guia da impermanência das exposições
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guia da impermanência das exposições
GUIA DA IMPERMANÊNCIA DAS EXPOSIÇÕES uma investigação sobre a grande reforma do Museu Nacional do Rio dos anos 1940 Minuta de tese parcialmente redigida Doutoramento em Antropologia PPGSA-IFCS-UFRJ Orientador: José Reginaldo Gonçalves Aluno: Jayme Moraes Aranha Filho Rio, março/2010 guia da impermanência das exposições uma investigação sobre a grande reforma do Museu Nacional do Rio dos anos 1940 Sumário dos capítulos parcialmente redigidos Sumário estendido da Tese: em 10 capítulos com descrições resumidas 1 Capítulos já redigidos: 3. Os grandes ciclos expositivos do MN 11 4. A separação das coleções ▪ como inauguradora do museu moderno ▪ a evidência arquitetônica ▪ a evidência fotográfica 30 36 50 6. Um museu brasiliano dos anos ’20 71 7. Alter egos museológicos de Dona Heloisa ▪ Carlos Cummings 85 9. O museu universitário dos anos ’50 Pedido de prorrogação 106 118 Sumário estendido A estrutura atual da tese prevê os seguintes 10 capítulos, que descrevo resumidamente nas páginas seguintes. sumário 1. Notícia sobre minha passagem pelo escritório técnico-científico do Museu 2. Estudos de museus, de história natural, nacionais 3. Uma cronologia por ciclos expositivos 4. Uma genealogia das reservas 5. Corpo museográfico 6. Um museu brasiliano dos anos 20 7. Alter egos museológicos de Dona Heloisa 8. Os testemunhos da museologia praticada pelos reformadores 9. O museu universitário dos anos 50 10. Mais 1. notícia sobre minha passagem pelo escritório técnico-científico do museu • • • • • continuidade com cosmologia científica desconforto com desprestígio e com desconfiança partido museográfico: historicidade x ficção realista (naïf) constituição de aparelho museográfico externo à burocracia funcional legado de uma separação nunca completada: o mudança das unidades de pesquisa pro horto o pré-roteiro negociado por disciplinas Apresento as circunstâncias em que me engajei numa equipe técnica do Museu Nacional durante os anos de 2001 a 2003, encarregada de elaborar um projeto de reformulação integral das exposições permanentes do Museu. Minha função oficial era a de ‘tematizador científico’ (o equivalente a ‘pesquisa e roteiro’ numa produção audiovisual), o que me fez atuar sempre como uma espécie de mediador entre a equipe técnica de designers, museólogos, arquitetos, e os “cientistas da casa”. Tal como se passou com Feio (1959), também devo dizer que, antes de aceitar este trabalho, a minha experiência com montagem (ou estudos e reflexão a respeito) de exposições era nula. Este período representou para mim, totalmente inexperiente até então na área, uma imersão no mundo e na cultura dos profissionais de museus, e, assim, adquiriram o valor de uma espécie de trabalho de campo etnográfico. De algumas das intercorrências e impressões derivadas desta experiência de trabalho derivam as questões que me motivaram a desenvolver a pesquisa de doutorado. Ressalto duas questões iniciais, duas durante, e duas no encerramento do projeto. As iniciais: o caráter das exposições de museus de história natural como representações da cosmologia científica, com a qual trabalhara no mestrado; a sensação permanente de desconforto da minha posição no museu, por desprestígio da área diante dos colegas e pares, e por desconfiança dos funcionários quanto à nossa situação institucional ‘arrivista’ ou ‘oportunista’. As questões de percurso diz respeito aos desafios da estratégia escolhida no projeto: a intervenção através de um órgão constituído ad hoc, externo à burocracia da casa; o partido museográfico que privilegiaria a historicidade e a contextualização das coleções exibidas, ao invés de cenografia de reconstituição ‘realística’ (e.g. dioramática) dos ambientes originários (e afinal imaginários) a que tais coleções remeteriam. Ao fim do projeto, interrompido a meio curso e que não chegou a ser implementado, duas questões pouco esclarecidas permaneceram: a das razões históricas para a decisão de mudança das unidades de pesquisa, que deveriam sair do prédio do museu; a do modo como se operou a constituição do pré-roteiro da exposição, por recenseamento negociado com cada disciplina acadêmica isoladamente. 2. estudos de museus / de história natural / nacionais • • • instrumentos de representação de nação, da identidade o foco na constituição e trajetória das coleções as armadilhas do anacronismo Uma revisão dos recentes estudos de museus, com particular atenção para os que se atém às peculiaridades dos museus de história natural e às dos museus nacionais. Boa parte destes estudos concentra-se em revelar o papel de tais instituições como instrumentos de representação de identidade – e.g. da comunidade imaginada como nação naturalizada e natureza nacional. Uma vertente renovadora destes estudos concentra o foco nos mecanismos de constituição das próprias coleções museais: persegue as perguntas do tipo quando, onde, o quê, por quem, como, por que foi coletado. Da análise sobretudo destas circunstâncias procura mostrar como derivam os contornos mais gerais de operação da rede instituições museais. Dirigimos nossa análise para um aspecto e um momento particular da circulação dessas coleções, já no interior da instituição: a repartição entre as coleções que deveriam permanecer expostas à visitação pública, e as reservadas aos depósitos, destinadas exclusivamente aos estudos científicos pelos especialistas. Esta distinção fundamental nas coleções de museus é uma noção surgida nos museus de história natural na segunda metade do séc. XIX, e se impôs paulatinamente a todos os museus modernos. Pretendemos demonstrar que, no caso do MN, o processo de separação das coleções, e da constituição de reservas técnicas, se deu em um momento restrito da história da instituição, justo no período das reformas iniciadas nos anos 40. Faz-se também aqui recensão de alguns dos estudos e teses sobre a história do Museu Nacional e suas coleções/exposições. 3. uma cronologia por ciclos expositivos • • • As cronologias oficiais, por ciclos administrativos Temporariamente fechado para reformas: a interrupção da visitação como divisor 5 montagens ‘permanentes’, sendo que a última permanece Estabeleço algumas balizas históricas para o tratamento do episódio das reformas estudadas. Apresento algumas das cronologias ‘nativas’ circulantes, gêneros variáveis de registro corrente da memória institucional que encontrei enquanto trabalhava no Projeto da Nova Exposição. Procuro situar o momento das reformas do MN em um contexto histórico de longo prazo, mas centrado estritamente nos ciclos expositivos da casa durante o século XX. O ponto crítico no estabelecimento de uma cronologia é o critério da periodização: onde cortar, considerar como ruptura, e que blocos manter contínuos. Para uma periodização ancorada nos ciclos expositivos, as balizas que sinalizam o ponto de ruptura e mudança são os momentos em que a visitação pública é interrompida, e o museu atravessa fechado para empreender reformas de grande escala. A duração dos ciclos se prolonga com a inauguração das novas instalações e segue pelo período ininterrupto em que as galerias permanecem abertas ao público. Proponho assim uma cronologia de referência que destaca as grandes montagens da exposição dita permanente, escandidas por momentos em que o Museu se fechou à visitação pública. Por fim, sugiro alguns dos principais processos institucionais em curso na renovação do Museu nos anos de reforma: a divisão da coleções e constituição de reservas técnicas; a consolidação das especializações dividindo os campos tradicionalmente mesclados das ciências naturais e antropológicas; o deslocamento do centro de gravidade das rede de relações com outros museus do mundo da Europa para os Estados Unidos. 4. uma genealogia das reservas • • • • separação das coleções como inauguradora do museu moderno separação das coleções – através das plantas arquitetônicas. separação das coleções – através de fotos de exposições. separação das coleções – como projeto permanente (de purificação) • apêndices: mapoteca e fototeca Apresento a noção da clássica divisão entre coleções de estudo e coleções de exposição – que se tornou dominante entre os museus de história natural da Europa e Estados Unidos no final do século XIX – e como este programa foi sendo progressivamente assimilado pelos principais museus brasileiros. O objetivo principal deste capítulo é demonstrar, através da interpretação de evidências empíricas, que: (1) não havia divisão sistemática das coleções (entre de exposição e de estudo) antes de 1941, com a maior parte do acervo armazenada nas galerias abertas à visitação pública; (2) esta divisão, que implica na alocação de um novo espaço para abrigar as doravante ‘reservas técnicas’, se dá simultaneamente à criação das novas exposições públicas resultantes da reformas dos anos 40 e 50. A demonstração é feita sobretudo pela análise comparativa de: (1) plantas baixas com a distribuição funcional do espaço do museu antes e depois da reforma (quando se observa a mudança de proporção da quantidade de área ocupada pelas exposições / pela pesquisa); (2) fotografias das galerias de exposição antes e depois da reforma (onde se observa a mudança de modelo expográfico, com a acentuada diminuição na quantidade e concentração de peças exibidas). Por fim, pela comparação de fotografias das velhas exposições com fotografias retratando modernas reservas técnicas de história natural de hoje em dia (que apresenta várias analogias, e que permite ver os elementos que permanecem – o que fazia das antigas os equivalentes a depósitos – e os que não – que de certa forma “migram” para caracterizar as atuais galerias de exposição). 5. corpo museográfico • • • Grand Tour: a viagem de visita a museus alheios como formadora dos reformadores anseios de viagem 3 gêneros de documentos museográficos: relatórios de viagem; ensaios de leitura; apresentação de montagens Reabilito uma conotação quase em desuso (e etimologicamente mais fiel) para o termo ‘museografia’: descrição ou catálogo de museu. No mesmo tom, museógrafo é o autor de descrições de museu. É neste sentido que aqui apresento, em sobrevôo, o conjunto de autores da época que elegi privilegiadamente para análise. Quase toda museografia, embora primariamente descritiva, inclui também, mais ou menos explicitamente, juízos e opiniões críticas, senão recomendações normativas quanto a como deve ser um museu. O “corpo museográfico” aqui reunido apresenta várias visões de programas museológicos e de alguma forma estiveram vinculados às concepções de reforma do MN. Grosso modo, podemos classificá-los, eventualmente com algumas superposições, em três gêneros de ‘museografias’: O primeiro é fruto de um dos expedientes clássicos com que formar um projeto de reforma museológica: a viagem “de ilustração”, através da visita interessada aos grandes museus de história natural do primeiro mundo. Numa espécie de “Grand Tour” museológica, em busca dos templos últimos da ciência invés das obras primas dos clássicos, estes “naturalistas visitantes” retornam trazendo, não séries de espécimes naturais, mas como que “coleções de impressões de visita” – o relato da experiência vivida dos maiores impactos, inovações felizes, decepções, que gostariam de reproduzir ou evitar, de todo modo ter como referência a partir da qual idealizar um modelo próprio de como deve ser o seu museu. O segundo gênero, muitas vezes por falta de oportunidade de empreender o primeiro, é o de ensaios programáticos, baseados apenas nas leituras de publicações a respeito de museus e nas experiências acumuladas na lida do próprio museu. O terceiro gênero é o da apresentação e descrição pelos próprios autores – em palestra, em artigo publicado, na confecção de um guia de exposições – de exposições recém inauguradas, que denotam os testemunhos da museologia praticada pelos reformadores. Na geração de Roquette, quase todos os envolvidos diretamente nas reformas cumpriram o percurso da ‘Grand Tour’. Isto inclui e.g. Lacerda, o próprio Roquette, Miranda Ribeiro, Paes Leme. Já na geração de HAT a situação é bem mais complexa. A própria HAT é antes de tudo aquela que, antes de empreender sua reforma e por impedimentos vários, não pôde antes ir conhecer os grandes museus centrais – restringiu-se a leituras e muita correspondência. Mas cercou-se assim de personagens, alguns mais outros menos, experientes em matéria de museus, que funcionaram como seus alter egos museológicos. Entre eles Bertha Lutz (viajante), Mendonça (mero leitor informado, como HAT), Valladares (viajante), e o caso mais curioso, por uma inversão completa do modelo clássico, Cummings, um diretor renomado de museu de ciências do primeiro mundo que ela faz vir para conhecer e opinar sobre o museu doméstico. 6. um museu brasiliano dos anos 20 • • • • • • • • • a dupla orientação: entre a Europa e o Sertão; a viagem de ilustração e a de campo coleções plenas exibidas; fetichismo e curiosidade dos pequeninos o banal, o patriotismo que se inicia pelo quintal lição de fatos, mais do que de coisas; visitante treinado na observação, o desenho; o autodidata pequenos naturalistas (a criança como modelo do público) o museu se torna pequeno: o rádio, a revista, o cinema Apresento uma interpretação sobre a função das exposições do Museu no período anterior ao da reforma de 1940, privilegiando a análise das concepções do papel do Museu em RoquettePinto, tomado como personagem emblemático do período. A realização de que o museu pensado por Roquette estava baseado numa organização das coleções radicalmente distinta da que se seguiu à reforma dos anos 40, um museu onde inexistia divisão entre reserva técnica e exposição e esta indistinção era constitutiva da própria concepção de museu e exposição, permite-nos fazer uma interpretação original e historicamente mais situada das propostas educativas de Roquette, que se ajustariam ao Museu do seu tempo – mas que seria anacrônico estender automaticamente, supondo continuidade, às décadas posteriores. Nos anos de formação de Roquette já se delineia a dupla orientação das viagens de pesquisa: a estadia na Europa em 1911, a rondoniana na Serra do Norte em 1912. O museu concebido por Roquette é um museu com coleções plenas exibidas, e é numa exposição da totalidade do acervo que busca meios de orientar o visitante a descobrir e decifrar seu valor e suas lições científicas. Das inúmeras iniciativas didatizantes que implementa, a que melhor traduz o seu senso de exposição é a dos guias das coleções. 7. alter egos museológicos de HAT (programas) Análise da constelação de programas museográficos que orbitaram Heloisa Alberto Torres e o planejamento das reformas que empreendeu. ■ BERTHA LUTZ, naturalista Museu Nacional Inicialmente relatório de viagem (1933), foi sendo retrabalhado a ponto de se tornar um rico ensaio programático sobre as funções educativas do museu, eivado de referências a exemplos de experiências e soluções testemunhadas nos museus americanos. O documento nunca foi publicado e foi esquecido até recentemente. As circunstâncias em que o envolvimento e a reflexão museológicas de Bertha permaneceram à margem das reformas dos anos 1940 são pouco claras, mas ensaio algumas sugestões que permitem situá-la no tabuleiro dos personagens significativos das transformações que a instituição atravessou. ■ CARLOS E. CUMMINGS, diretor Museu de Ciências de Buffalo Relatório (descritivo, crítico e programático) de visita especializada ao MN, realizada imediatamente antes da instituição cerrar as portas ao público para deslanchar as reformas gerais. Convidado diretamente pela diretora HAT, com a mediação e financiamento da Rockefeller Foundation, Cummings ocupa a posição mais paradigmática de alter ego de HAT. Um museólogo expert veterano, com vasta experiência e conhecimento do campo, além de visitador itinerante – todas qualificações complementares às que faltavam a HAT. ■ FRANCISCO VENÂNCIO FILHO, educador, Instituto de Educação Vários pequenos textos sobre o museu moderno e o cinema: em especial, palestra sobre a função educativa dos museus e o relatório de viagem aos Estados Unidos. ■ EDGAR SÜSSEKIND DE MENDONÇA, técnico em educação, Min. Agricultura Ensaio programático sobre os serviços de extensão cultural de um museu, baseado em literatura museológica e experiência no ensino escolar. As circunstâncias em que o texto que Mendonça foi produzido não são inteiramente claras. Ao que tudo indica, foi produzido em fins de 41 ou início de 42, e persistiu como uma espécie de programa de orientação para o novo serviço de extensão cultural que HAT acabou criando no final de 42 (depois de liquidar o obsoleto SAE em 41) sob a direção de Paschoal Lemme. ■ JOSÉ VALLADARES, historiador, diretor da Pinacoteca e Museu do Estado da Bahia. Ensaio programático, a partir de experiência de viagem e visitação a museus norteamericanos. O livrinho de Valladares é uma preciosidade. Viajou aos EUA, México e Peru por mais de um ano, sob o patrocínio da Fund. Rockefeller, conhecendo e estagiando em inúmeros museus. O mote do seu relato é ressaltar “as possibilidades de democratização da cultura que se encerram nos museus”. ■ GILBERTO FREYRE O livrinho de Gilberto Freyre, bem posterior a todos os anteriores, e já de um período em que HAT sequer estava mais conduzindo o MN, foi incluído no entanto neste grupo por dois motivos: 1) GF era quem HAT cogitou para a direção do MN em 37, quando teve de assumir e conduzir a reforma; 2) sua reflexão e programa para o Museu do Homem do NE é cheia de referências às iniciativas originais de ERP 8. os testemunhos da museologia praticada pelos reformadores ■ CASTRO FARIA, naturalista Museu Nacional Discurso de inauguração das novas exposições (e reabertura do Museu ao público) realizado em 1947. Faz uma recapitulação da história do Museu e depois descreve, mostruário por mostruário, as novas instalações, incluindo considerações quanto aos partidos museográficos assumidos. Um novo discurso, no centenário da Exposição Antropológica Brasileira, em 1982, em que recapitula episódios da história do Museu e das montagens de suas exposições. ■ JOSÉ CÂNDIDO CARVALHO, naturalista Museu Nacional Relatórios anuais de diretoria dos anos em que foi diretor, de 1956 a 1961, descrevendo as realizações administrativas, com descrição (às vezes bem detalhada) das exposições inauguradas no período. Em 1977 apresenta palestra no Conselho Federal de Cultura, de que era membro, recapitulando a trajetória do Museu Nacional, e diagnosticando os seus impasses de então. ■ JOSÉ LACERDA AUGUSTO FEIO, naturalista Museu Nacional Palestra em Congresso Brasileiro de Museus, que deu origem a artigo publicado na revista internacional de museologia da Unesco (1959), descrevendo algumas das salas de invertebrados recém-inauguradas no MN, na montagem das quais colaborou. 9. o museu universitário dos anos 50 • • • • a redução da concentração expográfica os novos recursos estéticos e comunicacionais de display a mudança da imagem presumida de visitante o a inibição, intimidação o o frágil laço do interesse, a iminência da fadiga roquette depois do museu: cinema Aqui são retomados e sintetizados alguns dos traços mais significativos do modelo de museu pós-reforma, suas exposições e público. 10. mais • • • pandemônio a sobrevida diferencial das galerias (4 carreiras) anseio de viagem • • • • fototeca mapoteca (plantas, organogramas) galeria de museógrafos gabinete de palavras-conceito (glossário) • biblioteca Os grandes ciclos expositivos do Museu Nacional Estabeleço algumas balizas históricas para o tratamento do episódio das reformas estudadas. Sublinho a peculiaridade da trajetória histórica do Museu Nacional (e a dificuldade de interpretá-la) através de um comentário extraído de um dos estudos pioneiros da historiografia dos museus brasileiros. Considero algumas das cronologias circulantes e gêneros semelhantes de registro corrente da memória institucional que encontrei enquanto trabalhava no Projeto da Nova Exposição. Procuro situar o momento das reformas do MN em um contexto histórico de longo prazo, mas centrado estritamente nos ciclos expositivos da casa durante o século XX. Proponho assim uma cronologia de referência que destaca as grandes montagens da exposição dita permanente, escandidas por momentos em que o Museu se fechou à visitação pública. Por fim, sugiro alguns dos principais processos institucionais em curso na renovação do Museu nos anos de reforma. DESTINO YPIRANGA Em um estudo pioneiro de historiografia dos nossos primeiros museus, Lilia SCHWARCZ (1987)1 descreve um período embalado por um movimento mundial de ebulição dos museus, chamado de “era de ouro”, que se inicia duas décadas antes do fim do século, termina vinte ou trinta anos já avançados no século vinte. De alguma forma, como numa maré inelutável dos tempos, após este período do “movimento mundial dos museus” (como o caracteriza COLEMAN:1939), todas essas instituições tenderiam a entrar em franco declínio. Tal declínio derivaria de uma mudança no próprio modo de operar das ciências naturais, cada vez mais voltadas para estudos de laboratório, em que as pesquisas mais importantes deixaram de ser aquelas baseadas na descrição morfológica e na anatomia comparada de espécimes coletas in natura, e passaram a exigir procedimentos de acesso a eventos invisíveis à visão direta, fenômenos que não se oferecem imediatamente ao olhar que examina a superfície de uma peça. Esse tipo de ciência encontrava melhores condições de operação e 1 O artigo foi parcialmente incorporado no livro O espetáculo das raças (SCHWARCZ:1993). Mas a nota de rodapé, com sugestões tentativas sobre o desdobramento do caso sui generis do MN, e que aqui nos interessa em particular, só se encontra no ensaio original. 11 funcionamento não nos gabinetes e laboratórios dos velhos museus mas nos novos institutos de pesquisa que vinham sendo formados com a República. Este princípio geral mostra-se, no entanto, insuficiente para entender alguns desdobramentos do século vinte, ao menos quanto ao caso do MN. E Lilia aponta claramente este limite. O seu artigo termina descrevendo o ocaso dos grandes museus de inventário da natureza da nação. Traça o futuro incerto do Museu Goeldi, o quanto ele se perdeu do projeto inicial, que data da sua reformulação no fim do século XIX pelo próprio Goeldi, quando se previa para ele um papel estratégico, em que deveria capitanear as pesquisas científicas a respeito de toda a região amazônica. Nos anos vinte e trinta, ele já perdera este horizonte. Em segundo lugar, descreve o percurso do Museu Paulista. É um museu complexo, com coleções heterogêneas, no início predominantemente zoológicas e botânicas, e que dá uma guinada radical nos anos ’20. Taunay, que assumira há pouco a direção do museu, durante as comemorações da semana do centenário da Independência (a mesma ocasião em que, no Rio, se fundava o Museu Histórico Nacional), anuncia seus planos de dar ao museu um caráter marcadamente histórico. O instituto reunia então coleções de belas artes, de história, arqueologia, etnologia, zoologia, botânica, paleontologia. Ora, estes são quase todos os tipos de coleções que um museu poderia possuir. Cada uma dessas áreas terá um destino diferente. Em golpes sucessivos, o museu é inteiramente desmembrado e suas coleções dispersas. A instituição original gerou uma série de museus especializados, boa parte deles mais tarde absorvida pela Universidade de São Paulo. Este destino, o do desmonte, é o que Lilia esperava que acontecesse a todos os grandes museus egressos da “era de ouro”. O Paulista é, assim, exemplar para a sua interpretação. Não deixa de ser curioso uma pesquisadora baseada em São Paulo eleger o Museu Paulista como o caso exemplar, o modelo de referência. Eu, que sou carioca, garanto: o MN não se parece de modo algum com um caso exemplar. É absolutamente singular. Ocupa, por outro lado, uma posição central, e merece uma investigação que se detenha na peculiaridade da sua trajetória – o que pode eventualmente nos revelar aspectos ainda não percebidos sobre modos como essas instituições puderam se atualizar e renovar seus programas de modo a responder aos novos tempos. Quanto ao destino do MN, Lilia inclui uma nota de pé de página, já no fechamento do artigo, em que registra a inesperada constatação de que, nessa virada dos anos 30, “revistas e 12 documentos parecem mostrar uma posterior vinculação [do MN] à questão do patrimônio histórico nacional” (SCHWARCZ:1989:70; grifos j). Ora, essa era então a nova onda, embalada por modernismos quer desvairados quer nostálgicos, já em cristalização desde a criação do Museu Histórico, e francamente promovida pela Nova República e o programa getulista. São os primórdios do SPHAN, de cujo primeiro conselho a diretora do Museu Nacional, Heloisa Alberto Torres, viria a ser membro, e que logo tombaria o prédio do MN (o palácio da Quinta) num dos seus primeiros atos. Lilia demonstra, nesta passagem, uma certa surpresa com o fato da velha instituição, ao invés de atrofiar e acabar desmontada, haver aparentemente se reforçado, tornado-se uma das protagonistas da nova onda museológica nacional. E acrescenta: “O Instituto carioca parece ser o próprio ‘camaleão’, no sentido de adaptar-se a diferentes contextos e perspectivas teóricas” (id.). O MN não seguiu o destino que supunha ser necessário aos da sua espécie – o desmonte – mas sim a camuflagem e a mutação. [B] POR QUE SERÁ QUE O MUSEU NACIONAL NÃO ACABOU JUNTO COM A ERA DE OURO ? Aliás, ele correu sim esse risco, que poderíamos batizar de “destino Ypiranga”. Na verdade, o MN sempre correu tais riscos. Em diversos momentos chegaram a ser formuladas propostas ou projetos que levariam ao seu desmembramento, ou pelo menos da separação de todo um setor que viria a formar outra instituição. Neste momento mesmo, em que Lília localiza o ocaso da era de ouro, e que é também o dos primórdios da montagem da agência de proteção ao patrimônio nacional pelo Estado Novo, a proposta inicial sugerida por Mario de Andrade a Capanema previa justo algo assim: a divisão de antropologia do Museu e suas coleções deveriam ser retiradas da Quinta da Boa Vista e viriam a constituir um novo Museu Arqueológico e Etnográfico. (Outros episódios análogos são as sugestões de reformulação e divisão do MN feitas por Ladislau Netto no século XIX, e o projeto de transferência do MN para o campus universitário da Ilha do Fundão, ao final da Reforma Universitária, quando se cogitava a incorporação dos departamentos científicos do Museu por unidades de pesquisa já existentes na universidade). Seria interessante investigar tais momentos em que a instituição atravessou a possibilidade de ser desmontada, e como os contornou. 13 EM BUSCA DE FONTES DE HISTORICIZAÇAO DO MUSEU NO PROJETO DA NOVA EXPOSIÇÃO Ainda no ETC, procuramos reunir fontes que nos permitissem reconstituir a trajetória histórica da instituição. O esforço atendia a várias necessidades: para balizarmos melhor a continuidade do perfil da instituição em que nos engajávamos em renovar; por que um dos princípios conceituais a orientar toda a reconcepção das exposições era o da historicidade (das coleções, das ciências, da constituição do museu na vida nacional); por fim, planejávamos especificamente uma área expositiva, uma galeria, centrada na história do palácio da Quinta da Boa Vista, como também na história da formação das ciências naturais e antropológicas no país, imbricada na constituição do Museu Nacional e nos processos de formação das coleções científicas e bibliográficas por ela reunidas. Alguns ensaios chegaram a ser escritos (e um deles publicado no Boletim do MN) pelos redatores da equipe do ETC2. As principais fontes eram poucas, e quase todas versões ‘oficiais’ de como a própria instituição gostava de se apresentar. Sobretudo para a história recente, ou todo o século XX. Para o século XIX, havia a qualidade do recurso excepcional da tese publicada de Lopes (1995), construída a partir de uma leitura cuidadosa e crítica das fontes primárias de arquivo, e adiantando hipóteses interpretativas do cenário mais amplo da formação das ciências naturais no país in the long run. Era uma alternativa auspiciosa face às recensões usuais da historiografia, que costumava se contentar exclusivamente nos relatos clássicos de dois importantes diretores da virada do século XIX pro XX, as Investigações Históricas e Scientíficas sobre o Museu Imperial e Nacional, de Ladislau Netto (1870), e o Fastos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, de Lacerda (1905). Para o século XX, as fontes usadas baseavam-se sobretudo nos Relatórios Anuais administrativos dos diretores da casa, embora a sua série publicada fosse muito incompleta: após os de Bruno Lobo (1919-22), pula-se para os de José Cândido de Carvalho (1956-61) e seguinte, quando os relatórios passam a ser regularmente publicados em coleção própria das edições da casa. Havia um gap muito grande desde o período administrativo de Artur Neiva (1923?) e depois Roquette (1926s) até o término do período Heloisa (1955). Para os períodos recentes, acrescentavam-se um ou outro clipping de imprensa, e os relatórios de eventos mais 2 “O Museu Nacional e suas exposições: 1821-2001” de autoria de Paul Jürgens, e “História da Pesquisa Científica no Museu Nacional” de Bruno Dias, reunidos no “II Relatório de Atividades do Projeto da Nova Exposição do Museu Nacional/RJ”, ETC, Museu Nacional, UFRJ, setembro 2002. 