Para Herder Lexikon (1990, p.67), autor do dicionário de
símbolos, o corvo, na Índia e em muitas outras culturas, é o símbolo da
morte, é aquele que vem do além, diferentemente do Japão, onde a ave
designa mensageiro divino, aquele que anuncia triunfos e glórias. No
entanto, a maior parte das significações que giram em torno da ave é
negativa, fazendo alusão à morte, à ideia de carniça, coisa mal cheirosa
e sem comunicação.
Segundo a cultura popular, o corvo enxerga o presente, o passado
e o futuro, vive no labirinto, no vácuo e, por essa razão, estende-se e
perpassa o tempo predizendo e emanando mistério, sedução, magia e
dualidade. É, portanto, um mensageiro que conhece o além. Na doutrina gnóstica, o corvo simboliza águas turvas e misteriosas.
O impressionista Van Gogh pintou a tela intitulada Campo de trigo
com corvos (1890)7 e biógrafos e, até mesmo, alguns críticos ligam a
imagem dos corvos e dos campos escuros, cujas trilhas não têm saída,
7 Quadro do pintor Vincent Van Gogh, óleo em tela medindo 50,5 com x 103 cm. Encontra-se no
Van Gogh Museum, Amsterdam, Holanda.
164
à loucura do pintor e ao próprio suicídio, pois ele morreu, logo após
pintar o quadro. Mas não há comprovação disso, são apenas hipóteses.
No entanto, a tela denota presságio, céu escuro e sombrio, e há muitos
corvos sobre a plantação de trigo. Ora, corvo não se alimenta de trigo ou
vegetais, mas sim, da carniça alheia.
Edgar Allan Poe, autor de inúmeros contos, entre eles: O gato preto;
Assassinatos na rua Morgue; O mistério de Mary Rogêt; Os fatos que envolveram o caso de Mr. Valdemar; o premiadíssimo O escaravelho de ouro;
O barril de amontillado; Manuscrito encontrado na garrafa; A queda da
Casa Usher, vê no corvo a permanência emblemática de desolação e de
memória sem fim: Libertar-se-á… nunca mais!
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litteras
167
Apaguem as Luzes da Idade da Razão
John Callow1
Tradução: Olga Marques.
Na década de 1980, se alguém sintonizasse as estações de rádio
poderia ouvir uma rouca injunção que dizia “apaguem as luzes da
Idade da Razão” vindo de uma banda de rock que naquele momento se
destacava. Foi o momento em que, após o colapso do socialismo real no
Leste Europeu, todo o conhecimento estava pronto para ser desafiado,
toda certeza havia sido abalada e − parafraseando Marx – “tudo o que
era sólido havia se derretido no ar”, embora de uma forma que ele não
poderia ter previsto nem aprovado. A filosofia do Iluminismo, que havia
impulsionado os maiores avanços na ciência, na tecnologia, na pesquisa
médica e na política de libertação ao longo dos últimos 200 anos parecia ter perdido sua utilidade. A era da revolução que começou com a
queda da Bastilha em 1789 parecia ter chegado a um fim conveniente
e desonroso com a queda do Muro de Berlim. Se a história, em si,
parecia ter “chegado ao fim”, nas palavras de Francis Fukuyama, com
o estabelecimento de mercados não regulamentados, do livre comércio
e das democracias liberais de estilo ocidental, então o que restava do
registro histórico teve que ser completamente reescrito para justificar
e sustentar as mudanças. Acadêmicos de todos os países ex-socialistas
foram autorizados a reescrever seus programas de estudos, exorcizando
qualquer menção a Marx, Engels e Lênin, enquanto que, na esteira
da retirada das unidades militares soviéticas das nações que haviam
libertado e protegido por mais de 40 anos, as chamas eternas que
haviam brilhado intensamente em memoriais de guerra homenageando
os sacrifícios do Exército Vermelho, foram discretamente apagadas. À
1 Historiador e Diretor da Marx Memorial Library, em Londres.
168
medida que o fornecimento de gás acabava e as chamas se apagavam,
a memória eterna da Grande Guerra Patriótica − ou a Segunda Guerra
Mundial, como foi conhecida no Ocidente −, de repente tornou-se
finita.
Pedra e bronze não podem fazer completa justiça à perda e ao
sofrimento humano. No entanto, podem exibir seu mudo testemunho
de heroísmo e sacrifício por meio da arte do escultor e do designer.
Desta forma, durante quase 60 anos, o Soldado de Bronze de Tallinn
evocou a memória dos derrotados e simbolizou o triunfo da libertação
da Estônia pelos soviéticos, após quatro anos de ocupação pelos fascistas. Localizava-se fora das muralhas da cidade antiga e representava
um marco histórico importante no centro de um pequeno, porém
pitoresco parque urbano. Era o centro das celebrações da cidade no
dia da vitória, da paz e das manifestações sindicais, a cada nove de
maio. Os veteranos costumavam deixar pão e sal em seus degraus e os
recém-casados o visitavam no dia do casamento e deixavam o buquê da
noiva aos pés do soldado. A simplicidade do monumento e seu design
exclusivo, realçavam ainda mais as emoções que ele despertava. Não
havia nada de triunfalista, espalhafatoso ou exagerado na concepção
do monumento. A figura de bronze − pés bem separados, capacete na
mão − estava vestida como um simples “Alyosha” e poderia ser representante de qualquer um dos 26 milhões de cidadãos soviéticos que
sacrificaram suas vidas entre 1940 e 1945. É a figura de um soldado
captado num momento de reflexão e reverência, mandíbula definida e
cabeça ligeiramente inclinada em reconhecimento às perdas ocorridas
ao longo da estrada para a libertação. Além disso, com o acréscimo de
uma chama eterna em 1964, a figura parecia acenar com a cabeça em
sinal de assentimento às chamas. Não se buscava a guerra, mas quando
esta chegou na forma de terror fascista, tinha que ser combatida e
acompanhada até o amargo fim.
Esta interpretação foi válida até o colapso da União Soviética em
1991. No entanto, poucos meses depois da declaração de independência da Estônia, a chama foi extinta e a inscrição no monumento russo
169
e estônio foi recortada. Todas as menções à guerra contra o fascismo
e à libertação da Estônia pelo Exército Vermelho foram removidas e,
em vez disso, o memorial foi novamente dedicado àqueles “que foram
mortos na Segunda Guerra Mundial”. Agora, o Soldado de Bronze
parecia estar homenageando os fascistas da Estônia e as tropas de
choque nazistas, ao lado dos patriotas estonianos e partisans que, junto
com o Exército Vermelho, libertaram Tallinn. Tal decisão − rejeitando
a noção de libertação do fascismo e a reformulação do período soviético
da Estônia entre 1944 e 1991 como um simples exercício de dominação russa – ajustou-se bem à nova historiografia dominante, preparou
os campi norte-americanos e foi amplamente disseminada por toda a
Europa Ocidental, que procurou igualizar nazismo e comunismo como
dois lados da mesma moeda.
No entanto, a estátua não foi deixada sozinha por muito tempo. Ela
foi removida, em meio a amplos protestos públicos, em abril de 2007 e
mudou-se para um cemitério militar destinado aos funcionários do serviço russo, localizado em terrenos baldios na periferia da cidade. Desta
vez, a ordem da guerra patriótica esculpida em pedra e colocada sobre a
cabeça dos soldados, também foi removida. A exibição proeminente da
foice e do martelo foi amargamente lamentada pelas novas elites políticas. Este ato serviu ainda mais para descontextualizar o monumento.
Ele destruiu a ligação consciente entre o papel do Partido Comunista na
liderança da luta contra o fascismo e também transformou o monumento
de um símbolo do esforço comum de todas as nações da União Soviética
num memorial especificamente russo. Esta mudança, em parte, ajuda
a explicar as três noites sucessivas de tumultos causados na cidade pela
minoria russa ameaçada, que representa mais de um terço da população
da Estônia, mas que frequentemente sofre discriminação dentro do novo
estado e uma falta de acesso a empregos, facilidades e serviços.
Haveria ainda mais uma distorção no episódio. A filha de um lutador da Estônia, Kristjan Palusalu, que ganhou uma medalha de ouro
nos Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, se pronunciou sugerindo que
tinha sido seu pai que tinha fornecido o modelo para a figura do herói
170
do Exército Vermelho. Isto proporcionou à direita uma deliciosa ironia,
pois Palusalu, um estoniano, e não um russo, tinha realmente desertado do Exército Vermelho e tentado atravessar as linhas para fazer
parte do exército finlandês, que lutava como alguns dos mais firmes
aliados de Hitler. À luz deste evento, o monumento parecia simbolizar
a “ocupação” da Estônia pelo Exército Vermelho, em vez de sua libertação, especialmente enquanto Palusalu esteve preso em 1946, quando
ele supostamente posou para o escultor.
No entanto, embora tanto Palusalu quanto a figura do Soldado de
Bronze fossem figuras musculares e pesadas, não há outra semelhança
óbvia. Certamente, Enn Roos, o escultor, contou uma história diferente. Mesmo em meio a tempos de mudança, ele manteve-se firme
em sua convicção de que a figura era um amálgama entre a sua própria
visão idealizada de um homem do Exército Vermelho, “um jovem
trabalhador que morava perto” e um carpinteiro da Estônia, Albert
Johannes Adamson, que ele conhecia bem. Além disso, Roos − que
também havia projetado muitas das estátuas para líderes comunistas
russos e da Estônia em Tallinn − optou por permanecer fiel ao partido.
É inconcebível que ele tivesse escolhido fazer piada de mau gosto com
sua incumbência mais importante e pessoalmente mais gratificante.
Se podemos pôr de lado as histórias sobre Palusalu como sendo
não mais do que o pior tipo de jornalismo sensacionalista projetado
para corroer nosso orgulho e nossa confiança, então hoje o Soldado de
Bronze em seu cenário abandonado e geograficamente distante, bem
longe de qualquer das principais vias de Tallinn, pode parecer uma
figura triste e desamparada, que já não traz uma mensagem clara para
a posteridade. No entanto, seu bronze permanece sem manchas e até
mesmo num dia de inverno rigoroso, quando a neve se acumula ao
redor da base do monumento e os outros únicos visitantes do cemitério
militar são as torres acima das bétulas, ele ainda está cercado de dons
do coração. Flores entrelaçadas com as cores da Federação Russa, das
associações de Veteranos e do Partido Comunista povoam seus pés,
se aninham na dobra do braço e explodem pela borda de seu capacete
171
de combate. Oferendas de pão e sal se depositam sob uma película de
gelo e copos cheios de vodka testemunham símbolos rústicos, porém
genuínos, de apreço e solidariedade do povo.
