CULTURA POP JAPONESA EM BELÉM

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CULTURA POP JAPONESA EM BELÉM
CULTURA
POP JAPONESA
EM BELÉM
Raphael Freire e Felipe Cortez
62 TUCUNDUBA
Muito vermelho, flores coloridas, karaokê...
tradicionalmente, o Japão é conhecido por
expressar sua cultura brilhantemente colorida
por meio de comidas diferentes, quimonos
de cores vibrantes, teatro com personagens
típicos. Mas durante a Segunda Guerra Mundial
a vida dos japoneses mudou, como se houvesse
desaparecido toda a tradição e encantamento
da sociedade japonesa. O impulso e o desejo de
expressar seus estilos e características que lhes
são próprios foram reprimidos.
Os japoneses viviam em uma sociedade
onde os valores individuais e os padrões de
homogeneidade eram impostos como justificativa
para alcançar a supremacia econômica e
tecnológica, na tentativa de reerguer o país que
havia sido destruído durante a guerra. Em casa,
na escola ou entre amigos, a regra era simples:
aceitar e seguir os mandamentos impostos pelo
grupo. Com quase todos os prazeres individuais
negados, a nação perseguia seus objetivos
em concordância harmoniosa e sempre com
pensamento coletivo, deixando de lado a riqueza
cultural e a variedade individual.
Cansados dessa uniformização e padronização, surgem diversos movimentos com
o objetivo de buscar a individualidade e
expressão dos sentimentos mais profundos.
Um dos precursores é o J-Rock ou rock japonês,
movimento musical de contracultura que surgiu
com a intenção de romper com as convenções.
“Os jovens japoneses não tinham imagem
definidas deles mesmos. Por não saberem,
ainda, pensar como indivíduos, eles queriam se
libertar das semelhanças, abraçando o diferente,
o exótico”, diz Ken Ohira, autor de 10 livros
sobre psiquiatria de adolescentes. Todo esse
desespero pela busca da diferenciação do todo é
perfeitamente visto por meio de um movimento
visual chamado de Visual Kei ou simplesmente
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VK. Antes de tratarmos mais a fundo sobre o
Visual Kei, uma coisa deve ser esclarecida: todo
VK pertence ao J-Rock, mas nem todas as bandas
adotam o estilo VK. Ambos estão estreitamente
relacionados.
Se você está lendo essa matéria e chegou
até aqui conseguindo perceber que VK e J-Rock
não são a mesma coisa, parabéns! Mas se você
ainda não entendeu essa diferença, a hora é
agora. Imagine que você é um adolescente
japonês que está cansado de seguir as normas
que lhe são impostas e de se vestir quase igual a
todo mundo. Por ser um estilo musical popular
no Japão, você ouve J-Rock e gosta bastante
da mistura de sons. Depois fica sabendo o
que compõe todo esse movimento e começa
a se vestir como os integrantes das bandas de
J-Rock. Pronto você já é um VK! A partir de agora,
você passa a usar roupas muito chamativas,
maquiagem bastante carregada, muitas vezes
aposta nas tentativas de copiar modelos de
personagens de animes...Segundo a psicóloga
Sandra Bastos, tipos de comportamentos como
este ocorrem principalmente devido a uma fase
conhecida como polarização, onde o desvio de
atenção do âmbito familiar é transferido para o
social. “O adolescente começa a descobrir uma
outra visão de mundo, ele está deixando de
priorizar o núcleo familiar e começa a priorizar
o núcleo social e as relações interpessoais”,
explica.
Com essa transformação o adolescente
procura se apoiar em alguém que o entenda.
“Quando começa a ter os primeiros embates
com a família, o grupo social funciona como
um suporte para esta fase de insegurança,
descoberta e transição. O grupo é compreensivo,
acha que ele está certo. A necessidade de se
sentir igual, de ser aprovado em um grupo,
pode ser motivada por diversos fatores. Todo
adolescente quer chamar atenção, com tanto
que não chame atenção sozinho”, explica Sandra.
Essa busca pela individualidade do grupo muitas
vezes é alvo de preconceitos e estranheza,
principalmente pelos mais tradicionalistas.“Já
aconteceu de eu estar andando na rua e uma
senhora desviar o caminho para não passar
perto de mim”, conta a promoter e empresária
Cris Vasconcelos, 30, dona da banca Cristal
Mistical e também VK.
