Ripe 39 - Instituição Toledo de Ensino

Transcrição

Ripe 39 - Instituição Toledo de Ensino
ISSN 1413-7100
39
janeiro a abril de 2004
REVISTA DO INSTITUTO
DE PESQUISAS E ESTUDOS
Divisão Jurídica
Esta edição contém produções científicas desenvolvidas
no Centro de Pós-Graduação da ITE - Bauru.
REVISTA DO INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS (DIVISÃO JURÍDICA)
Faculdade de Direito de Bauru,
Mantida pela Instituição Toledo de Ensino (ITE).
Edição - Nº 39 – janeiro a abril de 2004
EDITE EDITORA DA ITE
Praça 9 de Julho, 1-51 - Vila Falcão - 17050-790 - Bauru - SP - Tel. (14) 3108-5000
CONSELHO EDITORIAL
Carlos Maria Cárcova, Cláudia Aparecida de Toledo Soares Cintra, Flávio Luís de Oliveira, Giselda Maria Fernandes
Novaes Hironaka, Iara de Toledo Fernandes, José Roberto Martins Segalla, Jussara Susi Assis Borges Nasser Ferreira,
Luiz Alberto David Araujo, Luiz Antônio Rizzato Nunes, Luiz Otavio de Oliveira Rocha, Lydia Neves Bastos Telles
Nunes, Maria Isabel Jesus Costa Canellas, Maria Luiza Siqueira De Pretto, Pedro Walter De Pretto, Pietro de Jesús
Lora Alarcón, Roberto Francisco Daniel, Rogelio Barba Alvarez, Thomas Bohrmann.
SUPERVISÃO EDITORIAL
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
COORDENAÇÃO
Bento Barbosa Cintra Neto
Solicita-se permuta
Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos : Divisão Jurídica.
Instituição Toledo de Ensino de Bauru. -- n. 1 (1966) - . Bauru
(SP) : a Instituição, 1966 v.
Quadrimestral
ISSN 1413-7100
1. Direito - periódico I. Instituto de Pesquisas e Estudos.
II. Instituição Toledo de Ensino de Bauru
CDD 340
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos
n. 39 p. 1-623
2004
ÍNDICE
Apresentação
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
9
COLABORAÇÃO DE AUTORES ESTRANGEIROS
Reflexiones sobre las bases de la Política criminal
Jesús-María Silva Sánchez
13
La eutanasia y el consentimiento en derecho penal
Arturo Zamora Jiménez
23
Actuaciones del agente encubierto em el ambito del blanqueo de capitales.
Conductas típicas y su posible justificacion
Carlos David Calix Vallecillo
51
DOUTRINA
A permanência do caráter compromissório (e dirigente) da Constituição Brasileira e o
papel da jurisdição constitucional: uma abordagem à luz da hermenêutica filosófica
75
Lenio Luiz Streck
HABERMAS: a razão comunicativa entre ética, política e direito
Eduardo C. B. Bittar
121
Análise comparativa da teoria pura do direito e da teoria dos sistemas fechados
Ruth Maria Junqueira de Andrade Pereira
143
O caráter não patrimonial do dever de sustento na perspectiva constitucional
Flávio Luís de Oliveira
163
A responsabilidade do Estado por omissão é objetiva
Richard P. Pae Kim
177
As agências reguladoras
Dinorá Adelaide Musetti Grotti
181
A União Européia, os Estados e as regiões: em busca da coesão econômica e social por meio de uma política regional – Aspectos jurídicos
Gustavo Ferraz de Campos Mônaco
211
Direito tributário e direitos humanos: o princípio da legalidade tributária com o
Código de Defesa do Contribuinte – Projeto de Lei Complementar do Senado Federal nº 646, de 25 de novembro de 1999.
Josiane de Campos Silva Giacovoni
231
Descaminho. Pagamento posterior do tributo. Extinção da punibilidade. Analogia
in bonam partem de norma penal especial
273
Roberto Luis Luchi Demo
Competência reformadora e seus limites
Marcelo Agamenon Goes de Souza
287
O tratamento dado pelo ordenamento jurídico brasileiro ao instituto da coisa
julgada
297
José Renato Rodrigues
Virou Súmula
Marcelo Cury
303
Ministério Público: por uma verdadeira autonomia funcional
Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo
307
O ensino jurídico e a responsabilidade social do profissional do direito
Antonio Carlos de Oliveira
319
Liberdade sindical e antinomias da Carta Magna de 1988
Regiane Margonar
325
A privacidade do trabalhador no meio informático
Antônio Silveira Neto & Mário Antônio Lobato de Paiva
343
Os planos econômicos e a multa de 40% do FGTS
Mário Gonçalves Júnior
359
Ação anulatória de cláusula de norma coletiva: competências material e hierárquica
Mauro Cesar Martins de Souza
367
INCLUSÃO SOCIAL
DIREITO DAS MINORIAS
Grotesco nos programas de televisão versus dignidade humana: notas acerca da
tutela jurídica civil oferecida às pessoas com necessidades especiais pelo direito
brasileiro em vigor
379
Jacqueline Sophie P. Frascati
A conquista da “emancipação” da mulher a partir do Código Civil brasileiro
Luciana Lopes de Oliveira
397
ASSUNTO ESPECIAL
“Meio ambiente e transformações urbanas”
A responsabilidade penal das pessoas jurídicas e a nova lei ambiental
José Henrique Pierangeli
429
Um trem de idéias e de ações para o transporte coletivo de Bauru
Miguel Ângelo Napolitano
447
As modificações da usucapião em face do estatuto da cidade
Jesualdo Eduardo de Almeida Junior
463
PARECER
Fato gerador do ICMS nas operações interestaduais de petróleo e derivados –
Opinião legal
481
Ives Gandra da Silva Martins
NÚCLEO DE PESQUISA DOCENTE
Cirugia plástica e responsabilidade civil do médico: para uma análise jurídica da
culpa do cirurgião plástico
503
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
Responsabilidade do Estado pelo atendimento integral à saúde da pessoa humana
513
Euclides Benedito de Oliveira
Pensão alimentícia: um enfoque comunitário
Iara de Toledo Fernandes
535
NÚCLEO DE INICIAÇÃO À PESQUISA CIENTÍFICA - NIPEC
Tutela efetiva na Justiça Estadual comum do ordenamento processual civil brasileiro
Aluno pesquisador: Marcelo Linhares Ferreira
Professora Orientadora: Soraya Regina Gasparetto Lunardi
543
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO
Resumos de dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Direito (Área de Concentração: Sistema Constitucional de Garantia
de Direitos), em nível de Mestrado, Instituição Toledo de Ensino
O conteúdo jurídico do princípio constitucional da presunção de inocência
Alexandre Barbieri Junior
569
Usucapião Constitucional
Paulo Afonso de Marno Leite
571
O empresário falido face a alguns de seus direitos fundamentais previstos na
Constituição de 1988
573
Luís Eduardo Betoni
Da liberdade sindical sob a ótica da central única dos trabalhadores
Alceu Luiz Carreira
575
Gravidez e ingestão de fenilalanina uma abordagem bioquímica e seus reflexos na
proteção da infância
577
Ney Lobato Rodrigues
A efetividade das decisões judiciais e os meios de coerção
Adugar Quirino do Nascimento Souza Junior
579
A seguridade social e o benefício assistencial do art. 203, V, da Constituição Federal de 1988
581
Rodrigo Zacharias
Da confissão como causa de redução de pena
Haroldo Cesar Bianchi
583
A legitimação da prova ilícita para a proteção da criança e do adolescente vitimizados
585
Simone Silva Prudêncio
CONTRIBUIÇÃO ACADÊMICA
Natureza jurídica e constitucionalidade do prazo para a impetração do mandado
de segurança
André Murilo Parente Nogueira & Leandro Ebúrneo Laposta
589
RESENHAS & SINOPSES
DIREITOS HUMANOS: PARADOXO DA CIVILIZAÇÃO. Sérgio Resende de Barros.
Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2003, 482 páginas.
Maria Berenice Dias
603
MOTIVAÇÕES IDEOLÓGICAS DA SENTENÇA. Rui Portanova. 4. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000.
Daniel Francisco Nagao Menezes
605
RIPE “ON LINE”
Minha crença na advocacia
Luiz Flávio Borges D’Urso
613
Preenchendo lacunas
Maria Berenice Dias
615
Inconstitucionalidade parcial da Instrução Normativa nº 22 do Colendo TST
José Salem Neto
617
INFORMAÇÕES AOS COLABORADORES
621
APRESENTAÇão
Eis o volume 39 da Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da ITE – Divisão Jurídica – com a mesma qualidade e característica dos anteriores, embora
com nova roupagem. A RIPE propõe, neste primeiro número publicado no ano de
2004, a reflexão e a discussão das relações entre o espaço da cidade, a sociedade
que nela vive e a ação das pessoas sobre ela e vice-versa, pensando em seus significados. Em resumo, abre espaço especial para a tomada de consciência do meio
ambiente e das transformações urbanas que surgem como manifestação da cultura, sem se descuidar da segregação social e espacial dos indivíduos, direito das minorias, saúde da pessoa humana e responsabilidade civil do Estado e do particular (no caso em tela, médico-cirurgião).
Além da colaboração de autores estrangeiros e nacionais no exterior, juntam-se artigos brilhantes de juristas nacionais, somando-se à nova versão, a integração efetiva da atuação discente por meio do NÚCLEO DE INICIAÇÃO À PESQUISA CIENTÍFICA - NIPEC que consagram, com enfoque especial, o caráter social do conteúdo e dos objetivos perquiridos por nossa Revista desde a sua criação: repensar o Direito. Mais do que isso, é imperioso incentivar e desenvolver,
em nível nacional e internacional, a produção e a circulação de conhecimento, por
meio da pesquisa e maior divulgação e intercâmbio do trabalho científico de nossos acadêmicos da Faculdade de Direito de Bauru.
Por essas razões, o NIPEC foi criado por ato da Mantenedora -ITE, em conjunto com a Direção da Faculdade de Direito de Bauru, em agosto de 2003. Tratase de um empreendimento formado por um grupo de pesquisadores, professores
e alunos interessados em estudar determinados temas, previamente definidos pelos professores orientadores, dentro das linhas de pesquisa selecionadas, que
priorizam assuntos jurídicos relacionados ao ambiente sócio-econômico de Bauru
e região, de modo a vivenciar “o Direito como ele é”.
O que se almeja e quer se ver concretizado neste Núcleo de Iniciação Científica é uma atividade de pesquisa direcionada à solução ou ao estudo das causas
de um problema local ou regional, metodologicamente correta, desenvolvida por
aluno da graduação, sob a orientação de um professor, o que permite que o estudo também seja desenvolvido em grupo, ou em conjunto com outras áreas e, inclusive, em outras cidades da região.
Assim, informamos ao aluno que desejasse vir a participar do NIPEC, deveria se inscrever optando por uma das linhas gerais de pesquisa que comporão o
Projeto 2003/2004, oferecendo como paradigma o seguinte:
LINHAS DE PESQUISA selecionadas, que priorizam assuntos jurídicos relacionados ao ambiente sócio-econômico de Bauru e região, lembrando que o proje-
faculdade de direito de bauru
10
to de iniciação científica é uma atividade de pesquisa direcionada à solução ou ao
estudo das causas de um problema local ou regional, metodologicamente correta,
desenvolvida por aluno da graduação, sob a orientação de um professor, o que permite que o estudo também seja desenvolvido em grupo, ou em conjunto com outras áreas e, inclusive, em outras cidades da região.
1. Direitos humanos e inclusão social
2. Conscientização jurídica de categorias fundantes na região de Bauru,
tais como:
2.1 entidade familiar
2.2 violência urbana e êxodo rural
2.3 trabalho escravo
2.4 mendicância
2.5 ambientalistas e os impactos das novas tecnologias
2.6 bioética e biodireito
3. O papel social da universidade e do estudante de Direito
4. O acesso à justiça
5. Da atividade estatal como garantia dos direitos fundamentais (ação e abstenção)
6. Direitos do consumidor
7. Defesa dos interesses difusos
8. Previdência social: aspectos polêmicos e controversos
9. Juizados especiais cíveis
10. Meios alternativos para solução de conflitos
11. A universidade e os juizados especiais cíveis
12. A universidade e o Poder Legislativo
A variedade e extensão dos temas desta Revista, pela própria natureza dos elementos, certamente dificultam um tratamento pleno. Sem a pretensão de esgotar o
tema ou os assuntos apresentados nos trabalhos e artigos, a RIPE, ora disponibilizada à comunidade inscrita em seus quadros, terá cumprido seu objetivo se despertar
a reflexão dos leitores para o nosso direito cotidiano.
Bauru, março de 2004.
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
Colaboração de
Autores Estrangeiros
Reflexiones sobre las bases de la
Política criminal
Jesús-María Silva Sánchez*
Catedrático de Derecho penal. Universidad Pompeu Fabra.
1.
LA ADMINISTRACIÓN DE LA HERENCIA DETERMINISTA DE VON
LISZT.
1. Franz von Liszt creó la Política criminal como disciplina científica 1, concibiéndola como el conjunto de criterios determinantes de una lucha “eficaz” contra el deli* Sobre o autor e o presente trabalho, como temática de destaque, observa o Professor LUIZ OTAVIO OLIVEIRA
ROCHA: “Observo que o Prof. Silva Sanchez tem um currículo impressiontante. É, sem dúvida, um dos grandes
penalistas da atualidade, da mesma estatura que os Profs. Enrique Gimbernat Ordeig (Espanha), Günther Jakobs
e Klaus Roxin (Alemanha). O Prof. Silva Sanchez tem obras traduzidas para diversos idiomas (inclusive o alemão),
sendo três em português. Ele próprio, aliás, é poliguota, tendo já estado no Brasil e outros países da América
Latina por diversas vezes, participando dos mais importantes seminários de Direito Penal aqui realizados nos últimos anos.
O artigo que enviou trata de tema importantíssimo, além de extremamente atual, que é a “Política Criminal” em nossos tempos, caracterizada, por um lado, pela vontade (política) tenaz de combater o mal representado pela expansão da criminalidade e, de outro, pelo risco de ruptura da estrutura básica das Ciências Criminais, que vem sendo
edificada ao longo dos últimos séculos como resultado de grande esforço intelectual.
Acredito que, com o devido destaque, esse trabalho contribuirá significativamente para o aumento do prestígio da
Revista da Faculdade de Direito de Bauru.”
1 Al respecto señala Radbruch, Recensión a la 21ª y 22ª edición del Tratado de von Liszt, en Radbruch, Gesamtausgabe 7, Strafrecht I, Heidelberg 1995, p. 269: “Franz v. Liszts Strafrechtslehrbuch bedeutet in der langen Reihe seiner Auflagen die Geschichte der deutschen Strafechtswissenschaft durch nahezu vier Jahrzehnte, wie Franz v. Liszts
strafrechtliche Aufsätze und Vorträge das Urkundenbuch zur Geschichte der modernen Kriminalpolitik sind”.
14
faculdade de direito de bauru
to2. Su punto de partida, como es sabido, era una concepción determinista del hombre, una visión del delito como reflejo de la peligrosidad del mismo (social e individualmente determinada)3 y una fe positivista en la posibilidad de corregir los factores individuales (por la psiquiatría o la instrucción) y las estructuras sociales (por la política social) que conducen al delito. Por todo ello, su planteamiento de la Política criminal “empírica” es expresión clara de la ideología terapéutica de finales del S. XIX; se parte del
diagnóstico de la Criminología empírica y se responde con la terapia de la Penología,
con el peculiar concepto que de la misma tiene el propio von Liszt.
“Die Kriminalpolitik, so wie wir sie verstehen, ist bedingt durch den
Glauben an die Verbesserungsfähigkeit des Menschen, des einzelnen, wie der Gesellschaft”4.
2. Lo anterior sólo puede resultar una novedad para quienes únicamente estén familiarizados con el von Liszt del “Lehrbuch”, que comúnmente se asocia al
concepto clasificatorio del delito (de raigambre causalista-naturalista). Al respecto,
conviene no ignorar la profunda cesura que existe entre el Liszt dogmático y el Liszt
político-criminal5. El primero es un autor que en su Tratado (desde 1881) describe y
sistematiza el Código penal alemán de 1871; pero que despectivamente entiende la
dogmática como una disciplina inferior, dedicada a explicar sistemáticamente el Código a los estudiantes de Derecho. El segundo es quien, a la vez, desde el Programa
de Marburgo (1882) desarrolla una concepción político-criminal basada en la ideología terapéutica y, en última instancia, en la sustitución de la pena y del Derecho
penal de la culpabilidad por la medida de seguridad y el Derecho penal de la peligrosidad. En el marco de esta dualidad, adquiere probablemente todo el sentido su
frase tantas veces citada de que el Derecho penal -es decir, el StGB de 1871- es la
2 von Liszt, Die Aufgaben und die Methode der Strafrechtswissenschaft, ZStW 20 (1900), pp. 161 y ss., 172: a la Política
Criminal le corresponde la “misión política” de una “Weiterbildung der Gesetzgebung im Sinne einer Zielbewußten Bekämpfung des Verbrechens, insbesondere auch, aber nicht ausschließlich, durch die Strafe und die mit ihr verwandten
Maßregeln”.
3 Como apunta von Liszt, Die determitistischen Gegner der Zweckstrafe (1893), en Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge, tomo 2, Berlin 1905, pp. 25 y ss., 65, el delito, como toda acción humana es la consecuencia necesaria “aus der teils
angebotenen, teils erworbenen Eigenart des Täters einerseits, der ihn im Augenblick der Tat umgebenden gesellschaftlichen, insbesondere wirtschaftlichen Verhältnisse andererseits”.
4 von Liszt, Die Zukunft des Strafrechts (1892), en Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge, tomo 2, Berlin 1905, pp. 1 y ss.,
23-24.
5 Como señala Radbruch, Recensión a la 21ª y 22ª edición del Tratado de von Liszt, en Radbruch, Gesamtausgabe 7, Strafrecht I, Heidelberg 1995,p. 271: “Es ist kein Zufall, daß gerade Liszt, dessen Kriminalpolitik die verbrecherische Gesinnung so entschieden zum Ausgangspunkt nimmt, sein Strafrechtssystem mit derselben Entschiedenheit auf der verbrecherischen Handlung aufbaut. Dieser scheinbare Widerspruch ist vielmehr nur eine Teilerscheinung des großen Gegensatzes, in den Liszts gesamtes kriminalpolitisches Denken eingespannt ist: des Gegensatzes zwischen Sicherungstheorie
und Rechtssicherheitsgedanke”.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
15
“unübersteigbare Schranke der Kriminalpolitik”6. En otras palabras, que la política
criminal eficaz por él preconizada debe ser, al menos por el momento, contenida,
porque no es la acogida en el Código vigente7.
3. Dado que la Política criminal “científica” surge de la mano de von Liszt, es
hasta cierto punto lógico que muchos asocien también el contenido de la Política
criminal a la ideología terapéutica y al intervencionismo penal que caracterizaban la
propia concepción de von Liszt sobre la misma8. Por otro lado, debe concederse que
ésta, de entrada, tuvo connotaciones prestigiosas9: era el momento en que la sustitución de la pena por la medida de seguridad y la del jurista por el médico se planteaban como una opción humanista y de progreso.
4. Ahora bien, el paso del tiempo -y el advenimiento de los totalitarismos de
todo signo, que hicieron suya la Política criminal intervencionista-terapéutica- modificó ese juicio inicial. Y se advirtió cómo, en contra de lo que cabía esperar, la exclusiva referencia del Derecho penal al cumplimiento de supuestas funciones socio-terapéuticas no implicaba su restricción sino precisamente su ampliación a niveles
hasta entonces desconocidos10. Es más, esta referencia a las funciones socio-terapéu-
6 von Liszt, Über den Einfluß der soziologischen und anthropologischen Forschungen auf die Grundbegriffe des Strafrechts (1893), en Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge, tomo 2, Berlin 1905, pp. 75 y ss., 80.
7 Es interesante que la difundida expresión de von Liszt sobre el Derecho penal como “Magna Charta” ni siquiera aparezca en el Programa de Marburgo, porque éste se entiende perfectamente sin principio de legalidad: cfr. Ehret, Franz von
Liszt und das Gesetzlichkeitsprinzip. Zugleich ein Beitrag wider die Gleichstellung von Magna-charta-Formel und Nullumcrimen-Satz, Frankfurt 1996, pp. 103 y ss, 149, 206. Y es que, en realidad, la vinculación a la ley había de entenderse más
bien como un obstáculo en el marco de la concepción político-criminal de von Liszt, que, orientada a la “Zweckrationalität”, demandaba coherentemente flexibilidad. Lo más importante es, pues, subrayar la gran distancia que separa a von
Liszt de Feuerbach en este punto (pp. 205-206).
8 Ehret, Franz von Liszt, pp. 177 y ss. pone de relieve cómo la acogida de la sentencia indeterminada por parte de Liszt supone la opción por una más eficaz represión de la criminalidad, frente a la seguridad jurídica y el principio de culpabilidad.
9 Como es lógico, si se tiene en cuenta el clima cultural por aquel entonces existente y, por otro lado, el enorme prestigio
de la figura de von Liszt, cuya obra (en las sucesivas ediciones del Tratado y en sus estudios concretos compilados en 1905)
marca entre treinta y cuarenta años clave en el desarrollo de la ciencia penal contemporánea. Por ello, no extraña que Radbruch, Recensión a la 21ª y 22ª edición del Tratado de von Liszt, en Radbruch, Gesamtausgabe 7, Strafrecht I, Heidelberg
1995, p. 274, concluya afirmando que “das wissen wir bestimmt, daß Liszts Gedanken in den Köpfen auch noch fortleben
und fortwirken werden, wenn einmal die Erinnerung des Menschen entschwinden sollte, daß es Liszts Gedanken waren”.
10 Muy instructivo, por otros muchos, Pasukanis, Teoría general del Derecho y marxismo (present. y trad. Virgilio Zapatero), Barcelona 1976, pp. 143 y ss., 153: “Si reemplazamos la pena por la medida de influencia, es decir, por un concepto jurídicamente neutral médico-pedagógico, se llega a resultados completamente diferentes. En este caso no será la proporcionalidad de la pena la que nos preocupará por encima de todo sino la adecuación de las medidas al fin fijado, es decir, a los fines de defensa de la sociedad, influencia sobre el delincuente, etc. Según este punto de vista la relación puede
ser completamente invertida: en el caso precisamente de una responsabilidad atenuada pueden ser necesarias las medidas más largas y las más intensas”; 154: “El capitalismo industrial, la declaración de los derechos del hombre, la economía
política de Ricardo y el sistema de detención temporal son fenómenos que pertenecen a una única y misma época histórica”; 157 y ss., 159: “En realidad una aplicación coherente del principio de defensa de la sociedad no exigiría la fijación
de cada supuesto de hecho legal penal (a los cuales se refieren lógicamente las medidas de la pena fijadas por la ley o por
el tribunal), sino una descripción precisa de los síntomas que caracterizan el estado socialmente peligroso y una elaboración precisa de los métodos a aplicar en cada caso particular para proteger a la sociedad”.
16
faculdade de direito de bauru
ticas del Derecho penal sigue siendo hoy el punto de partida para todas las tendencias expansionistas del Derecho penal11. Es lo que Hassemer denomina el “Derecho
penal curativo”, en el que el Derecho penal ya no se manifiesta como verdugo, sino
como médico12, con lo que las prevenciones de todo signo que cabía oponer frente
a aquél se desvanecen ante la perspectiva curativa, que se manifiesta entonces en
toda su potencia antiliberal.
5. En todo caso, el modelo intervencionista del Derecho penal del autor peligroso no se mantuvo. Ello, ya antes de la II Guerra Mundial, en el marco de la propia República de Weimar, donde quedó claramente consagrado el sistema de la doble vía13. Por lo demás, la inmediata postguerra sumió en el descrédito este modelo,
que ya nunca se mantuvo en sus pretensiones iniciales: así, ni el movimiento de la
llamada defensa social ni, mucho menos, la nueva defensa social eran ya más que
epígonos muy debilitados de lo anterior. Caso distinto es el de los Estados Unidos,
donde las ideas utilitaristas que sirven de base a esta concepción (incapacitation, rehabilitation, deterrence) se habían plasmado en modelos (como el de la sentencia
indeterminada) bastante cercanos a la ideología aludida14.
6. En los últimos años cincuenta y primeros sesenta, con ocasión del proceso de
reforma penal alemana, vuelve a hablarse, con todo, en el círculo de los “profesores
alternativos”, de un retorno a von Liszt15. Ahora bien, como sucede en todos los retornos, tampoco aquí se retoma al von Liszt originario. Así, ciertamente se pretende retomar el discurso de la función socio-terapéutica del Derecho penal. Pero ya no es la
eficacia el único criterio de racionalidad en la lucha contra el delito, sino que se introducen otros principios de autocontención. El discurso político-criminal de la reforma
asume así dos referentes de racionalidad: uno empírico, de eficacia, y otro valorativo,
de garantías16. De este modo surge la Política criminal valorativa, que ha marcado los
últimos treinta años. Unos años durante los cuales, sin embargo, se han ido disolviendo sus dos ejes fundamentales: la fe en la resocialización y, también, la convicción
acerca de la inconmovibilidad de las garantías. En cambio, se ha ido asentando una
11 Scheerer, Strafe muß sein! Muß Strafrecht sein?, en Böllinger/Lautmann (Hrsg.), Vom Guten, das noch stets das
Böse schafft. Kriminalwissenschaftliche Essays zu Ehren von Herbert Jäger. Frankfurt 1993, pp. 69 y ss., 75-76.
12 Hassemer, Bilder vom Strafrecht, en Böllinger/Lautmann (Hrsg.), Vom Guten, das noch stets das Böse schafft.
Kriminalwissenschaftliche Essays zu Ehren von Herbert Jäger. Frankfurt 1993, pp. 235 y ss., 241 y ss. Un Derecho penal “curativo” elude, ciertamente, muchos problemas de legitimación y, por añadidura, muchas críticas.
13 Cfr. el análisis y crítica de Muñoz Conde, Política criminal y dogmática jurídico-penal en la República de Weimar,
en Doxa 15-16 (1994), pp. 1025 y ss., 1031
14 Cfr. la reveladora exposición resumida de Braithwaite/Pettit, Not Just Deserts. A Republican Theory of Criminal
Justice, Oxford 1990, p. 3-4.
15 Uno de los trabajos paradigmáticos es el de Klug, Abschied von Kant und Hegel, en Baumann (Hrsg.), Programme für ein neues Strafgesetz, Frankfurt 1968, pp. 36 y ss. Cfr. también AA.VV, La funzione della pena, il commitato
de Kant e de Hegel, Milano 1989.
16 Una perspectiva a la que contribuye de modo esencial toda la obra político-criminal de Roxin.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
17
Política criminal “práctica” de orientación intimidatoria e inocuizadora, en un contexto general presidido por la oportunidad y el populismo. Seguramente no es exagerado afirmar que, con ello, la situación del Derecho penal se está haciendo insostenible17. Ahora más que nunca debe, pues, hacerse hincapié en la necesidad de orientar
la Política criminal a los principios que derivan de la idea de dignidad de la persona.
2.
SOBRE LA IDEA DE “POLÍTICA CRIMINAL”
1. De entrada, es necesario, por tanto, distinguir categóricamente entre la praxis de la Política Criminal y una Política criminal teórica 18. La primera se integra del
conjunto de actividades -empíricas- organizadas y ordenadas a la protección de individuos y sociedad en la evitación del delito19. La segunda aparece constituida por
un conjunto de principios teóricos que habrían de dotar de una base racional20 a la
referida praxis21 de lucha contra el delito; en donde la clave radica precisamente en
determinar qué significa “racional” y cuáles pueden ser los criterios de racionalidad.
2. En todo caso, es lo cierto que tales principios de la Política criminal se concretan en la adopción de diversas formas de evitación del delito (estrictamente preventivas unas; represivo-preventivas, las otras)22. En buena medida, la Política criminal se manifiesta en una serie de instrumentos que deben asociarse nominal o fácticamente a la producción presente o futura del delito en orden a evitar que éste se
produzca o se reitere23. Así contemplado, pueden realizarse dos afirmaciones. Por un
lado, que desde luego la Política criminal no se agota en medidas jurídico-penales24.
17 Cfr. Instituto de Ciencias Criminales de Frankfurt (ed.), La insostenible situación del Derecho penal, Granada 1999
(edición española a cargo del Area de Derecho penal de la Universidad Pompeu Fabra).
18 Muy claramente, Schwind, Kriminologie. Eine praxisorientierte Einführung mit Beispielen, 5ª ed., Heidelberg 1993,
§ 1 nº marg. 38-39.
19 Mezger, Kriminalpolitik und ihre kriminologischen Grundlagen, 3ª ed., Stuttgart 1944, p. 3 habla del “conjunto de medidas estatales para la prevención y represión del delito”; también Schwind, Kriminologie, 5ª ed., § 1 nº marg. 38. Pero lo
cierto es que el Estado cede (o impone) en determinados casos medidas de prevención del delito a sujetos privados, por
lo que me parece procedente definir la Política Criminal en términos más amplios. Kaiser, Kriminologie. Eine Einführung
in die Grundlagen, 9ª ed., Heidelberg 1993, p. 643, reduce la Política criminal a las medidas que tienen lugar a través del
sistema del Derecho penal, lo que coincide con el concepto más estricto, también mencionado por Mezger.
20 Palazzo, La politica criminale nell’Italia repubblicana, en Violante (ed.), Storia d’Italia, Annali 12, La Criminalità, Torino 1997, pp. 851 y ss., 851.
21 Kaiser, Kriminologie, 9ª ed., p. 643, habla de de un “control óptimo del delito”.
22 Para cuya configuración parece ineludible el recurso a la criminología: Kaiser, Kriminologie. 9ª ed., p. 646 y ss.
23 Por tanto, en realidad, la Política criminal se integra de medidas de prevención primaria (dirigidas a limitar la producción de las causas del delito, ya sea por política económica, social, cultural, estabilización de la conciencia jurídica, etc.),
prevención secundaria (que pretende intimidar al delincuente de modo normativo o fáctico, así como aleccionar a la
víctima potencial) y prevención terciaria (dedicada a combatir la reincidencia). Sobre ello, por todos, Schwind, Kriminologie, 5ª ed., § 1 nº marg. 40; Kunz, Kriminologie, Bern/Stuttgart/Wien 1994, pp. 268-269 nº marg. 9..
24 Palazzo, en Violante (ed.), Annali 12, p. 852.
18
faculdade de direito de bauru
Por otro lado, sin embargo, que, aunque la Política Criminal se configure en términos más amplios, todo el Derecho penal se integra en la Política criminal. Así, para
el penalista existe una práctica identificación entre la teoría de los principios de la
Política Criminal y la de los fines (y medios) del Derecho penal. Ello no debe extrañar. El Derecho penal es expresión de una Política criminal25. Así, la discusión sobre
los fines del Derecho penal y sobre los medios precisos para alcanzar tales fines no
puede ser más que una discusión político-criminal26. Y la vocación de la discusión
político-criminal es, en último término27, la reforma del Derecho penal28.
3. Entre los principios de la Política Criminal ocupan un lugar primordial los
que rigen la propia calificación de un hecho como delito -y no como hecho antisocial jurídicamente no prohibido, ilícito civil o ilícito administrativo-. En otras palabras, la propia definición de cuáles son los delitos constituye competencia de la Política criminal: cuántas son las conductas que cabe racionalmente calificar como delictivas29. Y ello, no sólo en cuanto a lo relativo a qué bienes jurídicos merecen y precisan de protección penal, sino también en cuanto a qué clase de conductas describen riesgos penalmente relevantes: tentativas, hechos imprudentes, hechos en comisión por omisión; etc. En este punto se muestra una de las características fundamentales de la Política criminal: ésta aparece como un sistema que se autodefine.
Ello determina la necesidad de abordar el problema de los límites exteriores a la autodefinición de la Política criminal: no ya sólo a la del legislador, sino también a la
del propio constituyente. En otras palabras, la decisión acerca de si cualquier conducta puede ser definida en un momento dado como delictiva30.
4. Es asimismo competencia de la Política criminal la determinación de cómo es
el delito; esto es, de cuáles son sus rasgos estructurales característicos. Así, si el delito es un “modo de ser”, o un síntoma, o un estado o, por el contrario, un hecho. Y, a
partir de esta última constatación, cuáles deben ser los elementos integrantes de ese
25 Esto es, por un lado, la propia existencia del Derecho penal estatal expresa una opción político-criminal (precisamente, la que pasa por la definición de determinados hechos como delitos y por la atribución al Estado del monopolio de su represión). Por otro lado, un Derecho penal concreto (con su regulación legal y también con su reconstrucción dogmática y aplicación práctica) es expresión de una determinada orientación político-criminal dentro de la línea general acogida.
26 Backes, Kriminalpolitik ohne Legitimität, KritV 1986, pp. 315 ss., 315: “...auch Kriminalpolitik, verstanden als
Rechtspolitik auf dem Gebiet der Strafrechtspflege, bleibt an strafrechtliche Prinzipien und grundgesetzliche Vorgaben gebunden. Daraus folgt weiter: Einer Kriminalpolitik, die solche Prinzipien und Vorgaben mißachten würde,
fehlte selbst dann die Legitimität, wenn sie sich auf eine gesetzliche Grundlage stützen oder eine parlamentarische
Mehrheit für ein entsprechendes Gesetz beschaffen könnte”.
27 Aunque la discusión político-criminal cumple también una función muy importante en el ámbito de la “lex lata”,
se le suele atribuir un papel sobre todo en el ámbito de la “lex ferenda”.
28 Kaiser, Kriminologie, 9ª ed., p. 643.
29 Palazzo, en Violante (ed.), Annali 12, p. 853: la criminalidad no constituye un a priori de la Política criminal, sino
que la individualización y la definición legal de la criminalidad es uno de los cometidos de la Política criminal.
30 El carácter valorativo de la Política Criminal, hoy asumido de modo general, es subrayado ya por Mezger, Kriminalpolitik, 3ª ed., p. 241
hecho. Obsérvese que, desde el punto de vista adoptado, la teoría del delito no deja
de ser un eslabón más de toda la Política criminal31. Lo que pone de relieve hasta qué
punto es cierta la afirmación de que también la ciencia del Derecho penal, también la
propia dogmática de la teoría jurídica del delito, realiza política criminal.
3.
LA RACIONALIDAD DE LA POLÍTICA CRIMINAL Y LA ORIENTACIÓN
PERSONALISTA
1. Lo anterior pone de manifiesto que la esencial de cuantas cuestiones previas deben abordarse al acometer el estudio de la Política criminal es la relativa al
modo de determinar la racionalidad que le es propia. Concretamente, la de si existen criterios materiales32 de correción a los que, de algún modo, se halla vinculado
el legislador a la hora de tomar una decisión político-criminal concreta o, por el contrario, la política criminal pertenece al ámbito de lo disponible33, de modo que se
configura en términos absolutamente relativistas.
2. Al respecto, es cierto que se ha tratado de buscar una legitimación dotada
de cierta permanencia en los principios de necesidad y proporcionalidad. Es decir,
que, en el punto de partida, se ha sentado la premisa de que las decisiones políticocriminales suponen un mal para alguien, mal que sólo cabe infligir de modo subsidiario (esto es, si la finalidad perseguida no puede obtenerse de un modo menos
dañoso) y además de modo proporcionado (esto es, de manera que el daño causado sea adecuado al fin pretendido, no cause un daño mayor que el que evita).
3. Con todo, no es posible obviar la relativa “vacuidad” de los dos referidos
principios de necesidad (en el sentido de subsidiariedad) y de proporcionalidad.
Pues en ambos es preciso efectuar una comparación: en el primer caso, entre la alternativa de protección elegida y otras alternativas posibles, para valorar si aquélla
por la que se opta es efectivamente menos lesiva que las demás; en el segundo caso,
entre el interés protegido y el interés lesionado, para valorar si precisamente el protegido es de mayor valor que el lesionado o no. Así, dos sistemas que acojan como
principios estructurales fundamentadores de su política criminal (o de otras inter31 Tiedemann, Stand und Tendenzen von Strafrechtswissenschaft und Kriminologie in der Bundesrepublik Deutschland, JZ 1980, p. 489 ss., 490: “...Strafrechtsdogmatik eine wesentliche und unersetzliche nämlich die Freiheit des
einzelnen gegenüber dem strafenden Staat sichernde Funktion hat”.
32 A juicio de Neumann, Positivistische Rechtsquellenlehre und naturrechtliche Methode. Zum Alltagsnaturrecht in
der juristischen Argumentation, en Dreier (Hrsg.), Rechtspositivismus und Wertbezug des Rechts, Stuttgart 1990,
pp. 141 y ss, 141, en un ordenamiento jurídico como el de la Ley fundamental alemana, en el que se han positivizado las exigencias centrales del Derecho natural, “die materielle Inhaltskontrolle von Normen (kann) weithin in der
Form einer Konsistenzprüfung des Rechtssystems durchgeführt werden. Die Frage, ob eine Norm wegen Unvereinbarkeit mit überpositiven Normen ungültig sein kann, spielt für die Rechtspraxis heute keine Rolle”.
33 Ashworth, Principles of Criminal Law, 2ª ed., Oxford 1995, p. 55: “The contours of criminal law are not given, but
are politically contingent”.
20
faculdade de direito de bauru
venciones estatales) los de necesidad y proporcionalidad, pueden llegar a conclusiones absolutamente dispares a la hora de resolver -ya en el plano legislativo- determinados problemas. Pues lo decisivo -con ser esto importante- no es la acogida (por
cierto, bastante generalizada, hasta el punto de que podría atribuírseles un estatuto
quasi-lógico) de tales principios, sino los criterios de valoración de los intereses en
presencia, a partir de los cuales puede sostenerse que una intervención es subsidiaria de otra y proporcionada a la consecución de un determinado objetivo.
4. Lo problemático es entonces el método para la determinación del valor relativo de los bienes en juego en el escenario social. Sólo a partir de ahí cabe probablemente definir determinadas lesiones de algunos de ellos como delictivas (y legitimarlo por razones de proporcionalidad y necesidad: merecimiento y necesidad de
pena) y, asimismo, configurar la sanción aplicable apelando asimismo a consideraciones de merecimiento y necesidad. Al respecto, cabe adoptar métodos relativistas.
Así, según un punto de vista, el valor relativo de los bienes que se manifiestan en la
interacción social sería una cuestión que decidirían los propios integrantes del grupo social sobre la base de un criterio procedimental comunicativo, que se entiende
de modo diverso según los autores (teorías del consenso; ética del discurso). El producto de esta propuesta sería un relativismo individualista de base liberal. Según
otro punto de vista, dicho valor vendría dado por la propia constitución social, que
no se conforma de modo esencial por dicho consenso, sino más bien esencialmente por una determinada tradición cultural; a lo que algunos añaden la idea de que
en dicha configuración prima el aspecto funcionalista relativo a la autoconservación
del grupo social. El producto de esta propuesta sería un relativismo comunitarista
de base socio-cultural, eventualmente funcionalista.
5. Poca duda cabe acerca de que el debate actual se suscita entre los dos puntos de vista señalados. Pero obsérvese que ambos -ciertamente, con distinta entidadse mueven en el ámbito del relativismo. De ahí que la pregunta sea si no cabe establecer criterios de ponderación de los valores en juego que gocen de validez universal, de modo que se fije -aunque sólo sea eso- un marco de indisponibilidad para las
políticas criminales de signo relativista (ya consensualista, ya culturalista). Las preguntas que habría que abordar, en lo que a nosotros aquí nos interesa, son las siguientes: ¿hay conductas que necesariamente deben ser prohibidas bajo pena (y
eventualmente bajo una pena determinada)? y, viceversa, ¿hay conductas que de
ningún modo pueden ser prohibidas bajo pena?. Si fuera posible dar a estas preguntas una respuesta afirmativa (y no relativa) entonces estaríamos admitiendo la existencia de un ámbito, por muy limitado que este sea, indisponible de la política criminal (“malum/bonum in se ipsum”), más allá de los diversos “mala quia prohibita”
relativos al consenso social existente en un momento dado o a la influencia de una
cultura dada.
6. Evidentemente, en lo anterior late una propuesta universalista. Sin embargo, ello no implica negar radicalmente toda posibilidad de particularismo o diversi-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
21
dad cultural (que, según se dice, es el signo de la postmodernidad, frente a las pretensiones uniformizadoras de la modernidad). Se trata, simplemente, de salvar un
mínimo, frente al cual no cabría esgrimir ni el consenso coyuntural de una sociedad
dada ni el relativismo cultural. Así, por ejemplo, no cabría esgrimir una “teoría de la
relatividad de los derechos humanos fundamentales” (vida, integridad, libertad ambulatoria, otras libertades), o una excepción cultural en este punto.
7. Parecen manifestarse signos de la voluntad de reconocer la existencia de
principios indisponibles. La creciente aparición de excepciones al principio de territorialidad e imposición de un principio de justicia penal universal (que de los crímenes contra la humanidad está pasando a abarcar buena parte de la criminalidad
organizada); el cuestionamiento de leyes como la “Ley de punto final” argentina; la
sanción de conductas de “turismo sexual” con menores cometidas en el extranjero;
o la Política criminal en países islámicos o en Asia.
8. Así pues, sin olvidar la evidente “relatividad” o “condicionalidad socio-cultural” del Derecho penal, se trata de enmarcar la Política criminal en el contexto del
concepto de persona, su dignidad y sus derechos fundamentales; en definitiva, en
el marco de una fundamentación objetiva34. Seguramente sólo desde estas premisas,
que por otro lado son obviamente compatibles con el reconocimiento de la dificultad de acceder de modo inequívoco al objeto de conocimiento, será posible reconstruir un modelo satisfactorio de Política criminal.
34 Este punto de vista es perfectamente compatible con el normativismo y, más aún, con un normativismo “culturalista”; es decir, con un normativismo que parte de que los modelos político-criminales tienen mucho que ver con las diversas c34 Este punto de vista es perfectamente compatible con el normativismo y, más aún, con un normativismo “culturalista”; es decir, con un normativismo que parte de que los modelos político-criminales tienen mucho que ver con
las diversas culturas, o civilizaciones, y por tanto se configurarán de modo diverso en cada una de ellas. Lo que por mi
parte no suscribiría sería un normativismo que niegue la existencia de todo marco de referencia externo: de la obvia
pluralidad cultural no puede llegarse a un absoluto (y, a mi entender, inaceptable) relativismo cultural. Esa sería la tesis,
según parece, de un “comunitarista” (¿?) como Alasdair MacIntyre, cuando indica que sólo puede hablarse de “the practical rationality of-this-or-that-tradition and the justice of this-or-that-tradition” (citado apud Tönnies, Der westliche Universalismus. Eine Verteidigung klassischer Positionen. Opladen 1995, p. 224).
Esto último es, en cualquier caso, lo que se manifestó, ciertamente en el plano puramente político, en la Conferencia
Mundial sobre Derechos Humanos de la ONU, celebrada en Viena en junio de 1993. Según señala S.P. Huntington, El
choque de civilizaciones y la reconfiguración del orden mundial (trad. Tosaus Abadía), Barcelona 1997, p. 233, ya dos
meses antes de la conferencia, los países asiáticos se reunieron en Bangkok y aprobaron una declaración que insistía en
que los derechos humanos se debían considerar “en el marco...de las particularidades nacionales y regionales y en el
contexto de los diversos bagajes históricos, religiosos y culturales”, lo que dió lugar a que el documento final resulte,
desde perspectivas de derechos humanos, “imperfecto y contradictorio”. Ultimamente, la prensa se ha hecho eco de
las manifestaciones del presidente chino Jiang Zemín en relación con lo que él denomina “teoría de la relatividad de los
derechos humanos”.
Obsérvese como, en el planteamiento reflejado, el marco queda roto desde perspectivas de relativismo culturalista. Claro está que puede objetarse que la derivación de los derechos humanos de la noción de persona constituye un vicio ló-
22
faculdade de direito de bauru
gico (una falacia, puesto que del ser deriva el deber ser), de modo que tales derechos sólo pueden sustentarse en un
normativismo (a saber, la concepción occidental acerca de lo que es debido al hombre por el hecho de serlo). Pero obsérvese que en tal “normativismo” se acoge precisamente la fundamentación ontológica: los derechos humanos no son
producto de una atribución porque lo dispongan las constituciones, o porque exista consenso sobre su aceptación, sino
que son “reconocidos” porque son “preexistentes” y un cambio de consenso no sería suficiente para rechazarlos. Obviamente en tal premisa -la dimensión ontológica de los derechos humanos- (la persona tiene derechos por serlo)se
halla el punto de partida de la pretensión de universalización que es inherente a la teoría. Si se estima que incluso esto
no es sino de un modelo normativista más (marcado por una determinada tradición cultural), la conclusión obvia es
que no existiría un marco ontológico representado por la persona y sus derechos, con lo que la política criminal podría
moverse en un normativismo (y, por ello, relativismo) culturalista sin referente externo (y, por tanto, sin fronteras). Sobre la necesariedad de acudir a un fundamento objetivo en materia de derechos humanos, Ollero Tassara, ¿Tiene razón
el Derecho?, Madrid 1997, p. 390, 396-397.ulturas, o civilizaciones, y por tanto se configurarán de modo diverso en cada
una de ellas. Lo que por mi parte no suscribiría sería un normativismo que niegue la existencia de todo marco de referencia externo: de la obvia pluralidad cultural no puede llegarse a un absoluto (y, a mi entender, inaceptable) relativismo cultural. Esa sería la tesis, según parece, de un “comunitarista” (¿?) como Alasdair MacIntyre, cuando indica que sólo
puede hablarse de “the practical rationality of-this-or-that-tradition and the justice of this-or-that-tradition” (citado apud
Tönnies, Der westliche Universalismus. Eine Verteidigung klassischer Positionen. Opladen 1995, p. 224).
Esto último es, en cualquier caso, lo que se manifestó, ciertamente en el plano puramente político, en la Conferencia
Mundial sobre Derechos Humanos de la ONU, celebrada en Viena en junio de 1993. Según señala S.P. Huntington, El
choque de civilizaciones y la reconfiguración del orden mundial (trad. Tosaus Abadía), Barcelona 1997, p. 233, ya dos
meses antes de la conferencia, los países asiáticos se reunieron en Bangkok y aprobaron una declaración que insistía en
que los derechos humanos se debían considerar “en el marco...de las particularidades nacionales y regionales y en el
contexto de los diversos bagajes históricos, religiosos y culturales”, lo que dió lugar a que el documento final resulte,
desde perspectivas de derechos humanos, “imperfecto y contradictorio”. Ultimamente, la prensa se ha hecho eco de
las manifestaciones del presidente chino Jiang Zemín en relación con lo que él denomina “teoría de la relatividad de los
derechos humanos”.
Obsérvese como, en el planteamiento reflejado, el marco queda roto desde perspectivas de relativismo culturalista. Claro está que puede objetarse que la derivación de los derechos humanos de la noción de persona constituye un vicio lógico (una falacia, puesto que del ser deriva el deber ser), de modo que tales derechos sólo pueden sustentarse en un
normativismo (a saber, la concepción occidental acerca de lo que es debido al hombre por el hecho de serlo). Pero obsérvese que en tal “normativismo” se acoge precisamente la fundamentación ontológica: los derechos humanos no son
producto de una atribución porque lo dispongan las constituciones, o porque exista consenso sobre su aceptación, sino
que son “reconocidos” porque son “preexistentes” y un cambio de consenso no sería suficiente para rechazarlos. Obviamente en tal premisa -la dimensión ontológica de los derechos humanos- (la persona tiene derechos por serlo)se
halla el punto de partida de la pretensión de universalización que es inherente a la teoría. Si se estima que incluso esto
no es sino de un modelo normativista más (marcado por una determinada tradición cultural), la conclusión obvia es
que no existiría un marco ontológico representado por la persona y sus derechos, con lo que la política criminal podría
moverse en un normativismo (y, por ello, relativismo) culturalista sin referente externo (y, por tanto, sin fronteras). Sobre la necesariedad de acudir a un fundamento objetivo en materia de derechos humanos, Ollero Tassara, ¿Tiene razón
el Derecho?, Madrid 1997, p. 390, 396-397.
LA EUTANASIA Y EL CONSENTIMIENTO
EN DERECHO PENAL
Arturo Zamora Jiménez
Doctor en Derecho en la Universidad Complutense de Madrid.
Posgrado en Criminologia en la Universidad de Salamanca, España.
Es Asesor de la Confederación Patronal de la República Mexicana (COPARMEX).
Presidente del Instituto de Ciencias Penales y Política Criminal S. C.
Presidente electo del municipio de Zapopan Jalisco, México durante el periodo 2004-2006.
La muerte no es nada para nosotros:
cuando existimos, la muerte no está presente,
y cuando la muerte está presente
entonces ya no existimos.
Epicuro
I.
INTRODUCCIÓN
Una de las cuestiones mas controvertidas en el Derecho Penal es la disposición o indisposición de los bienes jurídicos que se encuentran bajo el amparo de los
tipos penales por sus titulares, bienes que por su importancia, se reservan a esta
rama del Derecho, de aquí su carácter fragmentario1 y cuyos criterios de selección
1Muñoz Conde, Francisco y García Arán, Mercedes. Derecho Penal. Parte general. Edit. Tirant lo Blanch, Valencia,
1993, pp. 74 y ss.
24
faculdade de direito de bauru
son de difícil sistematización,2 entre otros, atendiendo el de su dañosidad social, referido por el profesor Zugaldía Espinar.3
Es indudable que, de los bienes jurídicos, el más importante que tenemos
es el relativo a la vida ya que a partir de la existencia, el hombre puede mantener y disfrutar todos los derechos y libertades que le son inherentes, por lo tanto, la presencia en el mundo es, sin duda alguna, el primero de los derechos fundamentales,4 tan es así que su reconocimiento exige que este derecho se encuentre consagrado en diversas Constituciones y Convenios Internacionales.5
El consentimiento de la víctima, (quien al dejar de tener ese carácter se le ha
llamado “el interesado”)6 otorgado sobre la disposición de su propia vida, será el
punto central de este trabajo, que se analizará a través de los derechos fundamentales consagrados en la Constitución Española, del nuevo Código Penal Español, y el
Código Penal Mexicano.
El tema pretende dar respuesta a las preguntas de: ¿Se debe admitir como
válido el hecho de otorgar un testamento vital? o ¿Se debe hacer o dejar de hacer lo prohibido u ordenado con el fin de cesar la vida de otra persona mediante cualquier forma de consentimiento, o sin consentimiento o mediante consentimiento presunto? o ¿ Debemos abordar desde el punto de vista legislativo el
tema de la eutanasia ?
Se hará referencia al aspecto conceptual, según las distintas formas de eutanasia: voluntaria e involuntaria, y activa o pasiva, después comentaremos los
móviles que han existido para su práctica: piadoso, eugenésico, económico, y
otros. A estas formas eutanásicas Jiménez de Asúa las denominó respectivamente como: muerte liberadora, muerte eliminadora y muerte económica.7
2Bacigalupo, Enrique. Principios de derecho penal. Parte general, segunda edición. Edit. Akal, Madrid, 1990, p. 10.
3Zugaldía Espinar, José Miguel, Fundamentos de derecho penal. Parte general. Las Teorías de la pena y de la ley penal. Universidad de Granada, 1990, p. 36. Señala que el criterio fundamental para la selección de determinados comportamientos desviados como delictivos es el de su dañosidad social
4 Martín Gómez Miguel y Alonso Tejuca, José L. Aproximación jurídica añadidas o conquistadas por la civilización y
que hoy en día tienen cobijo en las constituciones y convenios internacionales.
5 La Asamblea General de la Organización de Naciones Unidas y otras Organizaciones Internacionales han significado el Derecho a la vida en distintos instrumentos, así: a) La Declaración Universal de los Derechos Humanos (1948), b) La Declaración Americana de los Derechos y Deberes del hombre (1948), art. 1º c) El Pacto
Internacional de Derechos Civiles y Políticos. (1996), art. 6º, d) La Convención Americana sobre Derechos Humanos o Pacto de San José (1969), art. 4º, e) Convención Europea para la Protección de los Derechos Humanos (1950), art. 2º, f ) Convención para la prevención y sanción del genocidio (1948).
6Pavón Vasconcelos, Francisco H. Manual de derecho penal mexicano, Edit. Porrúa, México, 1967, p. 326, hace una
cita de Antonio Castro Nájera quien sugiere como la terminología correcta a usar cuando el sujeto da su consentimiento, en virtud de lo cual pierde su calidad de ofendido.
7 Jiménez de Asúa, Luis. Libertad de amar y derecho a morir. Ensayo de un criminalista sobre la eugenesia y eutanasia, Séptima edición, Edit. Depalma, Buenos Aires, 1984, p. 409.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
25
Trataremos además la eutanasia impropia (también llamada ortotanasia, o desconexión del aparato que mantiene con vida a la persona)8 que tiene estrecha relación con el tema del consentimiento presunto.
Se comentará el proyecto de Código Penal Español de 1992 y la reforma que
sobre este tema incluye la Ley Orgánica 10/1995 de 23 de noviembre de 1995, que
dá nacimiento al Código Penal vigente en la península ibérica. Por último, dejaremos
constancia de nuestras opiniones sobre la interpretación que se debe dar al Código
Penal Federal, que invoca como causa de exclusión del delito, entre otras, “la disposición del bien jurídico mediante el consentimiento del titular”, y finalmente un comentario conclusivo sobre el tipo penal de eutanasia en España.
II.
EL ABANICO CONCEPTUAL
La palabra eutanasia proviene del griego eu que significa bueno, bien o buena y thanatos, muerte9 “buena muerte”. Acortamiento voluntario de la vida de quien
sufre una enfermedad incurable para poner fin a sus sufrimientos. Muerte sin dolor,
sin sufrimiento, muerte dulce. En sentido restrictivo, es la muerte provocada por un
sentimiento de piedad para acortar el sufrimiento del agonizante, o “eliminación radical de los últimos sufrimientos mediante una acción u omisión que ofende a la dignidad humana”10. Desde el punto de vista jurídico, la eutanasia se ha tratado de diversas formas, así cuando el hecho asume carácter delictivo se le ha considerado:
a) Como una figura de homicidio atenuado por el móvil (artículo 143, 4 del
Código Penal Español11, y artículos 133 y 134 del Código Penal Portugués12).
b) Como un tipo privilegiado que influye dentro del marco penal del homicidio consentido (art. 409 del Código Penal español 312 del Código Penal
mexicano y Código Penal chileno artículo 39313).
c) En un rango igual al homicidio simple (artículos 579 y 580 del Código penal
italiano cuando el consentimiento proviene de menores de 18 años, o cuando
8 García Valdés, Carlos. El proyecto de nuevo código penal de 1992, p. 21.
9 Diccionario de la lengua española. Real Academia Española, tomo I, vigésima primera edición, Editorial Espasa Calpe, Madrid, 1995, p. 926.
10 Dichiarazione sull’ eutanasia de la Sacra Congregaziones per la Dottrina della Fede. De 5 maggio 1980, Dichiarazione approvata per Giovanni Paolo II. (Dall’ <Osservatore Romano> del 27 de giungo 1980. Declaración sobre la
eutanasia de la Congregación Sagrada para la doctrina de la fe de 5 de mayo de 1980- Declaración aprobada por el
papa Juan Pablo II (diario el Observador Romano del 27 de Junio de 1980).
11 Código Penal de 1995. Edición a cargo de Francisco Javier Alvarez García. Editorial Tirant lo Blanch. Valencia
1995. Lo contempla como una modalidad en el capítulo de inducción al suicidio.
12 Código Penal portugués. Editora Reidos Livros, tercera edición, Lisboa, 1996. La conducta eutanásica se tipifica
como homicidio privilegiado y como homicidio o petición de la víctima respectivamente.
13 Código Penal, décimo cuarta edición. Editorial Jurídica de Chile. Abril de 1994. Edición Oficial. Ministerio de Justicia.
26
faculdade de direito de bauru
la víctima ha sido engañada o padece enfermedad mental14 y 263 del Código
Penal cubano15 como un tipo específico de inducción al suicidio) y
d) Como una causa que excluye de toda responsabilidad (the people of the
State of california do enact as follows, section 1 chapter 3.9 commencing
with section 7158 y el proyecto alternativo alemán sobre eutanasia de 1986
y el proyecto gubernativo holandés del mismo año16).
e) Considerado como una forma piadosa de muerte con pena disminuida. Según la legislación penal Suiza, Artículo 11417
Como podemos darnos cuenta, algunas legislaciones no contienen una prescripción expresa sobre la muerte piadosa, dando lugar, a que el hecho se tipifique en
la previsión del homicidio y, en otras, bajo la tutela del delito de instigación o ayuda
al suicidio. Es evidente, la posición reservada que ha guardado el legislador para tratar el tema que, a la luz de la norma penal, no ha encontrado una solución adecuada,
por lo que, en principio, el concepto penal de eutanasia, del cual partiremos (como
eutanasia punible) es el que se desprende del artículo 143.4 del Código Penal español
de 1995 que la define como la conducta de: “el que causare o cooperare activamente
con actos necesarios y directos a la muerte de otro, por la petición seria e inequívoca
de este, en el caso de que la víctima sufriera una enfermedad grave que conduciría necesariamente a su muerte o que produjera graves padecimientos permanentes y difíciles de soportar”. De lo anterior, se desprende la realización de una conducta activa
que causa la muerte de otro, debido a la petición serie e inequívoca de este, que, para
ser merecedora de pena disminuida, deberá preceder enfermedad o padecimiento
grave en la víctima y que conduciría a su muerte necesaria.
III. TIPOS DE EUTANASIA
Hemos dicho que la palabra eutanasia significa muerte buena, muerte dulce o
muerte sin dolor, en el lenguaje común se considera que la eutanasia es inspirada
en un sentimiento altruista de compasión frente al dolor humano y que tiene como
finalidad abreviar los sufrimientos18, sin embargo, bajo este concepto se han incluido otras definiciones que no son, propiamente, evitar sufrimiento físico. Así, se habla de:
14 Códice penale, edición actualizada al 28 de febrero de 1990. Editore Ulrico Hoepli. Milano 1990.
15 Ley No. 62. Código Penal, edición a cargo de Serafín Seriocha Fernández Pérez. Editorial Felix Varela. La Habana
1995.
16 Gimbernat Ordeig, Enrique, Eutanasia y Derecho Penal. En revista de la Facultad de Derecho de la Universidad de
Granada en homenaje al profesor J.A. Sáinz Cantero No. 12. Editorial Comares, 1987, p. 111, (señala que el código penal alemán desenlaza en algunos casos y en el caso de Holanda se autoriza abiertamente la eutanasia directa).
17Códice Penale Suizzero de 21 de Diciembre de 1937, actualizado al 1º de abril de 1991. Publicación de la Cancillería Federal. Berna, 1991.
18 Gimbernat Ordeig, Enrique. Op, Cit, p. 107 y ss.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
27
Eutanasia eugenésica. La cual conlleva la eliminación sin dolor de los individuos deformes o con enfermedades mentales con la finalidad de mejorar la raza.
Este tipo eutanásico ha sido criticado por Antón Oneca, quien puso énfasis sobre el
peligro que representa el paso del homicidio piadoso, al homicidio con consentimiento de la víctima y su consecuencia en “la eliminación de los enajenados e incurables”, consistente en la autorización para exterminar seres desprovistos de valor
vital que dio inicio como lucubraciones sin valor práctico que después se llevaron a
cabo, lo que ha dado lugar a reprochar tales errores políticos y jurídicos,19 móvil eutanásico que no compartimos.
Eutanasia económica. Significa la eliminación sin dolor de los enfermos
incurables, de los inválidos y de los viejos. Esta concepción se sustenta sobre la
base de aligerar las cargas económicas del Estado por medio de la eliminación de
personas económicamente inútiles. En este sentido, cobra actualidad, el comentario de Antón Oneca hecho con anterioridad, además no debe caber en nuestra
sociedad la aplicación de un criterio procedente de la ciencia materialista que se
asemeja al genocidio, menos aún, en un mundo en que el disfrute del 80% de la
producción total está en manos de un 20% de la población en el que las desigualdades son evidentes.20
Eutanasia criminal. Se ha asignado este término a la eliminación sin dolor
de personas socialmente peligrosas, la pena de muerte tampoco es el modo de solución a los problemas de seguridad que debe plantearse toda sociedad y, no obstante, sus múltiples partidarios que fundamentan su existencia en el hecho de que
la privación de la libertad, de los bienes o de la vida, no es por satisfacer instintos
bárbaros sino para defender a la sociedad actual de los individuos que la acosan.21
Impera la razón de que no es ni será la solución al delito la exterminación, y que, lejos de resocializar, es un método que provoca más violencia. La clara y definitiva
oposición del profesor Barbero Santos a la pena de muerte cobra actualidad en la
frase que acuñó: “La pena de muerte acompaña a la humanidad como su trágica
sombra.22
Eutanasia experimental. Implica la muerte sin dolor de determinadas personas a fin de ser aprovechados con fines experimentales. Se funda en el progreso de
la ciencia y, desde luego, merece total reprobación ya que su permisión puede oril-
19 Antón Oneca, José, Derecho Penal, Segunda edición. Anotada y corregida por Hernández Guijarro, José y Beneytez Merino, José, Edit. Akal/Iure Madrid, 1986, p. 289.
20 Conferencia pronunciada por el profesor Antonio Baldasarre, Expresidente de la Corte Constitucional de Roma.
Centro de Estudios Constitucionales al tratar el tema Diritti sociali. 23 de mayo de 1996.
21 Von List, Franz. Tratado de Derecho Penal, Traducido de la vigésima edición alemana por Luis Jiménez de Asúa,
Tomo tercero. Tercera edición, Edit. Reus. Madrid p. 285.
22 Barbero Santos, Marino. Pena de Muerte. (el ocaso de un mito), Criminología contemporánea, número 4 Editorial Depalma, Buenos Aires, 1985. En el prologo de Elías Neuman, p. XX
28
faculdade de direito de bauru
lar, al amparo de las sombras de los laboratorios, al desarrollo de conductas verdaderamente criminales.
Eutanasia solidaria. Se puede definir como la muerte sin dolor de seres humanos con la finalidad de salvar la vida de otros seres humanos.23 En este sentido,
podemos recordar aquellos típicos supuestos de estado de necesidad de los sobrevivientes de los Andes o del yate la mignonette24en que se propició la muerte de uno
(el que pasaba por un estado de inconsciencia y el más débil, respectivamente) para
salvar la vida de otros.
Eutanasia terapéutica. Es aquella que se puede relacionar con el empleo o
la omisión de medios terapéuticos para obtener la muerte del paciente25.
Se puede distinguir la eutanasia activa de la eutanasia pasiva o, también llamada, eutanasia comisiva o eutanasia omisiva, de lo que se desprende:
a) Un no hacer, como conducta típica de abstención, en sentido estricto, lo
cual implica dejar de aplicar técnicas de mantenimiento vital. “En este sentido, se
debe considerar, si la conducta -no aplicar- constituye la adaptación al tipo penal
“omisión del deber de socorro”, previsto en el artículo 195 del Código Penal español o bien la responsabilidad que puede surgir bajo el título de homicidio por omisión previsto en los artículos.....?. Esta conducta se identifica como eutanasia pasiva y los límites del deber de asistencia quedan circunscritos a la lex artis.
b) Dejar de hacer lo posible o lo factible denominada Eutanasia impropia o ortoeutanasia Consiste en desconectar el aparato que mantiene con vida a
la persona)26. Se debe comprender la conducta de aquel que deja de intervenir después de iniciado su auxilio, debiendo entenderse por cesación, el carácter definitivo en la prestación de auxilio y no momentánea.27
c) Un hacer indirecto llamado Eutanasia indirecta. Se trata de una forma
de auxiliar a otro para lograr su muerte, Serrano Butragueño, ha señalado que se trata del auxilio activo a morir con correlativo acortamiento del proceso de vida me-
23 Puccini, C., Istituzioni di Medicina. Casa Editrice Ambrosiana, Milano 1979, y Montovani, Francesco en Problemi
Giuridici della eutanasia in “Medicine Sociale”. No. 20. p. 248. 1970.
24 Cuerda Riezu, Antonio. La colisión de deberes en Derecho penal, Madrid 1984, p. 114.El 5 de julio de 1884, el
yate La mignonette había salido de Southampton, navegaba rumbo a Sidney (Australia). Se hundió durante una
fuerte tormenta junto a las costas de Madeira. Varios náufragos consiguieron subir a un bote salvavidas. En él permanecieron durante veinte días, cuando llevaban ya ocho días sin comer y seis sin beber, el capitán Dudley, de
acuerdo con el piloto Stephen, decidió (sic) matar al más débil de todos ellos, que estaba a punto de morir, el grumete Parker. Una vez muerto éste, se alimentaron de su carne y bebieron su sangre. De esta manera, sobrevivieron
cuatro días más después de los hechos (la sentencia del Tribunal Inglés que los juzgó los condenó a la pena de
muerte, que posteriormente, fue conmutada por la Reina de Gran Bretaña a una pena de privación de libertad de
seis meses.
25 Giusto Giusti, Antonio. L’ Eutanasia. Diritto di vivere- Diritto di morire. Casa editrice dott. 1982, p. 14
26 García Valdés, Carlos, Op, Cit, p. 21
27Martín Gómez, Miguel y Alonso Tejuca, José L. Op, Cit, 864.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
29
diante el empleo de analgésicos, sedativos, y otros, originando una anticipación del
fallecimiento.28
d) Hacer directo llamado Eutanasia directa. Lleva implícito el dolo de privar a otro de la vida por móviles de piedad y que, como consecuencia de esa conducta, se causa la muerte a otra persona. De acuerdo al “Manifiesto en favor de la
disponibilidad de la propia vida” suscrito en Valencia, el 16 de noviembre de 1991 y
aprobado en Alicante, el 12 de Febrero de 1992, se define ésta como la provocación
de la muerte a petición expresa y seria del afectado para poner fin a una situación
de sufrimiento o dolor, grave e irresistible, no soportable ya por el sujeto, lo cual no
puede ser suprimido por medios distintos.
Eutanasia genuina equivale al auxilio a morir sin acortamiento del proceso
de vida.29 Este tipo de eutanasia se presenta en situaciones extremas de vida gravemente dañada y en las que se administra al paciente terapia médica y psicológica con
la finalidad de paliar la presencia de dolores o angustia, lo cual no supone, en modo
alguno, anticipación de la muerte. Es la ayuda al bien morir, y no ayuda para morir.
Eutanasia precoz. Últimamente se ha postulado el reconocimiento de la llamada eutanasia precoz, relativa a niños nacidos con Síndrome de Down, Sida, espinabilidad, etcétera, lo cual en mi opinión pueden caber dentro de la Eutanasia eugenésica. Cuestión que, en ningún caso, debe ser atendida para convalidar este
tipo de prácticas.30
IV. ANTEPROYECTO DEL NUEVO CÓDIGO PENAL ESPAÑOL DE 1992
En el Proyecto de Código Penal de 1980 y en el Anteproyecto de nuevo Código Penal no se encuentran antecedentes sobre el tema de eutanasia, salvo una enmienda, la número 431 presentada por el Grupo Socialista al Congreso en el proyecto de 1980, proponiendo sanción económica (multa de doce a veinticuatro meses)
para “el que matare a otro a petición expresa de éste, teniendo en cuenta las razones humanitarias que concurrieren en el caso”. El proyecto de Ley Orgánica de Código Penal de 1992 en el artículo 149 incorporó una modificación penalógica a la inducción o ayuda al suicidio y propuso la disposición, en los siguientes términos.
28 Serrano Butragueño, Ignacio-Jesús, Eutanasia y consentimiento en el anteproyecto de nuevo Código Penal de
1992. La Ley. No. 3, 1992. pp. 963 y 964.
29 Serrano Butragueño, Ignacio. Op, Cit, p. 962. Martín Gómez, Miguel y Alonso Tejuca, José L. Op, Cit, p. 868.
30Torío López, Ángel. Reflexión crítica sobre el problema de la eutanasia, en Estudios Penales y Criminológicos, XIV.
Da cuenta en la p. 219. Que en Gran Bretaña llamó poderosamente la atención el caso denominado ‘arthur’. La madre al recibir la noticia de que su hijo había nacido con síndrome de down, expresó una negativa terminante a aceptarlo como hijo. En esa situación, el doctor suministró una dosis de dyhydrocodeine, con omisión de cualquier otra
medida de apoyo, lo que condujo a las 57 horas con 15 minutos al fallecimiento del niño. La decisión absolutoria,
basada en la falta de prueba suficiente del nexo causal entre la acción y el fallecimiento originó reacciones clamorosas.
30
faculdade de direito de bauru
“El que causare o cooperare activamente con actos necesarios a la muerte de otro, por la petición expresa y seria de
éste, en el caso de que la víctima sufriera una enfermedad
grave que hubiera conducido necesariamente a su muerte, o
que produjera graves padecimientos permanentes y difíciles
de soportar. Será castigado con la pena inferior en uno o dos
grados a las señaladas en los números 2 y 3 de este artículo”
(dos a cinco años y seis a diez, respectivamente). La propuesta fue, en su momento, acogida para incorporarse al contenido del tipo penal privilegiado en el nuevo Código penal, desprendiéndose de lo anterior que, se mantiene la prohibición
penal de las conductas eutanásicas activas, aún en el caso de que exista petición expresa seria e inequívoca de la víctima, y ésta se encuentre en situación de grave enfermedad (formula con la que se complementó finalmente el parágrafo 4 del vigente artículo 149 con sanción privativa de libertad).
El proyecto, al haber prosperado, da cabida a la punición de la eutanasia activa al hacer referencia al comportamiento “El que causare o cooperare activamente”
tema sobre el cual, la opinión mayoritaria de la doctrina en voz de algunos de sus
exponentes, propone la impunidad para algunos supuestos31 y, según otros, en todas las modalidades.32 Esta fórmula ofrece un aparente punto final a las consideraciones científico-penales sobre los distintos comportamientos eutanásicos. Sin embargo, consideramos que ello presupone la solución a una nueva reformulación interpretativa sobre el tema.33 Por lo pronto, de la reforma, podemos destacar dos
cuestiones que dan claridad y pueden servir como punto de partida para nuevas disquisiciones; la primera, consistente en una considerable atenuación de la pena para
la conducta típica de eutanasia activa, y, la segunda, que describe los supuestos y requisitos de la conducta típica, dejando un cúmulo de dudas que surgirán en la pragmática, pudiendo destacar entre otras las siguientes:
a) Cuando se hace referencia al otorgamiento del consentimiento no se establece si éste debe ser dado con anticipación, o al momento en que surge
la eventualidad,
b) No se determina si dicho consentimiento debe otorgarse a persona determinada, o a persona indeterminada o genérica,
31 Butragueño Serrano, Ignacio-Jesús Op, Cit, p. 959. Señala que la eutanasia solo debe castigarse cuando el hecho
merezca la calificación de socialmente dañoso, pero no en otros casos.
32Gimbernat Ordeig, Enrique. Op, Cit, p. 108 y 109. Da por sentado que el homicidio consentido bajo el concepto
de eutanasia no será punible por operar la eximente de estado de necesidad del artículo 8.7 del CP (1973) y que
por lo tanto la eutanasia directa, pasiva o indirecta no será punible.
33 Cobo del Rosal, Manuel y Carbonell Mateu, Juan Carlos. Revista de la facultad de derecho Universidad de Granada, Núm. 12 p. 77. Son del mismo parecer, en base al principio de autonomía de la voluntad.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
31
c) Surge el problema que representa la capacidad de las personas para consentir, y si se debe acudir a las reglas del Derecho Civil para considerar válido éste, o en todo caso, se debe sujetar a otro tipo de criterios.
d) El tipo penal no establece los móviles de la conducta, por lo tanto, se desconoce si se trata de una conducta motivada por cuestiones económicas,
eugenésicas o por motivos piadosos, científicos, o por otras razones.
e) No se establece cuáles son los medios para la causación de muerte, en este
sentido es genérica la fórmula ”el que causare o cooperare activamente
con actos necesarios y directos a la muerte de otro” y
f ) Finalmente, el problema que representa determinar con certeza, qué debemos entender por “padecimiento difícil de soportar”, lo cual dará lugar, en su
caso, a determinar, si situaciones como la tetraplejia se pueden considerar
como una “enfermedad grave” que conduce a la muerte, o constituye una situación difícil de soportar, o no cabe dentro de ninguna de ellas.
Los planteamientos que surgen del parágrafo 4 del artículo 153 del nuevo Código Penal dejan claro que, los términos homicidio, suicidio y eutanasia no son equivalentes. Por otro lado, la reforma tiene efectos determinantes ya que no es lo mismo imponer pena privilegiada a las conductas verdaderamente eutanásicas, al tenor
del tipo mencionado, que rebasarlo y caer fácilmente en conductas típicas de auxilio (cooperación necesaria) al suicidio, homicidio, o asesinato.
A tenor de la casuística, lo más seguro es que, la toma de este tipo de decisiones al ser compartidas entre interesados, (familiares, médicos, etc.) se presente el
fenómeno del concurso de las diferentes formas de participar en el delito, (autoría
mediata, cooperación necesaria, cooperación no necesaria, complicidad, o inducción) previstas en los artículos 28 y 29 del nuevo CP. Así como, la presencia de las
llamadas circunstancias agravantes o atenuantes en razón del parentesco, (art. 23 del
nuevo CP) y si, esta circunstancia es o no comunicable para el médico.
Otra de las cuestiones que surge, es que a falta de cualquiera de los elementos del nuevo tipo, la conducta de quien o quienes privan de la vida a otro puede
ser típica de asesinato, en virtud de que sería clara la situación aleve en que se actuaría, sobre todo, por el estado de indefensión de la víctima.
V.
EUTANASIA EN EL CÓDIGO PENAL ESPAÑOL DE 1995
La Ley Orgánica 10/1995, de 23 de noviembre aprobó el Código Penal, cuya
entrada en vigor se inició el día 25 de mayo del año en curso y según el artículo 1434 (antes 409) dispone:
“El que causare o cooperare activamente con actos necesarios a la muerte de otro, por la petición expresa y seria de
éste, en el caso de que la víctima sufriera una enfermedad
32
faculdade de direito de bauru
grave que hubiera conducido necesariamente a su muerte, o
que produjera graves padecimientos permanentes y difíciles
de soportar. Será castigado con la pena inferior en uno o dos
grados a las señaladas en los números 2 y 3 de este artículo”.
Como hemos señalado con anterioridad, el legislador consideró punible la
conducta del que lleva a cabo conducta activa o comisiva en la fórmula “el que causare o cooperare activamente”, lo cual permite dejar por sentado, la impunidad de
la eutanasia pasiva, consistente en omitir el empleo de técnicas o administración de
medicamentos para prolongar la vida, dejando así, que la enfermedad siga su curso
irreversible, sobre lo cual, la Doctrina moderna venía insistiendo de manera concluyente aportando soluciones al tenor de las justificantes ‘estado de necesidad’ o
‘cumplimiento de un deber’ Lex Artis.34 En este sentido, es importante la teoría de
la antijuridicidad cuyo objeto es establecer bajo qué condiciones y en qué casos la
realización de un tipo penal no es contraria al derecho, y que Bacigalupo ha llamado teoría de las autorizaciones para la realización de un comportamiento típico,35 la
cual sirve de base para fundamentar la no punición de tales conductas.
Con el fin de dar respuesta a algunos de los planteamientos hechos en la parte final del capítulo anterior, debemos considerar si la “ortoeutanasia” o eutanasia
impropia, (consistente en desconectar el aparato que mantiene con vida a la persona) es una conducta activa u omisiva en los términos de la formula penal citada,
cuestión que, en la praxis, ofrece dudas ya que también se considera como ortoeutanasia el no empleo de ayudas mecánicas o medicamentos, sobre lo cual hemos dicho que la doctrina la ha considerado como impune, cuando ésta consista en suspender auxilios o medios una vez que se estaban proporcionando.36 Entendemos
que al incluir el tipo penal en el artículo 143.4 la fórmula “el que causare o cooperare activamente”, la conducta ortoeutanásica consistente en la acción de desconectar ayudas mecánicas en el paciente debe ser punible, habida cuenta que es la
condición causal agravante de la situación del paciente, generada en razón de una
acción precedente (acto de desconexión de aparatos). Si analizamos la actuación
precedente, bajo la óptima de la teoría de imputación objetiva, debemos tomar en
consideración, que el facultativo, desde el momento en que se hace cargo del cuidado y seguimiento de la situación delicada del paciente, se convierte en garante
(única y exclusivamente, por lo que se refiere a su obligación de proporcionar a éste
todos los medios que estén a su alcance para mejorar su salud o paliar los sufrimientos), y, si bien es cierto, que no es creador del riesgo, su conducta activa (de desconexión o la falta de continuar proporcionando los medios de subsistencia) aumen34 Por todos véase a Cobo del Rosal, Manuel, Gimbernat Ordeig, Enrique. Op. citados respectivamente idem.
35 Bacigalupo Zapater, Enrique, Ob, Cit, p. 139
36 García Valdés Carlos. El proyecto de nuevo Código Penal, 1992, p. 21.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
33
ta considerablemente el riesgo ya existente, independientemente que, en ambos supuestos, se trata de conductas de acción37 como conducta corporal externa38 frente
al concepto de omisión39, por lo tanto, en estos casos, debe considerarse dentro del
marco del injusto penal de nuevo cuño.
El parágrafo 4 del artículo 143 exige además de una conducta activa, que la víctima de su consentimiento de una manera expresa, seria e inequívoca. Sobre el problema del consentimiento se han desarrollado diversas teorías, de las que se desprende su eficacia únicamente para la disposición de ciertos bienes jurídicos, entre
otros el patrimonio, el honor, la libertad40 negando toda eficacia al consentimiento
dado frente al bien jurídico vida41 el consentimiento del ofendido en este supuesto
no es causa de exclusión del injusto penal con arreglo al principio de la ausencia de
interés42, sino que se trata de un elemento más del tipo penal, el cual, solamente,
constituye uno de los requisitos para disminuir la sanción, debiendo otorgarse, objetivamente, por el sujeto pasivo titular del interés jurídicamente protegido en la
norma que, indudablemente, debe ser la persona sobre quien se vierte la conducta,
además deberá ser otorgado al momento en que la persona sea capaz de discernir
sobre el conocimiento, circunstancias, y consecuencias de ese asentimiento, para
que se considere otorgado con plena libertad y en base al conocimiento real.43 Al
respecto, cabe recordar, las palabras de Platón cuando señaló que, “el hombre podrá captar la verdad, solamente, a través del ejercicio de la racionalidad y que nuestros sentidos, por tanto, nos engaña.
En este orden de cosas, consideramos que, si la experiencia del mundo inteligible y del mundo sensible hace que el hombre tome tantas decisiones como
son necesarias cada día, en condiciones de normalidad socialmente válidas, incurriendo en no pocas equivocaciones, la toma de decisiones sobre la vida y la
muerte, en un momento que es precedido de impresiones graves realmente se
ajusta a la expresión exigida en la Ley “exprese seria e inequívoca”. Surgen, así,
las siguientes dudas.
¿Será libre y, en consecuencia, válido el consentimiento?, ¿Si una persona postrada por una grave enfermedad otorga su asentimiento para que se le prive de la
vida?.
37 Mir Puig, Santiago. Derecho penal. Parte general. 3a. edición, Edit. PPU, Barcelona 1995, p. 175.
38 Sáinz Cantero, José A. Lecciones de Derecho Penal. Parte general, 3a edición Edit. Bosch. Barcelona 1990, p. 496
y ss.
39 Sáinz Cantero, José Op, Cit, pp 512 y 518
40 Antón Oneca, José Ob, Cit, p. 288 y sig. Bacigalupo Zapater, Enrique, Ob, Cit. p. 155.
41 Por todos, Vela Treviño Sergio, Antijuridicidad y justificación, Edit. Trillas 2a edición, México, 1986, p. 183.
42Welzel, Hans. Derecho penal, Parte General, Editorial Depalma, Buenos Aires 1956, p. 99, hace referencia a “la renuncia a la protección del Derecho” siempre que puedan quedar satisfechos todos los requisitos que son indispensables para la operancia del consentimiento como causa de inexistencia del delito.
43 Jiménez Huerta, Mariano. La antijuridicidad. Imprenta Universitaria, México 1952, p. 184.
34
faculdade de direito de bauru
¿Realmente lo estará haciendo dentro del marco de libertad a que se refiere la
norma?
Sabemos que, en el mundo de las ideas, el hombre puede ser influido y que
existen momentos propicios para ello. Giusto Giusti, en este sentido ha señalado
que, en el caso de los ancianos enfermos incurables, la sugestión puede ser fácilmente ejercitada por los familiares o por el médico44. Por tanto, debió establecerse
en la norma a qué persona va dirigida ese consentimiento, o si es válido otorgarlo
ante cualquier persona, o debiera emitirse en presencia del facultativo, con asistencia y opinión de otro, y en presencia de el familiar o familiares más cercanos, con la
finalidad de garantizar al máximo el marco de libertad para el otorgamiento de una
decisión de tal importancia. Tal vez, no se abordó esta cuestión, en razón de la problemática la nueva figura delictiva puede plantear frente a la autoría y participación.
En este orden de ideas, consideramos que la petición deberá ser expresa y determinada al mínimo de personas ya que su comunicación y asentimiento frente a
numerosas personas puede generar responsabilidad penal de “omisión del deber de
socorro”, o alguna de las formas de participación en el delito de eutanasia, en los
términos de lo dispuesto por los artículos 27, 28 y 29 del nuevo Código Penal, en
tanto, se puede concluir que, el silencio o cualquier otra forma que no sea patente
y específica, no tendrá significancia para considerarse en el tipo privilegiado.
La figura delictiva exige que la víctima se encuentre padeciendo enfermedad
grave. Se trata de un concepto normativo distinto en cada uno de los supuestos que
se pudiesen presentar en el empirismo. Nos surgen, también, varias preguntas.
¿Se considera como una enfermedad grave la drogodependencia o la alcoholidependencia?
¿Las enfermedades mentales son consideradas como graves o que no se pueden resistir?
¿Las deformidades se consideran enfermedades o padecimientos difíciles de
soportar?
¿Un descerebrado sabe que padece un grave daño difícil de soportar?
En los supuestos genéricos expuestos la casuística ofrecerá bastantes dudas
más y, en todo caso, serán cuestiones demostrables mediante el auxilio de la prueba pericial a fin de que se determine con toda precisión, si, en efecto, se da la condición prevista por la norma penal.
Ya mencionamos que el Legislador fue omiso al señalar medios comisivos
para la causación de la muerte, así como móviles. Se deduce, de los antecedentes
legislativos, que se pretende privilegiar aquellas conductas que son movidas por
sentimiento de piedad, (recordemos la enmienda del grupo socialista, al cual se hizo
referencia en líneas anteriores), sin embargo, el problema más grave surge en la am-
44 Giusto Giusti. Op, Cit, p. 78
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
35
plitud de medios que pueden ser utilizados, lo cual puede dar lugar a la “experimentación científica” indebida con enfermos en fase terminal mediante la administración variada de técnicas y formas de provocar la cesación en las funciones vitales o,
incluso, la utilización de medios crueles o innecesarios, lo cual, puede dar lugar a la
aplicación de la agravante prevista en la fracción 5a del artículo 22 del nuevo Código Penal.
Por otro lado, es justo señalar, que esta figura delictiva soluciona problemas
que se planteaban con relación al consentimiento dado por la víctima en relación a
la disposición de su propia vida, ya que antes de la reforma, la muerte precedida de
petición por la víctima, se tipificaba como homicidio consentido (artículo 409. CPE
de 1973) bajo el título de inducción o ayuda al suicidio, y la pena correspondía a la
privación de libertad de doce años y un día a veinte años, tipo penal cuya amenaza
punitiva actual es de seis a diez años de prisión (art. 143.3), en tanto que, para la
conducta eutanásica se reserva la disminución de pena en uno o dos grados a las señaladas en los números 2 y 3 del artículo 143, dando como resultado la disminución
a la pena de dos a cinco años, o de seis a diez años de prisión, respectivamente.
Además, la eutanasia, considerada como figura delictiva, pone de relieve el valor que sigue teniendo la vida humana en sociedad y la indisponibilidad sobre la propia vida, aún en condiciones precarias, no obstante, la crítica que se formula al Legislador penal por la Doctrina dominante, en el sentido de que su única función es
procurar una tutela jurídica para los bienes dignos, susceptibles y necesitados de
protección penal.45
Consideramos que, la solución dada por el legislador ha sido marcar los límites de cinco conductas que producen el mismo tipo de resultado, (la muerte) pero
que tienen las diversas significaciones siguientes:
a) Matar a otro contra su voluntad (homicidio o asesinato, artículo 138 y 139
del nuevo C.P., de 10 a 15 años y de 15 a 20 años de prisión, respectivamente).
b) Inducción a otro para que se autoinmole (inducción al suicidio artículo
143.1 del C.P., de 4 a 8 años),
c) Cooperación en la muerte de otro (auxilio funcional en el suicidio de otro,
artículo 143.2 del CP de 2 a 5 años).
d) Homicidio consentido (ejecutar el suicidio ajeno, artículo 143.3 del CP de
6 a 10 años) y,
e) La eutanasia (mediante conducta activa, artículo 143.4 del CP, con disminución en uno o dos grados a la pena señalada en los números 2 y 3 de
este artículo).
45 Por todos véase a Cobo del Rosal, Manuel, Vives Antón, T.S. Boix Reig, J. Orts, Berenguer, E. Carbonell Mateu,
J.C. En Derecho Penal, Parte especial. Edit. Tirant lo Blanch. 2a edición, Valencia, 1988, p. 548 (Cuestiones de Constitucionalidad al tratar la inducción o ayuda al suicidio).
36
faculdade de direito de bauru
Lejos de declararse la inconstitucionalidad del precedente legislativo, (artículo 409 del Código Penal de 1973), se procuró, por esta vía, cumplir con los principios de seguridad jurídica y de proporcionalidad, atendiendo a la gravedad y naturaleza del mal causado, así como, a la reprochabilidad del agente por tratarse de
conductas radicalmente desiguales. Por esta razón, a cada una de ellas le ha sido
asignada una amenaza de sanción proporcional frente a las demás, dando carácter
prevalente a la vida humana frente a quienes han opinado que, “la libertad humana
debe pasar a un primer plano, ocupando así el lugar que, tradicionalmente, se ha
asignado a la vida, que ni es un valor fundamental del ordenamiento jurídico, ni es
tan siquiera un valor”46 tesis que no compartimos, ya que como se ha señalado en líneas anteriores, todos tenemos derecho a la vida y, a partir de ello se tiene un valor
que ha sido elevado a la calidad de derechos fundamentales, art, 15 de la Constitución Española (todos tienen derecho a la vida y a la integridad física), así, la previsión constitucional tiene un sentido garantista que, en ningún caso puede limitar la
voluntad de la persona47.
Lo anterior lleva implícito el hecho de que otro interfiera, influyendo en la
conciencia del suicida, o induzca a los enfermos en fase terminal a otorgar su consentimiento, con independencia de que el que quiere terminar con su vida, no tiene derecho de involucrar o inmiscuir a otros en la toma de decisiones de esta naturaleza. Consideramos, pues, que el nuevo tipo penal de eutanasia de ninguna manera es contrario a los principios de igualdad y libertad, consagrados en el artículo
1º de la Constitución Española, los cuales no tienen porqué estar por encima de bienes jurídicos y derechos fundamentales concretos como la vida ya que la vida precede a la libertad y, sin ella, no podemos gozar de ésta.
VI. EL CONSENTIMIENTO Y LA EUTANASIA COMO CAUSA DE EXCLUSIÓN DE DELITO EN MÉXICO
El Código penal para el Distrito Federal, en materia común, y para toda la
República, en materia Federal, dispone, al igual que todas las legislaciones penales, en su parte general, las causas de exclusión del delito. En el artículo 15 aparece, entre otras causas eximentes, el consentimiento otorgado por el titular del
bien jurídico afectado. La relevancia de esta disposición merece un análisis, a la
luz de la doctrina, sobre la fórmula que el texto ofrece en los siguientes términos: artículo 15.- El delito se excluye cuando:.... fracción III. Se actúe con el consentimiento del titular del bien jurídico afectado, siempre que se llenen los siguientes requisitos:
46 Cita textual, cfr. Querlat Jiménez, J.J. Derecho Penal Español. Parte Especial. Vol. I. Edit. Bosch, Barcelona 1986.
pp. 14, 15 y 16.
47Bustos Ramírez, J., Manual de Derecho Penal. Parte especial, Edit. Bosch, Barcelona 1986, p. 45.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
37
a) que el bien jurídico sea disponible;
b) que el titular del bien tenga la capacidad jurídica para disponer libremente del mismo, y
c) que el consentimiento sea expreso o tácito sin que medie algún vicio; o
bien que el hecho se realice en circunstancias tales que, permitan fundadamente presumir que, de haberse consultado al titular, éste hubiese otorgado el mismo.
Esta forma de excluir, ya sea el tipo o lo antijurídico de la conducta48, dependiendo del consentimiento y el bien respecto del cual se concede la permisión para
ser lesionado, genera una serie de cuestionamientos que tienen relación con las
condiciones en que se debe dar dicho consentimiento.
¿Quién debe proporcionarlo?
¿Cuándo tendrá validez y cuándo no?
¿Qué bienes son susceptibles de ser disponibles?
¿Cómo se resuelve el problema del consentimiento cuando existen varios titulares del mismo bien?
¿Cuándo se tiene la capacidad jurídica o se carece de ella?
¿En qué casos extremos se podría presumir el otorgamiento de consentimiento sin que lo haya expresado el titular (consentimiento presunto)?
¿Es válido el consentimiento en conductas eutanásicas?
¿Es válido para la interrupción del embarazo?
¿Convalida la inducción o ayuda al suicidio?
La respuesta no es sencilla, por lo que, antes de dar una opinión debemos
considerar, previamente de entre los bienes protegidos por el derecho penal, qué
bienes son disponibles y cuáles no.
De entrada, debe quedar claro que, existe, en la parte especial de los códigos
penales, conductas en las cuales el sujeto pasivo otorga su consentimiento con toda
plenitud, libertad y conciencia de su asentimiento, como sucede en el caso del delito de usura (art. 258 del Código Penal de Jalisco), en el cual la víctima está de acuerdo, en principio, a pagar intereses superiores a los legalmente establecidos, o en los
supuestos en que el del consentimiento obedece a una motivación engañosa mediante la utilización de argucias que distorsionan la realidad (despojo Art. 395 o fraude art. 386 o abuso de confianza del art. 382, todos del Código Penal Federal). En
todos estos supuestos la conformidad tiene un significado penal, por lo tanto, se
castiga al responsable, dado que en estos supuestos nos encontramos ante los llamados delitos de encuentro49 en los cuales el tipo penal exige como uno de sus elementos el asentimiento expreso o presunto de la víctima ya que las distintas conduc48En este sentido véase a Bacigalupo Zapater, Enrique, Op, Cit, p. 155.
49 Heinrich Jescheck, Hans. Tratado de Derecho Penal, parte general. Cuarta edición. Traducción de José Luis Manzanares Samaniego. Edit. Comares. Granada 1993. p. 334.
faculdade de direito de bauru
38
tas descritas afectan un bien cuyo titular jamás se ha desinteresado de su tutela, razón por lo cual, se consideran como conductas típicas, antijurídicas, culpables y punibles.
Tratamiento distinto, resulta de la causación de lesiones en las actividades deportivas, en cuyo caso el consentimiento sí resulta eficaz, o las intervenciones quirúrgicas con fines estéticos, cuyo consentimiento tiene la misma eficacia. Analizaremos, a continuación, diversos aspectos que confirman lo antes señalado:
1.
Ámbito de eficacia del consentimiento
Con relación a los bienes susceptibles de ser disponibles por su titular, según
opinión de Antón Oneca, el consentimiento es eficaz en la mayor parte de los delitos contra la propiedad (excluyendo la usura), siendo incompatible en delitos contra el honor, la libertad (detención ilegal, allanamiento de morada, coacciones) y con
algunos contrarios a la honestidad individual (violación, abusos deshonestos, etc.).50
De acuerdo a la opinión de Bacigalupo, el ámbito de eficacia del consentimiento depende, en gran parte, del poder de decisión que el orden jurídico otorgue sobre el mantenimiento del bien jurídico al particular que es titular del mismo,
reconociendo validez al consentimiento otorgado sobre la posesión, la propiedad,
el patrimonio, y, en general, la libertad personal (incluyendo la libertad sexual) y la
integridad corporal (en el sentido del delito de lesiones) cuya comisión dolosa es
fuertemente discutida.51 Por nuestra parte, podemos señalar que, la protección penal de bienes obedece a la necesidad de garantizar, socialmente (significancia social), los derechos esenciales del hombre y, en el ámbito de lo personal (significancia personal), los que le son inherentes, así como, aquellos que va adquiriendo en
el ámbito de lo material (propiedad, posesión), de su situación civil (el derecho a
una familia integrada) de su cultura y costumbres, por lo tanto, no se puede plantear, de manera general, qué bienes son disponibles y cuáles no, ya que existen bienes jurídicos irrenunciables como la vida y otros que pueden ser renunciables dentro de cierto límite, ya que su disponibilidad obedece, como se mencionó, a factores de distintos órdenes. Es orientativa, la jurisprudencia visible en el Semanario Judicial de la Federación, tomo CXXII, páginas 1.348 y 1.349, quinta época que reza.
“Es sabido que el consentimiento del titular del bien jurídico lesionado en virtud del
proceder delictivo, siendo o coetáneo a la acción, destruye la antijuridicidad o el
tipo; es decir, si el pasivo de la conducta delictiva presta su tutela, siempre que el
consentimiento recaiga sobre bienes jurídicamente disponibles, jurisprudencia cuya
elaboración se produjo antes de la reforma al artículo 15 y que, sin embargo, su con50 Antón Oneca, José, Op, Cit, 288. El autor acuño la siguiente frase: <“el consentimiento, expulsado por la puerta vuelve por la ventana”>
51Bacigalupo Zapater, Enrique. Op, Cit, p. 156.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
39
tenido sigue siendo aplicable ya que los valores a que se refiere siguen vigentes en
nuestra sociedad.
