Tágory Figueiredo Martins Costa
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Tágory Figueiredo Martins Costa
Universidade Católica de Brasília PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Direito “O DIREITO NATURAL: CRÔNICAS DE UMA CONSTRUÇÃO CONCEITUAL” Autor: Tágory Figueiredo Martins Costa Orientadora: Dra. Arinda Fernandes BRASÍLIA 2008 TÁGORY FIGUEIREDO MARTINS COSTA O DIREITO NATURAL: CRÔNICAS DE UMA CONSTRUÇÃO CONCEITUAL Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Direito da Universidade Católica de Brasília. Orientadora: Dra. Arinda Fernandes Brasília 2008 Dedico este trabalho e a graduação em Direito à minha mãe, Solange Martins, pois que com suas mãos calejadas, seu amor incondicional, seu inexplicável cuidado, seu ininterrupto incentivo e sua sabedoria real, tornou viável a concretização deste sonho, entre outros. Também ao meu filhote Daniel Figueiredo, anjinho por Deus enviado. Agradeço primeiramente a Deus, cuja insistência em me amar fez-me chegar até aqui, e a todos os que me sustentaram durante a gestação deste projeto. Com especial carinho, agradeço à minha outra metade e também irmã, Jennifer Martins Costa, e ao meu genial e genioso pai, Geraldo Costa. Sou não menos grato à minha orientadora, Dra. Arinda Fernandes, por sua maternal atenção, e, bem assim, à amada do meu coração, Lila Donato, cuja nobreza de espírito me tem tornado um homem cada vez melhor. “[A História é] como uma espécie de guarda-roupa onde todas as fantasias são guardadas.” Marshall Berman RESUMO MARTINS COSTA, Tágory Figueiredo. O Direito Natural: crônicas de uma construção conceitual. 2008. 60 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Faculdade de Direito, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2008. A definição do conceito de verdade e a busca por verdades universais representam para a história da humanidade dois de seus maiores desafios. Chegam a ser características humanas de sua própria inerência. Desde as civilizações antigas, como a grega e a romana clássicas, até a contemporaneidade pós-modernista, passando pela Idade Média e pela Modernidade, o homem tem se preocupado com o estabelecimento de critérios para a caracterização de verdades de conteúdo universalmente aceito. Paralelamente, a Filosofia do Direito já de muito tem também se ocupado da conceituação de uma estrutura jurídica anterior aos ordenamentos positivos e que fosse menos vinculada à circunstancialidade destes. Transcendental em seu sentido e universal em seu alcance, essa estrutura é geralmente designada Direito Natural. Se, por um lado, a jusfilosofia greco-romana clássica, a escolástica e a patrística medievais, e a literatura jurídica do início do Renascimento redundam na aceitação da existência do chamado Direito Natural, por outro lado, grande parte dos pensadores recentes se coloca na via contrária do pós-modernismo. Com fundamentos no criticismo, no relativismo e no desconstrutivismo textual, destacamse os integrantes de dois movimento principais. O primeiro é o estadunidense Estudos Críticos do Direito (Critical Legal Studies – CLS), fincado no realismo jurídico e capitaneado pelo brasileiro Dr. Roberto Mangabeira Unger. O segundo é o tupiniquim Surrealismo Jurídico, inaugurado pelo também brasileiro Dr. Luis Alberto Warat. Quanto à existência ou não do Direito Natural não há consenso entre os doutrinadores pertencentes a todas as ideologias jurídicas, notadamente o juspositivismo e o jusnaturalismo. Contudo, o texto aposta na idéia de que o diálogo doutrinário e a sofística consciência oposicionista são as únicas formas pelas quais a sociedade impedirá a estagnação de seu projeto de constante melhoria e evolução. Palavras-chave: Direito Natural jusnaturalismo verdade universal história filosofia ideologias CLS surrealismo jurídico ABSTRACT MARTINS COSTA, Tágory Figueiredo. Natural Right: chronicles of a conceptual construction. 2008. 60 p. Conclusional Graduation Thesis – Faculty of Law, Catholic University of Brasília, Brasília, 2008. The concept of truth and the search for universal truths represent to mankind two of its greatest challenges. More than that, they are human characteristics of its own inherency. Since ancient civilizations, such as classical Greek and Roman, until the post-modern Contemporarity, including Middle Age and Modern Period, men have been concerned about the establishment of criteria that would characterize truths with universally accepted contents. Beside that, Legal Philosophy has been also worried with the definition of a legal structure that would be previous to positive legal systems and less dependent on their circumstantiality. Transcendental in its sense and universal in its range, this structure is generally called Natural Right. If, on one hand, classical Greek and Roman legal philosophies, medieval scholastic and patristic, and early Renascence legal literature accept the existence of the so called Natural Right, on the other hand, the majority of recent thinkers run on the opposite way of post-modernism. Based on criticism, relativism and textual deconstructivism, two main doctrines are emphasized here. The first one is the north-American Critical Legal Studies (CLS), structured upon legal realism and leaded by Brazilian Dr Roberto Mangabeira Unger, PhD. The second one is called Legal Surrealism, started by the also Brazilian Dr Luis Alberto Warat, PhD. Concerning the existence of Natural Right there’s no consensus among legal writers of all sorts of ideology, specially juspositivism and jusnaturalism. However, according to the text, a doctrine dialogue and a sophistical opposing conscience are the only form through which will society be able to restrain the stagnation of its project of constant progress and evolution. Keywords: Natural Right jusnaturalism universal truth History Philosophy ideologies CLS legal surrealism SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................9 1 A VERDADE UNIVERSAL.....................................................................................13 1.1 O homem e a procura da verdade ...................................................................13 1.2 Uma perspectiva epistemológica .....................................................................15 1.3 Uma perspectiva metafísica.............................................................................20 1.4 A verdade universal no pensamento moderno ................................................23 1.5 A verdade nos dias contemporâneos ..............................................................26 2 O DIREITO NATURAL...........................................................................................30 2.1 A histórica procura pelo Direito Natural ...........................................................30 2.2 O Direito Natural na Antiguidade Clássica: a natureza ....................................36 2.3 O Direito Natural entre os romanos .................................................................40 2.4 O Direito Natural na Idade Média: o Criador....................................................45 2.5 A Escola do Direito Natural: a visão racionalista .............................................49 2.6 O Direito Natural em John Locke: a perspectiva empirista ..............................51 2.7 A contribuição crítica de Kant ..........................................................................52 3 ENCONTROS E DESENCONTROS DA CONTEMPORANEIDADE .....................54 3.1 Contexto geral .................................................................................................54 3.2 Estudos Críticos do Direito (Critical Legal Studies) .........................................57 3.3 O Surrealismo Jurídico ....................................................................................60 CONCLUSÃO ...........................................................................................................65 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA..............................................................................68 9 INTRODUÇÃO Com o nome de Direito Positivo denomina-se o conjunto de normas jurídicas inscritas em uma determinada sociedade a certa época. Forma-se pelas leis entabuladas pelo poder público e em tese se presta à organização da vida social. Ao seu lado, com o nome de Direito Natural, estão os axiomas de natureza universal sobre os quais o Direito Positivo deve ser edificado. A corrente jusfilosófica que discursa com este último raciocínio é chamada jusnaturalista. Notadamente um dos conceitos mais difundidos na seara da produção literária de cunho jurídico, o Direito Natural constitui para significativa parte da doutrina um elemento comum sobre o qual se fundamenta todo o ordenamento normativo positivado. Provavelmente seja por isso a compreensão de sua essência algo tão almejado e, sem a pretensão de ser redundante, tão perquirida a sua própria natureza conceitual. O presente trabalho de pesquisa científica cuida de tecer uma breve síntese da trajetória da doutrina jusnaturalista ao longo da história e, bem assim, o percurso de seus conceitos fundamentais, entre estes, o conceito de verdade universal. As próximas páginas tentarão aglutinar em um mesmo locus textual algumas das principais correntes doutrinárias relacionadas à existência de um espaço jurídico universal, transcendental e, ao mesmo tempo, anterior à formação do Direito Positivo. Latu sensu, o Direito Natural é associado à idéia da absorção pelo homem de uma verdade universal e, inerentes à sua ideologia, a universalidade e a transcendentalidade parecem ter sido erigidas para sediar seu entendimento. Somese àquelas considerações, ainda, a dificuldade que a epistemologia vem enfrentando para aceitar a existência de uma verdade universalmente aceita. Vêm, ao longo das eras, degladiando os pensadores no dogmatismo, no ceticismo, no criticismo, e em tantas outras vertentes destas decorrentes, como o relativismo, o subjetivismo etc. E é inegável que essa celeuma respingue 10 copiosamente no campo do Direito. Disso não parece haver dúvidas. Na epistemologia geral será buscado o subsídio teórico para compreender a existência – ou não – de uma verdade universal e, a partir daí, tecer sintaticamente o trajeto do Direito natural por entre as escolas jusnaturalistas. Muito se tem discutido sobre a circunstancialidade e casuísmo encontradiços na criação das leis – em sentido estrito. Uma das mais freqüentes causas de apreensão dos acadêmicos prestes a ingressar nesse largo mundo da operacionalização do Direito concentra-se na dificuldade de se encontrar posturas normativas conclusivas acerca de um determinado tema. Isso às vezes quer dizer que, teoricamente, o jurista pode encontrar fundamentações jurídico-legais para qualquer tese a que se empenhe defender ou cuja crença queira justificar. 1 Se, por um lado, o discurso dialético constitui uma característica essencial a esse ramo de ciência social aplicada – o Direito – por outro lado, entretanto, a duplicidade de opiniões nos textos normativos podem gerar certa desconfiança do jurista em relação ao ordenamento jurídico. Ingênuo pensar que tal característica seja própria de uma nação ainda a construir sua maturidade jurisdicional, como é o caso do Brasil e vários outros países do sul. Estados mais antigos também têm tido essa preocupação. É, por exemplo, o caso do Reino Unido da Grã-Bretanha, nação bastante tradicional e dotada de interessantes aspectos jurídico-judiciais – como o fato de possuir uma Constituição consuetudinária. Harvey e Bather (1968) já nos anos sessenta postularam: Since a Bill has to be watertight legally, it must be carefully drafted by lawyers. Drafting of Government bills is performed by the Parliamentary Counsel’s Office, a branch of the Treasury, and it is to this office that the department explains the proposals it wants embodied in a bill. Drafting is a long and skilled process. Meetings are arranged between the draftsman and the department, and as many as twenty drafts may have to be prepared before the bill appears to be word perfect. Hence, the complete drafting of a bill m ay take up to four months, and even the amendments in 1 Conforme a terminologia empregada por Platão. Consultar, nesse sentido, JAPIASSU, Hilton F. EPISTEMOLOGIA O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 188. 11 the wording may be necessary in committee or in the House of Lords. The Parliamentary Counsel remains responsible for the bill while it is before Parliament, but amendments have to be moved by an M.P., who is usually the minister in charge. When drafted, the bill goes before the Legislation Committee of the Cabinet, which examines its structure and details to ensure that it is generally acceptable as a workable measure. 2 (grifo nosso) Destarte, a relevância da pesquisa jurídica que se segue encontra abrigo na necessidade contemporânea de se definir com maior nitidez os critérios materiais axiológicos – e também formais – para entabular o ordenamento jurídico positivo. Deve-se ter em mente a mutabilidade dos corpos sociais. Contudo, espera-se que uma maior e mais pormenorizada compreensão das estruturas principiológicas basais do Direito Positivo pode trazer-nos maior segurança jurídica e, por conseguinte, afastar-nos progressivamente da vulnerabilidade dos membros da sociedade em relação às modificações legislativas e jurisdicionais. Como sói acontecer, as pesquisas científicas de conteúdo jurídico são erigidas sobre o pilar da construção teórico-sintática da literatura pertinente. Por assim dizer, a monografia que se segue adota, aprioristicamente, a metodologia da reunião de dados bibliográficos, valendo-se de uma classe de pesquisa explicativa para observar a construção historiográfica do Direito Natural. Inicialmente, haverá uma coleta de informações produzidas no campo da filosofia geral ao longo da história. Será vista a incessante busca do homem pela verdade e, gradualmente, a sua construção conceitual primeiramente sob uma perspectiva epistemológica que congrega o período antigo da História. Num 2 “Visto que uma lei deve ser legalmente irrepreensível, ela tem de ser cuidadosamente esboçada por juristas. A elaboração dos esboços de Leis Governamentais é executada pelo Gabinete do Conselho Parlamentar, um setor da Fazenda, e é a este gabinete que o departamento explica as propostas que se deseja incorporar em lei. Essa atividade é um processo longo e melindroso. São marcadas reuniões entre os planejadores e o departamento, e tantos quanto vinte esboços possam ter que ser preparados antes que a lei pareça estar escrita com perfeição. Conseqüentemente, para ser completado, um projeto de lei pode levar até quatro meses, e mesmo depois disso podem ser necessários ajustes textuais, seja no comitê, seja na Casa dos Lordes. O Conselho Parlamentar é responsável pela lei enquanto diante do Parlamento, mas as correções devem ser transferidas para um M. P. [Membro do Parlamento], que geralmente é o ministro encarregado. Depois de planejada, a lei é apresentada ao Comitê de Legislação do Gabinete, que examina a sua estrutura e seus detalhes para assegurar que esta seja de modo geral aceitável como uma medida aplicável.” (grifo nosso) Cf. HARVEY, J.; BATHER, L. The British Constitution. Glaslow: Macmillan, 1968. p. 159. 12 segundo momento, a visão trazida na Idade Média pelas correntes ali predominantes. O período moderno e as transformações racionalistas são a abordagem seguinte que, por sua vez, se remeterá a algumas anotações sobre o conceito de verdade universal para os filósofos contemporâneos. No mesmo sentido do capítulo primeiro, que versará sobre a verdade universal, o segundo tratará da construção conceitual do Direito Natural, propriamente dito. Abordando inicialmente a necessidade antiga e inerente à natureza humana de buscar uma fundamentação axiológica para o ordenamento jurídico. Três são os períodos históricos abordados. A antiguidade clássica é o primeiro. Nesse momento, serão colhidos os principais entendimentos jusnaturalistas da Grécia clássica e do chamado Império Romano. Em segundo, a compreensão jusfilosófica construída na Idade Média a qual precedeu a chamada Escola do Direito Natural formulada à partir das influências racionalistas. Serão também trazidos à baila nesse terceiro momento uma breve síntese do empirismo de John Locke e do criticismo de Immanuel Kant. Finalmente, serão tratados os encontros e desencontros da contemporaneidade. Essa nossa era simpática, fortemente influenciada pelos padrões comumente denominados pós-modernistas, será abordada à luz de duas de suas correntes mais relevantes. A uma, os Estudos Críticos do Direito ou, do original em inglês, Critical Legal Studies. A duas, o Surrealismo Jurídico, corrente jusfilosófica nacional. 