Dessa forma, o Soldado de Bronze implora uma resposta de toda
a humanidade progressista e o reconhecimento de que o sacrifício e
bravura ainda têm um lugar no mundo e faz perguntas incômodas aos
revisionistas históricos de hoje. Eles estão muito ansiosos para esquecer
que os mesmos nacionalistas que eles celebram hoje para o virulento
anticomunismo e sua devoção ao livre mercado, foram as mesmas
pessoas que liquidaram tanto os judeus da Estônia quanto a classe
trabalhadora da nação. Foram eles que colaboraram com os exércitos
hitleristas, ou abertamente lutaram com eles, e foram eles que atacaram
o monumento original para a libertação de Tallinn em 1945 e viram
o Soldado de Bronze ser removido de sua posição de destaque mais de
60 anos depois. As vidas de 26 milhões de cidadãos soviéticos − mais
os mortos de Treblinka, do Gueto de Varsóvia, de Lídice, da Fortaleza
de Brest e das cidades de Guernica e de Coventry − um testemunho
solene e austero da equação do fascismo com o comunismo. Pois, nas
palavras de Primo Levi, um sobrevivente do campo de concentração
de Auschwitz, enquanto um gulag foi a aberração e a distorção do
comunismo, o campo de concentração − que visava o genocídio em
escala industrial − era a essência do fascismo. As obras de Marx, Engels
e Lênin são a principal corrente do pensamento filosófico e político
europeu. Eles são os melhores frutos do iluminismo europeu esboçado
sobre inspirações intelectuais tão díspares como Rousseau, John Stuart
Mill, Saint Just e Hegel. Bravura não é suficiente por si só. Afinal,
as tropas nazistas mostraram isso em abundância. As forças da União
Soviética e seus aliados partisans tinham uma ideologia comum e − em
rígido contraste com o fascismo −, tomaram a humanidade, a liberdade
e democracia política e econômica como seus pilares. Foi este sentido
de lutar por uma vida melhor e um futuro mais justo e igualitário que
inspirou as vitórias de 1945. Nunca devíamos esquecer que Zhukov e
Rokossovsky foram comunistas orgulhosos e dedicados, que devotaram
172
suas vidas para o bem da classe trabalhadora internacional e que aprenderam seus comércios na luta contra a reação e intervenção estrangeira
durante a Guerra Civil Russa. Seus triunfos não aconteceram por meio
do simples acaso, mas por meio do aproveitamento da vontade popular
com o marxismo aplicado de forma criativa.
Hoje, nossos desafios são muito diferentes. Estamos diante da globalização e de tentativas, nitidamente sintetizadas na Declaração de
Praga de reescrever o registro histórico e de difamar as conquistas e
sacrifícios de comunistas individuais e dos partidos que, desde 1917,
os forjaram e os sustentaram. Não sem surpresa, a esquerda tem sido
jogada de volta à defensiva. O que é necessário é a vontade política para
recuperar a iniciativa. É nossa tarefa, começando com esta conferência,
para retomar o nosso passado e aplicar esse conhecimento a fim de
moldar e sustentar nosso futuro comum. Através da unidade, do orgulho e da força da classe trabalhadora de todas as nações, já não é difícil
imaginar um mundo onde as necessidades essenciais de alimentação,
água potável e abrigo, juntamente com serviços de saúde, educação e
segurança completa − durante os tempos de infortúnio ou velhice −
possam estar livremente acessíveis a todos, sem exceção.
Embora essa visão de igualdade e de democracia econômica ainda
esteja por ser cumprida, o Marxismo criou uma filosofia nova, otimista
e altamente criativa, que enfatiza a capacidade de homens e mulheres
fazerem a sua própria história, e por seus próprios esforços transformar
seus sonhos de uma sociedade mais justa e mais igualitária em uma
realidade sólida e positiva. Ao trabalhar para estes objetivos, estamos
seguindo grandes passos e permanecendo fiéis ao legado de todos os
Alyoshas, ​​cujo orgulho é tão vividamente capturado nas características
do Soldado de Bronze de Tallinn. Através de nossos esforços comuns
mostraremos que não morreram em vão. Sua chama, bem como a da
Idade da Razão brilhará, desta forma, eternamente.
memorial docente
175
Recuperar, na Luta Direta, o Sentido
da Dignidade Política
Antônio Geraldo Justino
“Não há longa noite que não encontre um novo dia”
Shakespeare
O dia a dia da escola é um corre-corre por uns trocados. É uma escola
caduca, desatualizada, com giz e apagador num mundo informatizado.
O mestre envelheceu nessa velocidade histórica. A realidade do aluno é
a do desemprego, do subemprego, da escola pública cheia de grades, sem
funcionários, com professores sem autoestima, desmotivados pelo baixo
salário e pelas péssimas condições de trabalho, que vão desde o assédio
moral dos gestores às agressões verbais e físicas dos estudantes que, na sua
indigência cultural, não conseguem identificar quem é o inimigo.
Essa escola anacrônica e hipócrita não responde às angústias do
professor nem às do aluno. Sua tarefa seria a de, pelo menos, acompanhar o avanço da ciência e da técnica e não o de organizar, colaborar e
respaldar o absurdo imposto pela crise do sistema capitalista.
O horror da violência na escola não faz mais do que expor o horror e
o caos do sistema capitalista. O Estado autocrático quer a escola pública
funcionando a qualquer custo, e o patrão da escola particular quer ver o
cliente passando no vestibular. O insucesso é credenciado ao professor.
Há midiáticos jornalistas e pedagogos como Gilberto Dimenstein e
Julio Groppa Aquino, que fazem coro a estes postulados conservadores
e preconceituosos, por isso mesmo descolados da criteriosa análise
social e científica.
Apresento-me. Sou Antônio Geraldo Justino (Tonhão), formado em
letras pela USP, em 1976.
176
Não tenho pátria, nem família. Não adiro ao calendário oficial do
consumismo. Para mim, natal, ano novo, dia das mães, da páscoa, dia
dos pais, dos namorados, das crianças, etc., ao contrário da aparente
regularidade da mudança das estações do ano, são, para mim, dias
de uma monotonia incrível. Sintomaticamente, já não recordo minha
idade, nem a data de meu aniversário. Entrei na rede pública estadual
em 1968. Comi pó de giz até 2001, quando me cassaram o direito
de cátedra e a aposentadoria. Na ditadura militar, por ser subversivo,
mandaram-me para o DEOPS; na democracia mandaram-me para as
vielas do desemprego. Como a maioria dos desempregados, tornei-me
camelô, desafiando a ordem, colocando a pirataria a serviço da popularização da fábrica de sonhos, o cinema de arte e revolucionário.
Voto nulo desde 1993, porque não dá para legitimar essa farsa de
que o voto é democrático. Voto é poder econômico, parlamento é a
ditadura do capital. Não há possibilidade de se falar em educação de
qualidade nos limites do capitalismo. O conhecimento tem o conteúdo da classe social que está no poder, assim como não dá para falar
em democracia sem se pensar igualmente em classe. Quem garante a
democracia burguesa é a ditadura da burguesia; quem garante a democracia num estado socialista é a ditadura da classe que tomou o poder, a
ditadura do proletariado. Não há nenhuma possibilidade de humanizar
o capitalismo ou de se pensar mudanças via reformas. Trata-se de um
sistema em crise estrutural, enfermo, agonizante e fétido. A cada crise,
o tubo de oxigênio que lhe permite sobrevida, vai-se esvaziando.
Temos de nos organizar de forma independente, criar nossos partidos revolucionários para disseminar consciência política, subverter a
ordem e fazer a revolução internacionalista. Parece coisa de maluco,
mas ainda é − se ainda é permitido sonhar − o sonho dos que resistem
aos horrores do capitalismo. Trata-se da histórica disjuntiva: ou o socialismo ou a barbárie.
Ateu convicto, sempre lutei contra o obscurantismo religioso. Por
interesse de classe, a escola nunca foi laica nem será científica. O avanço
da ciência e da técnica está vinculado ao materialismo histórico e dia-
177
lético. No entanto, o idealismo está presente no interior das escolas.
Apesar de nenhum livro didático negar o darwinismo, a maioria absoluta dos docentes é religiosa. A lógica de que as mudanças passam por
lutas, mobilizações, passeatas, greves, cai no abismo transcendental. A
vida se torna um “Esperando Godot”.
Diante dessa letargia política, cultural e ideológica, convém atuar com
a clareza de que existem oprimido e opressor, tendo o aluno e a comunidade escolar como aliados. Tentar organizar coletivamente a escola,
através dos conselhos de escola e construir um conhecimento que aponte
para a subversão. A burguesia quer cidadãos obedientes, submissos e conformados. Estão aí as igrejas, a TV, o livro didático e até a esclerosada Lei
de Segurança Nacional que, mesmo em tempo de Comissão da Verdade,
continua, no silêncio das casernas, dando as cartas.
Quando o Estado, como “supremo agente regulador”, percebe nossa
atuação diferenciada, persegue, põe no olho da rua, instaura a prática
dos processos administrativos ou tropa de choque para espancar trabalhadores e estudantes. O mesmo faz o patrão da escola particular, de
olho nos lucros e dividendos. Nessa ciranda capitalista, a nossa força de
trabalho é a mercadoria mais barata para a manutenção da ordem e da
ideologia dominante.
De 2000 para cá, a ditadura do capital tem aperfeiçoado os métodos
de criminalização da militância. Na USP, depois de impor a presença
da PM dentro do campus, o fascista-higienista Alckmin (PSDB) persegue os funcionários do SINTUSP – Claudionor Brandão, já demitido
− e processa 72 estudantes criminal e administrativamente. A mesma
perseguição política ocorre na UNIFESP de Guarulhos, administrada
pelo governo federal petista. O objetivo é intimidar os lutadores, os
movimentos sociais e o movimento estudantil.
Insisto, não é só o PSDB. Em Cubatão, baixada santista, 12
professores(as) vêm sendo processados criminal e administrativamente
pela prefeita Márcia Rosa do PT. Essa senhora, que é professora, de
oprimida se tornou opressora e das mais reacionárias. Em 2002, fui
aprovado num concurso da prefeitura de São Paulo, a senhora Marta
178
Suplicy, então prefeita petista, vetou o meu ingresso, alegando que “o
funcionário municipal deve ter boa conduta”. Ora, um claro veto político ancorado na verborréia cartorial da legislação malufista de 1993.
Em 2011, cumprido o prazo da demissão, pensávamos os demitidos
– eu, Marcos e Claudinho (Cleosmire faleceu) – que a punição havia
terminado e que poderíamos retomar as nossas atividades profissionais.
Tendo 30 anos, oito meses e dez dias de tempo líquido para a aposentadoria, recorri em todas as instâncias administrativas e jurídicas do estado
de São Paulo, tentando garantir, se não minha recondução ao serviço
público, pelo menos a minha justa aposentadoria. Superadas estas etapas,
recorri ao STF (Supremo Tribunal Federal). O ministro latifundiário,
Gilmar Mendes, irmão de maçonaria de Mário Covas, foi o relator da
decisão já esperada. Sabemos hoje que a perseguição não tem fim!
Vivo sem aposentadoria, não aceitei salário da diretoria da APEOESP, por entender que foram parceiros do PSDB na minha demissão;
devo 12 mil “réis” de IPTU, na última eleição nem vi a cara da urna
eleitoral (não farei nenhuma justificativa), sou um arauto consciente da
desobediência civil, vivo da pirataria assim como vive grande parte da
população desempregada do país e, quanto mais me perseguem, mais
aumenta a minha disposição de luta e meu ódio de classe aos meus
perseguidores, lacaios das empresas nacionais e transnacionais.
O Estado burguês nos persegue porque teme a ação direta. Recusome à luta parlamentar, reformista, economicista e corporativista. A
burguesia tem como aliados os que atuam nesse campo. A prova mais
evidente é a aliança de Lula com Maluf. Essa guinada de 180º coloca o
PT ao lado da “ROTA”, política de segurança para matar a juventude
pobre da periferia.
