o anticlericalismo dos jornais la protesta humana e a lanterna

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o anticlericalismo dos jornais la protesta humana e a lanterna
O ANTICLERICALISMO DOS JORNAIS LA PROTESTA HUMANA E A
LANTERNA ATRAVÉS DOS USOS DAS MATRIZES DISCURSIVAS: RACIONALILUMINISTA E SIMBÓLICO-DRAMÁTICO (1897-1904)
André Rodrigues
Graduando pela UEM
Resumo: Este trabalho trata-se de uma análise comparativa entre dois jornais
anarquistas, o brasileiro A Lanterna e o argentino La Protesta Humana. Buscamos
compreender o discurso anticlerical presente nesses jornais em seus primeiros anos
de circulação, de 1897 a 1904. Sendo a crítica ao clero uma das principais bases da
ideologia anarquista em geral, buscamos compreender como se configurou o
discurso anticlerical nesses jornais, que estavam inseridos em sociedades que
possuíam historicamente uma forte presença da Igreja Católica. Por se tratar de um
trabalho comparativo, buscamos identificar e analisar os traços de semelhança e
também as particularidades que a crítica anticlerical ganhou em cada um dos
países, tentando perceber em que medida essas particularidades podem ser
relacionadas às especificidades de cada um dos contextos nacionais,
particularmente no que diz respeito à atuação política da Igreja. A partir do conceito
de matrizes discursivas: racional-iluminista e simbólico dramático, proposta pelo
sociólogo chileno Guillermo Sunkel para o estudo da imprensa popular do final do
século XIX, mas que também foi usado por historiadores, como a argentina Mirta
Lobato e pela colombina Lúz Ángela Núnez Espinel para análise da imprensa
popular destinada a classe trabalhadora do início do século XX; objetivamos
compreender como estas matrizes discursivas estavam inseridas no discurso
anticlerical de A Lanterna e La Protesta Humana.
Palavras-chave: imprensa; anticlericalismo; anarquismo, matrizes discursivas.
Introdução
O presente artigo apresenta uma análise do anticlericalismo anarquista
brasileiro em comparação com o argentino, através do estudo dos jornais A
Lanterna (AL) e La Protesta Humana (LPH), publicados respectivamente em São
1886
Paulo e Buenos Aires, no período compreendido entre 1897 e 1904. Embora os dois
jornais tenham sido publicados por um período maior, optamos por trabalhar apenas
com o período compreendido pela primeira fase do jornal A Lanterna (1901 a 1904),
tendo em vista a quantidade de artigos de caráter anticlerical localizados nos dois
jornais e a limitação de tempo da pesquisa de iniciação científica.1
Como se sabe, a crítica anticlerical é um dos pontos centrais da doutrina
libertária e, por isso, torna-se um aspecto interessante a ser comparado em
diferentes contextos nacionais. No caso da comparação entre Brasil e Argentina,
estamos de acordo Maria Ligia Coelho Prado (2005: 12) quando afirma que analisar
de forma comparado o Brasil com outros da América Latina pode ser um desafio
estimulante, na medida em que esses países passaram por situações parecidas ao
longo de sua da história. Consideramos que a entrada massiva de imigrantes
europeus e a influência do anarquismo em ambos os países no período abordado
são grandes exemplos dessas semelhanças históricas.
Ao se trabalhar com anticlericalismo deve-se levar em consideração que esse
é um fenômeno plural. O historiador argentino Roberto di Stefano (2010: 11), em
estudo sobre o desenvolvimento histórico do anticlericalismo em seu país, constatou
entre as manifestações anticlericais as seguintes tendências: um anticlericalismo
que busca atingir o clero em seu conjunto; outro que visa unicamente atacar figuras
específicas de padres e/ou o Papa; um anticlericalismo antirreligioso, que ataca a fé
religiosa, não se limitando às instituições ou figuras representativas do clero; e ainda
uma postura anticlerical interna à própria Igreja, representada por sacerdotes críticos
às condutas da instituição. Deve-se salientar, ainda, que determinados anticlericais,
que atacam com veemência as instituições religiosas e sua intromissão nos
assuntos públicos, podem ser pessoas extremamente religiosas no âmbito privado.