13 1 A VERDADE UNIVERSAL 1.1 O homem e a procura da verdade A definição do conceito de verdade representa em si mesma um dos maiores desafios da humanidade. A história apresenta registros de situações que, justamente por se localizarem em um passado longínquo, terminam por comprovar a seguinte afirmação: a incessante busca do homem pela compreensão da verdade não é, definitivamente, algo recente. Mais do que isso, ela chega a ser característica de inerência humana. A história hebraica traz um precioso exemplo dessa assertiva quando faz menção a um importante ícone da construção identitária daquele povo. Hoje conhecido como José do Egito, aquele administrador do palácio do faraó, por volta do ano 1700 a.C., determinou a prisão de seus irmãos a fim de garantir que o mais novo deles, deixado para trás, fosse efetivamente trazido à sua presença. Assim disse ele: Enviai um dentre vós, que traga vosso irmão; vós ficareis detidos para que sejam provadas as vossas palavras, se há verdade no que dizeis; ou se 3 não, pela vida de Faraó, sois espiões. De fato, a intenção de José era garantir que tornaria a ver seu irmão caçula. Entretanto, ainda assim, ao menos no âmbito interpessoal de seu discurso, o fundamento da decisão era a busca da verdade: conhecer se o que lhe diziam, sobre serem ou não espias, era verdadeiro ou falso. Este registro demonstra que a verdade é um conceito, já de muito, preponderante para o deslinde dos acontecimentos e, além disso, objeto central das preocupações humanas. 3 BÍBLIA. Gênesis. Português. Bíblia Sagrada. Trad. de João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. p. 68. 14 Michel Foucault foi um filósofo moderno que se assumiu, empirista. 4 No ano de sua morte, 1984, ele respondeu a um repórter: “você sabe, eu sou um empirista: Eu não tento avançar coisas sem ver se são aplicáveis”. 5 Quando escreveu “As palavras e as coisas”, em 1966 – uma entre tantas obras primas de sua autoria –, disse o seguinte: O que torna possível o conjunto da epistémê clássica é, primeiramente, a relação a um conhecimento da ordem. Quando se trata de ordenar as naturezas simples, recorre-se a uma máthêsis cujo método universal é a Álgebra. Quando se trata de pôr em ordem naturezas complexas (as representações em geral, tais como são dadas na experiência), é necessário constituir uma taxinomia e, para tanto, instaurar um sistema de signos. Os signos estão para a ordem das naturezas compostas como a álgebra está para a ordem das naturezas simples. Mas, na medida em que as representações empíricas devem ser suscetíveis de se analisar como naturezas simples, vê-se que a taxinomia se reporta inteiramente à máthêsis; em contrapartida, posto que a percepção das evidências é apenas um caso particular da representação em geral, pode-se dizer igualmente que a máthêsis, não é mais do que um caso particular da taxinomia. Do mesmo modo, os signos que o próprio pensamento estabelece constituem como que uma álgebra das representações complexas; e a álgebra, inversamente, é um método para conferir signos às 6 naturezas simples e para operar sobre esses signos. É por essa e tantas outras que se poderá concluir, no mesmo sentido do percebido no raciocínio desse filósofo acerca da taxinomia, que são uma constante busca do ser humano as definições impassíveis de contestação, ou seja, os conceitos universais ou, como aqui denominado, as verdades universais. 4 MARTINS COSTA, Tágory Figueiredo. Cada tempo tem seu tempo e sua revolução. Disponível em: <http://www.tagory.blog.com>. Acesso em: 8 abr. 2008. 5 KRITZMAN, Lawrence D. Michel Foucault: politics, philosophy, culture; interviews and other writings, 1997-1984. New York & London: Routledge. apud MARSHALL, Jim. Foucault, Ciência e Educação. Encyclopedia of Philosophy of Education, Auckland, 11 out. 1999. Disponível em: <http://www.ffst.hr/ENCYCLOPAEDIA/foucault.htm>. Acesso em: 8 abr. 2008. 6 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 87. 15 1.2 Uma perspectiva epistemológica Os lexicográficos brasileiros sintetizam que a verdade é percebida justamente quando o homem e o ambiente irreparavelmente se conectam. É, portanto, o elo que se forma entre o objeto e o ser que o conhece. Para Antônio Houaiss, por exemplo, verdade é: a correspondência, adequação ou harmonia passível de ser estabelecida, por meio de um discurso ou pensamento, entre a subjetividade cognitiva do intelecto humano e os fatos, eventos e seres da realidade objetiva. 7 Essa noção de correspondência entre o sujeito cognoscente e a realidade objetiva é precisamente a base sobre a qual se erige o conceito de verdade – ao menos no campo da gnosiologia. As condições de existência do conhecimento perpassam pela noção do que é verdade (em oposição ao que é falso). De acordo com esse entendimento, somente se poderia considerar o verdadeiro como sendo epíteto de um determinado objeto se um juízo de valor for exercido pelo ser que o percebe. Uma coisa é verdadeira quando “é o que parece ser.” 8 E isso basta. Mesmo por que, por conseguinte, se algo parece ser, é porque o parece para alguém, e assim se evidencia o relacionamento “objeto” x “ser cognoscente”. Fez-se veicular na rede mundial um texto, no mínimo espirituoso, intitulado “Princípio da incerteza – dúvida razoável do Conde de Redondo”. Assim se podia ler: Se o teu espírito te levar a práticas menos prezadas, a certas zonas de certas cidades do mundo: duvida de toda a mulher que afirme várias vezes que é de facto mulher com a voz mais grossa que a do teu pai, que no alto do seu metro e oitenta e das suas costas musculadas tenha a pele cinzentaesverdeada nas zonas do queixo e maxilar – se este último for muito largo pior –, que tenha músculos mais rijos que os teus, cabelo tipo liça, e que responda por qualquer nome estrangeirado (Jéssica, Wanda, Sophia, Rebecca, Katya, entre outros). 7 Verdade. Disponível em: HOUAISS, Antônio; Villar, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 2845. 8 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2003. 16 Lembra-te sempre que essa mulher pode de facto chamar-se Roberto e ser ao mesmo tempo o seu próprio chulo e segurança. 9 Nesta inteligente brincadeira, o autor demonstra que a dúvida razoável é benéfica e, quando amplamente explorada, resulta em positivos resultados (ao menos para aquele a quem, no texto, se dirigiu). Mais do que isso, esse texto também se presta a evidenciar que a verdadeira identidade da “mulher” ali descrita não está nas características que objetivamente se demonstra apresentar, mas sim nos atributos que o homem a ela confere. Eis aí a dependência do conceito de verdade à relação objeto/cognoscente. No período pré-socrático da teoria do conhecimento, 10 assim entendido como o período histórico compreendido entre os séculos VII e VI a. C, os filósofos Heráclito e Parmênides se ocuparam do problema da verdade universal. O costume anterior a eles era o da busca de explicações através de um discurso mítico ou, como prefere Lyra (1980), formulado pela ciência panteísta. Nesse sentido, utilizou-se do mito para explicar a origem da expressão “voto de Minerva”, com a qual denominamos o voto de desempate proferido pelos presidentes dos colegiados. Minerva fez sair da terra uma oliveira. Seu pássaro favorito foi a coruja cujo olhar rompe as trevas. A chamada coruja de Minerva só voava no começo do crepúsculo vespertino de uma sociedade. Seria inspiradora dos sábios conselhos e dos discursos eloqüentes. Cícero, quando era cônsul, mandou pôr no Capitólio a imagem de Minerva. 11 Entre as suas maiores contribuições está a inauguração de uma era investigativa em relação a esse tema – em oposição ao costume anterior, que era a busca de explicações através de um discurso mítico. 9 VENTOINHA. Desenvolvido por escritores anônimos. Apresenta conteúdo dissertativo e formato de blog. Disponível em: <http://ventoinha.blogspot.com/2007/02/principio-da-incertezaduvida-razoaveldo.html>. Acesso em 10 Ago 2007. 10 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. 3. ed. rev. São Paulo: Moderna, 2003. 11 LYRA, Roberto. Formei-me em Direito. E agora? Rio de Janeiro: J. Olympio, 1980. p. 18. 17 Para Heráclito (544-484 a.C), tudo flui. As coisas são essencialmente dinâmicas. A noção de mutabilidade constante – com a qual é conhecido, por exemplo, o fogo – promove um tom relativista ao seu discurso, muito embora este pensador não tivesse negado a existência autônoma das coisas. Em Parmênides (c.540-c.470 a.C.), ao contrário, vislumbra-se a imutabilidade das coisas. O ser é imutável: este é o fundamento da escola eleática, corrente filosófica à qual Parmênides é vinculado. Suas conclusões foram diametralmente opostas ao “tudo flui” elaborado por Heráclito. Aqui, fica rechaçada a idéia de que uma coisa pode, ao mesmo tempo, ser e não ser e, nesse sentido, começa a emergir o posterior chamado princípio da identidade. Parmênides vislumbra a existência de dois mundos: o mundo sensível e o mundo inteligível. No primeiro, as coisas são percebidas pelos sentidos. No segundo mundo, entretanto, as coisas são percebidas pelo pensamento. Nesse sentido, o que não compuser o pensamento, na verdade, não existe. Nota-se aqui, mais uma vez, a noção de verdade derivando do relacionamento estabelecido entre o ser cognoscente e o objeto conhecido. Quanto aos sofistas, o que se sabe é que muito pouca coisa restou vindo diretamente deles para os dias de hoje. Esses pensadores do período socrático (séculos V e IV a.C.) foram vistos com desamor pelos seus opositores pois mercanciavam o ensino do conhecimento que detinham. Para a corrente dominante à época, tal postura retirava-lhes o caráter nobre da filosofia, que residia justamente na sua gratuidade. Os sofistas constituíram a agremiação intelectual mais interessante talvez. Segundo Fuller (2006), eram os sofistas que promoviam verdadeiramente a busca pela razão por intermédio de sua postura sempre questionadora. O sinal mais evidente de que os juízos históricos dificilmente voltam atrás é o destino de grupos específicos que dão nome a vícios e deficiêwncias da humanidade em geral: “hunos” e “vândalos”, “anarquistas” e “fascistas” são alguns deles. Para o intelectual, o mais relevante grupo dessa categoria é constituído pelos “sofistas”, os grandes reivindicadores da razão nos tempos da antiga Atenas. Muitos intelectuais considerariam um insulto que suas atividades fossem caracterizadas como “sofísticas” ou, pelo menos, que fossem encaradas como um desafio à integridade de seu pensamento. 18 Contudo, os sofistas foram os primeiros e ainda são de grande valia para a formação de um intelectual – desde que suas atividades sejam examinadas com mais ponderação. 12 Entre os grandes sofistas, como Protágoras, Górgias, Híppias, Pródico, Trasímaco, Pródico, Hipódamos, etc., havia uma grande diversidade teórica. Contudo, se algo há em comum entre eles é certamente a noção da lógica, ao menos embrionária, posteriormente desenvolvida por Aristóteles. Nesse diapasão, os sofistas entendiam que a verdade não é de ser dita, simplesmente, senão demonstrada através da atividade do raciocínio. O que parece sugerir uma vocação um tanto relativista é na verdade a promoção da capacidade conferida aos homens de entabular a verdade através do raciocínio (e sua demonstração verbal). Verdadeiro, portanto, é aquilo que o homem consegue apreender através de um raciocínio validamente construído e de um discurso coerentemente desenvolvido. Sobre o assunto – provavelmente com o fito de orientar o homem à excelência do seu pensar – o filósofo húngaro Lukács György indicou que o ser cognocente deve procurar secularizar a “visão cartesiana do ceticismo” mediante uma postura que, conforme denominou, se pauta na “consciência oposicionista”. 13 Assim, conforme o estilo filosófico dos sofistas, a tão almejada intelectualidade pode ser apreendida por intermédio de um olhar precipuamente dialético face as definições convencionais. Sócrates (c.470-399 a.C.), por outro lado, faz oposição aos sofistas e ao seu desconstrutivismo. Sua atividade esteve majoritariamente voltada para a moral e os assuntos a ela correlacionados. Nesse âmbito, ele se ocupou dos conceitos de coragem, covardia, piedade, justiça, entre outros. A partir da sua produção gnosiológica foi possível construir o entendimento de que a verdade deriva da conformidade entre o objeto concretamente percebido e o seu conceito – previamente definido para descrever todo o gênero ao qual pertence. Esse conceito é chamado logos. 12 FULLER, Steve. O intelectual: o poder positivo do pensamento negativo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. p. 13. 13 LUKÁCS, György apud FULLER, Steve. op. cit. p. 44. 19 Considerado o mais notável seguidor de Sócrates, Platão (428-347 a.C.) notabilizou-se com a criação do Mito da Caverna, alegoria pela qual demonstra a existência de dois mundos: o mundo sensível e o mundo inteligível. O primeiro desses é composto pelas coisas que, através dos sentidos, o homem percebe. É a sombra na caverna, a projeção do mundo verdadeiro. As coisas, entretanto, se conectam conceitualmente por intermédio de uma definição que lhes é comum. Esse conceito, que da conta das suas essências assim como o logos de Sócrates, compõe o mundo inteligível: o mundo das idéias (eidos). Há quem extraia da filosofia de Platão noções correspondentes ao que hodiernamente se chama idealismo. Nesse sentido, quando se trata do platonismo, as coisas parecem existir no campo das idéias. Não é o mais apropriado: a uma, pois o idealismo é corrente nova, relativamente recente – será tratada mais a frente neste texto – e, a duas, porque suas considerações convergem no que hoje se chama idealismo objetivo. Este, também chamado realismo das idéias, prefere dotar as idéias de uma existência real. As idéias existem, como coisas. A filosofia em Aristóteles (384-322 a.C.), ainda no período chamado socrático 14 , também se ocupou deste assunto. Sua produção científica foi responsável pela fusão entre o mundo sensível e o inteligível na medida em que trouxe o conceito de substância. A essência da substância, que existe em si mesma, decorre dos atributos pelos quais podemos compreender aquilo que ela é. Tais atributos, fonte da polêmica questão dos universais, existem formalmente, é bem verdade, no pensamento do ser cognoscente, mas sua fundamentação decorre das próprias coisas. 15 Novamente em Aristóteles, vê-se que a verdade se extrai do relacionamento estabelecido entre a coisa (objeto do conhecimento) e o homem (ser cognoscente). Aliás, este elo é comum a todos os pensadores até agora relacionados, o que sugere a idéia de que a verdade universal está, de fato, atrelada ao subjetivismo homem enquanto ser cognoscente. 14 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. 3. ed. rev. São Paulo: Moderna, 2003. 15 Sobre o realismo moderado, ver ARANHA, M. L. ibidem. 