14 recentes já no bojo dos projetos de renovação do Museu, como o Seminário Franco-Brasileiro, de 1995. As reformas do período Roquette seguiam uma versão relativamente estabilizada, divulgada em inúmeros relatos, que incluíam a criação do Serviço de Assistência ao Ensino (SAE), voltado ao atendimento a professores e turmas escolares, a inauguração de um auditório dotado de projetor de filmes educativos, para a realização de aulas e conferencias e a exibição de filmes educativos, a confecção de mapas murais resumindo tópicos de ciências naturais a ser distribuídos a colégios, a publicação da Revista Nacional de Educação. A administração de Roquette representaria a guinada do Museu para uma linha mais educativa, priorizando a vulgarização da ciência para a população em geral. No entanto, ainda que as várias iniciativas de cunho educativo introduzidas por ERP no MN sejam sempre lembradas, as mudanças propriamente no espaço expositivo são quase inteiramente omitidas. (No máximo menciona-se a criação de uma sala especial para expor ‘etnografia sertaneja’, ou a abertura da sala ‘D. Pedro II’ com utensílios de uso da família imperial que ainda restavam nas coleções do Museu). Do mesmo modo, todo o período que se segue, incluindo as quase duas décadas em que Heloisa dirigiu a instituição, durante o qual o museu chegou a ser fechado ao público para a execução de reformas estruturais, e nos quais as exposições – seu conceito, distribuição, preparação de espécimes – foram inteiramente reconcebidas, todo este período crucial na vida da instituição permanecia em grande parte sob neblina, tempo incógnito3. Praticamente a única exceção a testemunhar que muito se passava nesses tempos agitados, mas que poucos liam, era um magro volume saído na coleção ‘Publicações Avulsas’ (nº 4, de 1939) do próprio MN, em que se reproduzia a conferência de Castro Faria por ocasião da reinauguração das exposições de Antropologia e Arqueologia do Museu, em 1937, e a curta série de Revista do MN, de 1945-6, em que aparecia algumas das atividades em curso na casa. Eventualmente, em algumas reconstituições da história da instituição, ocorreu um total apagamento das realizações da gestão de HAT. Não era incomum encontrar a sugestão de que 3 Uma razão que deve ter contribuído para esse efeito é a falta de relatórios anuais da direção publicados no período – o documento mais visível e a partir do qual uma ‘historiografia espontânea’ dos fatos institucionais toma ciência do que se passou: supõe, ainda que para economia do esforço de investigação, que se algo não consta no relatório, é porque, ou não ocorreu, é de ocorrência por demais incerta, ou não foi lá tão relevante para efeitos dos rumos da instituição, e afinal não precisa ser levado em conta. 15 o MN permanecera sem exposições, fechado ao público, eventualmente à deriva, por todo o período HAT, e que fora apenas devido ao empenho da gestão de JCMC que o MN voltara a exibir publicamente exposições – enfim modernas, impecáveis, dignas da tradição da casa. O próprio JCMC é o primeiro a apresentar uma versão em que ele teria encontrado o Museu, ao assumir sua direção, sem exposições e sem perspectivas de recriá-las, e que exclusivamente durante sua gestão é que teria se realizado toda a remontagem posteriormente legada, que ainda se podia visitar relativamente inalterada até o início dos anos 90. Em entrevista de 19854, publicada no Canal Ciência: “[S]empre achei um absurdo o desmantelamento posterior das exposições. Quando assumi, tive apoio para corrigir este problema, e consegui abrir 34 salas, tudo o que hoje pode ser visto da antropologia para o fim. Levei taxidermistas para a minha fazenda e a do meu sogro e lá ficamos, cinco pessoas, coletando animais, estudando insetos que depois encheram duas salas, tipicamente mineiras. Assim, pude cuidar da primeira parte – as exposições para o público – mas quando comecei a entrar na parte da pesquisa meu mandato terminou e o trabalho não se consolidou.” Este cenário só muda a partir do encontro com os trabalhos anteriores de Mariza Corrêa sobre a atuação de HAT, e depois a tese de Adélia Ribeiro. A organização do arquivo/fundo HAT no PETI/AHMN, e sua transferência para o Arquivo Histórico do MN, além das recentes incorporações de arquivos do setor de etnologia entre outras fontes prometem reescrever a história da instituição no século XX. CRONOLOGIAS NATIVAS Para montar um folheto a ser distribuído em exposição temporária politicamente estratégica para as perspectivas de continuidade dos projetos de renovação do MN, empenhei-me em montar uma breve cronologia, que veio a virar um folheto, montado em Word mesmo, e impresso frente e verso em três folhas A4, grampeadas no meio e dobradas formando um caderninho de 12 páginas. Dei-lhe a alcunha, um tanto pomposa, de ‘Novos Fastos’, por alusão ao livro de memórias institucionais de Lacerda, de 1905, o ‘Fastos do Museu 4 Publicada originalmente em 1985, foi incorporada ao livro Cientistas do Brasil, da SBPC (ed. Global, 1998), e reproduzida no saite “Canal Ciência”, do IBICT, http://www.canalciencia.ibict.br/notaveis/txt.php?id=27 (consulta em 25/11/2009). 16 Nacional’. Foi distribuído entre o público que acorreu à exposição e à cerimônia de assinatura de um convênio, com presença de ministros e quase todas as personalidades envolvidas nos destinos do MN. Esse caderno fora produzido às pressas. Eu reunira esboços de cronologias que circulavam pela ‘cultura da casa’, podara e consolidara-as, e acrescentara vários outros marcos faltantes extraídos de fontes mais eruditas, além de estabelecer a periodização em 4 grandes ciclos (‘Da Colônia ao Império’; ‘República Velha, República Nova’; ‘Do Estado Novo à Nova Capital’; ‘Da Reforma Universitária aos atuais Projetos de Revitalização do MN’), o que era conveniente Um gênero que circulava, e ao qual recorri, era o das cronologias de fatos marcantes da história da casa. A cronologia mais simples e persistente é a que consolida a sucessão de períodos administrativos, personalizada na figura do seu diretor. É assim que a instituição preferencialmente apresenta sua história. No seu sítio web [checar!], ao entrar na subpágina de história, é oferecida a lista das personalidades, com os períodos em que exerceram o cargo. Ainda hoje a casa preserva a tradição de forrar as paredes da sala onde se reúne a Congregação, e, por falta de espaço, também as paredes do auditório, com telas a óleo retratando seus diretores, uma galeria de bustos ilustres. Outro documento notório, mimeo que eu saiba inédito, que circulava copiado de disquete para disquete entre participantes do “Projeto Memória”, era a lista de “Efemérides do MN”, uma compilação montada ao longo de anos pelo professor Sólon Leontsinis, então já aposentado e afastado da casa. Era o equivalente a um ‘gabinete de curiosidades’ do mundo das cronologias, com os fatos de várias épocas reunidos nas datas de seus aniversários, sem qualquer indicação das fontes em que se buscara o dado original. Foi Ricarte, então da equipe de arquitetos que atuava no projeto de renovação da casa, o chamado ‘Grupo de Obras’, que me passou cópia da preciosidade. Entusiasta da iniciativa de Sólon, assumira a incumbência de continuar o empreendimento estilo almanaque de feitos de personas ilustres, fatos curiosos e anedóticos, episódios de repercussão notória. Atualizara e acrescentara várias novas entradas de sua pena. Foi a partir dela, desmontada de seu formato anuário e restituída à linearidade histórica que impõe nossa talvez vã mitologia do tempo, que parti para esboçar uma cronologia geral do museu, focado particularmente nos eventos relacionados a 17 exposições e divulgação científica. Permiti-me sair cortando amenidades e circunstâncias cerimoniais, e acrescentando minhas próprias prioridades. Também com membros da equipe de arquitetos ligado ao “Projeto Memória” obtive uma versão esquemática da cronologia relevante do instituto que os arquitetos particularmente prezavam, um diagrama montado por J.C.Ferreira, museólogo da casa5. Numa folha deitada de papel A4, duas linhas do tempo inicialmente separadas convergiam ao meio da página, onde o ano de 1892 estava assinalado, e seguiam a partir daí reunidas até os dias de hoje. Vários traços verticais cortavam a continuidade deste curso, assinaladas por uma breve indicação de data e evento. O maior mérito deste quadro, para os arquitetos (foi Paula, outra componente da equipe de arquitetos quem acabou me fornecendo uma cópia do esquema), era a possibilidade de registrar os fatos relacionados ao prédio (o Paço de São Cristóvão) separadamente dos relacionados ao museu (que, da fundação em 1818 até 1892 residiu em outro endereço6) até que ambos se fundissem, quando da mudança do Museu para o antigo Palácio dos Imperadores, após a Assembléia Constituinte republicana. [consultar o esquema para acrescentar aqui alguma peculiaridade/equívoco (vinculada ao meu tema) que consta nesta cronologia – p.ex., registra o fechamento e reabertura das exposições ainda no período HAT?] 5 A J. C. Ferreira (2002) devemos, posteriormente, sua tese na EBA, em que reconstitui, com rigor e boa documentação, as várias fases e camadas da arquitetura do Paço da Quinta, desde antes de ser residência da família real até os dias de hoje. 6 Um prédio diante do Campo da Aclamação, hoje Praça da República. Este prédio, após a saída do Museu, sediou o Arquivo Nacional, até a sua transferência para a antiga Casa da Moeda, no outro lado da praça, e hoje se encontra semi-abandonado. 18 UMA CRONOLOGIA POR CICLOS EXPOSITIVOS Estabelecer uma cronologia que balize a cadência de fatos e períodos, referida à régua linear do calendário, é um instrumento chave de apoio à nossa análise. Longe de ser um mecanismo burocrático e neutro, ela em alguma medida expressa de forma sintética, pelas escolhas e relevos, os partidos conceituais assumidos na análise histórica que a acompanha. O ponto crítico no estabelecimento de uma cronologia, mais determinante que a seleção dos elementos considerados relevantes na seqüência de eventos, é o critério da periodização. Onde cortar, considerar como ruptura, e que blocos manter contínuos. Determinar os ciclos de desdobramento de um programa relativamente contínuo, e sobretudo localizar momentos de descontinuidade, em que alguns elementos estruturantes são modificados – é este desenho do ritmo histórico que está intimamente vinculado à interpretação que se quer dar do ocorrido. Margaret Lopes menciona as limitações do estabelecimento de cronologias, especialmente as que se orientam por ciclos administrativos de gestão dos diretores como os marcadores pertinentes de periodização institucional (LOPES & MURRIELLO:1995:16). No entanto, para o estudo da história da “função expositiva” de um museu é imprescindível, ainda que de forma instrumental, estabelecer uma periodização de referência. E o peculiar personalismo dos diretores na condução dos primeiros museus brasileiros – já apontada por CORRÊA ([?]), pela própria LOPES (1997:326), e que possivelmente é um fenômeno mais geral, a creditar as indicações de SHEETS-PYENSON (1988:26, 98) – torna inevitável a consideração da sucessão de diretores como marcadores pertinentes a qualquer tentativa de periodização. Já que pretendemos reivindicar a incidência de uma mudança radical nos anos 1940, é bom tentar estabelecer uma periodização que evidencie as continuidades e rupturas da trajetória do instituto. Sugerimos uma periodização ancorada nos ciclos expositivos. A duração dos ciclos coincide com o período ininterrupto em que as galerias permanecem abertas ao público. Os balizas que sinalizam os pontos de mudança são o momentos em que se iniciam grandes reformas, e a visitação pública é interrompida. Iniciemos a construção da nossa cronologia de maneira simples, apresentando apenas duas linhas paralelas de eventos. Uma cronologia possível para o MN a partir do momento republicano, que alinha a cadeia dos ciclos expositivos com a dos mandatos de diretoria. (Ver 19 quadro “Cronologia 1”). Na barra acinzentada de cima, uma seqüência sinaliza as datas dos eventos mais relevantes relacionados às exposições permanentes do Museu. A linha corrida representa continuidade das exposições; já os intervalos indicam momentos em que houve interrupção do atendimento ao público e as exposições foram fechadas para reformas gerais. Os pontilhados representam reformas em (ou perda de) parte significativa das exposições – enquanto as demais galerias permitiam ainda manter a casa parcialmente aberta ao público. Cronologia 1 A faixa cinza de baixo assinala períodos de gestão de alguns diretores de referência, os que estiveram mais diretamente envolvidos com grandes reformas da casa e das exposições. (Ladislau Netto; João Batista Lacerda; ERP: Roquette-Pinto; HAT: Heloisa Alberto Torres; JCC: José Candido de Melo Carvalho; LFD: Luiz Fernando Duarte; SAA: Sérgio Alex Azevedo). Esta régua cronológica serve apenas como um esquema de referência, para estabelecer os parâmetros de periodização que nos orientarão. Não pretende ser o registro sinótico do conjunto dos fatores decisivos de sua história. Não é difícil mencionar vários que não encontram inscrição neste esquema, como p.ex., os momentos do processo de sua incorporação pela universidade. As exposições de um Museu do porte do MN tendem a estar sempre parcialmente em reformulação – seja para a mera restauração e reciclagem de materiais, seja para atender a um projeto inovador. No entanto, em alguns períodos peculiares, o projeto expositivo como um todo foi repensado, e uma grande reforma, que eventualmente obrigou ao fechamento temporário do Museu ao público, foi empreendida. A periodização que propomos para 20 analisar a história das exposições do Museu no período republicano se baseia nestes ciclos longos, e parte da delimitação dos episódios de grandes reformas, cada uma delas finalizada pela inauguração de uma nova montagem completa das exposições permanentes. Encontramos quatro episódios de reforma geral: A primeira é a operada pela mudança do Museu do prédio do Campo de Santana (onde se situava desde a fundação e durante toda a Monarquia) para o palácio da Quinta da Boa Vista, realizada no ano de 1892. A visitação pública foi precariamente franqueada a partir de 1894, interrompida em 1898 para rearranjos das coleções, mas só em 1900 foram oficialmente inauguradas as novas instalações. A área aberta ao público era restrita ao pátio central (da fonte), onde uma miscelânea de peças eram dispostas nas galerias ao redor do pátio, tendo o esqueleto da baleia jubarte sido montado na antiga capela da Imperatriz. Uma segunda fase se inicia em 1910. Lacerda fechou o Museu ao público para empreender reformas gerais. Promoveu intervenções significativas na arquitetura do palácio para adaptá-lo às novas funções. Derrubou várias subdivisões entre salas; construiu o 3º pavimento nas áreas em que ainda faltava, nivelando todos os andares do prédio; abriu um vão central no piso de algumas das salas da frente do palácio, que cruzava os três andares formando prismas de galerias; desfez a capela imperial (construída em 1850) na ala dos fundos do palácio; demoliu o observatório astronômico de D. Pedro II no terraço do torreão norte7. As exposições são inteiramente reformuladas – ou melhor, pela primeira vez formuladas no novo espaço – e um conjunto de mobiliário moderno, vitrines de aço e vidro, é importado da Alemanha para abrigar as coleções. A prefeitura, responsável pela administração do parque da Quinta e do entorno do palácio também empreendeu obras significativas: desmontou o portão (hoje à entrada do Zôo) e ergueu os jardins frontais ainda hoje presentes – mal recebidos e severamente criticados pelo pessoal do Museu. As novas instalações do Museu foram inauguradas e abertas à visitação pública em 1914. Uma terceira transfiguração ocorre no período inicial da administração de Roquette-Pinto, que se torna diretor em 1926. Entre os anos de 1927 e 31, Roquette empreende várias reformas parciais que, somadas, alteraram bastante a funcionalidade das exposições. Não chegou a 7 Para essas e outras referências às diversas intervenções arquitetônicas que sofreu o prédio do Museu, consultar sobretudo FERREIRA (2002). 21 fechar inteiramente a visitação ao público. O precário auditório, que ficava no 2º andar aos fundos, foi transferido ampliado para o térreo, com instalações para projeção de filmes; voltou a fechar o vão central das salas da frente do prédio, que Lacerda abrira; construiu uma projeção da ala dos fundos para o pátio da fonte, ampliando a biblioteca e seus acessos; instituiu o Serviço de Assistência ao Ensino de História Natural, depois tornado 5ª Seção pelos novos estatutos; aperfeiçoou as exposições de antropologia, mas sem grandes na sua configuração espacial. Também neste período foram alteradas de forma mais radical as exposições de zoologia, como p.ex. a da antiga sala de esqueletos nos fundos do 3º andar que foi desmontada e no seu lugar instalados mostruários das extensas coleções de peixes reunidas por Miranda-Ribiero; as grandes ossadas de mamíferos (baleia, elefante, girafa, etc.) acabaram reunidas às demais montagens (e.g. taxidérmicas) de mamíferos na ala da frente. A quarta grande mudança se dá em 1941. Heloisa Alberto Torres fechou o Museu à visitação para empreender reformas estruturais no prédio (basicamente restauração, sob supervisão e aprovação do recém criado SPHAN, que incluíram a demolição da extensão no pátio da fonte erguida por Roquette) e reformular todo o uso do espaço – além de montar exposições em bases inteiramente novas. Várias circunstâncias levaram as obras a se prolongarem muito além do planejado, e só em 1947 o Museu foi reaberto ao público, com a inauguração das galerias de geologia no térreo e de antropologia e arqueologia na ala da frente do segundo pavimento. Em 1951, inaugura a sala de Etnografia Regional. A construção de um anexo ao palácio, para abrigar oficinas e algumas coleções, só é finalizada em 1957, quando é inaugurado. Quanto à montagem das galerias de zoologia e paloentologia, planejadas para ocupar as salas da metade dos fundos do segundo pavimento do prédio, foram sendo indefinidamente postergadas. Somente a partir de 1956, sob a nova administração de Carvalho, iniciaram-se as inaugurações anuais dessas novas áreas, completadas em 1961. Sucedendo às quatro reformas gerais, o Museu conheceu quatro grandes montagens completas de suas exposições permanentes no Paço da Quinta da Boa Vista. (Ver quadro: ‘Cronologia 2’). A 1ª consistiu na mera acomodação improvisada das coleções trazidas do Museu Imperial em um palácio inadequado para recebê-las, recém egresso da primeira Constituinte Republicana. É a 2ª montagem que representa a implementação de um projeto expositivo completo. A 3ª é uma adaptação e expansão da 2ª, acomodando a escala crescente das coleções, grosso modo na mesma direção, apenas com uma inflexão mais acentuada no viés escolarizante do museu. Somente com a 4ª, que se consolida em duas etapas, veremos 22 aparecer mudanças mais significativas no perfil da instituição e no conceito das suas exposições. Cronologia 2 No caso das três primeiras montagens, as exposições perduraram aproximadamente por uma década, sofrendo períodos de reformulação que duraram quase meia década. Mas a quarta se deu em condições extremas de crise e reformulação institucional. O período de reforma foi excepcionalmente prolongado e implicou numa mudança generalizada da alocação de áreas do Museu, começando com a transferência da biblioteca do segundo para o terceiro andar, dos fundos para a frente do Palácio, passando a ocupar área 50% maior. As exposições foram concentradas todas no segundo pavimento, à exceção das de geologia no térreo, nas salas ao redor da escada de mármore. Uma vez inauguradas – o que ocorreu em duas etapas, primeiro as de Antropologia e Geologia, e apenas uma década depois as de Biologia –, as exposições permaneceram montadas sem sofrer alterações significativas por um período também extremamente longo. Se há algum caso em que a categoria museológica ‘exposição de longa duração’, mais que a de ‘exposição permanente’ (que afinal pode durar apenas poucos anos antes de ser desmontada e reformulada), pode ser aplicada literalmente ele se encontra neste episódio. Após várias estudos (afinal abandonados) considerando a possibilidade de transferir o Museu para o campus universitário da Ilha do Fundão, nos anos ’708, as exposições, e as instalações em geral, entraram na década de 1980 em estado de acelerada degradação. Uma parceria com o Pró-Memória se iniciou em 1986, visando planejar uma nova reestruturação da instituição. A biblioteca foi transferida em 1989 para um novo prédio construído no Horto 8 Sobre esses estudos, para os quais a universidade instalou uma comissão desde 1972, ver CARVALHO (1977), que resistia à idéia da mudança, e Castro Faria (1993[1982]), que francamente a advogava. 23 Botânico da Quinta, e se iniciou a construção de outra unidade para abrigar o Departamento de Vertebrados (transferido em 1994). Os infortúnios das tentativas de reformular parte das exposições em 1992, criando um núcleo de galerias sob o tema da biodiversidade, ilustra as dificuldades de renovação em que se debatia a instituição. O ano de 1995 marcou o ponto de não retorno: tempestades danificaram o telhado do prédio e inundaram coleções, deixando o instituto em estado de emergência. Mais de cinqüenta anos depois de iniciadas as reformas de Heloisa, as exposições delas originadas ainda permaneciam encenadas num Museu que se debatia com dificuldades arraigadas para se renovar. Nosso estudo principal está focado nas transformações que ocorreram sobretudo com as reformas iniciadas nos anos 1940, através da análise comparativa entre o museu concebido no período anterior – compreendido entre as exposições inauguradas em 1914 e que se estende até 1941, incluindo uma fase de reformas parciais nos primeiros anos da administração de Roquette – e o museu resultante, com suas exposições inteiramente renovadas e abertas ao público ao longo das décadas de 40 e 50. 24 TRÊS MUTAÇÕES EM CURSO NA DÉCADA DE 1940 Tudo leva a crer que, na trajetória do Museu, há uma ruptura sem precedentes nos anos da Segunda Guerra Mundial. Ocorre ali uma mudança de figura, uma descontinuidade no curso do instituto que só encontra paralelos, talvez, na da época em que Ladislau Netto assumiu a direção da casa, e depois, com a República, quando o mesmo Ladislau esteve à frente da mudança física da sede do Museu para o que fora o palácio imperial. Ao estabelecer uma periodização, se quisermos eleger um momento singular que demarque a transição de fase, o corte há de passar ali, bem quando HAT assume a direção. Dizendo de outro modo, Heloisa Alberto Torres, apesar de ter uma carreira ‘de transição’, que atravessa a grande mudança tanto do Museu como da disciplina, participando e forjando alianças com os protagonistas de ambos os momentos, e ainda que discípula e herdeira direta de Roquette, talvez esteja afinal mais próxima de pesquisadores como José Candido de Melo Carvalho, José Lacerda de Araújo Feio e mesmo Newton Cruz, do que do seu dileto mestre 9. A mutação histórica pode ser descrita por três camadas de mudanças cruciais: Em primeiro lugar, a introdução do conceito de exposição museal, tal como, no geral, ainda o concebemos hoje. Pois este ainda não havia se instalado no MN. Entenda-se bem, não quero dizer que não havia coleções expostas, arrumadas em vitrines limpas e etiquetadas, em salas franqueadas à visitação do público geral. Sim, elas estavam expostas. Na verdade, havia até coleções demais à mostra. Era um excesso de vitrines e de espécimes por vitrine, freqüentemente inúmeros exemplares repetidos ou semelhantes de uma mesma espécie taxonômica, e, já no final da década de 30, com o acúmulo explosivo de novas aquisições, não seria raro encontrá-los já um tanto amontoados, obstruindo-se mutuamente e disputando uma nesga da visão dos visitantes. 9 Quanto às ambigüidades da participação de HAT em dois momentos muito distintos da disciplina antropológica, ver as sugestões de Marisa Corrêa a respeito das hesitações de Heloisa na escolha do trabalho a apresentar no concurso para cadeira da Faculdade Nacional de Filosofia: se os resultados de um antigo estudo inacabado em antropologia física, na linhagem das pesquisas de somatometria das raças brasilianas de Roquette; ou se um novo estudo, na então ascendente área de etnografia regional e folclore, a respeito da indumentária típica da “crioula baiana”. “Já havia uma incompatibilidade entre a ciência aprendida por ela na juventude e os novos ares da antropologia” (CORRÊA:1997:157-8) 25 E aí é que está o problema. Não se tratava de uma exposição propriamente, montada a partir de um roteiro intencional e em que cada objeto apresentado cumprisse uma função narrativa. O que o museu abria ao público leigo era boa parte de todas as suas coleções. Ali, nos corredores de visitação, o que se mostrava eram os depósitos da casa. Ora, esta conjuminância do catálogo da exposição e o inventário da própria coleção, esta não distinção entre coleções de exposição e de estudo, indica justamente a ausência do conceito de exposição propriamente dito. E também do seu irmão gêmeo, a reserva técnica, onde coleções destinadas exclusivamente ao estudo são mantidas fora do alcance do público externo. Pois só quando se separa inteiramente não apenas as funções – a pesquisa e a divulgação – mas também as próprias coleções, os conjuntos de objetos envolvidos em cada uma das atividades, só então a exposição pode criar suas próprias regras e ganhar expressão. Em segundo lugar, radicaliza-se o processo de especialização das carreiras dos profissionais do museu. Extingue-se a figura genérica do naturalista que se desdobra em no mínimo quatro especialidades científicas 10. A proliferação de especializações no museu não ocorre apenas devido ao fenômeno de desdobramento da carreira dos cientistas em vários ramos. Começam a aparecer, ser requisitados, ou mesmo tornar-se imprescindíveis os profissionais dedicados ao planejamento e cuidado das exposições, treinados em comunicação e educação, ou em artes e arquitetura, capacitados tecnicamente a traduzir conceitos acadêmicos para uma mídia acessível e agradável ao leigo. Apenas como ilustração, menciono brevemente algumas incidências das tensões dramáticas de ambos os processos que vieram à tona durante o episódio da crise administrativa de sucessão da diretoria de 1946. Heloisa, que dirigia o instituto desde 1937 e pleiteava a 10 Oswaldo Frota-Pessoa, em depoimento à revista Pesquisa Fapesp (FROTA-PESSOA:2005), recorda que ele e alguns amigos que se interessavam por história natural, tiveram de ingressar na Faculdade Nacional de Medicina devido à inexistência de um curso superior em biologia. Foi quando um dos colegas, Newton Dias dos Santos (que viria a ser diretor do MN em 1962), descobriu que fora inaugurado um curso de biologia na recém-criada (e efêmera) Universidade do Distrito Federal, de Anísio Teixeira. Recorda-se do excepcional professor de botânica, ninguém menos do que Alberto Sampaio, ex-chefe da seção de botânica do MN, e que, como todos os outros naturalistas do Museu, já preferiam lecionar nas novas faculdades sendo criadas do que isolar-se no instituto da Quinta. O interessante para nós em toda esta anedota é o descompasso, para a geração que amadureceu nos anos 30, entre o interesse de conhecimento já relativamente especializado, e a restrita oferta de formação generalista na única faculdade (a de medicina) existente na cidade minimamente vinculada às ciências da vida, servindo como uma espécie de guarda-chuva obsoleto para inúmeras carreiras divergentes. A formação em medicina, lembremo-nos, foi também a de Alberto Sampaio, Roquette-Pinto, Mello Leitão, e inúmeros outros naturalistas do início do século (a alternativa era a formação em engenharia de alguns, em geral geólogos, como Alberto Betim Paes Leme). 26 renovação do seu mandato, foi alvo de inúmeros ataques e acusações públicas por parte de um grupo de funcionários descontentes. Uma delas protestava contra o ato da administração que dividiu a tradicional publicação Boletim do Museu Nacional em 4 séries distintas, segundo as especialidades. Outra das queixas acusava a diretora de haver retirado das seções científicas a autoridade e a gestão da concepção das novas exposições, atribuindo a responsabilidade a pessoal técnico em educação e museologia 11. A terceira grande mudança se dá na rede de relações e intercâmbios com outras instituições científicas e museológicas, em especial as internacionais, o deslocamento da posição do Museu face aos “sistemas museais” 12. As referências predominantemente européias da geração de Roquette, e a inspiração declarada no modelo do Muséum de Paris, sofre uma guinada nítida para parâmetros e intercâmbios norte-americanos 13. Os três elementos ou processos de mudança que indiquei – na organização e concepção do uso das coleções, na carreira dos profissionais, na rede de intercâmbio com outros museus – precipitam-se de forma dramática com o ambiente político do Estado Novo e do pré-guerra imediato. O instituto atravessa uma fase crítica que levará mais de duas décadas para superar, e a um alto custo institucional. Entre os preços pagos nessa transição, ocorre uma grave descontinuidade geracional, que incide tanto na face interna quanto externa do órgão: já em condições precárias de reprodução das suas instalações materiais, o museu claudica em garantir agora as condições de reprodução do seu corpo técnico-científico, e, por outro lado, também acaba inviabilizando temporariamente a reprodução do seu público. Em primeiro lugar, o decreto da desacumulação de cargos e as incertezas da categoria de pesquisador levam ao esvaziamento da instituição de todos os seus naturalistas seniores, sem 11 Ambos os episódios são descritos em CORRÊA (1997) e RIBEIRO (2000). “[Algumas] críticas feitas a Heloisa sugerem que suas iniciativas de explicitar a separação que começava a se dar entre a antropologia e suas vizinhas no Museu não foram bem recebidas. (CORRÊA:1997:150). 12 Conceito adotado por LOPES (e.g. LOPES & MURRIELLO:2005:15-16), seguindo proposta de Susan Pearce, e que permite enfatizar as influências e o papel crucial exercido pela circulação dos catálogos de coleções, e pelas viagens de survey aos museus estrangeiros. 13 Mariza Corrêa ser refere a uma “‘troca de guarda’ nas influências sofridas pelo país durante e logo após a Segunda Grande Guerra, influências que igualmente se expressariam na antropologia como uma disciplina que começava a se constituir” (1997:143). Em outro texto ela retoma o tema, observando que, já no início dos anos 30, “começava a haver uma troca de guarda na vida intelectual da antiga colônia, e o país passava, lentamente, da esfera da influência européia, e mais especificamente, francesa, para a esfera da influência norte-americana” (CORRÊA:2000:163). 