A minha militância partidária se deu no PT, fui vice-prefeito em
Diadema, de 1989 a 1992. Até então o PT havia vencido duas eleições seguidas em Diadema, sem aliança com partido burguês. Todos
os partidos de esquerda, incluindo todos os partidos revolucionários
trotskistas apoiaram Lula em 1989 contra Collor.
179
Neste mesmo ano, eu e dois vereadores, ambos do PT, fomos presos,
a mando de Lula, que orientou o prefeito José Augusto, hoje no PSDB,
a nos denunciar na Justiça como agitadores e invasores de terra. Em
Diadema, a mando do PT, muitas outras prisões se seguiram. Na
APEOESP, o ex-presidente Roberto Felício, reconhecido dedo-duro, ao
invés de enfrentar as divergências políticas nas instâncias do sindicato,
abriu contra mim sete processos criminais, indicando a Covas e ao
PSDB a lamacenta e asquerosa trilha da perseguição política.
Atualmente, o PT é o Lula. E quem é Lula? A maioria dos dirigentes
políticos do narcotráfico (Fernadinho Beira-Mar, Marcola, etc.) fazem
política, trancafiados. O dirigente “narcopolítico” Lula, faz política
livremente, cumprindo Zé Dirceu e Genoíno o inglório destino reservado aos bois de piranha, ambos a um passo da prisão. Lula faz política
sem tocar na aposentadoria do dedo, na aposentadoria do INSS, na
aposentadoria da perseguição da ditadura militar, enfim, tem muita
grana que “rola por fora” para exercer o seu “gangsterismo” político. Se
perguntarem ao Lula o que ele acha da cassação da aposentadoria do
Professor Tonhão, indubitavelmente ele dirá “Esse cara deveria estar na
cadeia”, tal como disse Gilmar Mendes a Mário Covas, por ocasião de
sua histórica surra no acampamento da Praça da República, em 2000.
Vamos esperar o que desses novos ricos aliados da ditadura do capital? Temos que nos organizar dentro dos limites da ação direta, contra o
totalitarismo capitalista, na defesa de uma sociedade sem classes, justa,
fraterna e solidária. Diante do questionamento, que não cala, de que
o socialismo não deu certo, retrucamos: onde deu certo o capitalismo?
Nos EUA, na Alemanha, França, Itália, Espanha, Portugal, Grécia,
Chipre? E de onde vem a sobrevida política e econômica desses países?
Do corte de gastos públicos, em particular dos direitos trabalhistas.
Qual a resposta desses trabalhadores? Ocupação das ruas, recuperando,
na luta direta, a dignidade política!
Saudações revolucionárias, a luta continua!
práxis
183
Ainda as Reformas Neoliberais na
Educação: O Caso do Ensino Médio
Ezio Espedito Ferreira Lima1*
“Não há alegria pública que não valha uma boa alegria
privada”
Memorial de Ayres – Machado de Assis
Nesse texto, analisaremos as últimas iniciativas governamentais que
visam reformar o ensino médio, por meio das principais alterações na
legislação educacional, ocorridas nas últimas décadas, e que levaram a
mudanças significativas tanto no Estado brasileiro quanto em seu sistema
educacional. Verificaremos, também, como os seus pressupostos teóricoideológicos e os discursos proferidos em defesa das reformas, têm seu
lastro nas reformas neoliberais que marcaram as políticas de Estado nas
últimas décadas da sociedade brasileira.
As reformas do Estado e as reformas educacionais
como base de sustentação dos interesses privados
A chamada “Era da Universalização do Ensino”, possibilitou que
aproximadamente 97% dos alunos em idade escolar fossem matriculados no ensino fundamental. Desde o Governo FHC várias alterações
ocorreram nas leis brasileiras para assegurar mudanças no sistema
educacional do país e principalmente no modelo de gestão do Estado.
Entre elas é importante destacar: a emenda constitucional que criou
o FUNDEF (1996) e a LDB lei 9394/96 – que promoveu uma nova
legislação educacional de cunho profundamente neoliberal. A EC
1 *Professor de História, Diretor do SINPRO Guarulhos e militante da APEOESP.
184
19 (1998) que implementou a Reforma Administrativa, ganha papel
especial dentro dessas mudanças legais, pois é essa emenda que, em
nome da modernização do Estado, “remodelou” as funções do Estado
brasileiro, instituindo a concepção do Estado público não estatal. Essa
inovação permitiu a adoção do funcionamento de gestões públicoprivadas em áreas sociais que até então eram predominantemente de
responsabilidade do Estado.
As intervenções constitucionais asseguraram juridicamente que
recursos públicos pudessem ser gerenciados por setores privados, além
disso, regulamentou o estágio probatório e introduziu a avaliação
permanente de desempenho dos servidores públicos, mecanismos que
permitem a exoneração dos mesmos por ineficiência.
Em outros termos, por trás do discurso da modernidade, construído
pelos ideólogos e entusiastas do modelo neoliberal, temos o princípio
de que o Estado tem que ser mínimo quando atrapalha o mercado em
sua liberdade de explorar, porém pode ser máximo quando atender e
jogar a favor dos interesses do capital, assegurando assim, a transferência de recursos públicos para interesses privados.
As alterações na legislação corroboraram a desregulamentação dos
serviços público-estatais e a flexibilização no modelo de gestão pública.
Constatou-se, nas últimas décadas, uma redução permanente da presença do Estado em diversas áreas sociais. Segundo os defensores dessa
política neoliberal, cabe ao Estado:
…abandonar o papel de executor ou prestador direto de
serviços, mantendo-se, entretanto no papel de regulador e
provedor ou promotor destes, principalmente dos serviços
sociais, como educação e saúde, que são essenciais para
o desenvolvimento, na medida em que envolvem investimento em capital humano. Como promotor desses serviços
o Estado continuará a subsidiá-los, buscando, ao mesmo
tempo, o controle social direto e a participação da sociedade
(BRASIL/MARE, 1997, p. 9).
185
Partindo dessa constatação, para os reformadores, o terceiro setor,
as Organizações Sociais e seus similares: fundações, instituições ou
entidades representando a sociedade civil ganham espaço central nas
reformas para assumir administração pública.
“Trata-se de um movimento que é portador de um novo modelo
de administração pública, baseado no estabelecimento de alianças
estratégicas entre Estado e sociedade, quer para atenuar disfunções
operacionais daquele, quer para maximizar os resultados da ação social
em geral”. (BRASIL/MARE, 1997, p. 9)
Nessa redefinição do Estado público não estatal, caberá exclusivamente ao Estado o papel de redistribuidor de recursos (transferência de
verbas públicas) para o seus parceiros que representam a “sociedade civil”.
No caso do sistema escolar, nosso objeto de análise, a educação
pública teria que passar por uma revolução, condição fundamental
para preparar os indivíduos com qualidade e formá-los de tal maneira
que permitisse a eles uma maior adaptação ao mercado de trabalho
frente às exigências da reestruturação produtiva e da nova dinâmica
de produção estabelecida com os avanços tecnológicos.
Para os defensores da reforma, a educação passa a cumprir um
papel fundamental no mundo globalizado, tendo em vista a elevação
da competitividade na economia e a disputa, cada vez mais acirrada
no mundo capitalista em crise, que busca uma reorganização da sua
economia de mercado.
Como as reformas neoliberais garantiram condições jurídicas e
também financeiras, a exemplo do FUNDEF e posteriormente do
FUNDEB, permitindo que a União adotasse no sistema educacional,
em parceria com os entes federados, uma política focalizada no ensino
fundamental, deixando à míngua os demais níveis de ensino público.
A ausência, ou a pouca presença do Estado nos demais níveis de ensino,
acabou liberando demanda na sociedade e resultando em um crescimento considerável do setor privado.
Por exemplo, a educação superior privada no país cresceu vertiginosamente. De acordo com os dados do MEC/INEP/DEED de 2011, dos
186
6.739.689 alunos matriculados no ensino superior, 73,69% (4.966.374
alunos) estão em instituição de ensino privado e somente 26,31%
(1.773.315 alunos) em redes públicas.
Ao analisarmos a distribuição de matrículas entre as redes, pública e
privada, fica evidente mais uma vez o que está por trás do discurso da tão
propalada modernidade: a diminuição do Estado não apenas potencializa
o crescimento do setor privado, mas também financia esse crescimento.
Segundo as informações oficiais, o PROUNI conta com mais de 1
milhão de alunos, esse número representa quase 20,13% das matrículas
do ensino privado, uma forma nítida de transferência de verbas públicas
para os cofres das instituições privadas (PROUNI 2012).
A hora e a vez do ensino médio
Ao controlar os recursos públicos da educação, o governo federal,
nas últimas duas décadas, submeteu a redistribuição de verbas aos entes
federados (municípios e estados) de acordo com o número de matrículas
no ensino fundamental. Essa ação, somada à obrigatoriedade do acesso
e permanência, e, em especial, a aprovação automática, proporcionou
a muitos alunos a possibilidade de concluírem o ensino fundamental
na idade própria, acarretando uma maior procura por matrículas no
ensino médio público.
Mesmo aumentando a demanda para o ensino médio, evidenciou-se
no quesito “acesso e permanência” uma grande diferença em relação ao
ensino fundamental. Os dados divulgados recentemente são alarmantes
e estão longe das metas do PNE: a evasão escolar ainda é considerada
elevadíssima e o abandono ocorre logo no primeiro ano. Em 2010, 12,5%
dos alunos recém-ingressos deixaram de ir à escola, contra 7,6% no 3º
ano, 50% dos alunos levam dois anos a mais para concluir o curso. Já
no tocante à qualidade (aprendizagem), assim como no ensino fundamental os índices também estão abaixo das metas esperadas. As mais
recentes avaliações institucionais apontam que 89% dos alunos apresentam deficiências sérias na disciplina de matemática e somente 29%
dos alunos concluem o ensino médio dominando consideravelmente a
língua portuguesa. (REGATTIERI, 2011).
187
A divulgação desses dados poderia servir como elemento de
balanço das políticas educacionais desenvolvidas nos últimos anos e,
caso houvesse seriedade por parte dos governantes atuais e dos seus
especialistas de plantão, a conclusão a que chegariam é que mudar as
leis para condicionar políticas educacionais que privilegiem apenas
os indicadores estatísticos (número de alunos matriculados, aumento
médio da escolaridade e de concluintes do ensino fundamental) e
impor, com base nos modismos academicistas, preceitos didáticopedagógicos que fortalecem o aligeiramento do ensino-aprendizagem
ao sistema escolar, só poderia ter como resultado o crescimento do
analfabetismo funcional no país.
A política educacional que os Governantes do PSDB e PT impuseram significou apenas um adiamento dos problemas educacionais,
que agora explodem como uma bomba de efeito retardado e com força
ainda maior no ensino médio. As opções dos referidos governos por
políticas educacionais que não visavam à melhoria das escolas públicas, à valorização dos seus trabalhadores e principalmente o aumento
significativo de verbas para a educação, é que nos dá a convicção de
que os governos apostaram e continuam apostando no sucateamento
do sistema de ensino público.