De la gama tan amplia de bienes que el hombre tiene protegidos a través del
derecho penal, existen algunos que no son disponibles por las razones que a continuación se mencionan:
a) Es ineficaz el consentimiento en aquellos delitos sobre los cuales es ofendida la sociedad, o el daño recae en bienes del Estado y que Cobo del Rosal define como delitos contra la comunidad52 por tratarse generalmente
de conductas que tienen un significado propio para la comunidad.53
b) Se debe negar validez al consentimiento en todos los delitos de encuentro
ya que se trata de un elemento más que el tipo exige para su integración
(la usura, el estupro, el fraude o estafa) en cuyo caso, la comisión del delito no sería posible sin el consentimiento (viciado) de la víctima.
c) No es válido el consentimiento otorgado por uno de los titulares de un
bien en aquellos casos que, sobre el mismo bien, existen varios titulares.
Por lo tanto, los supuestos en que, solamente, se haya dado el consentimiento por uno de ellos, o en aquellos en que faltare por lo menos uno en
otorgarlo, la disposición, a falta de unanimidad causa daño a los derechos
protegidos de quien no asintió en este sentido.54
d) Sobre la naturaleza del bien sujeto a disponibilidad es claro, como venimos
sosteniendo, que, el consentimiento no puede operar para todos los intereses tutelados por el Derecho, sino, solamente, con relación a algunos de
ellos, para lo cual, el principio de la naturaleza unitaria de la antijuridicidad puede servir de criterio rector, en el sentido de que, únicamente,
se podría disponer de aquellos bienes que, afectando intereses privados,
no tengan repercusión en el ámbito social por la afectación que sufriría la
norma de cultura.
e) La vida, en términos generales, se considera un bien cuyo consentimiento
del interesado no tiene eficacia para eliminar la tipicidad o antijuridicidad
de la conducta.55 El problema se presenta, cuando se aborda el consentimiento frente a la petición de eutanasia, sobre lo cual Gimbernat ha señalado que, la acción eutanásica es la única manera de salvaguardar los derechos protegidos por la Constitución Española, consistentes, en primer lu-
52 Cobo del Rosal, Manuel y Vives Antón, Tomás Salvador. Derecho Penal, parte general, tercera Edición, Corregida
y actualizada. Edit. Tirant lo Blanch, Valencia, 1991, p. 376.
53 Heinrich Jescheck, Hans. Op, Cit, 335.
54 Jiménez Huerta, Mariano, Op, Cit, p. 182. señala: “si varios son los titulares, es necesario el consentimiento de
todos”
55 En este sentido se han expresado, Jiménez Huerta, Bacigalupo, Antón Oneca, Jescheck.. Se pueden consultar las
obras citadas en páginas 227, 156, 259 y 341 respectivamente.
40
faculdade de direito de bauru
gar, en “el libre desarrollo de la personalidad” (art. 10.1 Constitución Española), el respeto del paciente que quiere morir, garantiza también la “libertad ideológica de los individuos” (art. 16.1 Constitución Española) y por último, el “trato inhumano” que prohibe el artículo (15 de la Constitución
Española)56. Sobre este particular, la reforma penal en vigor, lejos de hacer
accesibles las actividades eutanásicas, ha tipificado de manera clara y precisa los comportamientos mencionados en el punto cuarto de este trabajo
al cual nos remitimos en obvio de repeticiones.
f ) El consentimiento para la disposición de la propia vida no es eficaz en la
legislación mexicana ya que la norma penal, en la parte especial, sigue castigando los delito de inducción o ayuda al suicidio (homicidio consentido), en los artículos 311 y 312 del Código penal Federal, así como artículo224 del Código penal de Jalisco, por lo tanto, el consentimiento, como
forma que excluye responsabilidad previsto en la fracción III del artículo
15 del Código Penal Federal, no se refiere a la disposición de la propia vida.
No obstante que la parte general de nuestro derecho penal contempla como
forma eximiente de responsabilidad el consentimiento del titular del bien, este será
irrelevante para aquellos casos en que el disponente determine que un tercero lo
prive de la vida, y mientras no exista un tipo privilegiado que regule tal proceso de
adecuación de la conducta a un tipo específico eutanásico, seguirá determinándose
como “Auxilio ejecutivo al suicidio” previsto bajo el título de inducción o ayuda al
suicidio.
2.
Requisitos de validez del consentimiento
La norma penal mexicana además de exigir para que sea válido el consentimiento, aunque no lo establece se entiende que este deberá ser igual y por tanto
aplicable con relación a bienes disponibles, en cuyo caso se requiere, además, que
el otorgante tenga capacidad jurídica para disponer libremente de dicho bien o bienes, por lo que, podemos acudir a distintas vías para apreciar la capacidad del otorgante, una de ellas puede ser la capacidad civil que, generalmente, se define en disposiciones de ese orden, (art. 6 del Código Civil)57 otra que puede surgir de la misma norma penal (art. 25 del Código Penal Español), que considera incapaz a “toda
persona (haya sido o no declarada su incapacitación) que padezca una enfermedad
de carácter persistente que le impida gobernar su persona o bienes por sí misma”.
En el ámbito del Derecho Penal mexicano, las personas que han sido declaradas en estado de interdicción no tienen capacidad legal, lo cual puede suceder por
56Gimbernat Ordeig, Enrique, Op, Cit, p. 109.
57 El Código Civil establece que “solo pueden renunciarse los Derechos privados que no afecten directamente al
interés público, cuando la renuncia no perjudique derechos de tercero”.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
41
dos causas: en primer lugar, la toxicomanía o ebriedad consuetudinaria, y, en segundo término, por padecer enfermedades mentales transitorias o pasajeras que impidan advertir la trascendencia de los actos realizados por el sujeto, de tal suerte que,
solamente, aquellos que estén exentos de las restricciones mencionadas podrán
otorgar consentimiento para la disposición de bienes jurídicamente disponibles.
El presupuesto del consentimiento, como un elemento que importa la libre
disposición frente a la conducta eutanásica, será de composición sumamente delicada y cuestionable. Así, la conducta penal exige, además, que se de el consentimiento en forma libre, tema que ya hemos mencionado y sobre el cual podemos insistir como de los problemas más difíciles sobre todo cuando se trata de determinar
la disponibilidad de la vida, en tal caso, ponemos en tela de juicio si el consentimiento se formula de manera libre, o las condiciones precarias de vida (paraplejía, cuadraplejía) o de grave enfermedad, son causas productoras de confusión mental que
invalidarían el asentimiento de su titular y al cual Reyes Echandía llamó derechohabiente58 por lo tanto; la minoría de edad, la edad avanzada, cualquier tipo de enajenación mental, o la presencia de cualquier vicio de la voluntad, con suficiente relevancia, puede anular la eficacia del consentimiento, como pudiera ser el engaño, la
coacción y el error.
Con relación al consentimiento presunto, se plantean otro tipo de dificultades, sobre todo, tratándose de ciertos bienes jurídicos, ya que pueden presentarse
supuestos como el caso Morgan59 que produjo suficientes disquisiciones en materia
del error en el consentimiento, o del consentimiento presunto, tema que abordaré
a continuación.
58Reyes Echandía, Alfonso. Derecho Penal. Parte general. Tercera reimpresión. Edit. Temis. Santa fe de Bogotá,
1994. p. 184 y ss.
59 Citado por Santiago Nino, Carlos. Límites de la responzabiliza penal, una teoría liberal del delito. Edit. Astrea,
Buenos Aires, 1980. pp. 177, 178, 179 y 180. “Morgan” fue un caso que también conmovió a la opinión pública inglesa; en especial, provoco una reacción de repudio por grupos feministas que entendieron que con la doctrina sentada en el fallo aumentaba la probabilidad de que los autores de violaciones quedaran impunes y que se indujera a
someter a las mujeres víctimas a un humillante interrogatorio acerca de las circunstancias del hecho. El caso fue que
Morgan oficial de la fuerza aérea se reunió con tres subordinados jóvenes a beber; al manifestar estos su deseo de
buscar mujeres para pasar la noche, Morgan les propuso que tuvieran relaciones sexuales con su propia esposa, diciéndoles que ella accedería complacida; según los soldados, cosa que fue negada por Morgan, este les había dicho
además que no hicieran caso si la mujer aparentaba oponer resistencia ya que ello sería solamente una actitud fingida para obtener mayor excitación sexual; el propio Morgan los condujo a su casa donde todos, incluido el marido, tuvieron relaciones sexuales con la señora de Morgan (ésta se llevaba mal con su marido y dormían en habitaciones separadas). El problema surgió cuando se consideró que los jóvenes consideraron que existía consentimiento, o por lo menos el consentimiento presunto, ya que alegaron en su favor que la mujer había colaborado, en tanto ella dijo que había opuesto toda la resistencia posible.
faculdade de direito de bauru
42
3.
El consentimiento tácito o presunto
El consentimiento expreso sobre la declaración de voluntad del que renuncia o consiente, ha de ser manifestado en forma verbal o mediante escrito, en tanto
que, para el consentimiento tácito a que se refiere la fracción III del artículo 15
del Código Penal Federal, basta con la realización de cualquier acción que pueda estimarse como manifestación de voluntad de renuncia, consentimiento que, en
base a la teoría de la dirección de la voluntad, es “causa de justificación ya que produce sus efectos objetivamente respecto de bienes disponibles, sin tener en cuenta
el conocer o el deber de conocer del sujeto activo,60 en tanto que, el consentimiento presunto, referido en la parte final de la fracción citada, supone la realización de
un juicio hipotético acerca de lo que el titular del bien jurídico hubiera hecho si poseyese un conocimiento adecuado de la situación,61 así, la norma procura por este
medio proteger o garantizar bienes de quien, en casos excepcionales, tiene la imposibilidad de exteriorizar, de alguna manera, su consentimiento (estado de inconsciencia o ausencia de quien debe consentir), por lo tanto, puede admitirse un consentimiento presunto sobre la disponibilidad de ciertos bienes siempre que las circunstancias particulares del hecho permitan, lógica y fundadamente, suponer que si
el sujeto hubiese tenido conocimiento real de la situación o hubiese estado presente habría consentido.
Con relación a lo anterior, podemos citar el supuesto del médico que debe intervenir quirúrgicamente de urgencia a quien por su extrema gravedad se halla en
estado de inconsciencia y sin que se encuentre en el lugar y momento precisos, persona alguna capaz de otorgar por él su asentimiento, éste interviene. Así, el consentimiento presunto constituye una causa de justificación de particular naturaleza que,
sin embargo, conecta con la posibilidad del consentimiento por el titular del bien jurídico, se trata de una consideración objetiva y ex ante de todas las circunstancias
que puedan darse.62 El ejemplo citado, se aproxima a un estado de necesidad justificante (en forma de auxilio necesario), sin embargo, no lo es, dado que también
aquí debe ponderarse si un interés supera esencialmente al otro (no existe conflicto de intereses). La diferencia radica en que los intereses implicados corresponden
a una misma persona (frente al estado de necesidad) en que existe colisión de intereses con titulares distintos y, en este caso, el consentimiento presunto es válido no
como estado de necesidad justificante sino como una forma más de impunidad.
El consentimiento presunto frente a la eutanasia es ineficaz en la normatividad mexicana ya que no es admisible esta conducta en la parte especial en los términos de lo señalado en el punto anterior, sin embargo, seguirá siendo válido y re60Cobo del Rosal, Manuel y Vives Antón T.S. Ob, Cit, p. 379.
61 Idem.
62 Heinrich Jescheck, Hans. Ob, Cit, p. 347.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
43
levante frente a la disposición de otro tipo de bienes, dependiendo de la característica de los mismos, así como su ponderación persona y social.
Por otro lado, se debe estimar que puede ser válido el consentimiento prestado por el representante legal respecto de ciertos bienes disponibles en administración por parte del titular originario del mismo, siempre y cuando del capítulo
de facultades (deducido del documento correspondiente) se le conceda este tipo
de autorizaciones.
Sobre la renuncia de intereses en beneficio del autor o en beneficio de un tercero. Citado por Jescheck, se trata de aquellos supuestos en que el titular del bien
tiene un escaso interés respecto a la conservación del mismo o resulta impune la
conducta por razones especiales de quien dispone63 (por ejemplo, los niños que recogen la fruta caída de los árboles en una huerta con exceso de producción en esa
temporada, o la disposición en favor de un indigente de un traje roído por parte de
la servidumbre).
VII. EL CONSENTIMIENTO Y LA EUTANASIA EN EL DERECHO COMPARADO
En España, el Código Penal, según la disposición comentada no autoriza la
práctica eutanásica, y sólo cuando se acredita, fehacientemente, el consentimiento
por haber mediado petición seria, expresa e inequívoca de la víctima, se la considera como un tipo penal privilegiado de homicidio consentido (bajo la figura de eutanasia), en los términos del artículo 143.4.
En Italia, el artículo 50 del Código Penal determina que no es punible quien
lesiona o pone en peligro un derecho con el consentimiento de la persona que pueda válidamente disponer. Esta disposición remite al artículo 579 del Código Civil, el
cual establece que el consentimiento no es considerado válido aunque se haya consentido por personas menores de 18 años, o enfermos mentales, o que se encuentren en condiciones de deficiencia psíquica por cualquier otra enfermedad, o por
abuso de sustancias alcohólicas o estupefacientes, o que el consentimiento haya
sido dado en condiciones de violencia, engaño, amenaza o sugestión.
En Alemania se regula el consentimiento de las lesiones en el artículo 90 del
STGB y de la esterilización, en el artículo 90.11 del mismo cuerpo de leyes y, con relación a la eutanasia, se elaboró el “proyecto alternativo de una ley de eutanasia”, sin
embargo, hasta el momento, la muerte dolosa mediando el consentimiento no se
justifica en los términos de lo dispuesto por el artículo 216 del STGB.
El Derecho norteamericano subraya la preferencia de las “public morals” y de
la “public paece” frente a la libertad privada de decisión, autorizando en algunos Estados la práctica eutanásica regulada para ciertos supuestos.
63 Heinrich Jescheck, Hans. Ob, Cit, p. 348.
44
faculdade de direito de bauru
El Derecho Penal francés, por su parte, se abstiene de legislar, expresamente,
sobre la validez del consentimiento en la eutanasia.
El Derecho Penal portugués contempla como homicidio privilegiado aquel
que se produce por motivos de relevante valor social o moral para disminuir, sensiblemente, la culpa dejando abierta la puerta para castigar en forma disminuida aún
la eutanasia activa de acuerdo al artículo 133.
En el Derecho Penal mexicano, que también ha sido comentado, al no regular
la práctica eutanásica en la parte especial, prevalece el criterio de sancionar la conducta como homicidio consentido o auxilio ejecutivo al suicidio, previsto en los artículos 312 y 313 del Código Penal.
En el Derecho Internacional se puede citar que ante el Tribunal Europeo
de Derechos Humanos, hasta el momento no ha sido presentado ningún caso
relativo a la eutanasia. Al efecto debemos tomar en consideración lo dispuesto
en el Pacto Internacional de los Derechos Civiles y Políticos donde se establece
que “nadie puede ser privado de la vida arbitrariamente” y en la Declaración Universal de los Derechos Humanos (1948) en el sentido de que “la vida es elevada
al rango de Derecho inviolable (art. 2.1). El derecho de toda persona a la vida
está protegido por las normas internacionales ya que se afirma que nadie podrá
ser privado de la vida intencionalmente, derecho que surge del contenido de
una fórmula bifronte; la primera, positiva, consistente en el derecho de toda
persona a la vida y la segunda negativa, en el sentido de que se prohibe la privación de vida intencionalmente.
En Holanda, el Parlamento ha declarado en relación a la eutanasia que los
médicos que la practiquen no serán sancionados si siguen determinadas pautas
legales. En la actualidad, representa la eutanasia, el 2% de muertes con, aproximadamente, 2.380 casos anuales y los requisitos para su práctica son los siguientes:
a) que la muerte sea solicitada directamente por el paciente.
b) que la petición sea reiterada y en claro estado de conciencia.
c) el médico que la practique debe contar con la opinión favorable de un segundo colega, en caso de incumplimiento de los requisitos señalados se
aplicará una pena de 12 años de prisión.
VIII. EL CONFLICTO DE DERECHOS A LA LUZ DE LA CONSTITUCIÓN
La colisión de derechos a nivel constitucional surge entre el derecho a la vida,
concepto que es indeterminado desde el punto de vista del origen que tenga (genético, médico, teológico, etc.), y el derecho a la vida digna, la libertad personal, y
el libre desarrollo de la personalidad.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
45
El término vida se deriva del latín vita, que en sentido figurado, significa fuerza o actividad interna sustancial, mediante la que obra el ser que la posee, también
se define, como estado de actividad de los seres orgánicos.64
La vida humana es un devenir, un proceso que comienza con la gestación y
que termina con la muerte, de aquí surge, precisamente, el momento de protección
del bien jurídico que se inicia desde la gestación y que termina con la muerte. El límite de la vida, no ha contado con una definición unánime y que, si bien es cierto,
existe consenso en cuanto a su sentido general, surgen discrepancias. Según Bonnet, existen tres fórmulas para definir la muerte: Jurídica, biológica y médico-legal, todas ellas conforman un triple síndrome, conjunto e indivisible de: la caducidad definitiva, biológica, social y jurídica. La caducidad biológica está señalada por
la detención definitiva e irreversible del funcionamiento cardiaco, con el consiguiente paro de la circulación sanguínea y cese de la oxigenación viscerotisular; la caducidad social está marcada por el cese definitivo de toda posibilidad de intercomunicabilidad del individuo con su mundo circundante y, la caducidad jurídica, por el
cese definitivo de la condición de ente humano de existencia visible en los Códigos
Civiles.65
Para poder hacer el análisis de la colisión de los derechos en aparente conflicto fijaremos como punto de referencia si, se debe autorizar por el Estado la práctica eutanásica o debe negarse. Se ha reconocido que los derechos y libertades fundamentales del artículo 10.1 de la Constitución Española son fundamento del orden
político y de la paz social ya que la dignidad de las personas y el libre desarrollo de
la personalidad son derechos inviolables, como afirma, mayoritariamente, la doctrina.66 De tal manera que, entre los derechos citados no puede existir una desconexión, sino que se complementan tal y como lo afirma Morales Prats al señalar que,
“los distintos derechos constitucionales no pueden ser contemplados como modalidades normativas inconexas, ni tan siquiera, como un sistema de valores organizado jerárquicamente en sí mismo.67
Debemos entender, en consecuencia, que el libre desarrollo de la personalidad como meta del hombre es un valor cultural normativo que se patentiza por el
derecho a la libertad, sin embargo, el derecho a la vida se encuentra amparado por
el principio de protección absoluta de la vida, reconocido en las Constituciones y
Convenios Internacionales que hemos citado, sin embargo, tal principio deja de ser
64 Diccionario de la Lengua Española, Ob, Cit, p. 2087, además proporciona diez definiciones y otro tanto, en sentido figurado.
65 Goldstein, Raúl. Diccionario de Derecho Penal y Criminología. 2a. edición, Edit. Astrea, Buenos Aires 1983, p.
498.
66 Véase a García Herrera M-A. Principios generales de la tutela de los derechos y libertades en la Constitución
Española en RFDUC, núm. 2. 1979, p. 95.
67 Valle Muñiz, José Manuel. Relevancia jurídico-penal de la eutanasia. En Cuadernos de Política Criminal, número 37, 1989, p. 166.
46
faculdade de direito de bauru
absoluto, a partir del momento en que la norma penal permite que se prive de la
vida bajo el amparo de una legítima defensa o en condiciones de estado de necesidad, y si bien es cierto que la vida es un derecho altamente personal, debemos admitir que se le debe reconocer su valor social, para concluir que los bienes protegidos por las normas constitucionales no pueden estar en conflicto cuando entendemos su valor mixto68 (individual o social). La reforma penal que ha sido comentada
patentiza, una vez más, el derecho fundamental a la vida regulando la llamada eutanasia activa, en tanto que, la solución a la eutanasia genuina no será punible y cuando se suprime el auxilio al paciente cuando ya se estaba ministrando también deberá ser conducta típica frente a lo dispuesto por el artículo 143.4 del Nuevo Código
Penal español.
IX. CONCLUSIONES
La vida no es un bien disponible en manos de otro. Por lo tanto, no hay duda
de que los derechos consagrados en la norma constitucional pueden válidamente
coexistir, sobre todo, tratándose del derecho a la vida y el resto de libertades, al haberse creado en el Código Penal Español de 1995 la figura típica de eutanasia que,
sin embargo, deja las siguientes lagunas y beneficios.
a) No se estableció el momento en que deberá de otorgar su asentimiento la
víctima de eutanasia, por lo tanto, se desconoce si será anticipado o coetáneo a los
actos dirigidos a la privación de vida.
En consecuencia, si la intención del legislador es permitir como válido el testamento vital en la fórmula “por la petición expresa, seria e inequívoca” surgen, entonces, problemas en materia de concurso de personas en el delito (inducción, cooperación no necesaria o cooperación necesaria) e, incluso, con relación al iter criminis (sobre el momento en que se inician los actos ejecutivos que dan lugar a la tentativa o, de ser punible,
como actos preparatorios en virtud de la gravedad del bien jurídicamente tutelado) cuando se interviene en la firma de un “testamento vital” de otro.
b) El tipo penal exige el consentimiento de quien está expuesto a graves padecimientos difíciles de soportar o de quien sufra una enfermedad grave que conduciría necesariamente a su muerte, por tal motivo, ponemos en tela de duda, si dicho consentimiento se formula en un marco de auténtica libertad en una persona
que padezca esas condiciones (véase pág. 18).
c) El legislador omitió señalar si la conducta de quien practica el hecho previsto
en el tipo “causar o cooperar activamente con actos necesarios y directos a la muerte de
otro” debe estar motivada por fines piadosos o por otros móviles. En este sentido, el móvil de quien así actúa puede obedecer no sólo al sentimiento de piedad.
68 Serrano Butragueño, Ignacio Jesús. Op, Cit, p. 958.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
47
d) Se omitió determinar con precisión cuáles son los medios utilizables en la
práctica del tipo penal, lo que puede dar lugar al uso de cualquier forma comisiva
que conduzca a la privación de vida.
e) Una de las utilidades de la reforma es que reconoce el derecho a la vida
como un valor indisponible determinando amenaza penal a la actividad eutanásica
directa o indirecta, así como, a la ortotanasia cuando se fundamenta en una conducta de acción, dejando fuera del marco penal la conducta omisiva eutanásica.
f ) La reforma marca los límites de las conductas de Homicidio, inducción al
suicidio, cooperación en el suicidio, homicidio consentido y eutanasia, asignándole
a cada una de ellas pena distinta, procurando, por este medio ajustar la norma penal a los principios de Seguridad Jurídica y Proporcionalidad.
g) Es importante advertir que, a falta de cualquier elemento del tipo privilegiado en el artículo 143.4 se corre el riesgo de que la conducta sea calificada como
de “asesinato” previsto en el artículo 139 por concurrir, sin duda, la circunstancia de
“alevosía” en virtud de las condiciones de indefensión de la víctima.
En cuanto a la causa de exclusión en el delito, prevista en la fracción III del artículo 15 del Código Penal mexicano, que tiene relación con el consentimiento otorgado por la víctima para la disposición de sus bienes, podemos concluir:
a) Con relación a los bienes susceptibles de disponibilidad:
1. No es válido el consentimiento en los delitos de encuentro, debido a la ineficacia del asentimiento.
2. No será válido el consentimiento con relación a bienes que pertenecen al
Estado o bienes de utilidad social.
3. No es válido el consentimiento dado en aquellos bienes respecto de los
cuales existan varios titulares, si no se ha otorgado por todos.
4. No es válido el consentimiento para la disposición de la vida.
b) Con relación a la validez del consentimiento:
1. Deberá otorgarse por quien tenga capacidad jurídica.
2. Al otorgarse, será en un marco de indudable libertad, por lo que,
3. La minoría de edad, la sugestión, cualquier enfermedad mental, la coacción, el
error, el engaño y, en sí, cualquier vicio de la voluntad impedirá su validez.
c) Sobre quién debe dar el consentimiento.
1. El titular en aquellos bienes que sólo él puede disponer.
2. El mandatario o apoderado, con relación a bienes materia de sus atribuciones.
El consentimiento excluye la tipicidad con relación a las figuras delictivas,
cuyo bies es disponible en el tipo “el que sin consentimiento” mientras que; el consentimiento anulará la antijuridicidad tratándose de bienes disponibles por su titular cuya disposición no ha sido enunciada en el tipo de la parte especial sino en la
parte general que ya fue motivo de comentario.
48
faculdade de direito de bauru
BIBLIOGRAFIA
ANTÓN ONECA, José. Derecho penal, segunda edición, anotada y corregida por Hernández
Guijarro, José y Beneytez Merino, José. Editorial Akal/iure, Madrid, 1986.
BACIGALUPO ZAPATER, Enrique. Principios de derecho penal. Parte general, segunda edición. Editorial Akal, Madrid, 1990.
BARBERO SANTOS, Marino. Pena de muerte (el ocaso de un mito). Criminología contemporánea número 4. Editorial Depalma, Buenos Aires, 1985.
BUSTOS RAMÍREZ, J. Manual de derecho penal, parte especial. Editorial Bosch, Barcelona,
1986,
COBO DEL ROSAL, Manuel y Carbonell Mateu, Juan Carlos. Revista de la Facultad de Derecho. Universidad de Granada. Número 12
COBO DEL ROSAL, Manuel, Vives Anton, T.S., Boix Reig, J., Orts Berenguer, E. Carbonell Mateu, J.C. Derecho penal. Parte especial, segunda edición. Editorial Tirant lo Blanch, Valencia,
1988.
COBO DEL ROSAL, Manuel, Vives Anton, Tomas Salvador. Derecho Penal, parte general, tercera edición, corregida y actualizada. Editorial Tirant lo Blanch, Valencia, 1991.
DE LA CUESTA AGUADO, Paz, M. Tipicidad e imputación objetiva. Editorial Tirant lo
Blanch, Valencia, 1996.
GARCÍA HERRERA, M. A. Principios generales de la tutela de los derechos y libertades en la
Constitución española, en RFDUC, número 2, 1979.
GARCÍA VALDÉS, Carlos. El proyecto de nuevo código penal. Madrid 1992.
GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Eutanasia y derecho penal. En revista de la Facultad de derecho de la Universidad de Granada, al Profesor J.A. Sáinz Cantero número 12, 1987.
GIUSTO GIUSTI, Antonio. L’ eutanasia diritto de vivere- diritto di morire. Casa editrice
dott, 1982.
GOLDSTEIN, RAÚL. Diccionario de derecho penal y criminología, segunda edición. Editorial Astrea, Buenos Aires, 1983.
HEINRICH JESCHECK, Hans. Tratado de derecho penal, parte general, cuarta edición, traducción
de José Luis Manzanares Samaniego. Editorial Comares, Granada 1993.
JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Libertad de amar y derecho a morir. Ensayo de un criminalista sobre
eugenesia y eutanasia, séptima edición. Editorial Depalma, Buenos Aires, 1984.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
49
JIMÉNEZ HUERTA, Mariano. La antijuridicidad. Imprenta universitaria, México 1952.
KANT, Emmanuel. Introducción a la teoría del derecho, Madrid, 1954.
KELSÉN, Hans. La teoría pura del derecho. Editorial Colofón, México.
MARTÍN GÓMEZ, Miguel y Alonso Tejuca, Manuel.
MIR PUIG, Santiago. Derecho penal, parte general, tercera edición. Editorial PPU, Barcelona 1995.
MONTOVANI, Francesco. Problemi giuridici della eutanasia in medicine sociale número 20,
1970.
MUÑOZ CONDE, Francisco y García Arán, Mercedes. Derecho penal, parte general. Editorial Tirant lo Blanch, Valencia, 1993.
PAVÓN VASCONCELOS, Francisco H. Manual de derecho penal mexicano. Editorial Porrúa, México 1967.
PUCCINI, C. Istituzioni de medicina legale. Casa editrice Ambrosiana, Milano 1979.
QUERLAT JIMÉNEZ, J.J. Derecho penal español. parte especial, volumen I, Editorial Bosch Barcelona, 1986.
REYES ECHANDÍA, Alfonso. Derecho penal, parte general, tercera reimpresión. Editorial Temis,
Santa Fe de Bogotá, 1994.
SÁINZ CANTERO, José A. Lecciones de derecho penal, parte general, tercera edición. Editorial
Bosch, Barcelona 1990.
SANTIAGO NINO, Carlos. Límites de la responsabiliza penal, una teoría liberal del delito. Editorial Astrea, Buenos Aires, 1980.
SERRANO BUTRAGUEÑO, Ignacio Jesús. Eutanasia y consentimiento en el anteproyecto de
Nuevo Código penal de 1992. La ley número 3, 1992.
TORÍO LÓPEZ, Ángel. Reflexión crítica sobre el problema de la eutanasia, en Estudios penales y criminológicos, XIV.
VALLE MUÑIZ, José Manuel. Relevancia jurídicopenal de la eutanasia, en Cuadernos de
Política Criminal número 37, 1989.
VELA TREVIÑO, Sergio. Antijuridicidad y justificación, segunda edición. Editorial Trillas,
México 1986.
VON LIST, Franz. Tratado de derecho penal, traducido de la vigésima edición alemana por
Luis Jiménez de Asúa. Tomo tercero, tercera edición. Editorial Reus, Madrid.
WELZEL, Hans. Derecho penal, parte general. Editorial Depalma, Buenos Aires, 1956.
50
faculdade de direito de bauru
ZUGALDÍA ESPINAR, José Miguel. Fundamentos de derecho penal. Parte general. Las teorías de la pena y de la ley penal. Universidad de Granada, 1990.
CÓDIGOS
Código penal portugués. Editora Reidos Livros, tercera edición, Lisboa, 1996.
Codice penale, edición actualizada al 28 de febrero de 1990. Editores Ulrico Hoepli. Milano
1990.
Código penal español de 1995, edición a cargo de Francisco Javier Alvarez García, Editorial
Tirant lo Blanch, Valencia, 1995.
Código penal cubano, Ley número 62, edición a cargo de Serafín Seriocha Fernández Pérez.
Editorial Felix Varela, La Habana, 1995.
Código penal, décimo cuarta edición. Editorial Jurídica de Chile, abril de 1994. Edición oficial del Ministerio de Justicia.
Codice penale suizzero de 21 de diciembre de 1937, actualizado al primero de abril de 1991,
publicación de la Cancillería Federal Berna 1991.
Código Civil para el Distrito Federal sextagésima sexta edición, Editorial Porrúa, México
1997.
DICCIONARIOS
Diccionario de la lengua española. Real Academia Española, vigésima primera edición,
Editorial Espasa Calpe, Madrid 1995, Tomo I.
actuaciones del agente encubierto en el
ambito del blanqueo de capitales. Conductas
típicas y su posible justificación*
Carlos David Calix Vallecillo
Doctorando en el Departamento de Derecho Penal de la Universidad Complutense
de Madrid y Juez de Letras Primero Seccional de Danlí, Honduras.
1.
INTRODUCCION
Hasta una época relativamente reciente, la investigación policial dirigida a investigar los beneficios y ganancias procedentes del delito, no ocupaba un lugar preeminente
en el marco de la lucha contra las organizaciones criminales. Hoy en día este panorama
ha cambiado notablemente, de las clásicas organizaciones de “picaresca” integrada por piratas y bandoleros, y de la organización “mañosa”, típica de individuos que efectúan hurtos y estafas habilidosas a pequeña escala,1 en la actualidad presenciamos el auge de una
criminalidad provista de unas estructuras y de un modus operandi, propio de las grandes
multinacionales, dedicadas a múltiples actividades delictivas que trascendiendo las fronteras nacionales les generan enormes sumas de dinero y otro tipo de bienes.
Este trabajo tiene varios objetivos: en primer lugar determinar cuales son los
factores que han contribuido al florecimiento de esas organizaciones criminales
* Trabajo que se presenta en el marco del Seminario “Blanqueo de Capitales”, celebrado los días 8-12 de julio de
2002, en San Lorenzo del Escorial, organizado por la Dirección General de la Policía y la Universidad Complutense
de Madrid, bajo la inmediata coordinación del Instituto de Estudios de Policía (IEP).
1 Vid. MCINSTOSCH, MARY, La organización del crimen, Traducción al castellano de GRAB, NICOLÁS, Siglo Veintiuno Editores, México, 1977, pág. 33 y ss.
52
faculdade de direito de bauru
transnacionales y la necesidad que éstas tienen para darle apariencia de legitimidad
o blanquear los recursos que obtienen con sus actividades.
En segundo lugar y a partir de la definición de lo que se conoce como blanqueo de capitales o de bienes, arrancaremos con el desarrollo de la parte medular
de este trabajo, introduciéndonos al estudio de un instrumento de investigación policial de reciente positivización en la legislación española, (ley orgánica 5/1999 del
14 de enero) como lo es el agente encubierto, mediante el cual se pretende combatir actividades propias del crimen organizado, entre las cuales se encuentra, ocupando a mi juicio un lugar destacado, el denominado blanqueo o legitimación de capitales.
En esa línea de investigación precisaremos cual es el régimen legal vigente en
España que regula ese instrumento de investigación policial, que a través de la infiltración de un funcionario de la policía judicial con identidad supuesta, integrado
en la estructura de la organización criminal, se pretende obtener pruebas suficientes que permitan la condena penal de sus integrantes y como fin último su desarticulación.
Luego haremos una serie de precisiones terminológicas, con el objetivo de
distinguir entre la figura del agente encubierto, y otra afín a ella, que ha recibido un
tratamiento jurisprudencial de considerable extensión, como lo es la del agente provocador.
Hechas esas precisiones y delimitado que sea el ámbito en que se desarrolla
la actividad que despliega el agente encubierto, estudiaremos de acuerdo a la Ley
Orgánica 5/1999, antes citada, en que casos está facultado para realizar actos que
encajan dentro de las figuras de blanqueo de capitales previstas en el Código penal,
y que por lo tanto en que circunstancias puede decirse que los mismos pese a ser
típicos no merecen ser castigados, por encontrarse amparados o cubiertos por alguna causa de justificación. Luego de evacuar este punto, veremos si igualmente es posible hablar de conductas justificadas cuando los actos típicos de blanqueo realizados por el agente encubierto en el seno de la organización criminal, van más allá de
los que expresamente señala la Ley Orgánica 5/1999.
En conclusión, el presente trabajo en un primer momento hace referencia
al fenómeno del blanqueo de capitales, como el proceso empleado por las organizaciones criminales para darle apariencia de legalidad a sus ilícitas ganancias en
detrimento de intereses económicos supraindividuales y como estímulo desencadenante de nuevas conductas delictivas, y en un segundo momento, a la utilización del agente encubierto como técnica de investigación policial dirigida a la
obtención de pruebas para lograr la condena penal de los integrantes de aquellas organizaciones, (limitadas en este trabajo, a las que se dedican parcial o exclusivamente al blanqueo de capitales) y con ello, como consecuencia esperada, el
desmantelamiento de éstas.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
2.
n.
39
53
CRIMINALIDAD ORGANIZADA Y BLANQUEO DE CAPITALES
2.1 La “industria” del crimen y el blanqueo de beneficios
En otros tiempos no muy lejanos la averiguación y el descubrimiento de bienes y
patrimonios de origen delictivo ocupaban un lugar secundario en los procesos penales
y en el ámbito de la investigación criminal. Sin embargo en los últimos años tal panorama ha venido cambiando paulatinamente debido al auge de una serie de actividades o
conductas delictivas ligadas al fenómeno de la delincuencia organizada.2
La naturaleza de la delincuencia retrata muchas características de la sociedad.
Dado el enorme incremento del número de transacciones económicas y sociales a
través de las fronteras nacionales y la creciente porosidad del estado nacional, es natural e inevitable que la actividad delictiva organizada se traslade también del plano
nacional al transnacional.
Varios han sido los factores que han contribuido al auge de este tipo de criminalidad, así la rapidez y facilidad del transporte internacional, evolución de las redes financieras mundiales, la revolución de las comunicaciones, el final de la guerra fría, el triunfo del
capitalismo y la democracia liberal, la migración y el crecimiento de las redes étnicas, son
todos fenómenos que brindan nuevas oportunidades a la delincuencia transnacional.3
2 Vid. ZARAGOZA AGUADO, JAVIER, Instrumentos para combatir el lavado de activos, en Narcotráfico, Política y Corrupción, AAVV, Editorial Temis, 1997, pág. 179. Los antecedentes más cercanos a la criminalidad organizada actual
se suelen buscar en la transformación de la delincuencia profesional en los Estados Unidos, particularmente tras la
prohibición total del alcohol en 1919, en la que pasó de la ejecución de delitos aislados e individualizados (robos,
estafas) a actividades especializadas y estables (contrabando, alcohol, chantaje a empresarios, un incipiente tráfico
de drogas etc...). La expansión de su influencia en los ámbitos político y económico se sitúa tras la segunda guerra
mundial como lo muestran la corrupción institucional de los sindicatos y la reintroducción en la economía legal de
las ganancias obtenidas en las actividades ilícitas o delictivas mediante los llamados hombres de paja., Vid. ANARTE
BORRALLO, ENRIQUE, Conjeturas sobre la Criminalidad Organizada, en Delincuencia Organizada, Aspectos Penales, Procesales y Criminológicos, AAVV, págs. 15 y 16. Pero sobre todo es en las últimas tres décadas que el crimen
organizada ha emergido como uno de los grandes desafíos para la seguridad y el bienestar tanto de las sociedades
nacionales como de la comunidad internacional en general. Vid. Organized Crime. A Compilations of UN Documents, 1975-1988, BASSIOUNI CHERI M. y VETERE EDUARDO (Editores), pág. XVII. Acierta FABIAN CAPARROS
EDUARDO, en El Delito de Blanqueo de Capitales, COLEX, Madrid, 1998, pág. 30, cuando afirma que hasta tiempo
bastante reciente, el crimen no había sido medio idóneo para generar beneficios especialmente cuantiosos, pero
que sin embargo en la actualidad la delincuencia está en condiciones de acumular capitales ilícitos lo suficientemente importantes como para condicionar las variables macroeconómicas de una nación.
3 Vid. Documento E/CONF.88/2, Consejo Económico y Social, Conferencia Ministerial Mundial sobre la delincuencia
transnacional organizada, Napóles, 21 a 23 de noviembre de 1994. Págs 7 y 8. El desarrollo de las telecomunicaciones incluyendo teléfono, fax, las redes informáticas, el explosivo incremento de ordenadores en los negocios, el desarrollo de
sistemas electrónicos en el ámbito bancario y en el sector financiero que permiten la transferencia de grandes cantidades
de dinero alrededor del mundo han favorecido el desarrollo de los negocios lícitos pero también el de los manejados por
la criminalidad organizada. Vid. SABRINA ADMOLI, ANDREA DI NICOLA, ERNESTO U. SAVONA, PAOLA ZUFFI, Organised Crime Around the World, Instituto Europeo para la prevención y control del crimen, Helsinki, 1998, pág. 13.
54
faculdade de direito de bauru
La moderna criminalidad organizada en particular la conocida como delincuencia
institucionalizada (mafias, carteles, etc...) desarrollan a gran escala con criterios empresariales4 y en un ámbito de actuación supranacional todo un catálogo de múltiples actividades delictivas: tráfico ilícito de drogas, tráfico de armas, prostitución, inmigración ilegal,
la industria del secuestro y de la extorsión, contrabando de automóviles y material nuclear, exportación de desechos peligrosos y tóxicos, tráfico de objetos arqueológicos y de
obras de arte, grandes fraudes, etc..., productores de fabulosos beneficios que necesitan
ser reciclados e introducidos a los circuitos comerciales y financieros legales.5
En la nueva era de la mundialización, las fronteras se han abierto, las barreras comerciales han caído y la información se transmite rápidamente por todo el mundo al alcance de una tecla, los negocios están floreciendo y también lo está la delincuencia organizada transnacional.6
Habida cuenta de la profunda relación existente entre las asociaciones de corte mafioso y la instrumentalización del delito como medio a través del cual obtener grandes
fortunas, se puede afirmar que el reciclaje de fondos de origen ilegal encuentra su medio
habitual y alcanza su máximo desarrollo en el ámbito de la criminalidad organizada.7
4 Como cualquier otra empresa el negocio de la delincuencia exige aptitudes empresariales, una especialización
considerable y capacidad de coordinación, todo ello sumado a utilización de la violencia y la corrupción para la realización de sus actividades. Vid. DOCUMENTO E/CONF88/2. Consejo Económico y Social. Conferencia Ministerial
Mundial sobre la delincuencia transnacional organizada, Nápoles 21 a 23 de Noviembre de 1994, Tema 4 del programa provisional, pág. 4. Refiriéndose a las grandes organizaciones de narcotraficantes BLANCO LOZANO ha señalado que a diferencia del crimen tradicional cuya consideración fenomenológica entronca con postulados relativos a
la inadaptación social, el narcotráfico es un delito basado en la ganancia y la organización, formando parte de los
delitos no convencionales o de cuello blanco... se trata (refiriéndose a tales organizaciones) de verdaderas empresas multinacionales del crimen que para satisfacer sus intereses se valen de sofisticados medios materiales (aviones
particulares, yates), que como toda empresa están sometidos a las leyes de la oferta y la demanda, y que buscan lugares de mercado allí donde hay más dinero...disponiendo de un personal especializado muy particular....vid. BLANCO LOZANO, CARLOS, El blanqueo de capitales procedentes del tráfico de drogas en el ordenamiento penal español, en Comentarios a la Legislación Penal, en AAVV, dirigidos por COBO DEL ROSAL M., Madrid 1996, pág. 58. Vid
BOTKE, WILFRIED, Criminalidad Organizada y Blanqueo de dinero en Alemania, Traducción al castellano por ARROYO ALFONSO, SOLEDAD y AGUADO CORREA, TERESA, Revista Penal No. 2, Barcelona, julio de 1998, pág. 2,
quien define la criminalidad organizada como aquella que organiza su actividad criminal como si fuera un proyecto
“empresarial”.
5 Vid. ZARAGOZA AGUADO, JAVIER, Medidas para combatir el lavado de activos... op cit. pág. 179, vid también FABRE GUILHEM, Les prosperités du crime, tráfic de stupefèfiants, blanchiment et crises financières dans l’après guerre froide, Éditions de l’aube, 1998, pág. 7.
6 Vid. Hoja Informativa, del X Congreso de Naciones Unidas sobre Prevención y tratamiento del delincuente, Viena, Austria, 10 al 17 de abril de 2000.
7 Vid. FABIAN CAPARROS, EDUARDO, el delito de blanqueo de capitales, pág. 68, GOMEZ INIESTA DIEGO, El Delito de blanqueo de capitales en Derecho Español, Cedecs Editorial, S.L., Barcelona, 1996, pág. 86. En este mismo
sentido ZARAGOZA AGUADO, el blanqueo de dinero, aspectos sustantivos, su investigación, Cuadernos de Derecho Judicial, Vol. I, págs. 109 y 110 señala que los redactores de la Convención de Viena de 1988, eran plenamente
conscientes que la realidad criminal más preocupante de nuestro tiempo es la delincuencia organizada, siendo tan
estrecha la vinculación entre tráfico de drogas y crimen organizado, que aquella actividad delictiva es su expresión
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
55
Existen una serie de organizaciones criminales en el mundo que son consideradas las más significativas y de mayor tradición, siendo estas la mafia italiana, la delincuencia organizada rusa, las tríadas chinas, la yakuza japonesa y los cárteles colombianos.8 Estas organizaciones se suelen caracterizar por un excelente sentido de
los negocios, un sistema de gestión eficiente y eficaz que está basado en generosos
incentivos económicos por un lado y en duros castigos por el otro, contando con
medios eficaces de información y contrainformación y un considerable poder de
adaptación y recuperación.
En este contexto asistimos al fenómeno que algunos autores denominan
hoy en día como la “industria del crimen”9, cuyas actividades se orientan con
modelos y criterios propios del mundo de los negocios, generando cuantiosas
sumas de dinero que necesitan ser regularizadas para su incorporación al sistema económico legal.
2.2 Definición del fenómeno del blanqueo de capitales
Como antes lo hemos explicado, es un hecho incontestable que la comisión
de delitos por parte de las organizaciones criminales, les generan a éstas cantidades
ingentes de dinero que necesitan adquirir una apariencia lícita, de tal manera que
hagan posible su inversión en los circuitos económicos legales. Es decir, para emplear y aprovechar esos bienes, los delincuentes requieren distanciarlos de su procedencia criminal haciendo desaparecer las huellas de su origen, enmascarándolos
para que parezcan legítimos.
Tal operación de alejamiento o distanciamiento del bien de su ilícita procedencia que convierte al dinero “sucio” en “limpio” es lo que se conoce como blanqueo, lavado o aseo de dinero.10
más genuina y arquetípica. Cfr. FARIA COSTA, el blanqueo de capitales, (algunas reflexiones a la luz del Derecho Penal y de la Política Criminal, en Hacia un Derecho Penal Europeo, Jornadas en Honor al Profesor Klaus Tiedemann,
Nota 15, pág. 660.
8 No dejan de considerarse un importante desafío al imperio de la ley otras organizaciones criminales como las mafias turcas de la droga, las organizaciones delictivas nigerianas, los grupos jamaicanos llamados posses, la mafia autóctona norteamericana, las organizaciones delictivas dominicanas y otras....vid. Documento E/CONF.88/2, op cit.
pág. 11. Sobre el ámbito geográfico en que tales organizaciones actúan y las principales actividades que realizan,
véase con detalle, el documento antes citado, págs. 11-16, también BLANCO CORDERO, ISIDORO, El delito de blanqueo de capitales, Aranzadi, Pamplona, 1997, págs. 40-52.
9 Vid en tal sentido con abundantes referencias bibliográficas: FABIAN CAPARROS, EDUARDO, El delito de blanqueo
de capitales, cit, págs. 43-44.
10 Vid. PALOMO DEL ARCO ANDRES, Receptación y figuras afines, en Estudios sobre el Código Penal de 1995 (Parte Especial, CGPJ, Madrid, 1996, Directores VIVES ANTON TOMAS Y MANZANARES SAMANIEGO J.L. pág. 420. Cfr.
GONZALEZ DE MURILLO, J.L., Algunas cuestiones político criminales en el delito de blanqueo, La Ley, D-267, 1998,
Nota 1, pág. 1725
56
faculdade de direito de bauru
Como dice VIDALES RODRIGUEZ con aquel término se hace referencia al
proceso por el que se le da apariencia de legalidad al dinero o bienes procedentes
de la comisión de un delito.11 FABIAN CAPARROS, por su parte se refiere al blanqueo
de capitales como el proceso tendente a obtener la aplicación en actividades económicas lícitas de una masa patrimonial derivada de cualquier género de conductas ilícitas, con independencia de cual sea la forma que esa masa adopte, mediante la progresiva concesión a la misma de una apariencia de legalidad.12
Entre las definiciones de blanqueo propuestas por los autores citados no encuentro diferencias sustanciales, y creo que todas coinciden en señalar que el blanqueo o lavado de capitales es un proceso dinámico en virtud del cual bienes de procedencia delictiva son bajo la apariencia de legitimidad, incorporados a los circuitos
económicos legales.
En cuanto a los términos blanqueo o lavado, su adopción ha sido criticada por
la doctrina por considerarlos de escaso rigor técnico. Así BAJO FERNANDEZ sostiene que tal expresión no es técnica y que procede de la jerga mas genuina del hampa o de la criminalidad económica.13
En razón de lo anterior, se ha propuesto otra terminología como “regularización”, “conversión”, “naturalización”, “normalización”14, “legalización”15, “legitimación”16, seguidas de la expresión de capitales de origen delictivo.
Quizás debido a esas críticas el nuevo Código Penal elude el uso del neologismo
blanqueo optando por referirse a esta figura como conducta afín a la receptación.
Sin embargo en todo caso, dado el consenso internacional que existe al respecto, valgan las expresiones money laundering (inglés), blanchiment d’ argent
11 vid. VIDALES RODRIGUEZ, CATY, Los delitos de Receptación y Legitimación de Capitales en el Código Penal de
1995, Tirant lo Blanch, Valencia 1997, pág. 71.En la misma línea vid. GOMEZ INIESTA DIEGO: El Delito de Blanqueo
de Capitales en Derecho Español, pág. 21 quien entiende por blanqueo de dinero o de bienes como “aquella operación a través de la cual el dinero de origen siempre ilícito (procedente de delitos que revisten especial gravedad,
es invertido, ocultado, sustituido o transformado y restituido a los circuitos económicos financieros legales, incorporándose a cualquier tipo de negocio como si se hubieran obtenido de forma lícita. En similar sentido, vid. BLANCO CORDERO, ISIDORO, El delito de blanqueo de capitales, pág. 101, para quien el blanqueo de capitales es “el
proceso en virtud del cual los bienes de origen delictivo se integran en el sistema económico legal con apariencia
de haber sido obtenidos de forma lícita.”
12 Vid. CAPARROS FABIAN, EDUARDO, El delito de blanqueo de capitales, pág. 76
13 vid. BAJO FERNANDEZ MIGUEL, Derecho Penal Económico, Protección Penal y Cuestiones Político Criminales.
Hacia un Derecho Penal Económico Europeo, Jornadas en Honor del Profesor Klaus Tiedemann, Madrid, 1995, pág.
73.
14 Vid. DIEZ RIPOLLES, JOSE LUIS, El blanqueo de capitales procedentes del tráfico de drogas. La recepción de la
legislación internacional en el ordenamiento penal español. En Actualidad Penal, No. 32 (1994), pág. 613
15 Vid. RUIZ VADILLO, ENRIQUE, El blanqueo de capitales en el ordenamiento jurídico español, perspectivas actual
y futura. Boletín de Información del Ministerio de Justicia, No. 1641, Madrid, pág. 4290.
16 Vid. VIDALES RODRÍGUEZ, CATY, Los delitos de receptación y legitimación de capitales en el Código Penal de
1995, pág. 74
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
57
(francés), riciclaggio del denaro (italiano), blanchisagge de l’argent (cantones suizos
de habla francesa), branqueamiento de capitais (Portugal), lavagem de capitais (Brasil), Geldwäschere (parte de Suiza y Austria), se ha impuesto la locución blanqueo
de capitales o de dinero.17
Estimo que es preferible utilizar el término blanqueo de capitales al de blanqueo de dinero, ya que la experiencia demuestra que no siempre va a ser dinero lo
que se derive de las actividades delictivas o lo que se trate de lavar, reintegrar o blanquear, sino que en ocasiones son otros bienes o activos. Además es la fórmula más
acorde con la normativa administrativa española vigente18 y con los instrumentos internacionales en la materia19
3.
PLANTEAMIENTO - HIPOTESIS MAS FRECUENTES EN QUE SE
PLANTEA LA POSIBLE JUSTIFICACIÓN DE LOS ACTOS TIPICOS DE
BLANQUEO
Quedando suficientemente claro en que consiste el fenómeno usualmente
conocido como blanqueo de capitales, y cual es el ámbito en que normalmente se
presenta, vamos a determinar en que casos la doctrina plantea la posibilidad de que
determinados actos que encajan en el tipo penal de blanqueo (arts. 301 al 304 CP)20,
17 Vid. GARCIA VALDES, CARLOS, Dos aspectos de la represión penal del tráfico de drogas, la teoría del agente provocador y del delito provocado, y el blanqueo de dinero procedente del delito. Política Criminal y Reforma Penal,
Libro Homenaje al Profesor Juan del Rosal, Madrid, 1993, pág. 568.
El Proyecto de Código Penal de 1992 en su exposición de motivos decía expresamente que “la utilización del neologismo “blanqueo de dinero” obedecía a la convicción de que es la expresión que mejor designa...la clase de conductas que se describen.... Emplean también el término blanqueo de dinero GOMEZ PAVON, “el bien jurídico protegido en la receptación, blanqueo de dinero y encubrimiento” en Cuadernos de Política Criminal, 1994, págs. 459
y ss. CADENAS CORTINA, “Problemas de penalidad en los delitos de receptación y blanqueo de dinero”. En Cuadernos de Derecho Judicial, El encubrimiento, la receptación y el blanqueo de dinero. Normativa Comunitaria,
1994, Pág. 107 y ss, PEREZ MANZANO, MERCEDES, “El tipo subjetivo en los delitos de receptación y blanqueo de
dinero”, en Cuadernos de Derecho Judicial, El encubrimiento, la receptación y el blanqueo de dinero, normativa
comunitaria, Madrid, 1994, pág. 219 y ss.
18 Vid ley 19/1993 por la que se establecen determinadas medidas de prevención del blanqueo de capitales (28-121993), BOE No. 311 de 29 de diciembre, vid también Real Decreto 925/1995 por el que se aprueba el Reglamento
de la ley antes citada (9/6/1995). BOE No. 160 de 6 de julio, rectificación de errores en el BOE No. 172 de 20 de junio y en BOE No. 260 de 31 de octubre.
19 Vid. Especialmente Directiva 91/308/CEE, del Consejo de las Comunidades Europeas sobre prevención del sistema financiero para el blanqueo de capitales. (10-6-1991), DOCE No. L 166 de 28 –6-1991, pág. 7 y ss.
20 Para efectos de este trabajo transcribo únicamente el contenido del artículo 301 CP, que contiene las modalidades básicas de comportamiento típico, un supuesto cualificado que hasta ahora es el que casi en su totalidad conocen los tribunales, como lo es el blanqueo de capitales procedentes del tráfico ilícito de drogas y el tipo imprudente. Los artículos 302,303 y 304, hacen referencia a tipos cualificados por la existencia de una organización dedicada al blanqueo de capitales, a las las penas de inhabilitación por la especial condición profesional del autor del
delito, y a los actos preparatorios punibles, respectivamente.
58
faculdade de direito de bauru
pueden finalmente quedar justificados o ser conforme a Derecho, al estar cubiertos
por alguna causa de justificación.
La dificultad de apreciar la presencia de causas de justificación en el delito de
blanqueo de capitales se hace patente al corroborar que son muy pocos los autores
dedicados al estudio de éste delito que han planteado en torno a él la existencia de
circunstancias excluyentes de la antijuricidad.21
En este sentido estimo que lo más acertado es analizar una serie de supuestos respecto a los cuales la doctrina científica ha planteado la posibilidad de apreciar
causas de justificación, supuestos que serán los más frecuentes o de mayor ocurrencia y que mayores problemas dogmático-penales suscitan, sin perjuicio de que marginalmente puedan presentarse otras hipótesis encuadrables en alguna de las causas de justificación, las que deberán resolverse de acuerdo a los requisitos propios
de las que se consideren aplicables al caso de que se trate.
Los supuestos que con mayor frecuencia son analizados por la doctrina son:
1) El del empleado bancario que invocando el secreto bancario omite cualquiera de las comunicaciones exigidas por la Ley 19/1993.
2) La del Abogado que asesora a su cliente sobre las técnicas más efectivas de
blanqueo y que percibe honorarios profesionales procedentes de una actividad delictiva grave.
3) La del empleado bancario que se abstiene de paralizar una operación sospechosa de blanqueo amparándose en lo previsto en la Ley 19/1993 y su
Reglamento.
4) La del tercero que habiendo adquirido de buena fe un bien procedente de
hechos delictivos graves, opera sobre los mismos una vez que ha alcanzado el conocimiento sobre su origen ilícito, y
“Artículo 301.1. El que adquiera, convierta o transmita bienes, sabiendo que éstos tienen su origen en un delito grave, o realice cualquier otro acto para ocultar o encubrir su origen ilícito, o para ayudar a la persona que haya participado en la infracción o infracciones a eludir las consecuencias legales de sus actos, será castigado con la pena de
prisión de seis meses a seis años y multa del tanto al triplo del valor de los bienes.Las penas se impondrán en su
mitad superior cuando los bienes tengan su origen en alguno de los delitos relacionados con el tráfico de drogas
tóxicas, estupefacientes o sustancias psicotrópicas descritos en los Artículos 368 a 372 de este Código.
2. Con las mismas penas se sancionará, según los casos, la ocultación o encubrimiento de la verdadera naturaleza,
origen, ubicación, destino, movimiento o derechos sobre los bienes o propiedad de los mismos, a sabiendas de que
proceden de alguno de los delitos expresados en el apartado anterior o de un acto de participación en ellos.
3. Si los hechos se realizasen por imprudencia grave, la pena será de prisión de seis meses a dos años y multa del
tanto al triplo.......”
21 De la abundante bibliografía existente en el ámbito de la doctrina científica española, apenas dos autores han
realizado un estudio pormenorizado de esta problemática, vid. ARANGUEZ SÁNCHEZ, CARLOS, Tratamiento jurídico penal del blanqueo de capitales, cit, pág. 445 y ss, PALMA HERRERA, JOSE MANUEL, Los delitos de blanqueo de
capitales, Edersa, Madrid, 2000, pág. 497 y ss,, también se ha ocupado de este tema, aunque de manera muy somera: VIDALES RODRÍGUEZ, CATY, Los delitos de receptación y legitimación de capitales, cit, págs. 120 y ss.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
59
5) La del agente infiltrado en las organizaciones criminales que para lograr su
desarticulación realiza actos típicos de blanqueo.
Dados los límites que impone la temática de este trabajo, será el estudio de
éste último supuesto y no el de los demás, el que ocupe nuestra atención en las páginas que siguen.
Preliminarmente será necesario hacer una serie de precisiones terminológicas
con el objeto de distinguir entre el denominado agente provocador, que ya cuenta
con un considerable tratamiento jurisprudencial, y la figura conocida como agente
encubierto regulada en la Ley 5/1999 del 14 de enero.
4.
EL AGENTE PROVOCADOR. DEFINICION. DISTINCIÓN ENTRE
AGENTE PROVOCADOR Y AGENTE ENCUBIERTO.
En clásica definición de GLASER el agente provocador es aquel que “instiga a
otro a perpetrar el delito tan solo porque quiere que este resulte posteriormente
convicto y sea castigado”.22
En la moderna doctrina penal española, RUIZ ANTÓN también ha ofrecido
una conceptualización del denominado agente provocador, entendiendo por tal a
“quien incita a realizar un determinado hecho, o crea las circunstancias fácticas que
impulsan a otro a ejecutarlo, persiguiendo un fin de signo contrario al que en apariencia se inspira con la acción provocadora.23 MUÑOZ SÁNCHEZ, en similar sentido, define al agente provocador como aquel que sin tener la voluntad de que se consume el delito, y adoptando para ello todas las medidas necesarias, provoca en otro
la comisión de un delito con el fin de que sea castigado.24
La utilización del agente provocador como una técnica de lucha contra la criminalidad organizada aparece en escena hace ya bastante tiempo. Su origen se remonta al período del absolutismo francés en tiempos de Luis XIV donde para reforzar al régimen se crea la figura del delator. Con el paso del tiempo la actividad de vigilar se muestra insuficiente para neutralizar la oposición al régimen y se pasa del espionaje a la provocación.25
22 GLASER, JULIUS, “Zur Lehre vom Dolus des Anstifters, II, en Der Gerichtssal, 1858, pág. 33, citado por RUIZ ANTÓN, FELIPE, El agente provocador en Derecho penal, EDERSA, Madrid, 1982, pág. 24
23 Vid. RUIZ ANTÓN, FELIPE, op cit, págs. 5-6
24 Vid. MUÑOZ SÁNCHEZ, JUAN, La moderna problemática jurídico penal del agente provocador, Tirant lo Blanch,
Valencia, 1995, pág. 39, también adoptando esta definición, PEREZ ARROYO, MIGUEL RAFAEL,”La provocación de
la prueba, el agente provocador y el agente encubierto. La validez de la provocación de la prueba y del delito en la
lucha contra la criminalidad organizada desde el sistema de pruebas prohibidas en el Derecho penal y procesal penal (y III) “, en Revista La Ley, Número 4989, 10 de febrero de 2000, pág. 2.
25 Una exposición sobre la evolución histórica de esta figura puede verse en RUIZ ANTÓN, FELIPE, El agente provocador, cit, pág. 5 y ss. Sobre el desarrollo histórico de esta figura en Francia, vid. MAGLIE, CRISTINA DE, L’agente provocatore, un’indagine dommatica e política-criminale, Giuffré, Edit. Milano, 1991, pág. 7 y ss., y en Alemania:
60
faculdade de direito de bauru
Paulatinamente el empleo del agente provocador se ha ido extendiendo a
otros ámbitos fuera de los estrictamente políticos, de tal manera que hoy en día asistimos a un aumento notable de la utilización de esta figura como técnica de investigación criminal. Ello viene dado por los cambios o transformaciones sufridas en la
forma de manifestarse los comportamientos delictivos. Como lo apuntamos en la
parte introductoria de este trabajo, hemos pasado de una criminalidad tradicionalmente individual, al auge de una criminalidad especialmente organizada que se sirve de medios logísticos muy modernos, como son los grupos dedicados al tráfico de
estupefacientes, de armas, obras de arte, terrorismo, etc... Esta nueva criminalidad
organizada y corporativa, en cierta manera inmune a los métodos tradicionales de
investigación policial (observación, interrogatorios de testigos, estudio de huellas,
etc..), determinan que la policía deba echar mano de recursos como el denominado agente provocador.26
El concepto, las condiciones y exigencias de la actuación del agente provocador no han sido regulados por el legislador español, sino que únicamente ha sido
objeto de una construcción meramente doctrinal y jurisprudencial.27
En la definición y límites de la actuación del agente provocador, la jurisprudencia
distingue dos situaciones: la primera en la que dicho agente provoca con su comportamiento que el sospechoso lleve a cabo determinadas conductas que son reveladoras de
un delito ya cometido (normalmente tenencia de droga preordenada al tráfico). Esta conducta del agente provocador resulta admisible como técnica de investigación delictiva
pues lo que provoca no es más que la obtención de pruebas del delito, pero no el delito
como tal.28 En éste primer supuesto la doctrina jurisprudencial se decanta por la impunidad del agente provocador y el castigo del provocado.
LÜDERSEN, “Verbrechensprophy laxe durch Verbrechensprovokation », en Festschrift für Karl Peters, Tübingen,
1974, págs. 349-350. citado por MUÑOZ SÁNCHEZ, La moderna problemática jurídico penal del agente provocador, cit, pág. 21.
26 Vid en este sentido MUÑOZ SÁNCHEZ, JUAN, op cit, págs. 22-23
27 Echan en falta una previsión legal expresa que regule la figura del agente provocador: CARDENETE, MIGUEL DOMINGO, La inducción como forma de participación accesoria, EDERSA, 1999, págs. 737-739, Cfr, de otra opinión,
considerando innecesaria una regulación legal expresa: MUÑOZ SÁNCHEZ, JUAN, La moderna problemática..., op
cit, pág 170, GARCIA VALDES, CARLOS, Aspectos de la represión penal del tráfico de drogas;”la teoría del agente
provocador y del delito provocado y el blanqueo de dinero procedente del delito”, en Política Criminal y Reforma
Penal, Libro Homenaje al Profesor JUAN DEL ROSAL, Madrid, 1993, págs. 567-568, el mismo, en El agente provocador en el tráfico de drogas, Tecnos, Madrid, 1996, pág. 26.
28 En términos expuestos por la STS de 3 de febrero de 1999 (RJA 409), se trata de la conducta que sin conculcar
legalidad alguna, se encamina al descubrimiento de delitos ya cometidos, generalmente de tracto sucesivo como
suelen ser los de tráfico de drogas, porque en tales casos los agentes no buscan la comisión del delito, sino los medios, las formas, o los canales por los que ese tráfico ilícito se desenvuelve, es decir, se pretende la obtención de
pruebas en relación a una actividad criminal que ya se está produciendo, pero de la que únicamente se abrigan sospechas. En el mismo sentido Cfr: SSTS de 3 de marzo de 1998 (RJA 2344), 22 de octubre de 1997 (RJA 7517) y 21
de enero de 1997 (RJA 325).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
61
La segunda situación se presenta cuando el hecho delictivo no es producto de
la iniciativa del autor provocado, sino que viene determinado por la inducción “engañosa” del agente, que tiene como finalidad probar la comisión de ese hecho. En
este caso se entiende que sin tal inducción “engañosa”, el delito provocado de ningún modo habría tenido lugar. Cuando se da un hecho de tales características no
cabe exigir responsabilidad penal a las personas que hayan intervenido en el, de tal
manera, que han de quedar impunes tanto el autor provocado como el agente provocador.29
De este modo la técnica “investigadora” que conduce al “delito provocado”,
siendo una forma de actuar propia de regímenes autoritarios,30 ha recibido el rechazo por parte de la jurisprudencia.31
Figura distinta a la del agente provocador es la del agente encubierto. La Ley
Orgánica 5/1999 de 13 de enero lo incorpora al artículo 282 bis de la Ley de Enjuiciamiento Criminal. Dicha Ley viene a regular algunos de los requisitos y garantías
que resulta necesario cumplimentar a la hora de recurrir a los agentes encubiertos
como método de investigación criminal.
El agente encubierto debe ser necesariamente un funcionario de la Policía Judicial32 cuya actuación ha de contar con la autorización del Juez o Fiscal, en las operaciones que realiza con identidad supuesta o falsa, previamente asignada por el Ministerio del Interior. Para el éxito de esta técnica de investigación la ley exime de res-
29 Según la STS del 3 de febrero de 1999 (RJA 409): “ por delito provocado se entiende aquel que llega a realizarse
en virtud de la inducción engañosa de una determinada persona, generalmente miembros de los cuerpos de seguridad que deseando la detención de sospechosos, incita a perpetrar la infracción a quien no tenía tal propósito, originando así el nacimiento de una voluntad criminal en supuesto concreto, delito que de no ser tal provocación no
se hubiera producido, aunque de otro lado, su completa ejecución resulte prácticamente imposible por la prevista
intervención “ab initio de la fuerza policial...” Existe una copiosa jurisprudencia que distingue entre la llamada provocación policial para descubrir delitos ya cometidos, y lo que se conoce como “delito provocado”, así entre otras
vid. SSTS de 16 de noviembre de 1979 (RJA 4242), 3 de julio de 1984 (RJA 3779), 15 de noviembre de 1988 (RJA
9167), 26 de septiembre de 1990 (RJA 7239), 17 de junio de 1993 (RJA 5164), 20 de enero de 1995 (RJA 17), 22 de
octubre de 1997 (RJA 7517), 8 de julio de 1999 (RJA 6205), vid también la STC del 21 de febrero de 1983 (STC
11/1983). Para consultar una selección de jurisprudencia relativa a esta cuestión hasta 1995, vid. GARCIA VALDES,
CARLOS, El agente provocador en el tráfico de drogas, Colección Jurisprudencia Práctica, Tecnos, Madrid, 1996, pág.
27 y ss.
30 Formula esta crítica: GASCON INCHAUSTI, FERNANDO: Infiltración policial y “agente encubierto”, Comares,
Granada, 2001, pág. 31.
31 Vid. La relación de sentencias que se hace en la Nota No. 55 que antecede.
32Como lo afirma GASCON INCHAUSTI, Infiltración policial y “agente encubierto”, cit, pág. 18: “en cuanto al agente encubierto, es decir el instrumento elegido por el legislador para materializar la infiltración policial, lo distintivo,
es ante todo, su condición de funcionario de la policía judicial”, vid también: PEREZ ARROYO, MIGUEL: La provocación de la prueba, el agente provocador,....cit, págs.4-5. Cfr. MONTON GARCIA, MARIA LIDON, “Agente provocador y agente encubierto: ordenemos conceptos”, en La Ley, 1999, D-178, pág. 2130, cuando erróneamente afirma
que la designación de agentes encubiertos puede recaer en particulares.
62
faculdade de direito de bauru
ponsabilidad al agente encubierto por las actuaciones típicamente relevantes que
sean consecuencia necesaria del desarrollo de la investigación, y de manera más
concreta, se le permite adquirir y transportar los efectos, instrumentos y objetos del
delito, y diferir su incautación. Esto tiene particular importancia, de cara a la posible justificación de conductas típicas de blanqueo de capitales realizadas por el
agente encubierto en el desempeño de sus tareas.
Así las cosas, la infiltración policial aparece como una técnica de investigación
que se utiliza fundamentalmente en la fase de instrucción del proceso penal, y cuyo
empleo se restringe al ámbito de la investigación de actividades delictivas propias de
la criminalidad organizada, entre las cuales se encuentra el blanqueo de capitales. 33
Antes de entrar en materia, resulta pertinente distinguir entre agente provocador y agente encubierto. Aparte de que la actuación del primero está expresamente prevista y regulada, estimo que la diferencia fundamental entre uno y otro estriba en que el segundo a diferencia del primero no provoca o induce a otros a la realización del delito, sino que es el quien por si mismo realiza conductas típicamente
relevantes. Abona a esta distinción el hecho de que para considerar justificada la
conducta del agente encubierto la ley exige entre otros requisitos que la misma “no
constituya una provocación al delito”.34
Sentado lo anterior analizaré en que casos y bajo que circunstancias la conducta del agente provocador y la del agente encubierto en su caso pueden resultará justificada, cuando la misma encaje en alguna de las modalidades contenidas en el tipo
de blanqueo de capitales.
33 El apartado 4 del artículo 282 bis de la Ley de Enjuiciamiento Criminal define y delimita materialmente lo que ha
de entenderse por criminalidad organizada: la asociación de tres o más personas para realizar de forma permanente o reiterada, conductas que tengan como fin: cometer algunos de los delitos siguientes: secuestro de personas
(art. 164 a 166 CP); relativos a la prostitución (arts. 187 a 189 CP); contra el patrimonio y el orden socioeconómico
(arts. 237, 243, 244, 248 y 301 CP), contra los derechos de los trabajadores (arts. 312 y 313 CP); tráfico de especies
de flora o fauna amenazada (arts. 332 y 334 CP); tráfico de material nuclear y radiactivo (art. 345 CP); contra la salud pública (arts. 368 a 373 CP), falsificación de moneda (art. 386 CP); tráfico y depósito de armas, municiones o
explosivos (arts. 566 a 568 CP); terrorismo (arts. 571 a 578 CP), contra el patrimonio histórico (art. 2.1.e de la Ley
Orgánica 12/1995 de 12 de diciembre de represión del contrabando).
34 Quizás en puridad el término “provocación” no sea el más adecuado, toda vez que en rigor sirve para designar
a un tipo de actos preparatorios a los que es consustancial un cierto grado de publicidad. (vid. Art. 18.1 CP). Sin
duda la utilización impropia del término viene influida por la doctrina jurisprudencial del Tribunal Supremo sobre
el agente provocador y el “delito provocado”. Pero es el mismo Tribunal Supremo quien en varias sentencias se ha
encargado de aclarar que utiliza el término provocación como sinónimo de inducción o instigación; así Cfr las SSTS
de 15 de septiembre de 1993 (RJA 7144), 3 de noviembre de 1993 (RJA 8223), 18 de abril de 1994 (RJA 3341), 16 de
septiembre de 1994 (RJA 6949), 20 de octubre de 1997 (RJA 7244), 30 de septiembre de 1998 (RJA 6468). En opinión de GASCON INCHAUSTI, FERNANDO, Infiltración policial y agente encubierto, cit, pág.: “con la “provocacióninducción” la ley ha querido evitar que el agente encubierto al inducir a la comisión de delitos asuma una especial
actividad y protagonismo dentro de la organización criminal, de tal manera que su rol aun pudiendo ser activo no
le permite asumir la autoría intelectual (sic) de la planificación de actividades delictivas no previstas de manera autónoma, por los sujetos objeto de su investigación”.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
5.
n.
39
63
REALIZACION DE ACTOS TIPICOS DE BLANQUEO POR EL AGENTE
ENCUBIERTO Y SU POSIBLE JUSTIFICACIÓN
El artículo 282 bis 5 I de la Ley de Enjuiciamiento Criminal es una norma penal sustantiva35 que regula una exención de responsabilidad penal a favor del agente encubierto; pese a que algunos de sus actos hayan sido susceptibles de encaje
dentro algunos de los tipos del Código Penal. El citado precepto establece que: “..el
agente encubierto estará exento de responsabilidad criminal por aquellas actuaciones que sean consecuencia necesaria del desarrollo de la investigación, siempre que
guarden la debida proporcionalidad con la finalidad de la misma y no constituyan
una provocación al delito”.
En cuanto a la naturaleza jurídica del precepto, la doctrina coincide en señalar que este consagra una causa de justificación, que excluye así la antijuricidad de
la conducta del agente encubierto.36
Para algunos se trata de una causa de justificación sui generis y especial37 en
tanto que para otros no es más que la especificación de alguna de las causas de justificación recogidas en el art. 20 No. 7 del CP: “el que obra en cumplimiento de un
deber, o en el ejercicio legítimo de un derecho, oficio o cargo.38
En mi opinión el agente encubierto que realiza actos típicos en el ámbito del
delito de blanqueo de capitales, como puede ser el de adquirir los efectos procedentes de un delito grave 39 puede ver justificada su conducta en tanto en cuanto cumple con el deber que genéricamente la misma ley atribuye a los miembros de la Policía Judicial, esto es el de “..practicar averiguar los delitos públicos...practicar según
35 Cfr. LOPEZ BARJA DE QUIROGA, JACOBO, “El agente encubierto”, La Ley, No. 4778, 20 de abril de 1999, pág.
1956, quien considera que por esa razón habría sido mas correcta su ubicación en el Código Penal.
Aunque no rechazo el carácter sustantivo de la disposición, comparto la opinión de GASCON INCHAUSTI, FERNANDO, Infiltración policial y “agente encubierto”, cit, pág. 276, cuando opina que su ubicación en la Ley de Enjuiciamiento Criminal no ha de considerarse “descabellada, toda vez que sirve para delimitar el ámbito de actuación reconocido a las autoridades de persecución penal cuando se sirven de la técnica de la infiltración policial.”
36 En este sentido vid. GASCON INCHAUSTI, FERNANDO, Infiltración policial y....op cit, pág. 277, PALMA HERRERA, JOSE MANUEL, Los delitos de blanqueo de capitales, cit, pág. 517, LOPEZ BARJA DE QUIROGA, JACOBO, “El
agente encubierto” cit, pág. 2, RIFA SOLER, JOSE MARIA, “El agente encubierto o infiltrado en la nueva regulación
de la Ley de Enjuiciamiento Criminal”, en Revista del Poder Judicial, No. 55, tercer trimestre, 1999, pág. 172, QUERALT JIMENEZ, JOAN, “Recientes novedades legislativas en materia de lucha contra la criminalidad organizada: Ley
Orgánica 5/99”, en La Ley, No. 4933, 23 de noviembre de 1999, pág. 1
37 Tal parece que es la opinión de LOPEZ BARJA DE QUIROGA, JACOBO, “El agente encubierto”, op cit, pág. 2.
38 Vid. RIFA SOLER, JOSE MARIA, “El agente encubierto o infiltrado en la nueva regulación de la Ley de Enjuiciamiento Criminal”, en Poder Judicial, 1999, No. 55, pág. 172, REY HUIDOBRO, LUIS FERNANDO, El delito de tráfico
de drogas. Aspectos penales y procesales, Tirant lo Blanch, Valencia, 1999, pág. 335.
39 Normalmente los supuestos en que habrá que analizar si cabe justificar la conducta del agente encubierto se darán respecto a los tipos del artículo 301.2 CP, ya que respecto al artículo 301.1 CP, la ausencia de elementos subjetivos del injusto (que será lo normal) en el ánimo del agente encubierto excluirá de antemano la tipicidad.
64
faculdade de direito de bauru
sus atribuciones las diligencias necesarias para comprobarlos y descubrir a los
delincuentes, y recoger todos los efectos e instrumentos del delito de cuya desaparición hubiere peligro, poniéndolos a disposición de la autoridad policial” (art. 282
bis Lecrim.). De esta manera, el funcionario de la Policía Judicial que acepta su nombramiento como agente encubierto y realiza actos típicos de blanqueo como la adquisición de bienes procedentes de un delito grave podrá justificar su comportamiento alegando que lo ha realizado en el ejercicio legítimo de su deber de comprobar la existencia del delito y de descubrir a los intervinientes en la comisión del mismo. Deber que habrá ejercido legítimamente porque de cara a ese cometido, entre
las atribuciones propias del funcionario policial investido como agente encubierto
está la de infiltrarse con identidad falsa en las organizaciones criminales dedicadas a
la comisión de aquellos delitos que como al blanqueo de capitales, entre otros, se
refiere el propio artículo 282 bis apartado 4 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal.40
Así las cosas queda claro que en nuestra opinión el cumplimiento de un deber derivado de su oficio es lo que permite excluir la antijuricidad de la conducta típica del agente encubierto. Cabe preguntarse si cualquier modalidad de blanqueo
de capitales puede quedar cubierta por esa causa de justificación.
El artículo 282 bis de la Ley de Enjuiciamiento Criminal autoriza al agente para
adquirir y transportar los objetos, efectos e instrumentos del delito y diferir la incautación de los mismos. En este sentido habrá que analizar si además de adquirir,
y para los fines de la investigación, el agente encubierto podrá también convertir o
transmitir bienes de origen delictivo.
40 Cfr. PALMA HERRERA, JOSE MANUEL, Los delitos de blanqueo de capitales, cit, págs. 517-518, para quien la conducta del agente encubierto se ve justificada al actuar en el ejercicio legítimo de su oficio o cargo, señalando que no se trata del “cumplimiento de un deber”, toda vez que la designación como agente encubierto no puede ser impuesta a ningún agente de la policía judicial (art. 282 bis párrafo 2º de la Lecrim).. Discrepo de esa opinión. Es cierto que ningún
agente de la policía judicial puede ser obligado a actuar como agente encubierto, pero dado el caso de que una vez que
haya sido notificada su designación como tal y aceptado su encargo, puede justificar la posterior realización de actos típicos como ser el de adquirir bienes de origen delictivo porque precisamente lo ha hecho en el legítimo cumplimiento de un genérico deber de averiguación del delito y descubrimiento de sus autores y partícipes, por otro lado el cumplimiento de ese deber es también legítimo porque el agente habrá actuado dentro de la esfera de las atribuciones que
como tal le corresponden. Y es que como lo afirma MIR PUIG, si bien el art. 20 No. 7 CP enumera cuatro supuestos, el
del oficio y el del cargo no deben tomarse en consideración con independencia del cumplimiento de un deber o del
ejercicio de un derecho, sino en cuanto fuentes de posibles deberes y derechos, con lo que cabe hablar de cumplimiento de un deber (o el ejercicio de un derecho en su caso) en dos situaciones: a) el derivado de un oficio o cargo y b) el
no derivado de un oficio o cargo. En este sentido vid también: CEREZO MIR, JOSE: Curso de Derecho Penal Español,
Parte General II, Teoría Jurídica del Delito, 6ª edición, Tecnos, Madrid, 1998, pág. 290, QUERALT JIMENEZ, JOAN, “Tirar
a matar”, en Cuadernos de Política Criminal, 1983, pág. 729 Nota 2, CORDOBA RODA en CORDOBA RODA / RODRIGUEZ MOURULLO, Comentarios al Código Penal, I, Ariel, Barcelona, 1972, pág. 360, MORALES PRATS, FERMIN, en Comentarios al nuevo Código penal, en AAVV, QUINTERO OLIVARES, Aranzadi, 1996, págs. 187-188, CARDENETE, MIGUEL, Comentarios al Código Penal, AAVV, Arts. 19 a 23, COBO DEL ROSAL, MANUEL, (Dir.), EDERSA, 1999, pág. 500,
opinando que: “no puede contraponerse el ejercicio del cargo y el cumplimiento del deber, sino que por el contrario
el primero resulta ser fuente del segundo”.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
65
Al respecto entiendo con PALMA HERRERA que una respuesta negativa sería
absurda. Coincido con el citado autor que cualquier conducta que se aparte de la adquisición y transporte de los bienes de procedencia delictiva grave puede incluirse
en la fórmula o cláusula general de “diferir la incautación de los mismos”.41 Y es que
no resulta razonable que por un lado se admita que el agente encubierto pueda para
el eficaz cumplimiento de su cometido, adquirir y transportar bienes de origen delictivo grave, y que por otro se rechace la posibilidad de que tenga facultades para
convertir o transmitir bienes de tal naturaleza.
Sin la permisión para la realización de esos actos típicos de blanqueo no puede pensarse razonablemente en el éxito de la diligencia policial; toda vez que no es
plausible que un sujeto logre infiltrarse en la organización criminal sin cometer a su
vez conductas típicamente relevantes; pues tales actividades resultan en este sentido necesarias tanto para ganar la confianza de la organización como para mantener
la ya obtenida.42
Así las cosas a modo de conclusión podemos decir que las conductas de conversión y transmisión de bienes pueden quedar incluidas dentro de la fórmula general de “diferir” la incautación de los mismos. Es decir, estas acciones quedarán justificadas solamente cuando su realización supone dilatar, retardar o suspender temporalmente la aprehensión de los bienes.43 A contrario sensu, no operará la causa
de justificación cuando las acciones realizadas traigan como resultado no la demora, sino la imposibilidad de practicar la incautación.44
41 Vid. PALMA HERRERA, JOSE MANUEL, Los delitos de blanqueo de capitales, cit, pág. 518.
42 Vid en este sentido GASCON INCHAUSTI, FERNANDO, Infiltración policial y “agente encubierto”, cit, págs. 8889. Como lo explica este autor el Estado de esta manera justifica la realización de conductas típificadas como delito a través de uno de sus funcionarios con la finalidad de reprimir con mayor eficacia la realización de actividades
criminales. La represión del crimen utilizando la infiltración policial legalmente autorizada se revela más eficaz en
tanto que el ámbito personal de la investigación es mayor (son mas las personas implicadas en el delito que podrán
ser condenadas), lo que faculta el acceso a las cúspides de las organizaciones, lo cual a su vez garantiza en mayor
medida un posible desmantelamiento de aquellas. Por otro lado con la ayuda de la infiltración policial será mayor
el número de conductas que puedan ser puestas de relieve (ya que son más las actividades y conexiones de la organización con otras de índole semejante las que pueden ser descubiertas).vid. también: DELGADO, JOAQUIN, Criminalidad Organizada, José María Bosch Editor, Barcelona, 2001, pág. 60, afirmando que para el logro de su cometido no le basta al agente encubierto “la maniobra engañosa consistente en la mera ocultación de la condición de
policía, sino que deberá utilizar otra serie de mecanismos para lograr la confianza de los miembros de la organización, muchos de los cuales se sitúan en los límites del Estado de Derecho, en tanto que otros son constitutivos de
delito”.
43 Esto de cara al éxito de la investigación tiene enorme importancia, pues el aplazamiento en la intervención sobre los bienes de origen delictivo a través de conductas no solamente pasivas, sino que también activas como las de
conversión y transmisión, pueden permitir al agente encubierto desplegar al mismo tiempo sus actividades de infiltración en la organización criminal a fin de hacer confluir la incautación de la mayor cantidad de bienes con la detención del mayor número de participantes en la operación de blanqueo.
44 En este sentido PALMA HERRERA, JOSE MANUEL, Los delitos de blanqueo de capitales, cit, pág. 519.
66
faculdade de direito de bauru
6.
REALIZACIÓN DE ACTOS TIPICOS DE BLANQUEO FUERA DE LOS
CASOS SEÑALADOS EN EL ARTÍCULO 282 BIS LECRIM Y SU POSIBLE JUSTIFICACIÓN
6.1. La actuacion en estado de necesidad y su posible eficacia justificante
Se plantea en la doctrina si el agente encubierto que realiza actos típicos de
blanqueo fuera de los casos y por ende más allá de los límites que señala el artículo
282 bis de la Ley de Enjuiciamiento Criminal, puede ver amparada su conducta por
un estado de necesidad justificante.45 Siendo más precisos, debemos aclarar si en
tales circunstancias puede hablarse de una particular manifestación de estado de necesidad como lo es la colisión de deberes; que se presenta cuando para cumplir un
deber es preciso infringir otro.46
La colisión de deberes surge así entre el deber genérico de prevenir la comisión
de hechos delictivos frente al deber de no realizar actos tipificados como delitos.
Siendo que la colisión de deberes es una manifestación particular del estado
de necesidad, tenemos que determinar cuales son los requisitos legales que se exigen para admitir esta causa de justificación.
Al tenor de lo prescrito en el artículo 20.5° CP para que se dé la eximente de
estado de necesidad es preciso:
1) El estado o situación de necesidad.
2) Que el mal causado no sea mayor que el que se trate de evitar.
3) La no provocación de la situación de necesidad, y
4) Que el necesitado no tenga, por su oficio o cargo, obligación de sacrificarse.
El estado de necesidad
El artículo 20.5 CP empieza diciendo que está exento de responsabilidad criminal “el que en estado de necesidad, para evitar un mal propio o ajeno, lesiona un
bien jurídico de otra persona o infringe un deber, siempre que concurran los requisitos siguientes...”
Antes que todo pues, debemos analizar en primer lugar sin concurre un “estado de necesidad”, en el que deberá haber actuado el agente encubierto.
45 Plantea esta problemática en el ámbito del blanqueo de capitales PALMA HERRERA, JOSE MANUEL, op cit, pág.
519 y ss.
46 Vid. MIR PUIG, SANTIAGO, Derecho Penal, Parte General, 4ª edición, Barcelona, pág. 446, vid también: CUERDA
RIEZU, ANTONIO, La colisión de deberes en Derecho Penal, Tecnos, Madrid, 1984, pág. 36, quien opina que la colisión de deberes existe “cuando el titular de dos deberes se encuentra en una situación en la que mediante el cumplimiento de un deber tiene que lesionar forzosamente al otro, y por lo tanto cometer una acción u omisión conminada con una pena”.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
67
No existe una definición legal de lo que debe entenderse por estado de necesidad. No obstante siguiendo a MIR PUIG estimo que el estado de necesidad a que se refiere el artículo 20.5 CP debe definirse como un “estado de peligro actual para legítimos intereses que únicamente puede conjurarse mediante la lesión de intereses legítimos ajenos y que no da lugar a la legítima defensa ni al ejercicio de un deber.47
Así las cosas, para que pueda hablarse de estado de necesidad es necesario
que el peligro sea actual, aunque este como lo puntualiza CEREZO MIR, no es suficiente, pues es preciso que la producción del mal que se pretende evitar sea también inminente.48
Volviendo al caso que nos ocupa, es oportuno recordar que la inserción del
agente encubierto en el ámbito de las organizaciones criminales tiene una finalidad
muy específica: la obtención de información referida a los integrantes de la organización, (en especial de aquellas personas que ocupan posiciones superiores en los
esquemas organizativos), y a las actividades delictivas llevadas a cabo por aquellos.49
Dicho de otro modo, la finalidad de la información que el policía infiltrado busca y
obtiene gracias a su entrada en la organización consiste en su empleo como prueba
de cargo en un proceso penal, cuyo objeto lo constituyen en todo o en parte los hechos delictivos cometidos por las personas integradas en la organización criminal.50
Así las cosas podemos afirmar que normalmente la actividad del agente encubierto no va dirigida a impedir la inminente comisión de un delito, sino a descubrir
y poner de relieve hechos delictivos ya cometidos. De este modo, es por ello que el
agente encubierto que ejecuta actos típicos de blanqueo fuera de los casos o más
allá de los límites legales prescritos, difícilmente justificará que los ha realizado para
conjurar la producción de un mal inminente, toda vez que su actividad investigativa, normalmente se limita a recopilar información en torno a la comisión de delitos
ya cometidos.
De esta manera, y siendo que el agente encubierto normalmente no se enfrenta una situación de peligro “inminente”, resulta innecesario analizar los restan47 Vid. MIR PUIG, SANTIAGO, Derecho Penal, Parte General, cit, Pág. 443. Cfr. RODRÍGUEZ DEVESA / SERRANO
GOMEZ, Derecho Penal Español, Parte General, 18ª edición, Dykinson, Madrid, 1995, pág. 569.
48 Vid. CEREZO MIR, JOSE, Curso de Derecho Penal Español, cit, pág. 246, salvo, opina este autor, “cuando con el
transcurso del tiempo no se pueda aportar solución alguna al conflicto”. En este sentido COBO DEL ROSAL / VIVES
ANTÓN, Derecho Penal, Parte General, 5ª edición, Tirant lo Blanch, Valencia, 1999, págs. 521-522, BACIGALUPO ZAPATER, ENRIQUE, Principios de Derecho Penal, Parte General, 5ª edición, AKAL, Madrid, 1997, pág. 271, CORDOBA RODA, JUAN, Las eximentes incompletas en el Código Penal, Instituto de Estudios Jurídicos, Oviedo, 1966, págs.
164-165, el mismo en Comentarios al Código Penal I, cit, págs. 275-276, MUÑOZ CONDE / GARCIA ARAN, Derecho
Penal, Parte General, cti, pág. 367. El Tribunal Supremo en jurisprudencia constante también exige la inminencia
del mal, vid entre otras. SSTS del 29 de septiembre de 1978, en la que se refiere a “una necesidad momentánea e
imperiosa”, y la del 14 de febrero de 1978 que alude a “una necesidad aguda e inaplazable”.
49 Vid. GASCON INCHAUSTI, FERNANDO, Infiltración policial y “agente encubierto”, cit, pág. 84.
50 Vid. GASCON INCHAUSTI, FERNANDO, op cit, pág. 85.
68
faculdade de direito de bauru
tes requisitos que configuran la eximente de estado de necesidad y por lo tanto cabe
descartar en consecuencia una situación de “colisión de deberes”.51
Distinta sería la situación – como lo apunta PALMA HERRERA- del agente encubierto cuya intervención sea necesaria para detener al delincuente e impedir así
que este lleve a cabo el delito. Sin embargo como lo subraya el mismo autor, estos
son supuestos que se apartan de la normal actividad del agente encubierto52, cuyo
cometido, lo repetimos una vez más, es la de suministrar a las autoridades de persecución penal la información necesaria para decidir sobre el ejercicio o no de la acción penal, o en su caso sobre la imposición de una pena a las personas responsables de hechos delictivos cometidos en el ámbito de la criminalidad organizada.
6.2. Complimento de un deber de obediencia y su posible eficacia justificante
Otra cuestión que ha sido objeto de estudio, es la de si el agente encubierto puede realizar actos típicos de blanqueo más allá de lo permitido por el artículo 282 bis de la
Ley de Enjuiciamiento Criminal, cuando este lo hace en el cumplimiento de ordenes dictadas por un superior jerárquico.53 Entramos así en el ámbito de lo que se ha venido conociendo como obediencia debida. Esta eximente era expresamente regulada en el No.
12, artículo 8 del anterior código penal.54 El nuevo Código Penal en cambio ha suprimido
este precepto, con lo cual quien obre en cumplimiento de un deber jurídico de obediencia ha de invocar la causa de justificación del artículo 20 No. 7 CP.55 Dicho de otro modo,
51 Vid sobre este tema con detalle: PALMA HERRERA, JOSE MANUEL, Los delitos de blanqueo de capitales, cit, pág.
522, quien además de estimar que no concurre una situación de necesidad frente a la que pueda actuar el agente
encubierto, concluye que en todo caso el mal causado por éste último nunca puede ser inferior al que pretende evitar, toda vez que con su actuación además de afectar bienes jurídicos tutelados por el tipo penal de blanqueo, también se quebranta el orden público, la paz social y la armonía de la convivencia, agregando que justificar este tipo
de actos supondría recurrir a mecanismos que en aras de una teórica “defensa” del orden establecido atentan contra bienes jurídicos, individuales y colectivos.
52 Vid PALMA HERRERA, JOSE MANUEL, Ibídem
53 Ampliamente sobre este tema vid. PALMA HERRERA, JOSE MANUEL, Los delitos de blanqueo de capitales, cit,
pág. 524.
54 Según el art. 8 No. 12 CPA estaba exento de responsabilidad criminal quien obrara “...en virtud de obediencia debida..”
55 La naturaleza dogmática de la obediencia jerárquica, no es una cuestión pacífica en la doctrina. En este trabajo
asumimos la tesis que aboga por considerarla una causa de justificación. Entre quienes mantienen esta postura vid.
MIR PUIG, SANTIAGO, Derecho Penal, Parte General, cit, pág. 503, para quien el deber de obedecer ordenes no manifiestamente antijurídicas ha de verse en la necesidad de funcionamiento de la Administración Pública, en cuanto
que esta no debe ser obstaculizada a cada momento por dudas de los subordinados acerca de la legalidad de las ordenes que reciban. Ello explica según este autor que la ley no solo disculpa, sino que permite la lesión del bien jurídico, cuando impone un deber de obedecer (art. 410 CP). En similar sentido: QUERALT JIMÉNEZ, JOAN, La obediencia debida, cit, pág. 414 opinando que lo que el legislador parece tener en mente al establecer la eximente es
el aseguramiento de la capacidad de prestación de los servicios públicos. Otra opinión en cambio, mantiene otro
sector de la doctrina, para quienes el deber de obediencia excluye en ciertos casos la culpabilidad, siendo el fun-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
69
la “obediencia debida” ha de concebirse como una variante de la eximente de cumplimiento de un deber.56
El Real Decreto 769/1987 de 19 de junio sobre regulación de la Policía Judicial
establece en su artículo 7 que constituyen la Policía Judicial en sentido estricto las
Unidades Orgánicas previstas en el artículo 30.1 de la Ley Orgánica 2/1986 de 13 de
marzo de Fuerzas y Cuerpos de Seguridad del Estado, integradas por miembros de
Cuerpo Nacional de Policía y de la Guardia Civil. Dichas Unidades Orgánicas entre
cuyos miembros han de seleccionar quienes han de desempeñarse como agentes
encubiertos, deben sujetarse en su actuación profesional a los principios de jerarquía y subordinación. (art. 5.1.d de la Ley Orgánica de Fuerzas y Cuerpos de Seguridad del Estado).
Ello quiere decir que existe un deber genérico por parte de dichos agentes,
consistente en obedecer o sujetarse a las ordenes dictadas por sus superiores jerárquicos.
Esto plantea el problema de determinar si cumple un deber solo quien acata
una orden ajustada a Derecho o también existe en algunos supuestos el deber de
cumplir determinadas ordenes antijurídicas. La doctrina se encuentra dividida al
momento de admitir si en estos últimos casos existe una “obediencia debida”.