27 que houvessem chegado a formar substitutos. J. Feio (naturalista contemporâneo da reforma Torres-Carvalho, e que viria a ser diretor em 1967-71), em um manuscrito não publicado em que traça um breve histórico do MN, redigido em 1943/4, assim descreve a situação: “Em 1938, o Museu passa por uma situação aflitiva, pois pela desacumulação vê seus técnicos afastados, procurando um honorário mais compensador, enquanto que aposentadorias e a morte afastam outros. Esta situação só toma um caráter diferente em 1944, após a realização de um concurso onde são providos os lugares vagos. Houve infelizmente uma solução de continuidade nos trabalhos do Museu [grifo j], pois a geração nova não encontrou na casa aqueles que pudessem transmitir o que eram depositários” (FEIO:1943/4: 5-6). Mariza Corrêa menciona anotação no diário de Métraux, em 1939, de “que dona Heloisa ‘se queixa, contudo, do regime e das leis que impedem a acumulação de cargos. Todos os funcionários desertaram do Museu para se dedicar ao ensino’ ” (CORRÊA:1997:233). Com a demora em obter autorização para promover novos concursos e indefinições quanto ao futuro da carreira de naturalista, só gradativamente uma geração nova e academicamente semi-órfã virá a ocupar as posições deixadas vacantes, e a custo se estabilizará. Ela se formará já sob a batuta do regime universitário e suas especializações estritas. O segundo aspecto dessa descontinuidade geracional se deve ao fechamento do Museu ao público durante as reformas (estruturais de conservação do prédio; mas também funcionais e conceituais, como a reorganização das coleções em reservas e novas exposições que já mencionamos). Queria-se de início evitar a necessidade do fechamento, depois concedeu-se que deveria durar dois anos14, mas a situação acabou se arrastando indefinidamente. A visitação pública foi reiniciada seis anos depois, com a inauguração das exposições de geologia, antropologia e arqueologia, mas todas as de zoologia e paleontologia só começarão a ser reabertas quinze anos após o fechamento. Isto equivale a toda uma geração de jovens 14 Em uma carta dirigida a Arthur Ramos, de 1941, Heloisa menciona a intenção de reinaugurar o Museu em meados de 1943, para quando se sugeria a realização de um Primeiro Congresso Brasileiro de Antropologia, projeto que foi logo abandonado. (Cf AHMN:Fundo HAT, “Cartas de 1941”, p. 229-230, carta de 11/11/1941; um trecho desta carta encontra-se reproduzido em CORRÊA:1997:154). 28 instruídos da capital que cresceram sem o seu museu de história natural, sem visitas escolares, sem preguiça gigante, esqueleto da baleia, índios, Bendegó ou múmias do imperador 15. Em resumo, creio que ocorrem ao menos três grandes mudanças fundamentais: nas coleções, no pessoal, nas relações externas. (1) A reorganização de coleções naturalistas e sua divisão em duas categorias (e é aí que entendo o surgimento da nova concepção de exposições); (2) um salto na especialização de antigas carreiras científicas, como também o aparecimento de outras especialidades (como a museologia e a educação em museus); por fim (3) o deslocamento nas redes de relações e intercâmbios com outras instituições de pesquisa, especialmente com museus e universidades no exterior. 15 Por outro lado, sem acesso aos animais taxidermizados, passaram a contar com os vivos em cativeiro: desde 1945 os visitantes do Parque da Quinta da Boa Vista contavam com o Zoológico da cidade, trazido de Vila Isabel e instalado na esplanada onde antes havia o antigo Horto Botânico criado por Glaziou. Para compensar a perda da área, o Museu recebeu uma faixa ao sul da Quinta, próxima às linhas de trem, onde implantou o seu novo horto. É neste anexo que hoje se encontra o prédio da biblioteca e onde vêm sendo construídos novos prédios para abrigar os departamentos e coleções científicas. 29 A separação das coleções como inauguradora do museu moderno Apresento a noção da clássica divisão entre coleções de estudo e coleções de exposição – que se tornou dominante entre os museus de história natural da Europa e Estados Unidos no final do século XIX – e proponho, como hipótese mestra deste trabalho, que tal divisão só se estabelecerá no Museu Nacional durante a grande reforma das décadas de 1940-50, sendo provavelmente o fato mais marcante (e heurístico) das transformações pelas quais passou a instituição no período. Sugiro uma releitura do conhecido episódio de amofinação entre os diretores do Museu Paulista e do Museu Nacional, no final do século XIX, à luz da hipótese mestra. COLEÇÕES PLENAS EXIBIDAS Começo com uma afirmação quase extravagante: Não havia exposições no Museu Nacional do Rio de Janeiro antes da década de 1940. Não há escândalo em enunciar isto. Desde que se restrinja a definição da noção de exposição, para tentar evitar projeções retrospectivas. Tomo aqui exposição em um sentido minimamente próximo do que se veio a entender por esse conceito depois – e que, em seus termos gerais, já era explicitamente formulado e praticado ao longo da segunda metade do séc. XIX, especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Segundo este programa, mais que apenas oferecer coleções ao olhar público, numa exposição cada objeto presente deveria pretender cumprir uma função de um plano concebido para afetar diretamente esse público; além disso, a disposição dos mostruários e de todo o ambiente da montagem deve induzir o visitante a seguir um percurso que procura desenvolver conceitos, problemas, narrativas, sugerindo relações entre diferentes elementos apresentados. Uma economia funcional de objetos apresentados e um sinergismo “deambulatório” do conjunto. Se assim definirmos a noção de exposição, então seremos forçados a admitir: não era em absoluto o que se encontrava então no Museu Nacional do Rio, nas suas amplas galerias abertas ao público. Se havia coleções expostas, não havia ainda o conceito de exposição. Isto porque também não existia o conceito pleno de reserva técnica. Insisto que ambos estão necessariamente 30 vinculados, e aquele só pode surgir quando este se estabelece plenamente. A reserva é parte da coleção cujo acesso é restrito a profissionais autorizados. Pode-se alegar (e historicamente se alegou) justificativas diversas e específicas para essa restrição de acesso. Seja devido à sua particular importância cientifica ou à fragilidade e à necessidade de condições especiais de conservação que não permitam, p.ex., exposição à luz, ou ainda simplesmente por seu baixo rendimento museográfico, não se prestar bem à exploração expositiva ou ser redundante com o já exposto. Ou então apenas porque se ‘inventou’ duas formas diferentes de coleção, em função da distinção estrita entre dois públicos-alvos: o pesquisador especialista e o visitante leigo em geral. O termo reserva denota antes de tudo seu status reservado, ao invés de franqueado ao público geral. Matizemos logo o tom absoluto da afirmação inicial. É claro que parte das coleções não estava em exposição, e havia algumas reservadas ao uso exclusivo dos pesquisadores da casa. Inclusive coleções completas, como é o caso do herbário, que apenas naturalistas e aspirantes podiam freqüentar. Mas tais casos particulares não invalidam o fato de que grande parte do acervo não se encontrava reservada, o principal da coleção de quase todas as áreas de pesquisa não estava interditada ao olhar público. Noutras palavras, aquelas salas de exposição com vitrines repletas de peças, elas constituíam o principal depósito, o lugar apropriado de guarda organizada e classificada das coleções, a que tanto cientistas quanto público freqüentavam. A grande diferença em relação aos depósitos atuais é que, embora se tratasse sim de um enorme depósito, ele estava acondicionado de tal modo que permitia manter a visitação aberta, através do engenhoso dispositivo do armário-vitrine que cinde ontologicamente os reinos do visível e do tangível, propiciando o máximo de visibilidade dos objetos ao mesmo tempo em que impede o excesso de aproximação física ou a sua tangibilidade. O MN seguia o modelo do Muséum d’Histoire Naturelle de Paris, caso excepcional de grande museu central que manteve todas as suas coleções expostas até a década de 196016. Permaneceu até então imune à influência do programa de separação nítida das coleções em reserva técnica e exposição, cada uma voltada para atender a um tipo de público (o cientista e o visitante geral) e a uma das funções (pesquisa e educação ampliada), programa que ficou 16 « La Grande Galerie de Zoologie fonctionnera ainsi comme une gigantesque bibliothèque de spécimens naturalisés, jusqu’a sa fermeture au public en 1965 » (VAN PRAËT:1995:114) 31 conhecido na virada do século por ‘new museum idea’, seguindo a expressão cunhada por Henry Flower, diretor das novas instalações de história natural do British Museum17. A opção pelo modelo francês é explicita em Lacerda (LOPES:1997:246), que não fazia qualquer menção à distinção de coleções de estudo e de exposição, e chegou a alegar que “apenas a falta de espaço” não permitia a plena exposição de todas as peças de valor (LOPES:1997:295). Uma década depois, por ocasião dos discursos de comemoração do centenário do MN, Bruno Lobo, então diretor, menciona a distinção entre dois tipos de coleções (LOBO:1919), e Roquette chega a citar Flower (ROQUETTE-PINTO:1919). Mas a menção à dicotomia cumpre provavelmente mais função retórica que efetiva. A reforma de Roquette, passada ainda mais outra década (anos 1927-31), visará antes de tudo aproveitar melhor o espaço disponível no prédio, entre outras coisas para poder exibir mais elementos (para tanto fecha os vãos das galerias abertas por Lacerda, cf CASTRO FARIA:1949:12), além de aumentar francamente a biblioteca. Já em 1932, em relatório que apresentou a Roquette de sua viagem aos museus norte-americanos, atendendo a convite da Associação Americana de Museus, Bertha Lutz se mostra animada com “uma nova teoria do Museu, sintetizada pela primeira vez pela expressão the new museum idea”, de Flower, que gostaria ver implementada entre nós18. Outra década e meia passada, e já em pleno curso as grandes reformas iniciadas em 1941, encontramos ainda Castro Faria, no discurso que anunciava a reabertura do MN ao público (com as novas exposições de antropologia e arqueologia), atribuindo como “responsável pela maior parte das falhas [...] a falta, no momento, de depósitos convenientes para as coleções de estudo, que são ao mesmo tempo as reservas destinadas não só ao suprimento, como à renovação periódica dos grupos expostos.” (CASTRO FARIA:1949:16-7). Acrescento mais um testemunho a esta série: em notas manuscritas onde resenha as “Atividades do Museu Nacional do Segundo semestre de 1941 a dezembro de 1944”, Heloisa Alberto Torres justifica parte da demora no preparo das peças de exposição ao esforço, em paralelo, do trabalho pouco visível de organização das coleções da reserva técnica: “a revisão das coleções científicas a serem expostas ao público tem que ser feita concomitantemente com a revisão das coleções de 17 FLOWER (1898). Sobre a relevância e o impacto da questão da cisão das coleções para a história dos museus de história natural a partir da segunda metade do século XIX ver sobretudo SHEETS-PYERSON (1988); e, entre nós, os trabalhos de Margaret Lopes (e.g. LOPES & MURRIELLO:2005). 18 BENCHIMOL et al (2003:212-13); LOPES & MURRIELLO (2005:22). 32 estudo que constituem a maior riqueza de todo o patrimônio do Museu Nacional. Apenas a Divisão de Antropologia tinha catálogos – senão de organização perfeita – ao menos razoável!” 19. Formulo então a hipótese mestra deste trabalho: a separação das coleções, e portanto a instalação de reservas técnicas – depósitos de coleções organizadas cientificamente, franqueadas exclusivamente a pesquisadores autorizados –, só se estabelecerá efetivamente no Museu Nacional quando das grandes reformas iniciadas em 1941 e que levarão 20 anos para serem concluídas. Sustento que as mudanças ocorridas no período, em especial a reconcepção das exposições, só podem ser compreendidas se relacionadas a tal divisão. Da mesma forma, a organização da instituição e as concepções do papel das exposições no período anterior pode melhor ser percebida se levarmos em conta que boa parte das coleções científicas encontravam-se distribuídas nas próprias salas de exposição – e que tal distinção ainda não havia se instalado na ‘cultura museal’ dos professores do Museu. PODE UMA COLEÇÃO DE ESTUDO SER MANTIDA EM EXIBIÇÃO ? Vale reconsiderar um episódio polêmico, já bem comentado pela historiografia20, já que talvez nele ocorra a primeira menção, entre nós, à questão da necessidade “científica” da separação entre coleções de estudo e coleções de exposição em museus de história natural. O caso se passa em fins do século XIX, e envolve o diretor do recém constituído Museu Paulista (Von Ihering) e o diretor do MN (J.B. Lacerda). No 1º número da Revista do Museu Paulista, de 1895, von Ihering fez publicar o discurso que pronunciara na cerimônia de abertura do Museu. Numa passagem menciona que os únicos museus brasileiros de ciências naturais organizados para a pesquisa e seguindo critérios científicos eram o seu próprio, Paulista, e o Paraense (que veio a se chamar E. Goeldi, nome do seu diretor à época). A omissão do Museu Nacional do Rio, o primeiro do país e depositário de coleções muito diversificadas e significativas, predominantemente de história natural, só poderia ser proposital. Von Ihering, por default, deixava entender que não considerava as coleções e a estrutura do MN relevantes, do ponto de vista científico. A provocação desencadeou reação forte na capital. Lacerda 19 Arquivo Histórico do MN, MN Classe 624, 1944-1972, p.6 (seção intitulada “Coleções Científicas”). 20 LIMA (1989:294-7), SCHWARCZ (1989:42-4), LOPES (1997:292-6). 33 publicou resposta indignada, destacando a importância, abrangência, e organização dos acervos da casa e arrolando as publicações em que os resultados das pesquisas científicas (baseadas nas coleções) da instituição eram apresentados. Na sua resposta, no entanto, não faz qualquer menção a uma das alegações mais agudas (e venenosas) de von Ihering: este havia mencionado (quase casualmente, como que citando um princípio óbvio) que, em um museu de ciências moderna e adequadamente organizado, as coleções de estudo deveriam estar separadas das coleções de exposição. Garante que o Museu Paulista já nascera concebido segundo esta distinção fundamental entre dois tipos de coleção, dois públicos-alvo (o estudioso especialista e o visitante leigo), enfim, duas funções: a pesquisa e produção de novos conhecimentos científicos, por um lado; a divulgação (ou vulgarização, como se costumava dizer na época, seguindo a preferência francesa) da ciência para o público leigo, a educação ampliada da população em geral. Se Von Ihering podia sugerir que o MN não tinha coleções apropriadamente “organizadas” para o uso científico, era apenas porque as coleções de estudo do Museu se confundiam em grande parte com as que estavam expostas e assim supostamente ‘organizadas para leigos’. A acusação de Von Ihering só é possível na medida em que se aproveita da ambigüidade exposição/coleção de um instituto que não havia (ainda) estabelecido uma separação estrita entre os dois espaços de coleção – as de estudo, as de exposição. A eficácia equivocante do argumento de Ihering provém de deduzir, a partir da constatação de que, no MN, as coleções coincidem com as exposições, que não há ali coleções de estudo, e, em última análise, que não há pesquisa. Mas o mais apropriado seria antes considerar que o que não há são coleções propriamente de exposição! O que levava este nome, já que aberto à visitação pública em horários regulares, era antes de tudo o conjunto do acervo, o depósito principal de coleções. Um depósito cuidadosamente acondicionado de modo a permitir a visibilidade (e, no mesmo lance, a impedir a manipulação desautorizada) de todo o acervo, utilizando o máximo possível armários com folhas de vidro pelos quatro lados (que hoje chamaríamos vitrines), e que propiciasse ao usuário, ao adentrar uma sala, num relance de olhar atravessar panopticamente toda a coleção e poder localizar qualquer espécime. Minha sugestão, talvez um tanto óbvia, é que as coleções estavam – adequada e cientificamente – organizadas em armários de vidro. Este arranjo não era uma solução de compromisso precária, forçando os pesquisadores a aceitarem trabalhar com armários 34 supostamente pouco cômodos ou inadequados ao armazenamento científico de coleções, de modo a viabilizar que, em parte do tempo, eles fossem também franqueados à visitação pública. Tudo leva a crer que o sistema de armários transparente representava um método plenamente eficiente, um dos métodos ótimos da época, de armazenamento de espécimes de história natural. Deve-se considerar que o display das coleções em vitrines, antes de ser uma forma de montar espetáculo, de armar as peças inertes para impressionar estranhos, é uma tecnologia de arquivo apropriada para o armazenamento organizado, que permite eficazmente a consulta a qualquer peça individual guardada. Ela se baseia na manutenção do princípio da visibilidade do conjunto das peças – antes de tudo para o próprio pesquisador. Por isso, a navegação no depósito, para se encontrar um espécime, é mais imediata e menos dependente do recurso intermediário de consulta a índices e catálogos de estocagem. Uma simples perambulada no labirinto de armários de vidro equivale a um passeio sinótico pela árvore sistemática do grupo, e se pode enxergar diretamente todos os tipos que compõem a coleção. 35 A separação das coleções: a evidência arquitetônica A REDISTRIBUIÇÃO DO USO DOS ESPAÇOS: 1941-61 Uma forma de evidenciar que a instauração decisiva da “dupla disposição” das coleções do Museu só se deu de forma concentrada nas reformas iniciadas nos anos 40 – corroborando o fato de que não havia reservas ou uma política sistemática de separação das coleções em (1) séries reservadas de estudo e (2) coleções de exibição pública – é através da análise das mudanças gerais na setorização do espaço do Museu antes e depois da reforma. Ela permitirá determinar a área total e proporcional destinada às exposições, por um lado, e à pesquisa, por outro. Serve como um meio indireto de determinar o grau de separação física entre as duas coleções – de estudo e de exibição. (Tal análise merece ser complementada por um levantamento minucioso nos registros documentais de administração das coleções, para verificar se confirmam as conclusões aqui indicadas). O diagrama abaixo apresenta duas séries de plantas baixas dispostas lado a lado para comparação, retratando o estado de ocupação funcional do palácio em dois momentos: 1941, logo antes de fechar as portas ao público, e 1961, ao terminar de inaugurar todas as exposições renovadas. As plantas baixas esquemáticas estão desdobradas nos três pavimentos (o 1º corresponde ao térreo), a que se acrescentam os três andares do anexo inaugurado em 1957 21. A orientação das plantas é no sentido norte-sul, i.e., a fachada frontal do palácio e entrada do Museu (voltada grosso modo para leste) se encontra à direita. (Uma foto com a vista aérea do conjunto foi também incluída para revelar a sua silhueta arquitetônica e facilitar o reconhecimento da orientação das plantas baixas do prédio). As duas principais fontes de dados para montar esta reconstituição comparativa de plantas de setorização foram: o relatório da visita de Cummings, em que descreve o estado de ocupação de cada área do palácio em setembro de 1941, quando passou um mês estudando a situação e o potencial do Museu a convite da diretora (CUMMINGS:1942); e o apêndice de um dos relatórios anuais de administração, de Newton Dias dos Santos, já com as reformas 21 Por falta de dados mais precisos, não levei em consideração neste comparativo pelo menos duas outras ocupações: as áreas imediatamente anexas ao Palácio antes da reforma, onde se localizavam, p.ex., as oficinas de cortume e modelagem (Cf, e.g., fotografia do interior deste pavilhão colegida por J. Feio e guardada no AHMN, JF.0.MN,DR.108/72); unidades construídas no Horto para abrigar setores da Botânica. 36 inteiramente implementadas e o novo modelo em plena operação, no qual são oferecidas plantas baixas e a setorização detalhada de então (SANTOS:1963). As metragens derivam /do relatório de 1963/de levantamento recente realizado pelo ETC. (Obs.: os andares do anexo aparecem aqui representados apenas como blocos retangulares, proporcionais às suas áreas métricas, mas sem fidelidade à forma de sua planta baixa) [Foto: MN, vista aérea, Goggle Earth 2008] [Diagrama: Setorização 1941-61] A setorização é indicada por um código de cores que distingue quatro categorias de funções: (1) as exposições públicas, assinaladas em verde; (2) as funções de extensão (que inclui o Serviço de Assistência ao Ensino e apoio às escolas, o auditório/cinema, e a biblioteca), sinalizadas em amarelo; (3) a pesquisa (que inclui os gabinetes dos naturalistas, os laboratórios, mas também necessariamente as eventuais áreas de armazenagem do acervo não exposto), indicada em vermelho; e (4) os demais serviços (administração e diretoria; oficinas 37 de carpintaria, taxidermia, desenho, fotografia, etc.; áreas de circulação ou desocupadas), mantidas em branco. O 3º andar, antes basicamente ocupado por exposições (todas as de zoologia e de botânica), torna-se área restrita, em boa parte usada pelos setores de pesquisa e para o armazenamento de coleções (toda a botânica, grande parte da zoologia, o novo depósito de etnologia); passa a abrigar também a biblioteca e o arquivo de documentos, que tomam a ala da frente do palácio (antes ocupada pelas coleções expostas de mamíferos, tanto esqueletos quanto taxidermizados). O 2º pavimento, antes em boa parte ocupado pelas exposições de antropologia e geologia, além da biblioteca e alguns poucos laboratórios e gabinetes de trabalho, passa a ser integralmente dedicado às exposições, reunindo todas as de zoologia (nos fundos) e antropologia (na frente), e uma grande sala de paleontologia (a da preguiça). Quanto ao pavimento térreo, vários dos setores de serviço (taxidermia, carpintaria, publicações) e alguns depósitos de coleções (peixes, répteis) são transferidos para o recém construído anexo; as áreas assim desocupadas passam à pesquisa e à exposição (de geologia). A alteração mais notável é a diminuição moderada da área destinada às exposições (em verde), ao passo que a mancha correspondente às áreas de pesquisa (que inclui depósitos, além de gabinetes e laboratórios), em vermelho, e às da biblioteca, em laranja, aumentam expressivamente. Além disso, ocorre uma aglutinação da área dedicada à exposição, antes dispersa e fragmentada por todo o palácio, agora se reunida quase inteiramente no 2º pavimento, além das salas do térreo que rodeiam a escada de mármore da entrada, formando um circuito de percurso contínuo e nivelado. As medidas numéricas confirmam as intuições da impressão visual. [Ver tabela “Redistribuição do Espaço”]. No cômputo das metragens, o espaço ocupado pelas exposições diminuiu num fator significativo (perdeu algo em torno de um quarto da área), enquanto as de pesquisa mais que dobraram de tamanho. Em termos proporcionais, ao final da reforma, a partilha do espaço da casa entre exposições e pesquisa ficou equilibrado (aproximadamente 40% para cada uma); antes era extremamente assimétrico (cerca de 60% para exposições; 20% para pesquisa). A explicação que ofereço é de que o aumento do espaço de pesquisa se deveu primordialmente à constituição de depósitos de reserva técnica, em boa parte remanejando espaços e coleções antes votados à área dita de exposição. 38 [Tabela: Redistribuição do Espaço] A evolução no perfil de distribuição das áreas do palácio, com a presença de salas designadas como de exposição mas que se encontravam interditadas ao público em 1941, evidencia também a falência do antigo sistema de armazenamento, o colapso do modelo acervo-vitrine, e a premência pela reforma do espaço com separação entre as coleções. Sob o risco da ruína. Na nossa tabela consolidada acima, a área dedicada a exposições em 1941 equivalia a 60% da área total construída do palácio, enquanto as áreas de pesquisa ocupavam apenas 21%. No entanto, Cummings assinala que várias das salas das antigas exposições se encontravam já fechadas ao público. As vitrines continuavam lá como haviam sido montadas, mas o acesso passara a ser restrito, vedado a visitantes. Uma das razões dessa obstrução é que se tornara impossível transitar normalmente entre as vitrines e contemplar os mostruários. Devido às obras em andamento e pela falta de outro espaço, os corredores entre os armários encontravam-se ocupados por pilhas de caixas com mais coleções que não encontravam lugar disponível nas suas áreas próprias. Três passagens em que Cummings menciona ambientes nesta situação (grifos meus): “Behind the patio on the left side of the building are three more rooms which at the present time the public is not expected to enter. We had special privileges, being official, so we barged right in. In the first one we noted some sections of the cast of a megatherium, part of a complete set-up which apparently is being renovated. The other two are full of stored material in glass cases, very largely Brazilian ethnology […]” (p45-6) “[O]ne of [the mammal halls] is not open to the public. It offers us, on storage terms, a miscellaneous series of skeletons, with a few mounted animals […]” (p.55) 39 “[...] owing to the changes necessitated by renovation of the building, a large number of insect cases have been placed in temporary storage here [at the birds room], as well as the work tables of the Department of Entomology.” (p.61). Essas salas haviam se tornado, por força das necessidades e a título provisório, depósitos entulhados, não organizados. As restrições de espaço e as dimensões das coleções do Museu haviam ultrapassado um limiar em que, com o equipamento de armazenamento disponível (o padrão vitrine-exposição), era simplesmente impossível dar tratamento eficaz. As salas interditadas são sinais de falência de um modelo. No diagrama com a comparação das plantas do palácio nos dois momentos, antes e depois da reforma, distinguimos as salas com antigas exposições que já se encontravam fechadas ao público22 tingindo-as de verde claro (enquanto as que continuaram abertas à visitação estão em verde escuro). Estas áreas somam a metragem nada desprezível de 1.746 m2. Se, no cômputo geral da setorização do palácio, ao invés de tomá-las como parte da área total de exposições, considerarmos que a parte fechada atende, por antecipação ou precipitação, à necessidade premente de espaço de depósito estrito, reserva fechada ao público (ainda que desordenada), e agregarmos suas metragens ao total da área computada como “de pesquisa”, o resultado já antecipa a distribuição equilibrada de áreas que se estabilizará pós-reforma: a área das exposições que permaneciam abertas em 1941 ocupava 41% do espaço do palácio, e a de pesquisas (+exposições fechadas) ocupava 40%. [Ver Tabela: “Redistribuição do Espaço 2”]. 22 Esta categoria, “salas de exposição fechadas ao público”, corresponderia a uma formulação inversa à proposta por Michael Van Praët mencionada anteriormente para o caso do Muséum de História Natural de Paris, e encerra o mesmo tipo de contradição em termos. Lá, ele preferiu denominar as galerias de uma “reserva aberta” ao público. Com o emprego deste oximoro, Van Praët pretendia sublinhar que, não obstante o público ter acesso à totalidade das coleções científicas do Museu, elas se encontravam organizadas primariamente segundo critérios próprios ao manuseio científico, i.e., eram otimizadas para a pesquisa. O acesso público era uma função segunda, que se acrescentava à original sem obrigar-lhe maior alteração de forma ou disposição. No caso do Museu Nacional aqui considerado, no correr do ano de 1941 encontramos salas com coleções dispostas de maneira a serem consideradas exposições, embora o acesso público se encontrasse vedado. É claro que a aproximação dos dois casos se dá apenas ao nível retórico, das figuras de linguagem. Um não corresponde de modo algum ao inverso lógico do outro. No Museu Nacional, a interdição das galerias se devia a um estado de exceção, denotando a falência de um modelo e uma crise temporária da função museal; no caso do Muséum, que o acervo de pesquisa ficasse aberto ao público era uma opção institucional, denotava o vigor e a ainda plena funcionalidade, mesmo que levada aos seus limites, do velho modelo propugnado. 