Mas, apesar da existência de um amplo espectro de posturas anticlericais,
acreditamos que é possível se falar em um anticlericalismo anarquista de forma
mais específica. O anticlericalismo típico dos anarquistas tem uma relação
intrínseca com a concepção libertária de poder, que abrange muito mais que o
1
A Lanterna deixou de ser publicado em 1904, mas voltou a circular em 1909, permanecendo até
1916. Novamente deixou de ser publicado e só voltou a circular, em sua terceira fase, entre os anos
de 1933 a 1935. Já La Protesta Humana, começou a ser publicado em 1897 e, apesar de sua
publicação ter sido interrompida em várias ocasiões, o jornal continua circulando atualmente. As
edições atuais procuram enfatizar a longíssima tradição do periódico anarquista argentino, trazendo a
seguinte frase após o título: “desde 1897 en la calle”. (POLETO, 2011:44).
1887
campo da política institucional. Margareth Rago (1985), partindo do pensamento
foulcaltiano, observa que os libertários possuíam uma compreensão do poder mais
abrangente que a dos socialistas, por exemplo, se recusando a percebê-lo somente
no campo da política institucional. A autora destaca que essa concepção de poder
levou os libertários a “desenvolve[re]m intensa atividade de crítica da cultura e das
instituições e formula[re]m todo um projeto de mudança social que engloba[va] os
pequenos territórios da vida cotidiana”. (RAGO, 1985: 14).
Como existem poucos estudos historiográficos que assumem a perspectiva
comparativa para trabalhar jornais anarquistas brasileiros e argentinos, buscamos
contribuir para a diminuição dessas lacunas, realizando uma análise comparativa
dos discursos anticlericais de A Lanterna e La Protesta Humana entre os anos de
1897 e 1904.
Objetivos
O principal objetivo da pesquisa foi compreender como o tema do
anticlericalismo, que é um dos pilares do pensamento anarquista, se apresentou
nos discursos dos jornais anarquistas editados no Brasil e na Argentina, entre fins
do século XIX e inícios do XX.
Tendo identificado logo no início da pesquisa que, em seus textos de caráter
anticlerical, A Lanterna (AL) e La Protesta Humana (LPH) utilizavam diferentes
recursos discursivos para interpelar os leitores, colocamos como um dos objetivos
de nosso estudo analisar comparativamente a utilização desses recursos pelos
jornais, a partir da noção de matrizes discursivas proposta pelo sociólogo chileno
Guillermo Sunkel (1985).
Desenvolvimento
Os jornais redigidos pelos anarquistas tanto no Brasil como na Argentina,
foram conceituados de diversas formas pela historiografia, tendo sido tratados como
imprensa operária, anarquista e popular, entre outros. Atualmente a noção de
“imprensa popular” tem se mostrado bastante frutífera para tratar de periódicos
voltados às classes populares de forma mais ampla, e não apenas os operários, no
1888
período que enfocamos. As pesquisas da historiadora argentina Mirta Lobato (2010)
e da colombiana Luz Ángela Espinel Núnez (2006) são bons exemplos dessa nova
perspectiva. Nesses dois casos, as autoras recorrem ao trabalho do sociólogo
chileno Guillermo Sunkel (1985), que propõe analisar os discursos da imprensa
popular a partir matrizes-discursivas nele empregadas.
De acordo com Sunkel (apud ESPINEL, 2006: 65), há dois tipos básicos que
caracterizam o discurso dessa imprensa: uma matriz-discursiva simbólico-dramática,
marcada por “uma linguagem dicotômica e concreta, derivada de uma concepção
religiosa do mundo.” Dentro dessa matriz, “junto às categorias de caráter divino, se
desenvolveram outras associadas a traços humanos, como ricos e pobres, bons e
maus, avaros e generosos”. A outra matriz-discursiva, chamada de racionaliluminista, se caracteriza por uma linguagem pautada nos valores do progresso,
civilização, ciência e ilustração. (SUNKEL, apud LOBATO: 2009: 18). Essa matriz
discursiva foi introduzida na cultura popular a partir do desprezo pela matriz
simbólico-dramática, identificada como inferior e já superada por aqueles que
propunham “a imposição da ciência e da razão sobre a superstição”. (ESPINEL,
2006: 66).
