Glen Slater - Encontrando Deuses numa Era Titânica

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Glen Slater - Encontrando Deuses numa Era Titânica
Encontrando Deuses numa Era Titânica
Glen Slater
Tradução: Letícia Capriotti
Revisão: Camilo Ghorayeb
Publicado online em 01 de outubro de 2015
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Encontrando Deuses numa Era Titânica
Glen Slater
Como psicólogo, me preocupo com o modo como conduzimos nossas vidas, e
especialmente com as motivações e objetivos que moldam nossos pensamentos e
ações. Também me preocupo com o modo como imaginamos, como percebemos e
interpretamos os eventos, e como “fazemos histórias” de nossas vidas. Como psicólogo junguiano, entendo que esses fatores determinantes não são desenvolvidos somente durante a infância, nem são socialmente construídos ou biologicamente determinados. Ao invés disso, coloco minha ênfase nos padrões atemporais, universais que
C.G. Jung chamou de arquétipos, e que os antigos chamavam de deuses. Esses arquétipos, metaforicamente expressados como deuses, formam a fundação sobre a
qual eventos, imagens e ideias significativas se constroem.
Para ver o mundo psicologicamente, devo abordar questões de uma realidade
mais essencial que pertencem à teologia ou à metafísica. Apesar disso, devo prestar
atenção àqueles aspectos da vida que adquirem um valor tão alto ou exercem tanta
influência que determinam o modo como as pessoas e as culturas organizam sua existência. Se sou fenomenológico com relação a isso, isso é, se simplesmente presto
atenção sem explicações reducionistas e apenas descrevo o que vejo de um modo
poético em vez de técnico, devo concluir que os deuses ainda estão entre nós, dirigindo nossos pensamentos e ações todos os dias. Essa preferência pela poesia e
pelo mito foi pensada por Jung como sendo a preferência da própria psique. É o modo
como sempre imaginamos tais essências e valores.
Se estamos preparados para dar nossas vidas pelo amor, pela guerra ou pela
justiça, se nos dedicamos incansavelmente à beleza ou à invenção, ou se, ao final de
um dia cansativo, temos que tocar uma música ou ler sobre nosso herói favorito, então
os deuses certamente estão nos chamando. Eles expressam lugares de vitalidade que
direcionam nosso comportamento e esculpem a imaginação; eles são fontes de significado. Se passamos a semana inteira em um cubículo de um escritório, olhando
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para um computador, estivemos servindo Apolo e logo teremos que fazer um tributo
adequado a Dioniso, talvez encontrando um grupo num bar ou fazendo vigorosos exercícios aeróbicos. Muita civilização Ateniana cria um anseio por riachos e florestas
Artemisenses, por lugares onde ainda podemos nos perder um pouco e ser surpreendidos por Pan. Não importa que palavras ou imagens usemos, não podemos discutir
com essas necessidades psíquicas. Ainda assim, devemos perceber que a linguagem
dos deuses expressa mais adequadamente o caráter impessoal e por vezes cruel de
tais padrões. Ignorar os deuses sufoca a alma e leva à doença e ao conflito.
Hoje quero falar com vocês sobre o que acontece com esses princípios arquetípicos, esses fatores organizadores, a esses deuses de nossa existência, em sociedades que estão cada vez mais dessensibilizadas com relação às profundezas da
vida e à natureza das coisas no mundo. O que acontece quando nos afastamos do
próprio tecido da existência e começamos a viver de modos abstratos e autômatos. Da
mesma forma como os deuses devem ser entendidos como metáforas dos valores
mais profundos, os Titãs, que são os velhos inimigos dos Deuses Olímpicos, representam forças que constantemente ameaçam deslocar tais valores e a orientação almada
que oferecem. Essas forças titânicas são predominantes nas partes industrializadas do
mundo. E acho que primeiro devemos dedicar algum tempo nomeando essas forças
monstruosas para então saber onde e como encontrar os deuses.