20 1.3 Uma perspectiva metafísica Com a invasão do Império Romano do Ocidente por diversos povos bárbaros no ano 476 d.C., o mundo, já acostumado a um dominador comum, começou a experimentar o segmentarismo característico de um sistema feudal. É nesse contexto que a Igreja (Católica Apostólica Romana) surge: como elemento de ligação entre as mais diversas sociedades. O período que ali se iniciou é chamado de Idade Média e vai do Séc. V ao Séc. XV d.C. 16 Para uma sociedade globalmente fracionada como aquela da época, o aparecimento de uma instituição agregadora como a Igreja teria como destino inevitável a subsunção à sua poderosa influência política e espiritual. Tal autoridade, àquela época, propulsionou o desenvolvimento dos estudos filosóficos de maneira extremamente vigorosa. É nesse período histórico, por exemplo, que serão encontrados grandes autores, como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. O que há entre eles em comum é o interesse em conceituar e justificar a fé utilizando-se de fundamentos da filosofia greco-latina através de uma releitura da produção científica até ali agregada. Os gregos discutem as funções dos sentidos e da razão como instrumentos que ou nos prendem às aparências das coisas ou nos permitem conhecer a essências delas. Porém, há algo em comum em todos eles: quando discutem o problema da verdade, o fazem sem colocar em dúvida a existência do real e a capacidade da razão humana de conhecer. O mesmo acontece na Idade Média, ainda se considerarmos as diferenças introduzidas por conta dos pressupostos religiosos que permeiam a chamada “filosofia cristã”. Quer consideremos a tradição agostiniana, influenciada pelo neoplatonismo, quer ressaltemos a filosofia aristotélicotomista, permanece a visão grega em que não se coloca em dúvida a existência do real. 17 Merecedor de destaque, a respeito desse período, é o entendimento dos filósofos (leia-se: párocos) em colocar a fé acima da razão. Não que a razão não 16 SCHILLING, Voltaire. Constantinopla: a queda da maçã de prata. Disponível em: <http://educaterra.terra.com.br/voltaire/antiga/2003/10/13/002.htm>. Acesso em 6 abr. 2008. 17 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. 3. ed. rev. São Paulo: Moderna, 2003. p. 127. 21 tenha sido por eles considerada importante, contudo, o seu uso se prestava ao serviço da fé. É de Santo Agostinho o brocardo latino “credo ut intelligam”, ou seja, “creio para que possa entender”. Primeiro a fé, depois a razão: eis o pilar central da chamada apologética, que era o intuito comum da Igreja em converter os pagãos e combater as heresias através da razão justificada pela fé. 18 Começa a surgir aqui uma outra percepção acerca da verdade universal. Ela existe. Ela vem de Deus. Na teoria da iluminação - raciocínio agostiniano que relê o platonismo – Deus fornece ao homem o conhecimento sobre todas as coisas através da revelação. É por revelação que o homem, como ser cognoscente, se relaciona com o objeto conhecido. A verdade universal foi ali denominada verdade eterna pois, assim como o Grande Geômetra que a revelou, ela jamais findará. Ao percorrerem a produção filosófico-científica até então aglutinada, os párocos recorrem inicialmente aos escritos de Platão. O principal nome é o de Santo Agostinho (204-270 d.C.). Ele retornou ao platonismo ao separar o universo em: mundo sensível e mundo das idéias. A diferença em relação a Platão está no fato de que para aquele as idéias são, na verdade, provenientes de Deus. Dessa forma, considerando que o mundo das idéias é, de fato, a mente de Deus, o filósofo diz que o nosso conhecimento provém dEle. É também nesse período que surge a escolástica. Entre suas mais marcantes contribuições está, por exemplo, a fundação de universidades. Elas começaram a aparecer no século XII e, até o final da Idade Média (séc. XV) na Europa já se podiam encontrar mais de oitenta. A escolástica foi uma construção filosófica voltada para a justificação da fé através da lógica da razão. Para Sandrelli (2008), ela poderia ser definida como: um tipo de vida intelectual e educativa que predominou entre os séculos XI e XV, contribuindo para o estabelecimento das universidades. Produziu um acervo literário extensivo. Tinha como premissa justificar a fé a partir da razão, revigorando a religiosidade exaltando a Igreja através dos 18 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. 3. ed. rev. São Paulo: Moderna, 2003. p. 125. 22 argumentos intelectuais. 19 Esta escola filosófica chegou a conclusões que, assim como aquelas na antiguidade construídas, entabulavam que a verdade se constitui da conformidade do pensamento em relação ao mundo que o cerca. 19 SANDRELLI, Iliane. A escolástica como instrumento de ensino filosófico e literário na idade média. Correio da Tarde, Natal e Mossoró, 8 abr. 2008. Disponível em: <http://www.correiodatarde.com.br/artigos/5311> . Acesso em 8 abr. 2008. 23 1.4 A verdade universal no pensamento moderno Com o fim da Idade Média, o paradigma filosófico predominante, fundado sobre os pilares do realismo, é quebrado para que em seu lugar sejam erigidas duas correntes doutrinárias: o empirismo e o racionalismo. Converge-se na figura de René Descartes (1596-1650) a formação do racionalismo e, bem assim, a inauguração desse novo período histórico que se convencionou chamar Idade Moderna. Também considerado o pai da filosofia modernista, esse pensador francês construiu seus estudos dedicando-se à metodização da dúvida. Segundo ele, a verdade é aquilo que não poderá ser posto em dúvida. E para que ocorra esse afastamento da dúvida, Descartes propõe que o homem – ser pensante –promova o conhecimento através do raciocínio. Para Aranha (2003) o traço marcante do pensamento cartesiano está na idéia de que o pensamento é em si mesmo suficiente para que o homem alcance o conhecimento de toda e qualquer verdade. Acentua-se o caráter absoluto e universal da razão que, partindo do cogito, e só com suas próprias forças, descobre todas as verdades possíveis. Daí a importância de um método de pensamento como garantia de que as imagens mentais, ou representações da razão, correspondam aos objetos a que se referem e que são exteriores a essa mesma razão. 20 Constrói-se aqui, novamente, a idéia de que há uma verdade universal e inata, absolutamente acessível através de apropriados métodos de exercício da racionalidade humana. Contemporaneamente a Descartes, surgiu precipuamente na Inglaterra uma outra corrente filosófica, oposta àquele cartesianismo racionalista, chamada com o nome de empirismo. Essa doutrina relacionou o conhecimento do ser humano com a 20 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. 3. ed. rev. São Paulo: Moderna, 2003. p. 132. 24 sua própria experiência sensível, ou seja, com aquilo que ele absorve a partir de estímulos externos sobre os seus sentidos. O maior expoente do empirismo foi o inglês John Locke (1632-1704), para quem o homem nasce como uma tábula rasa, sem qualquer inscrição, e, à medida que vai recebendo estímulos sobre os seus sentidos e consequentemente construindo sua experiência, começa de fato a conhecer. A idéia de uma verdade universal – expressa por Descartes na figura divina – é inadmissível para Locke uma vez que a verdade, justamente por partir da experiência sensível, pode ser construída diferentemente em cada indivíduo. Para ele, caso houvesse verdades universais, as crianças já o saberiam. Eis aí a principal diferença entre as duas correntes. Para os racionalistas, a verdade universal existe e pode ser alcançada pelo homem. Para os empiristas, por outro lado, ela é uma utopia. Conforme Aranha (2003): Como conseqüência, os racionalistas confiam na capacidade humana de atingir verdades universais, eternas, enquanto os empiristas terminam por questionar o caráter absoluto da verdade, já que o conhecimento parte de uma realidade in fieri (isto é, em transformação constante). 21 No século XVIII nasceu na Alemanha o pensador Immanuel Kant (17241804). Sua obra supera a discussão anterior na medida em que conclui que o conhecimento deriva de juízos universais (como entendiam os racionalistas) da mesma forma que decorre também da experiência. Kant questiona o que é conhecimento e, ao final, chega à conclusão de que não é dado ao homem o poder de conhecer as coisas como elas são, em si mesmas. O conhecimento depende de matéria e forma, sendo matéria a substância fornecida pela experiência sensível e forma as estruturas a priori organizadas pela nossa sensibilidade. Nesse sentido, ele conclui que é impossível o chamado conhecimento metafísico (Deus, a imortalidade da alma, a liberdade, a infinitude do universo), pois esses objetos carecem de matéria. 21 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. 3. ed. rev. São Paulo: Moderna, 2003. p. 134. 25 Friedrich Nietzsche (1844-1900) revolve a discussão instalada e polemiza todos os argumentos até então lançados ao questionar o que é verdade. O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transportadas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu o que são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. 22 Portanto, extrai-se da sua produção intelectual que a verdade universal somente o é para aquele que manipula as figuras da linguagem e imprime sobre os conceitos sua interpretação rigorosamente subjetiva. Contornos relativistas são dados ao tema e, nesse sentido, o que Nietzsche constrói é uma enorme crítica é feita às escolas filosóficas até então. 22 NIETZSCHE, F. apud MARTON, Scarlett. Nietzsche, a transvaloração dos valores. São Paulo: Moderna, 1993. p. 80-81. 26 1.5 A verdade nos dias contemporâneos Apesar de ter tido seu pensamento tratado na subseção anterior, que versa sobre o período moderno da filosofia, o pensador Friedrich Nietzsche é geralmente associado à construção gnosiológica do século XX. Isso porque é na sua época que, a partir do raciocínio por ele entabulado, a Filosofia resgata a construção de um entendimento relativista sobre a verdade ainda hoje preponderante. Michel Foucault (1926-1984), por exemplo, foi um filósofo francês que questionou a posição do poder em relação ao conhecimento. Para ele (1966), o saber decorre necessariamente do exercício do poder, ou seja, é a serviço do poder que o conhecimento é construído pela ciência 23 . Nesse sentido, é inapropriado tentar atribuir aos objetos passíveis de conhecimento um status de verdade universal ou considera-los como fundamentos de conhecimentos outros tomados como universalmente verdadeiros. Mesmo porque “a ciência curva-se à epistemologia, assim como a verdade faz parte de um processo de atividade constante (HORROCKS e JEVTIC, 2001).” 24 Para Candioto (2006) o raciocínio de Foucault poderia assim ser descrito: A verdade é produzida pela articulação entre práticas heterogêneas, ou melhor, entre práticas discursivas (o efetivamente dito, a materialidade do discurso, o acontecimento de dizer é uma prática, uma prática discursiva) e práticas não-discursivas. 25 Assim, pode-se concluir que a verdade é algo que decorre da manipulação das palavras através da postulação estratégica do discurso ou, conforme dispôs, da articulação entre práticas discursivas. 26 23 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. 3. ed. rev. São Paulo: Moderna, 2003. p. 149. 24 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O pós-modernismo jurídico. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2005. p. 101. 25 FOUCAULT, M. apud CANDIOTTO, C. In Foucault: uma história crítica da verdade. São Paulo: Trans/Form/Ação, 2006, p. 65-78. 26 ibidem 27 A fenomenologia, embora constantemente associada ao pensamento filosófico do século XX, surgiu ainda no século XIX, a partir de Franz Brentano, seu maior expoente. Sua abordagem a respeito do conhecimento tem como principal característica a noção de intencionalidade. Com esta palavra se afirma que, ao contrário do que pretendia o racionalismo cartesiano, não existe uma consciência pura, objetiva, integralmente separada das coisas, pois o ser que conhece o faz conforme a sua subjetividade. Esse movimento representa um resgate do papel do sujeito (leia-se, do homem) na construção da ciência uma vez que o coloca novamente como elemento necessário na formação de um saber derivado da sua subjetividade e experiência pessoal. Em um momento imediatamente posterior, surge na Alemanha a chamada Escola de Frankfurt. Com sua abordagem filosófica, também conhecida sob o nome de Teoria Crítica, resgata – tal como a fenomenologia – a participação do homem no processo de conhecimento. De forma a reintegrar o sujeito cognoscente e o objeto por ele conhecido. 27 A página central dessa corrente filosófica é justamente combater a chamada teoria tradicional, formada pelos pensadores anteriores, no que diz respeito à objetividade da razão. O ser racional é dotado de paixões, instintos, memória e com todos esses fatores é que constrói o conhecimento. Além disso, tal como Michel Foucault, a Escola de Frankfurt também ressalta a disseminação daquilo que ela mesma chama de razão instrumental. Esta se constitui na construção de um saber disposto a serviço das relações de poder. Ela é, para Aranha (2003), o “exercício da racionalidade científica, típica do positivismo, que visa a dominação da natureza para fins lucrativos e coloca a ciência e a técnica a serviço do capital”. 28 27 MATOS, Oligária. Escola de Frankfurt; luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993. p. 48 28 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. 3. ed. rev. São Paulo: Moderna, 2003. p. 150. 28 Esta mesma crítica foi feita por Fuller (2006), quando escreveu que: Além do mais, tendo em conta que as pessoas costumam acreditar naquilo que é conveniente a seus interesses, o mercado tende a não dar crédito a descobertas genuinamente inovadoras. Assim sendo, o investidor sagaz – digamos, o Estado ou, mais provavelmente, um fundo corporativo de pesquisas – pode buscar jogadas a longo prazo que desafiem a sabedoria convencional, mas, que, se derem certo, trarão um ótimo lucro. Essas apostas a longo prazo se mostrarão os destruidores criativos do mercado intelectual. 29 É mais uma vez perceptível àquela noção do conhecimento a serviço dos jogos de poder e, nesse sentido, o conceito de verdade universal vai sendo fragilizado ante a “descoberta” dessa cruel realidade gnosiológica. Finalmente, nessa mui breve passagem pela construção conceitual do que se entende por verdade universal ao longo da história do pensamento filosófico, deve ser mencionada a corrente epistemológica intitulada Filosofia da Linguagem ou, como conhecida por outros, Filosofia Analítica. Essa abordagem filosófica surgiu no século XX a partir de uma dura crítica à filosofia tradicional acerca da tentativa de se relacionar o sujeito e o objeto na procura pela verdade. Sua produção bibliográfica compreende a construção do raciocínio que prioriza a apreensão dos conceitos a partir da linguagem. Destaca-se, nesse ambiente, o entendimento de Ludwig Wittgenstein, pensador austríaco para quem a função da filosofia não é a de descobrir a verdade através da formulação de proposições conceituais, prontas e acabadas. De efeito, a filosofia se constitui em uma atividade do pensamento mediante a qual proposições são tornadas claras, conceitos elucidados. The object of philosophy is the logical clarification of thoughts. Philosophy is not a theory but an activity. A philosophical work consists essentially of elucidations. The result of philosophy is not a number of "philosophical propositions", but to make propositions clear. Philosophy should make clear and delimit sharply the thoughts which otherwise are, as it were, opaque and blurred. 30 29 FULLER, Steve. O intelectual: o poder positivo do pensamento negativo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. p. 13. 30 “O objeto da filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos. A filosofia não é uma teoria, é uma atividade. Uma obra filosófica consiste essencialmente em elucidações. O resultado da 29 Dessa forma, vê-se que a noção da existência de uma verdade universal, ou melhor, de proposições universalmente válidas (imunes de dúvida), se distancia cada vez mais da atual realidade filosófica para habitar no lugar nenhum da “utopicidade”. O relativismo e a circunstancialidade da verdade é cada vez mais comum segundo a abordagem proposta pela literatura pertinente na contemporaneidade. filosofia não é um conjunto de ‘proposições filosóficas’, é tornar proposições claras. Cumpre à filosofia tornar claros e delimitar precisamente os pensamentos que, caso contrário são como eram antes, turvos e indistintos.” WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. London: Routledge and Kegan Paul, 1922. Disponível em: <http://www.kfs.org/~jonathan/witt/aabout.html>. Acesso em: 14 abr. 2008. 30 2 O DIREITO NATURAL 2.1 A histórica procura pelo Direito Natural A fundamentação e a justificação do Direito Positivo 31 32 sobre caracteres anteriores a ele e, ao mesmo tempo, dotados de perenidade, não é coisa nova. Ao contrário, para Montoro (1968) tal estrutura acompanha a própria formação histórica do Direito. 