DO INATISMO AO INTERACIONISMO

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DO INATISMO AO INTERACIONISMO
DO INATISMO AO INTERACIONISMO: A AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM E A
APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESCRITA INFLUENCIADA PELAS TIC
Lucilene Lisboa de Lizi- UDESC
Alessandra Simões Trindadeii- UDESC
RESUMO: O objetivo é investigar como o conhecimento linguístico que a criança traz do
período de aquisição da linguagem é considerado pelo professor alfabetizador e verificar a
influência exercida pelas TIC no processo de aprendizagem da língua escrita, bem como se
essa influência é percebida pelo professor. Neste primeiro momento, procurou-se verificar
em que uma teoria de aquisição de linguagem é relevante para que o professor conheça o
estado linguístico com o qual a criança chega na escola. Paralelo a isso, fez-se
fundamental estabelecer uma distinção entre o processo natural de aquisição de linguagem
e aprendizagem da língua escrita, necessariamente mediada. A investigação baseou-se em
revisão bibliográfica, coleta de dados documentais de crianças em processo de
aprendizagem da escrita e ainda em aplicação de perguntas a professores alfabetizadores.
Palavras-Chave: Aquisição de linguagem; Aprendizagem da escrita; TIC.
ABSTRACT: The objective is to investigate how the linguistic knowledge that children bring
from the language acquisition time is considered by the literacy teachers and to verify the
influence exercised by the information and communication technology (ITC) on the written
language learning process, as well if this influence is felt by the teacher. At the first moment,
it was verified how a language acquisition theory is relevant for the teacher to know the
linguistic state with which the children enters the school. In parallel, it was essential to
stablish a distinction between the natural process of the language acquisition and written
language learning, necessarily mediated. The research was based on bibliographical review,
collection of documentary data of children in the writing learning process and questionnaries
applied to literacy teachers.
Keywords: writing language learning; linguistics theories; information and communication
technologies
1 Introdução
O presente artigo tem como finalidade investigar como ocorre o processo de
aprendizagem da língua escrita diante das tecnologias de informação e
comunicação (TIC), procurando verificar como elas influenciam na aprendizagem da
escrita e ainda de que modo essa influência é percebida pelos professores nas
séries iniciais.
Na primeira seção, consideraremos o processo de aquisição da linguagem a
partir do modelo inatista chomskyano. Diante dessa perspectiva, é essencial levar os
Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 estudos aquisicionistas ao conhecimento do professor para que ele entenda como a
criança chega à escola em termos de estruturação linguística e desmistificar
entendimentos errôneos sobre a concepção inatista de Chomsky.
A segunda seção abordará a aprendizagem da escrita. É essencial ressaltar
que embora no aspecto estritamente linguístico sigamos a teoria inatista, no tocante
à aprendizagem da escrita, o aporte teórico é de base interacionista. Isso porque ao
pensarmos a aprendizagem da escrita como parte de um processo mais amplo de
aprendizagem, é necessário considerar fatores como a intencionalidade, a
mediação, a intervenção do outro e os propósitos do ato de escrever, o que não
ocorre na fase de aquisição da linguagem. Assim,
entendemos que a ótica
interacionista é mais adequada à compreensão do fenômeno de aprendizagem da
escrita.
Nessa esteira, investigaremos a hipótese de influência das tecnologias da
informação e comunicação (TIC) na aprendizagem da escrita, uma vez que o
contato dos(as) estudantes com as TIC é cada vez mais comum. Para testar a
hipótese, um dos fatores mais evidentes a serem levados em conta se refere à
peculiaridade da linguagem digital , cujas características serão descritas na seção
2.2.
Amparadas teoricamente, partiremos para a análise dos dados coletados até
o momento, considerando-se que na época da redação deste artigo a pesquisa
permanece em andamento.
Coletaram-se dados de professores alfabetizadores do curso de Pedagogia
por meio de um trabalho de disciplina da área da Linguagem e de crianças em
diferentes etapas de aprendizagem da escrita. A discussão sobre essas categorias
de dados será objeto da quarta seção.
Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 106 2 Inatismo e Aquisição da linguagem
Ao assumir uma classe de alfabetização, o professor deve estar
instrumentalizado com as teorias linguísticas, para que não ocorram equívocos na
condução de seu trabalho, daí porque é fundamental o conhecimento sobre o estado
linguístico com o qual a criança chega à escola e a importância de se partir de uma
concepção teórica de aquisição da linguagem. Historicamente, o behaviorismo
predominou na linguística e nas ciências em geral até a primeira metade do século
XX. Esse modelo interpretava a linguagem humana como resposta do organismo
aos estímulos recebidos pelo meio que, quando repetidos, se convertiam em hábitos
e determinavam o comportamento linguístico do indivíduo.(KENEDY, p. 127-128)
Em outras palavras, de acordo com os ambientalistas, a aprendizagem linguística se
dava mediante o trinômio “estímulo > resposta > reforço” (CEZARIO E
MARTELOTTA, 2009, p.208)Em 1957, Noam Chomsky, professor do Instituto de
Tecnologia de Massaschussets (MIT), ousou seguir o contrafluxo do ambientalismo
até então vigente e publicou o livro Estruturas sintáticas, no qual lançou as bases da
linguística gerativista (KENEDDY, p.127)
Com o gerativismo, as línguas deixam de ser interpretadas como um
comportamento socialmente condicionado e passam a ser analisadas como uma
faculdade mental natural. A morada da linguagem passa a ser a mente humana
(KENEDY, 2009, p. 129)
Kenedy (2009, p. 128) relata que em 1959, o mesmo Chomsky apresentou
uma resenha sobre a obra Comportamento verbal, de B. F. Skinner, principal teórico
do behaviorismo, na qual critica a visão comportamentalista de linguagem.
Já em Chomsky (1965), o linguista chama a atenção para o fato de um
indivíduo humano sempre agir criativamente no uso da linguagem, isto é, a todo
momento, os seres humanos estão construindo frases novas e inéditas, ou seja,
jamais ditas antes pelo próprio falante que as produziu ou por qualquer outro
indivíduo. Por isso, todos os falantes são criativos, desde os analfabetos até os
Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 107 autores dos clássicos da literatura, já que todos criam infinitamente frases novas,
das mais simples
e despretensiosas às mais elaboradas e eruditas. (KENEDY,
2009, p.128). Chomsky defende que o ser humano é dotado de um mecanismo
biológico inato para a aquisição da linguagem, cujo funcionamento não dependia
diretamente do meio, colocando, assim, em xeque a tese dos ambientalistas. Essa
disposição inata para a competência linguística é o que ficou
conhecido como
faculdade da linguagem (KENEDY, 2009, p. 129)
Graças a esse conhecimento mental, inscrito na gramática internalizada,
somos capazes de adquirir qualquer língua humana. Nesse sentido, nenhum adulto
ou mesmo criança que já passou pelo período de aquisição da linguagem precisa
informar ao bebê que está adquirindo que as línguas possuem uma estrutura em
que contém Sujeito, Verbo, Objeto; do mesmo modo que ninguém precisa ensinar a
criança que a sua língua apresenta sujeito na primeira posição da sentença,
conhecimentos que fazem parte do mecanismo biológico do ser humano
denominado pela linguística gerativa de “gramática universal”.
[...]Chomsky afirma que existe uma gramática universal, que é uma matriz
biológica responsável pela grande semelhança entre as línguas e pela
rapidez com que as crianças aprendem a falar. Segundo essa concepção, o
homem já nasce provido de uma grande variedade de conhecimentos
linguísticos e não linguísticos.[...] No caso da aquisição da linguagem, o
meio cumpriria o papel de acionar o dispositivo de aquisição da língua.