Carl Kerényi nos diz que os Titãs foram os primeiros deuses, conhecidos principalmente por seus excessos – particularmente orgulho e violência excessivos. Uma
vez que Zeus escapou de Cronos e mais tarde libertou seus irmãos da barriga de seu
pai, ele liderou uma guerra contra os Titãs, resultando no banimento dessas forças
primordiais – banidos ao Tártaro uma prisão profunda no mundo subterrâneo, abaixo
do mar. A partir daí o termo “Titânico” designava aqueles que se opunham aos ideais e
princípios da tradição homérica. Os construtores de barcos deviam ter consciência
disso; a partir da perspectiva dos deuses, qualquer coisa Titânica precisa ser afundada. Falando psicologicamente, o Titanismo é aquela propensão dentro de cada um de
nós a regredir a um nível mais baixo de impulsos crus, indiferenciados que, ao mesmo
tempo, nos inflam com um senso ilimitado ou sem delineamento. Na sociedade, o Ti3
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tanismo está presente sempre que motivações exploratórias e o pensamento
mecanicista se apoderam de valores culturais e humanos.
Rafael López-Pedraza escreve que “a civilização ocidental está se tornando
cada vez mais Titânica”1. Ele relaciona o titanismo ao intelectualismo e ao jargão – ou
ao “abismo entre o conhecimento e aquilo que sabe dentro de nós: a alma”2. Em nossa
Era da Computação, isso se relaciona ao excesso de informação e à ausência de reflexão e entendimento. López-Pedraza enfatiza que este excesso sem limites nasce ao
lado do vazio, como se compulsivamente tentássemos preencher o espaço onde um
senso mais forte dos deuses estaria. Consumismo e materialismo, que indicam um excesso Titânico, são governados por esse vazio – por nossas almas famintas.
Esse vazio e fome não é consciente na maior parte do tempo porque o entorpecimento e a distração são parte de um estado Titânico. López-Pedraza sugere que o
tédio é outro traço titânico, que ele descreve como a parte de nós que “escolhe dormir
perpetuamente de olhos abertos”3. Dissociação e sensacionalismo cercam o vazio
Titânico, que então é compensado pelo excesso Titânico.
O filósofo Vilém Flusser, que lecionou na Universidade de São Paulo, em sua
coleção de ensaios Pós-História, fala da ascensão do “vazio” e de uma perda de fé em
nós mesmos4. Ele diz que esse estado transforma “todos os fenômenos, incluindo o
fenômeno humano, em... objeto de conhecimento e manipulação”5. Ele descreve um
mundo em que “o conhecimento científico bloqueia o conhecimento de qualquer outro
tipo”6, onde “o conhecimento devora a sabedoria”7. Esse tipo de conhecimento expulsa os valores. Apesar não ter usado este termo, eu acho que Flusser está descrevendo
o Titanismo, especialmente quando argumenta que na cultura pós-industrial tendemos
1
López-Pedraza, R. (1990). Cultural Anxiety. Daimon Verlag: Einsiedeln, Switzerland. p. 13.
2
Ibid. p. 55.
3
Ibid. p. 26.
4
Flusser, V. (2013). Post-History. Minneapolis: Univocal, pp. 3-4.
5
Ibid. p. 9.
6
Ibid. p. 39
7
Ibid. p. 41.
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a nos tornar funcionários operando de acordo com programas – o que ele chama de
“robotização da humanidade”8. Ele escreve sobre o modo como nossos dispositivos
nos programam, degenerando nossos níveis intelectuais, estéticos e políticos9.
Podemos resumir muitas dessas descrições com a palavra “abstrato”. O Titanismo nos retira de nossa natureza profunda, levando a realidades fabricadas e virtuais. Hoje falamos em hiper-realidade, virtualidade e a “precessão dos simulacros” de
Baudrillard. Nosso sentido do mundo real e da vida real está tão completamente impregnado pela onipresença dos computadores e da conectividade que estamos sempre em outro lugar, nunca com nós mesmos. Estamos abstraídos de nós mesmos. Certa vez olhei por uma janela de um hotel em Osaka no Japão e não consegui ver onde o
chão estava. É assim que a psique de muitas pessoas parece estar. O chão da existência desapareceu por trás de todos os tipos de fabricação. Nessa realidade abstrata, fabricada, esquecemos as raízes dos pensamentos e ideias nos sonhos, fantasias e inspirações. Esquecemos que a mente tem suas raízes nos instintos.
