guia da impermanência das exposições

Transcrição

guia da impermanência das exposições
GUIA DA IMPERMANÊNCIA DAS EXPOSIÇÕES
uma investigação sobre a grande reforma
do Museu Nacional do Rio dos anos 1940
Minuta de tese parcialmente redigida
Doutoramento em Antropologia
PPGSA-IFCS-UFRJ
Orientador: José Reginaldo Gonçalves
Aluno: Jayme Moraes Aranha Filho
Rio, março/2010
guia da impermanência das exposições
uma investigação sobre a grande reforma
do Museu Nacional do Rio dos anos 1940
Sumário dos capítulos parcialmente redigidos
Sumário estendido da Tese:
em 10 capítulos com descrições resumidas
1
Capítulos já redigidos:
3. Os grandes ciclos expositivos do MN
11
4. A separação das coleções
▪ como inauguradora do museu moderno
▪ a evidência arquitetônica
▪ a evidência fotográfica
30
36
50
6. Um museu brasiliano dos anos ’20
71
7. Alter egos museológicos de Dona Heloisa
▪ Carlos Cummings
85
9. O museu universitário dos anos ’50
Pedido de prorrogação
106
118
Sumário estendido
A estrutura atual da tese prevê os seguintes 10 capítulos,
que descrevo resumidamente nas páginas seguintes.
sumário
1. Notícia sobre minha passagem pelo escritório técnico-científico do Museu
2. Estudos de museus, de história natural, nacionais
3. Uma cronologia por ciclos expositivos
4. Uma genealogia das reservas
5. Corpo museográfico
6. Um museu brasiliano dos anos 20
7. Alter egos museológicos de Dona Heloisa
8. Os testemunhos da museologia praticada pelos reformadores
9. O museu universitário dos anos 50
10. Mais
1. notícia sobre minha passagem pelo escritório técnico-científico
do museu
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continuidade com cosmologia científica
desconforto com desprestígio e com desconfiança
partido museográfico: historicidade x ficção realista (naïf)
constituição de aparelho museográfico externo à burocracia funcional
legado de uma separação nunca completada:
o mudança das unidades de pesquisa pro horto
o pré-roteiro negociado por disciplinas
Apresento as circunstâncias em que me engajei numa equipe técnica do Museu Nacional
durante os anos de 2001 a 2003, encarregada de elaborar um projeto de reformulação integral
das exposições permanentes do Museu. Minha função oficial era a de ‘tematizador científico’
(o equivalente a ‘pesquisa e roteiro’ numa produção audiovisual), o que me fez atuar sempre
como uma espécie de mediador entre a equipe técnica de designers, museólogos, arquitetos, e
os “cientistas da casa”. Tal como se passou com Feio (1959), também devo dizer que, antes de
aceitar este trabalho, a minha experiência com montagem (ou estudos e reflexão a respeito) de
exposições era nula. Este período representou para mim, totalmente inexperiente até então na
área, uma imersão no mundo e na cultura dos profissionais de museus, e, assim, adquiriram o
valor de uma espécie de trabalho de campo etnográfico. De algumas das intercorrências e
impressões derivadas desta experiência de trabalho derivam as questões que me motivaram a
desenvolver a pesquisa de doutorado.
Ressalto duas questões iniciais, duas durante, e duas no encerramento do projeto. As iniciais:
o caráter das exposições de museus de história natural como representações da cosmologia
científica, com a qual trabalhara no mestrado; a sensação permanente de desconforto da
minha posição no museu, por desprestígio da área diante dos colegas e pares, e por
desconfiança dos funcionários quanto à nossa situação institucional ‘arrivista’ ou
‘oportunista’. As questões de percurso diz respeito aos desafios da estratégia escolhida no
projeto: a intervenção através de um órgão constituído ad hoc, externo à burocracia da casa; o
partido museográfico que privilegiaria a historicidade e a contextualização das coleções
exibidas, ao invés de cenografia de reconstituição ‘realística’ (e.g. dioramática) dos ambientes
originários (e afinal imaginários) a que tais coleções remeteriam. Ao fim do projeto,
interrompido a meio curso e que não chegou a ser implementado, duas questões pouco
esclarecidas permaneceram: a das razões históricas para a decisão de mudança das unidades
de pesquisa, que deveriam sair do prédio do museu; a do modo como se operou a constituição
do pré-roteiro da exposição, por recenseamento negociado com cada disciplina acadêmica
isoladamente.
2. estudos de museus / de história natural / nacionais
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instrumentos de representação de nação, da identidade
o foco na constituição e trajetória das coleções
as armadilhas do anacronismo
Uma revisão dos recentes estudos de museus, com particular atenção para os que se atém às
peculiaridades dos museus de história natural e às dos museus nacionais. Boa parte destes
estudos concentra-se em revelar o papel de tais instituições como instrumentos de
representação de identidade – e.g. da comunidade imaginada como nação naturalizada e
natureza nacional. Uma vertente renovadora destes estudos concentra o foco nos mecanismos
de constituição das próprias coleções museais: persegue as perguntas do tipo quando, onde, o
quê, por quem, como, por que foi coletado. Da análise sobretudo destas circunstâncias procura
mostrar como derivam os contornos mais gerais de operação da rede instituições museais.
Dirigimos nossa análise para um aspecto e um momento particular da circulação dessas
coleções, já no interior da instituição: a repartição entre as coleções que deveriam permanecer
expostas à visitação pública, e as reservadas aos depósitos, destinadas exclusivamente aos
estudos científicos pelos especialistas. Esta distinção fundamental nas coleções de museus é
uma noção surgida nos museus de história natural na segunda metade do séc. XIX, e se impôs
paulatinamente a todos os museus modernos. Pretendemos demonstrar que, no caso do MN, o
processo de separação das coleções, e da constituição de reservas técnicas, se deu em um
momento restrito da história da instituição, justo no período das reformas iniciadas nos anos
40.
Faz-se também aqui recensão de alguns dos estudos e teses sobre a história do Museu
Nacional e suas coleções/exposições.
3. uma cronologia por ciclos expositivos
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As cronologias oficiais, por ciclos administrativos
Temporariamente fechado para reformas: a interrupção da visitação como divisor
5 montagens ‘permanentes’, sendo que a última permanece
Estabeleço algumas balizas históricas para o tratamento do episódio das reformas estudadas.
Apresento algumas das cronologias ‘nativas’ circulantes, gêneros variáveis de registro
corrente da memória institucional que encontrei enquanto trabalhava no Projeto da Nova
Exposição. Procuro situar o momento das reformas do MN em um contexto histórico de longo
prazo, mas centrado estritamente nos ciclos expositivos da casa durante o século XX.
O ponto crítico no estabelecimento de uma cronologia é o critério da periodização: onde
cortar, considerar como ruptura, e que blocos manter contínuos. Para uma periodização
ancorada nos ciclos expositivos, as balizas que sinalizam o ponto de ruptura e mudança são os
momentos em que a visitação pública é interrompida, e o museu atravessa fechado para
empreender reformas de grande escala. A duração dos ciclos se prolonga com a inauguração
das novas instalações e segue pelo período ininterrupto em que as galerias permanecem
abertas ao público. Proponho assim uma cronologia de referência que destaca as grandes
montagens da exposição dita permanente, escandidas por momentos em que o Museu se
fechou à visitação pública.
Por fim, sugiro alguns dos principais processos institucionais em curso na renovação do
Museu nos anos de reforma: a divisão da coleções e constituição de reservas técnicas; a
consolidação das especializações dividindo os campos tradicionalmente mesclados das
ciências naturais e antropológicas; o deslocamento do centro de gravidade das rede de
relações com outros museus do mundo da Europa para os Estados Unidos.
4. uma genealogia das reservas
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separação das coleções como inauguradora do museu moderno
separação das coleções – através das plantas arquitetônicas.
separação das coleções – através de fotos de exposições.
separação das coleções – como projeto permanente (de purificação)
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apêndices: mapoteca e fototeca
Apresento a noção da clássica divisão entre coleções de estudo e coleções de exposição – que
se tornou dominante entre os museus de história natural da Europa e Estados Unidos no final
do século XIX – e como este programa foi sendo progressivamente assimilado pelos principais
museus brasileiros.
O objetivo principal deste capítulo é demonstrar, através da interpretação de evidências
empíricas, que: (1) não havia divisão sistemática das coleções (entre de exposição e de
estudo) antes de 1941, com a maior parte do acervo armazenada nas galerias abertas à
visitação pública; (2) esta divisão, que implica na alocação de um novo espaço para abrigar as
doravante ‘reservas técnicas’, se dá simultaneamente à criação das novas exposições públicas
resultantes da reformas dos anos 40 e 50.
A demonstração é feita sobretudo pela análise comparativa de: (1) plantas baixas com a
distribuição funcional do espaço do museu antes e depois da reforma (quando se observa a
mudança de proporção da quantidade de área ocupada pelas exposições / pela pesquisa); (2)
fotografias das galerias de exposição antes e depois da reforma (onde se observa a mudança
de modelo expográfico, com a acentuada diminuição na quantidade e concentração de peças
exibidas). Por fim, pela comparação de fotografias das velhas exposições com fotografias
retratando modernas reservas técnicas de história natural de hoje em dia (que apresenta várias
analogias, e que permite ver os elementos que permanecem – o que fazia das antigas os
equivalentes a depósitos – e os que não – que de certa forma “migram” para caracterizar as
atuais galerias de exposição).
5. corpo museográfico
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Grand Tour: a viagem de visita a museus alheios como formadora dos reformadores
anseios de viagem
3 gêneros de documentos museográficos: relatórios de viagem; ensaios de leitura;
apresentação de montagens
Reabilito uma conotação quase em desuso (e etimologicamente mais fiel) para o termo
‘museografia’: descrição ou catálogo de museu. No mesmo tom, museógrafo é o autor de
descrições de museu. É neste sentido que aqui apresento, em sobrevôo, o conjunto de autores
da época que elegi privilegiadamente para análise. Quase toda museografia, embora
primariamente descritiva, inclui também, mais ou menos explicitamente, juízos e opiniões
críticas, senão recomendações normativas quanto a como deve ser um museu. O “corpo
museográfico” aqui reunido apresenta várias visões de programas museológicos e de alguma
forma estiveram vinculados às concepções de reforma do MN.
Grosso modo, podemos classificá-los, eventualmente com algumas superposições, em três
gêneros de ‘museografias’:
O primeiro é fruto de um dos expedientes clássicos com que formar um projeto de reforma
museológica: a viagem “de ilustração”, através da visita interessada aos grandes museus de
história natural do primeiro mundo. Numa espécie de “Grand Tour” museológica, em busca
dos templos últimos da ciência invés das obras primas dos clássicos, estes “naturalistas
visitantes” retornam trazendo, não séries de espécimes naturais, mas como que “coleções de
impressões de visita” – o relato da experiência vivida dos maiores impactos, inovações
felizes, decepções, que gostariam de reproduzir ou evitar, de todo modo ter como referência a
partir da qual idealizar um modelo próprio de como deve ser o seu museu.
O segundo gênero, muitas vezes por falta de oportunidade de empreender o primeiro, é o de
ensaios programáticos, baseados apenas nas leituras de publicações a respeito de museus e nas
experiências acumuladas na lida do próprio museu.
O terceiro gênero é o da apresentação e descrição pelos próprios autores – em palestra, em
artigo publicado, na confecção de um guia de exposições – de exposições recém inauguradas,
que denotam os testemunhos da museologia praticada pelos reformadores.
Na geração de Roquette, quase todos os envolvidos diretamente nas reformas cumpriram o
percurso da ‘Grand Tour’. Isto inclui e.g. Lacerda, o próprio Roquette, Miranda Ribeiro, Paes
Leme. Já na geração de HAT a situação é bem mais complexa. A própria HAT é antes de tudo
aquela que, antes de empreender sua reforma e por impedimentos vários, não pôde antes ir
conhecer os grandes museus centrais – restringiu-se a leituras e muita correspondência. Mas
cercou-se assim de personagens, alguns mais outros menos, experientes em matéria de
museus, que funcionaram como seus alter egos museológicos. Entre eles Bertha Lutz
(viajante), Mendonça (mero leitor informado, como HAT), Valladares (viajante), e o caso
mais curioso, por uma inversão completa do modelo clássico, Cummings, um diretor
renomado de museu de ciências do primeiro mundo que ela faz vir para conhecer e opinar
sobre o museu doméstico.
6. um museu brasiliano dos anos 20
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a dupla orientação: entre a Europa e o Sertão; a viagem de ilustração e a de campo
coleções plenas exibidas;
fetichismo e curiosidade dos pequeninos
o banal, o patriotismo que se inicia pelo quintal
lição de fatos, mais do que de coisas;
visitante treinado na observação, o desenho;
o autodidata
pequenos naturalistas (a criança como modelo do público)
o museu se torna pequeno: o rádio, a revista, o cinema
Apresento uma interpretação sobre a função das exposições do Museu no período anterior ao
da reforma de 1940, privilegiando a análise das concepções do papel do Museu em RoquettePinto, tomado como personagem emblemático do período. A realização de que o museu
pensado por Roquette estava baseado numa organização das coleções radicalmente distinta da
que se seguiu à reforma dos anos 40, um museu onde inexistia divisão entre reserva técnica e
exposição e esta indistinção era constitutiva da própria concepção de museu e exposição,
permite-nos fazer uma interpretação original e historicamente mais situada das propostas
educativas de Roquette, que se ajustariam ao Museu do seu tempo – mas que seria anacrônico
estender automaticamente, supondo continuidade, às décadas posteriores.
Nos anos de formação de Roquette já se delineia a dupla orientação das viagens de pesquisa: a
estadia na Europa em 1911, a rondoniana na Serra do Norte em 1912. O museu concebido por
Roquette é um museu com coleções plenas exibidas, e é numa exposição da totalidade do
acervo que busca meios de orientar o visitante a descobrir e decifrar seu valor e suas lições
científicas. Das inúmeras iniciativas didatizantes que implementa, a que melhor traduz o seu
senso de exposição é a dos guias das coleções.
7. alter egos museológicos de HAT (programas)
Análise da constelação de programas museográficos que orbitaram Heloisa Alberto Torres e o
planejamento das reformas que empreendeu.
■ BERTHA LUTZ, naturalista Museu Nacional
Inicialmente relatório de viagem (1933), foi sendo retrabalhado a ponto de se tornar um rico
ensaio programático sobre as funções educativas do museu, eivado de referências a exemplos
de experiências e soluções testemunhadas nos museus americanos. O documento nunca foi
publicado e foi esquecido até recentemente. As circunstâncias em que o envolvimento e a
reflexão museológicas de Bertha permaneceram à margem das reformas dos anos 1940 são
pouco claras, mas ensaio algumas sugestões que permitem situá-la no tabuleiro dos
personagens significativos das transformações que a instituição atravessou.
■ CARLOS E. CUMMINGS, diretor Museu de Ciências de Buffalo
Relatório (descritivo, crítico e programático) de visita especializada ao MN, realizada
imediatamente antes da instituição cerrar as portas ao público para deslanchar as reformas
gerais. Convidado diretamente pela diretora HAT, com a mediação e financiamento da
Rockefeller Foundation, Cummings ocupa a posição mais paradigmática de alter ego de HAT.
Um museólogo expert veterano, com vasta experiência e conhecimento do campo, além de
visitador itinerante – todas qualificações complementares às que faltavam a HAT.
■ FRANCISCO VENÂNCIO FILHO, educador, Instituto de Educação
Vários pequenos textos sobre o museu moderno e o cinema: em especial, palestra sobre a
função educativa dos museus e o relatório de viagem aos Estados Unidos.
■ EDGAR SÜSSEKIND DE MENDONÇA, técnico em educação, Min. Agricultura
Ensaio programático sobre os serviços de extensão cultural de um museu, baseado em
literatura museológica e experiência no ensino escolar.
As circunstâncias em que o texto que Mendonça foi produzido não são inteiramente claras.
Ao que tudo indica, foi produzido em fins de 41 ou início de 42, e persistiu como uma espécie
de programa de orientação para o novo serviço de extensão cultural que HAT acabou criando
no final de 42 (depois de liquidar o obsoleto SAE em 41) sob a direção de Paschoal Lemme.
■ JOSÉ VALLADARES, historiador, diretor da Pinacoteca e Museu do Estado da Bahia.
Ensaio programático, a partir de experiência de viagem e visitação a museus norteamericanos.
O livrinho de Valladares é uma preciosidade. Viajou aos EUA, México e Peru por mais de um
ano, sob o patrocínio da Fund. Rockefeller, conhecendo e estagiando em inúmeros museus. O
mote do seu relato é ressaltar “as possibilidades de democratização da cultura que se encerram
nos museus”.
■ GILBERTO FREYRE
O livrinho de Gilberto Freyre, bem posterior a todos os anteriores, e já de um período em que
HAT sequer estava mais conduzindo o MN, foi incluído no entanto neste grupo por dois
motivos: 1) GF era quem HAT cogitou para a direção do MN em 37, quando teve de assumir
e conduzir a reforma; 2) sua reflexão e programa para o Museu do Homem do NE é cheia de
referências às iniciativas originais de ERP
8. os testemunhos da museologia praticada pelos reformadores
■ CASTRO FARIA, naturalista Museu Nacional
Discurso de inauguração das novas exposições (e reabertura do Museu ao público) realizado
em 1947. Faz uma recapitulação da história do Museu e depois descreve, mostruário por
mostruário, as novas instalações, incluindo considerações quanto aos partidos museográficos
assumidos.
Um novo discurso, no centenário da Exposição Antropológica Brasileira, em 1982, em que
recapitula episódios da história do Museu e das montagens de suas exposições.
■ JOSÉ CÂNDIDO CARVALHO, naturalista Museu Nacional
Relatórios anuais de diretoria dos anos em que foi diretor, de 1956 a 1961, descrevendo as
realizações administrativas, com descrição (às vezes bem detalhada) das exposições
inauguradas no período.
Em 1977 apresenta palestra no Conselho Federal de Cultura, de que era membro,
recapitulando a trajetória do Museu Nacional, e diagnosticando os seus impasses de então.
■ JOSÉ LACERDA AUGUSTO FEIO, naturalista Museu Nacional
Palestra em Congresso Brasileiro de Museus, que deu origem a artigo publicado na revista
internacional de museologia da Unesco (1959), descrevendo algumas das salas de
invertebrados recém-inauguradas no MN, na montagem das quais colaborou.
9. o museu universitário dos anos 50
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a redução da concentração expográfica
os novos recursos estéticos e comunicacionais de display
a mudança da imagem presumida de visitante
o a inibição, intimidação
o o frágil laço do interesse, a iminência da fadiga
roquette depois do museu: cinema
Aqui são retomados e sintetizados alguns dos traços mais significativos do modelo de museu
pós-reforma, suas exposições e público.
10. mais
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pandemônio
a sobrevida diferencial das galerias (4 carreiras)
anseio de viagem
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fototeca
mapoteca (plantas, organogramas)
galeria de museógrafos
gabinete de palavras-conceito (glossário)
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biblioteca
Os grandes ciclos expositivos do Museu Nacional
Estabeleço algumas balizas históricas para o tratamento do episódio das reformas
estudadas. Sublinho a peculiaridade da trajetória histórica do Museu Nacional (e a
dificuldade de interpretá-la) através de um comentário extraído de um dos estudos
pioneiros da historiografia dos museus brasileiros. Considero algumas das cronologias
circulantes e gêneros semelhantes de registro corrente da memória institucional que
encontrei enquanto trabalhava no Projeto da Nova Exposição. Procuro situar o
momento das reformas do MN em um contexto histórico de longo prazo, mas centrado
estritamente nos ciclos expositivos da casa durante o século XX. Proponho assim uma
cronologia de referência que destaca as grandes montagens da exposição dita
permanente, escandidas por momentos em que o Museu se fechou à visitação pública.
Por fim, sugiro alguns dos principais processos institucionais em curso na renovação
do Museu nos anos de reforma.
DESTINO YPIRANGA
Em um estudo pioneiro de historiografia dos nossos primeiros museus, Lilia SCHWARCZ
(1987)1 descreve um período embalado por um movimento mundial de ebulição dos museus,
chamado de “era de ouro”, que se inicia duas décadas antes do fim do século, termina vinte ou
trinta anos já avançados no século vinte. De alguma forma, como numa maré inelutável dos
tempos, após este período do “movimento mundial dos museus” (como o caracteriza
COLEMAN:1939), todas essas instituições tenderiam a entrar em franco declínio.
Tal declínio derivaria de uma mudança no próprio modo de operar das ciências naturais, cada
vez mais voltadas para estudos de laboratório, em que as pesquisas mais importantes
deixaram de ser aquelas baseadas na descrição morfológica e na anatomia comparada de
espécimes coletas in natura, e passaram a exigir procedimentos de acesso a eventos invisíveis
à visão direta, fenômenos que não se oferecem imediatamente ao olhar que examina a
superfície de uma peça. Esse tipo de ciência encontrava melhores condições de operação e
1
O artigo foi parcialmente incorporado no livro O espetáculo das raças (SCHWARCZ:1993). Mas a nota de
rodapé, com sugestões tentativas sobre o desdobramento do caso sui generis do MN, e que aqui nos interessa em
particular, só se encontra no ensaio original.
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funcionamento não nos gabinetes e laboratórios dos velhos museus mas nos novos institutos
de pesquisa que vinham sendo formados com a República.
Este princípio geral mostra-se, no entanto, insuficiente para entender alguns desdobramentos
do século vinte, ao menos quanto ao caso do MN. E Lilia aponta claramente este limite. O seu
artigo termina descrevendo o ocaso dos grandes museus de inventário da natureza da nação.
Traça o futuro incerto do Museu Goeldi, o quanto ele se perdeu do projeto inicial, que data da
sua reformulação no fim do século XIX pelo próprio Goeldi, quando se previa para ele um
papel estratégico, em que deveria capitanear as pesquisas científicas a respeito de toda a
região amazônica. Nos anos vinte e trinta, ele já perdera este horizonte. Em segundo lugar,
descreve o percurso do Museu Paulista. É um museu complexo, com coleções heterogêneas,
no início predominantemente zoológicas e botânicas, e que dá uma guinada radical nos anos
’20. Taunay, que assumira há pouco a direção do museu, durante as comemorações da semana
do centenário da Independência (a mesma ocasião em que, no Rio, se fundava o Museu
Histórico Nacional), anuncia seus planos de dar ao museu um caráter marcadamente histórico.
O instituto reunia então coleções de belas artes, de história, arqueologia, etnologia, zoologia,
botânica, paleontologia. Ora, estes são quase todos os tipos de coleções que um museu
poderia possuir. Cada uma dessas áreas terá um destino diferente. Em golpes sucessivos, o
museu é inteiramente desmembrado e suas coleções dispersas. A instituição original gerou
uma série de museus especializados, boa parte deles mais tarde absorvida pela Universidade
de São Paulo. Este destino, o do desmonte, é o que Lilia esperava que acontecesse a todos os
grandes museus egressos da “era de ouro”. O Paulista é, assim, exemplar para a sua
interpretação.
Não deixa de ser curioso uma pesquisadora baseada em São Paulo eleger o Museu Paulista
como o caso exemplar, o modelo de referência. Eu, que sou carioca, garanto: o MN não se
parece de modo algum com um caso exemplar. É absolutamente singular. Ocupa, por outro
lado, uma posição central, e merece uma investigação que se detenha na peculiaridade da sua
trajetória – o que pode eventualmente nos revelar aspectos ainda não percebidos sobre modos
como essas instituições puderam se atualizar e renovar seus programas de modo a responder
aos novos tempos.
Quanto ao destino do MN, Lilia inclui uma nota de pé de página, já no fechamento do artigo,
em que registra a inesperada constatação de que, nessa virada dos anos 30, “revistas e
12
documentos parecem mostrar uma posterior vinculação [do MN] à questão do patrimônio
histórico nacional” (SCHWARCZ:1989:70; grifos j). Ora, essa era então a nova onda, embalada
por modernismos quer desvairados quer nostálgicos, já em cristalização desde a criação do
Museu Histórico, e francamente promovida pela Nova República e o programa getulista. São
os primórdios do SPHAN, de cujo primeiro conselho a diretora do Museu Nacional, Heloisa
Alberto Torres, viria a ser membro, e que logo tombaria o prédio do MN (o palácio da Quinta)
num dos seus primeiros atos.
Lilia demonstra, nesta passagem, uma certa surpresa com o fato da velha instituição, ao invés
de atrofiar e acabar desmontada, haver aparentemente se reforçado, tornado-se uma das
protagonistas da nova onda museológica nacional. E acrescenta: “O Instituto carioca parece
ser o próprio ‘camaleão’, no sentido de adaptar-se a diferentes contextos e perspectivas
teóricas” (id.). O MN não seguiu o destino que supunha ser necessário aos da sua espécie – o
desmonte – mas sim a camuflagem e a mutação.
[B]
POR QUE SERÁ QUE O MUSEU NACIONAL NÃO ACABOU JUNTO COM A ERA DE OURO ?
Aliás, ele correu sim esse risco, que poderíamos batizar de “destino Ypiranga”. Na verdade, o
MN sempre correu tais riscos. Em diversos momentos chegaram a ser formuladas propostas
ou projetos que levariam ao seu desmembramento, ou pelo menos da separação de todo um
setor que viria a formar outra instituição. Neste momento mesmo, em que Lília localiza o
ocaso da era de ouro, e que é também o dos primórdios da montagem da agência de proteção
ao patrimônio nacional pelo Estado Novo, a proposta inicial sugerida por Mario de Andrade a
Capanema previa justo algo assim: a divisão de antropologia do Museu e suas coleções
deveriam ser retiradas da Quinta da Boa Vista e viriam a constituir um novo Museu
Arqueológico e Etnográfico.
(Outros episódios análogos são as sugestões de reformulação e divisão do MN feitas por
Ladislau Netto no século XIX, e o projeto de transferência do MN para o campus
universitário da Ilha do Fundão, ao final da Reforma Universitária, quando se cogitava a
incorporação dos departamentos científicos do Museu por unidades de pesquisa já existentes
na universidade). Seria interessante investigar tais momentos em que a instituição atravessou
a possibilidade de ser desmontada, e como os contornou.
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EM BUSCA DE FONTES DE HISTORICIZAÇAO DO MUSEU NO PROJETO DA NOVA EXPOSIÇÃO
Ainda no ETC, procuramos reunir fontes que nos permitissem reconstituir a trajetória
histórica da instituição. O esforço atendia a várias necessidades: para balizarmos melhor a
continuidade do perfil da instituição em que nos engajávamos em renovar; por que um dos
princípios conceituais a orientar toda a reconcepção das exposições era o da historicidade (das
coleções, das ciências, da constituição do museu na vida nacional); por fim, planejávamos
especificamente uma área expositiva, uma galeria, centrada na história do palácio da Quinta
da Boa Vista, como também na história da formação das ciências naturais e antropológicas no
país, imbricada na constituição do Museu Nacional e nos processos de formação das coleções
científicas e bibliográficas por ela reunidas. Alguns ensaios chegaram a ser escritos (e um
deles publicado no Boletim do MN) pelos redatores da equipe do ETC2.
As principais fontes eram poucas, e quase todas versões ‘oficiais’ de como a própria
instituição gostava de se apresentar. Sobretudo para a história recente, ou todo o século XX.
Para o século XIX, havia a qualidade do recurso excepcional da tese publicada de Lopes
(1995), construída a partir de uma leitura cuidadosa e crítica das fontes primárias de arquivo,
e adiantando hipóteses interpretativas do cenário mais amplo da formação das ciências
naturais no país in the long run. Era uma alternativa auspiciosa face às recensões usuais da
historiografia, que costumava se contentar exclusivamente nos relatos clássicos de dois
importantes diretores da virada do século XIX pro XX, as Investigações Históricas e
Scientíficas sobre o Museu Imperial e Nacional, de Ladislau Netto (1870), e o Fastos do
Museu Nacional do Rio de Janeiro, de Lacerda (1905).
Para o século XX, as fontes usadas baseavam-se sobretudo nos Relatórios Anuais
administrativos dos diretores da casa, embora a sua série publicada fosse muito incompleta:
após os de Bruno Lobo (1919-22), pula-se para os de José Cândido de Carvalho (1956-61) e
seguinte, quando os relatórios passam a ser regularmente publicados em coleção própria das
edições da casa. Havia um gap muito grande desde o período administrativo de Artur Neiva
(1923?) e depois Roquette (1926s) até o término do período Heloisa (1955). Para os períodos
recentes, acrescentavam-se um ou outro clipping de imprensa, e os relatórios de eventos mais
2
“O Museu Nacional e suas exposições: 1821-2001” de autoria de Paul Jürgens, e “História da Pesquisa
Científica no Museu Nacional” de Bruno Dias, reunidos no “II Relatório de Atividades do Projeto da Nova
Exposição do Museu Nacional/RJ”, ETC, Museu Nacional, UFRJ, setembro 2002.
14
recentes já no bojo dos projetos de renovação do Museu, como o Seminário Franco-Brasileiro,
de 1995.
As reformas do período Roquette seguiam uma versão relativamente estabilizada, divulgada
em inúmeros relatos, que incluíam a criação do Serviço de Assistência ao Ensino (SAE),
voltado ao atendimento a professores e turmas escolares, a inauguração de um auditório
dotado de projetor de filmes educativos, para a realização de aulas e conferencias e a exibição
de filmes educativos, a confecção de mapas murais resumindo tópicos de ciências naturais a
ser distribuídos a colégios, a publicação da Revista Nacional de Educação. A administração
de Roquette representaria a guinada do Museu para uma linha mais educativa, priorizando a
vulgarização da ciência para a população em geral.