33 Segundo Lima (2000), a busca pelo Direito Natural é uma característica de inerência humana já que, “diante das insuficiências e das estreitezas da lei, o pensamento é tentado a conceber uma ordem mais alta e mais perfeita, um ponto ideal firme de referência crítica para a legislação vigente”. 34 There is in all men a demand for the superlative, so much so that the poor devil who has no other way reaching it attains it by getting drunk. It seems to me that this demand is at the bottom of the philosopher’s effort to prove that truth is absolute and of the jurist’s search for criteria of universal validity which he collects under the head of natural law. 35 Há registros da preocupação humana, nos tempos mais remotos, para com a necessidade de se utilizar fundamentos transcendentais à norma – e ao próprio homem – com o objetivo de legitimar a construção do Direito Positivo. Apesar de alguns autores mencionarem o Código de Urukagina como sendo o mais antigo instrumento normativo que já tenha existido, o Código de Ur-Namu é 31 “Conjunto de normas elaboradas por uma sociedade determinada, para reger sua vida interna com a proteção da força social.” Cf. MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968. p. 257. 32 “Sistema de normas vigentes, obrigatórias, aplicáveis coercitivamente por órgãos institucionalizados, tendo a forma de lei, de costume ou de tratado.” Cf. GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 54. 33 MONTORO, op. cit. p. 34. 34 LIMA, Hermes. Introdução à Ciência do Direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. p. 203. 35 “Há em todos os homens uma demanda pelo superlativo de tal forma que o pobre demônio que não possui outra maneira de alcança-lo o faz embriagando-se. A mim parece que essa demanda está no fundo de todo o esforço dos filósofos em provar que a verdade é absoluta e na busca do jurista por um critério de validade universal que ele coleta sob a cabeça do Direito Natural.” Cf. HOLMES, Oliver W. The Dissenting Opinions of Mr. Justice Holmes. Nova Iorque: Vanguard Press, 1929. p. xiii. 31 considerado o mais velho, pois, além de datar de aproximadamente 2050 a.C., foi encontrado fisicamente, conquanto o primeiro é apenas mencionado em tábuas e documentos arcaicos. O código mais antigo, até hoje encontrado, foi o de Ur-Namu (2050 a.C. aproximadamente), da terceira dinastia de Ur, achado em 1953, por Samuel Kramer, e que é conhecido também por “tabuinha de Istambul”, pelo fato de ter sido gravado em uma pequena tábua. Em vez da pena de talião consagrou a pena de multa em dinheiro. Neste mesmo sentido, Wood (1979): In 1952, again working in Istanbul's Museum of the Ancient Orient, he [Samuel Kramer] also […] translated a tablet that turned out to be part of the Ur-Nammu code of law - which antedates the famous Code of Hammurabi by about 300 years. 36 As construções normativas em seu texto encontradas demonstram a preocupação do legislador em estabelecer critérios objetivos a partir de valores socialmente relevantes para aquele contexto histórico e social. Note-se, sobretudo, que os direitos subjetivos protegidos pelos fatos típicos insculpidos neste código demonstram a íntima conexão dos valores daquela época com os atualmente defendidos – muito embora talvez não se possa dizer o mesmo das sanções em abstrato. Como exemplo disso, tome-se os dois primeiros artigos: 1. If a man commits a murder, that man must be killed. 2. If a man commits a robbery, he will be killed. 37 É nesse diapasão que entabula, por exemplo, sanções de caráter monetário a fatos típicos atentatórios à incolumidade física da vítima. 18. If a man knocks out the eye of another man, he shall weigh out ½ a mina of silver. 19. If a man has cut off another man’s foot, he is to pay ten shekels. 38 36 “Em 1952, trabalhando novamente no Museu do Antigo Oriente de Istambul, ele [Samuel Kramer] também […] traduziu uma tábua que se mostrou ser parte do Código de Leis de Ur-Namu – o qual antecede o famoso Código de Hamurabi em aproximadamente 300 anos.” Cf. WOOD, Mary Lucy. Kramer of Sumer. Aramco World Magazine, Houston, v. 30, n. 5, p. 19, set. 1979. 37 “1. Se um homem cometer homicídio, esse homem deverá ser morto. 2. Se um homem praticar um roubo, ele será morto.” Cf. KRAMER, Samuel. History begins at Sumer. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1981. p. 52 32 Há também o caso das Instruções de Shuruppak encontradas na região onde ficava a Mesopotâmia (hoje Iraque). Trata-se de tabletes com escrita cuneiforme no idioma neo-sumério. Essas tábuas, datadas de aproximadamente 1900 a 1700 a. C., versavam sobre normas de conduta social estabelecidas com base nos entendimentos axiológicos daquele tempo. INSTRUCTIONS OF SHURUPPAK, PROVERB COLLECTION, Lines 1-48 MS in Neo Sumerian on clay, Babylonia, ca. 1900-1700 BC, 1 tablet, 12,3x6,5x3,0 cm, single column, 45 lines in cuneiform script. Commentary: The text pretends to be addressed by the ante-deluvian ruler Shuruppak to his son Ziusudra, the hero of the flood story who, like Noah, survived the destruction of mankind and became the favorite of the gods. The Shuruppak instructions can be said to be the Sumerian forerunner of the 10 Commandments and some of the Proverbs of the Bible: Line 50: Do not curse with powerful means (3rd Commandment); lines 28: Do not kill (6th Commandment); line 33-34: Do not laugh with or sit alone in a chamber with a girl that is married (7th Commandment); lines 28-31: Do not steal or commit robbery (8th Commandment); and line 36: Do not spit out lies (9th Commandment). Similar proverbs in the Bible: Proverbs 6:1-5; 7:21-27; 22:26-27; 23:27-28. (grifo nosso) 39 Ademais, a construção do imaginário jurídico coletivo do povo israelita, sobretudo nos tempos narrados no Pentateuco 40 , perpassa com gritante obviedade pela idéia de uma norma positivada a partir de uma outra lei emanada por Deus. Nessa direção, basta notar que a tábua da lei, a qual continha os dez 38 “18. Se um homem arrancar fora o olho de outro homem, ele deverá pagar meia mina de prata. 19. Se um homem cortar o pé de outro homem, ele deverá pagar dez ciclos de prata.” Cf. KRAMER, Samuel. idem. 39 “INSTRUÇÕES DE SHURUPPAK, COLEÇÃO DE PROVÉRBIOS, Linhas 1-48. Manuscrito cuneiforme em Neo-Sumério, Babilônia, c. 1900-1700 a. C., 1 tábua, 12, 3x6, 5x3, 0 cm, uma coluna, 45 linhas em escrita cuneiforme. Comentário: O texto parece ter sido encomendado pelo legislador pré-diluviano Shuruppak ao seu filho Ziusudra, o herói da história do dilúvio que, como Noé, sobreviveu à destruição da humanidade e se tornou o favorito dos deuses. As Instruções de Shuruppak podem ser consideradas predecessoras aos 10 Mandamentos e alguns dos Provérbios da Bíblica: Linha 50: Não amaldiçoeis de maneira veemente (3º Mandamento); Linha 28: Não matarás (6º Mandamento); linha 33-34: Não rirás nem te sentarás sozinho em um quarto com uma mulher casada (7º Mandamento); linhas 28-31: Não roubarás nem assaltarás (8º Mandamento); e linha 36: Não cuspirás mentiras (9º Mandamento). Provérbios similares na Bíblia: Provérbios 6:1-5; 7:21-27; 22:26-27; 23:27-28.” Cf. ALSTER, Bendt. apud SCHOYEN, Martin. The Schoyen Collection. Disponível em: <http://www.schoyencollection.com/sumerianlit.htm>. Acesso em 16 abr. 2008. 40 Cinco primeiros livros do Velho Testamento. 33 mandamentos, foi entregue ao povo através de Moisés, sacerdote-mor e líder daquela nação, após ter ele recebido-a diretamente da boca de Deus: Então falou Deus todas estas palavras, dizendo: Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás diante delas, nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam e uso de misericórdia com milhares dos que me amam e guardam os meus mandamentos. Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão porque o Senhor não terá por inocente aquele que tomar o seu nome em vão. Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás, e farás todo o teu trabalho, mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o estrangeiro que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias fez o Senhor o céu e a terra, o mar e tudo o que neles há, e ao sétimo dia descansou; por isso o Senhor abençoou o dia do sábado, e o santificou. Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá. Não matarás. Não adulterarás. Não furtarás. Não dirás falso testemunho contra o teu próximo. Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo. (grifo 41 nosso) É, portanto, possível notar que já naqueles tempos as normas corporificadas em seu bojo para a ordenação social, uma vez que se fundavam nas proposições versadas pelo próprio Deus, legitimavam-se em princípios, de caráter igualmente normativo, tidos como anteriores à lei propriamente dita. Mais do que isso, eram anteriores ao próprio homem. É essa a noção que se extrai, nesse período histórico, do uso da expressão “Direito Natural”. A propósito, o notável jurista Godoy (2005), pela obra do qual é inconteste uma difundida admiração, após sumarizar o caso Marbury versus Madison conclui que as bases sobre as quais o magistrado erigiu sua fundamentação – por causa da qual, inclusive, lhe foi atribuída a fama da criação teórica do instituto do controle de constitucionalidade – eram políticas. O controle de constitucionalidade surgiu no caso Marbury v. Madison, que a Suprema Corte norte-americana enfrentou em 1803. Ao término de seu mandato presidencial em 1801, John Adams nomeou vários juízes, com os quais seu partido compartilhava da mesma orientação ideológica. Ressaltese que, como regra, o magistrado norte-americano é indicado e nomeado 41 BÍBLIA. Gênesis. Português. Bíblia Sagrada. Trad. de João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. 34 por quem exerça a chefia do poder executivo. O presidente da república nomeia juízes federais. William Marbury foi um dos juízes nomeados por John Adams; seria juiz de paz em Washington. Enquanto Marbury se preparava para a posse e o exercício do cargo, Thomas Jefferson foi eleito presidente e decidiu não empossar os juízes nomeados por John Adams, que era seu antagonista político. Marbury vê-se prejudicado pela decisão e ajuíza ação na Suprema Corte, com o objetivo de garantir a posse e o exercício. O juiz presidente da Suprema Corte era John Marshall, também opositor de Jefferson. Recebido o pedido, ordenouse a citação de James Madison, que na qualidade de secretário de Estado de Jefferson deveria apresentar defesa em nome do presidente norteamericano. Madison não contestou a ação. Marshall viu-se em situação difícil. Se ordenasse que Jefferson desse posse e exercício a Marbury, certamente sua ordem seria desconsiderada e o judiciário cairia no mais total descrédito. Se não deferisse o pedido o judiciário estaria também desmoralizado, porque era notório o direito que oxigenava a pretensão de Marbury. Marshall com muita sutileza e tato político consegue superar o impasse. Lembra que Marbury encaminhara seu pedido com base em uma lei processual que Marshall reputava contrária à constituição [sic], dado que invasora de competência. Assim, deu pela inconstitucionalidade da referida norma, embora reconhecendo os direitos que Marbury detinha, não determinou que ao reclamante se desse posse, evitou enfrentamento direto com o presidente Jefferson e ainda será celebrado como o imortal criador do controle de constitucionalidade. O fato é político e nada mais. 42 É bem verdade que o contexto da obra supramencionada aponta, efetivamente, para a desconstrução do caráter transcendental e hermético do discurso jusnaturalista. Este respeitável e bem sucedido propósito pode ser facilmente percebido no seu texto muito embora a conclusão aponte para a tímida fuga à rotulação pós-modernista. 43 Ainda assim, se por um lado o Direito Natural é ali duramente questionado, por outro, o autor termina por entabular um discurso que acaba por instituir semelhante critério, no que toca à universalidade e transcendentalidade, para a justificação do Direito Positivo: a necessidade de legitimação do Direito Positivo – seja ela política, judicial etc. Desde os tempos mais remotos até os contemporâneos, o homem vem se 42 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O pós-modernismo jurídico. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2005. p. 150. 43 “Porque indico conclusões, o trabalho não se classifica como pós-moderno; apenas se faz uma descrição dos principais elementos que marcam a manifestação dita pós-moderna […]” Cf. GODOY, Arnaldo Sampaio de Morais. op. cit. p. 162. 35 preocupando com sua necessidade de uma fundamentação do bojo normativo estatal e a sua necessidade de um elemento justificador menos susceptível às manifestações sócio-circunstanciais, mesmo que, para isso, precisem ser entregues às capilaridades do poder. 44 O pensamento jurídico pós-moderno antifundacionalista supõe um certo niilismo jurídico, duvidando dos institutos normativos do direito moderno, sem nenhuma proposta objetiva e salvacionista; 45 É ver reescrito o paradoxo de Augusto Comte que em célebre frase, anunciando o relativismo, proferiu um princípio absoluto. Que tudo é relativo pode até ser o único princípio, mas não deixa de ser um princípio absoluto. Vê-se indubitavelmente a relevante preocupação para com o tema da justificação do Direito Positivo por intermédio de critérios anteriores à norma em si. É essa a postura que se percebe mesmo entre os que desafiam a existência do Direito Natural. Para Gusmão (2002), o Direito Natural é, mais ainda, a única esperança do homem contemporâneo que vê à sua frente um direito reduzido à técnica e, quase sempre, servido à dominação social. […] talvez por ser a única salvaguarda do Homem em um mundo que transformou o direito em mero instrumento técnico e, muitas vezes, de opressão. 46 44 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O pós-modernismo jurídico. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2005. op cit. p. 164. 45 ibidem. P. 165. 46 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 373. 36 2.2 O Direito Natural na Antiguidade Clássica: a natureza Não obstante a humanidade haja dado claros sinais de sua preocupação com a busca de um Direito Natural uniformizador da fundamentação do Direito Positivo, ao que parece, a historiografia jurídica acordou em contar o jusnaturalismo a partir do período histórico que se convencionou chamar de Grécia Antiga. 47 Assim, lê-se em Montoro (1968) o seguinte: Desde a Antigüidade, esse pensamento, com formulações diferentes, dominou as especulações filosóficas, éticas e jurídicas dos que se ocuparam do tema. Uma das primeiras manifestações dessa doutrina pode ser encontrada no teatro grego, na famosa tragédia de Sófocles […] 48 Não tão diferentemente escreveu Gusmão (2002): A Teoria do Direito Natural é muito antiga, estando presente na literatura jurídica ocidental desde a aurora da Civilização Européia. Na descoberta ateniense do homem, parece encontrar-se a semente desse movimento, que atende ao anseio comum, em todos os tempos, a todos os homens, por um direito mais justo, mais perfeito, capaz de protege-los contra o arbítrio do governo. 49 De igual forma, Nader (2006) postulou que a doutrina chamada jusnaturalista tem seu berço na produção filosófica de Heráclito, no século VI a. C. O prestígio que o pensamento jusnaturalista realcançou, no atual século e mais notadamente nas últimas décadas, promoveu o retorno dos jusfilósofos ao antiqüíssimo tema, com a apresentação de variados estudos e de novas obras, que se incorporaram a essa imensa corrente de pensamento, que começou a se formar a partir das reflexões de Heráclito, no século VI a.C. Da filosofia helênica até o presente, a idéia do Direito Natural não deixou de ser cultivada e por este motivo as opiniões e literatura 47 Há divergência entre os historiadores quanto à delimitação temporal do período histórico que leva esse nome. A exemplo, a debatida inclusão neste período das civilizações minóicas e micênicas (1600-1100 a.C.). Cf. RIBEIRO Jr., Wilson A. Graecia Antiqua. Disponível em: <http://greciantiga.org/his/his04-3a.asp?prt=sim>. Acesso em: 17 mai 2008. 48 MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968. p. 257. 