Apesar do Titanismo não ser idêntico à tecnologia em si, ele está presente no
mundo de hoje como o absolutismo tecnológico, ou o que Morozov chama de “solucionismo tecnológico”. Flusser teria chamado de “tecnocracia”. Sob essa perspectiva,
a computação e o racionalismo resolverão todos os problemas humanos e as corporações gigantescas vão inovar criando vidas melhores para todos nós. A World Wide
Web facilitará isso, especialmente a globalização, que nos faz sentir conectados a
algo grande, mas muito abstrato. A autora de livros sobre tecnologia Sherry Turkle diz
que nossas vidas no ciberespaço fazem com que nos sintamos “sozinhos juntos”10.
Podemos ter centenas de “amigos” no Facebook – o excesso – e ainda assim nos sentirmos isolados – o vazio.
Uma expressão extrema dessa tendência pode ser encontrada no movimento
conhecido como “Pós-humanismo” ou “Trans-humanismo”, que apoia a ideia futurista
de pessoas se fundindo com computadores. Esse movimento vislumbra o momento
8
Ibid. p. 127.
9
Ibid. p. 124.
10
Turkle, S. (2011). Alone Together. New York: Basic Books.
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em que a inteligência artificial, por fim, nos supera e domina a civilização. O Pós-humanismo está se tornando extremamente influente em empresas de tecnologia gigantes como o Google. É uma fantasia Titânica, construída sobre uma falta de sentido
de limites – além do corpo, além da mortalidade, além da natureza em si. Essa visão
do amanhã reflete um sentido crescente do abstrato, da imagem da vida no espaço
cibernético, na tecno-realidade, com toda a realidade sensual tornando-se algo do
passado.
James Hillman começa sua obra-prima, Re-Vendo a Psicologia, dizendo que o
Titanismo é “uma ameaça muito maior que o Narcisismo”11, e necessita “da maior das
contenções”12. Em outro lugar, ele brinca com a raiz da palavra Titã, que significa “esticar, estender, espalhar e estirar ou precipitar”. Ele escreve: “o stress é um sintoma
titânico. Ele se refere aos limites do corpo e da alma tentando conter a falta de limite
Titânica”13. Ele nos diz que “na ausência dos deuses, as coisas inflam a uma enormidade; um sinal da ausência dos deuses é o colossal... Em outras palavras, sem os
deuses, os Titãs retornam”14. Deuses, símbolos e imaginação dão forma à energia instintiva dentro de nós, mas em sua ausência essa energia instintiva é liberada e retorna de modo sem limites. Poder, ambição e prazer egoísta substituem valores mais refinados e diferenciados.
O Titanismo é avassalador, sufocante e eu provavelmente sufoquei vocês ao
falar dele. Mas é muito importante sentirmos e nomearmos isso, pois ele forma o pano
de fundo vívido para encontrarmos os deuses em nossa era atual. Identificar os aspectos Titânicos de nossas vidas e das sociedades em que vivemos imediatamente desperta aqueles lugares em nós mesmos e nas culturas à nossa volta onde os padrões
divinos estão tentando vir para a superfície. O monstro encolhe quando o encaramos
de frente, quando o vemos do jeito que é e sentimos seu peso opressivo. Os deuses
11
Hillman, J. (1992). Revisioning Psychology. San Francisco: Harper Collins, p. xii.
12
Ibid. p. xi
Hillman, J. (2007). “ . . . And Huge is Ugly.” In Mythic Figures. Uniform Edition Vol. 6.1. Woodstock, CT:
Spring Publications, p. 147.
13
14
Ibid. p. 146.
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podem reaparecer se estivermos preparados para olhar para aquilo que obscurece
nossa visão deles.