Para un sector doctrina es una incongruencia hablar de mandatos antijurídicos y al mismo tiempo vinculantes: si son antijurídicos no pueden ser lógicamente
vinculantes y viceversa.57
En cambio para otro sector de la doctrina que hoy puede considerarse mayoritario, no es preciso que la orden o mandato del superior jerárquico sean lícitos
damento de la exigente la no exigibilidad de conducta distinta, el error, etc..., vid. MORILLAS CUEVA: La obediencia debida. Aspectos legales y político-criminales, Civitas, Madrid, 1984, pág. 146 y ss, RODRÍGUEZ MUÑOZ, JOSE
ARTURO, Notas a la traducción española de EDMUND MEZGER, Tratado de Derecho Penal,I, Madrid, 3ª edición, Madrid, 1955, pág. 423, ANTÓN ONECA, JOSE, Derecho Penal, 2ª edición, dirigida por HERNÁNDEZ, JOSE JULIAN y
BENEYTEZ MERINO, LUIS, Akal, Madrid, 1986 págs. 304-305
56 Estando aún vigente el anterior Código Penal, ya se rechazaba el carácter autónomo de la eximente de obediencia debida respecto a la del cumplimiento de un deber, así: QUERALT JIMÉNEZ, JOAN, La obediencia debida en el
Código Penal. Análisis de una causa de justificación. (art. 8, 12ª CP), Librería Bosch, Barcelona, 1986, págs. 445-448,
acogen este mismo criterio en el Código penal vigente, entre otros: CEREZO MIR, JOSE, Curso de Derecho Penal
Español, Parte General, cit, pág. 496, MUÑOZ CONDE / GARCIA ARAN, Derecho Penal, Parte General, 3ª edición,
Tirant lo Blanch, Valencia, 1998, pág. 380 y ss.
57 Rechazan categóricamente la existencia de mandatos antijurídicos obligatorios: VIADA Y VILASECA, SALVADOR,
Código Penal reformado de 1870 con las variantes introducidas en el mismo por la Ley de 17 de julio de 1876. Concordado y Comentado, Barcelona, 4ª edición; CUELLO CALON, EUGENIO, Derecho Penal, Parte General I, revisado y puesto al día por CAMARGO HERNÁNDEZ, CESAR, 18ª edición, Barcelona, pág. 400 y ss, ARAMBURU Y ZULOAGA, FELIX, en adiciones de Elementos del Derecho Penal, traducción española de PESINA ENRIQUE, 3ª edición, 1919, pág. 432, COBO DEL ROSAL / VIVES ANTÓN, Derecho Penal, Parte General, cit, pág. 485, MORILLAS
CUEVA, LORENZO, La obediencia debida, aspectos legales y político-criminales, Cuadernos Civitas, Madrid, 1984,
pág. 86 y ss, OLMEDO CARDENETE, MIGUEL, Comentarios al Código Penal, AAVV, Tomo II, cit, pág. 581, BACIGALUPO ZAPATER, ENRIQUE, Principios de Derecho Penal, 2ª edición, Akal, Madrid, 1990, págs. 157-158.
70
faculdade de direito de bauru
para que exista un deber jurídico de obediencia, dada la existencia en el Derecho español de actos o mandatos estatales antijurídicos obligatorios.58
Personalmente me inclino por esta última postura, la que parece estar avalada
por lo prescrito en el artículo 410 CP, que castiga la desobediencia de los mandatos
dictados por autoridad competente que estando revestidos de las formalidades legales no sean manifiestamente antijurídicos, así como también por lo prescrito en
el artículo 5.1 de la Ley Orgánica de los Cuerpos y Fuerzas de Seguridad del Estado,
cuando dispone que “en ningún caso, la obediencia debida podrá amparar ordenes
que entrañen la ejecución de actos que manifiestamente constituyan delito o sean
contrarios a la Constitución o a las leyes”.
Normalmente los requisitos exigidos para apreciar la eximente de “obediencia
debida” son: en primer lugar se exige que la orden emanada de autoridad superior
se encuentre dentro de los límites de su competencia. Para estos efectos se ha distinguido entre competencia concreta y competencia abstracta. Únicamente esta última se reputa necesaria para que una orden genere deber de obediencia, toda vez
que el Derecho no concede a nadie competencia concreta para dictar una orden antijurídica constitutiva de delito.59
En este sentido, las ordenes impartidas por el superior jerárquico del agente
encubierto, que exigen a éste la realización de actos típicos de blanqueo fuera de los
casos que prevé el artículo 282 bis 1 párrafo primero de la Lecrim., con el propósito de prevenir y perseguir los delitos de blanqueo cometidos por los miembros de
una organización criminal, entiendo que aunque ex – post quede plenamente demostrado que tales mandatos no se encuentran dentro del concreto círculo de atribuciones del ordenante, ex – ante si cabe estimar que los mismos se incluyen dentro de la esfera de atribuciones que en general aquel tiene asignada, lo cual cabe
también decir respecto al subordinado, toda vez que corresponde a los miembros
de la policía el deber genérico de “averiguar los delitos públicos...y..practicar...las diligencias necesarias para comprobarlos y descubrir a los delincuentes...”
58 Mantienen esta opinión entre otros: CEREZO MIR, JOSE, Curso de Derecho Penal Español, Parte General II, cit,
págs. 305-306, RODRÍGUEZ DEVESA / SERRANO GOMEZ, Derecho Penal Español, Parte General, cit, pág. 535 y ss,
MIR PUIG, SANTIAGO, Derecho Penal, Parte General, cit, págs. 496-497, CORDOBA RODA, JUAN, Las eximentes incompletas en el Código Penal, cit pág. 334 y ss, MUÑOZ CONDE / GARCIA ARAN, Derecho Penal, Parte General, cit,
pág. 380, OCTAVIO DE TOLEDO Y UBIETO / HUERTA TOCILDO, Derecho Penal, Parte General, Madrid, 1986, pág.
265 y ss, CALDERON, ANGEL / CHOCLAN MONTALVO, JOSE ANTONIO, Derecho Penal, Tomo I, Parte General,
Bosch, 2ª edición, Barcelona, 2001, págs. 218-219.
59 Vid. MIR PUIG, SANTIAGO, Derecho Penal, Parte General, cit, pág. 497, CORDOBA RODA, JUAN, en CORDOBA
RODA / RODRÍGUEZ MOURLLO, Comentarios al Código Penal, Tomo I, cit, pág. 390, vid también QUERALT JIMÉNEZ, JOAN, La obediencia debida en el Código Penal, cit, pág 151, este autor entiende que únicamente la competencia abstractamente considerada es útil al momento de analizar si concurre o no la obediencia debida, toda vez
que si se requiriera la competencia concreta “resultaría que solo a la vista de lo acaecido, es decir ex – post , podría
afirmarse si el superior ordenante era o no competente....al dictar el mandato que dictó”.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
71
Pero no basta para apreciar la eximente a favor del que obra en obediencia jerárquica que superior y subordinado sean competentes como antes lo hemos dicho,
desde el punto de vista abstracto y que la orden dictada aparezca revestida de las
formalidades legales;60 es necesario además que la orden dictada no sea manifiestamente antijurídica.61
En relación a este último requisito surge la cuestión de determinar para
quien ha de aparecer como “manifiesta” o no la antijuricidad de la orden, es decir, si para el subordinado o si para el hombre medio situado en la posición de
aquel (criterio objetivo). En torno a esta cuestión comparto la opinión de MUÑOZ CONDE cuando dice que el carácter manifiesto, claro y terminante de la infracción debe estimarse de un modo objetivo, con lo cual basta con que un funcionario medio62 situado en la circunstancia respectiva hubiera apreciado esa
vulneración, con independencia de cuales pudieran ser las creencias del funcionario individual y concreto.63
60 Sobre este requisito, vid ampliamente: QUERALT JIMÉNEZ, JOAN, La obediencia debida en el Código Penal, cit,
págs. 202-203, para quien la inobservancia de formalidades no impide per se que la orden deba ser obedecida, de
tal manera que “sean orales, escritas, por signos, visuales o en clave, en nada afecta a su consideración...según dicho autor, “si las formalidades no afectan a las garantías que la ley pretende proteger, el mandante habrá incurrido
en un vicio que no es susceptible de ser enervado por el receptor de la orden, quedando abiertos los canales procedimentales de restauración del orden jurídico., vid también MIR PUIG, SANTIAGO, Derecho Penal, Parte General,
cit, pág. 448, opinando que “los defectos inesenciales a que se refiere la legislación administrativa (art. 63.2 y 3, Ley
30/1992 de 26 de noviembre, de Régimen Jurídico de las Administraciones Públicas y del Régimen Administrativo
Común no excluyen ni la competencia ni las formalidades legales requeridas por el artículo 410 CP, y necesarias para
apreciar la eximente.
61 Ello se desprende de lo previsto en el art. 410 CP conforme al cual se comete el delito de desobediencia si no
se cumplen órdenes de la autoridad superior dictadas dentro del ámbito de su respectiva competencia y revestidas
de las formalidades legales, salvo que el mandato constituya “una infracción manifiesta, clara y terminante de un
precepto de ley o de cualquier otra disposición general.
62 Sobre el concepto de “funcionario medio”, ALVAREZ GARCIA, JAVIER, El delito de desobediencia de los funcionarios públicos, cit, pág. 282, Nota 578, explica que cuando se habla de funcionario medio “la referencia no puede
tomarse en relación a “cualquier funcionario”, sino que habrá de tenerse en cuenta el ámbito de relación del sujeto que se contemple; es decir, deberán considerarse los conocimientos que le son exigibles al sujeto en concreto
para poder desempeñar la función que le es atribuida. En este sentido y tratándose de un funcionario de carrera,
en relación a los cuales se plantearán la mayoría de los supuestos, dato esencial a evaluar es el nivel de las oposiciones o concursos que debieron superar para acceder a la función”.
63 Vid. MUÑOZ CONDE / GARCIA ARAN, Derecho Penal, Parte General, cit, pág. 382, explicando que si bien la ley
concede al funcionario un cierto margen para apreciar el carácter vinculante de la orden que se le imparta, ello no
significa que haya que llegar hasta el punto de dejar totalmente a su arbitrio la apreciación de tal carácter. Cfr. ALVAREZ GARCIA, FRANCISCO JAVIER, El delito de desobediencia de los funcionarios públicos, Bosch, Barcelona,
1987, que sugiere un criterio subjetivo-objetivo: la orden según este autor será manifiestamente antijurídica cuando aparezca como tal ex – ante a un funcionario medio que tuviera los conocimientos especiales del autor. RODRÍGUEZ DEVESA / SERRANO GOMEZ, Derecho Penal Español, Parte General, cit, pág. 543 acuden a criterios subjetivos, haciendo depender el carácter “manifiestamente antijurídico” del conocimiento que tenga el sujeto en torno
a la ilegalidad de la orden que recibe.
72
faculdade de direito de bauru
Como lo observa GASCON INCHAUSTI, el grado de formación y preparación
es un factor básico para el éxito de la labor encomendada al agente encubierto, siendo ésta una cuestión que desde la perspectiva del proceso penal hay que tener por
supuesta.
Los mandos policiales solo solicitarán al Juez o Fiscal la autorización para proceder a una infiltración cuando lo consideren viable, y uno de los factores determinantes de esa viabilidad lo constituirá sin duda la concreta persona propuesta para
el desempeño de su función y su grado de preparación.64 De este modo y en línea
con este razonamiento podemos decir que respecto a cualquier funcionario medio
de la policía judicial a quien se le encomiende el encargo de actuar como agente encubierto, - dado el nivel de formación que le es exigible para llevar a feliz termino
una misión tan delicada-, cabe esperar que le parezca notoria, ostensible o evidentemente antijurídica la orden dictada por su superior para que realice actos típicos
de blanqueo fuera de los casos o más allá de los límites previstos por el artículo 282
bis 1 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal que imposibiliten la incautación de los
bienes producto de actividades delictivas; toda vez que el precepto legal antes citado no faculta al ordenante, ni tampoco al subordinado para la realización de tales
actos. En consecuencia quienes reciban ese tipo de ordenes no estarán obligados a
cumplirlas, por lo que en caso de acatarlas y darles cumplimiento, no podrán invocar a su favor la causa de justificación consistente en el cumplimiento de un deber
de obediencia jerárquica.
En aquellos casos que el subordinado desconoce la antijuricidad de una
orden que con sus datos el funcionario medio reputaría manifiesta, serán aplicables las reglas generales del error sobre los presupuestos de una causa de justificación,65 problemática que desde nuestra perspectiva deberá ser analizada en
sede de culpabilidad.
64 Vid. GASCON INCHAUSTI, FERNANDO, Infiltración policial y agente encubierto, op cit, pág. 228.
65 Esto para quienes entendemos que esta es la naturaleza de la obediencia debida, mientras que para otros es precisamente en este caso donde la obediencia debida opera como causa de exculpación. Vid. MORILLAS CUEVA, LORENZO, La obediencia debida, cit, págs. 149 y ss.
doutrina
A PERMANÊNCIA DO CARÁTER COMPROMISSÓRIO
(E DIRIGENTE) DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA E O
PAPEL DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL : uma abordagem à luz da hermenêutica filosófica
Lenio Luiz Streck
Doutor em Direito do Estado. Pós-Doutor em Direito Constitucional e Hermenêutica.
Procurador de Justiça-RS. Professor dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da UNISINOS.
Professor convidado das seguintes universidades: UNESA-BR; Pablo D´Olavide – ES; Valladolid-ES e
Universidade de Lisboa-PT. Autor de Hermenêutica Jurídica E(m) Crise, As interceptações Telefônicas
e os Direitos Fundamentais, Ciência Política e Teoria Geral do Estado, Tribunal do Júri – Símbolos e
Rituais, entre outras, todas da Editora Livraria do Advogado, RS; tb. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma Nova Crítica do Direito, 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2003.
1.
A CONSTITUIÇÃO COMO UM “PARADOXO”: O DILEMA DECORRENTE DA REGRA CONTRAMAJORITÁRIA E A TENSÃO (INEXORÁVEL) ENTRE JURISDIÇÃO E LEGISLAÇÃO
A comemoração da passagem dos duzentos anos do caso Marbury v. Madison1
enseja uma série de discussões acerca do valor do constitucionalismo e de sua sobrevivência nesta quadra da história. Afinal, a discussão do constitucionalismo implica o enfrentamento de um paradoxo, representado pelo modo como esse fenôme1 O presente texto é originário de conferência proferida no Congresso sobre os 200 anos do caso Marbury v. Madison, ocorrido na EMERJ-RJ, nos dias 6 e 7 de novembro de 2003, organizado pelos Professores Daniel Sarmento
e Gustavo Binembojm.
76
faculdade de direito de bauru
no é engendrado na história moderna. Com efeito, a Constituição nasce como um
paradoxo porque, do mesmo modo que surge como exigência para conter o poder
absoluto do rei, estabelece-se também como mecanismo de contenção do poder
das maiorias.
Talvez neste aspecto – a garantia de uma regra contramajoritária – é que resida o grande dilema da democracia naquilo que ela finca raízes históricas no direito
(constitucional) e com ele tem um profundo débito. É neste ponto, aliás, que Laurence Tribe começa seu influente tratado sobre direito constitucional (American
Constitutional Law)2, procurando enfrentar esse dilema fundamental representado
pela discórdia entre a política majoritária e os anteparos previstos no texto constitucional: em sua forma mais básica, a pergunta é por que uma nação que fundamenta a legalidade sobre o consentimento dos governados decidiria constituir sua
vida política mediante um compromisso com um pacto/acordo original estruturado
deliberadamente para dificultar mudanças.
De diversas maneiras este problema tem sido apresentado, aduz Tribe, indagando: como se pode reconciliar o consentimento dos governados com a garantia
de um consentimento ulterior mediante uma convenção constitucional? Por que um
marco constitucional, ratificado há dois séculos, deve exercer tão grande poder sobre nossas vidas atuais? Por que somente alguns de nossos concidadãos possuem a
faculdade para impedir que se façam emendas à Constituição? A revisão judicial,
quando está baseada em uma lealdade supersticiosa em relação a intenção de seus
criadores, é compatível com a soberania popular?3
Se se compreendesse a democracia como a prevalência da regra da maioria,
poder-se-ia afirmar que o constitucionalismo é antidemocrático, na medida em que
este “subtrai” da maioria a possibilidade de decidir determinadas matérias, reservadas e protegidas por dispositivos contramajoritários. O debate se alonga e parece
interminável, a ponto de alguns teóricos demonstrarem preocupação com o fato de
que a democracia possa ficar paralisada pelo contramajoritarismo constitucional, e,
de outro, o firme temor de que, em nome das maiorias, rompa-se o dique constitucional, arrastado por uma espécie de retorno a Rousseau.
Daí que, desde logo, considero necessário deixar claro que a contraposição
entre democracia e constitucionalismo é um perigoso reducionismo. Não fosse por
outras razões, não se pode perder de vista o mínimo, isto é, que o Estado Constitucional só existe e tornou-se perene a partir e por meio de um processo político
constitucionalmente regulado (Loewestein). Nesse sentido, vem bem o alerta de
Stephen Holmes, para quem a afirmação da existência de uma “tensão” irreconciliável entre constitucionalismo e democracia é um dos mitos centrais do pensamento
2 Cfe. Tribe, Laurence. American Constitutional Law. Foundation Press, Meneola, 1978.
3 Cfe. Tribe, op.cit., citado em Holmes, Stephen. El precompromiso y la paradoja de la democracia. In: Constitucionalismo y Democracia. Jon Elster y Rune Slagstad (org). México, Fondo de Cultura Económica, 2003, pp.217 e segs.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
77
político moderno.4 Frise-se, ademais, que, se existir alguma contraposição, esta
ocorre necessariamente entre a democracia constitucional e democracia majoritária,
questão que vem abordada em autores como Dworkin, para quem a democracia
constitucional pressupõe uma teoria de direitos fundamentais que tenham exatamente a função de colocar-se como limites/freios às maiorias eventuais.5 Uma
vontade popular majoritária permanente, sem freios contramajoritários, eqüivale à
volonté générale, a vontade geral absoluta propugnada por Rousseau, que se revelaria, na verdade, em uma ditadura permanente.6
Daí que, para os estreitos limites desta exposição nesta data comemorativa
dos duzentos anos do caso Marbury v. Madison, pretendo sustentar a tese da absoluta possibilidade de convivência da democracia com o constitucionalismo. Mais do
que isto, a Constituição, nesta quadra da história, a partir da revolução copernicana
que atravessou o direito público depois do segundo pós-guerra, passa a ser – em
determinadas circunstâncias – condição de possibilidade do exercício do regime
democrático, naquilo que a tradição nos legou.
A Constituição não obstrui a democracia, já afirmava James Madison, contrapondo-se a Thomas Jefferson. Pelo contrário: regras contramajoritárias não são necessariamente ataduras, mas, sim, podem vir a promover a liberdade, dizia ele. A
tese de que, com a regra contramajoritária, os vivos passam a ser governados pelos
mortos igualmente já encontrava em Madison a necessária crítica. Com efeito, por
uma parte o repúdio ao passado é uma espécie de espada com dois fios. As decisões
atuais, tomadas tendo em mente o futuro, logo pertencerão ao passado. E pergunta: se podemos estabelecer que gerações subseqüentes tratarão com soberano desprezo nossas escolhas feitas pensando no futuro, por que haveríamos de pensar
mais no futuro do que no passado? Desejamos atuar de maneira responsável acerca das gerações sucessivas enquanto tendemos a rechaçar o conceito de que as gerações anteriores são por nós responsáveis. Porém, pergunta Holmes, é, em realidade, congruente adotar essa atitude? Sua resposta é contundente, utilizando para tanto o paradoxo formulado por Jon Elster: cada geração deseja ser livre para obrigar as suas sucessoras, sem estar obrigada por suas predecessoras.7
4 Cfe. Holmes, op.cit., p.219.
5 Cfe. Dworkin, Ronald. Uma questão de Princípio. São Paulo, Martins Fontes, 2000, pp. 80 e segs.
6 Com propriedade, Koselleck assevera que Rousseau, sem perceber, desencadeou a revolução permanente em
busca de um verdadeiro Estado. Buscava a unidade da moral e da política, mas acabou encontrando o Estado total,
a revolução permanente sob o manto da legalidade. A vontade geral, que é absoluta e não tolera exceção, reina sobre a nação. Soberana pelo simples fato de existir, é sempre – e totalmente – o que deve ser. A vontade geral que
não tolera exceção é a exceção pura e simples. Assim, a soberania de Rousseau revela-se uma ditadura permanente. É congênita da revolução permanente em que seu Estado se transformou. Cfe. Koselleck, Reinhart. Crítica e Crise. Trad. de Luciana Villas-Boas Castelo Branco. Rio de Janeiro, Contraponto, pp. 141 e 142.
7 Idem, ibidem.
78
faculdade de direito de bauru
Na verdade – e a tradição que engendrou o constitucionalismo nas suas diversas fases aponta para esse desiderato - a democracia constitucional é o sistema político talhado no tempo social que o vem tornando a cada dia mais humano porque
se enriquece com a capacidade de indivíduos e comunidades para reconhecer seus
próprios erros. Em que pese tenham proibido os precompromissos que obstruíram
toda a nova aprendizagem, Locke, Kant e outros aprovaram as regras constitucionais
duradouras ainda que não inalteráveis. Assim fizeram porque reconheciam que tais
regras podiam fomentar o futuro aprendizado. Os mortos não devem governar os
vivos, porém facilitar a que os vivos se governem a si próprios.8
Por tudo isto, a discussão acerca do constitucionalismo contemporâneo – e
de suas implicações políticas - é tarefa que (ainda) se impõe. O constitucionalismo
não morreu. As noções de força normativa da Constituição e de Constituição dirigente e compromissória não podem ser relegadas a um plano secundário, mormente em um país em que as promessas da modernidade, contempladas nos textos
constitucionais, carecem de uma maior efetividade. Daí a pergunta: como relegar a
um segundo plano as promessas que fizemos a nós mesmos (para utilizar as palavras de François Ost9)?
Nesse sentido, torna-se fundamental discutir, para uma melhor compreensão
de toda essa problemática, o papel da Constituição e da jurisdição constitucional no
Estado Democrático de Direito, bem como as condições de possibilidade para a implementação/concretização dos direitos fundamentais-sociais10 a partir desse novo
paradigma de Direito e de Estado.
8 Idem, ibidem.
9 Ver, para tanto, Ost, François. O Tempo do Direito. Lisboa, Piaget, s/d.
10 Fundamentado no excelente Eficácia dos Direitos Fundamentais de Ingo Sarlet, utilizo a expressão “direitos fundamentais-sociais” porque os direitos sociais são direitos fundamentais prestacionais. Nesse sentido, a preocupação
primordial é com a esfera dos direitos fundamentais a prestações, que tem por objeto uma conduta positiva por
parte do destinatário, consistente, em regra, numa prestação de natureza fática ou normativa. Assim, enquanto os
direitos de defesa se identificam por sua natureza preponderantemente negativa, tendo por objeto abstenções do
Estado, os direitos sociais prestacionais (portanto, o que está em causa aqui é precisamente a dimensão positiva,
que não exclui uma faceta de cunho negativo) têm por objeto precípuo uma conduta positiva do Estado ou particulares destinatários da norma. (In: Sarlet, Ingo. Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003, pp. 272 e segs). Relativamente à vinculação dos particulares (eficácia inter privatos) aos direitos fundamentais, consultar Bilbao Ubillos, Juan Maria. Los derechos fundamentales em la frontera entre público y lo privado. Madrid, Estúdios Ciências Jurídicas, 1997. No Brasil, em especial a obra de Daniel Sarmento, que trata da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, deixando claro que tais direitos não regulam apenas as relações verticais
de poder que se estabelecem entre Estado e cidadão, mas incidem igualmente sobre relações mantidas entre pessoas e entidades não estatais, que se encontram em posição de igualdade formal. Em percuciente abordagem, Sarmento analisa os fundamentos, condições e limites para esta incidência, buscando extrair do nosso sistema constitucional standards adequados para resolver a ponderação entre tais direitos e o princípio da autonomia privada,
que tem berço constitucional na cláusula da dignidade da pessoa humana, no direito à liberdade previsto no art. 5,
caput e no inciso II, da Constituição, bem como no princípio da livre iniciativa (art. 170, CF). In: Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
79
Parece que a inserção da Constituição na noção de paradoxo – pelos “interesses” contraditórios que nasceu para albergar – trás implícita a discussão da problemática da tensão entre legislação e jurisdição, pela simples razão de que a primeira é fruto da vontade geral (majoritária) e a segunda coloca freios nessa mesma vontade geral. Por isto, Bachof chama a atenção para a inevitabilidade do surgimento de uma “certa relação tensionante entre o direito e a política. O juiz constitucional aplica certamente direito; mas a aplicação deste direito acarreta consigo necessariamente que aquele que a faz proceda a valorações políticas.” 11 E parece que
disto não podemos escapar. Afinal, a evolução da Teoria do Estado – que, no Estado
Constitucional, não pode existir à margem da Constituição (Bercovici) - implica o
surgimento da “politização” da Constituição. Do normativismo constitucional saltamos para a Teoria Material da Constituição. Este é o momento da imbricação entre
Constituição e política. E o Estado Democrático de Direito é o locus privilegiado
deste acontecimento.
Por isto, é possível afirmar que a dimensão política da Constituição não é uma
dimensão separada, mas, sim, o ponto de estofo em que convergem as dimensões
democrática (formação da unidade política), a liberal (coordenação e limitação do
poder estatal) e a social (configuração social das condições de vida) daquilo que se
pode denominar de “essência” do constitucionalismo do segundo pós-guerra. Portanto, nenhuma das funções pode ser entendida isoladamente. É exatamente por
isto que Hans Peter Schneider vai dizer que a Constituição é direito político: do, sobre e para o político.12
Decorre daí a importância que deve ser dada à discussão acerca do tipo de justiça constitucional encarregada de realizar o controle da constitucionalidade do ordenamento jurídico de cada país. O deslocamento do pólo de tensão relacionado à
clássica questão da divisão-separação de Poderes recebe, destarte, uma nova concepção a partir do estabelecimento de tribunais que não fazem parte – stricto sensu – da cúpula do Poder Judiciário,13 trazendo consigo, em sua estruturação, a efetiva participação do Poder Legislativo.
É razoável afirmar, desse modo, que a força normativa da Constituição – e, se
assim se quiser, o seu papel dirigente e compromissório – sempre teve, assim, uma
direta relação com a atuação da justiça constitucional na defesa da implementação dos valores substanciais previstos na Lei Maior. Para uma tal constatação,
11 Cfe. Bachof, Otto. Estado de Direito e Poder Político. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LVI. Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 10.
12 As três dimensões das funções da Constituição podem ser encontradas em Schneider, Hans Peter. La Constituición – Función y Estrutuctura. In: Democracia y Constituición. Madrid, CEC, 1991, pp. 35-52; tb. Bercovici, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo, Max Limonad, 2002, p. 288.
13 Registre-se que o Brasil, durante o processo constituinte de 1986-88, optou por permanecer com o modelo do
judicial review de inspiração norte-americana, rejeitando a fórmula dos tribunais constitucionais, de tanto êxito na
Europa continental.
80
faculdade de direito de bauru
basta um exame na jurisprudência dos tribunais constitucionais14 – mormente a dos
primeiros anos – de países como Alemanha, Espanha e Portugal, sem olvidar, aqui,
a importância do assim denominado “ativismo judicial” da Supreme Court dos Estados Unidos, por exemplo, do “Tribunal Warren”.
Claro que sempre há temores em relação a esse “intervencionismo” da justiça
constitucional, questão que aparece nitidamente nas posturas de autores de claro
perfil procedimentalista como Jürgen Habermas e John Hart Ely, para citar apenas
estes. Fazendo um contraponto de cariz substancialista, vale lembrar o dizer de Garcia Herrera,15 para quem cuando se defiendem los princípios constitucionales no
se hace política sino defensa juridiscional de la Constitución.16
Parece inexorável – e isto não deveria causar nenhuma surpresa - que ocorra
um certo tensionamento entre os Poderes do Estado: de um lado, textos constitucionais forjados na tradição do segundo pós-guerra estipulando e apontando a necessidade da realização dos direitos fundamentais-sociais; de outro, a difícil convivência entre os Poderes do Estado, eleitos (Executivo e Legislativo) por maiorias
nem sempre concordantes com os ditames constitucionais. Daí o questionamento
– constante - da legitimidade de o Poder Judiciário (justiça constitucional) deter o
poder de desconstituir atos normativos do Poder Executivo ou declarar a inconstitucionalidade de leis votadas pelo parlamento eleito democraticamente pelo povo.
Esse tensiosamento assume contornos mais graves quando o sistema se depara com decisões do Poder Judiciário (brasileiro) tidas como “invasoras de sub-sistemas” ou epitetadas como típicas decisões que “judicializam a política”, como é o
caso de sentenças emanadas pelos juízes e tribunais brasileiros17 determinando a inclusão/criação de vagas em escolas públicas, fornecimento de remédios com fundamento no art. 196 da Constituição, a extensão, com base no princípio da isonomia,
de benefícios a categorias de trabalhadores não contempladas em ato normativo, o
problema das ocupações de terras improdutivas por movimentos sociais que cla14 Não há dúvidas, pois, que esse novo modelo de justiça constitucional – o modelo de tribunais ad hoc introduzido stricto sensu a partir da Áustria e reafirmado nas Constituições da Itália, Alemanha, Portugal e Espanha, para
falar apenas nas principais –, deixa marcas indeléveis no constitucionalismo contemporâneo. A doutrina alemã, especialmente ela, em grande medida baseada no estudo da Lei Fundamental e da atuação do Bundesverfassungsgericht, influenciou todo o pensamento constitucional, mormente no que se relaciona ao estudo da eficácia dos direitos fundamentais e dos mecanismos interpretativos que sustenta(va)m as teses advindas da idéia de força normativa do texto constitucional e seu caráter dirigente (dirigierende Verfassung).
15 Cfe. Garcia Herrera, Miguel Angel. Prólogo a la segunda edición del Manual de Derecho Constitucional. Benda,
Maihofer, Vogel, Hesse, Heide. Madrid, Marcial Pons, 2001.
16 Talvez por isto alguns autores aduzem ser el Tribunal Constitucional el protector último de los derechos fundamentales. Nesse sentido, Juan Antonio Doncel Luengo, in: El modelo español de justicia constitucional. Las decisiones más
importantes del tribunal constitucional. Sub judice, janeiro/junho, 20/21. Coimbra, Docjuris, 2001, pp. 79 e segs.
17 Tais decisões - que nem de longe constituem a regra - são encontráveis na justiça de primeiro grau e em alguns
órgãos fracionários de Tribunais Estaduais. A posição do Tribunais Superiores tem sido refratária a essas “invasões
de subsistemas”.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
81
mam pelo cumprimento do dispositivo constitucional que estabelece a função social da propriedade, só para citar alguns exemplos.
Esse debate parece interminável. Afinal, ainda é possível falar em Constituição
compromissória? Pode um texto constitucional “determinar” o agir político-estatal?
Ainda é possível sustentar que a Constituição especifica “o que fazer” e o governo18
– lato sensu – estabelece o “como fazer”? A vontade geral popular, representada por
maiorias eventuais, pode alterar substancialmente o conteúdo da Constituição, naquilo que é o seu núcleo político? Ainda é possível falar em soberania dos Estados?
Quais os limites do “constituir” da Constituição?
Muito embora a notória complexidade do problema, entendo ser possível estabelecer as bases mínimas para a sua compreensão. Com efeito, parto da convicção
de que a Constituição, além de ser o elo conteudístico que une “política e direito”
em um determinado Estado, é também um (eficiente) remédio contra maiorias. E
ao se constituir em remédio contra maiorias (eventuais ou não), tem-se que a
Constituição traz ínsito um núcleo político que somente pode ser extirpado/solapado a partir de uma ruptura institucional.
Esta é a regra do jogo democrático e o custo que representa viver sob a égide
do Estado Democrático de Direito. E é dessa intrincada engenharia política que exsurge um novo papel para o Direito e, por conseqüência, para a Constituição.
2.
O DIRIGISMO CONSTITUCIONAL E O DEBATE ENTRE AS TEORIAS
PROCESSUAIS E MATERIAIS-SUBSTANCIAIS DA CONSTITUIÇÃO
Embora não apareçam explicitamente no cotidiano das discussões e das práticas dos operadores do direito, os dois eixos analíticos que perfazem o ideário acerca do papel da Constituição e da jurisdição constitucional podem ser muito bem
identificados: de um lado, as teorias processuais que consideram a Constituição um
simples instrumento de governo, que (apenas) define e regula os procedimentos
políticos e administrativos, e, de outro, as teorias baseadas na materialidade substantiva da Constituição, para as quais o procedimento (processo) deve (sempre)
completar-se com uma teoria dos direitos e valores substantivos.
18 Veja-se, nesse sentido, o dizer de Eros Grau, para quem a Constituição do Brasil não é um mero “instrumento
de governo”, enunciador de competências e regular de processos, mas, além disso, enuncia diretrizes, fins e programas a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Não compreende tão somente um “estatuto jurídico do
político”, mas um “plano global normativo” da sociedade e, por isso mesmo, do Estado brasileiro. Daí ser ela a Constituição do Brasil e não apenas a Constituição da República Federativa do Brasil. Os fundamentos e os fins definidos em seus artigos 1º e 3º. São os fundamentos e os fins da sociedade brasileira. Outra questão, diversa dessa, é a
relativa a sua eficácia jurídica e social e a sua aplicabilidade. De tal modo, o legislador está vinculado pelos seus preceitos, ainda que sob distintas intensidades vinculativas, conforme anotava Canotilho já na primeira edição de sua
tese, ao cogitar genericamente dessa questão. Cfe. Grau, Eros Roberto. Canotilho e a Constituição Dirigente. Jacinto N.M. Coutinho (org). Rio de Janeiro, Renovar, 2003.
82
faculdade de direito de bauru
Habermas19 possivelmente tenha elaborado a mais sofisticada tese na defesa
da teoria procedimentalista. Com efeito, critica com veemência a invasão da política
e da sociedade pelo Direito. O paradigma procedimentalista pretende ultrapassar a
oposição entre os paradigmas liberal/formal/burguês e o do Estado Social de Direito, utilizando-se, para tanto, da interpretação da distinção entre política e direito à
luz da teoria do discurso. Parte da idéia de que os sistemas jurídicos surgidos no final do século XX, nas democracias de massas dos Estados Sociais, denotam uma
compreensão procedimentalista do Direito. Assim, no Estado Democrático de Direito, muito embora Habermas reconheça a importância da tarefa política da legislação,
como crivo de universalidade enquanto aceitabilidade generalizada por que tem que
passar as normas a serem genérica e abstratamente adotadas, vê no Judiciário o centro do sistema jurídico, mediante a distinção entre discursos de justificação e discursos de aplicação através da qual releva ao máximo o postulado de Ronald Dworkin
da exigência de imparcialidade não só do executivo, mas, sobretudo, do juiz na aplicação e definição cotidiana do Direito.
Faz severas críticas à leitura substancialista que Alexy faz do modelo construtivo do Direito de Dworkin e, embora a partir de outras bases, na esteira de E. W.
Böckenförd, àquilo que denomina de gigantismo ou politização do judiciário, surgido no segundo pós-guerra.20 A existência de tribunais constitucionais não é auto-evidente para Habermas. E, mesmo onde eles existem – e ele se restringe à Alemanha
e aos Estados Unidos – há controvérsias sobre o seu lugar na estrutura de competências da ordem constitucional e sobre a legitimidade de suas decisões. Critica, assim, a idéia de concretização dos valores materiais constitucionais, aludindo que,
“ao deixar-se conduzir pela idéia da realização de valores materiais, dados preliminarmente no direito constitucional, o tribunal constitucional transforma-se numa
instância autoritária”. A invasão da esfera de competência dos tribunais, mediante
concretizações materiais de valores, desestimula o agir orientado para fins cívicos,
tornando-se o juiz e a lei as derradeiras referências de esperança para indivíduos isolados.21 Mais ainda, Habermas faz uma crítica à juridificação própria do modelo do
Estado Social, chamando-a de “colonização do mundo da vida”.22
Em face disso, Habermas propõe um modelo de democracia constitucional
que não tem como condição prévia fundamentar-se nem em valores compartilhados, nem em conteúdos substantivos, mas em procedimentos que asseguram a formação democrática da opinião e da vontade e que exige uma identidade políti-
19 Consultar, para tanto, Habermas, Jürgen. Direito e democracia - entre facticidade e validade, I e II. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, especialmente p. 297 e segs. (I) e 170 e segs. (II)
20 Cfe. Habermas, Direito e Democracia – entre faticidade e validade. I, op.cit., em especial, p. 245 e segs..
21 Idem, ibidem.
22 Ver, nesse sentido, a percuciente análise de Neves, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo, USP, 1997, p. 142, 275 e 276.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
83
ca não mais ancorada em uma “nação de cultura”, mas, sim, em uma “nação de
cidadãos”. Por isto é que o mestre alemão vai criticar a assim denominada “jurisprudência de valores” adotada pelas cortes européias, especialmente a alemã, isto porque uma interpretação constitucional orientada por valores que opta pelo sentido
teleológico das normas e princípios constitucionais, ignorando o caráter vinculante
do sistema de direitos constitucionalmente assegurados, desconhece, na opinião de
Habermas, não apenas o pluralismo das democracias contemporâneas, mas fundamentalmente a lógica do poder econômico e do poder administrativo. A concepção
de comunidade ética de valores compartilhados, que justifica o modelo hermenêutico proposto pelos comunitários (ou substancialistas),23 parece desconhecer as relações de poder assimétricas inscritas nas democracias contemporâneas.24 Com relação à função da justiça constitucional, Habermas sustenta que o Tribunal Constitucional deve ficar limitado à tarefa de compreensão procedimental da Constituição, isto é, limitando-se a proteger um processo de criação democrática do Direito. Para ele, o Tribunal Constitucional não deve ser um guardião de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais. Deve, sim, zelar pela garantia de que a cidadania disponha de meios para estabelecer um entendimento sobre a natureza dos
seus problemas e a forma de sua solução.25
No mesmo diapasão,26 Antoine Garapon faz duras críticas à invasão da sociedade pelo judiciário, o que, segundo ele, serviria para o enfraquecimento da democracia representativa.27 Também J.H. Ely compartilha do paradigma procedimentalista, sustentando que o tribunal constitucional só pode conservar sua imparcialidade
se resistir à tentação de preencher seu espaço de interpretação com juízos de valores morais. Discorda, assim, não apenas da jurisprudência de valores, como também
de uma interpretação dirigida por princípios, no sentido da interpretação construtiva de Dworkin.28
Ainda uma palavra acerca do tema: no fundo, as teorias processuais procuram
colocar no procedimento o modo (ideal) de operar a democracia, a partir de uma
universalização aplicativa. Com isto, o procedimento acaba sendo uma espécie de
23 Cfe. Habermas, Direito e Democracia I, op. cit.
24 Cfe. Habermas, Jürgen. Direito e Democracia II, op. cit., p. 170 e segs.; idem, Más Allá del Estado Nacional. Madrid, Ed. Trotta, 1997, p. 99 e segs.; tb. Citadino, op. cit., p.212; Vianna et al, op. cit.
25 Cfe. Habermas, Direito e Democracia I, p. 297 e segs. e II, p. 170 e segs.; tb. Más Allá Del Estado Nacional, op.
cit., p. 99 e segs.
26 Para uma crítica aos valores substantivos e ao ativismo judicial, ver Starck, Christian. La legitimité de la justice
constitutionnelle et le principe democratique de majorité. In: Legitimidade e legitimação da justiça constitucional.
Coimbra, Coimbra Editores, 1995, p. 59 e segs.
27 Idem, ibidem; tb. Garapón, Antoine. Le Gardien de Promesses. Paris, Odile Jacob, 1996; especialmente Vianna,
et al, op. cit.
28 Cfe. Habermas, Direito e Democracia, op. cit., p. 328. Tb. Ely, J. H. Democracy and Distrust. A theory of Judicial
Review. Cambridge/Mass, 1980, p.133.
84
faculdade de direito de bauru
“novo princípio epocal”, na tentativa de superar aquilo que na fenomenologia hermenêutica podemos denominar de “diferença ontológica”, afastando qualquer possibilidade de intervenção substantiva-subjetiva, uma vez que calca o “resultado” final
nos “valores adjetivos”. Afinal, como afirma Luhmann, nas sociedades complexas a
natureza das decisões deve ceder lugar aos procedimentos, que generalizam o reconhecimento das decisões; os procedimentos (processo legislativo e o próprio processo judicial) tornam-se a garantia de decisões que terão aceitabilidade.
Como contraponto às teorias processuais da Constituição, há um elenco considerável de juristas – e no Brasil essa problemática se torna mais visível, em face da
notória inefetividade da Constituição e da omissão dos poderes legislativo e executivo na execução de políticas públicas -,29 que apostam na possibilidade e na necessidade de realização dos direitos substantivos previstos nos textos constitucionais,
discordando, assim, dos obstáculos teóricos contrapostos pelas teorias sistêmicoprocedimentais.
Embora se possa dizer que Dworkin30 é defensor de uma posição liberal-contratualista, em alguns pontos se aproxima de uma posição mais substantiva, na medida em que entende que a criação jurisprudencial do direito também encontraria
o seu fundamento na primazia da Constituição.31 Nesse sentido, veja-se a tese de
L.H. Tribe, um dos mais ferrenhos defensores dos valores substantivos constitucionais e destes enquanto guia do processo hermenêutico-constitucional. Faz, para
tanto, uma profunda crítica aos fundamentos das teorias dos valores adjetivos ou
procedimentalistas, para as quais Constituição somente garante o acesso aos mecanismos de participação democrática no sistema. Nesse sentido, afirma que o
procedimento deve completar-se com uma teoria dos direitos e valores substantivos. Parte do caráter tenazmente substantivo (stubbornly substantive character) da
maioria dos mandatos constitucionais mais importantes: a primeira emenda, a décima terceira (abolição da escravidão) ou a cláusula do devido processo legal são bons
exemplos disso. Por outro lado, também são substantivos o significado e o propósi-
29 Para os objetivos desta abordagem, importa lembrar que, em termos de doutrina brasileira, Paulo Bonavides –
e cito-o por todos os demais juristas de terra brasilis que, em maior ou menor escala, defendem a mesma tese justifica a tese substancialista, admitindo, por motivos pragmáticos, a judicialização da política – se assim se quiser
denominar o fenômeno da concretização de direitos fundamentais-sociais pela via judicial - em países em que haja
um acentuado grau de inefetividade da Constituição (é o típico caso do Brasil). Cfe. Bonavides, Paulo. A Constituição Aberta. Belo Horizonte, Livraria Del Rey, 1993, p. 9-10; também ver Siqueira Castro, Carlos Roberto de. A Constituição Aberta e Atualidades dos Direitos Fundamentais do Homem. Rio de Janeiro, UERJ, mimeo, 1995, p. 20-21.
30 À evidência, as teses dworkianas, em determinados aspectos, não podem escapar às necessárias críticas. Assim,
a delegação em favor do juiz para apoiar-se em si mesmo, a partir de uma espécie de privilégio cognitivo, enfim, a
idéia do juiz Hércules, bem como a tese de que sempre há uma única decisão correta não se coadunam com o pensamento pós-metafísico, isto é, com a viragem lingüística.
31 Consultar Cappelletti, Mauro. Juizes Legisladores? Porto Alegre, Fabris, 1988; Dworkin, Ronald. L’empire du Droit.
Paris, PUF, 1994; idem Taking Rights Seriously. Cambridge, Harvard University Press, 1977; Vianna et al, op. cit.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
85
to das normas que regulam os procedimentos de participação. Certamente, diz Tribe, decidir que classe de participação demanda a Constituição requer uma teoria dos valores e dos direitos plenamente substantiva. Assim, os direitos ao procedimento do devido processo têm em sua base a dignidade pessoal (ser ouvido é parte do que significa ser pessoa); do mesmo modo, a questão de “quem vota” ou a regra “um homem, um voto” possuem caráter substantivo. As teorias procedimentalistas não parecem apreciar que o processo é algo em si mesmo valioso; porém,
dizer que o processo é em si mesmo valioso é afirmar que a Constituição é inevitavelmente substantiva. 32
Mais ainda, Tribe vai dizer que a proteção das minorias isoladas e sem voz, excluídas do processo de participação política, possuem também um fundamento
substantivo: a legislação que discrimina a qualquer categoria de pessoas deve ser rechaçada com base em uma idéia sobre o que significa ser pessoa, e a própria idéia
de segregação dos negros ou mulheres somente pode ser rechaçada encontrando
uma base constitucional para afirmar que, em nossa sociedade, tais idéias estão
substantivamente fora do lugar. Em síntese, para Tribe, circunscrever a interpretação
constitucional à idéia de abertura política supõe um círculo fechado. Por isso, as teorias defensoras da Constituição como processo (como garantia de abertura e de
participação) supõem um empobrecimento do papel da teoria constitucional: a
Constituição pareceria estar dirigida somente aos juizes, porém não aos cidadãos
nem aos representantes, em face de sua incapacidade para informar no conteúdo
do debate, discussão e decisão política.33
Em síntese, 34 parcela considerável dos defensores das teses substancialistas35 entende que, mais do que equilibrar e harmonizar os demais poderes, o judiciário (justiça constitucional) deveria assumir o papel de um intérprete que põe em evidência, inclusive contra maiorias eventuais, a vontade geral implícita no direito positivo, especialmente nos textos constitucionais, e nos princípios selecionados como de valor perma32 Consultar Tribe, L. H. The Puzzling Persistence of Process-Based Constitutional Theories, in The Yale Law Journal, vol. 89, 1073, 1980, p. 1065 e segs.; Ibidem, American Constitutional Law. The Foundation Press, Mineola, New
York, 2a. ed., 1988; Ibidem Taking Text and Structure Seriously: reflection on free-form method in constitutional interpretation, In Harvard Law Review, vol. 108, n. 6, 1995. Conferir, também, Diaz Revorio, Francisco Javier. La constituición como orden abierto. Madrid, Estudios Ciencias Jurídicas, 1997.op. cit., p. 161 e segs.
33 Idem, ibidem.
34 Ver, também , Perry, M.J. The Constitution, the Courts and Human Rights. An Inquiry into the Legitimacy of
Constitutional Policymaking by the Judiciary. Yale University Press, New Haven and London, 1982; tb. Wellington, in
Common Law Rules and Constitutional Double Standards: Some Notes on Adjudication. The Yale Law Journal, vol.
83, n. 2, dezembro de 1973.
35 A toda evidencia, não se pode confundir a defesa das teses substancialistas com a adesão a uma espécie de “ativismo judicial”. Ao contrário, autores como Bercovici (op.cit) defendem ferrenhamente as teorias materiais da
Constituição, colocando, porém, uma profunda desconfiança em relação ao Poder Judiciário. Na mesma linha, Martonio Barreto Lima, in Justiça Constitucional e Democracia: Perspectivas para o Papel do Poder Judiciário. Revista
da Procuradoria-Geral da República n. 8. São Paulo, RT, jan/jun de 1996.
86
faculdade de direito de bauru
nente na sua cultura de origem e na do Ocidente.36 Coloca em xeque, pois, o princípio
da maioria, em favor da maioria fundante e constituinte da comunidade política.
Em outras palavras, isto significa dizer que, em terra brasilis, trata-se de acreditar, ainda, no caráter dirigente-compromissório da Constituição. Conseqüentemente, é inexorável que, com a positivação dos direitos sociais-fundamentais, o poder judiciário (e, em especial, a justiça constitucional) passe a ter um papel de considerável relevância, mormente no que pertine à jurisdição constitucional.
As posturas que, de um modo ou de outro, trabalham com essa perspectiva,
partem da tese de que a função da jurisdição constitucional deve fazer prevalecer a
Constituição contra as maiorias eventuais. Ou seja, a existência de um contramajoritarismo é condição de possibilidade para a efetivação dos valores substantivos previstos
na Constituição, funcionando, assim, essa regra, como uma garantia contra o enfraquecimento do núcleo político essencial que aponta para a construção de um Estado
Social (art. 3o. da CF). É essa tensão entre política e direito que inexoravelmente desaguará na discussão do papel a ser desempenhado pela jurisdição constitucional.
Torna-se claro, portanto, que as teorias materiais da Constituição reforçam a
Constituição como norma (força normativa), ao evidenciarem o seu conteúdo compromissório a partir da concepção dos direitos fundamentais-sociais como valores a
serem concretizados, o que, a toda evidência – e não há como escapar desta discussão - , trás à baila a questão da legitimidade do poder judiciário (ou da justiça constitucional) para, no limite, isto é, na inércia injustificável dos demais poderes, implementar essa missão. Surgem, nesta altura, inúmeras críticas ao “perigo” que representa um certo grau de “ativismo judicial” e da “invasão de subsistemas”, a ponto de
autores como Estevez Araújo afirmarem que esta – a problemática decorrente da
(i)legitimidade da justiça constitucional – seria a razão do déficit de legitimidade
resultante das concepções materiais da Constituição, propondo, como contraponto, a procedimentalização da Constituição, que passaria a prever apenas os procedimentos que estabeleçam os meios e as garantias para a adoção de decisões coletivas. Essa tese mereceu a crítica mordaz e implacável de Bercovici: “Estevez Araújo,
portanto, atribui à teoria material da Constituição a responsabilidade pelos problemas de legitimação do controle de constitucionalidade. E, neste sentido, ele tem razão. Afinal,uma teoria procedimental da Constituição não tem qualquer preocupação com a legitimidade democrática do controle de constitucionalidade, satisfazendo-se com o mero cumprimento dos procedimentos previstos.” 37
Vê-se, assim, que um dos grandes problemas na contraposição destes dois eixos temáticos reside no fato de que alguns autores, ao sobrevalorizarem o procedimento, elevando-o a condição de princípio (epocal) fundante da democracia, dei36 Cfe. Vianna, op. cit.
37 Cfe. Bercovici, op.cit., p. 278, e Estevéz Araújo, José Antonio. La Constituición como Proceso y la Desobediencia
Civil. Madrid, Trota, pp. 139-143
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
87
xam de dar a devida importância aos valores substantivos, que se constituíram no
grande leit motiv da revolução copernicana que atravessou o constitucionalismo
após a segunda grande guerra. Por isto, Bercovici38 vai chamar a atenção para o fato
de que “a Constituição possui, também, e não exclusivamente, como querem alguns
autores, a natureza de uma lei processual para a realização de seus princípios. O processo, assim, torna-se um instrumento para a efetivação da Constituição. Entender
a Constituição também enquanto processo significa que a ordem constitucional não
é uma ordem totalmente estabelecida, mas que vai sendo criada, por meio da relação entre a Constituição material e os procedimentos de interpretação e concretização. O interesse despertado pelas teorias procedimentais, todavia, deve despertar
cautela. As teorias procedimentais, segundo Alexy, caracterizam-se pela plasticidade, ou seja, nelas cabe tudo. Embora deva-se reconhecer a importância do procedimento na concretização constitucional, a adoção de uma teoria procedimental não
será a solução para todos os problemas constitucionais.”
Nesta altura, não é difícil sustentar que a defesa de um substancialismo material-constitucional não prescinde – e não pretende prescindir – do papel fundamental que deve ser exercido pelo procedimento. Na verdade, o problema é exatamente o oposto, ou seja, o problema está na pretensão de autonomização das teorias
processuais. Ora – e o alerta vem em boa hora formulado por José Adércio Leite
Sampaio-, a Constituição não pode ser meramente procedimental a dispor sobre as
regras de formação da vontade política exclusivamente. Entretanto, aduz, também
não pode ser uma ordem dura de valores. É, sim, uma simbiose que assume as formas jurídicas e se limita às suas contingências, ao seu tempo e ao seu povo. A Constituição é uma obra inacabada e que tende a se rebelar contra seus criadores. A tarefa do jurista é pôr em marcha essa tendência dispersiva do texto sem permitir que
se esvaia o sentido de norma ou que se destrua a engenharia original dos fundadores. É tentar domar o mito e decodifica-lo juridicamente. E é nesse contexto que
deve ser analisada a jurisdição constitucional.39
Assim, enquanto o paradigma procedimental sustentado pelas mais variadas
correntes de pensamento (Habermas, Garapon, Ely, Estevez, Ferreira Filho, Luhmann, Starck, para citar apenas alguns de seus defensores) pretende apenas assegurar as condições necessárias, a partir das quais os membros de uma comunidade jurídica, por meios de prática comunicativas de autodeterminação, interpretam e concretizam os ideais inscritos na Constituição,40 onde a função da Corte Constitucional, originária ou não do Poder Judiciário, seria a de (somente) zelar
pelo respeito aos procedimentos democráticos para a formação da opinião e da
vontade política, a partir da própria cidadania, e não a de se arrogar o papel de
38 Idem, ibidem.
39 Cfe. Leite Sampaio, José Adércio. A Constituição reiventada. Belo Horizonte, Del Rey, 2002, p. 19.
40 Cfe. Habermas, Más Allá, op. cit., p.99.
88
faculdade de direito de bauru
legislador político,41 não devendo, portanto, a Corte Constitucional transformar-se
em guardiã de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais, reservando-se a intervenção do Judiciário apenas para facultar aos excluídos da participação o acesso direto aos ‘poderes políticos’”,42 a realidade de países de modernidade tardia - como é o caso específico do Brasil - aponta exatamente na direção
contrária, sendo despiciendo elencar, aqui, o grau e a dimensão da inefetividade da Constituição.
Tais fatores – entre tantos outros que poderiam ser aqui assinalados – denotam a fragilidade e um certo grau de utopia nas teses procedimentalistas, as quais,
por sua especificidade formal, longe estão de estabelecer as condições de possibilidade para a elaboração de um projeto apto à construção de uma concepção
substancial de democracia, onde a primazia (ainda) é a de proceder à inclusão social (afinal, existem mais de trinta milhões de pessoas vivendo na miséria, ao mesmo tempo em que a Constituição estabelece que o Brasil é uma República que visa
erradicar a miséria e a desigualdade...) e o resgate das promessas da modernidade,
exsurgente da refundação da sociedade proveniente do processo constituinte.
É por isto que entendo que o órgão encarregado de realizar a jurisdição constitucional deve ter uma nova inserção no âmbito das relações dos poderes de Estado, levando-o a transcender as funções de cheks and balances, mediante uma
atuação que leve em conta a perspectiva de que os valores constitucionais têm
precedência mesmo contra textos legislativos produzidos por maiorias43 parlamentares (que, a toda evidência, também devem obediência à Constituição) . Assim,
é absolutamente correta a tese de Freeman,44 que entende a Constituição como um
instrumento da soberania democrática que não se limita a definir procedimentos para elaborar e aplicar as leis, mas organiza e qualifica estes procedimentos
ordinários por forma a evitar a usurpação da soberania popular por parte de
instituições públicas ou privadas.
3.
AS ESPECIFICIDADES DO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO: A
NECESSIDADE DE UMA TEORIA DA CONSTITUIÇÃO (DIRIGENTE)
ADEQUADA A PAÍSES DE MODERNIDADE TARDIA
O problema das teorias gerais, longe de trazer soluções para o estudo dos diversos campos do Direito, acarreta problemas de natureza nitidamente metafísica.
41 Idem, ibidem.
42 Idem, ibidem.
43 Ver, nesse sentido, Tribe, Laurence. The puzzling persistence of process-based theories. Yale Law Journal, 1980,
p. 896.
44 Cfe. Freeman, Samuel. Original Meaning, Democratic Interpretation and the Constitution, In Philosophy & Public Affairs, vol. 21, n. 1, 1992, p. 13.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
89
Com efeito, a tentativa de construir instrumentos epistêmicos e metodológicos para
assegurar as condições para a conceituação de institutos jurídicos desborda de um
olhar conduzido pela fenomenologia hermenêutica. Assim, as teorias gerais não
conseguem superar o problema (metafísico) da universalização conceitual, transformando os vetores que deve(ria)m conduzir as análises dos diversos institutos jurídicos em meras categorias, espécie de significantes primordiais-fundantes, que passam a servir de topos dedutivo para o “encaixe” das diversas “singularidades”.
As teorias gerais, assim, escondem as singularidades, enfim, as especificidades
de cada disciplina ou instituto. Afinal, há apenas um constitucionalismo ou existem
vários constitucionalismos? Uma teoria geral do processo pode abarcar, por exemplo, as inúmeras peculiaridades do processo civil e do processo penal?45 Uma teoria
geral da Constituição consegue traduzir as especificidades da problemática relacionada às teorias materiais da Constituições a partir da análise de realidades nacionais
tão distintas como, por exemplo, a brasileira e a alemã? Autores como Böckenförde,
Hesse e Canotilho, para citar apenas estes, já de há muito apontam para a existência de vários constitucionalismos e a necessidade de que a definição de uma teoria da Constituição não prescinda da inserção da própria Constituição na realidade
história de cada país.
Daí que a elaboração ou a adoção de uma Teoria da Constituição não significa – e a lição vem de Bercovici - a possibilidade de utilização de qualquer concepção de Constituição - e, acrescento, dos pressupostos abstratos e generalizantes
exsurgentes de uma espécie de Verfassungsgrundtheorie que funcionasse como
“fundamento de validade” de todas as Constituições. Se pudesse ser escolhido
qualquer modelo constitucional, aduz o professor paulista, a Constituição não passaria de um texto formal que admite interpretações totalmente diversas, inclusive
contra seus dispositivos. O que se necessita é de uma Teoria da Constituição vinculante, que não seja fruto de interpretações meramente subjetivas ou de condições
políticas conjunturais. Deste modo, só será possível como Teoria da Constituição
aquela que está implícita ou explicitamente contida na Constituição positiva, orientada através de métodos racionais. Esta é a Teoria da Constituição constitucionalmente adequada (verfassungsgemässen Verfassungstheorie). A definição de uma
Teoria da Constituição deve ser obtida a partir de sua inserção e função na realidade histórica, cujo ponto de partida é a própria Constituição, suas decisões e princípios fundamentais. 46
45 Veja-se a resposta negativa que, de forma percuciente, Jacinto Nelson Miranda Coutinho dá a essa indagação em Crítica à Teoria Geral do Direito processual Penal. Rio de Janeiro, Renovar, 2001.
46 Cfe. Bercovici, op.cit., p. 272. Veja-se, por exemplo, que o próprio “dirigismo da Constituição” (a tese original é de
Peter Lerche - dirigierende Verfassung), nitidamente presente nos textos das Constituições compromissárias portuguesa e brasileira, deve ser analisado de acordo com as especificidades e realidades de cada país. Com efeito, não se pode
olvidar que a tese da Constituição dirigente e compromissária, originariamente, dizia respeito à Constituição portugue-
90
faculdade de direito de bauru
Por isto – insisto - para uma melhor compreensão da problemática relacionada à sobrevivência ou a morte da assim denominada Constituição dirigente, é necessário que se entenda a teoria da Constituição enquanto uma teoria que resguarde
as especificidades histórico-factuais de cada Estado nacional. Desse modo, a teoria da Constituição deve conter um núcleo (básico) que albergue as conquistas civilizatórias próprias do Estado Democrático (e Social) de Direito, assentado, como
já se viu à saciedade, no binômio democracia e direitos humanos-fundamentais-sociais.47 Esse núcleo derivado do Estado Democrático de Direito faz parte, hoje, de
um núcleo básico geral-universal que comporta elementos que poderiam confortar
uma teoria geral da Constituição e do constitucionalismo do Ocidente. Já os demais
substratos constitucionais aptos a confortar uma teoria da Constituição derivam
das especificidades regionais e da identidade nacional de cada Estado.
Dito de outro modo, afora o núcleo básico que conformou historicamente as
Constituições, presente nos textos magnos dos países que adotaram formas democrático-constitucionais de governo, existe um núcleo específico de cada Constituição, que, inexoravelmente, será diferenciado de Estado para Estado. Refiro-me ao
que se pode denominar de núcleo de direitos sociais-fundamentais plasmados em
cada texto que atendam ao cumprimento das promessas da modernidade. O preenchimento do déficit resultante do histórico descumprimento das promessas da modernidade pode ser considerado, no plano de uma teoria da Constituição constitucionalmente adequada (verfassungsgemässen Verfassungstheorie (para usar as palavras de Böckenförde)48 a países periféricos ou, mais especificamente, de uma Teoria da Constituição Dirigente Adequada aos Países de Modernidade Tardia
(TCDAPMT), como conteúdo compromissório mínimo a constar no texto constitucional, bem como os correspondentes mecanismos de acesso à jurisdição constitucional e de participação democrática.
sa, que tinha um texto de caráter revolucionário, na medida em que até mesmo especificava a transformação do modo
de produção rumo ao socialismo. As sucessivas revisões constitucionais em Portugal acabaram por retirar esse caráter
revolucionário do Texto Maior português, ocorrendo aquilo que foi chamado por Vital Moreira de “normalização constitucional”. Já a Constituição brasileira ficou distante dessa veia revolucionária que estava explícita na Constituição de
Portugal. Com efeito, enquanto aquela claramente apontava para a transformação do modo de produção do Estado português, esta – embora isso significasse um expressivo avanço – limitou-se a apontar para a transformação do modelo
de Estado (Estado Democrático de Direito), restringindo-se, no plano econômico, a estabelecer as bases (núcleo político) de um Estado Social (Welfare State). Em síntese, a Constituição brasileira não contém, ao contrário do que continha na sua origem a portuguesa, uma função normativo-revolucionária. Esse ponto, aliás, é de fundamental importância para a compreensão e contextualização da tese exposta por Canotilho (ver Canotilho e a Constituição Dirigente, Rio
de Janeiro, Renovar, 2002) acerca dos novos contornos da noção de Constituição dirigente.
47 Ver, para tanto, Morais, José Luis Bolzan de. Do Direito Social aos Interesses Transindividuais. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1996.
48 Cfe. Böckenförd, Ernst-Wolfgang. Die Methoden der Verfassungsinterpretation – Bestandsaufnahme und Kritik,
in Staat, Verfassung, Democratie: Studien zur Verfassungstheorie und zum Verfassungsrecht. 2a. Ed. Frankfurt am
Main, Suhrkamp, 1992.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
91
Uma Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade
Tardia, que também pode ser entendida como uma teoria da Constituinte dirigente
adequada a países periféricos, deve tratar, assim, da construção das condições de possibilidade para o resgate das promessas da modernidade incumpridas, as quais,
como se sabe, colocam em xeque os dois pilares (democracia e concretização dos direitos fundamentais-sociais) que sustentam o próprio Estado Democrático de Direito.
À toda evidência, a tese de uma TCDAPMT implica uma interligação com uma
teoria do Estado, visando à construção de um espaço público, apto a implementar a
Constituição em sua materialidade. Dito de outro modo, uma tal teoria da Constituição (dirigente) não prescinde da teoria do Estado, apta a explicitar as condições de
possibilidade da implantação das políticas de desenvolvimento constantes – de forma dirigente e vinculativa – no texto da Constituição. Não se deve olvidar que Estado e Constituição estão umbilicalmente ligados.
Parece evidente, assim, que, quando se fala em Constituição dirigente, não se
está – e nem se poderia – sustentar um normativismo constitucional (revolucionário ou não) capaz de, por si só, operar transformações emancipatórias. O que permanece da noção de Constituição dirigente é a vinculação do legislador aos ditames da materialidade da Constituição, pela exata razão de que, nesse contexto, o
Direito continua a ser um instrumento de implementação de políticas públicas.
Por isso, é possível afirmar a continuidade da validade da tese da Constituição dirigente (uma vez adequada a cada país, com ênfase em países como o Brasil, em que o coeficiente de promessas da modernidade incumpridas é extremamente elevado). É necessário levar em conta, assim, as especificidades decorrentes de
uma teoria da Constituição, e não de uma teoria geral da Constituição ou do
constitucionalismo. Veja-se que a própria questão relacionada ao papel dos tratados
internacionais adquire foros diferenciados, se devidamente contextualizada, uma
vez que, por exemplo, nem de longe é possível comparar o papel da União Européia, suas diretivas e a força normativa destas no seio de cada país componente,
com o pífio e insipiente Mercosul. 49
Por outro lado, chamo a atenção para o fato de que a defesa do cumprimento do texto constitucional, mormente naquilo que ele tem de dirigente e compromissório, não significa defender a tese de um país autárquico. A globalização excludente e o neoliberalismo que tantas vítimas têm feito em países periféricos não
é a única alternativa possível. Ou seja, não se pode olvidar que, junto com a globalização, vêm os ventos neoliberais, assentados em desregulamentações, descons49 Aliás, quando Canotilho dá ênfase ao papel dos tratados, mostra exatamente sua preocupação com a questão européia, onde tal questão surge como um paradoxo: ao mesmo tempo em que, no velho continente, a tese da Constituição dirigente e o papel do Estado nacional perdem importância, o conjunto normativo comunitário da
União Européia assume cada vez mais foros de “dirigismo jurídico-político”, como se fosse uma superconstituição. Afinal, é de se perguntar: os textos constitucionais vinculam menos que o “legislador” supranacional?
92
faculdade de direito de bauru
titucionalizações e reflexividades. E tais desregulamentações – e suas derivações –
colocam-se exatamente no contraponto dos direitos sociais-fundamentais previstos na Constituição brasileira. Dito de outro modo, as políticas neoliberais são absolutamente antitéticas ao texto da Constituição brasileira. Não é difícil perceber
que, enquanto o neoliberalismo aponta para desregulamentação, a Constituição
brasileira nitidamente aponta para a construção de um Estado Social de índole
intervencionista, que deve pautar-se por políticas públicas distributivistas, questão que exsurge claramente da dicção do art. 3º do texto magno. Esse, aliás, é o
conceito-chave do Estado Social, cujo papel “é o de promover a integração da sociedade nacional, ou seja, “el proceso constantemente renovado de conversión de una
pluralidad en una unidad sin perjuicio de la capacidad de autodeterminación de las
partes’ (Manuel García-Pelayo). Integração esta que, no caso brasileiro, deve-se dar
tanto no nível social quanto no econômico, com a transformação das estruturas econômicas e sociais. Conforme podemos depreender de seus princípios fundamentais, que consagram fins sociais e econômicos em fins jurídicos, a Constituição de
1988 é voltada à transformação da realidade brasileira”.50
Desse modo, a noção de Constituição que se pretende preservar nesta quadra
da história é aquela que contenha uma força normativa capaz de assegurar esse
núcleo de modernidade tardia não cumprida. Esse núcleo consubstancia-se nos
fins do Estado estabelecidos no artigo 3º da Constituição. O atendimento a esses
fins sociais e econômicos é condição de possibilidade da própria inserção do Estado Nacional na seara da pós-modernidade globalizante. Quando, portanto – para estranheza e até surpresa de muitos constitucionalistas – continuo apostando em um
“dirigismo” constitucional, não estou a falar de um conceito desvinculado da contemporaneidade que cerca a noção de Estado Nacional e tampouco pretendo um
isolacionismo de cunho monádico-autárquico (ou, utilizando a expressão cunhada por Canotilho, um autismo nacionalista e patriótico).
Na verdade, o que propugno é que os mecanismos constitucionais postos à
disposição do cidadão e das instituições sejam utilizados, eficazmente, como instrumentos aptos a evitar que os poderes públicos disponham livremente da Constituição. A força normativa da Constituição não pode significar a opção pelo cumprimento ad hoc de dispositivos “menos significativos” da Lei Maior e o descumprimento sistemático daquilo que é mais importante – o seu núcleo essencial-fundamental. É o mínimo a exigir-se, pois!
Dito de outro modo, descumprir os dispositivos que consubstanciam o núcleo básico da Constituição, isto é, aqueles que estabelecem os fins do Estado (o que
implica trabalhar com a noção de “meios” aptos para a consecução dos fins), significa solapar o próprio contrato social (do qual a Constituição é o elo conteudístico
50 Cfe. Bercovici, Gilberto. Constituição e superação das desigualdades regionais. In: Direito Constitucional – estudos em homenagem a Paulo Bonavides, op. cit, p. 96.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
93
que liga o político e o jurídico da sociedade). O texto constitucional, fruto desse
processo de repactuação social, não pode ser transformado em um latifúndio improdutivo.51 Não pode, pois, ser deslegitimado. Afinal, como bem assinala Friedrich
Müller, a função do direito constitucional, da legislação e da concretização da Constituição é exatamente a de manter a legitimidade do agrupamento político-estatal.
Não podemos esquecer, destarte, que a tradição (no sentido que lhe dá HansGeorg Gadamer) nos lega à noção de Estado Democrático de Direito, representada
pela idéia de que este se assenta em dois pilares: direitos fundamentais-sociais e democracia. Dito de outro modo, a Constituição programática-compromissória é condição de possibilidade para a garantia do cumprimento dos direitos sociais-fundamentais previstos no texto constitucional. Sem a garantia da possibilidade do resgate desses direitos, através de mecanismos de justiça constitucional, como proteger o cidadão, o grupo, a sociedade, das maiorias eventuais que teimam em descumprir o texto constitucional?
É por isso que a noção de Constituição programático-dirigente-compromissória, adaptada ao que aqui denomino de Teoria da Constituição Dirigente Adequada
a Países de Modernidade Tardia, ainda assume relevância como um contraponto
a essa tempestade globalizante/neoliberal. É, pois, o espaço de resistência a essa
espécie de barbárie econômica que tem como lugar cimeiro a lex mercatoria. Afinal, nunca é demais repetir que, em terra brasilis, o assim denominado Estado Social foi um simulacro. A força interventora do Estado serviu para exacerbar ainda
mais as discrepâncias sociais. Estou convicto de que ainda é possível sustentar que
um texto constitucional que aponta em direção da correção de tais anomalias não
pode ficar relegado a um plano secundário, mesmo em face das novas feições que
assume a economia mundial em face do fenômeno da globalização.
4.
O PAPEL DA HERMENÊUTICA NESSE (NECESSÁRIO) ROMPIMENTO PARADIGMÁTICO E O (NOVO) PAPEL DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAISSOCIAIS
Em Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia Marques conta que, em Macondo, o
mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las
51 Quero deixar claro que a defesa da força normativa da Constituição não significa alçar a Constituição à condição
de texto sagrado. Acrescento, ademais, que o texto constitucional também não pode ser compreendido “como”
(als) categoria ou hipótese, o que igualmente seria resvalar em direção à metafísica. Hermeneuticamente, todo texto é um texto aberto, que não passa incólume pelo rio da história.. Numa palavra, se os direitos sociais-fundamentais constituem a “essência” da Constituição, parece razoável afirmar que a idéia da programaticidade da Constituição deve ser mantida, pela simples razão de que, sem a perspectiva dirigente-compromissária, torna-se impossível realizar os direitos que fazem parte da essência da Constituição.
94
faculdade de direito de bauru
precisava-se apontar com o dedo. O Estado Democrático de Direito – e as Constituições que o institucionalizaram – também são muito recentes. Olhando a imensidão dos textos constitucionais, colhe-se a nítida impressão que algumas coisas ainda não têm nome; os juristas limitam-se – quando o fazem – a apontá-las com o
dedo... A falta de uma pré-compreensão impede o acontecer do sentido.52 Gadamer
sempre nos ensinou que a compreensão implica uma pré-compreensão que, por
sua vez, é pré-figurada por uma tradição determinada em que vive o intérprete e que
modela os seus pré-juízos. Desse modo, o intérprete do Direito falará o Direito e
do Direito a partir dos seus pré-juízos, enfim, de sua pré-compreensão.53 Essa précompreensão é produto da relação intersubjetiva (sujeito-sujeito) que o intérprete
tem no mundo. O intérprete não interpreta do alto de uma relação sujeito-objeto.
Estará, sim, sempre inserido em uma situação hermenêutica.
É preciso ter claro, desde logo, que diferentemente de outras disciplinas (ou
ciências), o Direito possui uma especificidade, que reside na relevante circunstância
de que a interpretação de um texto normativo – que sempre ex-surgirá como norma – depende de sua conformidade com um texto de validade superior. Trata-se da
Constituição, que, mais do que um texto que é condição de possibilidade hermenêutica de outro texto, é um fenômeno construído historicamente como produto
de um pacto constituinte, enquanto explicitação do contrato social. A tradição
nos lega vários sentidos de Constituição. Contemporaneamente, a evolução histórica do constitucionalismo no mundo (mormente no continente europeu) coloca-nos
à disposição a noção de Constituição enquanto detentora de uma força normativa,
pois é exatamente a partir da compreensão desse fenômeno que poderemos dar
sentido à relação Constituição-Estado-Sociedade. Mais do que isso, é do sentido que
temos de Constituição que dependerá o processo de interpretação dos textos normativos do sistema.
Destarte, uma “baixa compreensão” acerca do sentido da Constituição – naquilo que ela significa no âmbito do Estado Democrático de Direito – inexoravelmente acarretará uma “baixa aplicação”, com efetivo prejuízo para a concretização
dos direitos fundamentais-sociais. As condições de possibilidades para que o intérprete possa compreender um texto implicam (sempre e inexoravelmente) a existência de uma pré-compreensão (seus pré-juízos) acerca da totalidade (que a sua linguagem lhe possibilita) do sistema jurídico-político-social. Desse belvedere compreensivo, o intérprete formulará (inicialmente) seus juízos acerca do sentido do ordenamento. E sendo a Constituição o fundamento de validade de todo o sistema jurídico – e essa é a especificidade maior da ciência jurídica – , de sua interpretação/aplicação (adequada ou não) é que exsurgirá a sua (in)efetividade.
52 Permito-me remeter o leitor para o meu Hermenêutica Juridica E(m) Crise – Uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. 4ª ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003, mormente capítulos 10 e segs.
53 Cfe. Gadamer, Hans-Georg. Wahrheit und Method, I, II. Tübingen, Mohr, 1990.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
95
Calham, pois, aqui, as palavras de Konrad Hesse, para quem resulta de fundamental importância para a preservação e a consolidação da força normativa da Constituição a interpretação constitucional, a qual se encontra necessariamente submetida ao mandato de otimização do texto constitucional. Trata-se, pois, de problema
fundamentalmente hermenêutico.
Dito de um modo mais simples: se o intérprete possui uma baixa pré-compreensão, isto é, se o intérprete pouco ou quase nada sabe a respeito da Constituição (e, portanto, da importância da jurisdição constitucional, da teoria do Estado,
da função do Direito, etc), estará condenado à pobreza de raciocínio, ficando restrito ao manejo dos velhos métodos de interpretação e do cotejo de textos jurídicos no plano da (mera) infraconstitucionalidade (por isto, não raro juristas e tribunais continuam a interpretar a Constituição de acordo com os Códigos e não
os Códigos em conformidade com a Constituição!). Numa palavra: para este tipo de
jurista, vigência é igual a validade, isto é, para eles, texto e norma significam a mesma coisa.54
Não é difícil constatar, assim, que a análise da jurisdição constitucional deve
estar atravessada por essa perspectiva hermenêutica. Numa palavra: a inserção da
justiça constitucional no contexto da realização dos direitos fundamentais-sociais –
compreendida essa realização/concretização de forma subsidiária, na omissão dos
poderes encarregados para tal - deve levar em conta, necessariamente, o papel assumido pela Constituição no interior do novo paradigma instituído pelo Estado Democrático de Direito. Daí a necessidade de se admitir um certo grau de deslocamento da esfera de tensão em direção à justiça constitucional. Afinal de contas,
como muito bem assevera Ferrajoli, no Estado Democrático de Direito houve uma
alteração na relação entre a política e o Direito. Com efeito, o Direito já não está
subordinado à política como se dela fosse um mero instrumento, mas, sim, é a
política que se converte em instrumento de atuação do Direito, subordinada aos
vínculos a ela impostos pelos princípios constitucionais: vínculos negativos, como
os gerados pelos direitos às liberdades que não podem ser violados; vínculos positivos, como os gerados pelos direitos sociais, que devem ser satisfeitos.55
É evidente que a defesa de um certo grau de intervencionismo da justiça constitucional – que venho sustentando sem a menor ilusão de que existam apenas
“bons ativismos e bons ativistas” – implica o risco, e esta aguda crítica é feita por
Bercovici ,56 da ocorrência de decisões judiciais emanadas, principalmente pelo Su54 No plano da hermenêutica, a isto se chama de “entificação do ser”.
55 Cfe. Ferrajoli, Luigi. Jueces y politica. Derechos y Liberdades. In: Revista del Instituto Bartolomé de las Casas. Año
IV. Janeiro de 1999, n. 7. Madrid, Universidad Carlos III.
56 Esta é a diferença fundamental entre as teses aqui propostas e a de autores como Bercovici. Compartilho da desconfiança de Bercovici para com o Poder Judiciário, o que pode ser facilmente percebido pelas agudas críticas que
tenho lançado à atuação da justiça brasileira, afora as críticas à doutrina e ao ensino jurídico. Entretanto, en-
96
faculdade de direito de bauru
premo Tribunal Federal, contra a Constituição, com o conseqüentemente esvaziamento de seus valores substanciais, o que representa – ai sim – usurpação de poderes constituintes. De qualquer modo, sem tirar a razão da percuciente observação de Bercovici, tenho que o Tribunal Constitucional (no caso, o STF) sempre faz
política. E isto é inexorável. O que ocorre é que, em países de modernidade tardia
como o Brasil, na inércia/omissão dos poderes Legislativo e Executivo (mormente
no âmbito do direito à saúde, função social da propriedade, direito ao ensino fundamental, além do controle de constitucionalidade de privatizações irresponsáveis,
que contrariam frontalmente o núcleo político-essencial da Constituição), não se
pode abrir mão da intervenção da justiça constitucional na busca da concretização dos direitos constitucionais de várias dimensões.
Concordo que (sempre) corremos o risco de o Poder Judiciário solapar
o sentido da Constituição (de forma omissiva ou comissiva). Basta ver, para tanto –
repita-se – , a crise de paradigmas que atravessa a operacionalidade do Direito. Entretanto, em sendo a Constituição o elo conteudístico que liga a Política ao Direito,
o grau de dirigismo e da força normativa da Constituição dependerá – mormente
em países como o Brasil, onde maiorias de quatro em quatro anos intentam reformar a Constituição, como se a sua existência fosse um empecilho para os “bons projetos salvacionistas” dos governantes - não somente, mas também, da atuação da
sociedade civil, instando as instâncias judiciárias ao cumprimento da Constituição, mediante o uso dos diversos mecanismos institucionais (ações constitucionais, controle difuso e concentrado de constitucionalidade). E isto também implica
lutas políticas (basta ver o considerável número de ações constitucionais intentadas
por partidos políticos)
Ou seja, quando ainda defendo um certo grau de dirigismo da Constituição, refiro-me ao cumprimento dos preceitos e princípios ínsitos aos Direitos Fundamentais-Sociais e ao núcleo político do Estado Social imanente ao paradigma do
Estado Democrático de Direito estabelecido nos textos constitucionais do segundo
pós-guerra. Isto implica assumir a tese – e Andreas Krell57 aponta corretamente nestendo que as promessas da modernidade contidas no texto da Constituição não podem ficar à mercê de vontades
políticas ad hoc dos Poderes Legislativo e Executivo. Veja-se, para tanto, o que se passou – e principalmente o que
não se passou – nestes quinze anos de Constituição (compromissória e dirigente)... Direitos fundamentais-sociais
não estão à disposição dos Poderes Públicos. Ao negarem-se a concretizar os direitos constitucionais, tais poderes
solapam o papel dirigente e compromisssório da Constituição. Viola-se, assim, o pacto constituinte; viola-se as promessas que a nação fez a si mesma. Daí a necessidade - para evitar o solapamento do conteúdo mínimo do catálogo dos direitos-fundamentais-sociais (direitos prestacionais) - de se lançar mão da jurisdição constitucional
(Poder Judiciário), mesmo que esta não esteja respondendo adequadamente às demandas propostas. Mas, para
isto é que devemos apontar as baterias do discurso (crítico) acerca da relação Direito-Estado no Brasil: construir alternativas para a concretização dos direitos, inclusive através do Poder Judiciário...
57 Cfe. Krell, Andréas Joachim. Realização dos Direitos Fundamentais Sociais Mediante Controle Judicial da Prestação
dos Serviços Públicos Básicos. Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito. n. 10. Recife: UFPE, 2000, p. 56-57.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
97
sa direção -, de que, ali onde o processo político (Legislativo, Executivo) falha ou se
omite na implementação de políticas públicas e dos objetivos sociais nela implicados, cabe a justiça constitucional tomar, no limite, para evitar o solapamento dos
valores materiais da Constituição, uma atitude ativa na realização desses fins sociais da correição de prestações dos serviços sociais básicos. Afinal, para que servem regras contramajoritárias se não se pode colocá-las em prática? O que fazer com
a norma prevista no art. 3o. da Constituição brasileira? Ela vincula ou não o legislador e o poder executivo?
Não se pode ignorar que tais questões podem esbarrar naquilo que se denomina de “financeiramente possível” e na (de)limitação do âmbito (político) de esfera de competência. Calha, nesse sentido, a lição de Cristina Queiroz58, para quem
quando existe um direito, este se mostra sempre como justiciável. Sucede é que,
por vezes, no caso dos direitos de natureza econômica e social, estes necessitam
ainda de uma configuração jurídica particular a levar a cabo pelo legislador. A ‘reserva do possível’, ‘no sentido daquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir
da sociedade’ (BverfGE 33, 303, 333; 43, 291, 314), não tem como conseqüência
a sua ineficácia jurídica. Essa cláusula expressa unicamente a necessidade da sua
ponderação. Konrad Hesse fala, a esse propósito, de uma ‘obrigação positiva’ de
‘fazer tudo para a realização dos direitos fundamentais, ainda quando não exista a
esse respeito nenhum direito subjectivo por parte dos cidadãos’.
Por isto, ainda com Garcia Herrera, propugno uma resistência constitucional enquanto política de Direito destinada a salvaguardar a vigência e a eficácia do
projeto constitucional, assim como a vocação transformadora consubstancial da
Constituição.59 Assim que propugnar por uma resistência constitucional significa
“detectar el conflicto entre principios constitucionales y la inspiración neoliberal
que promueve la implantación de nuevos valores que entran en contradicción con
aquéllos: solidaridad frente al individualismo, programación frente a competitividad, igualdad sustancial frente a mercado, dirección pública frente a procedimientos pluralistas.” 60
58 Cfe. Queiroz, Cristina. Interpretação e Poder Judicial – sobre a epistemologia da construção constitucional.
Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 65. Veja a esse propósito o seguinte acórdão do Tribunal Constitucional de Portugal: ”Todo este complexo normativo, que não é meramente programático e contém antes uma vinculação para o
legislador ordinário, não pode desprender-se de princípios fundamentais consagrados na Constituição como seja o
empenhamento da República ‘na construção de uma sociedade livre, justa e solidária’, o objectivo da ‘realização da
democracia econômica, social e cultural’, as tarefas fundamentais do Estado de promover ‘a efectivação dos direitos econômicos, sociais e culturais’ e assegurar ‘o ensino e a valorização permanente’”. Ac. TC 148/94
59 Cfe. García Herrera, op.cit.
60 Consultar Garcia Herrera, Miguel Angel. Poder Judicial y Estado Social: Legalidad y Resistencia Constitucional.
In: Corrupción y Estado de Derecho – El papel de la jurisdicción. Perfecto Andrés Ibáñes (Editor). Madrid, Editorial Trotta, 1996, p.83.
98
faculdade de direito de bauru
Este processo de resistência constitucional – que entendo como um compromisso ético dos juristas – supera o esquema de igualdade formal rumo à
igualdade material, implicando, entre outras tarefas, a utilização, de forma ampla, dos mecanismos de acesso à justiça, através da jurisdição constitucional, nas
suas mais variadas formas (controle de constitucionalidade, writs constitucionais mandado de segurança, mandado de injunção, ação de descumprimento de preceito fundamental, etc -, filtragem hermenêutico constitucional, com a utilização
de decisões de verfassungskonforme Auslegung, Teilnichtigerklärung ohne
Normtextreduzierung, o apelo ao legislador, etc), buscando o cumprimento não
só do respeito aos direitos fundamentais de defesa, como a efetiva implantação
dos direitos sociais prestacionais. Afinal, somos juristas para quê? Qual a função da
justiça constitucional (enfim, do Poder Judiciário)? Parece que Andréas Krell possui uma resposta absolutamente adequada a essas questões, quando assevera que
é obrigação de um Estado Social (fórmula constante nos principais textos constitucionais do segundo pós-guerra) controlar os riscos resultantes do problema da
pobreza, que não podem ser atribuídos aos próprios indivíduos, e restituir um status mínimo de satisfação das necessidades pessoais. Assim, numa sociedade onde
existe a possibilidade fática da cura de uma doença, o seu impedimento significa
uma violência contra a pessoa doente que é diretamente prejudicada na sua vida
e integridade (Helmut Willke). Dessa maneira, os Direitos Fundamentais da primeira geração foram tomados como fontes de direitos subjetivos a prestações positivas do Estado. Por isso, conclui, as questões ligadas ao cumprimento das tarefas sociais como a formulação das respectivas políticas, no Estado Democrático
(e Social) de Direito não estão relegadas somente ao governo e à administração
(Gilberto Bercovici), mas têm seu fundamento nas próprias normas constitucionais sobre direitos sociais; a sua observação pelo Poder Executivo pode e deve
ser controlada pelo Poder Judiciário.61
Em síntese, há que se construir (novos) caminhos na busca da concretização
das promessas da modernidade plasmadas no texto constitucional. Como na Macondo de Gabriel Garcia Marquez, algumas “coisas” dos direitos fundamentais sociais e dos textos constitucionais ainda estão sendo apontadas com o dedo, porque
ainda não têm a “nominação constitucionalizante”. Velhos pré-juízos continuam a
nos causar prejuízos. Talvez na imbricação entre jurisdição constitucional e participação da sociedade esteja o caminho para o novo, para a superação da crise,
que, como se sabe, existe exatamente quando o novo não nasce e o velho não morre; enfim, quando o velho obscurece o novo.
61 Cfe. Krell, op. cit., p. 41 e 55.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
5.
n.
39
99
CONTRIBUTO PARA O DEBATE SOBRE O PAPEL (AINDA DIRIGENTE) DA CONSTITUIÇÃO – ALGUMAS NOTAS CONCLUSIVAS
Já no longínquo ano de 1945, o jurista Werner Kägi62 clamava: Sage mir Deine
Einstellung zur Verfassungsgerichtsbarkeit und ich sage Dir, man für einen Verfassungsbegriff Du hast A assertiva de Kägi, “condicionando” o sentido da Constituição – e, portanto, de suas condições eficaciais - ao que pensamos sobre o papel da
jurisdição constitucional, encontra ainda hoje ressonância quando se pretende discutir a problemática referente à (in)efetividade da Constituição, mormente em países de modernidade tardia como o Brasil.
É difícil dizer se o jurista suíço conseguiu, com a frase, exprimir a dimensão
paradoxal do constitucionalismo e do que representa o dilema contramajoritário, representado pela discórdia entre a vontade geral e “los frenos anclados en la Constituición” (para usar as palavras de Stephen Holmes). De todo modo, o que fica claro é que não há qualquer incompatibilidade entre Constituição e democracia e entre democracia e jurisdição constitucional, que é o meio stricto sensu de efetivar a
regra contramajoritária. Afinal, se de um lado a Constituição é uma invenção destinada a, ao mesmo tempo, conter o poder de um (o soberano absolutista) e das
maiorias forjadas no seio do regime democrático antitético ao absolutismo, através
do uso de regras (freios) contra-majoritários, a jurisdição constitucional é igualmente uma invenção para dar eficácia a los frenos anclados em la Constituición. De
nada adiantaria a existência de regras contramajoritárias se não houvesse mecanismos para fazer valê-los.
Ou seja, se estamos de acordo com a idéia de que a Constituição é um paradoxo – porque, afinal, surgida para sustentar o Estado democrático, ela pode “impedir” o exercício da vontade das maiorias, essência do próprio regime democrático –, essa assertiva implica, inexoravelmente, a aceitação da existência de regras/mecanismos contramajoritários. Conseqüentemente, a jurisdição constitucional assume especial relevância, exatamente por ser o instrumento de efetivação
de tais regras. Por conseguinte, a discussão não deve estar focada primordialmente
na importância da jurisdição constitucional – já que esta, nos termos apresentados,
adquire foros de condição de possibilidade do caráter paradoxal da Constituição -,
mas, sim, sobre os limites do controle de constitucionalidade a ser exercido através da justiça constitucional. Daí o eterno retorno ao debate entre teorias processuais (procedimentais) e teorias materiais da Constituição. Afinal, a contradição
principal a ser enfrentada diz respeito a seguinte indagação: o que é vinculante em
uma Constituição? Mais ainda: a Constituição que a tradição nos legou sobrevive
62 Cfe. KÄGI, Werner. Die Verfassung als rechliche Grundordnung des Saates. Untersuchungen über die Entwicklungstendenz im modernen Verfassungsrecht. Zurich: Polygraphischer Verlag, 1945, p. 147. - (Diz-me a tua posição quanto à jurisdição constitucional e eu te direi que conceito tens da Constituição).
100
faculdade de direito de bauru
sem a previsão de regra contramajoritária? Os freios de caráter contramajoritário sobrevivem sem a jurisdição constitucional?
Na verdade, toda essa discussão não pode ser desvinculada da revolução copernicana que atravessou o direito constitucional no segundo pós-guerra e que
inaugurou uma fase que pode ser denominada de pós-positivismo (como bem diz
Paulo Bonavides, “antes triunfaram os códigos; hoje, triunfam as Constituições”).
Nesta quadra da história, os textos constitucionais – mais do que fundamento de validade (superior) do ordenamento – passam a consubstanciar a própria atividade
político-estatal, a partir do estabelecimento dos direitos fundamentais-sociais e dos
mecanismos para a sua concretização.
Os sucessos históricos têm demonstrado que esta revolução copernicana não
estaria completa sem um novo olhar sobre a jurisdição constitucional, que passa a
cumprir um papel de extrema relevância nesta quadra da história. Portanto, as possibilidades de efetivação dos direitos previstos nos textos constitucionais passam a
depender do processo de compreensão do significado desse novo paradigma jurídico-político.
Nesse contexto, as noções de soberania popular, separação de poderes e
maiorias parlamentarias vão dar lugar à discussão acerca da legitimidade constitucional, instituidora de um constituir da sociedade. Isto é, do modelo de Constituição
formal, no interior da qual o direito assumia um papel de ordenação, passa-se a revalorização do Direito, que passa a ter um papel de transformação da realidade da
sociedade. É para este salto paradigmático que deve estar atento o jurista.
Esse paradigma toma forma quando a liberdade de conformação do legislador, pródiga em discricionariedade no Estado-Liberal, começa a ser contestada de
dois modos: de um lado, os textos constitucionais dirigentes e compromissórios,
apontando para um dever de concretizar os direitos fundamentais e sociais; de outro, o controle por parte dos tribunais, que passaram não somente a decidir acerca
da forma procedimental da feitura das leis, mas também acerca de seu conteúdo
material, incorporando os valores previstos na Constituição.
Há, assim, a prevalência do princípio da constitucionalidade sobre o princípio
da maioria – e parece que esta questão, relacionada umbilicalmente com o “dilema
contramajoritário”, assume contornos mais incisivos a partir do (novo) modelo de
Constituições no segundo pós-guerra – , o que significa entender a Constituição
como um remédio contra maiorias, o que, consequëntemente, implica discutir a
legitimidade política da previsão nos textos constitucionais de regras contramajoritárias.
Na medida em que a regra contramajoritária tem uma relação direta com um
órgão que a faça prevalecer – o que para muitos, repita-se, contrapõe a própria democracia à jurisdição constitucional - entendo que o papel reservado ao Estado (Democrático de Direito) nesta quadra da história aponta para uma função mais efetiva da jurisdição constitucional, reservando-se-lhe uma nova forma de inserção
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
101
no âmbito das relações dos poderes de Estado, levando-o a transcender as funções
de checks and balances, mediante uma atuação que leve em conta a perspectiva
de que os valores constitucionais têm precedência mesmo contra textos legislativos produzidos por maiorias eventuais. A jurisdição constitucional é, portanto - e
a lição é de Binenbojm -, uma instância de poder contramajoritário, no sentido de
que sua função é mesmo a de anular determinados atos votados e aprovados majoritariamente, por representantes eleitos. Nada obstante, entende-se, hodiernamente, que os princípios e direitos fundamentais constitucionalmente assegurados são,
em verdade, condições estruturantes e essenciais ao bom funcionamento do próprio regime democrático; assim, quando a justiça constitucional anula leis ofensivas
a tais princípios ou direitos, sua intervenção se dá a favor e não contra a democracia. Esta a fonte maior da legitimidade da jurisdição constitucional.63
Na medida em que o Estado Constitucional só existe e se fortalece por intermédio de um processo político dependente do conteúdo formal e material da
Constituição, a existência de mecanismos contramajoritários passam a fazer parte
da própria concepção de Estado Democrático, uma vez que a Constituição assenta
sua condição de possibilidade exatamente nas cláusulas que possam impedir a vontade geral de, a cada dia, rousseaunianamente, estabelecer sua nova vontade. Afinal,
Rousseau achava absurdo que a vontade pudesse colocar grilhões para o futuro, de
forma que um povo é sempre senhor de mudar as suas leis, mesmo as melhores;
cada ato de soberania, bem como cada instante da sua duração, é absoluto, independente daquele que precede; o soberano nunca age porque quis, mas porque quer.
Esta concepção instanteneísta do tempo social 64 denota, evidentemente, a impossibilidade de cláusulas de caráter contramajoritário em Rousseau.
É razoável afirmar, desse modo, que a força normativa da Constituição – ligada umbilicalmente a concepção material (valores substanciais) que dela se tem - parece caminhar em direção oposta às teses de caráter positivista-instanteneísta, que
se colocam, em maior ou menor escala, na contramão de uma utilização mais efetiva das regras contramajoritárias e, conseqüentemente, da jurisdição constitucional,
mecanismo pelo qual, contemporaneamente, tem-se conferido eficácia aos “remédios contramajoritários”. Ou seja, uma “excessiva” utilização dos mecanismos contramajoritários – mormente no que diz respeito às hipóteses de descumprimento
dos valores substantivos da Constituição – sempre acenderá uma luz amarela
apontando para o perigo que representam certos “ativismos judiciais”.