Existem bandas que não abusam de roupas
e maquiagens elaboradas e performances
extravagantes – seguem uma tendência
mais ocidental na maneira de se vestir –, mas
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tocam J-Rock; entre elas estão as bandas 175
R, L’Arc~en~Ciel, Sex Machineguns, Wyse,
BUCK-TICK. “Pro adolescente ‘o mundo é
o seu limite’. O processo de rebeldia, de ser
diferente, de querer aparecer é passageiro”,
justifica a psicóloga. Esse estilo musical é bem
difícil de ser classificado, pois cada banda
possui a sua maneira de tocar e nem sempre
seguem o mesmo estilo o tempo todo. As
bandas de J-Rock sofrem influência de outras
derivações do rock, punk e metal. Quando
grupos musicais resolvem mudar a sonoridade
das músicas, eles não param por aí: mudam
todo o aparato, o interesse e o pensamento.
Quando questionados sobre a qualidade das
músicas, os jovens entrevistados nessa matéria
disseram que elas retratam a realidade da nossa
sociedade. “A música não é para ser entendida,
mas para ser sentida”, conta Giovanna Sovano,
17, VK desde os 14 e gosta de ser chamada de
Gika. Em Belém existem cinco bandas (Otaku
Band, X Japan Cover, Shinob 88, Kuroi Usaghi
e Hasenga) que se dedicam a tocar no estilo
do rock japonês e que também são adeptas do
Visual Kei, as bandas geralmente tocam em
reuniões feitas pelos próprios integrantes ou
em eventos como o Japan Rock Festival, que
está sendo organizado por Cris.
VK’S DE BELÉM BUSCAM
IDENTIDADE PRÓPRIA
O movimento que mudou a cara do rock
japonês a partir da década de 80 surgiu em
Belém no seio de outro fenômeno da cultura
nipônica, o universo Otaku. Em 2004, um amante
dos desenhos japoneses chamado Jaime Netto,
16, plantou as sementes do Visual Kei na Cidade
das Mangueiras. Ele percebeu que, apesar dos
eventos direcionados para os fãs de desenhos
japoneses já apresentarem vídeos-clipe das
bandas visuais de J-Rock, ninguém via nisso a
inspiração para se vestir como estes artistas,
como até então só se fazia com personagens de
desenhos. Jaime diz que sempre foi “alucinado”
por cultura japonesa. Sempre participou das
festas promovidas pela comunidade nipônica
local e buscou ler tudo o que lhe caia nas mãos
sobre a cultura oriental. Até que um dia, numa
revista de variedades que o consulado japonês
do Pará distribui, tinha uma matéria sobre
Harajuku. “Eu achei curioso e resolvi pesquisar
mais na internet. Nessa época, em meados
de 2003, eu nem sabia que havia eventos de
Rege, celebridade
entre os VK’s de Belém
Os garotos também ousam
com roupas femininas
Um dos locais preferidos dos VK’s é o
Complexo Feliz Luzitânia, na Cidade Velha
Algumas garotas preferem
o visual mais masculino
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anime em Belém e que faziam cosplays. Daí, no
ano seguinte, quando fui ao primeiro evento, vi
pessoas fazendo cosplay e clipes de J-Rock como
atrações do evento, mas ninguém fazia VK”.
No Animazon, realizado no Taikai de 2005
(tradicional encontro de otakus em Belém),
Jaime, acompanhado da amiga de escola
Giovanna Sovano, usava roupas pretas e rasgadas
e maquiagens feitas pelos próprios adolescentes,
que lembravam os VK’s da década de 90. “Já
no nosso segundo VK nos preocupamos em
mandar fazer as roupas em costureiras e tivemos
mais cuidado com cabelo e maquiagem. Algum
tempo depois, o garoto adotou um pseudônimo,
como faz todo VK. Seu novo nome era Hooki.
“Hooki pode significar várias coisas: abandono,
rebeldia, diferente e vassoura. Naquela época
o que eu queria mesmo eram os três primeiros
significados”. Vale lembrar que todo artista do
cenário J-Rock/Visual Kei adota um pseudônimo.
Jaime continua dando exemplo do guitarrista da
banda The Gazette, conhecido como Aoi (significa
“Azul”), que, na verdade, se chama Shiroyama
Yuu, um nome comum no Japão. Inspirado nisso,
muitos fãs adotam pseudônimos também.