Maneiras de aliviar a coerção do Titanismo foram oferecidas pelos autores que
já mencionei. López-Pedraza contrasta o Titanismo ao Dionisíaco, e sugere que “estarmos enraizados nas emoções” e “vivendo a vida como destino” destruiriam as
tendências Titânicas. Ele escreve que “a noção tão conhecida de que os gregos eram
os mais arcaicos dos civilizados e os mais civilizados dos arcaicos tem seu maior significado em Dioniso”15. Isso quer dizer que Dioniso é convidado quando nos lembramos do passado, dos ancestrais e recontamos velhas histórias. Dioniso é o deus do
teatro e do vinho, ligado a festivais comunitários, rituais e expressões artísticas catárticas. Acredito que no Brasil vocês tenham um sentido saudável de Dioniso. Um sentido
profundo, enraizado no corpo e que nos guia nas profundezas da imaginação. Mas
vocês podem precisar de mais do que samba e carnaval.
Dioniso também é o deus da loucura, uma característica que se torna mais importante quanto mais Dioniso é reprimido. Nos inclinarmos à loucura de hoje em dia,
ouvirmos nossas ansiedades e depressões para escutar o que estão dizendo sobre o
modo como vivemos é abrir mais espaço para Dioniso. Como Jung disse tão sucintamente, “os deuses se tornaram doenças”16. Quando acrescentamos a esse insight outro entendimento de Jung – o de que os sintomas da psique têm um propósito escondido – podemos abordar a doença como se houvesse um deus dentro dela, isto é, algum valor ou alguma dinâmica necessária que vem para corrigir uma unilateralidade
individual ou cultural. Essa noção de um valor escondido em uma ferida é conhecida
por muitas culturas indígenas. Muitas vezes hoje em dia tentamos superar sintomas
sem dar ouvidos a seus comentários sobre nossas atitudes e modos de vida, e dessa
forma trocamos um presente divino pelo torpor e automatismo Titânicos. A loucura é
mais incapacitante e destrutiva quando tentamos fugir dela. Mas a loucura pode ser os
deuses tentando atravessar o titanismo opressivo.
15
López-Pedraza, R. (2000). Dionysus in Exile. Wilmette, IL: Chiron Publications, p. 14.
16
Jung, C. G. CW 13, par. 54.
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A loucura às vezes nos está dizendo que a alma não está sendo alimentada e
que a imaginação está constringida. Um dos meios mais diretos de desbancar o Titanismo é apoiar as artes e as humanidades, pois neles encontramos imagens e idéias
que transformam impulsos e motivações crus em expressões culturais. Aqui encontramos a vida emocional de uma comunidade e, na arte visionária, a vida emocional
das culturas e épocas. Em uma peça, museu, concerto ou em um bom filme ou você
encontrará os deuses ou se pegará ansiando por eles. A arte e a literatura modernas e
pós-modernas muitas vezes invocam os deuses espelhando sua ausência cultural. Há
uma educação do coração que acontece quando se está envolvido com essas experiências, um refinamento da imaginação, especialmente se pudermos refletir sobre essas experiências e compartilhá-las em um nível do sentimento. Lembramos junto com
López-Pedraza, no hino Órfico que fala do duplo nascimento de Dioniso, que depois
que os Titãs o desmembraram foi o coração que permaneceu e foi levado por Atena a
Zeus, que o comeu e pariu um novo Dioniso17.
Essa ligação com o coração nos ajuda a compreender a recomendação de
James Hillman para combater o Titanismo, que é “re-despertar o sentido de alma no
mundo”, cultivar uma “resposta estética” que combata a feiura e encoraja a beleza e
confia em emoções como “desejo, indignação, medo e vergonha”. Ele descreve essas
emoções como “a urgência dos deuses sentida em nossas vidas corpóreas”18. Podemos dizer que essa “urgência sentida” nos alerta para o que é sagrado e o que vale a
pena ser protegido – percebendo as coisas pequenas e o impacto das coisas
grandes. Às vezes olhamos para o mundo ou as ações dos outros e nos pegamos
dizendo ou sentindo, “Não há nada sagrado?” Essa é uma resposta espontânea ao Titanismo, nos alertando para o sentimento de que algum significado ou valor está fora
de lugar por conta da pressa ou da falta de cuidado ou da veneração de tudo o que é
novo.
Essa questão do coração que sobrevive ao ataque Titânico e permite o renascimento de Dioniso, sugere que o papel central de Eros, ou amor, especialmente
17
P. 3.
18
Hillman, (2007), p. 154.