É com essa convicção que devemos analisar as investidas do MEC,
das secretarias de educação dos estados e os chamados especialistas que
novamente consideram que os principais e sérios problemas encontrados na educação básica não resultam de sua política desastrosa, ao
contrário, para eles a problemática concentra-se na incompetência e
no comodismo dos professores, na precária formação dos docentes, na
falta de políticas que valorizem o bom profissional e, no caso do ensino
médio, soma-se outro componente que “desanima” e não “incentiva” os
alunos a permanecerem na escola e concluírem seus estudos: a grande
quantidade de disciplinas que compõem o currículo, que acaba alimentando a velha e negativa dualidade de objetivo nessa etapa escolar,
ou seja, não forma os alunos para prosseguirem em seus estudos nem os
prepara para o mercado de trabalho.
188
Crônica de uma morte anunciada
“No princípio era o Verbo contra o Estado, e o Verbo estava
com o Mercado. O Mercado com o Verbo continuou contra o
Estado e também com a Verba do Estado”
Ezio E. F. Lima
Assim, os promotores ideológicos das reformas neoliberais – especialistas bancados por instituições privadas e/ou filantrópicas ou
ainda fundações de caráter privado, ONGs e porta-vozes das empresas
educacionais − aproveitam dos espaços que a mídia lhes proporciona,
por um lado para se apresentarem como baluartes da educação de
qualidade e, por isso mesmo, tentam se mostrar “indignados” com
os resultados pífios do sistema educacional público e, por outro,
aproveitam para enaltecer o ensino privado fazendo comparações
entre os dois sistemas, sem levar em consideração as diferenças e as
desigualdades sociais, as realidades tão distintas e as especificidades
que permeiam cada rede, de forma que tais críticas somente reforçam
a ideia de ineficiência da escola pública estatal e do próprio Estado
(RAVITCH apud FREITAS, 2012).
A utilização da mídia nessas ocasiões torna-se vitrine privilegiada
dos promotores das reformas, para reforçar a campanha de desqualificação e responsabilização dos professores e demais membros da equipe
escolar; do mesmo modo serve, também, como trincheira, onde se
trava de forma unilateral e desigual, a luta político-ideológica contra
o poder estatal e seu modelo de gestão. Como argumento central
eles criticam e consideram inadmissível a permanência de profissionais com baixo desempenho nos quadros de funcionários, apontam
que os governantes têm que enfrentar (leia-se destruir) a legislação
trabalhista – retrógrada – sobretudo aquela que ampara o funcionário público e que tem servido como manto protetor daqueles com
desempenho medíocre nas suas atividades profissionais, fortalecendo
189
a falácia que pretende responsabilizar os professores pela falência da
educação pública-estatal.
Salientam que a inércia do poder estatal assenta-se, por um lado,
em um modelo de gestão pública que não cobra efetivamente resultado
de seus trabalhadores, e por outro, que os governantes, por receio de
perderem dividendos políticos nas eleições, não enfrentam com profundidade as corporações sindicais e seus representados (GOVERNOS
DO BRASIL, 2009). Para eles, é necessário criar punições ou até
mesmo quebrar a estabilidade no emprego permitindo a exoneração
daqueles que têm desempenhado de forma insatisfatória o seu ofício.
Como parte da “ajuda”, os promotores das reformas neoliberais, com
base nas orientações dos organismos internacionais, oferecem o modelo
de gestão aplicado na iniciativa privada como o único que pode “salvar”
a educação do país como, por exemplo:
a) A meritocracia: esse princípio empresarial aparece como o remédio para combater todos os males da educação pública. Para acabar
com a falta de compromisso dos que trabalham na escola pública é
necessário implantar e incentivar várias formas de avaliação, como
forma de premiar os professores dedicados, mas também de punir
aqueles que estão acomodados. Nesse sentido, os planos de carreira têm
que ter como base exclusiva e prioritária as avaliações de desempenho,
tanto as aplicadas aos alunos quanto aos professores. Políticas salariais
devem estar condicionadas às metas e aos resultados alcançados. Nada
de reajuste de salários linear, pois segundo a economista-chefe do Banco
Mundial, Barbara Bruns:
A indústria da educação é a única em que os “operários”
(professores) não têm sua performance avaliada de forma
direta e objetiva em busca de uma otimização do tempo…
Em Washington D.C, por exemplo, graças a um programa
desse tipo (colocar o avaliadores nos fundos das salas de
aulas para observar o trabalho dos professores), o estado
190
descobriu onde estão seus melhores mestres e dobrou o
salário deles (TARDÁGUILA, 2012).
É preciso ainda garantir autonomia administrativa dos gestores/
diretores para contratar e demitir os trabalhadores.
b) Expandir a participação da rede privada no ensino básico como
meio de melhorar a qualidade da educação: para os empresários da
educação, ainda como resposta à ineficiência estatal, é possível aumentar a participação do setor privado no ensino básico, assim como já
acontece no ensino superior, para isso o Estado deve subvencionar
bolsas de estudo, principalmente na educação infantil, no ensino médio
e no técnico-profissionalizante. Os donos das escolas privadas, valendose das lutas em torno do PNE, pelo aumento de verba para o ensino
passaram a
defender a adoção do Probásico, um modelo de subvenção
ao aluno da educação básica, baseado no PROUNI, além da
dedução integral dos gastos com educação no Imposto de
Renda da Pessoa Física (IRPF)…inclusive livros didáticos e
demais materiais escolares (FIGUEIREDO, 2011).
É dentro dessa conjuntura de continuidade e reiteração dos ataques
desferidos contra a escola pública e estatal, contra seus profissionais
e numa profunda ânsia de retirar direitos trabalhistas e sociais que a
reforma do ensino médio está sendo imposta. As propostas até agora
apresentadas pelo MEC e que têm adesão de alguns estados, não passam
de novas pirotecnias, pseudo-pedagógicas, seus pressupostos estão em
consonância com as orientações do Banco Mundial e suas diretrizes
acompanham os modelos de currículos elaborados pela UNESCO.
O Programa do Ensino Médio Inovador − PROEMI (2009) e o
Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego − PRONATEC (2011), são programas que resultam da parceria do MEC com
a UNESCO, suas diretrizes para gestão curricular e administrativa
estão embasadas nos dois modelos de currículo chamados de Protótipos
191
Curriculares de Ensino Médio e Ensino Médio Integrado, elaborado
por aquele organismo. Para seus idealizadores o objetivo é superar as
deficiências diagnosticadas no Ensino Médio e assegurar os preceitos
legais da LDB que deve garantir ao aluno concluinte desse nível de
ensino: a sua inserção no mercado de trabalho e sua preparação para o
exercício da cidadania (REGATTIERI, 2011).
A intervenção do Ministério da Educação no sentido de induzir
a reforma no ensino médio, via PROEMI, já atingiu 2.015 unidades
escolares distribuídas em vinte estados da federação (dados de 2012),
segundo o ministro da educação, Mercadante, a meta para o ano de
2013 é chegar a 4.000 escolas e, em 2015, ter todas as escolas que oferecem ensino médio contempladas pelo programa (FAJARDO, 2012).
O mecanismo que está possibilitando a aceitação do referido programa por parcelas dos governos estaduais é que o MEC condiciona
o aumento de verbas para os sistemas de ensino estadual à adesão ao
PROEMI, assim as escolas passam a contar com recursos, através do
PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola) e também com apoio
técnico para desenvolverem os projetos. Os sistemas de ensino estaduais, por sua vez, exigem das escolas, como contrapartida, profundas
alterações na sua organização administrativa, curricular e pedagógica,
sendo algumas delas:
a) Contrato em regime diferenciado: a contratação passa a ser feita
por perfil dos profissionais e não por leis estabelecidas em planos de
carreira ou no estatuto do magistério, que normalmente tem como
fundamento legal a prioridade de escolha do professor concursado,
levando em consideração o tempo de serviço e garantindo o seu direito
de escolher onde trabalhar. Nessa nova forma de contratação, fica
evidente a quebra de direitos, até então considerados adquiridos, por
aqueles que foram aprovados em concurso público. Outros direitos,
estabelecidos em leis, como a possibilidade de afastamento temporário
para tratamento médico (mesmo de curto período), as faltas abonadas
192
e/ou justificadas, em alguns estados já não estão sendo respeitadas e em
outros podem incidir de forma negativa na vida funcional do professor.
b) Dedicação exclusiva: o docente tem que se dedicar exclusivamente
à escola que aderiu ao programa, jogando por terra o direito constitucional dos professores de acumular cargos. Os docentes ainda devem
ampliar a jornada de trabalho para garantir a execução do projeto, sendo
remunerados por isso através de gratificações.
c) Avaliações em larga escala: os profissionais, ao aceitarem esse
novo tipo de contratação, se submetem a permanente monitoramento e
às avaliações em larga escala. Aqueles que não atingirem as metas estabelecidas serão desligados do programa e, sem dúvida, ficarão taxados
como incompetentes junto aos seus pares e à comunidade escolar.
d) A reorganização do currículo: o PROEMI requenta as propostas
apresentadas nas antigas DCN’s/98 e na atual de 2011 para o ensino
médio. Para, supostamente, dinamizar e incrementar o currículo, disciplinas são diluídas em 4 áreas de conhecimento, a saber: Linguagens,
Códigos e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias; Ciências
da Natureza e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tecnologias.
Ainda como composição do novo currículo existe a parte diversificada,
que será desenvolvida através de atividades, com o objetivo de articular
as áreas de conhecimento de forma integradora e contextualizada com
os eixos estratégicos da proposta, que são: trabalho, ciência, tecnologia
e cultura. Para os idealizadores da UNESCO, essa nova formatação
do currículo garantirá ao aluno concluinte “a necessária aptidão para
ele desenvolver habilidades que qualquer tipo de trabalho demanda,
na escrita, na fala, na construção do raciocínio lógico e no domínio de
uma Língua Estrangeira” (UNESCO, 2011).
e) Autonomia administrativa e financeira: as escolas passam a exercer de forma relativa sua autonomia administrativa e financeira, para
193
firmar parcerias com ONGs, instituições privadas e fundações para,
desta forma, atender a parte diversificada do currículo. As atividades
serão desenvolvidas e ministradas por instituições-parceiras que receberão as verbas diretamente das escolas, promovendo indiretamente
a transferência de recursos públicos para a iniciativa privada. Ainda
dentro da autonomia administrativa, as escolas poderão reduzir turnos
para atender às exigências do programa, uma vez que essas atividades
poderão utilizar o contraturno das aulas.
f) O PRONATEC: outra faceta da reforma, visa integrar o ensino
médio de formação geral ao técnico profissionalizante. Nos dois primeiros anos o currículo, as ações pedagógicas e a organização escolar
acompanham o modelo desenvolvido pelo PROEMI. Já nos dois anos
finais, a escola deve dispor de condições estruturais, técnicas e profissionais para desenvolver o ensino técnico-profissionalizante.
A lei preconiza alguns caminhos que podem ser seguidos pelos
sistemas educacionais estaduais para adaptarem suas respectivas escolas
a fim de atender o PRONATEC: I) o governo federal entraria com os
aportes financeiros necessários para promover as reformas estruturais
das unidades escolares; os cursos de qualificação dos docentes que
ministrariam a parte profissionalizante do currículo; ou II) os sistemas
estaduais de ensino poderiam promover parcerias com o Sistema “S”
(SENAI, SENAC, SENAR e SENAT), com as demais instituições
de ensino técnico – profissionalizante da rede pública ou com a rede
privada, todas essas possibilidades em nome da garantia de expansão
dos cursos de educação profissional técnica de nível médio; III) o
PRONATEC ainda distribuirá Bolsa-Formação, que será oferecida aos
alunos de baixa renda; IV) por fim, a modalidade de Ensino à Distância é amplamente incentivada pelo PRONATEC e a utilização da
mesma não sofre qualquer restrição de uso para as redes que aderirem
ao programa.