40 [Tabela: Redistribuição do Espaço 2] Este dado pode indicar o colapso galopante da estrutura de armazenamento de coleções herdado da era de Roquette. As coleções continuavam crescendo, o espaço total para abrigálas permanecia basicamente o mesmo, o mobiliário e o sistema de armazenamento já não permitia atender a contento o exigido. Viam-se obrigados, para estocar precariamente as novas aquisições que não paravam de chegar, a sacrificar parte da função de exposição, fechando salas ao público. Se este esquema viabilizava a guarda provisória do excedente, não resolvia em absoluto as necessidades da função de acesso ao estudo. Caixas empilhadas nos corredores entre vitrines não é exatamente lugar para se encontrar nada. O que quer que estivesse ali, estava temporariamente fora de alcance, aguardando organização futura. O Museu enquanto tal começava a falhar em suas funções. Ambas. Poderíamos sugerir a hipótese de que existe uma relação entre a escala da coleção de um museu de história natural clássico e a grande divisão entre coleção reservada ao estudo e exposições abertas ao público – propugnada por Flower e tantos outros na virada da “era de ouro dos museus”. Encontrei em Podgorny & Lopes (2008:24) uma formulação similar desta correlação, atribuída a Forgan: “Como señala Forgan (1994, 149), el crecimiento de las colecciones a partir de la segunda mitad Del siglo XIX, llevó al desborde la cantidad de información asimilable por el público.” [tb em Lopes & Muriello ¿?] Se esta sugestão for válida, deve-se atribuir a esse descompasso, provocado pela escalada da coleção – e portanto ao sucesso do empreendimento de pesquisa do instituto –, a origem de toda a especialização comunicativa do Museu que se estabelece ao longo do século XX. Pois só quando a exposição ganha autonomia em relação à reserva, à coleção de estudo, e à sua organização necessariamente classificatória e segmentada por especialidade, ela pode pela primeira vez buscar fundamento e princípios conceituais para a sua construção em outro 41 lugar: e.g. no conhecimento do senso comum prévio, na perspectiva da percepção do público, na especificidade da experiência da visita. Antes da separação, o curador de uma certa área de estudos era necessariamente curador tanto da coleção especializada quanto do setor correspondente da exposição, de modo geral o professor naturalista titular da seção. A conjuminância de curadoria apenas denota o fato de que a organização da presumida exposição era obrigatoriamente setorizada por disciplina, o que vale dizer, por táxon classificatório. Pois as próprias coleções eram arrumadas cientificamente antes de tudo para que o pesquisador as utilizasse sem dificuldades, com todas as conveniências da ordenação sistemática e do acesso desimpedido. O fato de serem franqueadas à visitação pública não alterava essa condição primeira de gestão tecnocientífica do acervo. Só quando se separa as coleções e as funções destinadas aos dois diferentes públicos (o pesquisador e o visitante leigo) é que exposições tal como entendemos o conceito, votadas primordialmente à comunicação com o público geral, torna-se algo possível. Antes disso, esse ideal é materialmente irrealizável, e conceitualmente insubstancial. No máximo – como pudemos acompanhar nos esforços de Roquette – um guia de iniciação ao aspirante a naturalista, sugerindo passos de um percurso virtual exclusivo por longas galerias que reúnem a totalidade das coleções tomadas à natureza. Por outro lado, esta separação das coleções e a segregação do espaço dos cientistas instaura um déficit insuperável de transparência na comunicação da ciência, justo no momento em que esta é institucionalizada enquanto tal. Por outro lado, este é a condição de possibilidade, a fratura fundadora da comunicação científica moderna: só há divulgação de ciência senso estrito quando há a separação marcada entre o espaço do público e o laboratório. Um motivo recorrente da divulgação científica passa a ser o esforço para apresentar ao público a ‘science in the making’, os bastidores da reserva ou do laboratório ora inacessíveis. [Novo item aqui: “A Perda da Transparência” (ref perdida a artigo sobre transparência)] 42 desenvolvimento: antes de explorar as plantas de setorizaçao, a mudança da sua ocupaçao nas duas décadas, é preciso familiarizar o leitor com o palácio: - apresentar fotos da fachada e perspectiva - apresentar o folder de visitaçao dos anos 90 (que talvez traga lembrança pessoais de visitação a alguns) - se possível, desdobrar a planta a partir de um esquema em 3d, como aquele q induzi paul ricketts a desenvolver pro primeiro cd-rom do etc - remeter o leitor às plantas originais (Cummings e RAMN) em anexo, quem sabe igualmente pintadas para facilitar o reconhecimento da minha leitura - remeter o leitor às planilhas de cálculo das áreas, em anexo. - apresentar, como exemplo setorial, o caso da zoologia? - entao, pq nao tb o da antropologia, geologia e botanica? rever as tabelas de redistribuiçao do espaço 1 e 2 (trocar a barra / por um sinal de adiçao +) 43 PLANTAS DAS EXPOSIÇÕES DA FASE 2 (PERÍODO 1914-1927): Planta anexa ao Guia das Coleções de Antropologia de ERP, 1915. Planta anexa ao Guia de Mineralogia, Geologia e Paleontologia, de Alberto Paes Leme, 1924 44 PLANTAS DO PALÁCIO EM 1941, ÀS VÉSPERAS DO FECHAMENTO PARA REFORMAS. [Fonte: Relatório de Carlos E. Cummings, 1941] 45 PLANTAS DO PALÁCIO EM 1963, APÓS REINAUGURADAS TODAS AS EXPOSIÇÕES [Fonte: Relatório Anual do Museu Nacional, Santos 1963] 46 PLANTAS DO PALÁCIO EM 1987 [Fonte: Levantamento do Pró-Memória] 47 FOLDERS COM PLANTA DAS EXPOSIÇÕES, PARA ORIENTAÇÃO DOS VISITANTES (c1993) (c1995) (c1997) 48 ESTUDO DA MUDANÇA DE SETORIZAÇÃO DA DIVISÃO DE ZOOLOGIA (1941-1961) (Fontes: Cummings 1941, Santos 1963) 49 A separação das coleções: a evidência fotográfica O QUE OS ANTIGOS PODERIAM ACHAR DE NOSSA TESE Mais uma vez evoco a afirmação provocadora inicial, para efeito de explicitar melhor sua pertinência: antes de ’40, não havia exposições no Museu Nacional. Eis uma proposição nada óbvia, que exige demonstração, mas que hoje em dia posso perfeitamente sustentar sem escândalo e, possivelmente, obter a concordância de alguns. Mas, se pudéssemos apresentá-la aos atores da época, seria muito provavelmente recebida por todos com indignação como um disparate. Imaginemos indagar Roquette-Pinto, ou os seus parceiros de época no Museu, principalmente os mais ligados à divulgação científica, como Alberto Sampaio, Mello Leitão, Paes Leme, os naturalistas que escreviam em jornais e na Revista Nacional de Educação, participavam em programas da Rádio Sociedade, publicavam livros de divulgação de suas áreas na coleção Brasiliana, se consultássemos qualquer um deles, é certo que discordariam em absoluto do que afirmei. Não admitiriam. Na visão deles, era óbvio que havia exposições. Aliás, elas eram uma evidência fácil de comprovar: levantar-se-iam súbito de seus gabinetes, trajados nos tradicionais guarda-pós brancos de bancada, e conduziriam-me empertigados pelos corredores do palácio até alcançar algumas das galerias onde se encontraria um público heterogêneo vagando entre vitrines fartas em espécimes das célebres coleções da casa centenária. Conheciam-nas muito bem já que ajudaram a concebê-las e montá-las (todos estiveram envolvidos na grande reforma promovida por Lacerda de 1910-14, ou na parcial de Roquette, em 1927). De todo modo, não faria sentido algum um museu nacional destituído de exposições abertas ao público, quanto menos nos primórdios da República! Para eles o Museu era, como insistia Roquette numa fórmula bem ao seu estilo (e que ele repetiria depois quanto ao rádio e outra vez para o cinema educativos), a “universidade do povo”, onde qualquer um interessado poderia ter acesso direto e instruir-se, sem pré-requisitos ou interferência de mestres diretos, no que melhor havia dos conhecimentos da ciência e da nação. O Museu era imaginado como um espaço onde se facilitava uma espécie de ‘alfabetização’ nos segredos da 50 natureza do país, iniciando-se o jovem cidadão duplamente em pequeno patriota e pequeno naturalista 23. Se viajássemos de novo no tempo conjectural, e, passadas duas ou três décadas, fôssemos consultar agora os pesquisadores que trabalhavam na grande reforma iniciada em 1941, como Eduardo Galvão e Luiz de Castro Faria (que tiveram participação central na reforma das exposições de arqueologia e antropologia, inauguradas em 1947) ou José Candido de Melo Carvalho e José Lacerda de Araújo Feio (diretamente envolvidos na montagem e abertura das exposições de zoologia, de 1956 a ’61), todos discordariam francamente da minha afirmação impertinente24. Não se consideram inauguradores de algo que teria sempre faltado à casa, montando pela primeira vez ‘verdadeiras exposições’. Eles se vêem herdeiros e atualizadores de uma irrecusável tradição expositiva e educativa já presente na casa há gerações. COMO SE FOTOGRAFAVA UMA GALERIA DE EXPOSIÇÃO Como assim não havia exposições? Eis uma afirmação difícil de sustentar diante das evidências mais banais de arquivo. Se não eram exposições, então o que havia naquelas galerias abertas ao público? Não é preciso buscar pelos catálogos de peças ou pelos livros de tombo, os ofícios administrativos referentes à preparação de espécimes e à confecção de mostruários, as notícias de inaugurações na imprensa ou os livros de visitas, os testemunhos e depoimentos de contemporâneos. Bastam as irrecusáveis e supostas auto-evidentes fotos de época das galerias do MN repletas de vitrines e mostruários. [Ver: Composição de 5 Fotos da década de 1920 tardia, selecionadas entre as preservadas no Arquivo Histórico do MN]. O que então será isso tudo, senão exposição? Para não restar dúvidas só falta a presença de visitantes casuais vagando curiosos entre as vitrines. Pois nestas fotos, as galerias são sempre mostradas sem vivalma. Aparenta o aspecto das salas talvez de manhã cedo, no momento imediato antes da abertura das portas ao horário de visitação. Ou numa segunda-feira, dia em que o Museu permanece fechado ao público, 23 “Iniciando-se os pequeninos no conhecimento da História Natural, cumpre-se também uma missão nacional que é preciso pôr em destaque: formam-se bons patriotas, senão futuros cientistas.” (ROQUETTE-PINTO, 1927a, p42). 24 Note-se que, além de Candido Carvalho que era então diretor do MN, todos serão depois também diretores de museus de história natural, Galvão do Paraense Emílio Goeldi (1961-2), os demais do próprio Museu Nacional. 51 reservado às operações de limpeza e conservação, registrando a imagem da sala impecável, logo após a faxina e arrumação. Mas estas são conjecturas, tentando imaginar uma situação plausível em que tais fotos pudessem ter sido capturadas – mesmo em um Museu normalmente muito visitado. O fato incontornável é que essas fotos flagram um espaço habitado exclusivamente pelos objetos das coleções científicas, organizados metodicamente em séries de armários de vidro. E nenhuma visitação. As fotos históricas das galerias de exposição indicam esta mudança radical na concepção do público. Em todas as fotos anteriores aos anos ’50, as galerias são enquadradas num plano panorâmico, e sem nenhum visitante vagando em suas passagens. (Mas talvez como se do ponto de vista de um visitante que estivesse adentrando a sala ainda vazia, o primeiro a chegar, o museu recém aberto à visitação). Este enquadramento alterna-se com fotografias de autoridades ou personalidades ilustres posando para o registro de alguma ocasião notória, algum evento comemorativo. Já nas fotos incluídas nos relatórios de ’56 em diante, alternam-se (1) o plano médio, fechado em apenas um mostruário visto de frente (como se do ponto de vista de um visitante parado diante dele) com (2) fotos em enquadramento mais aberto, que permite ver parte da composição do ambiente de visitação, com mais de uma vitrine e espaço de circulação, e então sempre se inclui público ‘espontâneo’ (indiferente à câmera, atento aos mostruários), flagrado em pleno ato de visitação, e a legenda sublinha que o motivo principal da foto é justo registrar o público, não os displays. As fotos e ilustrações que acompanham o texto de 1949 de LCF constituem um caso híbrido: além das fotos em plano fechado sobre o display, há várias fotos de ambientes, sem incluir qualquer visitante, como se houvessem registrado para a posteridade as galerias assim que ficaram prontas, impecáveis, antes da inauguração; por outro lado, o croqui 3D em que apresenta o esquema de uma das salas, a museograficamente mais sofisticada, inclui sim a silhueta de visitantes casuais passeando pela galeria. Note-se o contraste das fotos da sala de Antropologia Física e da vitrine dos grandes primatas com a foto equivalente, com os mesmos motivos, que aparece uma década depois, no relatório de 1959. Pois pretendo argumentar que a ausência deste personagem circulante nas fotografias oficiais que pretendiam representar as coleções/exposições do Museu antes dos anos 1940 não é 52 casual. Ela é deliberadamente produzida. E só pode indicar que ele, o visitante, era então concebido como um elemento estranho, fundamentalmente alheio à natureza mesma das coleções. Concluiremos que, afinal, a maneira como eram concebidas as coleções expostas do MN nas décadas que precederam a reforma de 1940 se distinguem num ponto crucial do que veio depois a ser entendido por ‘exposições’. Noção a que ainda somos, hoje, tributários. Tomemos um documento de referência canônico no meio museológico de então, que nos dá registro do estado do Museu à época. Durante quatro meses do ano de 1928, Laurence Vail Coleman, influente diretor da Associação (Norte-)Americana de Museus, viajou pelas principais cidades do continente sul-americano para visitar seus museus e coletar os dados com os quais compôs um Diretório de Museus na América do Sul (COLEMAN:1929), que se tornou referência mundialmente utilizada para identificar as instituições da região25. Arrola 30 instituições espalhadas pelo Brasil, incluindo jardins botânicos, zoológicos e aquários26. No verbete dedicado ao Museu Nacional do Rio de Janeiro (pp. 58-61) incluiu três fotos, a primeira com uma vista da fachada do prédio, e outras duas atestando o aspecto de suas exposições à época. Uma delas retrata a antiga “sala Aristóteles”, de osteologia, uma galeria clássica dedicada à anatomia comparada através da montagem e justaposição de séries de esqueletos, que ficava no terceiro andar do palácio, incluindo o esqueleto da baleia jubarte pendurada no teto27. A outra fotografia do catálogo de Coleman revela a principal sala de 25 Coleman publicou diversas outras obras de referência sobre museus, como o Manual for Small Museums (1927), o College and University Museums (1942) e o Museum Buildings (1950). Sua obra de maior fôlego e influência foi o balanço crítico sobre o estado do sistema de museus norte-americano, em três volumes, onde explicita também suas concepções e recomendações gerais quanto ao modo de organizar museus (Coleman:1939). Não encontrei exemplar do Coleman de 1929 (o diretório de museus da América do Sul) no catálogo atual da biblioteca do MN, mas lá estão nas prateleiras os títulos de 1927, 1939 (adquiridos em 1943) e 1950 (adquirido em 1952) – o que indica que, ao menos no período em que as reformas dos anos 40 já estavam em andamento, o staff da casa o tinha como referência. 26 A sua seção a respeito do Brasil é, provavelmente, o primeiro catálogo sistemático de museus do país. Esta prioridade é confirmada pelo testemunho de um documento de 1963. Neste ano o prof. Sólon Leontsinis, antropólogo lotado na Divisão de Educação do MN, recebeu bolsas do Conselho Britânico e do Governo da França, com as quais viajou à Europa para estagiar por 6 meses “nos principais Museus da Inglaterra e no Museu do Homem, em Paris” (SANTOS:1963:111). Nesta cidade, trabalhou no Centro de Documentação Museográfica do ICOM, órgão da Unesco, na elaboração de um “novo Repertório Brasileiro de Museus”, cotejando a lista das instituições brasileiras já registradas no ICOM – e é aqui que se encontra a confirmação que nos interessa – com “as 4 relações anteriormente publicadas, COLEMAN (1929), H. ALBERTO TORRES (1953), INEP-ONICOM (1958) e TRIGUEIROZ (1958)” (SANTOS:1963:40). (Obs.: a referência ‘Inep-Onicon’ que fornece corresponde a GUY DE HOLLANDA (1958) da nossa bibliografia; a ‘Trigueiroz’ corresponde a TRIGUEIROS (1958)). 27 Provavelmente é a sala combinada #6 e #10 (*), vista no sentido S-N. Correspondente, no 3º pavimento, à que foi utilizada, no 2º, para montar a nova sala de anatomia comparada, quando da reforma de 1941, e que só foi inaugurada em 1957. A sala foi desmontada nas reformas conduzidas na administração de Roquette (provavelmente entre 1929 e 1931), que transferiu os esqueletos de mamíferos (inclusive o da baleia) para a ala da frente do prédio, no mesmo andar, e montou em seu lugar uma grande galeria de peixes. Depois da reforma 53 aves28. [Ver Anexo-Fototeca: Composição de Fotos: as fotos referidas são respectivamente as do canto superior e inferior]. Um longo salão também no terceiro andar, ocupado por uma fileira de armários-vitrines em todo o seu comprimento, sistematicamente distribuídos em compasso eqüidistante, alternando com os portais e as janelas de ambos os lados, de modo a aproveitar o máximo do espaço útil, desde que garantidas as passagens para acesso e iluminação a todos os recantos. [Descrever esta sala, de preferência apresentando as outras fotos da mesma] Usa o eixo central da galeria para formar uma longa ilha com espécimes mais imponentes, permitindo que sejam examinados de todos os ângulos. [Depois, descrever as de antropologia:] Um corredor central, que atravessa vários ambientes, flanqueado de ambos os lados por séries de vitrines inteiramente de vidro, dispostas em cadeias ortogonais, como ‘espinha de peixe’. [Apresentar a planta baixa das exposições junto, presente no Guia de ERP de 1915?] [a primeira é, provavelmente a 43, conhecida à época como “Castelneau”; a segunda é das 5657-59, conhecidas como “Gabriel Soares”, “Virchow” e “Broca”] ESPLÊNDIDOS ARMÁRIOS DE VIDRO, ABARROTADOS DE ESPÉCIMENS Nesta sala, todos os armários são compostos de duas partes sobrepostas, divididas num plano horizontal que atende à altura da linha de visão de uma criança, ou ao limite de alcance ao exame de um adulto sem que precise se agachar. O terço inferior é revestido por metal opaco e fechado por portas chaveadas; os dois terços superiores formam vitrines plenas e constituem o dispositivo propriamente expositivo. Aço e cristal. Revestidas por folhas de vidro pelos quatro lados (e eventualmente mesmo a cobertura superior) de modo a permitir franca iluminação natural e completa transparência e visibilidade do conjunto a partir de qualquer ângulo, ao mesmo tempo em que se exclui qualquer possibilidade de toque ou manipulação dos anos 40-60, esta imensa sala será divida em duas e abrigará coleções e gabinetes de botânica e de invertebrados (por isto recebeu dois números, #6 e #10, no mapeamento de 1963*). 28 Esta sala é a #13 (*), vista no sentido S-N. Corresponde, no 3º pavimento, à que foi depois utilizada, no 2º, para montar a exposição de paleontologia (a até há pouco familiar sala da preguiça gigante), inaugurada em 1956. Ela permaneceu com a exposição de aves até os anos ’40, quando esta foi desmontada para ceder lugar ao depósito das coleções (de estudo) de etnologia – função que mantém até hoje. Na nossa montagem de fotos, a outra sala de aves que aparece é a conhecida por “Natterer”, provavelmente a #12 (*), vista no sentido O-E. 54 das peças. Enxerga-se de um só golpe não apenas todo o conteúdo que se encontra no interior de cada armário, mas também, devido à justaposição em profundidade dos móveis transparentes, a visão atravessa sem esforço o conjunto dos vários mostruários, como se todo o aviário estático se encontrasse reunido sem barreiras ao olhar visitante. No interior de cada armário, um número variável de prateleiras, de uma a quatro, segundo o volume das peças abrigadas, absolutamente repletas de espécimes de pássaros, montados e perfilados de maneira a aparentar o seu suposto aspecto individual em vida, através dos recursos clássicos da taxidermia. A intenção realista de reconstituir a aparência e porte originais de cada indivíduo (‘naturalizado’, como preferem, muito apropriadamente, chamar os franceses um espécime assim preparado) contrasta com a disposição aglomerada em bandos heteróclitos, num arranjo absolutamente não natural. Seguiam aparentemente o que Gray, não sem desdém, intitulou ‘French plan’: “attaching each specimen to a separate stand, and marshalling them like soldiers on the shelves of a large open case” (apud Sheets-Pyenson:1988:9) 29. A questão é: será mesmo isto uma exposição? Não será antes apenas a própria coleção completa? Organizada e apropriadamente acondicionada, pronta ao alcance do pesquisador. Talvez o fato de se permitir diariamente, em uma grade de horário regular, o acesso do público de fora a estas galerias, mantendo os armários de vidro devidamente trancados, seja apenas um desdobramento suplementar de suas funções primárias. Este conjunto não encerra o principal da própria coleção científica da casa, metodicamente armazenada e disposta de modo a tornar fácil e intuitiva a localização e o exame de qualquer grupo que se precisar? Estes móveis são antes vitrines para o olhar maravilhado de estranhos ou são primeiro armários de guarda e fácil acesso para os conservadores da casa? O fato de suas paredes serem formadas por folhas de vidro não os torna menos funcionais como armários de guarda que outros feitos inteiramente de madeira opaca e gavetas numeradas – e o que prejudicam da preservação do material ao efeito corruptor da luz, facilitam na manobra de busca e localização dos espécimes visados. Dito de outra forma, se o modo preferencial de guardar (e acessar) coleções museológicas acabou se tornando o que me referi acima como a “caixa opaca” da reserva, será que um dia não pode se ter preferido impecáveis caixas transparentes? 29 Sheets-Pyenson argumenta que foram as opiniões de John Edward Gray, curador de zoologia do British Museum em meados do século XIX, a respeito da boa organização de museus que mais influenciaram o programa que Flower viria a implantar, quando se tornou diretor da nova unidade do British Museum (Natural History), em 1884. 55 O elemento crucial nestas composições são as fileiras de armários. Requisitados por Lacerda (RMAg, 1911-12, vol.1 p.54), adquiridos por Miranda-Ribeiro (LOPES:1995:226), “armários de ferro e cristal” (RMAg, 1912-13, p.75), “vitrinas novas, fornecidas pela fábrica Eggers, de Hamburgo” (RMAg, 1913, p.47), recondicionados para aproveitamento integral nas novas montagens dos anos ’40-’60, sob os elogios da nova geração de curadores: as “vitrines importadas, iguais às dos melhores museus da Europa” (CASTRO FARIA:1993:76); esses “armários padronizados, os mesmos esplêndidos armários que hoje figuram nas novas exposições” (CASTRO FARIA:1949:12); “os mesmos [armários] das antigas exposições, adquiridas há anos pelo Prof. Alípio de Miranda Ribeiro, na Alemanha” (CARVALHO:1956:25). 30 Os armários usados nas salas de aves são dispositivos chaves dessa articulação coleçãoexposição pois reúnem os dois modelos de recipiente de guarda em um só móvel. As exuberantes vitrines da sua parte superior ofuscam a função silenciosa das divisões sólidas e opacas da sua base. Chaveadas, é muito provável que fossem utilizadas predominantemente para a guarda de mais coleções. Este espaço excedente, usualmente nem notado pelo visitante que restringe a sua atenção às atrações expostas logo acima, indica mais uma vez que o armazenamento da maior parte das coleções compartilhava este mesmo espaço. O que se guardava no ‘porão’ destes móveis? Seriam preferencialmente mais espécimes e variações do mesmo tipo já exposto logo acima? A redundância do tipo estocado permitiria estender aos exemplares guardados ocultos a facilidade de localização que seus congêneres, mantidos visíveis nas vitrines, propiciavam. Eventualmente poderiam se prestar como peças de reposição (de ‘reserva’ na acepção que lhe atribui Castro Faria31), facilitando o trabalho museológico de renovação das vitrines, quando o material exposto estivesse por demais desgastado. [No entanto, ao se reabrir estes closets recentemente, o encontrado em seu interior já não apresentava qualquer relação com o conteúdo das vitrines. Era o pandemônio enclausurado!] 30 Na mesma época, 1910, H. Von Ihering também adquiriu novos armários para o Museu Paulista (Cf LOPES, 1995, p. 277). 31 “[A]s coleções de estudo, que são ao mesmo tempo as reservas destinadas não só ao suprimento, como à renovação periódica dos grupos expostos.” (CASTRO FARIA:1949:16). 56 UM LONGO CORREDOR DE ARMÁRIOS LOTADOS Muito do aspecto e do modo de dispor as coleções nas antigas galerias públicas do MN do início do século XX desapareceu completamente das exposições atuais. Por outro lado, lembra muito a organização hoje em dia de uma reserva técnica. O que há de diferente se parece com o que ocorreu nas bibliotecas com a substituição das estantes com porta de vidro por móveis compactadores opacos. O cerne de um museu de história natural hoje costuma ser apresentado como um corredor. [Ver Foto: “Reserva Técnica DV-MN”]. A foto consta de um livro lançado no ano passado, mais um volume da elegante série que retrata grandes museus brasileiros, patrocinada anualmente pelo Banco Safra. As instalações das reservas técnicas do Museu são aqui representadas por esta imagem dos depósitos do departamento de Vertebrados, um corredor de modernos armários especializados no armazenamento de espécimes. A legenda diz: “Armários com peles taxidermizadas e esqueletos de primatas da coleção de mamíferos do Dep. de Vertebrados do MN, o maior acervo de primatas neotropicais do continente” (SAFRA:2007:49). O regozijo com o tamanho das coleções é uma figura retórica recorrente na maneira de todos os museus de história natural se apresentarem. Este é o ponto que mais orgulha uma instituição: ser repositório de uma coleção de referência abrangente, gigantesca, que aspire à exaustividade. Voltarei a este ponto. A composição da foto explora um ângulo que permite enquadrar os armários como um corredor que se prolonga indefinidamente, as gavetas todas abertas em diferentes posições, deixando ver parte dos seus conteúdos. Pergunto: isto também não é uma exposição? Este arranjo, que visa apresentar ao público uma amostra do núcleo das coleções científicas da casa, para compor a auto-imagem do Museu em livro de divulgação de luxo: não seria uma exposição, digamos, “de brevíssima duração”? Uma montagem excepcional de ocasião, preparada sob encomenda para o olhar fugaz de um solitário visitante especial, incumbido de perenizar e compartilhar com todos a cena através do retrato publicado. Antes da chegada do 57 fotógrafo, eram apenas armários lotados da reserva técnica, com as coleções armazenadas atrás de portas e gavetas certamente fechadas, de modo a mantê-las absolutamente organizadas (qualquer peça possuindo uma localização única e rapidamente acessível, a partir de procedimentos de catalogação e indexação), protegidas de poeira, acidentes, luz, ocupando o mínimo espaço possível. No entanto, aqui parece ter ocorrido um terremoto ou a intervenção de um poltergeist. Neste bizarro arranjo, montado exclusivamente para constar no livro, as gavetas foram aleatoriamente escancaradas, atravancando completamente a passagem entre os armários, de modo a que o máximo possível de peças guardadas aparecesse ‘em seu meio’ numa só visada, num único lance de olhar. Eles montaram uma verdadeira ‘vitrine’ do que se esconde na reserva técnica, uma imagem construída para ser apresentada ao público em geral. Lembra, aliás, o que ocorre numa daquelas visitas que os museus costumam programar em ocasiões comemorativas, e.g. durante “semanas nacionais de museu”, e que franqueia excepcionalmente o acesso às reservas técnicas para o público interessado, no estilo “um passeio pelos bastidores da ciência” ou “em busca dos tesouros escondidos dos depósitos do museu”. Só numa ocasião teatralizada dessas se justificaria tal ‘desarrumação’ em exibição escancarada. Porque, na verdade, esses armários nunca são deixados ou utilizados nesta disposição. Um cientista nunca trabalha num ambiente em que tudo está à mostra, em que todos os arquivos e coleções se oferecem integralmente à percepção. Uma coleção moderna é mantida com todas as peças ‘escondidas’, guardadas fora do alcance do olhar imediato. Podese dizer que ela é, em princípio, preservada do olhar não apenas do público visitante do museu mas também do pesquisador autorizado – embora permaneça ao seu alcance. Os armários de depósito de hoje em dia são basicamente caixas pretas, opacas. O pesquisador precisa lançar mão de métodos engenhosos de registro, índices, catálogos, uma série de intermediários de organização e classificação dessa memória arquivada para que possa ter acesso às peças individuais do acervo. A cada exemplar é designado um código único de identificação e localização, armário tal, gaveta tal, item número tal. Quando necessita examinar o espécime, o cientista consulta os registros, segue as coordenadas indicadas, busca a peça, retira-a e traz para a bancada de exame. Depois devolve-a de novo ao seu nicho de guarda, silencioso, escuro, preservado das movimentações da vizinhança do laboratório. Por um lado, tal disposição preserva fisicamente o melhor possível o objeto; por outro, ajuda a manter o ambiente do laboratório com o mínimo de “ruído”, desimpedido para o trabalho, o 58 menos perturbado possível pela multidão de objetos das coleções disponíveis logo ali, na sua vizinhança imediata. Os armários de acervo são desenhados para serem compactos e acessíveis, embutirem organizadamente em divisões padronizadas o maior número de peças no menor volume de ambiente. E foram projetados para ficarem fechados, mantendo as peças protegidas da poeira, do desgaste, da luz. Presentes por proximidade, porém não visíveis. Recuados da luz e do teatro de operações central do laboratório. Esta foto da reserva técnica de mamíferos do MN parece seguir uma longa tradição iconográfica de apresentação de coleções. Ela obedece a um arranjo icônico com que os museus de história natural apreciam ver fotografadas as suas coleções, para incluí-las em catálogos e outros meios de divulgação quando pretendem dar uma idéia ao público dos recursos e riquezas mantidos nos seus bastidores. A versão recente mais conhecida desta mesma disposição é uma série de fotos tomadas no setor de aves da reserva técnica do Museu Nacional de História Natural de Washington (Smithsonian), tendo no primeiro plano Roxie Laybourne, uma reputada especialista em penas de pássaros. [Ver Foto, obtida no website do NMNH]. Roxie e alguns auxiliares alinhados em profundidade ao longo de um enorme corredor cuja perspectiva se prolonga em direção ao ponto de fuga no horizonte, encontram-se rodeados por um mar encapelado de gavetas abertas, cheias das mais variadas espécies emplumadas. Como numa feira de rua impossível, atravancada de intermináveis bancas e ‘mercadorias’ em múltiplas camadas. Cada gaveta abriga vários exemplares de uma espécie, mas não há duas gavetas com a mesma espécie, de modo que a fileira de gavetas mimetiza os ramos terminais da árvore da vida, da diversidade morfológica das aves. A imagem consegue captar com felicidade algumas das noções mais características do que se quer como uma coleção naturalista nos dias de hoje. Não que se consiga vislumbrar, nessa foto, todos os espaços de guarda de que esses armários são capazes, nem se pretende enxergar todas as camadas de gavetas. Ser incapaz de revelar todos os seus segredos não indica uma deficiência do arranjo, ao contrário, constitui parte do poder 59 evocativo dele. O que permanece oculto, mas suposto presente, é mais importante do que o apresentado. Pode-se ver uma amostra relativamente aleatória de gavetas abertas, apenas o suficiente para preencher todo o campo do enquadramento fotográfico. Todas as gavetas aparecem lotadas. Exibe-se apenas uma ínfima parte do que o espectador é induzido a supor guardado. O efeito visado é, por extrapolação, dar uma idéia da escala global de itens rigorosamente armazenados, muito além do apreensível a uma só visada, impossível de reunir simultaneamente num mesmo panorama fotográfico. Em complemento a essa indicação alusiva quanto à magnitude da coleção não mostrada, a perspectiva da foto acrescenta outro elemento de multiplicação da escala do que é visível. O corredor de acesso às coleções é enquadrado em sua dimensão longitudinal, como se da entrada de um túnel. A perspectiva do ponto de fuga no horizonte de profundidade, para onde convergem as linhas de armários perfilados, produz um efeito de “mise en abyme”: é como se essa coleção, esse corredor formado pela série alinhada de armários ocupados, que segue ilusoriamente diminuindo à distância mas certamente mantendo tudo íntegro em seus compartimentos padronizados, pudesse se prolongar para sempre, indefinidamente. É um corredor que tende ao infinito. Essa é a figura prototípica de uma coleção de história natural: ela deve estar sempre em crescimento, e a infra-estrutura de suas instalações deve estar preparada para expandir indefinidamente, de modo a se manter sempre capaz de abrigar essa proliferação vital. Nas últimas décadas do século XIX, William Henry Flower, então diretor do Museu de História Natural de Londres (recém desmembrado do velho prédio do British Museum), e cujos escritos e discursos propunham um programa sobre como se deve organizar um museu de história natural que influenciou todo o mundo dos museus da época, generalizou este princípio. Uma de suas fórmulas mais conhecidas, e repetidas por vários diretores de outros museus, afirma que “a museum is like a living organism – it requires continual and tender care. It must grow, or it will perish” (FLOWER:1898:13). Esta máxima é tão mais significativa para o caso aqui estudado por ter sido aludida por Roquette, em seu discurso de 1918 durante as comemorações do centenário do MN, ao comentar a necessidade de crescimento das coleções: “Queria o professor Flower que os museus fossem tratados como organismos vivos, exigentes, reclamando cuidados sem conta para manter o equilíbrio e crescer sempre 60 melhor. Na realidade, um instituto destes é mais do que isso. É uma “colônia” de organismos, para usar a linguagem dos biologistas. Cabe a esta casa conservar, em miniatura suprema, tudo o que o país é capaz de fornecer; cabe-lhe estudar tudo o que puder guardar.” (ROQUETTE-PINTO:1919:29)32. Outro influente teórico dos museus de história natural da época, George Brown Goode, um dos maiores responsáveis pela organização do National Museum (Smithsonian) na segunda metade do século XIX, numa passagem bastante citada do seu livro The Principles of Museum Administration (1895) ratifica: “When the collections cease to grow they begin to decay. A finished museum is a dead museum, and a dead museum is a useless museum”. A coleção não pode parar de crescer, é ela que pulsa e denota o quanto a pesquisa está ativa e em desenvolvimento na instituição, de que a coleta não se esgotou, o acervo não se fechou. Todos os outros setores do museu crescem junto, mas vêm a reboque da pujança do acervo científico. Uma coleção está viva e aberta, por maior que seja o seu volume, enquanto mantém na agenda um projeto de completude, ou ao menos de busca da completação33. Seus curadores se empenham em cercar e evidenciar as lacunas, para melhor traçar as estratégias de saná-las – via coleta, compra ou permuta. Não abandonaram a aspiração de exaustividade, de buscar reconstituir, no limite, aquele ideal inalcançável de uma série contínua dos seres naturais, por meio do ‘refinamento do grão’ ou do ‘incremento de resolução’ da coleção discreta. É de novo Flower quem nos garante que as “collections for the advancement of science [...] are of value mainly in proportion to their size” (FLOWER:1898:38) e sublinha este formidável paradoxo da constituição das coleções naturalistas, o fato de que suas lacunas são tão mais notáveis (e inaceitáveis) quanto mais completa se torna a coleção: “We all know the old saying that the craving for riches grows as the wealth itself increases. Something similar is true of scientific collections brought together for the 32 Retomaremos, mais adiante, esta passagem, para exame da imagem da colônia e da missão de colecionar uma amostra, uma miniatura dos elementos componentes do país. 33 Projeto certamente fadado a jamais se completar. Gonçalves, ao considerar as análises de Clifford sobre a prática do colecionismo (sobretudo o etnográfico) ocidental como metáfora da noção de cultura e da nossa relação com outras sociedades, assinala que uma de suas virtudes é enfatizar justo “o caráter necessariamente parcial dessa representação”, uma vez que “uma coleção é sempre parcial, ela jamais atinge uma totalidade. Pela sua natureza mesma, ela problematiza esta totalidade, já que uma coleção jamais se fecha.” (GONÇALVES:2007[1999]:49). 