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na forma pela qual o erotismo se vincula com outros e com o mundo abre um acesso
ao entorpecimento e à robotização. Uma máquina nunca amará e um programa nunca
ensinará amor. Flusser escreve, “eu acredito que esta arte do amor, numa situação que
sabemos ser absurda, é a única resposta de qual dispomos para enfrentar o abismo
que se abriu debaixo de nossos pés”19.
Este não é um amor simplesmente pessoal ou relacional, mas o amor por
princípios e ideias, pela natureza e pelas coisas. É ouvir o coração, seja quando está
lamentando ou apaixonado. É a capacidade para a empatia, que pode começar simplesmente por estar presente.
Nós ficamos perto do amor, pois onde há amor a imaginação vem à vida, e os
deuses retornam a nós primeiramente por meio dos caminhos da imaginação. Preparar
um belo jantar ou criar um jardim é, primeiro de tudo, um trabalho da imaginação, assim como criar calor e conforto ao arrumar um cômodo, compor um poema em resposta a um momento que não sai de nós, ou escrever uma carta a um jornal para expressar nosso descontentamento. Estes são engajamentos imaginativos nos quais algum
deus exige ser reconhecido. Com imagens vem possibilidade e movimento, o que derruba a repetição, a monotonia e as fórmulas Titânicas. Se nos mantivermos presentes e
receptivos, um gesto pouco usual ou um som encantador ou um olhar de um estranho
podem se tornar uma imagem que alimenta a alma, nos dando um pequeno vislumbre
da divindade no meio de um dia Titânico.
Amor e imagens, e o amor pelas imagens acontece em eventos específicos e
padrões na vida, e isto deve ser adicionado à nossa percepção dos deuses como formas personificadas. Jung entendeu que os princípios divinos são evidentes em processos e momentos especiais também. Iniciações, epifanias, descidas, sacrifícios e
passagens por limiares também são “deuses” de nossa existência, sem os quais a
alma não pode ser sustentada. O senso de destino ou chamado, o sentimento de
Duende (ter alma, uma resposta física ou emocional à arte. Duende é o espírito da
evocação), o espanto e a dor são todos ocorrências arquetípicas – janelas para o divino. Estas ocorrências precisam que estejamos presentes para elas para que aden19
Flusser, p. 158.
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tremos completamente a vida e façamos alma. López-Pedraza escreve sobre o
Duende como um avivador da alma, ou um senso de renascimento que vem com as
imagens engajadoras de perda ou morte. Encontramos este sentimento cultivado nas
canções de amor mais comoventes e quando abraçamos inteiramente a divagação e a
solidão. Estudos recentes sugerem que o sentimento de reverência é uma das mais
poderosas experiências que curam. É um sentimento que não podemos fabricar, então
ele vem como um presente dos deuses, um momento no qual somos tocados por algo
maior que nós mesmos.
O traço comum em todas essas reflexões é a redescoberta de uma forma imanente de divindade – um senso do sagrado nessa vida imediata, corporificada. A visão
pagã nos ajuda a ver que esses deuses não residem em textos ou igrejas, e que eles
não precisam de profetas ou sacerdotes; esses deuses são percebidos por meio de
reflexão e de sua permanência consciente em nossas vidas. Eles não precisam que se
acredite neles pois eles são auto-evidentes na forma de eventos e no colorido das respostas emocionais. Obviamente não estamos falando aqui de um retorno à consciência pré-moderna ou a um mundo mitologizado; estamos falando de uma recuperação
dos deuses através de uma consciência do que nos move, nos chama, e gera significado e propósito.