194
Considerações finais
“A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça,
aparar-lhe as unhas não serve de nada.”
José Saramago
No estado de São Paulo, por exemplo, onde o maior sindicato dos
professores (APEOESP) é dirigido majoritariamente por militantes e
simpatizantes do governo federal, há uma resistência considerável, que
se manifesta muito mais viva na base das escolas, por meio da ação e
resistência de professores, pais e alunos, do que propriamente por sua
direção, contra as propostas de características semelhantes às analisadas
neste texto. O “Ensino Médio de Tempo Integral”, projeto do “governo
tucano” previa para 2013 mais de 100 escolas funcionando conforme
o modelo imposto, no entanto a comunidade escolar em mais de 50%
das escolas indicadas rejeitou o Projeto (OBSERVATÓRIO DA EDUCAÇÃO, 2012). Esse resultado, ainda que positivo, não faz parte de
uma campanha unitária do sindicato, pois sendo sua direção composta
majoritariamente por apoiadores incondicionais do Governo petista,
inclusive ocupando papel de destaque na estrutura do governo − MEC e
CNE (Conselho Nacional da Educação) – a atual presidente é membro
do Conselho − os mesmos ficam contemporizando em intermináveis
elucubrações tentando levar a categoria a crer que apenas com pequenas
alterações na reforma dos programas teremos uma mudança de qualidade
no ensino médio público.
Procuramos, nesse texto, demonstrar e analisar como as reformas
neoliberais não pararam, ao contrário, elas estão em curso, porém travestidas da chamada modernização. Para nós, da Conspiração Socialista,
a essência das reformas educacionais implantadas até o momento tem o
objetivo de manter e ampliar o entrelaçamento da ausência do Estado
com o crescimento do ensino privado – financiado com recursos públicos – e a retirada de direitos trabalhistas, por isso deve ser combatida
com todas as nossas forças. Do ponto de vista educacional, as reformas têm reforçado amplamente a formação de um aluno/trabalhador
195
adestrado, polivalente e com pouca possibilidade de ampliar seu poder
de abstração para atender às necessidades mais imediatas do mercado
de trabalho, desprovendo, assim, os alunos de arsenal teórico-político
capaz de potencializar e aguçar sua visão crítica para agirem contra o
sistema que os explora e oprime enquanto classe trabalhadora.
Referências
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−− FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. 2 ed.
São Paulo: Cortez, 1996.
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−− RAVITCH, Diane. In: FREITAS, Luiz Carlos. Dossiê Políticas Publicas
de Responsabilização na Educação. Educação & Sociedade Vol.33 n°.119
Campinas, April/June 2012.
−− REGATTIERI, Marilza: O Ensino Médio que está aí não faz sentido. In:
GESTÃO ESCOLAR, Edição 15, Agosto/Setembro 2011.
Documentos Oficiais
−− BRASIL. MEC. O Programa do Ensino Médio Inovador – PROEMI,
2009.
−− BRASIL. MEC. Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e
Emprego – PRONATEC, 2011.
−− BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado Organizações Sociais. Caderno MARE p. 74 Vol.2 1997. Disponível em: <http://
www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/publicacao/seges/
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−− INEP/MEC. Censo do Ensino Superior 2011. Disponível em: <http://
download.inep.gov.br/informacoes_estatisticas/sinopses_estatisticas/sinopses_educacao_superior/sinopse_educacao_superior_2011.zip>. Acesso em:
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196
−− PROUNI. Disponível em: <http://prouni2013.com.br/prouni-2012-2segundo-semestre-inscricao.html>. Acesso em: 10/10/2012. Acesso em:
10/10/2012.
Sites Consultados
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ensino médio público a crise. Disponível em: <http://g1.globo.com/
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-tirar-ensino-medio-publico-da-crise.html>. Acesso em: 15/10 /2012
−− FIGUEREDO, Roseli. Especial: Plano Nacional de Educação:
o que compete ao sistema privado? In: REVISTA DIRECIONAL
ESCOLAS. Edição 67, abril/2011. Disponível em: <http:www.
direcionalescolas.com.br/especial/especial-plano-nacional-de-educacao>.
Acesso em: 04/10/2012.
−− LE MONDE Diplomatique – Brasil − SOUSA, H. Andrea. Ensino
Superior: da Educação mercadoria à certificação vazia, 2011. Disponível
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−− OBSERVATÓRIO DA EDUCAÇÃO, 2012. Disponível em:
<http://www.
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content&view=a rticle&id=1183:metade-da s-escola s-consu ltada srejeitou-modelo-de-tempo-integral-para-2013&catid=67:
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Itemid=105>. Acesso em: 12/10/2012.
−− TARDÁGUILA, Cristina. Desempenho de professores da rede estadual
do Rio será monitorada. O Globo. 18/10/12). Disponível em: <http://extra.
globo.com/noticias /educacao/desempenho-de-professores-da-rede-estadualdo-rio-sera-monitorado-6447031.html>. Acesso em: 19/10/2012.
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integrado: resumo executivo. SÉRIE Debates ED Nº1. 2011. Disponível em:
<http://unesdoc. unesco.org/images/0019/001922/192271por.pdf>. Acesso
em: 10/10 /2012.
197
Um plano de previdência1
Ha Jim2
Tradução: Milena de Moura Barba3
Era dito que o Sr. Sheng sofria de um tipo de demência senil causado
por um derrame cerebral. Eu estava certa de que não era Parkinson,
tampouco Alzheimer, pois eu tinha aprendido alguma coisa sobre ambos
durante meu treinamento para me tornar uma cuidadora. Ele não estava
completamente inválido, mas necessitava de cuidados durante o dia. Eu
estava contente em atendê-lo, já que estivera desempregada por mais de
três meses antes deste trabalho.
Todas as manhãs, lavaria sua face com uma toalha de rosto embebida em água morna, mas fui instruída a não barbeá-lo, isto somente os
familiares poderiam fazer. Ele estava com 69, gentil por natureza e de
fala mansa. Ensinara física no Ensino Médio da cidade de Changchun
há trinta anos, mas já não podia ler seus velhos livros didáticos. Era
incapaz de lembrar as fórmulas ou teoremas, mas ainda conseguia reconhecer muitas palavras. Geralmente levava um jornal sobre as pernas
quando sentava-se sozinho. Meu trabalho era cozinhar para ele, ali1 Originalmente publicado em Ha Jin, A Good Fall, Vintage Books, 2009. Copyright [simbolo] by
Ha Jin.
2 Ha Jin (哈金), é o pseudônimo de Jīn Xuěfēi (金雪飞), um escritor chinês-americano nascido na
província de Liaoning, China. Filho de um oficial militar, o escritor entrou para o Exército de Libertação Nacional durante a Revolução Cultural. Iniciou seus estudos em literatura chinesa aos 16 anos
e aos 19 deixou o exército e entrou no curso de estudos ingleses. Deu continuidade aos seus estudos
com o mestrado em literatura anglo-americana em ShangDong e o doutorado na Universidade de
Brandeis, nos Estados Unidos. Após os acontecimentos da Praça da Paz Celestial, em 1989, decidiu
continuar no país onde reside e leciona até os dias de hoje. Ha Jin escreve suas obras em inglês “para
preservar a integridade de seu trabalho” e aborda temas ligados à cultura chinesa. Para ele, o mais
importante é colocar o sentimento humano no papel, o que ele realiza com toda a materialidade que
isso implica.
3 Milena de Moura Barba (米莲娜), brasileira, nasceu em São Paulo no ano de 1987. Cursou
Letras, Português e Chinês, na Universidade de São Paulo e foi aluna intercambista da Universidade
de Estudos Internacionais de Xi’an ao longo do ano de 2012.
198
mentá-lo, mantê-lo limpo e levá-lo para passear. Uma jovem enfermeira
vinha, vez ou outra, para checar seus sinais vitais e dar-lhe uma injeção.
A Vintetantos me contara que na verdade não havia cura para a doença
do Sr. Sheng, o médico podia apenas controlar os sintomas e frear seu
avanço. Senti-me afortunada pelo meu encargo não ser violento como
muitas das outras vítimas desta demência.
A esposa do Sr. Sheng morreu há muito tempo atrás, antes dele vir
para os Estados Unidos, mas ele acreditava que ela ainda estava viva.
Por diversas vezes ele não conseguira lembrar-se do nome dela, então,
todas as manhãs, eu o deixava ver um álbum com umas duas dúzias
de fotos dele e dela juntos. Nas fotos, eles eram jovens e pareciam ser
um casal feliz. Ela era uma mulher bonita, com pele brilhante e tez
delicada, do tipo que você normalmente encontra nas províncias ao sul
do rio Yangtze. Algumas vezes, quando eu apontava para o rosto dela e
perguntava a ele, “Quem é esta?”, ele levantaria os olhos e me olharia,
com seu olhar vazio.
Cerca de um mês depois do meu início, sua filha Minna interveio
dizendo que as fotos poderiam chateá-lo e que eu não as deveria mostrar-lhe mais. Eu deixei o álbum de lado. Ele nunca reclamou da sua
ausência. Minna era um pouco mandona, mas eu não fazia conta. Ela
devia amar seu pai. Me chamava Tia Niu, o que me deixava apreensiva
pois eu acabara de fazer 48 e não era velha para tanto.
Parte do meu trabalho era alimentar o Sr. Sheng. Por vezes eu era
obrigada a convencê-lo a engolir a comida. Por outras ele era como uma
criança doente que se recusa a segurar a comida na boca por muito
tempo. Eu fazia refeições razoáveis para ele − mingau de frango, bolinhos de peixe, camarão, guizado de vegetais, macarrão com cogumelos
shitake picados, mas a despeito do seu conjunto completo de dentes,
ele parecia incapaz de diferenciar a maioria das comidas. Uma boa
parte das suas papilas gustativas devia ter morrido. Enquanto comia,
ele ruminava entre as garfadas, suas palavras, em grande parte, incompreensíveis. Ainda assim, de tempos em tempos, ele parava para me
perguntar, “Entende o que eu digo?”.
199
Eu ficava muda. E, se pressionada, eu chacoalhava minha cabeça e
admitia, “Não, eu não acompanhei você”.
“Você está sempre longe”. Ele resmungava.
O almoço normalmente tomava mais de duas horas. Aquilo não me
incomodava, pois, em essência, meu trabalho era simplesmente ajudálo a passar o tempo. Diante da sua teimosia com a comida, eu decidi
fazer a minha refeição antes de alimentá-lo.
Depois do almoço nós frequentemente saíamos para tomar um ar
fresco, comprar algumas coisas e pegar o exemplar diário do World
Journal. Eu o levava na cadeira de rodas. Como uma dona de casa, ele
tinha o hábito de recolher cupons. Sempre que via algo em promoção, cortava o pedaço de papel do anúncio e o guardava para Minna.