61 purpose of advancing knowledge. The larger they are the more their deficiencies seem to become conspicuous; the more desirous we are to fill up the gaps which provokingly interfere with our extracting from them the complete story they have to tell.” (FLOWER:1898:14) Outro sintoma deste mesmo estado de permanente crescimento das coleções e atividades além das medidas das instalações: a queixa pela falta de espaço. É difícil encontrar um museu de história natural que não se queixe do que freqüentemente chamam de o seu “problema do espaço”, e o MN não é exceção. Pode-se encontrá-lo enunciado praticamente em todos os momentos de sua história: desde os Fastos de Lacerda, nos tempos das primeiras tentativas de adequar o Museu ao palácio da Quinta, até os relatórios do Seminário Franco-Brasileiro de 1995, e à constituição de uma “Comissão de Espaço” (JÜRGENS:2002:187). Uma formulação exemplar dessa questão, para o período aqui privilegiado da grande reforma dos anos 1940, encontra-se no discurso de Castro Faria, quando da inauguração das novas exposições de Antropologia e Arqueologia (e, afinal, reabertura parcial do MN ao público), em 1947: “Por outro lado, o problema de espaço torna-se cada vez mais grave. Instalado nesta casa desde 1892, isto é, há mais de meio século, as coleções jamais deixaram de ser aumentadas e nesses últimos anos o foram em proporções imprevistas. O aumento de pessoal importou também em aumento de instalações. Nenhum acréscimo ponderável de área, entretanto, veio compensar esse desenvolvimento natural do organismo que aqui funciona.” (CASTRO FARIA:1949:17) O dito problema é crônico, é endógeno, é gerado pelo próprio mecanismo que mantém o instituto vivo: a concepção de uma coleção como um projeto que tende ao infinito, que almeja a exaustividade, ambiciona reproduzir, por amostragem, toda a ordem natural estabilizada e arrumada numa fileira interminável de gavetas. Retornaremos a ambos os pontos – a expansão das coleções e o ‘encolhimento’ relativo do espaço – ao examinar o remanejamento dos espaços arquitetônicos do MN empreendidos pelas reformas dos anos 1940-60. A solução gráfica encontrada para retratar as instalações das reservas técnicas atuais – para efeito de matérias de divulgação institucional – é similar à que vimos utilizada repetidamente nas fotos de época que documentaram o estado das exposições do MN dos anos 1920, das quais apresentamos uma amostra de algumas das mais divulgadas – a da sala dos esqueletos, 62 as de aves, as das coleções etnológicas. Todas tendiam a buscar um enquadramento semelhante, que mostrava as longas salas vistas do canto de um dos seus extremos, procurando um ângulo capaz de incluir no mesmo campo visual toda a série padronizada de armários alinhados, numa perspectiva de fuga em profundidade. Aparentemente, o modo ótimo de registrar fotograficamente as exposições daqueles tempos, de capturar seu espírito e caráter em uma única imagem, é praticamente o mesmo que serve tão bem para representar hoje as séries de coleções de estudo armazenadas nos setores de pesquisa – como também para retratar as estantes repletas de volumes de uma grande biblioteca ou, afinal, admito, qualquer depósito amplo e sistematicamente organizado. Talvez todas elas obedeçam à configuração prototípica que se encontra num célebre quadro, pintado pelo organizador do primeiro museu norte-americano, Charles Wilson Peale34. Retrata a si próprio que posa convidativamente na entrada da grande galeria frontal do seu museu, erguendo a cortina para desvelar, entre outros elementos, a perspectiva da série de pássaros empalhados, aninhados nos nichos das divisões regulares das vitrines que se prolongam na fuga de profundidade da so-called “long room”. [Ver reprodução dos quadros de 1922, acervo do Museu da Pennsylvania Academy of the Fine Arts]. “The Artist in his Museum”, 1822 “The Long Room”, 1822 34 Este quadro canônico é Sobre a concepção de museu que movia Peale, ver a sempre instigante interpretação de Susan Stewart (STEWART:1994). Um resumo do programa de Peale, inspirado na abordagem de Stewart, está em BLOM (2003:111-17). 63 FOTOCOMPOSIÇÃO DE REGISTROS DAS EXPOSIÇÕES DO MN NO FINAL DOS ANOS 1920 64 algumas das fotos e diagramas apresentadas na tese de JCFerreira (2002) FAU-UFRJ a b d e f c g h 65 LCFARIA 1 3 2 4 5 7 9 12 16 fotos & ilustrações que acompanham o artigo (1949) As exposições de antropologia e arqueologia 6 8 10 11 13 14 15 17 66 fotos e ilustrações nos relatórios anuais de diretoria do museu nacional, anos 1956-1963 56 a d b c e 57 a b c e d f g 58 a d b e c f g 67 59 a b c e d f g 60 a c b d 61 a b d e c f 68 g j h i k l 62 a b d c e f 63 a b c d 69 fotos das exposições do MN que ilustram artigos na revista Muséum (Unesco) v.12 n.4, 1959 a c b g f j t e h k n r d i l o m p s u v (u,v: museu do índio) 70 O museu brasiliano de Roquette-Pinto Apresento uma interpretação sobre a função das exposições do Museu no período anterior ao da reforma de 1940, privilegiando a análise das concepções do papel do Museu em Roquette-Pinto, tomado como personagem emblemático do período. Sugiro que a hipótese mestra assumida neste trabalho (inexistência de divisão entre reserva técnica e exposição antes de 1940) permite fazer uma interpretação original e historicamente mais situada das propostas educativas de Roquette, que se ajustariam ao Museu do seu tempo. UM MUSEU EDUCATIVO E REPUBLICANO Embora não houvesse exposições nos nossos termos, isso não significa que o Museu não buscasse atingir um público amplo, popular, cidadão. Bem antes de 1940 já ocorriam inúmeras experiências orientadas por um programa educativo, que buscavam fazer do Museu um centro de divulgação ampliada das ciências naturais e antropológicas, e especialmente transmitir a um público amplo e leigo um apanhado das paisagens, elementos de fauna e flora, povos, usos e costumes que compunham a nação republicana, supostamente no limiar de deixar de ser de uma vez por todas “terra incógnita”. A educação era parte explícita do programa do Museu desde pelo menos o início da República, o que se traduziu nas várias redações que seus regulamentos tiveram desde então. O importante é perceber que, nas reformas de 1940, a preocupação educativa não era uma novidade, não se tornou súbito a nova bandeira com a qual conduzir as mudanças da casa 35. Boa parte dessas iniciativas é concebida como apresentação de uma “amostra reduzida” do que já se encontrava exposto no Museu. Assim é com os “mostruários de história natural”, reunindo uma coleção mínima de exemplares dos vários ramos de estudo natural encapsulados em um gabinete transportável, montados pelo próprio MN ao longo da década de 1910 e enviados a escolas solicitantes. Assim também os “quadros murais de história natural”, pôsteres ilustrados impressos para distribuição a escolas e instituições de ensino, 35 No que difere notavelmente do ocorrido com outros gêneros de museus brasileiros, criados a partir da Nova República e vinculados diretamente à agência do Patrimônio Histórico. Em particular quanto à trajetória do Museu Histórico Nacional, a crer nas análises fecundas de Miriam Sepúlveda dos SANTOS (2006). 71 cujos elementos encontram seus correspondentes exatos nas galerias abertas à época. Esboçados desde 1918 para substituir a confecção dos mostruários de empréstimo (cuja demanda crescente tornara impossível satisfazer), foram lançados nas comemorações do centenário da Independência, em 1922 36. Nessa mesma linhagem de coleções instrutivas para enviar às escolas, Roquette lançará os conjuntos de diapositivos que serviam de ilustração aos cursos temáticos de história natural, vendidos a preço de custo a professores interessados 37. Ainda que se empenhasse em todas essas iniciativas de difusão direta da instrução em história natural, sustento que, quanto à função das galerias de exposição Museu e da visitação direta do público, Roquette cultivava uma visão distinta. O ideal educativo que almejava então não era o de apenas transmitir ao leigo uma noção geral, fornecer-lhe um pequeno kit de conhecimentos já formados sobre as riquezas naturais do país, aquele pacote curricular mínimo que “todo brasileiro deve saber”. O que pretende é que cada visitante, quando a visita é eficaz, seja fisgado pelo convite a ilustrar-se e acabe se tornando um pequeno naturalista. Cativar o curioso e induzi-lo à iniciação no metier. Apregoa que este é o único caminho para se iniciar no entendimento das ciências naturais é o do treinamento da observação, o que se alcança através do desenho e da constituição da própria coleção de estudo. A lupa, o lápis, os apetrechos de coleta38. Neste mesmo diapasão, Regina Horta Duarte mostrou convincentemente como Mello Leitão, naturalista do MN, procurava, através dos artigos que publicava na Revista Nacional de Educação (editada por Roquette e distribuída no início dos anos 1930 gratuitamente a instituições culturais e de ensino), cativar o cidadão comum a colaborar com o recenseamento da fauna e flora nacionais. Instruía-os nas técnicas da coleta e conservação, e incitava-os a escolher não as aberrações ou seres extraordinários e curiosos, mas os seres ‘banais’, aqueles 36 Bruno Lobo, diretor à época, aponta no Relatório Anual de 1922 os motivos da mudança de estratégia: “A dificuldade de transporte sem dano dos mostruários, a impossibilidade de dar uma idéia sintética do MN e da Historia Natural Brasileira, em espaço reduzido [...]”; por outro lado “Diminuindo a intensidade da distribuição de coleções aumentou pelo contrario a produção de mapas murais que no futuro virão aumentar, pelo emprego do método visual, o alcance do ensino das ciências naturais à mocidade do Brasil, utilizando exemplares brasileiros.” (LOBO:1923:42). 37 A atuação de Roquette como divulgador de ciência e cultura e as iniciativas educacionais que implantou no MN são inúmeras, entre as quais a criação do Serviço de Assistência ao Ensino de História Natural (que alguns anos depois elevará a 5ª Seção científica do instituto), e a instalação de um auditório equipado com projetor de filmes e diapositivos para a promoção de cursos. Para um sobrevôo, ver MOREIRA:2008. Um levantamento bastante atualizado sobre o que há nos arquivos sobre a atuação de Roquette no setor de Antropologia se encontra na tese de KEULLER (2008). 38 “Uma lente, papel e lápis. Fazer o pequeno desenhar, garatujando, como puder, sempre, o mais freqüentemente possível.” (ROQUETTE-PINTO:1927a). 72 que habitam o cotidiano, insetos, répteis, aracnídeos, e enviá-los ao MN para serem identificados (DUARTE:2005). “Pensa ainda muita gente que o Museu deve guardar apenas as coisas raras, os animais extraordinários, as plantas bizarras, e é em busca desse inédito sensacional que o procuram, aborrecendo-se ao encontrar nele expostas as coisas comuns em seus aspectos mais banais, e o que vê de novo, por estranho ás suas cogitações habituais, não compensa a desilusão do já visto. [...] É dos exemplares mais característicos dos diversos grupos animais do país, das rochas mais comuns, dos minerais mais típicos que deve constar a coleção de exposição [...] Nunca se preocupem os amigos do Museu em reunir para ele somente as peças vistosas ou excepcionais. São as formas de aspecto mais banal, os bichos humildes e escondidos sob pedras e em baixo dos troncos carcomidos, não raro, os que mais interessam.” [Mello Leitão, Revista Nacional de Educação, 1932] Roquette se expressa nos mesmos termos: “A história natural das maravilhas deve ceder lugar à história natural das banalidades. São exatamente as tais coisas banais que mais importa saber, as mesmas que muitos pensam conhecer, e que, de fato, ignoram.” (ROQUETTEPINTO:1927a). Não se trata de desqualificar as coleções de animais exóticos que justamente o MN era o único a possuir e apresentar no país. Essas coleções com aspirações universalizantes cumpriam função única no cenário nacional, mas difícil de ser repetida. O que a recomendação da atenção aos seres banais, cotidianos, pretende não é buscar um conhecimento igualmente banal, de segunda ordem. É o contrário: é elevar os seres comuns, que povoam os cenários do território nacional, e normalmente desdenhados como desinteressantes, a objetos primeiros e prioritários de conhecimento. Uma implicação subjacente à esta perspectiva é que não apenas a ciência – e o conhecimento da nação – estava ao alcance de todos, mas que o conhecimento comum poderia, seguindo procedimentos simples, tornar-se aos poucos científico, e qualquer um poderia assim fazer-se um pouco cientista39. Afinal, uma robinsonada científica compatível com os termos com que Mello-Leitão se expressa no texto de apresentação do manual para montagem de museus escolares de Paulo Roquette-Pinto, pois “um país de autodidatas, cada qual aprendendo nos livros e improvisando técnicas” (MELLO-LEITÃO:1942). 39 No que parecem afins a uma célebre fórmula de Thomas Huxley, para quem “science is, I believe, nothing but trained and organized common sense, differing from the latter only as a veteran may differ from raw recruit.” (“On the Educational Value of the Natural History Sciences”, in Lay Sermons, Addresses and Reviews, 1870). 73 O elogio da capacidade de iniciativa autodidata e do improviso criativo à la bricoleur como estilo necessário nas condições precárias de trabalho científico no país é recorrente. Por exemplo, em discurso, no programa de rádio “Voz do Brasil” em 1936, a respeito do progresso do cinema brasileiro, Roquette vaticina: “Somos todos autodidatas” (Constelação Capanema, p153). Outras figuras são as da improvisação de diapositivos com celulóide e caneta, e a fabricação de uma lanterna artesanal para a projeção dos slides – ‘invenções’ atribuídas a Alberto Sampaio, referidas por Roquette pai e filho, e cujos esquemas de montagem são apresentados pelo último no seu manual. Do mesmo modo, a fixação de Roquete ao rádio baseado no cristal galena, que mantinha em sua casa funcional até o fim da vida, era o equivalente tecnológico da tal lanterna ‘de fundo de quintal’ no mundo da radiofonia. A imagem do Museu como uma “universidade do povo” (que mencionamos anteriormente) deriva da intenção de franquear a qualquer um conhecimento de difícil acesso, normalmente só obtenível através da carreira formal e do título de doutor. No Museu, uma amostra completa dos mesmos conhecimentos é oferecida ‘democraticamente’ a qualquer cidadão que se interesse por eles. Mas para aproveitar destes conhecimentos, não basta passear pelos corredores das exposições. É necessário o treinamento e a vocação do aspirante. A proposta parece sugerir a necessidade de uma “alfabetização naturalista” da população, a que todo cidadão deveria se submeter. O tema da alfabetização nas artes do saber naturalista aparece de forma alusiva nas ocasiões em que Roquette faz a apologia da prática do desenho como método imprescindível para treinar a acuidade de observação genuinamente naturalista. O objetivo é contestar a crença comum de que a capacidade de desenhar não é uma faculdade universal dos seres humanos, e sim um talento reservado a apenas alguns indivíduos. Invoca então os argumentos de Thomas Huxley, o qual compara o treino na arte do desenho naturalista aos esforços para aprender a escrever, com o fito de sustentar que ambos desenho e escrita são habilidades de mesma natureza. Em “História natural para pequeninos”, seu texto ‘programático’ da pedagogia ciências naturais para crianças, Roquette já insiste: “Sei bem que a maioria de nós todos ‘não tem jeito nenhum para desenhar’. Concordo. Desse ponto considero-me até um dos mais infelizes... Mas... il y a fagot et fagot. 74 Quem é capaz de escrever, dizia Huxley, é capaz de desenhar. Pode ser má a caligrafia, desde que se a entenda, presta o serviço que se lhe pede. Portanto, não há esse pequeno normal incapaz de esquematizar o que lhe foi mostrado e que ele aprendeu. Que custa traçar algumas linhas para melhor apanhar as diferenças entre os tipos?” (1927a). O texto de Huxley referido era provavelmente “On Science and Art in Relation to Education”, uma palestra de 1882 na Liverpool Institution, depois reunida à coleção de ensaios Science & Education, publicada no ano seguinte. Aí ele diz: “I should, in the first place, secure that training of the young in reading and writing, and in the habit of attention and observation, both to that which is told them, and that which they see, which everybody agrees to. But in addition to that, I should make it absolutely necessary for everybody, for a longer or shorter period, to learn to draw. Now, you may say, there are some people who cannot draw, however much they may be taught. I deny that in toto, because I never yet met with anybody who could not learn to write. Writing is a form of drawing; therefore if you give the same attention and trouble to drawing as you do to writing, depend upon it, there is nobody who cannot be made to draw, more or less well. […] I do not think its value can be exaggerated, because it gives you the means of training the young in attention and accuracy, which are the two things in which all mankind are more deficient than in any other mental quality whatever.” A aproximação da habilidade de desenhar com a capacidade de escrever é ainda mais significativa em uma época em que a questão da universalização da alfabetização como projeto nacional republicano começava a se consolidar. Em outro texto dedicado a enfatizar a importância das figuras no aprendizado, Roquette volta ao mesmo ponto: “Essa feição intelectual e moral de tal estudo foi bem acentuada por Huxley, quando mostrou o seu papel no desenvolvimento da atenção e da observação. ‘Nego que exista alguém incapaz de aprender o desenho – disse num formoso discurso o grande biólogo, que foi o maior mestre popular, o maior vulgarizador da ciência na Inglaterra – nego-o, porque nunca achei uma pessoa incapaz de aprender a escrever; escrever é desenhar.’” (1927b). 75 Nos arquivos do Setor de Antropologia Física chegounos a foto da premiação final de um concurso promovido em 1929 no MN: “Concurso Infantil de Desenho Naturalista”. Um garoto posa ao lado do prêmio ganho: uma maleta cheia de equipamentos, com várias de divisões onde tudo se encaixa, e um diploma afixado à tampa: “Prêmio ‘Alexandre Rodrigues Ferreira’ conferido pelos Professores do Museu Nacional”. Ao contrário dos diversos “estojos de história natural” que circulavam na época, ou dos mostruários portáteis produzidos pelo próprio MN para envio às escolas, e que reuniam uma pequena coleção de espécimes naturais típicos, já tratados e classificados, miniaturas quase brinquedo de museu, esta maleta traz apenas um conjunto de ferramentas com as quais observar, registrar, formar coleção; identifica-se com dificuldade os componentes do kit, mas nota-se vidros, mensuradores, lentes, câmera, e seguramente há cadernos, lápis, tintas, etc. Um convite ao trabalho de campo, a iniciar-se naturalista. Uma analogia recorrente em Roquette-Pinto é a que compara um museu a uma biblioteca, evidenciando algo da sua concepção tanto de um quanto d’outra. Na visão dele, as exposições públicas de um museu estão, para os objetos e coleções, tal como a sala de leitura de uma biblioteca pública está para os livros e documentos escritos arrumados nas estantes. Numa de suas crônicas publicadas regularmente no Jornal do Brasil durante os anos ’50, na coluna intitulada ‘Notas e Opiniões’, Roquette traça uma aproximação entre os museus e as bibliotecas, que faz equivaler a universidades livres e de acesso popular: “As bibliotecas são tal qual os museus: verdadeiras universidades populares livres. Cada qual tira dali as noções de que precisa. Todos aprendem tudo. É só querer e persistir. Ninguém sai doutor de uma biblioteca ou de um museu; mas quem passa por ali, a sério, sai realmente douto naquilo que estudou.” (Grifo original) De entrada aberta ao público geral, com os recursos de conhecimentos e os acervos expostos, disponíveis à pesquisa e curiosidade do visitante. É, no entanto, preciso persistir: o interessado tem que estar procurando por algo, e esforçar-se para encontrar suas respostas. E à 76 saída, ao contrário do ensino formal das universidades, ele não recebe qualquer título pela formação – ainda que possa ter alcançado o objetivo principal, da instrução. O ponto delicado neste esquema todo é a capacidade do curioso se orientar e encontrar sentido no mar de informações e coleções que o museu (ou a biblioteca) oferece integrais, massivas, in toto e de chofre. Roquette continua: “Por outro lado, se nas bibliotecas e nos museus faltar a orientação segura, acessível, dinâmica, ativa, ponderada – aqueles institutos serão depósitos, simples depósitos de livros e material de ciência e de técnica.” Sem orientação dedicada a induzir os visitantes a aprender a ver corretamente, a exposição arrisca fracassar em sua função. O público tende a atravessar inerte, ‘cego’ às riquezas de conhecimento nada óbvias que lotam as galerias. É a constatação deste naufrágio da exposição que Roquette registra quando sugere a dramática imagem do fio d’água escorrendo em vidro engordurado, no seu texto mais célebre sobre o ensino de ciências e o papel dos museus, o “A História Natural dos pequeninos” (ROQUETTE-PINTO:1927a). “A visita comentada ao Museu, ao Jardim Botânico e ao Jardim Zoológico é vantajosa, está claro. Mas... tenho, por curiosidade, assistido ao desandar de algumas escolas pelas galerias do Museu. Que tristeza! Todo mundo vai andando, vai olhando, vai passando... como um fio d’água passa numa lâmina de vidro engordurada.” Há na sua constatação e confidência uma espécie de intuição temerária de fracasso, indicação de que o modelo educativo que concebeu pode ser insatisfatório. Pode haver também algo como uma queixa íntima do autor quanto ao comportamento espontâneo da criançada, como se revelasse uma dose de decepção. [Decepção com a sua idealização; com o seu otimismo excessivo quanto à índole do pequenino escolar, quanto à alma do brasiliano comum]. Um leve temor de constatar que uma realidade que não corresponde à imagem de público que acalentava, ao seu diagnóstico dos problemas do país e do que é preciso fazer para contornálos. No seu modelo, o público acorreria ao museu grato e se entregaria sem maiores resistências a absorver ensinamentos e padrões encarnados nas galerias do museu. Mas o importante é perceber que, mesmo constatando a resistência das turmas de pequeninos a dedicar atenção aos mostruários tão cuidadosamente preparados para elas, em nenhum 77 momento cogita que o problema esteja nos mostruários mesmos. Pois eles são as próprias coleções. Afinal são os nossos tesouros recolhidos e exibidos com o máximo de cientificidade. Acondicionadas em armários esplêndidos (como o dos melhores estabelecimentos europeus), dispostos de modo a propiciar apropriada iluminação e ampla visibilidade das peças, devidamente organizadas segundo critérios rigorosamente científicos que justo caberia propalar. Exposições assim dispostas compartilham o valor incontestável da própria ciência. Por outro lado, a imagem é eloqüente ao eximir inteiramente o público de responsabilidade pela ineficácia das exposições. (Não se pode atribuir culpa à água que prefere escorrer em fio célere e sim ao sebo parasita na lâmina das vitrines.) Sugere que é alguma função intermediária, película morosa entre visitante e coleção, que não sabe facilitar o acesso e cativar a atenção do passante. Sussekind de Mendonça, numa passagem do seu ensaio programático em que está discutindo como contornar o fenômeno da ‘fadiga dos museus’, interpreta a frase de Roquette de forma semelhante: “O fio d’água [...] traduz bem a falta de poder aderente do público, mas o engorduramento da lâmina refere-se também à camada isolante que cumpre retirar dos mostruários do museu...” (Mendonça, 1946, p.45). O vidro da vitrine, limpo por dentro, mas ensebado e escorregadio por fora, antes de tudo faz desviar e fugir a visão: embaça, obscurece, dificulta a percepção do que se encontra, incólume e deslumbrante, preservado dentro da vitrine. O problema não se encontra no interesse e no poder de atração dos materiais selados no seu cofre de vidro; nem definitivamente na curiosidade natural dos pequeninos passantes. O problema está na precariedade de acesso, na dificuldade de enxergá-los direito, uma falha na mediação entre o olho do visitante e a peça oferecida de coleção. Na falta de outro paradigma com que entender o desencontro – entre exposição / publico infantil – ERP insiste em que falta é mais orientação, paralela à montagem expositiva – que continua lhe parecendo impecável, no essencial irreprochável. Não obstante ‘a culpa’ não seja do visitante, a solução proposta por Roquette exige ainda mais do visitante: é este que deve, antes de ir ao Museu, ser preparado para aprender a desfrutar (diria, a saber enxergar) o que lhe será oferecido. Ao Museu cabe produzir os instrumentos deste treinamento e incentivar o público a seguí-lo. 78 Quem quiser aprender num museu, deve primeiro preparar-se para a visita. Aquilo é apenas o atlas; o texto deve ir com o estudante. As crianças, por si sós, não sabem ver o que tem um museu; elas só lucrarão se forem acompanhadas do mestre, papel e lápis, como já se disse. [Grifo j] O Museu como Atlas, que reúne em desfile as figuras desnudas do mundo, e onde o interessado, preparado pelo estudo prévio do assunto, pode encontrar e reconhecer as confirmações objetificadas do seu conhecimento. Em vez de a uma biblioteca, aqui o Museu aparece comparado a um único livro. Livro de referência, enciclopédico, que pretende mapear em escala reduzida todo o território do mundo, mas sobretudo um livro apenas de figuras, sem o texto que as situaria e explicaria, que lhes concederia o sentido científico pleno. Para Roquette, era preciso complementar o Atlas, fazendo-o acompanhar de um guia detalhado de leitura. [D] QUASE EXPOSIÇÕES GUIAS DE COLEÇÕES COMO ROTEIROS DE VISITA A EXPOSIÇÕES IMAGINADAS Nesta altura, vale conceder um pequeno recuo. Reformularei parcialmente a afirmação heterodoxa da inexistência de exposições, da impossibilidade objetiva de haver exposições, na qual vim insistindo com renitência. Pode-se dizer que quase havia sim exposição antes de 1941, ou que havia uma “quase exposição”. Mas ela não é a que normalmente se pensa que é, nem se deixa fácil encontrar. Eis minha sugestão: o caminho que leva a descobri-la se encontra numa série incompleta de livros que o Museu publicou nos anos que se seguiram à inauguração das exposições de 1914: os chamados “guias das coleções”. Reside nestes guias impressos o que, neste período, mais se aproxima do conceito que hoje temos de uma exposição. Foram três os guias que vieram à luz: o das coleções de antropologia40 de 1915, de autoria de Roquette-Pinto; o das coleções de arqueologia clássica de 1919, de autoria de Alberto Childe; 40 Que no sentido restrito da época designava a antropologia física, i.e., a anatomia comparada dos tipos humanos e seus parentes mais próximos, o estudo das raças humanas. Marisa Correa menciona a inequívoca definição que Fróes da Fonseca propôs da antropologia como “biologia comparativa dos grupos humanos”, em curso que ofereceu no MN em 1932, do qual Heloisa participou como aluna (CORRÊA:1997:237, nota 44). 