Qualquer momento da vida que nos arrebata como sendo poético contém algum pedacinho dos deuses. E, da mesma maneira, toda vez que um momento poético
é colocado de lado por uma explicação racional negligenciamos essas pequenas visitas. Aqui podemos estimar a noção de Vico de que a metáfora é um mito resumido. As
metáforas nos tiram do logos e nos colocam no mythos, lembrando-nos de que enxergar os deuses muitas vezes é só uma questão de ajustar nossa perspectiva. James
Hillman construiu seu entendimento psicológico a partir deste princípio, argumentando
que encontramos alma na vida ao elaborar o modo como vemos as coisas. O titanismo
pode assim estar relacionado a pontos de vista formulados e ideológicos que nos impedem de ver ou imaginar de modo almado. Frequentemente, isto é um contraste entre uma intelectualização seca, controladora e um cosmos vívido, personificado no
qual os eventos e experiências se recusam a ser reduzidos a teorias e sistemas. Em tal
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cosmologia, a existência humana se encontra significativamente engajada com o pano
de fundo arquetípico misterioso da vida – uma conversa com os deuses. Aqui a visão
da vida que prioriza a utilidade e a eficiência, fazendo-nos meros funcionários de um
vasto sistema ou máquina, torna-se insustentável.
A retomada da consciência sensual o despertar da possibilidade imaginativa
que permeiam essas noções que compartilho com vocês, correspondem a dois campos que acredito responderem melhor ao crescimento do Titanismo: a fenomenologia
e a psicologia profunda. A fenomenologia nos ajuda a ver que fundamentalmente não
conseguimos abstrair pensamentos e ideias a partir de contextos incorporados no
mundo. A fenomenologia nos lembra que a biologia molecular requer um olhar através
do microscópio, que a anatomia requer abrir um cadáver e que a engenharia começa
com planos e plantas. O conhecimento em todos esses campos está incorporado em
contextos específicos, em instâncias e suposições específicas que não consideram a
amplitude e profundidade da experiência vivida. Da mesma forma, a psicologia profunda nos ajuda a entender que existem pensamentos e emoções inconscientes que
moldam as ideias conscientes. Complexos parentais moldam nossos relacionamentos
adultos; eventos traumáticos sustentam medos e ansiedades; impulsos religiosos e
sexuais retornam em formas disfarçadas. A mente que domina a matéria é o lema
Titânico, dividindo o mundo em dualismos cartesianos que não podem ser mantidos
no entendimento da fenomenologia e da psicologia profunda. Ambos os campos instigam uma atenção plena que não está separada da carne.
Quando, no fim do século dezenove, Friedrich Nietzsche declarou a morte de
Deus, e quando o grande filósofo do século vinte Martin Heidegger disse que vivemos
em uma “época dos deuses que fugiram e do deus que está vindo”20, ambos entenderam que não era o impulso religioso ou espiritual em si que havia sido banido, mas o
modo pelo qual as pessoas imaginavam de forma religiosa, ou buscavam a espiritualidade. Para Nietzsche, a metafísica cristã tinha que ser desmantelada; para Heidegger,
tinha que haver a retomada de significado nesse mundo das coisas e do ser. Para
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Quoted in Avens, R. (1984), The New Gnosis. Woodstock, CT: Spring Publications, p. 2
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Jung, o divino tinha que ser descoberto como uma realidade interior, isto é, na experiência psicológica individual imediata ao invés de no campo da crença coletiva.
Os Titãs, parece, se aproveitaram dessa época intermediária, em que a orientação espiritual não nos sustenta mais e ainda ansiamos por algo que vá além de nossas visões de mundo personalistas e redutivas. Em outras palavras, na falta de imagens e símbolos que nos mantêm ancorados a valores e princípios, lutamos para
conectar significativamente a mente racional com as profundezas primordiais da existência do ser. O caráter maníaco, ideológico e programado do titanismo que nos cerca cresce a partir dessa situação inerente.
A tarefa, como podemos definir a partir de tais entendimentos, é manter um olho
na ausência de significado e no sentimento de desorientação, e o outro naqueles lugares onde vitalidade e orientação almada são evidentes. A tarefa é perceber onde
aparece a luz de dentro da escuridão. Temos que evitar tentativas de cobrir essa escuridão com luz superficial, e temos que tomar cuidado com programas amplos e sistemas idealizados para o destino e a salvação humana. Estar desperto e ao mesmo
tempo incerto é o chamado religioso da nossa era.