(CEZARIO e MARTELOTTA, 2009, p. 208)
A Gramática Universal (GU) possibilita que, salvo alguma patologia, todo indivíduo
seja capaz de aquirir uma língua. Qual língua será adquirida estará condicionada ao
input fornecido pela cultura em que esse sujeito está inserido. Para dar conta de
explicar o funcionamento da GU, estudos aquisicionistas formularam a teoria dos
princípios e parâmetros, a saber:
Os gerativistas procuram descrever a gramática universal (GU) composta
por princípios, os quais determinam a estrutura comum a todas as línguas e
limitam as variações entre elas, e por parâmetros, que são as variações
possíveis que as línguas podem ter. (CEZARIO e MARTELOTTA, 2009, p.
208 )
Segundo o modelo gerativista chomskyano, o meio seria tão somente
responsável por fornecer os dados linguísticos necessários ao desenvolvimento da
Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 108 linguagem (inputs) que, quando recebidos pelo indivíduo, seriam organizados e
decodificados conforme uma gramática interna universal, transformando-se em
palavras ou dados de saída. É necessário deixar claro que o input não se confunde
com mediação, já que não pressupõe a interação, do mesmo modo que não
pressupõe intencionalidade na voz do outro no sentido de ensinar as estruturas
linguísticas de sua língua para a criança.
A Aquisição da Linguagem se preocupa apenas com o que Chomsky
denomina língua I (interna). A língua–E (externa), relacionada à performance, ao uso
que o falante faz nas situações de interação cotidianas, não é o objeto de estudos
da teoria aquisicionista. No tocante à língua-E, assume-se a perspectiva
interacionista para a aprendizagem da escrita.
Apesar dos diversos modelos inatistas existentes, o chomskyano ainda se mostra
como a melhor hipótese a ser adotada:
[...]Há uma precisão no inatismo chomskyano: não é qualquer conhecimento
inato, não tem a ver com cognição geral extralinguística ou sistema de
crenças, mas é puro e tão somente conhecimento linguístico de uma dada
natureza, bastante abstrata, aliás. LOPES, 2011, p. 240
A partir desse esclarecimentos, podemos identificar o que é de fato possível
de se atribuir à teoria chomskyana e o que dela podemos nos apropirar por entender
ser de fundamental relevância para a compreensão do estágio linguístico inicial da
criança, bem como entender de que forma ela chega à escola em termos de
conhecimentos linguísticos.
Os estudos aquisicionistas têm mostrado evidências de que a criança que
adentra pela primeira vez uma sala de alfabetização já apresenta um conhecimento
profundo e sólido acerca de sua língua materna. Esses estudos atestam que a
criança conhece o funcionamento de sua língua, ainda que a escola mormente
ignore esse conhecimento.
Com o tempo, outros estudiosos se debruçaram sobre a teoria chomskyana de
aquisição da linguagem, fazendo com que a hipótese inatista ganhasse novos
contornos.
Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 109 3 A aprendizagem da escrita
3.1 Aprendizagem da escrita sob o enfoque interacionista
Se a criança adquire a a língua oral maneira inata, o mesmo não acontece
com a língua escrita. Essa competência necessita aprendizagem, ensino, treino,
mediação e fundamentalmente intencionalidade no ato de ensinar. Do mesmo modo
acontece com a leitura.
Nesse sentido, nos alinhamos com Antunes (2011, p.42) ao entender que a
língua, mais apropriadamente a língua-E (externa)1, possui função interacionista,
funcional e discursiva, cuja atualização acontece em virtude das situações de
comunicação entre os indivíduos no cenário social, por meio das práticas
discursivas:
Assumimos, portanto, que o núcleo central da presente discussão é a concepção
interacionista, funcional e discursiva da língua, da qual deriva o princípio geral de
que a língua só se atualiza a serviço da comunicação intersubjetiva, em situações de
atuação social e através de práticas discursivas, materializadas em textos orais e
escritos.
O interacionismo, como o próprio nome diz, pressupõe a interação entre
sujeitos, situação em que alguém escolhe algo para dizer a outrem, usando a língua
como veículo mediador da comunicação.
Assim, numa inter-ação (“ação entre”), o que cada um faz depende daquilo
que o outro faz também: a iniciativa de um é regulada pelas condições do
outro, e toda decisão leva em conta essas condições.(ANTUNES, 2011, p.