79 e o das coleções de mineralogia, geologia e paleontologia de 1924, escrito por Alberto Betim Paes Leme. Há menção a outros guias que estariam em fase de preparação, como o de coleções etnográficas e o de zoológicas, referidos no Relatório Anual de 1919 do diretor Bruno Lobo (LOBO:1920:46) mas que, ao que tudo indica, não chegaram a ser finalizados. Do mesmo modo, também encontra-se referências, nos relatórios do Ministério da Agricultura do ano de 1923 e seguintes, à preparação de uma segunda edição ilustrada do Guia de Antropologia, assim como esboços e manuscritos aparentemente de preparação desta edição entre os papéis de Roquette-Pinto sob a guarda da Academia Brasileira de Letras; mas nenhum exemplar nos chegou, se é que algum chegou à prensa41. Roquette participou ativamente da reformulação das exposições durante as grandes reformas de 1910-14 promovidas por Lacerda (tal como Castro Faria participou das reformas do período HAT). Logo após a inauguração do Museu renovado ele publicou um guia que se apresenta como um pequeno curso ou manual de antropologia física. O guia não se intitula “das exposições” 42. É um guia explicativo “das coleções”. A página de entrada do guia apresenta o seu programa e função – e permite vislumbrar o conceito que o orienta: “Ao invés de compor um simples rol de objetos, tratou-se aqui, em linguagem acessível à maioria das pessoas, das bases fundamentais da Antropologia. As coleções servirão para ilustrar este pequeno manual, resumo elementar que poderá prestar muitas informações incabíveis em um simples catálogo. Aos olhos do público, por meio dele, ganha o material exposto sua verdadeira significação científica. – Cada objeto representa uma “figura” deste pequeno guia. As questões doutrinárias foram postas de lado, como convinha; as definições foram sistematicamente evitadas.” 41 Para o levantamento deste material ver KEULLER (2008). 42 Como, aliás, Castro Faria o cita, num deslize sintomático. (1982:67). 80 Não um catálogo estrito da coleção, que só tem serventia para o especialista que já domina a área de estudo e é capaz de reconhecer de antemão a relevância de cada item, Roquette pretende apresentar uma espécie de aula geral de introdução à disciplina científica: as bases fundamentais, um resumo elementar. Quanto ao Museu, ele é o lugar onde se pode encontrar as “ilustrações” correspondentes às lições. Usando as indicações do guia como um roteiro para passear pela exposição, perseguindo as referências recomendadas como exemplos dos conceitos explanados (peça tal na vitrine tal da sala tal, etc), o visitante instruído teria a oportunidade de, finalmente, ter um vislumbre do olhar que o cientista dirige às coleções, entender a “verdadeira significação científica” do que se encontra à mostra no Museu, de aperceber-se do valor propriamente demonstrativo das coleções43. Ao final do pequeno volume, uma folha em dupla dobra traz uma planta baixa parcial do segundo pavimento do prédio com a setorização das áreas em que se encontram os mostruários da divisão de Antropologia. Cada sala leva o nome honorífico de um patrono, em geral algum cientista responsável por uma contribuição proeminente para a área de estudo ilustrada na sala 44. Assinala também a fileira de silhuetas de todos os armários e mostruários, numerados de 1 a 132, para permitir a localização das referências fornecidas no guia. (Embora este pequeno guia cubra apenas as duas primeiras salas, ocupadas com a Antropologia Física. Por outro lado, o Guia de Arqueologia Clássica, de A. Childe, que não traz planta, utiliza o mesmo sistema de numeração dos armários – isto é, a planta do guia de Roquette cobre todo o setor, servindo também para localizar as indicações do guia de Childe). O terceiro dos guias publicados, redigido pelo professor Paes Leme, também traz uma planta que mapeia e numera as salas e os mostruários da Divisão de Geologia e Paleontologia. Já no título revela de forma mais explícita a torção inaugurada por Roquette, o uso da noção de um guia de museu para na verdade apresentar um pequeno curso sobre a matéria, com referências ou “ilustrações” a serem buscadas nas galerias do Museu. O título não é mais “guia das coleções”. É um “Guia de Mineralogia, Geologia e Paleontologia”. Assume-se explicitamente 43 Nélia Dias desenvolve – de maneira instigante e que valeria tentar aproximar do cenário aqui analisado – o argumento do papel demonstrativo das exposições de antropologia, e, de forma ampliada, das figuras nas publicações científicas do século XIX (DIAS:1997). 44 Em sequência: Broca, Virchow, Gabriel Soares, Baptista Caetano, Fernão Cardim, Simão de Vasconcellos, Castelneau, Ferreira Penna, Humboldt, Champollion. A de “etnografia sertaneja” é a única que não indica homenageado; mais tarde, reinaugurada, a sala que abriga esta coleção será chamada de “Euclides da Cunha” (sobre a história desta coleção e suas montagens expositivas ver a tese de doutorado de Carla Dias, DIAS:2005). 81 como uma introdução a essas ciências. O segundo título segue: “Evolução da Estrutura da Terra e Geologia do Brasil”; e em letra menor “vistas através das coleções do Museu Nacional” (meu grifo). Seu objetivo é permitir visualizar os conceitos centrais dessas disciplinas, atravessando (a transparência d)as coleções abertas, cruzando o espaço público do Museu, pousando a vista apenas nalguns itens eleitos como referência, que confirmem materialidade ao que se afirma no livro. Persegue-se assim o roteiro e mapa de um análogo sofisticado de ‘caça ao tesouro’ didático. Isto sim podemos aproximar do conceito de uma exposição. Este guia-roteiro-manual-aula. Associado a uma visita muito parcimoniosa e seletiva. Se considerarmos apenas os itens que o guia indica, e o encadeamento argumentativo que os relaciona entre si por meio de uma explanação teórica, o conjunto assemelha-se ao projeto de uma exposição. Uma exposição que não se encontra ainda materializada enquanto tal nos corredores do palácio: ali se espalham, excessivas, as coleções completas. Mas, para um visitante informado, que percorra os corredores armado de um olhar seletivo, usando o guia como um filtro ou máscara criteriosa para escolher apenas as peças relevantes, exemplares, aquelas que ajudem a corroborar a narrativa temática e as explicações científicas da teoria por trás das coleções (e que, afinal, justificam a sua coleta e guarda, e toda a missão curadora do museu), para este visitante especialmente instrumentado a experiência é propriamente a de percorrer uma exposição didática esclarecedora. Ele não enxerga a pletora transbordante das coleções indistintas, vê apenas os elementos chaves capazes de compor uma lição fundamental, enriquecida pela apresentação das evidências materiais originais. Esta maneira de percorrer o Museu equivale à experiência do que poderíamos chamar de uma espécie de “exposição virtual”. O guia permite ao visitante imaginar “como seria” a exposição, ele indica o recorte e a seqüência, com o destaque voltado todo para apenas um ou outro espécime por vitrine, e o encadeamento conceitual ligando os vários pontos de parada. Devemos considerar que a experiência dessa visita muito seletiva às fartas galerias do Museu – e, portanto, também as lições dela aprendidas – não é obviamente a mesma que se 82 experimentaria caso as próprias exposições montadas já se reduzissem estritamente ao que prescreve o guia: apresentasse apenas os itens por ele indicados, encadeados por etiquetas e outras explanações que resumissem a teoria que neles se ancora. Mas ao contrário de uma exposição já “materializada”, aqui ela só existe como que embebida, misturada, mimetizada sobre o fundo dispersivo e indistinto da coleção completa que se oferece diante dos olhos. O visitante não se encontra num “túnel” perceptivo, em que apenas lhe é oferecido sucessivamente, num percurso prescritivo, aquilo que ‘de fato’ merece a sua atenção 45. No Museu, as galerias estão inundadas de luz e ‘distrações’, os mostruários transbordam em quantidades dispersivas de itens variados. Apenas um exercício voluntário por parte do visitante em manter o foco disciplinado de atenção e de uma boa dose de imaginação permite dar contorno à experiência de uma visita expositiva esclarecida. Assim, é exigido do interessado em dar os primeiros passos no entendimento da história natural exposta o treinamento numa espécie de olhar discriminatório, capaz de isolar em um ambiente farto em variedades apenas os indivíduos que se quer estudar – uma espécie de exercício de ‘coleta virtual’ empreendida meramente pelo uso deste olhar discernidor. O que nos interessa aqui enfatizar é que a noção de exposição propriamente dita aparece apenas sob a forma de um roteiro de visita, um guia com a narrativa acadêmica disciplinar e uma lista ordenada de indicações a conferir, de ilustrações figurativas dos conceitos enunciados. Se é possível falar de exposição, ela é inteiramente imaginária. Ela se realiza através de um passeio indicativo e um encadeamento a serem executados apenas pelo olhar seletivo do visitante informado através da paisagem vitrinesca plena, contínua, intocável. A galeria é, por si só, um imenso depósito (assim Roquette se expressou, como já dito acima, a respeito das bibliotecas sem auxílio ou instruções de uso: “simples depósitos”). Cabe ao olhar treinado para a visita, a atenção do curioso previamente decidido a perseguir as indicações do guia, promover o enquadramento e seqüenciamento dos itens relevantes. A visita expositiva se realiza apenas no travelling informado de um visitante preparado. O ponto é: o ‘efeito expositivo’ é fruto de mera arte de olhar. Não está explícita, materializada nos próprios displays e na disposição das galerias. Ela não se apresenta ostensiva, não se oferece franca ao olhar do visitante ingênuo. A experiência exige o aprendizado e treinamento 45 Como em tantas montagens contemporâneas tipo câmara obscura, em que o ambiente é selado contra toda luz natural, e pontuado por uma trilha de focos de luz estritos demarcando irrecusáveis nichos que valorizam itens individuais em destaque absoluto. 83 numa capacidade peculiar de observação, de lida com a extensa coleção e de localização, no conjunto, apenas dos itens visados. 84 Alter-egos museológicos de Dona Heloisa: Carlos E. Cummings (1941) Tratarei agora de um documento chave, mais uma das nossas ‘museografias’ de época, e que poderíamos bem cognominar – por motivos que espero se evidenciem mais adiante – “Norte é norte e sul é sul”. Datado de 1941, este documento estava até há pouco completamente esquecido, perdido para a casa. Veio à luz justo na época em que se constituía o ETC, ao qual foi encaminhado para exame, como possível subsídio a auxiliar nos estudos de renovação do MN então em curso. Inicio pelo relato das circunstâncias sob as quais o documento me chegou, e a minha progressiva e cumulativa aproximação da sua leitura. Estas contextualizações podem ajudar a entender o papel do documento na casa, a história nada óbvia deste objeto, e aspectos do seu destino cuja interpretação permanecem, à falta de documentação assertiva, cercados de conjecturas. Totalmente esquecido, mas, uma vez redescoberto, sem lugar natural onde se encaixar, de implicações delicadas, potencialmente embaraçador para imagem da instituição – o que fazer com ele? A primeira notícia que recebi deste documento foi após poucos meses de trabalho no Escritório Técnico. O nosso zoólogo, até então coordenador da equipe ‘de conceito’, acabara de ser nomeado para o cargo de professor na Universidade Federal Rural – para a qual fora aprovado em concurso há tempos, antes de se envolver no projeto, mas tivera de aguardar indefinidamente as burocracias que liberam as vagas. Ele assumiria suas novas responsabilidades a partir de fevereiro de 2002, e teria de, após um breve período de transição para transferir as tarefas em curso, se desligar inteiramente do projeto. Repassamos uma lista de contatos: ele estudara na pós-graduação de zoologia do Museu, conhecia – sem o antigo coordenador (professor do departamento de vertebrados) e sem o zoólogo, perderíamos Helio estendeu-me um pesado volume que se encontrava sob umas pastas na sua mesa, fechado numa espécie de sobrecapa ou pasta amarrada com cordames. Era um dossiê ou 85 relatório de 1941 a respeito do MN, de quase 300 páginas datilografadas, mais umas 60 fotos e ilustrações, incluindo 6 plantas baixas dos pavimentos do MN, escrito em inglês pelo diretor de um prestigiado museu de ciências norte-americano. [57 páginas de fotos, 2 com desenhos, 6 plantas – uma foto para cada cinco páginas de texto] Ele o recebera diretamente da chefe do Arquivo do MN. Era um achado recente e inesperado, fruto dos esforços do “Projeto Memória” do MN, que vinha se dedicando a ‘desenterrar’ e a examinar uma enorme quantidade de documentação até então encerrada num depósito de ‘arquivo morto’ de difícil acesso, num piso intermediário entre o 2º e o 3º pavimentos, no torreão sul da frente do palácio, na mesma coluna onde funcionava (e ainda funciona) a sala do diretor. O documento se achava dentro de um envelope sem maiores informações contextualizadoras. Ninguém sabia exatamente o que fazer com ele, o que poderia significar. De todo modo, exigia um exame cuidadoso para decifrar-lhe sentido e alcance. Mas tinha todos os indícios de ser algo importante. Com uma respeitosa dedicatória manuscrita na folha de rosto “to the Dona Heloisa”, datada de janeiro de 1942, seguia o: “Report to the Rockefeller Foundation on the Museu Nacional do Rio de Janeiro, Brazil, by Dr. Carlos E. Cummings, Director, Buffalo Museum of Science, Buffalo, New York”. Como o ETC, recém constituído, reunia uma equipe multidisciplinar dedicada a repensar o modelo do MN e, em colaboração com a Comissão de Exposições, formada por representantes dos setores da instituição, formular um projeto de renovação integral das exposições, pareceu por bem à equipe do Arquivo Histórico da casa encaminhar o documento para avaliarmos. Não havia qualquer tipo de anotação ou marca de leitura no volume do relatório depositado no Arquivo. Estava tão bem conservado em sua encadernação que sugeria quase não ter sido manuseado. E por poucos. Quem quer que tenha cuidado do relatório – HAT ou algum assistente – resolveu não encaminhá-lo depois à biblioteca, após findo o seu uso imediato pela comissão de reformas, de modo a ficar disponível para consulta por curiosos. Apesar de seu formato e estilo, e de tratar de assunto de interesse geral da instituição, preferiram mantê-lo discretamente amarrado dentro de uma sobrecapa, junto aos demais papéis do arquivo administrativo da direção, e deixá-lo encerrar no arquivo morto. 86 Hélio, nosso zoólogo, indicou-me o pacote. Depois abriu um envelope, vindo de Buffalo e endereçado a ele, de onde retirou um maço de xeroxes de cartas datadas dos anos 1940, resposta da bibliotecária de lá à sua consulta por registros arquivados a respeito daquele pacote. Meses antes ele tomara a iniciativa de escrever ao Museu de Ciências de Buffalo. Indagou se nos arquivos do instituto havia algum registro, documentação referente à expedição ao Brasil de 1941 de uma comissão de especialistas de lá para colaborar no projeto de reforma do museu brasileiro. Uma bibliotecária respondeu por carta em 30 de março de 2001. Anexou cópia xerox dos documentos referentes à visita da comissão que encontrou nos arquivos: 14 cartas e 1 telegrama trocadas, à época, entre membros do Museu de Buffalo, a Fundação Rockeffeler, e o Museu Nacional; press-release e 3 notícias de jornal americanos quando da partida da comissão; informações relativas ao visto de imigração de Cummings e Clawson. No Arquivo Histórico do MN, na coleção HAT, encontro tb ofícios e cartas trocadas à época, relacionadas à vinda da Comissão de Búffalo. (quantas?) Coleção incompleta: em algumas há referências a outras que não localizei [Apêndice: lista e reprodução.] Através dessas cartas, depreendo que HAT os convidou, desde que lera o livro recém-lançado de Cummings, East is Eas and West is West (1941). E que a RF (com quem HAT mantinha ótimas relações desde a visita do diretor de humanidades, David Stevens, ao Rio no início de 41) intermediou e bancou a vinda de uma comissão com três membros do Museu de Buffalo: Cummings, Hamlin e Clawson. Hamlin veio acompanhado da esposa, planejou manter uma estadia de três meses no Rio e seguir viagem por outros paises da América Latina. Era o presidente da Sociedade de Ciências de Buffalo, fora presidente da Associação Americana de Museus, e futuro fundador e 1º presidente do ICOM. Bertha Lutz havia travado ótimas relações com ele nas suas viagens aos EUA. Clawson era o curador das exposições de antropologia do Buffalo Museum. Recém admitido, cria do workshop bancado pela RF. Escreveu um guia das coleções de antropologia e arqueologia no espírito dos do MN. Nota: mais conhecido por quem lida com antropologia das imagens e objetos pela presença desta coleção como uma das três grandes presenças da exposição de Vogel “Art & Artifact”. 87 Na biblioteca do MN encontro um exemplar de East is East, West is West de Carlos Cummings. A obra resultara da ‘encomenda’ anterior da Rockefeller ao autor, o comentário crítico da sua viagem e visita às exposições de Los Angeles e de Nova Iorque de 1939. Retiro-o para leitura, e xeroxo a ficha de controle da biblioteca, que contem as entradas dos outros leitores da casa que algum dia tomaram a iniciativa formal de também retirá-lo: Dulce e Marieta (bibliotecárias), Paschoal Lemme, Bertha Lutz e Curvello; o último registro antes do meu foi de 1956. Encontro tb o ‘relatório’ de Hamlin – na verdade um ensaio especulativo, em que descreve em termos gerais como imagina um museu nacional adequado ao Rio de Janeiro, sem na verdade se basear na instituição já existente, suas coleções ou sequer sua sede, ao contrário, adiantando uma receita de como constituir todo um museu exemplar out of the blue. Ao contrário do volume datilografado de Cummings, este foi efetivamente publicado, pela gráfica do Museu de Buffalo. Um exemplar reside esquecido nas prateleiras da biblioteca do MN, sem dúvida enviado por cortesia pelo autor. E, ao que tudo indica, foi igualmente ignorado pelo pessoal da casa. Lá igualmente um exemplar do livro de Clawson (que faria mais sentido na biblioteca do PPGAS, mas a antecede de umas três décadas). Ninguém dava uso ao precioso achado. (Helio me estendia ele: o que fazer com isso? Ou foi só quando ele se desobrigou, quando foi nomeado professor da rural, como quem transmite um legado, um tesouro ainda intocado, e na verdade que não se tem muita idéia de como usar, se dá pra usar.) Era um enigma difícil de descascar. Inicialmente, apeguei-me a ele por um motivo bem particular: ele prometia fornecer-me um retrato ‘imparcial’ (sem esconder as vergonhas) do estado crítico do MN imediatamente antes de fechar as portas para a reforma – que eu poderia confrontar com a descrição das exposições já reinauguradas apresentada por conferencia de LCF e nos relatórios de JCMC. Ele fornecia as plantas baixas dos três pavimentos do Museu, assinalando em cada cômodo qual a sua finalidade de então, além de outras três com as propostas do autor, redistribuídas as suas funções. Considerando que o relatório anual da direção de 1963, com as reformas e 88 exposições plenamente consolidadas, também fornecia as plantas baixas funcionais dos três pavimentos, passava a ter os elementos básicos para comparar os diferentes programas arquitetônicos que o Museu já operara. Além disso, o documento vinha recheado de fotos que, à primeira impressão, julguei ingenuamente que retratassem (ao menos algumas delas) a aparência das exposições de então. (Não era o caso em absoluto; esta dissimetria merecerá um exame mais adiante.) Assim, independente do que permitisse entender dos processos institucionais em curso no planejamento da reforma de HAT, independente também das recomendações que porventura sugerisse para o Museu e se elas haviam influenciado ou não no que foi efetivamente realizado, o relatório tinha um valor manifesto como retrato museográfico instantâneo, em um momento de limiar crítico, no oco da onda. Depois, após algumas leituras, encontrei naturalmente mais nele de interesse. A cada novo exame um novo patamar se desvelava. Cheguei a apresentar minhas impressões em eventos acadêmicos46. Há inúmeras observações pontuais relevantes, mas, no geral, a maior parte das críticas como das recomendações didatizantes acompanham o tom da literatura museológica da época, e não pareciam trazer maiores surpresas. Ele descreve o MN como se um relato de visita, para a qual, o tempo todo, nos convida a compartilhar. (Faz eventualmente menção aos comentários mordazes de um companheiro de visita, mas sem identificá-lo47. Pode ser Clawson, pode ser qualquer um, ou ainda mera figura retórica). Os armários, a superlotação, as lacunas, a falta de sensibilidade para itens com densidade histórica. No entanto, o que mais me chamou a atenção o que me pareceu ser uma tensão do autor entre o museólogo e o naturalista, expressa nos dois momentos do relatório em que ele se confessa admirado: o do testemunho da reação dos visitantes dominicais logo no saguão de entrada do Museu, ao encontrarem o Bendegó; e o seu encontro com um espécime de tatu, na última sala do seu percurso. 46 Na Reunião Brasileira de Antropologia de Olinda em 2004; na Reunião da Sociedade Brasileira de História da Ciência, em Belo Horizonte em 2005; na Jornada dos Alunos e como monografia de curso no IFCS em 2005; em seminário na Casa de Rui Barbosa em 2006. 47 E.g. à p. 25, “As my companion on one particular Sunday remarked, ‘These people are very anxious to look at this material, but nobody seems to know just where to begin.’”, ou à p. 36, “[…] it could not in any sense be said that prejudice underlay the comment that my companion made as we were watching the 'crowds' in these two halls, when he remarked, ‘Most people can't get out of these rooms quick enough!’” 89 Neste meu comentário ao relatório de Cummings, colhi seletivamente apenas alguns breves momentos dos que nos contam os documentos da visita da comissão de Buffalo. Apresento minha leitura em três atos: a surpresa inicial do consultor diante do comportamento do público ao entrar no museu; em segundo lugar, as várias críticas, e, posso dizer, as decepções do consultor com a disposição das coleções na exposição, especialmente quanto ao saguão de entrada do palácio; por fim, a surpresa final do consultor com um achado casual durante o seu survey das coleções, que se passa na última sala de depósito do último andar. O encontro do público com o objeto, ao olhar do estrangeiro; o parecer estrangeiro sobre os objetos dispostos para o público; o encontro privado do estrangeiro com o objeto. [ATO 1] “This strange black object” Num domingo típico do mês de setembro de 1941, Carlos E. Cummings postou-se no hall de entrada do Museu Nacional do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista, observando intrigado o comportamento dos visitantes anônimos que entravam na casa. Constatou que o público regular do fim de semana rodeava animado o enorme pedaço de “rochedo” metálico exposto no centro do saguão, acumulava-se à sua volta como que capturado pelo magnetismo natural; depois do deslumbramento inicial, as pessoas começavam a procurar avidamente informações sobre o colosso, lendo tudo que estava inscrito nos pilares “semelhantes a pedras tumulares” que o sustentavam, caçando qualquer outra etiqueta ou cartaz ao alcance da vista. A primeira coisa no hall de entrada a atrair a atenção do visitante, assim que ele adentra a porta, é o enorme meteorito Bendegó, um negócio colossal pesando algo acima de cinco toneladas, suportado por três pilares de mármore inscritos, semelhantes a lápides, no centro do recinto. [...] Num dos domingos que o autor passou no Museu observando a reação dos visitantes, uma hora inteira foi devotada a monitorar a conduta inicial dessa boa gente assim que entravam pelo lobby. Como resultado dessa observação, o autor foi obrigado a rever completamente uma concepção antes firmemente estabelecida a respeito de legendas e público. Pois, contradizendo toda a experiência prévia, a grande maioria dos presentes cuidadosamente perscrutava, e aparentemente lia com avidez, cada palavra de material descritivo que conseguiam encontrar! Foi uma experiência impressionante de reação ao primeiro contato. (p28-30) A surpresa do Dr. Cummings provinha de constatar a sede daquela gente por informações e da sua disposição espontânea pela leitura de textos descritivos, o que, baseado na sua experiência 90 de 30 anos como diretor do Museu de Ciências de Buffalo (NY, USA), julgava absolutamente fora do normal. Para ele, o meteorito conhecido como Bendegó impressionava pelo gigantismo e bizarrice, era uma “curiosidade” espetacular digna de constar em listas de recordes, mas quase não contribuía com qualquer ensinamento útil para aquelas pessoas, não ajudava a enquadrar o contexto da narrativa expositiva que se seguiria, não servia como apresentação geral da exposição. Para ele, o formidável Bendegó era um petisco de entrada atraente mas inapropriado, que desperdiçava a energia inicial do visitante com trivialidades. Deveria, em última análise, ser dali removido. Cummings, biólogo com treinamento em anatomia comparada, encontrava-se em missão oficial, convidado pela diretora da casa, Dra. Heloisa Alberto Torres, incumbido de avaliar o espaço e as exposições do museu, traçando diagnósticos e sugerindo recomendações para a sua completa remodelação. Na sua análise final, que compõe um detalhado relatório enviado à diretora meses depois, Cummings condena vários outros dos objetos mais destacados, tradicionais e icônicos das exposições do Museu, recomendando a sua remoção de posições de destaque, ou mesmo a sua exclusão do espaço de apresentação pública, destinando-os ao depósito de curiosidades ineficazes ou inapropriadas. Muitas das recomendações de Cummings destoavam severamente de opiniões consensuais na curadoria da casa. Afinal de contas, aqueles objetos que ele descartava sem pestanejar eram considerados por muitos mais que peças extravagantes de coleção, meramente passíveis de serem eleitas, entre outras, para expor; aqueles objetos confundiam-se com a própria imagem do Museu – sem eles, não haveria MN, as people knew it. Menos pelos seus atributos físicos ou “naturais” que pela “biografia” própria daqueles objetos nas coleções da casa: a história de como haviam sido introduzidos ou produzidos no Museu, em que circunstâncias e por quem, os papéis que desempenharam em momentos cruciais da história da casa, e, por extensão, da formação das ciências naturais no país. Tais objetos não propriamente pertenciam ao Museu: constituíam o Museu, eram tão habitantes quanto componentes, quase tão característicos do ambiente quanto os elementos arquitetônicos, digamos, a escadaria de mármore, o Jardim das Princesas, as paredes dos torreões cimentadas por óleo de baleia. É quase como se eles houvessem sido também imaginariamente “tombados” em 1938 junto com o palácio. [ATO 2] “Afora a associação histórica, a ciência nada perderia se isto fosse mandado para o depósito” 91 O relatório de Cummings apresenta um diagnóstico geral da instituição agudamente crítico, mas otimista quanto às possibilidades de resolução. O exame das coleções em exposição revela um excesso heterogêneo de materiais, alguns conjuntos de grande valor, muitos de eficácia duvidosa, e vários condenados ao descarte. Uma critica ubíqua é da superpopulação das vitrines, com exemplares redundantes das mesmas espécies, como se ainda não houvesse se instaurado na casa a cisão entre os espaços de exposição e os de reserva técnica. Deplora também a qualidade dos espécimes taxidermizados, que considera montados com técnicas anteriores às introduzidas por Akeley no início do século e que revolucionaram a arte. A grande falta que acusa é a da precária representação dos motivos regionais, característicos dos recursos da nação (p80). O pouco uso do artesanato dos povos nativos, das paisagens geográficas, a pouca atenção e sistematicidade na apresentação dos elementos da fauna endêmica do país. Apesar de ter visto representações desiguais e lacunares de animais exóticos de outros continentes, procurou e não encontrou nem o tamanduá bandeira nem o tapir. De todas as ausências, a que se lamenta mais é a da diversidade de aves, que, segundo a sua imagem, exercem, em toda exposição de história natural, o papel que os violinos desempenham em uma orquestra. Mas há uma classe de objetos, em geral ocupando posições de destaque na velha exposição, contra os quais Cummings volta todas as suas energias persuasivas de educador e museólogo. São peças que conquistaram o seu lugar cativo na velha exposição devido a associações históricas, ou ao seu caráter excepcional, bizarro, monumental, numa palavra, peças que recendiam ao velho grupo das “curiosidades”. Cummings é um partidário incondicional da moderna museologia, que pensa a exposição como uma mídia educacional, e define seus elementos estritamente pelo seu valor instrutivo e didático; com o suporte, num segundo plano, de um critério estético, dos arranjos agradáveis à sensibilidade. A educação e a estética, que podem associar-se bem; mas evitar a historicidade e o maravilhoso, que concorrem e prejudicam a transmissão da mensagem didático-científica. Os MHN parecem estar desde sempre (enquanto museus) tentando exorcizar o espectro de origem nos gabinetes de curiosidade e nas coleções principescas. Todos os motivos que não convergissem para a finalidade educativa eram tomados ora como “desperdício” do interesse 92 do público, ora como simplesmente destituídos de sentido e eficácia. É o caso do charme alienante dos meteoritos gigantes da entrada: capturam a curiosidade e a “sede de legendas” inicial do público, mas as consome em motivos fúteis. O assunto pelo qual ficavam tão absorvidos era: quanto este estranho objeto negro pesava, onde