49 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 374. 37 que a envolvem são vastíssimas. 50 Bem assim em Bittar (2002): O Direito Natural surge pela primeira vez na história do pensamento com os gregos. Desta feita, sua grande contribuição é mostrar a ligação do Direito com as forças e as leis da natureza. Na segunda oportunidade que vem à tona, no século XVII, o Direito Natural aparece como reação racionalista à situação teocêntrica na qual o Direito fora colocado durante o medievo. 51 Para Cretella (1984), a quem, no particular, acompanhou a majoritária parte da doutrina, o Direito Natural inicia o seu traçado histórico a partir dos jurisconsultos romanos os quais, segundo conta, se remetiam constantemente à produção filosófica da Grécia antiga. Os jurisconsultos romanos preocuparam-se bastante com a existência e com o conceito do jus naturale, concepção complexa e controvertida, de importação grega, referida no célebre trecho da Antígona de Sófocles, em que a protagonista, desobedecendo às ordens reais, providencia a sepultura de seu irmão, protestando contra o decreto que o deixara insepulto e responde ao tirano que “acima dos editos há decretos divinos imutáveis e eternos”. 52 No ano de 441 a.C., na cidade grega de Atenas, foi apresentada uma peça teatral composta pelo dramaturgo Sófocles (494-406 a.C.). O enredo conta a história de dois infortunados órfãos de Édipo Rei (outro personagem das obras do mesmo autor). Dá-se, em certo momento, que o rei Creon proíbe o sepultamento de Polínice, irmão de Antígona e, assim como este, filha de Édipo. Antígona desrespeita a ordem do rei e decide sepultar seu irmão com todos os rituais praticados no seu tempo. Sua argumentação foi a de que existem leis não escritas superiores à determinação real. […] tuas ordens não valem mais do que as leis não-escritas e imutáveis dos deuses, que não são de hoje e nem de ontem e ninguém sabe quando nasceram. 53 Que não são nem de hoje, nem de ontem; 50 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 214. BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme de Assis de. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2002. p. 12. 52 CRETELLA Júnior, José. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 230231. 53 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 375. 51 38 Têm existência eterna (ninguém lhes assinala o nascimento); Nem poderia eu desafia-las a enfrentar a vingança divina por temer a cólera de qualquer homem. 54 Esse é também o substrato da filosofia de Platão e Sócrates. Na obra “República”, Sócrates rechaça o entendimento dos sofistas, para os quais a justiça era o interesse do mais forte, com a afirmação de que “as coisas não são justas porque os deuses ‘querem’, mas que os deuses as querem porque são justas”. 55 Quanto a uma lei natural e a uma lei positiva, os sofistas inovaram ao dizerem que elas, mais do que diferentes, são opostas. Segundo eles as leis são criações artificiais e servem aos interesses de classe, ou seja, não se baseiam na ética e na lei natural e, portanto, não são justas e não são morais. 56 Discutido no capítulo anterior, Aristóteles foi um filósofo grego e ainda hoje é considerado por muitos o primeiro doutrinador das ciências jurídicas. Dedicou-se profundamente ao estudo da justiça, identificando-a como o fundamento do Direito. No Livro VII, Lição 7, de sua obra “Ética a Nicômaco”, o autor revolta-se ao postular que “o bem e o justo, objetos de que trata a ciência política, dão lugar a opiniões de tal forma divergentes e às vezes de tal forma degradadas, que se chegou até a sustentar que o justo e o bem existem apenas em virtude da lei e não têm nenhum fundamento na natureza.” 57 Aristóteles reconhece a dificuldade de se construir um direito positivo universalizador, hipótese abrangentemente lamuriada pelos juspositivistas. Entretanto, mais à frente e já com um tom jusnaturalista, defende que o exercício da atividade legiferante deva se pautar no caráter transcendental de uma verdade universal, soberana e superior aos entendimentos particulares. Isso porque a lei positiva procede do legislador, mas a lei natural procede da natureza e, portanto, é imutável. Ele versa sobre o princípio, geral e válido, da eqüidade quando diz que: 54 MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968. p. 257. 55 idem. p. 257. 56 LIMA, Hermes. Introdução à Ciência do Direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. p. 205. 57 ADOMEIT, Klaus. Filosofia do Direito e do Estado: Volume I – Filósofos da Antiguidade. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2000. p. 138. 39 […] fundamenta-se em razão de que cada lei é formulada em sentido geral. Para alguns casos isolados não é possível formular uma regra geral de maneira que esta seja correta […] A lei trata dos casos de forma generalizante, sem ver que com isto surge uma fonte errônea. Contudo este procedimento é correto, pois o erro não está nem na lei nem no legislador, mas sim: na amplitude que a vida traz. 58 Nesse sentido então é que Aristóteles vai mais à frente dizer que a função da lei positiva não é outra senão a de aplicar a idéia universal da justiça conforme as circunstâncias concretas de cada época. 59 Se, por um lado, ele reconhece a vulnerabilidade do conceito de justiça – tanto o é que o confronta com a circunstancialidade dos momentos históricos nas sociedades –, por outro, afirma com veemência a existência de um critério universal que está para o Direito assim como o norte está para o navegante. 58 59 ARISTÓTELES apud ADOMEIT, Klaus. op. cit. p. 139. LIMA, Hermes. Introdução à Ciência do Direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. p. 205. 40 2.3 O Direito Natural entre os romanos Influenciados pela produção filosófica dos pensadores gregos, os jurisconsultos romanos 60 construíram o ordenamento jurídico de seu tempo sobre os pilares de um Direito àquele anterior e com caráter universal e eterno. Também é nas obras dos filósofos gregos que Cícero se inspira para definir o direito natural: há uma lei verdadeira, conforme à natureza, difundida por todos, constante e eterna (De Republica, 3, 22, 38) 61 Entende-se por Direito Romano o sistema jurídico normativo desenvolvido e utilizado pelos romanos em todo(s) o(s) seu(s) território(s) durante os séculos de seu poderio. Inclui-se nesse termo o período arcaico, entre a fundação de Roma e a Lei das XII Tábuas; o direito decemviral ou das XII Tábuas, entre a sua promulgação e meados do século III a.C.; o direito romano clássico; o direito romano pós-clássico ou vulgar; e o direito romano do Imperador Justiniano. Nesse período histórico, em razão da influência exercida pela filosofia grega, construiu-se no ordenamento jurídico romano a noção do chamado jus naturale. Este instituto resultou da tripartição do Direito Positivo daquela época para em um ramo autônomo abarcar todo o conjunto de normas aplicáveis a toda e qualquer pessoa (cidadão, estrangeiro, escravo etc.). 1.1 Todos os povos que são regidos por leis e costumes usam um direito que, em parte, lhes é próprio e, em parte, é comum a todos os homens, pois o direito que cada povo promulga para si mesmo esse lhe é próprio e se chama Direito Civil, direito inerente à própria sociedade, mas o direito que a razão natural constituiu entre todos os homens e entre todos os povos que o observam, chama-se direito das gentes, como se disséssemos os direitos que todos os povos usam. Assim, também, o povo romano usa de um direito que, em parte, lhe é próprio e, em parte, comum a todos os homens. Quais sejam cada um desses direitos apresenta-los-emos nos devidos lugares (quae singulam qualia sint, suis loces proponemus). 62 60 A expressão “romano”, bem como aquelas a essa semânticas, será utilizada aqui para designar o patronímico do período romano imperial. 61 CRETELLA Júnior, José. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 231. 62 GAIO apud SANTOS, Marco Fridolin Sommer. Direito Romano I: Ius – Partições do Direito Romano – Fontes. Disponível em: <http://www.direito.ufrgs.br/pessoais/marco/dir02214/introducao.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2008. 41 Nesse momento histórico, é importante perceber o raciocínio do cônsul romano Cícero (106-43 a.C.). Importante jurista de seu tempo, construiu o raciocínio da existência de um Direito Natural edificado sobre os pilares de uma lei verdadeira, constante e eterna, em conformidade com a natureza e inscrita em todos os corações. Para Cícero, tal norma provém de Deus e, exatamente por ser Ele o seu autor, não pode ser negada ou revogada por qualquer homem sem que este negue a si mesmo e à sua natureza. Est quidem vera lex ratio, naturae comgruens, diffusa in omnes constans sempiterna, quae vocet ad officium iubendo, vetando a fraude deterreat, quae tamen neque probos frustra iubet aut vetat, nec improbos iubendo aut vetando movet. Huic legi nec abrogari fas est, neque derogari fas est, neque derogari aliquid ex hac licet, neque tota abrogari potest, nece vero aut per senatum aut per populum solvi hac lege possumus, neque est quaerendus explanator au interpres Sextus Aelius, nec erit alia lex Romae alia Athenis, alia nunc alia posthac, sed et omnes gentes et emni tempore una lex et sempiterna et inmutabilis continebit, unusque erit communis quasi magister et imperator omnium Deus: ille legis huius inventor, disceptator, lator; cui qui non parebit, ipse se fugiet ac naturam hominis aspernatus hoc ipso luet 63 maximas poenas, etiamsi cetera supplicia quar putantur effugerit. Esse entendimento, comum no pensamento jurídico romano, pode ser igualmente observado na produção de Ulpiano (150-228 d.C.), para quem o direito deriva da essência natural das coisas, compreendendo as manifestações comuns aos homens e aos animais. Para Ulpiano, o Direito se amolda no conceito de justiça e esta, segundo postulou, deve ser entendida como sendo a “vontade constante e perpétua de dar a 63 “A verdadeira lei é a reta razão em harmonia com a natureza, difundida em todos os seres, imutável e sempiterna, que, ordenando, nos chama a cumprir o nosso dever, e, proibindo, nos aparta da injustiça. E, não obstante, nem manda ou proíbe em vão aos bons, nem ordenando ou proibindo opera sobre os maus. Não é justo alterar esta lei, nem é lícito derrogá-la em parte, nem ab-rogá-la em seu todo. Não podemos ser dispensados de sua obediência, nem pelo Senado, nem pelo povo. Não necessitamos de um Sexto Aelio que no-la explique ou no-la interprete. E não haverá uma lei em Roma e outra em Atenas, nem uma hoje e outra amanhã, ao invés, todos os povos em todos os tempos serão regidos por uma só lei sempiterna e imutável. E haverá um só Deus, senhor e governante, autor, árbitro e sancionador desta lei. Quem não obedece esta lei foge de si mesmo e nega a natureza humana, e, por isso mesmo, sofrerá as maiores penas ainda que tenha escapado das outras que consideramos suplícios.” Cf. CICERO. De re publica III (Fragmenta VI). Tradução de Anna R. Barrile. apud HECK, José N. De Cícero a Grotius: breve história do direito natural. Disponível em: <http://jnheck.com/filosofiadodireito2.pdf>. Acesso em: 22 Abr. 08. 42 cada um o seu direito”. 64 Justiniano (483-565 d.C.), um antigo imperador romano, encomendou aos juristas de seu tempo a compilação de fragmentos de jurisconsultos clássicos que resultaram na obra intitulada Instituitiones (ou Institutas). Reproduzindo as palavras atribuídas a Gaio, anteriormente citadas, essa obra inscreveu o seguinte: O direito civil e o das gentes distinguem-se desde modo: todos os povos que se regem por leis e por costumes usam em parte de um direito exclusivamente seu, e em parte do comum; portanto, o direito, que cada povo constitui para si mesmo, é exclusivo de uma cidade. O direito porém que a razão natural constitui entre todos os homens é observado do mesmo modo por todos os povos e chama-se direito das gentes, isto é, direito de que usam todos os povos. Semelhantemente o povo romano usa em parte de um direito exclusivamente seu e em parte do comum a todos os homens. 65 Para Nader (2006), a idéia do Direito Natural deriva da associação do Direito à natureza comum a todos os seres. Nesse sentido, o Direito não é produto da criação do homem senão a este superior. O raciocínio que nos conduz à idéia do Direito Natural parte do pressuposto de que todo ser é dotado de uma natureza e de um fim. A natureza, ou seja, as propriedades que compõem o ser, define o fim a que este tende realizar. […] O adjetivo natural, agregado à palavra direito, indica que a ordem de princípios não é criada pelo homem e que expressa algo espontâneo, revelado pela própria natureza. 66 Tal raciocínio parece traduzir o entendimento difundido entre os juristas romanos sobre o modelo de justificação do Direito Positivo assentado na perspectiva universalista da verdade e dos princípios. Por essa razão, incluíam-se no campo do ius gentium, diretamente derivado do Direito Natural, as regras concernentes ao casamento e à família, à boa-fé, à restituição do devido, o direito de legítima defesa, a importância da vontade do 64 “Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi.” Cf. MADEIRA, Hélcio Maciel França. Digesto de Justiniano: Liber Primus Introdução ao Direito Romano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 21. 65 JUSTINIANO, Institutas, 1. I, t. II, § 1º apud MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968. p. 258. 66 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 375. 43 sujeito do direito em oposição ao formalismo jurídico. 67 Os raciocínios de vários jusnaturalistas desse momento se sobrepõem e, entre eles, o consenso de que o Direito Natural deriva da razão – humana – conforme uma intrínseca associação entre o conceito de natureza e a razão. Por conseguinte, o Direito deriva da congruência entre o homem e a lei da natureza a partir de uma ótica entabulada pelo estoicismo – movimento filosófico que se edifica sobre um alicerce um tanto quanto antropocêntrico, apesar da elaboração de um princípio divino. 68 É o que leciona Montoro (1968): No período pós-socrático, a filosofia estóica, fundada por Zeno, de Citium, coloca no centro de seu sistema o conceito de “natureza”. A lei da natureza é idêntica à lei da razão. Como ser essencialmente racional, o homem deve conduzir sua vida de acordo com as leis da própria natureza, liberto das paixões e emoções. Essa razão, inspirada na natureza, é a base da lei e da justiça. A escola estóica e sua doutrina do direito natural exerceu profunda influência no direito romano. 69 É importante ressaltar que esta construção jurídica não se limitou geograficamente ao império romano. No século XI seus estudos adquiriram excepcional projeção no hemisfério ocidente à partir da chamada Escola dos Glosadores. Eram assim chamados os juristas, particularmente de Bolonha, que se dedicavam ao estudo do Direito Romano (leia-se: Direito de Justiniano) e nas margens dos textos inscreviam glosas, ou seja, anotações. Foi tamanha a influência da Universidade de Bolonha na formação de um sistema educacional na Europa e, posteriormente, em volta do globo, que o Direito Romano foi sendo gradualmente difundido de forma tal que hoje pode ser considerado a base do ordenamento jurídico de uma grande maioria de nações 67 LIMA, Hermes. Introdução à Ciência do Direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. p. 207. BRÉHIER, Émile. O antigo estoicismo. Disponível em: <http://www.consciencia.org/estoicismobrehier.shtml>. Acesso em: 22 Abr. 08. 69 MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968. p. 260. 68 44 como é o caso, inclusive, do Brasil. 70 O estudo do direito romano no Brasil, mercê dos grandes juristas pátrios voltados para o direito civil, ficou circunscrito ao chamado direito privado. Assim os nossos Teixeira de Freitas, Clóvis Bevilacqua, Coelho Rodrigues, Lafayette, Pontes de Miranda, Moreira Alves e tantos outros, todos romanistas e civilistas, consagraram um direito romano identificado com o direito civil moderno. 71 70 MEIRA, Sílvio. Curso de direito romano. São Paulo: LTr, 1996, p. 238. POLETTI, Ronaldo Rebelo de Britto. Direito Público Romano. Disponível em: <http://www.vrbs.org/novapagina/publicacoesnp2-textosemgeral-poletti21.htm>. Acesso em: 23 abr. 2008. 