No entanto, ainda que as várias iniciativas de cunho educativo introduzidas por ERP no MN
sejam sempre lembradas, as mudanças propriamente no espaço expositivo são quase
inteiramente omitidas. (No máximo menciona-se a criação de uma sala especial para expor
‘etnografia sertaneja’, ou a abertura da sala ‘D. Pedro II’ com utensílios de uso da família
imperial que ainda restavam nas coleções do Museu). Do mesmo modo, todo o período que se
segue, incluindo as quase duas décadas em que Heloisa dirigiu a instituição, durante o qual o
museu chegou a ser fechado ao público para a execução de reformas estruturais, e nos quais as
exposições – seu conceito, distribuição, preparação de espécimes – foram inteiramente
reconcebidas, todo este período crucial na vida da instituição permanecia em grande parte sob
neblina, tempo incógnito3. Praticamente a única exceção a testemunhar que muito se passava
nesses tempos agitados, mas que poucos liam, era um magro volume saído na coleção
‘Publicações Avulsas’ (nº 4, de 1939) do próprio MN, em que se reproduzia a conferência de
Castro Faria por ocasião da reinauguração das exposições de Antropologia e Arqueologia do
Museu, em 1937, e a curta série de Revista do MN, de 1945-6, em que aparecia algumas das
atividades em curso na casa.
Eventualmente, em algumas reconstituições da história da instituição, ocorreu um total
apagamento das realizações da gestão de HAT. Não era incomum encontrar a sugestão de que
3
Uma razão que deve ter contribuído para esse efeito é a falta de relatórios anuais da direção publicados no
período – o documento mais visível e a partir do qual uma ‘historiografia espontânea’ dos fatos institucionais
toma ciência do que se passou: supõe, ainda que para economia do esforço de investigação, que se algo não
consta no relatório, é porque, ou não ocorreu, é de ocorrência por demais incerta, ou não foi lá tão relevante para
efeitos dos rumos da instituição, e afinal não precisa ser levado em conta.
15
o MN permanecera sem exposições, fechado ao público, eventualmente à deriva, por todo o
período HAT, e que fora apenas devido ao empenho da gestão de JCMC que o MN voltara a
exibir publicamente exposições – enfim modernas, impecáveis, dignas da tradição da casa. O
próprio JCMC é o primeiro a apresentar uma versão em que ele teria encontrado o Museu, ao
assumir sua direção, sem exposições e sem perspectivas de recriá-las, e que exclusivamente
durante sua gestão é que teria se realizado toda a remontagem posteriormente legada, que
ainda se podia visitar relativamente inalterada até o início dos anos 90. Em entrevista de
19854, publicada no Canal Ciência:
“[S]empre achei um absurdo o desmantelamento posterior das exposições. Quando
assumi, tive apoio para corrigir este problema, e consegui abrir 34 salas, tudo o que
hoje pode ser visto da antropologia para o fim. Levei taxidermistas para a minha
fazenda e a do meu sogro e lá ficamos, cinco pessoas, coletando animais, estudando
insetos que depois encheram duas salas, tipicamente mineiras. Assim, pude cuidar da
primeira parte – as exposições para o público – mas quando comecei a entrar na parte
da pesquisa meu mandato terminou e o trabalho não se consolidou.”
Este cenário só muda a partir do encontro com os trabalhos anteriores de Mariza Corrêa sobre
a atuação de HAT, e depois a tese de Adélia Ribeiro. A organização do arquivo/fundo HAT
no PETI/AHMN, e sua transferência para o Arquivo Histórico do MN, além das recentes
incorporações de arquivos do setor de etnologia entre outras fontes prometem reescrever a
história da instituição no século XX.
CRONOLOGIAS NATIVAS
Para montar um folheto a ser distribuído em exposição temporária politicamente estratégica
para as perspectivas de continuidade dos projetos de renovação do MN, empenhei-me em
montar uma breve cronologia, que veio a virar um folheto, montado em Word mesmo, e
impresso frente e verso em três folhas A4, grampeadas no meio e dobradas formando um
caderninho de 12 páginas. Dei-lhe a alcunha, um tanto pomposa, de ‘Novos Fastos’, por
alusão ao livro de memórias institucionais de Lacerda, de 1905, o ‘Fastos do Museu
4
Publicada originalmente em 1985, foi incorporada ao livro Cientistas do Brasil, da SBPC (ed. Global, 1998), e
reproduzida no saite “Canal Ciência”, do IBICT, http://www.canalciencia.ibict.br/notaveis/txt.php?id=27
(consulta em 25/11/2009).
16
Nacional’. Foi distribuído entre o público que acorreu à exposição e à cerimônia de assinatura
de um convênio, com presença de ministros e quase todas as personalidades envolvidas nos
destinos do MN.
Esse caderno fora produzido às pressas. Eu reunira esboços de cronologias que circulavam
pela ‘cultura da casa’, podara e consolidara-as, e acrescentara vários outros marcos faltantes
extraídos de fontes mais eruditas, além de estabelecer a periodização em 4 grandes ciclos (‘Da
Colônia ao Império’; ‘República Velha, República Nova’; ‘Do Estado Novo à Nova Capital’;
‘Da Reforma Universitária aos atuais Projetos de Revitalização do MN’), o que era
conveniente
Um gênero que circulava, e ao qual recorri, era o das cronologias de fatos marcantes da
história da casa. A cronologia mais simples e persistente é a que consolida a sucessão de
períodos administrativos, personalizada na figura do seu diretor. É assim que a instituição
preferencialmente apresenta sua história. No seu sítio web [checar!], ao entrar na subpágina
de história, é oferecida a lista das personalidades, com os períodos em que exerceram o cargo.
Ainda hoje a casa preserva a tradição de forrar as paredes da sala onde se reúne a
Congregação, e, por falta de espaço, também as paredes do auditório, com telas a óleo
retratando seus diretores, uma galeria de bustos ilustres.
Outro documento notório, mimeo que eu saiba inédito, que circulava copiado de disquete para
disquete entre participantes do “Projeto Memória”, era a lista de “Efemérides do MN”, uma
compilação montada ao longo de anos pelo professor Sólon Leontsinis, então já aposentado e
afastado da casa. Era o equivalente a um ‘gabinete de curiosidades’ do mundo das
cronologias, com os fatos de várias épocas reunidos nas datas de seus aniversários, sem
qualquer indicação das fontes em que se buscara o dado original. Foi Ricarte, então da equipe
de arquitetos que atuava no projeto de renovação da casa, o chamado ‘Grupo de Obras’, que
me passou cópia da preciosidade. Entusiasta da iniciativa de Sólon, assumira a incumbência
de continuar o empreendimento estilo almanaque de feitos de personas ilustres, fatos curiosos
e anedóticos, episódios de repercussão notória. Atualizara e acrescentara várias novas
entradas de sua pena. Foi a partir dela, desmontada de seu formato anuário e restituída à
linearidade histórica que impõe nossa talvez vã mitologia do tempo, que parti para esboçar
uma cronologia geral do museu, focado particularmente nos eventos relacionados a
17
exposições e divulgação científica. Permiti-me sair cortando amenidades e circunstâncias
cerimoniais, e acrescentando minhas próprias prioridades.
Também com membros da equipe de arquitetos ligado ao “Projeto Memória” obtive uma
versão esquemática da cronologia relevante do instituto que os arquitetos particularmente
prezavam, um diagrama montado por J.C.Ferreira, museólogo da casa5. Numa folha deitada
de papel A4, duas linhas do
tempo inicialmente
separadas convergiam ao
meio da página, onde o ano
de 1892 estava assinalado,
e seguiam a partir daí
reunidas até os dias de hoje.
Vários traços verticais
cortavam a continuidade
deste curso, assinaladas por
uma breve indicação de
data e evento. O maior
mérito deste quadro, para
os arquitetos (foi Paula, outra componente da equipe de arquitetos quem acabou me
fornecendo uma cópia do esquema), era a possibilidade de registrar os fatos relacionados ao
prédio (o Paço de São Cristóvão) separadamente dos relacionados ao museu (que, da
fundação em 1818 até 1892 residiu em outro endereço6) até que ambos se fundissem, quando
da mudança do Museu para o antigo Palácio dos Imperadores, após a Assembléia Constituinte
republicana.
[consultar o esquema para acrescentar aqui alguma peculiaridade/equívoco (vinculada ao meu
tema) que consta nesta cronologia – p.ex., registra o fechamento e reabertura das exposições
ainda no período HAT?]
5
A J. C. Ferreira (2002) devemos, posteriormente, sua tese na EBA, em que reconstitui, com rigor e boa
documentação, as várias fases e camadas da arquitetura do Paço da Quinta, desde antes de ser residência da
família real até os dias de hoje.
6
Um prédio diante do Campo da Aclamação, hoje Praça da República. Este prédio, após a saída do Museu,
sediou o Arquivo Nacional, até a sua transferência para a antiga Casa da Moeda, no outro lado da praça, e hoje
se encontra semi-abandonado.
18
UMA CRONOLOGIA POR CICLOS EXPOSITIVOS
Estabelecer uma cronologia que balize a cadência de fatos e períodos, referida à régua linear
do calendário, é um instrumento chave de apoio à nossa análise. Longe de ser um mecanismo
burocrático e neutro, ela em alguma medida expressa de forma sintética, pelas escolhas e
relevos, os partidos conceituais assumidos na análise histórica que a acompanha. O ponto
crítico no estabelecimento de uma cronologia, mais determinante que a seleção dos elementos
considerados relevantes na seqüência de eventos, é o critério da periodização. Onde cortar,
considerar como ruptura, e que blocos manter contínuos. Determinar os ciclos de
desdobramento de um programa relativamente contínuo, e sobretudo localizar momentos de
descontinuidade, em que alguns elementos estruturantes são modificados – é este desenho do
ritmo histórico que está intimamente vinculado à interpretação que se quer dar do ocorrido.
Margaret Lopes menciona as limitações do estabelecimento de cronologias, especialmente as
que se orientam por ciclos administrativos de gestão dos diretores como os marcadores
pertinentes de periodização institucional (LOPES & MURRIELLO:1995:16). No entanto, para o
estudo da história da “função expositiva” de um museu é imprescindível, ainda que de forma
instrumental, estabelecer uma periodização de referência. E o peculiar personalismo dos
diretores na condução dos primeiros museus brasileiros – já apontada por CORRÊA ([?]), pela
própria LOPES (1997:326), e que possivelmente é um fenômeno mais geral, a creditar as
indicações de SHEETS-PYENSON (1988:26, 98) – torna inevitável a consideração da sucessão
de diretores como marcadores pertinentes a qualquer tentativa de periodização.
Já que pretendemos reivindicar a incidência de uma mudança radical nos anos 1940, é bom
tentar estabelecer uma periodização que evidencie as continuidades e rupturas da trajetória do
instituto. Sugerimos uma periodização ancorada nos ciclos expositivos. A duração dos ciclos
coincide com o período ininterrupto em que as galerias permanecem abertas ao público. Os
balizas que sinalizam os pontos de mudança são o momentos em que se iniciam grandes
reformas, e a visitação pública é interrompida.
Iniciemos a construção da nossa cronologia de maneira simples, apresentando apenas duas
linhas paralelas de eventos. Uma cronologia possível para o MN a partir do momento
republicano, que alinha a cadeia dos ciclos expositivos com a dos mandatos de diretoria. (Ver
19
quadro “Cronologia 1”). Na barra acinzentada de cima, uma seqüência sinaliza as datas dos
eventos mais relevantes relacionados às exposições permanentes do Museu. A linha corrida
representa continuidade das exposições; já os intervalos indicam momentos em que houve
interrupção do atendimento ao público e as exposições foram fechadas para reformas gerais.
Os pontilhados representam reformas em (ou perda de) parte significativa das exposições –
enquanto as demais galerias permitiam ainda manter a casa parcialmente aberta ao público.
Cronologia 1
A faixa cinza de baixo assinala períodos de gestão de alguns diretores de referência, os que
estiveram mais diretamente envolvidos com grandes reformas da casa e das exposições.
(Ladislau Netto; João Batista Lacerda; ERP: Roquette-Pinto; HAT: Heloisa Alberto Torres;
JCC: José Candido de Melo Carvalho; LFD: Luiz Fernando Duarte; SAA: Sérgio Alex
Azevedo). Esta régua cronológica serve apenas como um esquema de referência, para
estabelecer os parâmetros de periodização que nos orientarão. Não pretende ser o registro
sinótico do conjunto dos fatores decisivos de sua história. Não é difícil mencionar vários que
não encontram inscrição neste esquema, como p.ex., os momentos do processo de sua
incorporação pela universidade.
As exposições de um Museu do porte do MN tendem a estar sempre parcialmente em
reformulação – seja para a mera restauração e reciclagem de materiais, seja para atender a um
projeto inovador. No entanto, em alguns períodos peculiares, o projeto expositivo como um
todo foi repensado, e uma grande reforma, que eventualmente obrigou ao fechamento
temporário do Museu ao público, foi empreendida. A periodização que propomos para
20
analisar a história das exposições do Museu no período republicano se baseia nestes ciclos
longos, e parte da delimitação dos episódios de grandes reformas, cada uma delas finalizada
pela inauguração de uma nova montagem completa das exposições permanentes.
Encontramos quatro episódios de reforma geral:
A primeira é a operada pela mudança do Museu do prédio do Campo de Santana (onde se
situava desde a fundação e durante toda a Monarquia) para o palácio da Quinta da Boa Vista,
realizada no ano de 1892. A visitação pública foi precariamente franqueada a partir de 1894,
interrompida em 1898 para rearranjos das coleções, mas só em 1900 foram oficialmente
inauguradas as novas instalações. A área aberta ao público era restrita ao pátio central (da
fonte), onde uma miscelânea de peças eram dispostas nas galerias ao redor do pátio, tendo o
esqueleto da baleia jubarte sido montado na antiga capela da Imperatriz.
Uma segunda fase se inicia em 1910. Lacerda fechou o Museu ao público para empreender
reformas gerais. Promoveu intervenções significativas na arquitetura do palácio para adaptá-lo
às novas funções. Derrubou várias subdivisões entre salas; construiu o 3º pavimento nas áreas
em que ainda faltava, nivelando todos os andares do prédio; abriu um vão central no piso de
algumas das salas da frente do palácio, que cruzava os três andares formando prismas de
galerias; desfez a capela imperial (construída em 1850) na ala dos fundos do palácio; demoliu
o observatório astronômico de D. Pedro II no terraço do torreão norte7. As exposições são
inteiramente reformuladas – ou melhor, pela primeira vez formuladas no novo espaço – e um
conjunto de mobiliário moderno, vitrines de aço e vidro, é importado da Alemanha para
abrigar as coleções. A prefeitura, responsável pela administração do parque da Quinta e do
entorno do palácio também empreendeu obras significativas: desmontou o portão (hoje à
entrada do Zôo) e ergueu os jardins frontais ainda hoje presentes – mal recebidos e
severamente criticados pelo pessoal do Museu. As novas instalações do Museu foram
inauguradas e abertas à visitação pública em 1914.
Uma terceira transfiguração ocorre no período inicial da administração de Roquette-Pinto, que
se torna diretor em 1926. Entre os anos de 1927 e 31, Roquette empreende várias reformas
parciais que, somadas, alteraram bastante a funcionalidade das exposições. Não chegou a
7
Para essas e outras referências às diversas intervenções arquitetônicas que sofreu o prédio do Museu, consultar
sobretudo FERREIRA (2002).
21
fechar inteiramente a visitação ao público. O precário auditório, que ficava no 2º andar aos
fundos, foi transferido ampliado para o térreo, com instalações para projeção de filmes; voltou
a fechar o vão central das salas da frente do prédio, que Lacerda abrira; construiu uma
projeção da ala dos fundos para o pátio da fonte, ampliando a biblioteca e seus acessos;
instituiu o Serviço de Assistência ao Ensino de História Natural, depois tornado 5ª Seção
pelos novos estatutos; aperfeiçoou as exposições de antropologia, mas sem grandes na sua
configuração espacial. Também neste período foram alteradas de forma mais radical as
exposições de zoologia, como p.ex. a da antiga sala de esqueletos nos fundos do 3º andar que
foi desmontada e no seu lugar instalados mostruários das extensas coleções de peixes reunidas
por Miranda-Ribiero; as grandes ossadas de mamíferos (baleia, elefante, girafa, etc.)
acabaram reunidas às demais montagens (e.g. taxidérmicas) de mamíferos na ala da frente.
A quarta grande mudança se dá em 1941. Heloisa Alberto Torres fechou o Museu à visitação
para empreender reformas estruturais no prédio (basicamente restauração, sob supervisão e
aprovação do recém criado SPHAN, que incluíram a demolição da extensão no pátio da fonte
erguida por Roquette) e reformular todo o uso do espaço – além de montar exposições em
bases inteiramente novas. Várias circunstâncias levaram as obras a se prolongarem muito
além do planejado, e só em 1947 o Museu foi reaberto ao público, com a inauguração das
galerias de geologia no térreo e de antropologia e arqueologia na ala da frente do segundo
pavimento. Em 1951, inaugura a sala de Etnografia Regional. A construção de um anexo ao
palácio, para abrigar oficinas e algumas coleções, só é finalizada em 1957, quando é
inaugurado. Quanto à montagem das galerias de zoologia e paloentologia, planejadas para
ocupar as salas da metade dos fundos do segundo pavimento do prédio, foram sendo
indefinidamente postergadas. Somente a partir de 1956, sob a nova administração de
Carvalho, iniciaram-se as inaugurações anuais dessas novas áreas, completadas em 1961.
Sucedendo às quatro reformas gerais, o Museu conheceu quatro grandes montagens completas
de suas exposições permanentes no Paço da Quinta da Boa Vista. (Ver quadro: ‘Cronologia
2’). A 1ª consistiu na mera acomodação improvisada das coleções trazidas do Museu Imperial
em um palácio inadequado para recebê-las, recém egresso da primeira Constituinte
Republicana. É a 2ª montagem que representa a implementação de um projeto expositivo
completo. A 3ª é uma adaptação e expansão da 2ª, acomodando a escala crescente das
coleções, grosso modo na mesma direção, apenas com uma inflexão mais acentuada no viés
escolarizante do museu. Somente com a 4ª, que se consolida em duas etapas, veremos
22
aparecer mudanças mais significativas no perfil da instituição e no conceito das suas
exposições.
Cronologia 2
No caso das três primeiras montagens, as exposições perduraram aproximadamente por uma
década, sofrendo períodos de reformulação que duraram quase meia década. Mas a quarta se
deu em condições extremas de crise e reformulação institucional. O período de reforma foi
excepcionalmente prolongado e implicou numa mudança generalizada da alocação de áreas
do Museu, começando com a transferência da biblioteca do segundo para o terceiro andar, dos
fundos para a frente do Palácio, passando a ocupar área 50% maior. As exposições foram
concentradas todas no segundo pavimento, à exceção das de geologia no térreo, nas salas ao
redor da escada de mármore. Uma vez inauguradas – o que ocorreu em duas etapas, primeiro
as de Antropologia e Geologia, e apenas uma década depois as de Biologia –, as exposições
permaneceram montadas sem sofrer alterações significativas por um período também
extremamente longo. Se há algum caso em que a categoria museológica ‘exposição de longa
duração’, mais que a de ‘exposição permanente’ (que afinal pode durar apenas poucos anos
antes de ser desmontada e reformulada), pode ser aplicada literalmente ele se encontra neste
episódio. Após várias estudos (afinal abandonados) considerando a possibilidade de transferir
o Museu para o campus universitário da Ilha do Fundão, nos anos ’708, as exposições, e as
instalações em geral, entraram na década de 1980 em estado de acelerada degradação. Uma
parceria com o Pró-Memória se iniciou em 1986, visando planejar uma nova reestruturação da
instituição. A biblioteca foi transferida em 1989 para um novo prédio construído no Horto
8
Sobre esses estudos, para os quais a universidade instalou uma comissão desde 1972, ver CARVALHO (1977),
que resistia à idéia da mudança, e Castro Faria (1993[1982]), que francamente a advogava.
23
Botânico da Quinta, e se iniciou a construção de outra unidade para abrigar o Departamento
de Vertebrados (transferido em 1994). Os infortúnios das tentativas de reformular parte das
exposições em 1992, criando um núcleo de galerias sob o tema da biodiversidade, ilustra as
dificuldades de renovação em que se debatia a instituição. O ano de 1995 marcou o ponto de
não retorno: tempestades danificaram o telhado do prédio e inundaram coleções, deixando o
instituto em estado de emergência. Mais de cinqüenta anos depois de iniciadas as reformas de
Heloisa, as exposições delas originadas ainda permaneciam encenadas num Museu que se
debatia com dificuldades arraigadas para se renovar.
Nosso estudo principal está focado nas transformações que ocorreram sobretudo com as
reformas iniciadas nos anos 1940, através da análise comparativa entre o museu concebido no
período anterior – compreendido entre as exposições inauguradas em 1914 e que se estende
até 1941, incluindo uma fase de reformas parciais nos primeiros anos da administração de
Roquette – e o museu resultante, com suas exposições inteiramente renovadas e abertas ao
público ao longo das décadas de 40 e 50.
24
TRÊS MUTAÇÕES EM CURSO NA DÉCADA DE 1940
Tudo leva a crer que, na trajetória do Museu, há uma ruptura sem precedentes nos anos da
Segunda Guerra Mundial. Ocorre ali uma mudança de figura, uma descontinuidade no curso
do instituto que só encontra paralelos, talvez, na da época em que Ladislau Netto assumiu a
direção da casa, e depois, com a República, quando o mesmo Ladislau esteve à frente da
mudança física da sede do Museu para o que fora o palácio imperial. Ao estabelecer uma
periodização, se quisermos eleger um momento singular que demarque a transição de fase, o
corte há de passar ali, bem quando HAT assume a direção.
Dizendo de outro modo, Heloisa Alberto Torres, apesar de ter uma carreira ‘de transição’, que
atravessa a grande mudança tanto do Museu como da disciplina, participando e forjando
alianças com os protagonistas de ambos os momentos, e ainda que discípula e herdeira direta
de Roquette, talvez esteja afinal mais próxima de pesquisadores como José Candido de Melo
Carvalho, José Lacerda de Araújo Feio e mesmo Newton Cruz, do que do seu dileto mestre 9.
A mutação histórica pode ser descrita por três camadas de mudanças cruciais:
Em primeiro lugar, a introdução do conceito de exposição museal, tal como, no geral, ainda o
concebemos hoje. Pois este ainda não havia se instalado no MN. Entenda-se bem, não quero
dizer que não havia coleções expostas, arrumadas em vitrines limpas e etiquetadas, em salas
franqueadas à visitação do público geral. Sim, elas estavam expostas. Na verdade, havia até
coleções demais à mostra. Era um excesso de vitrines e de espécimes por vitrine,
freqüentemente inúmeros exemplares repetidos ou semelhantes de uma mesma espécie
taxonômica, e, já no final da década de 30, com o acúmulo explosivo de novas aquisições, não
seria raro encontrá-los já um tanto amontoados, obstruindo-se mutuamente e disputando uma
nesga da visão dos visitantes.
9
Quanto às ambigüidades da participação de HAT em dois momentos muito distintos da disciplina
antropológica, ver as sugestões de Marisa Corrêa a respeito das hesitações de Heloisa na escolha do trabalho a
apresentar no concurso para cadeira da Faculdade Nacional de Filosofia: se os resultados de um antigo estudo
inacabado em antropologia física, na linhagem das pesquisas de somatometria das raças brasilianas de Roquette;
ou se um novo estudo, na então ascendente área de etnografia regional e folclore, a respeito da indumentária
típica da “crioula baiana”. “Já havia uma incompatibilidade entre a ciência aprendida por ela na juventude e os
novos ares da antropologia” (CORRÊA:1997:157-8)
25
E aí é que está o problema. Não se tratava de uma exposição propriamente, montada a partir
de um roteiro intencional e em que cada objeto apresentado cumprisse uma função narrativa.
O que o museu abria ao público leigo era boa parte de todas as suas coleções. Ali, nos
corredores de visitação, o que se mostrava eram os depósitos da casa.
Ora, esta conjuminância do catálogo da exposição e o inventário da própria coleção, esta não
distinção entre coleções de exposição e de estudo, indica justamente a ausência do conceito de
exposição propriamente dito. E também do seu irmão gêmeo, a reserva técnica, onde coleções
destinadas exclusivamente ao estudo são mantidas fora do alcance do público externo. Pois só
quando se separa inteiramente não apenas as funções – a pesquisa e a divulgação – mas
também as próprias coleções, os conjuntos de objetos envolvidos em cada uma das atividades,
só então a exposição pode criar suas próprias regras e ganhar expressão.
Em segundo lugar, radicaliza-se o processo de especialização das carreiras dos profissionais
do museu. Extingue-se a figura genérica do naturalista que se desdobra em no mínimo quatro
especialidades científicas 10. A proliferação de especializações no museu não ocorre apenas
devido ao fenômeno de desdobramento da carreira dos cientistas em vários ramos. Começam
a aparecer, ser requisitados, ou mesmo tornar-se imprescindíveis os profissionais dedicados ao
planejamento e cuidado das exposições, treinados em comunicação e educação, ou em artes e
arquitetura, capacitados tecnicamente a traduzir conceitos acadêmicos para uma mídia
acessível e agradável ao leigo.
Apenas como ilustração, menciono brevemente algumas incidências das tensões dramáticas
de ambos os processos que vieram à tona durante o episódio da crise administrativa de
sucessão da diretoria de 1946. Heloisa, que dirigia o instituto desde 1937 e pleiteava a
10
Oswaldo Frota-Pessoa, em depoimento à revista Pesquisa Fapesp (FROTA-PESSOA:2005), recorda que ele e
alguns amigos que se interessavam por história natural, tiveram de ingressar na Faculdade Nacional de Medicina
devido à inexistência de um curso superior em biologia. Foi quando um dos colegas, Newton Dias dos Santos
(que viria a ser diretor do MN em 1962), descobriu que fora inaugurado um curso de biologia na recém-criada (e
efêmera) Universidade do Distrito Federal, de Anísio Teixeira. Recorda-se do excepcional professor de botânica,
ninguém menos do que Alberto Sampaio, ex-chefe da seção de botânica do MN, e que, como todos os outros
naturalistas do Museu, já preferiam lecionar nas novas faculdades sendo criadas do que isolar-se no instituto da
Quinta. O interessante para nós em toda esta anedota é o descompasso, para a geração que amadureceu nos anos
30, entre o interesse de conhecimento já relativamente especializado, e a restrita oferta de formação generalista
na única faculdade (a de medicina) existente na cidade minimamente vinculada às ciências da vida, servindo
como uma espécie de guarda-chuva obsoleto para inúmeras carreiras divergentes. A formação em medicina,
lembremo-nos, foi também a de Alberto Sampaio, Roquette-Pinto, Mello Leitão, e inúmeros outros naturalistas
do início do século (a alternativa era a formação em engenharia de alguns, em geral geólogos, como Alberto
Betim Paes Leme).
26
renovação do seu mandato, foi alvo de inúmeros ataques e acusações públicas por parte de um
grupo de funcionários descontentes. Uma delas protestava contra o ato da administração que
dividiu a tradicional publicação Boletim do Museu Nacional em 4 séries distintas, segundo as
especialidades. Outra das queixas acusava a diretora de haver retirado das seções científicas a
autoridade e a gestão da concepção das novas exposições, atribuindo a responsabilidade a
pessoal técnico em educação e museologia 11.
A terceira grande mudança se dá na rede de relações e intercâmbios com outras instituições
científicas e museológicas, em especial as internacionais, o deslocamento da posição do
Museu face aos “sistemas museais” 12. As referências predominantemente européias da
geração de Roquette, e a inspiração declarada no modelo do Muséum de Paris, sofre uma
guinada nítida para parâmetros e intercâmbios norte-americanos 13.
Os três elementos ou processos de mudança que indiquei – na organização e concepção do
uso das coleções, na carreira dos profissionais, na rede de intercâmbio com outros museus –
precipitam-se de forma dramática com o ambiente político do Estado Novo e do pré-guerra
imediato. O instituto atravessa uma fase crítica que levará mais de duas décadas para superar,
e a um alto custo institucional. Entre os preços pagos nessa transição, ocorre uma grave
descontinuidade geracional, que incide tanto na face interna quanto externa do órgão: já em
condições precárias de reprodução das suas instalações materiais, o museu claudica em
garantir agora as condições de reprodução do seu corpo técnico-científico, e, por outro lado,
também acaba inviabilizando temporariamente a reprodução do seu público.
Em primeiro lugar, o decreto da desacumulação de cargos e as incertezas da categoria de
pesquisador levam ao esvaziamento da instituição de todos os seus naturalistas seniores, sem
11
Ambos os episódios são descritos em CORRÊA (1997) e RIBEIRO (2000). “[Algumas] críticas feitas a Heloisa
sugerem que suas iniciativas de explicitar a separação que começava a se dar entre a antropologia e suas vizinhas
no Museu não foram bem recebidas. (CORRÊA:1997:150).
12
Conceito adotado por LOPES (e.g. LOPES & MURRIELLO:2005:15-16), seguindo proposta de Susan Pearce, e
que permite enfatizar as influências e o papel crucial exercido pela circulação dos catálogos de coleções, e pelas
viagens de survey aos museus estrangeiros.
13
Mariza Corrêa ser refere a uma “‘troca de guarda’ nas influências sofridas pelo país durante e logo após a
Segunda Grande Guerra, influências que igualmente se expressariam na antropologia como uma disciplina que
começava a se constituir” (1997:143). Em outro texto ela retoma o tema, observando que, já no início dos anos
30, “começava a haver uma troca de guarda na vida intelectual da antiga colônia, e o país passava, lentamente,
da esfera da influência européia, e mais especificamente, francesa, para a esfera da influência norte-americana”
(CORRÊA:2000:163).
27
que houvessem chegado a formar substitutos. J. Feio (naturalista contemporâneo da reforma
Torres-Carvalho, e que viria a ser diretor em 1967-71), em um manuscrito não publicado em
que traça um breve histórico do MN, redigido em 1943/4, assim descreve a situação:
“Em 1938, o Museu passa por uma situação aflitiva, pois pela desacumulação vê seus
técnicos afastados, procurando um honorário mais compensador, enquanto que
aposentadorias e a morte afastam outros. Esta situação só toma um caráter diferente
em 1944, após a realização de um concurso onde são providos os lugares vagos.
Houve infelizmente uma solução de continuidade nos trabalhos do Museu [grifo j],
pois a geração nova não encontrou na casa aqueles que pudessem transmitir o que
eram depositários” (FEIO:1943/4: 5-6).