Segundo esses autores, na imprensa popular do final do século XIX e início
do século XX na América Latina coexistem dois modos de representação da cultura
popular. De um lado, observa-se a permanência de uma linguagem ligada à matrizdiscursiva simbólico-dramática, mais concreta e personalizada. Por outro lado, a
introdução da matriz racional-iluminista, justamente a partir da disseminação das
ideologias políticas decorrentes da modernidade, como o liberalismo e o
anarquismo, por exemplo. Como destaca Lobato (2009: 20), apesar de essas duas
matrizes discursivas opostas tentarem se impor uma sobre a outra, pode-se notar a
interação entre ambas, que coexistiram e inclusive se entrelaçaram em muitos
momentos nos jornais latino-americanos voltados às classes populares no período
em foco.
Nos periódicos aqui analisados, desde o início de suas publicações, sempre
foram defendidos os valores do progresso, civilização e ciência. Isso pode ser
observado, por exemplo, no editorial do primeiro número de LPH, intitulado En la
Brecha, no qual os editores ressaltam qual era o objetivo de iniciarem a publicação
do jornal. Além de defenderem princípios anarquistas, como a socialização dos
1889
meios de produção, distribuição equitativa da riqueza, fim da propriedade privada e
abolição do Estado, os editores destacam que o intuito do jornal também era
defender os princípios norteadores do progresso e da ciência:
La Protesta Humana saluda á cuantos aman la verdad, á los que trabajan
por lá emancipácion de los desherdados, á los que luchan por la
desvinculación de los privilegios, á los que preparan la participación
equitativa de todos en el patrimonio universal, á los que sufren por la
conquista de esos ideales, y, por último, á la prensa que se dedica al
estudio, de la cuestión social y á la que los cuyos esfuerzos tienden á
generalizar los progresos de la ciencia para anular la fuerza terrible de las
preocupaciones adquiridas. (LPH, 13/06/1987, p.1).
Como já destacamos os discursos dos dois jornais, desde o início, eram
fortemente influenciados pelos ideais de civilização, progresso e ciência, portanto,
pela matriz discursiva racional-iluminista. Todavia, no caso de AL, principalmente
nos artigos que abordam as organizações religiosas de orientação católica,
sobretudo os Jesuítas; percebemos uma forte visão maniqueísta, própria da matriz
discursiva simbólico-dramática. A partir dessa matriz discursiva, os anticlericais são
identificados como “soldados do progresso e da civilização”, enquanto os jesuítas
são definidos como:
massa de mercenários que os paquetes transatlânticos despejam dia a dia
nas nossas plagas, e que vêm aqui semear a discórdia nos lares e na
sociedade, estabelecer a guerra entre a esposa e o esposo esperançados
de levantarem sobre as ruínas da nossa felicidade, sobre os destroços da
nossa sociedade civil, a bandeira negra da teocracia nefasta, salpicada de
sangue. (AL, 07/03/1901, p.1).
Essa visão parte de uma dualidade essencial do mundo: de um lado os
anticlericais, como “soldados do progresso e da civilização”, e de outro os jesuítas,
“massa de mercenários”, representantes do regresso; e está pautada num forte
apelo à emoção e à moralidade pública, carecendo de uma discussão mais
reflexiva. Esse tipo de discurso foi usado pelo jornal brasileiro como forma de
sensibilizar o leitor, já que, na visão dos redatores do jornal, uma mentalidade laica
ainda não estava consolidada no Brasil, principalmente entre as classes populares.