e quando foi achado – de pequeno interesse geral ou qualidade intelectual. [...] Parecia haver um desperdício de good material aqui. Toda essa gente estava fresca, cheia de curiosidade, aparentemente afoita para aprender, e sobretudo, irradiando entusiasmo. Such hungry folks merecem ser servidos com algo substancial e relevante, and closer to home; e quanto mais ponderávamos sobre a situação gradualmente tornou-se claro que a exposição de um museu nacional deste porte, numa posição de tal preeminência, deveria enfatizar e estabelecer na mente do observador a importância do país em que vive, algo essencialmente brasileiro, grande, abrangente, e produtivo, e o seu lugar na Terra. [“The Great Globe”] (p92-3, grifos meus) Já quanto às peças que necessitam de mediações históricas para encontrar o seu sentido, essas Cummings – aliás, ao contrário nisso de Roquette e colegas – não tem a menor reserva em sugerir o descarte. E lá se vão a estátua do “Buono Fácio” (sic, p33), da coleção egípcia, do botocudo. As recomendações de Cummings para o lobby de entrada do MN começam retirando tudo que lá está. A começar pelo modelo de índio botocudo e o bloco de carvão mineral do sul do país. Destino de ambos: na melhor das hipóteses, o depósito. “É muito pouco desejável que a grande estátua do índio e o pedaço de carvão atualmente em exposição no lobby permaneçam em lugar tão proeminente. Aliás, dificilmente conseguimos imaginar qualquer razão para que estejam sequer em exposição.” (p98, grifos meus) “Exceto por essa associação histórica, não há nada de particularmente chamativo ou estranho nesse material. Até onde o autor está concernido, não representaria nenhuma grande perda para a ciência se isto fosse recolhido ao depósito, e o seu lugar fosse ocupado por material local.” [A sala dos Embaixadores está] displaying a miscellaneous collection of ancient Egypt, including a goodly number of mummies and mummy cases, the greater part of which, we are told, was purchased by Dom Pedro the First, in 1824. Apart from this historical association, there is nothing particularly startling or strange about this 93 material, and as far as the writer is concerned it would be no especial loss to science if it were put in storage, and its place taken by local material. (p38-9, grifos meus) Quanto aos grandes meteoritos, retirá-los do palco principal; reservar-lhes papel mais modesto na sala lateral. The big meteorite is another matter, even if it is now very elaborately set up on inscribed marble pillars having very much the appearance of gravestones in an old cemetery. The proper permanent disposal of these two large meteorites is a good deal of a problem, and we will leave it for a moment to simmer. They are of too much interest to be placed in storage, and their very considerable size makes them really overpowering in the average room. (p98) O novo cenário sugerido para o lobby incluiria: a construção de um volumoso globo terrestre para substituir o spot então ocupado pelo indolente meteorito; mapas das regiões do país nas paredes; conjuntos variados e seletos de animais e, sobretudo, pássaros típicos da fauna nacional, regularmente substituídos, e, finalmente, uma vitrine com instrumentos atmosféricos (!) – nos quais ele realmente crê ser não alvo de um interesse peculiar e culturalmente muito específico mas universalmente compartilhado, como se inscrito na natureza humana: There is of course no subject in the world of more universal interest than the weather, for every body has to live in it, and every body talks about it […] (p96) Cummings demonstra dificuldade em considerar a relevância de critérios históricos, ou em valorizar as peculiaridades de formação do imaginário cultural local. Entenda-se bem: não é que não chegue a reconhecer a presença de aspectos históricos legítimos; ele não ignora que, eventualmente, esses fatores venham a influenciar decisões de escolha de peças. Chega a indicar, em alguns casos, a sua ciência e concordância quanto à significância histórica de determinada peça. É o caso do manto havaiano; também (um tanto mais relutante) quanto à coleção egípcia. Mas é como se fosse um ônus inevitável que o curador científico aprende a pagar, um jogo diplomático de tolerância e pragmatismo sócio-institucional. O fator histórico aparece como uma espécie de incômodo ou interferência ‘cultural’ com que é preciso conviver, desde que ele não chegue a ofuscar ou atrapalhar a encenação da mensagem didático-científica principal. Pode vir a ser uma solução de compromisso aceitável desde que 94 o critério ‘científico’ de eleição cenográfica mantenha-se hegemônico na partilha. Afinal, esta preeminência é o que faz de um museu museu de ciências. Os limites desta postura de “tolerância restrita” torna-se explícita quando o que está em jogo é uma posição chave do espaço expositivo. O saguão de entrada do Museu, por exemplo. Em um caso como esse, Cummings parece “fazer ouvidos de mercador” quanto às ressonâncias históricas de qualquer que seja a peça, por mais densas que aquelas sejam. Num spot chave do percurso expositivo como esse, não há chances para aceitar botocudos nem bendegós. Cummings também demonstra pouco caso, ou mesmo recusa, quanto a peças únicas, objetostestemunho carregados de significância individualizada. O que parece ecoar as análises de Clifford (1985) quanto à tensão valorativa entre a classificação e a preferência singular48. Para Cummings, a escolha do objeto ideal de exposição deve obedecer a critérios estritamente didáticos, complementados por concessões de apelo estético. Quando se elege um indivíduo para representar o patrimônio nacional, ele deve apresentar-se apenas enquanto espécime exemplar (e substituível), uma amostra de toda uma classe de seres naturais. Em suma, na sua cartilha o privilégio deve ser dado não ao extraordinário, mas ao esteticamente atraente; e não ao historicamente marcado (dotado de vínculos significativos com eventos de um passado compartilhado), mas ao didaticamente elucidativo (dotado de vínculos informativos com conhecimentos universalizantes). [ATO 3] Epifania do pequeno tatu Há no entanto uma passagem do relatório que parece trair todo o projeto universalista de um scholar até então irreprochável. Ele vagava no terceiro e último pavimento, onde se encontravam expostas todas as coleções de zoologia, incluindo as salas dos ‘esqueletos’, com a baleia jubarte do tempo de Pedro II pendurada no teto. Ao completar o survey da última galeria dos vertebrados, uma sala há tempos interditada ao público e que adquirira ares de 48 “The collection itself, its taxonomic, aesthetic structure, is valued. And any private fixation on single objects is negatively marked as fetishism.” Adiante cita Susan Stewart: “The boundary between collection and fetishism is mediated by classification and display in tension with accumulation and secrecy (1984: 163).” (Clifford, 1985:239). 95 depósito, sua atenção é capturada por um vidro de formol em meio a inúmeros outros empilhados no fundo do ambiente. Ali conservado, residia o corpo inerte de um espécime miúdo, sem maiores atrativos. Surpreendentemente o autor nos revela que, então, um acontecimento importante se dá na sua vida: Nesta sala, a descoberta de maior interesse para o autor foi a de menor tamanho, um estranho e truncado tatuzinho, um diminuto edentado da Argentina, de aproximadamente cinco polegadas. Esta criatura, um verdadeiro tatu com o corpo coberto de placas duras, estava preservado em álcool, e muito bem apresentado, mesmo estando no líquido, o pelo sedoso nas laterais e membros, e uma placa terminal peculiar no feitio de um pires, que cobre a extremidade posterior e serve como âncora para o rabo em forma de colher. A descoberta deste pequeno camarada apropriadamente conservado foi um acontecimento importante na vida do escritor, já que era um dos poucos remanescentes na lista daqueles sobre os quais já lera mas nunca vira, em quarenta anos de lida com museus. The discovery of this room which was of the greatest interest to the writer was about the smallest in size, an exquisite little truncated armadillo, a tiny edentate of Argentina, about five inches long. This creature, a true armadillo with the body covered with hard plates, was preserve in alcohol, and displayed very well, even in the liquid, the silky hair on the sides and limbs, and the peculiar terminal body plate, shaped like a saucer, which covers the posterior end and serves as an anchor for the spoon-shaped tail. The discovery of this little fellow in the case was an important event in the life of the writer, as it was one of the few remaining on the list of those read about but never seen, in forty years of museum work. (p57-8, grifos meus) Um exemplar de uma espécie que ele nunca havia visto mano a mano, apesar de conhecer de livros. Preencheu mais uma das poucas lacunas restantes da sua checklist de naturalista. Num inesperado golpe de sorte, obteve uma figurinha que há muito faltava no seu álbum de testemunhos diretos. Mas o valor desta descoberta só faz sentido para um genuíno naturalista. É “tara” de colecionador. Guardadas as proporções, os mecanismos de valoração deste “achado” estão justo do lado dos critérios que o autor costuma desdenhar: o encontro casual com a curiosidade, ser surpreendido pelo caso raro, o exemplar excepcional. O armadillo disparou a sua armadilha. Numa distração do educador, o curioso naturalista fora capturado. Ao fim de um mês, Cummings deu por encerradas as suas investigações, recolheu suas anotações de campo e voltou para casa. Quanto ao Museu, fechou as portas ao público (e por seis anos) no dia seguinte ao da sua partida. Estavam iniciadas as reformas gerais, que só se completariam quase duas décadas depois. Cummings retornou para a cadeira de diretor do seu 96 museu de ciências em Buffalo sem conseguir entender a dinâmica do interesse febril do público pelo bendegó. Nas suas palavras, o seu: “apelo universal é difícil de explicar, já que é de se duvidar que a grande maioria dos presentes tenha qualquer idéia de que um meteorito é uma ‘estrela cadente’, ou por que”. “universal appeal is rather hard to explain, as it is very much to be doubted that the great majority of those present had any idea that a meteorite was a "fallen star," or why”. O grau da sua incompreensão, como das suas desconfianças, talvez seja comparável com o que provavelmente atingiria qualquer um desses visitantes comuns se algum deles, perdido acidentalmente no labirinto dos corredores do último pavimento, chegasse a testemunhar o entusiasmo de Cummings ao deparar-se, fuçando entre pilhas de espécimes em conserva da sua discovery room, com o – para quase todo mundo, banal, para outros poucos, raro e primoroso – exemplar do pequeno tatuzinho argentino imortalizado num vidro de formol. FOTOS & TEXTOS Para lá da análise do conteúdo propriamente do relatório, isto é, as impressões e sugestões oferecidas pelo autor, a construção formal do documenta guarda uma peculiaridade talvez não destituída de significados. É por que possui uma dissimetria entre o texto datilografado e as fotografias em páginas intercaladas. Entre o conteúdo verbal e o visual. E, tratando-se de museus, sabe-se que esta não é de modo algum uma distinção banal – tenha-se em mente, p.ex., as infindáveis discussões sobre o papel relativo do objeto e da etiqueta; do efeito de ilustração e de contextualização. A curiosa combinação de um texto que descreve minuciosamente as instalações das coleções do MN, entremeadas por fotografias dos arranjos de outra instituição, o Museu de Ciências de Buffalo. No início, isto provocou-me frustração logo que tive acesso ao documento. Ao notar que o volume incluía inúmeras fotos entremeadas com o texto, esperava que, ao menos em parte, mostrassem as salas do MN descritas no texto, registrassem o visual bruto do estado da casa naquele momento. Seria de saída a fonte histórica documental mais importante de todas a 97 fornecer subsídios documentais para a reconstituição do estado das exposições do MN no período. Desde o início tive dificuldade em entender a opção do autor em promover esta associação dissimétrica de materiais de origem diversa. Em um relatório crítico sobre a instituição, de exame e avaliação dos recursos seguida de recomendações, era de se esperar uma documentação inicial completa, inclusive fotográfica, sobre o estado das instalações. Aliás, a falta dessas imagens é justamente apontada por Stevens, diretor da Fundação Rockefeller, como uma carência do relatório. Em carta a Cummings, ele lamenta a ausência de fotografias do local ilustrando as descrições do texto [parece q não é bem assim!!], o que tornaria o documento muito mais útil para uso de terceiros, como livro de orientação no treinamento de pessoal sobre museus (como aliás fora o seu trabalho anterior, de 1940) [carta 23/3/42]? Só pude entender melhor o hibridismo texto/fotos do relatório – descrições do MN ‘ilustradas’ por (ou contrastadas com) imagens do M. Buffalo – quando considerei que o relatório não fora escrito propriamente para a Fundação Rockefeller, ou para ser reutilizado como textbook de “estudo de caso” nos treinamentos de formação museológica de Buffalo. Ele não escreveu para americanos, não era um relato descritivo do MN para quem não o conhecesse. Cummings não veio espionar ou inventariar para os arquivos americanos de alguma ‘agência de inteligência mundial de museus’; veio catequizar, ensinar como se faz49. O seu parecer era dirigido às pessoas da casa, aos donos e responsáveis pela reforma do instituto. Compartilhou suas opiniões diretamente de diretor para diretor. O relatório foi confeccionado para os olhos de “Dona Heloisa”. [ver carta de 26/3/42] Cummings, respondendo a David em 26/3, chama HAT de “the Dona”, e se refere ao sejour no MN de “the Rio adventure”. Nesta carta, ele declara que escreveu o relatório para os que já conhecem o MN – talvez pq imaginou como leitores apenas David, que já lá esteve, e a própria Dona (quanto à visita de David Stevens ao MN, ela é também confirmada pela carta do seu assistente, Marshall, a Hamlin, de 30/4/41). 49 Assim, o seu relatório não foi concebido “para americano ler” (no sentido em que se diz de algo feito ‘apenas para inglês ver’); embora, em outro sentido, as suas recomendações sem dúvida fossem para preparar um museu tropical tipicamente “para americano ver” (i.e., bem ao gosto ianque de então, seguindo as prescrições em voga na museologia norte-americana, e, aliás, calcado no modelo e êxito do seu próprio museu). 98 DE DIRETOR-VIAJANTE PARA DIRETORA-LEITORA “Literature alone will not resolve everything […] [I] would greatly appreciate the coming of a master specialist in Museum organization” [carta de HAT a David Stevens (Rockefeller Found.), 23/4/41] A visita e estadia da comissão de Buffalo, e, especialmente, as impressões recolhidas por Cummings e apresentadas à diretora no seu relatório, mantêm uma relação de analogia com as tradicionais viagens de recolha de impressões sobre os grandes museus, de modo a formar opinião e qualificar escolhas antes de empreender um replanejamento do próprio museu. Já mencionei como tais viagens de ilustração prévia – espécie de ‘naturalista visitante’, ou ‘museólogo viajante’ – constituem um expediente canônico e recorrente, em geral empreendidas pelo próprio diretor (ou algum naturalista qualificado, que viaja como delegado) de um museu logo antes de iniciar uma grande reforma em suas instituição. Para nós, o caso paradigmático é a expedição à Europa de Lacerda em 1911, acompanhada por Roquette, e seguida em paralelo por Miranda Ribeiro. Por outro lado, HAT é, por excelência, aquela que não viaja. Refiro-me, está claro, à viagem de familiarização com os museus estrangeiros, de maior prestígio, à viagem de formação museológica. Mas mesmo quanto a viagens de campo, HAT pode ser caracterizada como aquela que pouco viaja50. Além disso, o prolongado período em que exerceu o cargo de diretora impediu-a de dedicar-se à pesquisa e privou-a das viagens. Lançou mão, por outro lado, de expedientes alternativos, como o da contratação de profissionais de coleta – um análogo tardio da figura do naturalistaviajante, dedicado exclusivamente à coleta e à remessa de coleções para serem estudadas por outros no museu, que operava ainda nas primeiras décadas do século. Neste caso, HAT encontra um mecanismo legítimo de exercer uma espécie de ‘delegação de viagem’, que a dispensa da jornada sem privá-la dos seus frutos finais mais ‘palpáveis’. 50 Sim, é sabido que HAT empreendeu algumas viagens para trabalho de campo de relativa envergadura. Três, na verdade. O que não chega a fazer dela uma pesquisadora de campo dedicada. 99 Mas volto ao meu ponto: HAT é, por excelência, um caso atípico, já que é uma diretora empossada com plenos poderes, e diante da tarefa de empreender uma reforma completa no maior museu do país, e no entanto, não viaja. Não parte urgente em viagem de atualização, para conhecer o estado-da-arte nos maiores e mais prestigiosos museus do mundo, antes de elaborar o seu projeto de renovação. Ela se mantém plantada aqui, lidando com uma crise sem precedentes, e não pode se dar ao luxo de ausentar-se para ilustração pessoal. Ela é a única timoneira na tempestade, e não pode faltar no posto de comando. Ela precisa improvisar com o que está ao alcance. Ela lê tudo o que pode a respeito de como se faz um museu moderno. E se encontra com o livro de Cummings. Pois a visita de Cummings, admitidas algumas transformações no modelo, poderia corresponder ao análogo de uma tal expedição para HAT. Em lugar de partir para longe, num cruzeiro de survey para tomar ciência dos modelos de alhures, dos quais copiar, adaptar, reinventar, HAT teria preferido importar o olhar de um especialista viajado de além-mar para avaliar e aconselhar o que já se tinha por aqui. Um expediente análogo encontra HAT para treinar especialistas locais em etnologia: ao invés de enviar estudantes brasileiros para estágios no exterior, e considerando que o trabalho de campo pertinente teria de ser feito nos sertões de cá, empenhou-se em criar condições favoráveis à vinda de jovens antropólogos de brilho no departamento de Boas em Columbia, providenciando as (dificultosas) autorizações que permitissem a sua pesquisa de campo no Brasil, com a contrapartida de permanecerem um ano ensinando e treinando etnólogos locais. (Carta de HAT a Boas convidando). Seguindo nossas imagens , o diretor viajante aqui sofre um desdobramento, onde Cummings ocupa o lugar de alter-ego de uma imaginária HAT-viajante. Em lugar de partir em excursão para observar e coletar modelos de outros museus, a fim de avaliá-los, adaptá-los, formular uma síntese própria a implementar na sua instituição, HAT requisitou um especialista experiente, condutor de museu estrangeiro e habituado a visitar seus congêneres e treinar especialistas na área, para fazer a viagem reversa em seu lugar. Ele lhe empresta duplamente seu olhar de estrangeiro viajado: descreve-lhe suas impressões, o modo como enxerga o que encontra na casa (cujo aspecto visual era por demais familiar a HAT, o que dispensa fotos comprobatórias); e, reciprocamente, mostra-lhe imagens que 100 considera exemplares, trazidas do seu museu de referência (o que era uma forma de fornecer a HAT, de forma complementar, elementos para conhecer melhor que tipo de olhar possuía esse estrangeiro – quais seus modelos, por que ideais museográficos se norteia). Oferece a HAT assim o comentário crítico enquanto passeia o seu olhar de par estrangeiro durante uma meticulosa e prolongada visita ao museu da anfitriã; e, simultaneamente, presenteia-a com uma sugestiva coleção de cartões postais de sua terra natal, que são como glimpses de uma visita ao seu museu canônico estrangeiro – exemplos de modelos de referência a partir dos quais se pautar.51 Há, naturalmente, complementaridade entre exame do estado (descrição verbal) e sugestões de reforma (em que as fotos servem como referência, exemplo de solução, modelo de possibilidade). A carta de David Stevens (diretor de humanidades da Rockefeller Found.) de 23/3/42 termina mencionando a sugestão de vinda de HAT aos EUA, “sometime in the future”. Ele procura reforçar ou estimular o desejo de que ela venha. Entre os motivos, aponta: troca de espécimes; retribuir as gentilezas que ela dispensou aos visitantes americanos; e – o q nos interessa – a oportunidade dela conhecer “some of the places and objects that Dr. Price undoubtedly keeps on describing”. Heloisa é aquela que nunca viaja, não conhece os lugares pessoalmente – embora conheça todos por correspondência. Ela não esteve em Columbia, nem Chicago, nem Washington. Ela não foi verificar os museus de Paris, Londres, Berlim. Nisto, ela é o antípoda completa de Bertha. UM VISITA NÃO MAIS MENCIONADA Cummings, digo, o seu relatório, teve o mesmo destino do de Bertha: o esquecimento deliberado, o silenciamento a respeito de, a renúncia coletiva a qualquer menção, a ausência de crédito. Não encontrei qualquer menção, qualquer comentário posterior nas anotações de HAT externando alguma opinião, ressaltando qualquer aspecto, qualquer reação às propostas – ou mesmo à estadia do visitante. Não há também qualquer tipo de anotação ou marca de 51 [Cummings é o diretor de museus que já viajou todo o mundo, conhece todos os museus, só não conhece o do Rio de Janeiro. Ele só ainda não viu o tatuzinho. Dona Heloisa, por seu lado, é como um tatu: não sai da toca.] 101 leitura no volume do relatório depositado no Arquivo. Ele está tão bem conservado em sua encadernação que sugere ter sido pouco manuseado. E por poucos. Tampouco o encaminharam depois à biblioteca, de modo a ficar disponível para consulta por curiosos. Foi encerrado, amarrado dentro de sua sobrecapa, junto aos papéis do arquivo administrativo da direção. É, sim, possível que exista, e algum dia venha à tona, algum papel, aide memoire, carta íntima, qualquer testemunho em que HAT abra o jogo quanto ao que se passou com a visita da comissão de Buffalo, que impressão deixaram ao final. De fato, examinei só fração dos documentos legados de HAT. Mas fui guiado pelos levantamentos que outros pesquisadores já fizeram antes de mim. E tudo o que encontrei foram umas poucas cartas formais que troca com o diretor da Rockefeller, agradecendo a vinda da comissão, ou notificando o recebimento do relatório. Quanto ao conteúdo do relatório, silêncio absoluto. Também não encontrei qualquer comentário a respeito da impressão que HAT teve do próprio Cummings, ou de como correram as relações entre ambos. (Isto não seria motivo para estranhamento, não fossem as várias menções às boas impressões que Stevens e HAT tiveram um do outro nas cartas trocadas por HAT com Galvão ou com o casal Wagley)52. Além disso, o relatório, um estudo de caso curioso redigido com esmero, não foi publicado – o que me parece bem poderia ter acontecido. Considere-se que foi o que ocorreu com a ‘encomenda’ anterior da Rockefeller ao autor, o comentário crítico da sua viagem e visita às exposições de 1939, EisE, WisW. Note-se igualmente que o ‘relatório’ de Hamlin – na verdade um ensaio especulativo, em que descreve em termos gerais como imagina um museu nacional adequado ao Rio de Janeiro, sem na verdade se basear na instituição já existente, suas coleções ou sequer sua sede, ao contrário, adiantando uma receita de como constituir todo um museu exemplar out of the blue – foi efetivamente publicado, pela gráfica do Museu de Buffalo. Um exemplar reside esquecido nas prateleiras da biblioteca do MN, sem dúvida enviado por cortesia pelo autor. E, ao que tudo indica, foi igualmente ignorado pelo pessoal da casa. Adianto algumas hipóteses especulativas quanto às razões do seu ‘banimento’: 52 Especulação: resta a possibilidade de que HAT tenha considerado Cummings um dos ‘americanos que não se adaptam ao brazillian way’, mais um ‘granfino’ ao modo de Lipkind, como nos indica Correa (**) 102 • A descrição que faz das condições lamentáveis em que se encontrava o museu, do abandono das coleções, somada às suas críticas à baixa qualidade das peças taxidermizadas e à sua insensibilidade ao desvalorizar elementos de importância histórica, tornaram a sua versão inapropriada, indevida para divulgação. • Tal perspectiva inadequada face ao museu pode ter sido considerada indicador de que Cummings, afinal, não entendeu o espírito do MN, o que torna suas propostas inválidas – condenando o seu relatório a não ter efetiva serventia, ser deixado de lado e não levado em conta nas decisões da reforma • Uma variante é que as sugestões pertinentes que se encontram no relatório, e que eventualmente foram seguidas (como p.ex. a concentração das exposições no segundo andar e nas salas ao redor da escada de mármore), embora apresentadas como se de sua autoria, já seriam cogitadas pelos da casa antes de sua chegada, tendo-lhe sido apresentadas previamente. Ele meramente as teria incorporado ao seu corpus de recomendações, ou as assumido como pacíficas. • Resta cogitar que, de um modo mais abrangente, eles simplesmente não tenham se dado bem pessoalmente: HAT pode tê-lo considerado um esnobe, granfino (como qualificou Lipkind, sic Correa), alguém que não se adaptou ao ‘brazillian way’ (poderia ser um dos americanos referidos no comentário de HAT a respeito dos constrangimentos de receber scholars prestigiosos – na carta de consulta quanto ao envio de uma delegação do Smithsonian, Cf Correa). Note-se como ela queria se livrar de Clawson após alguns meses de oficinas de montagem de vitrines, e cuja permanência, após pouco mais de dois meses (de uma previsão inicial de um ano de permanência), ela passara a considerar sem mais serventia (carta de 19/11/41 para D. Stevens, dir. da Rockefeller F.). A expectativa de HAT era q ele passasse alguns meses, talvez 6, acompanhando os momentos decisivos da reforma. Em vez disso, ele espia o que se passa na casa por meras 4 semanas, e se manda. Deixa Hamlin fazendo turismo, e um técnico em montagem de vitrinas, dublé de antropólogo, para estagiar por um ano. A expectativa com a permanência e engajamento de Cummings ela o sugere na carta a Stevens (23/4/41), quando revela seu desejo da colaboração de um “master specialist in Museum organization” americano, e de q havia ficado muito impressionada com o livro de 103 Cummings. Já que ela não viaja, lê de tudo o que pode a respeito de museus. Mas o MN “presents so many problems that literature alone will not solve everything”. Nesta carta, HAT deixa patente que não considera haver, nos quadros brasileiros, ninguém capacitado à altura do desafio que a renovação do MN exige. (Nisto, podemos antes de tudo incluir Paulo e Bertha, os mais capacitados na casa a exercer esta função; depois da decepção com a colaboração ‘importada’ from USA, HAT parte para conseguir transferências de técnicos em educação de outros órgãos, como Paes Lemme, Sussekind de Mendonça, Starviarski). A carta do assistente de Stevens, Marshall, de 30/4/41, a Hamlin, propondo a ida Cummings ao Rio como consultor, tb estima uma permanência de seis meses. HAT volta a sugerí-lo na carta a Cummings de 14/7/41, quando ele já está de partida pro Rio. Na carta a Stevens de 25/8, dando notícia dos trabalhos da Comissão, chegada dia 13/08, ela menciona que Cummings pretende partir 11/9, que o casal Hamlin pretende passar 3 meses no Rio, e Clawson está estudando o material. [Na verdade, creio que Cummings permanece até o fim de setembro; o museu fecha as portas dia 01/10] Finalmente, a carta de HAT que parece estar tentando “se livrar” de Clawson, após apenas 3 meses de permanência. UMA VISITA DE COLETA [DE AQUISIÇÕES] Todos os custos da vinda – passagens, despesas de hospedagem, e o honorários dos consultores – seriam inteiramente cobertos pela Fundação Rockefeller. Mesmo assim, isto apenas paga o soldo. O que poderia fazer velhos naturalistas de museu, bem estabelecidos numa prestigiosa, trabalhosa e dinâmica instituição americana, abalar-se de descer à América tropical, no intuito de tentar remediar um velho museu nacional em crise, quiçá em franca e inapelável decadência? Sem dúvida, não deveriam faltar motivos. Sem pretender ser exaustivo, seguramente concorriam para o interesse no intercâmbio: o prestígio de estender a influência do seu modelo além fronteiras, estabelecer laços de permuta com um grande museu de história natural em um continente de poucos contatos, solidarizar-se com a política norte-americana de aproximação e colaboração com os governos latino-americanos durante a guerra, colaborar com as iniciativas de uma fundação que era importante fonte de 104 financiamento de museus e educação (e que já muito investira em projetos do Buffalo Museum). Já a cortesia da vinda da comissão seria retribuída paga com duplicatas de especimens das coleções do MN. Isto é dito explicitamente na carta de HAT a Clawson (14/7/41): “As a sign of our appreciation your museum shall receive duplicate specimens of our collections”. E há menções às trocas em cartas a Hamlin. Este interesse direto dos americanos na obtenção de coleções locais como retribuição confere novo sentido às críticas (à la Lopes) de Cummings no relatório quando aponta lacunas inadmissíveis nas coleções expostas, sobretudo a falta de bons exemplares de espécies icônicas da fauna nacional: tamanduá bandeira, tatu canastra, tapir, um naipe das aves mais belas. Era com a obtenção de duplicatas desses esplendores sul-americanos que ele estava contando, o valioso butim da expedição aos trópicos. Aqui vemos um desdobramento que fecha o círculo completo das viagens. Pelo expediente de permutas, ou mesmo da obtenção de espécimes por doação ou retribuição a serviços, a figura deste diretor-viajante opera também como a de um coletor, tal qual o clássico naturalistaviajante. Desde que se considere certas mudanças no setting: não é no campo que encontra suas presas, para tomá-las diretamente à natureza, mas no mercado de manufaturados – permutados, conquistados, arrematados, ou ainda adquiridos. Ele obtém um prêmio em espécimes pela oferta de consultoria e expertise. É o análogo, na ordem do dom entre instituições pares, da situação quando o naturalista vai “às compras”, encomendando peças a uma firma especializada – como Alípio Ribeiro, indo, comissionado pelo MN, buscar suas encomendas à casa Deyrolle de Paris, na sua viagem de 1911. (cit) 53 53 “Em observância à carta oficial que me determinava a fiscalização do fornecimento de espécimens zoológicos ao Museu (por mim solicitados em ofício de 30 de novembro de 1910), pela casa Emille Deyrolle, estive nessa casa, cumprindo o disposto na referida carta