Mariza Corrêa menciona anotação no diário de Métraux, em 1939, de “que dona Heloisa ‘se
queixa, contudo, do regime e das leis que impedem a acumulação de cargos. Todos os
funcionários desertaram do Museu para se dedicar ao ensino’ ” (CORRÊA:1997:233). Com a
demora em obter autorização para promover novos concursos e indefinições quanto ao futuro
da carreira de naturalista, só gradativamente uma geração nova e academicamente semi-órfã
virá a ocupar as posições deixadas vacantes, e a custo se estabilizará. Ela se formará já sob a
batuta do regime universitário e suas especializações estritas.
O segundo aspecto dessa descontinuidade geracional se deve ao fechamento do Museu ao
público durante as reformas (estruturais de conservação do prédio; mas também funcionais e
conceituais, como a reorganização das coleções em reservas e novas exposições que já
mencionamos). Queria-se de início evitar a necessidade do fechamento, depois concedeu-se
que deveria durar dois anos14, mas a situação acabou se arrastando indefinidamente. A
visitação pública foi reiniciada seis anos depois, com a inauguração das exposições de
geologia, antropologia e arqueologia, mas todas as de zoologia e paleontologia só começarão
a ser reabertas quinze anos após o fechamento. Isto equivale a toda uma geração de jovens
14
Em uma carta dirigida a Arthur Ramos, de 1941, Heloisa menciona a intenção de reinaugurar o Museu em
meados de 1943, para quando se sugeria a realização de um Primeiro Congresso Brasileiro de Antropologia,
projeto que foi logo abandonado. (Cf AHMN:Fundo HAT, “Cartas de 1941”, p. 229-230, carta de 11/11/1941;
um trecho desta carta encontra-se reproduzido em CORRÊA:1997:154).
28
instruídos da capital que cresceram sem o seu museu de história natural, sem visitas escolares,
sem preguiça gigante, esqueleto da baleia, índios, Bendegó ou múmias do imperador 15.
Em resumo, creio que ocorrem ao menos três grandes mudanças fundamentais: nas coleções,
no pessoal, nas relações externas. (1) A reorganização de coleções naturalistas e sua divisão
em duas categorias (e é aí que entendo o surgimento da nova concepção de exposições); (2)
um salto na especialização de antigas carreiras científicas, como também o aparecimento de
outras especialidades (como a museologia e a educação em museus); por fim (3) o
deslocamento nas redes de relações e intercâmbios com outras instituições de pesquisa,
especialmente com museus e universidades no exterior.
15
Por outro lado, sem acesso aos animais taxidermizados, passaram a contar com os vivos em cativeiro: desde
1945 os visitantes do Parque da Quinta da Boa Vista contavam com o Zoológico da cidade, trazido de Vila
Isabel e instalado na esplanada onde antes havia o antigo Horto Botânico criado por Glaziou. Para compensar a
perda da área, o Museu recebeu uma faixa ao sul da Quinta, próxima às linhas de trem, onde implantou o seu
novo horto. É neste anexo que hoje se encontra o prédio da biblioteca e onde vêm sendo construídos novos
prédios para abrigar os departamentos e coleções científicas.
29
A separação das coleções
como inauguradora do museu moderno
Apresento a noção da clássica divisão entre coleções de estudo e coleções de
exposição – que se tornou dominante entre os museus de história natural da Europa e
Estados Unidos no final do século XIX – e proponho, como hipótese mestra deste
trabalho, que tal divisão só se estabelecerá no Museu Nacional durante a grande
reforma das décadas de 1940-50, sendo provavelmente o fato mais marcante (e
heurístico) das transformações pelas quais passou a instituição no período. Sugiro uma
releitura do conhecido episódio de amofinação entre os diretores do Museu Paulista e
do Museu Nacional, no final do século XIX, à luz da hipótese mestra.
COLEÇÕES PLENAS EXIBIDAS
Começo com uma afirmação quase extravagante: Não havia exposições no Museu Nacional
do Rio de Janeiro antes da década de 1940.
Não há escândalo em enunciar isto. Desde que se restrinja a definição da noção de exposição,
para tentar evitar projeções retrospectivas. Tomo aqui exposição em um sentido minimamente
próximo do que se veio a entender por esse conceito depois – e que, em seus termos gerais, já
era explicitamente formulado e praticado ao longo da segunda metade do séc. XIX,
especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Segundo este programa, mais que apenas
oferecer coleções ao olhar público, numa exposição cada objeto presente deveria pretender
cumprir uma função de um plano concebido para afetar diretamente esse público; além disso,
a disposição dos mostruários e de todo o ambiente da montagem deve induzir o visitante a
seguir um percurso que procura desenvolver conceitos, problemas, narrativas, sugerindo
relações entre diferentes elementos apresentados. Uma economia funcional de objetos
apresentados e um sinergismo “deambulatório” do conjunto. Se assim definirmos a noção de
exposição, então seremos forçados a admitir: não era em absoluto o que se encontrava então
no Museu Nacional do Rio, nas suas amplas galerias abertas ao público.
Se havia coleções expostas, não havia ainda o conceito de exposição. Isto porque também não
existia o conceito pleno de reserva técnica. Insisto que ambos estão necessariamente
30
vinculados, e aquele só pode surgir quando este se estabelece plenamente. A reserva é parte
da coleção cujo acesso é restrito a profissionais autorizados. Pode-se alegar (e historicamente
se alegou) justificativas diversas e específicas para essa restrição de acesso. Seja devido à sua
particular importância cientifica ou à fragilidade e à necessidade de condições especiais de
conservação que não permitam, p.ex., exposição à luz, ou ainda simplesmente por seu baixo
rendimento museográfico, não se prestar bem à exploração expositiva ou ser redundante com
o já exposto. Ou então apenas porque se ‘inventou’ duas formas diferentes de coleção, em
função da distinção estrita entre dois públicos-alvos: o pesquisador especialista e o visitante
leigo em geral. O termo reserva denota antes de tudo seu status reservado, ao invés de
franqueado ao público geral.
Matizemos logo o tom absoluto da afirmação inicial. É claro que parte das coleções não
estava em exposição, e havia algumas reservadas ao uso exclusivo dos pesquisadores da casa.
Inclusive coleções completas, como é o caso do herbário, que apenas naturalistas e aspirantes
podiam freqüentar.
Mas tais casos particulares não invalidam o fato de que grande parte do acervo não se
encontrava reservada, o principal da coleção de quase todas as áreas de pesquisa não estava
interditada ao olhar público. Noutras palavras, aquelas salas de exposição com vitrines
repletas de peças, elas constituíam o principal depósito, o lugar apropriado de guarda
organizada e classificada das coleções, a que tanto cientistas quanto público freqüentavam. A
grande diferença em relação aos depósitos atuais é que, embora se tratasse sim de um enorme
depósito, ele estava acondicionado de tal modo que permitia manter a visitação aberta, através
do engenhoso dispositivo do armário-vitrine que cinde ontologicamente os reinos do visível e
do tangível, propiciando o máximo de visibilidade dos objetos ao mesmo tempo em que
impede o excesso de aproximação física ou a sua tangibilidade.
O MN seguia o modelo do Muséum d’Histoire Naturelle de Paris, caso excepcional de grande
museu central que manteve todas as suas coleções expostas até a década de 196016.
Permaneceu até então imune à influência do programa de separação nítida das coleções em
reserva técnica e exposição, cada uma voltada para atender a um tipo de público (o cientista e
o visitante geral) e a uma das funções (pesquisa e educação ampliada), programa que ficou
16
« La Grande Galerie de Zoologie fonctionnera ainsi comme une gigantesque bibliothèque de spécimens
naturalisés, jusqu’a sa fermeture au public en 1965 » (VAN PRAËT:1995:114)
31
conhecido na virada do século por ‘new museum idea’, seguindo a expressão cunhada por
Henry Flower, diretor das novas instalações de história natural do British Museum17.
A opção pelo modelo francês é explicita em Lacerda (LOPES:1997:246), que não fazia
qualquer menção à distinção de coleções de estudo e de exposição, e chegou a alegar que
“apenas a falta de espaço” não permitia a plena exposição de todas as peças de valor
(LOPES:1997:295). Uma década depois, por ocasião dos discursos de comemoração do
centenário do MN, Bruno Lobo, então diretor, menciona a distinção entre dois tipos de
coleções (LOBO:1919), e Roquette chega a citar Flower (ROQUETTE-PINTO:1919). Mas a
menção à dicotomia cumpre provavelmente mais função retórica que efetiva. A reforma de
Roquette, passada ainda mais outra década (anos 1927-31), visará antes de tudo aproveitar
melhor o espaço disponível no prédio, entre outras coisas para poder exibir mais elementos
(para tanto fecha os vãos das galerias abertas por Lacerda, cf CASTRO FARIA:1949:12), além
de aumentar francamente a biblioteca. Já em 1932, em relatório que apresentou a Roquette de
sua viagem aos museus norte-americanos, atendendo a convite da Associação Americana de
Museus, Bertha Lutz se mostra animada com “uma nova teoria do Museu, sintetizada pela
primeira vez pela expressão the new museum idea”, de Flower, que gostaria ver implementada
entre nós18.
Outra década e meia passada, e já em pleno curso as grandes reformas iniciadas em 1941,
encontramos ainda Castro Faria, no discurso que anunciava a reabertura do MN ao público
(com as novas exposições de antropologia e arqueologia), atribuindo como “responsável pela
maior parte das falhas [...] a falta, no momento, de depósitos convenientes para as coleções de
estudo, que são ao mesmo tempo as reservas destinadas não só ao suprimento, como à
renovação periódica dos grupos expostos.” (CASTRO FARIA:1949:16-7). Acrescento mais um
testemunho a esta série: em notas manuscritas onde resenha as “Atividades do Museu
Nacional do Segundo semestre de 1941 a dezembro de 1944”, Heloisa Alberto Torres justifica
parte da demora no preparo das peças de exposição ao esforço, em paralelo, do trabalho pouco
visível de organização das coleções da reserva técnica: “a revisão das coleções científicas a
serem expostas ao público tem que ser feita concomitantemente com a revisão das coleções de
17
FLOWER (1898). Sobre a relevância e o impacto da questão da cisão das coleções para a história dos museus de
história natural a partir da segunda metade do século XIX ver sobretudo SHEETS-PYERSON (1988); e, entre nós, os
trabalhos de Margaret Lopes (e.g. LOPES & MURRIELLO:2005).
18
BENCHIMOL et al (2003:212-13); LOPES & MURRIELLO (2005:22).
32
estudo que constituem a maior riqueza de todo o patrimônio do Museu Nacional. Apenas a
Divisão de Antropologia tinha catálogos – senão de organização perfeita – ao menos
razoável!” 19.
Formulo então a hipótese mestra deste trabalho: a separação das coleções, e portanto a
instalação de reservas técnicas – depósitos de coleções organizadas cientificamente,
franqueadas exclusivamente a pesquisadores autorizados –, só se estabelecerá efetivamente no
Museu Nacional quando das grandes reformas iniciadas em 1941 e que levarão 20 anos para
serem concluídas. Sustento que as mudanças ocorridas no período, em especial a reconcepção
das exposições, só podem ser compreendidas se relacionadas a tal divisão. Da mesma forma, a
organização da instituição e as concepções do papel das exposições no período anterior pode
melhor ser percebida se levarmos em conta que boa parte das coleções científicas
encontravam-se distribuídas nas próprias salas de exposição – e que tal distinção ainda não
havia se instalado na ‘cultura museal’ dos professores do Museu.
PODE UMA COLEÇÃO DE ESTUDO SER MANTIDA EM EXIBIÇÃO ?
Vale reconsiderar um episódio polêmico, já bem comentado pela historiografia20, já que
talvez nele ocorra a primeira menção, entre nós, à questão da necessidade “científica” da
separação entre coleções de estudo e coleções de exposição em museus de história natural. O
caso se passa em fins do século XIX, e envolve o diretor do recém constituído Museu Paulista
(Von Ihering) e o diretor do MN (J.B. Lacerda). No 1º número da Revista do Museu Paulista,
de 1895, von Ihering fez publicar o discurso que pronunciara na cerimônia de abertura do
Museu. Numa passagem menciona que os únicos museus brasileiros de ciências naturais
organizados para a pesquisa e seguindo critérios científicos eram o seu próprio, Paulista, e o
Paraense (que veio a se chamar E. Goeldi, nome do seu diretor à época). A omissão do Museu
Nacional do Rio, o primeiro do país e depositário de coleções muito diversificadas e
significativas, predominantemente de história natural, só poderia ser proposital. Von Ihering,
por default, deixava entender que não considerava as coleções e a estrutura do MN relevantes,
do ponto de vista científico. A provocação desencadeou reação forte na capital. Lacerda
19
Arquivo Histórico do MN, MN Classe 624, 1944-1972, p.6 (seção intitulada “Coleções Científicas”).
20
LIMA (1989:294-7), SCHWARCZ (1989:42-4), LOPES (1997:292-6).
33
publicou resposta indignada, destacando a importância, abrangência, e organização dos
acervos da casa e arrolando as publicações em que os resultados das pesquisas científicas
(baseadas nas coleções) da instituição eram apresentados.
Na sua resposta, no entanto, não faz qualquer menção a uma das alegações mais agudas (e
venenosas) de von Ihering: este havia mencionado (quase casualmente, como que citando um
princípio óbvio) que, em um museu de ciências moderna e adequadamente organizado, as
coleções de estudo deveriam estar separadas das coleções de exposição. Garante que o Museu
Paulista já nascera concebido segundo esta distinção fundamental entre dois tipos de coleção,
dois públicos-alvo (o estudioso especialista e o visitante leigo), enfim, duas funções: a
pesquisa e produção de novos conhecimentos científicos, por um lado; a divulgação (ou
vulgarização, como se costumava dizer na época, seguindo a preferência francesa) da ciência
para o público leigo, a educação ampliada da população em geral.
Se Von Ihering podia sugerir que o MN não tinha coleções apropriadamente “organizadas”
para o uso científico, era apenas porque as coleções de estudo do Museu se confundiam em
grande parte com as que estavam expostas e assim supostamente ‘organizadas para leigos’. A
acusação de Von Ihering só é possível na medida em que se aproveita da ambigüidade
exposição/coleção de um instituto que não havia (ainda) estabelecido uma separação estrita
entre os dois espaços de coleção – as de estudo, as de exposição. A eficácia equivocante do
argumento de Ihering provém de deduzir, a partir da constatação de que, no MN, as coleções
coincidem com as exposições, que não há ali coleções de estudo, e, em última análise, que
não há pesquisa. Mas o mais apropriado seria antes considerar que o que não há são coleções
propriamente de exposição! O que levava este nome, já que aberto à visitação pública em
horários regulares, era antes de tudo o conjunto do acervo, o depósito principal de coleções.
Um depósito cuidadosamente acondicionado de modo a permitir a visibilidade (e, no mesmo
lance, a impedir a manipulação desautorizada) de todo o acervo, utilizando o máximo possível
armários com folhas de vidro pelos quatro lados (que hoje chamaríamos vitrines), e que
propiciasse ao usuário, ao adentrar uma sala, num relance de olhar atravessar panopticamente
toda a coleção e poder localizar qualquer espécime.
Minha sugestão, talvez um tanto óbvia, é que as coleções estavam – adequada e
cientificamente – organizadas em armários de vidro. Este arranjo não era uma solução de
compromisso precária, forçando os pesquisadores a aceitarem trabalhar com armários
34
supostamente pouco cômodos ou inadequados ao armazenamento científico de coleções, de
modo a viabilizar que, em parte do tempo, eles fossem também franqueados à visitação
pública. Tudo leva a crer que o sistema de armários transparente representava um método
plenamente eficiente, um dos métodos ótimos da época, de armazenamento de espécimes de
história natural.
Deve-se considerar que o display das coleções em vitrines, antes de ser uma forma de montar
espetáculo, de armar as peças inertes para impressionar estranhos, é uma tecnologia de
arquivo apropriada para o armazenamento organizado, que permite eficazmente a consulta a
qualquer peça individual guardada. Ela se baseia na manutenção do princípio da visibilidade
do conjunto das peças – antes de tudo para o próprio pesquisador. Por isso, a navegação no
depósito, para se encontrar um espécime, é mais imediata e menos dependente do recurso
intermediário de consulta a índices e catálogos de estocagem. Uma simples perambulada no
labirinto de armários de vidro equivale a um passeio sinótico pela árvore sistemática do
grupo, e se pode enxergar diretamente todos os tipos que compõem a coleção.
35
A separação das coleções: a evidência arquitetônica
A REDISTRIBUIÇÃO DO USO DOS ESPAÇOS: 1941-61
Uma forma de evidenciar que a instauração decisiva da “dupla disposição” das coleções do
Museu só se deu de forma concentrada nas reformas iniciadas nos anos 40 – corroborando o
fato de que não havia reservas ou uma política sistemática de separação das coleções em (1)
séries reservadas de estudo e (2) coleções de exibição pública – é através da análise das
mudanças gerais na setorização do espaço do Museu antes e depois da reforma. Ela permitirá
determinar a área total e proporcional destinada às exposições, por um lado, e à pesquisa, por
outro. Serve como um meio indireto de determinar o grau de separação física entre as duas
coleções – de estudo e de exibição. (Tal análise merece ser complementada por um
levantamento minucioso nos registros documentais de administração das coleções, para
verificar se confirmam as conclusões aqui indicadas).
O diagrama abaixo apresenta duas séries de plantas baixas dispostas lado a lado para
comparação, retratando o estado de ocupação funcional do palácio em dois momentos: 1941,
logo antes de fechar as portas ao público, e 1961, ao terminar de inaugurar todas as
exposições renovadas. As plantas baixas esquemáticas estão desdobradas nos três pavimentos
(o 1º corresponde ao térreo), a que se acrescentam os três andares do anexo inaugurado em
1957 21. A orientação das plantas é no sentido norte-sul, i.e., a fachada frontal do palácio e
entrada do Museu (voltada grosso modo para leste) se encontra à direita. (Uma foto com a
vista aérea do conjunto foi também incluída para revelar a sua silhueta arquitetônica e facilitar
o reconhecimento da orientação das plantas baixas do prédio).
As duas principais fontes de dados para montar esta reconstituição comparativa de plantas de
setorização foram: o relatório da visita de Cummings, em que descreve o estado de ocupação
de cada área do palácio em setembro de 1941, quando passou um mês estudando a situação e
o potencial do Museu a convite da diretora (CUMMINGS:1942); e o apêndice de um dos
relatórios anuais de administração, de Newton Dias dos Santos, já com as reformas
21
Por falta de dados mais precisos, não levei em consideração neste comparativo pelo menos duas outras
ocupações: as áreas imediatamente anexas ao Palácio antes da reforma, onde se localizavam, p.ex., as oficinas de
cortume e modelagem (Cf, e.g., fotografia do interior deste pavilhão colegida por J. Feio e guardada no AHMN,
JF.0.MN,DR.108/72); unidades construídas no Horto para abrigar setores da Botânica.
36
inteiramente implementadas e o novo modelo em plena operação, no qual são oferecidas
plantas baixas e a setorização detalhada de então (SANTOS:1963). As metragens derivam /do
relatório de 1963/de levantamento recente realizado pelo ETC. (Obs.: os andares do anexo
aparecem aqui representados apenas como blocos retangulares, proporcionais às suas áreas
métricas, mas sem fidelidade à forma de sua planta baixa)
[Foto: MN, vista aérea,
Goggle Earth 2008]
[Diagrama: Setorização 1941-61]
A setorização é indicada por um código de cores que distingue quatro categorias de funções:
(1) as exposições públicas, assinaladas em verde; (2) as funções de extensão (que inclui o
Serviço de Assistência ao Ensino e apoio às escolas, o auditório/cinema, e a biblioteca),
sinalizadas em amarelo; (3) a pesquisa (que inclui os gabinetes dos naturalistas, os
laboratórios, mas também necessariamente as eventuais áreas de armazenagem do acervo não
exposto), indicada em vermelho; e (4) os demais serviços (administração e diretoria; oficinas
37
de carpintaria, taxidermia, desenho, fotografia, etc.; áreas de circulação ou desocupadas),
mantidas em branco.
O 3º andar, antes basicamente ocupado por exposições (todas as de zoologia e de botânica),
torna-se área restrita, em boa parte usada pelos setores de pesquisa e para o armazenamento
de coleções (toda a botânica, grande parte da zoologia, o novo depósito de etnologia); passa a
abrigar também a biblioteca e o arquivo de documentos, que tomam a ala da frente do palácio
(antes ocupada pelas coleções expostas de mamíferos, tanto esqueletos quanto
taxidermizados). O 2º pavimento, antes em boa parte ocupado pelas exposições de
antropologia e geologia, além da biblioteca e alguns poucos laboratórios e gabinetes de
trabalho, passa a ser integralmente dedicado às exposições, reunindo todas as de zoologia (nos
fundos) e antropologia (na frente), e uma grande sala de paleontologia (a da preguiça). Quanto
ao pavimento térreo, vários dos setores de serviço (taxidermia, carpintaria, publicações) e
alguns depósitos de coleções (peixes, répteis) são transferidos para o recém construído anexo;
as áreas assim desocupadas passam à pesquisa e à exposição (de geologia).
A alteração mais notável é a diminuição moderada da área destinada às exposições (em
verde), ao passo que a mancha correspondente às áreas de pesquisa (que inclui depósitos,
além de gabinetes e laboratórios), em vermelho, e às da biblioteca, em laranja, aumentam
expressivamente. Além disso, ocorre uma aglutinação da área dedicada à exposição, antes
dispersa e fragmentada por todo o palácio, agora se reunida quase inteiramente no 2º
pavimento, além das salas do térreo que rodeiam a escada de mármore da entrada, formando
um circuito de percurso contínuo e nivelado.
As medidas numéricas confirmam as intuições da impressão visual. [Ver tabela
“Redistribuição do Espaço”]. No cômputo das metragens, o espaço ocupado pelas exposições
diminuiu num fator significativo (perdeu algo em torno de um quarto da área), enquanto as de
pesquisa mais que dobraram de tamanho. Em termos proporcionais, ao final da reforma, a
partilha do espaço da casa entre exposições e pesquisa ficou equilibrado (aproximadamente
40% para cada uma); antes era extremamente assimétrico (cerca de 60% para exposições;
20% para pesquisa). A explicação que ofereço é de que o aumento do espaço de pesquisa se
deveu primordialmente à constituição de depósitos de reserva técnica, em boa parte
remanejando espaços e coleções antes votados à área dita de exposição.
38
[Tabela: Redistribuição do Espaço]
A evolução no perfil de distribuição das áreas do palácio, com a presença de salas designadas
como de exposição mas que se encontravam interditadas ao público em 1941, evidencia
também a falência do antigo sistema de armazenamento, o colapso do modelo acervo-vitrine,
e a premência pela reforma do espaço com separação entre as coleções. Sob o risco da ruína.
Na nossa tabela consolidada acima, a área dedicada a exposições em 1941 equivalia a 60% da
área total construída do palácio, enquanto as áreas de pesquisa ocupavam apenas 21%. No
entanto, Cummings assinala que várias das salas das antigas exposições se encontravam já
fechadas ao público. As vitrines continuavam lá como haviam sido montadas, mas o acesso
passara a ser restrito, vedado a visitantes. Uma das razões dessa obstrução é que se tornara
impossível transitar normalmente entre as vitrines e contemplar os mostruários. Devido às
obras em andamento e pela falta de outro espaço, os corredores entre os armários
encontravam-se ocupados por pilhas de caixas com mais coleções que não encontravam lugar
disponível nas suas áreas próprias. Três passagens em que Cummings menciona ambientes
nesta situação (grifos meus):
“Behind the patio on the left side of the building are three more rooms which at the
present time the public is not expected to enter. We had special privileges, being
official, so we barged right in. In the first one we noted some sections of the cast of a
megatherium, part of a complete set-up which apparently is being renovated. The other
two are full of stored material in glass cases, very largely Brazilian ethnology […]”
(p45-6)
“[O]ne of [the mammal halls] is not open to the public. It offers us, on storage terms, a
miscellaneous series of skeletons, with a few mounted animals […]” (p.55)
39
“[...] owing to the changes necessitated by renovation of the building, a large number
of insect cases have been placed in temporary storage here [at the birds room], as well
as the work tables of the Department of Entomology.” (p.61).
Essas salas haviam se tornado, por força das necessidades e a título provisório, depósitos
entulhados, não organizados. As restrições de espaço e as dimensões das coleções do Museu
haviam ultrapassado um limiar em que, com o equipamento de armazenamento disponível (o
padrão vitrine-exposição), era simplesmente impossível dar tratamento eficaz. As salas
interditadas são sinais de falência de um modelo.
No diagrama com a comparação das plantas do palácio nos dois momentos, antes e depois da
reforma, distinguimos as salas com antigas exposições que já se encontravam fechadas ao
público22 tingindo-as de verde claro (enquanto as que continuaram abertas à visitação estão
em verde escuro). Estas áreas somam a metragem nada desprezível de 1.746 m2. Se, no
cômputo geral da setorização do palácio, ao invés de tomá-las como parte da área total de
exposições, considerarmos que a parte fechada atende, por antecipação ou precipitação, à
necessidade premente de espaço de depósito estrito, reserva fechada ao público (ainda que
desordenada), e agregarmos suas metragens ao total da área computada como “de pesquisa”, o
resultado já antecipa a distribuição equilibrada de áreas que se estabilizará pós-reforma: a área
das exposições que permaneciam abertas em 1941 ocupava 41% do espaço do palácio, e a de
pesquisas (+exposições fechadas) ocupava 40%. [Ver Tabela: “Redistribuição do Espaço 2”].
22
Esta categoria, “salas de exposição fechadas ao público”, corresponderia a uma formulação inversa à proposta
por Michael Van Praët mencionada anteriormente para o caso do Muséum de História Natural de Paris, e
encerra o mesmo tipo de contradição em termos. Lá, ele preferiu denominar as galerias de uma “reserva aberta”
ao público. Com o emprego deste oximoro, Van Praët pretendia sublinhar que, não obstante o público ter acesso
à totalidade das coleções científicas do Museu, elas se encontravam organizadas primariamente segundo critérios
próprios ao manuseio científico, i.e., eram otimizadas para a pesquisa. O acesso público era uma função segunda,
que se acrescentava à original sem obrigar-lhe maior alteração de forma ou disposição. No caso do Museu
Nacional aqui considerado, no correr do ano de 1941 encontramos salas com coleções dispostas de maneira a
serem consideradas exposições, embora o acesso público se encontrasse vedado. É claro que a aproximação dos
dois casos se dá apenas ao nível retórico, das figuras de linguagem. Um não corresponde de modo algum ao
inverso lógico do outro. No Museu Nacional, a interdição das galerias se devia a um estado de exceção,
denotando a falência de um modelo e uma crise temporária da função museal; no caso do Muséum, que o acervo
de pesquisa ficasse aberto ao público era uma opção institucional, denotava o vigor e a ainda plena
funcionalidade, mesmo que levada aos seus limites, do velho modelo propugnado.
40
[Tabela: Redistribuição do Espaço 2]
Este dado pode indicar o colapso galopante da estrutura de armazenamento de coleções
herdado da era de Roquette. As coleções continuavam crescendo, o espaço total para abrigálas permanecia basicamente o mesmo, o mobiliário e o sistema de armazenamento já não
permitia atender a contento o exigido. Viam-se obrigados, para estocar precariamente as
novas aquisições que não paravam de chegar, a sacrificar parte da função de exposição,
fechando salas ao público. Se este esquema viabilizava a guarda provisória do excedente, não
resolvia em absoluto as necessidades da função de acesso ao estudo. Caixas empilhadas nos
corredores entre vitrines não é exatamente lugar para se encontrar nada. O que quer que
estivesse ali, estava temporariamente fora de alcance, aguardando organização futura. O
Museu enquanto tal começava a falhar em suas funções. Ambas.
Poderíamos sugerir a hipótese de que existe uma relação entre a escala da coleção de um
museu de história natural clássico e a grande divisão entre coleção reservada ao estudo e
exposições abertas ao público – propugnada por Flower e tantos outros na virada da “era de
ouro dos museus”. Encontrei em Podgorny & Lopes (2008:24) uma formulação similar desta
correlação, atribuída a Forgan: “Como señala Forgan (1994, 149), el crecimiento de las
colecciones a partir de la segunda mitad Del siglo XIX, llevó al desborde la cantidad de
información asimilable por el público.” [tb em Lopes & Muriello ¿?]
Se esta sugestão for válida, deve-se atribuir a esse descompasso, provocado pela escalada da
coleção – e portanto ao sucesso do empreendimento de pesquisa do instituto –, a origem de
toda a especialização comunicativa do Museu que se estabelece ao longo do século XX. Pois
só quando a exposição ganha autonomia em relação à reserva, à coleção de estudo, e à sua
organização necessariamente classificatória e segmentada por especialidade, ela pode pela
primeira vez buscar fundamento e princípios conceituais para a sua construção em outro
41
lugar: e.g. no conhecimento do senso comum prévio, na perspectiva da percepção do público,
na especificidade da experiência da visita.
Antes da separação, o curador de uma certa área de estudos era necessariamente curador tanto
da coleção especializada quanto do setor correspondente da exposição, de modo geral o
professor naturalista titular da seção. A conjuminância de curadoria apenas denota o fato de
que a organização da presumida exposição era obrigatoriamente setorizada por disciplina, o
que vale dizer, por táxon classificatório. Pois as próprias coleções eram arrumadas
cientificamente antes de tudo para que o pesquisador as utilizasse sem dificuldades, com todas
as conveniências da ordenação sistemática e do acesso desimpedido. O fato de serem
franqueadas à visitação pública não alterava essa condição primeira de gestão tecnocientífica
do acervo.
Só quando se separa as coleções e as funções destinadas aos dois diferentes públicos (o
pesquisador e o visitante leigo) é que exposições tal como entendemos o conceito, votadas
primordialmente à comunicação com o público geral, torna-se algo possível. Antes disso, esse
ideal é materialmente irrealizável, e conceitualmente insubstancial. No máximo – como
pudemos acompanhar nos esforços de Roquette – um guia de iniciação ao aspirante a
naturalista, sugerindo passos de um percurso virtual exclusivo por longas galerias que reúnem
a totalidade das coleções tomadas à natureza.