De acordo com AL os sentimentos de religiosidade não eram tão fortes entre
as elites ilustradas brasileiras, todavia essas não eram anticlericais porque,
“quer[ia]m a religião como um freio para o povo, considerando a santa canalha
1890
como uma récua de cavalgaduras”. (AL, 02/08/1903, p.1). Dessa forma, os editores
do jornal entendiam que a religião era uma forma de manipulação usada pela elite
para conservar sua dominação sobre os setores populares. A partir dessa leitura da
situação nacional os editores de AL procuraram fazer do jornal um órgão de
ilustração do povo que, em sua visão, estava “embrutecido” pela Igreja: “sabemos
que é imenso o número dos que não sabem o que é o clericalismo, que não
conhecem os planos perigosos dos missionários do Vaticano e da religião dos
papas”. (AL, 07/03/1901, p.1).
Nessa tarefa de “ilustração” das classes populares, AL mesclou traços
característicos da matriz discursiva racional-iluminista, da qual compartilhavam, com
outros recursos discursivos caracterizados ao apelo à emoção do leitor.
Acreditamos que o uso desse mecanismo expressivo, próprio da matriz discursiva
simbólico-dramática, que têm suas raízes numa concepção concreta e religiosa de
mundo, visava fazer com que o discurso do jornal encontrasse maior acolhida entre
os setores populares brasileiros, ao remeter a uma percepção de mundo com a qual
estavam mais acostumados, devido à própria influência do catolicismo.
No caso do jornal argentino, diferentemente do que ocorre no brasileiro, LPH
não percebe seu público enquanto “embrutecido” ou manipulado pela Igreja, pelo
contrário, propõe-se a chegar, principalmente, às pessoas instruídas: “De nuestros
ideales deseamos hacer partícipe al público inteligente, exponiéndolos con la mayor
claridad posible y defendiéndolos con lógica argumentácion”. (LPH, 13/06/1897, p.1,
grifo nosso.). Por esse motivo, em seus artigos anticleriais LPH se vale quase
sempre de uma linguagem mais voltada para a razão, acreditando que seus leitores
eram tão ilustrados quanto os próprios editores do periódico, sendo aptos o
suficiente para lidar com questões mais complexas, sem que fosse necessário
apelar a um tipo de discurso voltado para a comoção do leitor.
Em ambos os jornais havia uma preocupação constante de demonstrar que o
desenvolvimento do mundo político e social não necessitava dos valores católicos,
mas, ao contrário, que o catolicismo era sinônimo de atraso, pois era composto de
valores retrógrados que impediam o avanço científico e filosófico. Em ambos os
jornais o exemplo mais citado para demonstrar essa visão foi a Inquisição, que
havia perseguido homens brilhantes, que só tinham a contribuir com o
desenvolvimento e o progresso através de suas ideias.
1891
Para AL a ciência era a maior vítima dos padres. Os editores citam grandes
filósofos e cientistas que se tornaram mártires da perseguição católica, como
Giordano Bruno, que aparece no jornal como: “herói e mártir da ciência, preferiu a
morte atroz à hipocrisia, foi queimado vivo a 17 de fevereiro de 1600 por não se
conformar com as bestialidades dos santos padres”. Outro caso de um grande
“mártir da ciência” citado pelo jornal brasileiro foi o de Galileu:
Galileu, mais ousado do que Copérnico apregoou o movimento da Terra, e
por isso foi trazido perante os padres (o tribunal da inquisição) é só deveu a
vida por ter formalmente abjurado pelas seguintes palavras:
“Eu, Galileu, aos setenta anos deidade, estando prisioneiro e de joelhos
perante Vossas Eminências, tendo diante dos olhes os Santos Evangelhos,
que toco com as minhas próprias mãos, abjuro, maldigo e detesto o erro e a
heresia do movimento da Terra.” (AL, 03/05/1901, p.2).