Agora deixem-me levar esses pensamentos a um fechamento:
Quando imaginamos a existência contemporânea na forma de deuses precisando superar forças Titânicas, isto imediatamente re-enquadra o que está acontecendo hoje na perspectiva de um teatro divino dentro do qual insight e visão podem
fazer toda a diferença. Os deuses precisam de nossa consciência para entrar de forma significativa na vida. Os Titãs nos prendem com suas garras por meio da inconsciência, através de nossa recusa a ouvir nossos corpos e corações. Eles prosperam
na dissociação, na pressa, e na distração cega. Quanto mais entorpecidos estamos,
mais vivemos no automático, mais permitimos que a mente coletiva eclipse os eventos
singulares e únicos de nossas vidas, e mais espaço abrimos para os gigantes se
apoderarem. É com isso que as grandes corporações, os políticos e a indústria do entretenimento contam – consumo impensado, paranoia, abuso do poder e ideais enlatados.
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Os deuses retornam e os Titãs recuam quando começamos a prestar atenção
às pequenas coisas – àqueles lugares onde o sentimento é estimulado. Os deuses retornam quando diminuímos a velocidade e refletimos, relembramos, revisamos. Podemos nos lembrar de algumas das raízes de significado do termo religião, que são
“considerar atentamente” ou “re-conectar”. Jung mudou estes dois significados para
definir a religião como “uma consideração cuidadosa e observação de certos fatores
dinâmicos” (1938, p.5). De forma importante, essa consideração cuidadosa do que
nos move também impede que fiquemos inconscientemente possuídos por um fator
dinâmico ou padrão arquetípico, mantendo-nos conectados ao panteão das complexidades humanas e culturais.
Os deuses também nos dão um senso de fronteiras e limites e nossa consciência deles regula a unilateralidade e o comportamento extremo. Apolo pode ser o deus
da razão, mas ele também é o deus dos sonhos e profecias, então o desonramos com
nosso racionalismo unilateral. O frenesi hermético, que às vezes caracteriza nossa era
da informação, sugere que um relacionamento próximo a Hermes e Hestia, deusa do
lar e da lareira, foi negligenciado. Este par está por trás de todas as nossas discussões sobre smartphones à mesa do jantar e refeições à frente do computador na
vida doméstica. Os deuses nos ajudam a saber quando parar, mas os Titãs sabem
apenas continuar, crescer, comer, acumular, aumentando o tamanho de tudo.
A tendência a identificar-se com um deus ou um aspecto de um deus, que pode
se tornar fanatismo ou megalomania, pode ser um dos perigos psicológicos de se viver em culturas monoteístas, onde há uma falta da imaginação politeísta. Uma consciência dos muitos deuses, dos muitos valores e das relações regulatórias entre eles
impede tal arrogância . Essa consciência nos impede de desvalorizar e reprimir partes
de nossa herança psicológica e cultural. Assim, sempre que adotamos alguma verdade absoluta ou solução sistemática para a existência humana, podemos ter certeza
que estamos ofendendo algum deus ou princípio arquetípico, ou negando alguma
parte de nossa história ou caráter. Os deuses nos lembram das complexidades e nuances, enquanto os Titãs querem homogeneizar e padronizar.
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É nossa consciência, nossa percepção que mantém os deuses vivos – um refinamento da sensibilidade. Essa consciência toma forma dentro do caldeirão de algumas percepções chaves: Que o novo nunca está longe do velho, que a arrogância e o
excesso levam inevitavelmente ao sacrifício e à limitação, que não podemos em última
instância separar o intelecto das emoções ou a mente do corpo, que o pensamento
racional só vai nos levar até um certo ponto e que o mundo material é cheio de possibilidades metafóricas e essências espirituais. Tais perspectivas nutrem o senso de viver em um cosmos que está aqui para resposta e diálogo, não para manipulação e controle. É por isso que López-Pedraza se refere à mitologia grega como uma oferta “da
possibilidade constante da Renascença na psique”21. Nossa trabalho está no modo
como imaginamos e em nossa sensibilidade aos valores essenciais. Essas capacidades tornam-se a base de como vivemos. Esta é o difícil mas o crucial trabalho de
encontrar os deuses em uma era Titânica.
Tradução: Letícia Capriotti
Revisão: Camilo Ghorayeb
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21
López-Pedraza, Cultural Anxiety, p. 11.
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