Isto me fez sentir que ele deve ter sido um marido ansioso por dividir
diversas coisas com sua mulher. Agora, com a minha ajuda, gostava de
frequentar as lojas em Flushing. Quanto à comida, dizia gostar de peixe
de água doce, perca, carpa, enguias, bagres, mas não comia nenhum
fruto do mar além das vieiras. As últimas foram recomendadas pela
jovem enfermeira porque contém pouco colesterol. Ela também me
disse para dar-lhe leite e queijo, dos quais ele desgostava.
Uma tarde nós fomos às compras novamente. Quando nos aproximávamos da banca de jornal na rua principal o Sr. Sheng gritou:
“Pare!”.
“O que foi?” Eu parei de caminhar. As pessoas estavam saindo pelo
portão do metrô.
“Espere aqui”. Ele me disse.
“Por quê?”.
“Ela está vindo”.
Eu gostaria de perguntar mais a respeito, mas me segurei. Sua mente
dificilmente podia acompanhar uma sentença simples. Se eu lhe perguntasse uma sentença maior que dez palavras ele não saberia como
responder.
200
Mais pessoas estavam passando por nós, e nós dois ali, em meio à
multidão cada vez menor. Quando já não havia nenhum passageiro
saindo pelo portão, eu lhe perguntei: “Ainda esperando?”.
“É”. Ele descansou as mãos em suas pernas. Ao lado dele, um pedaço
de jornal colado na barra horizontal superior da cadeira de rodas.
“Nós precisamos comprar o peixe, se lembra?” E apontei para o
anúncio.
Com um olhar vazio, suas pupilas vagavam de um lado para o
outro. Neste ponto, a saída do metrô fora novamente tomada por um
enxame de pessoas, pedestres iam e vinham pelas calçadas. Para a
minha surpresa, Sr. Sheng ergueu suas mãos para uma jovem senhora
vestida com uma calça castanha, uma camisa de seda rosa e óculos de
aros de alumínio. Ela hesitou e então parou. “O que posso fazer por
você, Tio?”Ela disse com um sotaque cantonês.
“Viu a minha esposa?” ele perguntou.
“Quem é ela? Qual o nome dela?”.
Ele permaneceu em silêncio e virou sua cara assustada para mim.
Me coloquei e disse: “O nome dela é Molei Wan”. Sem saber como
explicar algo mais sem ofendê-lo, só dei uma piscada para a mulher.
“Eu não conheço ninguém com esse nome”. Ela sorriu e chacoalhou
seu rosto sombrio.
“Você está mentindo”. Ele gritou.
Ela o olhou, com suas narinas abertas. Eu a puxei de lado e sussurrei: “Senhorita, não leve isto a sério. Ele tem um transtorno mental”.
“Se ele é um doente, não deixe ele solto por aí fazendo dos outros
infelizes”. Ela me atirou um olhar reprovador e partiu, com seus cabelos, na altura dos ombros, balançando.
Irritada, eu voltei-me para sua cadeira. “Nunca mais fale com estranhos”. Eu disse.
Ainda que ele parecesse descontente, provavelmente porque ele não
havia visto sua esposa, não parecia entender. Eu o afastei dali enquanto
ele murmurava algo que eu não pude pegar.
201
A peixaria estava próxima e compramos um peixe branco, de uns
dois quilos. Estava muito fresco, com olhos brilhantes, boas medidas
e barriga firme. O jovem atendente atrás do balcão tirou as vísceras,
mas deixou a cabeça, como eu pedi. De maneira nenhuma o Sr. Sheng
poderia comer aquele peixe todo – eu pude cozinhar apenas metade
dele e salvar a outra metade para o próximo dia ou depois. No nosso
caminho de volta, ele insistiu em segurar o peixe ele mesmo. Eu havia
amarrado a sacola plástica e, por isso, não intervim quando ele o deixou
apoiado em seu colo. Um líquido ensanguentado vazou para fora da
sacola e encharcou a frente da calça caqui dele, mas eu não notei isso
acontecer. Quando nós voltamos para casa eu vi sua calça molhada
e pensei que ele havia urinado. Então eu descobri que nenhuma das
pernas de sua calça estava molhada. “Você quer criar mais trabalho
para mim, é?” Eu disse. “Por que você não segurou o peixe direito?”.
Ele parecia perplexo. Ainda que tivesse sido descuidado com o
peixe, também estava aborrecido porque eu não o deixei esperar fora da
saída do metrô. Comecei a despi-lo para um banho, o que eu já havia
planejado fazer neste mesmo dia. Como a sua calça estava suja pelo
sangue do peixe eu a lavaria depois. Havia uma lavadora lá em cima,
no primeiro andar da casa, onde sua filha vivia com os dois netos dele
e o seu marido, Harry, um vendedor gorducho que viajava muito e que
não estava em casa na maioria do tempo.
Eu ajudei o Sr. Sheng com o banho. Ele segurava em um andador
com suas rodas travadas enquanto eu o lavava. Primeiro eu o ensaboei
todo e depois o enxaguei com uma mangueira. Ele desfrutou do banho
e cooperou como o usual, virando-se para cá e para lá. Deixou escapar
gemidos alegres quando eu espirrava água morna nele. Deveria estar
satisfeito, já que poucas cuidadoras iriam banhar seus pacientes com o
cuidado que eu o fazia. Eu trabalhei uma vez em uma casa de repouso
onde os idosos eram despidos e amarrados a uma cadeira com um buraco
no assento enquanto nós os banhávamos. Nós os passávamos em uma
máquina, um por um. Como em um lava-rápido, a água espirrava neles
por todos os lados. Quando os tirávamos dali eles soluçavam e tremiam
202
como perus depenados. Algumas cuidadoras deixavam aqueles que elas
desgostavam molhados e pelados por uma ou duas horas.
Depois de enxugar o Sr. Sheng, eu o ajudei a colocar roupas limpas e
então penteei seus cabelos grisalhos, que ainda eram grossos e não tinham
perdido o brilho. Eu percebi que suas unhas estavam bem compridas, e
com sujeira, mas as regras da empresa não me permitiam cortá-las, por
medo de um processo caso elas infeccionassem. Eu disse para ele: “Seja
um bom menino. Eu vou lhe preparar uma sopa de peixe”.
“Hummmmm” ele cacarejou, mostrando as duas coroas de ouro.
EU NÃO PODIA DIRIGIR. Sempre que o Sr. Sheng ia ver o
médico no hospital, Minna levava a nós dois em sua minivan. Ela já
tinha as suas mãos ocupadas com seus gêmeos e com o emprego dela no
banco, e tinha que utilizar-se de uma babá. Seu pai não acreditava na
medicina ocidental e ficava infeliz sempre que visitávamos o hospital.
Ele deveria ter suas razões − de acordo com a jovem enfermeira que
vinha vez ou outra, acupuntura e ervas medicinais seriam mais efetivas
para tratar a sua doença. Mas ele tinha que pagar pelos remédios, já
que o convênio não os cobria. Ainda assim, ele me faria levá-lo de uma
loja de ervas à outra, e algumas vezes ele iria àqueles lugares somente
para ver como estes médicos, não licenciados graças a seu parco inglês,
tratavam os pacientes – sentindo seu pulso, aplicando ventosas, fazendo
massagens terapêuticas, colocando os ossos no lugar. Ele não teria
recursos para toda a receita prescrita pelo médico, normalmente mais
de uma dúzia de itens por prescrição, mas ele compraria algo de tempos
em tempos, um par de escorpiões ou centopéias, ou ainda, um pacote
de ginseng, ao menos dez vezes mais barato do que as raízes que me
pedia para mergulhar em uma água bem quente. Ele também me pedia
para cozinhar e moer os insetos e também me fazia prometer nunca
revelar para Minna que ele os estava tomando. Ela considerava a medicina chinesa uma enganação. E eu não fazia a menor idéia se centopéias
e escorpiões podiam ajudá-lo, mas sempre que ele comia um pouco
destes, ele cantarolava canções folclóricas, uma após a outra. Ele sempre
203
cantava versos distorcidos, mas a melodia estava ali. Familiarizada com
estas canções, eu frequentemente cantarolava junto com ele.
Juntos nós cantávamos: “Assim como o riacho balbucia a leste, / Eu
devo manter suas palavras doces e secretas”. Ou: “Uma pequena bolsa
com um cordão dourado, / Feita para mim pela garota da vila / Que
sorri como o florir da primavera.”
Mas frequentemente eu não estava contente com ele. A maioria do
tempo ele era difícil e rabugento e fazia uma birra fora do sério. Porque
o convênio médico cobria acupuntura, ele ia para uma clínica regularmente. O único acupunturista, a uma distância caminhável e listado
no livro do convênio, era o Dr. Li, em um dos cortiços da Avenida 45.
Eu sempre passava o prédio do seu consultório porque aqueles prédios
de tijolos tinham uma aparência idêntica. Uma tarde em que eu o
estava empurrando pela calçada, sombreada pelos plátanos com suas
folhas roxas, ele me parou, dizendo que havíamos acabado de passar
pela clínica do Dr. Li. Eu olhei ao redor e percebi que ele devia estar
correto, então retornamos rumo à entrada certa.
Animado com o meu erro, ele disse ao doutor que eu era “uma droga”.
Deitado em uma cadeira reclinada, com agulhas em seus pés, ele apontou
para sua cabeça e disse, “Minha memória está melhor agora”.
“Realmente”, Dr. Li ecoou, “você melhorou bastante”.
Eu odeio aquele homem com cara de burro, que mentiu para ele. O
Sr. Sheng não podia nem ao menos lembrar do que ele tinha comido
no almoço. Como alguém em seu juízo perfeito poderia dizer que a
memória dele estava melhor? Ele sorria como um idiota e seu rosto
transpirava presunção. Eu tinha quase certeza que ele havia identificado
a entrada correta por acaso. Ultrajada, eu me sentei na cadeira de rodas
e fingi tremer como ele. Eu gemi: “Oh, me ajude. Me leve para o Dr.
Li. Eu preciso dele para enfiar suas agulhas mágicas em meu pescoço”.
Li riu, grasnando como um pato, enquanto Sr. Sheng fixou seus
olhos sobre mim como duas minúsculas pontas de flecha. Manchas
vermelhas estavam aparecendo em suas bochechas, e um tufo de cabelo
levantou de repente no topo de sua cabeça. Aquilo me assustou e eu sai
204
da cadeira. Ainda assim, eu não pude deixar de acrescentar: “Leve-me
de volta, eu não posso andar sozinho”.
Eu não devia tê-lo imitado. Ele passou o dia inteiro virando a cara
para mim, apesar de eu ter cozinhado a sua comida preferida – mingau
de frango com castanhas portuguesas. Pensei que ele devia me odiar
e que causaria problemas intermináveis para mim. Mas na manhã
seguinte ele voltara a ser ele mesmo e me deu um sorriso de reconhecimento quando eu pisei em seus aposentos no porão.
SR. SHENG DESENVOLVEU um hábito estranho – ele evitava
que eu o deixasse sozinho e queria que eu me sentasse ao seu lado por
todo o tempo. Até quando eu ia para o andar de cima lavar suas roupas,
ficava impaciente, fazendo barulhos terríveis. Ele só precisava da minha
atenção, eu acreditava. Quando eu caminhava para fora do seu quarto,
podia sentir seus olhos me seguindo. Uma manhã eu perguntei provocadoramente, apontando para o meu nariz, “Qual é o meu nome?”.
Ele tratou de dizer: “Jufen”.