Por outro lado, esta separação das coleções e a segregação do espaço dos cientistas instaura
um déficit insuperável de transparência na comunicação da ciência, justo no momento em
que esta é institucionalizada enquanto tal. Por outro lado, este é a condição de possibilidade, a
fratura fundadora da comunicação científica moderna: só há divulgação de ciência senso
estrito quando há a separação marcada entre o espaço do público e o laboratório.
Um motivo recorrente da divulgação científica passa a ser o esforço para apresentar ao
público a ‘science in the making’, os bastidores da reserva ou do laboratório ora inacessíveis.
[Novo item aqui: “A Perda da Transparência” (ref perdida a artigo sobre transparência)]
42
desenvolvimento:
antes de explorar as plantas de setorizaçao, a mudança da sua ocupaçao nas duas décadas, é
preciso familiarizar o leitor com o palácio:
- apresentar fotos da fachada e perspectiva
- apresentar o folder de visitaçao dos anos 90 (que talvez traga lembrança pessoais de visitação
a alguns)
- se possível, desdobrar a planta a partir de um esquema em 3d, como aquele q induzi paul
ricketts a desenvolver pro primeiro cd-rom do etc
- remeter o leitor às plantas originais (Cummings e RAMN) em anexo, quem sabe igualmente
pintadas para facilitar o reconhecimento da minha leitura
- remeter o leitor às planilhas de cálculo das áreas, em anexo.
- apresentar, como exemplo setorial, o caso da zoologia?
- entao, pq nao tb o da antropologia, geologia e botanica?
rever as tabelas de redistribuiçao do espaço 1 e 2
(trocar a barra / por um sinal de adiçao +)
43
PLANTAS DAS EXPOSIÇÕES DA FASE 2 (PERÍODO 1914-1927):
Planta anexa ao Guia das Coleções de Antropologia de ERP, 1915.
Planta anexa ao Guia de Mineralogia, Geologia e Paleontologia, de Alberto Paes Leme, 1924
44
PLANTAS DO PALÁCIO EM 1941, ÀS VÉSPERAS DO FECHAMENTO PARA REFORMAS.
[Fonte: Relatório de Carlos E. Cummings, 1941]
45
PLANTAS DO PALÁCIO EM 1963, APÓS REINAUGURADAS TODAS AS EXPOSIÇÕES
[Fonte: Relatório Anual do Museu Nacional, Santos 1963]
46
PLANTAS DO PALÁCIO EM 1987
[Fonte: Levantamento do Pró-Memória]
47
FOLDERS COM PLANTA DAS EXPOSIÇÕES, PARA ORIENTAÇÃO DOS VISITANTES
(c1993)
(c1995)
(c1997)
48
ESTUDO DA MUDANÇA DE SETORIZAÇÃO DA DIVISÃO DE ZOOLOGIA (1941-1961)
(Fontes: Cummings 1941, Santos 1963)
49
A separação das coleções: a evidência fotográfica
O QUE OS ANTIGOS PODERIAM ACHAR DE NOSSA TESE
Mais uma vez evoco a afirmação provocadora inicial, para efeito de explicitar melhor sua
pertinência: antes de ’40, não havia exposições no Museu Nacional. Eis uma proposição nada
óbvia, que exige demonstração, mas que hoje em dia posso perfeitamente sustentar sem
escândalo e, possivelmente, obter a concordância de alguns. Mas, se pudéssemos apresentá-la
aos atores da época, seria muito provavelmente recebida por todos com indignação como um
disparate.
Imaginemos indagar Roquette-Pinto, ou os seus parceiros de época no Museu, principalmente
os mais ligados à divulgação científica, como Alberto Sampaio, Mello Leitão, Paes Leme, os
naturalistas que escreviam em jornais e na Revista Nacional de Educação, participavam em
programas da Rádio Sociedade, publicavam livros de divulgação de suas áreas na coleção
Brasiliana, se consultássemos qualquer um deles, é certo que discordariam em absoluto do
que afirmei. Não admitiriam. Na visão deles, era óbvio que havia exposições. Aliás, elas eram
uma evidência fácil de comprovar: levantar-se-iam súbito de seus gabinetes, trajados nos
tradicionais guarda-pós brancos de bancada, e conduziriam-me empertigados pelos corredores
do palácio até alcançar algumas das galerias onde se encontraria um público heterogêneo
vagando entre vitrines fartas em espécimes das célebres coleções da casa centenária.
Conheciam-nas muito bem já que ajudaram a concebê-las e montá-las (todos estiveram
envolvidos na grande reforma promovida por Lacerda de 1910-14, ou na parcial de Roquette,
em 1927). De todo modo, não faria sentido algum um museu nacional destituído de
exposições abertas ao público, quanto menos nos primórdios da República! Para eles o Museu
era, como insistia Roquette numa fórmula bem ao seu estilo (e que ele repetiria depois quanto
ao rádio e outra vez para o cinema educativos), a “universidade do povo”, onde qualquer um
interessado poderia ter acesso direto e instruir-se, sem pré-requisitos ou interferência de
mestres diretos, no que melhor havia dos conhecimentos da ciência e da nação. O Museu era
imaginado como um espaço onde se facilitava uma espécie de ‘alfabetização’ nos segredos da
50
natureza do país, iniciando-se o jovem cidadão duplamente em pequeno patriota e pequeno
naturalista 23.
Se viajássemos de novo no tempo conjectural, e, passadas duas ou três décadas, fôssemos
consultar agora os pesquisadores que trabalhavam na grande reforma iniciada em 1941, como
Eduardo Galvão e Luiz de Castro Faria (que tiveram participação central na reforma das
exposições de arqueologia e antropologia, inauguradas em 1947) ou José Candido de Melo
Carvalho e José Lacerda de Araújo Feio (diretamente envolvidos na montagem e abertura das
exposições de zoologia, de 1956 a ’61), todos discordariam francamente da minha afirmação
impertinente24. Não se consideram inauguradores de algo que teria sempre faltado à casa,
montando pela primeira vez ‘verdadeiras exposições’. Eles se vêem herdeiros e atualizadores
de uma irrecusável tradição expositiva e educativa já presente na casa há gerações.
COMO SE FOTOGRAFAVA UMA GALERIA DE EXPOSIÇÃO
Como assim não havia exposições? Eis uma afirmação difícil de sustentar diante das
evidências mais banais de arquivo. Se não eram exposições, então o que havia naquelas
galerias abertas ao público? Não é preciso buscar pelos catálogos de peças ou pelos livros de
tombo, os ofícios administrativos referentes à preparação de espécimes e à confecção de
mostruários, as notícias de inaugurações na imprensa ou os livros de visitas, os testemunhos e
depoimentos de contemporâneos. Bastam as irrecusáveis e supostas auto-evidentes fotos de
época das galerias do MN repletas de vitrines e mostruários. [Ver: Composição de 5 Fotos da
década de 1920 tardia, selecionadas entre as preservadas no Arquivo Histórico do MN]. O que
então será isso tudo, senão exposição?
Para não restar dúvidas só falta a presença de visitantes casuais vagando curiosos entre as
vitrines. Pois nestas fotos, as galerias são sempre mostradas sem vivalma. Aparenta o aspecto
das salas talvez de manhã cedo, no momento imediato antes da abertura das portas ao horário
de visitação. Ou numa segunda-feira, dia em que o Museu permanece fechado ao público,
23
“Iniciando-se os pequeninos no conhecimento da História Natural, cumpre-se também uma missão nacional
que é preciso pôr em destaque: formam-se bons patriotas, senão futuros cientistas.” (ROQUETTE-PINTO, 1927a,
p42).
24
Note-se que, além de Candido Carvalho que era então diretor do MN, todos serão depois também diretores de
museus de história natural, Galvão do Paraense Emílio Goeldi (1961-2), os demais do próprio Museu Nacional.
51
reservado às operações de limpeza e conservação, registrando a imagem da sala impecável,
logo após a faxina e arrumação. Mas estas são conjecturas, tentando imaginar uma situação
plausível em que tais fotos pudessem ter sido capturadas – mesmo em um Museu
normalmente muito visitado. O fato incontornável é que essas fotos flagram um espaço
habitado exclusivamente pelos objetos das coleções científicas, organizados metodicamente
em séries de armários de vidro. E nenhuma visitação.
As fotos históricas das galerias de exposição indicam esta mudança radical na concepção do
público. Em todas as fotos anteriores aos anos ’50, as galerias são enquadradas num plano
panorâmico, e sem nenhum visitante vagando em suas passagens. (Mas talvez como se do
ponto de vista de um visitante que estivesse adentrando a sala ainda vazia, o primeiro a
chegar, o museu recém aberto à visitação). Este enquadramento alterna-se com fotografias de
autoridades ou personalidades ilustres posando para o registro de alguma ocasião notória,
algum evento comemorativo.
Já nas fotos incluídas nos relatórios de ’56 em diante, alternam-se (1) o plano médio, fechado
em apenas um mostruário visto de frente (como se do ponto de vista de um visitante parado
diante dele) com (2) fotos em enquadramento mais aberto, que permite ver parte da
composição do ambiente de visitação, com mais de uma vitrine e espaço de circulação, e
então sempre se inclui público ‘espontâneo’ (indiferente à câmera, atento aos mostruários),
flagrado em pleno ato de visitação, e a legenda sublinha que o motivo principal da foto é justo
registrar o público, não os displays.
As fotos e ilustrações que acompanham o texto de 1949 de LCF constituem um caso híbrido:
além das fotos em plano fechado sobre o display, há várias fotos de ambientes, sem incluir
qualquer visitante, como se houvessem registrado para a posteridade as galerias assim que
ficaram prontas, impecáveis, antes da inauguração; por outro lado, o croqui 3D em que
apresenta o esquema de uma das salas, a museograficamente mais sofisticada, inclui sim a
silhueta de visitantes casuais passeando pela galeria. Note-se o contraste das fotos da sala de
Antropologia Física e da vitrine dos grandes primatas com a foto equivalente, com os mesmos
motivos, que aparece uma década depois, no relatório de 1959.
Pois pretendo argumentar que a ausência deste personagem circulante nas fotografias oficiais
que pretendiam representar as coleções/exposições do Museu antes dos anos 1940 não é
52
casual. Ela é deliberadamente produzida. E só pode indicar que ele, o visitante, era então
concebido como um elemento estranho, fundamentalmente alheio à natureza mesma das
coleções. Concluiremos que, afinal, a maneira como eram concebidas as coleções expostas do
MN nas décadas que precederam a reforma de 1940 se distinguem num ponto crucial do que
veio depois a ser entendido por ‘exposições’. Noção a que ainda somos, hoje, tributários.
Tomemos um documento de referência canônico no meio museológico de então, que nos dá
registro do estado do Museu à época. Durante quatro meses do ano de 1928, Laurence Vail
Coleman, influente diretor da Associação (Norte-)Americana de Museus, viajou pelas
principais cidades do continente sul-americano para visitar seus museus e coletar os dados
com os quais compôs um Diretório de Museus na América do Sul (COLEMAN:1929), que se
tornou referência mundialmente utilizada para identificar as instituições da região25. Arrola 30
instituições espalhadas pelo Brasil, incluindo jardins botânicos, zoológicos e aquários26. No
verbete dedicado ao Museu Nacional do Rio de Janeiro (pp. 58-61) incluiu três fotos, a
primeira com uma vista da fachada do prédio, e outras duas atestando o aspecto de suas
exposições à época. Uma delas retrata a antiga “sala Aristóteles”, de osteologia, uma galeria
clássica dedicada à anatomia comparada através da montagem e justaposição de séries de
esqueletos, que ficava no terceiro andar do palácio, incluindo o esqueleto da baleia jubarte
pendurada no teto27. A outra fotografia do catálogo de Coleman revela a principal sala de
25
Coleman publicou diversas outras obras de referência sobre museus, como o Manual for Small Museums
(1927), o College and University Museums (1942) e o Museum Buildings (1950). Sua obra de maior fôlego e
influência foi o balanço crítico sobre o estado do sistema de museus norte-americano, em três volumes, onde
explicita também suas concepções e recomendações gerais quanto ao modo de organizar museus
(Coleman:1939). Não encontrei exemplar do Coleman de 1929 (o diretório de museus da América do Sul) no
catálogo atual da biblioteca do MN, mas lá estão nas prateleiras os títulos de 1927, 1939 (adquiridos em 1943) e
1950 (adquirido em 1952) – o que indica que, ao menos no período em que as reformas dos anos 40 já estavam
em andamento, o staff da casa o tinha como referência.
26
A sua seção a respeito do Brasil é, provavelmente, o primeiro catálogo sistemático de museus do país. Esta
prioridade é confirmada pelo testemunho de um documento de 1963. Neste ano o prof. Sólon Leontsinis,
antropólogo lotado na Divisão de Educação do MN, recebeu bolsas do Conselho Britânico e do Governo da
França, com as quais viajou à Europa para estagiar por 6 meses “nos principais Museus da Inglaterra e no Museu
do Homem, em Paris” (SANTOS:1963:111). Nesta cidade, trabalhou no Centro de Documentação Museográfica
do ICOM, órgão da Unesco, na elaboração de um “novo Repertório Brasileiro de Museus”, cotejando a lista das
instituições brasileiras já registradas no ICOM – e é aqui que se encontra a confirmação que nos interessa – com
“as 4 relações anteriormente publicadas, COLEMAN (1929), H. ALBERTO TORRES (1953), INEP-ONICOM (1958) e
TRIGUEIROZ (1958)” (SANTOS:1963:40). (Obs.: a referência ‘Inep-Onicon’ que fornece corresponde a GUY DE
HOLLANDA (1958) da nossa bibliografia; a ‘Trigueiroz’ corresponde a TRIGUEIROS (1958)).
27
Provavelmente é a sala combinada #6 e #10 (*), vista no sentido S-N. Correspondente, no 3º pavimento, à que
foi utilizada, no 2º, para montar a nova sala de anatomia comparada, quando da reforma de 1941, e que só foi
inaugurada em 1957. A sala foi desmontada nas reformas conduzidas na administração de Roquette
(provavelmente entre 1929 e 1931), que transferiu os esqueletos de mamíferos (inclusive o da baleia) para a ala
da frente do prédio, no mesmo andar, e montou em seu lugar uma grande galeria de peixes. Depois da reforma
53
aves28. [Ver Anexo-Fototeca: Composição de Fotos: as fotos referidas são respectivamente as
do canto superior e inferior]. Um longo salão também no terceiro andar, ocupado por uma
fileira de armários-vitrines em todo o seu comprimento, sistematicamente distribuídos em
compasso eqüidistante, alternando com os portais e as janelas de ambos os lados, de modo a
aproveitar o máximo do espaço útil, desde que garantidas as passagens para acesso e
iluminação a todos os recantos.
[Descrever esta sala, de preferência apresentando as outras fotos da mesma]
Usa o eixo central da galeria para formar uma longa ilha com espécimes mais imponentes,
permitindo que sejam examinados de todos os ângulos.
[Depois, descrever as de antropologia:]
Um corredor central, que atravessa vários ambientes, flanqueado de ambos os lados por séries
de vitrines inteiramente de vidro, dispostas em cadeias ortogonais, como ‘espinha de peixe’.
[Apresentar a planta baixa das exposições junto, presente no Guia de ERP de 1915?]
[a primeira é, provavelmente a 43, conhecida à época como “Castelneau”; a segunda é das 5657-59, conhecidas como “Gabriel Soares”, “Virchow” e “Broca”]
ESPLÊNDIDOS ARMÁRIOS DE VIDRO, ABARROTADOS DE ESPÉCIMENS
Nesta sala, todos os armários são compostos de duas partes sobrepostas, divididas num plano
horizontal que atende à altura da linha de visão de uma criança, ou ao limite de alcance ao
exame de um adulto sem que precise se agachar. O terço inferior é revestido por metal opaco
e fechado por portas chaveadas; os dois terços superiores formam vitrines plenas e constituem
o dispositivo propriamente expositivo. Aço e cristal. Revestidas por folhas de vidro pelos
quatro lados (e eventualmente mesmo a cobertura superior) de modo a permitir franca
iluminação natural e completa transparência e visibilidade do conjunto a partir de qualquer
ângulo, ao mesmo tempo em que se exclui qualquer possibilidade de toque ou manipulação
dos anos 40-60, esta imensa sala será divida em duas e abrigará coleções e gabinetes de botânica e de
invertebrados (por isto recebeu dois números, #6 e #10, no mapeamento de 1963*).
28
Esta sala é a #13 (*), vista no sentido S-N. Corresponde, no 3º pavimento, à que foi depois utilizada, no 2º,
para montar a exposição de paleontologia (a até há pouco familiar sala da preguiça gigante), inaugurada em
1956. Ela permaneceu com a exposição de aves até os anos ’40, quando esta foi desmontada para ceder lugar ao
depósito das coleções (de estudo) de etnologia – função que mantém até hoje.
Na nossa montagem de fotos, a outra sala de aves que aparece é a conhecida por “Natterer”, provavelmente a
#12 (*), vista no sentido O-E.
54
das peças. Enxerga-se de um só golpe não apenas todo o conteúdo que se encontra no interior
de cada armário, mas também, devido à justaposição em profundidade dos móveis
transparentes, a visão atravessa sem esforço o conjunto dos vários mostruários, como se todo
o aviário estático se encontrasse reunido sem barreiras ao olhar visitante. No interior de cada
armário, um número variável de prateleiras, de uma a quatro, segundo o volume das peças
abrigadas, absolutamente repletas de espécimes de pássaros, montados e perfilados de
maneira a aparentar o seu suposto aspecto individual em vida, através dos recursos clássicos
da taxidermia. A intenção realista de reconstituir a aparência e porte originais de cada
indivíduo (‘naturalizado’, como preferem, muito apropriadamente, chamar os franceses um
espécime assim preparado) contrasta com a disposição aglomerada em bandos heteróclitos,
num arranjo absolutamente não natural. Seguiam aparentemente o que Gray, não sem desdém,
intitulou ‘French plan’: “attaching each specimen to a separate stand, and marshalling them
like soldiers on the shelves of a large open case” (apud Sheets-Pyenson:1988:9) 29.
A questão é: será mesmo isto uma exposição? Não será antes apenas a própria coleção
completa? Organizada e apropriadamente acondicionada, pronta ao alcance do pesquisador.
Talvez o fato de se permitir diariamente, em uma grade de horário regular, o acesso do
público de fora a estas galerias, mantendo os armários de vidro devidamente trancados, seja
apenas um desdobramento suplementar de suas funções primárias. Este conjunto não encerra
o principal da própria coleção científica da casa, metodicamente armazenada e disposta de
modo a tornar fácil e intuitiva a localização e o exame de qualquer grupo que se precisar?
Estes móveis são antes vitrines para o olhar maravilhado de estranhos ou são primeiro
armários de guarda e fácil acesso para os conservadores da casa? O fato de suas paredes
serem formadas por folhas de vidro não os torna menos funcionais como armários de guarda
que outros feitos inteiramente de madeira opaca e gavetas numeradas – e o que prejudicam da
preservação do material ao efeito corruptor da luz, facilitam na manobra de busca e
localização dos espécimes visados. Dito de outra forma, se o modo preferencial de guardar (e
acessar) coleções museológicas acabou se tornando o que me referi acima como a “caixa
opaca” da reserva, será que um dia não pode se ter preferido impecáveis caixas transparentes?
29
Sheets-Pyenson argumenta que foram as opiniões de John Edward Gray, curador de zoologia do British
Museum em meados do século XIX, a respeito da boa organização de museus que mais influenciaram o programa
que Flower viria a implantar, quando se tornou diretor da nova unidade do British Museum (Natural History), em
1884.
55
O elemento crucial nestas composições são as fileiras de armários. Requisitados por Lacerda
(RMAg, 1911-12, vol.1 p.54), adquiridos por Miranda-Ribeiro (LOPES:1995:226), “armários
de ferro e cristal” (RMAg, 1912-13, p.75), “vitrinas novas, fornecidas pela fábrica Eggers, de
Hamburgo” (RMAg, 1913, p.47), recondicionados para aproveitamento integral nas novas
montagens dos anos ’40-’60, sob os elogios da nova geração de curadores: as “vitrines
importadas, iguais às dos melhores museus da Europa” (CASTRO FARIA:1993:76); esses
“armários padronizados, os mesmos esplêndidos armários que hoje figuram nas novas
exposições” (CASTRO FARIA:1949:12); “os mesmos [armários] das antigas exposições,
adquiridas há anos pelo Prof. Alípio de Miranda Ribeiro, na Alemanha”
(CARVALHO:1956:25). 30
Os armários usados nas salas de aves são dispositivos chaves dessa articulação coleçãoexposição pois reúnem os dois modelos de recipiente de guarda em um só móvel. As
exuberantes vitrines da sua parte superior ofuscam a função silenciosa das divisões sólidas e
opacas da sua base. Chaveadas, é muito provável que fossem utilizadas predominantemente
para a guarda de mais coleções. Este espaço excedente, usualmente nem notado pelo visitante
que restringe a sua atenção às atrações expostas logo acima, indica mais uma vez que o
armazenamento da maior parte das coleções compartilhava este mesmo espaço. O que se
guardava no ‘porão’ destes móveis? Seriam preferencialmente mais espécimes e variações do
mesmo tipo já exposto logo acima? A redundância do tipo estocado permitiria estender aos
exemplares guardados ocultos a facilidade de localização que seus congêneres, mantidos
visíveis nas vitrines, propiciavam. Eventualmente poderiam se prestar como peças de
reposição (de ‘reserva’ na acepção que lhe atribui Castro Faria31), facilitando o trabalho
museológico de renovação das vitrines, quando o material exposto estivesse por demais
desgastado.
[No entanto, ao se reabrir estes closets recentemente, o encontrado em seu interior já não
apresentava qualquer relação com o conteúdo das vitrines. Era o pandemônio enclausurado!]
30
Na mesma época, 1910, H. Von Ihering também adquiriu novos armários para o Museu Paulista (Cf LOPES,
1995, p. 277).
31
“[A]s coleções de estudo, que são ao mesmo tempo as reservas destinadas não só ao suprimento, como à
renovação periódica dos grupos expostos.” (CASTRO FARIA:1949:16).
56
UM LONGO CORREDOR DE ARMÁRIOS LOTADOS
Muito do aspecto e do modo de dispor as coleções nas antigas galerias públicas do MN do
início do século XX desapareceu completamente das exposições atuais. Por outro lado, lembra
muito a organização hoje em dia de uma reserva técnica. O que há de diferente se parece com
o que ocorreu nas bibliotecas com a substituição das estantes com porta de vidro por móveis
compactadores opacos.
O cerne de um museu de história natural hoje costuma ser apresentado como um corredor.
[Ver Foto: “Reserva Técnica DV-MN”]. A foto consta de um livro lançado no ano passado,
mais um volume da elegante série que
retrata grandes museus brasileiros,
patrocinada anualmente pelo Banco Safra.
As instalações das reservas técnicas do
Museu são aqui representadas por esta
imagem dos depósitos do departamento de
Vertebrados, um corredor de modernos
armários especializados no
armazenamento de espécimes. A legenda
diz: “Armários com peles taxidermizadas e esqueletos de primatas da coleção de mamíferos
do Dep. de Vertebrados do MN, o maior acervo de primatas neotropicais do continente”
(SAFRA:2007:49). O regozijo com o tamanho das coleções é uma figura retórica recorrente na
maneira de todos os museus de história natural se apresentarem. Este é o ponto que mais
orgulha uma instituição: ser repositório de uma coleção de referência abrangente, gigantesca,
que aspire à exaustividade. Voltarei a este ponto.
A composição da foto explora um ângulo que permite enquadrar os armários como um
corredor que se prolonga indefinidamente, as gavetas todas abertas em diferentes posições,
deixando ver parte dos seus conteúdos. Pergunto: isto também não é uma exposição? Este
arranjo, que visa apresentar ao público uma amostra do núcleo das coleções científicas da
casa, para compor a auto-imagem do Museu em livro de divulgação de luxo: não seria uma
exposição, digamos, “de brevíssima duração”? Uma montagem excepcional de ocasião,
preparada sob encomenda para o olhar fugaz de um solitário visitante especial, incumbido de
perenizar e compartilhar com todos a cena através do retrato publicado. Antes da chegada do
57
fotógrafo, eram apenas armários lotados da reserva técnica, com as coleções armazenadas
atrás de portas e gavetas certamente fechadas, de modo a mantê-las absolutamente
organizadas (qualquer peça possuindo uma localização única e rapidamente acessível, a partir
de procedimentos de catalogação e indexação), protegidas de poeira, acidentes, luz, ocupando
o mínimo espaço possível. No entanto, aqui parece ter ocorrido um terremoto ou a
intervenção de um poltergeist. Neste bizarro arranjo, montado exclusivamente para constar no
livro, as gavetas foram aleatoriamente escancaradas, atravancando completamente a passagem
entre os armários, de modo a que o máximo possível de peças guardadas aparecesse ‘em seu
meio’ numa só visada, num único lance de olhar. Eles montaram uma verdadeira ‘vitrine’ do
que se esconde na reserva técnica, uma imagem construída para ser apresentada ao público em
geral.
Lembra, aliás, o que ocorre numa daquelas visitas que os museus costumam programar em
ocasiões comemorativas, e.g. durante “semanas nacionais de museu”, e que franqueia
excepcionalmente o acesso às reservas técnicas para o público interessado, no estilo “um
passeio pelos bastidores da ciência” ou “em busca dos tesouros escondidos dos depósitos do
museu”. Só numa ocasião teatralizada dessas se justificaria tal ‘desarrumação’ em exibição
escancarada. Porque, na verdade, esses armários nunca são deixados ou utilizados nesta
disposição. Um cientista nunca trabalha num ambiente em que tudo está à mostra, em que
todos os arquivos e coleções se oferecem integralmente à percepção. Uma coleção moderna é
mantida com todas as peças ‘escondidas’, guardadas fora do alcance do olhar imediato. Podese dizer que ela é, em princípio, preservada do olhar não apenas do público visitante do museu
mas também do pesquisador autorizado – embora permaneça ao seu alcance. Os armários de
depósito de hoje em dia são basicamente caixas pretas, opacas. O pesquisador precisa lançar
mão de métodos engenhosos de registro, índices, catálogos, uma série de intermediários de
organização e classificação dessa memória arquivada para que possa ter acesso às peças
individuais do acervo. A cada exemplar é designado um código único de identificação e
localização, armário tal, gaveta tal, item número tal. Quando necessita examinar o espécime, o
cientista consulta os registros, segue as coordenadas indicadas, busca a peça, retira-a e traz
para a bancada de exame. Depois devolve-a de novo ao seu nicho de guarda, silencioso,
escuro, preservado das movimentações da vizinhança do laboratório.
Por um lado, tal disposição preserva fisicamente o melhor possível o objeto; por outro, ajuda
a manter o ambiente do laboratório com o mínimo de “ruído”, desimpedido para o trabalho, o
58
menos perturbado possível pela multidão de objetos das coleções disponíveis logo ali, na sua
vizinhança imediata. Os armários de acervo são desenhados para serem compactos e
acessíveis, embutirem organizadamente em divisões padronizadas o maior número de peças
no menor volume de ambiente. E foram projetados para ficarem fechados, mantendo as peças
protegidas da poeira, do desgaste, da luz. Presentes por proximidade, porém não visíveis.
Recuados da luz e do teatro de operações central do laboratório.
Esta foto da reserva técnica de mamíferos do MN parece seguir uma longa tradição
iconográfica de apresentação de coleções. Ela obedece a um arranjo icônico com que os
museus de história natural apreciam ver fotografadas as suas coleções, para incluí-las em
catálogos e outros meios de divulgação quando pretendem dar uma idéia ao público dos
recursos e riquezas mantidos nos seus bastidores.
A versão recente mais conhecida desta mesma disposição é uma série de fotos tomadas no
setor de aves da reserva técnica do Museu Nacional de História Natural de Washington
(Smithsonian), tendo no primeiro plano Roxie Laybourne, uma reputada especialista em penas
de pássaros. [Ver Foto, obtida no website do NMNH]. Roxie e alguns auxiliares alinhados em
profundidade ao longo de um enorme corredor cuja perspectiva se prolonga em direção ao
ponto de fuga no horizonte, encontram-se rodeados por um mar encapelado de gavetas
abertas, cheias das mais variadas espécies emplumadas. Como numa feira de rua impossível,
atravancada de intermináveis bancas e ‘mercadorias’ em múltiplas camadas. Cada gaveta
abriga vários exemplares de uma espécie, mas não há
duas gavetas com a mesma espécie, de modo que a
fileira de gavetas mimetiza os ramos terminais da
árvore da vida, da diversidade morfológica das aves.
A imagem consegue captar com felicidade algumas
das noções mais características do que se quer como
uma coleção naturalista nos dias de hoje.
Não que se consiga vislumbrar, nessa foto, todos os
espaços de guarda de que esses armários são
capazes, nem se pretende enxergar todas as camadas
de gavetas. Ser incapaz de revelar todos os seus
segredos não indica uma deficiência do arranjo, ao contrário, constitui parte do poder
59
evocativo dele. O que permanece oculto, mas suposto presente, é mais importante do que o
apresentado. Pode-se ver uma amostra relativamente aleatória de gavetas abertas, apenas o
suficiente para preencher todo o campo do enquadramento fotográfico. Todas as gavetas
aparecem lotadas. Exibe-se apenas uma ínfima parte do que o espectador é induzido a supor
guardado. O efeito visado é, por extrapolação, dar uma idéia da escala global de itens
rigorosamente armazenados, muito além do apreensível a uma só visada, impossível de reunir
simultaneamente num mesmo panorama fotográfico.
Em complemento a essa indicação alusiva quanto à magnitude da coleção não mostrada, a
perspectiva da foto acrescenta outro elemento de multiplicação da escala do que é visível. O
corredor de acesso às coleções é enquadrado em sua dimensão longitudinal, como se da
entrada de um túnel. A perspectiva do ponto de fuga no horizonte de profundidade, para onde
convergem as linhas de armários perfilados, produz um efeito de “mise en abyme”: é como se
essa coleção, esse corredor formado pela série alinhada de armários ocupados, que segue
ilusoriamente diminuindo à distância mas certamente mantendo tudo íntegro em seus
compartimentos padronizados, pudesse se prolongar para sempre, indefinidamente. É um
corredor que tende ao infinito. Essa é a figura prototípica de uma coleção de história natural:
ela deve estar sempre em crescimento, e a infra-estrutura de suas instalações deve estar
preparada para expandir indefinidamente, de modo a se manter sempre capaz de abrigar essa
proliferação vital.