Por outro lado, não se pode olvidar que a defesa mais ou menos vigorosa das
teses processuais (procedimentais) pode levar ao enfraquecimento do próprio
constitucionalismo, pelo próprio caráter paradoxal que engendrou a idéia de “Constituição”. Com efeito, tal possibilidade pode estar presente nos processos de refor63 Cfe. Binenbojm, Gustavo. A nova jurisdição constitucional. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 224.
64 Sobre a concepção de tempo social, ver Ost, François. O tempo do Direito. Lisboa, Piaget, s/d.
102
faculdade de direito de bauru
mas constitucionais. Quais os limites que a ela se põe? Meramente procedimentais
ou materiais-substantivos? A pouca importância a ser conferida aos limites do poder
de reforma – que resguardam os valores substantivos originários do pacto constituinte do ataque de maiorias eventuais – podem transformar o texto constitucional
em mero instrumento de manifestação majoritária de caráter permanente, uma vez
que, respeitados os limites do procedimento e reforma, a todo instante será possível alterar o texto constitucional. Daí a pergunta: se o texto constitucional – livre de
amarras contramajoritárias – pode ser alterado a todo instante, ainda será “constitucional” no sentido de “Constituição”, que – e reafirma-se o paradoxo – nasce
justamente para impedir ao mesmo tempo o uno e o todo?
É neste ponto que a opção por uma ou por outra tese assume especial relevância. Repete-se a pergunta: o que é vinculante na Constituição? Como conter as
ações de futuras maiorias eleitorais? Madison, pai fundador da democracia americana, reconhece, no Federalista, com Jefferson, que o povo, única força legítima do
poder, deve poder, em ocasiões especiais, dar a conhecer a sua decisão por via constitucional. Mas esta possibilidade deve permanecer contida na Constituição, precisamente.Contra os inimigos da Constituição, que poderiam desviar o recurso
ao povo, é preciso que o povo constituinte possa conter a ação de futuras maiorias eleitorais. Isso é próprio de uma democracia constitucional: ela se exerce no
quadro traçado pela Constituição. Assim, o povo preserva-se dos perigos da instabilidade e do extravasamento sempre possível da razão pelas paixões: aceitando
uma Constituição preestabelecida (institucionalizada, nas palavras de Madison), um
povo ata suas mãos, mas liberta-se a si próprio de fardos consideráveis.65
Desse modo, o cumprimento do que foi pactuado constitucionalmente no
tempo depende, fundamentalmente, da concepção que se tem acerca do papel da
Constituição e do alcance dos frenos anclados en la Constituición, que, em maior
ou menor escala, estabelecem não só os limites temporais como também as condições de possibilidade de se conferir eficácia ao texto, circunstância que sempre vai
obrigar a discussão acerca da importância da jurisdição constitucional, (sempre)
visceralmente dependente da dimensão das cláusulas que impõem os mecanismos
contramajoritários no texto constitucional. Esta parece ser a equação que rege a problemática da relação que contrapõe a democracia constitucional à democracia majoritária e da relação que une democracia constitucional e jurisdição constitucional.
Não é temerário afirmar, assim, que a discussão acerca da continuidade da noção de Constituição dirigente e compromissória vai depender de dois aspectos: primeiro, a assunção da tese de que não há qualquer incompatibilidade entre democracia e jurisdição constitucional ou entre democracia e Constituição enquanto es-
65 Cfe. Madison, James. O federalista. Campinas Russel, 2003. Também Ost, François. O Tempo do Direito, op.cit.,
p. 276.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
103
tabelecimento de mecanismos contramajoritários, o que reforça a Constituição na
sua dimensão jurídico-formal; segundo, a assunção da tese da prevalência dos valores substanciais, superando as teorias procedimentais da Constituição, com o que se
reforça a Constituição na sua dimensão material. Daí a importância de se lembrar
que, levando em conta a dimensão do que foi exposto no segundo aspecto, o papel
a ser reservado à jurisdição constitucional dependerá do grau de vinculariedade que os poderes públicos (executivo e legislativo) darão aos valores substantivos
previstos na Constituição, o que significa dizer que a defesa da Constituição dirigente não está necessariamente dependente de uma efetiva intervenção da justiça constitucional.
Sempre se poderá dizer – e este é um dos pontos preponderantes do embate entre defensores, de um lado, das teses procedimentais, e, de outro, das teses materiaissubstanciais – que falta aos tribunais a legitimidade política e os instrumentos básicos
necessários para uma atuação que represente a concretização de valores substantivos
previstos na Constituição. Esta, aliás, é uma discussão antiga, e que me obriga a dizer
que a defesa que faço de uma atividade que se pode denominar de “intervencionista”
da justiça constitucional,não implica a aceitação da tese ou a proposição de uma (simplista) judicialização da política e das relações sociais e tampouco a morte da política.66
Tampouco se defende, como bem assinala Garcia Herrera, la transformación
de la magistratura en sujeto político, ni se propugna recuperar la pugna entre
Constituición y Ley, marginando al Parlamento y transformando al juez en protagonista principal del desarrollo constitucional; antes bien, la apelación a jurisdición (constitucional) no se confronta con la relación Ley-Constituición, sino que se
asienta en la fase del desarrollo constitucional en el que nos encontramos caracterizada por la contradicción entre los valores constitucionales y las propuestas alternativas con motivo de la crisis del Estado social, y por la pérdida de sustantividad de la
Ley que deja unos márgenes de decisión que deben ser llenados con y desde la
Constituición, desde sus derechos y decisiones fundamentales: “Enlazando con las
premisas antes enunciadas, el significado de la jurisdición no puede desligarse de las
características de una Constituición asentada en un pacto contradictorio, basada en
contenidos materiales, traspasada por valores contrapuestos pero finalizada hacia la
consecución de objetivos de igualdad sustancial, aunque haya unos principios de
consenso universal (dignidad, democracia).67
66 Como bem assinala Bruce Ackerman, ao tratar da problemática norte-americana, declarando inconstitucional um
determinado dispositivo legal, o Tribunal está desempenhando uma função dualista crítica. Ele está indicando à
massa de cidadãos privados que algo especial está ocorrendo nos corredores do poder; que seus pretendidos representantes estão tratando de legislar com pouca credibilidade; e que, uma vez mais, há chegado o momento de
determinar se nossa geração responderá fazendo o esforço político requerido para redefinir, como cidadãos privados, nossa identidade coletiva. Cfe. Ackerman, Bruce. La política del diálogo liberal. Barcelona, Gedisa, 1999, p.203.
67 Cfe. García Herrera, Miguel Angel. Poder judicial e Estado social. In: Corrupción y Estado de Derecho – el papel
de la jurisdicción. Perfecto Andrés Ibáñez (Editor). Madrid, Trotta, 1999, p. 83.
104
faculdade de direito de bauru
Daí que, levando em conta as especificidades do caso brasileiro, onde, passados quinze anos da promulgação da Constituição, grande parte dos dispositivos continua inefetiva, não é possível concordar com as críticas dirigidas lato sensu ao “intervencionismo” ou “ativismo” dos Tribunais (justiça constitucional).68 Com efeito,
longe do ativismo próprio que assumiram alguns tribunais constitucionais europeus, principalmente o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, no Brasil a justiça constitucional historicamente tem assumido uma postura de nítida feição self
restraint. Sendo mais claro, é preciso ter presente que, no Brasil, as hipóteses de ativismo judicial stricto sensu tem permanecido restritas a um “ativismo às avessas”,
circunstância que pode ser facilmente percebida no paradigmático caso do julgamento do Mandado de Injunção n. 107 pelo STF ou no julgado do mesmo STF acerca da “proibição” da progressividade do IPTU do município de São Paulo, fruto da
Reclamação n. 383.
Na verdade, as posições assumidas pelo Supremo Tribunal Federal em relação
a várias situações envolvendo hipóteses que reclamavam um certo “ativismo judicial
de resultados” apontam para um “ativismo negativo”, que nada mais é do que a assunção de uma estratégica posição self restraint. Esta postura da justiça constitucional brasileira, fruto de uma histórica “baixa constitucionalidade”, pode ser debitada
a vários fatores, como:
68 Juristas importantes como Ingeborg Maus têm feito agudas críticas ao intervencionismo dos tribunais constitucionais, na esteira das correntes de cariz procedimentalista. A jurista alemã faz uma crítica à leitura moral da Constituição feita por autores como Dworkin, que, segundo ela, oculta moralmente um decisionismo judicial. Mais ainda, assevera que “quando a justiça ascede ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade passa a
escapar de qualquer mecanismo de controle social: controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática.” Na verdade, Maus faz um certo retorno à Rousseau, em uma espécie de “recuperação do político” obnubilado pelo crescente deslocamento da esfera de tensão
dos poderes executivo e legislativo em direção à justiça constitucional. Por isto vai dizer que nos “estímulos à expansão do âmbito de ação da justiça encerra-se o círculo da delegação coletiva do superego da sociedade.” Embora não assuma a radicalidade procedimentalista de autores como Habermas e Ely, é possível afirmar que Maus, em
parte, aproxima-se do primeiro, quando sustenta que os Tribunais Constitucionais não devem ser alçados à categoria de protetores de uma ordem suprapositiva de valores. A onipotência dos Tribunais Constitucionais – e sua maior
crítica é dirigida ao Bundesverfassungsgericht – faz com que a Constituição passe a não ser mais compreendida –
tal qual nos tempos da fundamentação racional-jusnaturalista da democracia – como documento da institucionalização de processos e de garantias fundamentais das esferas de liberdades capazes de garantir todos esses processos políticos e sociais, mas como um texto fundamental do qual, a exemplo da Bíblia e do Corão, os sábios deduziriam diretamente todos os valores e comportamentos corretos. Assim, conclui, o Tribunal Federal Constitucional
(alemão) realiza em muito de seus votos de maioria “teologia constitucional”. Cfe. Maus, Ingeborg. O Judiciário
como Superego da Sociedade – Sobre o Papel da Atividade Jurisprudencial na “Sociedade Órfã”. Trad. de Martonio
Mont’Alverne Barreto Lima e Paulo Antonio de Menezes Albuquerque. In: Anuário dos Cursos de Pós-Graduação
em Direito da Faculdade de Direito de Recife n. 11. Recife, UFPE, 2000, pp. 125 e segs. Essa posição é genericamente endossada, no Brasil, por Gilberto Bercovici (A Constituição Dirigente a Crise da Teoria da Constituição, op.cit.,)
e Martonio Mont’Álverne Barreto Lima ( Justiça Constitucional e Democracia: Perspectivas para o Papel do Poder Judiciário. Revista da Procuradoria-Geral da República n. 8. São Paulo, RT, jan/jun de 1996).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
105
a) os curtos períodos de democracia vividos pelo País entre a proclamação da
República e o advento da Constituição de 1988 e a conseqüente falta de autonomia do Supremo Tribunal Federal durante esse longo período (não estou considerando o período imperial, quando sequer havia controle jurisdicional de constitucionalidade);
b) as primeiras décadas de controle difuso sem mecanismos de extensão dos
efeitos das decisões;
c) a tardia inserção do controle concentrado de constitucionalidade (apenas
em 1965);
d) o tardio ingresso do Brasil na era do constitucionalismo do Estado Democrático de Direito, isto é, o estabelecimento de um texto constitucional dirigente e compromissório ocorreu somente em 1988, acumulando a etapa
do welfare state - que não ocorreu em terra brasilis - com o modelo do Estado Democrático de Direito;
e) a crise de paradigmas que atravessa o Direito, uma vez que, historicamente preparado para o enfrentamento de conflitos/demandas de caráter interindividual, a dogmática jurídica brasileira não engendrou as condições
para o enfrentamento das demandas e os conflitos de caráter transindividual, problemática que pode ser detectada sem muito esforço quando nos
deparamos, por exemplo, com a falta de instrumentalidade do processo civil ( o que tem gerado uma série de mini-reformas ad hoc, dirigidas tão-somente à efetividade quantitativa e não qualitativa, questão que se repete,
agora, na reforma do judiciário, com a “imposição” das súmulas vinculantes), a grave crise do Direito Penal (problema da impunidade dos crimes
do colarinho branco e a absoluta falta de políticas criminais voltadas ao
combate à violência que assola o país, mormente nos grandes centros urbanos), além dos conflitos sociais lato sensu (ocupações de terras, violações de direitos humanos, etc).
Dizendo de outro modo: o problema de concretização da Constituição – até
porque interpretar é aplicar e, portanto, concretizar – não pode ficar à mercê de
vontades ad-hoc dos poderes legislativo e executivo e tampouco pode depender (de
forma simplista) de um ativismo judicial.69 Esta parece ser a contradição secundária
69 Ademais, não se pode esquecer que os freios contramajoritários não podem conduzir a interpretações que alcem
o Poder Judiciário a dono da Constituição. Como muito lembra Stephen Holmes, o Tribunal pode entrar em conflito
com as maiorias eleitorais tanto quando venera como também quando desdenha a intenção dos criadores da
Constituição. E este é um problema que pode ser detectado em nosso país, onde ocorre o que Marcelo Neves chamou de “concretização desconstitucionalizante”, isto é, a deturpação do texto constitucional no processo de concretização. A concretização normativo-jurídica do texto constitucional é bloqueada de modo permanente e generalizado
por fatores econômicos ou políticos, não havendo qualquer relação consistente entre o texto e sua concretização. Resultado disso é a Constituição não se torna referência válida para os cidadãos, em geral, e para os agentes públi-
106
faculdade de direito de bauru
do problema. A contradição principal a ser enfrentada parece residir no grau de
vinculariedade que a Constituição adquire no decorrer do tempo, compreendido
o texto magno em sua materialidade e não (apenas) em seu cariz procedimental
– até porque as teorias processuais a toda evidência desbordam do perfil compromissório da Constituição de 1988.
Numa palavra: a Constituição está umbilicalmente ligada à noção de Estado
democrático. E o dilema/desafio “continua sendo encontrarmos um modo de submeter a critérios sociais e democráticos a atuação ou omissão do Estado, através de
um controle político”.70 Isto implica compreender que o sentido paradoxal que a
Constituição adquire na tradição aponta para a convivência necessária entre
Constituição e democracia. Implica igualmente não compartimentar as funções
legislativa, executiva e judiciária, como se as primeiras fossem democráticas em
si mesmas e receptivas às pressões populares, e a última, arredia a qualquer
(pressão ou) participação popular. Afinal, no complexo problema que envolve a relação democracia e constitucionalismo e a importância maior ou menor que adquire a jurisdição constitucional e as implicações (anti)democráticas que isto acarreta,
não se pode perder de vista as especificidades de cada constitucionalismo e de
cada realidade nacional.
Nesse sentido, talvez sejam corretas as tentativas (Habermas, por exemplo) de
resgatar a tese de Peter Häberle que propõe a construção de uma sociedade aberta
de intérpretes da Constituição, ampliando o leque de participantes na formação dos
sentidos atribuíveis aos textos constitucionais.71 Com efeito, Häberle propõe a vinculação, no processo de interpretação da Constituição, todos os órgãos estatais, setores da sociedade e cidadãos. Os números de intérpretes não pode ser exclusivista. Quem vive a norma, interpreta-a. A legislação infraconstitucional deve ser integrada ao estudo da hermenêutica constitucional. Assim, a interpretação jurídica é
somente um filtro, que disciplina a canaliza as múltiplas formas de participação dos
vários intérpretes constitucionais.72
cos, em particular, cuja atividade se desenvolve apesar dela e até contra os seus dispositivos. Cfe. Neves, Marcelo.
Constitucionalização simbólica e desconstitucionalização fática: mudança simbólica da Constituição e Permanência das
estruturas reais de poder. RTDP n. 12. São Paulo, Malheiros, 1995. Ou seja, como denuncia Bercovici, em nosso país o
Supremo Tribunal Federal decide contra a Constituição. Desse modo, “ao se considerar o ‘dono’ da Constituição, interpretando-a em desacordo com seus princípios fundamentais, o Supremo Tribunal está usurpando poderes constituintes, que ele obviamente não tem.” Cfe. Bercovici, op.cit., pp. 209 e 310.
70 O desafio é proposto por Bercovici, op.cit..
71 Sobre o assunto, ver, no Brasil, por todos, Binenbojm, op.cit., pp. 114 e segs.
72 Häberle, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Menes. Porto Alegre, Fabris,1992. Vários autores colocam restrições à tese de Häberle. Para Bonavides, corre-se o perigo do afrouxamernto da normatividade constitucional. Ver, também, Adeodato, João Maurício. Jurisdição Constitucional à brasileira –
situações e limites. In: (Neo)constitucionalismo – ontem, os códigos; hoje, as Constituições. Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre, IHJ, 2004, n. 2, p. 180.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
107
Até aqui a tese häberliana parece se encaixar muito bem. O problema é que
não há indicadores mais precisos acerca de como isto funciona ou de como pode
vir a funcionar em sociedades periféricas como o Brasil. Ou seja, a pergunta que
cabe é: como desenvolver as condições para a construção de uma sociedade
aberta de intérpretes da Constituição no Brasil? Parece evidente que, em países
que adotam a forma mista de controle concentrado-difuso, uma efetiva implementação do controle difuso proporcionaria uma capilarização da idéia de Constituição,
circunstância que poderia provocar uma “abertura” no processo de “dar-sentido-aConstituição”. Contudo, não nos empolguemos com isto! Com efeito, os dados
acerca do efetivo exercício da jurisdição constitucional no plano difuso apontam
para uma “baixa constitucionalidade”,73 o que facilmente pode ser verificado pelo reduzido número de incidentes de inconstitucionalidade e pela quase nenhuma utilização dos mecanismos da interpretação conforme a Constituição e a nulidade parcial sem redução de texto em sede de controle difuso, para citar apenas estes. É visível, ainda, a equiparação entre vigência e validade e entre texto e norma, o que
torna a doutrina e a jurisprudência reféns de um pensamento metafísico, uma vez
que essa equiparação suprime o tempo do direito. Enfim, com a equiparação texto
e norma, vigência e validade, “ocorre uma objetivação que suspende a temporalidade”, como bem lembra Adeodato.74 Em algumas áreas como o direito penal, chega a
existir uma espécie de blindagem, que imuniza o legislador contra qualquer interferência da jurisdição constitucional.75
A construção de “uma sociedade aberta de intérpretes” nos moldes preconizados por Häberle e seus seguidores – ou, o que considero mais urgente, porquê
condição de possibilidade - a construção das condições para uma ruptura com o
pensamento metafísico que obstaculiza o acontecer (ontológico76) da Constituição, implica a existência, entre outras coisas, de um ensino jurídico apto a superar
a crise paradigmática que atravessa o Direito, o que está muito longe de ocorrer. Afinal, pré-juízos inautênticos/inadequados acarretam inexoravelmente seríssimos
prejuízos! Na verdade, o que tem acontecido é que o ensino jurídico tem contribuído para o acirramento da crise: “As faculdades de Direito estão duplamente em crise: por um lado, devido ao fato de não produzirem uma dogmática jurídica dotada
de uma técnica atualizada perante as novas demandas do capitalismo tardio; de ou-
73 Sobre o assunto, permito-me remeter o leitor ao meu Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, op.cit., mormente os capítulos 1 a 5.
74 Cfe. Adeodato, op.cit., p.180.
75 Ver, nesse sentido, Streck, Lenio Luiz. Da Proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot): de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. IN: Revista IHJ n. 2,
op.cit., pp. 243-284.
76 A palavra ontológico deve ser entendida aqui no sentido da ontologia fundamental (matriz da fenomenologia
hermenêutica).
108
faculdade de direito de bauru
tro, por não terem uma efetiva função social, notadamente em relação aos segmentos marginalizados da população. Deste modo, muito mais do que uma crise da
`ciência do Direito’, há crise na reprodução legítima da dogmática jurídica que não
consegue justificar a sua ideologia de ‘bem comum’ devido à ausência de críticas
mais efetivas à racionalidade jurídica e à formação dos juristas”.77
Assim, exatamente por tentarem isolar/separar teoria e prática, os cursos jurídicos não conseguem atingir nenhum dos dois objetivos: não conseguem formar
nem bons “teóricos” e nem bons “técnicos” (operadores - sic). Não é difícil constatar essa dicotomização – de nítido caráter metafísico - que tem dominado a assim
chamada ciência do Direito. Isto ocorre porque o pensamento dogmático – aqui entendido como o sentido comum teórico dominante no imaginário dos juristas - sustenta-se exatamente no dualismo “teoria e prática”, onde a teoria é “feita” nas academias e a prática é aquela atividade realizada na “efetiva aplicação do Direito” (sic).
Desnecessário dizer que essa dicotomização tem o claro objetivo de desqualificar o
discurso “teórico/acadêmico”!
Aliás, as salas de aula dos cursos de Direito bem demonstram esse dualismo:
os alunos desdenham as matérias ditas “teóricas”, como filosofia, introdução ao estudo do Direito, sociologia jurídica, etc, preferindo as disciplinas “práticas” (direito
processual civil, penal, etc). O Direito Constitucional é ensinado em, no máximo,
dois semestres. Além disso, não há uma “contaminação” das demais disciplinas pelo
Direito Constitucional. Assim, por exemplo, das 8h às 10h, os alunos aprendem Direito Constitucional; das 10h às 12h, as demais disciplinas, a maioria delas “facilitadas” por “manuais práticos” de duvidosa qualidade, muito dos quais sem fazer qualquer referência à existência da Constituição.78 Aliás, não há notícia de algum manual ou “compêndio” que tenha feito uma filtragem hermenêutico-constitucional
do Código Penal79 ou de qualquer outro estatuto legal. A maioria dos manuais, a par
77 Cfe. Rocha, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia. São Leopoldo, Unisinos, 1999.
78 Registre-se, neste aspecto, que esse imaginário, no interior do qual os juristas “separam” a teoria da prática, tem um
fundo filosófico. Com efeito, há uma separação do processo de compreensão/interpretação em partes (em fatias), questão, aliás, que autores como Gadamer criticam com veemência (para tanto, ver Streck, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica E(m) Crise. 4a. ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003). Com o mestre de Tübingen, aprendemos que hermenêutica não é método, é filosofia. Ora, se interpretar é aplicar, não há um pensamento teórico que “flutua” sobre
os objetos do mundo, apto a dar sentido ao “mundo sensível”. O sentido de algo se dá; ele acontece. Na verdade, o pensamento dogmático do Direito não conseguiu escapar ainda do elemento central da tradição kantiana: o dualismo. É
por ele que fomos introduzidos na modernidade numa separação entre consciência e mundo, entre palavras e coisas,
entre linguagem e objeto, entre sentido e percepção, entre determinante e determinado, entre teoria e prática. Heidegger vai dizer que esses dualismos somente puderam ser instalados através do esquecimento do ser, através da introdução de um universo de fundamentação filosófica conduzida apenas pelo esquema da relação sujeito-objeto (ver, nesse
sentido, Stein, Ernildo. Pensar é pensar a diferença. Ijui, Ed. Unijui, 2002, pp. 88 e 89 ). É essa relação sujeito-objeto que
sustenta as dicotomias ou os dualismos que povoam o imaginário dos juristas.
79 Um rápido exame em alguns dos principais manuais de Direito Penal (v.g., Damásio de Jesus, Código Penal Anotado; J.F. Mirabete, Código Penal Interpretado; Celso Delmanto, Código Penal Anotado, Fernando Capez, Curso de
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
109
de se constituírem em uma coletânea de ementas jurisprudenciais (que sequer citam os contextos), utiliza jurisprudência (julgados, as vezes isolados) de origem anterior a Constituição para embasar os comentários aos dispositivos e leis, mormente aqueles anteriores a Constituição de 1988.
Do mesmo modo, esta dualização metafísica dá azo à tese de que as faculdades devem dedicar-se, preferentemente, à formação de técnicos (o que isto significa ninguém consegue explicar). Para isto, engendrou-se um imaginário positivistanormativista-formalista que sustenta que o Direito é uma (mera) técnica (racionalidade instrumental). Este processo é sobremodo retroalimentado pelas escolas de
preparação para concursos públicos de carreiras jurídicas e pelo formato das provas
desses concursos.80 Afinal, os “cursinhos” procuram ensinar o que será perguntado
nos concursos públicos. Forma-se, neste contexto, um círculo vicioso, não sendo temerário afirmar que, aquele que não freqüentar curso de preparação, tem as suas
Direito Penal) fornece uma amostra interessante acerca da ausência de uma adequada filtragem hermenêutico-constitucional. Exemplificadamente: não há maiores referências de que determinadas infrações penais não foram recepcionadas pela Constituição (teoria da recepção das normas), como as contravenções penais e os delitos
que tratam de vícios e comportamentos, por violação do princípio da secularização do Direito; tampouco há recepção da tese da inconstitucionalidade da reincidência; do mesmo modo, os manuais não tratam de hipóteses de interpretação conforme ou de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, mecanismos indispensáveis
para uma adaptação do velho Código ao novo Texto Magno; de outra banda, os manuais continuam a citar julgados
datados de antes da Constituição, sem a necessária discussão acerca da temática “texto-norma” (veja-se, a propósito, a importância que isto assume na discussão dos crimes agora epitetados como hediondos); também não se encontra uma crítica consistente acerca da teoria do bem jurídico e a (flagrante e histórica) desproporcionalidade das penas nos diversos crimes do Código Penal e das leis esparsas; por derradeiro, o sistema jurídico, sustentado nesse imaginário, convive pacificamente com uma verdadeira “liberdade total de conformação do legislador”,
circunstância que afasta qualquer possibilidade da aplicação da jurisdição constitucional. Tudo como se existisse
uma “blindagem” em torno do Direito penal, que o protegesse da “maléfica interferência” da Constituição; tudo sob
o olhar complacente da dogmática jurídica!
80 Em determinado concurso público no RS, perguntou-se: Caio quer matar Tício, com veneno; ao mesmo tempo,
Mévio também deseja matar Tício (e, pasmem, com veneno!). Um não sabe da intenção assassina do outro. Ambos
ministram apenas a metade da dose letal (não fica explicado em que circunstância Tício – com certeza um idiota , bebe as duas porções de veneno). Em conseqüência da ingestão das meia-doses, Mévio vem a perecer... E o concurso indagava: qual a solução jurídica? (sic) Em outro concurso público – de âmbito nacional - para preenchimento de vagas de importantíssima carreira jurídica, a pergunta dizia respeito à solução jurídica a ser dada ao caso de
um gêmeo xifópago ferir o outro (com certeza, gêmeos xifópagos andam armados, e em cada esquina encontramos vários deles...!). Dito de outro modo: nesse universo, a cultura stardart fornecida pelos manuais é reproduzida nas salas de aula e nos concursos públicos. A propósito, há um manual que, para explicar a diferença entre culpa consciente e dolo eventual, utiliza um exemplo a partir do ato de um jardineiro, que quer cortar as ervas daninhas e corta o caule da flor.... Não podemos esquecer, finalmente, o clássico exemplo do açúcar e do arsênico, utilizado, há várias décadas, para explicar o conceito de crime impossível...! Esta é a apenas a ponta do iceberg, e que
retrata a dura face do idealismo que permeia o discurso jurídico, que pode ser retratada pela seguinte anedota envolvendo o filósofo Hegel. Conta-se que, no auge de uma abstração filosófica, o filósofo foi interrompido por um
de seus alunos, que lhe perguntou: “Mestre, tudo isto que o senhor está dizendo não tem absolutamente nada a
ver com a realidade”. Ao que Hegel teria respondido: “Pior para a realidade”...
110
faculdade de direito de bauru
chances de aprovação sensivelmente reduzidas. Esta problemática repete-se nas
provas de “Exame de Ordem” realizadas pela OAB.
Desse modo, forja-se um imaginário no interior do qual o ensino jurídico (de graduação e pós-graduação) tem a finalidade precípua de atender as demandas (imediatas) dos operadores (leia-se “mercado”). Este processo se estabelece a partir da prática
de uma “metodologia didático-casuística”, que produz uma cultura estandardizada,
dentro da qual o jurista vai trabalhar no seu dia-a-dia com soluções e conceitos lexicográficos (que são transformados em “categorias”, como se fossem “universais”, aptos
ao exercício “dedutivo-subsuntivo” do “intérprete”), recheando, desse modo, metafisicamente, suas petições, pareceres e sentenças com ementas (verbetes) jurisprudenciais ahistóricas e atemporais. Portanto, a proliferação de manuais jurídicos não pode
ser subestimada, uma vez que consubstanciam tanto as disciplinas jurídicas ministradas
nas faculdades de Direito como o processo de aplicação quotidiana do Direito.
Acrescente-se a isto, ademais, o relevante fato de que a dogmática jurídica, enquanto reprodutora de uma cultura estandardizada, torna-se refém de um pensamento metafísico, esquecendo-se de um dos teoremas fundamentais da hermenêutica, que é a diferença ontológica.81 Com isto, torna-se “possível” separar o Direito
da sociedade, enfim, de sua função social. Dito de outro modo, o formalismo tecnicista que foi sendo construído ao longo de décadas inegavelmente “esqueceu-se” do
substrato social do Direito e do Estado.
Conseqüentemente, transformado em uma mera instrumentalidade formal, o
Direito deixou de representar uma possibilidade de transformação da realidade. A
toda evidência, esta circunstância terá reflexos funestos no processo de compreensão que o jurista terá acerca do papel da Constituição, que perde, assim, a
sua substancialidade. Veja-se, a propósito, a dificuldade que os juristas têm em lançar mão da jurisdição constitucional; veja-se, por tudo, a inefetividade da Constituição, passados quinze anos de sua promulgação!
A perda do substrato social do Direito – ou, se se quizer, da sua função social
– decorre da não recepção dos novos paradigmas jurídico-constitucionais, bem
como da falta de compreensão acerca da evolução da Teoria do Estado (condição de
possibilidade para a Teoria da Constituição). Dentre outras razões, isto ocorre porque a doutrina e a jurisprudência continuam assentadas nos postulados da hermenêutica clássica, de cunho reprodutivo. Pensam os juristas que as palavras refletem
a essência das coisas (sic), como se a tarefa do intérprete se restringisse a “acessar”
esse sentido (unívoco) ontológico (no sentido da metafísica clássica, em que o sujeito está “assujeitado às essências...!).82 É o (elevado) preço que a hermenêutica
81 Sobre a diferença ontológica e as conseqüências desse “esquecimento”, ver Streck, Hermenêutica Jurídica, op.
cit., em especial o posfácio.
82 Na verdade, no plano do que se pode entender como senso comum teórico, tais questões aparecem de forma
difusa, a partir de uma amálgama dos mais distintos métodos e “teorias”, na sua maioria calcados em inconfessáveis
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
111
(ainda) paga à concepção realista das palavras, que teve uma recepção incomensurável no Direito (sem mencionar, aqui, o papel desempenhado pelo paradigma epistemológico da filosofia da consciência). Ressalte-se que mesmo algumas posturas
consideradas críticas do Direito, muito embora procurem romper com o formalismo normativista (onde a norma é uma mera entidade lingüística), acabam por transferir o lugar da produção do sentido do objetivismo para o subjetivismo; da coisa
para a mente/consciência (subjetividade assujeitadora e fundante); da ontologia
(metafísica clássica) para a filosofia da consciência (metafísica moderna). Não conseguem, assim, alcançar o patamar da viragem lingüístico/hermenêutica, no interior
da qual a linguagem, de terceira coisa, de mero instrumento e veículo de conceitos,
passa a ser condição de possibilidade. Permanecem, desse modo, prisioneiros da
relação sujeito-objeto (problema transcendental), refratária à relação sujeito-sujeito
(problema hermenêutico). Sua preocupação é de ordem metodológica e não ontológica (no sentido hermenêutico).83
Ou seja, a construção das condições para a concretização da Constituição implica um olhar hermenêutico, a partir da noção de applicatio, que supera a noção
metafísica que separa a interpretação da Constituição da interpretação dos textos infraconstitucionais, como se a Constituição fosse uma capa de sentido, que serviria
para dar sentido a textos infraconstitucionais “dispersos no mundo”. Na verdade, a
construção das condições para a concretização da Constituição implica entender a
Constituição como uma dimensão que banha todo o universo dos textos jurídicos,
transformando-os em normas, isto porque a norma é sempre produto da atribuição de sentido do intérprete, o ocorre sempre a partir de um ato aplicativo, que envolve toda a historicidade e a faticidade, enfim, a situação hermenêutica em que se
encontra o jurista/intérprete.
A partir desse necessário olhar hermenêutico, forjado a partir da hermenêutica filosófica, entendo que a significação do texto da Constituição somente se constitui na ação prática dos intérpretes. Não há nenhuma significação em si como uso
geral fora de situações concretas, vivenciadas, mas somente o uso do discurso no
seio/interior de uma determinada relação intersubjetiva. Só esta relação é que vai
constituir a significação. O conteúdo da Constituição exsurge, assim, das diversas intersubjetividades, constituídas e constituintes das diferentes situações hermenêuticas em que se inserem os intérpretes.
procedimentos abstrato-classificatórios e lógico-subsuntivos, onde o papel da doutrina, no mais das vezes, resume-se a um constructo de cunho conceptualizante, caudatário das decisões tribunalícias; já a jurisprudência,
nesse contexto, reproduz-se a partir de ementários que escondem a singularidade dos casos. Trata-se de um conjunto de procedimentos metodológicos que buscam “garantias de objetividade” no processo interpretativo, sendo
a linguagem relegada a uma mera instrumentalidade. O resultado disto – e calha registrar neste contexto a bem fundada crítica de Friedrich Müller - é que esse tipo de “procedimentalismo metodológico” acaba por encobrir “lingüisticamente, de modo permanente, os componentes materiais do domínio da norma”.
83 Ver, para tanto, Streck, Hermenêutica, op.cit..
112
faculdade de direito de bauru
Em outras palavras, é preciso entender que o objeto da interpretação não é o
texto (em si) da Constituição, pela simples razão de que o texto não “flutua no ar”.
Insisto: ele não existe em si e por si. Ele exsurge sempre já interpretado (portanto,
aplicado, de forma adequada ou não, a uma dada situação). Enfim, o texto só exsurge na sua norma, que decorre da normatividade que essa norma constitui. Não se
interpreta o texto, mas o texto em sua historicidade e faticidade, que vai constituir a “norma”. Norma é, assim, o texto aplicado/concretizado.
Na contramão, parte considerável da doutrina jurídica (compreendida aqui
como o pensamento majoritário no plano daquilo que se entende por dogmática jurídica) tem incorrido no equívoco de tentar estanquizar o estudo da Constituição.
Ora, é preciso entender que nenhum dispositivo, nenhuma disciplina, enfim, nada
que tenha relação com o Direito, pode ser compreendido fora da Constituição.
Quando olho (interpreto) um texto, este já me vem filtrado a partir da idéia que tenho a respeito da Constituição, isto é, minha interpretação está condicionada pela
minha pré-compreensão que tenho acerca da Constituição, do constitucionalismo,
da teoria do Estado, da sociedade, etc. Desse modo, meus pré-juízos estarão “constitucionalizados” ou não (na medida em que posso estar mergulhado na “baixa constitucionalidade”). Esses pré-juízos é que irão condicionar, sempre, o objeto da minha interpretação. Assim, a idéia do alargamento do “círculo de intérpretes” da
Constituição nos moldes propugnados por Häberle – cuja perspectiva é muito mais
pragmática do que semântica, consoante a percuciente crítica feita ao autor alemão
por Adeodato84 – esbarra na separação metafísica que a dogmática jurídica faz
entre Constituição e Direito infraconstitucional, entre o texto da Constituição e as
“incidências subsuntivas” que corresponderiam aos fatos, como se fosse possível
igualmente separar questão de fato de questão de direito (há muito que os juristas
esqueceram a origem dessa separação, que povoa o imaginário dos juristas desde a
revolução francesa: temos aqui, como bem lembra Souza e Brito,85 “um postulado
político, a saber: o legislador faz a lei, o juiz só pode averiguar os factos”). Daí a pergunta: a partir desse estado da arte do pensamento jurídico que tem ditado a forma
e o conteúdo da doutrina e da jurisprudência no Brasil – ressalvadas sempre as exceções que trabalham em uma perspectiva crítica – como construir “uma sociedade
aberta de intérpretes da Constituição”, se a interpretação tem como condição de
possibilidade a compreensão, que depende, por sua vez, de uma adequada pré-compreensão (Vorverständnis)?
A Constituição – no seu sentido de “força normativa” – somente se concretizará
na medida em que – e perdoem a minha insistência neste tema – consigamos superar
dualismos metafísicos (texto e norma, etc). Se alguém pensar que pode primeiro interpretar a Constituição para depois aplicá-la, é porque ainda está preso às amar84 Cfe. Adeodato, op.cit., p. 183.
85 Cfe. Souza e Brito, José. Hermenêutica e Direito. Coimbra, Coimbra, 1990, p.8.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
113
ras da hermenêutica clássica. É cediço que não interpretamos por partes ou em fatias. Gadamer já de há muito deixou isto bem claro: interpretar é aplicar, é concretizar,
e isto se dá no interior do círculo hermenêutico, onde já há sempre um sentido antecipado (dependemos, pois, de nossa pré-compreensão, de nossos pré-juízos).
Sem modificar o nosso modo de compreender o mundo, sem superar a relação sujeito-objeto, sem superar a cultura manualesca que assola o imaginário dos juristas, é temerário falar em sociedade aberta dos intérpretes da Constituição em
terra brasilis. Dizendo de outro modo: ou se acaba com a estardartização do Direito ou ela acaba com o que resta da ciência jurídica. Resumindo: a “baixa constitucionalidade” no Brasil decorre de uma “baixa pré-compreensão”, que acarreta uma
“baixa compreensão” que, por conseguinte, redundará em uma “baixa interpretação” (portanto, uma “baixa applicatio”). Forjou-se, assim, uma espécie de “teto hermenêutico”, estabelecido exatamente a partir de uma tradição no interior da qual o
direito constitucional nunca teve a devida importância. Esse “teto hermenêutico”
obstaculiza a necessária “imediatez constitucionalizadora”.
Explicando melhor: a chave da crise do Direito e dessa “baixa efetividade da
Constituição” talvez se deva ao fato de que o pensamento jurídico dominante continua acreditando que o jurista primeiro conhece (subtilitas inteligendi), depois interpreta (subtilitas explicandi), para só então aplicar (subtilitas applicandi); ou, de
forma mais simplista, que interpretar é desvendar o sentido unívoco da norma (sic),
ou, que interpretar é descobrir o sentido e o alcance da norma, procurando a significação dos conceitos jurídicos (sic), ou que interpretar é buscar o “verdadeiro sentido da norma”, ou ainda, que os métodos de interpretação são um “caminho seguro para alcançar corretos sentidos”, e que os critérios usuais de interpretação constitucional equivalem aos métodos e processos clássicos, destacando-se, dentre eles,
o gramatical, o lógico, o teleológico objetivo, o sistemático e o histórico (sic), e, finalmente, para total desespero dos que, como eu, são adeptos da hermenêutica filosófica, que é possível descobrir a vontade da norma (o que isto significa ninguém
sabe explicar) e que o legislador possui um espírito (sic)! Tais teses acerca da interpretação – encontráveis em boa parte da literatura jurídica pátria – estão ainda atreladas à relação sujeito-objeto, que sustentou tanto a metafísica clássica como a metafísica moderna. 86Para os adeptos de tais idéias, a interpretação é um processo re86 Para se ter uma idéia do problema do alcance e da dimensão do pensamento metafísico, vale lembrar que alguns
autores do Processo Penal ainda acreditam na “busca da verdade real”, como se fosse possível ao julgador alcançar
a essência das coisas (sic). Por todos, veja-se Fernando Capez (Curso de Processo Penal, 8ª ed., SP, Saraiva, 2002,
p.26), para quem “no processo penal, o juiz tem o dever de investigar como os fatos se passaram na realidade,
não se conformando com a verdade formal constante dos autos” (sic). Agregue-se a isso que parcela considerável do pensamento dogmático do Direito continua acreditando na existência de “um mundo-em-si”, cuja estrutura
o jurista (no caso, o juiz) pode apreender/conhecer/captar por intermédio da “razão cognitiva”, para, depois, “comunicar” aos outros pela linguagem, via sentença judicial. Repristinam, assim, a tese de que há um sujeito que conhece o objeto e/ou a tese – tão metafísica como a anterior – de que há uma verdade absoluta, que independe do
114
faculdade de direito de bauru
produtivo, pelo fato de interiorizar ou traduzir para a sua própria linguagem objetivações da mente, através de uma realidade que é análoga a que originou uma forma significativa. Em síntese, com algumas exceções, é este o estado da arte daquilo
que se entende por “interpretação da lei no Brasil”, cujas conseqüências não são
muito difíceis de perceber.
Daí a necessidade de uma insurreição contra essa fala falada, que submerge o
jurista em uma tradição inautêntica (no sentido hermenêutico-gadameriano). Essa
fala falada decorre de uma “hermenêutica de bloqueio”, que impede que o novo –
o sentido da Constituição que aponta para o resgate das promessas da modernidade – venha à tona. Para além disto, não se pode esquecer os fatores político-ideológicos relacionados às conseqüências (e reações) que uma Constituição nova provoca. Nesse sentido, Canotilho anota dois tipos de postura assumidos face à Constituição: a primeira, adotada por aqueles que optarem por concepções ideológicas
e políticas substancialmente diferentes das mensagens ideológicas consagradas na
Constituição, conduz à eleição de fundamentos interpretativos que lhes permitam
vulnerar, direta ou indiretamente, a estrutura normativa constitucional. A segunda
é adotada por aqueles que guardam sintonia com os princípios fundamentais atinentes à conformação política e jurídica da sociedade, que a Constituição contempla,
exercitam um prudente positivismo, indispensável à manutenção da obrigatoriedade normativa do texto constitucional. A primeira orientação foi seguida, durante o
conturbado período da República de Weimar, por todos aqueles que, combatendo o
caráter progressista, liberal e democrático da Constituição, acabaram por sobreacentuar a constituição real com a conseqüente infravalorização do caráter normativo da
constituição jurídica.87
conhecimento do sujeito, e que a este se impõe a partir do exterior (o ser em sua essência - sic). Ora, a tese da “busca da verdade real” (a outra “verdade” seria a formal?) implica acreditar em uma espécie de “Juiz Hercules”, que,
com sua “mente privilegiada”, conseguiria superar/resolver a angústia que persegue a humanidade desde que o logos suplantou o mito: como se dão os sentidos? Como se dão nomes às coisas? pergunta constante, aliás, já nos
primórdios da filosofia em “Crátilo”, primeiro grande livro de filosofia da linguagem que trata da grande discussão
entre sofistas e pré-socráticos. Assim, desde a aurora do conhecimento houve uma sucessão de modos de compreensão do ser e de explicitação do ente, no interior da história da metafísica -clássica e moderna, como o eidos
platônico, a ousia aristotélica, o ens creatur tomista, o cogito cartesiano instaurador da razão assujeitadora, o sistema do saber absoluto hegeliano, o eu transcendental kantiano, e, finalmente, a vontade do poder em Nietzsche,
identificada por Heidegger como o último standard de racionalidade da era da metafísica. Todos são princípios epocais sustentados na entificação e na objetificação. O que ocorreu é que, no campo jurídico (se se quizer, na ciência
do Direito) faltou a compreensão da grande revolução copernicana representada pela viragem lingüística (ou ontological turn, no seu sentido mais hermenêutico), pela qual é possível superar os dualismos metafísicos que dominam o imaginário dos juristas.
87 Ver, para tanto, Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 3ª ed. Coimbra, Coimbra Editora, 1994, p. 224;
também Grau, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988. Interpretação e Crítica. 2ª ed. São Paulo, Revista
dos Tribunais, 1991, p. 176 e 177.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
115
Adotando, pois, essa segunda postura – necessidade de resguardar a sintonia
com a materialidade da Constituição, a partir do exercício de um prudente positivismo, indispensável à preservação da força normativa do seu texto – quero, finalmente, afirmar a hermenêutica como modo de deixar o fenômeno Constitucional tornar-se visível, deixando-o vir à presença, ao contrário da dogmática jurídica tradicional, que vê a Constituição como uma (mera) ferramenta jurídica (categoria). É
preciso, pois, dizer o óbvio: a Constituição constitui (no sentido fenomenológicohermenêutico); a Constituição vincula (não metafisicamente); a Constituição estabelece as condições do agir político-estatal. Afinal, como bem assinala Miguel Angel
Pérez, uma Constituição democrática é, antes de tudo, normativa, de onde se extrai duas conclusões: que a Constituição contém mandatos jurídicos obrigatórios,
e que estes mandatos jurídicos não somente são obrigatórios senão que, muito
mais do que isso, possuem uma especial força de obrigar, uma vez que a Constituição é a forma suprema de todo o ordenamento jurídico.88 Daí a resposta afirmativa à pergunta sobre a permanência do caráter compromissório (e dirigente) da
Constituição do Brasil.
BIBLIOGRAFIA
ACKERMAN, Bruce. La política del diálogo liberal. Barcelona: Gedisa, 1999, p.203.
ADEODATO, João Maurício. Jurisdição Constitucional à brasileira – situações e limites. In:
(Neo)constitucionalismo – ontem, os códigos; hoje, as Constituições. Revista do Instituto
de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: IHJ, 2004, n. 2.
APARÍCIO PÉREZ, Miguel Angel. Modelo Constitucional de Estado y realidad Política. In: Corrupción Y Estado de Derecho – El papel de la jurisdicción. Perfecto Ibañez (Editor). Madrid: Editorial Trotta, 1996.
BACHOF, Otto. Estado de Direito e Poder Político. Boletim da Faculdade de Direito de
Coimbra, vol. LVI. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.
BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição. São
Paulo: 2003. Inédito.
_________. Constituição e superação das desigualdades regionais. In: Direito Constitucional – estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001.
_________. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max Limonad,
2002.
88 Cfe. Pérez, Miguel Angel Aparicio. Modelo Constitucional de Estado y realidad Política. In: Corrupción Y Estado
de Derecho – El papel de la jurisdicción. Perfecto Ibañez (Editor). Madrid, Editorial Trotta, 1996, op. cit., p. 30.
116
faculdade de direito de bauru
BILBAO UBILLOS, Juan Maria. Los derechos fundamentales em la frontera entre público y
lo privado. Madrid: Estúdios Ciências Jurídicas, 1997.
BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
BÖCKENFÖRD, Ernst-Wolfgang. Die Methoden der Verfassungsinterpretation – Bestandsaufnahme und Kritik, in Staat, Verfassung, Democratie: Studien zur Verfassungstheorie
und zum Verfassungsrecht. 2a. Ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992.
BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1993.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1994.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. 2ª. ed. revista. São Paulo: Saraiva, 2001.
_________. Curso de Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
CAPPELLETTI, Mauro. Juizes Legisladores?. Porto Alegre: Fabris, 1988.
CITTADINO, Gisele. “Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação
de poderes”. In: A democracia e os Três Poderes no Brasil. Luiz Werneck Vianna (org.) Ed.
UFMG, IUPERJ, FAPERJ, 2002.
COUTINHO, Jacinto (org.). Canotilho e a Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Renovar,
2002.
_________. Crítica à Teoria Geral do Direito processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
DELMANTO, Celso. Código Penal Anotado. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1984.
DIAZ REVORIO, Francisco Javier. La constituición como orden abierto. Madrid: Estudios
Ciencias Jurídicas, 1997.
DONCEL LUENGO, Juan Antonio. “El modelo español de justicia constitucional. Las decisiones más importantes del tribunal constitucional”. Sub judice, janeiro/junho, 20/21. Coimbra:
Docjuris, 2001.
DWORKIN, Ronald. L’empire du Droit. Paris: PUF, 1994.
_________. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977.
_________. Uma questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ELY, J. H. Democracy and Distrust. A theory of Judicial Review. Cambridge/Mass, 1980.
ESTEVÉZ ARAÚJO, José Antonio. La Constituición como Proceso y la Desobediencia Civil.
Madrid: Editorial Trotta.
FREEMAN, Samuel. “Original Meaning, Democratic Interpretation and the Constitution”. In:
Philosophy & Public Affairs, vol. 21, n. 1, 1992.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
117
GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Method, I, II. Tübingen, Mohr, 1990.
GARAPÓN, Antoine. Le Gardien de Promesses. Paris, Odile Jacob, 1996.
GARCIA HERRERA, Miguel Angel. “Poder Judicial y Estado Social: Legalidad y Resistencia
Constitucional”. In: Corrupción y Estado de Derecho – El papel de la jurisdicción. Perfecto Andrés Ibáñes (Editor). Madrid: Editorial Trotta, 1996.
_________. Prólogo a la segunda edición del Manual de Derecho Constitucional. Benda,
Maihofer, Vogel, Hesse, Heide. Madrid: Marcial Pons, 2001.
GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 2ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
_________. Canotilho e a Constituição Dirigente. Jacinto N.M. Coutinho (org). Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
HÄBERLE, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira
Menes. Porto Alegre: Fabris,1992.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia - entre facticidade e validade, I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
_________. Más Allá del Estado Nacional. Madrid: Editorial Trotta, 1997.
HOLMES, Stephen. “El precompromiso y la paradoja de la democracia”. In: Constitucionalismo y Democracia. Jon Elster y Rune Slagstad (org). México: Fondo de Cultura Económica, 2003.
KÄGI, Werner. Die Verfassung als rechliche Grundordnung des Saates. Untersuchungen
über die Entwicklungstendenz im modernen Verfassungsrecht. Zurich: Polygraphischer
Verlag, 1945.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise. Trad. de Luciana Villas-Boas Castelo Branco. Rio de
Janeiro: Contraponto.
LIMA, Martonio Barreto. “Justiça Constitucional e Democracia: Perspectivas para o Papel do
Poder Judiciário”. In: Revista da Procuradoria-Geral da República, n. 8. São Paulo, RT,
jan/jun de 1996.
MADISON, James. O federalista. Campinas: Russel, 2003.
MAUS, Ingeborg. “O Judiciário como Superego da Sociedade – Sobre o Papel da Atividade
Jurisprudencial na ‘Sociedade Órfã’”. Trad. de Martonio Mont’Alverne Barreto Lima e Paulo
Antonio de Menezes Albuquerque. In: Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito
da Faculdade de Direito de Recife. n. 11. Recife: UFPE, 2000.
118
faculdade de direito de bauru
MIRABETE, Julio Fabbrini. Código penal interpretado: texto atualizado de acordo com as
leis nr. 9983, de 14-7-2000, nr. 10028, de 19-10-2000, e nr. 10224, de 15-5-2001. 2. ed., atualizada até maio de 2001. São Paulo: Atlas, 2001.
MORAIS, José Luis Bolzan de. Do Direito Social aos Interesses Transindividuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.
NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica e desconstitucionalização fática: mudança simbólica da Constituição e Permanência das estruturas reais de poder. RTDP n.
12. São Paulo: Malheiros, 1995.
_________. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: USP, 1997.
OST, François. O Tempo do Direito. Lisboa: Piaget, s/d.
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia. São Leopoldo: Unisinos,
1999.
SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição reiventada. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
SARLET, Ingo. Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003.
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro, Lumen Juris,
2004.
SCHNEIDER, Hans Peter. “La Constituición – Función y Estrutuctura”. In: Democracia y
Constituición. Madrid: CEC, 1991.
SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto de. A Constituição Aberta e Atualidades dos Direitos
Fundamentais do Homem. Rio de Janeiro: UERJ, 1995.
SOUZA E BRITO, José. Hermenêutica e Direito. Coimbra: Coimbra, 1990, p.8
STARCK, Christian. “La legitimité de la justice constitutionnelle et le principe democratique
de majorité”. In: Legitimidade e legitimação da justiça constitucional. Coimbra: Coimbra
Editores, 1995.
STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença. Ijui, Ed. Unijui, 2002.
JESUS, Damásio Evangelista de. Código penal anotado. 11. ed., revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2001.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Juridica E(m) Crise – uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
_________. Da Proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot): de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
119
In: Revista Instituto de Hermenêutica Jurídica, n. 2, Porto Alegre: IHJ, 2004.
TRIBE, Laurence H. American Constitutional Law. The Foundation Press, Meneola, 1978.
_________. American Constitutional Law. The Foundation Press, Mineola, New York, 2a.
ed., 1988.
_________. “Taking Text and Structure Seriously: reflection on free-form method in constitutional interpretation”. In: Harvard Law Review, vol. 108, n. 6, 1995.
_________. “The Puzzling Persistence of Process-Based Constitutional Theories”. In: The
Yale Law Journal, vol. 89, 1980.
VIANNA, Luiz Werneck e BURGOS, Marcelo. “Revolução Processual do Direito e democracia
progressiva”. In: A democracia e os Três Poderes no Brasil. Luiz Werneck Vianna (org.) Ed.
UFMG, IUPERJ, FAPERJ, 2002.
HABERMAS:
a razão comunicativa entre ética,
política e direito
Eduardo C. B. Bittar
Professor Doutor de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo - USP/SP.
1.
O RETORNO À COMUNICAÇÃO: O MODELO TEÓRICO DE HABERMAS
Jürgen Habermas (1929-), membro da Escola de Frankfurt, partindo do eixo
idealista da reflexão alemã, tem-se destacado por pensar os principais problemas sociais e humanos a partir da matriz da comunicação. Toda mediação e toda relação
estando entrelaçadas a fatos lingüísticos e suportando uma relação discursiva, é certo que, para Habermas, esta dimensão não poderia ser negligenciada, mas sim tornar-se-ia o cerne das questões investigativas que o tem movido numa intensa jornada de produção filosófica acerca do assunto. São testemunhas desta sua intensa produtividade as seguintes obras: Estudante e política (1961); Mudança estrutural da
esfera pública (1962); Teoria e prática (1963); Conhecimento e interesse (1968);
Técnica e ciência como ideologia (1968); Movimento de protesto e reforma nas escolas de nível superior (1969); Para a lógica da ciência social (1970); Teoria da
sociedade ou tecnologia social de que é capaz a investigação de sistemas (1971);
Problemas de legitimação no capitalismo tardio (1973); Para a reconstrução do
materialismo histórico (1976); Teoria do agir comunicativo (1981); Consciência
moral e agir comunicativo (1983); O discuros filosófico da modernidade (1983);
Teoria dos meios de comunicação (1989); A ética da discussão (1991); entre outras obras. O mais importante de se dizer, e o que não se pode deixar passar desa-
122
faculdade de direito de bauru
percebido da compreensão do leitor é o fato de que sua obra ainda está em curso.
Assim sendo, seu pensamento se encontra em plena seqüência, e, como atento observador dos principais fatos que têm abalado a comunidade internacional, Habermas não tem se omitido em pensar estas questões atuais (Kosovo, Somália...), como
apontam suas mais recentes publicações.
Antes de Habermas, muito sobre comunicação já se falou. Isto não faz com
que seu pensamento tenha menos repercussão, talvez porque soube perguntar de
modo adequado a exata questão movida pela comunicação dentro do universo dos
valores filosóficos.
Não é incomum, ante esta constatação, que se questione: mais uma teoria da
comunicação? o que esta possui de peculiar? não teriam as teorias da comunicação
exaurido sua contribuição para as reflexões filosóficas?
A teoria do agir comunicativo1 surge como uma teoria voltada para a compreensão
da dimensão da verdade não enquanto conformidade da mente com as coisas, mas como
fruto de uma experiência intersubjetiva e dialógica no espaço social.2
Mais que buscar a solução do problema da verdade, desmitificada de qualquer
correlação com o gênio singular, ou mesmo com a criação pura do teórico na solidão,3 Habermas quer falar de uma linguagem que constitua uma proposta de pragmática universal, que possui seus pressupostos para existir.4
No sentido de valorizar a dimensão da intersubjetividade, e de combater a unilateralidade da idéia da razão solitária, é que se funda a teoria do agir comunicativo. No
lugar da ratio, eivada de categorias lógicas e transcendentais, como pós-metafísico e
pós-kantiano, é que Habermas aparece como um pensador ligado à questão do compartilhar que a comunicação permite. Desacredita-se, neste modelo, que o cogito ergo
sum possa ter qualquer significação maior para a fundamentação da ética:
1Para um estudo mais aprofundado desta noção, pesquise-se Habermas, Teoria do Agir Comunicativo, Frankfurt,
1981; Habermas, Esclarecimentos Acerca do Conceito do Agir Comunicativo, in Habermas, Estudos Preliminares e Suplementos à Teoria do Agir Comunicativo, Frankfurt, 1984.
2“Essa concepção de verdade abre passagem para uma Teoria Consensual da Verdade e possibilita transitar, como
veremos oportunamente, de um agir comunicativo a um agir discursivo, considerado este o locus e a forja em
que se produz um consenso autêntico” (Stieltjes, Claudio. Jürgen Habermas: a descontrução de uma teoria, São
Paulo, Germinal, 2001, p. 67).
3Habermas chega a afirmar expressamente em um de seus textos: “(...) la ética del discurso supera el planteamiento meramente interno, monológico de Kant, quien cuenta con que cada individuo particular realice la verificación
de sus máximas de acción en su fuero interno (“en la solitaria vida del alma”, como decía Husserl)” (Habermas, Jürgen, Aclaraciones a la ética del discurso, 2000, p. 23 e 24).
4“Encontramo-nos, portanto, diante de quatro pretensões de validez: 1) inteligibilidade, 2) verdade, 3) veracidade, 4) retidão. As pretensões de validez estabelecem o fundamento da pragmática universal: não lhe atribuem nem
o objetivo, nem o conteúdo. O fim da pragmática universal, como já mencionamos neste texto, é instituir uma forma de razão, um tipo de racionalidade - A Razão Comunicativa. Este é o seu teor” (Stieltjes, Claudio. Jürgen
Habermas: a descontrução de uma teoria, São Paulo, Germinal, 2001, p. 57).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
123
“O princípio do “eu penso”, que segundo Kant - assim como já segundo Descartes e ainda segundo Husserl - marca para a reflexão
transcendental o ponto iniludível, esse “eu penso” não permite por
si mesmo nenhuma fundamentação transcendental da ética” (Apel,
Karl-Otto, Ética do Discurso como Ética da Responsabilidade, in
Cadernos de Tradução, no. 3, Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 1998, p. 11).
Nenhum sujeito falante que se apropria de uma língua para dela usar estará
somente praticando um mero ato isolado de fala. Muito menos ainda estruturará
seu pensamento e suas categorias de organização mental a partir da imanência. Tanto a fala quanto a organização do pensamento são decorrências de um processo de
troca de experiências comunicativas que são constitutivas da ordem social e da própria noção de intersubjetividade. Pensar estas trocas e os modos pelos quais se tornam condições de realização da ação comunicativa, eis o modus desta teoria.5
A correlação com os temas da política, da moral e do direito é evidente. Não
há como se pensar qualquer tipo de norma moral, qualquer tipo de relação social,
qualquer tipo de coerção jurídica sem antes se pensar em como estas coisas se construíram, e, neste caso, a resposta é simples, pelo agir comunicativo.
1.1. A razão comunicativa em construção
A razão comunicativa é o modo pelo qual Habermas, bem como Karl-Otto
Apel,6 encontraram para discutir as viabilidades do consenso. Neste sentido, trata-se
de uma dimensão filosófica que ultrapassa as limitações temáticas do kantismo, exatamente por evitar a abstração exasperada, ou o racionalismo isolacionsita, para conceber a razão intercomunicativa em ação entre sujeitos concretos:
“Essa diferença em comparação com Kant resulta, a meu ver, da circunstância de que a pragmática-transcendental, enquanto teoria pósmetafísica, quer evitar naturalmente o dualismo kantiniano da doutrina quase platônica, ou agostiniana dos dois reinos e da apreensão
paradoxal, a ela pertencente, do homem como “cidadão de dois
mundos”, e isso sem querer negar o contexto de verdade fenomenal
5Cito em especial este trecho esclarecedor: “A pragmática universal demonstra que a utilização cotidiana da linguagem implica a coordenação das ações de um ator social com pelo menos outro ator acerca de um estado de coisas
nos mundos objetivo, subjetivo e social. A reconstrução racional das condições universais da comunicação é a base
da teoria da ação comunicativa” (Mattos, As visões de Weber e Habermas sobre direito e política, 2002, p. 77).
6Do mesmo autor, podem-se citar outros trabalhos de importância e interesse para o tema: K. O. Apel, Intenções,
Convenções e Referência a Coisas, in: H. Parret, J. Bouveresse (eds.), Significado e Compreensão, Berlin, 1981,
p. 79; K.O. Apel, É possível Distinguir a Razão Ética da Racionalidade estratégica?, Frankfurt, 1983.
124
faculdade de direito de bauru
da apreensão dualista - como o fenômeno da possível tensão entre
dever e inclinação. A pragmática transcendental parte, como foi mostrado anteriormente, antes da evidência kantiniana de que algo
como uma ética do dever tem em geral apenas sentido para um ser
que, - como o homem finito - não é nem puro ser racional nem como os animais - um ser pensante sensível ou intuitivo” (Apel, KarlOtto, Ética do Discurso como Ética da Responsabilidade, Cadernos
de Tradução no. 3, Departamento de Filosofia da Universidade de
São Paulo, 1998, p. 18).
Ora, a instância da linguagem é determinante da formação de um campo de intercâmbio, formalização, expressão e mediação não coberto por outro conceito ou instância, daí a capital importância de estudá-la enquanto categoria fundante de todo o
processo de construção da racionalidade, que perde sua centralidade antes depositada
na subjetividade e ganha valor na idéia mais ampla de intersubjetividade.7
Assim é que a linguagem aparece como uma dimensão constitutiva do mundo, na medida em que a realidade não é percebida e explicada como um em-si, mas
sim como algo que se processo em construção, através de recortes e picotes dela
extraídos por atores engajados em atos de fala, usuários que são de suas linguagens
e de suas formas de utilizá-las. A linguagem, nesta perspetiva, não será muito menos
o simples medium de que se valem os falantes para a execução do ato de transmissão de idéias. Para Habermas, a linguagem ganha um valor maior que o simples papel de mediação ou formalização do pensamento, passando a identificar-se com
uma parte da realidade ou com um modo pelo qual ela é constituída. Leia-se:
“Finalmente, a linguagem é o meio que representa as emissões e
com que um falante realiza suas operações de demarcação e desenredo da realidade. Para Habermas, a linguagem representa um fragmento sui generis da realidade” (Stieltjes, Claudio, Jürgen Habermas: a descontrução de uma teoria, 2001, p. 62).
7“Em Teoria da Ação Comunicativa, a epistemologia das ciências da linguagem centra-se fundamentalmente em
quatro pontos:
a ciência da linguagem não pode ser processada metodologicamente como uma ciência empírico-monológica;
a linguagem tem uma estrutura em níveis diferenciados, o nível da oração e o nível da emissão, isto é, um nível
constatativo e um nível realizativo;
a ciência da linguagem é reconstrutiva, isto é, consiste na compreensão de um saber (enquanto prática de regras
da língua) pré-teoricamente estruturado;
os processos de comunicação não se reduzem à transmissão de conteúdos informativos, mas possuem uma função constitutiva na formação de relações interpessoais” (Stieltjes, Claudio. Jürgen Habermas: a descontrução de
uma teoria, São Paulo, Germinal, 2001, p. 52 e 53).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
125
Neste espectro, a linguagem desaparece enquanto recurso do fala, e reaparece como instrumento de realização da socialização da cultura, de introjeção e projeção de valores, e, portanto, de entendimento entre sujeitos falantes.
Destrona-se a idéia do falante como criador da fala, pois, em verdade, ele passa a ser visto como criador e transmissor de cultura. Eis o pano de fundo de
tudo:
“O agir comunicativo pode ser compreendido como um processo circular no qual o ator é as duas coisas ao mesmo tempo: ele
é o iniciador, que domina as situações por meio de ações imputáveis; ao mesmo tempo, ele é também o produto das tradições nas quais se encontra, dos grupos solidários aos quais pertence e dos processos de socialização nos quais se cria” (Habermas, Consciência Moral e Agir Comunicativo, 1989, p. 166).
Mas, não é o simples uso da fala que fará com que dois sujeitos, ou mesmo uma comunidade inteira, riam no entendimento. A constatação de Habermas é a seguinte: normalmente, nas ações individuais, os sujeitos praticam atos
de fala com estratégias de defesa de seus próprios interesses, guiados por pretensões de sucesso e vitória que desvirtuam qualquer possibilidade de entendimento. Assim, agem estrategicamente, com vistas à realização de intenções não
declaradas no discurso. O entendimento surgirá quando e somente quando os
sujeitos falantes se prostrarem diante do discurso, mediante atitude consensual, e jamais imposta ou manipulada pela outra parte falante, por práticas comuns, com pretensões de aceitarem condições comuns, que induzam à formação de um espaço de convívio entre o ego e o alter:
“Ao contrário, falo em agir comunicativo quando os atores tratam de harmonizar internamente seus planos de ação e de só
perseguir suas respectivas metas sob a condição de um acordo
existente ou a se negociar sobre a situação e as conseqüências
esperadas. Em ambos os casos, a estrutura teleológica da ação
é pressuposta na medida em que se atribui aos atores a capacidade de agir em vista de um objetivo e o interesse em executar seus
planos de ação” (Habermas, Consciência Moral e Agir Comunicativo, 1989, ps. 164 e 165).
É certo que o ato de convívio cotidiano dos atores e falantes não é passível de
uma abstração que redunde na perda de complexidade. Ela é inerente ao processo
de construção do consenso pela fala. E é por isso que Habermas indica quais os
faculdade de direito de bauru
126
principais pontos de dissenso e discordância quando estes existem na interação comunicativa.8 Então:
“É claro que o risco de dissenso numa sociedade pluralizada e profanizada é grande, contudo, num caso de conflito, os que agem comunicativamente encontram-se frente a duas alternativas, de suspenderem a comunicação ou de agirem estrategicamente – de protelarem
ou tentarem resolver um conflito não solucionado” (Mattos, As visões de Weber e Habermas sobre direito e política, 2002, p. 80).
1.2. A ética do discurso
Para pensar a ética do discurso é necessário pensar a ética da responsabilidade.
Do que é que se trata? Na concepção compartilhada entre Habermas e Karl-Otto Apel,9
a idéia de consenso dialógico parece ser o único meio, ou a única via, para que não se
resvale num apriorismo desnecessário (ética do dever ou ética de princípios)10 ou num
moralismo reacionário e autodefensivo de seus valores. O consenso é uma idéia comunitária, a ser desenvolvida pelo grupo que pensa seus problemas em comum, e, portanto, constrói, comunicativamente, suas soluções (morais e jurídicas). Assim, toda a discussão sobre a ética do discurso perpassa a temática do consenso enquanto finalidade
mesmo da realização discusiva. Isto fica claro neste trecho:
8“Quem rejeita uma oferta inteligível de ato de fala contesta a validade do proferimento sob pelo menos um desses três aspectos da verdade, da correção e da sinceridade. Com esse “não”, ele dá expressão ao fato de que
o proferimento não preenche pelo menos uma de suas funções (da representação de estados de coisas, do asseguramento de uma relação interpessoal ou da manifestação de vivência), porque ele ou bem não se harmoniza com
o mundo dos estados de coisas existentes, ou bem com o nosso mundo de relações interpessoais legitimamente ordenadas, ou bem com o mundo particular das vivências subjetivas. Na comunicação quotidiana normal, esses aspectos não são de modo algum claramente distinguidos; mas, no caso do dissenso ou da problematização
persistentes, os falantes competentes podem diferenciar cada referência ao mundo, tematizar cada pretensão de
validade e posicionar-se em cada caso relativamente àquilo com que deparam, quer se trate de algo objetivo, quer
de algo normativo, quer subjetivo” (Habermas, Consciência Moral e Agir Comunicativo, 1989, p. 168).
9Estas idéias não são insuscetíveis à crítica. Mas, a crítica se deve, em grande parte, á própria precocidade destas
propostas para a constituição da ética do discurso. Aqui se destacam as próprias palavras críticas de Habermas contra Apel: “Entre essas teorias, a tentativa de Apel não é, certamente, a que é desenvolvida da maneira mais detalhada; não obstante, considero a ética do Discurso, que já se pode discernir em esboço, como a abordagem mais promissora na atualidade.
“O argumento transcendental-pragmático na forma proposta por Apel é fraco demais até mesmo para quebrar a resistência do céptico conseqüente a toda forma de moral racional” (Habermas, Consciência Moral e Agir Comunicativo, 1989, ps. 62 e 63).
10“A meu ver a ética do discurso pode aqui ser compreendida como tentativa de uma mediação entre a preocupação kantiana e a hegeliana com vistas a um novo fundamento para um paradigma intersubjetivo da transcendentalidade” (Apel, Karl-Otto, Ética do Discurso como Ética da Responsabilidade, in Cadernos de Tradução, no. 3, Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 1998, p. 18).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
127
“Hoje parece, portanto, restar para o problema de uma ética da responsabilidade convencional somente o caminho de solução da ética
do discurso, isto é, a cooperação solidária dos indivíduos já na fundamentação de normas consensuais morais e jurídicas como essa
torna-se por princípio possível pelo discurso argumentativo” (Apel,
Karl-Otto, Ética do Discurso como Ética da Responsabilidade, in
Cadernos de Tradução, no. 3, Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 1998, p. 9).
A ética do discurso, conforme concebida ao modo habermasiano, afasta-se da
pretensão de falar de reinos, como Kant o fazia, dividindo o fenomênico e o ideal,
assim como abandona a solidão monástica da construção das categorias morais. A
fundamentação desta moralidade vem a partir da pragmática universal, que se realiza pelo agir comunicativo consensual, grande via de construção de valores e conceitos na intersubjetividade.11
O que se percebe nas pretensões de constituição do espaço ético comum do
discurso, onde imperaria a razão comunicativa, capaz de habilitar os sujeitos falantes a interações que planificassem o entendimento comum, é a existência de pressupostos que permitam a formação desse consenso. Há, neste sentido, como condição para a realização do processo de real interação ética dos atores a necessidade
uma responsabilidade dos falantes em estarem engajados no discurso pretensões
não mascaradas e com abertura comunicativa para revelar o consenso e o dissenso.
Os problemas devem ser pensados em comum e o interesse em dissolvê-los deve
ser, também comum a todos os participantes do ato consensual:
“Em resumo: precisa ser pressuposto que em um discurso filosófico
todos os parceiros compartilhem, por princípio, de todos os problemas pensáveis - e assim também, daquele de saber se existe um
princípio obrigatório de moral - e por conseguinte estejam a priori
interessados em chegar a soluções de problemas que, para todos os
co-participantes, sejam consensuais em uma comunidade de argumentação ilimitada e ideal” (Apel, Karl-Otto, Ética do Discurso como
Ética da Responsabilidade, in Cadernos de Tradução, no. 3, Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 1998, p. 8 e 9).
Ora, respeitados os pressupostos, todo o espaço comum passa a ser construído com base na categoria da intersubjetividade comunicativa, inclusive os espaços
da moralidade e da politicidade, da juridicidade e da legalidade. A moralidade da
11Cf. Habermas, Jürgen, Aclaraciones a la ética del discurso, 2000, ps. 23 e 24.
128
faculdade de direito de bauru
teoria habermasiana contamina as noções de política e direito, e entremeia-se a estas de modo indissociável.12
É certo que a ética do discurso também não constitui, como já se viu, uma ética somente para a comunicação, como setor restrito das práticas e ações humanas.
A ética do discurso é somente um meio de se fundamentar a universalidade da ética, de modo ainda racional, não não de uma razão abstrata e dedutiva, e sim de uma
razão intersubjetiva e contextual, consensual e intercompreensiva, e perceber o
quanto todas as relações humanas não estão condicionadas pelos modos pelos
quais a comunicação é praticada. Para compreender com maior exatidão o sentido
da expressão ‘ética do discurso’, podem-se extrair valiosas e esclarecedoreas palavras do texto de Apel:
“´Ética do discurso´: um princípio de fundamentação da ética que
Jürgen Habermas e eu representamos em seus traços essenciais; por
um lado, esse título refere-se a uma forma particular de comunicação - o discurso argumentativo - como meio de fundamentação concreta de normas, e por outro lado, refere-se à circunstância de que o
discurso argumentativo - e não qualquer forma de comunicação no
mundo vivo - contém também o a priori da fundamentação racional do princípio da ética. Pretendo introduzir primeiro essas duas
dimensões características da ética do discurso. (Entende-se, pelo
que já foi dito, que por “ética do discurso” ou “ética da comunicação” não se cogita somente em uma ética especial para discursos ou
comunicação verbal)” (Apel, Karl-Otto, Ética do Discurso como Ética da Responsabilidade, in Cadernos de Tradução, no. 3, Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 1998, p. 8 e 9).
Mas, ao tratar de questão tão profundamente intrincada, como a questão da
moral, Habermas não deixa de perceber o quanto o filósofo está limitado nesta empreitada, devendo abster-se de juízos excessivamente ortodoxos ou mesmo de juízos universalistas:
“El filósofo moral no dispone de un acceso privilegiado a las verdades morales. En vista de las cuatro grandes cargas moral-políticas que
pesan sobre nuestra propia existencia - en vista del hambre y de la
miseria del Tercer Mundo; en vista de la tortura y de la continuada
violación de la dignidad humana en los Estados que no lo son de De12“And as with Kant, it is not possible to understand Habermas’ legal and political theory without also examining
his moral theory” (McCarthy, Thomas, Practical Discourse and the Relation between Moarality and Politcs, no.
4/1995, Revue Trimestrelle, Décembre 1995, PVF, Paris, p. 461).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
129
recho; en vista del creciente desempleo y del dispar reparto de la riqueza social en los países industrializados occidentales; en vista, finalmente, del riesgo autodestructivo que significa la carrera armamentística atómica para la vida sobre este planeta -, en vista de situaciones provocativas de este tipo, mi concepción restrictiva de la capacidad de la ética filosófica puede que suponga una decepción,
pero en todo caso es también un aguijón: la filosofia no exonera a
nadie de su responsabilidad práctica. Ciertamente tampoco a los filósofos: al igual que todas las demás personas, también ellos se ven
confrontados por cuestiones moral-prácticas de gran complicación,
y harán bien en empezar procurándose una imagem clara de la situación en la que se encuentran” (Habermas, Jürgen, Aclaraciones a la
ética del discurso, 2000, p. 33).
Nesta polêmica, instaura-se a questão de como seria possível estender as concepções de avançado nível de moralidade, a que se chama, no texto de Apel, de moral pós-convencional, e exigi-las mesmo, de populações que sequer galgaram a condição de um convívio menos brutalizado? Às populações que ainda não alcançaram
ou ultrapassaram modos de organização social que exijam mais do que a superação
das condições naturais adversas? Às civilizações que se encontram no limiar da condição humana? Que dizer daqueles povos e tribos que perambulam ainda nômades
sem lei e sem qualquer concepção de Estado ou de ordem?13
1.3. A ética proceduralista
Ademais, o que há de distintivo na contribuição da ética discursiva habermasiana? Para responder a esta questão, é necessário acompanhar o filósofo, quando,
lucidamente, afirma:
“A ética do Discurso refuta o cepticismo ético, explicando como os
juízos morais podem ser fundamentados. Com efeito, toda teoria do
desenvolvimento da capacidade de juízo moral tem que pressupor
como dada a possibilidade de distinguir entre juízos morais corretos
e errados.
13“De importância decisiva para o nosso problema reveste-se entretanto a segunda forma de dependência: a dependência das condições de aplicação particularmente da competência moral pós-convencional (alcançada por
partes da população mundial) do nível da moral coletiva, e especialmente do nível das instituições jurídicas e de
sua eficiência, respectivamente de sua aceitação social: como será possível a um indivíduo, por exemplo, a um
funcionário cônscio do seu dever, praticar a competência de uma moral de Law and order (Lei e Ordem) numa
sociedade na qual o Estado de Direito nem sequer foi implantado ou nem sequer funciona?” (Apel, Karl-Otto, Ética do Discurso como Ética da Responsabilidade, in Cadernos de Tradução, no. 3, Departamento de Filosofia da
Universidade de São Paulo, 1998, p. 24).
130
faculdade de direito de bauru
“A ética do Discurso não dá nenhuma orientação conteudística, mas
sim, um procedimento rico de pressupostos, que deve garantir a imparcialidade da formação do juízo. O Discurso prático é um processo, não para a produção de normas justificadas, mas para o exame da
validade de normas consideradas hipoteticamente. É só com esse
proceduralismo que a ética do Discurso se distingue de outras éticas cognitivistas, universalistas e formalistas, tais como a teoria da
justiça de Rawls” (Habermas, Consciência Moral e Agir Comunicativo, 1989, p. 148).
A particular preocupação desta ética discursiva são as condições de validade pelas quais se produzem os discursos (jurídicos, políticos, morais, educacionais...). No lugar do apreço aos valores, no lugar da indicação do bom e do mal,
no lugar de afugentar pelo maniqueísmo escatológico os vícios humanos, esta
proposta tem a sóbria tendência a identificar-se menos com conteúdos morais e
axiológicos, e mais com os modos pelos quais se fazem discursos. Eis aí seu proceduralismo.
A grande condição de realizabilidade universal (U) de suas proposições reside naquilo que Habermas aponta como sendo a regra de consenso do discurso, que legitima em último grau o procedimento, ao estilo do juízo categórico
kantiano:
“A posição defendida por Apel e por mim tem, porém, a vantagem
de que as suposições básicas de ordem cognitivista, universalista e
formalista se deixam derivar do princípio moral fundamentado pela
ética do Discurso. Para esse princípio, ofereci acima a seguinte formulação:
“(U) Toda norma válida tem que preencher a condição de que as conseqüências e efeitos colaterais que previsivelmente resultem de sua
observância universal, para a satisfação dos interesses de todo indivíduo possam ser aceitas sem coação por todos os concernidos” (Habermas, Consciência Moral e Agir Comunicativo, 1989, p. 147).14
14Haveria, para Habermas, um distanciamento de sua proposta com relação á proposta de Ralws, que parte de uma
criação irreal, sendo a ética procedural histórica e real, concreta e imersa nas interações sociais: “Sob esse aspecto,
nosso princípio de universalização distingue-se da conhecida proposta de John Rawls.
“Este gostaria de ver assegurada a consideração imparcial de todos os interesses afetados pela iniciativa do sujeito,
que julga moralmente, de colocar-se num estado originário fictício excluindo os diferenciais de poder, garantindo
liberdades iguais para todos e deixando cada um na ignorância das posições que ele próprio assumiria numa ordenação social futura, não importa como organizada” (Habermas, Consciência Moral e Agir Comunicativo, 1989, p.
87).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
2.
n.
39
131
ALGUNS ASPECTOS DA POLÍTICA PARA HABERMAS
A política é um tema central de especulação na teoria de Habermas. A esfera
pública e as formas pelas quais esta esfera se constrói são temas que estão, de certa
forma, disseminados no pensamento do filósofo.
Uma primeira idéia que se afigura sobre a temática é a da impossibilidade de
construção de esfera pública sólida se exclusivamente baseada a sua estruturação no
poder. Parece ser conditio sine qua non para a idéia de politicidade do convívio
aquela outra segundo a qual as relações são feitas de modo consensual e não sob o
mando do poder. O agir comunicativo tem este pressuposto. Reforçando esta idéia,
a ética do discurso somente é gerada na medida em que os atores estão em condições equânimes de aderirem e particparem com liberdade dos modos de produção
do consenso. Onde o poder aparece nu e cru, impossível o florescimento de qualquer espécie de assentimento, teórico ou prático, do discurso. Então:
“O Agir Social deve pôr as pretensões de poder no ostracismo: esta
é a condição para que as Forças Ilocucionárias da fala possam exercer seu potencial gerativo de entendimento num processo de interação social coordenado de forma participativa e cooperativa” (Stieltjes, Claudio, Jürgen Habermas: a descontrução de uma teoria,
2001, p. 62).
Exatamente por possuir excessivas exigências deste gênero, é que os críticos
apontam na teoria de Habermas um defeito insuperável: o caráter lacunar de suas
proposições, que tornam vulnerável sua teoria pela carência de realismo.15 Onde e
como são realizáveis estas condicionantes de comunicação que estão pressupostas
por Habermas? Será que a política não está sempre entrelaçada a manifestações de
poder? Seria o poder extirpável de sociedades concretas, com suas necessidades
econômicas, sua historicidade e suas condições sócio-culturais?
15Na íntegra, a procedente crítica de MacCarty: “None of these considerations is new to political theory. I mention
them here only to show that Habermas’ concept of practical discourse is too restrictive to serve as a model - even
an ideal model - of rational will-formation and collective decision-making in the democratic public sphere. There
are alternatives to coercion not captured by his notions of negotiated compromise and rational consensus, forms
of reasoned agreement, among free and equal persons, which are motivated by good reasons in ways different from
that singled out by his strong conception of argumentation. In pursuit of such agreements, citizens may enter public debate with a variety of expectations, of which the possibility of unanamity is only one. And this diversity in
types of agreement and expectation is reflected in the diversity of forms of political conflict resolution. A public
sphere whose institutions and culture embodied this diversity would, I have wanted to suggest, be a more realistic ideal than one embodying, in however detranscendentalized a form, Kant’s insufficiently contextualized notion
of the rational will” (McCarthy, Thomas, Practical Discourse and the Relation between Morality and Politcs, n. 4, in
Revue Internationale de Philosophie, Décembre 1995, p. 481).
132
faculdade de direito de bauru
Mas, talvez seja a desesperança habermasiana nos sistemas políticos em si, ou
mesmo, num mundo pós-guerra fria, nas ideologias em si, que o otimismo ressurge
através da ética do discurso. Ora, cobrando-se da sociedade a melhor e maior consciência da ação comunicativa, nesta perspectiva, seria possível recuperar uma dimensão perdida, ocupada sobretudo pela força do capital, pelos mecanismos de manipulação e pelo merchandising, recobrando-se o sentido da esfera pública pelo canal do consenso, e não do arbítrio. Talvez a política esteja mais carente disto, do que
da assunção de novas bandeiras ideológicas ou mesmo de medidas drásticas do
ponto de vista estratégico na administração pública.
Certamente, o capitalismo não é, para Habermas, a alternativa para a solução
das pendências sociais e humanas mais profundas, até porque parece previsível o
colapso do sistema capitalista, que, na profunda dependência da economia e da burocracia, convive dificilmente com a legitimidade popular de que carece. Habermas,
através de seu aprofundado estudo sobre a crise de legitimação no capitalismo avançado, está plenamente cônscio dos problemas e abalos que vive o sistema políticocapitalista dominante na maior parte dos países desenvolvidos, com conseqüências
diretas sobre os países em desenvolvimento, como se pode ilustrar por este trecho:
“O sistema político requer um insumo de lealdade de massa que é
tão difuso quanto possível. A produção consiste em decisões administrativas coordenadamente executadas. A crise de produção tem a
forma de crise de racionalidade, nas quais o sistema administrativo
não tem êxito em reconciliar e cumprir os imperativos recebidos do
sistema econômico. A crise de consumo tem a forma de uma crise
de legitimação; o sistema legitimante não tem êxito em manter o nível requerido de lealdade de massas, enquanto os imperativos de decisão, tomados do sistema econômico, forem executados. Embora
ambas as tendências de crises surjam no sistema político, diferem na
sua forma de aparecimento. A crise de racionalidade é uma crise sistêmica deslocada, a qual, como a crise econômica expressa a contradição entre produção socializada ou interesses não generalizados e
imperativos de condução. Esta tendência de crise é convertida em
retirada de legitimação ou uma desorganização do aparelho do estado. A crise de legitimação, em contraste, é diretamente uma crise de
identidade. Não procede através de ameaçadora integração sistêmica, mas resulta do fato que o cumprimentodas tarefas de planejamento governamental ocorrem em questão na estrutura de domínio
público despolitizado, e, portanto, ao assegurar normalmente e democraticamente a disposição privada autônoma dos meios de produção” (Habermas, A Crise de Legitimação no Capitalismo Tardio,
Rio de Janeiro, 1999, p. 64).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
133
Crê-se não ser exagero afirmar que Habermas é um otimista das relações comunicativas, das relações internacionais, num processo de acentuada globalização e
interação comunicativa, e até mesmo no reconhecimento da identidade do direito
enquanto instância capaz de produzir o bloqueio dos avanços dos sistemas político
e econômico em face das reais necessidades de um povo.
3.
ALGUNS ASPECTOS DO DIREITO PARA HABERMAS
Todo o processo político de interação dos agentes sociais e de construção
de decisões comuns a partir da ação comunicativa passa a ter reflexo sobre a
própria noção de direito. O que é público pode ser defendido pelo sistema jurídico, mas o que é privado também. Mais do que isto, aquele que é o procedimento para o entendimento de duas pessoas em relações privadas, pode também representar o modo de entendimento para que se construam políticas públicas. Então, desaparece a diferenciação marcante entre a esfera do público e
do privado, desde que o sejam respeitadas as condicionantes pelas quais a ação
comunicativa seja realizada.16 O modo procedural validamente aplicado garante
ao direito ser a efetiva barreira de contenção das arbitrariedades sociais, e o escudo para a construção da justiça social.
Isto porque, ao contrário de muitas concepções filosóficas, inclusive a marxista, a teoria habermasiana não reconhece no direito um modo de realização da mera
dominação de classes, e muito menos a mera imposição de valores pelo legislador
de cima para baixo. As regras jurídicas, construídas por um processo de ação comunicativa, trazem por processo congênito a idéia de que aqueles a quem se destinam
também são parte do processo de sua formação.17
Há, portanto, em toda a construção habermasiana acerca do direito e do agir
comunicativo, a necessária idéia da presença cidadão das regras jurídicas como
16Estas idéias de exegese dos textos de Habermas estão baseadas em Farias:“A gênese e o desenvolvimento do direito como forma reguladora e como função integradora, sem esquecer as conseqüentes e naturais superações das
antigas formas jurídicas e estatais, foram examinadas, extensa e profundamente, pela nova filosofia jurídica de Habermas (1992a; 1992b; 1994; 1994; 1996; 1997; 1998a; 1998b). Em tese, o direito, longe de ser tido como
“puro” , é articulado com aspectos éticos, sociais, políticos etc; a premissa geral dessa tese é o conceito “de indivíduo socializado por sua própria natureza”; um dos seus corolários fundamentais é a concepção do “ponto de
vista moral como sendo ancorado na estrutura de reconhecimento recíproco dos sujeitos agindo comunicativamente”; a principal conseqüência prática, enfim, é que “a moral privada e a justiça pública não se distinguem mais em
princípio, mas somente quanto ao grau de organização e de mediação institucional das interações” (Habermas,
1992a: 150)” (Farias, Flávio Bezerra de, A globalização e o Estado cosmopolita - As antinomias de Jürgen Habermas, 2001, p. 52).
17“Mas também porque ele se fundamenta num processo legislativo, no qual os indivíduos não se sentem apenas
destinatários das normas jurídicas, como também seus autores” (Mattos, As visões de Weber e Habermas sobre direito e política, 2002, p. 70).
134
faculdade de direito de bauru
agentes de construção delas próprias.18 A função de integração, portanto, está claramente identificada e apresentada como sendo algo característico do direito, na concepção habermasiana:
“Como função social integradora cujo papel é distinto da moral e da política, o direito consente a solidariedade entre sujeitos jurídicos, inseridos
numa sociedade caracterizada por uma ampla variedade de interesses
concorrentes e por uma complexidade de formas de vida cada vez maior.
Em Habermas, o direito assume uma dimensão normativa e torna-se um
instrumento abstrato capaz de viabilizar tanto a coesão social como a diversidade, o particularismo, o pluralismo etc., próprios aos indivíduos e
aos grupos no quadro de um Estado democrático de direito (Zolo, 1998:
49). A função de integração do direito foi vinculada a um contrato social:
“(...) a paradoxal proeza do direito consiste no fato de que reduz o conflito potencial de liberdades individuais desatreladas através de normas
que podem coagir somente na medida em que são reconhecidas como
legítimas, na base frágil de liberdades comunicacionais desatreladas (...).
Uma força que permanece oposta à força comunicacional socialmente
integradora, é, sob a forma de coerção legítima, assim convertida nos
próprios meios de integração social” (Habermas, 1997: 462).
“O positivismo centrado na conciliação de interesses antagônicos, que
havia saído pela porta da frente, retorna pela porta de trás, para fundar
uma ampla teoria discursiva do direito, partindo da premissa de que “o
esquema através do qual os direitos civis seriam, substancialmente, o
resultado da luta de classes é, obviamente, muito estreito” (Habermas,
1992b: 124)” (Farias, Flávio Bezerra de, A globalização e o Estado cosmopolita - As antinomias de Jürgen Habermas, 2001, p. 52).
Em outras palavras, é o agir comunicativo a única fonte de fundamentação do
próprio processo de constituição do direito positivo, enquanto emanação do poder
de mando do Estado.19 Nem razão naturalistas, nem razões metafísicas, nem razões
18“Para superar as limitações dos dois paradigmas, o procedimentalismo difunde que a proteção jurídica deve engajar o indivíduo num percepção organizada, de articulação e imposição de seus próprios interesses. Portanto, a
pessoa deve experimentar a organização da proteção do direito como um processo político em que ela mesma participe na construção do contra-poder, articulando os interesses sociais, valorizando dessa maneira, o status de cidadão. A teoria do discurso explica a legitimação do direito com o auxílio de processos e pressupostos da comunicação” (Mattos, As visões de Weber e Habermas sobre direito e política, 2002, p. 107).
19Perceba-se que aqui se está diante de uma nova perspectiva de fundamentação do direito positivo: “O processo
democrático de constituição do direito constitui a única fonte pós-metafísica de legitimação do direito positivo, extraindo sua força legitimadora da teoria do agir comunicativo ou teoria do discurso” (Mattos, As visões de Weber e
Habermas sobre direito e política, 2002, p. 71).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
135
histórico-econômicas são aqui invocadas para a fundamentação da juridicidade, pois
tudo repousa na capacidade de consenso gerada pelo agir comunicativo. Aliás, o direito entra neste processo exatamente para cumprir um papel primordial: permitir
que as interações sociais ocorram sem recurso à dominação pela força física (violência),20 ou por outros recursos que coarctem a real liberdade dos atores sociais.
As instituições passam a ter um peso significativo na construção do que é comum, para Habermas, a partir do momento em que, entre a linguagem do mundo
e a linguagem do direito se estabelecer um elo de profunda simbiose. Não se trata
de vangloriar um sistema jurídico enquanto perfeita abstração, ou mesmo enquanto perfeita capacidade racional de se abstraírem condutas da realidade social para a
formação de um sistema coerente de regras. Trata-se muito menos de presenciar o
direito enquanto poder de mando normativo ou como legalismo dogmático, e sim
de verificar o quanto a instância do direito, em meio a outras (política e moral), não
cumpre a importante missão de mediar interesses, estando, diante do conflito entre
faticidade e validade, historicamente engajado em reais condições de produção:
“A derivação do direito a partir desse dilema não envolve apenas aspectos estáticos ou sincrônicos, pois deve ser situado no tempo e no
espaço, passando por deliberações e confrontos, antes que as regras
de direito sejam elaboradas, avaliadas e adotadas. Embora o direito
seja abstrato, não resulta de algo abstrato, fora do contexto social,
político e moral; mas, ao contrário, é inseparável dos sujeitos envolvidos (individual e socialmente) e da dinâmica de suas relações
complexas e concorrenciais. (Habermas (1997: 459) considera, pois,
a tensão entre facticidade e validade, que “é simplesmente intensificada e operacionalizada” na regulação própria ao direito, como um
processo historicamente determinado, isto é, “em contextos de interação de uma sociedade concreta” (Idem: 124. Jamais quer aderir
aos que defendem o direito fora do tempo e do espaço. Busca, ao
contrário, demonstrar que o normativo passa por experiências concretas, por verdadeiras materializações, que fortalecem os sistemas
jurídicos ao adquirir uma validade incontestável” (Farias, Flávio Bezerra de, A globalização e o Estado cosmopolita - As antinomias
de Jürgen Habermas, 2001, p. 51).
O direito torna-se condição de realização deste diálogo, ou mesmo da própria
possibilidade de ele se realizar, banindo a violência e a opressão, o desmando e o
20Ainda uma vez, cita-se a mesma autora, pela clareza de sua exposição: “Com o intuito de pensar uma forma de
integração social não violenta, Habermas salienta que por meio da linguagem é possível coordenar os planos de
ação de vários atores sociais” (Mattos, As visões de Weber e Habermas sobre direito e política, 2002, p. 76).
136
faculdade de direito de bauru
poder descontrolado, as arapucas econômicas e os argumentos manipulatórios de
perverterem todos os espaços. De fato:
“O direito se apresenta como elemento de grande importância para
que os sistemas dirigidos pelo dinheiro e poder não fujam a uma integração social mediada por uma consciência que leva em conta toda
a sociedade. Esse sistema tem a função de dirimir a impressão equivocada de que devido ao alto grau de complexidade social, a integração social não seja mais passível de apreensão por parte de figuras
normativas rígidas do direito racional” (Mattos, As visões de Weber e
Habermas sobre direito e política, 2002, p. 103).
4.