Além de citar os males que o catolicismo causou no período inquisitorial, AL
argumentou que também no mundo contemporâneo várias ciências, como a
Sociologia, Biologia, Física e Astronomia, eram perseguidas pela Igreja, que
pretendia manter seu controle sobre a mente dos fiéis. Na perspectiva do jornal
brasileiro, a Igreja sabia que “quando o povo tiver ciência suficiente verá que os
padres são inimigos do homem, da família, do país e da humanidade”. Todavia,
sabendo que agora não se pode queimar os hereges na fogueira, os clérigos se
utilizam de novos meios, como “excomunhões, anátemas, e outras baboseiras
ridículas”. (AL, 19/05/1901, p.3).
Mas AL também mostra ter consciência de que muitos padres eram ilustrados
e, em sua concepção, alguns eram até mesmo ateus, sendo suas pregações meras
falsidades utilizadas para manter o domínio da Igreja:
Embora saibam que o padre é uma lepra, um parasita da sociedade,
contudo continuam a ensinar ó que não creem, porque isso lhes convém,
atacam as ciências, estando, no entanto convictos dela, pregam o inferno,
sendo os primeiros a não admitir-lhe a existência, e até (digo mais) há
padres que do alto do purgatório pregam a existência de Deus, sendo
intimamente ateus. (AL, 19/05/1901, p.3).
O jornal LPH também se preocupou em denunciar os males do Santo Ofício
que perseguiu homens muito talentosos, relatando inclusive o processo de tortura e
extermínio das vítimas nos processos inquisitoriais, juntamente com a manipulação
1892
ideológica dos seus familiares: “Esas víctimas, después de sufrir el más atroz de los
martírios, pasaban á ser imoladas á la hoguera, y sus nombres olvidados hasta
escarnecidos por la misma familia que realmente creia em la heregia de aquel
inocente mártir” (LPH, 01/01/1899). Os mártires da ciência, que só tinham a
contribuir para o desenvolvimento da sociedade, também mereceram destaque:
“Luego, su lema ha sido siempre la venganza y extermínio, eliminando de la
sociedad todos los genios que despuntaban y se proponian iluminar á los pueblos,
apagando siempre las luces de la civilización para mantener á la humanidad em las
tinieblas”. (LPH, 01/01/1899, p. 3).
Apesar de ambos os jornais acreditarem que o catolicismo deveria ser
eliminado para o pleno desenvolvimento da sociedade, tinham uma orientação
diferente quanto à posição anticlerical. LPH defendia um anticlericalismo ateu
partindo do pressuposto de que os novos tempos eliminariam a crença em Deus por
completo, “con el libre examem planteado frente á la tolerancia religiosa impuesta á
viva fuerza, se han negado todas las creencias por absurdas. La negación fué tan
lejos que se excluio á Dios por completo, sin que hubiera mayores aspavientos
assombrosos”. (LPH, 05/01/1901, p.1).
Em AL não encontramos um anticlericalismo ateu. De acordo com os
redatores do jornal, desde que a religião não funcionasse como entrave à
racionalidade, podia-se ser religioso e bom. A luta do jornal era mais diretamente
travada contra o catolicismo e o grande objetivo era concretizar a laicização da
República brasileira. Eram claramente contrários à intromissão desmedida da Igreja
na vida pública e privada, o que não envolvia a eliminação da religião em si e nem a
contraposição aos “verdadeiros cristãos”. Assim explicam seus editores:
Diversas versões correm sobre a índole d'este jornal, quando é bem fácil de
acertar com a causa que lhe deu origem. Não foi fundado para combater a
crença dos verdadeiros cristãos, dos que sentem no coração os impulsos da
generosidade e da honra, — veio á luz para desmantelar a denegrida
barreira do jesuitismo, para combater a pérfida mentira religiosa, e para
levar ao pelourinho do castigo os roubadores das famílias e do lar. (AL,
06/04/1901, p.2).