e entrei com a importância necessária para a aquisiçao de mais um exemplar que não estava na lista de aquisição do Museu.” (1912:iv) “Além desse bom amigo do primeiro Museu da França [Sr. Julio Terrier] conheci o seu discípulo Sr. Lucien Ranson e o Sr. Emille Deyrolle, cujo nome é já bastante conhecido dos Museus de História Natural. O Museu do Rio possui algumas peças da casa Deyrolle que o tem satisfeito e que me dispensam de estender-me mais aqui.” (1912:27) 105 O museu universitário dos anos ’50 MUDANÇAS DE GRAU Embora se considerassem continuadores da tradição educativa tão promovida pela geração anterior, os naturalistas que estão à frente das reformas não se vêem como meros repetidores das fórmulas e preceitos legados. Acreditam-se inovadores, e consideram as montagens que ajudam a criar um avanço, uma significativa melhora em relação às que até então existiam. De modo geral, apontam ao menos três aspectos em que o modelo mesmo das exposições foi alterado. Em primeiro lugar, a redução da quantidade de peças exibidas; em segundo, e relacionado ao anterior, o critério de representatividade na escolha dos exemplares a serem incluídos na exposição; finalmente em terceiro, o aspecto artístico na confecção dos mostruários, a preocupação com o arranjo estético, tão agradável aos sentidos quanto esclarecedor à razão. Detenhamo-nos, primeiramente, nas duas primeiras alegações. Percebem-se modernizando as tradicionais exposições, aperfeiçoando-as, mas suas inovações não representam uma ruptura radical com as diretivas museográficas anteriores, e sim mudanças de grau. Castro Faria, p. ex., anuncia “uma visível diminuição na quantidade de material exposto [que no entanto se tornou] mais compreensivo, mais atraente e mais racionalizado [...] capaz de despertar o interesse do grande público” (LCF:1947:13). José Cândido Carvalho, por sua vez, comemora os novos “mostruários amenos e atraentes ao público [...] fugindo à monotonia das arrumações antigas” (JCC:1956:31). Por trás das prescrições desse programa museográfico, a principal novidade é a preocupação com a preservação da motivação ou o fôlego do visitante, concebido como frágil e finito, o bem raro e esgotável a aproveitar com todo o cuidado. Dosam seus mostruários sempre estimando o quanto o visitante supostamente suporta de informação erudita, o quanto será capaz de tolerar a sobre-exposição a fontes de conhecimento mais ricas do que suas condições de apreensão antes que a sua atenção colapse, ele súbito perca todo interesse e desista de prosseguir visita. Na visão deles, o grande defeito das exposições anteriores estava no exagero, na sobrecarga de quantidade de peças apresentadas, e na decorrente repetição das 106 montagens, na monotonia das séries, que minava a curiosidade e a atenção do leigo despreparado. Para eles, as novas exposições que estavam montando não representavam propriamente uma ruptura radical com o momento anterior do museu. Perseguiam o mesmo programa expositivo geral. Apenas que – devido às novas preocupações quanto aos limites das capacidades receptivas do público leigo – promoviam uma diluição da concentração de coleções por vitrine e por galeria, uma poda dos excessos de proliferação de espécimes. A principal tarefa modernizadora era armar uma operação de triagem rigorosa na escolha dos exemplares de coleção que permaneceriam exibidas ao público. Tomemos a sala de aves – a mesma cuja foto, publicada no catálogo de Coleman (1929, p.20), reproduzimos mais acima, junto a outras 4 das antigas exposições. Ao entrar nesta sala, em 1941, Cummings se espantou com a enorme quantidade e variedade de espécimes reunidas. Estimou que naquelas vitrines (38, ao todo) estavam abrigados algo como 2.500 espécimes (CUMMINGS:1942:61). Quase vinte anos depois, as exposições de aves, inteiramente reformuladas, encontravam-se finalmente inauguradas. Embora realocadas a outra região do circuito, e distribuídas por três salas, a área total dedicada a aves quase não diminuiu. O mesmo não se pode dizer da fartura das coleções apresentadas: o número de indivíduos apresentados cai para aproximadamente 700 (quase um quarto da quantidade anterior)54. Tamanha redução nos induz a indagar: para onde foram todos os outros exemplares, que antes ocupavam o mesmo espaço, dividindo as mesmas vitrines? Com a reforma, o Museu precisou providenciar muito espaço novo para abrigar as coleções desalojadas da área de exposição. Boa parte dos exemplares excedentes, após passarem uma década amontoados nas salas dos fundos do segundo andar sem qualquer conservação aguardando remontagem (no episódio conhecido como o “pandemônio”), acabaram descartados por se encontrarem arruinados (Cummings já observara que muitas das aves empalhadas da coleção eram por demais velhas e decrépitas **). José Candido Carvalho registra que foram “eliminados, porém, por completamente imprestáveis [...] 1.520 aves” (Carvalho, 1956, p.24). E muitos espécimes que vieram a compor a nova exposição constituem novas aquisições. Sob a condução de Helmut 54 O número de exemplares de aves usados nas novas exposições foi estimado pela contagem dos itens declarados na descrição dos mostruários nos Relatórios Anuais do MN de 1959 (p. 11-28, sala Z10, de aves brasileiras), 1960 (p. 39-46, sala Z09, de sistemática) e 1961 (p. 15-26, sala Z08, de sistemática). 107 Sick, foi empreendido um programa de coleta especialmente para montar as coleções para as novas salas. [***] Além dos testemunhos de Castro Faria e Candido de Carvalho já mencionados, o mesmo bordão é encontrado, p.ex., nos trabalhos de MENDONÇA (1946) e CUMMINGS (1942). A PROGRESSIVA PREFERÊNCIA POR MENOS PEÇAS (TENDÊNCIA HISTÓRICA À REGRESSÃO PROGRESSIVA DA DENSIDADE EXPOGRÁFICA) Era portanto lugar comum, à época, avaliações críticas sobre o Museu Nacional condenando o excesso de peças das exposições. O diagnóstico de que as vitrines estavam desnecessariamente sobrecarregadas é ubíquo, e todos parecem concordar que isto compromete globalmente a experiência do visitante. Com a reforma, procurou-se diminuir drasticamente esse número. Chegou-se a uma configuração que foi considerada a ideal, balanceada, equilibrando espaço disponível, arranjo agradável ao olhar, sem perder de vista o objetivo de apresentar uma amostra minimamente abrangente e representativa de cada área a que o Museu se dedicava – o que vale também dizer, de cada segmento das coleções ali estudadas e guardadas. Para os promotores da reforma, alcançara-se uma solução de equilíbrio perfeito entre quota de informação e fruição visitante. No entanto, parece que o valor deste equacionamento ideal, desta proporção áurea de quantidade de peças por display, por área ou por tema, obedece a critérios volúveis, que variam ao sabor e ao gosto de cada época. Pois as mesmas composições que, nos anos ’50, eram consideradas dosadas num balanceamento perfeito de concentração de informações e peças para mais eficazmente educar e entreter o público, quarenta anos depois já não satisfaziam. Passaram a sofrer o mesmo tipo de censura da parte dos especialistas em museus de então que aquela outra geração dirigira a seus predecessores. Um exemplo notável se encontra nas impressões de uma pesquisadora em educação, que estudou as exposições e as impressões dos visitantes do Museu Nacional nos anos 1990. A certo ponto a autora avalia que a “quantidade exaustiva de peças e textos caracteriza grande parte das apresentações” (VALENTE:1995:119)55. Ela se referia a exposições que ainda eram, em termos gerais, as 55 A frase serve de legenda à foto de um mostruário de aracnídeos, que aliás manteve montagens ainda baseadas nas preparadas por Melo Leitão, uma geração antes. [é isto mesmo?? cf Feio na Museum] 108 mesmas que, quarenta anos antes, os antigos críticos do excesso se vangloriaram de ter conseguido reduzir drástica e definitivamente, alcançando a adequação ótima ao veículo expositivo. Para a sensibilidade de algumas décadas depois, o que se julgara concentração ideal volta a ser considerado sobrecarga exagerada, e o excesso de peças é novamente apontado como o defeito básico das montagens. O juízo quanto ao grau ideal de ‘concentração expositiva’ e as críticas às soluções da geração imediatamente anterior parecem ter seguido uma progressão recorrente ao longo do século. Se considerarmos a noção de uma ‘densidade expográfica’, por importação de noção análoga em demografia, como uma medida da concentração de objetos residentes por unidade de espaço expositivo, a história da museologia segue uma espécie de malthusianismo expográfico às avessas. A quantidade de peças expostas julgada adequada segue diminuindo a cada geração, que tende a olhar para trás sempre lamentando os excessos cometidos até então. As críticas elaboradas em cada ocasião específica podem buscar justificativas em princípios qualitativos (pedagógicos, estéticos, cognitivos, etc.) os mais diversos, mas o notável é a permanência do diagnóstico e da queixa básica: uma recorrente intolerância aos padrões quantitativos pretéritos. Como se uma espécie de limiar cultural de sensibilidade estética fosse progressivamente recuando. E determinando que, nas reformas expositivas, a grande alteração proposta fosse, antes de tudo, uma mudança de grau: a redução da coleção exibida, uma economia restritiva e anti-inflacionária de estímulos objetais. Ao analisar a atuação Franz Boas em museus no início de carreira, Ira Jacknis sugeriu uma interpretação similar diante da impressão paradoxal que nos causa hoje o exame das fotos das exposições por ele montadas no National Museum. Embora Boas fosse um crítico confesso da tradição vitoriana de abarrotar os armários ao modo de depósitos, e defendesse, no programa das suas montagens, a drástica diminuição do número de peças por mostruário, só apresentando o criteriosamente selecionado, as fotos que nos chegaram das vitrines por ele arranjadas nos parecem hoje inapelavelmente abarrotadas: “‘In arranging the collections I have, of course, not crammed the cases’ [escreveu Boas] […] Although in contemporary photographs we see cases that appear quite crowded, it may be that Boas was forced to display more of the collections than he would have wished […] Alternatively, our sense of what is crowded and what is spacious may have changed over the decades, as the general cultural shift from 109 Victorian plenitude to Art Moderne spareness produced a re-evaluation of aesthetic sensibilities in museum display.” (Jacknis, 1985, p.97)56 Talvez pudéssemos caracterizar, de forma tentativa e certamente um tanto esquemática, o contraste dos critérios desses períodos distintos. No tempo de Roquette (anos 20) o mandamento é apresentar tudo o que puder ficar à mostra, representando, em escala concentrada, tudo o que há. A expectativa é de que o principal das coleções estejam em exibição, e de que as coleções compreendam tanto um programa universal amostras representativas de todos as manifestações naturais. O idealizado é que se chegue a um mapeamento completo, uma correspondência exaustiva da natureza nacional à coleção do museu nacional – ainda que como projeto e horizonte. Que o Museu recolha, estude e exponha “a totalidade do que a nação pode oferecer”, nas palavras de ERP (1918). Na fase da grande reforma iniciada na década de 40, quer-se incluir apenas tudo o que puder ser visto clara e distintamente [cuidado: estes não são termos do programa roquetteano pro cinema?]; a eficiência expositiva é ocupar todo o espaço disponível, mas sem nunca haver sobreposição de peças, os elementos bem individualizados e separados por um território mínimo dos seus vizinhos; além disso, tudo que for exposto deve ser relevante e único em sua classe, sem jamais incorrer em repetição (que seria considerado desperdício de espaço e de atenção). Renuncia-se à vitrine como um ‘viveiro’ envidraçado, povoado por bandos de espécimes, que se poderia tentar distinguir passeando ao redor em busca do melhor ângulo que permita atravessar toda a profundidade 3D daquele ‘aquário’ transparente. A opção é reduzir o volume interno das vitrines a uma visada bidimensional, supondo o espectador sempre de frente, sempre próximo ao mostruário, voltado com um ângulo de visão fechado para a cena reduzida de apenas um display de cada vez. As vitrines de arestas de aço e folhas de cristal têm uma das faces revestida por um fundo opaco, preenchido como cenário, textos, etiquetas, diagramas que instruem, contextualizam, narram a respeito do exemplar destacado. Toda a estratégia é voltada para isolar o campo do visível às poucas peças contidas no próprio display – em vez do tradicional fundo panorâmico 3D vazado, que deixava entrever permanentemente o entorno do espaço expositivo, o ambiente do depósito. CASTRO FARIA registra esse aggiornamiento das velhas vitrinas: “Nova reforma na década de 40, novas alterações, desta vez menores [não obstante tenham sido muito maiores!], na feição 56 Quanto a esta interpretação, Jacknis remete a HARRIS, 1978. 110 interna do edifício, e os armários de 1911 sofrem agora uma modernização. Retiram-se centenas de prateleiras de vidro, e uma das faces de cada armário é revestida de compensado forrado de pano rústico. Estão assim até agora, passados 40 anos.” (1993:76). Cf também CUMMINGS (1942:44-5), cujas fortes recomendações, à época, pelo revestimento de uma das faces das vitrines pode ter sido determinante. De fato, Clawson permaneceu por alguns meses justo experimentando e treinando técnicos do MN a adaptar os antigos armários a este modelo bidimensional de fundo opaco. Assim também se procura aproveitar todos os nichos utilizáveis, não só dentro do espaço do mostruário, mas também em todo o ambiente arquitetônico como os vãos de algumas portas que são bloqueadas, e onde são instaladas vitrinas embutidas sob medida. O estabelecimento dos circuitos contínuos de percurso – o que demanda fechamento de passagens do palácio, aproveitadas para instalar vitrines – diminuindo o efeito labirinto, ou a circulação multiviária, que permite rápido acesso a qualquer seção das coleções expostas, e obrigando o percurso único e seqüencial. O caminho já está traçado no rumo de uma museologia que virá valorizar sobretudo os vazios, silêncios, intervalos, ditos para pensar, propiciar reflexão, descansar atenção, assentar. (Numa inversão exata da fórmula marajoara: aqui domina o horror ao preenchimento, aos excessos e barroquismos de número e forma) A progressiva exigência de redução da concentração expográfica, e a queixa sempre renovada da sobrecarga, da superpopulação exposta, talvez encontrem paralelo no crescente ou insuperável “problema do espaço”. Por um lado, coleções armazenadas com muito aperto, sem espaço suficiente e adequado para abrigá-las ou para expandir; por outro, exposições consideradas superlotadas de peças, precisando ser sangradas, podadas, desbastadas. A lei econômica do progresso das exposições e o das coleções em reserva segue rumos paralelos mas distintos. Nas exposições se reclama do excesso de peças, da superpopulação que faz com que os espécimes se acavalem, obstruam a visão uns dos outros, confundam e cansem o visitante. Nas coleções de estudo, armazenadas na reserva técnica, reclama-se da insuficiência do espaço para abrigar adequadamente o conjunto das peças, que também sofrem da sobrecarga, acotovelamento, empilhamento. 111 O sintoma percebido é o mesmo: sobrecarga, excessiva concentração e acúmulo de peças que prejudica a sua utilização adequada, comprometendo a funcionalidade da coleção. Mas as causas atribuídas (e portanto a reivindicação de solução) seguem caminhos opostos. Na exposição, a proposta é estreitar o filtro da seleção do que vai a público, expurgar boa parte das peças que atravancam os displays, recolhendo-as à reserva. A exposição passaria a gozar de uma estética mais leve, distribuindo apenas peças hiper-selecionadas pelo mesmo espaço total. Quanto às reservas, a atitude é inteiramente outra. O descarte de coleções saudáveis é inconcebível, o crescimento do acervo é bem vindo, almejado, necessário. O que se reivindica é dispor de mais espaço para abrigar o excedente, e de equipamentos adequados para organizar e disponibilizar a escala crescente do acervo. Esta atitude desigual face aos excessos da coleção de exposição e aos da de estudo tem relação com as possibilidades ‘adaptativas’ dos seus usuários: enquanto os cientistas se especializam, se desdobrando em equipes que estudam, cada uma, apenas um segmento do acervo, o visitante comum continua sempre, por assim dizer, um ‘generalista’. A exposição deve idealmente manter-se na medida do abordável (‘percorrível’) por qualquer um numa única visita. O espaço expositivo é constrangido com um limite absoluto intransponível de tamanho, determinado por condições de resistência e eficácia próprias ao visitante. Mas seguem princípios diametralmente opostos: na exposição, a tolerância a uma mesma quantidade de peças é que foi reduzida, o critério de adequação é que se deslocou, se estreitou; na reserva, a quantidade peças aumentou, o espaço permaneceu, até o limite do cabível. (Cf o processo de crescimento das coleções e o empurra-empurra, lotando exposições antes de desdobrá-las – ver Coleman, 1939, p.210-1.) DELÍCIAS DO ARRANJO ESTÉTICO A outra grande novidade apontada pelos que elaboraram as novas exposições é a incursão de um elemento colaborador original no processo que antes inexistia. Reportam o acréscimo de um ‘toque artístico’, um ‘acabamento decorativo’, um ‘arranjo estético’. É assim que a museografia – e o profissional especializado que então surgia no cenário museal – aparece nos relatos em que esses protagonistas dos trabalhos da reforma das exposições descreviam o 112 modo como entendiam o que estavam fazendo. Principalmente Castro Faria. Durante todo o trabalho de montagem das galerias de antropologia e arqueologia (1946-7), ele teve a oportunidade de contar com a colaboração – inédita nas experiências do Museu Nacional – de um especialista em “arranjos estéticos” (para mencionar uma das suas expressões recorrentes) indicado pelo SPHAN. Isto é considerado um tempero que não havia antes de forma explícita e especializada: a preocupação com a solução estética dos mostruários. Essa segunda ‘novidade’, que envolve o surgimento da museologia no cenário dos antigos museus de ciência, está vinculada a outro eixo de mudanças, dos que mencionei mais acima: o eixo do processo de especialização – das áreas científicas, como também das ocupações funcionais em um museu. Que nesse período dá uma ‘dobrada’, ocorre uma daquelas assentadas históricas que viram a página ou provocam uma mudança de patamar. Numa frase, é neste momento que a carreira de naturalista se extingue enquanto tal. [Se a redução do número está relacionada à cisão das coleções, a colaboração artística está vinculada às especializações] A MUDANÇA DA CONCEPÇÃO DE VISITANTE: A DESCOBERTA DA FADIGA DE MUSEU A imagem presumida do público visitante muda inteiramente de um período a outro. De inespecífico, infantilizado (o analfabeto, o homem comum, todos são aproximados da criança no seu primitivismo, a q é sempre possível redimir oferecendo-lhe o melhor alimento cultural), considerado excluído do conhecimento por impedimentos ostensivos de acesso aos meios de instrução, pela distância demasiada (geográfica, social, educacional) aos centros de saber, e suposto sedento por conhecimento, ávido em demandas de aprendizado; passa a público diferenciado, com capacidades e limiares a serem despertados e respeitados, cuja performance pode ser mapeada numa curva de aproveitamento, como de limite de esgotamento, que deve ser convencido, seduzido às delícias e méritos do conhecimento ou simplesmente não acorrerá, entretido pela concorrência de outros meios de ilustração e divertimento. A questão diz respeito na verdade à subjetivação do público, à concepção da subjetividade do público visitante do museu. 113 Mortara & Lopes descrevem os modelos comunicacionais que formalizaram as relações da mídia museal (exposição) com o seu público. [Cf Mortara&Lopes; também Sepúlveda]57 O público presumido por ERP não é exatamente o de um receptor neutro, continente passivo que é preciso preencher com informações, como os modelos comunicacionais formalizaram e a história dos estudos de público tende a ler como representação predominante na época. Ele é moral e moldável, mas de boa índole, é curioso, é carente – é a imagem em espelho do próprio naturalista infantilizado (a recorrente narrativa da vocação despertada quando criança numa visita, ou na recorrente freqüentarão; o infans visitante) ou transportado imaginariamente à situação do pobre só anseios em meios (aqui, o episódio da gravata!) Está mais para o escotismo e o teddy bear de Haraway que para a multidão hipnotizada e tangida como gado. Talvez não devêssemos buscar os modelos nas ciências da comunicação e sim na eugenia, no sanitarismo, na biopolítica que se engendrava. As novas categorias (todas vinculadas a noções derivadas da psicologia ou de uma psicofisiologia) acionadas na configuração deste público são: (1) esforço, excesso, fadiga; (2) interesse, atenção; (3) inibição, intimidação. ERP está atento ao terceiro desses focos: a intimidação que o saber livresco e senhorial causa no iniciante sem recursos, no cidadão de pouca instrução e alguma curiosidade. Ele pretende oferecer instrução sem pompa, com simplicidade, acessível a todos (Cf os ideais da sua revista sonhada em 1915). Quanto ao segundo, o interesse do público pelo conhecimento abrigado na instituição, ele o considera garantido, fruto da boa índole do povo brasiliano. Mas não pode conceber adequadamente o primeiro – que talvez lhe lembrasse a ideologia de acusação da indolência natural do caráter nacional. [Desenvolver a aproximação da figura da criança (pequenino naturalista) com o caipira, o primitivo, enfim, o brasiliano comum, ignorante, abandonado a si pelas elites.] 57 Van Praett (assim com Gilson) insistiu que é preciso definir o público que se quer atingir. No ETC chegamos a sonhar em implementar algo na linha do que Van Praett nos apresentou como o experimento do Museum: uma exposição de ‘pré-figuração’, um módulo reduzido de exposição em que se possa concentrar elementos definidores de opções a serem tomadas, de modo a testar soluções sobre o próprio público, monitorar suas reações, ouvir opinião de visitantes. E decidir a partir deste feed-back. (Note: não é a exposição colaborativa com as primeiras nações; é o império do modelo comunicacional e de marketing, em que se faz estudos e sondagens de público consumidor antes de lançar um produto em escala no mercado). 114 Os estudos de público nos anos 30 eram incipientes: apesar de seu entusiasmo pelas iniciativas, BL atesta que só havia dois ‘psicólogos-residentes’ em atuação em museus (em Filadélfia e Buffalo). Todos os trabalhos e toda a formação provinha da atuação deles. Na museologia dos anos 40, o público começa a aparecer como massa de seres vivos dotados de limiares psico-fisiológicos de tolerância – de apetite, de encantamento, de saciedade, de esgotamento. O comportamento dele, a sua progressiva reação à experiência de visitação é passível de observação, de monitoramento e registro quantitativo, de experimentação. Em Roquette, isto decididamente ainda não existe. O público é idealizado como uma massa de indivíduos carentes de conhecimento, natural e espontaneamente interessados, porém alijados dos recursos, privados de acesso à ilustração. A missão do museu, face a este público, é antes de tudo fornecer este acesso, facilitar o alcance, vulgarizar. Tornar o conhecimento erudito mais transparente e espalhá-lo gratuitamente para qualquer interessado, produzir mediações que permitam ao iniciante ou ignaro progredir na assimilação da bagagem, e abrirlhes as portas. O público viria espontaneamente sorver, acorreria para aproveitar o valor daqueles conhecimentos irrecusáveis, q lhes vinham sendo negados há tanto. Assim, o que é formulado nos anos quarenta como ‘fadiga de museu’ – quando o visitante se vê farto de tanta exposição e busca o escape – corresponde ao que ERP formula, no seu tempo, como uma falta de transparência do exposto: a metáfora célebre do fio d’água sobre vidro engordurado. Para ERP, o problema ali não é de excesso, não é da sobredosagem na medida e no ritmo assimilável por um humano médio: é de carência, de obstrução da visibilidade, falta de estabelecimento do canal de comunicação, o desencontro do visitante e do objeto, são as portas (do museu; do conhecimento) se fechando novamente, por opacidade, ao despreparado. Aquilo que, para Coleman, é um animal exausto, do qual se abusou ou se explorou até a última gota, levado inadvertidamente aos limites da sua capacidade de absorção e da sua disposição de instrução (ou da sua tolerância para com a chatice), para ERP é um cidadão despreparado do povo que ainda sequer teve chance de começar a jornada de conhecimento, é um pequeno patriota apenas desorientado, mantido (pela falta de mediações) à margem em sua ignorância e desamparo. 115 É porque, para ERP, a raiz do problema está no déficit que, em lugar de descanso e exigências mais amenas, seria preciso ainda mais esforço. Preconiza a maior preparação prévia do visitante, e maior tenacidade do mestre orientando os iniciantes, empenho em vazar a resistência da opacidade das vitrines. O diagnóstico dos museólogos dos anos 40 aponta em uma direção inteiramente diferente: o que era preciso era dosar melhor os estímulos – selecionar apenas os mais pertinentes, expô-los de formas variadas, ser inventivo na apresentação para torná-la recorrentemente atraente – de modo a não desperdiçar o fôlego, mas aproveitar o melhor da cota possível de atenção e de encantamento de que a massa curiosa era capaz. (Intuição a repensar/verificar: o papel de atração do encantamento, de maravilhamento, do curioso, parece talvez mudar de estatuto. Ele pode ser usado, desde que para atrair a atenção, fisgar o interesse do passante blasé – que, uma vez capturado, pode ser conduzido a apresentações mais sofisticadas, sutis, educacionalmente efetivas) Aqui vale considerar algumas formulações clássicas de Simmel. A figura do seu blasé quer caracterizar um modo específico de adaptação do animal humano ao ambiente sobrecarregado de estímulos do meio urbano: após penar o excesso de abalos estímulo-resposta até a exaustão, entra-se num modo de pouca reatividade mesmo à extrema variação estimuladora, em que tudo passa num cinza achatado, sem maior relevo. [cf as considerações sobre a localização (no centro da cidade) e a arquitetura (simples, despretensiosa, acolhedora) do museu em Valladares – em lugar de feudal ou senhorial, indutora de intimidação, esmagamento] O pano de fundo psicofisiológico é o mesmo, mas o tipo de derivação que a museologia quer disso extrair segue rumo diferente ao de Simmel. Neste cenário, ela pretende projetar a montagem do museu como uma espécie de máquina de captura, de otimização da fruição da energia cognitiva (a curiosidade, o interesse, a disposição ao assombro e ao maravilhamento, a inteligência e capacidade de entendimento e absorção das informações científicas) do animal público. 116 Mais do que todas as considerações sobre o cuidado com a variação das vitrines para não incorrer na monotonia que arriscaria levar à fadiga, o melhor documento que conheço sobre este tipo de raciocínio é o de Cummings criticando o hall de entrada do Bendegó: o diagnóstico do desperdício de energia intelectiva do público ignorante ainda fresco, recém chegado, de disposição ao aprendizado, carregado de interesse não-ligado. A tal “missão democrática” também reflete essa diferença: é preciso cativar o povo, seduzi-lo (cf Valladares p42); ERP já o supunha sedento, apenas as portas estavam fechadas, ninguém de cultura se dirigia aos excluídos para facilitar-lhes a educação. (Em BL: p36, p104). 117 À Coordenação do PPGSA-IFCS-UFRJ Comissão de Desempenho Acadêmico e de Bolsas Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia ASSUNTO: Solicitação de prorrogação de prazo para defesa de tese. Rio, 17 de março de 2010 Prezados professores: Uma série de razões contribuíram para que não fosse possível finalizar a redação da minha tese de doutorado dentro do prazo regulamentar de cinco anos. A mais relevante foi que, no curso da análise do material e redação do argumento, deparei-me com desdobramentos de interpretação enriquecedores que não previra inicialmente. Os novos insights obrigaram a um redimensionamento das minhas hipóteses, que acredito seja justificado pois permitem dar aos resultados obtidos um alcance e uma relevância de maior escopo. Por esses motivos, solicito a prorrogação do prazo para a conclusão e defesa da tese por mais seis meses (até 31/08/2010), sendo que a cópia finalizada do corpo da tese deverá estar finalizada até junho, segundo cronograma de trabalho que anexo a este pedido, junto com uma versão de alguns capítulos já redigidos. (Creio que é oportuno ressaltar que em momento algum reivindiquei ou dispus de auxílio de custos ou bolsas no curso do doutorado, financiando com meus próprios recursos e atividades o tempo dedicado aos estudos, pesquisa e elaboração dos resultados.) Atenciosamente, Jayme Moraes Aranha Filho <[email protected]> ingresso no doutorado em 2005 orientador: prof. José Reginaldo Gonçalves À Coordenação do PPGSA-IFCS-UFRJ Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia ASSUNTO: Do cronograma de trabalho para a conclusão da tese. Rio, 17 de março de 2010 Prezados professores: Segue o planejamento de um cronograma para 7 quinzenas de trabalho de redação, com previsão de término em fins de junho/2009: 17 a 31/mar cap. 9 Desenvolvimento da análise da mudança na concepção de visitante, da categoria da ‘fadiga de museu’, das analogias da exposição museal com o cinema educativo 1 a 15/abr cap. 6 Expansão e reformulação da análise sobre o museu roquetiano, à luz da noção de visitante contrastiva 16 a 30/abr 1 a 15/mai caps. 7e8 Análise das ‘museografias’ de Bertha Lutz, Süssekind, Valladares, Venâncio, Castro Faria, Candido Carvalho, Feio 16 a 31/mai cap. 2 Revisão da literatura de estudos de museus, especialmente a abordagem centrada no rastreio de coleções 1 a 15/jun cap. 1 cap. 10 Notícia sobre a experiência pessoal de trabalho no Museu Considerações finais (incluindo alguns desdobramentos esboçados mas não desenvolvidos na tese) 16 a 30/jun Revisão geral, montagem dos anexos (que inclui um dvd com parte da bibliografia e documentação primárias digitalizada), impressão e confecção de cópias. Atenciosamente, Jayme Moraes Aranha Filho <[email protected]>