45)
Um dos pilares do socio-interacionismo, Mikhail
Bakhtin, esclarece a natureza
dessa interação pela via da linguagem ao definir enunciação:
a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente
organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser
substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o
locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse
interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou
não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao
1
Adotaremos aqui a distinção de Chomsky entre Língua-­‐I e Língua-­‐E. Essa língua-­‐E está relacionada ao uso e aos fatores que a influenciam. Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 110 locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.).
Não pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com
tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado. Se algumas vezes
temos a pretensão de pensar e de exprimir-nos urbi et orbi, na realidade é
claro que vemos “a cidade e o mundo” através do prisma do meio social
concreto que nos engloba. (BAKHTIN, 2006, p.114-115)
Ou seja: o enunciado se constrói sobre o que se diz, para quem se diz e de
acordo com a situação social em que as palavras estão sendo utilizadas. É nesse
sentido, que concebemos a escrita como atividade interativa ou, de acordo com
Antunes (2011, p.45), uma atividade de expressão cujo objetivo é interagir com o
outro.
O ensino da língua materna pela escola, contudo, está longe de se ancorar
nos mencionados estudos linguísticos, tornando-se uma grande fonte de
preocupação para pedagogos e linguistas afetos a esse campo. Diferentes
pesquisas têm constatado o fracasso escolar e buscado subsídios teóricos que
possam ser aplicados no desenvolvimento de uma prática pedagógica mais eficaz
no tocante à aprendizagem da escrita. Com efeito, constata-se a desconsideração
do conhecimento linguístico trazido pelo aluno da fase de aquisição da linguagem
como postura adotada habitualmente pela maioria das instituições escolares.
As variedades linguísticas existentes entre os diversos sujeitos é outra
característica ignorada pela escola, devido à valorização exacerbada do ensino da
norma padrão e de suas regras. Assim, o ambiente escolar deixa de ser um espaço
utilizado para a ampliação do repertório linguístico dos estudantes, para se tornar
um local de encenação de perguntas previsíveis e respostas esperadas, na qual o
estudante é avaliado pela sua adaptação ou não ao sistema vigente. O ensino da
escrita centrado na gramática normativa acaba deixando em segundo plano a
função interacionista da linguagem.
A produção de textos com o intuito exclusivo de verificar a aprendizagem de
regras gramaticais é comum no ambiente escolar, transformando a escrita em uma
atividade mecânica e despropositada. É de se ressaltar que, diferente do que
acontece na escola, a escrita é utilizada no dia a dia com intenções sociais
Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 111 específicas e carregadas de sentido. Eis o entendimento de Antunes (2011) sobre a
funcionalidade da escrita:
[...]Toda escrita responde a um propósito funcional qualquer, isto é,
possibilita a realização de alguma atividade sociocomunicativa entre as
pessoas e está inevitavelmente em relação com os diversos contextos
sociais em que essas pessoas atuam . [...]
Em suma, socialmente não existe a escrita “para nada”, “para não dizer”, “
para não ser ato de linguagem”. Daí porque não existe, em nenhum grupo
social, a escrita de palavras ou frases soltas, de frases inventadas, de
textos sem propósito, sem a clara e inequívoca definição de sua razão de
ser. (ANTUNES, 2011, p. 48-49)
É necessário que pensemos que aliado ao aspecto funcional da escrita está o
aspecto relacionado à forma de apresentação e de realização dessa escrita,
conforme salienta Antunes (2011, p.48). Do mesmo modo que não há fala uniforme,
que se realize da mesma maneira em função das diferentes situações de uso, a
produção escrita se realiza de formas diferentes, sempre atrelada à função que
exerce.
Assim como se admite que não existe fala uniforme, realizada de forma
igual em diferentes situações e usos, também a produção de textos escritos
toma formas diferentes, conforme as diferentes funções que pretende
cumprir.
Essas diferenças vão implicar diferenças de gêneros de texto, isto é,
diferenças na forma de as diferentes partes do texto se distribuírem, se
organizarem e se apresentarem sobre o papel (ANTUNES, 2011, p. 48-49).