Nas últimas décadas do século XIX, William Henry Flower, então diretor do Museu de
História Natural de Londres (recém desmembrado do velho prédio do British Museum), e
cujos escritos e discursos propunham um programa sobre como se deve organizar um museu
de história natural que influenciou todo o mundo dos museus da época, generalizou este
princípio. Uma de suas fórmulas mais conhecidas, e repetidas por vários diretores de outros
museus, afirma que “a museum is like a living organism – it requires continual and tender
care. It must grow, or it will perish” (FLOWER:1898:13). Esta máxima é tão mais significativa
para o caso aqui estudado por ter sido aludida por Roquette, em seu discurso de 1918 durante
as comemorações do centenário do MN, ao comentar a necessidade de crescimento das
coleções:
“Queria o professor Flower que os museus fossem tratados como organismos vivos,
exigentes, reclamando cuidados sem conta para manter o equilíbrio e crescer sempre
60
melhor. Na realidade, um instituto destes é mais do que isso. É uma “colônia” de
organismos, para usar a linguagem dos biologistas. Cabe a esta casa conservar, em
miniatura suprema, tudo o que o país é capaz de fornecer; cabe-lhe estudar tudo o que
puder guardar.” (ROQUETTE-PINTO:1919:29)32.
Outro influente teórico dos museus de história natural da época, George Brown Goode, um
dos maiores responsáveis pela organização do National Museum (Smithsonian) na segunda
metade do século XIX, numa passagem bastante citada do seu livro The Principles of Museum
Administration (1895) ratifica: “When the collections cease to grow they begin to decay. A
finished museum is a dead museum, and a dead museum is a useless museum”. A coleção não
pode parar de crescer, é ela que pulsa e denota o quanto a pesquisa está ativa e em
desenvolvimento na instituição, de que a coleta não se esgotou, o acervo não se fechou. Todos
os outros setores do museu crescem junto, mas vêm a reboque da pujança do acervo
científico.
Uma coleção está viva e aberta, por maior que seja o seu volume, enquanto mantém na
agenda um projeto de completude, ou ao menos de busca da completação33. Seus curadores se
empenham em cercar e evidenciar as lacunas, para melhor traçar as estratégias de saná-las –
via coleta, compra ou permuta. Não abandonaram a aspiração de exaustividade, de buscar
reconstituir, no limite, aquele ideal inalcançável de uma série contínua dos seres naturais, por
meio do ‘refinamento do grão’ ou do ‘incremento de resolução’ da coleção discreta. É de
novo Flower quem nos garante que as “collections for the advancement of science [...] are of
value mainly in proportion to their size” (FLOWER:1898:38) e sublinha este formidável
paradoxo da constituição das coleções naturalistas, o fato de que suas lacunas são tão mais
notáveis (e inaceitáveis) quanto mais completa se torna a coleção:
“We all know the old saying that the craving for riches grows as the wealth itself
increases. Something similar is true of scientific collections brought together for the
32
Retomaremos, mais adiante, esta passagem, para exame da imagem da colônia e da missão de colecionar uma
amostra, uma miniatura dos elementos componentes do país.
33
Projeto certamente fadado a jamais se completar. Gonçalves, ao considerar as análises de Clifford sobre a
prática do colecionismo (sobretudo o etnográfico) ocidental como metáfora da noção de cultura e da nossa
relação com outras sociedades, assinala que uma de suas virtudes é enfatizar justo “o caráter necessariamente
parcial dessa representação”, uma vez que “uma coleção é sempre parcial, ela jamais atinge uma totalidade. Pela
sua natureza mesma, ela problematiza esta totalidade, já que uma coleção jamais se fecha.”
(GONÇALVES:2007[1999]:49).
61
purpose of advancing knowledge. The larger they are the more their deficiencies seem
to become conspicuous; the more desirous we are to fill up the gaps which
provokingly interfere with our extracting from them the complete story they have to
tell.” (FLOWER:1898:14)
Outro sintoma deste mesmo estado de permanente crescimento das coleções e atividades além
das medidas das instalações: a queixa pela falta de espaço. É difícil encontrar um museu de
história natural que não se queixe do que freqüentemente chamam de o seu “problema do
espaço”, e o MN não é exceção. Pode-se encontrá-lo enunciado praticamente em todos os
momentos de sua história: desde os Fastos de Lacerda, nos tempos das primeiras tentativas de
adequar o Museu ao palácio da Quinta, até os relatórios do Seminário Franco-Brasileiro de
1995, e à constituição de uma “Comissão de Espaço” (JÜRGENS:2002:187). Uma formulação
exemplar dessa questão, para o período aqui privilegiado da grande reforma dos anos 1940,
encontra-se no discurso de Castro Faria, quando da inauguração das novas exposições de
Antropologia e Arqueologia (e, afinal, reabertura parcial do MN ao público), em 1947:
“Por outro lado, o problema de espaço torna-se cada vez mais grave. Instalado nesta
casa desde 1892, isto é, há mais de meio século, as coleções jamais deixaram de ser
aumentadas e nesses últimos anos o foram em proporções imprevistas. O aumento de
pessoal importou também em aumento de instalações. Nenhum acréscimo ponderável
de área, entretanto, veio compensar esse desenvolvimento natural do organismo que
aqui funciona.” (CASTRO FARIA:1949:17)
O dito problema é crônico, é endógeno, é gerado pelo próprio mecanismo que mantém o
instituto vivo: a concepção de uma coleção como um projeto que tende ao infinito, que almeja
a exaustividade, ambiciona reproduzir, por amostragem, toda a ordem natural estabilizada e
arrumada numa fileira interminável de gavetas. Retornaremos a ambos os pontos – a expansão
das coleções e o ‘encolhimento’ relativo do espaço – ao examinar o remanejamento dos
espaços arquitetônicos do MN empreendidos pelas reformas dos anos 1940-60.
A solução gráfica encontrada para retratar as instalações das reservas técnicas atuais – para
efeito de matérias de divulgação institucional – é similar à que vimos utilizada repetidamente
nas fotos de época que documentaram o estado das exposições do MN dos anos 1920, das
quais apresentamos uma amostra de algumas das mais divulgadas – a da sala dos esqueletos,
62
as de aves, as das coleções etnológicas. Todas tendiam a buscar um enquadramento
semelhante, que mostrava as longas salas vistas do canto de um dos seus extremos,
procurando um ângulo capaz de incluir no mesmo campo visual toda a série padronizada de
armários alinhados, numa perspectiva de fuga em profundidade. Aparentemente, o modo
ótimo de registrar fotograficamente as exposições daqueles tempos, de capturar seu espírito e
caráter em uma única imagem, é praticamente o mesmo que serve tão bem para representar
hoje as séries de coleções de estudo armazenadas nos setores de pesquisa – como também
para retratar as estantes repletas de volumes de uma grande biblioteca ou, afinal, admito,
qualquer depósito amplo e sistematicamente organizado.
Talvez todas elas obedeçam à configuração prototípica que se encontra num célebre quadro,
pintado pelo organizador do primeiro museu norte-americano, Charles Wilson Peale34. Retrata
a si próprio que posa convidativamente na entrada da grande galeria frontal do seu museu,
erguendo a cortina para desvelar, entre outros elementos, a perspectiva da série de pássaros
empalhados, aninhados nos nichos das divisões regulares das vitrines que se prolongam na
fuga de profundidade da so-called “long room”. [Ver reprodução dos quadros de 1922,
acervo do Museu da Pennsylvania Academy of the Fine Arts].
“The Artist in his Museum”, 1822
“The Long Room”, 1822
34
Este quadro canônico é Sobre a concepção de museu que movia Peale, ver a sempre instigante interpretação de
Susan Stewart (STEWART:1994). Um resumo do programa de Peale, inspirado na abordagem de Stewart, está em
BLOM (2003:111-17).
63
FOTOCOMPOSIÇÃO DE REGISTROS DAS EXPOSIÇÕES DO MN NO FINAL DOS ANOS 1920
64
algumas das fotos e diagramas apresentadas na tese de
JCFerreira (2002) FAU-UFRJ
a
b
d
e
f
c
g
h
65
LCFARIA
1
3
2
4
5
7
9
12
16
fotos & ilustrações que acompanham o artigo
(1949) As exposições de antropologia e arqueologia
6
8
10
11
13
14
15
17
66
fotos e ilustrações
nos relatórios anuais de diretoria do museu nacional, anos 1956-1963
56
a
d
b
c
e
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c
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d
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g
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a
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h
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k
l
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b
d
c
e
f
63
a
b
c
d
69
fotos das exposições do MN que ilustram artigos na revista
Muséum (Unesco) v.12 n.4, 1959
a
c
b
g
f
j
t
e
h
k
n
r
d
i
l
o
m
p
s
u
v
(u,v: museu do índio)
70
O museu brasiliano de Roquette-Pinto
Apresento uma interpretação sobre a função das exposições do Museu no período
anterior ao da reforma de 1940, privilegiando a análise das concepções do papel do
Museu em Roquette-Pinto, tomado como personagem emblemático do período. Sugiro
que a hipótese mestra assumida neste trabalho (inexistência de divisão entre reserva
técnica e exposição antes de 1940) permite fazer uma interpretação original e
historicamente mais situada das propostas educativas de Roquette, que se ajustariam
ao Museu do seu tempo.
UM MUSEU EDUCATIVO E REPUBLICANO
Embora não houvesse exposições nos nossos termos, isso não significa que o Museu não
buscasse atingir um público amplo, popular, cidadão. Bem antes de 1940 já ocorriam
inúmeras experiências orientadas por um programa educativo, que buscavam fazer do Museu
um centro de divulgação ampliada das ciências naturais e antropológicas, e especialmente
transmitir a um público amplo e leigo um apanhado das paisagens, elementos de fauna e flora,
povos, usos e costumes que compunham a nação republicana, supostamente no limiar de
deixar de ser de uma vez por todas “terra incógnita”. A educação era parte explícita do
programa do Museu desde pelo menos o início da República, o que se traduziu nas várias
redações que seus regulamentos tiveram desde então. O importante é perceber que, nas
reformas de 1940, a preocupação educativa não era uma novidade, não se tornou súbito a
nova bandeira com a qual conduzir as mudanças da casa 35.
Boa parte dessas iniciativas é concebida como apresentação de uma “amostra reduzida” do
que já se encontrava exposto no Museu. Assim é com os “mostruários de história natural”,
reunindo uma coleção mínima de exemplares dos vários ramos de estudo natural
encapsulados em um gabinete transportável, montados pelo próprio MN ao longo da década
de 1910 e enviados a escolas solicitantes. Assim também os “quadros murais de história
natural”, pôsteres ilustrados impressos para distribuição a escolas e instituições de ensino,
35
No que difere notavelmente do ocorrido com outros gêneros de museus brasileiros, criados a partir da Nova
República e vinculados diretamente à agência do Patrimônio Histórico. Em particular quanto à trajetória do
Museu Histórico Nacional, a crer nas análises fecundas de Miriam Sepúlveda dos SANTOS (2006).
71
cujos elementos encontram seus correspondentes exatos nas galerias abertas à época.
Esboçados desde 1918 para substituir a confecção dos mostruários de empréstimo (cuja
demanda crescente tornara impossível satisfazer), foram lançados nas comemorações do
centenário da Independência, em 1922 36. Nessa mesma linhagem de coleções instrutivas para
enviar às escolas, Roquette lançará os conjuntos de diapositivos que serviam de ilustração aos
cursos temáticos de história natural, vendidos a preço de custo a professores interessados 37.
Ainda que se empenhasse em todas essas iniciativas de difusão direta da instrução em história
natural, sustento que, quanto à função das galerias de exposição Museu e da visitação direta
do público, Roquette cultivava uma visão distinta. O ideal educativo que almejava então não
era o de apenas transmitir ao leigo uma noção geral, fornecer-lhe um pequeno kit de
conhecimentos já formados sobre as riquezas naturais do país, aquele pacote curricular
mínimo que “todo brasileiro deve saber”. O que pretende é que cada visitante, quando a visita
é eficaz, seja fisgado pelo convite a ilustrar-se e acabe se tornando um pequeno naturalista.
Cativar o curioso e induzi-lo à iniciação no metier. Apregoa que este é o único caminho para
se iniciar no entendimento das ciências naturais é o do treinamento da observação, o que se
alcança através do desenho e da constituição da própria coleção de estudo. A lupa, o lápis, os
apetrechos de coleta38.
Neste mesmo diapasão, Regina Horta Duarte mostrou convincentemente como Mello Leitão,
naturalista do MN, procurava, através dos artigos que publicava na Revista Nacional de
Educação (editada por Roquette e distribuída no início dos anos 1930 gratuitamente a
instituições culturais e de ensino), cativar o cidadão comum a colaborar com o recenseamento
da fauna e flora nacionais. Instruía-os nas técnicas da coleta e conservação, e incitava-os a
escolher não as aberrações ou seres extraordinários e curiosos, mas os seres ‘banais’, aqueles
36
Bruno Lobo, diretor à época, aponta no Relatório Anual de 1922 os motivos da mudança de estratégia: “A
dificuldade de transporte sem dano dos mostruários, a impossibilidade de dar uma idéia sintética do MN e da
Historia Natural Brasileira, em espaço reduzido [...]”; por outro lado “Diminuindo a intensidade da distribuição
de coleções aumentou pelo contrario a produção de mapas murais que no futuro virão aumentar, pelo emprego
do método visual, o alcance do ensino das ciências naturais à mocidade do Brasil, utilizando exemplares
brasileiros.” (LOBO:1923:42).
37
A atuação de Roquette como divulgador de ciência e cultura e as iniciativas educacionais que implantou no
MN são inúmeras, entre as quais a criação do Serviço de Assistência ao Ensino de História Natural (que alguns
anos depois elevará a 5ª Seção científica do instituto), e a instalação de um auditório equipado com projetor de
filmes e diapositivos para a promoção de cursos. Para um sobrevôo, ver MOREIRA:2008. Um levantamento
bastante atualizado sobre o que há nos arquivos sobre a atuação de Roquette no setor de Antropologia se
encontra na tese de KEULLER (2008).
38
“Uma lente, papel e lápis. Fazer o pequeno desenhar, garatujando, como puder, sempre, o mais
freqüentemente possível.” (ROQUETTE-PINTO:1927a).
72
que habitam o cotidiano, insetos, répteis, aracnídeos, e enviá-los ao MN para serem
identificados (DUARTE:2005).
“Pensa ainda muita gente que o Museu deve guardar apenas as coisas raras, os animais
extraordinários, as plantas bizarras, e é em busca desse inédito sensacional que o
procuram, aborrecendo-se ao encontrar nele expostas as coisas comuns em seus
aspectos mais banais, e o que vê de novo, por estranho ás suas cogitações habituais,
não compensa a desilusão do já visto. [...]
É dos exemplares mais característicos dos diversos grupos animais do país, das rochas
mais comuns, dos minerais mais típicos que deve constar a coleção de exposição [...]
Nunca se preocupem os amigos do Museu em reunir para ele somente as peças
vistosas ou excepcionais. São as formas de aspecto mais banal, os bichos humildes e
escondidos sob pedras e em baixo dos troncos carcomidos, não raro, os que mais
interessam.” [Mello Leitão, Revista Nacional de Educação, 1932]
Roquette se expressa nos mesmos termos: “A história natural das maravilhas deve ceder lugar
à história natural das banalidades. São exatamente as tais coisas banais que mais importa
saber, as mesmas que muitos pensam conhecer, e que, de fato, ignoram.” (ROQUETTEPINTO:1927a).
Não se trata de desqualificar as coleções de animais exóticos que justamente o MN era o
único a possuir e apresentar no país. Essas coleções com aspirações universalizantes
cumpriam função única no cenário nacional, mas difícil de ser repetida. O que a
recomendação da atenção aos seres banais, cotidianos, pretende não é buscar um
conhecimento igualmente banal, de segunda ordem. É o contrário: é elevar os seres comuns,
que povoam os cenários do território nacional, e normalmente desdenhados como
desinteressantes, a objetos primeiros e prioritários de conhecimento.
Uma implicação subjacente à esta perspectiva é que não apenas a ciência – e o conhecimento
da nação – estava ao alcance de todos, mas que o conhecimento comum poderia, seguindo
procedimentos simples, tornar-se aos poucos científico, e qualquer um poderia assim fazer-se
um pouco cientista39. Afinal, uma robinsonada científica compatível com os termos com que
Mello-Leitão se expressa no texto de apresentação do manual para montagem de museus
escolares de Paulo Roquette-Pinto, pois “um país de autodidatas, cada qual aprendendo nos
livros e improvisando técnicas” (MELLO-LEITÃO:1942).
39
No que parecem afins a uma célebre fórmula de Thomas Huxley, para quem “science is, I believe, nothing but
trained and organized common sense, differing from the latter only as a veteran may differ from raw recruit.”
(“On the Educational Value of the Natural History Sciences”, in Lay Sermons, Addresses and Reviews, 1870).
73
O elogio da capacidade de iniciativa autodidata e do improviso criativo à la bricoleur como
estilo necessário nas condições precárias de trabalho científico no país é recorrente. Por
exemplo, em discurso, no programa de rádio “Voz do Brasil” em 1936, a respeito do
progresso do cinema brasileiro, Roquette vaticina: “Somos todos autodidatas” (Constelação
Capanema, p153). Outras figuras são as da improvisação de diapositivos com celulóide e
caneta, e a fabricação de uma lanterna artesanal para a projeção dos slides – ‘invenções’
atribuídas a Alberto Sampaio, referidas por Roquette pai e filho, e cujos esquemas de
montagem são apresentados pelo último no seu manual. Do mesmo modo, a fixação de
Roquete ao rádio baseado no cristal galena, que mantinha em sua casa funcional até o fim da
vida, era o equivalente tecnológico da tal lanterna ‘de fundo de quintal’ no mundo da
radiofonia.
A imagem do Museu como uma “universidade do povo” (que mencionamos anteriormente)
deriva da intenção de franquear a qualquer um conhecimento de difícil acesso, normalmente
só obtenível através da carreira formal e do título de doutor. No Museu, uma amostra
completa dos mesmos conhecimentos é oferecida ‘democraticamente’ a qualquer cidadão que
se interesse por eles. Mas para aproveitar destes conhecimentos, não basta passear pelos
corredores das exposições. É necessário o treinamento e a vocação do aspirante. A proposta
parece sugerir a necessidade de uma “alfabetização naturalista” da população, a que todo
cidadão deveria se submeter.
O tema da alfabetização nas artes do saber naturalista aparece de forma alusiva nas ocasiões
em que Roquette faz a apologia da prática do desenho como método imprescindível para
treinar a acuidade de observação genuinamente naturalista. O objetivo é contestar a crença
comum de que a capacidade de desenhar não é uma faculdade universal dos seres humanos, e
sim um talento reservado a apenas alguns indivíduos. Invoca então os argumentos de Thomas
Huxley, o qual compara o treino na arte do desenho naturalista aos esforços para aprender a
escrever, com o fito de sustentar que ambos desenho e escrita são habilidades de mesma
natureza. Em “História natural para pequeninos”, seu texto ‘programático’ da pedagogia
ciências naturais para crianças, Roquette já insiste:
“Sei bem que a maioria de nós todos ‘não tem jeito nenhum para desenhar’. Concordo.
Desse ponto considero-me até um dos mais infelizes... Mas... il y a fagot et fagot.
74
Quem é capaz de escrever, dizia Huxley, é capaz de desenhar. Pode ser má a
caligrafia, desde que se a entenda, presta o serviço que se lhe pede. Portanto, não há
esse pequeno normal incapaz de esquematizar o que lhe foi mostrado e que ele
aprendeu. Que custa traçar algumas linhas para melhor apanhar as diferenças entre os
tipos?” (1927a).
O texto de Huxley referido era provavelmente “On Science and Art in Relation to Education”,
uma palestra de 1882 na Liverpool Institution, depois reunida à coleção de ensaios Science &
Education, publicada no ano seguinte. Aí ele diz:
“I should, in the first place, secure that training of the young in reading and writing,
and in the habit of attention and observation, both to that which is told them, and that
which they see, which everybody agrees to. But in addition to that, I should make it
absolutely necessary for everybody, for a longer or shorter period, to learn to draw.
Now, you may say, there are some people who cannot draw, however much they may
be taught. I deny that in toto, because I never yet met with anybody who could not
learn to write. Writing is a form of drawing; therefore if you give the same attention
and trouble to drawing as you do to writing, depend upon it, there is nobody who
cannot be made to draw, more or less well. […] I do not think its value can be
exaggerated, because it gives you the means of training the young in attention and
accuracy, which are the two things in which all mankind are more deficient than in any
other mental quality whatever.”
A aproximação da habilidade de desenhar com a capacidade de escrever é ainda mais
significativa em uma época em que a questão da universalização da alfabetização como
projeto nacional republicano começava a se consolidar. Em outro texto dedicado a enfatizar a
importância das figuras no aprendizado, Roquette volta ao mesmo ponto:
“Essa feição intelectual e moral de tal estudo foi bem acentuada por Huxley, quando
mostrou o seu papel no desenvolvimento da atenção e da observação. ‘Nego que exista
alguém incapaz de aprender o desenho – disse num formoso discurso o grande
biólogo, que foi o maior mestre popular, o maior vulgarizador da ciência na Inglaterra
– nego-o, porque nunca achei uma pessoa incapaz de aprender a escrever; escrever é
desenhar.’” (1927b).
75
Nos arquivos do Setor de Antropologia Física chegounos a foto da premiação final de um concurso
promovido em 1929 no MN: “Concurso Infantil de
Desenho Naturalista”. Um garoto posa ao lado do
prêmio ganho: uma maleta cheia de equipamentos, com
várias de divisões onde tudo se encaixa, e um diploma
afixado à tampa: “Prêmio ‘Alexandre Rodrigues
Ferreira’ conferido pelos Professores do Museu
Nacional”. Ao contrário dos diversos “estojos de
história natural” que circulavam na época, ou dos
mostruários portáteis produzidos pelo próprio MN para
envio às escolas, e que reuniam uma pequena coleção
de espécimes naturais típicos, já tratados e classificados, miniaturas quase brinquedo de
museu, esta maleta traz apenas um conjunto de ferramentas com as quais observar, registrar,
formar coleção; identifica-se com dificuldade os componentes do kit, mas nota-se vidros,
mensuradores, lentes, câmera, e seguramente há cadernos, lápis, tintas, etc. Um convite ao
trabalho de campo, a iniciar-se naturalista.
Uma analogia recorrente em Roquette-Pinto é a que compara um museu a uma biblioteca,
evidenciando algo da sua concepção tanto de um quanto d’outra. Na visão dele, as exposições
públicas de um museu estão, para os objetos e coleções, tal como a sala de leitura de uma
biblioteca pública está para os livros e documentos escritos arrumados nas estantes. Numa de
suas crônicas publicadas regularmente no Jornal do Brasil durante os anos ’50, na coluna
intitulada ‘Notas e Opiniões’, Roquette traça uma aproximação entre os museus e as
bibliotecas, que faz equivaler a universidades livres e de acesso popular:
“As bibliotecas são tal qual os museus: verdadeiras universidades populares livres.
Cada qual tira dali as noções de que precisa. Todos aprendem tudo. É só querer e
persistir. Ninguém sai doutor de uma biblioteca ou de um museu; mas quem passa por
ali, a sério, sai realmente douto naquilo que estudou.” (Grifo original)
De entrada aberta ao público geral, com os recursos de conhecimentos e os acervos expostos,
disponíveis à pesquisa e curiosidade do visitante. É, no entanto, preciso persistir: o
interessado tem que estar procurando por algo, e esforçar-se para encontrar suas respostas. E à
76
saída, ao contrário do ensino formal das universidades, ele não recebe qualquer título pela
formação – ainda que possa ter alcançado o objetivo principal, da instrução. O ponto delicado
neste esquema todo é a capacidade do curioso se orientar e encontrar sentido no mar de
informações e coleções que o museu (ou a biblioteca) oferece integrais, massivas, in toto e de
chofre. Roquette continua:
“Por outro lado, se nas bibliotecas e nos museus faltar a orientação segura, acessível,
dinâmica, ativa, ponderada – aqueles institutos serão depósitos, simples depósitos de
livros e material de ciência e de técnica.”
Sem orientação dedicada a induzir os visitantes a aprender a ver corretamente, a exposição
arrisca fracassar em sua função. O público tende a atravessar inerte, ‘cego’ às riquezas de
conhecimento nada óbvias que lotam as galerias. É a constatação deste naufrágio da
exposição que Roquette registra quando sugere a dramática imagem do fio d’água escorrendo
em vidro engordurado, no seu texto mais célebre sobre o ensino de ciências e o papel dos
museus, o “A História Natural dos pequeninos” (ROQUETTE-PINTO:1927a).
“A visita comentada ao Museu, ao Jardim Botânico e ao Jardim Zoológico é vantajosa,
está claro. Mas... tenho, por curiosidade, assistido ao desandar de algumas escolas
pelas galerias do Museu. Que tristeza! Todo mundo vai andando, vai olhando, vai
passando... como um fio d’água passa numa lâmina de vidro engordurada.”
Há na sua constatação e confidência uma espécie de intuição temerária de fracasso, indicação
de que o modelo educativo que concebeu pode ser insatisfatório. Pode haver também algo
como uma queixa íntima do autor quanto ao comportamento espontâneo da criançada, como
se revelasse uma dose de decepção. [Decepção com a sua idealização; com o seu otimismo
excessivo quanto à índole do pequenino escolar, quanto à alma do brasiliano comum]. Um
leve temor de constatar que uma realidade que não corresponde à imagem de público que
acalentava, ao seu diagnóstico dos problemas do país e do que é preciso fazer para contornálos. No seu modelo, o público acorreria ao museu grato e se entregaria sem maiores
resistências a absorver ensinamentos e padrões encarnados nas galerias do museu.
Mas o importante é perceber que, mesmo constatando a resistência das turmas de pequeninos
a dedicar atenção aos mostruários tão cuidadosamente preparados para elas, em nenhum
77
momento cogita que o problema esteja nos mostruários mesmos. Pois eles são as próprias
coleções. Afinal são os nossos tesouros recolhidos e exibidos com o máximo de
cientificidade. Acondicionadas em armários esplêndidos (como o dos melhores
estabelecimentos europeus), dispostos de modo a propiciar apropriada iluminação e ampla
visibilidade das peças, devidamente organizadas segundo critérios rigorosamente científicos
que justo caberia propalar. Exposições assim dispostas compartilham o valor incontestável da
própria ciência.
Por outro lado, a imagem é eloqüente ao eximir inteiramente o público de responsabilidade
pela ineficácia das exposições. (Não se pode atribuir culpa à água que prefere escorrer em fio
célere e sim ao sebo parasita na lâmina das vitrines.) Sugere que é alguma função
intermediária, película morosa entre visitante e coleção, que não sabe facilitar o acesso e
cativar a atenção do passante. Sussekind de Mendonça, numa passagem do seu ensaio
programático em que está discutindo como contornar o fenômeno da ‘fadiga dos museus’,
interpreta a frase de Roquette de forma semelhante: “O fio d’água [...] traduz bem a falta de
poder aderente do público, mas o engorduramento da lâmina refere-se também à camada
isolante que cumpre retirar dos mostruários do museu...” (Mendonça, 1946, p.45).
O vidro da vitrine, limpo por dentro, mas ensebado e escorregadio por fora, antes de tudo faz
desviar e fugir a visão: embaça, obscurece, dificulta a percepção do que se encontra, incólume
e deslumbrante, preservado dentro da vitrine. O problema não se encontra no interesse e no
poder de atração dos materiais selados no seu cofre de vidro; nem definitivamente na
curiosidade natural dos pequeninos passantes. O problema está na precariedade de acesso, na
dificuldade de enxergá-los direito, uma falha na mediação entre o olho do visitante e a peça
oferecida de coleção. Na falta de outro paradigma com que entender o desencontro – entre
exposição / publico infantil – ERP insiste em que falta é mais orientação, paralela à
montagem expositiva – que continua lhe parecendo impecável, no essencial irreprochável.
Não obstante ‘a culpa’ não seja do visitante, a solução proposta por Roquette exige ainda mais
do visitante: é este que deve, antes de ir ao Museu, ser preparado para aprender a desfrutar
(diria, a saber enxergar) o que lhe será oferecido. Ao Museu cabe produzir os instrumentos
deste treinamento e incentivar o público a seguí-lo.
78
Quem quiser aprender num museu, deve primeiro preparar-se para a visita. Aquilo é
apenas o atlas; o texto deve ir com o estudante. As crianças, por si sós, não sabem ver
o que tem um museu; elas só lucrarão se forem acompanhadas do mestre, papel e
lápis, como já se disse. [Grifo j]
O Museu como Atlas, que reúne em desfile as figuras desnudas do mundo, e onde o
interessado, preparado pelo estudo prévio do assunto, pode encontrar e reconhecer as
confirmações objetificadas do seu conhecimento. Em vez de a uma biblioteca, aqui o Museu
aparece comparado a um único livro. Livro de referência, enciclopédico, que pretende mapear
em escala reduzida todo o território do mundo, mas sobretudo um livro apenas de figuras, sem
o texto que as situaria e explicaria, que lhes concederia o sentido científico pleno. Para
Roquette, era preciso complementar o Atlas, fazendo-o acompanhar de um guia detalhado de
leitura.
[D]
QUASE EXPOSIÇÕES
GUIAS DE COLEÇÕES COMO ROTEIROS DE VISITA A EXPOSIÇÕES IMAGINADAS
Nesta altura, vale conceder um pequeno recuo. Reformularei parcialmente a afirmação
heterodoxa da inexistência de exposições, da impossibilidade objetiva de haver exposições, na
qual vim insistindo com renitência.
Pode-se dizer que quase havia sim exposição antes de 1941, ou que havia uma “quase
exposição”. Mas ela não é a que normalmente se pensa que é, nem se deixa fácil encontrar.
Eis minha sugestão: o caminho que leva a descobri-la se encontra numa série incompleta de
livros que o Museu publicou nos anos que se seguiram à inauguração das exposições de 1914:
os chamados “guias das coleções”. Reside nestes guias impressos o que, neste período, mais
se aproxima do conceito que hoje temos de uma exposição.