Nos dois jornais estudados encontramos a percepção de que a criação de
uma sociedade racional, baseada nos valores do progresso e da civilização, só
seria possível à medida que o povo se ilustrasse através da educação e da
1893
propaganda anticlerical realizada pelos periódicos. Mas LPH denunciou a
incoerência de se tentar criar uma sociedade laica apenas a partir da
institucionalidade, separando-se o Estado da Igreja. Para isso usou com exemplo a
cristianização da Roma antiga, o que, segundo os editores do periódico anarquista
argentino, não foi simplesmente decretada pelo Imperador Constantino, mas foi uma
consequência da difusão da propaganda cristã: “la propaganda Cristiana, y no
Constantino, fué la que mató el paganismo. Toda la Roma en los últimos tiempos de
su dominácion, fué cristiana” (LPH, 15/12/1900, p.1).
Assim, tomando por base a história, LPH defendeu a ideia de que para se
destruir o cristianismo seria necessário ilustrar o povo com a propaganda do
ateísmo:
Propagad el ateismo, sabed demostrar como el gran capataz del cielo, el
grán Dios único, es una superchería hija de un terror infantil que halló quien
lo pudiesse explotar en derecho mercantil y en el versículos rimados... Y ahí
veréis como se irá aboliendo el fetichismo religioso. (LPH, 15/12/1900, p.1).
AL, por sua vez, objetivava combater o catolicismo através da criação de
instituições leigas, principalmente educativas, buscando se unir com os diversos
grupos anticlericais do Brasil para esse fim, “convencendo-os da necessidade
inadiável de criação de escolas leigas, de orfanatos leigos, de associações leigas de
senhoras e de Universidades Populares”. Tendo em vista que a educação era vista
como o principal meio para libertar o homem, o jornal objetivava criar uma escola
leiga e gratuita, cujo nome seria “Emilio Zola”, “para que as nossas gerações,
tomando-o como um exemplo, e os seus livros como uma lição, saiam dignas e
nobres dos bancos escolares” (AL, 23/12/1903, p.1).2
Os redatores de AL também se preocuparam em distinguir as divergências
entre ensino leigo e ensino religioso. Na sua perspectiva, o ensinamento religioso
promovido pelas mães católicas sobre as crianças foi definido como um meio de
2
Os redatores de AL demonstravam uma grande admiração pelas obras de Zola, principalmente por
Germinal, Verité e Travail, pois seus escritos eram repletos de uma árdua condenação “a todas as
tiranias, a todos que oprimem, aviltam, embrutecem e roubam aos seus semelhantes”, (AL,
27/09/1903, p.1). Dar o nome à escola leiga que pretendiam criar de “Emilio Zola” era uma forma de
homenagear o autor francês, que não só foi grande por seus escritos, mas também, por suas ações,
ao arriscar sua carreira defendendo o capitão Alfred Dreyfus de origem judia, que foi condenado por
um crime que não cometeu, denunciando o caráter antissemita do povo francês, que era
predominantemente católico.
1894
manter a infância na ignorância ao incutir os “mistérios da mascarada religião
católica romana”, ao invés de os ensinarem a venerarem “a figura sublimada do
filósofo” (AL, 03/01/1904, p.1). Argumentavam ainda que, nos colégios e liceus
religiosos, a educação era vista como “um veículo de perversão e jamais um vulcão
donde irradie a ciência e o conhecimento para que o homem se possa apresentar
na sociedade como sacerdote do bem e propagador da fraternidade universal” (AL,
16/01/1904, p.1). Enquanto que a educação laica era aquela que:
prepara o homem para a luta pela vida, para a luta pela civilização para
desenvolver a sua atividade no cenário da terra, neste vasto cenário, onde
todos nós, por certo período, somos chamados a agir e devemos empregar
nossos esforços em aumentar a soma de bens para nossos semelhantes
(AL, 10/10/1903, p.1).
Dessa forma, os discursos anticlericais de LPH e AL se valeram de um forte
apelo à ilustração, por meio da educação e da propaganda anticlerical, como o
principal meio para se derrotar o catolicismo, cujos valores estavam impregnados
nas nações latino-americanas devido à histórica presença da Igreja Católica.