O COSMOPOLITISMO DO MODELO HABERMASIANO
Há, na teoria de Habermas, uma pretensão de universalidade, à qual já se referiu anteriormente, e, neste capítulo, se referirá a um otimismo acentuado na aposta na construção de um espaço mediático da comunicação a partir da idéia de agir
comunicativo no cenário internacional. Certamente por conta de seu compromisso
com as matrizes do idealismo alemão, agregado à questão do cosmopolitismo civilizatório e à globalização, habermas se torna um pensador engajado no processo de
franco avanço do intercâmbio das nações.21 Se Kant pensa em uma Federação de Estados para garantir um estado permamante de paz, Habermas pensa na acentuada
elevação do grau de comunicação e dos espaços jurídicos mediados entre os Estados. Em plena construção acerca do assunto, seu pensamento se estrutura no sentido da aceitação da dimensão do progressivo e paulatino avanço das relações comunicativas internacionais:
“Habermas abordou, parcial e circunstancialmente, o tema do direito internacional no posfácio de 1994 ao seu livro “Entre facticidade e
validade” (1992), ao falar da necessidade de reformar a ONU para
fortalecer suas resoluções, no sentido de apoiar a “globalização de
direitos” e o advento de uma “sociedade cosmopolita” de inspiração
kantiana (Idem: 456). Evidentemente, tais elementos eram insuficientes para construir uma filosofia do direito situada no nível inter21“Sem negar suas raízes no idealismo alemão - inclusive, no socialismo utópico e na economia política - o marxismo pode fazer uma crítica pertinente dos elementos de idealismo presentes tanto na ética da discussão e na pragmática da linguagem, como no otimista globalismo jurídico e político de Habermas, cujos respectivos tipos ideais
da comunicação angelical e da comunicação política universal - e de uma democracia transnacional, em prospectiva - tendem a supor uma linguagem transparente e capaz de regular todas as relações entre os sujeitos ( Vincent,
1987: 20)” (Farias, Flávio Bezerra de, A globalização e o Estado cosmopolita – As antinomias de Jürgen Habermas,
São Paulo, 2001, p.109).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
137
nacional. Habermas teve que realizar depois outras incursões nesse
domínio, por força das circunstâncias, sobretudo em razão de eventos como o aumento da intromissão das instituições internacionais
em questões nacionais, a unificação alemã, a Guerra do Golfo, a integração européia etc., que exigiam de uma teoria dita crítica novas posições filosóficas, jurídicas, morais e políticas. Em breve, o
próprio advento da era pós-moderna e o avanço da ideologia da globalização levaram-no a iniciar uma dedução discursiva do direito cosmopolita, refletindo sobre “a paz perpétua”, na ocasião do bicentenário dessa idéia kantiana”
(...)
“O ensaio de 1996 torna-se um marco na passagem habermasiana do direito internacional ao direito cosmopolita, deduzida de
uma concepção geral envolvendo uma dupla “radicalização”,
tanto da democracia burguesa formal, através da globalização
dos direitos, como da tradição idealista kantiana pela busca da
sociedade cosmopolita. Percebe-se facilmente que o cosmopolitismo habermasiano tanto parece “retroagir antinomicamente
sobre a premissa geral da teoria ‘discursiva’ do direito”, como
cai no vazio de uma “veleidosa e perigosa exasperação normativa” (Zolo, 1998: 61)” (Farias, Flávio Bezerra de, A globalização
e o Estado cosmopolita - As antinomias de Jürgen Habermas,
2001, ps. 72, 73 e 74).
A questão dos direitos humanos preocupa especialmente Habermas, fato
que o motiva a escrever Bestialidade e humanidade exatamente para discutir
o quanto os direitos humanos não têm servido para justificar, a partir de expressões vagas (“direitos humanos”, “moral majoritária”, “nações civilizadas”, “garantia da ordem internacional”, “combate ao terrorismo”, “combate às ditaduras”...), e de carências do sistema jurídico internacional, atitudes bélicas agressivas e ilegítimas.
Na aposta entre a moral das relações internacionais (estado de natureza)
e na juridicização das relações internacionais (estado de cidadania universal),
optando por um linha kantiana de raciocínio (A paz perpétua), Habermas opta
pela segunda, como solução, e inaugura uma argumentação em torno do tema
da cidadania universal, que teria por base a aceitação de, pelo menos:
• diálogo comunicativo internacional;
• racionalização do cenário internacional;
• estruturação jurídica da ordem internacional;
• burocratização das instituições internacionais;
• fortalecimento do poderio de intervenção e decisão dos órgãos internacionais.
138
faculdade de direito de bauru
Otimista que é da ação comunicativa, idealista também se faz ante ao processo de globalização das relações humanas. Exatamente os críticos aportam à sua teoria apresentando diversos argumentos contrários a este otimismo:
“Portanto, o projeto da democracia cosmopolita exige uma reforma
substancial das instituições internacionais, para que se tornem aptas
ao desempenho de atividades executivas, judiciárias e policiais supra-nacionais, isto é, agindo em todo o mundo (Habermas, 1996:
75-76). Implicitamente, Habermas parece estar de acordo, quer
com o projeto reacionário de exportar a “democracia” manu militari, como nos casos da Nicarágua e de Cuba, quer com as experiências de invasão, como ocoreram em Granada e no Haiti (Zolo, 1998:
61).
“Originalmente concebida por Kant, a organização cosmopolita do
mundo moderno não é mais um mito: a passagem pós-moderna da
“cidadania política” para a “cidadania cosmopolita” constitui “um
continuum que, apesar de tudo, já está tomando forma” (Habermas, 1992b: 136-37)” (Farias, Flávio Bezerra de, A globalização e
o Estado cosmopolita - As antinomias de Jürgen Habermas, 2001,
p. 85).
“Habermas deveria ser realista a ponto de ver que quem personifica
as relações políticas expressas tendencialmente num Estado cosmopolita são, em última instância, aqueles “senhores da paz” (Zolo,
1998), representantes das superpotências econômicas, militares e
políticas do planeta. Quanto ao aspecto representativo da democracia cosmopolita, seria necessária a eleição de um Parlamento mundial, de acordo com o princípio de um voto para cada cosmopolense, pois “em tal Parlamento, os povos não seriam mais representados por seus governos, mas enquanto totalidade dos cidadãos do
mundo” (Habermas, 1996: 77)” (Farias, Flávio Bezerra de, A globalização e o Estado cosmopolita – As antinomias de Jürgen Habermas, 2001, p. 103).
Alguns teóricos mais ácidos chegam a acusá-lo de pensar de acordo com uma
globalização que favorece o capitalismo e despreza os interesses das massas:
“Sua teoria discursiva da democracia cosmopolita nega, pois, a capacidade atual das massas trabalhadoras de agirem, prospectiva e plenamente, conforme seus interesses históricos e universais. Estariam,
ao contrário, sempre disponíveis para as manipulações, as opressões
e as explorações das grandes corporações transnacionais, no quadro
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
139
da globalização e do Estado cosmopolita” (Farias, Flávio Bezerra de,
A globalização e o Estado cosmopolita – As antinomias de Jürgen
Habermas, 2001, p. 112 e 113).
CONCLUSÕES
A teoria habermasiana, engrossada pelos argumentos de Karl-Otto Apel, tem
profundo valor na construção dos espaços da política e da juridicidade. De fato, ao
delimitar uma discussão acerca da importância da comunicação, não enquanto instrumental de relacionamento, mas como modo de ação que pode fundamentar a interlocução e o entendimento, realizadas certas condições e pressupostos, traz à tona
o valor constitutivo e efetivamente presente da comunicação para o fortalecimento
da esfera pública. Não é demais recuperar aqui uma idéia fundamental encetada no
texto como condição para a definição do que seja uma ação comunicativa em face
de uma ação estratégica:
“Chamo comunicativas às interações nas quais as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação, o
acordo alcançado em cada caso medindo-se pelo reconhecimento
intersubjetivo das pretensões de validez. No caso de processos de
entendimento mútuo lingüísticos, os atores erguem com seus
atos de fala, ao se entenderem uns com os outros sobre algo, pretensões de validez, mais precisamente, pretensões de verdade,
pretensões de correção e pretensões de sinceridade, conforme se
refiram a algo no mundo objetivo (enquanto totalidade dos estados de coisas existentes), a algo no mundo social comum (enquanto totalidade das relações interpessoais legitimamente reguladas de um grupo social) ou a algo no mundo subjetivo próprio
(enquanto totalidade das vivências a que têm acesso privilegiado).
Enquanto que no agir estratégico um atua sobre o outro para ensejar a continuação desejada de uma interação, no agir comunicativo um é motivado racionalmente pelo outro para uma ação de
adesão - e isso em virtude do efeito ilocucionário de comprometimento que a oferta de um ato de fala suscita” (Habermas, Consciência Moral e Agir Comunicativo, 1989, p. 79).
Existem críticas de diversas naturezas a seu modelo teórico, pontuadas ao longo do texto, por vezes indicando a insuficiência de seus argumentos, por vezes
apontando o idealismo de suas propostas, e, ainda, por vezes, indicando a inabilidade do autor de realizar o seu próprio projeto de falar de situações reais para atores
reais em situações de comunicação efetivas. Estas críticas derivariam exatamente do
faculdade de direito de bauru
140
fato de, apesar de críticos do pensamento de Kant, se posicionarem, Habermas e
Apel, muito próximos das pretensões universalistas não abandonadas do kantismo:
“Parece evidente que a ética do discurso não deve partir - ao contrário do que acontece com KANT - do ideal normativo de puros entes
da razão, isto é, de uma sociedade ideal de entes da razão, separados de realidade e história. Muito pelo contrário, deve observar que
a História humana - também a da Moral e do Direito - desde sempre
existiu e que a justificação de normas concretas, para não falar de
sua prática de acordo com as situações verificadas, pode e deve ligar-se à ética historicamente concretizada nas diversas formas de
existência. Mas ao mesmo tempo não pode nem quer a Ética do Discurso desistir da perspectiva universalista do dever ideal, atingido por KANT” (Apel, Karl-Otto, Ética do Discurso como Ética da
Responsabilidade, Cadernos de Tradução no. 3, Departamento de
Filosofia da Universidade de São Paulo, 1998, p. 21).
Estas críticas, no entanto, não desmerecem a contribuição trazida pela teoria
habermasiana no sentido da discussão da comunicação menos como medium e
mais como procedimento de construção de uma intersubjetividade consensual. A
mesma idéia que o faz um otimista das relações privadas é lançada para a plenificação da justificação dos sistemas moral, político e jurídico. Ademais, projeta-se a teoria para o plano das relações internacionais, constituindo-se o modo pelo qual se
pode faz com que, por meio do direito cosmopolita, a ordem internacional intersubjetiva e comunicativa, prevaleça sobre o estado de natureza e de guerra em que vivem os Estados.
BIBLIOGRAFIA
APEL, Karl-Otto. Ética do discurso como ética da responsabilidade. Tradução de Maria Nazaré de Camargo Pacheco Amaral. In: Cadernos de tradução, 3, 1998, Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, ps. 08-40.
CAMARGO, A. L. Chaves. Culpabilidade e reprovação penal. Tese apresentada à Faculdade
de Direito para o concurso de professor Titular de Direio Penal. São Paulo: Universidade de
São Paulo, 1993.
CAMARGO, Antonio Luís Chaves. Tipo penal e linguagem. Rio de Janeiro: Forense, 1982.
FARIAS, Flávio Bezerra de. A globalização e o estado cosmolpolita: as antinomias de Jürgen Habermas. São Paulo: Cortez, 2001.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
141
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George
Spencer; Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.
_______, Jürgen. Bestialidade e humanidade. Cadernos de filosofia alemã. Tradução de
Luiz Repa. Departamento de Filosofia: São Paulo: Universidade de São Paulo, 5, ps. 77-87, ag.
1999.
_______, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 1989.
_______, Jürgen. Écrits politiques. Traduction de Christian Bouchindhomme et Rainer
Rochlitz. Paris: CERF, 1990.
_______, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Tradução de Ana Maria Bernardo
et alii. Lisboa: Dom Quixote, 1990.
MATTOS, Patrícia Castro. As visões de Weber e Habermas sobre direito e política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002.
MATTOS, Patrícia Castro. As visões de Weber e Habermas sobre direito e política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002.
McCARTHY, Thomas, Practical Discourse and the Relation between Moarality and Politcs, in
Revue International de Philosophie, n. 4, Presses Universitaires de France, Paris, p. 461 ss.,
déc. 1995.
MONTEIRO, Claúdia Servilha. Direito argumentativo e direito discursivo: a contribuição
de Perelman e o desafio de Habermas para a teoria da argumentação jurídica, in Seqüência 40, Revista do curso de pós-graduação em Direito da UFSC, XXI, ps. 87-107, jul.
2000.
STIELTJES, Claudio. Jürgen Habermas: a descontrução de uma teoria. São Paulo: Germinal, 2001.
Análise comparativa da Teoria Pura Do
Direito e da Teoria Dos Sistemas Fechados
Ruth Maria Junqueira de Andrade Pereira
Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP
Mestranda em Flosofia do Direito (D.E.A) pela Universidade de Paris II
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objetivo dissertar sobre as semelhanças e diferenças entre a Teoria pura do Direito, de Hans Kelsen, e a teoria dos sistemas fechados de
Niklas Luhmann tendo como referência principal deste autor o livro O Direito da
Sociedade, traduzido ainda de forma provisória para o espanhol por Javier Torres
Nafarrete.
É certo que não temos a pretensão de esgotar o assunto, mesmo porque as
duas obras são riquíssimas em detalhes e de grande complexidade. Apenas pretendemos ressaltar os principais pontos, dando uma visão global das mencionadas teorias e tentar desvendar um pouco mais os mistérios da obra de Luhamann, tão pouco estudada e difundida em nossa cultura ao contrário do que sempre ocorreu com
Kelsen.
1.
PONTOS RELEVANTES SOBRE A VIDA E A OBRA DE LUHMANN E
KELSEN
O pensamento de Luhmann não é muito conhecido fora dos países de língua
alemã, mas ultimamente este moderno sociólogo tem despertado a atenção do resto do mundo.
144
faculdade de direito de bauru
Niklas Luhmann nasceu na Alemanha, na cidade de Lüneburg, em 8 de dezembro de 1927, e morreu em 06 de novembro de 1998. Entre 1946 e 1949, estudou direito em Freiburg; como não tinha pretensões de seguir carreira universitária começou a trabalhar na administração pública como assessor no Ministério de Educação
e Ciência de Niedersachsen (Baixa Saxônia). Seu primeiro contato com a teoria dos
sistemas ocorreu em 1960, na Universidade de Harvard, através de Talcott Parsons.
Incentivado por Helmunt Schelzky, sociólogo alemão, iniciou sua carreira universitária vindo a assumir, em 1968, a cátedra de sociologia na Universidade de Bielefeld,
onde permaneceu até fevereiro de 1993.1
Luhmann construiu sua obra essencialmente em torno da teoria geral da sociologia, da sociologia do direito e da economia. Entre suas principais publicações,
encontram-se: Sociologia do Direito (1972); Sistemas Sociais - Fundamentos de uma
teoria geral (1984); A economia da sociedade (1988); A ciência da sociedade (1991);
A sociedade da sociedade (1997) e O direito da sociedade. Seu maior objetivo era
construir uma teoria geral da sociedade moderna, por isto toda a sua obra é baseada na sociedade moderna e notabilizou-se por ter construído um modelo teórico
para a sociologia do direito.
Não há a menor dúvida da grande influência que Parsons teve na obra de Luhmann, mas aos poucos ele desenvolveu uma teoria única. Entre 1960 e 1980, Luhmann compartilhou da teoria dos sistemas elaborada por Parsons, a partir de 1980
elaborou a sua própria teoria dos sistemas.
A teoria de Parsons era baseada em sistemas abertos, na qual toda demanda
apresentada ao sistema (inputs) obtinha uma resposta (outputs); já a teoria elaborada por Luhmann baseava-se em sistemas operativamente fechados e cognitivamente abertos como veremos mais a frente.
Hans Kelsen nasceu em Praga, durante o Império Austro-Húngaro, em 11 de
outubro de 1881 e faleceu nos Estados Unidos na cidade de Berkeley em 19 de abril
de 1973. Em 1920, colaborou na redação da constituição austríaca e, entre 1921 e
1930, foi juiz da Corte Constitucional da Áustria. Ensinou na Universidade de Viena
no período de 1911 a 1930 e depois na Universidade de Colônia. Devido ao nazismo, foi obrigado a refugiar-se nos Estados Unidos, tendo sido acolhido pela Universidade de Harvard e, posteriormente, Berkeley, onde permaneceu até a sua morte.
Ao contrário de Luhmann, sua obra sempre foi estudada nos quatros cantos
do mundo, apesar da leitura de sua obra ter o mesmo grau de dificuldade que a de
Luhmann, sua importância como filósofo, sociólogo e precursor da lógica jurídica
sempre foi reconhecida. Em 1934, publicou a primeira edição do Teoria Pura do Direito, o qual foi reeditado em 1960 com mudanças consideráveis, ou como ele mesmo descreveu no prefácio à segunda edição “representa uma completa reelabora1 NEVES, Clarissa Eckert Baeta; SAMIOS, Eva Machado Barbosa (orgs.). Niklas Luhmann: a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997, p. 9.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
145
ção dos assuntos versados na primeira edição e um substancial alargamento das matérias tratadas”.2
Em sua obra Teoria Pura do Direito, Kelsen desenvolve o princípio da pureza
que deveria nortear o método e o objeto da ciência do direito. Este princípio determina que o direito deve preocupar-se apenas com a norma jurídica e não deve deixar-se poluir pela moral ou por qualquer outra ciência. Como veremos adiante, de
uma certa forma, este princípio assemelha-se ao fechamento operacional dos sistemas luhmanianos.
Não é difícil concluir que a obra de Kelsen teve influência na de Luhmann tanto que este cita aquele em seus livros. Kelsen não se manifestou sobre a teoria dos
sistemas fechados de Luhmann, pois esta foi elaborada aproximadamente em 1984
com a edição do livro sistema social: esboço de uma teoria geral e Kelsen faleceu
em 1973.
Por fim, faz-se necessário observar que tanto Kelsen como Luhmann são positivistas.
2.
ALGUNS ASPECTOS SOBRE A TEORIA DOS SISTEMAS DE LUHMANN
Antes de discorrermos sobre semelhanças e diferenças entre o pensamento
kelseniano e o luhmaniano, consideramos ser importante abordar alguns pontos básicos sobre a teoria dos sistemas.
Como já ressaltamos anteriormente, a primeira fase da teoria de Luhmann elaborada nos anos 60 a 70 baseava-se em sistemas abertos capazes de receber informações do ambiente (inputs) e responder a estas informações (outputs) mantendo
uma relação de causalidade.
A obra de Luhmann pode ser entendida como um esforço em se formular
uma teoria geral da sociedade moderna, a qual é marcada por funções diferenciadas
e não por hierarquia. Outra característica da sociedade contemporânea é ser extremamente complexa. Complexa devido às infinitas possibilidades nela existentes.
Portanto, não é uma teoria apenas do direito, mas de toda a sociedade.
A tarefa dos sistemas seria captar e reduzir a complexidade da sociedade e
com isto possibilitar ao homem uma melhor forma de vida, por isto a teoria dos sistemas seria a única capaz de formular uma teoria geral da sociedade, no entender
de Luhmann. No momento em que se cria uma barreira entre o sistema e o ambiente, o sistema se torna menos complexo que o ambiente.
Sistema seria um conjunto de elementos delimitados segundo o princípio
da diferenciação. Tudo o que não fizer parte do sistema está no seu ambiente. A diferença sistema/ambiente fará parte de toda a obra de Luhmann.
2 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.
XVII.
146
faculdade de direito de bauru
Haveria três grandes sistemas: a) sistemas vivos referentes a operações vitais;
b) sistemas psíquicos referentes à consciência e nele estaria o homem; e c) sistema
social onde haveria apenas comunicação.3
O sistema do direito, assim como o da política e da economia, seria um sistema parcial, um subsistema do sistema social; portanto, seria inconcebível haver direito fora da sociedade. Exatamente por isto, um de seus livros denomina-se Direito da sociedade, o direito faz parte do sistema da sociedade, não está fora dele; portanto, para Luhmann, a expressão direito e sociedade não faria o menor sentido.
Dentro do sistema jurídico, haveria apenas comunicação jurídica.
Pela sua teoria, o homem não faz parte da sociedade, pertence a outro sistema. O homem pertence ao ambiente do sistema social e está estruturalmente acoplado à sociedade. O acoplamento estrutural é um mecanismo que permite a relação de um sistema com o seu ambiente. Mas, deve-se ressaltar que um sistema só
capta informação de outro se transformar o que captou para o seu código, a sua função e o seu programa.
Todo sistema possui três elementos essenciais: código, função e programa.
Cada sistema possui, com exclusividade, determinado código, função e programa e
através destes elementos é possível diferenciar os vários sistemas existentes.
É o código que faz com que uma comunicação pertença ou não a um sistema.
Ele será sempre binário, o que facilita a distinção entre o que pertence ou não ao
sistema. No sistema jurídico, o código é lícito/ilícito; assim, sempre que uma comunicação se enquadrar como lícita/ilícita pertencerá ao sistema jurídico; do contrário,
não. O código da ciência é verdadeiro/falso, da política é maioria/minoria. Um código não reconhece o outro, o direito não lida com o código da ciência e vice-versa.
Se um código interferir no outro, temos a corrupção do sistema.
O programa é um conjunto de condições que determinam como se dirigir ao código. Os programas jurídicos serão sempre condicionais: se forem preenchidas determinadas condições, deve-se ter a seguinte conseqüência (se – então). Programas condicionais são como regra voltados para o passado e oferecem tratamento para desilusões, excepcionalmente lidam com o futuro. No sistema jurídico, as leis, resoluções, regulamentos representam o programa do sistema uma vez que determinam o que pode ser considerado lícito ou ilícito. Diante disto, percebe-se que os programas são variáveis, mas o código não. O programa garante a adjudicação correta do código.
Código e programa devem trabalhar em perfeita sintonia, de forma que o programa possa se adaptar às diferentes operações do sistema, desde que tenham o
mesmo código.
Cada sistema também terá uma função específica. No caso do direito, esta função relaciona-se com expectativas. Segundo Luhmann, as expectativas podem ser
3 NEVES, Clarissa Eckert Baeta; SAMIOS, Eva Machado Barbosa (orgs.). Niklas Luhmann: a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997, p. 16.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
147
cognitivas ou normativas. Expectativas cognitivas são aquelas que deixam de subsistir quando violadas: o espectador adapta sua expectativa à realidade, que lhe é contrária. Já as normativas mantêm-se a despeito de sua violação: o espectador exige
que a realidade se adapte à expectativa, e esta continua a valer mesmo contra os fatos (contrafática). É evidente que o direito lida com expectativas normativas, contra
os fatos.4
As expectativas normativas que têm o status do direito são as que se generalizam de forma congruente. Precisam estar congruentemente generalizadas do ponto de vista: temporal, social e material.
A generalização temporal decorre da possibilidade de aplicação de uma
sanção. A sanção mantém a expectativa ao longo do tempo; a social advém de
procedimentos capazes de gerar um consenso antecipado para decisões de conteúdo incerto, as partes não sabem qual será a decisão final, mas oferecem uma
legitimação antecipada para decisões de conteúdo incerto; do ponto de vista material, as expectativas jurídicas se traduzem em programas normativos; no caso
do direito, as leis.
Podemos então afirmar que a função do sistema jurídico é garantir expectativas normativas, produzir o direito através do direito.
A comunicação, operação típica do sistema social, também se organiza em torno de um conjunto de expectativas. O comunicador tem a expectativa de ser claro,
tem a expectativa sobre a expectativa do ouvinte estar entendendo-o. O ouvinte não
sabe se o comunicador está sendo claro e se está entendendo corretamente. Há
uma dupla contingência. Por contingência, entende-se que é a possibilidade que alguma coisa aconteça ou não; pode não ocorrer o que é esperado.
Comunicação produz sempre e sucessivamente comunicação. Compreende o
ato de comunicar, informar e compreender. Estas três operações ocorrem na sociedade; isoladamente, não há comunicação.
A sociedade moderna caracteriza-se pelo aumento das possibilidades de comunicação. A passagem da sociedade diferenciada por segmentos, para a diferenciada por requisitos geográficos, para a diferenciada por estratos, para a diferenciada
por funções reflete uma maior possibilidade de comunicação, de escolhas, ou seja,
um aumento da complexidade.
Comunicação de primeiro grau é realizada pelo sistema ao se produzir e se reproduzir; por exemplo, no sistema jurídico, a prolação de uma sentença é uma comunicação de primeiro grau. A comunicação de segundo grau ocorre quando o sistema se auto-observa, a teoria do direito é uma auto-observação do sistema jurídico
e, portanto, uma forma de comunicação de segundo grau.
4 CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Claudio. Glosario sobre la teoria social de Niklas Luhmann
(Glossário sobre a teoria social de Niklas Luhmann). Trad. Miguel Romero Pérez; Carlos Villalobos. Barcelona, 1996,
pp. 79/82.
faculdade de direito de bauru
148
O excesso de opções da sociedade contemporânea possibilita que a escolha
recaia sobre qualquer destas opções, se é possível escolher quaisquer das opções,
significa que a escolha é reversível. Isto é o que Luhmann chama de contingência.
Segundo Luhmann, a única desvantagem da teoria dos sistemas seria a complexidade e abstração de seus conceitos, mas ele tem dúvidas se pode considerar
que isto seja realmente uma desvantagem.5 Deve-se ressaltar que a complexidade de
nossa sociedade requer uma teoria complexa.
3.
EVOLUÇÃO DO DIREITO
O direito da sociedade moderna é o direito positivo, escrito, baseado em sistemas fechados. Na Antigüidade, o direito não precisava ser escrito (direito natural).
A escrita é um mecanismo de acoplamento estrutural, pressupõe um espaço em
branco que diz respeito à interpretação, serve para evitar conflitos, mas pode criálos. A fixação por escrito da memória social não permite que esta se esmaeça.
No momento em que o direito passa a ser escrito, estabilizam-se as expectativas presentes nas normas e garante-se com maior segurança que estas serão aplicadas.
A evolução não é progresso, mas aumento da complexidade, aumento de possibilidades de escolha. O direito passa a ser um dos muitos sistemas sociais e várias
serão as estruturas que este sistema poderá possuir.
Os modos de seleção do que deve ser direito também variam com o desenvolvimento social. Nas sociedades arcaicas, estes mecanismos têm caráter de luta e
estão ligados à estrutura da sociedade através da capacidade tribal de se fazer valer.
Com o desenvolvimento social, surgem mecanismos de seleção mais adequados,
que sejam independentes da força de quem estiver no poder.6
4.
DIREITO POSITIVO E DIREITO NATURAL
Positivismo jurídico é uma expressão que não tem qualquer relação com o positivismo filosófico desenvolvido na França, principalmente por Augusto Comte, o
qual reconhece apenas o conhecimento científico e despe de importância a metafísica e a religião.
O positivismo jurídico nasceu da contraposição do direito positivo com o natural. Segundo Bobbio, dois são os critérios usados por Aristóteles para distinguir o
direito positivo do natural: a) o direito natural é aquele que tem em toda parte a
5 LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. Trad. Javier Torres Nafarrete. 497 páginas; lidos no original digitado,
p. 13.
6 LUHMANN, Niklas; CAMPILONGO, Celso. A diferenciação do direito: evolução do direito. Bolonha: Sociedade Editora Il Mulino, 1990, p. 4.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
149
mesma eficácia, enquanto o direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades
singulares em que é posto; b) o direito natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que sobre elas tenha o sujeito, mas existem independentemente do
fato de parecerem boas para uns e más para outros. Já o direito positivo, estabelece
que antes de reguladas as ações podem ser cumpridas de um jeito ou de outro, mas
depois de legalizadas devem ser cumpridas conforme a lei determinar.7
Norberto Bobbio relaciona seis critérios de distinção entre o direito positivo
e o natural: a) o direito natural vale em toda parte e o positivo apenas em alguns lugares; b) o direito natural é imutável no tempo, o positivo muda; c) a fonte do direito positivo (Estado) e natural (justa razão) é diferente; d) o direito natural é conhecido pelos destinatários através da razão de cada indivíduo e o positivo através de
uma declaração de vontade alheia; e) os comportamentos regulados pelo direito natural são bons ou maus por si mesmos, enquanto os comportamentos regulados
pelo direito positivo têm determinada qualificação devido à forma pela qual foram
regulados (é justo o que é ordenado; injusto o que é vetado); e f ) o direito natural
estabelece o que é bom e o positivo o que é útil.8
Ainda segundo os ensinamentos de Bobbio, existem três tipos de positivismo9:
1- Positivismo como modo de se estudar o direito (método);
2- Positivismo como modo de se entender o direito (teoria);
3- Positivismo como modo de se valorar o direito (ideologia).
O método positivista é o método científico. Um método pode ser usado por
qualquer pessoa; é apenas um meio para se atingir um fim. Um naturalista pode utilizar o método científico se entender que é o mais idôneo.
Teoria é a expressão da atitude que o homem assume perante uma certa realidade; já a ideologia, é a expressão do comportamento avaliativo que o homem assume face a uma realidade consistindo o conjunto de juízos de valores relativos a tal
realidade, conforme definição do próprio Bobbio.10
O positivismo jurídico como teoria baseia-se na teoria da coatividade do direito (normas feitas para valer por meio da força); tem no legislativo a principal fonte
do direito; considera a norma como um comando; sustenta a teoria da coerência
(em um mesmo ordenamento jurídico não podem existir normas antinômicas) e da
completude (o ordenamento é completo e através das normas explícitas ou implícitas do ordenamento jurídico o juiz sempre poderá extrair a sua decisão) e o juiz
7 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Trad. e notas. Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São
Paulo: Ícone, 1995, p. 17.
8 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Trad. e notas. Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São
Paulo: Ícone, 1995, pp. 22 e 23.
9 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Trad. e notas. Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São
Paulo: Ícone, 1995, p. 134.
10 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Trad. e notas. Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São
Paulo: Ícone, 1995, p. 223.
faculdade de direito de bauru
150
deve interpretar o direito de forma mecânica. Este é o positivismo adotado por Kelsen uma vez que ele toma uma posição positivista sobre o que é o direito, mas não
faz um juízo de valor a respeito do direito positivo, não diz se ele é bom ou mau.
O positivismo como ideologia é um juízo de valor a respeito do direito positivo. Os positivistas ideológicos consideram a lei a melhor forma de se criar o direito, ou, até mesmo, a única e valoram positivamente este fato.
Deve-se salientar que o método positivista não pressupõe a teoria positivista
e esta não pressupõe a ideologia positivista, mas a ideologia pressupõe a teoria e
esta o método.
Podemos ainda enumerar outras características do positivismo:
a) Separar do direito tudo o que não for direito como política, sociologia,
economia, religião, moral entre outros. Este é um instrumento que conferirá enorme autonomia ao direito. A separação entre direito e política, Estado e religião são grandes avanços de nossa sociedade.
b) Enfoque centrado na norma jurídica. A análise do direito será centrada na
estrutura da norma jurídica. O bom juiz não é o que julga com o coração,
mas em conformidade com as normas.
c) Racionalidade formal. A racionalidade formal está associada à outra característica do direito positivo que é a regularidade procedimental.
d) Legitimidade é sinônimo de legalidade. A medida de legitimidade é a legalidade. É a tautologia da legalidade: legal porque legítimo, legítimo porque
legal.
e) O direito positivo é a fonte da autoridade. A expressão fonte é utilizada pelos
metafísicos, Kelsen utiliza em seu lugar a expressão modo de produção do direito. Portanto, o direito positivo é o modo de produção da autoridade.
4.1. Kelsen e Luhmann: dois positivistas
Kelsen e Luhmann são positivistas. Procuram retirar do direito tudo o que não
lhe pertencer a fim de purificá-lo, mas defendem formas de positivismo diferentes
como veremos a seguir.
4.1.1.
O positivismo kelseniano
O primeiro tópico do primeiro capítulo da obra Teoria pura do direito de Kelsen intitula-se “a pureza”. O princípio da pureza é o princípio metodológico fundamental desta obra de Kelsen, segundo o próprio autor. A explicação do que significa este princípio demonstra de forma cabal por que ele é um positivista, mas há ainda outros pontos na sua obra que também justificam esta classificação.
Kelsen afirma que: “Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe a garantir um conhecimento apenas dirigido
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
151
ao direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto,
tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como direito. Quer isto dizer
que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Este é o seu princípio metodológico fundamental.”11
O autor continua criticando a ciência jurídica tradicional por ela estar longe de
satisfazer a exigência da pureza. Não aceita que a jurisprudência se confunda com a
psicologia, a sociologia, a ética, a teoria política ou com o que quer que seja. Admite que estas ciências tenham estreita conexão com o direito, mas para ele esta é mais
uma razão para que os limites entre o direito e estas ciências sejam evidentes.
O segundo capítulo de sua obra Kelsen dedica à diferenciação entre o direito
e a moral. Para ele, tanto a moral como o direito prescrevem uma conduta interna
e uma externa, mas uma conduta apenas pode ter valor moral quando não só o seu
motivo determinante como também a própria conduta correspondam a uma norma
moral. Para o direito, os motivos internos que levam determinada pessoa a seguir a
lei são irrelevantes, basta que se siga a lei; mas para a moral não basta que se sigam
as normas morais. Alguém que cumpra uma norma moral por medo de algum castigo não está sendo totalmente moral. Além disto, o direito se distingue da moral
por ser uma ordem de coação, isto é, para cada conduta indesejada aplica uma coerção; a moral não estatui sanções deste tipo contando apenas com a aprovação ou
desaprovação social.
Pressupor que o direito abriga um mínimo de moral é pressupor uma moral
absoluta. Ressalta o autor que os sistemas de moral variam de época para época, de
povo para povo e até em um mesmo povo dentro de classes sociais ou profissões
diferentes. A única identidade entre os sistemas de moral existentes é o fato de serem normas sociais. Para ele, nem a paz é um valor moral absoluto. Kelsen salienta
que quando uma ordem jurídica é valorada de moral ou imoral isto traduz a relação
entre a ordem jurídica e um dos vários sistemas de moral existentes. O direito deve
ser moral, justo, mas não necessariamente o será. A validade de uma ordem jurídica independe de sua concordância ou discordância com qualquer sistema de moral.
Por fim, conclui que a tarefa da ciência jurídica é descrever o seu objeto e não
apreciá-lo como bom ou mau. A ciência jurídica não tem o papel de legitimar o direito, de justificá-lo através de uma moral absoluta ou relativa, tem que conhecê-lo
e descrevê-lo.12
No capítulo três, da referida obra, denominado Direito e Ciência, Kelsen afirma ser evidente que o objeto da ciência jurídica é o direito e que isto significa que
são as normas jurídicas o objeto da ciência do direito. Também observa que a con11 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp.
1 e 2.
12 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp.
66/78.
152
faculdade de direito de bauru
duta humana só faz parte deste objeto na medida em que for conteúdo de normas
jurídicas.13
Da análise dos pontos acima destacados, podemos concluir facilmente que
Kelsen é um positivista uma vez que procura separar do direito, tudo o que não for
direito inclusive a moral; para isto, elabora o princípio da pureza e discorre longamente sobre as diferenças entre a moral e o direito concluindo que a validade de
uma ordem jurídica independe de qualquer sistema de moral. Observe-se também
que ele inicia o terceiro capítulo de sua obra frisando que o objeto da ciência jurídica são as normas jurídicas o que demonstra que sua análise do direito enfoca-se na
norma jurídica, a qual será a fonte primordial do direito.
O positivismo kelseniano é estrutural, centrado em normas, hierarquias, e
classes; é escalonado, possuindo diferentes camadas. É o positivismo clássico. Kelsen elaborou uma estrutura hierárquica piramidal em que toda norma tem validade
e se fundamenta em outra que lhe é superior e todo o conjunto se subordina à norma hipotética fundamental, ou seja, uma portaria fundamenta-se em uma lei que se
fundamenta na Constituição e todas elas têm como fundamento último de validade a norma hipotética fundamental, a qual dá unidade ao conjunto. Uma norma somente é válida se foi produzida da maneira determinada por outra norma, a que regula a produção e que é superior àquela que foi produzida. Portanto, observamos
que Kelsen descreve o direito internamente, utilizando somente categorias jurídicas, o que pode ser comparado à autodescrição dos sistemas luhmanianos.
A norma hipotética fundamental é uma norma pressuposta e não posta. É o
fundamento de validade comum de todas as normas pertencentes a uma mesma ordem normativa. Esta norma determinará como as outras devem ser criadas e só serão consideradas válidas as normas que forem criadas de acordo com a norma hipotética fundamental, a qual não possui conteúdo.
São características da norma hipotética fundamental: a) é pressuposta e
não posta; b) sua validade não depende de nenhuma outra norma; c) é o fundamento de validade das outras normas que pertençam a sua ordem normativa; d)
é um ponto de partida para se pensar o ordenamento jurídico; e) não tem conteúdo; f ) é o ponto de convergência de todas as normas que integram o sistema, dá unidade ao sistema; e g) confere o poder de se criar normas. Para se criarem normas, é necessário partir do pressuposto existente na “consciência” de
que a norma fundamental teria estas características. Confere competência para
se criar normas.
Para Kelsen, o fundamento de um ordenamento jurídico é a norma fundamental.
13 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp.
79.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
4.1.2.
n.
39
153
O positivismo luhmaniano
Na obra Direito da sociedade de Luhmann, no segundo capítulo denominado o fechamento operativo do sistema jurídico, encontramos as características necessárias para enquadrar a sua teoria dos sistemas fechados como sendo positivista.
De fato, o fechamento operativo do sistema jurídico muito se aproxima do princípio
da pureza elaborado por Kelsen.
Os sistemas fechados têm por característica serem: autopoiéticos, auto-referentes e operacionalmente fechados.
O conceito de autopoiésis foi formulado pelo biólogo Humberto Maturana
para definir a organização de organismos vivos, que se caracterizavam pela capacidade de produzir e reproduzir por si mesmos os elementos dos quais são constituídos. Podemos definir sistema autopoiético como aquele que é capaz de elaborar a
partir dele mesmo sua estrutura e os elementos de que se compõe.14
Os sistemas são auto-referentes, pois referem a si mesmos em cada uma de
suas operações. Luhmann afirmou que os sistemas autopoiéticos são sempre sistemas históricos, que partem do estado imediatamente anterior que eles mesmos haviam criado.15 São históricos no sentido de que, para produzirem novas operações,
devem remeter ao passado. No momento em que a operação de transformação
ocorre a operação passada se dissipa, mas a nova operação depende da passada para
ocorrer e neste sentido são auto-referentes.
Todas as operações do sistema são internas, o ambiente nada contribui com as
operações de reprodução do sistema e disto decorre a tese do fechamento operativo. O
ambiente pode apenas irritar, despertar algo no sistema; mas jamais influencia as sua operações internas. O sistema não despreza completamente o ambiente pode dele retirar alternativas, informações e levar para o interior do sistema, mas não há uma relação de causalidade nesta operação como ocorria na teoria dos sistemas abertos.
O sistema jurídico pode até transferir problemas de outros sistemas para o
seu, desde que utilize a comunicação e o código jurídicos e com isto ajuda os outros sistemas. Por exemplo, a proteção que o direito dá à livre concorrência é uma
forma do sistema jurídico ajudar a resolver um dos problemas do econômicos.
Nas palavras de Luhmann:
A clausura operativa significa unicamente que a autopoiésis do sistema só pode ser efetuada com operações próprias, que a unidade do
sistema só pode ser reproduzida com operações próprias. E também, de forma inversa: que o sistema não pode operar em seu am14 NEVES, Clarissa Eckert Baeta; SAMIOS, Eva Machado Barbosa (orgs.). Niklas Luhmann: a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997, p. 16.
15 LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. Trad. Javier Torres Nafarrete. 497 páginas; lidos no original digitado, p.33.
154
faculdade de direito de bauru
biente, e tão pouco possui a capacidade de vincular-se ao seu ambiente através de operações próprias.16
Como já foi dito anteriormente, cada sistema possui um código específico e
tudo o que não for aceito por este código pertence ao ambiente do sistema; portanto, o código é o que fecha o sistema, é o que lhe dá unidade.
O código não é uma norma, é um mecanismo de reconhecimento da “autopoiésis” da sociedade. Luhmann critica a norma hipotética fundamental de Kelsen,
porque para ele o que dá unidade ao sistema é o código e não a norma.
Assim, podemos concluir que o fechamento operativo confere autonomia ao
sistema e, no caso do sistema jurídico, impede que o que não for direito faça parte
do sistema exercendo a mesma função do princípio da pureza de Kelsen.
Além disto, a idéia de “autopoiésis” determina que só o direito cria o direito,
que só o direito pode decidir o que é o direito.
Outro ponto importante decorre da idéia de operações que transformam o
conteúdo do sistema, o que mostra que este não seria imutável, outra característica
do direito positivo, o que demonstra que o direito da sociedade moderna é o direito positivo, posto por uma decisão, direito possível face a vários outros igualmente
possíveis. O direito positivo seria um mecanismo que possibilitaria a escolha em situações complexas, por isto só a sociedade moderna justificaria a sua existência uma
vez que nas sociedades primitivas não há necessidade de se reduzir a complexidade, pois elas não são complexas.
Entretanto, o positivismo de Luhmann não é estrutural, mas operacional, baseia-se em operações internas que ocorrem no interior dos sistemas, não se relaciona com normas. Não existe hierarquia, nem norma fundamental na teoria de Luhmann; para ele, o que fundamenta o direito é o próprio direito.
Ao invés de vértice, o sistema jurídico de Luhmann possui um centro, o qual
é constituído pelos Tribunais, pois em última instância são eles que atribuem o que
é lícito ou ilícito.
Há quem afirme que a sociedade moderna multiplicou os centros o que fez
com que esses perdessem a importância. Citam como exemplo a lei de arbitragem
através da qual o que é lícito ou não pode ser decidido fora dos tribunais. Esta é uma
crítica equivocada, pois em última instância, mesmo com a lei de arbitragem, continuam sendo os Tribunais que decidem o que é lícito ou não, uma vez que se uma
das partes não cumprir a decisão do árbitro resta a outra recorrer aos Tribunais para
que a sentença arbitral seja executada.
Além do centro, o sistema jurídico possui uma periferia, que seria uma espécie de travesseiro, amortecedor da conflituosidade interna do sistema. Leis, contra-
16 LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. Trad. Javier Torres Nafarrete. 497 páginas; lidos no original digitado, p. 351.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
155
tos e tratados ocupam a periferia do sistema jurídico, funcionando como um filtro
para que os conflitos não cheguem ao núcleo do sistema sem que tenham sido codificados, pois, se isso ocorrer, há a corrupção do código, o que para Luhmann é um
desastre por travar o processo de comunicação devido a uma redução excessiva da
complexidade.
O sistema de Luhmann é caracterizado pela ausência de regras de estrutura que o preservem, é um fechamento operacional e não estrutural como o
de Kelsen.
Da perspectiva estrutural, o sistema existe independentemente das suas operações concretas, e o componente básico é a norma jurídica. Da perspectiva operacional, o componente básico são os eventos, as comunicações jurídicas que se agregam a comunicações jurídicas.
5.
A TEORIA DOS SISTEMAS SERIA TÃO “PURA” COMO A KELSENIANA?
Em primeiro lugar, devemos ter sempre em mente que Luhmann é um sociólogo e elaborou a teoria dos sistemas com o objetivo de elaborar uma teoria social, voltada para a sociedade moderna; Kelsen não possuía este objetivo.
Renato Treves, em artigo publicado no Bulletin d’abonnement, afirma que Kelsen, na qualidade de jurista, construiu sua doutrina jurídica pura sem sair do
campo da ciência do direito, enquanto Luhmann, na condição de sociólogo,
construiu sua sociologia jurídica dentro do campo de uma sociologia geral elaborada como teoria dos sistemas sociais auto-referentes. Treves considera que
esta é uma diferença fundamental entre os dois autores já que Kelsen exclui a
sociologia, mas deixa um campo aberto aos sociólogos que podem desenvolver
pesquisas empíricas da sociologia do direito. Luhmann, ao contrário, construiu
um sistema da sociologia do direito que barra o caminho a outras teorias sociológicas empíricas que façam do direito seu objeto
(“Je pense au fait que Kelsen, en tant que juriste, construit sa doctrine juridique pure sans sortir du champ de la science du droit, alors
que Luhmann, en tant que sociologue, construit sa sociologie juridique en restant dans le champ d’une sociologie générale conçue comme théorie des systèmes sociaux autoréférentiels. Je pense surtout
au fait que cette ‘localisation’ scientifique entraîne la differénce fondamentale que j’ai évoquée: à savoir que dans la construction d’un
système juridique pur, Kelsen exclut la sociologie mais laisse toutefois un champ ouvert aux sociologies qui peuvent aussi bien développer des recherches empiriques de sociologie du droit, que des
études théoriques sur le fonctions et le fins du droit dans la société.
Luhmann, par contre, en tant que sociologue, construit un systéme
156
faculdade de direito de bauru
de sociologie du droit qui barre la route aux autres sociologies théoriques empiriques qui font du droit leur objet.”).17
De acordo com a teoria dos sistemas, estes operam de forma clausurada produzindo-se e reproduzindo-se através de seus próprios elementos, de forma que o
ambiente não faça parte desta operação. Ocorre que, apesar de existir uma barreira
entre sistema e ambiente, existe uma relação entre eles que ocorre através do acoplamento estrutural.
Segundo Luhmann, ocorre o acoplamento estrutural quando um sistema supõe
determinadas características de seu ambiente e confia estruturalmente nelas. Cita
como exemplo o fato de o dinheiro ser aceito em todos os lugares.18 O acoplamento é
tanto uma separação quanto uma vinculação com o sistema. Deve-se ressaltar que, de
forma alguma, o ambiente pode realizar o papel de input do sistema, o máximo que
pode fazer é irritar o sistema. Exatamente por isto a idéia de acoplamento estrutural e
de irritação não contradiz a autopoiésis e o fechamento operacional é uma forma de o
sistema perceber o ambiente e com isto não cair em solipsismo.
Assim, podemos afirmar que os sistemas luhmanianos são operacionalmente
fechados e cognitivamente abertos porque compreendem as relações dos outros
sistemas, podendo usá-las ou não se as codificar conforme os seus códigos e lhes for
interessante. É pelo código que o direito reconhece se determinada operação é sua
ou não. A abertura cognitiva só é possível devido ao fechamento estrutural.
Levando-se em conta que observador de segunda ordem é o que observa
aquele que está operando, observa como o operador está operando e não o que
está operando; os sistemas são observadores de segunda ordem ao compreenderem as relações dos outros sistemas.
A teoria kelseniana, baseada no princípio da pureza, não possui qualquer mecanismo que permita à ciência; do direito relacionar-se com outras ciências, muito
pelo contrário, seu objetivo é evitar a todo custo que isto ocorra.
Concluímos, portanto que o fechamento operativo confere à teoria dos sistemas, elevado grau de “pureza”, mas o fato de o sistema jurídico ser cognitivamente
aberto, de ser sensível a outros sistemas mostra que não é tão “pura” como a Teoria
Pura do Direito de Kelsen.
6.
NORMATIVIDADE ESPECIFICAMENTE JURÍDICA
A normatividade especificamente jurídica é um conceito que pode ser encontrado tanto na obra de Luhmann como na de Kelsen, embora utilizem instrumentos
diferentes para explicar o que seria esta normatividade.
17 Bulletin D’Abonnement, Dossier: Kelsen e le kantisme,1988, p. 331.
18 LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. Trad. Javier Torres Nafarrete. 497 páginas; lidos no original digitado, p.352.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
157
Conforme já ressaltamos, a teoria dos sistemas é uma teoria da sociedade moderna, onde infinitas são as possibilidades de escolha. A função dos sistemas é reduzir
estas possibilidades. O sistema jurídico realiza uma pré-seleção ao ponto de criar expectativas sobre os comportamentos que devem ser esperados. É claro que se corre o
risco das expectativas não serem atendidas e que quanto mais complexa for a sociedade maior será este risco. Caso as expectativas não se verifiquem, o sistema jurídico deve
ter mecanismos para garantir que sejam cumpridas, uma vez que são normativas as expectativas do sistema jurídico e, portanto, não estão disponíveis ao aprendizado.
Para Luhmann, a normatividade especificamente jurídica consiste na estabilização das expectativas normativas generalizadas de modo congruente (na positivação do direito), as quais podem sofrer transformações ao longo do tempo. Os programas que implementam o código do sistema jurídico são condicionais, congruentes, ou seja, variáveis. Variação (variabilidade das possibilidades), seleção (escolha
de uma possibilidade) e reestabilização (a escolha conduz a uma estabilidade) fazem
parte do direito positivo, por isto as expectativas normativas podem ser alteradas,
mas enquanto não forem não podem ser frustradas.19
A expressão luhmaniana “expectativas normativas” não é utilizada por Kelsen,
mas podemos relacioná-la com o “dever jurídico” amplamente utilizado pela Teoria
pura do direito.
Kelsen afirma que a conduta a que um indivíduo é juridicamente obrigado é
uma conduta que tem que ser realizada em face de outro indivíduo.20 Ou seja, se um
indivíduo tem o dever jurídico de realizar uma conduta é porque outro tem a expectativa normativa de que esta conduta seja realizada.
Dispõe a teoria kelseniana que uma conduta apenas pode ser considerada
como objetivamente prescrita pelo direito, como um dever jurídico, se uma norma jurídica liga à conduta oposta um ato coercitivo como sanção.20 Este é um dos
pilares da normatividade especificamente jurídica na teoria elaborada por Kelsen. O conceito de dever jurídico está ligado ao de sanção assim como o de expectativas normativas, uma vez que estas só têm o status de direito se estiverem
congruentemente generalizadas no plano temporal, social e material, e por plano temporal entende-se que é a possibilidade de aplicação de uma sanção.
É necessário ressaltar que a sanção de que estamos tratando deve ser imanente e socialmente organizada, para que não se confunda a sanção moral com a jurídica. A moral também possui sanção, mas esta é transcendente, consistindo na aprovação ou desaprovação das condutas. Uma das grandes distinções entre direito e
moral está no modo como prescrevem ou proíbem determinada conduta.
19 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, pp.
186/187.
20 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.
128 e 129.
158
faculdade de direito de bauru
A norma hipotética fundamental é outro ponto de relevante importância para
a normatividade especificamente jurídica na teoria de Kelsen.
Segundo o autor da teoria pura do direito, não é o conteúdo de uma norma
jurídica que determinará se esta é ou não válida, mas sim a forma como foi criada.
Se foi criada em conformidade com a norma fundamental pressuposta, então esta é
uma norma jurídica válida, por isto as normas jurídicas são passíveis de possuírem
qualquer conteúdo. As normas de uma ordem jurídica devem ser produzidas através de um ato especial de criação, são normas positivas.21
Assim, a existência ou não de sanção determina se determinada conduta é ou
não um dever jurídico e uma norma, para ser jurídica, deve ser elaborada consoante a norma fundamental da ordem jurídica em questão o que permite uma interpretação especificamente jurídica do direito positivo e garante a normatividade especificamente jurídica kelseniana.
7.
Kelsen um precursor da idéia de autopoiesis
Já dissertamos longamente a respeito dos diferentes tipos de sistemas usados
por Luhmann (sistema operacional) e Kelsen (sistema hierárquico) para descrever
o modo como o direito se reproduz. Portanto, fica evidente que a idéia de que o direito seja um sistema não é uma novidade luhmaniana. Kelsen já havia elaborado a
sua teoria baseada na premissa de que o direito é um sistema. No livro Teoria pura
do direito, ao dissertar sobre a norma, afirma que: “o direito é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano.” 22
Também ressaltamos que, para Luhmann, o sistema jurídico é autopoiético,
ou seja, todos os elementos necessários para a reprodução do sistema jurídico estão dentro do próprio sistema.
Kelsen em nenhum momento utilizou o termo autopoiésis em sua obra, este
é um termo que Luhmann retirou da biologia para melhor explicar um dos principais pontos da sua teoria dos sistemas fechados. Mas, Kelsen descreve a produção
do direito internamente. Para ele, todos os elementos para reprodução do direito
estão dentro da teoria normativa, por isto ele seria o pioneiro da teoria do direito
autopoiético.
Segundo Kelsen, a produção de uma norma jurídica depende de um processo legiferante em que é necessária a prática de uma série de atos previamente determinados para que se dê origem a uma norma jurídica, a qual deverá possuir algum tipo de sanção para o caso de descumprimento. A produção desta norma deve
21 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.
221.
22 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 5.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
159
obedecer as determinações da norma hipotética fundamental, que tem a função de
dar unidade ao sistema. Sendo o direito definido como uma ordem de coerção, a
norma fundamental deve determinar a produção de normas estatuidoras de atos de
coação. Assim, a grande maioria das normas jurídicas teriam a estrutura de uma
proibição, ou seja, a uma atitude tida como ilícita se liga uma sanção. Mas existem
normas que trazem uma obrigação e não uma proibição, o que para Kelsen não passa de uma norma proibitória porque obrigar certo ato é o mesmo que proibir a sua
omissão. Existem normas que trazem permissão; estas podem ser positivas ou negativas. A permissão negativa decorre da inexistência de proibição e a positiva é uma
limitação das normas proibitórias consistindo normas não-autônomas. Normas nãoautônomas são as que não possuem sanção aos atos por elas descritos como ilícitos,
mas outras normas sancionam a sua inobservância e as primeiras são ligadas a estas.
Isto é mais uma prova de como a teoria kelseniana é baseada em um sistema e de
que este sistema se autoproduz através de elementos internos.
8.
A QUESTÃO DA VALIDADE
Para Kelsen, a validade de uma norma não se identifica com a sua eficácia, mas
se uma norma válida perder totalmente a sua eficácia, ela deixa de ser válida. A eficácia é condição da validade, embora com ela não se confunda; não é fundamento
de validade. A norma fundamental é o fundamento de validade das demais normas.
Segundo a teoria pura, as normas de uma ordem jurídica valem porque a norma fundamental é pressuposta como válida e não porque são eficazes.
Luhmann, ao formular um sistema jurídico horizontal, abandona completamente
a idéia de norma fundamental e sustenta que o fundamento de validade do direito é o direito. Uma das características do direito positivo é ser mutável, talvez por isto o conteúdo dos sistemas luhmanianos estejam em constante mutação e o que hoje faz parte do
sistema jurídico amanhã pode fazer parte do seu ambiente e vice-versa. O direito vigente é resultado de uma seleção que pode se modificar a qualquer momento.
Para a teoria dos sistemas, a validade é um símbolo de circulação do valor código. É uma forma de se aferir se a comunicação do sistema é pertinente; a comunicação válida é a que lida com o código do sistema. A regra que reconhece a validade não é uma regra interna, como ocorre na teoria pura, a verificação da validade
é temporal e não hierárquica. A validade de hoje é diferente da de amanhã, porque
o sistema de hoje não é o mesmo que o de amanhã.
CONCLUSÃO
1- Luhmann era um sociólogo e o objetivo de sua teoria era formular uma teoria geral da sociedade moderna; Kelsen não tinha esta pretensão, sua obra é uma
teoria do direito e não da sociedade.
160
faculdade de direito de bauru
2- Kelsen e Luhmann são dois positivistas, mas o positivismo kelseniano é estrutural, baseado em classes e hierarquia e o positivismo luhmaniano é operacional,
baseia-se em operações internas ao sistema.
3- A idéia de que o direito é um sistema está presente na teoria dos dois autores,
mas para Kelsen um sistema estrutural e para Luhamann um sistema operacional.
4- No topo do sistema kelseniano está a norma hipotética fundamental, a qual
fundamenta o ordenamento jurídico e lhe dá unidade. Luhmann não trabalha com
a idéia de norma fundamental; para ele, o que dá unidade ao sistema jurídico é o
seu código e o que justifica o direito é o próprio direito.
5- O princípio da pureza elaborado por Kelsen muito se aproxima do fechamento operativo dos sistemas de Luhamann. A autonomia dos sistemas é uma característica presente nas duas teorias. Mas, para Kelsen, o direito não deveria ter nenhum contato com o ambiente que o circunda o que para Luhmann é possível através do acoplamento estrutural. Os sistemas luhmanianos são operativamente fechados e cognitivamente abertos.
6- Tanto Luhmann como Kelsen utilizam o conceito de normatividade especificamente jurídica, mas utilizam instrumentos diferentes para explicá-la. Para Luhmann, ela consiste na estabilização de expectativas normativas e, para Kelsen, baseia-se na existência da sanção imanente e socialmente organizada que deve ser aplicada sempre que um dever jurídico for desrespeitado.
7- Os sistemas luhmanianos são autopoiéticos por terem a capacidade de se
produzirem e reproduzirem apenas com seus elementos internos. Kelsen pode ser
considerado um precursor da autopoiésis porque descreveu internamente a produção do direito. Afirma que todos os elementos para reprodução do direito estão
dentro da teoria normativa.
8- Kelsen também descreve o direito internamente, utilizando somente categorias jurídicas o que pode ser equiparado à autodescrição dos sistemas autopoiéticos.
9- Uma norma para Kelsen será válida se foi produzida de acordo com os ditames da norma fundamental, pouco importa o seu conteúdo e basta que tenha um
mínimo de eficácia. A norma fundamental é o fundamento de validade das demais
normas. Para Luhmann, a validade é um símbolo de circulação do valor código; é
uma forma de se auferir se a comunicação do sistema é pertinente. A regra que reconhece a validade não é uma regra interna, como ocorre na teoria pura, a verificação da validade é temporal e não hierárquica.
BIBLIOGRAFIA
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Trad. e notas. Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.
Bulletin D’Abonnement, Dossier: Kelsen e le kantisme,1988
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
161
CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000.
CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Claudio. Glosario sobre la teoria social de
Niklas Luhmann (Glossário sobre a teoria social de Niklas Luhmann). Trad. Miguel Romero
Pérez; Carlos Villalobos. Barcelona, 1996.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. Trad. Javier Torres Nafarrete. 497 páginas; lidos
no original digitado.
LUHMANN, Niklas; CAMPILONGO, Celso. A diferenciação do direito: evolução do direito.
Bolonha: Sociedade Editora Il Mulino, 1990.
NEVES, Clarissa Eckert Baeta; SAMIOS, Eva Machado Barbosa (orgs.). Niklas Luhmann: a
nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, 1997.
O CARÁTER NÃO PATRIMONIAL DO
DEVER DE SUSTENTO NA PERSPECTIVA
CONSTITUCIONAL
Flávio Luís de Oliveira
Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná.
Professor da Graduação e Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da ITE/Bauru.
Advogado.
1.
A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE OBRIGAÇÃO (INTRODUÇÃO)
Como se sabe, no direito romano, a obrigação era tida como um vínculo
meramente pessoal, sem qualquer sujeição ao patrimônio do devedor, sendo
que, estando o devedor vinculado à obrigação com seu próprio corpo, o credor
tinha direito sobre ele. Daí não ser possível, naquela época, a cessão e transferência de obrigação de qualquer espécie, fosse realizada pelo credor ou fosse
pelo devedor, pois a obrigação se apresentava com esse caráter pessoal, a vincular pessoas determinadas.1
Com o progresso do conceito de obrigação, na hipótese de não cumprimento voluntário, a execução deixou de recair sobre a pessoa do devedor, dirigindo sobre o patrimônio deste, perdendo aquela antiga característica que possuía.
1 “A manus injectio é o mais antigo dos meios executórios institucionalizado pelo direito romano. Caracterizava a
manus injectio o emprego da força contra o próprio obrigado. Era acorrentado na praça pública, exprobado a solver a dívida e, finalmente, remanescendo desatendido o crédito reclamado pelo credor, padecia o devedor a brutal
e irreversível sanção da morte”. (ASSIS, Araken de. Da execução de alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais.
1998. p. 75).
164
faculdade de direito de bauru
Nesta linha, as características conceituais da obrigação continuaram praticamente as mesmas, diferenciando-se a obrigação do direito moderno pelo conteúdo
econômico da prestação.
Com efeito, em caso de descumprimento obrigacional, o devedor responde
junto ao seu credor com o seu patrimônio e não mais com sua própria pessoa. Essa
característica econômica da obrigação, que incide sobre o patrimônio deste, retirou
aquela importância central sobre a pessoa do devedor, possibilitando, hoje, a perfeita transmissibilidade das obrigações.2
“Originariamente, no primitivo direito romano, o vínculo obrigacional caracterizava-se por sua rigorosa e absoluta ‘pessoalidade’, ou
seja, a relação obrigacional era destituída de qualquer caráter de ‘patrimonialidade’, ao contrário do que se dá no direito moderno, onde
o fator patrimonial, definido como responsabilidade, assume enorme, e por vezes exclusiva, relevância, em detrimento do debitum,
enquanto vínculo de natureza pessoal, a ponto de confundirem-se os
direitos reais com os direitos de crédito”.3
Logo, a obligatio correspondia a um vínculo do qual o obrigado haveria de liberar-se através de um ato pessoal e voluntário. Assim, era inexistente, ou desprezível, o componente patrimonial, caracterizado pela responsabilidade, enquanto vínculo capaz de estabelecer a sujeição dos bens do obrigado ao cumprimento da obrigação.
Portanto, no direito moderno, o caráter econômico da obligatio evidencia que
o patrimônio do devedor responderá pelo descumprimento obrigacional.4 Nesta linha, a diversidade conceitual entre a obligatio romana e o que dela resultou para o
direito moderno, está relacionada com o próprio conceito de direito. Esta transfor2 Cf. AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 30.
3 SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 50. O mencionado jurista, ressalta que “é necessário, porém, advertir que a assimilação da
obligatio aos deveres jurídicos, assimilação definitivamente estabelecida no século XVII, como mostra Hans Hattenhauer (Conceptos fundamentales del derecho civil, ed. alemã de 1982, Barcelona, 1987, p. 79) já figurava na lição
de Paulus, jurista romano do século III da era cristã, que definia a essência da obligatio, não como o instrumento
capaz de proporcionar-nos a propriedade de um determinado objeto, ou a prestação de um serviço, e sim como
vínculo através do qual alguém se obriga a dar ou fazer alguma coisa em nosso benefício (Digesto, livro 44, título 7,
lei 3: “A essência das obrigações não consiste em que alguém nos faça proprietário de alguma coisa ou de uma servidão, mas em obrigar alguém a dar-nos alguma coisa a fazer ou não fazer.” (Ibid. p. 51).
4 Neste sentido, o artigo 591 do Código de Processo Civil dispõe que “o devedor responde, para o cumprimento
de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei.” Este aspecto também está sedimentado no artigo 942 do Código Civil, segundo o qual, “os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.”
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
165
mação exerceu papel relevante para a universalização das sentenças condenatórias
que, além de difundir, em sua forma originária, o princípio da incoercibilidade da
obrigação, reduziu a condenação a mera exortação ao condenado, confiando em
que ele, espontaneamente, cumpra o julgado.5
Além disso, a generalização do conceito de obrigação e a predisposição de
procedimentos executivos para as obrigações de fazer ou não fazer fundadas em título, contribuiu para a indistinção dos conceitos de dever (obrigação legal) e obrigação decorrente de relações contratuais ou delituais.6
Destarte, são inúmeros os exemplos de demandas que têm por objeto o cumprimento de deveres legais e que, por outro lado, não são veiculadas através de uma
sentença condenatória; ao contrário, o procedimento já prevê a possibilidade de
concessão de liminares antecipatórias, importa dizer, de se ‘executar’ de forma diversa daquelas em que se executa a sentença.7
Dentre estes procedimentos, construídos à luz das diversas situações de direito material, implementadas pelos diferentes graus de cognição do julgador, frisante
particularidade depreende-se da tutela do dever de sustento.
Nessa linha, no âmbito do direito material impende diferenciar dever e obrigação.
2.
A DISTINÇÃO ENTRE DEVER DE SUSTENTO E OBRIGAÇÃO ALIMENTAR
“Dever corresponde a direito; obrigação, a pretensão. Todos têm o dever de atendimento dos direitos de personalidade. Há dever, que foi violado; e os juristas mal se dão conta de que o ato é ilícito porque houve
violação de algum dever, que não se origina de regra jurídica, logicamente posterior, sobre a responsabilidade pelo ato ilícito”.8
5 “Um dos fatores primordiais que determinaram este resultado foi a preservação do conceito romano de jurisdição, como
pura declaração, o que determinou a supressão da tutela interdital, que era justamente àquela que, em direito romano,
continha a execução e a ordem, raízes das modernas ações executivas e interditais, ferozmente negadas pela ciência processual.” (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução... p. 57). Assim, “com a necessidade do segundo grau,
a causa, em primeiro grau, não está ganha nem perdida; a sentença do juiz, por não ter, em regra, execução imediata, serve pouco mais do que nada.” (CAPPELLETTI, Mauro apud MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execução imediata da sentença. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999. p. 214).
6 “O pano de fundo para essa perplexidade, em que muitos processualistas se encontram, é formado, sem dúvida,
pela mesma substância que produziu a doutrina da universalização da ação condenatória, na persistente tentativa
dos juristas, especialmente da ciência européia do século XIX, de transformar o direito, qualquer que seja a sua natureza e origem, em direito obrigacional, transferindo para o campo administrativo tudo o que exija do magistrado
uma ordem (imperium), e não uma simples condenação. (SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil.
v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 135).
7 À luz do que dispõe o artigo 461 do Código de Processo Civil, tendo em vista a atipicidade dos meios executivos.
8 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. tomo V. Campinas: Bookseller, 2000.
p. 478-479.
166
faculdade de direito de bauru
Com efeito, no trato das relações jurídicas, das quais se irradiam direitos e obrigações alimentares, devem-se separar, nitidamente, aquelas concernentes à existência da
sociedade conjugal, as que derivam da união estável, da responsabilidade civil, as que dizem respeito à relação de parentesco e, dentre estas, as oriundas da autoridade parental.
Com efeito, não se pode confundir a obrigação alimentar com o dever de sustento9 (decorrente da autoridade parental), já que seus pressupostos são diversos.
Note-se que o dever de sustento distingue-se das demais obrigações alimentares por objetivar a satisfação e tutela de um interesse jurídico-familiar que transcende o próprio indivíduo. Assim, a dívida alimentar que não tenha sua razão de ser
no vínculo de parentesco, haverá de regular-se por normas ou estipulações que informam o direito das obrigações.10
Como se vê, o dever de sustento visa conservar a vida, satisfazer as necessidades do indivíduo e tutelar um interesse existencial. Portanto, o critério de distinção
que pode se estabelecer, dentre outros, entre as diversas modalidades de prestação
alimentícia e sua regulação, deriva do título que lhes dá nascimento.
De um lado, o direito alimentar que decorre da lei, de outro, a prestação alimentícia criada por testamento ou convenção. Somente esta se move e vive no campo obrigacional. Aquela, ao contrário, configura uma fisionomia especial que resulta do estatuto legal consagrado ao dever de sustento.11
9 Também chamado de obrigação de sustento. (Cf. CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 401). Sob outra ótica, os deveres, também chamados de ‘obrigações legais’, capazes de gerar sentenças mandamentais, a serem atendidas pelo art. 461 do CPC, distinguem-se das pretensões nascidas do direito
obrigacional, seja contratual ou delitual. (Cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso.... v. 2. p. 134-137) Com efeito, se
alguém promete fazer o que a lei determina, ou não fazer o que a lei já lhe proíbe, não se obriga. (Cf. MIRANDA,
Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo X. Rio de Janeiro: Forense.
1976, p. 86). Assim, a regra jurídica dirige-se às pessoas, fixando-lhes posições em relações jurídicas, de forma a atribuir direitos e deveres. Algumas vezes, o dever é posterius; o que importa é o direito, prius: daí poder o terceiro
entregar a coisa devida. Outras vezes, o dever é prius; o direito, posterius: é o que se passa, por exemplo, com os
deveres paternais. Neste caso, o dever é pessoal e a prestação positiva (facere). (Cf. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de... Tomo V. Campinas: Bookseller, 2000. p. 471-477).
10 Cf. CICU, Antonio. La natura giuridica dell’obbligo alimentare fra congiunti. Rivista di Diritto Civile, 1910. p.
145. Assim, “do dever de alimentar decorre o direito a alimentos, pessoal, razão por que não se podem invocar regras jurídicas do direito das obrigações, analogicamente.” (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de...
tomo 9. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. p. 211).
11 Cf. BO, Giorgio. Il diritto degli alimenti. Milano: Giuffrè, 1935. p. 19-37. “A obrigação de sustento é uma obrigação que nasce da lei: obrigação ex lege (dever). Pode ter por fonte, porém, um negócio jurídico: contrato e testamento. Assim, a constituição de legado de alimentos, nos termos do artigo 1.687 (atual 1.920) do Código Civil. No
direito italiano, destaca-se a figura do contrato denominado vitalício alimentar, que vem assimilado, por parte da
doutrina e da jurisprudência, ao esquema da renda vitalícia (Cf. AULETTA, Tommasso Amadeo. Alimenti e solidarietà familiare. Milano: Giuffrè, 1984. p. 200). À obrigação alimentar negocial são aplicáveis, com as necessárias
correções, as regras das obrigações legais. Outrossim, a obrigação alimentar pode nascer ex delicto, portanto, de
um fato gerador de responsabilidade civil.” (OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de Família (Direito matrimonial). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1990. p. 51).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
167
A obrigação alimentar é recíproca, dependendo das possibilidades do devedor, sendo exigível se o potencial credor estiver necessitado, ao passo que o dever
de sustento, por ser unilateral, não tem o caráter de reciprocidade e deve ser cumprido nos termos do artigo 229, primeira parte, da Constituição Federal, bem como,
do artigo 1566, IV do Código Civil.12
Portanto, “entende-se que aos pais cumpre preparar o filho para a vida, proporcionando-lhe obrigatoriamente a instrução primária, ministrando-lhe a educação
compatível com a sua posição social e seus recursos.”13
Assim, se o artigo 233 inciso IV do Código Civil revogado incumbia ao marido
prover a manutenção da família, porque lhe era atribuída a chefia da sociedade conjugal, a condição de absoluta paridade em direitos e obrigações dos consortes, insculpida na Constituição Federal de 1.988, especificamente no artigo 226, § 5º, impõe
que ambos devem participar, de maneira eqüitativa, no cumprimento dos deveres
inerentes aos filhos menores não emancipados, nos exatos termos do artigo 1.567
do Código Civil em vigor.14
Logo, a obrigação alimentar pode durar a vida inteira e o dever de sustento
cessa com a maioridade dos filhos.15
Com efeito, o filho maior, por exemplo, que não trabalha e cursa estabelecimento de ensino superior, pode pleitear alimentos fundados em obrigação alimentar, alegando que se isso lhe for negado poderá prejudicar sua formação profissional.
De fato, o exemplo observado é freqüente em cursos que exigem dedicação
exclusiva, onde as chances de obtenção de emprego são reduzidas.16
Outrossim, enquanto o dever de sustento resulta da autoridade parental, a
obrigação alimentar ostenta caráter geral, vinculando-se, inclusive, à relação de parentesco em linha reta, no que tange aos filhos maiores.
12 “El artículo 39.3 de la Constitución establece lo siguiente: Los padres deben prestar asistencia de todo orden a
los hijos habidos dentro o fuera del matrimonio, durante su minoría de edad y en los demás casos en que legalmente proceda.” (Cf. GIMÉNEZ, José Antonio Pajares. Código Civil: Edición preparada. Madrid: Civitas. 1999. p. 148).
13 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v.5. Rio de Janeiro: Forense. p. 243.
14 Cf. OLIVEIRA, Flávio Luís de. A antecipação da tutela dos alimentos provisórios e provisionais cumulados à ação de investigação de paternidade. São Paulo: Malheiros. p. 30.
15 “En lo que concierne a la obligación de los padres para com sus hijos, no hace doble empleo y no debe confundirse com el deber que incumbe a los padres de sostener y educar a sus hijos; esta obligación es puramente unilateral; existe sin reciprocidad ninguna y termina com la mayor edad o la emancipación del hijo; es entonces precisamente cuando la obligación de alimentos entre en juego, en la ocasión y en el momento en que la patria potestad toma fin, y com ella los atributos y las cargas que comporta.” ( JOSSERAND, Louis. Derecho Civil. Traducción
de Santiago Cunchillos y Manterola. Buenos Aires: Bosch y Cía. 1952. p. 310).
16 “Os alimentos prestados pelo pai cessam com a maioridade ou emancipação do filho. No entanto, a jurisprudência anota casos que suscitam salutar princípio relativamente à educação dos filhos que, mesmo atingindo a maioridade, necessitam de meios para continuação dos estudos, sendo que a apreciação das circunstâncias deve constituir ponto de mérito, a critério do juiz.” (BITTENCOURT, Edgar de Moura. Guarda de filhos. 3. ed. São Paulo: Universitária do Direito, 1985. p. 71).
168
faculdade de direito de bauru
“La prestación alimentaria es uno de los deberes que se impone a
los padres como contenido de la patria potestad; no está sujeta
entonces, como en el caso de los restantes parientes, incluido el
hijo mayor de edad o emancipado, a la prueba de la necesidad
por parte del reclamante. Basta el pedido para la procedencia del
reclamo, sin perjuicio de que la cuota se establecerá en relación a
las posibilidades del demandado y la necesaria contribución del
outro progenitor.”17
Portanto, podemos sintetizar as seguintes diferenças:
“a) a obrigação de sustento é unilateral. Os devedores da obrigação de sustento são os pais; os credores, os filhos menores. Na
obrigação de alimentos, a determinação dos obrigados é recíproca. Assim, os descendentes devem alimentos aos ascendentes e
reciprocamente; b) a obrigação de sustento devida aos filhos não
obedece à determinação do seu montante à equação de proporcionalidade que é própria da obrigação de alimentos. Os alimentos, como vimos, são fixados na proporção das necessidades do
reclamante e dos recursos da pessoa obrigada. Pelo contrário, o
montante da obrigação de sustento do filho é assegurado pelas
reais possibilidades econômicas de seus pais; c) ao contrário do
que ocorre com a obrigação de alimentos, a obrigação de sustento se executa in natura,18 pois os filhos menores vivem em comunidade com seus pais.”19
“Assim, o dever de sustento define-se como uma obrigação de fazer, enquanto a obrigação alimentar consubstancia uma obrigação
de dar. Apenas quando se verifica a impossibilidade de coabitação
dos genitores, mantido o menor na companhia de um deles, ou
de terceiros, é que a execução da obrigação de sustento poderá
se resolver na prestação do equivalente; e passa a representar assim uma forma suplementar colocada à disposição do filho para
obtenção dos meios de subsistência e educação.”20
17 BOSSERT, Gustavo A. Régimen jurídico de los alimentos. Buenos Aires: Astrea, 1999, p. 199.
18 Essa forma de execução normal supõe comunhão de vida.
19 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de Família... p. 73.
20 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 406.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
3.
n.
39
169
O CONTEÚDO NÃO PATRIMONIAL DO DEVER DE SUSTENTO
DIANTE DA PRESTAÇÃO ALIMENTAR PECUNIÁRIA
Neste ponto, cumpre ressaltar que o caráter patrimonial da obligatio também
se projetou no âmbito do dever de sustento, fazendo-se presumir que o aspecto patrimonial, como dito, ligado à responsabilidade, estivesse presente nos alimentos
decorrentes da autoridade parental.
“No obstante que la prestación alimentaria tiene entidad económica,
el derecho y la obligación alimentaria correlativas no tienem un objeto o finalidad de esa índole; es decir, no se pretende la satisfacción
de un interés de naturaleza patrimonial, sino que, fundado el vínculo obligacional alimentario en la relación de familia, su finalidad es
permitir al alimentista, cónyuge o pariente, satisfacer sus necesidades materiales y espirituales, com la extensión que corresponda según el supuesto. Es por ello que, concretamente, en estos casos cabe
afirmar que la obligación alimentaria tiene carácter asistencial.”21
É preciso, portanto, desmistificar o caráter patrimonial dos alimentos decorrentes do dever de sustento, demonstrando, ainda, nesta hipótese, a inexistência de
dano, sendo inadequada, por conseqüência, a tutela ressarcitória fundada na sentença condenatória.22
Em outras palavras, caso não seja apta a prevenir o ilícito, ou removê-lo, ou
ainda, impedir a repetição de ilícitos, a tutela alimentar inerente ao dever de sustento servirá muito mais para “indenizar” o alimentante do que satisfazê-lo diante de
suas necessidades básicas prementes.23
Outrossim, diante da natureza do crédito alimentar, é inegável que a utilização
da técnica antecipatória revelar-se-á vital à efetividade das decisões judiciais, a serem
implementadas através da utilização dos meios coercitivos e sub-rogatórios que denotam o procedimento da tutela alimentar.
Por esta razão, a tutela jurisdicional, notadamente nas hipóteses concernentes
ao dever de sustento, deve ser tempestiva e voltada ao futuro, sendo atuada independentemente da ocorrência do dano. Nesta linha, a inserção dos preceitos relativos ao dever de sustento na disciplina das relações de família nos permite afirmar
21 BOSSERT, Gustavo A. Régimen jurídico... p. 03. Neste sentido, ZANNONI, Eduardo A. Derecho Civil. Buenos
Aires: Astrea, 1990, p. 83.
22 Todavia, cumpre advertir que os alimentos decorrentes de responsabilidade civil, nos termos do artigo 948, inciso II, do Código Civil, dependem, para sua configuração, da comprovação do ato danoso.
23 Tema interesante diz respeito à classificação das tutelas na forma específica (inibitória, reintegratória e ressarcitória) e seus reflexos em relação à tutela alimentar.
170
faculdade de direito de bauru
que tais alimentos correspondem a um interesse familiar superior, distinguindo-se,
assim, de qualquer outra obrigação em virtude do caráter não patrimonial, do qual
derivam várias características – a estrita personalidade, a imprescritibilidade, a irrenunciabilidade, a impenhorabilidade, a indisponibilidade, etc.24
“Quest’obbligo non si fonda su di un interesse egoistico- patrimoniale esclusivamente proprio del creditore degli alimenti, sì bene in un
interesse di natura superiore, che si potrebbe qualificare familiarepubblico”.25
“Questa caratteristica della ‘cura della persona’ (concetto tipico dei
rapporti di famiglia) e la natura non patrimoniale del rapporto postulano dunque, non solo l’autonomia dogmatica dell’obbligo alimentare fra congiunti in confronto all’obbligo alimentare da negozio o da
delitto, ma altresì la posizione particolare nel sistema dell’istituto; il
quale va concepito come un vero e rapporto familiare. E questa proposizione há un notevole interesse pratico in quanto da un lato importa l’impossibilità della estensione analogica all’obbligo alimentare
volontario delle norme dettate per l’obbligo fra congiunti, d’altro
canto significa l’inapplicabilità a quest’ultimo obbligo delle regole generali sulle obbligazioni.”26
Note-se que a prestação de alimentos não constitui para o alimentário um mero valor patrimonial, econômico, pelo que não se admite renúncia do direito aos alimentos,
24 Em sentido contrário, Tedeschi sustenta que “escluso che chi è obbligato a somministrare gli alimenti abbia, per
ciò stesso, un dovere di cura della persona, è chiaro che il contenuto dell’obbligo alimentare ha contenuto prettamente patrimoniale. Vi è tuttavia chi nega la natura patrimoniale del diritto e dell’obbligo alimentari, non già a cagione del loro contenuto, bensì per le caratteristiche loro che si sono sommariamente notate. Ma, quanto al diritto
dell’alimentando, chi ne neghi la natura patrimoniale sol perchè esso è indisponibile dovrà negare anche la patrimonialità dei diritti patrimoniali familiari, pur essi, di regola, indisponibili; mentre, comunemente, si ammette che
vi possano essere diritti patrimoniali indisponibili. ” (TEDESCHI, Guido. Gli alimenti. Torino: Utet, 1951, p. 363364). Todavia, Degni elucida que “il diritto a conseguire gli alimenti è strettamente individuale; è un diritto della personalità diretto a tutelare l’integrità fisica e, quindi, è incedibile, inespropriabile; non può essere materia di compensazione o di rinunzia; è intrasmissibile, imprescrittibile. L’art. 441 afferma esplicitamente che ‘il credito alimentare non può essere ceduto’. Esso, in sostanza, non costituisce, per l’alimentando, un bene de natura patrimoniale
del quale possa liberamente disporre: serve solo ad assicurargli i mezzi di vita.” (DEGNI, Francesco. Il Diritto di
famiglia nel nuovo codice civile italiano. Padova: Cedam, 1943. p. 479).
25 CICU, Antonio. Diritto di famiglia. Roma, 1915, p. 357. “Essendo la ragione fondamentale, per cui si impone
do provvedere a chi ne abbisogna quanto è necessario per la vita, non tanto di assoluto e stretto diritto, ma, come
già si è detto, piuttosto di vincolidi umana soliarietà, più imperiosa nell’ambito familiare, ne consegue che si ttrata
di dovere che, per la sua stessa natura, è indipendente da qualunque corrispettivo di carattere economico.” (SECCO, Luigi; REBUTTATI, Carlo. Degli alimenti. Milano: Giuffrè. 1957. p. 14).
26 BO, Giogio. Il diritto... p. 13.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
171
nem cessão do referido direito, nem transação; não pode o direito aos alimentos também
ser penhorado ou alienado, não pode, enfim, ser objeto de compensação.
Na realidade, não existiria nem um interesse nem um encargo patrimonial, visto que, prevalecendo sobre tudo o mais, estaria o caráter superior, social, familiar do
instituto, estranho ao âmbito das simples e puras relações individuais de conteúdo
econômico. É inegável que se trata de uma obrigação com caráter especial, que se
distingue não só de qualquer outra, mas também das próprias obrigações alimentares que não se radicam no vínculo familiar.27
Note-se que o termo patrimonial diz respeito ou é relativo a patrimônio e,
portanto, o fato de os alimentos serem aferíveis economicamente não nos permite
dizer que os alimentos apresentem o caráter patrimonial; mesmo porque, se assim
fosse, quem porventura os recebesse não seria designado alimentado (alimentário),
mas sim patrimoniado.28
Outrossim, é possível que o alimentante não possua patrimônio e, não obstante, cumpra a obrigação legal. Por outro lado, o fato de o alimentando receber os
alimentos não assegura, de modo algum, que detenha, ou passe a ter patrimônio.29
Logo, são conceitos distintos. Portanto, “não deve confundir-se com a patrimonialidade a possibilidade de vantagem econômica que de um direito resulte para
o seu titular”.30
Ademais,
“Montesano observa que no direito italiano admite-se a antecipação
do pagamento de soma em dinheiro quando a prestação em dinheiro é o instrumento para conservar ou reintegrar um bem não patrimonial: por exemplo, prestações alimentares”.31
27 Cf. RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil. v. 2. Campinas: Bookseller, 1999, p. 75. Neste sentido, BO, Giogio. Il diritto... p. 12-15; CICU, Antonio. Diritto... p. 357.
28 “Que não se escandalize quem não sabe pronunciar palavras que não sejam consagradas. Estou convicto que as palavras só servem para significar o pensamento. Quando encontro uma palavra, embora não consagrada por nenhum sacerdote da língua, que poderia tornar o pensamento mais eficaz e mais conciso de alguma outra, eu a uso sem aquele
temor ou medo que tomaria um escritor acadêmico. Se se admitisse unívoca e univocidade, por que não podemos admitir polívoca e polivicidade? De resto, julgo que esta liberdade seja, mais que a outra, concedida principalmente para
quem escreve em matéria científica: primeiro, porque em ciência, mais que em outra, a palavra é um acessório, que deve
curvar-se às exigências do principal que é o pensamento; e pois, porque se tem sempre que enriquecer a linguagem indefinidamente, não por luxo, mas a serviço da eficácia e da precisão, principalmente a linguagem científica.” (MALATESTA. Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. v. 1. São Paulo: Conan, 1995. p.158).
29 “Non è diritto subiettivo privato il diritto agli alimenti tra famigliari; perchè non è elemento del patrimonio, non
è bene, non è credito; chi de prestare gli alimenti non ha obbligazione, perchè non è vincolato nella libertà di disporre del proprio patrimonio.” (CICU, Antonio. Diritto... p. 100).
30 RUGGIERO, Roberto de. Instituições... v. 1. p. 283.
31 MONTESANO, Luigi. apud MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 197-198.
172
faculdade de direito de bauru
Com efeito, não há razão para confusão entre tutela prestada em pecúnia
com tutela pelo equivalente em pecúnia. Há tutela prestada em pecúnia que
pode ser específica.
Portanto, a natureza jurídica do dever de sustento não pode ser um reflexo da equivalência entre os respectivos instrumentos. Importa dizer, se é certo que é possível, embora não seja a forma ideal, tutelar um direito de conteúdo não patrimonial através do
equivalente pecuniário, não menos certo é o fato de que a tutela prestada em pecúnia
não é apta, por si só, a justificar a natureza patrimonial do direito tutelado.
De fato, “o termo ‘alimentos’, numa aproximação etimológica, derivaria de
alimentum (verbo alere), significando, numa acepção possível, nutrir, não se esgotando no sentido físico quando tomado na acepção jurídica. No ordenamento jurídico, compreendem universo de prestações de cunho assistencial que, evidentemente, tem conteúdo mais elástico no plano do direito que na percepção coloquial.
Dívida de valor, alimentos são realmente prestações normalmente em dinheiro, e nem por isso se reduzem ao conceito clássico da obrigação pecuniária, ainda
que a prestação o seja. Remarque-se, porém, tratar-se de direito pessoal, não patrimonial. O dinheiro aí é mero instrumento de quantificação da própria prestação,
que é objeto da obrigação. A manutenção do ‘poder aquisitivo’ inspira a incidência
automática da devida correção monetária”.32
“O direito a alimentos é, com efeito, um direito não-patrimonial. Isso não exclui a patrimonialidade da prestação alimentar. Todavia, o seu fim é um dado nãopatrimonial: sustento do credor”.33
Portanto, trata-se de um direito estritamente pessoal, voltado a satisfazer um
interesse imediato da pessoa, encarada como membro do núcleo familiar.34 Assim,
“el que da alimentos porque los debe aunque no los necessite el alimentista, realiza una prestación que sólo se diferencia de las demás
por su contenido. Dar alimentos porque el alimentista los requiere
para su subsistencia, no es outra cosa que satisfacer la pretensión
que nace del derecho a la vida del ser humano”.35
32 FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 268.
33 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de Família... p. 69.
34 “La prestazione che forma oggeto dell’obbligazione deve essere suscettibile di valutazione economica e deve corrispondere a un interesse anche non patrimoniale del creditore. Come si è detto, si è posto in discussione se il problema
riguardante il carattere giuridico dell’obbligo abbia una qualche connessione com quello riguardante il carattere patrimoniale della prestazione. Indubbiamente, i due aspetti non sono identici, giacchè possono esservi doveri patrimoniali che non sono obbligazioni giuridiche ed obblighi giuridici (pertinenti ad es. al diritto familiare) che non hanno contenuto patrimoniale.” (MAJO, Adolfo di. Obbligazione in generale. Bologna: Zanichelli, 1985. p. 255-256).
35 ¿Llegará a consagrarse legislativamente la prestación alimenticia como una prestación de dar impuesta a todos y
cada uno de los hombres en favor de los necessitados? El cristianismo configura así la obligación. Santa Teresa de
Jesús dice que com respecto a nuestros bienes y riquezas ejercemos una simple mayordomía y San Agustín asegu-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
4.
n.
39
173
O DEVER DE SUSTENTO NA PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL
(CONCLUSÕES)
Indubitavelmente, desde que se analise o instituto em testilha na perspectiva
constitucional, à luz dos artigos 227 e 229 da Constituição Federal, não há como negar uma vinculação imediata dos poderes públicos e dos operadores do direito, demonstrando, outrossim, a atenção dos juristas inconformados com as lacunas de
uma visão puramente economicista do intercâmbio humano.
Nessa linha, Gustavo Tepedino observa que o debate em torno do objeto dos
direitos da personalidade
“ressente-se da preocupação exasperada da doutrina em buscar um
objeto de direito que fosse externo ao sujeito, tendo em conta a dogmática construída para os direitos patrimoniais. Em outras palavras,
a própria validade da categoria parecia depender da individuação de
um bem jurídico – elemento objetivo da relação jurídica – que não
se confundisse com a pessoa humana – elemento subjetivo da relação jurídica -, já que as utilidades sobre as quais incidem os interesses patrimoniais do indivíduo, em particular no direito dominial, lhe
são sempre exteriores. Assim é que, no caso brasileiro, em respeito
ao texto constitucional, parece lícito considerar a personalidade não
como um novo reduto de poder do indivíduo, no âmbito do qual seria exercida a sua titularidade, mas como valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada, capaz de submeter toda
atividade econômica a novos critérios de validade”.36
Logo, a realidade normativa impõe, para a consecução dos fundamentos da
República, em específico a dignidade da pessoa humana, nos exatos termos do artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, a construção de procedimentos adequados
às peculiaridades do direito material, bem como, a materialização de ações fáticas
no sentido de ensejar a releitura do caráter patrimonial do dever de sustento.
ra que sobre nuestros bienes hay constituída una hipoteca a favor de los necesitados desde el principio del mundo.” (LOPEZ, Blas Piñar. La prestación alimenticia en nuestro derecho civil. Madrid: Reus, 1955. p. 8-9). “En
algunos países, ante el incumplimiento del deudor alimentario, el Estado toma a su cargo el pago, a título de adelanto, de todo o parte de la pensión alimentaria, subrogándose en los derechos del acreedor para perseguir al deudor y recuperar lo abonado. Entre los países que han adoptado esta previsión puedem citarse Suecia, que adelanta
hasta un cuarenta por ciento de la suma básica estimada para la manutención, Dinamarca, Finlandia, Alemanha y
Suiza, los cuales han tomado en cuenta la recomendación en tal sentido adoptada en la Conferencia de Viena del
Consejo de Europa de 1977.” (BOSSERT, Gustavo A. Régimen jurídico... p. 542).
36 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 23-54.
174
faculdade de direito de bauru
Com efeito, fundado na autoridade parental, o dever de sustento enseja um direito fundamental da criança e do adolescente, vinculado à personalidade e materializado em um dos meios de se usufruir o direto à vida, ostentando, portanto, nítido caráter não patrimonial, nos termos dos artigos 3º, 4º e 7º da Lei 8.069/90, dentre outros.
No que tange à construção de procedimentos adequados às peculiaridades do
direito material, frise-se a importância dos artigos 98 e 213 do cogitado Estatuto da
Criança e do Adolescente, bem como, do artigo 12 do Código Civil em vigor, à luz
do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.
Portanto, através do método de interpretação lógico-sistemático, iluminado
pelo princípio da proporcionalidade, é necessário concretizar a conformação dos
institutos do direito material aos valores constitucionais, mantendo-se, assim, a harmonia e a racionalidade do sistema normativo.
Enfim, aspira-se um sistema permeado de ações fáticas que traduzam, em respeito aos direitos fundamentais, uma vinculação ideológica voltada mais para o ‘ser’
que para o ‘ter’.
Entretanto, este desiderato somente será alcançado após uma profunda reforma ideológica dos operadores do direito, capaz de ensejar a releitura do dever de
sustento na perspectiva constitucional, com reflexos em relação ao próprio Estado
(haja vista os seus deveres), à luz dos fundamentos e objetivos da República.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Araken de Assis. Da execução de alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
AULETTA, Tommasso Amadeo. Alimenti e solidarietà familiare. Milano: Giuffrè, 1984.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999.
BITTENCOURT, Edgar de Moura. Guarda de filhos. 3. ed., São Paulo: Universitária do Direito, 1985.
BO, Giorgio. Il diritto degli alimenti. Milano: Giuffrè, 1935.
BOSSERT, Gustavo A. Régimen jurídico de los alimentos. Buenos Aires: Astrea, 1999.
CAHALI, Yussef Said. Da guarda. Dos alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.
CICU, Antonio. La natura giuridica dell’obbligo alimentare fra congiunti. Rivista di Diritto Civile, 1910.
_______ La filiación. Madrid: Librería General de Victoriano Suárez, 1930.
_______ El derecho de familia. Buenos Aires: Ediar, 1947.
_______ L’obbligazione nel patrimonio del debitore. Milano: Giuffrè, 1948.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
175
DEGNI, Francesco. Il diritto di famiglia nel nuovo codice civile italiano. Padova: Cedam,
1943.
FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade - relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey,
1996.
______ Elementos críticos do direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
______ Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
GIMÉNEZ, José Antonio Pajares. Código Civil: Edición preparada. Madrid: Civitas. 1999.
JOSSERAND, Louis. Derecho civil. Traducción de Santiago Cunchillos y Manterola. Buenos
Aires: Bosch Y Cía., 1952.
LOPEZ, Blas Piñar. La prestación alimenticia en nuestro derecho civil. Madrid: Reus, 1955.
MAJO, Adolfo di. La tutela civile dei diritti. Milano: Giuffrè, 1993.
_______ Obbligazioni in generale. Bologna: Zanichelli, 1985.
MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. São Paulo:
Conan, 1995.
MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela na reforma do processo civil. São
Paulo: Malheiros, 1999.
_______ Novas linhas do processo civil. São Paulo: Malheiros, 1999.
_______Tutela inibitória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
_______Tutela específica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de direito privado. tomo IX e XXVI. Rio
de Janeiro: Borsói, 1971.
_______ Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo IX e X. Rio de Janeiro: Forense,
1976.
_______ Tratado de direito privado. tomo I, II, V, VII e VIII. Campinas: Bookseller, 2000.
_______ Tratado das ações. Tomo I, VI e VII. Campinas: Bookseller, 1999.
MONTESANO, Luigi. Le tutele giurisdizionali dei diritti. Bari: Cacucci, 1983.
OLIVEIRA, Flávio Luís de. A antecipação da tutela dos alimentos provisórios e provisionais
cumulados à ação de investigação de paternidade. São Paulo: Malheiros, 1999.
OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de família (Direito Matrimonial). Porto Alegre: Sergio A. Fabris, 1990.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
176
faculdade de direito de bauru
_______ Instituições de Direito Civil, v. II e V. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. v. 1, 2 e 3. Campinas: Bookseller, 1999.
SANTOS, J. M. de Carvalho. Código civil brasileiro interpretado. V. 6. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1961.
SECCO, Luigi; REBUTTATI, Carlo. Degli Alimenti. Milano: Giuffrè, 1957.
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.
São Paulo: 2000.
______ Curso de processo civil. v. 1, 2 e 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
TEDESCHI, Guido. Gli alimenti. Torino: Utet, 1951.
TEPEDINO, GUSTAVO. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
ZANNONI, Eduardo A. El dano em la responsabilidad civil. Buenos Aires: Editorial Astrea,
1993.
A responsabilidade do Estado por
omissão é objetiva
Richard P. Pae Kim
Juiz de Direito.
Mestre e Doutor em Direito Administrativo pela USP.
Professor de Pós-graduação da Universidade Paulista e da Escola Paulista da Magistratura.
Professor do Curso Veredicto de Campinas/SP.