Tal como acontece com a fala, há de se considerar as diferentes formas de
escrita de acordo com a exigência da situação social determinada, ou seja, que a
escrita varia em virtude das diferentes funções cumpre, dando origem aos diferentes
gêneros discursivos. Antunes (2011, p. 48) diz que “a escrita varia, na sua forma,
em decorrência das diferenças de função que se propõe a cumprir e,
consequentemente, em decorrência dos diferentes gêneros em que se realiza. Logo,
para o sucesso na aprendizagem, é essencial que o aluno saiba, desde o primeiro
contato com a escrita, que escrevemos afinal para um interlocutor e em virtude da
função que essa escrita exerce, dentro de um determinado gênero discursivo, o qual
apresenta características mais ou menos estáveis.
Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 112 Além disso, hoje temos de atentar para um outro aspecto que pode se
relacionar com essa aprendizagem, a saber, o uso das tecnologias da informação e
da comunicação.
3.2 Aprendizagem da escrita e as TIC
No atual contexto tecnológico e sócio-cultural, no qual muitas crianças têm
acesso a dispositivos eletrônicos que utilizam gêneros discursivos peculiares,
indaga-se a respeito da influência dessa linguagem característica na aprendizagem
da escrita.
Crystal (2001 apud MARCUSCHI 2004, p. 18-19) destaca três aspectos da
linguagem utilizada na Internet:
(1)
do ponto de vista dos usos da linguagem, temos umas pontuação
minimalista, uma ortografia um tanto bizarra, abundância de siglas,
abreviaturas nada convencionais, estruturas frasais pouco ortodoxas e uma
escrita semi-alfabética;
(2)
do ponto de vista da natureza enunciativa dessa linguagem, integramse mais semioses do que usualmente, tendo em vista a natureza do meio
com participação mais intensa e menos pessoal, surgindo a
hiperpessoalidade;
(3)
do ponto de vista dos gêneros realizados, a Internet transmuta de
maneira bastante complexa gêneros existentes, desenvolve alguns
realmente novos e mescla vários outros.
O fato inconteste é que a Internet e todos os gêneros a ela ligados são
eventos textuais fundamentalmente baseados na escrita. (MARCUSCHI,
2004, p.19)
Outras características da linguagem digital são elencadas por Santos (2010):
A linguagem digital também se caracteriza pela redução das palavras
(cortes realizadas em alguns vocábulos, tendo como princípio norteador o
som eles evocam, a exemplo de q, vc, blz, kra, kd para indicar,
respectivamente, que, você, beleza, cara, cadê). Além disso, distingue-se
pela marcação de sílabas tônicas através do uso da letra h no final do
vocábulo (a exemplo de soh para indicar só), por modificações na
representação convencional dos sons nasais (como, por exemplo, o uso de
naum e baum para representar os vocábulos não e bom) e pelo uso de
gírias. (SANTOS, 2010, p. 8)
Admitindo-se a posição de Marcuschi (2004) de que a Internet é baseada na
escrita e reconhecendo o contato cada vez mais comum de crianças com as TIC,
tendemos a acreditar que a linguagem da Internet se fará sentir em algum momento
da aprendizagem da escrita. Essa hipótese será verificada através de dados de
Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 113 crianças em fases diversas de aprendizagem da escrita, conforme as seções
seguintes.
4 Dos dados coletados até o momento
4.1 Metodologia
Nesta fase inicial de testagem, foram colhidos dados de duas categorias de
informantes distintas: crianças aprendendo a escrever e professores das séries
iniciais do ensino fundamental.
Tarallo
(2000)
apresenta
o
pesquisador-observador
como
uma
das
possibilidades metodológicas para a coleta de dados, de modo a preservar a
naturalidade da situação da comunicação. Outra recomendação do autor para
manter a situação natural é que o pesquisador seja sutil na formulação das questões
cujas respostas pretende obter.