Eu lhe dei um abraço de um braço só, emocionada porque ele lembrou do meu nome. Para ser honesta, eu gostei de ficar com ele, não
apenas porque eu recebia oito dólares por hora, mas também porque seu
afeto por mim tornava as coisas mais fáceis. Agora, levava menos tempo
para alimentá-lo e banhá-lo. Ele estava tão feliz e terno nestes dias, que
até mesmo seus netos desciam para visitá-lo. Ele também subiu para
vê-los quando seu genro não estava em casa. De alguma forma parecia
temer Harry, um homem branco de ombros largos, pernas curtas e
intensos olhos azuis. Minna me contou que seu marido temia que Sr.
Sheng machucasse as crianças, e também que Harry não gostava do
cheiro do velho. Mas, juro por Deus, sob meus cuidados, meu paciente
não fedia mais.
Ele tinha uma quantidade considerável de amigos no bairro, e nós
sempre íamos para um pequeno parque na Rua Bowne encontrá-los.
Estavam todos entre sessenta, setenta anos, três ou quatro mulheres
entre outros seis ou sete homens. Mas, ao contrário do meu encargo,
eles não estavam doentes e eram mais lúcidos. Apesar do Sr. Sheng
205
não poder mais conversar com eles, eu podia ver que eles eram muito
amigáveis. Eles o arreliavam com muito bom humor e ele nunca dizia
nada, apenas sorria para eles. Certa tarde, o velho Peng, um homem
robusto com uma cabeça em forma de bala, perguntou a ele em voz
alta: “Quem é esta? Sua namorada?”. Apontando seu dedo para mim,
sua unha micosenta como um pequeno casco.
Para minha surpresa, Sr. Sheng assentiu com a cabeça.
“Quando você vai casar com ela?” Um homem desdentado perguntou.
“Mês que vem?” Uma pequena mulher se intrometeu, segurando
um punhado de pistaches.
Sr. Sheng parecia perplexo enquanto seus amigos continuavam,
alguns acenando para mim. Com meu rosto queimando, eu disse a
eles: “Não façam piada dele. Que vergonha!”.
“Ela é dura” disse o velho Peng.
“Como uma pimentinha vermelha”, outro homem ecoou.
“Ela é muito boa protegendo seu homem”, completou a mesma
mulher.
Eu percebi que não haveria meio de pará-los, então eu falei com o Sr.
Sheng “Venha, vamos para casa”.
Enquanto eu o estava tirando dali, os rumores de gracejo subiam
atrás de nós. Eu comecei a levá-lo ao parque com menos frequência; ao
invés disso, eu o levava para a Biblioteca Flushing. Ele gostava de folhear
as revistas dali, especialmente as com fotografias.
Uma manhã, enquanto eu o ensaboava na banheira, ele segurou a
minha mão e a puxou em sua direção, devagar, mas com firmeza. Eu
olhei e vi seus olhos com um brilho estranho, com algumas faíscas
voando neles. Sem palavras, eu tirei minha mão e continuei espirrando
água nas costas dele. Ele continuou dizendo “Eu te amo, eu te amo,
você sabe disso”.
Apressadamente, eu o enxuguei e o ajudei a colocar roupas limpas.
Eu fiquei o tempo todo sem dizer uma palavra, mas minha mente
estava um turbilhão. Como eu poderia lidar com isso? Eu deveria
conversar com a sua filha sobre estes novos eventos? Ele não era um
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homem mau, mas eu não o amava. Além da nossa diferença de idade,
vinte e um anos, eu simplesmente não poderia me imaginar tendo uma
relação íntima com um homem de novo. Meu ex-marido me deixara
vinte anos atrás por uma antiga paixão, uma empresária do ramo da
porcelana na região da baía. Já estava acostumada a viver sozinha e
nunca considerei me casar novamente. Eu estava tratando bem do Sr.
Sheng, pretendendo que o gostar dele por mim tornasse meu trabalho
mais fácil, mas e agora, como eu lidaria com esta loucura?
Sem nenhuma ideia do que fazer, eu fingi que não o havia entendido.
Eu comecei a me distanciar e manter-me fora do seu caminho. Ainda
assim eu havia de levá-lo a passear e cuidar dele como uma criança
durante as refeições. Murmurava meu nome com uma voz suave –
“Jufen… Jufen…” Como se estivesse mastigando a palavra. Ele poderia
ser interessante e charmoso se não estivesse tão doente. Eu sentia pena
dele e por isso tentava ser paciente.
Cerca de uma semana depois, ele começou a me tocar sempre que
possível. Me dava tapinhas por trás sempre que eu me levantava para
pegar algo. E também repousava seus dedos em meu antebraço, como
se prevenindo que eu me afastasse e como se eu gostasse de tal intimidade. Finalmente, uma tarde eu tirei a mão dele da minha coxa e disse
“Tire a sua pata de mim! Eu não gosto disso”.
Ele ficou atordoado, e depois explodiu lamentando “não tem graça,
não tem graça!” Ele chorou, puxando o ar com as suas mãos abertas,
enquanto torcia seu rosto, seus olhos fechados.
Minna escutou a comoção e desceu, um enorme coque de cabelo no
topo da sua cabeça. Ao ver o seu pai com o coração partido, perguntou
rispidamente, “Tia Niu, o que você fez para ele?”.
“Ele fica me assediando, avançando, então eu disse a ele para parar”.
“O quê? Você é uma mentirosa. Ele mal sabe quem você é! Como ele
poderia fazer algo deste tipo?” Seu rosto carnudo amassado, mostrando
que ela estava decidida a defender a honra de seu pai.
“Ele gosta de mim, esta é a verdade”.
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“Ele já não está em si. Como ele poderia ter sentimentos normais
por você?”.
“Ele disse que me ama. Pergunte a ele”.
Ela colocou sua mão, com rugas nas juntas, no ombro ossudo dele,
chacoalhando-o, “Pai, me diga, você ama Jufen?”.
Ele olhou para ela pálido, como se confuso. Eu o odiava por ficar em
silêncio, me humilhando daquela maneira.
Minna se levantou e me disse: “Obviamente você está mentindo.
Você o machucou, mas você quer colocar a culpa nele”.
“Maldição, eu te contei a verdade”.
“Como você pode provar?”.
“Se você não acredita em mim, tudo bem, eu me demito”. Eu estava
surpresa pelo que havia dito; este emprego era precioso para mim, mas
já era tarde para voltar atrás nas minhas palavras.
Ela sorriu, piscando seus olhos cheios de rímel, “Quem é você? Você
se acha tão indispensável que sem você a terra vai parar de girar?”.
Sem palavras, caminhei em direção à porta para recolher minhas
coisas. Já era tarde, quase hora de terminar o dia. Eu sabia que Minna
era amiga de Ning Zhang, o proprietário da minha agência, ambos
vieram de Nanjing. A vaca definitivamente iria falar mal de mim para
aquele homem e me criaria dificuldades para encontrar outro trabalho.
De qualquer modo, eu tinha que manter as aparências e nunca imploraria para ela me readmitir.
Eu não comi o jantar e chorei por horas naquela noite. Mesmo que
eu não me arrependesse por ter falado o que me veio na cabeça. Como
eu previra, meu chefe Ning Zhang me chamou logo cedo na manhã
seguinte e me advertiu para não ir mais trabalhar.
POR DIVERSOS DIAS eu fiquei em casa assistindo TV. Eu gostava
dos programas coreanos e taiwaneses, mas como eu queria aprender
algum inglês, eu assistia a novelas, All my Children e General Hospital,
as quais eu mal podia entender. Usando um amigo como intérprete, eu
conversei com o Padre Lorenzo da nossa igreja sobre a minha demissão
do emprego. Ele dizia que eu não devia desanimar. “Deus irá prover, e
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você encontrará trabalho logo”, ele me assegurou. “Agora, você deveria
usar o seu tempo livre para cursar nossas aulas de inglês”.
Eu não respondi e pensei, mais fácil falar do que fazer. Na minha
idade, como eu poderia aprender uma outra língua do zero? Eu mal
podia lembrar a ordem do alfabeto. Se ao menos eu fosse trinta anos
mais nova!
Então, uma noite Ning Zhang ligou dizendo que gostaria que eu
tomasse conta do Sr. Sheng novamente. Por quê? Eu me perguntava.
Eles não mandaram outra cuidadora? Eu perguntei a ele: “O que aconteceu? Minna não está mais brava comigo?”.
“Não. Ela tem o pavio curto, você sabe disso. A verdade seja dita,
desde que você partiu, o pai dela frequentemente se recusa a comer,
emburrado como uma criança, então queremos que você volte”.
“O que faz você pensar que eu faria isso?”.
“Eu te conheço. Você tem um bom coração e nunca deixaria um
velho homem sofrer e passar fome por causa do seu orgulho”.
Isto era verdade, então eu concordei em recomeçar na manhã
seguinte. Ning Zhang me agradeceu e disse que me daria um aumento
no final do ano.
Minna estava bem amigável quando eu voltei ao trabalho. Seu pai
voltara a comer normalmente, ainda que ele não parasse de dizer que
me amava, tampouco de me tocar sempre que fosse possível. Não o
repreendi – apenas evitava o contato corporal, de modo que eu não
magoasse seus sentimentos novamente. Para ser justa, ele era obcecado,
mas inócuo. A sua doença o havia reduzido a essa ruína, caso contrário,
alguma mulher mais velha teria se casado com ele de bom grado. Sempre
que nós cruzávamos com um de seus amigos, nas ruas ou na biblioteca,
Sr. Sheng dizia que eu era sua namorada. Eu ficava envergonhada, mas
não me preocupava em corrigi-lo. Existem coisas que quanto mais você
tenta explicar mais complicadas se tornam. Eu ficava muda, dizendo a
mim mesma que estava apenas fazendo meu trabalho.
Vez ou outra ele se tornaria mais assertivo, tentando me fazer tocar
seus genitais enquanto eu o banhava, ou tentando acariciar os meus
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seios. Ele até mesmo começou a me chamar de “minha velha mulher”.
Irritada, eu puxei Minna em particular, “Nós temos que encontrar um
jeito de pará-lo, eu não poderei continuar trabalhando desta forma”.
“Tia Niu”, ela suspirou, “vamos ser francas. Eu estou terrivelmente
preocupada também. Diga, você nutre algum sentimento por meu pai?”.
“O que você quer dizer?” Eu estava perplexa.
“Eu digo, você o ama?”.
“Não, eu não o amo”.
Ela deu um leve sorriso, como se dissesse que nenhuma mulher admitiria abertamente sua afeição por um homem. Eu gostaria de enfatizar
que talvez gostasse dele um pouquinho, mas antes, ela falou: “E quanto a
casar-se com ele? Eu digo, um casamento somente na aparência”.
“Não diga bobagem. Como eu poderia me sustentar se eu não tiver
um emprego?”
“É por isso que eu disse apenas de aparências”.
Eu estava ainda mais desconcertada. “Eu não entendo”.
“Eu digo que você pode manter seu trabalho, mas viverá neste
apartamento fingindo ser a mulher dele. Só para o deixar contente e
tranquilo. Eu irei te pagar quatrocentos dólares por mês. Além disso,
você mantém o seu salário”.
“Bem, eu não tenho certeza”. Eu não conseguia entender onde ela
estava querendo chegar.