Foram três os guias que vieram à luz: o das coleções de antropologia40 de 1915, de autoria de
Roquette-Pinto; o das coleções de arqueologia clássica de 1919, de autoria de Alberto Childe;
40
Que no sentido restrito da época designava a antropologia física, i.e., a anatomia comparada dos tipos
humanos e seus parentes mais próximos, o estudo das raças humanas. Marisa Correa menciona a inequívoca
definição que Fróes da Fonseca propôs da antropologia como “biologia comparativa dos grupos humanos”, em
curso que ofereceu no MN em 1932, do qual Heloisa participou como aluna (CORRÊA:1997:237, nota 44).
79
e o das coleções de mineralogia, geologia e paleontologia de 1924, escrito por Alberto Betim
Paes Leme. Há menção a outros guias que estariam em fase de preparação, como o de
coleções etnográficas e o de zoológicas, referidos no Relatório Anual de 1919 do diretor
Bruno Lobo (LOBO:1920:46) mas que, ao que tudo indica, não chegaram a ser finalizados. Do
mesmo modo, também encontra-se referências, nos relatórios do Ministério da Agricultura do
ano de 1923 e seguintes, à preparação de uma segunda edição ilustrada do Guia de
Antropologia, assim como esboços e manuscritos aparentemente de preparação desta edição
entre os papéis de Roquette-Pinto sob a guarda da Academia Brasileira de Letras; mas
nenhum exemplar nos chegou, se é que algum chegou à prensa41.
Roquette participou ativamente da reformulação das exposições durante as grandes reformas
de 1910-14 promovidas por Lacerda (tal como Castro Faria participou das reformas do
período HAT). Logo após a inauguração do Museu renovado ele publicou um guia que se
apresenta como um pequeno curso ou manual de antropologia física. O guia não se intitula
“das exposições” 42. É um guia explicativo “das coleções”. A página de entrada do guia
apresenta o seu programa e função – e permite vislumbrar o conceito que o orienta:
“Ao invés de compor um simples rol de objetos,
tratou-se aqui, em linguagem acessível à maioria
das pessoas, das bases fundamentais da
Antropologia. As coleções servirão para ilustrar
este pequeno manual, resumo elementar que
poderá prestar muitas informações incabíveis em
um simples catálogo. Aos olhos do público, por
meio dele, ganha o material exposto sua verdadeira
significação científica. – Cada objeto representa
uma “figura” deste pequeno guia. As questões
doutrinárias foram postas de lado, como convinha;
as definições foram sistematicamente evitadas.”
41
Para o levantamento deste material ver KEULLER (2008).
42
Como, aliás, Castro Faria o cita, num deslize sintomático. (1982:67).
80
Não um catálogo estrito da coleção, que só tem serventia para o especialista que já domina a
área de estudo e é capaz de reconhecer de antemão a relevância de cada item, Roquette
pretende apresentar uma espécie de aula geral de introdução à disciplina científica: as bases
fundamentais, um resumo elementar. Quanto ao Museu, ele é o lugar onde se pode encontrar
as “ilustrações” correspondentes às lições. Usando as indicações do guia como um roteiro
para passear pela exposição, perseguindo as referências recomendadas como exemplos dos
conceitos explanados (peça tal na vitrine tal da sala tal, etc), o visitante instruído teria a
oportunidade de, finalmente, ter um vislumbre do olhar que o cientista dirige às coleções,
entender a “verdadeira significação científica” do que se encontra à mostra no Museu, de
aperceber-se do valor propriamente demonstrativo das coleções43.
Ao final do pequeno volume, uma folha em dupla dobra traz uma planta baixa parcial do
segundo pavimento do prédio com a setorização das áreas em que se encontram os
mostruários da divisão de Antropologia. Cada sala leva o nome honorífico de um patrono, em
geral algum cientista responsável por uma contribuição proeminente para a área de estudo
ilustrada na sala 44. Assinala também a fileira de silhuetas de todos os armários e mostruários,
numerados de 1 a 132, para permitir a localização das referências fornecidas no guia. (Embora
este pequeno guia cubra apenas as duas primeiras salas, ocupadas com a Antropologia Física.
Por outro lado, o Guia de Arqueologia Clássica, de A. Childe, que não traz planta, utiliza o
mesmo sistema de numeração dos armários – isto é, a planta do guia de Roquette cobre todo o
setor, servindo também para localizar as indicações do guia de Childe).
O terceiro dos guias publicados, redigido pelo professor Paes Leme, também traz uma planta
que mapeia e numera as salas e os mostruários da Divisão de Geologia e Paleontologia. Já no
título revela de forma mais explícita a torção inaugurada por Roquette, o uso da noção de um
guia de museu para na verdade apresentar um pequeno curso sobre a matéria, com referências
ou “ilustrações” a serem buscadas nas galerias do Museu. O título não é mais “guia das
coleções”. É um “Guia de Mineralogia, Geologia e Paleontologia”. Assume-se explicitamente
43
Nélia Dias desenvolve – de maneira instigante e que valeria tentar aproximar do cenário aqui analisado – o
argumento do papel demonstrativo das exposições de antropologia, e, de forma ampliada, das figuras nas
publicações científicas do século XIX (DIAS:1997).
44
Em sequência: Broca, Virchow, Gabriel Soares, Baptista Caetano, Fernão Cardim, Simão de Vasconcellos,
Castelneau, Ferreira Penna, Humboldt, Champollion. A de “etnografia sertaneja” é a única que não indica
homenageado; mais tarde, reinaugurada, a sala que abriga esta coleção será chamada de “Euclides da Cunha”
(sobre a história desta coleção e suas montagens expositivas ver a tese de doutorado de Carla Dias, DIAS:2005).
81
como uma introdução a essas ciências. O segundo título
segue: “Evolução da Estrutura da Terra e Geologia do
Brasil”; e em letra menor “vistas através das coleções do
Museu Nacional” (meu grifo). Seu objetivo é permitir
visualizar os conceitos centrais dessas disciplinas,
atravessando (a transparência d)as coleções abertas,
cruzando o espaço público do Museu, pousando a vista
apenas nalguns itens eleitos como referência, que
confirmem materialidade ao que se afirma no livro.
Persegue-se assim o roteiro e mapa de um análogo
sofisticado de ‘caça ao tesouro’ didático.
Isto sim podemos aproximar do conceito de uma exposição. Este guia-roteiro-manual-aula.
Associado a uma visita muito parcimoniosa e seletiva. Se considerarmos apenas os itens que o
guia indica, e o encadeamento argumentativo que os relaciona entre si por meio de uma
explanação teórica, o conjunto assemelha-se ao projeto de uma exposição. Uma exposição
que não se encontra ainda materializada enquanto tal nos corredores do palácio: ali se
espalham, excessivas, as coleções completas. Mas, para um visitante informado, que percorra
os corredores armado de um olhar seletivo, usando o guia como um filtro ou máscara
criteriosa para escolher apenas as peças relevantes, exemplares, aquelas que ajudem a
corroborar a narrativa temática e as explicações científicas da teoria por trás das coleções (e
que, afinal, justificam a sua coleta e guarda, e toda a missão curadora do museu), para este
visitante especialmente instrumentado a experiência é propriamente a de percorrer uma
exposição didática esclarecedora. Ele não enxerga a pletora transbordante das coleções
indistintas, vê apenas os elementos chaves capazes de compor uma lição fundamental,
enriquecida pela apresentação das evidências materiais originais.
Esta maneira de percorrer o Museu equivale à experiência do que poderíamos chamar de uma
espécie de “exposição virtual”. O guia permite ao visitante imaginar “como seria” a
exposição, ele indica o recorte e a seqüência, com o destaque voltado todo para apenas um ou
outro espécime por vitrine, e o encadeamento conceitual ligando os vários pontos de parada.
Devemos considerar que a experiência dessa visita muito seletiva às fartas galerias do Museu
– e, portanto, também as lições dela aprendidas – não é obviamente a mesma que se
82
experimentaria caso as próprias exposições montadas já se reduzissem estritamente ao que
prescreve o guia: apresentasse apenas os itens por ele indicados, encadeados por etiquetas e
outras explanações que resumissem a teoria que neles se ancora. Mas ao contrário de uma
exposição já “materializada”, aqui ela só existe como que embebida, misturada, mimetizada
sobre o fundo dispersivo e indistinto da coleção completa que se oferece diante dos olhos. O
visitante não se encontra num “túnel” perceptivo, em que apenas lhe é oferecido
sucessivamente, num percurso prescritivo, aquilo que ‘de fato’ merece a sua atenção 45. No
Museu, as galerias estão inundadas de luz e ‘distrações’, os mostruários transbordam em
quantidades dispersivas de itens variados. Apenas um exercício voluntário por parte do
visitante em manter o foco disciplinado de atenção e de uma boa dose de imaginação permite
dar contorno à experiência de uma visita expositiva esclarecida. Assim, é exigido do
interessado em dar os primeiros passos no entendimento da história natural exposta o
treinamento numa espécie de olhar discriminatório, capaz de isolar em um ambiente farto em
variedades apenas os indivíduos que se quer estudar – uma espécie de exercício de ‘coleta
virtual’ empreendida meramente pelo uso deste olhar discernidor.
O que nos interessa aqui enfatizar é que a noção de exposição propriamente dita aparece
apenas sob a forma de um roteiro de visita, um guia com a narrativa acadêmica disciplinar e
uma lista ordenada de indicações a conferir, de ilustrações figurativas dos conceitos
enunciados. Se é possível falar de exposição, ela é inteiramente imaginária. Ela se realiza
através de um passeio indicativo e um encadeamento a serem executados apenas pelo olhar
seletivo do visitante informado através da paisagem vitrinesca plena, contínua, intocável. A
galeria é, por si só, um imenso depósito (assim Roquette se expressou, como já dito acima, a
respeito das bibliotecas sem auxílio ou instruções de uso: “simples depósitos”). Cabe ao olhar
treinado para a visita, a atenção do curioso previamente decidido a perseguir as indicações do
guia, promover o enquadramento e seqüenciamento dos itens relevantes. A visita expositiva
se realiza apenas no travelling informado de um visitante preparado.
O ponto é: o ‘efeito expositivo’ é fruto de mera arte de olhar. Não está explícita, materializada
nos próprios displays e na disposição das galerias. Ela não se apresenta ostensiva, não se
oferece franca ao olhar do visitante ingênuo. A experiência exige o aprendizado e treinamento
45
Como em tantas montagens contemporâneas tipo câmara obscura, em que o ambiente é selado contra toda luz
natural, e pontuado por uma trilha de focos de luz estritos demarcando irrecusáveis nichos que valorizam itens
individuais em destaque absoluto.
83
numa capacidade peculiar de observação, de lida com a extensa coleção e de localização, no
conjunto, apenas dos itens visados.
84
Alter-egos museológicos de Dona Heloisa:
Carlos E. Cummings (1941)
Tratarei agora de um documento chave, mais uma das nossas ‘museografias’ de época, e que
poderíamos bem cognominar – por motivos que espero se evidenciem mais adiante – “Norte é
norte e sul é sul”. Datado de 1941, este documento estava até há pouco completamente
esquecido, perdido para a casa. Veio à luz justo na época em que se constituía o ETC, ao qual
foi encaminhado para exame, como possível subsídio a auxiliar nos estudos de renovação do
MN então em curso.
Inicio pelo relato das circunstâncias sob as quais o documento me chegou, e a minha
progressiva e cumulativa aproximação da sua leitura. Estas contextualizações podem ajudar a
entender o papel do documento na casa, a história nada óbvia deste objeto, e aspectos do seu
destino cuja interpretação permanecem, à falta de documentação assertiva, cercados de
conjecturas. Totalmente esquecido, mas, uma vez redescoberto, sem lugar natural onde se
encaixar, de implicações delicadas, potencialmente embaraçador para imagem da instituição –
o que fazer com ele?
A primeira notícia que recebi deste documento foi após poucos meses de trabalho no
Escritório Técnico. O nosso zoólogo, até então coordenador da equipe ‘de conceito’, acabara
de ser nomeado para o cargo de professor na Universidade Federal Rural – para a qual fora
aprovado em concurso há tempos, antes de se envolver no projeto, mas tivera de aguardar
indefinidamente as burocracias que liberam as vagas. Ele assumiria suas novas
responsabilidades a partir de fevereiro de 2002, e teria de, após um breve período de transição
para transferir as tarefas em curso, se desligar inteiramente do projeto.
Repassamos uma lista de contatos: ele estudara na pós-graduação de zoologia do Museu,
conhecia – sem o antigo coordenador (professor do departamento de vertebrados) e sem o
zoólogo, perderíamos
Helio estendeu-me um pesado volume que se encontrava sob umas pastas na sua mesa,
fechado numa espécie de sobrecapa ou pasta amarrada com cordames. Era um dossiê ou
85
relatório de 1941 a respeito do MN, de quase 300 páginas datilografadas, mais umas 60 fotos
e ilustrações, incluindo 6 plantas baixas dos pavimentos do MN, escrito em inglês pelo diretor
de um prestigiado museu de ciências norte-americano. [57 páginas de fotos, 2 com desenhos,
6 plantas – uma foto para cada cinco páginas de texto]
Ele o recebera diretamente da chefe do Arquivo do MN. Era um achado recente e inesperado,
fruto dos esforços do “Projeto Memória” do MN, que vinha se dedicando a ‘desenterrar’ e a
examinar uma enorme quantidade de documentação até então encerrada num depósito de
‘arquivo morto’ de difícil acesso, num piso intermediário entre o 2º e o 3º pavimentos, no
torreão sul da frente do palácio, na mesma coluna onde funcionava (e ainda funciona) a sala
do diretor. O documento se achava dentro de um envelope sem maiores informações
contextualizadoras. Ninguém sabia exatamente o que fazer com ele, o que poderia significar.
De todo modo, exigia um exame cuidadoso para decifrar-lhe sentido e alcance. Mas tinha
todos os indícios de ser algo importante. Com uma respeitosa dedicatória manuscrita na folha
de rosto “to the Dona Heloisa”, datada de janeiro de 1942, seguia o: “Report to the
Rockefeller Foundation on the Museu Nacional do Rio de Janeiro, Brazil, by Dr. Carlos E.
Cummings, Director, Buffalo Museum of Science, Buffalo, New York”.
Como o ETC, recém constituído, reunia uma equipe multidisciplinar dedicada a repensar o
modelo do MN e, em colaboração com a Comissão de Exposições, formada por
representantes dos setores da instituição, formular um projeto de renovação integral das
exposições, pareceu por bem à equipe do Arquivo Histórico da casa encaminhar o documento
para avaliarmos.
Não havia qualquer tipo de anotação ou marca de leitura no volume do relatório depositado no
Arquivo. Estava tão bem conservado em sua encadernação que sugeria quase não ter sido
manuseado. E por poucos. Quem quer que tenha cuidado do relatório – HAT ou algum
assistente – resolveu não encaminhá-lo depois à biblioteca, após findo o seu uso imediato pela
comissão de reformas, de modo a ficar disponível para consulta por curiosos. Apesar de seu
formato e estilo, e de tratar de assunto de interesse geral da instituição, preferiram mantê-lo
discretamente amarrado dentro de uma sobrecapa, junto aos demais papéis do arquivo
administrativo da direção, e deixá-lo encerrar no arquivo morto.
86
Hélio, nosso zoólogo, indicou-me o pacote. Depois abriu um envelope, vindo de Buffalo e
endereçado a ele, de onde retirou um maço de xeroxes de cartas datadas dos anos 1940,
resposta da bibliotecária de lá à sua consulta por registros arquivados a respeito daquele
pacote. Meses antes ele tomara a iniciativa de escrever ao Museu de Ciências de Buffalo.
Indagou se nos arquivos do instituto havia algum registro, documentação referente à
expedição ao Brasil de 1941 de uma comissão de especialistas de lá para colaborar no projeto
de reforma do museu brasileiro. Uma bibliotecária respondeu por carta em 30 de março de
2001. Anexou cópia xerox dos documentos referentes à visita da comissão que encontrou nos
arquivos: 14 cartas e 1 telegrama trocadas, à época, entre membros do Museu de Buffalo, a
Fundação Rockeffeler, e o Museu Nacional; press-release e 3 notícias de jornal americanos
quando da partida da comissão; informações relativas ao visto de imigração de Cummings e
Clawson.
No Arquivo Histórico do MN, na coleção HAT, encontro tb ofícios e cartas trocadas à época,
relacionadas à vinda da Comissão de Búffalo. (quantas?) Coleção incompleta: em algumas há
referências a outras que não localizei [Apêndice: lista e reprodução.]
Através dessas cartas, depreendo que HAT os convidou, desde que lera o livro recém-lançado
de Cummings, East is Eas and West is West (1941). E que a RF (com quem HAT mantinha
ótimas relações desde a visita do diretor de humanidades, David Stevens, ao Rio no início de
41) intermediou e bancou a vinda de uma comissão com três membros do Museu de Buffalo:
Cummings, Hamlin e Clawson.
Hamlin veio acompanhado da esposa, planejou manter uma estadia de três meses no Rio e
seguir viagem por outros paises da América Latina. Era o presidente da Sociedade de Ciências
de Buffalo, fora presidente da Associação Americana de Museus, e futuro fundador e 1º
presidente do ICOM. Bertha Lutz havia travado ótimas relações com ele nas suas viagens aos
EUA.
Clawson era o curador das exposições de antropologia do Buffalo Museum. Recém admitido,
cria do workshop bancado pela RF. Escreveu um guia das coleções de antropologia e
arqueologia no espírito dos do MN. Nota: mais conhecido por quem lida com antropologia
das imagens e objetos pela presença desta coleção como uma das três grandes presenças da
exposição de Vogel “Art & Artifact”.
87
Na biblioteca do MN encontro um exemplar de East is East, West is West de Carlos
Cummings. A obra resultara da ‘encomenda’ anterior da Rockefeller
ao autor, o comentário crítico da sua viagem e visita às exposições de
Los Angeles e de Nova Iorque de 1939. Retiro-o para leitura, e xeroxo
a ficha de controle da biblioteca, que contem as entradas dos outros
leitores da casa que algum dia tomaram a iniciativa formal de também
retirá-lo: Dulce e Marieta (bibliotecárias), Paschoal Lemme, Bertha
Lutz e Curvello; o último registro antes do meu foi de 1956.
Encontro tb o ‘relatório’ de Hamlin – na verdade um ensaio
especulativo, em que descreve em termos gerais como imagina um
museu nacional adequado ao Rio de Janeiro, sem na verdade se basear na instituição já
existente, suas coleções ou sequer sua sede, ao contrário, adiantando uma receita de como
constituir todo um museu exemplar out of the blue. Ao contrário do volume datilografado de
Cummings, este foi efetivamente publicado, pela gráfica do Museu de Buffalo. Um exemplar
reside esquecido nas prateleiras da biblioteca do MN, sem dúvida enviado por cortesia pelo
autor. E, ao que tudo indica, foi igualmente ignorado pelo pessoal da casa. Lá igualmente um
exemplar do livro de Clawson (que faria mais sentido na biblioteca do PPGAS, mas a
antecede de umas três décadas).
Ninguém dava uso ao precioso achado. (Helio me estendia ele: o que fazer com isso? Ou foi
só quando ele se desobrigou, quando foi nomeado professor da rural, como quem transmite
um legado, um tesouro ainda intocado, e na verdade que não se tem muita idéia de como usar,
se dá pra usar.) Era um enigma difícil de descascar.
Inicialmente, apeguei-me a ele por um motivo bem particular: ele prometia fornecer-me um
retrato ‘imparcial’ (sem esconder as vergonhas) do estado crítico do MN imediatamente antes
de fechar as portas para a reforma – que eu poderia confrontar com a descrição das exposições
já reinauguradas apresentada por conferencia de LCF e nos relatórios de JCMC. Ele fornecia
as plantas baixas dos três pavimentos do Museu, assinalando em cada cômodo qual a sua
finalidade de então, além de outras três com as propostas do autor, redistribuídas as suas
funções. Considerando que o relatório anual da direção de 1963, com as reformas e
88
exposições plenamente consolidadas, também fornecia as plantas baixas funcionais dos três
pavimentos, passava a ter os elementos básicos para comparar os diferentes programas
arquitetônicos que o Museu já operara. Além disso, o documento vinha recheado de fotos que,
à primeira impressão, julguei ingenuamente que retratassem (ao menos algumas delas) a
aparência das exposições de então. (Não era o caso em absoluto; esta dissimetria merecerá um
exame mais adiante.) Assim, independente do que permitisse entender dos processos
institucionais em curso no planejamento da reforma de HAT, independente também das
recomendações que porventura sugerisse para o Museu e se elas haviam influenciado ou não
no que foi efetivamente realizado, o relatório tinha um valor manifesto como retrato
museográfico instantâneo, em um momento de limiar crítico, no oco da onda.
Depois, após algumas leituras, encontrei naturalmente mais nele de interesse. A cada novo
exame um novo patamar se desvelava. Cheguei a apresentar minhas impressões em eventos
acadêmicos46. Há inúmeras observações pontuais relevantes, mas, no geral, a maior parte das
críticas como das recomendações didatizantes acompanham o tom da literatura museológica
da época, e não pareciam trazer maiores surpresas.
Ele descreve o MN como se um relato de visita, para a qual, o tempo todo, nos convida a
compartilhar. (Faz eventualmente menção aos comentários mordazes de um companheiro de
visita, mas sem identificá-lo47. Pode ser Clawson, pode ser qualquer um, ou ainda mera figura
retórica). Os armários, a superlotação, as lacunas, a falta de sensibilidade para itens com
densidade histórica.
No entanto, o que mais me chamou a atenção o que me pareceu ser uma tensão do autor entre
o museólogo e o naturalista, expressa nos dois momentos do relatório em que ele se confessa
admirado: o do testemunho da reação dos visitantes dominicais logo no saguão de entrada do
Museu, ao encontrarem o Bendegó; e o seu encontro com um espécime de tatu, na última sala
do seu percurso.
46
Na Reunião Brasileira de Antropologia de Olinda em 2004; na Reunião da Sociedade Brasileira de História da
Ciência, em Belo Horizonte em 2005; na Jornada dos Alunos e como monografia de curso no IFCS em 2005; em
seminário na Casa de Rui Barbosa em 2006.
47
E.g. à p. 25, “As my companion on one particular Sunday remarked, ‘These people are very anxious to
look at this material, but nobody seems to know just where to begin.’”, ou à p. 36, “[…] it could not in any sense
be said that prejudice underlay the comment that my companion made as we were watching the 'crowds' in these
two halls, when he remarked, ‘Most people can't get out of these rooms quick enough!’”
89
Neste meu comentário ao relatório de Cummings, colhi seletivamente apenas alguns breves
momentos dos que nos contam os documentos da visita da comissão de Buffalo. Apresento
minha leitura em três atos: a surpresa inicial do consultor diante do comportamento do
público ao entrar no museu; em segundo lugar, as várias críticas, e, posso dizer, as decepções
do consultor com a disposição das coleções na exposição, especialmente quanto ao saguão de
entrada do palácio; por fim, a surpresa final do consultor com um achado casual durante o seu
survey das coleções, que se passa na última sala de depósito do último andar. O encontro do
público com o objeto, ao olhar do estrangeiro; o parecer estrangeiro sobre os objetos dispostos
para o público; o encontro privado do estrangeiro com o objeto.
[ATO 1] “This strange black object”
Num domingo típico do mês de setembro de 1941, Carlos E. Cummings postou-se no hall de
entrada do Museu Nacional do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista, observando intrigado
o comportamento dos visitantes anônimos que entravam na casa. Constatou que o público
regular do fim de semana rodeava animado o enorme pedaço de “rochedo” metálico exposto
no centro do saguão, acumulava-se à sua volta como que capturado pelo magnetismo natural;
depois do deslumbramento inicial, as pessoas começavam a procurar avidamente informações
sobre o colosso, lendo tudo que estava inscrito nos pilares “semelhantes a pedras tumulares”
que o sustentavam, caçando qualquer outra etiqueta ou cartaz ao alcance da vista.
A primeira coisa no hall de entrada a atrair a atenção do visitante, assim que
ele adentra a porta, é o enorme meteorito Bendegó, um negócio colossal
pesando algo acima de cinco toneladas, suportado por três pilares de mármore
inscritos, semelhantes a lápides, no centro do recinto. [...] Num dos domingos
que o autor passou no Museu observando a reação dos visitantes, uma hora
inteira foi devotada a monitorar a conduta inicial dessa boa gente assim que
entravam pelo lobby. Como resultado dessa observação, o autor foi obrigado a
rever completamente uma concepção antes firmemente estabelecida a respeito
de legendas e público. Pois, contradizendo toda a experiência prévia, a grande
maioria dos presentes cuidadosamente perscrutava, e aparentemente lia com
avidez, cada palavra de material descritivo que conseguiam encontrar! Foi uma
experiência impressionante de reação ao primeiro contato. (p28-30)
A surpresa do Dr. Cummings provinha de constatar a sede daquela gente por informações e da
sua disposição espontânea pela leitura de textos descritivos, o que, baseado na sua experiência
90
de 30 anos como diretor do Museu de Ciências de Buffalo (NY, USA), julgava absolutamente
fora do normal. Para ele, o meteorito conhecido como Bendegó impressionava pelo
gigantismo e bizarrice, era uma “curiosidade” espetacular digna de constar em listas de
recordes, mas quase não contribuía com qualquer ensinamento útil para aquelas pessoas, não
ajudava a enquadrar o contexto da narrativa expositiva que se seguiria, não servia como
apresentação geral da exposição. Para ele, o formidável Bendegó era um petisco de entrada
atraente mas inapropriado, que desperdiçava a energia inicial do visitante com trivialidades.
Deveria, em última análise, ser dali removido.
Cummings, biólogo com treinamento em anatomia comparada, encontrava-se em missão
oficial, convidado pela diretora da casa, Dra. Heloisa Alberto Torres, incumbido de avaliar o
espaço e as exposições do museu, traçando diagnósticos e sugerindo recomendações para a
sua completa remodelação. Na sua análise final, que compõe um detalhado relatório enviado à
diretora meses depois, Cummings condena vários outros dos objetos mais destacados,
tradicionais e icônicos das exposições do Museu, recomendando a sua remoção de posições
de destaque, ou mesmo a sua exclusão do espaço de apresentação pública, destinando-os ao
depósito de curiosidades ineficazes ou inapropriadas.
Muitas das recomendações de Cummings destoavam severamente de opiniões consensuais na
curadoria da casa. Afinal de contas, aqueles objetos que ele descartava sem pestanejar eram
considerados por muitos mais que peças extravagantes de coleção, meramente passíveis de
serem eleitas, entre outras, para expor; aqueles objetos confundiam-se com a própria imagem
do Museu – sem eles, não haveria MN, as people knew it. Menos pelos seus atributos físicos
ou “naturais” que pela “biografia” própria daqueles objetos nas coleções da casa: a história de
como haviam sido introduzidos ou produzidos no Museu, em que circunstâncias e por quem,
os papéis que desempenharam em momentos cruciais da história da casa, e, por extensão, da
formação das ciências naturais no país. Tais objetos não propriamente pertenciam ao Museu:
constituíam o Museu, eram tão habitantes quanto componentes, quase tão característicos do
ambiente quanto os elementos arquitetônicos, digamos, a escadaria de mármore, o Jardim das
Princesas, as paredes dos torreões cimentadas por óleo de baleia. É quase como se eles
houvessem sido também imaginariamente “tombados” em 1938 junto com o palácio.
[ATO 2] “Afora a associação histórica, a ciência nada perderia se isto fosse mandado
para o depósito”
91
O relatório de Cummings apresenta um diagnóstico geral da instituição agudamente crítico,
mas otimista quanto às possibilidades de resolução. O exame das coleções em exposição
revela um excesso heterogêneo de materiais, alguns conjuntos de grande valor, muitos de
eficácia duvidosa, e vários condenados ao descarte. Uma critica ubíqua é da superpopulação
das vitrines, com exemplares redundantes das mesmas espécies, como se ainda não houvesse
se instaurado na casa a cisão entre os espaços de exposição e os de reserva técnica. Deplora
também a qualidade dos espécimes taxidermizados, que considera montados com técnicas
anteriores às introduzidas por Akeley no início do século e que revolucionaram a arte.
A grande falta que acusa é a da precária representação dos motivos regionais, característicos
dos recursos da nação (p80). O pouco uso do artesanato dos povos nativos, das paisagens
geográficas, a pouca atenção e sistematicidade na apresentação dos elementos da fauna
endêmica do país. Apesar de ter visto representações desiguais e lacunares de animais
exóticos de outros continentes, procurou e não encontrou nem o tamanduá bandeira nem o
tapir. De todas as ausências, a que se lamenta mais é a da diversidade de aves, que, segundo a
sua imagem, exercem, em toda exposição de história natural, o papel que os violinos
desempenham em uma orquestra.
Mas há uma classe de objetos, em geral ocupando posições de destaque na velha exposição,
contra os quais Cummings volta todas as suas energias persuasivas de educador e museólogo.
São peças que conquistaram o seu lugar cativo na velha exposição devido a associações
históricas, ou ao seu caráter excepcional, bizarro, monumental, numa palavra, peças que
recendiam ao velho grupo das “curiosidades”. Cummings é um partidário incondicional da
moderna museologia, que pensa a exposição como uma mídia educacional, e define seus
elementos estritamente pelo seu valor instrutivo e didático; com o suporte, num segundo
plano, de um critério estético, dos arranjos agradáveis à sensibilidade. A educação e a estética,
que podem associar-se bem; mas evitar a historicidade e o maravilhoso, que concorrem e
prejudicam a transmissão da mensagem didático-científica.
Os MHN parecem estar desde sempre (enquanto museus) tentando exorcizar o espectro de
origem nos gabinetes de curiosidade e nas coleções principescas. Todos os motivos que não
convergissem para a finalidade educativa eram tomados ora como “desperdício” do interesse
92
do público, ora como simplesmente destituídos de sentido e eficácia. É o caso do charme
alienante dos meteoritos gigantes da entrada: capturam a curiosidade e a “sede de legendas”
inicial do público, mas as consome em motivos fúteis.