No Brasil, cuida-se de posição quase uniforme dos autores nacionais no
sentido de que os comportamentos omissos e danosos do Estado, fundada na
teoria da falta do serviço, ou conhecida como faute du service, implicam a responsabilidade subjetiva. Ou seja, por este entendimento, a vítima deve provar
a culpa na prestação do serviço público1.
Sustentam os adeptos desta tese que não basta para se configurar a responsabilidade do Estado no caso de omissão, a prova da ausência do serviço e
o dano sofrido. Neste caso, há de se demonstrar que houve dolo ou culpa da
Administração na sua omissão, ou seja, que o Estado tinha o dever de agir mas
deixou de fazê-lo, ilegalmente, ou se agiu, não o fez adequadamente ou tardiamente, causando o dano injusto.
Hely Lopes Meirelles, no entanto, invocando a teoria do risco administrativo, sustenta a incidência da responsabilidade objetiva, independentemente da
1 Neste sentido: Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Princípios Gerais de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Forense, vol. 2, 1969, p.90; Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p. 794;
Lúcia Valle Figueiredo, Curso de Direito Administrativo, p. 255; Maria Sylva Zanella di Pietro, Direito Administrativo, p. 507, v.g..
178
faculdade de direito de bauru
conduta ser comissiva ou omissiva, tese esta que vem ganhando força, açambarcada, inclusive pelos recentes julgamentos do Supremo Tribunal Federal e de
outros tribunais2.
Em verdade, a responsabilidade do Estado pela norma estatuída constitucionalmente (art. 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal) é objetiva, independentemente de a conduta ter sido comissiva ou omissiva. A regra exige que a vítima demonstre, tão-somente, o dano e o nexo de causalidade.
No caso da inatividade, não há de se exigir a prova da culpa lato sensu. O que
se deve exigir, na verdade, é a prova do nexo de causalidade, consistente na omissão abusiva do Estado, ou seja, a comprovação de que este tinha o dever de agir, mas
deixou de fazê-lo, ou ainda, se o fez, foi mal ou tardiamente, tendo em vista a adoção da teoria da responsabilidade objetiva do Estado. No caso, a Constituição parte
do pressuposto de que o Estado, em determinadas situações, deva agir. E, se não o
faz nestes casos, pratica ato ilícito, presumindo-se, portanto, a sua responsabilidade.
E, nesta linha de pensamento, asseverou Nelson Nery Júnior, ao atualizar a magnífica obra de Alvino Lima:
“Com a devida venia, entendemos que a CF 37 § 6º consagra, sim,
a responsabilidade objetiva da administração pública, pela teoria
do risco, quer se trate de conduta comissiva ou omissiva dos
agentes ou servidores do poder público. Os requisitos constitucionais para que a administração pública tenha o dever de indenizar, bem como o administrado o direito de receber a indenização,
são apenas dois: a) a existência do dano, patrimonial e/ou moral;
b) o nexo de causalidade entre a conduta (omissiva ou comissiva)
da administração e o dano (...) Na verdade, há situações que exigem do autor da pretensão indenizatória deduzida contra a administração pública demonstração do nexo de causalidade entre a
omissão administrativa e o dano por ele sofrido. O problema, portanto, não se encontra no sistema de responsabilização da administração, nem no fundamento da responsabilidade, que é sempre o risco. A questão é relativa ao nexo de causalidade entre a
omissão e o dano”3.
2 RT 733/130, RT 706/147 e RT 732/228. O primeiro julgado, no Brasil, a entender que a responsabilidade por omissão seria objetiva foi o da 1ª Câm. do E. Tribunal de Justiça de São Paulo, cujo relator foi o eminente Des. Álvaro
Lazzarini (RT 636/79). Seguiram-se outros, como na Ap. 245.582-1/6 – 4ª Câm. – j. 15.05.96, em que foi Relator o
culto Des. Aldemar Silva.
3 Alvino Lima, A responsabilidade civil pelo fato de outrem, 2ª ed. Revisada e atualizada por Nelson Nery Jr., São
Paulo, RT, 2000, pp. 205/206. Também neste sentido: Álvaro Lazzarini, “Responsabilidade do Estado por atos omissivos de seus agentes”, in RJTJSP, v. 117, p. 8/26 e Aparecida Vendramel, Responsabilidade Extracontratual do Estado, p. 61.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
179
Não há, diante do texto constitucional e com o devido respeito ao entendimento contrário, como se chegar à conclusão de que exista duplo fundamento para
a responsabilidade do Estado: uma para a o caso da inatividade (subjetiva) e outra,
por ato comissivo (objetiva)4.
Outro argumento de extrema importância para obtermos tal conclusão é que
os autores, ao tratarem das espécies de exclusão da responsabilidade do Estado, sustentam que apenas duas hipótese têm sido aceitas: a força maior, que é o acontecimento invencível e imprevisível provocado por acidentes da natureza, como é o
caso das enchentes, vendavais, furacões, etc; e a culpa exclusiva da vítima.
Essas duas hipóteses têm sido tratadas como excludentes do nexo de causalidade, e não da culpa. E, mesmo nos casos de responsabilidade por omissão, tais excludentes têm sido aplicadas, tanto pela doutrina como pela jurisprudência5.
A admissão desse caráter objetivo da responsabilidade do Estado, ou melhor
- pelo atual sistema do art. 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal – da responsabilidade do prestador de serviço público (seja pessoa jurídica de direito público ou
de direito privado, seja ente pertencente ao Estado ou não), seja pela prática de ato
comissivo ou, ainda, por omissão, tem sido o entendimento que vem prevalecendo
nos países da Comunidade Européia6.
É claro que a responsabilidade não nasce com qualquer omissão do prestador do serviço. Esta omissão deve ser antijurídica, ilícita. E, como se chegar a esta
conclusão? O fato é que a omissão não pode ser razoável, ou seja, deve ser abusiva, inaceitável pelo senso comum, para que se configure a responsabilidade
pela ilegalidade praticada. Aliás, não há que se olvidar que a violação a qualquer
princípio, inclusive ao princípio da razoabilidade, implica em ilegalidade do ato
ou da omissão.
4 Nelson Nery Jr. comenta que adotar este posicionamento, da existência de duplo fundamento, seria fazer tábua
rasa do que dispõe o art. 37, parágrafo 6º, da CF (A responsabilidade civil pelo fato de outrem, op. cit., p. 206).
5 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, op. cit., pp. 805/807. RT 733/130. No entanto, para Nelson Nery, não há como se admitir a força maior e a culpa exclusiva da vítima como hipótese de exclusão da responsabilidade do Estado, nos casos de omissão. Isto porque, “as denominadas causas de exclusão (caso
fortuito e força maior) na verdade excluem o nexo de causalidade quando se imputa culpa ao devedor: a) mora,
no caso de inadimplemento contratual; e b) a culpa em sentido estrito, no caso de responsabilidade extracontratual, como é o da responsabilidade da administração pública. Como essa responsabilidade é objetiva (...) é irrelevante saber se houve força maior ou caso fortuito, porque essas causas não excluem a responsabilidade objetiva da
administração pública”. Com o devido respeito ao autor, a melhor doutrina assevera que a força maior e a culpa exclusiva da vítima, na verdade, excluem o vínculo de causalidade, e não, a culpa. E, em ocorrendo tais acontecimentos, conforme lição de Yussef Said Cahali com suporte nos ensinamentos de Orlando Gomes e Silvio Rodrigues, haverá uma “pré-exclusão da responsabilidade indenizatória do ente público” pela ausência do nexo entre a omissão
(no presente caso) e o dano sofrido pela suposta vítima (Responsabilidade Civil do Estado, p. 47).
6 Rafael Entrena Cuesta. “Responsabilidad e Inactividad de la Administración”, La Responsabilidad Patrimonial de
Los Poderes Públicos, J. Luís Martínez Lópes-Muñiz e Antonio Calonge Velázques (Coords.), Marcial Pons, Madrid,
1999, pp. 360/364.
180
faculdade de direito de bauru
Rafael Entrena Cuesta, jurista espanhol, deixa bem claro, em seu artigo sobre
a Responsabilidade e Inatividade da Administração, que desta forma
“se abre paso una abundantísima jurisprudencia en la que, con olvido del supuesto carácter objetivo de la responsabilidad administrativa, en los casos de inactividad de la Administración exige, como requisito para reconocer el derecho a indemnización por los daños generados por aquélla, el incumplimiento del deber de realizar uma actuación determinada”8.
Portanto, configurada a omissão ilegal, abusiva, a responsabilidade do prestador de serviço público será objetiva, bastando a prova do dano e do nexo causal
(com a comprovação da ilegalidade pela irrazoabilidade da omissão), sem se falar
em culpa ou dolo do agente, ou do ente prestador do serviço.
7 “El control jurisdiccional de la inactividad administrativa”, Documentación Administrativa, n. 208, abril-deciembre, 1986, p. 272.
8 Op. cit., pp. 362/363.
AS AGÊNCIAS REGULADORAS
Dinorá Adelaide Musetti Grotti
Doutora e Mestre pela PUC/SP
Professora de Direito Administrativo da PUC/SP
Ex-Procuradora do Município de São Paulo
1.
O NOVO PERFIL DO ESTADO E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Na quadra final do século passado, operou-se uma transformação nas concepções dominantes quanto ao papel do Estado. Esta nova visão adota a descentralização como estratégia; impõe redução das suas dimensões, envolvendo as questões
de privatização, terceirização e publicização; a recuperação da sua capacidade financeira e administrativa; a necessidade de fortalecimento de sua função reguladora, fiscalizadora e fomentadora; e o desmonte do Estado prestador, produtor, interventor
e protecionista; o aumento da governabilidade.
No direito brasileiro, a idéia de privatização, tomada no seu sentido amplo, abrange todas as medidas tomadas com o fim de diminuir a presença do Estado, compreendendo: a) a desmonopolização de atividades econômicas; b) a concessão de serviços públicos, com a devolução da qualidade de concessionário à empresa privada e não mais à
empresa estatal; c) a terceirização, mediante a qual a Administração Pública busca a parceria com o setor privado, através de acordos de variados tipos; d) a desregulação, com
a diminuição da intervenção do Estado no domínio econômico; e) a desestatização ou
desnacionalização, com a venda de empresas estatais ao setor privado1.
1 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 4. ed. rev. e amp. São Paulo: Atlas, 2002. p. 17-18.
182
faculdade de direito de bauru
O regime de exploração dos serviços públicos admite a exploração, em regime privado, por meio de autorizações, não mais apenas pelas clássicas concessões;
introduzindo-se a gradativa competição entre prestadores, por diversos mecanismos, sujeitando-se tanto a regimes de regulação como às regras nacionais de defesa da concorrência.
Redefinindo o papel do Estado, fez-se necessário redefinir também o papel da
Administração Pública, adotando oito princípios básicos como estratégias predominantes: desburocratização, com a finalidade de dinamizar e simplificar o funcionamento da
Administração, descentralização, transparência, accountability, ética, profissionalismo,
competitividade e enfoque no cidadão. No plano da cidadania, propagam-se os direitos difusos, caracterizados pela pluralidade indeterminada de seus titulares e pela indivisibilidade de seu objeto, neles se incluindo a proteção ao consumidor.
O momento consenso-negociação entre poder público e particulares, mesmo
informal, ganha relevo no processo de identificação e definição de interesses públicos e privados, tutelados pela Administração. O estabelecimento dos primeiros deixa de ser monopólio do Estado, para prolongar-se num espaço do público não-estatal, acarretando com isso uma proliferação dos chamados entes intermediários. Há
um refluxo da imperatividade e uma ascensão da consensualidade; há uma redução
da imposição unilateral e autoritária de decisões para valorizar a participação dos administrados quanto à formação da conduta administrativa. A Administração passa a
assumir o papel de mediação para dirimir e compor conflitos de interesses entre várias partes ou entre estas e a Administração. Disso decorre uma nova maneira de agir
focada sobre o ato como atividade aberta à colaboração dos indivíduos2.
Quer-se a flexibilização dos rígidos modos de atuação da Administração Pública. E, para esse fim, é proposta a substituição de seu modelo burocrático, no qual
“a norma, a finalidade, o meio e a impessoalidade objetiva dominam sua conduta”3, para gerencial, ou seja, de uma Administração Pública autoritária, verticalizada
e hierarquizada, para outra mais democratizada, com prevalência da eficiência e indicadores objetivos e mensuráveis de gestão, dando maior ênfase ao resultado do
que ao processo. Objetiva também o atendimento do cidadão-usuário, ou cidadãocliente; a descentralização instrumentalizada, através das agências executivas, reguladoras e organizações sociais controladas por indicadores de desempenho, através
dos contratos de gestão.
As metas da reforma administrativa no Brasil, aliás, não isentas de críticas, perfilham os mesmos objetivos traçados pela Administração Pública em vários países:
maior eficiência no desempenho das atividades da Administração, maior agilidade e
capacidade gerencial; maior legitimidade e transparência; maior aproximação com a
2 MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. São Paulo: RT, 1992. p. 202.
3 WEBER, Max. Economía y Sociedad. Ciudad del México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 1061-1062.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
183
sociedade, seja através da proposição de formas de colaboração, ou parceria, seja
através da instituição de novos mecanismos de controle social.
Nesse contexto de desestatização, o Estado brasileiro redimensionou sua
atuação como agente normativo e regulador da atividade econômica (art. 174 CF),
voltando-se para a criação de agências reguladoras e para um novo modelo de regulação para a competição.
2.
ORIGEM DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
A existência de órgãos autônomos, dentro da estrutura administrativa, encontra precedentes no plano do direito comparado.
Na Inglaterra, a partir de 1834, floresceram entes autônomos, criados pelo Parlamento para concretizar medidas previstas em lei e para decidir controvérsias resultantes desses textos; a cada lei que disciplinasse um assunto de relevo, criava-se um ente
para aplicar a lei. Os Estados Unidos sofreram influência inglesa e, a partir de 1887, tem
início a proliferação de agencies para regulação de atividades, imposição de deveres na
matéria e aplicação de sanções. Na França, as Autoridades Administrativas Independentes, embora sem personalidade jurídica e sujeitas à fiscalização do Conselho do Estado,
marcam também um propósito de neutralidade política.
Conrado Hübner Mendes destaca que a história das agências reguladoras nos
Estados Unidos passou por quatro fases principais. O nascimento desse modelo de
regulação deu-se em 1887, quando se verificou a necessidade de se conferir uma
resposta reguladora às disputas que estavam a ocorrer entre as empresas de transporte ferroviário que procuravam obter o lucro máximo nas tarifas que livremente
estipulavam, e os fazendeiros do Oeste, que atuaram como grupo de pressão sobre
as Assembléias estaduais, obtendo que fossem reguladas, legislativamente, as tarifas
ferroviárias e o preço de armazenagem de cereais.
“Nesse ano, criou-se então a ICC – Interstate Commerce Comission
e, um pouco mais tarde, a FTC – Federal Trade Comission, destinadas a controlar condutas anticompetitivas de empresas e corporações monopolistas.
Numa segunda fase, localizada entre os anos 1930 e 1945, a economia norte-americana, abalada por uma forte crise, foi socorrida por
uma irrupção de inúmeras agências administrativas que, como parte
da política do New Deal, liderada pelo Presidente Roosevelt, intervieram fortemente na economia. Tal intervenção, suprimindo os
princípios básicos do Liberalismo e conferindo ampla autonomia a
tais agências administrativas, foi motivo de um início de debate constitucional-jurisprudencial substancioso.
184
faculdade de direito de bauru
O terceiro momento, entre 1945 e 1965, foi marcado pela edição de
uma lei geral de procedimento administrativo (APA – Administrative
Procedural Act), que trouxe uma uniformidade no processo de tomada de decisões pelas agências, conferindo-lhes maior legitimidade.
Entre os anos de 1965-1985 defrontou-se o sistema regulatório americano com um problema que desvirtuou as finalidades da regulação
desvinculada do poder político: a captura das agências reguladoras
pelos agentes econômicos regulados. Explique-se: os agentes privados, com seu colossal poder econômico e grande poder de influência, diante de entes reguladores que dispunham de completa autonomia perante o poder político, não encontraram dificuldades para
implantar um mecanismo de pressão que acabasse por quase que determinar o conteúdo da regulação que iriam sofrer. Os maiores prejudicados, por conseqüência, foram os consumidores.
Finalmente, em 1985, num processo que continua até os dias de
hoje, o modelo começou a se redefinir para que se consolide um
modelo regulatório independente, mas com os controles externos
adequados para garantir essa independência”4.
Em cada um desses momentos, aspectos relevantes como a extensão do controle judicial e da delegação de poderes normativos às agências oscilaram na interpretação jurisprudencial da Suprema Corte.
3.
O SURGIMENTO E O CRESCIMENTO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS NO BRASIL
Em sentido amplo, no direito brasileiro, “agência reguladora” é “qualquer órgão da Administração Direta ou entidade da Administração Indireta com função de
regular a matéria específica que lhe está afeta”5.
A idéia de regulação não é nova ou totalmente desconhecida no direito brasileiro. De longa data existe uma série de órgãos e entidades reguladoras, embora sem
a denominação de agências, tais como o Comissariado de Alimentação Pública
(1918), o Instituto de Defesa Permanente do Café – IBC (1923), o Instituto do Álcool e do Açúcar – IAA (1933), o Instituto Nacional do Mate (1938), o Instituto Nacional do Sal (1940), o Instituto Nacional do Pinho (1941)6.
4 Reforma do Estado e Agências Reguladoras: estabelecendo os parâmetros de discussão. In: SUNDFELD, Carlos Ari
(Coord.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 120-121.
5 DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 402.
6 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Reforma do Estado. O papel das agências reguladoras e fiscalizadoras. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, n. 3, p. 253-257, maio 2001.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
185
Por influência do direito alienígena, precipuamente do direito norte-americano7, a partir da segunda metade da década de noventa são criadas as agências setoriais de regulação, dotadas de autonomia e especialização, com a natureza jurídica
de autarquias com regime especial8, vinculadas a uma particular concepção políticoideológica, que visa impedir influências políticas sobre a regulação e disciplina de
certas atividades administrativas9.
7 Falar-se em “desregulação” na doutrina norte-americana como sendo a tendência da postura estatal relativamente aos “serviços de utilidade pública” significa tratar da introdução da competição nesses serviços, eliminando-se a
parte da regulação que, tendo sido criada para controlar os monopólios (controle das tarifas, p. ex.), passou a ser
apontada como a principal responsável pela manutenção deles. Mas essa “desregulação” não suprime, antes supõe,
a intervenção estatal via “regulação”, só que agora com outras técnicas e novos objetivos, todos coerentes com o
projeto de eliminação dos monopólios. (SUNDFELD, Carlos Ari. A Administração Pública na era do Direito Global.
In; SUNDFELD, Carlos Ari; VIEIRA, Oscar Vilhena (Coords). Direito Global. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 161, nota
7).
8 A expressão autarquia especial foi empregada, pela primeira vez, na Lei nº 5.540, de 28-11-68 (art. 15), para ressaltar o fato da universidade pública apresentar um grau de autonomia administrativa superior àquele reconhecido
às demais entidades autárquicas.
9 No plano federal foram criadas as seguintes:
Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) – Lei n. 9.427, de 26-12-96, alterada pelas Leis nºs. 9.648 e 9.649, ambas de 27-05-98, 9.986, de 18-07-00 e 10.438, de 26-04-02; Decreto n. 2.335/97, alterado pelo Decreto 4.111/02. Vinculada ao Ministério de Minas e Energia, foi instituída com a finalidade de regular e fiscalizar a produção, a transmissão, a distribuição e a comercialização de energia elétrica em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal;
Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) – Lei n. 9.472, de 16-07-97, modificada pela Lei n. 9.986, de 1807-00; Decreto n. 2.338/97, alterado pelos Decretos 2.853/98, 3.873/01, 3.986/01 e 4.037/01. Vinculada ao Ministério das Comunicações, com a função de órgão regulador das telecomunicações;
Agência Nacional do Petróleo (ANP) – Lei n. 9.478, de 06-08-97, alterada pelas Leis nºs 9.986, de 18-07-00, 9.990,
de 21-07-00, 10.202, de 20-02-01 e 10.453, de 13-05-02; Decreto n. 2.455/98, alterado pelos Decretos 2.496/98,
3.388/00 e 3.968/01. Vinculada ao Ministério de Minas e Energia, como órgão regulador da indústria do petróleo;
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA – dantes denominada ANVS) – Lei n. 9.782, de 26-01-99, alterada
pela Lei n. 9.986, de 18-07-00 e pela MP n. 2.190-34, de 23-08-01; Decreto n. 3.029/99, alterado pelos Decretos
3.571/00 e 4.220/02. Vinculada ao Ministério da Saúde, com a finalidade institucional de promover a proteção da
saúde da população por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços
submetidos à vigilância sanitária;
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) – Lei n. 9.961, de 28-01-00, alterada pela Lei n. 9.986, de 18-07-00 e
pela MP n. 2.177-44, de 24-08-01; Decreto n. 3.327/00. Vinculada ao Ministério da Saúde, com a finalidade de promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores;
Agência Nacional de Águas (ANA)– Lei n. 9.984, de 17-07-00, alterada pela MP n. 2.216, de 31-08-01; Decreto n.
3.692/00. Vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, como entidade federal de implementação da Política Nacional
de Recursos Hídricos e de coordenação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos;
Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT)– Lei n. 10.233, de 05-06-01, alterada pelas Leis nºs 10.470/02,
10.561, de 13-11-02 e 10.683, de 28-05-03 e pela MP n. 2.217-03, de 04-09-01; Decreto n. 4.130/02. Vinculada ao Ministério dos Transportes, destinada à regulação do transporte ferroviário de passageiros e carga e exploração da infra-estrutura ferroviária; dos transportes rodoviário interestadual e internacional de passageiros, rodoviário de cargas, multimodal; e do transporte de cargas especiais e perigosas em rodovias e ferrovias;
186
faculdade de direito de bauru
A instituição desses entes não ficou limitada ao campo dos serviços privatizados.
Algumas das atividades disciplinadas e controladas pelas Agências são serviços públicos
propriamente ditos (caso da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, da Agência
Nacional de Telecomunicações – ANATEL, da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT – e da Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ). Outras são
atividades econômicas no sentido estrito (como a Agência Nacional de Petróleo – ANP).
Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) – Lei n. 10.233, de 05-06-01, alterada pelas Leis nºs
10.470/02, 10.561, de 13-11-02 e 10.683, de 28-05-03 e pela MP n. 2.217-03, de 04-09-01; Decreto n. 4.122/02. Vinculada ao Ministério dos Transportes, com o fim de regular os transportes de: navegação fluvial, travessia, apoio marítimo, apoio portuário, cabotagem e longo curso. Também visa a regular os portos organizados, os terminais portuários privativos, o transporte aquaviário de cargas especiais e perigosas;
Agência Nacional do Cinema (ANCINE)– MP n. 2.228-1, de 06-09-01, com a redação dada pela Lei n. 10.454/02; Decreto 4.121/02, alterado pelo Decreto n. 4.330/02. Vinculada nos primeiros doze meses, a partir de 05-09-01 à Casa
Civil da Presidência da República (prorrogados por 06 meses por força do Decreto 4.283/02) e a contar daí ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Visa ao fomento, regulação e fiscalização da indústria
cinematográfica e videofonográfica.
Há uma autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério da Fazenda, cujas funções são de índole equivalente às das agências reguladoras, mas que não recebeu a denominação de agência. É a Comissão de Valores Mobiliários – Lei n. 10.411, de 26-02-02; Decreto 4.300/02, alterado pelo Decreto 4.537/02.
Há outras autarquias, que também são denominadas “agências”, mas não se constituem em “autarquias especiais”,
quais sejam:
Agência Espacial Brasileira (AEB) – Lei n. 8.854, de 10-02-94, alterada pela MP 2.216-37, de 31-08-01. Decreto n.
3.566/00, revogado pelo Decreto n. 4.718/03. Autarquia federal, com natureza civil, vinculada à Presidência da República, com a finalidade de promover o desenvolvimento das atividades espaciais de interesse nacional. Responde
de modo direto ao Presidente da República. É dotada de autonomia administrativa e financeira;
Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA) – MP n. 2.157-5, de 24-08-01; Decreto n. 4.125, de 13-02-02, revogado pelo Decreto n. 4.652/03. Autarquia vinculada ao Ministério da Integração Nacional, com o objetivo de implementar políticas e viabilizar instrumentos de desenvolvimento da Amazônia;
Agência de Desenvolvimento do Nordeste(ADENE)– MP n. 2.156-5, de 24-08-01; Decreto n. 4.126, de 13-02-02, revogado pelo Decreto n. 4.654/03. Autarquia vinculada ao Ministério da Integração Nacional, com o objetivo de implementar políticas e viabilizar instrumentos de desenvolvimento do Nordeste.
Há ainda um órgão, portanto unidade da Administração direta e não uma autarquia, que recebeu o nome de “agência”: a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, criada pela Lei nº 9.883, de 07-12-99, alterada pela MP n. 2.216-37,
de 31-08-01; Decreto n. 4.376/02.
Há ainda uma autarquia, não autarquia especial, cujos conselheiros e procurador geral têm mandato, exerce funções judicantes, cujas decisões não se submetem a revisão hierárquica, mas que não foi instituído como agência: CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica, criado pela Lei n. 4.137, de 10-09-62, que passou a se constituir em autarquia federal pela Lei n. 8.884, de 11-06-94 e alterações posteriores, vinculada ao Ministério da Justiça.
Nos Estados, surgiram várias agências multisetoriais (sem especialização) para regular as atividades dos concessionários dos respectivos serviços estatais ou para exercer poder delegado pela União na fiscalização de serviços elétricos:
Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul – AGERGS, criada pela Lei
Estadual n. 10.931, de 09-01-97, posteriormente alterada pela Lei n. 11.292, de 23-12-98;
Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados do Estado do Ceará – ARCE (Lei Estadual n. 12.786, de 30-1297);
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
187
Outras são atividades que, quando o Estado protagoniza, serão serviços públicos, mas
que, também são facultadas aos particulares, hipóteses em que serão atividades econômicas. É o que ocorre com os serviços de saúde, que os particulares executam no exercício da livre iniciativa, sob disciplina e controle da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVS (hoje denominada ANVISA), e da Agência Nacional de Saúde Suplementar
– ANS. Algumas são atividades de fomento e fiscalização de atividade privada, que é o
que sucede com a Agência Nacional do Cinema – ANCINE. Há, ainda, agência reguladora do uso de bem público, que é o que ocorre com a Agência Nacional de Águas – ANAia.
As únicas que têm base constitucional são a ANATEL (art. 21, XI), e a ANP (art.
177, § 2º, III); os dispositivos constitucionais utilizam a expressão órgão regulador e
não o vocábulo “agência”. As demais decorrem apenas de uma decisão do legislador
não estando inviabilizada a possibilidade de criação de órgãos reguladores em outros setores de atividades10.
Agência Estadual de Serviços Públicos do Estado do Espírito Santo – AGESP (Lei Estadual n. 5.721, de 19-08-98);
Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Estado de Mato Grosso – AGER/MT (Lei n.
7.101, de 14-01-99, alterada pela Lei Complementar n. 66, de 22-12-99);
Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Minas Gerais – ARSEMG (Lei Estadual n. 12.999, de 31-07-98);
Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos do Estado do Rio de Janeiro – ASEP-RJ (Lei Estadual n. 2.686,
de 13-02-97);
Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado do Rio Grande do Norte – ARSEP-RN (Lei Estadual n. 7.463, de
02-03-99, revogada pela Lei n. 7.758, de 09-12-99);
Agência Catarinense de Regulação e Controle – SC/ARCO (Lei Estadual n. 11.355, de 18-01-00);
Agência Reguladora de Serviços Concedidos do Estado de Sergipe – ASES (Lei Estadual n. 3.973/98);
Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de Alagoas – ARSAL (Lei Estadual n. 6.267, de 20-09-01);
Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Mato Grosso do Sul – AGEPAN (MS) (Lei Estadual n 2.363,
de 19-12-01;
Agência Goiana de Regulação, Controle e Fiscalização de Serviços Públicos – AGR (Lei Estadual n. 13.550, de 11-11-99);
Agência Estadual de Regulação e Controle de Serviços Públicos (PA) – ARCON (Lei Estadual n. 6.099, de 30-12-97).
Em alguns Estados foram instituídas agências setoriais: Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transporte e Comunicação da Bahia – AGERBA (Lei Estadual n. 7.314, de 19-05-98); Comissão de Serviços Públicos de Energia do Estado de São Paulo – CSPE, criada pela Lei Complementar n. 833, de 17-10-97 e a ARTESP –
Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados de Transporte do Estado de São Paulo, criada pela Lei Complementar n. 914, de 14-01-02; Agência Estadual de Energia da Paraíba – AGEEL Lei Estadual n. 7.120, de 28-06-02;
Agência de Água Irrigação e Saneamento (PB) – AAGISA (Leis Estadual n. 7.033, de 29-11-01).
No âmbito municipal, por exemplo, tem-se conhecimento da criação da Agência Municipal de Regulação dos serviços de Saneamento de Cachoeiro de Itapemirim – AGERSA, criada pela Lei Municipal n. 4.798, de 14-07-99.
iª. Observa Paulo Modesto que é visível hoje a perda de referenciais mínimos na criação de agências reguladoras.
Estão sendo criadas com a denominação de agências reguladoras, autarquias que não regulam atividades econômicas nem agentes delegados do Estado, mas que são ocupadas com o fomento de setores culturais ou atividades livres à iniciativa privada e, quando muito, são titulares de restritos poderes de polícia administrativa; com evidente
prejuízo para a clareza dogmática do instituto. Aponta como exemplos dessa “ perversão” do conceito de “agência
reguladora” a ANVISA e a ANCINE.
10 Nessa linha V. Marçal Justen Filho. O Direito das Agências Reguladoras Independentes. São Paulo: Dialética,
2002. p. 394.
188
4.
faculdade de direito de bauru
A ESTRUTURA JURÍDICA DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
O legislador optou por enquadrar as agências reguladoras no gênero autarquia, pessoa jurídica de direito público, tendo em conta as funções coercitivas que
exercem e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF11.
Sendo autarquias, não constituem um novo modelo organizacional dentro da
Administração Pública Brasileira; subordinam-se às normas constitucionais impostas
a esse tipo de entidade pelo art. 37, e outros da Lei Magna. Deve-se, pois, verificar
o que há de peculiar no regime das agências reguladoras em confronto com a generalidade das autarquias.
Essas figuras envolvem o exercício de um amplo poder normativo (o poder de
ditar normas, com a mesma força de lei e com base em parâmetros, conceitos indeterminados, padrões abstratos e genéricos – standards nela contidos), outorgado
pelos diversos diplomas legais que as têm instituído, cumulado com o fiscalizatório,
o sancionatório, o de dirimir conflitos de interesses entre agentes econômicos regulados, entre tais agentes e a própria agência, ou mesmo entre tais agentes e usuários
etc.; e desenvolvem uma tripla regulação: a ‘regulação dos monopólios’, visando a
atenuar o efeito das forças de mercado, através de controles de preços e da qualidade do serviço; a ‘regulação para a competição’, a fim de criar condições para existência e manutenção da concorrência e a ‘regulação social’, objetivando à universalização dos serviços, que agora obedece a uma certa tendência à eliminação dos subsídios cruzados. Por fim, a circunstância de agirem sem subordinação ao Executivo
(daí a “independência”, expressão certamente exagerada, sendo melhor falar-se em
autonomia)12. Com isso, busca-se assegurar uma regulação imparcial, decisões mais
técnicas, dotadas de maior proteção contra as ingerências meramente políticas, que
11 O STF, em decisão recente, considerou que a natureza da personalidade jurídica é fundamental para que um ente
possa exercer poderes de autoridade pública. Assim é que, no julgamento da liminar sobre a transformação dos
Conselhos Profissionais em pessoas jurídicas de direito privado, operada pelo art. 58 da lei Federal n. 9.649/98, na
ADIN nº 1717-6, foi considerada inconstitucional, “mediante a interpretação conjugada dos artigos 5º, XIII, 22, XVI,
21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da C.F., a delegação, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado,
que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que tange ao exercício de atividades profissionais”.
12 Em termos ortodoxos, autonomia expressa a capacidade de editar direito próprio, dar ou reconhecer as normas
de sua própria ação, prerrogativa exclusiva de entidades dotadas de poder político. Neste sentido, as autarquias,
como entidades de capacidade exclusivamente administrativa, não são autônomas. Mas a expressão autonomia também é empregada no sentido de auto-administração, de esfera de atuação independente, de prerrogativa administrativa de solver, em última instância, questões na intimidade de uma entidade em relação a outras de igual ou diferente natureza. Autonomia, neste sentido, é conceito que conhece graus de realização, conforme a entidade de
administração indireta sujeite-se a controles mais ou menos amplos por parte da Administração Direta e possua,
conseqüentemente, maior ou menor raio de ação independente de determinações administrativas exteriores. É
nesta segunda acepção, igualmente legítima, usual em textos normativos (v.g., CF, arts 37, § 8º; 99, caput; 127, § 2º;
207, caput; 217, I, entre outras), que a palavra autonomia será empregada neste trabalho e pode ser referida no tratamento das autarquias.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
189
poderiam prejudicar o funcionamento ideal de um modelo competitivo. São exigências dos investidores internacionais, para dar credibilidade às políticas estatais de
privatização da exploração dos serviços públicos e segurança a investidores estrangeiros, atraindo-os para a compra de ativos estatais.
As agências reguladoras estão sendo criadas por leis esparsas (art. 37, XIX da
Constituição Federal) e só podem ser extintas por esse meio pelo princípio do paralelismo das formas; não seguem um modelo comum no tocante à estrutura, competência e demais característicos.
O regime especial vem definido pelas respectivas leis instituidoras das entidades, o que demanda investigar, em cada caso, o regime jurídico objetivamente dado.
Verifica-se, porém, que elas apresentam algumas semelhanças, nada impedindo que
venham a adotar modelos de estruturação diversos posteriormente.
Diante dos poderes de largo alcance conferidos às agências reguladoras, costuma-se afirmar que essas entidades gozam de certa margem de independência em
relação aos três Poderes de Estado: poderes quase-judiciais, quase-legislativos, e
quase-regulamentares.
A questão pertinente à autonomia das agências precisa ser analisada em termos compatíveis com o regime constitucional brasileiro.
Anota Celso Antônio Bandeira de Mello que
“ ‘independência administrativa’ ou ‘autonomia administrativa’, ‘autonomia financeira’ e ‘patrimonial e da gestão de recursos humanos’
ou de quaisquer outros que lhe pertençam, ‘autonomia nas suas decisões técnicas’, ‘ausência de subordinação hierárquica’, são elementos intrínsecos à natureza de toda e qualquer autarquia, nada acrescentando ao que lhes é inerente. Nisto, pois, não há peculiaridade alguma; o que pode ocorrer é um grau mais ou menos intenso destes
caracteres”. Averba ainda que “o único ponto peculiar em relação à
generalidade das autarquias está nas disposições atinentes à investidura e fixidez do mandato dos dirigentes destas pessoas, e que se
contém nos arts. 5º e parágrafo único, 6º e 9º da Lei 9.986, de 18-0700), que dispõe sobre a gestão dos recursos humanos das agências
reguladoras”13.
4.1. Autonomia político-administrativa
A legislação instituidora de cada agência estabelece um conjunto de procedimentos, garantias e cautelas no que tange à autonomia político-administrativa. Assim é que os dirigentes são escolhidos pelo Presidente da República, e por ele no13 Curso de Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 160.
190
faculdade de direito de bauru
meados, após aprovação do Senado Federal, não podendo ser exonerados pelo Presidente da República discricionariamente, porque eles exercem mandato fixo, a prazo certo e só podem perdê-lo antes do seu término por processo administrativo disciplinar, isto é, se cometerem faltas funcionais, ou de condenação judicial transitada
em julgado. Portanto, eles têm algo parecido com a estabilidade temporária, durante o período que exercem a função. A rejeição pelo Senado ao nome indicado pelo
Presidente acarretará o não-aperfeiçoamento da investidura.
A Lei n. 9.986/00 qualificou os cargos de diretoria das agências reguladoras
como cargos comissionados de direção (CDI e CDII), incorporando a concepção de
que cargos em comissão podem ser providos por prazo determinado, subordinada
a demissão a motivação e procedimento formal14.
Disposições análogas, ainda que nem sempre exigentes dos mesmos atributos, se encontram nas leis específicas de cada agência, assim como a forma da nãocoincidência de mandatos entre si.
Questiona-se o mandato com prazo fixo, ou seja, a possibilidade de introdução, em nosso sistema jurídico, de regras similares àquelas adotadas em outros países, destinadas a tutelar os administradores de agências contra demissão
imotivada. O modelo foi objeto de impugnação por alguns doutrinadores sob o
argumento de que a esquematização constitucional excluiria a possibilidade de
conjugar-se a livre investidura no cargo (sem concurso), por prazo determinado
e com garantia contra livre exoneração, pois a Constituição de 1988, no art. 37,
inciso II, (redação dada pela Emenda 19/98), estatui que a investidura em cargo
ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público, ressalvadas as nomeações para cargos em comissão, que são de livre nomeação e exoneração.
O Supremo Tribunal Federal foi levado anteriormente a tratar dessa questão,
se seria ou não viável limitar o poder do Executivo de exonerar ocupante de cargo
não provido por concurso. O Pretório Excelso, naquela oportunidade, entendeu tratar-se de um mecanismo inconstitucional, sob a argumentação de que só existem
dois tipos de cargos: ou são efetivos e há o direito à estabilidade, ou são de livre provimento e há o poder de livre exoneração, sem estabilidade dos dirigentes. Esta posição jurisprudencial foi consolidada pela Súmula nº 2515, vigente ainda o regime
14 Existem outras hipóteses em que cargos públicos são providos sem concurso, mas com prazo determinado. É o
caso, por exemplo, dos reitores e ocupantes de cargos de chefia nas instituições de ensino federais, dos ocupantes
de cargos no Conselho de Contribuintes e em autarquias tais como o CADE e a CVM. Nunca se negou a constitucionalidade das regras.
15 Dissonantemente, o relator, Ministro Sepúlveda Pertence, entendeu aplicável à espécie a Súmula nº 25. Note-se,
também, que referida Súmula era excepcionada em relação aos reitores das universidades públicas, geralmente de
natureza autárquica, conforme dispõe a Súmula 47: “Reitor de Universidade não é livremente demissível pelo Presidente da República durante o prazo de sua investidura”. A força desse enunciado decorria da vitaliciedade da cátedra. O cargo de reitor era projeção do exercício da cátedra.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
191
constitucional de 1946, que dispõe: “A nomeação a termo não impede livre demissão, pelo Presidente da República, de ocupante de cargo de dirigente de autarquia.
Mais recentemente, o STF discutiu o alcance dessa Súmula, no julgamento da
liminar requerida na ADIN nº 1949-0, promovida pelo Governador do Estado do Rio
Grande do Sul, e este entendimento foi revertido, ao admitir a demissão, porém,
com motivação, e não em caráter discricionário absoluto, e sim, regrado (sessão de
18-11-99).
As restrições ao poder de livre nomeação e exoneração pelo Chefe do Poder
Executivo foram consideradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal no
julgamento da Medida Cautelar na ADIN acima referida. A primeira em virtude do
art. 52, III, “f ” da Constituição Federal admitir a prévia aprovação do Senado Federal da escolha de “titulares de outros cargos que a lei determinar”. Quanto à constitucionalidade da exoneração ad nutum dos dirigentes das agências reguladoras, o
Supremo entendeu que não viola as competências do Chefe do Poder Executivo, admitindo a exoneração apenas por justo motivo ou se ocorrer a mudança da lei criadora da agência.
Sobressai a questão de saber se a garantia dos mandatos por todo o prazo previsto pode ou não estender-se além de um mesmo período governamental. Celso
Antônio Bandeira de Mello entende que não, pois, em última instância, configura
uma fraude contra o próprio povo, ao impedir que o novo Presidente imprima, com
a escolha de novos dirigentes, a orientação política e administrativa que foi sufragada nas urnas16. Nesse diapasão, conclui Leila Cuéllar pela inconstitucionalidade dessa regra, que afronta o princípio democrático ao possibilitar a extensão do governo
no tempo em algumas das principais atividades público-privadas17. Por sua vez, Lúcia Valle Figueiredo não considera essa limitação ao Chefe do Executivo atentatória
à independência dos poderes, tendo-a até como muito salutar “para que não houvesse troca de favores, mas, sim, total independência”18.
As agências são dirigidas em regime de colegiado, por um Conselho Diretor
ou Diretoria, nos termos do art. 4º da Lei n. 9.986/00.
“O presidente do órgão colegiado será indicado pelo Presidente da República, através de decisão discricionária. Segundo o parágrafo único do
art. 5º, a investidura na condição de presidente se fará pelo prazo fixado
no ato de nomeação. Daí derivam algumas conseqüências interessantes.
A primeira é a de que um dos membros do órgão colegiado será escolhido para presidi-lo. Logo, qualquer um dos membros poderá ser
escolhido.
16 Op. cit., p. 161.
17 As agências reguladoras e seu poder normativo. São Paulo: Dialética, 2001. p. 99.
18 Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros. 6. ed. rev., atual. e ampl., 2003, p. 143.
192
faculdade de direito de bauru
No entanto, a escolha se traduz na investidura pelo prazo fixado no
ato de nomeação. Isso acarreta a impossibilidade de retirar do sujeito a condição apenas de presidente, modificando-se-o na titularidade da função de conselheiro ou diretor. Quem for escolhido presidente manterá essa condição até o término do mandato.
Isso não impede, no entanto, a renúncia apenas ao cargo de presidente. O sujeito pode escolher manter-se como integrante da diretoria, sem o cargo de presidente.
A solução será distinta, no entanto, se a estrutura administrativa do
órgão tiver sido modelada em outros termos pela lei específica”19.
O art. 8º da Lei nº 9.986/00, com a redação dada pela MP 2.216-37, de 31-0801, estabeleceu a chamada quarentena, de conteúdo moralizador, ao proibir o ex-dirigente de exercer atividade ou prestar qualquer serviço no setor regulado pela respectiva agência, por um período de quatro meses, contados da exoneração ou do
término de seu mandato. No período de impedimento, o ex-dirigente continua vinculado à Agência, fazendo jus à remuneração compensatória equivalente à do cargo
de direção que exerceu.
Convém ainda salientar que, de acordo com o art.1º da citada Lei 9.986, de 18ii
07-00 ª, as relações de trabalho nas agências reguladoras serão as de emprego público, regidas pela legislação trabalhista. Recentemente, decidiu o Min. Marco Aurélio
que é inconstitucional a generalização do Direito do Trabalho para o pessoal das referidas agências, ao suspender, em apreciação liminar, entre outros, o citado art. 1º
da Lei 9.986/0020, na ADIn n.º 2.310–1–DF, cujo despacho firmou que a natureza da
atividade desempenhada pelas agências reguladoras demandava regime de cargo
público e se incompatibilizava com o de emprego.
Nessa mesma linha, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que “o regime
normal de quem presta serviços, de modo regular e contínuo, para pessoas de Direito Público, terá de ser o estatutário, ainda que sejam admissíveis hipóteses em
que há perfeita cabida para o regime trabalhista”, pois o fato de a Constituição
também contemplar a possibilidade de empregos públicos não poderia significar
eleição de regime trabalhista em quaisquer hipóteses, sem nenhum balizamento21.
A independência das agências está também baseada na autonomia decisória,
em relação a outros órgãos ou entidades da Administração Pública. O que se ques-
19 JUSTEN FILHO, Marçal, op. cit., p. 448-449.
ii ª. Alterada pela MPs nos 2.216-37, de 31-08-01 e 2.229-43, de 06-09-01, e pela Lei nº 10.470, de 25-06-02
20 A gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras tem suas diretrizes fixadas na Lei n. 9.986, de 18-07-00, alterada pela MP n. 2.229-43, de 06-09-01 e 2.216-37, de 31-08-01,que teve suspensa a eficácia dos arts. 1º, 2º e parágrafo
único, 12 e § 1º, 13 e parágrafo único, 15, 24 e inciso I, 27 e 30, por força de medida liminar na ADIN 2.310-1.
21 Op. cit. p. 162.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
193
tiona é se a agência reguladora, como entidade da administração federal indireta,
vinculada ao Ministério supervisor, pode fugir da orientação e coordenação do Ministro de Estado da área respectiva.
A Constituição Federal, no seu art. 84, II, estabelece que compete ao Presidente da República “exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal” e, no seu artigo 87, parágrafo único, I, preceitua
que compete ao Ministro de Estado “exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência...”.
Desses dispositivos deflui que alguma espécie de ligação entre Executivo e
agências é imposta pela Lei Maior, pois deve haver ao menos uma supervisão administrativa daquele em relação a estas, que não podem funcionar, no dizer de Carlos
Ari Sundfeld, “como se fossem ‘Estados independentes’, isto é, verdadeiros Estados
ao lado do Estado. Isso, no entanto, não quer dizer que, quanto às matérias de competência das agências, a Administração Direta deva necessariamente intervir”22.
O Poder Executivo não tem a faculdade de mudar as decisões concretas, nem
as normas editadas pela agência. Seus atos não podem ser revistos ou alterados pelo
Poder Executivo, salvo se houver expressa previsão legal para a admissão do recurso hierárquico impróprio23.
Portanto, dependendo do arranjo legal, há agências com alto grau de autonomia e outras com pouca ou nenhuma autonomia, ou seja, há poder de interferência
maior ou menor do Executivo.
22 Introdução às Agências Reguladoras. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Direito Administrativo Econômico,
p. 26-27. Referindo-se à Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL como exemplo, afirma o Autor que sua
autonomia está “garantida por força da demarcação precisa, analítica, dos limites das competências suas e do Poder
Executivo”, e por ter “a maior e mais importante parte das competências para o dia-a-dia da regulação das telecomunicações, cabendo ao Poder Executivo, especificamente ao Presidente da República, apenas a fixação da macropolítica do setor”(op. cit., p. 27).
23 A ANATEL e a ANVISA são expressamente qualificadas como a última instância administrativa para julgamento de
recursos administrativos (art. 19, inciso XXV, Lei 9.472/97 e art. 15, VI e § 2º, Lei 9.782/99, com a redação dada pela
MP 2.190-34, de 23-08-01, respectivamente).
iiiª Assinala Maria Sylvia Zanella Di Pietro que “no direito brasileiro, a Constituição de 1988 limitou consideravelmente o
poder regulamentar, não deixando espaço para os regulamentos autônomos. Na Constituição de 1967, o art. 81, V, outorgava competência ao Presidente da República para ‘dispor sobre a estruturação, atribuições e funcionamento dos órgãos da administração federal’, única hipótese de decreto dessa natureza agasalhada expressamente na legislação; tratava-se de decreto autônomo sobre matéria de organização da Administração Pública. A atual Constituição, no art. 84, VI,
prevê competência para ‘dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal, na forma da lei’.
Com a Emenda Constitucional nº 32, de 11-09-2001, volta uma hipótese de decreto autônomo, com a alteração do
art. 84, VI, da Constituição, que confere competência privativa ao Presidente da República para dispor, mediante decreto, sobre ‘organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa
nem criação ou extinção de órgãos públicos’. Pode-se dizer que é a única hipótese de decreto autônomo com fundamento constitucional”(Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Parcerias na Administração Pública, p. 152).
faculdade de direito de bauru
194
A autonomia econômico-financeira dessas agências é assegurada, além das dotações orçamentárias gerais, pela existência de receitas próprias, arrecadadas diretamente em seu favor, geralmente provenientes de “taxas de fiscalização” e “taxas de
regulação”, ou ainda participações em contratos, acordos e convênios, como ocorre, por exemplo, nos setores de petróleo (art. 15, III da Lei Federal n. 9.478/97) e
energia elétrica (art. 11, V da Lei Federal n. 9.427/96).
A natureza jurídica das taxas acima mencionadas têm sido objeto de discussão
doutrinária, alguns entendendo que se trata de taxa propriamente dita e outros que
se cuida de preço contratual, cobrado pelo Poder Concedente dos delegatários.
5.
PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS
Da leitura dos diplomas legais de regência da matéria, depreende-se que as
agências reguladoras gozam de um amplo poder normativo, que envolve, por um
lado, a regulamentação das leis que regem o campo de atividades a elas atribuído e,
por outro, a edição de normas independentes, sobre matérias não disciplinadas pela
lei. Isto implica indagar se a lei delegou-lhes função legislativa, assim como o que e
até onde podem regular algo, sem estar, com isto, violando o princípio da separação
dos poderes e invadindo competência legislativa.
No Brasil, o princípio da legalidade, além de basear-se na própria estrutura do
Estado de Direito e, pois, do sistema constitucional como um todo, está previsto especificamente nos arts. 5º, inciso II, 37, caput e 84, inciso IV, que rezam:
Art. 5º...................
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte(...).
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
IV – (...) expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução (das
leis).
Podem também os Ministros de Estado “expedir instruções para a execução
das leis, decretos e regulamentos” (art. 87, inciso II, CF). A lei dá à agência o poder
de regulamentar a própria lei que a instituiu, o que gera a indagação de ter ou não
o Presidente da República, por força da Lei Maior, uma reserva de poder normativo
que não pode ser suprimido.
A doutrina aponta, em termos gerais, a existência de três espécies de regulamentos: os regulamentos autônomos ou independentes são atos normati-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
195
vos editados pelo Poder Executivo com base em competências normativas próprias, estabelecidas na Constituição, para as quais não se prevê a interferência
do Poder Legislativo. Criam direito novo, independentemente da existência de
lei a respeito. Os regulamentos autorizados ou por delegação são aqueles editados pelo Poder Executivo no exercício de competência normativa que lhe tenha
sido atribuída pelo Legislativo, o qual, diante da existência de situações de fato
extremamente mutantes, excessivamente técnicas ou politicamente complexas,
limita-se a fixar os princípios gerais a serem seguidos pela autoridade administrativa na disciplina da matéria que constitui seu objeto. Os regulamentos executivos são aqueles destinados a tão-somente estabelecer regras de organização
e de procedimento necessárias à aplicação da lei.
Regulamentos independentes ou autônomos são visceralmente incompatíveis
com o Direito brasileiro. Portanto, não se pode entender que as agências reguladoras exerçam função legislativa propriamente dita23.
Registra Carlos Ari Sundfeld que “nos novos tempos, o Poder Legislativo faz o que sempre fez: edita leis, freqüentemente com alto grau
de abstração e generalidade. Só que, segundo os novos padrões da
sociedade, agora essas normas não bastam, sendo preciso normas
mais diretas para tratar das especificidades, realizar o planejamento
dos setores, viabilizar a intervenção do Estado em garantia do cumprimento ou a realização daqueles valores: proteção do meio ambiente e do consumidor, busca do desenvolvimento nacional, expansão das telecomunicações nacionais, controle sobre o poder econômico – enfim, todos esses que hoje consideramos fundamentais e
cuja persecução exigimos do Estado”.
Acrescenta que a atribuição do poder normativo para as agências significa o
aprofundamento da atuação normativa do Estado, e não constitui produção de
“regulamentos autônomos ou coisa parecida, pois todas as competências devem ter base legal – mesmo porque só a lei pode criá-las,
conferindo-lhes (ou não) poderes normativos.
A constitucionalidade da lei atributiva depende de o legislador haver estabelecido standards suficientes, pois do contrário haveria
delegação pura e simples de função legislativa. Saber qual é o conteúdo mínimo que, nessas circunstâncias, a lei deve ter é uma das
mais clássicas e tormentosas questões constitucionais, como se vê
da jurisprudência comparada, em países tão diferentes quanto os
Estados Unidos, a Alemanha e a França.
faculdade de direito de bauru
196
No Brasil o debate é, em essência, o mesmo, embora se deva observar que para muitas medidas a Carta de 1988 estabeleceu uma reserva legal, que há de ser observada”24.
Luís Roberto Barroso pontua que
“a grande dificuldade que envolve a discussão sobre o poder normativo das agências reguladoras diz respeito (...) ao seu convívio com o
princípio da legalidade. É preciso determinar os limites dentro dos
quais é legítima a sua flexibilização, sem que se perca sua identidade
como uma norma válida e eficaz. É neste território que se opera a
complexa interação – ainda não totalmente equacionada – entre a
reserva legal, de um lado, e fenômenos afetos à normatização de
condutas, como o poder regulamentar, a delegação legislativa e a polêmica figura da deslegalização, entendida como a retirada, pelo próprio legislador, de certas matérias do domínio da lei, para atribuí-las
à disciplina das agências”25.
Destaca Celso Antônio Bandeira de Mello que, em face do princípio constitucional da legalidade, as determinações normativas oriundas dessas entidades hão de
se ater a aspectos estritamente técnicos, ou que se encontrem abrangidas pelo campo da chamada supremacia especial (assim chamada na Itália e, às vezes, na Espanha) ou relação especial de sujeição (como é referida na Alemanha e, às vezes, na
Espanha). Isto é, podem, nos casos em que suas disposições se voltem para concessionários ou permissionários de serviço público, expedir as normas e determinações
da alçada do poder concedente, ou para quem esteja incluso no âmbito doméstico
da Administração. Todavia, tais providências devem ter embasamento legal e não poderão distorcer-lhe o sentido ou ferir princípios jurídicos acolhidos em nosso sistema, “sendo aceitáveis apenas quando indispensáveis, na extensão e intensidade
requeridas para o atendimento do bem jurídico que legitimamente possam curar
e obsequiosas à razoabilidade”26.
24 Introdução às Agências Reguladoras. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord). Direito Administrativo Econômico, p.
27-28. Celso Antônio Bandeira de Mello considera “grotesca a invocação da ‘reserva legal’ em nosso Direito, no qual
o art. 48 dispõe caber ao Congresso Nacional dispor sobre ‘todas as matérias de competência da União’”. A noção
de “reserva de lei” (da alçada do Parlamento), em contraposição aos “poderes domésticos” da Administração (de
competência do Monarca), termos em que foi defendida por Otto Mayer, esteve vinculada às concepções políticas
e o conseqüente panorama jurídico institucional vigorante na Alemanha no século XIX (Curso de direito administrativo, p. 712, nota 12)
25 Agências reguladoras. Constituição, Transformações do Estado e legitimidade democrática. Disponível:
http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=1007. Acesso em 24 fev. 2003.
26 Op. cit. p. 151.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
197
Maria Sylvia Zanella Di Pietro também observa que a competência reguladora
das agências, inclusive para as que têm fundamento constitucional deve limitar-se
“aos chamados regulamentos administrativos ou de organização, só podendo dizer
respeito às relações entre os particulares que estão em situação de sujeição especial
ao Estado”27. No mesmo sentido complementa Lúcia Valle Figueiredo:
“No Direito brasileiro, obrigações somente se criam por lei e o poder
regulamentar do Presidente da República limita-se a fixar os parâmetros e os standards para a execução da lei, atribuição específica do
Executivo. É certo, todavia, que se deve tentar entender os textos das
emendas constitucionais, precisamente as que se referem expressamente a órgãos reguladores, como sendo a eles cometidas as funções de traçar os parâmetros dos contratos de concessão, sempre
submissos à lei”28.
Essa questão foi colocada na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1668 –
DF, tendo por objeto dispositivos da Lei Geral de Telecomunicações, proposta pelos partidos de oposição, e o Supremo Tribunal Federal decidiu, em teor de medida
liminar, que sua legitimidade somente prevalecia na medida em que, adotada interpretação conforme a Constituição, fosse aceito o
“objeto de fixar a exegese segundo a qual a competência da Agência
Nacional de Telecomunicações para expedir normas subordina-se
aos preceitos legais e regulamentares que regem a outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime público e
no regime privado”(Diário de Justiça, Seção I, 31 de agosto de 1998,
p. 17)29.
Ao comentar essa decisão, Marçal Justen Filho salienta:
“ainda que por maioria, foi adotada interpretação conforme à Constituição para dispositivos que reconheciam competência normativa à
ANATEL, impondo-se reconhecer que tal poder apresentava natureza regulamentar e deveria observar os limites legais. Esse precedente apresenta relevância marcante, eis que a Lei da ANATEL é a mais
completa e exaustiva, dentre as que introduziram as agências moder27 Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas, p. 158
Direito Administrativo, p. 407.
28 Op. cit., p. 141.
29 JUSTEN FILHO, Marçal, op. cit., p. 538-539
faculdade de direito de bauru
198
nas no Brasil. Fez referência explícita a competências regulatórias. O
STF teve oportunidade de examinar, ainda que com a sumariedade
inerente ao julgamento de liminares, o tema da competência normativa abstrata reconhecida a uma agência reguladora. A conclusão do
julgamento, por apertada maioria, indica a complexidade do tema.
Mas se pode assinalar que a orientação consagrada foi a de que a
Constituição impõem limitações à competência normativa abstrata
das agências, que se pode desenvolver apenas como manifestação de
cunho regulamentar não-autônoma.
6.
PROCESSO ADMINISTRATIVO
O tema do processo administrativo é dos mais importantes como instrumento de garantia dos administrados ante as prerrogativas públicas.
A Constituição de 1988 deu-lhe respaldo expresso ao constitucionalizar o devido processo legal enquanto princípio (art. 5º, inciso LIV), e determinou expressamente sua aplicação na esfera administrativa (inciso LV ). A partir daí a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal assimilou uma série de soluções
concretas atinentes à incidência do princípio no campo administrativo.
A Constituição utilizou-se dos termos “acusados” e “litigantes” no inciso LV do
art. 5º acima mencionado.
Vê-se, assim, que a Constituição de 1988, não se limitou a assegurar o contraditório e a ampla defesa - com os corolários deles decorrentes - para os processos
em geral, inclusive o administrativo em que haja acusados, pois essas garantias eram
extraídas pela doutrina e pela jurisprudência, dos textos constitucionais anteriores,
tendo a explicitação da Lei Maior em vigor natureza didática, afeiçoada à boa técnica, sem apresentar conteúdo inovador.
Deve-se dar larga amplitude ao termo – “acusados em geral” – para
“abrigar todas as situações em que haja imputação a alguém de falta
ou conduta ilícita, e não apenas no sentido mais restrito, da possibilidade de já haver acusação formal (ou denúncia no processo penal)
a deflagrar o inquérito administrativo ou a ação penal”30.
Mas a Constituição estendeu as garantias aos processos administrativos em
que haja litigantes. É esta a grande inovação da Constituição de 198831, e, como observa Ada Pellegrini Grinover,
30 FIGUEIREDO, Lúcia Valle, Curso de Direito Administrativo, p. 419.
31 cf. Ada Pellegrini Grinover, Do direito de defesa em inquérito administrativo, RDA 183: 9-18, p. 10.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
199
“esta é a única interpretação da norma constitucional que, em obediência ao princípio de que a lei não pode conter disposições inúteis,
faz com que não se considere superposta a tutela constitucional para
“os acusados em geral” e para os “litigantes em processo administrativo”. E esta é, sem dúvida, a vontade da Constituição pátria de 1988,
coerente com as linhas evolutivas do fenômeno da processualidade
administrativa”32.
Assim, a Constituição não mais limita o contraditório e a ampla defesa
aos procedimentos administrativos (punitivos) em que haja acusados,
mas estende as garantias a todos os processos administrativos, não-punitivos e punitivos, ainda que neles não haja acusados, mas simplesmente litigantes, quer dizer, sempre que houver controvérsia, conflitos
de interesse, contenda. Não é preciso que o conflito seja qualificado
pela pretensão resistida, pois neste caso surgirão a lide e o processo jurisdicional. Basta que os partícipes do processo administrativo se anteponham face a face, numa posição contraposta. Litígio equivale a controvérsia, a contenda, e não a lide. Pode haver litigantes - e os há - sem
acusação alguma, em qualquer lide. Assim, por exemplo, no processo
administrativo de menores, mesmo não-punitivo, podem surgir conflitos de interesses entre o menor e seu responsável legal. Haverá, nessa
hipótese, litigantes e a imediata instauração do contraditório e da ampla defesa. E assim também nos processos administrativos punitivos
(externos e disciplinares), mesmo antes da acusação, surgindo o conflito de interesses, as garantias do contraditório e da ampla defesa serão
imediatamente aplicáveis”33.
Acresce que, até bem pouco não havia, no país, uma lei geral sobre processo
ou procedimento administrativo, nem na órbita da União, nem nas dos Estados ou
Municípios. Existiam apenas normas esparsas concernentes a um ou outro processo, editadas em nível federal, estadual e municipal, sem uma linha condutora no tratamento de questões comuns como, por exemplo, a licitação; o procedimento tributário; o procedimento disciplinar. Não existia, porém, instrumento normativo que
viabilizasse o controle eficiente da atuação administrativa em qualquer campo. Ine-
32 Do direito de defesa em inquérito administrativo, p. 13. Registra ainda a jurista: “isso não é casual nem aleatório,
mas obedece à profunda transformação que a Constituição operou no tocante à função da administração pública,
no pressuposto de que o caráter democrático do Estado deve influir na configuração da Administração. .....................
Nessa linha, dá-se grande ênfase, no direito administrativo contemporâneo, à nova concepção da processualidade
no âmbito da função administrativa, seja para transpor para a atuação administrativa os princípios do “devido processo legal”, seja para fixar imposições mínimas quanto ao modo de atuar da administração.” (ob. cit. p. 10-11).
33 GRINOVER, Ada Pellegrini, op. cit., p.12-13.
200
faculdade de direito de bauru
xistindo uma disciplina geral imposta em lei, cada órgão ou ente adotava posturas
ou soluções diversas (por exemplo: a formalização de decisões, a divulgação de
atos, a apresentação de recursos, a aplicação de sanções, a anulação de atos, a expedição de certidões, a apuração de denúncias etc.), algumas vezes aplicando regras
administrativas próprias, em outras agindo por hábito ou costume, em algumas segundo os critérios variáveis dos dirigentes.
Recentemente, foram editadas a Lei federal nº 9.784, de 28-01-1999, e a Lei
paulista nº 10.177, de 30-12-1998, (regulamentada pelo Decreto n. 44.422, de 23-1199), que regulam o processo administrativo no âmbito federal e do Estado de São
Paulo, respectivamente, sendo certo que Estados e Municípios que queiram dispor
sobre a matéria deverão promulgar as próprias leis.
Embora ambas a lei da União e a paulista, apresentem-se, em suas respectivas
ementas, como destinadas a regular o processo administrativo, seu âmbito de incidência é mais amplo, pois não se restringe “àquilo que, na citada praxe administrativa brasileira, se vem denominando como processo administrativo. As diversas normas dessas leis regulam o exercício das competências decisórias da Administração
geral”34.
As leis buscaram obter uniformidade de comportamento e eliminar disparidades no interior da máquina estatal quanto a certos problemas ou questões jurídicoadministrativos, que se repetem nos diversos órgãos e entes, em nome da necessidade de sujeição do Estado a preceitos fundamentais da ordem jurídico-administrativa, sobretudo aos princípios e regras constitucionais.
As especialidades de certas situações que houvessem levado à edição de leis
especiais foram respeitadas pela nova Lei, que não revogou a disciplina legal própria
a certos atos e procedimentos administrativos (art. 2º da Lei paulista e 69 da Lei federal), hipóteses em que incidirá subsidiariamente. Naquilo em que os atos e procedimentos especiais não envolverem especialidades, não se poderá afirmar a inaplicabilidade das Leis federal e paulista de Processo Administrativo.
As atribuições das agências tornam necessário que
“a atividade regulatória estatal: i) passe a ter uma maior preocupação
com a motivação, não meramente formal, de seus atos; ii) tenha um
caráter marcadamente procedimental, processualizado, com sua subordinação a regras, ritos e procedimentos claros e preestabelecidos; iii) envolva fortemente os administrados – mormente os atores
relacionados ao setor específico objeto da regulação – no processo
decisório, mediante o recurso a consultas e audiências públicas, por
exemplo; iv) não possa se desenvolver sem uma radical transparên34 SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução ao processo administrativo. In: SUNDFELD, Carlos Ari; ANDRÈS MUÑOZ,
Guillerno (Coords.). As leis de processo administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 24.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
201
cia, traduzida na radicalização do princípio da publicidade e na introdução de efetivos mecanismos de controle pelos sujeitos e interessados no exercício desta atividade”35.
7.
CONTROLE SOCIAL
As instituições de procedimento envolvendo a oitiva dos interessados tornouse expediente comum nos diplomas legislativos criadores das assim chamadas
“agências reguladoras”.
Nesse sentido, encontram-se várias normas contemplando diferentes formas
de participação do cidadão, com a instituição de ouvidores junto a diferentes órgãos
públicos, audiências públicas, consulta pública36, criação de Conselhos, sistemas de
“disque-denúncia”, coletas de opinião e tantas outras, devendo ser destacadas suas
virtualidades no Estado Democrático de Direito como instrumentos de legitimidade do poder, aproximando o Estado e a sociedade. Assim é que as leis que disciplinam as atividades das agências reguladoras foram mais avançadas nos mecanismos
de participação estabelecidos do que a Lei das Concessões, que contém regras relativas à fiscalização e controle (arts. 3º, 7º, II, IV e V, 30, parágrafo único e, ainda, art.
33 da Lei n° 9.074/95) e à cooperação do usuário (art. 29, XII)37.
35 MARQUES NETO, Floriano Azevedo. A nova regulação estatal e as Agências Independentes. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Direito Administrativo Econômico, p. 79.
36 Afirma José Santos Carvalho Filho que “mister se faz distinguir as audiências das consultas públicas, que, apesar
de possuírem o mesmo espírito, não se equivalem: “na consulta pública, a Administração deseja compulsar a opinião pública através da manifestação firmada através de peças formais, devidamente escritas, a serem juntadas no
processo administrativo. A audiência pública é, na verdade, modalidade de consulta, só que com o especial aspecto de ser consubstanciada fundamentalmente através de debates orais em sessão previamente designada para tal
fim” (Processo Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 186).
37 No art. 7º da Lei n. 8.987/95 destacam-se os direitos reconhecidos aos usuários de “receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou coletivos”(inc. II), de “levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as irregularidades de que tenham conhecimento, referentes
ao serviço prestado” (inc. IV ), e de “comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados pela concessionária na prestação do serviço” (inc. V ).
A cooperação que incumbe aos usuários na fiscalização do serviço, nos termos do art. 3º, far-se-á, consoante estatui o art. 30, parágrafo único, da Lei n° 8.987/95, “periodicamente, conforme previsto em norma regulamentar,
por comissão composta de representantes do poder concedente, da concessionária e dos usuários”.
Deve-se, porém, atentar que, embora no exercício da fiscalização se conceda ao usuário integrar colegiado misto, a
forma como se dará essa participação dependerá de norma regulamentar do poder concedente, bem como sua periodicidade. Não há previsão de nenhum poder de fato dos usuários para interferir nas tomadas de decisão ou para
compartilhar a gestão operativa do serviço.
Importa ainda registrar o reforço à participação dos usuários, introduzido pelo art. 29, XII, da Lei n° 8.987/95, ao
preceituar que as instituições políticas teriam e têm a obrigação de “estimular a formação de associações de usuários para defesa de interesses relativos ao serviço” (art. 29, XII). Tal estímulo, porém, não é suficiente para garantir o acesso das organizações populares ao processo decisório.
202
faculdade de direito de bauru
É o caso da Lei nº 9.472, de 16-06-97 (Lei Geral das Telecomunicações), que
introduziu a exigência de consulta pública das minutas dos atos normativos a serem
editados pela Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL (art. 42), gerando a
necessidade de realização de um procedimento administrativo normativo e a justificação da decisão que vier a adotar por uma exposição formal dos motivos que a justifiquem (LGT, art. 40), procedimento esse disciplinado pelo Regimento Interno da
Agência (aprovado pela Resolução nº 270, de 19-07-01), com o que se introduziu no
Brasil o chamado rulemaking process do Direito anglo-saxão, abrindo consultas públicas para discutir os regulamentos em preparação; criou a figura do ouvidor (art.
45) com a finalidade de tecer e divulgar amplamente apreciações críticas sobre a
atuação da Agência, bem como um Conselho Consultivo, que representa a participação institucionalizada da sociedade na Agência (art. 33). Esse Conselho é integrado por doze membros, divididos, eqüitativamente, entre representantes indicados
pelo Senado Federal, pela Câmara dos Deputados, pelo Poder Executivo, pelas entidades de classe das prestadoras de serviços de telecomunicações, por entidades representativas dos usuários e por entidades representativas da sociedade (art. 34 da
L.G.T. e art. 36 do Anexo do Decreto nº 2.338, de 07-10-97, alterado pelos Decretos
nºs 2.853, de 02-12-98, 3.873, de 18-07-01, 3.986, de 29-10-2001, e 4.037, de 29-112001) e, embora tenha função meramente opinativa e de encaminhamento de
idéias, e não decisória, nos moldes em que foi constituído, poderá vir a desempenhar um papel de influência no processo deliberativo e possibilitar a manifestação
institucional de interesses localizados na sociedade.
A Lei nº 9.427, de 26-12-96 (art. 4º, § 3º) e o Decreto nº 2.335, de 06-10-97 (art.
21, do seu Anexo), impõem que os processos decisórios que impliquem a afetação
de direitos dos agentes econômicos do setor elétrico ou dos consumidores, mediante iniciativa de anteprojeto de lei ou, quando possível, por via administrativa, sejam
precedidos de audiência pública convocada pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL; a função de ouvidor (art. 4º, § 1º, da Lei nº 9.427/96 e art. 8º, § 1º, do
Anexo do Decreto nº 2.335/97) será exercida pelo Diretor encarregado de atender
as reclamações de agentes e consumidores, sendo-lhe atribuída a responsabilidade
final pela cobrança da correta aplicação de medidas tendentes a corrigir os problemas suscitados; os Conselhos de Consumidores de Energia Elétrica, criados pelas
concessionárias ou permissionárias de energia elétrica, por força do artigo 13 da Lei
nº 8.631, de 04-03-93, regulamentado pela Resolução da ANEEL nº 138/00, de 10-0500 (com alterações produzidas pela Resolução nº 449, de 29-10-01), são constituídos
por consumidores voluntários das classes de consumo, residencial, industrial, rural,
do poder público e representantes dos órgãos de proteção e defesa do consumidor,
O art. 33, da Lei n° 9.074/95, determinou que o regulamento de cada modalidade de serviço público estabeleça a
forma de participação dos usuários na fiscalização e que se torne disponível ao público, periodicamente, relatório
sobre os serviços prestados.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
203
com a incumbência de tratar dos interesses do consumidor, auxiliando a ANEEL na
sua competência legal de assegurar serviços adequados à sociedade; o Operador Nacional do Sistema Elétrico conta nos seus quadros representativos com a participação dos consumidores cativos, por intermédio dos Conselhos de Consumidores
(art. 25, § 2º, I, do Decreto nº 2.655/98), não tendo o representante do Conselho direito a voto, o que reduz a participação dos usuários no controle social dos preços
das tarifas.
A Lei nº 9.478, de 06-08-97, que criou a Agência Nacional do Petróleo, em seu
art. 19, estabelece que
“as iniciativas de projetos de lei ou de alteração de normas administrativas que impliquem afetação de direito dos agentes econômicos
ou de consumidores e usuários de bens e serviços da indústria do
petróleo serão precedidas de audiência pública convocada e dirigida
pela ANP”.
No âmbito da administração portuária, a Lei nº 8.630, de 25-02-93, disciplinadora do regime jurídico da exploração dos portos, prevê a representatividade dos
usuários dos serviços e afins no Conselho de Autoridade Portuária (art. 31, IV ), participando com um voto nas deliberações desse Conselho (art. 31, § 4º, I).
A Lei nº 10.233, de 05-06-01, que dispõe sobre a reestruturação dos transportes aquaviário e terrestre, determina que
“as iniciativas de projetos de lei, alterações de normas administrativas e decisões da Diretoria para resolução de pendências que afetem
os direitos de agentes econômicos ou de usuários de serviços de transporte serão precedidas de audiência pública” (art. 68, caput);
que as concessões a serem outorgadas pela ANTT e pela ANTAQ para a exploração
de infra-estrutura, precedidas ou não de obra pública ou para prestação de serviços de
transporte ferroviário associado à exploração de infra-estrutura, terão as condições básicas do edital de licitação submetidas à prévia consulta pública (art. 34–A, § 1º, introduzido pela MP nº 2.217-3, de 04-09-01), e fixa as atribuições do ouvidor no art. 63.
Casos há, ainda, em que a própria autoridade é quem institui procedimentos
de audiência pública, sem que haja obrigação legal de fazê-lo, como foi feito pela
Agência Nacional de Águas, cujo regimento interno38 faculta ao órgão instituir au38 Art. 34 O processo decisório da ANA poderá ser precedido de audiência pública com os objetivos de:
I - recolher subsídios e informações;
II - propiciar aos usuários envolvidos a possibilidade de encaminhamento de opiniões e sugestões;
III - identificar, da forma mais ampla possível, todos os aspectos relevantes à matéria objeto da audiência pública; e
204
faculdade de direito de bauru
diências públicas como medida preparatória dos procedimentos decisórios, bem
como de alguns procedimentos de consulta estabelecidos ad hoc por autoridades
públicas para a edição de atos normativos.
De extrema importância também é a Lei nº 9.784, de 29-01-99, que regula o
processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, que prevê –
em caráter facultativo – a consulta pública (art. 31) e a audiência pública (art. 32)
como instrumentos prévios à tomada de decisões administrativas relevantes, bem
como a participação dos administrados, diretamente ou por meio de organizações
e associações legalmente reconhecidas, através de outros meios estabelecidos pelos
órgãos e entidades administrativas (art. 33). Os resultados da consulta pública, da
audiência pública ou destes outros meios “deverão ser apresentados com a indicação do procedimento adotado”(art. 34).
No mesmo sentido, cite-se a Lei do Estado de São Paulo nº 10.177, de 30-1298, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Estadual que, nos artigos 28, 29 e 30, trata da consulta pública, da audiência pública e de
outros meios de participação dos interessados, respectivamente.
Recentemente, a Lei Federal nº 10.257, de 10-07-2001, denominada Estatuto
da Cidade (alterada pela MP nº 2.180-35, de 24-08-2001), no Capítulo IV, para garantir a gestão democrática da cidade, prevê a utilização de diversos instrumentos tais
como órgãos colegiados de política urbana, debates, audiências, consultas públicas,
conferências sobre assuntos de interesse urbano, iniciativa popular de projeto de lei
e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano (art. 43), e institucionaliza a gestão orçamentária participativa, com a realização de debates, audiências e
consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como condição obrigatória para sua aprovação
pela Câmara Municipal (art. 44). Preceitua ainda o artigo 45 a inclusão obrigatória e
significativa da participação da população e de associações representativas dos segmentos da comunidade nos organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, para garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania.
Tais normas merecem aplausos, na medida em que trazem para a Administração Pública Brasileira não apenas a uniformização de sua atuação, mas abrem as possibilidades para um maior controle dos administrados e para um debate democrático transparente, envolvendo os sujeitos a serem atingidos por suas decisões.
Reconhece-se, porém, que a participação dos usuários é extremamente dificultosa, em vista da crescente complexidade dos serviços, eis que são leigos em asIV - dar publicidade à ação da ANA.
Parágrafo único. As audiências públicas serão convocadas na forma estabelecida pela Diretoria Colegiada, e serão
presididas pelo Diretor-Presidente, ou por um dos Diretores da ANA na forma do art. 10 deste Regimento Interno
(Resolução 09, de 17-04-01 da ANA).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
205
suntos eminentemente técnicos postos nas pautas decisórias adotadas em matéria
de serviços públicos. Por essa razão Fernando Herren Aguillar alerta que, nesse domínio, o controle social somente pode ser conduzido “em condições aceitáveis à
medida que se desenvolvam mecanismos de representação técnica dos interesses
dos usuários, junto àqueles que decidem a regulação dos serviços públicos”39.
Isso requer um avanço na busca de instituições e mecanismos40 que viabilizem
e valorizem a participação crescente de seus destinatários finais, desde os convenientes à tomada de decisão e à execução aos necessários para ampliar e aprimorar
os instrumentos de controle social, voltados à construção de um novo modelo de
relações prestadores x usuários, calcado na maior aproximação entre ambos.
Assiste razão a Sérgio Varella Bruna quando afirma:
“A combinação da participação dos interessados e da exigência de motivação, com a análise dos motivos determinantes, provê, assim, elementos para evitar-se que os procedimentos normativos sejam despidos de
sentido prático e transformados numa farsa formal. (...)
Portanto, a validade do ato normativo somente deve ser reconhecida
quando a participação dos interessados tenha sido provida de significado prático, o que ocorre quando tenham sido efetivamente apreciados
os principais argumentos apresentados durante o procedimento de consulta pública, por uma autoridade que fundamenta sua decisão, ao acatálos ou rejeitá-los. Procedimentos dessa espécie fornecem elementos para
o controle judicial da atividade normativa da Administração e, quando
convenientemente observados, fortalecem a presunção de legitimidade
que deve ser atribuída ao ato normativo deles resultante, propiciando
um critério adicional a ser observado pelo Judiciário no desempenho de
sua atividade de controle. Deve o Judiciário, portanto, apreciar os procedimentos em si mesmos, a fim de verificar se foram eles convenientemente conduzidos, como meio de aferir a razoabilidade da decisão alcançada pela autoridade.
Sempre que deixar de ser observado um procedimento normativo estabelecido em lei, a norma editada será inválida por vício de legalidade”41.
39 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito econômico e globalização. In: SUNDFELD, Carlos Ari, VIEIRA; Oscar Vilhena (Coords). Direito global, p. 276-277. Do mesmo Autor. Controle social de serviços públicos, p. 293.
40 Luciano Parejo Alfonso defende que a participação institucionalizada do cidadão se torna mais relevante “nos âmbitos em que a Administração goze de um espaço decisório próprio, particularmente nos de alta complexidade e
sensibilidade sociais, em que múltiplos interesses contraditórios estão presentes” (La administración. Función pública. In: GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo; CLAVERO AREVALO, Manuel (Dir.). El derecho público de finales de siglo. Madrid: Civitas, 1997, p. 303.
41 Procedimentos normativos da Administração e desenvolvimento econômico. In: SALOMÃO FILHO, Calixto
(Coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 259-260.
206
8.
faculdade de direito de bauru
CONTROLES LEGISLATIVO E JURISDICIONAL
A agência reguladora é necessariamente submetida aos controles parlamentar
e judicial.
Com efeito, sujeitam-se ao controle pelo Congresso Nacional, previsto no art.
49, inciso X, da Constituição Federal, e ao controle financeiro, contábil e orçamentário exercido pelo Legislativo, com auxílio do Tribunal de Contas, nos termos do no
art. 70 e seguintes da Constituição, bem como ao controle do Poder Judiciário, tendo em vista a norma do art. 5º, XXXV, da Constituição, segundo a qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
9.
FORMAS ALTERNATIVAS DE SOLUÇÃO DOS CONFLITOS
Diante da mudança das relações na sociedade, os meios alternativos de solução
de litígios têm se difundido, estimulando-se o uso da mediação, da conciliação e da arbitragem, que se inserem num contexto mais amplo de realização da justiça. Enquanto
na arbitragem (hoje regulada no Brasil pela Lei Federal nº 9307, de 23-09-96) a solução
do litígio é imposta às partes, na conciliação ela é apenas proposta e, na mediação, incumbe ao mediador levar as partes à conciliação em virtude das vantagens por ele destacadas, sem imposição. Os três modos consensuais de solução de controvérsias não se
excluem, mas, ao contrário, se completam e podem ser adotados em seqüência.
A mencionada Lei nº 9.307/96 não se refere à possibilidade de arbitragem em
questões em que a Administração Pública seja parte. Restringe-se a definir o seu âmbito
como meio de opção em relações patrimoniais entre pessoas capazes de contratar.
A Lei nº 8.987/95, em seu artigo 23, inciso XV, preceitua que o contrato poderá determinar o “modo amigável de solução das divergências contratuais”, dando liberdade
de escolha para a que melhor atenda aos interesses em jogo no objeto da concessão. Antes desse diploma federal a Lei do Estado do Rio de Janeiro nº 1.481, de 21-07-89, em seu
art. 5º, § 2º, continha a previsão expressa de juízo arbitral como solução consensual de
controvérsias administrativas. Em igual sentido, a Lei paulista nº 7.835, de 08-05-92, admitia, em seu art. 8º, nº XXI, a solução amigável de controvérsias42. Essas regras remetem à
42 No setor portuário a Lei nº 8.630, de 25-02-93, exige, em seu art. 23, que o Órgão de Gestão de Mão-de-Obra do
Trabalho Portuário – OGMO constitua uma Comissão Paritária – formada pelos operadores portuários e pelos trabalhadores portuários avulsos – para solucionar os litígios decorrentes da aplicação das normas a que se referem
os arts. 18, 19 e 21. Em havendo impasse para a solução do litígio devem recorrer à arbitragem de ofertas finais (§
1º) e, uma vez firmado o compromisso arbitral, não será admitida a desistência de qualquer das partes, cabendo aos
árbitros decidirem sobre a questão (§ 2º). Os árbitros serão de livre escolha das partes, indicados de comum acordo, e o laudo arbitral possui força normativa, independentemente de sua homologação judicial. A Lei nº 10.233, de
05-06-01, alterada pela MP nº 2.217-3, de 04-09-01, aponta, entre os objetivos das Agências Nacionais de Regulação
dos Transportes Terrestre e Aquaviário, “harmonizar, preservado o interesse público, os objetivos dos usuários, das
empresas concessionárias, permissionárias, autorizadas e arrendatárias, e de entidades delegadas, arbitrando con-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
207
matéria da arbitragem e o que se questiona é a sua constitucionalidade nas relações contratuais de direito público.
Argumentam alguns que, diante dos princípios da supremacia do interesse
público, da indisponibilidade dos interesses públicos e dos instrumentos destinados
à defesa dos interesses públicos, a Administração Pública, ao contratar, não poderia
abrir mão da possibilidade de recorrer ao Poder Judiciário, por franco desrespeito
às regras constitucionais dos direitos e garantias individuais (art. 5º, incisos XXXV,
LXIX, LXX e LXXIII). Entendem outros que a arbitragem afrontaria o princípio constitucional da legalidade, dado que na arbitragem é possível que a solução do conflito seja feita por eqüidade, à margem do respeito estrito às normas legais.
O Tribunal de Contas da União, instado a se pronunciar, em consulta formulada pelo Ministério de Minas e Energia, inicialmente considerou inadmissível a utilização do juízo arbitral em contratos administrativos por falta de autorização legal e ofensa aos princípios básicos de direito público (TC 008.217/93-9,
Plenário, rel. Min. Homero Santos, Decisão 286/93, Ata 29/93, DOU de 04-08-93,
p. 11.192). Centrou a questão sob o foco do Decreto-lei nº 2.300/86 (que regia
as licitações e contratos da Administração Federal), que permitia o juízo arbitral
apenas nos contratos celebrados com pessoas físicas e jurídicas domiciliadas no
exterior (parágrafo único do art. 45).
Posteriormente, após a edição da Lei nº 8.987/95, aquela Corte de Contas, reexaminando entendimento anterior, passou a admitir a arbitragem, desde que as cláusulas que sejam julgadas pelos árbitros não ofendam estritamente o princípio da legalidade e o da indisponibilidade do interesse público (TC nº 006.098/93-2, Plenário, rel. Min. Paulo Affonso Martins de Oliveira, Decisão nº 188/95, Plenário, Ata
flitos de interesses e impedindo situações que configurem competição imperfeita ou infração da ordem econômica” (art. 20, “b”). Os arts. 35, inc. XVI e 39, inc. XI, estipulam que os contratos de concessão e de permissão, respectivamente, terão, entre suas cláusulas essenciais, as regras sobre solução de controvérsias relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem.
A Lei nº 9.427 (Energia Elétrica), em seu art. 3º, atribui como competência da ANEEL “dirimir, no âmbito administrativo, as divergências entre concessionárias, permissionárias, autorizadas, produtores independentes e autoprodutores, bem como entre esses agentes e seus consumidores”(inc. V ).
A Lei nº 9.472/97 (Telecomunicações) estatui, em seu art. 93, que o contrato de concessão indicará o foro e o modo
para solução extrajudicial das divergências contratuais (XV ).
A Lei nº 9.478/97 (Petróleo), prevê a conciliação e arbitramento na solução de conflitos, conforme vier a ser regulado em seu regimento interno (arts. 20, 27, parágrafo único e 43, X).
A Lei n. 10.233/01, prevê no art. 35, XVI que os contratos de concessão celebrados pela ANTT e ANTAQ devem estabelecer “regras sobre solução de controvérsias relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem”.
Através da Resolução Conjunta n. 002, de 27-03-01, foi aprovado o Regulamento Conjunto de Resolução de Conflitos das Agências Reguladoras dos Setores de Energia Elétrica, Telecomunicações e Petróleo, sobre compartilhamento de infra-estrutura, na forma do Anexo à Resolução, “objetivando assegurar a ampla, livre e justa competição e
os benefícios aos usuários dos serviços”(art. 2º do Anexo).
208
faculdade de direito de bauru
18/95, DOU de 22-05-95, p. 7.277, em que eram interessados o DNER e o Consórcio
Andrade Gutierrez/Camargo Correa).
No julgamento de agravo regimental, em sentença estrangeira, em que se discutiu incidentalmente a constitucionalidade da Lei n. 9.307/96 – Lei da Arbitragem,
o Supremo Tribunal, por unanimidade, proveu o Agravo para homologar a sentença arbitral, vencidos parcialmente os senhores Ministros Sepúlveda Pertence,
Sydney Sanches, Néri da Silveira e Moreira Alves, no que declaravam a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 6º, do art. 7º e seus parágrafos; no art. 41, das
novas redações atribuídas ao art. 267, inciso VII, e ao art. 301, inciso IX, do Código
de Processo Civil; e do art. 42, todos da Lei nº 9.307, de 23-09-96. Votou o Presidente, o Senhor Ministro Marco Aurélio.(SE 5.206-Espanha (AgRg), Plenário, rel. Min.
Sepúlveda Pertence, j. 12-12-01, DJU 19-12-01).
Apesar dos questionamentos existentes, é indubitável que a complexidade
técnica e especificidade dos conflitos entre as partes nas concessões requer uma celeridade incompatível com a obrigatoriedade de recurso ao Poder Judiciário como
única alternativa. Importa ainda ter-se presente que, se, em certos casos, o princípio
da indisponibilidade do interesse público afasta o compromisso arbitral, há um campo de interesses patrimoniais disponíveis dentro do qual a arbitragem é recomendável como alternativa ao litígio judicial, por expressa admissão legal. Nesse sentido
já caminha parte da doutrina brasileira ao reconhecer a aplicabilidade do juízo arbitral em matéria administrativa43
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vários são os debates constitucionais suscitados pelas agências reguladoras: os riscos institucionais que representam em face de sua carência de legitimação democrática, a questão da separação de poderes, o princípio da legalidade,
desembocando na discussão acerca da intangibilidade do Poder incumbido da
prestação jurisdicional. Tais questões não foram até hoje respondidas de forma
convincente
43 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Arbitragem nos contratos administrativos. In: Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 221-235. TÁCITO, Caio. Arbitragem nos litígios administrativos. In: Temas de direito público (estudos e pareceres). Rio de Janeiro: Renovar, 2002. v. 3, p 83-88. DALLARI, Adilson Abreu.
Arbitragem na concessão de serviço público. Boletim de Direito Administrativo. São Paulo, v. 12, n. 9, p. 571-575,
set. 1996. MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Contrato administrativo e a lei de arbitragem. RDA, Rio de Janeiro,
v. 223, p. 115-130, jan./mar. 2001. WALD, Arnoldo; MORAES, Luiza Rangel de; WALD, Alexandre de M. O direito de
parceria e a nova Lei de Concessões (Análise das Leis 8.987/95 e 9.074/95). São Paulo: RT, 1996. p. 140. Lucia Valle Figueiredo sustenta que as agências não têm poder arbitral para dirimir conflitos entre os prestadores de serviço e o Poder Público, seja ele federal, estadual ou municipal. Não vê, porém, impedimento constitucional para dirimir controvérsias, ou, então, impor regras de convivência, entre as próprias empresas concessionárias, sobretudo
na difícil questão do compartilhamento de infra-estrutura (Curso de Direito Administrativo, p. 143-144).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
209
Ressalte-se, ainda, que, diante do novo governo, as agências vivem período de
expectativa de qual será a sua postura com relação a estas instituições, especialmente pelo fato de ter de conviver com dirigentes de agências existentes indicados pelo
governo anterior e aprovados pelo Senado.
BIBLIOGRAFIA
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 15. ed. rev. atual. e
amp. São Paulo: Malheiros, 2003.
__________. Natureza e Regime Jurídico das Autarquias. São Paulo: RT, 1968.
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, Transformações do Estado e legitimidade democrática. Disponível: http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=1007. Acesso em 24 fev. 2003.
CARVALHO FILHO, José Santos. Processo Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
CUÉLLAR, Leila. As Agências Reguladoras e seu Poder Normativo. São Paulo: Dialética,
2001.
DALLARI, Adilson Abreu. Arbitragem na Concessão de Serviço Público. Boletim de Direito
Administrativo. São Paulo, v. 12, n. 9, p. 571-575, set. 1996.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 4. ed. rev. e amp. São Paulo: Atlas, 2002.
__________. Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros. 6. ed. rev.,
atual. e ampl, 2003.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Reforma do Estado. O papel das Agências Reguladoras
e Fiscalizadoras. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, n. 3, p. 253-257, maio 2001
GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo; CLAVERO AREVALO, Manuel (Dir.). El Derecho Público de
Finales de Siglo. Madrid: Civitas, 1997.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Do Direito de Defesa em Inquérito Administrativo, RDA, 183: 918.
JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das Agências Reguladoras Independentes. São Paulo: Dialética, 2002.
MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Contrato Administrativo e a Lei de Arbitragem. RDA,
Rio de Janeiro, v. 223, p. 115-130, jan./mar. 2001.
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. São Paulo: RT, 1992.
210
faculdade de direito de bauru
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Arbitragem nos Contratos Administrativos. In: Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
SALOMÃO FILHO, Calixto (Coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros,
2002.
SALOMÃO FILHO, Calixto (Coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros,
2002.
__________. Regulação da Atividade Econômica: princípios e fundamentos jurídicos.
São Paulo: Malheiros, 2001
SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros,
2000.
__________; ANDRÈS MUÑOZ, Guillerno (Coords.). As Leis de Processo Administrativo.
São Paulo: Malheiros, 2000
__________; VIEIRA, Oscar Vilhena (Coords). Direito Global. São Paulo: Malheiros, 1999.
TÁCITO, Caio. Arbitragem nos Litígios Administrativos. In: Temas de direito público (estudos
e pareceres). Rio de Janeiro: Renovar, 2002. v. 3.
WALD, Arnoldo; MORAES, Luiza Rangel de; WALD, Alexandre de M. O Direito de Parceria e
a Nova Lei de Concessões (Análise das Leis 8.987/95 e 9.074/95). São Paulo: RT, 1996.
WEBER, Max. Economía y Sociedad. Ciudad del México: Fondo de Cultura Económica, 1996.
a União Européia, Os Estados e as regiões: em
busca da coesão econômica e social por meio
de uma política regional - Aspectos Jurídicos*
Gustavo Ferraz de Campos Monaco
Doutorando em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Mestre em Ciências Jurídico-Políticas (Direito Internacional) pela
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal).
Ex-bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP (Brasil).
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da USP (Brasil).
INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA
O presente trabalho tem por escopo analisar o que se deva entender por coesão econômica e social e como a existência ou não desta coesão pode servir de parâmetro para a fixação de políticas regionais no âmbito comunitário, de forma a se
alcançar o tão almejado e, por vezes, utópico equilíbrio econômico e social entre as
diferentes regiões. Com efeito, a reunião (ainda que acordada e, nesse sentido, voluntária) de povos e nações de múltiplas culturas, costumes, línguas etc., ainda que
redutíveis a um único denominador conglobante, qual seja a cultura européia oci* O autor gostaria de deixar consignado os seus agradecimentos não só ao Tribunal de Justiça das Comunidades Européias como, ainda e principalmente, ao Tribunal Comunitário de Primeira Instância que, na pessoa de seu então
juiz representante de Portugal, Professor Doutor Rui Manuel Gens de Moura Ramos, da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, pela gentileza em abrir a biblioteca das Cortes sediadas no Luxemburgo para pesquisa,
na segunda quinzena de janeiro de 2002. O presente artigo corresponde ao trabalho elaborado para a disciplina Direito de Integração ministrada pelo Professor Catedrático Manuel Carlos Lopes Porto no curso de mestrado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
faculdade de direito de bauru
212
dental, encontrou os vários povos que a compõem em estágios distintos naquilo
que se refere à sua estrutura econômica e social, nomeadamente no que se refere à
sua estrutura Jurídico-Política.
A crescente necessidade, cada vez mais desejada, de se elaborar meios
adequados a permitir a perseguição dessa coesão, fez com que fossem surgindo
instrumentos, a pouco e pouco, na estrutura comunitária, os quais permitiram a
criação de certa conscientização no sentido de que uma União de Estados não
podia se dar apenas no âmbito econômico-comercial, mas antes e sobretudo, garantindo aos habitantes de toda a União planejada os mesmos instrumentos sociais e econômicos necessários1 para o pleno gozo das benesses a que se propõe
a União de Estados europeus.
A harmonização de tais condições, então, foi sendo entregue a vários órgãos
institucionais criados com este fim último e que serão analisados, sob o ponto de
vista de sua organização jurídica na terceira parte deste trabalho. Antes, porém, na
segunda parte, encarar-se-á a coesão econômica e social desde uma vertente jurídico-política, tentando-se perceber o princípio e a política que contém sob um
prisma que atenha-se ao Direito Constitucional e ao Direito Internacional.
1.
DA NECESSIDADE DE UMA POLÍTICA REGIONAL NO ESPAÇO COMUNITÁRIO
Se na Europa dos seis (França, Alemanha – capitalista –, Itália – exceto o
sul –, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo) as diferenças de desenvolvimento
econômico e social não eram marcantes, nem inspiravam maiores preocupações,
justificava-se então a falta de configuração e delineamento de uma política regional para tornar equânime a distribuição de renda e meios de produção. Daí por
que o Tratado de Roma não trouxesse previsão neste sentido, admitindo, no entanto, como ainda hoje se admite, que fossem proporcionados, pelos Estados
membros da Comunidade, subsídios públicos às regiões menos favorecidas.