71 45 2.4 O Direito Natural na Idade Média: o Criador Após a desintegração do Império Romano do Ocidente, levada a efeito com a invasão por diversos povos bárbaros em 476 d.C., surgiu na sociedade o modelo feudal de produção. A essência desse modelo, percebida na segmentação dos grupos sociais, demandou da Igreja Católica a proposição de uma estrutura filosófico-política reunificadora. 72 Surge nesse período a Escolástica, já tratada no capítulo anterior, e sua filosofia conciliadora na medida em que concorda o platonismo com valores de ordem espiritual erigidos pela Igreja Católica. Um dos principais expoentes da literatura produzida nesse termo, Aurélio Agostinho ou Santo Agostinho (354-430 d.C.) nasceu em uma pequena cidade ao norte da África hoje correspondente à Argélia. É considerado por muitos como um dos maiores gênios do pensamento que a humanidade já produziu. 73 Seus escritos, adotados pela Igreja Católica como sua própria doutrina, concluíram um período histórico (Antigüidade) para iniciar a era cristã denominada Idade Média. Agostinho se utiliza do conceito de verdade entabulado por Platão para convergir seus olhares rumo ao interior do homem. A leitura destes escritos serviu para avisar-me a voltar para mim, minhas reflexões e pensamentos. Não vás para fora. Volta-te para ti mesmo; no interior do homem está a verdade. Noli foras ire; in te ipsum redi; in interiore hominis habitat veritas. 74 Ainda que tal excerto possa sugerir um tom humanista ao seu discurso, tal não deverá ser à interpretação ampla de sua obra. Infere-se de seus textos uma busca à harmonização entre a razão e a fé. Todavia, esta última se sobrepõe à anterior já que, segundo conta, somente Deus proporciona a verdade universal e o conhecimento transcendentalmente esculpido. 72 SCHILLING, Voltaire. Constantinopla: a queda da maçã de prata. Disponível em: <http://educaterra.terra.com.br/voltaire/antiga/2003/10/13/002.htm>. Acesso em 6 abr. 2008. 73 CRETELLA Júnior, José. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 236. 74 Ibidem, p. 238. 46 Agostinho se dedicou – tal como os romanos – a definir o conceito de justiça e é nesse âmbito que ofertou à ciência jurídica sua maior contribuição. Redesenhando o conceito romano de justiça, anteriormente esboçado por Cícero, Agostinho a definiu como sendo a eqüidade, e esta como sendo a tendência da alma de dar a cada um o que é seu. Agostinho deposita sobre a mesma mesa de Borges e Foucault o substrato de correntes filosóficas. Nesse sentido, ele se volta para o princípio da sociabilidade do homem (anteriormente visto entre os aristotélicos, os estóicos e os ciceronianos) que em sua obra toma os moldes da unidade de origem da espécie humana através de uma ótica criacionista. Segundo ele, entretanto, os homens são tratados desigualmente conforme seu mérito, e este, por sua vez, é estabelecido em consonância com a observação à lei divina (lex aeterna) e a lei natural (lex naturalis). Estabelece, portanto, um direito anterior ao homem, provindo diretamente de Deus, a cuja observância está sujeita a humanidade sob pena de edificar sua vida segundo a falida ordem terrena. Assim é com a mortal geração humana, que se estende por todos os países e apesar da diversidade de suas moradias, permanecem unidas pelo laço da semelhança do ser, cada um de acordo com sua vantagem e seus desejos; mas o que cada um almeja não é suficiente, nem a um nem a todos, por ser distinto. Por isso ocorre quase em todo lugar dissensões, e a parte que detém o poder oprime a outra. 75 Pulando alguns séculos, mas ainda no mesmo período histórico medieval, outro autor chama a atenção pela sua enorme contribuição para a teoria do Direito Natural. Trata-se de Tomás de Aquino (1225-1274), santo da Igreja Católica e considerado por esta Doutor Angélico. Tal foi a sua influência no campo da filosofia e da teologia, que hoje se chama tomista todo o material científico que se apóia em seu raciocínio. Para muitos, a obra de Tomás de Aquino é considerada como um compêndio 75 ADOMEIT, Klaus. Filosofia do Direito e do Estado: Volume I – Filósofos da Antiguidade. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2000. p. 232. 47 da filosofia medieval. 76 Seus estudos, que partem de uma abordagem congruente com a escolástica, intentou conciliar a filosofia de Aristóteles com as verdades reveladas no cristianismo católico apostólico romano. Tomás de Aquino divide o ordenamento jurídico em uma estrutura tripartite. A lei eterna é aquela revelada por Deus. Possui natureza eminentemente divina embora ao homem seja dado conhece-la parcialmente por intermédio das manifestações do Criador. A lei natural, a seu turno, é conhecida pelo homem através do uso da razão. O raciocínio exercido corretamente, segundo sua metodologia apropriada, transporta o homem ao conhecimento e à compreensão desta lei. A lei humana, por sua vez, não vem de Deus e nem tampouco é inerente à razão humana. Antes, deriva ela das relações convencionais. O próprio homem estabelece-a conforme seu juízo comum de conveniência e oportunidade. O autor também define critérios pelos quais é estabelecida entre as três leis uma hierarquia. Em primeiro lugar, por ordem de importância, está a lei divina. Por essa razão, caso seu conteúdo conflite com a lei humana, a esta última o homem está desobrigado prestar reverência. Se, todavia, a lei humana conflitar com uma lei natural – entendida como aquela proveniente da razão – deverá prevalecer a humana. Isso pois no entendimento tomista, a ordem social deve ser mantida, o que só poderá acontecer mediante a observação das leis co-estabelecidas. A coexistência da lex aeterna, da lex naturalis e da lex humana dá origem a alguns problemas, como, por exemplo, os seguintes: se a lei humana entra em conflito com a lei natural ou com a lei eterna, a qual delas o homem deve obedecer? Para Santo Tomás, o cidadão deve obedecer à lei humana, porque a ordem deve sempre ser mantida. No entanto, deve recusar-se a obedecer à lei humana que se choca com a lei divina, como, por exemplo, a que obrigasse à adoração de um ídolo pagão. 77 A lei divina, que para Tomás de Aquino resulta da expressão da lei eterna, traduz-se em um bojo de critérios de natureza transcendental segundo os quais a lei natural e a lei humana serão, respectivamente, preenchidas à suficiência e corrigidas à perfeição. 76 LIMA, Hermes. Introdução à Ciência do Direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. p. 203. CRETELLA Júnior, José. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 230241-242. 77 48 Para Reale (1953), a conceituação tomista do Direito Natural é de tal forma colossal que dela deflui-se negar o epíteto jurídico a qualquer instrumento normativo que porventura venha a se mostrar incompatível com a consciência divina. O direito natural não é um Código de boa razão, nem tampouco um ordenamento cerrado de preceitos, mas se resume, afinal, em alguns mandamentos fundamentais de conduta, derivados de maneira imediata da razão, por participação à lex aeterna. Tais princípios ou normas do Direito Natural impõem-se de maneira absoluta ao legislador e aos indivíduos, de tal maneira que se não poderá considerar Direito qualquer preceito que de modo frontal contrarie a normas resultantes da lei natural, máxime quando consagradas como leis divinas. 78 Tomás de Aquino também distingue duas espécies de princípios: os primários e os secundários. Nesse sentido, os princípios primários, também chamados cardiais, são imutáveis e independem das circunstâncias para existirem. São exemplos: “o bem deve ser feito e o mal evitado”, “dar a cada um o que é seu”, “não lesar a outrem” etc. Para Reale (1953), todavia, seus conteúdos se apresentam vazios, já que imprecisos. Os princípios secundários, entretanto, são circunstanciais – eis que acompanham a morfologia social. Humanae rationi naturale esse videtur ut gradatim ab imperfecto ad perfectum perveniat. Unde videmus, in scientiis speculativis, quod qui primo philosophati sunt, quaedam, imperfecta tradiderunt, quae post modum per posteriores sunt tradita magis perfectae. Ita etiam et in operabilibus. Nam primi qui intenderunt invenire aliquid utile communitati hominum, non valentes omnia ex se ipsis considerare, instituerunt quaedam imperfecta in multis deficientia, quae posteriores muta-verunt instituentes aliqua quae in paucioribus deficere possent a communi utilitate. 79 Por assim dizer, os princípios secundários podem sofrer alterações decorrentes da mencionada tendência da razão de correr do imperfeito para o perfeito, da crescente decadência dos costumes ou em razão da citada morfologia social. 78 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1953. “É natural à razão caminhar do imperfeito para o perfeito; os primeiros homens que elaboraram as normas para a vida social, não podendo considerar tudo por si mesmos, instituíram muitos preceitos imperfeitos e falhos, que seus sucessores modificaram, substituindo-os por outros, que, em alguns casos, podem ainda não realizar a utilidade social.” Cf. S. Tomás, Summa, I, II, q. 97, a. 1. apud MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968. p. 262. 79 49 2.5 A Escola do Direito Natural: a visão racionalista Muito embora se possa chamar jusnaturalismo a toda produção literária jusfilosófica que se volte para o estudo da legitimação do Direito Positivo por intermédio de um critério universal e à lei anterior, é a partir dos ideais racionalistas do Renascimento – episódio histórico de caráter social e cultural que representa o fim da Idade Média e início da Idade Moderna – que se forma uma corrente denominada Escola do Direito Natural. 80 Por volta do século XV, a história põe termo à Idade Média e, com ela, um longo período em que a humanidade se voltou para o conformismo e submissão à autoridade dos mestres eclesiásticos. Com o Renascimento, voltam-se os olhares ao homem e, com ele, o raciocínio lógico e sistematizado. Percebe-se ali uma ótica humanística, racionalista, individualista, antropocentrista e hedonista até. Como sustenta Cretella (1984), nessa fase da história do conhecimento, o homem se volta para si próprio e paradoxalmente procura fustigar a lógica religiosa e, ao mesmo tempo, alimentar seu misticismo. Nesse contexto, os valores humanos são objetos de constantes estudos e rigorosa apreciação filosófica. Em sentido amplo, humanismo é “a preocupação do homem com o homem”, o estudo universal dos valores humanos, a procura profunda e constante do que há de melhor, de mais humano, para um posterior aproveitamento e reafirmação do ser máximo da criação. Este o sentido perene, que nos vem desde a antigüidade e foi expresso pela boca de um dos personagens de Terêncio, no Heautontimorúmenos, ao exclamar: ‘Sou Homem e nada do que é humano deve ser estranho às minhas cogitações.’ 81 Destaca-se nesse período a produção jusliterária de Hugo Grócio (15831645). Considerado o fundador da Escola de Direito Natural e, por alguns, da própria filosofia do Direito, Grócio dedicou seus estudos ao gênero humano. Daí o fato de seu nome ser citação obrigatória no campo do Direito Internacional Público – que é essencialmente negocial –, matéria esta que ele fundamentou a partir de princípios do Direito Natural a ela aplicáveis. 80 81 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 377. CRETELLA Júnior, José. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 244. 50 Sua estrutura principiológica resulta da vontade de desvencilhar os homens da autoridade eclesiástica mediante a idéia de que a natureza do homem e das coisas é que constitui o substrato do Direito – e não mais a figura de Deus. Conforme Carvalho (1994), “não há nada de arbitrário no direito natural, como não há arbitrariedade na aritmética. Os ditames da reta razão são o que a natureza humana e a natureza das coisas ordenam.” 82 É esta a tese que convergirá na conclusão de que o homem possui direitos inatos, inerentes à sua humanidade. Por assim dizer, a razão, se matemática e geometricamente empregada, em conformidade com as orientações do método dedutivo, será, por conseguinte, a base sobre a qual as regras invariáveis da natureza humana poderão ser conhecidas. 83 Sua obra, muitos afirmam, inaugura a Filosofia do Direito como ramo autônomo entre as ciências. Seu livro De jure belli ac pacis transcende a solução de conflitos, bélicos ou não, entre sujeitos de direito internacional público e adentra na seara da problemática social em que o homem – individualmente considerado – desafia a imposição estatal. Para Grócio é a Justiça o fundamento eterno do Direito e deste o ponto essencial. Sentimento espontâneo entre os corações humanos, a Justiça é um princípio universal e inconteste que sobreviveria mesmo na absurda hipótese de o próprio Deus não existir. É ela, portanto, um fundamento do mundo ético nascido à partir do instinto sociável e da razão dos homens. Jus naturale est dictatum rectae rationis, indicans actui alicui ex ejus convenientia aut disconvenientia cum ipsa natura rationali ac sociali, inesse moralem turpiditudinem, aut necessitatem moralem. 84 82 CARVALHO apud BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme de Assis de. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2002. 83 BITTAR. Op. cit. 84 GROCIO, H. De jure belli ac pacis. apud BITTAR. op cit. p. 41. 51 2.6 O Direito Natural em John Locke: a perspectiva empirista Já tratado no capítulo anterior, o filósofo inglês John Locke (1632-1704) também forneceu importantes contribuições à construção conceitual do Direito Natural. Seus trabalhos começaram com a investigação filosófica pela leitura da obra racionalista – como a de René Descartes e a de Hugo Grócio – e emergem da formulação de uma lógica empirista. No que toca à possibilidade de conhecer o universo, o homem é como uma tábua rasa, como um papel em branco onde nada escrito há. Os fatos contrariam o inatismo cartesiano e o conhecimento deriva necessariamente da experiência. Por assim dizer, conclui que o direito deriva da liberdade de cada homem, socialmente considerado, em perseguir sua segurança pessoal e a defesa de seus direitos. Os fatos contrariam o inatismo. Aliás, mesmo que existissem idéias nas pessoas, seria preciso fazer a contraprova para poder-se afirmar, legitimamente, que são produto da experiência. O inatismo, portanto, é posição cômoda, mas insustentável, devendo-se concluir pela origem experimental dos conhecimentos. Anima est tabula rasa in qua nihil scriptum est, a alma é tábua rasa, na qual nada está escrito: é um papel em branco (White paper), no qual a experiência vai imprimindo as impressões do mundo exterior por meio dos sentidos (sensus, sensualismo, sensismo). Com todos os erros e exageros que possa apresentar, incoerência e lacunas, não é lícito diminuir o valor de Locke, espírito singular que, despertado por Descartes, contra quem conscientemente depois se volta, herdeiro de Bacon, matizado de Aristóteles, a quem supera, exerce extraordinária influência nos pensadores do século XVIII, a começar por Berkeley, que se inspirou no Ensaio, passando por J. J. Rousseau, que extraiu dos Pensamentos sobre a educação material para a elaboração do Emílio, atingindo Montesquieu, que o estudou para elaborar uma de suas obras, encontrando-se, enfim, com o gênio de Kant, que não o esquece ao reformular, na Crítica da razão pura, o supremo problema do conhecimento humano, em suas origens, certeza e alcance. 85 Conforme antecipado por Cretella (1984), trataremos a seguir de Kant. 85 CRETELLA Júnior, José. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 257258. 