O assunto pelo qual ficavam tão absorvidos era: quanto este estranho objeto negro
pesava, onde e quando foi achado – de pequeno interesse geral ou qualidade
intelectual. [...] Parecia haver um desperdício de good material aqui. Toda essa gente
estava fresca, cheia de curiosidade, aparentemente afoita para aprender, e sobretudo,
irradiando entusiasmo. Such hungry folks merecem ser servidos com algo substancial e
relevante, and closer to home; e quanto mais ponderávamos sobre a situação
gradualmente tornou-se claro que a exposição de um museu nacional deste porte,
numa posição de tal preeminência, deveria enfatizar e estabelecer na mente do
observador a importância do país em que vive, algo essencialmente brasileiro, grande,
abrangente, e produtivo, e o seu lugar na Terra. [“The Great Globe”] (p92-3, grifos
meus)
Já quanto às peças que necessitam de mediações históricas para encontrar o seu sentido, essas
Cummings – aliás, ao contrário nisso de Roquette e colegas – não tem a menor reserva em
sugerir o descarte. E lá se vão a estátua do “Buono Fácio” (sic, p33), da coleção egípcia, do
botocudo.
As recomendações de Cummings para o lobby de entrada do MN começam retirando tudo que
lá está. A começar pelo modelo de índio botocudo e o bloco de carvão mineral do sul do país.
Destino de ambos: na melhor das hipóteses, o depósito.
“É muito pouco desejável que a grande estátua do índio e o pedaço de carvão
atualmente em exposição no lobby permaneçam em lugar tão proeminente. Aliás,
dificilmente conseguimos imaginar qualquer razão para que estejam sequer em
exposição.” (p98, grifos meus)
“Exceto por essa associação histórica, não há nada de particularmente chamativo ou
estranho nesse material. Até onde o autor está concernido, não representaria nenhuma
grande perda para a ciência se isto fosse recolhido ao depósito, e o seu lugar fosse
ocupado por material local.”
[A sala dos Embaixadores está] displaying a miscellaneous collection of ancient
Egypt, including a goodly number of mummies and mummy cases, the greater part of
which, we are told, was purchased by Dom Pedro the First, in 1824. Apart from this
historical association, there is nothing particularly startling or strange about this
93
material, and as far as the writer is concerned it would be no especial loss to science
if it were put in storage, and its place taken by local material. (p38-9, grifos meus)
Quanto aos grandes meteoritos, retirá-los do palco principal; reservar-lhes papel mais
modesto na sala lateral.
The big meteorite is another matter, even if it is now very elaborately set up on inscribed
marble pillars having very much the appearance of gravestones in an old cemetery. The
proper permanent disposal of these two large meteorites is a good deal of a problem, and
we will leave it for a moment to simmer. They are of too much interest to be placed in
storage, and their very considerable size makes them really overpowering in the average
room. (p98)
O novo cenário sugerido para o lobby incluiria: a construção de um volumoso globo terrestre
para substituir o spot então ocupado pelo indolente meteorito; mapas das regiões do país nas
paredes; conjuntos variados e seletos de animais e, sobretudo, pássaros típicos da fauna
nacional, regularmente substituídos, e, finalmente, uma vitrine com instrumentos atmosféricos
(!) – nos quais ele realmente crê ser não alvo de um interesse peculiar e culturalmente muito
específico mas universalmente compartilhado, como se inscrito na natureza humana:
There is of course no subject in the world of more universal interest than the weather, for
every body has to live in it, and every body talks about it […] (p96)
Cummings demonstra dificuldade em considerar a relevância de critérios históricos, ou em
valorizar as peculiaridades de formação do imaginário cultural local. Entenda-se bem: não é
que não chegue a reconhecer a presença de aspectos históricos legítimos; ele não ignora que,
eventualmente, esses fatores venham a influenciar decisões de escolha de peças. Chega a
indicar, em alguns casos, a sua ciência e concordância quanto à significância histórica de
determinada peça. É o caso do manto havaiano; também (um tanto mais relutante) quanto à
coleção egípcia. Mas é como se fosse um ônus inevitável que o curador científico aprende a
pagar, um jogo diplomático de tolerância e pragmatismo sócio-institucional. O fator histórico
aparece como uma espécie de incômodo ou interferência ‘cultural’ com que é preciso
conviver, desde que ele não chegue a ofuscar ou atrapalhar a encenação da mensagem
didático-científica principal. Pode vir a ser uma solução de compromisso aceitável desde que
94
o critério ‘científico’ de eleição cenográfica mantenha-se hegemônico na partilha. Afinal, esta
preeminência é o que faz de um museu museu de ciências.
Os limites desta postura de “tolerância restrita” torna-se explícita quando o que está em jogo é
uma posição chave do espaço expositivo. O saguão de entrada do Museu, por exemplo. Em
um caso como esse, Cummings parece “fazer ouvidos de mercador” quanto às ressonâncias
históricas de qualquer que seja a peça, por mais densas que aquelas sejam. Num spot chave do
percurso expositivo como esse, não há chances para aceitar botocudos nem bendegós.
Cummings também demonstra pouco caso, ou mesmo recusa, quanto a peças únicas, objetostestemunho carregados de significância individualizada. O que parece ecoar as análises de
Clifford (1985) quanto à tensão valorativa entre a classificação e a preferência singular48. Para
Cummings, a escolha do objeto ideal de exposição deve obedecer a critérios estritamente
didáticos, complementados por concessões de apelo estético. Quando se elege um indivíduo
para representar o patrimônio nacional, ele deve apresentar-se apenas enquanto espécime
exemplar (e substituível), uma amostra de toda uma classe de seres naturais.
Em suma, na sua cartilha o privilégio deve ser dado não ao extraordinário, mas ao
esteticamente atraente; e não ao historicamente marcado (dotado de vínculos significativos
com eventos de um passado compartilhado), mas ao didaticamente elucidativo (dotado de
vínculos informativos com conhecimentos universalizantes).
[ATO 3] Epifania do pequeno tatu
Há no entanto uma passagem do relatório que parece trair todo o projeto universalista de um
scholar até então irreprochável. Ele vagava no terceiro e último pavimento, onde se
encontravam expostas todas as coleções de zoologia, incluindo as salas dos ‘esqueletos’, com
a baleia jubarte do tempo de Pedro II pendurada no teto. Ao completar o survey da última
galeria dos vertebrados, uma sala há tempos interditada ao público e que adquirira ares de
48
“The collection itself, its taxonomic, aesthetic structure, is valued. And any private fixation on single objects is
negatively marked as fetishism.” Adiante cita Susan Stewart: “The boundary between collection and fetishism is
mediated by classification and display in tension with accumulation and secrecy (1984: 163).” (Clifford,
1985:239).
95
depósito, sua atenção é capturada por um vidro de formol em meio a inúmeros outros
empilhados no fundo do ambiente. Ali conservado, residia o corpo inerte de um espécime
miúdo, sem maiores atrativos. Surpreendentemente o autor nos revela que, então, um
acontecimento importante se dá na sua vida:
Nesta sala, a descoberta de maior interesse para o autor foi a de menor tamanho, um
estranho e truncado tatuzinho, um diminuto edentado da Argentina, de
aproximadamente cinco polegadas. Esta criatura, um verdadeiro tatu com o corpo
coberto de placas duras, estava preservado em álcool, e muito bem apresentado,
mesmo estando no líquido, o pelo sedoso nas laterais e membros, e uma placa terminal
peculiar no feitio de um pires, que cobre a extremidade posterior e serve como âncora
para o rabo em forma de colher. A descoberta deste pequeno camarada
apropriadamente conservado foi um acontecimento importante na vida do escritor, já
que era um dos poucos remanescentes na lista daqueles sobre os quais já lera mas
nunca vira, em quarenta anos de lida com museus.
The discovery of this room which was of the greatest interest to the writer was about
the smallest in size, an exquisite little truncated armadillo, a tiny edentate of
Argentina, about five inches long. This creature, a true armadillo with the body
covered with hard plates, was preserve in alcohol, and displayed very well, even in the
liquid, the silky hair on the sides and limbs, and the peculiar terminal body plate,
shaped like a saucer, which covers the posterior end and serves as an anchor for the
spoon-shaped tail. The discovery of this little fellow in the case was an important
event in the life of the writer, as it was one of the few remaining on the list of those
read about but never seen, in forty years of museum work. (p57-8, grifos meus)
Um exemplar de uma espécie que ele nunca havia visto mano a mano, apesar de conhecer de
livros. Preencheu mais uma das poucas lacunas restantes da sua checklist de naturalista. Num
inesperado golpe de sorte, obteve uma figurinha que há muito faltava no seu álbum de
testemunhos diretos. Mas o valor desta descoberta só faz sentido para um genuíno naturalista.
É “tara” de colecionador. Guardadas as proporções, os mecanismos de valoração deste
“achado” estão justo do lado dos critérios que o autor costuma desdenhar: o encontro casual
com a curiosidade, ser surpreendido pelo caso raro, o exemplar excepcional. O armadillo
disparou a sua armadilha. Numa distração do educador, o curioso naturalista fora capturado.
Ao fim de um mês, Cummings deu por encerradas as suas investigações, recolheu suas
anotações de campo e voltou para casa. Quanto ao Museu, fechou as portas ao público (e por
seis anos) no dia seguinte ao da sua partida. Estavam iniciadas as reformas gerais, que só se
completariam quase duas décadas depois. Cummings retornou para a cadeira de diretor do seu
96
museu de ciências em Buffalo sem conseguir entender a dinâmica do interesse febril do
público pelo bendegó. Nas suas palavras, o seu:
“apelo universal é difícil de explicar, já que é de se duvidar que a grande
maioria dos presentes tenha qualquer idéia de que um meteorito é uma ‘estrela
cadente’, ou por que”.
“universal appeal is rather hard to explain, as it is very much to be doubted
that the great majority of those present had any idea that a meteorite was a
"fallen star," or why”.
O grau da sua incompreensão, como das suas desconfianças, talvez seja comparável com o
que provavelmente atingiria qualquer um desses visitantes comuns se algum deles, perdido
acidentalmente no labirinto dos corredores do último pavimento, chegasse a testemunhar o
entusiasmo de Cummings ao deparar-se, fuçando entre pilhas de espécimes em conserva da
sua discovery room, com o – para quase todo mundo, banal, para outros poucos, raro e
primoroso – exemplar do pequeno tatuzinho argentino imortalizado num vidro de formol.
FOTOS & TEXTOS
Para lá da análise do conteúdo propriamente do relatório, isto é, as impressões e sugestões
oferecidas pelo autor, a construção formal do documenta guarda uma peculiaridade talvez não
destituída de significados. É por que possui uma dissimetria entre o texto datilografado e as
fotografias em páginas intercaladas. Entre o conteúdo verbal e o visual. E, tratando-se de
museus, sabe-se que esta não é de modo algum uma distinção banal – tenha-se em mente,
p.ex., as infindáveis discussões sobre o papel relativo do objeto e da etiqueta; do efeito de
ilustração e de contextualização.
A curiosa combinação de um texto que descreve minuciosamente as instalações das coleções
do MN, entremeadas por fotografias dos arranjos de outra instituição, o Museu de Ciências de
Buffalo. No início, isto provocou-me frustração logo que tive acesso ao documento. Ao notar
que o volume incluía inúmeras fotos entremeadas com o texto, esperava que, ao menos em
parte, mostrassem as salas do MN descritas no texto, registrassem o visual bruto do estado da
casa naquele momento. Seria de saída a fonte histórica documental mais importante de todas a
97
fornecer subsídios documentais para a reconstituição do estado das exposições do MN no
período.
Desde o início tive dificuldade em entender a opção do autor em promover esta associação
dissimétrica de materiais de origem diversa. Em um relatório crítico sobre a instituição, de
exame e avaliação dos recursos seguida de recomendações, era de se esperar uma
documentação inicial completa, inclusive fotográfica, sobre o estado das instalações. Aliás, a
falta dessas imagens é justamente apontada por Stevens, diretor da Fundação Rockefeller,
como uma carência do relatório. Em carta a Cummings, ele lamenta a ausência de fotografias
do local ilustrando as descrições do texto [parece q não é bem assim!!], o que tornaria o
documento muito mais útil para uso de terceiros, como livro de orientação no treinamento de
pessoal sobre museus (como aliás fora o seu trabalho anterior, de 1940) [carta 23/3/42]?
Só pude entender melhor o hibridismo texto/fotos do relatório – descrições do MN
‘ilustradas’ por (ou contrastadas com) imagens do M. Buffalo – quando considerei que o
relatório não fora escrito propriamente para a Fundação Rockefeller, ou para ser reutilizado
como textbook de “estudo de caso” nos treinamentos de formação museológica de Buffalo.
Ele não escreveu para americanos, não era um relato descritivo do MN para quem não o
conhecesse. Cummings não veio espionar ou inventariar para os arquivos americanos de
alguma ‘agência de inteligência mundial de museus’; veio catequizar, ensinar como se faz49.
O seu parecer era dirigido às pessoas da casa, aos donos e responsáveis pela reforma do
instituto. Compartilhou suas opiniões diretamente de diretor para diretor. O relatório foi
confeccionado para os olhos de “Dona Heloisa”.
[ver carta de 26/3/42]
Cummings, respondendo a David em 26/3, chama HAT de “the Dona”, e se refere ao
sejour no MN de “the Rio adventure”. Nesta carta, ele declara que escreveu o relatório
para os que já conhecem o MN – talvez pq imaginou como leitores apenas David, que
já lá esteve, e a própria Dona (quanto à visita de David Stevens ao MN, ela é também
confirmada pela carta do seu assistente, Marshall, a Hamlin, de 30/4/41).
49
Assim, o seu relatório não foi concebido “para americano ler” (no sentido em que se diz de algo feito ‘apenas
para inglês ver’); embora, em outro sentido, as suas recomendações sem dúvida fossem para preparar um museu
tropical tipicamente “para americano ver” (i.e., bem ao gosto ianque de então, seguindo as prescrições em voga
na museologia norte-americana, e, aliás, calcado no modelo e êxito do seu próprio museu).
98
DE DIRETOR-VIAJANTE PARA DIRETORA-LEITORA
“Literature alone will not resolve everything […] [I] would greatly appreciate the
coming of a master specialist in Museum organization”
[carta de HAT a David Stevens (Rockefeller Found.), 23/4/41]
A visita e estadia da comissão de Buffalo, e, especialmente, as impressões recolhidas por
Cummings e apresentadas à diretora no seu relatório, mantêm uma relação de analogia com as
tradicionais viagens de recolha de impressões sobre os grandes museus, de modo a formar
opinião e qualificar escolhas antes de empreender um replanejamento do próprio museu. Já
mencionei como tais viagens de ilustração prévia – espécie de ‘naturalista visitante’, ou
‘museólogo viajante’ – constituem um expediente canônico e recorrente, em geral
empreendidas pelo próprio diretor (ou algum naturalista qualificado, que viaja como
delegado) de um museu logo antes de iniciar uma grande reforma em suas instituição. Para
nós, o caso paradigmático é a expedição à Europa de Lacerda em 1911, acompanhada por
Roquette, e seguida em paralelo por Miranda Ribeiro.
Por outro lado, HAT é, por excelência, aquela que não viaja. Refiro-me, está claro, à viagem
de familiarização com os museus estrangeiros, de maior prestígio, à viagem de formação
museológica. Mas mesmo quanto a viagens de campo, HAT pode ser caracterizada como
aquela que pouco viaja50.
Além disso, o prolongado período em que exerceu o cargo de diretora impediu-a de dedicar-se
à pesquisa e privou-a das viagens. Lançou mão, por outro lado, de expedientes alternativos,
como o da contratação de profissionais de coleta – um análogo tardio da figura do naturalistaviajante, dedicado exclusivamente à coleta e à remessa de coleções para serem estudadas por
outros no museu, que operava ainda nas primeiras décadas do século. Neste caso, HAT
encontra um mecanismo legítimo de exercer uma espécie de ‘delegação de viagem’, que a
dispensa da jornada sem privá-la dos seus frutos finais mais ‘palpáveis’.
50
Sim, é sabido que HAT empreendeu algumas viagens para trabalho de campo de relativa envergadura. Três, na
verdade. O que não chega a fazer dela uma pesquisadora de campo dedicada.
99
Mas volto ao meu ponto: HAT é, por excelência, um caso atípico, já que é uma diretora
empossada com plenos poderes, e diante da tarefa de empreender uma reforma completa no
maior museu do país, e no entanto, não viaja. Não parte urgente em viagem de atualização,
para conhecer o estado-da-arte nos maiores e mais prestigiosos museus do mundo, antes de
elaborar o seu projeto de renovação. Ela se mantém plantada aqui, lidando com uma crise sem
precedentes, e não pode se dar ao luxo de ausentar-se para ilustração pessoal. Ela é a única
timoneira na tempestade, e não pode faltar no posto de comando. Ela precisa improvisar com
o que está ao alcance. Ela lê tudo o que pode a respeito de como se faz um museu moderno. E
se encontra com o livro de Cummings.
Pois a visita de Cummings, admitidas algumas transformações no modelo, poderia
corresponder ao análogo de uma tal expedição para HAT. Em lugar de partir para longe, num
cruzeiro de survey para tomar ciência dos modelos de alhures, dos quais copiar, adaptar,
reinventar, HAT teria preferido importar o olhar de um especialista viajado de além-mar para
avaliar e aconselhar o que já se tinha por aqui.
Um expediente análogo encontra HAT para treinar especialistas locais em etnologia: ao invés
de enviar estudantes brasileiros para estágios no exterior, e considerando que o trabalho de
campo pertinente teria de ser feito nos sertões de cá, empenhou-se em criar condições
favoráveis à vinda de jovens antropólogos de brilho no departamento de Boas em Columbia,
providenciando as (dificultosas) autorizações que permitissem a sua pesquisa de campo no
Brasil, com a contrapartida de permanecerem um ano ensinando e treinando etnólogos locais.
(Carta de HAT a Boas convidando).
Seguindo nossas imagens , o diretor viajante aqui sofre um desdobramento, onde Cummings
ocupa o lugar de alter-ego de uma imaginária HAT-viajante.
Em lugar de partir em excursão para observar e coletar modelos de outros museus, a fim de
avaliá-los, adaptá-los, formular uma síntese própria a implementar na sua instituição, HAT
requisitou um especialista experiente, condutor de museu estrangeiro e habituado a visitar
seus congêneres e treinar especialistas na área, para fazer a viagem reversa em seu lugar. Ele
lhe empresta duplamente seu olhar de estrangeiro viajado: descreve-lhe suas impressões, o
modo como enxerga o que encontra na casa (cujo aspecto visual era por demais familiar a
HAT, o que dispensa fotos comprobatórias); e, reciprocamente, mostra-lhe imagens que
100
considera exemplares, trazidas do seu museu de referência (o que era uma forma de fornecer a
HAT, de forma complementar, elementos para conhecer melhor que tipo de olhar possuía esse
estrangeiro – quais seus modelos, por que ideais museográficos se norteia). Oferece a HAT
assim o comentário crítico enquanto passeia o seu olhar de par estrangeiro durante uma
meticulosa e prolongada visita ao museu da anfitriã; e, simultaneamente, presenteia-a com
uma sugestiva coleção de cartões postais de sua terra natal, que são como glimpses de uma
visita ao seu museu canônico estrangeiro – exemplos de modelos de referência a partir dos
quais se pautar.51
Há, naturalmente, complementaridade entre exame do estado (descrição verbal) e sugestões
de reforma (em que as fotos servem como referência, exemplo de solução, modelo de
possibilidade).
A carta de David Stevens (diretor de humanidades da Rockefeller Found.) de 23/3/42 termina
mencionando a sugestão de vinda de HAT aos EUA, “sometime in the future”. Ele procura
reforçar ou estimular o desejo de que ela venha. Entre os motivos, aponta: troca de espécimes;
retribuir as gentilezas que ela dispensou aos visitantes americanos; e – o q nos interessa – a
oportunidade dela conhecer “some of the places and objects that Dr. Price undoubtedly keeps
on describing”. Heloisa é aquela que nunca viaja, não conhece os lugares pessoalmente –
embora conheça todos por correspondência.
Ela não esteve em Columbia, nem Chicago, nem Washington. Ela não foi verificar os museus
de Paris, Londres, Berlim. Nisto, ela é o antípoda completa de Bertha.
UM VISITA NÃO MAIS MENCIONADA
Cummings, digo, o seu relatório, teve o mesmo destino do de Bertha: o esquecimento
deliberado, o silenciamento a respeito de, a renúncia coletiva a qualquer menção, a ausência
de crédito. Não encontrei qualquer menção, qualquer comentário posterior nas anotações de
HAT externando alguma opinião, ressaltando qualquer aspecto, qualquer reação às propostas
– ou mesmo à estadia do visitante. Não há também qualquer tipo de anotação ou marca de
51
[Cummings é o diretor de museus que já viajou todo o mundo, conhece todos os museus, só não conhece o do
Rio de Janeiro. Ele só ainda não viu o tatuzinho. Dona Heloisa, por seu lado, é como um tatu: não sai da toca.]
101
leitura no volume do relatório depositado no Arquivo. Ele está tão bem conservado em sua
encadernação que sugere ter sido pouco manuseado. E por poucos. Tampouco o
encaminharam depois à biblioteca, de modo a ficar disponível para consulta por curiosos. Foi
encerrado, amarrado dentro de sua sobrecapa, junto aos papéis do arquivo administrativo da
direção.
É, sim, possível que exista, e algum dia venha à tona, algum papel, aide memoire, carta
íntima, qualquer testemunho em que HAT abra o jogo quanto ao que se passou com a visita
da comissão de Buffalo, que impressão deixaram ao final. De fato, examinei só fração dos
documentos legados de HAT. Mas fui guiado pelos levantamentos que outros pesquisadores
já fizeram antes de mim. E tudo o que encontrei foram umas poucas cartas formais que troca
com o diretor da Rockefeller, agradecendo a vinda da comissão, ou notificando o recebimento
do relatório. Quanto ao conteúdo do relatório, silêncio absoluto.
Também não encontrei qualquer comentário a respeito da impressão que HAT teve do próprio
Cummings, ou de como correram as relações entre ambos. (Isto não seria motivo para
estranhamento, não fossem as várias menções às boas impressões que Stevens e HAT tiveram
um do outro nas cartas trocadas por HAT com Galvão ou com o casal Wagley)52.
Além disso, o relatório, um estudo de caso curioso redigido com esmero, não foi publicado –
o que me parece bem poderia ter acontecido. Considere-se que foi o que ocorreu com a
‘encomenda’ anterior da Rockefeller ao autor, o comentário crítico da sua viagem e visita às
exposições de 1939, EisE, WisW. Note-se igualmente que o ‘relatório’ de Hamlin – na
verdade um ensaio especulativo, em que descreve em termos gerais como imagina um museu
nacional adequado ao Rio de Janeiro, sem na verdade se basear na instituição já existente,
suas coleções ou sequer sua sede, ao contrário, adiantando uma receita de como constituir
todo um museu exemplar out of the blue – foi efetivamente publicado, pela gráfica do Museu
de Buffalo. Um exemplar reside esquecido nas prateleiras da biblioteca do MN, sem dúvida
enviado por cortesia pelo autor. E, ao que tudo indica, foi igualmente ignorado pelo pessoal
da casa.
Adianto algumas hipóteses especulativas quanto às razões do seu ‘banimento’:
52
Especulação: resta a possibilidade de que HAT tenha considerado Cummings um dos ‘americanos que não se
adaptam ao brazillian way’, mais um ‘granfino’ ao modo de Lipkind, como nos indica Correa (**)
102
•
A descrição que faz das condições lamentáveis em que se encontrava o museu, do
abandono das coleções, somada às suas críticas à baixa qualidade das peças
taxidermizadas e à sua insensibilidade ao desvalorizar elementos de importância
histórica, tornaram a sua versão inapropriada, indevida para divulgação.
•
Tal perspectiva inadequada face ao museu pode ter sido considerada indicador de que
Cummings, afinal, não entendeu o espírito do MN, o que torna suas propostas
inválidas – condenando o seu relatório a não ter efetiva serventia, ser deixado de lado
e não levado em conta nas decisões da reforma
•
Uma variante é que as sugestões pertinentes que se encontram no relatório, e que
eventualmente foram seguidas (como p.ex. a concentração das exposições no segundo
andar e nas salas ao redor da escada de mármore), embora apresentadas como se de
sua autoria, já seriam cogitadas pelos da casa antes de sua chegada, tendo-lhe sido
apresentadas previamente. Ele meramente as teria incorporado ao seu corpus de
recomendações, ou as assumido como pacíficas.
•
Resta cogitar que, de um modo mais abrangente, eles simplesmente não tenham se
dado bem pessoalmente: HAT pode tê-lo considerado um esnobe, granfino (como
qualificou Lipkind, sic Correa), alguém que não se adaptou ao ‘brazillian way’
(poderia ser um dos americanos referidos no comentário de HAT a respeito dos
constrangimentos de receber scholars prestigiosos – na carta de consulta quanto ao
envio de uma delegação do Smithsonian, Cf Correa). Note-se como ela queria se livrar
de Clawson após alguns meses de oficinas de montagem de vitrines, e cuja
permanência, após pouco mais de dois meses (de uma previsão inicial de um ano de
permanência), ela passara a considerar sem mais serventia (carta de 19/11/41 para D.
Stevens, dir. da Rockefeller F.).
A expectativa de HAT era q ele passasse alguns meses, talvez 6, acompanhando os momentos
decisivos da reforma. Em vez disso, ele espia o que se passa na casa por meras 4 semanas, e
se manda. Deixa Hamlin fazendo turismo, e um técnico em montagem de vitrinas, dublé de
antropólogo, para estagiar por um ano.
A expectativa com a permanência e engajamento de Cummings ela o sugere na carta a
Stevens (23/4/41), quando revela seu desejo da colaboração de um “master specialist in
Museum organization” americano, e de q havia ficado muito impressionada com o livro de
103
Cummings. Já que ela não viaja, lê de tudo o que pode a respeito de museus. Mas o MN
“presents so many problems that literature alone will not solve everything”. Nesta carta, HAT
deixa patente que não considera haver, nos quadros brasileiros, ninguém capacitado à altura
do desafio que a renovação do MN exige. (Nisto, podemos antes de tudo incluir Paulo e
Bertha, os mais capacitados na casa a exercer esta função; depois da decepção com a
colaboração ‘importada’ from USA, HAT parte para conseguir transferências de técnicos em
educação de outros órgãos, como Paes Lemme, Sussekind de Mendonça, Starviarski).
A carta do assistente de Stevens, Marshall, de 30/4/41, a Hamlin, propondo a ida Cummings
ao Rio como consultor, tb estima uma permanência de seis meses. HAT volta a sugerí-lo na
carta a Cummings de 14/7/41, quando ele já está de partida pro Rio. Na carta a Stevens de
25/8, dando notícia dos trabalhos da Comissão, chegada dia 13/08, ela menciona que
Cummings pretende partir 11/9, que o casal Hamlin pretende passar 3 meses no Rio, e
Clawson está estudando o material. [Na verdade, creio que Cummings permanece até o fim de
setembro; o museu fecha as portas dia 01/10]
Finalmente, a carta de HAT que parece estar tentando “se livrar” de Clawson, após apenas 3
meses de permanência.
UMA VISITA DE COLETA [DE AQUISIÇÕES]
Todos os custos da vinda – passagens, despesas de hospedagem, e o honorários dos
consultores – seriam inteiramente cobertos pela Fundação Rockefeller.
Mesmo assim, isto apenas paga o soldo. O que poderia fazer velhos naturalistas de museu,
bem estabelecidos numa prestigiosa, trabalhosa e dinâmica instituição americana, abalar-se de
descer à América tropical, no intuito de tentar remediar um velho museu nacional em crise,
quiçá em franca e inapelável decadência? Sem dúvida, não deveriam faltar motivos. Sem
pretender ser exaustivo, seguramente concorriam para o interesse no intercâmbio: o prestígio
de estender a influência do seu modelo além fronteiras, estabelecer laços de permuta com um
grande museu de história natural em um continente de poucos contatos, solidarizar-se com a
política norte-americana de aproximação e colaboração com os governos latino-americanos
durante a guerra, colaborar com as iniciativas de uma fundação que era importante fonte de
104
financiamento de museus e educação (e que já muito investira em projetos do Buffalo
Museum).
Já a cortesia da vinda da comissão seria retribuída paga com duplicatas de especimens das
coleções do MN. Isto é dito explicitamente na carta de HAT a Clawson (14/7/41): “As a sign
of our appreciation your museum shall receive duplicate specimens of our collections”. E há
menções às trocas em cartas a Hamlin.
Este interesse direto dos americanos na obtenção de coleções locais como retribuição confere
novo sentido às críticas (à la Lopes) de Cummings no relatório quando aponta lacunas
inadmissíveis nas coleções expostas, sobretudo a falta de bons exemplares de espécies
icônicas da fauna nacional: tamanduá bandeira, tatu canastra, tapir, um naipe das aves mais
belas. Era com a obtenção de duplicatas desses esplendores sul-americanos que ele estava
contando, o valioso butim da expedição aos trópicos.
Aqui vemos um desdobramento que fecha o círculo completo das viagens. Pelo expediente de
permutas, ou mesmo da obtenção de espécimes por doação ou retribuição a serviços, a figura
deste diretor-viajante opera também como a de um coletor, tal qual o clássico naturalistaviajante. Desde que se considere certas mudanças no setting: não é no campo que encontra
suas presas, para tomá-las diretamente à natureza, mas no mercado de manufaturados –
permutados, conquistados, arrematados, ou ainda adquiridos. Ele obtém um prêmio em
espécimes pela oferta de consultoria e expertise.
É o análogo, na ordem do dom entre instituições pares, da situação quando o naturalista vai
“às compras”, encomendando peças a uma firma especializada – como Alípio Ribeiro, indo,
comissionado pelo MN, buscar suas encomendas à casa Deyrolle de Paris, na sua viagem de
1911. (cit) 53
53
“Em observância à carta oficial que me determinava a fiscalização do fornecimento de espécimens zoológicos
ao Museu (por mim solicitados em ofício de 30 de novembro de 1910), pela casa Emille Deyrolle, estive nessa
casa, cumprindo o disposto na referida carta e entrei com a importância necessária para a aquisiçao de mais um
exemplar que não estava na lista de aquisição do Museu.” (1912:iv)
“Além desse bom amigo do primeiro Museu da França [Sr. Julio Terrier] conheci o seu discípulo Sr.