Assim, a solução encontrada para a coleta de dados dos professores
alfabetizadores foi mediante a inserção da pergunta cuja resposta se buscava –
como havia se dado o processo de aprendizagem da escrita dos próprios
professores – entre outras questões de um trabalho de disciplina na área de estudos
da Linguagem do Curso de Pedagogia a Distância.
A atividade consistia na leitura do livro “O menino que aprendeu a ver”, de
Ruth Rocha. Realizada a leitura, foram propostas algumas questões para reflexão
sobre de alfabetização e letramento relacionadas à história. Em seguida, solicitou-se
que os(as) estudantes elaborassem um ensaio curto relatando como havia sido o
seu processo de alfabetização.
Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 114 Como amostra, selecionaram-se 22 trabalhos realizados em grupos de até
três componentes. A análise qualiquantitativa se mostrou mais adequada para esta
categoria, uma vez que a amostragem é suficientemente representativa para a
generalização dos resultados.
Em outra frente, foram objeto de análise qualitativa as produções escritas
espontaneamente, em contexto de ludicidade, de crianças em diferentes fases de
aprendizagem da escrita.
A fim de verificar a influência das TIC durante a aprendizagem da escrita,
optou-se por dados documentais dos acervos das pesquisadoras, consistentes em
produções textuais espontâneas de crianças entre quatro e onze anos de idade. Isto
porque a não-interferência do pesquisador no cenário de coleta dos dados tende a
permitir maior espontaneidade e, por consequência, maior fidedignidade dos dados
à realidade.
4.2 Uma breve análise dos dados de professores alfabetizadores
O grupo analisado relatou que a aprendizagem da escrita se deu mediante o
uso de cartilhas, predominantemente pelo método fônico; pouca preocupação da
escola e dos(as) professores(as) alfabetizadores(as) em mostrar as funcionalidades
da leitura e escrita e ausência de reconhecimento dos saberes do aluno no processo
de alfabetização. A menção a exercícios repetitivos e ao uso de palavras
desvinculadas da realidade dos alfabetizandos induz a considerar a possibilidade de
ausência de contextualização das leituras, além da quase nula relevância atribuída
ao letramento.
não temos muitas lembranças sobre o período da alfabetização, pois como
coloca uma colega provavelmente apagamos esta passagem de nossa
memória, pois não deve ter sido um fato muito bom, já que não ficou
registrado em nossa mente . (frase longa Mas o pouco que lembramos é
que tínhamos cartilhas onde se usava o modo de repetição, onde
pronunciávamos os sons das letras e de memorizar (decorar), conhecido
como método fônico, partindo das letras (grafemas) e dos sons (fonemas)
Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 115 para saber as letras, as silabas e formar palavras e assim as frases. (Grupo
5)
Esses foram os resultados de um teste inicial, aplicado para examinarmos
como se deu a aprendizagem da escrita dos professores alfabetizadores. A pesquisa
será aprofundada a partir da continuidade da coleta de dados, que ocorrerá
mediante a aplicação ampla dos questionários aos alunos-professores.
4.3 Analisando dados de crianças em diferentes estágios de aprendizagem da
escrita
Nesta etapa da pesquisa, não se verificou influência das TIC’s nos dados de
uma criança em idade pré-escolar, em fase inicial de aprendizagem da escrita
(fig.1):
Figura 1: Escrita de criança em idade pré-escolar
Fonte: Acervo das pesquisadoras
Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 116 Na figura 1, observam-se algumas características mencionadas por Lemle
(2011), como “confusão a respeito da unidade palavra” (LEMLE, 2011, p.14) (“erau”
em vez de “era”; “iela”, no lugar de “e ela”), omissão de letras (“tina”, em vez de
“tinha”), “falhas decorrentes do conhecimento ainda inseguro do formato de cada
letra” (LEMLE, 2011, p.39-42) (“N” ‘espelhado’ em “tina”/tinha e “menina”), escrita
como transcrição fonética da fala (“veiz”, no lugar de “vez”)
Em contrapartida, o dado indica noção de organização da escrita no espaço da
página (da direita para a esquerda, de cima para baixo) e ideia de funcionalidade da
escrita (no caso, contar uma história).