Hoje, os eventos que reúnem os otakus da
cidade recebem VK’s aos montes. Entretanto,
também há encontros exclusivos para esses
grupos, que ocorrem geralmente sob as formas
de reuniões fechadas em locais específicos –
casas, salões alugados e praças reservadas – e
de passeios do tipo Harajuku, em que os VK’s
desfilam, em grupo, por lugares públicos como
um shopping, uma praça ou um bosque. Já nas
reuniões fechadas, os VK’s ouvem e conversam
sobre J-Rock, cantam músicas no karaokê,
brincam, para não deixar nada passar em branco,
fotografam. Aliás, é a fotografia que permite
o contato de outros otakus com o universo do
VK através de sites de relacionamento como o
Orkut, ferramenta virtual já enraizada na cultura
comunicacional dessa turma.
Mas o Visual Kei não está ligado apenas
à aparência. “Visual Kei não é só pose, é uma
atitude. Não adianta querer fazer um figurino
bem feito se a pessoa não conhecer o J-Rock e as
bandas. VK não é uma tribo, é um movimento”,
diz Reges Dantas, 18, vocalista de três bandas de
música japonesa de Belém, também animador de
encontros, cosplayer e, além de tudo isso, o rapaz
ainda se dedica em ser o hair design dos amigos
VK’s. Isso mesmo, Reges prepara os cabelos dos
membros do grupo , além de conhecer técnicas
de maquiagem.
Jaime Neto é o precursor do movimento
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A turma de VK’s se reúne todo fim de semana em pontos turísticos da cidade
OTAKU, É?
“O seu clã” ou “a sua família” são os
significados originais da palavra japonesa
otaku. Porém, no Japão da década de 80, Otaku
virou sinônimo de fanático ou maníaco. A
popularização da palavra entre os fãs de anime
ocorreu por volta de 1989, quando o cronista
Akio Nakamori utilizou a palavra em um de
seus livros, “A era de M”, cujo enredo descreve
uma série de assassinatos praticados por um
viciado em animes e mangás pornográficos.
A publicação contribuiu para disseminar uma
imagem pejorativa do otaku, que passou
a sugerir o portador de qualquer tipo de
obsessão dentro e fora de Nihon. O viciado em
videogames, por exemplo, é um g–mu otaku.
Já um pasokon otaku seria um maníaco por
computadores. Anime e mangá otakus são os
fãs do universo dos desenhos japoneses.
Em Belém, o fenômeno otaku já se encontra
consolidado, mas reservado a um pequeno
público, composto por fãs que buscam trocar
informações sobre seus desenhos favoritos e
acabam se tornando grandes amigos, formando
ramificadas redes de relações. Uma delas pode
ser observada no Orkut, mais precisamente na
comunidade Animazon. “A gente não conhece
todo mundo, mas essas redes de relações
permitem que a gente possa divulgar os
eventos”, diz Arcanjo – na verdade Alexandre
– otaku de 24 anos que continua firme no que
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gosta e faz cara feia para quem ainda acredita
que anime é coisa de criança ou adolescente. “A
divulgação do primeiro Tomodachi, realizado
em março de 2008, por exemplo, foi feita
apenas por Orkut. Assim, conseguimos reunir
no Cefet-PA cerca de 700 otakus”, conta
Arcanjo. Os principais eventos de Belém são o
‘Otaku no Matsuri’, ‘TomodachiCon’, ‘Animazon
no Taikai’ e o ‘Animazon Connection’ (os dois
últimos se diferenciam apenas pelos grupos
organizadores).
Nesses eventos, os otakus basicamente
fazem concursos de cosplay, onde o vencedor é
quem imita a atitude e se veste mais fielmente
como os seus personagens de desenho favoritos;
cantam e dançam os animesongs ou outras
músicas asiáticas que gostam. Além disso,
jogam games como Super Smash Brothers e
The King of Fighters e também conhecem novos
otakus e trocam idéias sobre os velhos e novos
animes da praça.
HARAJUKU: O OUTRO LADO DO ESPELHO
Belém não possui um “point” específico
para o Visual Kei. Normalmente, nossos VK’s se
reúnem em locais como Parque da Residência
e Casa das Onze Janelas, onde, dizem com
unanimidade, ficam a salvo de “olhares
maldosos”. Entretanto, no berço do movimento
músico-visual japonês, há um bairro que acolhe
todos os fins de semana, não apenas os VK’s, mas
todas as tribos de Nihon. Quem chega de trem
à província de Shibuya, em Tóquio, pela linha
Yamanote e dá os primeiros passos para fora da
estação Harajuku pode se sentir transportado
para outra dimensão da moda alternativa,
onde seres, aparentemente jovens e humanos,
desfilam com o que há de mais inimaginável
na arte de se vestir. Adolescentes às portas da
vida adulta, perseguidores do reconhecimento
à sua singularidade. Bairro tradicional da moda
underground japonesa, Harajuku, herdeiro do
nome da estação que circunda, é, aos domingos,
um dos maiores palcos da imaginação oriental.