Lucien Ranson e o Sr. Emille Deyrolle, cujo nome é já bastante conhecido dos Museus de História Natural. O
Museu do Rio possui algumas peças da casa Deyrolle que o tem satisfeito e que me dispensam de estender-me
mais aqui.” (1912:27)
105
O museu universitário dos anos ’50
MUDANÇAS DE GRAU
Embora se considerassem continuadores da tradição educativa tão promovida pela geração
anterior, os naturalistas que estão à frente das reformas não se vêem como meros repetidores
das fórmulas e preceitos legados. Acreditam-se inovadores, e consideram as montagens que
ajudam a criar um avanço, uma significativa melhora em relação às que até então existiam. De
modo geral, apontam ao menos três aspectos em que o modelo mesmo das exposições foi
alterado. Em primeiro lugar, a redução da quantidade de peças exibidas; em segundo, e
relacionado ao anterior, o critério de representatividade na escolha dos exemplares a serem
incluídos na exposição; finalmente em terceiro, o aspecto artístico na confecção dos
mostruários, a preocupação com o arranjo estético, tão agradável aos sentidos quanto
esclarecedor à razão. Detenhamo-nos, primeiramente, nas duas primeiras alegações.
Percebem-se modernizando as tradicionais exposições, aperfeiçoando-as, mas suas inovações
não representam uma ruptura radical com as diretivas museográficas anteriores, e sim
mudanças de grau. Castro Faria, p. ex., anuncia “uma visível diminuição na quantidade de
material exposto [que no entanto se tornou] mais compreensivo, mais atraente e mais
racionalizado [...] capaz de despertar o interesse do grande público” (LCF:1947:13). José
Cândido Carvalho, por sua vez, comemora os novos “mostruários amenos e atraentes ao
público [...] fugindo à monotonia das arrumações antigas” (JCC:1956:31).
Por trás das prescrições desse programa museográfico, a principal novidade é a preocupação
com a preservação da motivação ou o fôlego do visitante, concebido como frágil e finito, o
bem raro e esgotável a aproveitar com todo o cuidado. Dosam seus mostruários sempre
estimando o quanto o visitante supostamente suporta de informação erudita, o quanto será
capaz de tolerar a sobre-exposição a fontes de conhecimento mais ricas do que suas condições
de apreensão antes que a sua atenção colapse, ele súbito perca todo interesse e desista de
prosseguir visita. Na visão deles, o grande defeito das exposições anteriores estava no
exagero, na sobrecarga de quantidade de peças apresentadas, e na decorrente repetição das
106
montagens, na monotonia das séries, que minava a curiosidade e a atenção do leigo
despreparado.
Para eles, as novas exposições que estavam montando não representavam propriamente uma
ruptura radical com o momento anterior do museu. Perseguiam o mesmo programa expositivo
geral. Apenas que – devido às novas preocupações quanto aos limites das capacidades
receptivas do público leigo – promoviam uma diluição da concentração de coleções por
vitrine e por galeria, uma poda dos excessos de proliferação de espécimes. A principal tarefa
modernizadora era armar uma operação de triagem rigorosa na escolha dos exemplares de
coleção que permaneceriam exibidas ao público.
Tomemos a sala de aves – a mesma cuja foto, publicada no catálogo de Coleman (1929, p.20),
reproduzimos mais acima, junto a outras 4 das antigas exposições. Ao entrar nesta sala, em
1941, Cummings se espantou com a enorme quantidade e variedade de espécimes reunidas.
Estimou que naquelas vitrines (38, ao todo) estavam abrigados algo como 2.500 espécimes
(CUMMINGS:1942:61). Quase vinte anos depois, as exposições de aves, inteiramente
reformuladas, encontravam-se finalmente inauguradas. Embora realocadas a outra região do
circuito, e distribuídas por três salas, a área total dedicada a aves quase não diminuiu. O
mesmo não se pode dizer da fartura das coleções apresentadas: o número de indivíduos
apresentados cai para aproximadamente 700 (quase um quarto da quantidade anterior)54.
Tamanha redução nos induz a indagar: para onde foram todos os outros exemplares, que antes
ocupavam o mesmo espaço, dividindo as mesmas vitrines? Com a reforma, o Museu precisou
providenciar muito espaço novo para abrigar as coleções desalojadas da área de exposição.
Boa parte dos exemplares excedentes, após passarem uma década amontoados nas salas dos
fundos do segundo andar sem qualquer conservação aguardando remontagem (no episódio
conhecido como o “pandemônio”), acabaram descartados por se encontrarem arruinados
(Cummings já observara que muitas das aves empalhadas da coleção eram por demais velhas
e decrépitas **). José Candido Carvalho registra que foram “eliminados, porém, por
completamente imprestáveis [...] 1.520 aves” (Carvalho, 1956, p.24). E muitos espécimes que
vieram a compor a nova exposição constituem novas aquisições. Sob a condução de Helmut
54
O número de exemplares de aves usados nas novas exposições foi estimado pela contagem dos itens
declarados na descrição dos mostruários nos Relatórios Anuais do MN de 1959 (p. 11-28, sala Z10, de aves
brasileiras), 1960 (p. 39-46, sala Z09, de sistemática) e 1961 (p. 15-26, sala Z08, de sistemática).
107
Sick, foi empreendido um programa de coleta especialmente para montar as coleções para as
novas salas. [***]
Além dos testemunhos de Castro Faria e Candido de Carvalho já mencionados, o mesmo
bordão é encontrado, p.ex., nos trabalhos de MENDONÇA (1946) e CUMMINGS (1942).
A PROGRESSIVA PREFERÊNCIA POR MENOS PEÇAS
(TENDÊNCIA HISTÓRICA À REGRESSÃO PROGRESSIVA DA DENSIDADE EXPOGRÁFICA)
Era portanto lugar comum, à época, avaliações críticas sobre o Museu Nacional condenando o
excesso de peças das exposições. O diagnóstico de que as vitrines estavam
desnecessariamente sobrecarregadas é ubíquo, e todos parecem concordar que isto
compromete globalmente a experiência do visitante. Com a reforma, procurou-se diminuir
drasticamente esse número. Chegou-se a uma configuração que foi considerada a ideal,
balanceada, equilibrando espaço disponível, arranjo agradável ao olhar, sem perder de vista o
objetivo de apresentar uma amostra minimamente abrangente e representativa de cada área a
que o Museu se dedicava – o que vale também dizer, de cada segmento das coleções ali
estudadas e guardadas. Para os promotores da reforma, alcançara-se uma solução de equilíbrio
perfeito entre quota de informação e fruição visitante.
No entanto, parece que o valor deste equacionamento ideal, desta proporção áurea de
quantidade de peças por display, por área ou por tema, obedece a critérios volúveis, que
variam ao sabor e ao gosto de cada época. Pois as mesmas composições que, nos anos ’50,
eram consideradas dosadas num balanceamento perfeito de concentração de informações e
peças para mais eficazmente educar e entreter o público, quarenta anos depois já não
satisfaziam. Passaram a sofrer o mesmo tipo de censura da parte dos especialistas em museus
de então que aquela outra geração dirigira a seus predecessores. Um exemplo notável se
encontra nas impressões de uma pesquisadora em educação, que estudou as exposições e as
impressões dos visitantes do Museu Nacional nos anos 1990. A certo ponto a autora avalia
que a “quantidade exaustiva de peças e textos caracteriza grande parte das apresentações”
(VALENTE:1995:119)55. Ela se referia a exposições que ainda eram, em termos gerais, as
55
A frase serve de legenda à foto de um mostruário de aracnídeos, que aliás manteve montagens ainda baseadas
nas preparadas por Melo Leitão, uma geração antes. [é isto mesmo?? cf Feio na Museum]
108
mesmas que, quarenta anos antes, os antigos críticos do excesso se vangloriaram de ter
conseguido reduzir drástica e definitivamente, alcançando a adequação ótima ao veículo
expositivo. Para a sensibilidade de algumas décadas depois, o que se julgara concentração
ideal volta a ser considerado sobrecarga exagerada, e o excesso de peças é novamente
apontado como o defeito básico das montagens.
O juízo quanto ao grau ideal de ‘concentração expositiva’ e as críticas às soluções da geração
imediatamente anterior parecem ter seguido uma progressão recorrente ao longo do século. Se
considerarmos a noção de uma ‘densidade expográfica’, por importação de noção análoga em
demografia, como uma medida da concentração de objetos residentes por unidade de espaço
expositivo, a história da museologia segue uma espécie de malthusianismo expográfico às
avessas. A quantidade de peças expostas julgada adequada segue diminuindo a cada geração,
que tende a olhar para trás sempre lamentando os excessos cometidos até então. As críticas
elaboradas em cada ocasião específica podem buscar justificativas em princípios qualitativos
(pedagógicos, estéticos, cognitivos, etc.) os mais diversos, mas o notável é a permanência do
diagnóstico e da queixa básica: uma recorrente intolerância aos padrões quantitativos
pretéritos. Como se uma espécie de limiar cultural de sensibilidade estética fosse
progressivamente recuando. E determinando que, nas reformas expositivas, a grande alteração
proposta fosse, antes de tudo, uma mudança de grau: a redução da coleção exibida, uma
economia restritiva e anti-inflacionária de estímulos objetais.
Ao analisar a atuação Franz Boas em museus no início de carreira, Ira Jacknis sugeriu uma
interpretação similar diante da impressão paradoxal que nos causa hoje o exame das fotos das
exposições por ele montadas no National Museum. Embora Boas fosse um crítico confesso da
tradição vitoriana de abarrotar os armários ao modo de depósitos, e defendesse, no programa
das suas montagens, a drástica diminuição do número de peças por mostruário, só
apresentando o criteriosamente selecionado, as fotos que nos chegaram das vitrines por ele
arranjadas nos parecem hoje inapelavelmente abarrotadas:
“‘In arranging the collections I have, of course, not crammed the cases’ [escreveu
Boas] […] Although in contemporary photographs we see cases that appear quite
crowded, it may be that Boas was forced to display more of the collections than he
would have wished […] Alternatively, our sense of what is crowded and what is
spacious may have changed over the decades, as the general cultural shift from
109
Victorian plenitude to Art Moderne spareness produced a re-evaluation of aesthetic
sensibilities in museum display.” (Jacknis, 1985, p.97)56
Talvez pudéssemos caracterizar, de forma tentativa e certamente um tanto esquemática, o
contraste dos critérios desses períodos distintos. No tempo de Roquette (anos 20) o
mandamento é apresentar tudo o que puder ficar à mostra, representando, em escala
concentrada, tudo o que há. A expectativa é de que o principal das coleções estejam em
exibição, e de que as coleções compreendam tanto um programa universal
amostras representativas de todos as manifestações naturais. O idealizado é que se chegue a
um mapeamento completo, uma correspondência exaustiva da natureza nacional à coleção do
museu nacional – ainda que como projeto e horizonte. Que o Museu recolha, estude e
exponha “a totalidade do que a nação pode oferecer”, nas palavras de ERP (1918).
Na fase da grande reforma iniciada na década de 40, quer-se incluir apenas tudo o que puder
ser visto clara e distintamente [cuidado: estes não são termos do programa roquetteano pro
cinema?]; a eficiência expositiva é ocupar todo o espaço disponível, mas sem nunca haver
sobreposição de peças, os elementos bem individualizados e separados por um território
mínimo dos seus vizinhos; além disso, tudo que for exposto deve ser relevante e único em sua
classe, sem jamais incorrer em repetição (que seria considerado desperdício de espaço e de
atenção). Renuncia-se à vitrine como um ‘viveiro’ envidraçado, povoado por bandos de
espécimes, que se poderia tentar distinguir passeando ao redor em busca do melhor ângulo
que permita atravessar toda a profundidade 3D daquele ‘aquário’ transparente. A opção é
reduzir o volume interno das vitrines a uma visada bidimensional, supondo o espectador
sempre de frente, sempre próximo ao mostruário, voltado com um ângulo de visão fechado
para a cena reduzida de apenas um display de cada vez. As vitrines de arestas de aço e folhas
de cristal têm uma das faces revestida por um fundo opaco, preenchido como cenário, textos,
etiquetas, diagramas que instruem, contextualizam, narram a respeito do exemplar destacado.
Toda a estratégia é voltada para isolar o campo do visível às poucas peças contidas no próprio
display – em vez do tradicional fundo panorâmico 3D vazado, que deixava entrever
permanentemente o entorno do espaço expositivo, o ambiente do depósito.
CASTRO FARIA registra esse aggiornamiento das velhas vitrinas: “Nova reforma na década de
40, novas alterações, desta vez menores [não obstante tenham sido muito maiores!], na feição
56
Quanto a esta interpretação, Jacknis remete a HARRIS, 1978.
110
interna do edifício, e os armários de 1911 sofrem agora uma modernização. Retiram-se
centenas de prateleiras de vidro, e uma das faces de cada armário é revestida de compensado
forrado de pano rústico. Estão assim até agora, passados 40 anos.” (1993:76). Cf também
CUMMINGS (1942:44-5), cujas fortes recomendações, à época, pelo revestimento de uma das
faces das vitrines pode ter sido determinante. De fato, Clawson permaneceu por alguns meses
justo experimentando e treinando técnicos do MN a adaptar os antigos armários a este modelo
bidimensional de fundo opaco.
Assim também se procura aproveitar todos os nichos utilizáveis, não só dentro do espaço do
mostruário, mas também em todo o ambiente arquitetônico como os vãos de algumas portas
que são bloqueadas, e onde são instaladas vitrinas embutidas sob medida. O estabelecimento
dos circuitos contínuos de percurso – o que demanda fechamento de passagens do palácio,
aproveitadas para instalar vitrines – diminuindo o efeito labirinto, ou a circulação multiviária,
que permite rápido acesso a qualquer seção das coleções expostas, e obrigando o percurso
único e seqüencial.
O caminho já está traçado no rumo de uma museologia que virá valorizar sobretudo os vazios,
silêncios, intervalos, ditos para pensar, propiciar reflexão, descansar atenção, assentar. (Numa
inversão exata da fórmula marajoara: aqui domina o horror ao preenchimento, aos excessos e
barroquismos de número e forma)
A progressiva exigência de redução da concentração expográfica, e a queixa sempre renovada
da sobrecarga, da superpopulação exposta, talvez encontrem paralelo no crescente ou
insuperável “problema do espaço”. Por um lado, coleções armazenadas com muito aperto,
sem espaço suficiente e adequado para abrigá-las ou para expandir; por outro, exposições
consideradas superlotadas de peças, precisando ser sangradas, podadas, desbastadas.
A lei econômica do progresso das exposições e o das coleções em reserva segue rumos
paralelos mas distintos. Nas exposições se reclama do excesso de peças, da superpopulação
que faz com que os espécimes se acavalem, obstruam a visão uns dos outros, confundam e
cansem o visitante. Nas coleções de estudo, armazenadas na reserva técnica, reclama-se da
insuficiência do espaço para abrigar adequadamente o conjunto das peças, que também
sofrem da sobrecarga, acotovelamento, empilhamento.
111
O sintoma percebido é o mesmo: sobrecarga, excessiva concentração e acúmulo de peças que
prejudica a sua utilização adequada, comprometendo a funcionalidade da coleção. Mas as
causas atribuídas (e portanto a reivindicação de solução) seguem caminhos opostos. Na
exposição, a proposta é estreitar o filtro da seleção do que vai a público, expurgar boa parte
das peças que atravancam os displays, recolhendo-as à reserva. A exposição passaria a gozar
de uma estética mais leve, distribuindo apenas peças hiper-selecionadas pelo mesmo espaço
total. Quanto às reservas, a atitude é inteiramente outra. O descarte de coleções saudáveis é
inconcebível, o crescimento do acervo é bem vindo, almejado, necessário. O que se reivindica
é dispor de mais espaço para abrigar o excedente, e de equipamentos adequados para
organizar e disponibilizar a escala crescente do acervo.
Esta atitude desigual face aos excessos da coleção de exposição e aos da de estudo tem
relação com as possibilidades ‘adaptativas’ dos seus usuários: enquanto os cientistas se
especializam, se desdobrando em equipes que estudam, cada uma, apenas um segmento do
acervo, o visitante comum continua sempre, por assim dizer, um ‘generalista’. A exposição
deve idealmente manter-se na medida do abordável (‘percorrível’) por qualquer um numa
única visita.
O espaço expositivo é constrangido com um limite absoluto intransponível de tamanho,
determinado por condições de resistência e eficácia próprias ao visitante. Mas seguem
princípios diametralmente opostos: na exposição, a tolerância a uma mesma quantidade de
peças é que foi reduzida, o critério de adequação é que se deslocou, se estreitou; na reserva, a
quantidade peças aumentou, o espaço permaneceu, até o limite do cabível.
(Cf o processo de crescimento das coleções e o empurra-empurra, lotando exposições antes de
desdobrá-las – ver Coleman, 1939, p.210-1.)
DELÍCIAS DO ARRANJO ESTÉTICO
A outra grande novidade apontada pelos que elaboraram as novas exposições é a incursão de
um elemento colaborador original no processo que antes inexistia. Reportam o acréscimo de
um ‘toque artístico’, um ‘acabamento decorativo’, um ‘arranjo estético’. É assim que a
museografia – e o profissional especializado que então surgia no cenário museal – aparece nos
relatos em que esses protagonistas dos trabalhos da reforma das exposições descreviam o
112
modo como entendiam o que estavam fazendo. Principalmente Castro Faria. Durante todo o
trabalho de montagem das galerias de antropologia e arqueologia (1946-7), ele teve a
oportunidade de contar com a colaboração – inédita nas experiências do Museu Nacional – de
um especialista em “arranjos estéticos” (para mencionar uma das suas expressões recorrentes)
indicado pelo SPHAN. Isto é considerado um tempero que não havia antes de forma explícita
e especializada: a preocupação com a solução estética dos mostruários.
Essa segunda ‘novidade’, que envolve o surgimento da museologia no cenário dos antigos
museus de ciência, está vinculada a outro eixo de mudanças, dos que mencionei mais acima: o
eixo do processo de especialização – das áreas científicas, como também das ocupações
funcionais em um museu. Que nesse período dá uma ‘dobrada’, ocorre uma daquelas
assentadas históricas que viram a página ou provocam uma mudança de patamar. Numa frase,
é neste momento que a carreira de naturalista se extingue enquanto tal. [Se a redução do
número está relacionada à cisão das coleções, a colaboração artística está vinculada às
especializações]
A MUDANÇA DA CONCEPÇÃO DE VISITANTE: A DESCOBERTA DA FADIGA DE MUSEU
A imagem presumida do público visitante muda inteiramente de um período a outro. De
inespecífico, infantilizado (o analfabeto, o homem comum, todos são aproximados da criança
no seu primitivismo, a q é sempre possível redimir oferecendo-lhe o melhor alimento
cultural), considerado excluído do conhecimento por impedimentos ostensivos de acesso aos
meios de instrução, pela distância demasiada (geográfica, social, educacional) aos centros de
saber, e suposto sedento por conhecimento, ávido em demandas de aprendizado; passa a
público diferenciado, com capacidades e limiares a serem despertados e respeitados, cuja
performance pode ser mapeada numa curva de aproveitamento, como de limite de
esgotamento, que deve ser convencido, seduzido às delícias e méritos do conhecimento ou
simplesmente não acorrerá, entretido pela concorrência de outros meios de ilustração e
divertimento.
A questão diz respeito na verdade à subjetivação do público, à concepção da subjetividade do
público visitante do museu.
113
Mortara & Lopes descrevem os modelos comunicacionais que formalizaram as relações da
mídia museal (exposição) com o seu público. [Cf Mortara&Lopes; também Sepúlveda]57
O público presumido por ERP não é exatamente o de um receptor neutro, continente passivo
que é preciso preencher com informações, como os modelos comunicacionais formalizaram e
a história dos estudos de público tende a ler como representação predominante na época.
Ele é moral e moldável, mas de boa índole, é curioso, é carente – é a imagem em espelho do
próprio naturalista infantilizado (a recorrente narrativa da vocação despertada quando criança
numa visita, ou na recorrente freqüentarão; o infans visitante) ou transportado
imaginariamente à situação do pobre só anseios em meios (aqui, o episódio da gravata!)
Está mais para o escotismo e o teddy bear de Haraway que para a multidão hipnotizada e
tangida como gado. Talvez não devêssemos buscar os modelos nas ciências da comunicação e
sim na eugenia, no sanitarismo, na biopolítica que se engendrava.
As novas categorias (todas vinculadas a noções derivadas da psicologia ou de uma
psicofisiologia) acionadas na configuração deste público são: (1) esforço, excesso, fadiga; (2)
interesse, atenção; (3) inibição, intimidação.
ERP está atento ao terceiro desses focos: a intimidação que o saber livresco e senhorial causa
no iniciante sem recursos, no cidadão de pouca instrução e alguma curiosidade. Ele pretende
oferecer instrução sem pompa, com simplicidade, acessível a todos (Cf os ideais da sua
revista sonhada em 1915). Quanto ao segundo, o interesse do público pelo conhecimento
abrigado na instituição, ele o considera garantido, fruto da boa índole do povo brasiliano. Mas
não pode conceber adequadamente o primeiro – que talvez lhe lembrasse a ideologia de
acusação da indolência natural do caráter nacional. [Desenvolver a aproximação da figura da
criança (pequenino naturalista) com o caipira, o primitivo, enfim, o brasiliano comum,
ignorante, abandonado a si pelas elites.]
57
Van Praett (assim com Gilson) insistiu que é preciso definir o público que se quer atingir.
No ETC chegamos a sonhar em implementar algo na linha do que Van Praett nos apresentou
como o experimento do Museum: uma exposição de ‘pré-figuração’, um módulo reduzido de
exposição em que se possa concentrar elementos definidores de opções a serem tomadas, de
modo a testar soluções sobre o próprio público, monitorar suas reações, ouvir opinião de
visitantes. E decidir a partir deste feed-back. (Note: não é a exposição colaborativa com as
primeiras nações; é o império do modelo comunicacional e de marketing, em que se faz
estudos e sondagens de público consumidor antes de lançar um produto em escala no
mercado).
114
Os estudos de público nos anos 30 eram incipientes: apesar de seu entusiasmo pelas
iniciativas, BL atesta que só havia dois ‘psicólogos-residentes’ em atuação em museus (em
Filadélfia e Buffalo). Todos os trabalhos e toda a formação provinha da atuação deles.
Na museologia dos anos 40, o público começa a aparecer como massa de seres vivos dotados
de limiares psico-fisiológicos de tolerância – de apetite, de encantamento, de saciedade, de
esgotamento. O comportamento dele, a sua progressiva reação à experiência de visitação é
passível de observação, de monitoramento e registro quantitativo, de experimentação.
Em Roquette, isto decididamente ainda não existe. O público é idealizado como uma massa
de indivíduos carentes de conhecimento, natural e espontaneamente interessados, porém
alijados dos recursos, privados de acesso à ilustração. A missão do museu, face a este público,
é antes de tudo fornecer este acesso, facilitar o alcance, vulgarizar. Tornar o conhecimento
erudito mais transparente e espalhá-lo gratuitamente para qualquer interessado, produzir
mediações que permitam ao iniciante ou ignaro progredir na assimilação da bagagem, e abrirlhes as portas. O público viria espontaneamente sorver, acorreria para aproveitar o valor
daqueles conhecimentos irrecusáveis, q lhes vinham sendo negados há tanto.
Assim, o que é formulado nos anos quarenta como ‘fadiga de museu’ – quando o visitante se
vê farto de tanta exposição e busca o escape – corresponde ao que ERP formula, no seu
tempo, como uma falta de transparência do exposto: a metáfora célebre do fio d’água sobre
vidro engordurado. Para ERP, o problema ali não é de excesso, não é da sobredosagem na
medida e no ritmo assimilável por um humano médio: é de carência, de obstrução da
visibilidade, falta de estabelecimento do canal de comunicação, o desencontro do visitante e
do objeto, são as portas (do museu; do conhecimento) se fechando novamente, por opacidade,
ao despreparado.
Aquilo que, para Coleman, é um animal exausto, do qual se abusou ou se explorou até a
última gota, levado inadvertidamente aos limites da sua capacidade de absorção e da sua
disposição de instrução (ou da sua tolerância para com a chatice), para ERP é um cidadão
despreparado do povo que ainda sequer teve chance de começar a jornada de conhecimento, é
um pequeno patriota apenas desorientado, mantido (pela falta de mediações) à margem em
sua ignorância e desamparo.
115
É porque, para ERP, a raiz do problema está no déficit que, em lugar de descanso e exigências
mais amenas, seria preciso ainda mais esforço. Preconiza a maior preparação prévia do
visitante, e maior tenacidade do mestre orientando os iniciantes, empenho em vazar a
resistência da opacidade das vitrines. O diagnóstico dos museólogos dos anos 40 aponta em
uma direção inteiramente diferente: o que era preciso era dosar melhor os estímulos –
selecionar apenas os mais pertinentes, expô-los de formas variadas, ser inventivo na
apresentação para torná-la recorrentemente atraente – de modo a não desperdiçar o fôlego,
mas aproveitar o melhor da cota possível de atenção e de encantamento de que a massa
curiosa era capaz.
(Intuição a repensar/verificar: o papel de atração do encantamento, de maravilhamento, do
curioso, parece talvez mudar de estatuto. Ele pode ser usado, desde que para atrair a atenção,
fisgar o interesse do passante blasé – que, uma vez capturado, pode ser conduzido a
apresentações mais sofisticadas, sutis, educacionalmente efetivas)
Aqui vale considerar algumas formulações clássicas de Simmel. A figura do seu blasé quer
caracterizar um modo específico de adaptação do animal humano ao ambiente sobrecarregado
de estímulos do meio urbano: após penar o excesso de abalos estímulo-resposta até a
exaustão, entra-se num modo de pouca reatividade mesmo à extrema variação estimuladora,
em que tudo passa num cinza achatado, sem maior relevo.
[cf as considerações sobre a localização (no centro da cidade) e a arquitetura (simples,
despretensiosa, acolhedora) do museu em Valladares – em lugar de feudal ou senhorial,
indutora de intimidação, esmagamento]
O pano de fundo psicofisiológico é o mesmo, mas o tipo de derivação que a museologia quer
disso extrair segue rumo diferente ao de Simmel. Neste cenário, ela pretende projetar a
montagem do museu como uma espécie de máquina de captura, de otimização da fruição da
energia cognitiva (a curiosidade, o interesse, a disposição ao assombro e ao maravilhamento,
a inteligência e capacidade de entendimento e absorção das informações científicas) do
animal público.
116
Mais do que todas as considerações sobre o cuidado com a variação das vitrines para não
incorrer na monotonia que arriscaria levar à fadiga, o melhor documento que conheço sobre
este tipo de raciocínio é o de Cummings criticando o hall de entrada do Bendegó: o
diagnóstico do desperdício de energia intelectiva do público ignorante ainda fresco, recém
chegado, de disposição ao aprendizado, carregado de interesse não-ligado.
A tal “missão democrática” também reflete essa diferença: é preciso cativar o povo, seduzi-lo
(cf Valladares p42); ERP já o supunha sedento, apenas as portas estavam fechadas, ninguém
de cultura se dirigia aos excluídos para facilitar-lhes a educação. (Em BL: p36, p104).
117
À Coordenação do PPGSA-IFCS-UFRJ
Comissão de Desempenho Acadêmico e de Bolsas
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
ASSUNTO:
Solicitação de prorrogação de prazo para defesa de tese.
Rio, 17 de março de 2010
Prezados professores:
Uma série de razões contribuíram para que não fosse possível finalizar a redação da
minha tese de doutorado dentro do prazo regulamentar de cinco anos. A mais relevante
foi que, no curso da análise do material e redação do argumento, deparei-me com
desdobramentos de interpretação enriquecedores que não previra inicialmente. Os
novos insights obrigaram a um redimensionamento das minhas hipóteses, que acredito
seja justificado pois permitem dar aos resultados obtidos um alcance e uma relevância
de maior escopo.
Por esses motivos, solicito a prorrogação do prazo para a conclusão e defesa da tese
por mais seis meses (até 31/08/2010), sendo que a cópia finalizada do corpo da tese
deverá estar finalizada até junho, segundo cronograma de trabalho que anexo a este
pedido, junto com uma versão de alguns capítulos já redigidos.
(Creio que é oportuno ressaltar que em momento algum reivindiquei ou dispus de
auxílio de custos ou bolsas no curso do doutorado, financiando com meus próprios
recursos e atividades o tempo dedicado aos estudos, pesquisa e elaboração dos
resultados.)
Atenciosamente,
Jayme Moraes Aranha Filho
<[email protected]>
ingresso no doutorado em 2005
orientador: prof. José Reginaldo Gonçalves
À Coordenação do PPGSA-IFCS-UFRJ
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
ASSUNTO:
Do cronograma de trabalho para a conclusão da tese.
Rio, 17 de março de 2010
Prezados professores:
Segue o planejamento de um cronograma para 7 quinzenas de trabalho de redação,
com previsão de término em fins de junho/2009:
17 a 31/mar
cap. 9
Desenvolvimento da análise da mudança na concepção de
visitante, da categoria da ‘fadiga de museu’, das analogias da
exposição museal com o cinema educativo
1 a 15/abr
cap. 6
Expansão e reformulação da análise sobre o museu roquetiano,
à luz da noção de visitante contrastiva
16 a 30/abr
1 a 15/mai
caps.
7e8
Análise das ‘museografias’ de Bertha Lutz, Süssekind,
Valladares, Venâncio, Castro Faria, Candido Carvalho, Feio
16 a 31/mai
cap. 2
Revisão da literatura de estudos de museus, especialmente a
abordagem centrada no rastreio de coleções
1 a 15/jun
cap. 1
cap. 10
Notícia sobre a experiência pessoal de trabalho no Museu
Considerações finais (incluindo alguns desdobramentos
esboçados mas não desenvolvidos na tese)
16 a 30/jun
Revisão geral, montagem dos anexos (que inclui um dvd com
parte da bibliografia e documentação primárias digitalizada),
impressão e confecção de cópias.
Atenciosamente,
Jayme Moraes Aranha Filho
<[email protected]>

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