Conclusões
Tanto o LPH como o AL apresentam uma forte crença nos valores do
progresso e da civilização como meio fundamental para se derrotar o
“embrutecimento” causado pela Igreja Católica, o que, de acordo com suas
perspectivas, tratava-se se “superstições” impregnavam a mente dos fiéis e que
impediam o pleno desenvolvimento humano, no que dizia respeito ao conhecimento
científico e filosófico. Nesse sentido, seus discursos são bem representativos de
uma perspectiva comum às ideologias decorrentes da modernidade, o que no caso
dos dois jornais se relacionava diretamente a seu alinhamento ao anarquismo.
Ao analisarmos os discursos anticlericais dos jornais aqui pesquisados em
termos das matrizes-discursivas com base nas quais foram construídos,
percebemos que a matriz racional-iluminista foi comum a ambos, mas que o
periódico brasileiro tendeu a mesclá-la a elementos da matriz simbólico-dramática,
devido a sua percepção de que as classes populares brasileiras não estavam
suficientemente “ilustradas” para compreender um discurso que apelasse
1895
unicamente ao racional. Isso foi algo muito distinto do que ocorreu no caso do jornal
argentino, pois LPH praticamente não se valeu de elementos que apelassem ao
sentimental para veicular sua crítica anticlerical, acreditando dirigir-se a um “público
inteligente”.
Essa diferença pode ser explicada pela presença mais nítida de importantes
elementos da modernidade na Argentina, como um nível expressivo de
alfabetização e uma República laica já consolidada. No caso do Brasil, a situação
era muito diferente, pois o sistema republicano era recente; a escravidão havia sido
abolida há pouco tempo e o analfabetismo beirava os 80% da população.3
Bibliografia
DI STEFANO, Roberto. Ovejas negras: história de los anticlericales argentinos. 1
ed. Buenos Aires: Sudamerica, 2010.
ESPINEL, Luz Ángela Núnez. Imágenes y símbolos en la prensa obrera
colombiana de las primeras décadas del siglo XX: um análisis de la iconografia
popular. Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura. Colombia, 2006.
Disponível em: http://redalyc.org/articulo.oa?id=127112581004.
GOMES, Angela de Castro. A escola republicana: entre luzes e sombras. In:
GOMES, Ângela de Castro; PANDOLFI, Dulce Chaves; ALBERTI, Verena (coords.).
A República no Brasil. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, Nova Fronteira, 2002, p. 384449.
LOBATO, Mirta Zaida. La prensa obrera. 1. ed. Ed. Buenos Aires: Edhasa, 2009.
POLETTO, Caroline. TÃO PERTO OU TAN LEJOS? Caricaturas e contos na
imprensa libertária e anticlerical de Porto Alegre e de Buenos Aires (18971916). São Leopoldo: UNISINOS, 2011. 278 f. Dissertação (Mestrado em História)
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2011.
PRADO, Maria Lígia Coelho. Repensando a história comparada da América Latina.
In: Revista de História, São Paulo: FFLCH-USP, nº 153, p. 11-33, 2005.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985.
3
Alguns dados estatísticos dão uma ideia da diferença nos índices de alfabetização existentes entre
Brasil e Argentina. Para 1914 a porcentagem de analfabetos na Argentina era de 36%, enquanto no
Brasil chegava a cerca de 70% da população. (Os dados encontram-se em SOARES, 2007: 34 e
GOMES, 2002: 419).
1896
SOARES, Gabriela Pellegrino. Semear horizontes. Uma história da formação de
leitores no Brasil e na Argentina (1915-1954). Belo Horizonte: UFMG, 2007.
SUNKEL, Guillermo. Razón y pasión en la prensa popular. Un estudio sobre la
cultura popular, cultura de masas y cultura política. Santiago de Chile: ILET,
1985.
Fontes
A Lanterna (1901 a 1904). Arquivo Edgard Leuenroth, UNICAMP.
La Protesta Humana (1897 a 1903). Site da Universidade de Los Angeles, California.
http://digital.library.ucla.edu/newspaper/librarian?LANGUAGE=spanish).
1897