Grupos de adolescentes com estilos em
comum transitam pelas ruas, consomem nas
lojas das grandes grifes, conhecem outros
jovens e observam peças que poderão usar de
um jeito diferente do observado no próximo
domingo. Garotas de ar infantil posam loiras e
bronzeadas para as lentes curiosas de amigos e
turistas. Lolitas, góticas ou elegantes, observam
sorridentes os artistas de rua não menos
exuberantes, rodeado de cosplays de bandas
de J-Rock e Visual Kei. Muitos flashes, vídeos
gravados, apresentações de novas bandas e a
tecnologia “made in japan” aflora a todo minuto
em cada esquina.
No fim da tarde de domingo, começa a
metamorfose. O que eram seres de intrigante
e, muitas vezes, apaixonante aparência, entram
em casulos – geralmente os banheiros de
lanchonetes como McDonald’s e Burger King –
para tornar às suas formas originais. Harajuku
recebe todos os domingos de três a quatro
mil jovens que, não raro, passaram a semana
ralando na escola, dando duro no trabalho e se
comportando bem no ambiente familiar para,
naquele domingo, provar sua capacidade de
superar a moda da semana anterior, desenhando,
produzindo e usando suas próprias peças.
CRIATIVIDADE E GRANA
Incorporar os figurinos do Visual Kei não
é tarefa para qualquer um. Se a criatividade é
fundamental para a confecção da peça, a verba
para continuar produzindo é indispensável.
O processo de criação é demorado e exige
paciência. Basicamente, segue as seguintes
etapas:
1) Escolha do visual: pode ser cosplay do
integrante de uma banda ou mais uma criação
pessoal
2) Pesquisa dos materiais: peças e assessórios
que vão compor o figurino.
3) Testes e pesquisas de cabelo e maquiagem.
4) Teste de tecidos, linhas e assessórios com a
costureira.
5) finalização do figurino.
Ter paciência ajuda muito na escolha dos
elementos adequados a cada composição, já
que é quase impossível alcançar o resultado
ideal num primeiro instante. Feira pós-moderna,
a internet é um dos locais mais indicados para o
início das pesquisas de construção do figurino.
Sites de venda são as principais barracas para
consulta.
Encontrar uma costureira paciente e com
habilidade de cópia suficiente para produzir
exatamente o que se pede é outra tarefa difícil,
mas não impossível. É com essa profissional
que eles trocam informações diariamente em
busca da manga de corte reto do casaco para
um visual aristocrático, por exemplo. Diferente
do cosplay, em que a necessidade de alcançar
uma semelhança extrema com o original é o
que conta, a criação do VK é livre e permite o
reaproveitamento de peças. E, em se tratando
de Visual Kei, o importante é agregar o máximo
de informações e inovação. Botas velhas
com salto plataforma são exemplos de peças
aproveitadas por adeptos de vários estilos VK.
O preço das roupas, assessórios e cosméticos
varia bastante. Existem visuais em que se gasta
30 reais – com maquiagem e alguns detalhes –
e outros que custam 10 vezes mais. Não existe
um preço fixo, pois cada criação é única. Mas
a construção sempre exige um investimento.
“As roupas do meu primeiro visual eu tinha em
casa. Já o segundo, em que fiz cosplay do Mana
(integrante da banda Malice Mizer) em Beast
of Blood, tive que pegar várias fotos e levar na
costureira”, diz Giovanna Sovano, que fez seu
primeiro VK em 2005.
Quem faz VK em Belém, então, é quem
possui, além da criatividade, recursos para a
empreitada. Dinheiro esse que vem do trabalho
próprio – como fazem muitos jovens em
Harajuku para alimentar seus hobbies – ou dos
pais. É possível obter ajuda para a produção de
figurinos com quem entende disso em Belém.
Membros da comunidade Visual Kei Pará, do
Orkut, ensinam onde pesquisar e indicam
costureiras que já trabalharam com VK e
cosplay.
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