52 2.7 A contribuição crítica de Kant O Direito Natural e, principalmente, os padrões da doutrina renascentista conforme os quais era entabulado recebe de Immanuel Kant (1724-1804) profundas críticas. Para esse filósofo alemão, não há sentido na crença de que do Direito Natural emanem normas morais derivadas de fatores empíricos e antropológicos. Argumenta, conforme os racionalistas, que a moralidade tem raízes na razão humana. Como minha intenção […] está voltada à sabedoria moral do mundo, então limito a pergunta apresentada somente: não se considera, que seria de profunda necessidade uma vez formular uma filosofia pura da moral, que estaria depurada de tudo que quisesse ser empírico e pertencesse à antropologia; pois que tal devesse existir, subentende-se da idéia geral da obrigação e das leis morais. Cada um deve confessar que uma lei, se moral, ou seja, que deva valer como fundamento de uma obrigação, tem em si absoluta necessidade; que o mandamento: não deves mentir, não valeria somente para homens, mas que outros seres racionais não teriam que voltar-se a isto; e assim todas as demais leis morais próprias; que com isto o fundamento da obrigação não teria que ser procurado na natureza do homem ou nas situações no mundo, mas sim, a priori, somente nos conceitos da razão pura; e que cada outra norma, que se fundasse em princípios de pura experiência, e até mesmo sob certo ângulo uma norma geral, talvez por algum motivo, que tenha sua mínima parte baseada sobre fundamentos empíricos, possa ser uma regra prática, mas jamais poderá 86 ser chamada de lei moral. Kant inaugura uma nova perspectiva jurídica que compreende no Direito o substrato da subjetividade do conhecimento humano. Muito embora emane da experiência, desta não depende o Direito. O imaginário coletivo jurídico se forma a partir das representações da realidade entabuladas no âmago da razão. É como resume Borges (1998): KANT doutrina que o conhecimento se compõe de matéria e de formas. Estas são subjetivas e “a priori”, não dependem da experiência. A matéria, entretanto, emana da experidência. Essa concessão ao conhecimento prático é, entretanto limitado, embora historicamente considerável. Tal construção estabelece, afirma BAZARIAN, a subjetividade dos nossos conhecimentos, pois as leis, longe de representarem verdades objetivas, representam apenas verdades subjetivas de nosso pensamento. É o ponto culminante do Racionalismo, que sintetiza o pensamento puro e cria as 86 KANT, Immanuel apud COING, Helmut. Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p 60. 53 condições do pensamento novo. É o velho concebendo o novo pelo exaurimento de seu ciclo. 87 Assim, nessa perspectiva subjetivista, Kant chega à conclusão que o Direito é o que se tem a partir da reunião e coexistência de liberdades. O homem é livre, mediante a razão. Seu raciocínio representa fielmente a realidade e por isso constitui-se matéria. Devido a esse motivo, é ele livre para o exercício de seus desígnios. A coabitação das múltiplas liberdades é o que se pode chamar Direito. Assim, escreve que o Direito “é o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de um indivíduo pode coexistir com o arbítrio de outro, segundo uma lei geral de liberdade.” 88 87 BORGES, Edinaldo de Hollanda. Teoria Científica do Direito. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998. p. 107. 88 KANT, Immanuel. apud BORGES, Edinaldo de Hollanda. op. cit. p. 109. 54 3 ENCONTROS E DESENCONTROS DA CONTEMPORANEIDADE 3.1 Contexto geral É simplesmente inenarrável a influência dos influxos pós-modernistas sobre o campo filosófico do Direito. O pós-modernismo, condição sócio-cultural e estética do capitalismo contemporâneo, tem por característica – e talvez a principal delas – a veemente negação da possibilidade de o homem conseguir estabelecer uma verdade universal. Bem assim, qualquer inferência cosmovisual de caráter universalizador haverá de ser igualmente negada. 89 Os seus autores se vêem na incumbência de desatar os nós da alienação em toda a humanidade por intermédio de uma ótica fundada no criticismo ideológico cuja qual, efetivamente trazida à tona na história recente, se apóia na prática de um desconstrutivismo textual às vezes altivo e, paradoxalmente, um tanto quanto universalizador. Ao contrário do que possa provavelmente parecer, não é exatamente o ceticismo que acompanha a narrativa pós-modernista, mas a entropia agregadora das várias verdades. Disso implicaria dizer que todos os discursos são válidos e, nessa derrubada da vinculação dogmática a padrões representativos da realidade, surge uma proposta de narrativa histórica de descontínuos. Sobre esta nova proposta, pode-se ver no brilhantismo literário de Godoy (2003) o que adiante se transcreve: Mas se a história parece um guarda-roupa onde todas as fantasias são guardadas, a história do direito lembra a caixa de Pandora de onde saem modelos e institutos de mínima variação semântica, qualificadores de modelo evolucionista, linear, progressista. As argumentações aqui apresentadas levantam que se deve duvidar desse progresso, como já alertara Walter Benjamin na XIII Tese sobre a Filosofia da História. O 89 DEMAR, Gary. Definindo Pós-Modernismo. Disponível em: <http://www.monergismo.com/textos/pos_modernismo/def-posmodernismo_demar.pdf>. Acesso em: 25 Abr. 2008. 55 filósofo da melancolia desconfiava da história que se identifica com o vencedor, da concepção de progresso, da temporalidade, de uma fixação eterna do passado. A história é construção da realidade presente, informada por um salto de tigre que açambarca algo que faz o presente coincidir com a história da humanidade. Pode-se duvidar da interpretação histórica convencional dos juristas. Essa história oficial do direito, que toma o passado com uma neutralidade muitas vezes enervante, afina-se com o discurso normativo positivista, também pretensamente neutro, informando a ele, e sendo por ele reverenciada. A crítica a concepções jurídicas positivistas enceta crítica ao historicismo, dada a afinidade ideológica e interface conceitual. 90 A essa circunstância fenomenológica aqui tratada tem se dado o nome de “crise da representação”, mesmo porque, pelo teor desta, vêem-se abaladas as estruturas sobre as quais se erigem os paradigmas socialmente segmentados na construção do real. Entretanto, há quem entenda que a mencionada crise é conseqüência dessa entropia, e não a sua causa. Copiar novas idéias como em uma série ou linha de montagem, não é exatamente o êxito pós-moderno. O êxito pós-moderno na literatura está em deixar o leitor co-piloto de sua obra, como em uma espécie de farsa desdobrada, a leitor tem a parca sensação de domínio do texto, abertura e interpretação própria. Ele acredita estar sendo proprietário de si mesmo, enquanto na realidade está sendo apropriado, está sendo fio condutor da arte, desposando as dúvidas e separando-se das certezas rumo à consciência. Jorge Luís Borges, em seu conto Loteria da Babilônia, de modo sutil e alegórico, remonta como o discurso penetra nas camadas mais profundas da sociedade, do indivíduo e da consciência. Como a apropriação da representação tem o poder e o fazer de mudança (ideologia). 91 O problema é que desta conclusão iconoclasta deriva um enorme vazio no seio da humanidade. Se nada é real sem a experiência do ser cognoscente, a dúvida que se instaura é acerca do que sobra do objeto quando o sujeito não está. Se, ao percebê-lo, a mente humana cria um conhecimento virtual, pergunta-se o que poderia ser dito sobre o mundo externo quando este não está sendo percebido pelo homem. 92 Se ao conhecer um objeto a mente humana virtualmente cria conhecimento, a questão que se levanta então é: O que é o mundo externo quando ele não está sendo percebido? Para o pós-modernista, a única coisa que pode ser 90 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e História: Uma relação equivocada. Londrina: Humanidades, 2003. p. 11-12. 91 FERNANDES, Rômulo Giacome de Oliveira. Pós-modernidade e alguns pressupostos. Disponível em: <http://teoliterias.blogspot.com/2006/02/ps-modernidade-e-algunspressupostos.html>. Acesso em: 25 abr. 2008. 92 DEMAR, Gary. Definindo Pós-Modernismo. Disponível em: <http://www.monergismo.com/textos/pos_modernismo/def-posmodernismo_demar.pdf>. Acesso em: 25 Abr. 2008. 56 conhecida é a experiência pessoal e as interpretações desta experiência. O homem não pode conhecer nada em algum sentido absoluto. Tudo o que alguém tem é a sua própria experiência finita e limitada. A lógica, ciência, história e ética são disciplinas humanas que devem, e de fato refletem a insuficiência e subjetividade humana. 93 93 DEMAR, Gary. Definindo Pós-Modernismo. Disponível em: <http://www.monergismo.com/textos/pos_modernismo/def-posmodernismo_demar.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2008. 57 3.2 Estudos Críticos do Direito (Critical Legal Studies) Nesse espaço comum do pós-modernismo, surgiu uma importante teoria do direito. A ela se chama com o nome de Critical Legal Studies, ou simplesmente CLS. Aqui entre os lusófonos o CLS é chamado de Estudos Críticos do Direito e se refere a uma corrente doutrinária norte-americana despontada nos anos 1960 e sedimentada nos últimos anos à partir das contribuições de diversos autores, dentre eles, o brasileiro Roberto Mangabeira Unger. No que toca especificamente ao campo do Direito Natural, o jurista procura descrever e sintetizar a essência da ideologia jusnaturalista conforme dispõe: Este conceito da relação entre o direito natural e o direito positivo tem implicações cruciais para a autonomia e para a legitimidade da ordem jurídica. Uma vez que o direito superior provém de fonte divina e, portanto, independe do espaço e do tempo, serve como ponto de vista arquimediano para a avaliação de todos os acordos sociais. Não se trata de um conjunto de normas particularistas de interação forjadas gradualmente no dia-a-dia, nem de uma série de ordenações transmitidas por um governantes para atender situações mais ou menos específicas. Ao contrário: é uma ordem normativa que transcende inteiramente a sociedade, como Deus transcende o mundo. 94 Avança seu raciocínio para concluir, ao final, que a doutrina do Direito Natural implodiu-se na ambigüidade que a viciara deste o início. Explica que, se por um lado o jusnaturalismo está voltado para a universalização do direito positivo com fundamento na religiosidade transcendental, por outro, reconhe o pluralismo característico da nossa sociedade ao sugerir a coabitação jurídica estável de interesses conflitantes e flexíveis. Assim, Mangabeira (1979) descreve o triste fim dos esforços jusnaturalistas na busca de um direito positivo estável. Para ele, a teoria do Direito Natural culminou na desestabilização das suas instituições à partir da contradição apontada. 95 Esse ambiente epistemológico circunscrito no descrédito e conseqüente 94 UNGER, Roberto Mangueira. O Direito na Sociedade Moderna: Contribuição à Crítica da Teoria Social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 88. 95 idem. p. 95. 58 silenciamento do jusnaturalismo apresenta duas facetas importantes. De um lado, ele pode ser encarado como fonte (ou ao menos uma delas) do silêncio jusnaturalista desse tempo atual. A filosofia financiada pelas correntes insertas neste arcabouço de inferências denominado pós-modernismo jurídico fez transformaremse em cochichos os raciocínios transcendentalistas da teoria do Direito Natural. De outro lado, contudo, o criticismo pode igualmente ser apontado como circunstância jusfilosófica por entre a qual surgem as bases para uma proposta de resgate à legitimação do direito positivo por um critério menos volátil como o da dominação social, por exemplo. Não que o questionamento, a dúvida razoável e a “consciência oposicionista” de Lukács sejam de se jogar fora. O que ocorre, entretanto, é que o vazio deixado pela cultura pós-modernista no local onde agora jaz o Direito Natural tem motivado juristas contemporâneos rumo à retórica axiológica por eles fragilizada. Nesse ponto é extremamente relevante mencionar que entre a literatura pósmoderna essa preocupação é latente. From the beginning, I have seen law as the institutional form of the life of a people and as a place where interests meet ideals, and spirit struggles with structure. Law is not a separate thing; it is an expression of all society and culture. I have opposed the style of legal analysis that now prevails in the United States and increasingly throughout the world. This analytic procedure reduces the work of legal thought in a democracy -- to inform and to broaden the conversation about the institutional present and the institutional futures of society -- to the narrow business of deciding how judges and other officials should decide cases. Its theoreticians seek to humanize the world rather than to change it. Because they do not resist they cannot understand. The overriding aim of my work in legal theory has been to show how we can use a changed understanding of law and a revised practice of legal analysis to recover, from the bottom up and from the inside out, the vision of social alternatives. If we can no longer imagine and realize such alternatives as readymade systems like "socialism," we must find them under other disguises and work them out in other forms. Through my writings about law, I have tried to show how. 96 96 “Desde o início, eu tenho compreendido o direito como a forma institucionalizada da vida de um povo e como um lugar onde interesses e ideais se encontram e o espírito contende com a estrutura. O direito não é algo separado; é uma expressão de toda sociedade e cultura. Eu me oponho ao estilo de análise jurídica que ultimamente tem prevalecido nos Estados Unidos e vem aumentando pelo mundo afora. Esse procedimento analítico reduz a obra do pensamento jurídico de uma democracia – 59 para informar e para projetar o diálogo sobre o presente e o futuro institucional da sociedade – ao estreito negócio de decidir como juízes e outros oficiais devem decidir os casos. Seus teóricos intentam humanizar o mundo em vez de mudá-lo. Por não resistirem, eles não podem entender. O principal objetivo do meu trabalho em teoria do direito tem sido mostrar como nós podemos usar um diferente entendimento do direito e uma prática da análise do direito reformulada para recuperar, de baixo para cima e de fora para dentro, a visão sobre alternativas sociais. Se nós não pudermos mais imaginar e conceber tais alternativas como sistemas prontos e acabados, como o “socialismo”, nós precisaremos encontrá-los sob outras facetas e amolda-las a outras formas. Através dos meus textos sobre o direito, eu tento mostrar como.” Cf. UNGER, Roberto Mangabeira. Disponível em: <http://www.law.harvard.edu/faculty/unger/english/legal.php>. Acesso em: 26 abr. 2008. 60 3.3 O Surrealismo Jurídico Diante do logo acima apresentado, é interessante trazer à baila uma recente formulação jusfilosófica intitulada surrealismo jurídico. Tida como produto da obra do jurista argentino naturalizado brasileiro Luis Alberto Warat, a corrente doutrinária por ele proposta revela a mesma crítica ao discurso transcendentalista das verdades universais. Na percepção de Abreu (2003), sobre o surrealismo jurídico em Warat, pode ser visto com suficiente clareza que essa corrente jurídico-literária tem suas estruturas fincadas no relativismo: Nessa contextura, é falso e limitado o entendimento que pretende reduzir a ciência do Direito ao seu conteúdo meramente dogmático, à sua normatividade, sem situá-la no conjunto das ciências sociais, ou sem perceber que o Direito é também discurso, é linguagem, é interpretação, é ideologia, é conhecimento, mas é igualmente desejo, sentimento, pois deve ter seu objeto fundamentalmente no homem. Mais do que isso, no cidadão, autor e interlocutor da história e destinatário político da própria ciência e do próprio Direito. 97 Um dos pontos principais dessa linha de raciocínio é o resgate do papel fundamental do sujeito de direito na construção do imaginário coletivo jurídico. Tal como havia proposto Breton (1924) em relação às artes, por ocasião da publicação de seu Manifesto Surrealista, Warat (1988) propõe o redirecionamento do pensamento jurídico à poesia e, por conseguinte, o aumento (ou resgate) da coesão humana tornada em frangalhos por decorrência da intolerância e desequilíbrio entre as diferentes esferas e os diferentes ordenamentos jurídicos. Resgatando seu surrealismo poético, Warat ao apostar na cidadania e nos Direitos Humanos, num discurso permeado de afetividade e de alteridade, enfatiza que é o homem que se situa no centro de seu mundo, no encontro com o outro, partindo de seus vínculos. Pressupõe, por isso, a reunificação do eu a partir da diferença que se aceita no outro, vislumbrando a cidadania como a aceitação do forasteiro que tem de ser integrado, “para evitar que o amor nos abandone”. São os direitos humanos e a cidadania instalados na sua “outridade” complexa, ou seja, a cidadania apartada do ter para poder ser compreendida como realização do ser na complexidade dos seus 97 ABREU, Pedro Manoel. Limites e possibilidades da constituição de uma ciência do direito na visão epistemológica de Luis Alberto Warat. Disponível em: <http://www.tj.sc.gov.br/cejur/artigos/filosofiasociologia/warat_limites_ciencia_direito.