A ótica, portanto, é estatal e não coletiva, ou seja, as dificuldades e desequilíbrios regionais são tidos como problemas internos do Estado, cabendo à
Comunidade apenas e tão-somente abster-se de proibir que subsídios e ajudas
2
1 Para uma verificação detalhada sobre o que se deva entender por instrumentos sociais e econômicos, no sentido
em que utilizados no texto, veja-se GIORGIO SACERDOTI. “La Cooperazione Interregionale Europea tra vincoli costituzionali e principi del Diritto Internazionale”, in Regioni, Costituzione e Rapporti Internazionali: relazioni con la
Comunità Europea e cooperazione transfrontaliera, Coord. Angelo Mattioni e Giorgio Sacerdoti, p. 41-69, em especial a parte B do texto.
2 Para uma verificação histórica dos meios levados a efeito pela Itália (e também, em certa medida, pela França),
com vistas a uma harmonização econômico-regional interna capaz de garantir uma participação integral do Estado
nas Comunidades, veja-se o ensaio de MICHAEL D. BLECHMAN. “Regional Development in the EEC: A Constitutional
Analysis”, in Harvard International Law Journal, vol. 8, n° 1, em especial as pgs. 40-47.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
213
fossem concedidos, o que ficava a critério do Estado em questão.3 Tal forma de
encarar o problema pode ser explicada pelas teorias econômicas então admitidas segundo as quais os desequilíbrios regionais tenderiam, com o passar do
tempo a desaparecer. Isto era explicado pela hipótese de que as forças do mercado, elas próprias, fariam atingir o equilíbrio desejado, na medida em que as
empresas tenderiam a procurar a mão de obra mais barata nos meios menos desenvolvidos, ao passo que os trabalhadores seriam tendencialmente atraídos
pelas regiões mais desenvolvidas, onde os salários e as especialidades eram
maiores.
Esse argumento, que se mostrou falacioso com o decorrer do tempo,4 autorizava, na lógica do livre mercado, a abstenção dos governos que deixavam, assim, o
equilíbrio ao alvitre das forças do mercado. A falácia a que se refere diz com os pressupostos econômicos utilizados para a formulação da teoria, os quais são tomados
em sua pureza, desprovidos de valoração subjetiva e que, dessa forma, nunca se verificariam na realidade.5
Nesse ínterim, porém, a adesão de Estados social e economicamente menos equilibrados às Comunidades, como eram os casos da Irlanda, da Grécia, de
Portugal e da Espanha e, em menor medida, do Reino Unido da Grã-Bretanha,
associado ao avanço das técnicas estatísticas e das ciências econômicas,6 que
permitiram, respectivamente, o conhecimento das reais condições de desequilíbrio regional existentes, bem como de sua agravação (estatística), e a percepção
de que o mercado livre não implicaria a necessária tendência para o equilíbrio
mas, ao contrário, faria agravar o desequilíbrio então existente, uma vez que tanto os fatores de produção como a mão de obra mostraram-se atraídos pelas regiões mais favorecidas (economia), acabou por forçar a uma mudança na ótica
de atuação e regulação de que partiam os órgãos e a legislação comunitários.
Três foram as razões que passaram a presidir a política comunitária de cariz regional:7 a primeira delas assenta-se num pressuposto ético-humanista, que considera a população em detrimento da região a que pertençam estas pessoas, segundo o
qual as regiões menos favorecidas não podem condenar suas populações a viver em
condições menos privilegiadas que as demais, nem podem forçá-las, ainda que indiretamente, à migração. Num grande espaço territorial, o melhor (do ponto de vista
3 Com uma visão federalista, ou quase federalista, que propugnava pela participação de toda a Comunidade no financiamento das políticas de coesão econômica, inclusive com a proposta de critérios para a deslocação de competências dos Estados para as Comunidades, veja-se: MICHAEL D. BLECHMAN. Ob. cit., p. 47-50.
4 Já em 1967 MICHAEL D. BLECHMAN (Ob. cit., p. 34-37), por exemplo, escrevia demonstrando que uma região desenvolvida possuía um número de fatores capazes de atrair maiores investimentos que as áreas menos desenvolvidas.
5 Cf. MANUEL Carlos Lopes PORTO. Teoria da Integração e Políticas Comunitárias, p. 379.
6 Cf. MANUEL Carlos Lopes PORTO. Ob. cit., p. 376-377; ANA JESÚS LÓPEZ MENÉNDEZ e CARMEN RAMOS CARVAJAL. “El camino hacia la Unión Estadística Europea”, in Revista de Estudios Europeos, v. 25, p. 113-126.
7 Para o que segue, utilizam-se as razões arroladas em MANUEL Carlos Lopes PORTO. Ob. cit., p. 380-384.
214
faculdade de direito de bauru
político) é oferecer benefícios às pessoas e regiões desfavorecidas e não fornecer
pessoas aos sítios mais desenvolvidos.8
E isto se liga à segunda das razões, que considera que os fatores não econômicos da região mais desenvolvida acabam por ser afetados pela concentração de riquezas, gerando certa incapacidade de crescimento a curto prazo decorrente do esgotamento dos recursos naturais e humanos, bem como certa insatisfação social na
população, decorrentes do aumento do desemprego, do sub-emprego, da violência,
dos preços do mercado imobiliário etc.
Para além disso, e agora com uma razão mais geral e de maior alcance, pode-se dizer que a promoção de meios de crescimento das regiões mais desfavorecidas acarreta
um melhor aproveitamento da diversidade de recursos existentes ao longo do Estado.
Equilibrar uma região e promover o crescimento de todo um Estado ou mesmo da comunidade, antes tidos como objetivos que andavam em contra-mão e que
eram inversamente proporcionais, passaram a ser encarados, no âmbito comunitário, como objetivos que caminham em uma mesma direção e que são diretamente
proporcionais.9 Assim, quanto maior o equilíbrio dentro do Estado ou da União,
maior será o crescimento desta ou daquele em termos globais.
2.
DOS PRINCÍPIOS REITORES DESSA POLÍTICA
Aceitos estes pressupostos, a Comunidade houve por bem avançar com uma
política capaz de fazer frente às diferenças estruturais entre as suas várias regiões.
Para tanto, instrumentos financeiros foram criados com o intuito de se apoiar políticas comuns e comunitárias, segundo princípios que conjugassem esforços e necessidades, garantindo uma certa convergência entre a União ou as Comunidades como
tal, os Estados que as compõem e mesmo as regiões contidas nestes Estados, as
quais passaram a gozar de certa autonomia comunitária, a par da autonomia que a
estrutura política interna do Estado membro lhes garante.10
8 É o que se depreende do excerto seguinte: “Sendo o homem o destinatário de toda a actividade económica e social, mais valeria o custo de transferir as pessoas das áreas menos favorecidas para as mais favorecidas. Mas é do interesse de todos que se promovam as primeiras, com a fixação das pessoas (v.g. das mais válidas), criando-se condições para que venham a ser competitivas a médio e a longo prazos (além deste interesse económico preservamse e promovem-se assim valores ambientais, culturais e sociais que ficam irremediavelmente comprometidos com
a desertificação das áreas mais desfavorecidas)” (MANUEL Carlos Lopes PORTO. Ob. cit., p. 384, nota 195).
9 Assim manifestou-se a Comissão Européia no Primeiro Relatório da Comissão sobre a Coesão Econômica e Social (p. 128), apud MANUEL Carlos Lopes PORTO. Ob. cit., p. 381.
10 Para a conceituação de região comunitária, suas distinções entre os vários sistemas jurídicos dos Estados membros
(Estados unitários, descentralizados, regionalizados ou federados), sua submissão ao Direito Comunitário e, ainda, sua
participação nas instituições européias, veja-se o artigo de MARC VAUCHER. “Réalité juridique de la notion de région communautaire”, in Revue Trimestrielle de Droit Européen, n° 4, 1994, p. 525-550. E para uma conceituação do que sejam
as NUT’s, em suas três categorias, confira-se também a nota 209 em MANUEL Carlos Lopes PORTO. Ob. cit., p. 394.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
215
Sabe-se, em ciência política, em teoria geral do Estado e mesmo em Direito
Constitucional, que os poderes concentrados nas mãos do Estado devem ser por
este exercidos de acordo com as regras estabelecidas pelo Poder constituinte, capaz,
como é, para definir a Organização do Estado, a separação tanto vertical como horizontal de poderes e o estabelecimento dos direitos, deveres e garantias que goza a
pessoa humana que sob seu império se localize.
Bem por isso, pode o Estado organizar-se sob uma destas formas: Estado unitário, Estado descentralizado, Estado regionalizado ou Estado federado.
O Estado unitário é aquele Estado que, como Portugal,11 encontra-se esquadrinhado segundo uma fixa concentração de poderes nas mãos do governo nacional,
que arrecada os dinheiros públicos, os reparte, estabelece políticas nacionais que
podem atingir todo o território nacional ou apenas uma parte geograficamente destacada.
Por sua vez, o Estado descentralizado, apesar de politicamente contar com um
governo central forte, garante certa autonomia a regiões administrativamente bem delineadas que, todavia, não dispõem de competências legislativas ou de garantias constitucionais, como é o caso da França. Estes Estados podem, por isso, adaptar as políticas nacionais às peculiaridades geográficas que contenham, com o fito de balancear
(corrigindo ou evitando) distorções que a política nacional possa proporcionar.
Já os Estados regionalizados dispõem de certa autonomia conjugada com
competências legislativas, mas não possuem a capacidade de influenciar as políticas
nacionais. As decisões e a representação dão-se no âmbito regional, sem qualquer
conexão com o âmbito nacional. Por este motivo, podem existir, em Estados como
a Espanha, políticas públicas que difiram das políticas ditadas pelo governo central,
mas com a peculiaridade de valerem e encontrarem campo de aplicação apenas no
território geográfico delimitado da região.
Diferentemente, nos Estados federados, como a Alemanha, as regiões detêm
personalidade jurídica capaz de se fazer representar e de exercer parcelas da soberania no cenário nacional.12 Assim, podem influir decisivamente na eleição de políticas nacionais, segundo os interesses que lhes pareçam mais salutares e acordes à sua
região.
Quando os Estados europeus resolveram partilhar as suas soberanias, cedendo às Comunidades e depois à União, parcelas consideráveis de seus poderes, mais
11 Em que pese a existência das Regiões Autônomas da Madeira e dos Açores.
12 É o que se passa em Estados como o Brasil, por exemplo, em que o sistema de representação legislativa bicameral está organizado de forma a que uma casa legislativa represente o povo brasileiro e atue de acordo com os interesses de toda a coletividade (daí porque o número de deputados seja proporcional à população de cada Estado federado), ao passo que a outra casa legislativa represente os Estados enquanto unidades da Federação, atuando, assim, segundo os interesses do Estado (daí por que cada Estado seja representado por igual número de senadores).
Este modelo, de nítida inspiração estadunidense, acaba por garantir (em teoria) a independência das regiões que
compõem o todo.
216
faculdade de direito de bauru
uma fonte de determinação de políticas regionais surgiu, esta com uma preocupação mais alargada no espaço (no sentido de que o que busca realizar é um equilíbrio
que tenda ao equilíbrio total, geral, ou seja, entre todas as zonas que compõem o
bloco comunitário) e, por isso mesmo, mais dilatada no tempo (no sentido de que
se mantém ciente de que a busca por esse equilíbrio não se faz da noite para o dia,
nem por decreto, mas com uma sólida política de investimentos na educação, na
[re-]adequação laboral etc.). Trata-se da Política Regional comunitária que visa a perseguir, garantir e manter certo equilíbrio entre os vários Estados que compõem a
União Européia, o que se faz pela tentativa de equilibrar as várias regiões destes vários Estados membros.
Mais do que re-alocar recursos físicos, monetários ou humanos, dando o peixe
aos pescadores, a filosofia que parece reger a aplicação desta política, na busca daquele princípio do equilíbrio comunitário parece ser (como de resto ficará mais claro no
item seguinte relativo à aplicação prática da política) ensinar os pescadores a pescar, garantindo-se as estruturas básicas para a coordenação das exigências, das necessidades,
dos recursos e das aspirações locais, regionais, nacionais e comunitária.
Essa tentativa de se equilibrar as várias regiões dos vários Estados membros
pressupõe a coordenação e a articulação recíprocas relativamente às decisões a serem tomadas, o que gera, por óbvio, projeções tanto intra-estatais como inter-estatais, inclusive com flexibilização constitucional e diplomáticas no que se refere aos
procedimentos decisórios, situando “a los Estados en una posición de igualdad que
propicia la adopción de decisiones conjuntas y que colabora a relativizar y disminuir
los preexistentes factores de desigualdad”.13
Esta posição de igualdade é tomada não em uma perspectiva pessoal, que busca igualar os indivíduos que habitam as regiões, posto que a União não pode, ainda,
permitir-se dotar de uma Carta Constitucional que, esta sim, poderia se valer da particularidade do critério da eqüidade e da equalização para a distribuição da renda regional e pessoal.14 Neste sentido, o princípio da coesão econômica e social, realizado por meio das políticas regionais comunitárias diferencia-se e afasta-se do princípio da igualdade tomado em sua vertente exclusivamente pessoal. Mas não se pode
olvidar, na esteira, aliás, do pensamento de Angel Sánchez Blanco, que toda ação institucional que se assente em premissas democráticas acaba por ter, sempre, como
destinatários últimos as pessoas.
Todavia, diante da inexistência jurídica de regiões em certos Estados, ou de
sua ineficácia (no sentido de não disporem de meios ou voz para reclamar seus intentos) em outros, como se faz a coordenação destes atores jurídico-políticos?
Como se garante a participação desses atores nas decisões a serem tomadas de for13 Angel SÁNCHEZ BLANCO. “El principio comunitario de cohesión económica y social”, in Revista Vasca de Administración Pública, n° 29, p. 128.
14 Cf. Angel SÁNCHEZ BLANCO. Ob. cit., p. 129.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
217
ma democrática naquilo que à política regional respeita? Como se harmonizam princípios e regras constitucionais e internacionais na busca por tal desiderato?
Segundo o posicionamento esposado por Marc Vaucher,15 os Estados que, politicamente se encontram estruturados, no âmbito interno, sob regras que dotam
suas regiões internas de certa autonomia, tem experimentado uma re-centralização
de poderes nas mãos do governo central, o qual é incumbido pelo sistema comunitário, e também segundo suas normas constitucionais internas, de proceder à distribuição de competências entre seus órgãos nacionais (quer sejam eles de caráter nacional propriamente dito ou mesmo regional ou local) como forma de se dar aplicabilidade e efetividade às políticas ditadas por Bruxelas. Esta re-centralização de poderes explica-se não só pela facilidade interna que assiste aos Estados membros da
União no sentido de prestar contas aos órgãos comunitários como, ainda e principalmente, pelo fato de Bruxelas preferir lidar com apenas 15 ou 25 Estados, sendo
por eles demandada diante dos Tribunais do Luxemburgo, do que por 2 ou 3 centenas de regiões dotadas de certa autonomia que é, porém, variante, conforme o Estado constitucional a que pertençam.
Estes fatores conjugados explicam o posicionamento jurisprudencial do TJCE
no sentido de dificultar o reconhecimento de legitimidade processual às regiões dos
Estados membros, regiões estas que são vistas, pela Corte de Justiça e, agora, também pelo Tribunal de primeira instância em posição semelhante a do particular.16
Como reação, órgãos ou meios de participação institucional foram sendo criados no sentido de garantir às regiões certa voz junto à burocracia comunitária. Iniciado este processo de forma eminentemente informal, com o estabelecimento de
escritórios de representação permanente que “advogavam” os interesses regionais
particulares em Bruxelas, assistiu-se, em 1988, à criação de um órgão de representação oficial das regiões, o chamado Conselho consultivo das entidades regionais e locais. Por outro lado, garantiu-se com a redação dada ao art. 146 pelo Tratado de
Maastricht que representantes de governos regionais pudessem tomar assento no
Conselho de Ministros, segundo uma interpretação um pouco alargada de seus termos, de resto nada explícitos neste sentido.17
Mas, certamente, é no que respeita à participação na determinação e nos
limites da política regional que as regiões estaduais participam de forma mais
ativa no âmbito comunitário. Nomeadamente, se se tiver em consideração a reforma de 1988 dos fundos estruturais, meios por excelência para a realização
dessa política. Com esta reforma, a partição dos fundos se faz segundo um acordo levado a efeito pela Comissão e o Estado membro beneficiário, de resto ti15 MARC VAUCHER. Ob. cit., p. 536
16 Para uma verificação cuidadosa dessa jurisprudência que, de resto, escapa aos limites do presente trabalho, cf.
MARC VAUCHER. Ob. cit., p. 537-538.
17 Confira-se o mesmo MARC VAUCHER. Ob. cit., p. 547.
218
faculdade de direito de bauru
tular da personalidade e da capacidade jurídicas para firmar acordos de feição
contratual, mas é aconselhável a intervenção das autoridades regionais ou locais, mormente quando a distribuição das quotas de participação no orçamento e na previsão de gastos dos planos houver de ser distribuído entre todos estes entes, segundo os princípios que regem a implementação das políticas, os
quais serão melhor detalhados no item seguinte.
Mas, apesar de ser o Estado central o detentor da personalidade jurídica
que confere a conseqüente capacidade para a conclusão de acordos com feição
contratual, e de ser esse mesmo Estado central o responsável por eventual inadimplemento das obrigações assumidas, fato é que as regiões que o compõem
foram sendo, cada vez mais, dotadas de personalidade ao menos de fato até
que, em 1993, receberam assento, ao lado do Estado que as contém, relativamente à possibilidade de cooperar com a Comissão na elaboração de determinadas políticas e atos comunitários.18 Essa mudança de paradigma participativo
traz como conseqüência o reconhecimento de que a articulação interna do Estado não é mais indiferente e que as regiões não são mais tomadas apenas em
consideração de suas características geográficas e econômicas, mas sim, também, por sua força política.
Bem por isso, na seara do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional
(FEDER – veja-se, infra, sub-item 3.2) foi criado o programa INTERREG, iniciativa comunitária concernente às zonas contíguas de diferentes Estados membros, onde as autoridades locais ou regionais, valendo-se de uma colaboração
horizontal entre as diversas regiões comunitárias, colaboração esta reconhecida pela União e consentida (ao menos) pelos Estados, acaba por aplicar uma
política vertical, desenvolvida pela comunidade, e gerida pelos órgãos regionais
com recursos destinados pelo todo para estudos e projetos atinentes à parte,
nomeadamente naquilo que respeita às políticas ambiental, tecnológica, universitária e cultural.
Juridicamente, este reconhecimento de aptidão dos órgãos regionais ou
mesmo locais para comunicar e intercambiar experiências, necessidades e projetos com seus congêneres de outros Estados membros, algo que seria impensável não fosse a existência da supra-nacionalidade que os une, é algo só suplantado pelo contato direto existente entre a Comissão e as regiões.19
Neste contexto, segundo Giorgio Sacerdoti20 os Estados centrais deixam
de ser os únicos responsáveis pela política de relações exteriores que começa
já, ainda que timidamente, a ser entregue aos órgãos regionais (isso para não
18 Cf. GIORGIO SACERDOTI. Ob. cit., p. 43.
19 Cf. GIORGIO SACERDOTI. Ob. cit., p. 44.
20 GIORGIO SACERDOTI. Ob. cit., p. 45.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
219
falar numa política de relações internacionais comum a toda a União Européia,
como já se tem vindo a verificar na prática das organizações internacionais21)
Todavia, as regiões não são dotadas de personalidade jurídica de Direito Internacional (para alguns autores também os seres humanos ainda não o são, nem mesmo quando em causa o Direito Internacional dos Direitos Humanos), o que leva a
uma destas conclusões óbvias: ou bem os acordos por elas firmados no âmbito comunitário, porque aconselhados pelas instituições comunitárias e toleradas pelos
governos internos dos vários Estados membros, são acordos de direito internacional que acabam por responsabilizar a esses últimos entes; ou bem não são acordos
de direito internacional, pelo que não vinculam sequer o Estado que contenha a região signatária, uma vez que este não exerceu a sua competência diplomática, nem
mesmo pode vincular internacionalmente o órgão regional que o tenha firmado,
uma vez que este não disporia da competência constitucional para tanto. A resposta a estas indagações por último postas e atinentes à eventual responsabilização dos
entes envolvidos dependerá sempre da análise da Constituição do Estado envolvido, Constituição esta que traçou a divisão de competências internas, que conformou o Estado como sendo um Estado de tipo unitário, descentralizado, regionalizado ou federativo. Caberá à Corte Constitucional ou órgão homólogo de cada um dos
Estados membros,22 se e quando confrontados com o problema, buscar a solução
para a questão, remetendo-a, se cabível e necessário, para consulta junto ao Tribunal de Justiça das Comunidades Européias.
3.
DOS MEIOS PARA A REALIZAÇÃO DESSA POLÍTICA
Verificada a conformação Jurídico-Política e os reflexos que pode gerar ou sofrer relativamente à política regional tendente a uma coesão econômica e social, resta analisar a forma por que ela se manifesta.
Já a partir de 1970, dotou-se a União Européia, com os acordos firmados no
Luxemburgo aos 21 e 22 dias do mês de abril daquele ano, de um orçamento próprio – em detrimento da política até então aceite de dotações estatais típicas das Organizações Internacionais clássicas, o que se mantém no âmbito do Mercosul, por
21 A título meramente ilustrativo, ressalte-se a XIX sessão diplomática da Comissão I da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (Affaires générales et politiques de la Conférence), realizada na Haia (Holanda) de 22 a
24 de abril de 2002, da qual tive a oportunidade de participar como observador do governo brasileiro. Nessa sessão
diplomática, as intervenções operadas pelos representantes dos 15 Estados da União eram, no mais das vezes, reprodução das intervenções dos observadores da Comissão ou do Conselho que, ademais, como observadores não
estavam legitimados a intervir. Todavia, para que se facilitasse o andamento dos trabalhos, evitando uma série de interrupções para reuniões do Conselho, da Comissão e dos 15, eram tais intervenções toleradas pela direção dos trabalhos e pelos demais participantes.
22 Para uma verificação da jurisprudência italiana acerca do problema e especulações de ordem doutrinária, Cf.
GIORGIO SACERDOTI. Ob. cit., p. 53 e seguintes.
220
faculdade de direito de bauru
exemplo, com a particularidade de os quatro Estados membros contribuírem em
igual proporção para cobrir as despesas administrativas da instituição23 –, de onde
advêm as receitas necessárias para o financiamento daquelas políticas sociais e regionais regidas por aqueles princípios descritos, tendentes ao equilíbrio tantas vezes referido. As fontes de arrecadação foram sendo alteradas ao longo dos anos e na
medida em que novos fatores foram aconselhando uma redefinição das formas de
arrecadação (por exemplo, a substituição gradativa dos recursos advindos do IVA,
de cariz notadamente regressivo, por uma maior arrecadação em função do PNB dos
Estados membros da União).24
Para gerir e coordenar a aplicação destas dotações orçamentárias, foram criados instrumentos financeiros (fundos com alcance ou finalidade estrutural) capazes
de atacar os “circunstancialismos de base que envolvem estavelmente o processo
produtivo” sempre que “eles não permitam ou simplesmente entravem a plena
prossecução das metas a que a comunidade se impôs”25 por meio do rol constante
do art. 3° do Tratado de Roma, dando concretude aos fins propostos pela comunidade no art. 2° do mesmo diploma.26 A posição da comunidade ante às adversidades
da gestão quotidiana passa a ser antes de atividade que de passividade, podendo-se,
por isso, entender a coesão econômico-social inscrita no art. 158° do Tratado (ex-artigo 130°-A), por meio do Ato Único Europeu como um verdadeiro princípio correlacionado aos objetivos expressos no já referenciado art. 2°.27
23 Cf. ANTÓNIO JOSÉ FERNANDES. União Européia e Mercosul: dois processos de integração, p. 100.
24 Para uma verificação histórica por que passaram os orçamentos comunitários, verificação esta que escapa aos limites deste trabalho, mas que constitui pressuposto básico para o entendimento da política regional, consulte-se,
entre outros, os interessantes estudos de Francisco Javier ELORZA CAVENGT. “La agenda 2000: las perspectivas financieras de la Unión Europea”, in Cuadernos Europeos de Deusto, v. 22, p. 61-88; JAVIER GOROSQUIETA. “La financiación
de la Unión Europea: eficiencia, suficiencia, estabilidad, equidad, solidaridad”, in Cuadernos Europeos de Deusto,
v. 22, p. 89-110; CARLOS L ARANJEIRO. “Investimento público e défice orçamental”, in Temas de Integração, 4º v., nº 7,
p. 89-98; Sebastián Jesús SANSÓ MARRERO. “Cotizaciones sociales y competitividad”, in Cuadernos Europeos de Deusto, v. 20, p. 151-190; DANIEL STRASSER. Les finances de L´Europe, p. 22 e seguintes.
25 Rui Manuel de MOURA RAMOS. “Os fundos estruturais comunitários e o acto único europeu: perspectiva geral”, in
Das Comunidades à União Europeia: Estudos de Direito Comunitário, p. 182.
26 Isso para não falar do art. 308° (ex-artigo 235°) do mesmo Tratado de Roma, que se encontra numa posição de
reserva para que a Comunidade, por meio dos Poderes de proposição (confiados à Comissão), consulta e opinião
(entregues ao Parlamento) e deliberação (exercitável pelo Conselho, por votação unânime) possa regulamentar formas de ação consideradas necessárias para atingir um dos objetivos previstos no art. 2° e não implementáveis por
qualquer dos instrumentos ou políticas explicitamente arrolados no art. 3°. Sobre a questão, não apenas na perspectiva dinamarquesa (embora seja esta a tônica do estudo), como pode sugerir o título do artigo, veja-se: PER L ACHMANN. “Some Danish Reflections on the use of article 235 of the Rome Treaty”, in Common Market Law Review, vol.
XVIII, n° 4, p. 447-461.
27 Como o fez Angel SÁNCHEZ BLANCO (“El principio comunitario de cohesión económica y social”, in Revista Vasca
de Administración Pública, n° 29, p. 123-137), quando este afirma, às páginas 125 de seu estudo que “La correlación del nuevo art. 130-A del Tratado con su originario art. 2, facilita identificar, en la expresión Cohesión Económica y Social, la síntesis conceptual de las misiones que la Comunidad se atribuye en el referido art. 2, síntesis que por
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
221
Como é óbvio, de forma a se priorizarem as ajudas estruturais aos Estados
membros, princípios reitores foram erigidos, já não mais para justificar a política em
si, mas, sim, para justificar sua aplicação de forma equânime em todo o território comunitário, de acordo com a necessidade verificada e a conjunção de esforços experimentada.
Assim é que nenhuma ajuda é concedida se não estiverem presentes quatro
requisitos: os fundos devem ser aplicados de forma concentrada (princípio da concentração), no sentido de que devem ser destinados a áreas ou projetos com características semelhantes e que autorizem tal aplicação (a intenção parece ter sido a de
evitar que os fundos fossem mal aplicados na medida em que, sendo escassos, não
aconselham uma dispersão por todo o território ou em vários projetos, sendo preferível equilibrar-se uma região ou um setor de cada vez); há de se levar em conta,
por outro lado, uma cooperação efetiva na persecução da política (princípio do partenariado) que envolva as autoridades comunitárias, nacionais, regionais e locais
(seguindo-se a filosofia de que a Europa é, antes de mais, um problema de todos os
seus membros); a isto se soma o fato de que os fundos comunitários devam acrescer aos esforços e investimentos nacionais (princípio da adicionalidade) de forma a
complementá-los ou ampliá-los (trata-se da mesma intenção que rege o princípio do
partenariado, sendo que enquanto este se expressa em termos físicos, a adicionalidade realiza-se em termos monetários, evitando-se que a União torne-se um álibi
para o não-investimento estatal28); por fim, exige-se que os projetos financiados não
se traduzam num objetivo isolado, mas antes, que se interliguem a outros projetos
em ação em outras zonas, outros setores ou regiões.29
Mas como sói acontecer no âmbito da construção européia, o modelo de instrumentos com função estrutural não se apresentou nunca como um todo perfeito
e acabado e não parece que o modelo atualmente existente vá sobreviver por muito tempo. Com efeito, a construção da União Européia, que se faz por passos de po-
su complejidad de contenido, y a efectos de su materialización, opera con el criterio temporal [que o autor enxerga na idéia encerrada no verbo prosseguirá], que expresa el primer párrafo del art. 130-A, y prioriza un objetivo, en
su segundo párrafo. El imperativo teleológico”, continua ele, “que impone le primero de los párrafos a las Instituciones Comunitarias para promover el desarrollo armonioso de la Comunidad, es objeto de una temporización que
tiene referencia en la síntesis conceptual de la Cohesión Económica y Social, en donde se hace radicar los ejes axiales de la actividad de las Instituciones de la Comunidad.”
28 A figura do álibi é de Rui Manuel de MOURA RAMOS, Ob. cit., p. 186. Para uma verificação acerca das eventuais disparidades entre os projetos comunitários e os nacionais, regionais ou locais, veja-se PAUL SEABRIGHT. “Are cohesion policies
coherent? Microeconomic tensions between state aids and regional policy”, in European Competition law annual
1999: Selected issues in the field of State Aids. Coord.: Claus Dieter Ehlermann e Michelle Everson, p. 149-154.
29 Numa expressão mais retórica que substancial, JEAN REY sugeriu que a política regional deveria ser vista como um
coração num corpo humano. Cf. JOANNE SCOTT e WADE MANSELL em interessante artigo que analisa as questões quantitativa e qualitativa relativas ao tema (“European Regional Development Policy: confusing quantity with quality?”,
in European law Review, vol. 18, n° 2, p. 87-108).
222
faculdade de direito de bauru
lítica coordenada, há de se modificar substancialmente e ainda mais no que respeita aos fundos estruturais com o alargamento a leste (PECO’s) e em direção ao Mediterrâneo (Turquia, Malta e Chipre).30 Bem por isso, a área de abrangência dos fundos estruturais passou a ser melhor definida e localizada, reduzindo-se as regiões
com possibilidade de gozarem dos benefícios comunitários.
Três objetivos foram definidos e os instrumentos financeiros passaram a se responsabilizar por eles de forma mais delineada e concorde com as políticas desenvolvidas.
A análise descritiva que segue, portanto, referente aos fundos existentes não
se pretende exaustiva nem definitiva, o que decorre da própria natureza de tais instituições que vêm sendo sempre reformuladas, extintas, criadas.31
3.1. Fundo Social Europeu (FSE)
Criado em 1957 pelo Tratado de Roma, começou a funcionar apenas em 1960, tendo como função precípua promover as facilidades de emprego e a conseqüente mobilidade geográfica no âmbito comunitário – mediante apoios à reinstalação dos trabalhadores em locais de trabalho e domicílios diversos – e profissional – mediante a reeducação
profissional dos desempregados – que se fizessem necessárias, como forma de se garantir, ainda e principalmente, a elevação do nível de vida (art. 123° do Tratado de Roma).
Nos anos de 1971, 1977, 1983, 1988, 1993 e 1999 o FSE foi sendo constantemente reformulado, de forma a que se acentuasse uma vertente regional a nortear
suas operações e intervenções. A partir de 1971, o FSE passou a intervir no combate ao desemprego e ao subemprego (política social32) de caráter estrutural e de lon30 Sobre os problemas decorrentes de eventuais alargamentos, consultem-se, dentre outros: MIGUEL COELHO. “O impacto do alargamento da União Europeia aos países da Europa Central e Oriental no padrão de especialização das
economias do sul da Europa”, in Temas de Integração, 4º v., nº 8, p. 41-64; RENATO G. FLORES. “A Avaliação do Impacto das Integrações Regionais”, in Temas de Integração, 1º v., nº 1, p. 51-60; Ricardo GARCÍA VICENTE. “Los desafíos de la Unión Europea ante el siglo XXI”, in Cuadernos Europeos de Deusto, v. 18, p. 49-66.
31 São utilizadas como base, para tanto, as considerações de Rui Manuel de MOURA RAMOS. Ob. cit., p. 183-188; ANTÓNIO JOSÉ FERNANDES. Ob. cit., p. 119-126; Marinella Fumagalli MERAVIGLIA. “La política regionale e di coesione economica e sociale”, in Elementi de Diritto Comunitario: parte speciale (il diritto sostanziale della Comunità Europea). Coord.: Ugo Draetta, p. 275-281; Mirian IZQUIERDO BARRIUSO. La unión Europea ante las entidades locales y
territoriales: políticas, programas y subvenciones, p. 255-285; CHRISTIAN MESTRE. “L’Europe et les régions”, in
L’Union Européenne (les notices), 1999, p. 93-98; EMILIO DE CAPITANI. “L’evoluzione della politica regionale comunitaria”, in LeRegioni e L’Europa. Coord: S. Bartole, G. Pastori, E. de Capitani, p. 67-103 e THOMAS OPERMANN. Europarecht: ein studienbuch, p. 714 e seguintes.
32 Sobre os problemas decorrentes da política social, mormente em relações de trabalho, no âmbito comunitário,
consultem-se as seguintes referências: THOMAS OPERMANN. Ob. cit., p. 693-718; Gonzalo MAESTRO BUELGA. “Constitución económica y derechos sociales en la Unión Europea”, in Revista de Derecho Comunitario Europeo, v. 7. p.
123-153; NICOLAS MOUSSIS. Acesso à Europa: Manual da construção europeia (1991); Elena F. PÉREZ CARRILLO. “Mas
allá del Mercado Único: algunas aportaciones del Tratado de Ámsterdam al lento proceso de integración europea”,
in Revista de Estudios Europeos, v. 22, p. 69-88; António José ROBALO CORDEIRO. “Os modelos sociais e a concorrência mundial”, in Temas de Integração, 3º v., nº 6, p. 77-100; Sebastián Jesús SANSÓ MARRERO. “Cotizaciones sociales
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
223
ga duração. Nos cinco primeiros anos, pelo menos metade dos recursos do Fundo
deveriam ser destinados ao harmonioso desenvolvimento da Comunidade, contribuindo para a resolução dos problemas importantes dos Estados-membros. Passados esses cinco anos desde a sua primeira reforma, o Fundo passaria a ser um órgão
capaz de facilitar a realização das políticas comunitárias, tornando-se, assim, dependente de decisões prévias do Conselho, o que perdurou até a reforma de 1977,
quando o FSE deixa de ser mero instrumento para a realização das políticas traçadas
pela Autoridade Comunitária – muito embora continuasse a servir a tal desiderato
– passando a se dedicar de forma precípua aos problemas de emprego decorrentes
de desequilíbrios regionais, como forma de se incrementar o desenvolvimento.
Desde a reforma de 1983, o perfil do Fundo sofreu nova modificação para passar a se preocupar principalmente com os problemas do desemprego local e à colocação dos jovens no mercado de trabalho, o que foi acentuado em 1988. A reforma
de 1993, por seu turno, e diante do crescente desemprego na União, determinou
que o FSE passasse a combater tal crescimento.
Desde 1999, o FSE passou a ser o único instrumento financeiro com competência para atuar nos três objetivos demarcados, quais sejam, as regiões menos desenvolvidas (objetivo 1), aquelas em crise estrutural decorrentes de readaptação do
mercado, da indústria e das atividades primárias (objetivo 2) e todas aquelas outras
regiões em que se faça necessária a intervenção tendente a corrigir defeitos no sistema educacional, de formação e emprego (objetivo 3, que abrange todas as regiões, exceto as enquadráveis no objetivo 1). Convém salientar que nas regiões de
objetivo 3 exclusivo, apenas o FSE pode atuar, o que demonstra mais uma vez sua
vocação para lidar com as questões de educação e formação tendentes ao pleno emprego no âmbito comunitário.
3.2. Fundo Europeu de Orientação e Garantia Agrícola (FEOGA)
Este órgão não deve o seu surgimento diretamente a nenhum Tratado, mas
encontra sua gênese no direito comunitário derivado, tendo sido previsto pelo Conselho Europeu por meio do regulamento n° 25, de 4 de abril de 1962, para permitir
a aplicação dos princípios traçados pela Comunidade para a Agricultura.33 A diversidade de funções atribuídas a este órgão fizeram com que fosse cindido, já em 1964,
por força do regulamento n° 17, de 5 de fevereiro. Uma secção ficou responsável
pela garantia da política agrícola, ao passo que outra passou a incumbir-se exclusivay competitividad”, in Cuadernos Europeos de Deusto, v. 20, p. 151-190. E no âmbito do Mercosul, CARLA da Silva
CALVETE. “Acordos coletivos e dimensão social na União Europeia e no Mercosul”, in MERCOSUL: Integração Regional e Globalização, coordenação: Paulo Borba Casella, Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
33 Esta a posição de Rui Manuel de MOURA RAMOS (Ob. cit., p. 183). ANTÓNIO JOSÉ FERNANDES (Ob. cit., p. 119), no entanto, enxerga a previsão do FEOGA no n° 4 do art. 40 do Tratado CEE.
224
faculdade de direito de bauru
mente da orientação para esta mesma política, financiando as melhorias estruturais
do setor.
A função do FEOGA, como se pode depreender, é a de financiar a política agrícola comum (PAC), provendo as mudanças estruturais que se mostrassem necessárias, realizando, assim, as despesas destinadas à melhoria das condições de produção, transporte e comercialização do quanto produzido. Sua atuação pode se dar de
forma direta, quando o Estado ou associação de produtores setoriais lhe submete
um projeto de que o Fundo passa a participar mediante financiamento, ou indireta,
quando o Fundo reembolsa as despesas realizadas pelos Estados com o incremento
da política agrícola em determinado espaço regional, como forma de se efetivar determinação emanada da PAC.
Essa vocação de participação e reembolso foi sendo, entretanto, substituída já
a partir de 1972, quando as políticas agrícolas passaram a se inserir numa mentalidade de conjunto que visava defender a racionalização das atividades agrícolas da
União, quer através de seu implemento sucessivo, quer através da nova lógica empresarial a nortear a empreitada agrícola, garantindo-se incentivos para aqueles que,
não podendo assumir o caráter industrial, cessassem a atividade agrícola até então
desenvolvida. A aplicação imediata desta política, entretanto, poderia causar o colapso de certas regiões, nomeadamente as regiões de culturas mediterrânicas que passaram, assim, a contar com privilégios de cariz notadamente regional, e que se intensificaram a partir de 1985, por força do regulamento 797/85, de 12 de março.
3.3. Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER)34
Apenas em 1975 é que vai ser criado, também por regulamento do Conselho
(o de n° 724/75, de 18 de março) um fundo responsável pela realização da política
regional de iniciativa comunitária, nacional e mesmo local de forma coordenada.
Buscava-se, com isso, reduzir os desequilíbrios entre as várias regiões mais e menos
favorecidas da comunidade, por meio do desenvolvimento das regiões econômica e
socialmente mais vulneráveis. Sua lógica reitora também passou progressivamente
de um privilegiar das políticas nacionais, das quais se foi emancipando, para um privilegiar da promoção do equilíbrio regional.
34 Não se deve confundir este fundo com o Fundo Europeu de Desenvolvimento (FED) que, criado ainda em 1958,
tinha como objetivo primeiro garantir o desenvolvimento dos territórios do ultramar, uma vez que a Bélgica, a Itália e a França mantinham ainda possessões e protetorados em África, nas Caraíbas e no Pacífico “que formavam uma
unidade jurídica e económica com as respectivas metrópoles” (ANTÓNIO JOSÉ FERNANDES. Ob. cit., p. 126.). Entretanto, com o passar dos anos, as colônias foram-se tornando independentes mas optando, algumas delas, por manter
o regime de relações privilegiadas com a Comunidade. Daí porque foram firmadas várias convenções internacionais
com o intuito de canalizar ajudas financeiras aos novos Estados independentes. O envio deste dinheiro era intermediado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento. Saliente-se que as remessas monetárias não eram mais efetuadas para territórios europeus de ultramar, mas para Estados independentes.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
225
Assim é que o FEDER passou a ter, a partir de 1979, uma atuação autônoma
autorizada pelo Conselho por meio do regulamento 214/79, de 6 de fevereiro, que
subdividiu o fundo em duas secções. A primeira delas, à qual tocava 95% do montante do Fundo, mantinha a estrutura de atuação anterior, segundo a qual a Comunidade só intervinha provocada pelos Estados interessados, adicionando suas receitas aos gastos já efetuados pelo Estado, em aplicação estrita do princípio da adicionalidade.35 A outra secção, no entanto, podia intervir em algumas regiões que apresentassem problemas decorrentes da inserção na Comunidade e que podiam se traduzir, por exemplo, nos problemas verificados nas regiões fronteiriças da Comunidade, problemas gerados por outras políticas comunitárias, que desequilibrassem
certos setores etc.
Já em 1984, o Fundo voltou à estrutura unitária, mas com a particularidade de
as quotas cabíveis a cada Estado não se apresentarem mais fixas e estanques, mas variáveis entre patamares mínimos, o que atribuía ao FEDER certa discricionariedade
ao eleger os projetos nacionais de interesse comunitário em que investir, garantindo-se ainda a efetiva persecução de políticas criadas no seio comunitário e que “possam ter um impacto significativo sobre o processo de desenvolvimento regional”,36
nomeadamente aqueles projetos que tratam da infra-estrutura comunitária (estradas portos, redes de comunicação), do setor industrial, do setor de serviços e artesanato sempre que destinados a evitar o desemprego.
3.4. Fundo de Coesão37
Criado pelo Tratado de Maastricht, o Fundo de Coesão beneficia apenas os Estados que apresentam um PIB per capita inferior a 90% do PIB per capita médio da
União. Assim, se a média comunitária for de 100 euros, por exemplo, apenas os Estados com PIB per capita inferior a 90 euros poderão beneficiar-se do Fundo de Coesão.
Como o próprio nome indica, busca tornar coeso o poder de compra comunitário
(convergência nominal), como pressuposto para a adoção da moeda única.
O Fundo de Coesão tem competência para intervir em projetos na área do
ambiente e das redes trans-européias de transporte naqueles Estados que, preenchido o requisito sublinhado no início, tenham apresentado um projeto que lhes permita realizar a convergência econômica necessária. Tais projetos deveriam prever os
seguintes critérios: proporcionalidade entre os benefícios econômicos e sociais ge-
35 Cf., neste sentido, MANUEL Carlos Lopes PORTO. “La Politica Regionale Portoghese e i fondi strutturali della comunità Europea”, in Mercato Comune e Sviluppo Regionale: Spagna, Portogallo e Grecia. Coord: Giorgio Stefani, p.
170.
36 Rui Manuel de MOURA RAMOS. Ob. cit., p. 188.
37 Para o que segue, MANUEL Carlos Lopes PORTO. Teoria da Integração e Políticas Comunitárias, p. 390-391; ANTÓNIO JOSÉ FERNANDES. Ob. cit., p. 125-126.
226
faculdade de direito de bauru
rados e os recursos utilizados para tanto; gozarem de prioridade no âmbito da política dos Estados membros beneficiários; compatibilidade com as políticas comunitárias e coerência com outras medidas estruturais.
Os Estados que dele se beneficiam são Portugal, Espanha, Grécia e Irlanda,
sendo certo, todavia, que este último Estado deverá ser excluído das benesses do
Fundo já em 2003, uma vez que ultrapassou a porcentagem limite para o recebimento dos benefícios. As quotas destinadas a cada um destes Estados é fixada para períodos de sete anos, sendo certo que a quota cabível à Espanha aumentou significativamente do penúltimo para o último período (entre 52 e 58% para 61 a 63,5%), ao
passo que a quota atribuível à Irlanda caiu também de forma significativa (entre 7 e
10% para 2 a 6%), dadas as razões anteriormente sublinhadas. Portugal e Grécia tiveram uma redução do patamar máximo, mantendo-se inalterado seu patamar mínimo (entre 16 e 20% para 16 a 18%).
O fato de esses Estados beneficiários terem aderido à moeda única já em circulação não os impede, por este único motivo, de continuarem a se valer dos montantes do Fundo. Como sublinha Manuel Carlos Lopes Porto, “o que está no Tratado” é que “um país tem direito [aos recursos do Fundo] desde que esteja abaixo do
90% e cumpra as exigências de promoção da estabilidade”.38 Certamente, o Fundo
de Coesão tem um objetivo: garantir a equalização das condições entre os Estados
que adotaram ou adotem a moeda européia. Não se pode, com isso, querer enxergar no objetivo em si (adoção da moeda única) um termo final para o gozo do montante disponibilizado. É no atingir da finalidade do objetivo (90%) que reside o termo final aludido.
BIBLIOGRAFIA DE APOIO
ALCALDE FRADEJAS, Nuria e RAMÓN-SOLANS PRAT, Juan C. “El FEDER y el proceso de Integración Europeo en Aragón”, in Noticias de la Unión Europea, p. 75-85, n° 168, 1998.
ALMEIDA, Paulo Roberto de. “O Brasil e o futuro do Mercosul: dilemas e opções”, in MERCOSUL: Integração Regional e Globalização, coord.: Paulo Borba Casella, p. 13-38, Rio de
Janeiro: Renovar, 2000.
BALLONA, Elena Scanu. “Recenti sviluppi della politica mediterranea dell’Unione Europea”,
in Diritto comunitario e degli scambi internazionali, p. 847-853, n° 4, 1999.
BLECHMANN, Michael D. “Regional Development in the EEC: A Constitutional Analysis”, in
Harvard International Law Journal, p. 32-77, vol. 8, n° 1, 1967.
38 MANUEL Carlos Lopes PORTO. Ob. cit., p. 461.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
227
CALVETE, Carla da Silva. “Acordos coletivos e dimensão social na União Europeia e no Mercosul”, in MERCOSUL: Integração Regional e Globalização, coordenação: Paulo Borba Casella, Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
CAPITANI, Emilio de. “L’evoluzione della politica regionale comunitaria”, in LeRegioni e L’Europa. Coord: S. Bartole, G. Pastori, E. de Capitani, p. 67-103. Milano: FrancoAngeli, 1992.
CARANTA, Roberto. “I rapporti tra regioni e Comunità Europea: verso un nuovo modo di tutela degli interessi nazionali”, in Rivista italiana di Diritto Pubblico Comunitario, p. 12191243, n° 5, 1997.
CARREÑO GUALDE, Vicenta. “Ayudas públicas concedidas por los entes territoriales: la jurisprudencia del Tribunal de Justicia de las Comunidades Europeas”, in Revista de Derecho Comunitario Europeo, p. 619-642, v. 8, 2000.
CASELLA, Paulo Borba. Mercosul: Exigências e Perspectivas, São Paulo: Ed. LTr, 1996.
COELHO, Miguel. “O impacto do alargamento da União Europeia aos países da Europa Central e Oriental no padrão de especialização das economias do sul da Europa”, in Temas de
Integração, p. 41-64, 4º v., nº 8, 1999.
COGLIANDRO. Giuseppe. “Amare riflessioni sulla gestione dei fondi strutturali in Italia”, in
Diritto comunitario e degli scambi internazionali, p. 579-590, n° 3, 1997.
CORDEIRO, António José Robalo. “Os modelos sociais e a concorrência mundial”, in Temas
de Integração, p. 77-100, 3º v., nº 6, 1998.
D’ANTONA, Massimo. “Mercato Unico Europeo ed Aree Regionali Deboli: le conseguenze
giuridiche”, in Opere, vol I, coord.: Bruno Caruso e Silvana Sciarra, p. 309-323. Milano: Giuffrè, 2000.
DROMI, Roberto, EKMEKDJIAN, Miguel A., RIVERA, Julio C. Derecho comunitario: sistemas
de integración y régimen del MERCOSUR. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1995.
ELORZA CAVENGT, Francisco Javier. “La agenda 2000: las perspectivas financieras de la Unión
Europea”, in Cuadernos Europeos de Deusto, p. 61-88, v. 22, 2000.
FERNANDES, António José. União Europeia e Mercosul: dois processos de integração. Braga: Universidade do Minho e Comissão Europeia, 1998.
FERNÁNDEZ FARRERES, Germán. El régimen de las ayudas estatales en la Comunidad Europea. Madrid: Civitas, 1993.
FLORES, Renato G. “A Avaliação do Impacto das Integrações Regionais”, in Temas de Integração, p. 51-60, 1º v., nº 1, 1996.
_________. “O Mercosul e a União Europeia: por uma maior integração económica”, in O
Mercosul e a União Europeia, Coimbra: Centro de Estudos Europeus, 1994.
228
faculdade de direito de bauru
FRANCO, António Luciano Sousa. “Abertura à exposição de Renato G. Flôres Jr.”, in O Mercosul e a União Europeia, Coimbra: Centro de Estudos Europeus, 1994.
GARCÍA VICENTE, Ricardo. “Los desafíos de la Unión Europea ante el siglo XXI”, in Cuadernos Europeos de Deusto, p. 49-66, v. 18, 1998.
GOLDBERG, Laura y PORTA, Fernando. “Resultados y dilemas del proceso de integración en
el MERCOSUR”, in Revista de Estudios Europeos, p. 35-52, v. 23, 1999.
GONZÁLES GONZÁLES, Ana Isabel. “Los fondos autonómicos de solidaridad: el FCI y el FEDER”, in Noticias de la Unión Europea, p. 69-86, n° 137, 1996.
GOROSQUIETA, Javier. “La financiación de la Unión Europea: eficiencia, suficiencia, estabilidad, equidad, solidaridad”, in Cuadernos Europeos de Deusto, p. 89-110, v. 22, 2000.
IZQUIERDO BARRIUSO, Mirian. La unión Europea ante las entidades locales y territoriales: políticas, programas y subvenciones. Madrid: El consultor, 2001.
LACHMANN, Per. “Some Danish Reflections on the use of article 235 of the Rome Treaty”, in
Common Market Law Review, p. 447-461, vol. XVIII, n° 4, 1981.
LARANJEIRO, Carlos. “Investimento público e défice orçamental”, in Temas de Integração,
p. 89-98, 4º v., nº 7, 1999.
LINDE PANIAGUA, Enrique et alli. Derecho de la Unión Europea, v. I (Antecedentes, instituciones, fuentes y jurisdicción). Madrid: Marcial Pons, 1995.
LÓPEZ MENÉNDEZ, Ana Jesús y RAMOS CARVAJAL, Carmen. “El camino hacia la Unión Estadística Europea”, in Revista de Estudios Europeos, p. 113-126, v. 25, 2000.
MAESTRO BUELGA, Gonzalo. “Constitución económica y derechos sociales en la Unión Europea”,
in Revista de Derecho Comunitario Europeo, p. 123-153, v. 7, 2000.
MAGADÁN DÍAZ, Marta. “La construcción europea: consecuencia para los ciudadanos y las
regiones”, in Noticias de la Unión Europea, p. 11-20, n° 159, 1998.
_________. “Convergencia, cohesión y política regional”, in Noticias de la Unión Europea, p. 51-59, n° 134, 1996.
MANSELL, Wade e SCOTT, Joanne. “European Regional Development Policy: confusing
quantity with quality?”, in European law Review, p. 87-108, vol. 18, n° 2, 1993.
MENGOZZI, Paolo. Derecho Comunitario y de la Unión Europea. Trad. Javier Fernández
Pons. Madrid: Tecnos, 2000.
MERAVIGLIA, Marinella Fumagalli. “La política regionale e di coesione economica e sociale”,
in Elementi de Diritto Comunitario: parte speciale (il diritto sostanziale della Comunità
Europea). Coord.: Ugo Draetta, p. 275-281. Milano: Giuffrè editore, 1995.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
229
MESTRE, Christian. “L’Europe et les régions”, in L’Union Européenne (les notices), p. 93-98.
Paris: la documentation française, 1999.
MOUSSIS, Nicolas. Acesso à Europa: Manual da construção europeia (1991). Trad. Maria
das Graças Moraes Sarmento. Bertrand Editora, 1991.
NEVADO MORENO, Pedro T. “La iniciativa comunitaria sobre desarrollo fronterizo y cooperación transfronteriza. El supuesto específico de las regiones fronterizas de España y Portugal”, in Noticias de la Unión Europea, p. 17-39, n° 137, 1996.
OPERMANN, Thomas. Europarecht: ein studienbuch, 2ª ed. Munique: C.H. Beck´sche Verlagsbuchhandlung, 1999.
PÉREZ CARRILLO, Elena F. “Mas allá del Mercado Único: algunas aportaciones del Tratado de
Ámsterdam al lento proceso de integración europea”, in Revista de Estudios Europeos, p. 6988, v. 22, 1999.
PIÇARRA, Nuno. “Fundo Social Europeu. Repartição de competências entre a Comissão e o
DAFSE. Acto de mera execução. Comentários ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (1ª Secção) de 3.6.1997”, in Cadernos de Justiça Administrativa, p. 11-20, n° 10, jul-ago
1998.
PIRES, Francisco Lucas. Introdução a Tratados que instituem a Comunidade e a União Europeias. Lisboa: Aequitas, 1992.
POCAR, Fausto. Diritto dell´unione e delle comunità europee. 6ª ed. Milão: Giuffrè, 2000.
PORTO, Manuel Carlos Lopes. Teoria da Integração e Políticas Comunitárias, 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2001.
_________. “Comentários à exposição de Renato G. Flôres Jr.”, in O Mercosul e a União
Europeia, Coimbra: Centro de Estudos Europeus, 1994.
_________. “La Política Regionale Portoghese e i fondi strutturali della comunità Europea”, in Mercato Comune e Sviluppo Regionale: Spagna, Portogallo e Grecia. Coord: Giorgio Stefani, p. 159-215. Padova: CEDAM, 1989.
RAMÓN-SOLANS PRAT, Juan C. e ALCALDE FRADEJAS, Nuria. “El FEDER y el proceso de Integración Europeo en Aragón”, in Noticias de la Unión Europea, p. 75-85, n° 168, 1998.
RAMOS, Rui Manuel Gens de Moura. “Os fundos estruturais comunitários e o acto único europeu: perspectiva geral”, in Das Comunidades à União Europeia: Estudos de Direito Comunitário. Coimbra: Coimbra Editora, 1994.
SACERDOTI, Giorgio. “La Cooperazione Interregionale Europea tra vincoli costituzionali e
principi del Diritto Internazionale”, in Regioni, Costituzione e Rapporti Internazionali: relazioni con la Comunità Europea e cooperazione transfrontaliera, Coord. Angelo Mattioni e Giorgio Sacerdoti, p. 41-69. Milano: FrancoAngeli, 1995.
230
faculdade de direito de bauru
SÁNCHEZ BLANCO, Angel. “El principio comunitario de cohesión económica y social”, in Revista Vasca de Administración Pública, p. 123-137, n° 29, 1991.
SANSÓ MARRERO, Sebastián Jesús. “Cotizaciones sociales y competitividad”, in Cuadernos
Europeos de Deusto, p. 151-190, v. 20, 1999.
SCOTT, Joanne e MANSELL, Wade. “European Regional Development Policy: confusing
quantity with quality?”, in European law Review, p. 87-108, vol. 18, n° 2, 1993.
SEABRIGHT, Paul. “Are cohesion policies coherent? Microeconomic tensions between state
aids and regional policy”, in European Competition law annual 1999: Selected issues in the
field of State Aids. Coord.: Claus Dieter Ehlermann e Michelle Everson, p. 149-154. OxfordPortland Oregon: Hart Publishing, 2001.
STRASSER, Daniel. Les finances de L´Europe, 6ª ed. (4ª ed. em francês), Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1990.
VAUCHER, Marc. “Réalité juridique de la notion de région communautaire”, in Revue Trimestrielle de Droit Européen, p. 525-550, n° 4, 1994.
VEGA MOCOROA, Isabel. “Les finances publiques européennes et leurs instruments pour
l’objectif économique de la redistribution”, in Revue du Marche Unique européen, p. 157202, n°, 1998.
VILELLA, Giancarlo. “Il controllo sui fondi strutturali”, in Rivista italiana di Diritto Pubblico Comunitário, p. 1051-1059, n° 5, 1997.
DIREITO TRIBUTÁRIO E DIREITOS HUMANOS:
O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA COM O
CÓDIGO DE DEFESA DO CONTRIBUINTE - Projeto de
Lei Complementar do Senado Federal nº 646,
de 25 de novembro de 1999
Josiane de Campos Silva Giacovoni
Especialista em Direito Empresarial pelo
Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino.
Professora de Direito Tributário da
Faculdade de Direito de Bauru da Instituição Toledo de Ensino.
1.
INTRODUÇÃO
O Estado Democrático de Direito funda-se no império da lei, na legalidade democrática respeitadora dos princípios da igualdade e da justiça, subordinando-se à
Constituição. Daí a assertiva de que o princípio da legalidade é um dos seus pilares.
É que tudo fica condicionado à lei, único instrumento de expressão da vontade geral, através dos órgãos de representação popular, que variam conforme os sistemas constitucionais postos aos processos legislativos.
Daí o direito à liberdade de ação geral e, por outro lado, a garantia à desobrigação dos indivíduos em atender mandamentos do Estado, se não em virtude de lei.
Neste sentido, as letras do artigo 5º, inciso II da Carta Mãe de 1988:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residen-
232
faculdade de direito de bauru
tes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;...
Em contraposição e para a efetiva consistência daquele direito e daquela garantia, está a submissão do Poder Público ao princípio da legalidade ou da conformidade
com as normas legais, entre outros, prescritos especialmente no artigo 37 da Lei Maior.
Como ensina Hely Lopes Meirelles, citado por José Afonso da Silva,
na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal.
Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei
não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que
a lei autoriza. A lei, para o particular, significa ‘pode fazer assim’;
para o administrador significa ‘deve fazer assim’.1
No artigo 5º, inciso II, conforme os sábios ensinamentos de Roque Antonio
Carrazza, está conceituada a liberdade plena, de forma que os indivíduos não podem encontrar qualquer óbice além do contido na lei.2
Ressalta, muito bem, nas linhas seguintes, que esta é a doutrina que já estava engastada na “Declaração de Direitos de 1789”:
“A liberdade consiste no poder de fazer tudo o que não ofende outrem; assim o exercício dos direitos naturais de cada homem não
tem outros limites além daqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo destes mesmos direitos. Estes limites não
podem ser estabelecidos senão pela lei” (art. 6º).
Daí se vê que o Estado de Direito é o governo das leis e não o governo dos
homens, nos termos da Constituição de Massachussetts de 1770.
É esta a realidade que se quer examinar no presente trabalho, com fulcro nos
princípios constitucionais, à luz do Código de Defesa do Contribuinte e das relações
internacionais, já que, nos dizeres de Geraldo Ataliba, citado por Yoshiaki Ichihara:
Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma
norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a
um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de
1 SILVA, José Afonso; Curso de Direito Constitucional Positivo. 11. ed. São Paulo, São Paulo: Malheiros, 1996, p. 407.
2 CARRAZZA, Roque Antonio; Curso de Direito Constitucional Tributário. 16. ed. São Paulo, São Paulo: Malheiros,
2001, p. 210.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
233
comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque
representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus
valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço
lógico e corrosão de sua estrutura mestra.3
Cuide-se, então, pelo respeito diuturno do princípio em tela, sob pena de
se subtrair a segurança do contribuinte, e, pois, do povo, de onde deve emanar
o poder.
2.
PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA
Como exposto, o Poder Público deve apenas cumprir a vontade do povo, contida na lei. Daí o inciso II do artigo 5º encerrar o dogma fundamental
que impede que o Estado aja com arbítrio em suas relações com o
indivíduo, que, afinal, tem o direito de fazer tudo quanto a lei não
lhe proíbe, nos termos do clássico brocardo: cuique facere licet nisi
quid iure prohibitur.4
Este princípio é uma das mais importantes bases em que se alicerça o Direito
Tributário, sendo certo que sua prescrição genérica seria suficiente para se afirmar
que, no Brasil, ninguém pode ser obrigado a pagar um tributo que não tenha sido
instituído por lei.
Contudo, o constituinte originário preferiu reiterar esta garantia do contribuinte, repetindo-a, especificamente, no Sistema Tributário Nacional:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;...
Carrazza, citando Ferreiro Lapatza, afirma que
no campo tributário, o princípio da legalidade “trata de garantir
essencialmente a exigência de auto-imposição, isto é, que sejam os
próprios cidadãos, por meio dos seus representantes, que determi3 ICHIHARA, Yoshiaki; Princípios da Legalidade Tributaria na Constituição de 1988. São Paulo, São Paulo: Atlas,
1994, p. 70.
4 Ibid., p. 211
faculdade de direito de bauru
234
nem a repartição da carga tributária e, em conseqüência, os tributos que, de cada um deles, podem ser exigidos”.5
Quer-se dizer que as regras no Estado Democrático de Direito, especialmente no âmbito do Direito Tributário, devem ser do povo para o povo, através da lei,
primando-se pela segurança jurídica e a não-surpresa dos contribuintes. Assim, nullum tributum sine lege.
Ponto controvertido é aquele que se refere ao alcance do princípio da legalidade tributária. Alguns afirmam ser o mesmo da legalidade genérica, ou seja,
aquele pelo qual ninguém pode ser compelido a se omitir ou a fazer algo que não
esteja previsto em lei lato sensu, abrangendo, pois, não só a lei formal, mas a lei
material, e, pois, os procedimentos legislativos especiais previstos no artigo 59 da
Carta Magna.
No âmbito tributário, as questões remanescem acirradas no que tange às leis
delegadas e medidas provisórias. Esta a questão a ser destrinchada nos apartados seguintes.
3.
LEIS ORDINÁRIA E COMPLEMENTAR
Roque Antonio Carrazza e Paulo de Barros Carvalho afinam suas vozes ao afirmar que apenas o Poder Legislativo pode criar ou aumentar tributos, já que a legalidade tributária significa a reserva absoluta da lei formal - Alberto Xavier -, a estrita legalidade - Geraldo Ataliba -.6
No mesmo sentido, Sérvulo Correia sumaria brilhantemente, asseverando ser
a reserva da lei tributária elemento dissuador imprescindível dos demônios do arbítrio e da parcialidade”.7
A realidade que se tem vislumbrado, entretanto, diuturnamente nas atividades
positivas e negativas – ações e omissões – do Poder Legislativo, Executivo e Judiciário não é esta. A atividade jurisdicional, considerada o principal instrumento de garantia de respeito ao princípio da legalidade tributária, não vem expondo decisões
conformes com o entendimento supra. Tem, ao contrário, composto o princípio da
legalidade tributária nos moldes da legalidade genérica, afastando-se do rule of law,
que nos ordenamentos de tipo anglo-saxão representa, aproximadamente, o princípio da legalidade tributária brasileiro.
Observe-se que tanto a estes doutrinadores, assim àqueles que se posicionam em pólo distinto, a lei ordinária é aquela que, de regra, pode criar ou aumentar tributos.
5 Ibid., p. 217
6 Ibid., ps. 217, 218 e 220
7 Ibid., ps. 217-220
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
235
É que, como afirmado, a problemática se instala quando se trata de instrumento normativo advindo de poderes outros que não o Poder Legislativo, ou seja, quando não se trata de lei formal, mas material, a norma tributária imposta.
Da mesma sorte, pois, todos os doutrinadores, tanto os que entendem pela
reserva absoluta da lei formal, como os contrários, concordam acerca da lei complementar no âmbito tributário, já que esta emana do Poder Legislativo, distinguindose apenas no que toca ao quorum de aprovação - maioria absoluta -.
Ademais, constam expressamente previstos na Carta Constitucional os casos
em que é imprescindível a lei complementar a criar ou aumentar tributos.8
De outra parte, abra-se um parêntese para se observar que celeuma já se formou para se questionar se podia uma lei complementar criar ou aumentar tributo
no lugar de uma lei ordinária, se a esta reservada a matéria.
Doutrina e jurisprudência afirmaram que sim, diante da superioridade da lei
complementar no que tange ao aspecto formal – quorum qualificado -, todavia ressalvaram que bastará uma lei ordinária posterior a revogar a lei complementar editada em lugar da lei ordinária.9
O contrário, entretanto, não é possível e é ponto pacífico na doutrina. Jamais poderá uma lei ordinária ser editada em lugar onde a Carta Mãe exigiu lei
complementar.
A justificativa é que, com a exigência de lei complementar, visou o legislador constituinte dificultar a repetição dos abusos do passado com os empréstimos compulsórios.
Desta forma, para aqueles doutrinadores que defendem a reserva da lei
formal, longe de ter sido afrouxado o princípio da legalidade tributária aceitando-se lei que não a ordinária, saiu da Carta Suprema fortalecido ao máximo, uma
vez que somente lei complementar poderá criar aqueles tributos ou aumentar os
já existentes.
Conclua-se este passo, frisando que todos os doutrinadores dedicados a
escrever sobre o direito público, independente da controvérsia acima anunciada, concordam que as leis ordinária e complementar podem criar ou aumentar
tributos, sendo aquela a regra.
8 Conferir artigos 148 e 154, inciso I e 69 da Constituição Federal de 1988
9 Ibid., p. 87 (nota 48: JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES (Lei complementar tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. p. 29) diz: “Se a matéria – a da legislação ordinária da União – pode ser disciplinada por maioria
simples, com muito maior razão poderá ser disciplinada por maioria especial e qualificada – a maioria absoluta das duas Casas do Congresso Nacional. É essa uma hipótese excepcional em que o órgão que pode o mais,
pode, sem nenhuma dúvida, o menos: se o Congresso Nacional pode votar lei ordinária por maioria simples,
para o aperfeiçoamento desse ato legislativo a maioria absoluta excede. Lei complementar extravasante é substancialmente lei ordinária e, como tal, revogável por outra lei ordinária da União.”)
faculdade de direito de bauru
236
4.
LEIS DELEGADAS
Não se dá o mesmo com as leis delegadas, já que a doutrina se divide. Para
Carrazza e os outros autores citados no item antecedente, não é permitido às leis
delegadas a criação ou o aumento dos tributos, por não ser lei stricto sensu – lei formal -.10
As leis delegadas são elaboradas pelo Presidente da República, que deve solicitar a delegação ao Congresso Nacional, e, pois, não advêm do Poder Legislativo.
Assim, se aceitassem criação ou aumento de tributos por esta espécie, estariam negando suas convicções no sentido de que apenas o Poder Legislativo pode criar ou
aumentar tributos.
Carrazza observa, porém, que o Legislativo, por meio de resolução, com base
no artigo 68, poderia especificar o conteúdo da lei delegada com a qual o Chefe do
Executivo federal, estadual, distrital ou municipal, querendo, criaria ou aumentaria
qualquer tributo.11
Todavia, ressalta o autor, na seqüência, que este não lhe parece o melhor entendimento, pois, além de não se tratar de lei formal, estar-se-ia anulando a prescrição do parágrafo 1º do artigo 153 da Lei Maior12, vale dizer, se realmente pudesse o
Poder Executivo criar ou aumentar tributos, não precisaria o constituinte originário
ter previsto permissão à alteração das alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V do mesmo artigo, como fez.
Yoshiaki Ichihara, discordando do exposto, aceita a possibilidade de tributos
criados ou aumentados por leis delegadas, com fulcro na inexistência de hierarquia
entre as leis delegada, ordinária, complementar e as medidas provisórias – mesmo
patamar -, uma vez que todas extraem seu fundamento de validade da Carta Magna
e são, segundo expressa o artigo 59 desta, veículos implementadores do princípio
da legalidade.13
Além disso, afirma que a lei delegada é uma lei material no sentido estrito de lei,
ou seja, não se trata apenas de norma com força de lei, como as medidas provisórias.
Para afastar o ferimento ao princípio da separação dos poderes, chama à baila o artigo 49, inciso V da Carta Maior, que, ao regular as competências exclusivas do
Congresso Nacional, possibilita-lhe sustar os atos normativos do Poder Executivo
que exorbitem dos limites da delegação.
Concluindo por uma delegação cheia, vinculada, limitada e prevista expressamente na Lei Máxima – parágrafo 2º, artigo 68 -, ponto finaliza o autor, asseverando
10 Ibid., ps. 256 – 258.
11 Ibid., p. 257.
12 Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:... §1º É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV, V.
13 Ibid., ps. 93 – 96.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
237
ser a lei delegada decorrente de uma exceção formal, todavia uma lei material segundo a Constituição Federal e, pois, veículo implementador do principio da legalidade tributaria.
Com relação à vedação de conteúdo expressa no parágrafo 1º do artigo 68 da
Lei Maior, que atinge os tributos cuja criação e aumento deverão ocorrer por leis
complementares - empréstimos compulsórios e impostos da competência residual
da União -, concorda a doutrina, já que se trata de restrição expressa.
5.
MEDIDAS PROVISÓRIAS
Viu-se até o momento que os procedimentos legislativos estão elencados no
artigo 59 da Carta Maior de 1988, entre os quais as medidas provisórias.
Para iniciar a presente análise, porém, é preciso trabalho preparatório sobre
os sistemas de governo, presidencialismo e parlamentarismo, assim como sobre a
origem das medidas provisórias e seu precursor, o decreto-lei, tudo, antecipe-se, a
corroborar o desrespeito dos direitos humanos com a criação e majoração de tributos pela via das medidas provisórias, tão utilizadas ultimamente14.
O presidencialismo é sistema de governo que se propagou por quase todo
o mundo, surgido nos Estados Unidos da América com inspiração nas tendências
liberais inglesas. Trata-se da substituição do monarca hereditário por um presidente eleito periodicamente pelo povo, com menos honrarias, mas poderes mais
amplos.15
Os poderes do presidente, já amplos em sua origem, foram ampliados com o
passar do tempo por fatores como a necessidade de solução célere em vários momentos da economia nacional, impossível ao Congresso Nacional.
Os Presidentes do Brasil sempre tiveram poderes bastante amplos, chegando
a se mostrar arbitrários em muitos momentos da história.16
No que se refere às diferenças entre os sistemas presidencialistas do Brasil e
dos Estados Unidos da América, há de se atentar ao maior número e grau de poderes que tem o presidente brasileiro em relação ao norte-americano. Aquele chega a
ter poderes legislativos, embora excepcionalmente, contrariando a Teoria da Tripartição do Poder, de Montesquieu.
Não se olvide que tais poderes legislativos deveriam ser utilizados apenas excepcionalmente pelo Presidente da República, o que ficou impossível de ser vislumbrado diante do elevado número de medidas provisórias editadas nos últimos tempos, realidade agravada pela Emenda Constitucional nº 32/2001, a ser examinada no
subitem seguinte.
14 Quem já se esqueceu de afirmações como “o governo FHC é o governo das medidas provisórias”,...
15 FERREIRA, Pinto; Curso de Direito Constitucional. São Paulo, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 363.
16 Ibid., p. 364
238
faculdade de direito de bauru
Pontes de Miranda, em crítica aos muitos poderes dos presidentes brasileiros,
declarou que:
... os nossos presidentes são em geral monarcas a curtas prestações.
A sua soma de poderes, a sua supremacia evidente, levam-nos freqüentemente a violações da ordem constitucional, a golpes de Estado, prejudiciais à formação política brasileira.17
Por outro lado, o presidente norte-americano tem também amplos e complexos poderes que ensejam manifestações da doutrina no sentido de que são poderes
mais complicados que os conferidos ao Poder Legislativo.18
Igualmente ao presidente norte-americano, o presidente brasileiro tem suas
atribuições fixadas na Carta Maior. No caso da Constituição de 1988, constam no artigo 84.
A atribuição prevista no inciso XXIII do artigo 84, consistente no envio, pelo
Presidente ao Congresso Nacional, do plano plurianual, do projeto de lei de diretrizes orçamentárias e das propostas de orçamento previstas na Constituição, chama a
atenção dos estudiosos, permitindo constatar a crescente supremacia financeira da
União a ensejar conseqüente supremacia política, econômica e jurídica.19 Walter Kolarz, rememora que a extinta Federação Soviética, advinda de interesses decisivos no
plano internacional, teve a influência marcante da crescente supremacia da União
– poder central -.20 Tancredo Neves, em relação à federação brasileira em crise, afirmou que os Estados da União só são autônomos por ficção jurídica, pois o poder
central empalma, de forma discricionária, os monopólios de crédito, de câmbio
e do salário.21
As medidas provisórias são justamente uma das formas de concentração de poder
de administração, quando se trata do sistema de governo presidencialista, no qual não
existe a possibilidade de demissão do titular do Poder Executivo em caso de eventual discordância com representantes de outra função do Poder, especialmente a Legislativa.22
Por este e outros pontos, as vozes da maioria dos autores publicistas concluindo pela superioridade técnica do parlamentarismo23, no qual, ao contrário do presi17 Apud. Ibid., p. 368
18 Quincy Adams, citado por Pinto Ferreira, op. cit., p. 369
19 Ibid., p. 478
20 Apud. Ibid.
21 Apud. Ibid.
22 Ibid.
23 Lord Bryce ao defender a prevalência técnica do parlamentarismo, em análise do contexto norte-americano, chegou
a afirmar que nenhum grande homem foi escolhido presidente, concluindo que a Nação não utilizou freqüentemente os seus maiores homens. Pinto Ferreira chama à baila esta análise e realça sua gravidade nos países revolucionários
da América Latina, pois dotados de um tanto menos de consciência política que aquele (Apud. Ibid., p. 367)
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
239
dencialismo, as medidas provisórias são necessárias por conta justamente da possibilidade de o gabinete, que é uma dependência do corpo legislativo, “cair” em virtude de desentendimento com este.
Dado histórico é muito importante à demonstração do desvirtuamento
que sofreu a medida provisória quando da sua importação do sistema italiano,
pelo legislador brasileiro. Sabe-se que ela veio substituir o decreto-lei do sistema antigo. Todavia, na sua importação sofreu distorções atribuídas às diferenças
entre o sistema de governo de lá e daqui: parlamentarismo e presidencialismo,
respectivamente.
É que na Itália, caso o decreto-legge previsto no artigo 77 da Constituição italiana seja rejeitado, sofre sanção política o seu autor. Aqui, como sabido, nada ocorre, além da perda de eficácia ex tunc, ou, melhor dizendo, nada ocorre além da insegurança jurídica dos cidadãos.
Ademais, na Itália já há previsão no sentido da impossibilidade de se criar ou
majorar tributos por decreto-legge, consoante o artigo 4º do Estatuto dos Direitos
do Contribuinte, Lei n. 212, de 27 de julho de 2000, publicado na Gazzetta Ufficiale(1) nº 177 de 31 de julho de 2000:
Artigo 4º Utilização do decreto-lei em matéria tributária
1. Decreto-lei não pode dispor sobre a instituição de novos tributos,
nem prever a extensão de tributos existentes a outras categorias de
sujeitos.24 (grifo nosso)
A independência entre as funções Executiva, Legislativa e Judiciária do Estado
é assegurada pela disposição das competências no Texto Maior, incluindo-se funções
atípicas a assegurá-las.
Entretanto, como afirmado, cada vez mais se pode observar o aumento de
funções atípicas - a exemplo do Poder Executivo legislando - e o abrandamento das
funções típicas, restando menos evidentes as linhas de separação entre elas. Rosah
Russomano25 bem elucida a questão:
As exigências de ordem prática, à medida que se desdobram as décadas, demandaram um apagamento das fronteiras entre os Poderes e, pois, entre suas funções.Contemplando o que se passa no Estado moderno, podemos observar que cada Poder, se exerce – conforme o sabemos – a função que lhe é própria com dominância,
cada vez o faz com menor ênfase. As funções estão longe de ser ex24 www.tributario.com/ler_texto.asp (Tradução de Marco Aurelio Greco e Milene Eugenio Cavalcante)
25 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES Júnior, Vidal Serrano; Curso de Direito Constitucional, São Paulo, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 213
faculdade de direito de bauru
240
clusivas do Poder respectivo. Secundariamente embora, estes,
em sua dinâmica, escapam aos setores que lhes são inerentes.
O que não se pode olvidar, contudo,
é que a mera opção pela separação dos Poderes, consagrada
pelo art. 2º de nossa Lex Major, prenuncia a adoção de um regime em que a cada Poder ficam atribuídas as funções que lhe
são típicas e as atípicas necessárias à manutenção de sua independência. Fora disso, é necessária a existência de normas
constitucionais expressas.26
E continua, com a mesma propriedade:
A constituição, na discriminação dessas funções típicas e atípicas, houve-se, ao que parece, com o critério peculiar. Em primeiro lugar, fixou uma regra: a cada Poder atribuiu a respectiva função típica e as atípicas necessárias à manutenção de
sua autonomia e independência. Fora disso, traçou exceções
por disposições expressas. Assim, o Poder Executivo, em virtude
da opção constitucional pela separação dos Poderes, tem prerrogativas não só para exercer atos de administração ordinária
como também para, entendendo-os ilegais, rever espontaneamente seus atos, ou promover o processo administrativo apto a
apurar uma falta funcional. São funções, a princípio, atípicas,
porém necessárias à preservação de sua autonomia e independência em face do Judiciário. A edição de medidas provisórias,
porém, depende de anotação expressa no texto constitucional,
pois a ausência desse instituto não abalaria a independência
do Poder Executivo.27 (grifo nosso)
Talvez pela necessidade destacada no texto colacionado é que se tenha
promulgado a absurda Emenda Constitucional nº 32 a incluir norma constitucional “legalizando” funções atípicas, mesmo produtoras de injustiças e desmandos que assaltam os cidadãos-contribuintes (confiram-se as letras do apartado 5.1).
26 Ibid., p. 214
27 Ibid.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
241
No regime constitucional moderno, as leis competem, sim, ao Poder Legislativo, o que não quer dizer que somente este possa legislar28. Todavia, quem o fizer
excepcionalmente, deve somente assim – excepcionalmente - fazê-lo, ao invés de
tomar a atividade legislativa como regra ou função principal ou típica, como tem
ocorrido no Brasil.
De outra banda, teçam-se considerações sobre o precursor das medidas provisórias, os decretos-lei.
Geraldo Ataliba, ao escrever sobre o decreto-lei previsto na Carta Magna de
1967, ressaltou que apesar da força de lei, consistente na força de criar direitos e faculdades, conferida a um ato executivo pela Constituição, aquele não era lei material, pois desta diferia ao menos em relação à eficácia, ao processo de elaboração,
aos pressupostos, à condição, às matérias e à excepcionalidade.29
O mesmo se pode afirmar sobre as medidas provisórias, por se tratar de instituto diverso, mas muito semelhante aos decretos-lei.
As diferenças entre a lei material e os decretos-lei é melhor sentida quando se
define aquela e se lhe apontam características:
A lei – suprema manifestação da vontade do Estado e soleníssima e
eminente norma jurídica – pode ser definida, no sistema constitucional vigente, como a “norma jurídica só subordinada a Constituição
(art. 114, I, “l”, e III, “b”), produzida pelo Poder Legislativo (art. 46)
com a colaboração do Presidente da República (art. 62), na forma
do processo legislativo (arts. 33, 53 e segs.), com força vinculante geral, capaz de obrigar todas as pessoas submetidas à ordem jurídica
brasileira a fazerem ou deixarem de fazer alguma coisa” (art. 150,
§2º). São suas notas caraterísticas a generalidade, a vigência – expressa ou tacitamente fixada em lei (na própria ou em outra) – incondicional, a eficácia imediata, a partir da data fixada (na própria lei ou em outra), salvo termo ou condição, também legais; a plenitude qualitativa e imediata inserção no sistema jurídico, independentemente de qualquer condição ou termo.30
Embora estas lições sejam anteriores à Constituição Federal de 1988 e se refiram aos decretos-lei, pode-se dizer que evidencia a diferença existente entre lei ma28 Acrescente-se que o fato de a função típica do Poder Legislativo ser legislar, além de não significar que somente
este possa faze-lo, também não significa que somente este possa ter a iniciativa legislativa, que é a apresentação de
um projeto de lei, o primeiro ato do procedimento legislativo pelo qual passam as leis. Destarte, é somente após a
iniciativa que a competência é naturalmente do Poder Legislativo, único competente a efetuar todo o procedimento traçado na Carta Mãe. Nesta esteira o artigo 61 da Carta Mãe
29 ATALIBA, Geraldo; O Decreto-lei na Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 21
30 Ibid., ps. 24 - 25 (Obs.: os artigos constantes da citação são da CF/67)
242
faculdade de direito de bauru
terial e o atual instituto medida provisória em decorrência da similitude assinalada.
Em outras palavras, muitas das lições válidas aos decretos-lei podem ser aproveitadas às medidas provisórias. Afinal, as medidas provisórias, da mesma forma que os
decretos-lei, têm força de lei conferida pela Constituição Federal, mas desta se distanciam por sua definição e características.
Colacionem-se novamente as antigas lições de Geraldo Ataliba31, escritas ainda sob a égide da Carta Constitucional de 1967, para acentuar o profícuo campo de
discussões sobre o requisito urgência exigido naquela época aos decretos-lei e,
atualmente, às medidas provisórias:
Invocar a urgência em casos que comportam solução idônea, por
lei obtida no regime do art. 54, §3º, importaria fraudar a Constituição, contornar-lhe as exigências capitais, decorrentes de seus
princípios basilares, dos quais ressalta aquele segundo o qual o Poder Legislativo é exercido pelo Congresso (art. 29), além doutros
aqui examinados.
De fronte da exposição supra, as conclusões a que se pode chegar são no sentido de que decretos-lei e medidas provisórias são figuras excepcionais, medidas de
urgência, que fogem à regra de todo o sistema constitucional e do Estado Democrático de Direito, não implementando a condição da necessidade da lei a que se refere Cirne Lima32; leis, decretos-lei e medidas provisórias não se confundem entre si,
sendo certo que os últimos jamais fizeram ou farão as vezes daquelas, notadamente
no que tange à segurança jurídica e não-surpresa pregadas pelo princípio da legalidade tributária.
Apesar das similitudes registradas, uma previsão constitucional de 1967 coloca as medidas provisórias em desvantagem absoluta em relação aos decretoslei. O artigo 58, inciso II, daquela Carta Constitucional excluía do campo de incidência dos decretos-lei toda a matéria tributária ao se referir, tão somente, às finanças públicas, que, como sabido, não se confundem com as matérias tributárias. Desta feita, se quisesse o constituinte de 1967 estender a possibilidade a estas, deveria tê-lo feito de forma expressa, em se tratado de competência excepcional do Poder Executivo.33 Outrossim, A Carta Mãe de 1967 dispunha, no artigo
31 Ibid., p. 32
32 Apud. Ibid., p. 61
33 ATALIBA, op.cit. (Sistema Constitucional...), p. 287-288 (Não há inferência, analogia ou presunção que – em
matéria excepcionalíssima como esta – possa ser invocada para ampliar o sentido de um tal texto. Mormente
se se considera que é uma competência de um órgão vertical do Estado, que, por meio deste trabalho exegético,
se quer determinar. E em matéria de competência – limite objetivo ao poder jurídico de um dos “Poderes” do Estado – severa e restritiva deve ser a interpretação de disposições excepcionadoras das regras gerais informadoras do princípio capital da tripartição do poder).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
243
18, em rol exaustivo, as normas que podiam reger o sistema tributário nacional,
entre as quais não estava incluído o decreto-lei, mas somente as leis complementares e as resoluções do Senado, no limite das competências fixadas à União, aos
Estados-membros e aos Municípios.
A Carta de 1988 silencia a este respeito, limitando-se à consagração do princípio da legalidade tributaria no artigo 150, inciso I, assim como ao pedido de lei complementar em alguns casos.
Pois bem. Processo legislativo é o conjunto de atos coordenados tendo em
vista a criação de regras jurídicas34. O artigo 59 da Constituição Federal pretendeu
arrolar os processos legislativos ou leis lato sensu, apesar de nem todos serem,
como se continuará demonstrando em relação às medidas provisórias.
José Afonso da Silva observa que estas não faziam parte da enumeração do artigo 59 até a aprovação do texto final pela Comissão de Redação, em 19 e 20 de setembro de 1988, assim como pelo Plenário da Constituinte, no dia 22 seguinte.35
Assevera que tal inclusão se deu entre o dia 22 e a promulgação-publicação da
Constituição, em 05 de outubro de 1988, desaprovando-a, uma vez que às medidas provisórias não há processo legislativo, mas simples edição pelo Presidente da República.
Igual a dizer: as medidas provisórias não foram aprovadas pela constituinte originária, mas inclusas na Carta Mãe de forma ilegítima por quem não se sabe quem. E este
fato, atente-se, é somente mais um fato histórico a provar que as medidas provisórias
são instituto provocador de vulnerabilidade à segurança jurídica, hábil a surpreender de
forma terrível os cidadãos-contribuintes e os cidadãos em geral, conforme a matéria que
veiculem – penal, tributária,... -.
Somem-se às relevantes informações históricas e técnicas acima, as teses
que se seguem.
Para aqueles que entendem o princípio da legalidade tributária no extremo da
reserva absoluta da lei formal, a segurança jurídica, o princípio da anterioridade
e da não-surpresa são de tal forma reforçados no direito tributário, que o procedimento legislativo, desencadeado pelas medidas provisórias, é incompatível com
a regulação de tributos.36
Além de Baleeiro, de cuja obra foram extraídas as letras colacionadas, Carrazza e muitos outros doutrinadores seguem afirmando que as medidas provisórias não
podem criar nem aumentar tributos porque, em síntese:37
a) as medidas provisórias, embora produzam efeitos com a publicação, fazem-no de modo reversível, precário, contrariando os princí34 FERREIRA, op. cit., p. 339
35 SILVA, op. cit., p. 496.
36 BALEEIRO, Aliomar; Direito Tributário. 11 ed. Atual. Por Mizabel Derzi, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 82
37 CARRAZZA, op. cit., 240 – 260.
244
faculdade de direito de bauru
pios da segurança jurídica e da não-surpresa38; (obs.: afirmação perfeita com base no artigo 62, redação original, ou seja, não consideradas as alterações provocadas pela Emenda Constitucional nº
32/2001)
b) o artigo 150, inciso I exige lei e as medidas provisórias são atos administrativos que só se transformam em lei quando ratificadas pelo
Congresso Nacional39;
c) as medidas provisórias desrespeitam o princípio da anterioridade,
uma vez que sua eficácia é imediata, antes mesmo da conversão em
lei; (obs.: afirmação perfeita com base no artigo 62, redação original,
ou seja, não consideradas as alterações provocadas pela Emenda
Constitucional nº 32/2001)
d) mesmo os tributos excetuados do princípio da anterioridade, pela
Lei Mãe40, tiveram prescritos mecanismos específicos que resolvem a
urgência e a relevância, que, em matéria tributaria, assumem, na
Constituição, uma conotação especial, estranha às que legitimam a
edição de medidas provisórias;41
e) restaria inócua a previsão do parágrafo 1º do artigo 153, mesmo
atendidas relevância e urgência, pelos mesmos motivos postos às leis
delegadas;
Sumariando, as medidas provisórias não poderão criar ou aumentar tributos,
em hipótese alguma, pois excepcionam o princípio da reserva absoluta da lei formal
– legalidade tributaria -; não se submetem ao complexo processo de elaboração das
leis que passam pelo crivo de, pelo menos, duas funções do Poder (Legislativo e
Executivo), tendo seu conteúdo exaustivamente discutido; e, finalmente, não prestigiam, como as leis ordinárias, os princípios da segurança jurídica e da não-surpresa dos contribuintes. Isto e mais os aspectos históricos e técnicos demonstrados, reveladores de falhas desde a importação do instituto – cópia sem ressalvas de instituto utilizado no sistema parlamentarista - até sua implementação de forma ilegítima – sem a participação da constituinte originária -.
Outro argumento poderia ser acrescido a este rol:
38 Luiz Alberto David Araújo entende que o tratamento dos atos produzidos durante a eficácia da medida provisória não apreciada ou rejeitada deve ser feita por decreto legislativo. (Ibid., p. 262) Clemerson Merlin Clève, por sua
vez, defende que a espécie legislativa neste caso deverá ser a lei ordinária, com a sanção do Presidente da República, por não haver previsão expressa no texto constitucional. (Apud. Ibid.)
39 São atos administrativos lato sensu, dotados de alguns atributos da lei, que o Presidente da República pode
expedir em casos de relevância e urgência (Ibid., p. 240)
40 Constituição Federal de 1988, artigos 153, incisos I, II, IV e V; 154, inciso II; 148, inciso I e 150, inciso III, b.
41 CARRAZZA, op. cit., p. 247
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
245
... pensamos, outrossim, que a medida provisória só cabe em casos
excepcionais, que admitam, se ela for rejeitada, o retorno ao status quo ante, sem maiores transtornos ou prejuízos, para quem
quer que seja. Por aí vemos que não pode definir crimes, nem cominar-lhes as respectivas sanções.42 (grifo nosso)
Que não pode definir crimes e cominar as respectivas sanções, os juristas concordam. Mas porque ainda não concordam com a evidência de também não poderem veicular matéria tributária, se esta causa, por exemplo, prejuízos e transtornos
ao contribuinte que recolheu um tributo posteriormente tido por indevido. Todos
conhecem as dificuldades envolvidas quando se trata de reaver valores indevidamente recolhidos aos cofres públicos. Todos também conhecem o direito de propriedade assegurado no artigo 5º da Lex Major. Por que a resistência assinalada?
Sabe-se que não podem ser cuidados, em medidas provisórias, tipos penais,
inclusive os que descrevam crimes contra o patrimônio, por se referirem ao direito
fundamental de propriedade, visando-se a proteger o direito de propriedade dos cidadãos contra aqueles que a queiram subtrair; as matérias tributárias estão diretamente ligadas a este direito fundamental. Ora, por que impedir o tratamento da matéria penal por medida provisória com o fim de proteger o patrimônio contra os particulares e possibilitar a veiculação de matéria tributária em medida provisória, desprotegendo o patrimônio contra o Poder Público? Aqui se percebe o desrespeito,
além dos princípios e dos direitos fundamentais já citados, também da igualdade
tanto genérica como tributária43.
Yoshiaki Ichihara não refuta a tese mostrada, todavia chama a atenção à realidade dos Tribunais, em especial, do Supremo Tribunal Federal, demonstrando a incongruência do acadêmico e cientifico com a fotografia real.44
Vale dizer, demonstra que o significante é o mesmo, com base na Lei Mãe, mas
o significado fixado não é o da tese supra - e certamente, portanto, não é o querido
pelo constituinte originário, pelo quanto exposto -, já que o Supremo Tribunal tem
admitido as medidas provisórias como veículo implementador da legalidade tributária, consoante jurisprudência transcrita em apartado antecedente.
Para tanto, Ichihara transcreve lições do jus-filósofo Hans Kelsen, maior expoente do positivismo jurídico, afirmando que o direito vigente num determinado
momento e local ‘hic et nunc’ é o que o Tribunal decidir em última instância:
O Direito a aplicar, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro
da qual existem varias possibilidades de aplicação, pelo que é con42 Ibid., p. 250
43 Conferir artigos 5º e 150, inciso II da Carta Constitucional
44 ICHIHARA, op. cit., ps. 96 – 106
246
faculdade de direito de bauru
forme ao Direito todo o acto que se mantenha dentro deste quadro
ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível. Se por ‘interpretação’ se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objecto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem.
Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correcta,
mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que
apenas uma delas se torne Direito positivo no acto do órgão aplicador do Direito – no acto do Tribunal, especialmente.45
Assim, apesar de conhecer e citar os diversos autores que defendem a absoluta impropriedade de criação e aumento de tributos por meio de medidas provisórias, Ichihara faz esta tomada de posição conforme com a realidade das decisões dos
Tribunais:
Nesta linha de raciocínio e diante das decisões do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, se acadêmica e cientificamente é sustentável a
posição de que as Medidas Provisórias são veículos inadequados
para instituir e aumentar tributos, diante da realidade e do direito vigente, nem sempre tal posição é sustentável, pois é preciso que
a ciência do direito explique este fenômeno e a validade das decisões dos Tribunais em última instância.46
45 Apud. Ibid., p. 103
46 Ibid., p. 103 (Transcreva-se a nota de rodapé 87, por sua propriedade. Em relação ao Decreto-lei da Constituição anterior, o Supremo Tribunal Federal pronunciou-se em reiteradas oportunidades, respaldando sua constitucionalidade, inclusive para instituir e aumentar tributos. Existem até os anômalos Decretos-leis nos 406, de 31
de dezembro de 1968 e 834, de 08 de setembro de 1969, que fazem o papel de Lei Complementar. CARLOS AYRES
BRITO (Inidoneidade do decreto-lei para instituir ou majorar tributo. Revista da Procuradoria Geral do Estado
de São Paulo, jun. 1981. p. 158), não obstante as decisões do STF em sentido contrário, dizia: ‘Conclusivamente,
pois afirmamos que o decreto-lei não pode, em nenhuma hipótese, sob nenhum pressuposto, criar ou ampliar
tributo. Se esta fosse a intenção da Lei Maior, ela o diria expressamente, às escâncaras, sem subterfúgios, atenta
à circunstância de seu o tributo – insista-se – um instituto especialmente vocacionado para a geração de conflitos entre as pessoas estatais e entre estas e os membros particulares da comunidade jurídica.’ No que se refere à Medida Provisória, a tendência é a mesma, no sentido de se reconhecer como norma equivalente e colocada na mesma hierarquia da lei ordinária. O caso mais gritante e reiteradamente discutido nos Tribunais é o da
Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990, que resultou da conversão da Medida Provisória nº 143, de 08 de março
de 1990, em lei, dando nova diretriz ao bem de família.)
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
247
Sacha Calmon Navarro Coelho entende possível, em alguns casos limitados, o
uso de medidas provisórias:
Pois bem, com espeque na relevância e urgência é que deduzimos o
cabimento de medidas provisórias em sede de tributação apenas em
dois casos, estando em recesso o Congresso Nacional. Friso: estando
em recesso o Congresso Nacional;a)criação de impostos extraordinários de guerra;b)instituição de empréstimos compulsórios de emergência,guerra, sua iminência e calamidade pública).47
Postas as contrariedades, realce-se que a doutrina concorda quanto à impropriedade das medidas provisórias criando e aumentando os tributos reservados à lei
complementar48, assim como os sujeitos ao princípio da anterioridade.