Nos textos da amostra analisada pelas pesquisadoras, não se verificou
qualquer influência das TIC nesse processo inicial de aprendizagem da escrita.
Já em uma fase mais avançada, na escrita de uma criança do 4º ano do
ensino fundamental, conforme figura 2, o cenário é distinto:
Figura 2: Escrita de criança do 4º ano do ensino fundamental
Fonte: Acervo das pesquisadoras
No dado acima (figura 2), verifica-se a abreviatura da palavra “beijos” escrita
sem as vogais (“bjs”), conforme o padrão da linguagem digital. Apenas em dados em
Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 117 que a criança já está em processo mais avançado de apropriação da escrita que é
possível verificar a influência das TIC nesse aprendizado, o que leva a acreditar que
as tecnologias da informação e da comunicação devem ser de algum modo
consideradas pela escola, especificamente pelos professores, no processo de
ensino e aprendizagem da escrita.
O professor deve se instrumentalizar para lidar com essas formas de escrita e
não desconsiderar a escrita da criança, ou mesmo considerá-la como “erro”. É
necessário que o professor reconheça essa forma de escrita como legítima e própria
de um gênero discursivo que circula no suporte internet, como no exemplo que
encontramos acima na abreviação da palavra “beijos”. Trata-se de um bilhete cuja
forma de despedida se apresenta com característica de escrita de internet, de um
gênero discursivo que possibilita o uso de uma linguagem mais informal.
5 Considerações finais
O presente artigo não consiste na apresentação final da pesquisa, mas
apenas de parte dela.
Conforme exposto, no aspecto estritamente linguístico, optamos pelo inatismo
chomskyano. Entretanto, ao aplicarmos os estudos da Linguística na atividade
pedagógica de aprendizagem da língua escrita, entendemos que o interacionismo
fornece um suporte capaz de embasar teoricamente a prática profissional dos(as)
prefessores(as) alfabetizadores(as). Entendemos que ambas as teorias, Inatismo e
Interacionismo, são compatíveis e harmônicas no que toca à aprendizagem da
língua, já que tratam de fenômenos distintos: a primeira, da aquisição da língua
materna (ou, no dizer de Chomsky, da língua-I); a segunda, da aprendizagem da
forma escrita dessa mesma língua (língua-E, pela ótica inatista).
É na aprendizagem da escrita, necessariamente mediada, que as TIC podem
influenciar, devido, entre outros fatores, à sua linguagem característica.
Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 118 Em fase inicial de apropriação da escrita pela criança não se verificou, ao menos
nos dados escritos, influência visível das TIC.
No entanto, quando analisamos dados de escrita de crianças de 4º e 5º ano,
encontramos características de uma escrita influenciada pelas TIC, mais
especificamente de uma escrita de bate-papo. Os gêneros discursivos que circulam
na internet, assim, estão extrapolando o ambiente virtual, incorporando-se a outros
gêneros em outros suportes.
Para considerar as TIC como mais um fator de influência na aprendizagem da
escrita, o professor precisa ter domínio das teorias relacionadas à aquisição e
aprendizagem da língua. Da mesma forma que deve estar instrumentalizado com as
teorias linguísticas, também precisa estar amparado por conhecimentos relativos às
mudanças tecnológicas que podem vir a se refletir na sua prática pedagógica.
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Lucilene Lisboa de Liz
Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora da
Universidade Estadual de Santa Catarina, coordenadora do projeto de pesquisa
“Aprendizagem da língua escrita: interfaces com as TIC”. E-mail:[email protected]
ii Alessandra Simões Trindade
Bolsista de Iniciação Científica- Edital PIC & DTI -2012. Acadêmica de Pedagogia da
Universidade Estadual de Santa Catarina. Bolsista PROBIC de Iniciação Científica. E-mail:
[email protected]
Anais do IX Encontro do Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – 01 e 02 de outubro/2013 Florianópolis – CEART/UDESC – ISSN: 2176-­‐1566 120