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2008. 61 vínculos. 98 São dois os elementos propostos por Warat (1998) para ocupar a posição de liame social. Em primeiro lugar, ele indica a cidadania, sendo esta entendida como o fenômeno da inserção do indivíduo em um rol de direitos e obrigações perante a sociedade à qual está vinculado. Em segundo lugar, o autor propõe o resgate aos Direitos Humanos, podendo estes serem entendidos como o conjunto de direitos fundamentais e universais aos quais todos os homens devem ter acesso. A cidadania e os Direitos Humanos terminam sendo uma aposta no vínculo, para não se ficar só”, pois todos somos vulneráveis e precisamos de um tipo de cidadania que nos ajude a suportar isso. 99 Se, por um lado, o surrealismo jurídico propõe a relativização dos conceitos vinculados aos mais diversos ordenamentos jurídicos e seus institutos, por outro lado, conforme Warat (1998), sugere a instauração de um elemento de ligação comum a toda e qualquer sociedade juridicamente organizada. Pode-se então perceber que a universalidade insiste em aparecer nas entrelinhas de um discurso relativista. Tal é a compreensão de DIP e CUNHA (2001) quando postulam que deverá o exercício de direitos ser restringido conforme os ditames de um ordenamento jurídico garantidor da tutela aos interesses de todos. É bem verdade que em qualquer sociedade haverá conflitos decorrentes do choque de direitos individuais. Todavia, deverão ser reduzidos esses conflitos – se não extintos – por intermédio de um direito positivo conciliador. 100 Nesse sentido, inscrevem os autores que toda e qualquer sociedade é tão dependente do Direito quanto dependem do amor. A criação de um arcabouço jurídico em uma sociedade é de fato decorrente do enfraquecimento desse sentimento, o amor, no seio da humanidade. Por isso escrevem: 98 ABREU, Pedro Manoel. Limites e possibilidades da constituição de uma ciência do direito na visão epistemológica de Luis Alberto Warat. Disponível em: <http://www.tj.sc.gov.br/cejur/artigos/filosofiasociologia/warat_limites_ciencia_direito.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2008. 99 Ibidem. 100 CUNHA, Paulo Ferreira da; DIP, Ricardo. Propedêutica jurídica: uma perspectiva jusnaturalista. Campinas: Millennium, 2001. p. 217. 62 Se o célebre aforismo ubi societas, ibi ius encerra uma provada verdade, não menos certo é que sociedade nenhuma consegue sobreviver sem algum grau de amor. Bastaria pensar que o contraditório do amor é o ódio que, rompendo com a tendência atrativa em que consiste o amor, faria erodir os vínculos sociais. 101 A proposta desses autores, bem como a de Warat (1998), a despeito do tom inovador que imprimem ao seu discurso, remete-se na verdade à orientação muito anteriormente ofertada pelo jurista italiano Carnelutti (2005). Para ele, o Direito surge como elemento conector entre os homens na mesma medida em que vai desaparecendo dentre eles o amor. Enquanto faltar entre os homens o amor, as duas principais estruturas de uma sociedade, o Estado e a família, correrão sério perigo de sucumbirem. Enquanto falte a força interior ou, francamente, enquanto falte o amor, a vida do Estado está em perigo sem direito, como a existência do arco sem armação. No Estado de direito não podemos ver, pois, a forma perfeita de Estado. Os juristas são vítimas, neste ponto, de uma incrível ilusão. O Estado de direito não é o Estado perfeito mais do que possa ser perfeito o arco antes que os pedreiros o tenha [sic] construído. O Estado perfeito será, ao contrário, o Estado que não necessite mais de direito; uma perspectiva, sem dúvida muito distante, imensamente distante, mas certa, porque a semente está destinada indubitavelmente a transformar-se em árvore carregada de folhas e de frutos. 102 Neste trecho, Carnelutti (2005) está a se referir a uma comparação que anteriormente havia formulado para explicar o que ele entende como sendo o Direito. Começa a descrever um rio que, separando suas duas margens, precisa ser ladeado por uma ponte para que os moradores possam por ali transitar. Essa ponte deve ser construída a partir da justaposição de arcos que virão a sustentar posteriormente a sua estrutura. Por sua vez, já que são formados pela justaposição de pequenos tijolos, tais arcos necessitam de uma estrutura provisória para assegurar a incolumidade dos construtores e sustentar seus ladrilhos a fim de que não caiam antes da aposição da última e angular peça. A essa estrutura provisória Carnelutti (2005) dá o nome de Direito. À força 101 CUNHA, Paulo Ferreira da; DIP, Ricardo. Propedêutica jurídica: uma perspectiva jusnaturalista. Campinas: Millennium, 2001. p. 28. 102 CARNELUTTI, Francesco. A arte do Direito. Campinas: Bookseller, 2005. p. 18-19. 63 que une os tijolos ele denomina amor. Conforme o seu entendimento, a uma sociedade perfeita, isto é, onde pessoas possam se interligar como que de um lado para o outro da ponte, e manterem-se unidas como que os tijolos justapostos em cada arco, é imprescindível o cultivo do amor como força unificadora. E, exatamente por carecer de amor a sociedade em que vivemos, existe o Direito: para sustentar as estruturas sociais. Uma força é o direito, mas não a força original. Ao contrário, uma força secundária: o que os alemães costumam chamar Ersatz. E qual é a original? Aqui os juristas necessitam ver a verdade cara-a-cara. Quando numa família o direito chega a ser supérfluo, quer dizer, quando a armação pode cair sem que caia o arco, o que ocupa o lugar do direito chama-se amor. Uma verdade, pois, como o sol clareia as coisas mais deslumbram os olhos. E, portanto, os juristas olham as coisas e não o sol; se o observassem saberiam que o original desse substituto não é mais do que o amor. Enquanto os homens que não saibam amar necessitam de juiz e policiais civis para mantê-los unidos. Quer dizer: enquanto os homens não saibam amar temos que obriga-los. 103 Não se pode deixar de registrar, finalmente, o interessante raciocínio de LYRA FILHO (1999) quando ensina que as correntes doutrinárias ou, como prefere, as ideologias jurídicas tendem a travestir a pura e salubre filosofia do Direito à medida que disseminam falsas crenças acerca das verdades jurídicas e, além disso, fazem instalar diálogos polarizados sobre os vários campos da teoria do Direito. 104 Destarte, vem o autor sugerir ao final que os juristas da contemporaneidade fomentem um debate conciliador entre a filosofia e a sociologia. Se, de um lado, os filósofos reivindicam a posse da verdade, eis que defensores das idéias, de outro lado, os sociólogos vêm se dizendo possuidores do verdadeiro, já que conhecedores da realidade fática. Para LYRA FILHO (1999), contudo, essa rivalidade é prejudicial, pois limita o filósofo à teorização despropositada da sociedade e afasta a sociologia da compreensão do verdadeiro sentido de suas investigações de ordem pragmática. Por isso é que defende, ao final, juntamente com Lukács, o nascimento de uma sociologia dialética para integrar o ser e o dever ser sem a interferência dos mitos 103 104 CARNELUTTI, Francesco. A arte do Direito. Campinas: Bookseller, 2005. p. 20. LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 47. 64 ideológicos travestidos de uma perspectiva metafísica. Esta rivalidade priva o filósofo do contato com o mundo (e entrega-o às ideologias) e priva o sociólogo da interpretação do sentido de sua investigação – o que conduz a sociologia a outros desvios, ideológicos também. A concepção dialética há de repensá-lo em totalidade e transformações, numa Filosofia Jurídica, que é Sociologia (e não sociologismo positivista – uma ideologia que já criticamos aqui) e Ontologia do Direito, no sentido que evocamos inicialmente, com Lukács, e que nada tem de “metafísico”. Para a visão dialética do Direito é necessária uma Sociologia dialética. 105 Menciona ainda que se há um erro crasso em que incorrem as ideologias jurídicas, isto é, o juspositivismo, o jusnaturalismo e todas as outras destas dissidentes, este deve ser a polarização conceitual e o bloqueio do diálogo produtivo. Fundamentalmente, aquelas ideologias situam-se entre o direito natural e o direito positivo, correspondendo às concepções iurisnaturalista e positivista do Direito. 106 Somente uma nova teoria realmente dialética do Direito evita a queda numa das pontas da antítese (teses radicalmente opostas) entre direito positivo e direito natural. Isto, é claro, como em toda superação dialética, importa em conservar os aspectos válidos de ambas as posições, rejeitando os demais e reenquadrando os primeiros numa visão superior. Assim, veremos que a positividade do Direito não conduz fatalmente ao positivismo e que o direito justo integra a dialética jurídica, sem voar para nuvens metafísicas, isto é, sem desligar-se das lutas sociais, no seu desenvolvimento histórico, entre espoliados e oprimidos, de um lado, e espoliadores e opressores, de outro. 107 Seja, portanto, assim o direito: um eterno diálogo entre todas as diferentes formas de raciocínios jurídicos com o alvo perene da construção de uma sociedade melhor – ainda que constitua este o único elemento a todos comum. 105 LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 48. Idem. p. 25. 107 Idem. p. 26-27. 106 65 CONCLUSÃO Mostrou essa pesquisa bibliográfica alguns aspectos interessantes do Direito Natural. Desprezando a emissão de juízo de valor sobre a ordem de importância e relevância, listar-se-á aqui algumas das características principais deste tema alhures discutido. Uma delas, sem sombra de dúvidas evidente, é a vocação do ser humano, demonstrada ao longo da sua extensa história, em procurar a construção de um conjunto de valores, princípios e – por que não dizer – normas também, dotadas de caráter universal e transcendental e, ao mesmo tempo, aptas e suficientes para fomentar a fundamentação de normas sociais postuladas, sobretudo as estatais. É esta a conclusão a que se chega quando da leitura, por exemplo, do que se colacionou no capítulo primeiro. Há registros históricos da busca do homem por uma verdade universal desde os primórdios e, notadamente, já na construção da denominada filosofia grega clássica. Semelhante é o que se extrai do bojo de conclusões filosóficas do período medieval. Ali, a patrística entabulou a necessidade inerente à própria essência humana de se embasar os dogmas revelados por Deus conforme aquela que se nomeou Sua mensageira: a Igreja Católica Apostólica Romana. Tais são os traços percebidos quando se voltam os olhos para uma ramificação mais específica do pensamento filosófico. A chamada jusfilosofia, estrutura científica que cruza informações tanto da filosofia quanto da ciência do Direito, é aquela que se dedica com maior devoção à conceituação do denominado Direito Natural. Assim como se deu na formação dos entendimentos acerca da verdade universal, o Direito Natural é também objeto de estudo desde tempos que largamente precedem à configuração social que hodiernamente se observa. A construção conceitual deste tema perpassou a estrutura normativa de sociedades como a Suméria, por exemplo, há milhares de anos. 66 É o que se deu também no período clássico da história – entendido nesse trabalho como aquele compreendido entre a Grécia antiga, pré-socrática, e o início da Idade Média. A propósito, observou-se nessas linhas que mesmo o estabelecimento da estrutura clerical medieval não retirou dos homens de seu tempo a busca pela fundamentação – lógica ou, naquele caso, teológica – do ordenamento jurídico positivado. As maiores diferenças na montagem do raciocínio jusfilosófico são observadas, sobretudo, – e aqui sobressalta o entendimento pessoal do autor – a partir da revolução do conhecimento com a qual a história inaugurou a chamada Idade Moderna. O racionalismo criticista de Kant, por exemplo, é curiosamente encontrado na essência da reforma jusnaturalista. A figura de um ente criador, ao qual é dado o poder de formular o Direito Natural, é substituída pela razão esclarecedora de que são dotados todos os homens. Nesse sentido é que, conforme demonstrado, Hugo Grócio dá ao homem a responsabilidade de construir o ordenamento jurídico em absoluta coerência com os princípios inerentes à sua natureza. Da construção doutrinária mais recente, o presente trabalho preferiu ressaltar duas das principais correntes jusfilosóficas e, em ambos os casos, é notória a presença dos autores tupiniquins. De um lado, o surrealismo jurídico, proposto pelo Dr. Luis Alberto Warat, sugere a dessacralização da ordem jurídica em sua modalidade positiva. Não que o Direito deva se livrar da lei, ao contrário, em direção a ela o jurista pós-moderno deve construir a reorganização social mediante a libertação das arestas que circulam os sentimentos, a imaginação e a poética jurídicos. Daí é que decorre, a exemplo, a proposta de reencontro entre a arte e o Direito – conforme vem sendo amplamente difundido no seio da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, por exemplo. De outro lado, criticista, relativista e voltado para desconstrução textual, destaca-se no cenário internacional a jusfilosofia do movimento estadunidense Estudos Críticos do Direito (Critical Legal Studies – CLS). O personagem central, 67 nesse caso, é o brasileiro Dr. Roberto Mangabeira Unger. Seu realismo jurídico e a sua crítica à retórica jusnaturalista parece não consentir com a aposta em um bojo axiológico e/ou normativo que fundamente o Direito Positivo mediante caracteres dotados de universalidade e transcendentalidade. Ao autor desta pesquisa monográfica, já de início não pareceu apropriado construir uma tese analítica com a prepotente postura crítica em relação às diversas, ricas e extremamente profundas correntes ideológicas que circundam o tema do jusnaturalismo. Por essa razão, conforme se pode de plano perceber, o trabalho foi construído com foco na reunião bibliográfica de alguns elementos relevantes das doutrinas mais discutidas. A procura pela construção conceitual ou, como melhor parece soar, a busca pelas construções conceituais do Direito Natural era, preliminarmente, o fim com vistas ao qual se iniciou essa jornada de produção de pesquisa científica. Nesse aspecto, os objetivos se apresentam alcançados eis que reunidos num mesmo locus textual alguns aspectos fundamentais de diversas doutrinas da Filosofia do Direito, no particular. É bem verdade que, quanto à existência ou não do Direito Natural, acordo não há na literatura jurídico-científica. O que a presente pesquisa intentou realizar foi justamente a proposição de um resgate aos bons e produtivos diálogos entre as ideologias jurídicas e, em especial, entre o juspositivismo e o jusnaturalismo – e esse desfecho parece ter sido alcançado. Pois bem, era isso o que se tinha. 68 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ADOMEIT, Klaus. Filosofia do Direito e do Estado: Volume I – Filósofos da Antiguidade. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2000. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 2003. BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme de Assis de. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2002. BORGES, Edinaldo de Hollanda. Teoria Científica do Direito. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998. CANDIOTTO, C. Foucault: uma história crítica da verdade. São Paulo: Trans/Form/Ação, 2006. CARNELUTTI, Francesco. A arte do Direito. Campinas: Bookseller, 2005. COING, Helmut. Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. CRETELLA Júnior, José. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1984. CUNHA, Paulo Ferreira da; DIP, Ricardo. Propedêutica jurídica: uma perspectiva jusnaturalista. Campinas: Millennium, 2001. 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