Ela me pressionou. “Funcionaria desta maneira – legalmente você
não seria a esposa dele. Nada irá mudar, a não ser que você passaria
mais tempo com ele aqui”.
“Eu não tenho que dividir a cama com ele?”.
“Definitivamente não. Você pode ter seu próprio quarto”. Ela apontou para o quartinho de depósitos, que embora miserável poderia se
transformar num ninho aconchegante.
“Então será um casamento apenas no nome?”.
“Exatamente”.
“Deixe-me pensar sobre isso, ok? Está bem?”.
“Claro, sem pressa”.
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Eu levei dois dias para decidir aceitar a oferta. Eu havia lembrado da
minha tia que aos quarenta havia se casado com um homem paraplégico
dezenove anos mais velho, do qual ela cuidou até a cova. Ela não sentia
nada por ele, mas ficou com pena. De certo modo, ela se sacrificou para
que sua família não passasse fome. Quando seu marido morreu, ela não
recebeu nenhuma herança dele – ele deixou a casa para um sobrinho.
Depois ela foi morar com a sua filha do primeiro casamento e agora
ainda morava com um primo meu numa pequena cidade à beira do
Rio Amarelo. Comparada com a minha tia eu estava em uma posição
muito melhor, ganhando salário para mim mesma. Eventualmente eu
me mudaria para a casa do Sr. Sheng, não precisaria mais alugar um
apartamento para mim e ainda economizaria os oitenta e dois dólares
do metrô. Quando contei a Minna que aceitaria, ela ficou encantada e
disse que eu era a bondade em pessoa.
Para a minha surpresa, ela voltou à tarde com uma folha de papel e
pediu que eu assinasse, dizendo que era uma homologação dos termos
que havíamos combinado. Eu não podia ler inglês, então, eu pedi para
ver uma versão em chinês. Eu devia ser cuidadosa ao assinar qualquer
coisa. Quatro anos atrás eu perdi todo o meu depósito quando deixei
Elmhurst para ir à Corona dividir um apartamento com uma amiga.
Meu antigo proprietário não me reembolsaria os setecentos dólares e
me mostraria o acordo assinado, dizendo que eu concordara em perder
o dinheiro caso me mudasse antes do fim do contrato.
Minna disse que ela reescreveria em chinês. Na manhã seguinte,
enquanto eu estava sentada ao lado do Sr. Sheng lendo alguns artigos
de jornal para ele, Minna apareceu e fez menção para que eu fosse
até a cozinha. Eu fui e ela me entregou o acordo. Eu o li e me senti
ultrajada. Parecia que eu estava planejando um golpe para despejar o
pai dela da casa. O último parágrafo dizia: “Para sintetizar, Jufen Niu
concorda que ela nunca deverá se casar com Jinping Sheng ,tampouco
aceitar qualquer herança dele. A união deverá permanecer nominal
para sempre”.
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Eu perguntei a Minna: “Então você pensa que eu sou uma oportunista, é? Se você não confia em mim, em primeiro lugar, porque se
preocupar com este casamento de fachada?”.
“Eu confio em você Tia Niu, mas estamos na América agora, onde
até o ar pode fazer as pessoas mudarem. Seria melhor se colocássemos
tudo na ponta do lápis de antemão. Para dizer a verdade, meu pai possui
dois apartamentos, comprados há muito tempo quando o bairro Real
Estate era barato, e precisamos prevenir qualquer problema que possa
aparecer em nosso caminho”.
“Eu nunca pensei que ele era rico, mas eu não me ‘casarei’ com ele,
ponto final”.
Ela fixou seus olhos felinos sobre mim e disse, “Então como você
pode continuar trabalhando aqui?”.
“Eu não irei.”
“Eu não pretendi ofendê-la, tia Niu. Nós não podemos deixar isto
em aberto e conversamos quando ambas estivermos tranquilas?”.
“Eu não acredito que eu possa me vender desta maneira. Eu não
o amo. Você sabe quanto é difícil para uma mulher se casar com um
homem que ela não ama.”
Ela sorriu maliciosamente. Eu sabia o que ela estava pensando. Para
uma mulher da minha idade, na oferta de um casamento, era estupidez levar o amor em consideração. De fato, o amor torna-se escasso à
medida que nos tornamos velhos. De qualquer modo, eu me enervei e
disse: “Este é o meu último dia”.
“Bem, talvez não”. Ela se virou e foi em direção à porta, seus quadris
sacudindo um pouco. Ela não deveria usar jeans, faz com que pareça
mais gorda.
NING ZHANG LIGOU no dia seguinte e me pediu para ir ao
seu escritório no centro da cidade para “uma conversa de coração para
coração”. Eu disse a ele que não me sentia confortável para confidenciar nada a um terceiro como ele. De fato, ele estava empurrando os
quarenta e parecia de meia idade, com a barriga saliente e uma mancha
brilhante na careca que parecia um lago na boca de um vulcão extinto.
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Ainda assim insistiu para que eu fosse vê-lo, então concordei em ir na
manhã seguinte.
Por um dia inteiro eu pensei no que dizer a ele. Eu deveria recusarme terminantemente a cuidar do Sr. Sheng? Eu não estava decidida,
afinal estava nas garras de Ning Zhang. Ele poderia me manter desempregada por meses e até mesmo anos. Eu deveria assinar aquele contrato
humilhante com Minna? Talvez não tivesse outra escolha a não ser
aceitá-lo. E quanto a pedir um aumento? Isto deve ser o único benefício
que eu poderia conseguir. Então eu decidi barganhar com o meu chefe
por um aumento de um dólar por hora.
Na manhã seguinte, antes de sair eu penteei o meu cabelo, em sua
maioria preto, e também dei um jeito no meu rosto. Eu estava deslumbrada ao me ver no espelho: maçãs do rosto salientes, olhos brilhantes
e uma boca em formato de castanha portuguesa. Se fosse vinte anos
mais nova, eu poderia ser uma modelo. Melhor ainda, eu tinha uma
cinturinha e um peito saliente. Eu sai de casa, determinada a confrontar meu patrão.
Na estação de metrô eu esbarrei em um espantalhinho de mulher
que levava um carrinho de bebê carregado de garrafas plásticas e latas
de alumínio. Sem dúvida alguma era chinesa e passava dos setenta.
Os sacos de pano segurando os recipientes estavam limpos e colocados
como malas de uma bagagem. Havia um banquinho dobrável enferrujado no topo da enorme carga. Do lado da pequena carroça estava pendurada uma bolsa de corda com uma garrafa de água e uma pequena
bolsa vermelha com um pingente vermelho, obviamente contendo o
almoço dela. Ainda havia três grandes sacos, atados entre si e separados
das demais cargas, contendo duas garrafas de coca-cola de dois litros.
Todas as pessoas da plataforma mantinham distância da mulher
de cabelos brancos, calça marrom e camiseta preta de mangas curtas,
estampada com hibiscos amarelos. Ela parecia pura e gentil, mas agitada, e prosseguia apertando as cordas atadas à carga. Um homem em
seus cinquenta anos passou por ela com duas garotinhas chacoalhando
seus cachos cor de mel. As crianças viraram embasbacadas com os sacos
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para a velha mulher, que acenou sua pequena mão e disse para elas
com um sorriso tímido, “Tchau, tchau”. Com os olhos arregalados,
nenhuma das garotas respondeu.
O trem chegou e descarregou os passageiros. Eu ajudei a velha
senhora a colocar suas coisas no vagão. Ela estava tão desesperada para
colocar suas coisas a bordo que ela nem me agradeceu depois da porta
se fechar deslizando. Ela estava ofegante. Quantas garrafas e latas ela
teria ali? Imaginei. Em torno de duzentas. Ela ficou ao lado da porta,
com medo de que não fosse capaz de descarregar todas as suas coisas
no seu destino. Vez ou outra a olhava, ainda que ninguém parecesse
notá-la. Ela deveria ser mais uma passageira de rotina com sua carga.
Um sentimento miserável foi brotando em mim. Eu me via naquela
mulher, murcha. Quantos anos mais eu poderia continuar trabalhando
como uma cuidadora que nunca tinha as horas extras pagas, ou algum
tipo de seguro saúde garantido, ou previdência? Eu seria capaz de
produzir o suficiente para reservar algum para meus anos de velhice?
Como eu suportaria a mim mesma quando eu já não pudesse atender
aos pacientes? Eu preciso fazer algo agora, cedo ou tarde eu acabarei
como aquela velhinha, fuçando o lixo para vender latas e garrafas a
uma empresa de reciclagem. Quanto mais eu pensava sobre ela, mais
desanimada ficava.
A mulher desceu no Junction Boulevard, arrastando sua carga cinco
vezes maior que seu corpo. As pessoas passavam por ela apressadamente,
e eu temia que ela fosse cair nas escadas se um dos seus sacos batesse
em algo. Seus frágeis tênis pareciam seguros apenas pelos fios e ela se
arrastava para longe, puxando seu carrinho de bebê enquanto os três
enormes sacos em suas costas estremeciam.
NING ZHANG ESTAVA feliz em me ver quando eu pisei em seu
escritório. “Sente-se, Jufen” ele disse “Alguma coisa para beber?”.
“Não”. Eu balancei minha cabeça e sentei-me em frente à sua mesa.
“Diga-me, como eu posso te convencer a voltar para Minna?”.
“Eu quero um plano de previdência”. Eu disse firmemente.
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Ele foi pego de surpresa, e depois sorriu “Você está brincando
comigo? Você sabe que a nossa agência não oferece isso e eu não posso
abrir um precedente”.
“Eu sei. É por isso que eu não irei mais cuidar do Sr. Sheng”.
“Mas ele deve morrer logo se ele continuar se recusando a comer”.
A piedade de repente apertou meu coração, mas eu me segurei e
disse: “Ele vai superar isso, ficará bem. No fim das contas ele não me
conhece tanto. Além disso, a memória dele é como um balde cheio de
buracos”.
“Você entende, se você não trabalhar para nós, também terá dificuldades em conseguir trabalho em outro lugar.”
“Eu estou decidida a, a partir de agora, apenas trabalhar para uma
empresa que me garanta um plano de previdência.”
“Isso significa que você precisa falar inglês.”
“Eu posso aprender.”
“Na sua idade? Me dê um tempo. Há quantos anos você está neste
país? Dez ou onze? Quantas sentenças em inglês você pode falar? Cinco
ou seis?”.
“A partir de agora eu viverei de uma maneira diferente. Se eu não
for capaz de falar inglês suficiente para trabalhar em uma empresa
sindicalizada então eu passarei fome e morrerei!”.
A determinação em minha voz deve tê-lo impressionado. Ele respirou fundo e disse, “Francamente, eu admiro isso, este jorro de espírito.
Ainda que você me faça sentir como um explorador capitalista, eu te
desejo a melhor das sortes. Se eu puder fazer algo por você, me avise”.
Quando eu sai do escritório dele o ar pulsava como as asas de uma
gaivota e estava tomado pelo aroma de churrasquinho grego. As árvores
eram verdes e cintilavam com as gotas de orvalho ao sol. Minha cabeça
era uma pequena luz com a emoção ainda surgindo em meu peito. Para
ser honesta, eu não estava certa se eu seria capaz de aprender suficientemente inglês para viver uma vida diferente, mas eu tenho que tentar.
Instruções para publicação em:
http://www.sinproguarulhos.org.br/

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