Quanto aos tributos excepcionados do princípio da anterioridade, a afinação
doutrinária se dá apenas em parte. É que para Ichihara existe a possibilidade excepcional da criação do empréstimo compulsório previsto no inciso I do artigo 148, ao
qual a Constituição Federal exigiu lei complementar, preenchidas urgência e relevância, o que negado por Carrazza.49
Em relação ao artigo 153, incisos I, II, IV e V, se se afirmar a possibilidade de
criação e aumento de tributos por medidas provisórias, fazem-se inócuas as letras
do parágrafo 1º do mesmo artigo, por motivos idênticos aos explicitados no item
Das leis delegadas. E sabe-se: nenhuma letra legal pode ser considerada vazia, desprovida de qualquer força normativa ou utilidade.
Outrossim, já que tais impostos não estão submetidos ao princípio da anterioridade, nada impede que o Presidente da República apresente projeto de lei para ser
apreciado no regime de urgência previsto nos parágrafos 1º a 3º do artigo 64 da
Constituição Federal.50
47 CO LHO,Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988 – Sistema Tributário. 8. ed.Rio de Janeiro: Forense,1999, p.221
48... facilmente concluímos que o imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira (que dependia, para ser instituído, de lei compleme ntar, ex vi do art. 2º da EC n.
3/93) não podia ser nem criado, nem aumentado, por meio de medida provisória). (CARRAZZA, op. cit. p. 257)
49 ICHIHARA, op. cit., p. 101.
50 Todos o raciocínio desenvolvido neste item aplicava-se, mutatis mutandis, ao imposto sobre movimentação
ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira, que, como veremos em seguida (item
4), odia ter sua alíquota de até 0,25% reduzida ou restabelecida pelo Presidente da República, “total ou parcialmente, nas condições e limites fixados em lei” (art. 2º, §1º, da EC n. 3/93). Isto, porém, não aconteceu, já que a
Lei Complementar n. 77/93 fixou uma única alíquota (0,25%). O raciocínio valia também para a contribuição
provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira
(CPMF). A CPMF, que a União foi autorizada a criar pela Emenda Constitucional n. 12/96, poderia ter sua alíquota, de até 0,25% (vinte e cinco centésimos por cento), reduzida ou restabelecida, total ou parcialmente, pelo
Presidente da república, nas condições e limites fixados em lei. Tal não aconteceu porque a Lei n. 9.311/96, em
248
faculdade de direito de bauru
No que se refere ao artigo 154, inciso II, também a salvo do princípio da anterioridade, a Carta Maior instituiu mecanismo eficiente a atender às suas peculiaridades, sendo impossível sua criação ou aumento por medida provisória, já que a via
adequada à Administração Fazendária, nestes casos, é a decretação do estado de sítio, consoante interpretação dos artigos 137, parágrafo único e 139 do Texto Maior.
Carrazza conclui que, decretado o estado de sítio, com fundamento no artigo 137,
inciso II, poderão ser tomadas medidas que levem a exigir impostos extraordinários
dos cidadãos-contribuintes.51
As contribuições sociais para a seguridade social, prescritas no artigo 195,
parágrafo 6º, também não se sujeitam ao princípio da anterioridade, mas à anterioridade especial ou nonagesimal, sendo impossível que medidas provisórias as veiculem. Afinal, a eficácia imediata e precária das medidas provisórias
(esta afirmação com base no texto original do artigo 62. Outras considerações
serão tecidas no apartado seguinte) não afina com a noventena exigida a tais
contribuições, sendo esta a anterioridade especial exigida.
Para concluir a análise sobre os requisitos relevância e urgência, apenas iniciada se considerada a vastidão do assunto, acompanhem-se as brilhantes lições:
Assim as leis ordinárias ou complementares, que instituem ou
majoram tributo, têm a eficácia e a aplicabilidade adiadas,
por força do princípio da anterioridade. Medidas provisórias,
em razão da relevância e da urgência, têm necessariamente
sua eficácia e aplicabilidade antecipadas à existência da lei
em que se hão de converter, por imperativo constitucional.52
(grifou-se)
Ademais, arrole-se alguns dos princípios constitucionais tributários subtraídos
dos cidadãos-contribuintes quando se têm medidas provisórias instituindo ou majorando tributos: segurança jurídica, não-surpresa, anterioridade e consectários. E se
não bastasse, ainda o ferimento de direitos e garantias fundamentais, assolando os
direitos humanos consagrados na Carta Maior.
Finalmente, e mais uma vez utilizando os invulgares dizeres de Carrazza:... é
importante realçar que a medida provisória excepciona o princípio pelo qual
seu art. 7º, fixou a alíquota deste tributo em 0,20% (vinte centésimos por cento). E o raciocínio continua valendo para a nova CPMF, prevista na Emenda Constitucional n. 21/99, que, depois de estabelecer que a alíquota do
tributo será de 0,38% (trinta e oitro centésimos por cento) nos primeiros doze meses, e de 0,30% (trinta centésimos por cento) nos meses subseqüentes, faculta ao Poder Executivo reduzi-la, total ou parcialmente, dentro deste limites.(CARRAZZA, op. cit., p. 254)
51 Ibid., ps. 254 - 255
52 BALEEIRO, op. cit., p.83
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
249
cabe primacialmente ao Poder Legislativo – e não ao Executivo – inovar, em caráter originário, a ordem jurídica53. E continua:
Pois bem, se a medida provisória excepciona a norma pela qual
ao Legislativo é que incumbe preferencialmente legislar, devemos
reconhecer que ela há de ser editada com cautela, até para que
não se atropele o já mencionado princípio da tripartição das funções do Estado. Outra interpretação só seria possível caso existisse
expressa ressalva, neste ponto, na Carta Federal. Como ela não
existe, podemos concluir que as medidas provisórias não se constituem no veículo tecnicamente adequado à criação ou ao aumento de tributos, mesmo quando faltem menos de 45 dias para o término do exercício financeiro.54 (grifo nosso)
Colacionaram-se estas letras e grifou-se a parte que trata da possibilidade de
criação ou aumento de tributos por medidas provisórias, caso existisse ressalvas na
Carta Maior, a fim de realçar a Emenda Constitucional nº 32, que justamente expressa tal possibilidade, prevendo algumas “condições”. É que nesta assertiva, o professor Carrazza certamente aludiu a uma exceção através de emenda constitucional
que respeitasse a estrutura da Constituição Federal, possibilitando, então, o tema
em discussão. Isto não se verificou na Emenda Constitucional nº 32, que desrespeitou bases imutáveis da Carta Mãe, ferindo diversos princípios, além de direitos e garantias fundamentais conforme observações de nomeada doutrina, inclusive daquele, registradas na seqüência.
5.1. Da Emenda Constitucional nº 32, de 11 setembro de 2001
A Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, alterou o disposto no artigo 62, permitindo, expressamente, ao Presidente da República, instituir e
majorar tributos através de medida provisória, conforme o que previu e passou
como condições, o constituinte derivado. E condições no sentido de requisitos bons
aos cidadãos-contribuintes, limitadores do Poder Estatal, o que é inverdade, como
assevera Carrazza:
O que se nota, prima facie, é que o constituinte derivado investiu-se
das prerrogativas de constituinte originário e, sem a menor cerimônia, “reconstruiu”, a seu talante, a figura da medida provisória. Para tornar mais atraente a “reforma”, o mesmo constituinte
53 Ibid., p. 259
54 Ibid.
faculdade de direito de bauru
250
derivado criou pretensos obstáculos às medidas provisórias. Escrevemos “pretensos obstáculos” porque onde os obstáculos jurídicos,
postos pelo constituinte originário, eram totais (v.g., a impossibilidade de reedição de medidas provisórias, ainda que por inertia
deliberandi do Congresso Nacional) surgiram acanhadas peias,
que, na real verdade, dilargaram, sensivelmente, o campo de ação
destes atos normativos. Foi uma forma ardilosa de, restringindo,
ampliar.55
O artigo 62 constava assim disposto:
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo
submete-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em
recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no
prazo de cinco dias.
Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia, desde
a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias,
a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes.56
Com a Emenda em tela, passou à seguinte redação:
“Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo
submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
“§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:
“I – relativa a:
“a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e
direito eleitoral;
“b) direito penal, processual penal e processual civil;
“c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros;
“d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, §
3º;
“II – que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro;
“III – reservada a lei complementar;
55 Ibid., ps. 243 - 244
56 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988 Constituição Federal
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
251
“IV – já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República.
“§ 2º Medida provisória que implique instituição ou majoração de
impostos, exceto os previstos nos arts. 153, I, II, IV, V, e 154, II, só
produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido
convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada.
“§ 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12
perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei
no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez
por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.
“§ 4º O prazo a que se refere o § 3º contar-se-á da publicação da medida provisória, suspendendo-se durante os períodos de recesso do
Congresso Nacional.
“§ 5º A deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional
sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio
sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais.
“§ 6º Se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e
cinco dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subseqüentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver
tramitando.
“§ 7º Prorrogar-se-á uma única vez por igual período a vigência de
medida provisória que, no prazo de sessenta dias, contado de sua
publicação, não tiver a sua votação encerrada nas duas Casas do Congresso Nacional.
“§ 8º As medidas provisórias terão sua votação iniciada na Câmara
dos Deputados.
“§ 9º Caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar
as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem
apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional.
“§ 10. É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida
provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo.
“§ 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória,
as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados
durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.
252
faculdade de direito de bauru
“§ 12. Aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da
medida provisória, esta manter-se-á integralmente em vigor até que seja
sancionado ou vetado o projeto.’(NR) (...)” 57
No apartado anterior, foram vistas as muitas controvérsias em torno do tema medidas provisórias, as quais se arrastam desde a promulgação da Constituição Federal, prevalecendo a posição no sentido das limitações do instituto, principalmente quando envolve direitos e garantias fundamentais, como as matérias tributárias e penais.
Em que pesem aludidas limitações e todas as anotações do item anterior, o Presidente da República editou e edita inúmeras medidas provisórias sobre os mais variados
temas, recebendo, lamentavelmente, aval do Poder Judiciário, que trilha caminho oposto ao da doutrina, como afirmado anteriormente.
Foi tal realidade que animou o Governo Federal a vôos mais altos - na feliz expressão de Carrazza58 -, chegando ao cume da Emenda Constitucional nº 32, que nada
mais fez que convalidar os abusos cometidos, afastando ou visando a afastar as discussões
sobre a possibilidade ou não de se ter um tributo criado ou aumentado por medida provisória, olvidando todas as impossibilidades históricas, técnicas e institucionais supraacentuadas.
De acordo com as mudanças no art. 62 da CF/88, o § 2º ficou reservado para tratar da matéria tributária. Como se disse anteriormente,
não houve vedação expressa quanto à edição de MP sobre tributos,
como se deu com as demais matérias elencadas no § 1º do citado artigo. Por outro lado, essa ressalva sobre alguns aspectos tributários pareceu surgir para “legalizar” o entendimento já firmado nos tribunais,
sobretudo STF (5)., sobre a possibilidade de utilização de medidas provisórias para a instituição ou majoração de tributos.
Imperioso ressaltar que a questão continua sendo combatida pela
doutrina, que sempre teve posição avessa ao ratificado entendimento
jurisprudencial.
...
Sem dúvida, este dispositivo legal não supriu a lacuna que deixa margem a interpretações deturpadas sobre a utilização de medidas de exceção para instituição ou majoração de tributos. Na verdade, o parágrafo pretendeu legalizar uma verdadeira incongruência, a utilização de medidas provisórias em consonância com a submissão ao
Princípio da Anterioridade Tributária.59
57 Brasil. Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001
58 Ibid., p. 241
59 www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3084, acesso em 10/10/2002 (Danielle Patrícia Guimarães Mendes,p.18)
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
253
Entretanto, mesmo diante da tentativa de eliminar as muitas discussões (e calar a doutrina de melhor nomeada que defende a impossibilidade de criação ou majoração de tributos por medidas provisórias), através da inserção no Texto Constitucional de permissão ao Poder Executivo criar ou majorar tributos por medidas provisórias, prevalece tal impossibilidade, tendo em vista as inconstitucionalidades da
Emenda nº 32/2001, que deverá restar impossibilitada de produzir efeitos através do
controle difuso ou direto de constitucionalidade, bem como da tutela cautelar constitucional60. Melhor dizendo, deverá restar vigente e não eficaz, vale dizer, simplesmente vigente enquanto não “arrancada” do texto legal, como preferível.
Se o constituinte derivado apostou mesmo na resolução das controvérsias assinaladas, certamente foi porque olvidou o controle da constitucionalidade a que
devem ser submetidas as emendas constitucionais, a fim de observar se as reformas
atingiram a estrutura do Texto Maior, principalmente o núcleo imodificável – artigo
60, parágrafo 4º e incisos -.
Ora, posto é que o reformador deve cuidar para tão somente assegurar a eficaz e correta observância dos princípios informadores de um sistema e não alterar
os fundamentos deste, especialmente em uma reforma posterius, que se deve e
pode basear no defeituoso funcionamento do sistema, verificando os pontos eficientes e deficientes.
Assim, ao contrário do que objetivou a Emenda Constitucional nº 32, nos moldes em que se ultimou, as discussões certamente persistirão, e espera-se, de forma
insistente, até que se aflijam as bases desrespeitadoras dos princípios que o Brasil se
compromissou a implementar em 1988.
Afinal, não pode ser esquecido que, em matéria tributária, direitos e garantias
fundamentais são diretamente atingidos pelo Poder Público.
Estivesse o Congresso Nacional investido de poder total de reforma
constitucional e não teríamos dúvidas de que a partir de 11 de setembro de 2001 as medidas provisórias: a) só não poderiam cuidar
das matérias apontadas no art. 62, § 1º, I e IV, da CF; b) poderiam,
com algumas poucas restrições, criar tributos federais; c) valeriam
por sessenta dias – prazo, este, que ficaria suspenso durante os períodos de recesso do Congresso Nacional; d) poderiam ter sua eficácia prorrogada por mais sessenta dias; e) poderiam ser reeditadas na sessão legislativa subseqüente àquela em que tivessem sido
rejeitadas ou perdido a eficácia por decurso de prazo; f) se editadas até 11 de setembro de 2001 continuariam valendo, por prazo
indeterminado, até que fossem revogadas por medidas provisórias
60 http://www.academus.pro.br/site/p_detalhe_noticia.asp?codigo=3863 (Giovanni Conti, Porto Alegre, tese de
mestrado: Requisitos da Tutela Cautelar Constitucional)
254
faculdade de direito de bauru
ulteriores ou até que houvesse deliberação definitiva do Congresso
Nacional.61
Perceba-se que todos os tempos verbais da colação supra constam de forma a
muito bem evidenciar as discussões a serem, ainda, enfrentadas, pois que continuarão até que sejam respeitados os direitos e garantias dos cidadãos-constituintes, efetivamente.
Ainda neste sentido, o autor arrola sinteticamente as mudanças referentes à
matéria tributária, fazendo uma leitura simplificada e acrítica do texto da Emenda
Constitucional nº 32, como se elencando seus resultados inalteráveis, que provavelmente serão proclamados pela jurisprudência, num primeiro momento. Todavia,
logo em seguida faz alerta aos leitores no sentido de que se trata de lições/leitura a
servir apenas aos concorrentes de concursos para ingresso em carreiras jurídicas, já
que não concorda com as alterações como sendo “resultados inalteráveis”, mas, ao
contrário, de resistência necessária, através não só da provocação de estudos doutrinários, mas do efetivo controle de constitucionalidade direto e indireto, como
afirmado acima:
No que tange especificamente à matéria tributária, as medidas provisórias, com a nova redação dada ao art. 62 da Carta Federal, somente não poderiam instituir os tributos colocados sob reserva de lei complementar (p. ex., os empréstimos compulsórios. Mais: com exceção dos
impostos previstos nos arts. 153, I, II, IV e V, e 154, II, todos os demais tributos só poderiam ser exigidos se a medida provisória que os instituísse houvesse sido convertida em lei até o último dia do exercício anterior.Ainda: como nenhuma medida provisória pode cuidar de matéria relativa a “direito penal”, esta espécie normativa não poderia tipificar infrações e sanções tributárias, quer no campo criminal, quer no
dos ilícitos administrativos (a expressão “direito penal”, no caso, deve
ser tomada em sentido amplo, de modo a alcançar as infrações e as
sanções administrativas).62
Posto é que com a Emenda Constitucional nº 32, além de não respeitar seus
limites de poder reformador, o Congresso Nacional ainda feriu, de forma desavergonhada, direitos humanos. No que tange à matéria tributária, repita-se, os direitos de
propriedade e liberdade, no mínimo.
Bastantes princípios também foram feridos pela Emenda Constitucional nº 32,
além de direitos e garantias fundamentais, entre os quais, podem ser citados: o prin61 Ibid., p. 244
62 Ibid.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
255
cípio da legalidade tributária, da tripartição do Poder, da segurança jurídica, da nãosurpresa, entre muitos outros, o direito fundamental dos contribuintes de só serem
compelidos a pagar tributos que tenham sido adequadamente consentidos por
seus representantes imediatos: os legisladores63, o direito de propriedade, a garantia à liberdade,....
Nesta ordem, a atuação do Congresso Nacional atingiu as cláusulas pétreas vazadas nas letras do artigo 60, parágrafo 4º, incisos III e IV da Carta Magna, que cuidam da
tripartição do Poder e dos direitos e garantias fundamentais, respectivamente.
E não se contentando, numa tentativa de camuflar todos estes desrespeitos, o
Congresso Nacional quer fazer parecer suplantado “o” percalço à possibilidade de
criação e aumento de tributos por medidas provisórias. Diz-se “o” percalço porque
é exatamente assim que o Congresso Nacional trata do princípio da anterioridade,
ou seja, como se fosse o único obstáculo à possibilidade de medidas provisórias
criar e aumentar tributos, em que pesem os outros tantos, vistos acima.
No parágrafo 2º do novo artigo 62, prescrito está que a medida provisória que
institua ou majore tributos, excetuados os artigos 153, incisos I, II, IV e V e 154, inciso
II da Carta Maior, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido
convertida em lei até o ultimo dia daquele em que foi editada (grifo nosso).
Atente-se: por esta solução dos problemas entre o princípio da anterioridade
e as medidas provisórias, o Congresso Nacional pensou que calaria os protetores
dos direitos e garantias fundamentais, mas pensou errado, já que com tal solução,
acabou reforçando ou concedendo um motivo a mais à não aceitação de medidas
provisórias criando ou majorando tributos.
Destarte, das letras do dispositivo, tem-se que se a medida provisória que veicula matéria tributária jamais será eficaz, já que quem produzirá efeitos será somente a lei que a convolar e no exercício seguinte ao de sua publicação. Em sendo assim, restam derrubados os pressupostos exigidos no caput do artigo 62: urgência
e relevância.
Ora, com aquela previsão, o constituinte derivado afastou a aplicabilidade imediata e precária da medida provisória, justificada pela urgência e relevância da matéria
que envolve, subtraindo sua eficácia quando se trate de matéria tributária, de sorte que
somente poderá ser exigido o tributo instituído ou majorado após a convolação da medida provisória em lei, e no exercício seguinte da publicação desta.
Os requisitos relevância e urgência devem, juntos, ser vislumbrados na matéria
que se pretenda cuidar em medida provisória, tendo em vista serem requisitos constitucionais imprescindíveis à validade daquela. Com base nesta assertiva, questiona-se:
Como se justificar a urgência de uma medida provisória que, editada em 31 de
dezembro de 2002, não produzirá eficácia em 2003, mas somente sua lei de conver-
63 Ibid., p. 245
256
faculdade de direito de bauru
são poderá produzir seus efeitos em 2004, se vigente em 2003? Fala-se de um interregno de, no mínimo, um ano!
É óbvio que prazo de um ano não pode ser tratado como urgente a justificar
esta atividade atípica do Poder Executivo. E isto especialmente quando, no sistema,
há leis ordinárias com processos legislativos que se encerram em cem dias. Trata-se
do chamado regime de urgência constitucional ou processo legislativo sumário64
disposto no artigo 64, parágrafos 1º, 2º e 3º do Texto Magno, cujos prazos, somando-se, totalizam os citados cem dias. Confiram-se:
Art. 64. A discussão e votação dos projetos de lê de iniciativa do
Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão inicio na Câmara dos Deputados.
§1º O Presidente da República poderá solicitar urgência para
apreciação de projetos de sua iniciativa.
§2º Se, no caso do parágrafo anterior, a Câmara dos Deputados e
o Senado Federal não se manifestarem, cada qual, sucessivamente, em até quarenta e cinco dias, sobre a proposiçãl, será esta incluída na ordem do dia, sobrestando-se a deliberação quanto aos
demais assuntos, para que se ultime a votação.
§3º A apreciação das emendas do Senado Federal pela Câmara
dos Deputados far-se-á no prazo de dez dias, observado quanto ao
mais o disposto no parágrafo anterior.
Se uma matéria pode ser aprovada por lei stricto sensu num prazo de cem
dias, porque abrir a possibilidade ao Poder Executivo fazê-lo por ato administrativo
dotado de algumas características legislativas, cuja eficácia, ao menos em matéria tributária, inexiste, podendo ser verificada apenas em relação à lei de conversão, no
exercício seguinte ao de sua vigência, ou seja, um ano?
Parece evidente capricho ou artimanha a fazer nebulosos interesses outros,
que, espera-se, não prevaleçam em relação aos direitos humanos.
..., já vemos que a medida provisória não tem o condão de substituir – como querem alguns – toda e qualquer lei, com a vantagem
de independer, para ser editada, dos azares do jogo político que se
deenvolve no seio das Casas Legislativas. Muito pelo contrário, só
nos casos excepcionalissimo, contemplados no art. 62 da CF, é que
o Presidente da República poderá deixar de apresentar ao Legislativo projetos de lei, para valer-se das “comodidades” da medida
64 Ibid., p. 246
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
257
provisória. Mesmo assim, a eficácia deste ato normativo depende
de sua aprovação expressa em, no máximo, 30 dias, pelo Congresso Nacional.65
Por outro turno, em relação à urgência e relevância, não se olvide que o Judiciário deveria decidir a respeito, mas tem se negado a fazê-lo, esquecendo o dever
de último guardião do cidadão e do cidadão-contribuinte, na esfera jurídica à medida em que é guardião do Texto Maior. O pretexto é que tais pressupostos constitucionais devem ser observados pelo Poder Legislativo quando da lei de conversão,
não a editando em caso de falta de um daqueles.
Evidente que o Poder Judiciário, mais uma vez, ingressa no jogo político e se
mostra parcial em relação ao Poder Público, esquecendo-se do seu dever de declarar inconstitucional tanto a medida provisória que não observou os pressupostos
constitucionais, como a respectiva lei de conversão.
E o que é pior, parece que também neste ponto o Poder Judiciário, recebeu o
aval do Poder Legislativo, como asseverado no texto que se segue:
“A EC 32/2001 inovou o texto constitucional e instituiu, ainda que de
forma relativa, o controle de constitucionalidade no âmbito do Poder
Legislativo.
“Os §§ 5º e 9º do artigo 62 impõem que o Congresso Nacional através de uma comissão mista realizem juízo prévio sobre o atendimento dos pressupostos constitucionais das medidas provisórias, é como
se transcreve:
“’Art.62......
“......
“§ 5º A deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional
sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio
sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais.
“..........
“§ 9º Caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar
as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem
apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional.”
“Tal medida tem por objetivo desafogar o Supremo Tribunal Federal
do julgamento da constitucionalidade das medidas provisórias editadas pelo Presidente da República.
65 Ibid., p. 249
258
faculdade de direito de bauru
“Podemos até chegar a uma conclusão mais ousada, dentro desta
nova concepção, nos parece que o STF não deve mais examinar a
constitucionalidade das medidas provisórias, ficando esta atribuição
para o Congresso Nacional.
“O STF só deverá examinar a constitucionalidade ou não da norma
oriunda da medida provisória em casos excepcionais:
“a) quando esta já tiver sido convertida em lei;
“b) se for o caso de liminar contra a medida provisória, pois neste
caso os requisitos do perigo da demora devem prevalecer;
“c) se a medida provisória assumir o caráter de lei temporária, na hipótese do §11 do art. 62;
“Não é que o STF não possa examinar a constitucionalidade da medida provisória, mas só deve fazê-lo em casos excepcionais, pois o
sistema previsto no artigo 62 da CRFB/88, se funcionar, fornece os
instrumentos necessários para que o Congresso Nacional derrube rapidamente a medida provisória que agrida o texto constitucional.
“É claro que esta é uma conclusão inicial, que aos poucos deverá ser
amadurecida de acordo com o funcionamento do sistema previsto
no artigo 62 da CRFB/88.
“Repita-se, trata-se de um controle de constitucionalidade relativo
pois nada impede que o STF venha a examinar a constitucionalidade
da medida provisória posteriormente.”66
Ora, diante deste absurdo, encontra-se na Emenda nº 32, mais um direito fundamental desrespeitado, já que a desculpa sobre o desafogamento da Corte Suprema significa negativa de acesso à justiça.
Pelo quanto exposto, conclui-se pela inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 32/2001 a ser defendida ferrenhamente a fim de que esta nem sequer
irradie eficácia, notadamente sobre os direitos humanos.
Antes de se finalizar, entretanto, num comprometimento com a pesquisa científica, calha o registro de entendimentos tanto afinados como contrários localizados em
meio à carente bibliografia sobre o tema, tendo em vista a data da Emenda em tela:
Não obstante as mudanças trazidas pela EC/32 que possibilitou
que, dadas certas circunstâncias, se verificasse uma verdadeira
perpetuação indeterminada dos efeitos das MP’s, o motivo ensejador da incompatibilidade das medidas provisórias com a legalidade tributária é o caráter efêmero de tais medidas, o que, de certo,
66 www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2934, acesso em 10/10/2002 (Danilo Theml Caram, p. 21-23)
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
259
desemboca numa latente insegurança para as relações jurídicotributárias.67
Outrossim, a menção expressa quanto à possibilidade de instituição ou majoração de impostos pelo texto constitucional, põe fim à
crítica da doutrina majoritária de que a medida provisória jamais poderia instituir ou majorar tributos num regime de estrita
legalidade tributária.
Agora, o texto constitucional consagra expressamente esta possibilidade.
...
Entendemos que as modificações favorecem o regime democrático,
pois os cidadãos e os Estados Federados que vivem sob este regime
esperam que o Poder Legislativo elabore as normas que futuramente lhes imporão determinadas condutas, cabendo ao Poder
Executivo adentrar nesta seara apenas excepcionalmente e com
reserva de matérias. 68
6.
CÓDIGO DE DEFESA DO CONTRIBUINTE
O Projeto de Lei Complementar do Senado Federal nº 646, de 25 de novembro de 1999, ocupou-se no Capítulo II, reservado às Normas Fundamentais, com o
princípio da legalidade tributária.
Antes de se conhecer as letras formadoras daquele artigo, insta abrilhantar
que o Legislador, ao projetar o Código de Defesa dos Contribuintes, anuncia o escopo de alcançar a cidadania fiscal através da construção das Letras Constitucionais
voltadas à proteção da pessoa humana.
Tal construção, como se percebe, realiza-se em lei infraconstitucional, acompanhando tendência mundial (em que pesem as posições contrárias69) voltada à co-
67 www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3084, acesso em 10/10/2002 (Danielle Patrícia Guimarães Mendes,ps.13-14)
68 www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2934, acesso em 10/10/2002 (Danilo Theml Caram, p. 21 e 24)
69 XX Jornadas Latinoamericanas de Direito Tributário realizadas em Salvador, Bahia, em dezembro de 2000. Tema:
Direitos Humanos e Tributação. Recomendação 5: Deve adotar-se formalmente um estatuto do contribuinte ou
código de defesa do contribuinte, dentro do código tributário ou em lei especial, preferentemente com preeminência sobre as leis ordinárias, que proteja os direitos do sujeito passivo ou obrigado, prevendo, entre outros:....
Objeções: Esta recomendação não contou com os votos dos Drs. Arcia e Montero Traibel principalmente por entenderem que as garantias fundamentais dos contribuintes e demais sujeitos passivos devem estar consagradas
na Constituição e não na lei(ainda quando esta tenha hierarquia superior à da lei ordinária), já que em caso
contrário podem se registrar conseqüências negativas para a efetiva proteção dos direitos dos obrigados tributários. Por outra parte, a solução que se propõe desconhece a realidade de muitos direitos positivos (entre eles o
uruguaio) que não aceitam normas de hierarquia intermediária entre a Constituição e a lei ordinária.
260
faculdade de direito de bauru
dificação dos direitos e garantias dos cidadãos-contribuintes, numa evidente revisão
da relação do Poder Público com o contribuinte, agora considerado “cliente”.
Vê-se que o escopo é construir e não meramente interpretar a Carta Maior, determinando o significado atual dos significantes incontestes, conforme com a realidade humana mundial.
Confira-se o artigo do Código projetado:
Art. 4º A legalidade da instituição do tributo (art. 150, inciso I, da
Constituição Federal) pressupõe a estipulação expressa de todos os
elementos indispensáveis à incidência, quais sejam, a descrição
objetiva da materialidade do fato gerador, a indicação dos sujeitos do vínculo obrigacional, da base de cálculo e da alíquota, bem
como dos aspectos temporal e espacial da obrigação tributária.
Vislumbra-se do dispositivo colacionado, que o Legislador projetista fixou
bem o conteúdo da lei a criar ou aumentar um tributo, sob pena de ser taxada inválida, por desrespeitadora da tipicidade tributária, e, por conseguinte, dos princípios
da segurança jurídica, da não-surpresa e da igualdade. Em especial este último, já
que, como o Código de Defesa do Consumidor, chamado com maior propriedade
Lei do Consumo, tem por escopo tornar eqüipolentes os extremos da relação obrigacional, ou seja, construir com igualdade a relação entre o cidadão-contribuinte e
o Fisco, democraticamente, respeitando-se aquele primeiramente como pessoa humana, e depois, como principal “cliente”.
Da nova visão do cidadão-contribuinte, pelo Poder Público, decorre a necessidade de transparência e confiança suficientes a sustentar a relação de clientela. Decorre, pois, a necessidade de o Poder Público se mostrar confiável e transparente
aos cidadãos-contribuintes, a fim de que estes se comprometam a financiar o Estado, não como um ônus, mas como uma das tarefas que compõem a cidadania plena e efetiva.
Contudo, diante dos problemas com a legalidade tributária quanto à forma,
que envolvem as figuras do artigo 59 do Texto Maior, crê-se que o Projeto pode ser
mais destemido ou não resolvê-los, permitindo-os embrenhar diuturnamente nas
relações entre os particulares e Fisco.
Ocorre que as limitações vazadas nas letras do artigo 4º aludem tão-só o conteúdo imprescindível às leis que se dispuserem a criar ou aumentar tributos, olvidando as intrincadas controvérsias em torno do aspecto formal, acima expostas,
que furtam a segurança dos contribuintes, não sabedores, ao certo, de onde podem
emanar regras instituindo ou aumentando tributos, remanescendo surpresos não só
com medidas provisórias, mas inúmeros outros desmandos...
Não se está a dizer que o conteúdo bem delimitado pelo Legislador projetista não tem importância, pois, ao lado da construção do limite da legalidade tributá-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
261
ria reside, sem dúvida, esta problemática, que, de há muito, vem beneficiando o Poder Público em detrimento da igualdade pregada na Constituição Federal.
Porém, diante da inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 32/2001,
demonstrada no apartado anterior, persiste-se na defesa – ainda que talvez quixotescamente, conforme, mais uma vez, felicíssima expressão de CARRAZZA70 - de que
o Legislador poderia inserir este esclarecimento – do alcance da legalidade tributária – em artigo daquele Código, e não somente nas suas Justificativas, como fez, posicionando-se com clareza e prisão à justiça, afirmando a legalidade tributária pelo
extremo da reserva absoluta da lei formal:
8 – A explicação de que o exigir ou aumentar tributo somente se
dará mediante lei (Const. Fed., art. 150, inciso I) ‘pressupõe a estipulação expressa de todos os elementos indispensáveis à incidência, quais sejam, descrição objetiva da materialidade do fato gerador, a indicação dos sujeitos do vinculo obrigacional, da base de
cálculo e da alíquota, bem como dos aspectos temporal e espacial
da obrigação tributária’ (art. 4º). Mais do que a legalidade formal,
também a transparência, a moralidade e a economicidade
(Const. Fed., art. 37, caput) na relação de direito entre os sujeitos
ativo e passivo da relação tributária.
Aqui se pode retomar o afirmado anteriormente sobre o prendimento do Poder
Público ao princípio da legalidade, pois que só pode fazer o que o povo elege, em lei,
ao contrário dos particulares que só podem ser compelidos a agir ou se omitir por
meio de lei, sendo, pois, plenamente livres a desenvolver sua vida civil. Vale dizer, retoma-se, neste passo, o direito dos contribuintes à liberdade plena e a garantia destes de
só se submeterem aos mandamentos do Poder Público em virtude de lei.
Daí a importância de o Legislador projetista fazer compor o texto daquele Código, também o real e exato alcance do princípio da legalidade tributária, pois que
a Exposição de Motivos não obriga o legislador pátrio a respeitar a legalidade tributária em seus exatos e incontestes termos, uma vez que não o vincula dirigindo-se a
ele como lei - norte a seguir -, de forma que permitirá continue a distorcer princípios, às escâncaras, incorrendo na gravidade alertada por Geraldo Ataliba - citado
por Ichihara -71 ao asseverar que o desrespeito a um princípio pode significar o desligamento de todo um sistema.
Dentre os direitos humanos, que se colocam como um dos principais objetos
de preocupação das relações internacionais, está, indubitavelmente, a garantia dos
cidadãos à submissão plena e eficaz do Poder Público ao princípio da legalidade.
70 CARRAZZA, op. cit., p. 245
71 Apud. Ibid., p. 70
262
faculdade de direito de bauru
Mostra disso são as Recomendações há pouco citadas em nota de rodapé,
constantes das Resoluções das XX Jornadas Latinoamericanas de Direito Tributário,
que, realizadas em Salvador, Bahia, em dezembro de 2000, cuidou do Tema Direitos
Humanos e Tributação:
Recomendação 6:
A segurança dos direitos individuais do sujeito passivo ou obrigado tributário é valor fundamental do Estado Democrático de Direito, manifestando-se, entre outros, por meio da legalidade, tutela jurisdicional e irretroatividade da lei tributária.
6.1 O poder regulamentar se subordina à legalidade. A legalidade
exclui o abuso de decretos-leis e medidas de necessidade e urgência ditados discricionariamente pelo Executivo.
Lições que não podem ser esquecidas são as relativas à garantia dos contribuintes de saber, exatamente, quem pode editar normas tributárias, instituindo ou
majorando tributos.
Registre-se no presente item, então, um singelo e sufocado pedido de inclusão desta limitação do alcance do princípio da legalidade tributária no texto daquele Código, calando os muitos dizeres que levam ao desrespeito deste direito humano, imprescindível num Estado de Direito, considerada a patente inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 32/2001, que lhe suspende a eficácia.
Somente assim é que se construirá o princípio da legalidade tributária alcançando-se a cidadania fiscal em conformidade com os ideais democráticos e a integração entre os povos, de sorte a conferir o significado ideal ao significante prescrito na Constituição da República Federativa do Brasil na busca da dignidade da vida
humana sem qualquer ressalva.
Caso contrário, ou seja, se prosseguir este processo legislativo sem a inclusão
do real alcance do princípio a legalidade tributária - no seu aspecto formal –, nada
será construído ou nenhuma ineficácia do sistema atual será corrigida, nesta vertente, pois que as vontades da lei e do legislador não se confundem.
Do jeito que está, o real alcance do princípio da legalidade limita-se à vontade do Legislador, pois consta apenas da Exposição de Motivos.
Posto é que a lei é o veículo através do qual se expressa a vontade do Estado,
de sorte que a vontade da lei é a vontade do Estado e não do legislador.
A vontade do Legislador, se não constante da norma, expressa apenas suas
motivações políticas, econômicas, sociais,..., que são juridicamente irrelevantes
enquanto não expostas em lei, hipótese em que não mais será a mera vontade do
legislador, passando a ser a vontade do Estado, expressada na lei. Neste sentido,
Maximiliano:
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
263
Logo, ou a “vontade do legislador” está idoneamente formulada e
o que se tem é a própria vontade da lei (que, por sua vez, nada
mais é do que a vontade do estado), ou de nada vale a vontade do
legislador.72
Geraldo Ataliba condensa o tema com maestria:
A lei quer o que está em seus mandamentos. Os mandamentos contidos na lei são a própria vontade do estado. A chamada vontade da
lei dessume pelo exame dela como um todo, todo este que, por sua
vez, integra harmonicamente um sistema....; pois que a lei não é o
que o legislador quis, nem o que pretendeu exprimir e sim o que exprimiu de fato.73
Como afirmado, a Exposição de Motivos de um Legislador pode servir, no máximo, como critério de interpretação da norma, mas, ainda assim, há ilustres doutrinadores que a desaconselham. Acompanhem-se as lições de Maximiliano:
a pesquisa de intenção ou do pensamento contido no texto arrasta o intérprete a um terreno movediço, pondo-o em risco de tresmalhar-se em fundações subjetivas. Demais, restringe o campo de
sua atividade: ao invés de estendê-la a toda a substância do direito, limita ao elemento espiritual da norma jurídica, isto é, a uma
parte do objeto da exegese e eventualmente um dos instrumentos
desta.
...
“bastas vezes a redação final da lei resulta imprecisa, ambígua...”
e se descermos a “... exumar o pensamento do legislador, perdernos-emos em um báratro de dúvidas maiores ainda e mais inextricáveis do que os resultantes do contexto”.74
Sabe-se que o descontentamento com determinada legislação só pode ser resolvido pelo próprio Poder Legislativo, mas não pelo Judiciário que deve aplicar corretamente as leis vigentes e constitucionais, sem lhe aferir a justiça ou injustiça.
Por isso, a assertiva no sentido de que aqueles que discordam da justiça de
uma legislação podem tentar exercer influência sobre o político, o legislador, para
72 Apud. ATALIBA, Geraldo; Apontamentos de Ciências das Finanças Direito Financeiro e Tributário.São Paulo,
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969, p. 45
73 Ibid., p. 46
74 Apud. Ibid., ps. 44 - 45
faculdade de direito de bauru
264
que altere ou substitua aquelas normas que reputa injustas.75A legislação que se
estuda no momento não teve sequer seu processo legislativo concluído, ou seja, ainda tramita no Congresso Nacional, encontrando-se na Comissão de Assuntos Econômicos - CAE, não se tratando de uma norma vigente, tornando-se prestigiadas aquelas influências.
Destarte, campo profícuo é o processo legislativo para análises e discussões,
pois ainda há o domínio do que se irá reputar justiça, não precisando o estudioso
se limitar ao trabalho interpretativo.
Na primeira hipótese (elaboração legislativa), estamos nos domínios
do político; estamos nos domínios da justiça pura, estamos no
campo aberto às discussões e opiniões. Na segunda hipótese (lei vigente), estamos no campo exegético e propriamente dogmático, específico do jurista, que precisa – munido do instrumental científico, que lhe é fornecido pela ciência do direito – entender e aplicar
as normas jurídicas.76
Enquanto juristas, assim, não se pode alçar a qualquer função política ou querer ser o juiz da lei ou do legislador, mas apenas aplicar a lei, restando-lhe difundir
e provocar discussões acerca do tema a fim de provocar reflexões críticas em todos,
especialmente os legisladores, os únicos que podem alterar determinado quadro
pronto e acabado em uma lei, por outra ou pela reforma desta.
Daí a insistência deste trabalho aos debates em torno das carências do Projeto, e, na esteira do defendido no presente apartado, à alteração que insira o real alcance da estrita legalidade tributária.
7.
CONCLUSÕES
Conclusão primeira deve ser aquela a registrar que a pessoa humana é, sem
dúvida alguma, o baluarte de cada Estado soberano, conforme o sentimento que se
observa desde o final da Segunda Guerra Mundial, quando ínfimos valores humanos
desrespeitados, desprotegidos, chegando-se à falência mundial, cujas seqüelas são
sentidas até hoje.
Por segundo, registre-se o dever de cada um de nós e todos juntos, de refutar
quaisquer iniciativas, legislativas ou não, tendentes a abolir a preocupação com a
pessoa humana, no sentido mais amplo da expressão.
75 Ibid., p. 48
76 Ibid., p. 49 (na mesma página: A distinção entre justiça distributiva e comutativa, de Aristóteles da idéia de diferença entre as perspectivas do legislador e do aplicador, mostrando que o primeiro trabalha com o conceito
puro de justiça e o segundo só com o conceito formal.)
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
265
Por terceiro, que antecipadamente a qualquer análise crítica do Projeto de Lei nº
646, de 25 de novembro de 1999, chamado Código de Defesa do Contribuinte por seu
idealizador e autor, Senador Jorge Bornhausen, deve-se aplaudir a iniciativa que significa,
na realidade mundial, comprometimento com a colocação da pessoa humana no centro
das discussões mais variadas.
No que se refere à preocupação brasileira em torno dos direitos humanos, iniciada tardiamente em relação à tendência mundial inaugurada já com o fim da Segunda
Guerra Mundial, tem-se que é satisfatória diante da força trazida no bojo de cada uma das
conquistas, notadamente legislativas, em que pese transpareça-se demasiado paulatina,
se verificado o número de legislações nacionais implementadas e de tratados internacionais ratificados. Todavia, desde a Constituição Federal de 1988, conquistas de peso se verificaram, suplantando o número de legislações, a qualidade de cada uma delas.
A própria Constituição da Republica Federativa do Brasil, promulgada em 1988 e
publicada no Diário Oficial da União nº 191-A, de 5 de outubro de 1988, revela esta realidade de qualidade normativa em torno da pessoa humana, considerada seu centro vital. Desde o seu Preâmbulo pode-se ler aludida beleza: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República federativa do Brasil.
Também o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do
Adolescente a revelam, além dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil e
muitas normas de importância ímpar, a exemplo do Decreto nº 4.463, de 08 de novembro próximo passado, publicado no Diário Oficial da União no dia 11 de novembro de 2002, consistente na Declaração de Reconhecimento da Competência Obrigatória da Corte Interamericana de DireitosHumanos77.
77 O Presidente da República, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e Considerando que pelo Decreto n 678, de 6 de novembro de 1992, foi promulgada a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de São José), de 22 de novembro de 1969; Considerando que o Congresso Nacional aprovou, pelo
Decreto Legislativo no 89, de 3 de dezembro de 1998, solicitação de reconhecimento da competência obrigatória da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção, de acordo com o previsto no art. 62 daquele instrumento; Considerando que a Declaração de aceitação da
competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos foi depositada junto à Secretaria-Geral da
Organização dos Estados Americanos em 10 de dezembro de 1998, DECRETA: Art. 1o É reconhecida como obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em
todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São
José), de 22 de novembro de 1969, de acordo com art. 62 da citada Convenção, sob reserva de reciprocidade e para
fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998. Art. 2o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação. Brasília,
8 de novembro de 2002; 181º da Independência e 114º da República. Fernando Henrique Cardoso, Celso Lafer.
266
faculdade de direito de bauru
Por quarto, que, de um modo geral, o Projeto apresenta pontos positivos e negativos, sendo este o momento ideal aos debates mais profundos, tendo em vista
não consistir em lei vigente, mas projeto que tramita nas Casas Legislativas, onde os
representantes imediatos dos cidadãos brasileiros - aqui considerada não a técnica
constitucional que diferencia os Deputados Federais dos Senadores Federais enquanto representantes do povo e dos Estados-membros, respectivamente, todavia a
realidade da federação brasileira, onde Deputados e Senadores, rotineiramente, acabam realizando tarefas similares, sendo certo que se pode visualizar um Senador,
como in casu, velando pelos cidadãos brasileiros e não pelo Estado-membro pelo
qual foi eleito para ser representante no Congresso Nacional – devem estar sensíveis às reais necessidades destes, ouvindo as diversas vozes pelas bastantes vias que
os possam alcançar, desde os estudos acadêmicos, as realidades e carências escancaradas no seio social, até as pesquisas científicas, como a presente.
Antes da quinta conclusão, reafirme-se que, neste trabalho, a análise do Projeto telado se deu em torno da estrita legalidade da lei tributária quanto à forma, todavia a partir de uma base: a proteção da pessoa humana.
Assim, por quinto, aplaudam-se as prescrições do Projeto em estudo, direta
ou indiretamente ligadas à tipicidade tributária, por solucionadoras das antigas e infindáveis divergências legais, doutrinárias e jurisprudenciais, decorrentes dos desmandos dos passantes pelas funções do Poder, tanto Legislativa como Executiva e
Judiciária, que não observam o conteúdo mínimo imprescindível às normas tributárias, de sorte a não antecipar e esclarecer ao cidadão-contribuinte todas as características do tributo instituído ou majorado, deixando de formar os tipos tributários,
tal qual ocorre no Direito Penal, com os tipos penais, que servem à não-surpresa, à
segurança jurídica, à transparência,...
Por sexto, a estrita legalidade tributária merece aplausos em nenhum dos seus
viéses. As letras do Projeto não resolveram o ponto falho do princípio da anterioridade
que possibilita um conhecimento meramente ficto pelo contribuinte do tributo a ser
exigido, ou seja, um conhecimento com tal brevidade que não lhe permite preparar o
patrimônio para o momento da exigibilidade do tributo, que se dá em tempo demasiado exíguo, ferindo, sim, direitos da pessoa humana, além de princípios como a não-surpresa,... De outra parte, com o artigo 5º resolveu problemas antigos, cuja causa é o silêncio da Constituição Federal sobre a inclusão no princípio da anterioridade do modo
pelo qual o pagamento do tributo deverá ser realizado, já que este implica, sem dúvida
alguma, em aumento do valor do tributo, e, pois, majoração indireta, afigurando-se imprescindível esta norma a construir a anterioridade constitucional, deixando nenhuma
brecha a interpretações desvinculadas da preocupação com o ser humano. Além disso,
quanto à anterioridade, o Projeto em exame olvidou questões outras que tomam pauta nos tribunais, provocadoras de insegurança aos cidadãos-contribuintes.
Afinal, não renderá resultado o Projeto telado com referência à estrita legalidade quanto à forma nos moldes observados.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
267
Ora, da nova visão do cidadão-contribuinte pelo Poder Público decorre a necessidade deste se mostrar confiável e transparente aos cidadãos-contribuintes, a
fim de que se comprometam a financiar o Estado, não como um ônus, mas como
uma das tarefas que compõem a plena cidadania, fim que não será atingido diante
dos problemas com a legalidade tributária quanto à forma e a não solução no Projeto, que neste ponto se revela demasiado insuficiente, não resolvendo a questão sobre qual processo legislativo elencado no artigo 59 da Carta Maior pode criar ou majorar tributos.
Afinal, o Projeto se limita a esclarecer apenas o conteúdo imprescindível às
leis que se dispuserem a criar ou aumentar tributos, vale dizer, a tipicidade tributária, não definindo em meio aos seus artigos qual ou quais as espécies legislativas imprescindíveis à cidadania tributária. O Senador projetista limitou-se, neste passo, a
se posicionar sobre o real alcance da legalidade tributária somente na Exposição de
Motivos, não incluindo artigo sobre o tema.
Sua posição, não se desmereça, é no sentido da doutrina de melhor nomeada, com a qual se concorda, no sentido de que apenas as leis stricto sensu podem
instituir ou aumentar tributos, com olhos à segurança jurídica e à não-surpresa aos
cidadãos-contribuintes.
Especialmente quanto às medidas provisórias, tem-se que deve ser veementemente refutada sua utilização na criação ou aumento de tributos. Ora, viu-se que se
trata de instituto eivado de imperfeições históricas desde sua importação ao sistema brasileiro, tendo sofrido, ainda, distorções que beneficiaram somente o Poder
Público e os desatinos dos que por ele passam. Contam, ainda, com características
institucionais que as afastam das matérias imediatamente ligadas aos direitos humanos, além de aos princípios constitucionais, como são exemplos notórios as penais
e tributárias.
Com a mera elucidação da sua posição na Exposição de Motivos, o Legislador
projetista conseguiu apenas se desviar do seu escopo, da redefinição de valores entre Fisco e cidadão-contribuinte, valorizando-se e respeitando-se este simplesmente
como pessoa humana.
Por sétimo, o Senador projetista limitou-se a registrar o seu entendimento,
tão-somente, o qual não resolve os problemas dos cidadãos-contribuintes se não colocado na lei, pois somente esta leva a vontade do Estado, que vincula a todos.
Daí a sugestão desta subscritora, no sentido de inclusão do real alcance da
estrita legalidade tributária no Capítulo II do Projeto, talvez até em artigo inaugural, de forma a eliminar esta realidade tão injusta aos cidadãos-contribuintes, esclarecendo-se que exclusivamente as leis stricto sensu podem instituir ou majorar tributos. E isto, não se olvide, mesmo depois da Emenda Constitucional nº 32,
de 11 de setembro de 2001, que previu um terror aos cidadãos-contribuintes –
talvez comum a esta data, 21 de setembro de 2001! –, autorizando o Poder Executivo a veicular matéria tributária através de medida provisória. Melhor dizendo,
268
faculdade de direito de bauru
permitiu expressamente ao Poder Executivo, a utilização das medidas provisórias
na criação e majoração de tributos.
Pois se insiste na impossibilidade de medidas provisórias cuidando de matérias tributárias, mesmo diante da permissão constitucional, incluída pela Emenda nº
32/2001, tendo em vista ser esta inconstitucional, em diversos pontos.
Por oitavo, diante da ineficácia que deverá pairar em torno das inconstitucionais letras da Emenda em tela, tem-se imprescindível a inclusão no seio do Projeto
do Código de Defesa do Contribuinte, de norma tão importante para a transparência, a segurança jurídica, a não-surpresa, a igualdade,...
Atente-se, a propósito, que a carência desta norma, bem como do tratamento
dos princípios definidos como os formadores da justiça tributária, verificado no projeto, têm o poder de fazer vazias todas as vantagens em relação, por exemplo, aos
direitos dos cidadãos-contribuintes, consultas em matéria tributária, deveres da Administração Fazendária e defesa do contribuinte, pontos cuidados no projeto, pois
que comprometem a criação ou majoração do tributo desde o seu nascedouro, desvinculando-se de princípios que são fundamentos do Sistema Constitucional Tributário, de forma a contaminar todos os passos seguintes.
Não é isto de que declarou pretender com o Código projetado, o Senador Jorge Bornhausen, mas o alcance do bem maior à pessoa humana, da cidadania fiscal.
Não se olvide que todos os pontos insatisfatórios do Projeto, acima assinalados, podem se convalescer, pois que se trata não de lei vigente, mas de projeto de
lei em trâmite no Congresso Nacional. Vale dizer, encontra-se em momento apropriado aos mais variados debates que levem ao aperfeiçoamento das letras projetadas, num sentido de alcançar a mais efetiva proteção da pessoa humana, nos termos
deste trabalho. Somente assim é que realizará, o Senador Jorge Bornhausen, o fim
ao que se comprometeu.
De todos os pontos insatisfatórios, porém, tenha-se em mente que a não inclusão no Projeto do real alcance da estrita legalidade tributária quanto à forma e
dos viéses dos princípios da justiça tributária, nos graves pontos não solucionados,
faz mortas todas as suas letras, como asseverado, pois se perde o passo inicial de
complementar a definição dos princípios constitucionais vinculados à segurança jurídica, de construir a cidadania tributária.
Assim, concluindo-se pelas vitais alterações no Projeto do Código de Defesa
do Contribuinte, inábeis a extrair sua essência, mas sem dúvida alguma, de ímpar relevo jurídico na proteção da pessoa humana, espera-se continuem os debates em
torno do Projeto, afastando-se as falhas normativas que, após aprovadas, ficam limitadas a uma lei que não pegou, ou seja, a uma lei meramente vigente.
Por nono, os contribuintes brasileiros já têm esta lei vigente e ineficaz e,
realce-se: trata-se da Constituição Federal, cujas belas letras não são observadas,
há tempos, pelos passantes do Poder. Ora, se não se conseguir uma construção
efetiva das letras daquela, apenas repetindo-as em legislação infraconstitucional,
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
269
nada se estará conquistando, senão mais uma lei ao cipoal brasileiro, notável
pela inflação legislativa.
Não é isto o que necessitam os contribuintes, mas tornar-se cidadãos-contribuintes, respeitados primeiramente como seres humanos.
Por décimo, concluído o objeto deste trabalho, acrescente-se que as discussões em torno do real alcance da estrita legalidade formal não param nos processos
legislativos do artigo 59 da Carta Maior, já que transcendem os limites territoriais
brasileiros, extrapolando suas fronteiras para atingir o processo de integração mundial e colocar questões como a possibilidade de um Estado federal criar ou majorar
tributos através de tratado internacional; ou, tratados internacionais instituírem
isenções tributárias de tributos vigentes no território brasileiro, das competências
da União, dos Estados-membros e dos Municípios78,...
Vê-se que são questões que envolvem desde a soberania nacional até a forma
de estado e outras peculiaridades internas, que imprescindem de adequação no
processo de integração, cujo caminho é só de ída, ou seja, ou dele se faz coadjuvante ou se está condenado à exclusão mundial que implica nas mais variadas e graves
conseqüências, que atingem, imediatamente ressalte-se, a pessoa humana!
Do exposto, ponto finalize-se, repisando a bela oportunidade de resolver pontos insatisfatórios de um projeto de lei em trâmite no Congresso Nacional, e acentue-se, com toda força, a preciosidade que é a colocação da pessoa humana no centro de todas as discussões jurídicas - não só legislativas -, pois leva ao fim dos desmandos e desatinos dos passantes pelo Poder Público, como os anunciados neste
estudo.
Somente assim é que se conseguirá vislumbrar o Estado pensado na República:... longe de ser o senhor dos cidadãos, é o protetor supremo de seus interesses
materiais e morais. Sua existência não representa um risco para as pessoas, mas
um verdadeiro penhor de suas liberdades79.
Daí a importância de o legislador fazer compor o texto daquele Código, também o
real e exato alcance do princípio da legalidade tributária, pois que a exposição de motivos não obriga o legislador pátrio a respeitar a legalidade tributária em seus exatos e incontestes termos, uma vez que não o vincula dirigindo-se a ele como lei - norte a seguir
-, de forma que permitirá continue a distorcer princípios, às escâncaras, incorrendo na
gravidade alertada por Geraldo Ataliba - citado por Ichihara -80 ao asseverar que o desrespeito a um princípio pode significar o desligamento de todo um sistema.
78 Sobre esta questão, confiram-se incursões desta subscritora in GIACOVONI, Josiane; Isenções Tributárias no
Mercosul. In: X ENCONTRO INTERNACIONAL DE DIREITO DA AMÉRICA DO SUL, IV CONGRESSO EURO-LATINOAMERICANO SOBRE INTEGRAÇÃO E IX ENCONTRO DE ESTUDANTES DE DIREITO DO MERCOSUL, 2001, Florianópolis, Anais... Florianópolis: Fundação Boiteux Editora, 2001. ps. 347-350.
79 CARRAZZA, op. cit., p. 48
80 Apud, Ibid., p. 70.
faculdade de direito de bauru
270
Por décimo primeiro, que, dentre os direitos humanos, que se colocam como
um dos principais objetos de preocupação das relações internacionais, está, indubitavelmente, a garantia dos cidadãos à submissão plena e eficaz do Poder Público ao
princípio da legalidade.
Ponto finalize-se o presente estudo, então, repetindo singelo e sufocado pedido de inclusão desta limitação do alcance do princípio da legalidade tributária no
texto daquele Código, calando os muitos dizeres que levam ao desrespeito deste direito humano, imprescindível num Estado de Direito.
Somente assim é que se construirá o princípio da legalidade tributária em
conformidade com os ideais democráticos e a integração entre os povos, de
sorte a conferir o significado ideal ao significante prescrito na Constituição da
República Federativa do Brasil, em busca da dignidade da vida humana, sem
qualquer ressalva.
8.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES Júnior, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional.
São Paulo: Saraiva, 1998.
ATALIBA, Geraldo. O Decreto-Lei na Conscituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1967.
______. Apontamentos de Ciência das Finanças Direito Financeiro e Tributário. São Paulo:
Revista do Tribunais, 1969.
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário. 11 ed. atual. por Mizabel Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF,
1988.
BRASIL. Projeto de Lei Complementar do Senado Federal nº 686, de 25 de novembro de
1999. Dispõe sobre os direitos e as garantias do contribuinte e dá outras providências. Código de Defesa do Contribuinte. Brasília, DF, 1999.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor
e dá outras providências. Código de Defesa do Consumidor. Brasília, DF, 1990, Diário Oficial, 12 de setembro de 1990, suplemento.
CARRAZZA, Roque Antonio; Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros, 2001.
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988 – Sistema Tributário. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
271
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Public Law 104-168, de 30 de julho de 1996. Declaração
de Direitos do Contribuinte II (Taxpayer Bill of Rights II). Altera o Código de Rendas Internas de 1986 (To amend the Internal Revenue Code of 1986 to provide for increased taxpayer protection). House Reports, n. 104-506, Congressional Record, v. 142, Weekly Compilation of Presidential Documents, v. 32, [Washington], EUA, 1996.
ESPANHA. Ley de Derechos y garantias de los Contribuyebtes, LDGC, nº 1/1998, de 26 de fevereiro de 1998. Regula os direitos e garantias básicas dos contribuintes em suas relações
com as Administrações tributárias.
FERREIRA, Pinto; Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
GIACOVONI, Josiane de Campos Silva; Isenções Tributárias no Mercosul. In: X ENCONTRO
INTERNACIONAL DE DIREITO DA AMÉRICA DO SUL, IV CONGRESSO EURO-LATINO-AMERICANO SOBRE INTEGRAÇÃO E IX ENCONTRO DE ESTUDANTES DE DIREITO DO MERCOSUL, 2001, Anais... Florianópolis: Fundação Boiteux, 2001
ICHIHARA, Yoshiaki; Princípios da Legalidade Tributária na Constituição de 1988. São
Paulo: Atlas, 1994.
MULLER, Mary Stela; CORNELSEN, Julce Mary; Normas e Padrões para Teses, Dissertações e
Monografias. 3.ed. Londrina: UEL, 2001.
PIMENTEL, Luiz Otávio (Org.); Direito da Integração e Relações Internacionais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2001.
RIBEIRO, Maria de Fátima; Direitos humanos e tributação: um enfoque sobre o Mercosul
com ênfase ao sistema tributário brasileiro. In: XX JORNADAS DO INSTITUTO LATINOAMERICANO DE DERECHO TRIBUTÁRIO, 2000, Anais... Salvador: [s.n], 2000.
SILVA, José Afonso da; Direito Constitucional Positivo. 19.ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
Descaminho.
Pagamento posterior do tributo.
Extinção da punibilidade.
Analogia in bonan partem de norma penal especial
Roberto Luis Luchi Demo
Procurador Federal.
Especialista em Direito Penal.
Procurador-Chefe do Contencioso Judicial da
Procuradoria Federal Especializada – INSS – Curitiba/PR.
1.
PROLEGÔMENOS
Nota-se que juízes de 1º grau, particularmente, são useiros e vezeiros em endossar a tese de que o pagamento posterior do tributo extingue a punibilidade no
crime de descaminho [art. 386, V, CPP]. E o fazem com baluarte em parecer favorável do membro do Ministério Público oficiante naquele juízo. Pelo andar do andor,
essa hermenêutica não é a causa do crime mencionado, mas certamente um dos fatores [outro é, sem dúvida, a carga tributária brasileira, uma das mais pesadas do
mundo]. É preciso, então, estadear o direito aplicável, de modo a atuar a correta
hermenêutica como vacina: funcionando, estimula-se seu uso, de modo que, a contrario sensu, não ‘emplacando’ mais a tese do pagamento posterior, desestimularse-á a prática desse crime, de consequências drásticas ao Erário brasileiro.
A segurança pública e o combate à criminalidade estão na ordem do dia no
Brasil, um dos países considerados mais violentos dentre os que estão em desenvolvimento. Essa circunstância, que não pode ser abstraída, rende extremo ensejo à revisita da questão, de forma crítica.
faculdade de direito de bauru
274
Não foi, portanto, alguma das nove musas, filhas de Zeus, quem me inspirou a renunciar ao ‘direito de Minerva’ e versar o tema. Antes, a angústia, enquanto cidadão, sobre esse estado de coisas, bem assim a percepção de que a doutrina sensibiliza com mais
veemência os juízes de 1º grau, em relação aos desembargadores dos tribunais. Não temos música. Temos um ensaio jurídico [neutro: não se trata de causa própria], que trilha
por alguns pontos propedêuticos relacionados ao descaminho e à analogia, sucessão legislativa pertinente, âmbito de normatividade da lei penal especial e conclusão.
2.
DESCAMINHO
Contrabando e descaminho são crimes praticados por particulares contra a
Administração em geral. Estão previstos no art. 334, CP. Contrabando é importar ou
exportar mercadoria proibida; descaminho é iludir, no todo ou em parte, o pagamento de imposto devido pelo entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.
São crimes distintos. Ressalto, porém, que ‘o fato de o acusado ter ingressado em
território nacional com bens de importação proibida (contrabando) e outros sem o
pagamento de tributos (descaminho), configura apenas um crime (CP, art. 334, caput) e não dois em concurso material ou formal.’ [TRF4, ACRIM 97.04.46788-5, VLADIMIR FREITAS, 1ª T, DJ 14.7.99], por isso que o tipo penal é de conteúdo variado, regendo a espécie o princípio da alternatividade. O objeto jurídico tutelado é a
Administração Pública, em especial o controle da entrada e saída de mercadorias do
país e o interesse da Fazenda Nacional.
Quanto ao princípio da insignificância, aplica-se ao crime de descaminho,
quando o tributo a ser recolhido for menor que R$ 2.500,00, por força do art. 20, Lei
10.522/02 [famosa Lei do CADIN – Cadastro Informativo dos créditos não quitados
de órgãos e entidades federais e dá outras providências]:
‘Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, os autos das
execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União
pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 2.500,00 (dois mil
e quinhentos reais).’
Ressalto que a Portaria n.º 4.910/99, do Ministério da Previdência e Assistência Social, ao fixar o valor de R$ 5.000,00 [cinco mil reais] para contribuições previdenciárias serem dispensadas de ajuizamento da ação de execução, não se aplica
ao crime de descaminho, na perspectiva do princípio da insignificância, em virtude
de que é norma restrita às contribuições sociais, não açambarcando impostos, ambos espécies distintas do gênero tributo.
Aqui, menciono en passant a pena de perdimento, prevista no Regulamento
Aduaneiro. E menciono porque tem aplicação subsidiária: quando não houver
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
275
condenação na esfera penal [art. 91, II, ‘b’, CP]. As mercadorias internadas fraudulentamente estão sujeitas à apreeensão e à pena de perdimento: ‘A pena de perdimento de bens aplicada em procedimento administrativo fiscal, prevista no DL nº
1455/76, não incide em inconstitucionalidade à vista do disposto no art. 5º, inc. LIV,
da CF/88.’ [TRF4, AC 97.04.61372-5, JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, 6ª T, DJ 27.9.00].
Outrossim e na esteira de que a pena de perdimento da mercadoria importada fraudulentamente reveste-se de caráter sancionatório, não precisa guardar proporcionalidade com o tributo suprimido, até porque ‘A sanção administrativa do perdimento
de bens apreendidos, de procedência estrangeira, não se equipara ao pagamento do
tributo devido’ [STJ, RESP 164.492, JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, 5ª T, DJ 1.3.99].
Nessa toada, não se aplica a essa sanção administrativa o princípio da insignificância.
Mas, ‘A jurisprudência, ao aplicar, já de longa data, o artigo 137, inciso I, do
CTN, assentou de forma pacífica que não se decreta a perda de bens contendo mercadorias descaminhadas, em se verificando a falta de participação do proprietário do
veículo, e a desproporção entre o valor das mercadorias e o valor do veículo’ [TRF4,
AC 1998.04.01.061666-7, MARCO ANTONIO ROCHA, 2ª T, DJ 4.4.01]. Impende ressaltar, também, que a pena de perdimento pode ser imposta a terceiro, que não o
importador, como ocorreu nos notórios casos de veículos usados importados [vide
TRF4, AMS 2000.71.00.012608-5, DIRCEU DE ALMEIDA SOARES, 2ª T, J 1.4.03]. Por
fim, eventual pagamento posterior de tributo não elide a pena de perdimento de
bens [Súmula 560/STF].
3.
ANALOGIA
O Direito, por definição, não se esgota na forma legislada, por isso que o art.
126, CPC estabelece que ‘o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando
lacuna ou obscuridade da lei’. Para colmatar as lacunas do ordenamento jurídico
posto, opera certamente a analogia, forma de auto-integração do ordenamento jurídico, prevista no art. 4º, LICC.
A analogia consiste num raciocínio lógico-valorativo que permite aplicar a
uma hipótese não regulada por lei, a lei de um caso semelhante. Fundamento: ubi
eadem ratio, ibi eadem jus, i.e., tratamento igual para casos similares. Exemplo: a
exclusão da pena no aborto em gravidez decorrente de atentado violento ao pudor,
por analogia ao art. 128, II, CP [aborto em gravidez decorrente de estupro].
A semelhança condicionante da analogia é a essencial, i.e., de natureza ontológica e determinante para a valoração jurídica. Não cabe analogia para a semelhança meramente formal [como a de ordem topológica ou a pertinência a um mesmo gênero], cuja tentação nos vem da Escolástica e do Tomismo. Assim, porque a
analogia não se presta a inovações no sistema normativo existente, mas à integração
do ordenamento jurídico, com vistas a colmatar lacunas [reais, não aquelas aparentes]. Portanto, ‘só podem ser supridas as lacunas legais involuntárias; onde uma re-
faculdade de direito de bauru
276
gra legal tenha caráter definitivo, não há lugar para a analogia, ou seja, não há possibilidade de sua aplicação contra legem’ [JULIO FABBRINI MIRABETE, ‘Manual de
Direito Penal’, São Paulo: Atlas, 1996, v. I, p. 47].
Diferença da analogia com a interpretação extensiva: nesta, existe norma, mas
a norma não menciona expressamente essa eficácia: lex dixit minus quam voluit.
Exs: o art. 235, CP, que se refere não apenas à bigamia, mas também à poligamia e
o art. 260, CP, que envolve além do serviço ferroviário, o serviço de metrô. Diferença com a interpretação analógica [intra legem]: nesta, a norma reguladora é genérica, açambarcando os casos semelhantes por determinação expressa da norma. Exs:
‘outro recurso análogo à traição, emboscada, dissimulação’ – art. 61, II, c, CP, ‘substâncias de efeitos análogos ao álcool’ – art. 28, II, CP.
3.1. Analogia in malam partem
Trata-se da analogia em prejuízo do réu. Sofre restrições: não se aplica a analogia
à norma que define o injusto e estabelece a sanção, tendo em vista o princípio da tipicidade/taxatividade/legalidade [art. 1º, CP e art. 5º, XXXIX, CF]. Cada figura típica é uma
ilha no mar de licitude e todo o sistema punitivo é um arquipélago de ilicitudes: tradução do princípio da intervenção mínima e do caráter fragmentário do Direito Penal.
3.2. Analogia in bonam partem
Trata-se da analogia em favor do réu, com fundamento no princípio da equidade. É pacífica a aplicação da analogia às normas penais não-incriminadoras [excludentes, exculpantes, atenuantes, etc.] gerais. Noutra toada, se a norma não-incriminadora
for excepcional, isto é, especial, não se aplica a analogia: a norma excepcional encontra seu campo de incidência normativamente limitado. Nesse sentido:
‘Não obstante, interessante questão vem à tona quando se trata de
norma penal não-incriminadora excepcional. É de notar, primeiramente, que a seara em epígrafe versa sobre direito excepcional,
que deve ser interpretado restritivamente e ao qual se associa a
proibição do recurso analógico: singularia non sunt extenda. O dispositivo excepcional por estar previsto contra tenorem rationis não
é passível de ampliação por analogia’ [LUIZ REGIS PRADO, ‘Curso
de Direito Penal brasileiro. Parte geral’, São Paulo: RT, 1999, p. 99]
4.
EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELO PAGAMENTO POSTERIOR DO
TRIBUTO. SUCESSÃO LEGISLATIVA
Lei 4.729/65, que definia os crimes de sonegação fiscal:
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
277
‘Art 2º Extingue-se a punibilidade dos crimes previstos nesta Lei
quando o agente promover o recolhimento do tributo devido, antes de ter início, na esfera administrativa, a ação fiscal própria.’
[revogado pela Lei 8.383/91]
Decreto-lei 157/67, que facilitava o pagamento de débitos fiscais:
‘Art. 18. Nos casos de que trata a Lei nº 4.729, de 14 de julho de
1965, também se extinguirá a punibilidade dos crimes nela previstos se, mesmo iniciada a ação fiscal, o agente promover o recolhimento dos tributos e multas devidos, de acôrdo com as disposições
do Decreto-lei nº 62, de 21 de novembro de 1966, ou deste Decretolei, ou, não estando julgado o respectivo processo depositar, nos
prazos fixados, na repartição competente, em dinheiro ou em
Obrigações Reajustáveis do Tesouro, as importâncias nele consideradas devidas, para liquidação do débito após o julgamento da
autoridade da primeira instância.
§ 1º [...]
§ 2º Extingue-se a punibilidade quando a imputação penal, de natureza diversa da Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, decorra de
ter o agente elidido o pagamento de tributo, desde que ainda não
tenha sido iniciada a ação penal se o montante do tributo e multas for pago ou depositado na forma deste artigo.’ [revogado pela
Lei 8.383/91]
Decreto-lei 1.650/78, que restringia a aplicação do artigo 2º da Lei nº 4.729, de
14 de julho de 1965, e do artigo 18, parágrafo único, do Decreto-lei nº 157, de 10 de
fevereiro de 1967:
‘Art 1º - O disposto no artigo 2º da Lei nº 4.729, de 14 de julho de
1965, e no artigo 18, parágrafo único, do Decreto-lei nº 157, de 10
de fevereiro de 1967, não se aplica aos crimes de contrabando ou
descaminho, em suas modalidades próprias ou equiparadas, nos
termos dos parágrafos 1º e 2º do artigo 334 do Código Penal.’
Em virtude da suposta inconstitucionalidade formal desse Decreto-lei [que
chegou a ser reconhecida pelo ex-TFR em controle difuso, mas não pelo STF], foi
editada a Lei 6.910/81:
‘Art 1º - O disposto no art. 2º da Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965,
e no art. 18, § 2º, do Decreto-lei nº 157, de 10 de fevereiro de 1967,
278
faculdade de direito de bauru
não se aplica aos crimes de contrabando ou descaminho, em suas
modalidades próprias ou equiparadas nos termos dos §§ 1º e 2º do
art. 334 do Código Penal.
Art 2º - É revogado o Decreto-lei nº 1.650, de 19 de dezembro de
1978.’
Lei 8.137/90, que define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra
as relações de consumo:
‘Art. 14. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos nos arts. 1o
a 3o quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia’ [revogado pela Lei 8.383/91]
Lei 9.249/95, que altera a legislação do imposto de renda das pessoas jurídicas, bem como da contribuição social sobre o lucro líquido:
‘Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº
8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho
de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou
contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da
denúncia.’
5.
ÂMBITO DE INCIDÊNCIA DAS NORMAS NA PERSPECTIVA DO DESCAMINHO
Justifico, inicialmente, a restrição do estudo ao descaminho [o que já deve
ter sido atentado], não açambarcando o contrabando. É que entendo as normas susomencionadas não terem pertinência com o contrabando, cujo bem jurídico tutelado mediatamente é a segurança, a economia e a indústria do Estado. A pertinência só está com o descaminho, porquanto o bem tutelado é a integridade do Erário.
O pagamento superveniente de tributo relativo ao crime de descaminho não
implicava a extinção da punibilidade antes do DL 157/67, até porque o art. 2º, Lei
4.729/65 era restrito aos crimes de sonegação fiscal, como expressamente determinava [e assim seria ainda que não houvesse explicitado, por isso que norma excepcional].
A partir do DL 157/67 e por expressa disposição de seu art. 18, § 2º, o pagamento superveniente do tributo antes do recebimento da denúncia implicava a extinção da punibilidade ao contrabando e ao descaminho, consoante Súmula
560/STF: ‘A extinção de punibilidade, pelo pagamento do tributo devido, estende-se
ao crime de contrabando ou descaminho, por força do art. 18, § 2º, DL 157/67’. E
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
279
aqui registro que para haver, como houve, repercussão do pagamento do tributo
[referente à instância administrativa] na instância penal, com a extinção da punibilidade, é preciso disposição expressa nesse sentido, já que a regra é a independência das instâncias penal e administrativa [TRF4, HC 2002.04.01.034583-5, JOSÉ LUIZ
B. GERMANO, 7ª T, DJ 9.10.02]. Gizo que o art. 18, § 2º, DL 157/67 retroagiu, porque mais benéfica ao réu.
Com o Decreto-lei 1.650/78 que, na orientação jurisprudencial prevalente, era
inconstitucional e, mais precisamente, a partir da Lei 6.910/81, ficou revogada essa
norma de extensão, retornando a norma de extinção da punibilidade ao seu âmbito
de eficácia natural, sendo que, a partir de então, o pagamento superveniente do tributo já não extingue a punibilidade do descaminho, podendo servir como circunstância atenuante [art. 65, III, b, CP].
O art. 34, Lei 9.249/95 em nada alterou esse panorama, porquanto tem sua
eficácia restrita, por expressa disposição legal, aos crimes contra a ordem tributária
e de sonegação fiscal. Essa a mens legis e a mens legislatoris. E onde há norma expressa, essa prevalece sobre a norma implícita, a não ser que seja contrária ao Direito. Não é o caso, máxime quando se tem em conta um ordenamento jurídico norteado pelo comunitarismo aristotélico [em contrapartida à tradição liberal individualista].
Não pode o juiz, desse modo, tomar liberdades com a lei, julgando contra legem ao fundamento de analogia [por mais tópico que seja o raciocínio analógico,
como sói acontecer: vide LUIZ REGIS PRADO, in ‘Argumento analógico em matéria
penal’, RT 734/544], cumprindo lembrar que o Poder Judiciário só pode atuar como
legislador negativo, não porém como legislador positivo. Entender que o pagamento posterior extingue a punibilidade no crime de descaminho é revogar a Lei
6.910/81 por meio de interpretação [mais precisamente, integração], o que ordenamento jurídico não permite: somente lei posterior pode revogar lei [art. 2º, caput,
LICC]. Daí porque a teoria social da ação [WESSELS] não vinga.
Afora isso, o Direito, como fato cultural, é fenômeno histórico-social, superado que está o tecnicismo jurídico, próprio da Escola da Exegese. Nessa toada, as normas jurídicas devem ser interpretadas consoante o significado dos acontecimentos,
que, por sua vez, constituem a causa da relação jurídica. E não podem esses acontecimentos serem valorados artificialmente, de maneira a criar semelhanças ontológicas artificiais para supedanear uma igualdade jurídica [inexistente], pressuposto da
analogia.
Um exemplo já clássico pode ajudar a compreensão [ou o conformismo] sobre o tema. Trata-se do estelionato: o ressarcimento do prejuízo antes do recebimento da denúncia não exclui o crime de estelionato tipificado no caput do art. 171
do CP, apenas influindo na fixação da pena. A Súmula 554/STF [‘O pagamento de
cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal’] só é aplicada quando o estelionato for prati-
faculdade de direito de bauru
280
cado na emissão de cheque sem fundos, previsto no art. 171, § 2º, VI, CPP. Nesse
sentido: STJ, HC 22.666, FERNANDO GONÇALVES, 6ª T, DJ 4.11.02.
A jurisprudência majoritária [aqui registro que a competência para processar e julgar o crime de descaminho é da Justiça Federal: STJ, CC 1078, WILLIAM PATTERSON, 3ª SEÇÃO, DJ 7.5.90] segue na esteira da tese aduzida.
Tribunal Regional Federal da 1ª Região:
‘Não se enquadra nos benefícios do disposto no art. 34 da Lei nº
9.249/95, o crime de descaminho’ [TRF1, AMS 199801000928543,
HILTON QUEIROZ, 4ª T, DJ 27.10.00]
‘A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo antes do
recebimento da denúncia não se aplica ao crime de descaminho
(art. 1º da Lei 6.910/81)’ [TRF1, RCCR 199801000099954, OSMAR
TOGNOLO, 3ª T, DJ 29.9.98]
Tribunal Regional Federal da 3ª Região:
‘Não há se falar na possibilidade da aplicação analógica in bonam partem do disposto no artigo 34 da Lei nº 9.249/95 - referente
à causa extintiva da punibilidade -, ao crime de descaminho, tendo em vista a incompatibilidade entre a natureza deste e dos delitos tidos como fiscais, considerando que o objeto jurídico do crime
de descaminho é de maior extensão, abrangendo não só os interesses da Fazenda Nacional em ver o tributo recolhido, mas também
em proteger a integridade do regime de importação/exportação, a
indústria e o mercado nacional.’ [TRF3, HC 20010300036413-9, SUZANA CAMARGO, 5ª T, DJ 8.10.02]
‘A doutrina e a jurisprudência de nossos Tribunais têm se posicionado pela inaplicabilidade do artigo 34 da Lei 9249/95 ao crime de
descaminho.’ [TRF3, RCCR 97030232094, RAMZA TARTUCE, 5ª T, DJ
17.9.02]
‘2 - O objeto jurídico do descaminho é, fundamentalmente, a tutela do interesse arrecadador do Estado e, secundariamente, a tutela da indústria nacional, a moralidade e a saúde pública. 3 Considerando que a objetividade jurídica do crime de descaminho é mais abrangente que o objeto jurídico dos crimes de natureza fiscal, impõe-se reconhecer a inadmissibilidade da aplicação da analogia in bonan partem ao caso vertente. 4 - O crime
de descaminho não se subsume ao comando normativo insculpido no artigo 34 da lei n.9249/85.’ [TRF3, RCCR 96030848131, ARICE
AMARAL, 2ª T, DJ 14.10.98]
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
281
Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
‘1. Mantém-se a decisão que indeferiu o pedido de ofício à Receita Federal para informar sobre eventual pagamento dos tributos incidentes, pois, no delito de descaminho, tal pagamento
não tem o condão de extinguir a punibilidade do agente, mostrando-se imprópria a analogia com o benefício previsto no
ART-34 da LEI-9249/95, eis que este é dirigido tão-somente aos crimes contra a ordem tributária. 2. a lei-6910/81 revogou o PAR-2 do
ART-18 do DEL-157/67 e cancelou a aplicabilidade da SUM560/STF, sendo, portanto, descabida a extinção de punibilidade
outrora aplicada aos delitos de descaminho e contrabando.’
[TRF4, RCCR 9704507798, GILSON DIPP, 1ª T, DJ 4.2.98]
‘Não há coincidência entre a conduta de não-recolhimento de
contribuição previdenciária à época própria e a conduta de descaminho, a começar pela diferença entre os bens jurídicos tutelados pelos tipos penais em questão. A analogia não se presta a inovações no sistema normativo existente, mas à integração de lacunas da legislação, o que não se amolda ao caso dos autos, em que
está previsto tratamento diferenciado às condutas de descaminho
e de não-recolhimento de contribuição previdenciária. Não se
aplica por analogia o benefício instituído pelo par. 7º, do art. 7º da
MP nº 1.571-6/97 quando o parcelamento diz respeito a tributo iludido pela prática de descaminho.’ [TRF4, RSE 200004010118834,
VILSON DARÓS, 2ª T, DJ 3.8.00]
Superior Tribunal de Justiça:
‘PROCESSUAL PENAL. DENÚNCIA. INÉPCIA. NÃO OCORRÊNCIA.
DESCAMINHO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. PAGAMENTO DO
TRIBUTO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DA LEI Nº 9.249/95. IMPOSSIBILIDADE. 1 - Não se apresenta com a pecha da inépcia a denúncia
que descreve os fatos de maneira a propiciar o amplo direito de defesa, sendo descabido tê-la por inepta pela simples falta do valor
do tributo a ser pago. 2 - A Lei nº 9.249/95 é clara e expressa ao estabelecer o seu âmbito de eficácia, vale dizer, os crimes definidos
na Lei nº 8.137/90 e Lei nº 4.729/65, não podendo, por isso mesmo,
ser aplicada a delito do Código Penal. Além do mais, ainda que se
pudesse efetivar esta analogia in bonam partem, como quer o impetrante, depende ela de uma característica não encontrada na
espécie, vale dizer, tenha sido efetuado o pagamento do tributo an-
282
faculdade de direito de bauru
tes do recebimento da denúncia, o que, efetivamente, não ocorreu.
3 - Ordem denegada.’ [STJ, HC 9773, FERNANDO GONÇALVES, 6ª T,
DJ 27.3.00]
Os Tribunais Regionais Federais da 2ª Região e da 5ª Região excepcionam
essa iterativa orientação jurisprudencial, entendendo que o pagamento extingue a
punibilidade:
‘I - Apesar de situado no capítulo dos crimes praticados por particular contra a administração em geral, o crime de descaminho
tem como objeto jurídico o interesse da Fazenda Nacional. II - Os
aspectos fáticos do caso em concreto revelam que já ocorreu punição suficiente. De fato, as mercadorias, que viriam para distribuição gratuita em feira, foram perdidas em favor da União e o embargante pagou o tributo antes do recebimento da denúncia. III Recurso provido.’ [TRF2, EIRCCR 9802275506, TANIA HEINE, 1ª S,
DJ 1.6.00]
‘2- Atualmente, encontra-se em vigência o artigo 34 da Lei 9.249, de
26 de dezembro de 1995, que prevê a extinção da punibilidade pelo
pagamento do tributo, antes do recebimento da denúncia. 3- A extinção da punibilidade alcança o agente de conduta que, antes do
recebimento da denúncia, efetuou o pagamento devido a título de
débito tributário, incluindo-se os casos dos crimes fiscais do artigo
95, “d” da lei 8212/91 e o próprio delito de descaminho, que cuida
da fraude ocorrida na entrada e saída de mercadorias do país,
com o objetivo de frustar o pagamento de direitos alfandegários’
[TRF5, ACR 200105000407295, PETRUCIO FERREIRA, 2ª T, DJ
26.11.02]
5.1. Contraponto: contribuições previdenciárias
Pode-se argumentar: se o art. 34, Lei 9.249/95 incide para o não-recolhimento
das contribuições previdenciárias [premissa], aplica-se também ao descaminho
[conclusão]. Mas o argumento peca por parcial vício de princípio. É que a norma se
aplica às contribuições previdenciárias não por força da analogia, antes por dicção
expressa do art. 34, Lei 9.249/95 mesmo, que se refere à ‘contribuição social’, cujo
não-recolhimento [da parte patronal] não era tipificado como crime na Lei 4.729/65,
e passou a sê-lo a partir da Lei 8.137/90. Já com relação ao não-recolhimento de contribuição descontada do empregado [art. 95, d, Lei 8.212/91], a situação é diversa
e não há falar em aplicação da norma do art. 34, Lei 9.249/95, à míngua de determinação explícita:
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
283
‘RECURSO DE HABEAS CORPUS. CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIARIAS DESCONTADAS DOS SALARIOS DOS EMPREGADOS. RECOLHIMENTO A DESTEMPO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. Extingue-se a
punibilidade do crime previsto no art. 2., II, da Lei n. 8.137, de
27/12/90, em face do recolhimento do débito previdenciário em
data anterior ao recebimento da denúncia, nos termos do disposto no art. 34 da Lei 9.249, de 26/12/95. Denúncia que não pode ser
rejeitada quanto ao crime previsto no art. 95, letra d, da Lei n.
8.212, de 24/07/91, porque inaplicável a esta norma o art. 34 da lei
n. 9.249, de 26/12/95 e por não terem os pacientes se utilizado do
beneficio concedido pelo art. 9o da Lei n. 8.620, de 05/01/93, quanto aos débitos anteriores a 1/12/92. Recurso ordinário provido parcialmente.’ [STJ, RHC 5080, EDSON VIDIGAL, 5ª T, DJ 11.3.96]
Excepcionalmente, as reedições 6 e 7 da MP 1.571 [que foi convertida na Lei
9.639/98], permitiram a extensão do art. 34 aos crimes do art. 95, d, Lei 8.212/91, ut
art. 7º, §7º, reedição 6 e art. 7º, §6º, reedição 7:
‘As dívidas provenientes das contribuições descontadas dos empregados e da sub-rogação de que trata o inc. IV do art. 30 da Lei
8.212/91, poderão ser parceladas em dezoito meses, sem redução
da multa prevista no caput, ficando suspensa a aplicação da alínea ‘d’ do art. 95 da Lei 8.212/91, enquanto se mantiverem adimplentes os beneficiários do parcelamento’.
Essa norma, entretanto, não foi repetida na reedição 8, de modo que, a partir de então, não mais se aplica ao crime do art. 95, d, Lei 8.212/91 [STJ, RESP
270.163, GILSON DIPP, 5ª T, DJ 5.8.02]. Ocorre que, sem rigor técnico, a jurisprudência evoluiu para aplicar a analogia in bonam partem dessa norma especial também ao art. 95, d, Lei 8.212/91:
‘PENAL - TRIBUTARIO - EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE - SATISFAÇÃO
DO CREDITO ANTES DA DENUNCIA - LEI 9.249, DE 26/12/1995, ART.
34 - ANALOGIA IN BONAM PARTEM. Nas figuras penais do art. 2. da
Lei 8.137/1990 e art. 1o da Lei 4.729/1965, quando o agente satisfaz
o crédito antes do recebimento da denúncia, extingue-se a punibilidade. Emerge dúvida quanto à aplicação do mesmo procedimento, quanto ao crime previsto no art. 95, “d” da Lei 8.212/1991, não
incluído no art. 34 da Lei 9.249/1995; mas as figuras penais são
muito semelhantes e caracterizam-se pelo não recolhimento no
prazo legal. Caso típico de aplicação da analogia in bonam partem
faculdade de direito de bauru
284
para decretar-se a extinção da punibilidade, em consequência do
recolhimento da importância correspondente à contribuição antes do recebimento da denuncia.’ [STJ, INQ 178, ASSIS TOLEDO,
CE, DJ 26.5.97]
E esse entendimento jurisprudencial equivocado do ponto de vista científico, infelizmente, prevaleceu na edição da Lei 9.983/00, que inseriu o crime de apropriação indébita previdenciária no CP:
‘Art. 168-A, § 2o - É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições,
importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do
início da ação fiscal’
6.
EPÍLOGO
Entendo que a lei especial não admite analogia in bonam partem, por isso
que seu âmbito de eficácia é normativamente limitado ao sub-sistema a que pertence, não operando sobre tipos além daquele círculo. Ademais, a norma especial é
exceção à norma geral e, sabido, ressabido e consabido, há de ser interpretada restritivamente: ‘O recurso à analogia tem cabimento quanto a prescrições de Direito
comum; não do excepcional’ [CARLOS MAXIMILIANO, ‘Hermenêutica e aplicação
do direito’, Rio de Janeiro: Forense, 18ª ed., p. 213]. E prova cabal disso é a existência de leis episódicas que determinam a extensão dessa eficácia a outros subsistemas [ex: art. 18, § 2º, DL 157/67], de modo que interpretar extensivamente aquelas
normas é anular essas leis e esvaziar o seu conteúdo, o que não se admite em boa
hermenêutica.
Entretanto, há certas situações que fazem movimentar as ‘forças invisíveis’
[como aquelas mencionadas por Jânio Quadros para justificar sua renúncia], quando a técnica jurídica é deixada em segundo plano. Em nosso contexto, essas forças
invisíveis atuaram para modificar o anterior posicionamento do STJ, admitindo a
analogia in bonam partem do art. 34, Lei 9.249/95 ao crime do então art. 95, d, Lei
8.212/91, bem assim na edição da Lei 9.983/00.
E aqui abro um parêntese que me leva ao saudoso ano de 1994, quando os
jogadores da seleção brasileira de futebol, vencedora da Copa do Mundo, retornaram ao Brasil, forrados de ‘muamba’ e a Receita Federal, apesar de não ter sido pago
o tributo na internação, não decretou o perdimento dos bens e, ainda por cima, permitiu o pagamento posterior dos tributos. Também, nenhum dos ‘heróis nacionais’
foi denunciado por descaminho, o que fez com que os juízes de 1ª grau começassem a aplicar aquele entendimento da Receita Federal para o caso dos jogadores, no
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
285
sentido de permitir o pagamento posterior do tributo para extinguir a punibilidade
em todos os casos. Mas, as forças invisíveis não se movimentaram, e os Tribunais reformaram todas as decisões extintivas da punibilidade... Esse é o Brasil, o Brasil dos
brasileiros, com que fecho parêntese.
Para concluir, registro que operar o direito é como concertar música: precisase de harmonia. Não pode haver notas fora de esquadro, não pode uma decisão aqui
ser diferente da decisão de lá se a situação fática se revela idêntica. Neste sentido,
apresenta-se essa ponderação como o som do contra-baixo, que dá apoio harmônico para os demais instrumentos da orquestra, a fim de supedanear futuras ilações
sobre a questão jurídica ora versada. Não se pretende fazer proselitismo doutrinário, mas colocar a questão em pratos limpos: o pagamento posterior do tributo não
extingue a punibilidade no crime de descaminho. É o ‘ovo de Colombo’!
COMPETÊNCIA REFORMADORA E SEUS LIMITES
Marcelo Agamenon Goes de Souza
Professor de Direito Constitucional e Prática Jurídica Penal da Associação Educacional Toledo,
Direito Processual Penal na UNOESTE e na Escola Superior de Advocacia – ESA,
todas em Presidente Prudente-SP.
Mestre em Direito Processual Penal pela UNOESTE e
Mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Advogado.
1.
PODER REFORMADOR
Bem observa LUIZ ALBERTO DAVID ARAUJO e VIDAL SERRANO JÚNIOR1 que
as Constituições, quando elaboradas, pretendem-se eternas, mas não imutáveis.
Uma Constituição que não pode ser modificada denomina-se de “imutável”. Aquela que só pode ser reformada por um outro Poder Constituinte chama-se de “Constituição Fixa”.2
Assim, se as Constituições na sua grande maioria se pretendem definitivas
no sentido de voltadas para o futuro, sem duração prefixada, nenhuma Constituição que vigore por um período mais ou menos longo deixa de sofrer modificações, para adaptar-se às circunstâncias e a novos tempos ou para acorrer às
exigências de solução de problemas que podem nascer até da sua própria aplicação.3
1 Cf. ARAÚJO, Luiz Alberto David. SERRANO JÚNIOR, Vidal. Curso de Direito Constitucional. Saraiva, 6 ed.,
2002, São Paulo, p. 10.
2 Cf. AGRA, Walber de Moura. Manuel de Direito Constitucional. RT, 1 ed., 2002, São Paulo, p. 77.
3 Cf. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Forense, 1 ed., 2002, Rio de Janeiro, p. 389.
faculdade de direito de bauru
288
JORGE MIRANDA4 especifica que nenhuma Constituição deixa de regular a
sua revisão, expressa ou tacitamente. Em geral, regula-a expressamente ora em moldes de rigidez, ora em moldes de flexibilidade.
O Poder Reformador5 é aquele que tem a função de alterar a Constituição Originária, ou o Texto Original, podendo essa reforma consistir no acréscimo, modificação ou supressão de partes de seu texto. Sua finalidade consiste em adaptar a Lei
Excelsa às modificações ocorridas na sociedade, adequando-a às exigências sociais,
que são cambiantes.
2.
NATUREZA JURÍDICA
Segundo entendimento prevalente na doutrina6, o poder constituinte reformador tem natureza jurídica, ao contrário do originário, que é um poder de fato, um
pode político.
3.
TITULARIDADE E EXERCÍCIO DO PODER REFORMADOR
Apesar de ainda controvertida, a questão da titularidade do poder constituinte, modernamente, predomina o entendimento de que a mesma pertence ao povo,
uma vez que o Estado decorre da soberania popular, cujo conceito é mais abrangente do que o de Nação.7
A vontade do constituinte é a vontade do povo, que, todavia, é expressada por
intermédio de seus representantes legais. Assim, sendo a titularidade do poder
constituinte do povo, o exercício compete àquele que, em nome do povo, cria o Estado, editando a nova Constituição.
Desta forma, há de se distinguir a titularidade do poder constituinte com o
exercício do poder constituinte, onde titular é o povo e o exercente é o seu representante legal.8 9
4 Cf. In. Ob. Cit. p. 400. Há que se observar e lembrar que o modelo reformador do Brasil é rígido.
5 Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Júnior(In. Ob. Cit. p. 10) lembrando Michel Temer afirmam que não se
pode falar em Poder, mas em competência recebida do texto constitucional. Original, o que também é corroborado por José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros, 9 ed., 1993, São Paulo, p.59).
6 Cf. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. LTR, 4 ed., 2002, São Paulo, p. 62. Também neste
sentido MICHEL TEMER (Elementos de Direito Constitucional. Malheiros, 10 ed., 1993, São Paulo, p.35)
7 Neste sentido entendem ARAÚJO, Luiz Alberto David e SERRANO JÚNIOR, Vidal, In. Ob. Cit. p. 09; MORAES, Alexandre
de, Constituição do Brasil Interpretada. Atlas, 1 ed., 2003, São Paulo, p. 88; TEMER, Michel, In. Ob. Cit. p. 32.
8 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder Constituinte. Saraiva, 2 ed., São Paulo, p. 27.
9 Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Júnior (In. Ob. Cit. p. 09) especifica que o exercício do poder constituinte muitas vezes pode afastar-se do controle democrático, como por exemplo em casos de revolução, ou ainda
as Assembléias Legislativas que podem tomar o cuidado de submeter à vontade popular direta as suas conclusões.
Por sua vez, Michel Temer (In. Ob. Cit. p. 09) lembra do Ato Institucional nº 1 de 09.04.64 que fixa uma idéia de revolução pelo regime militar.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
4.
n.
39
289
COMPETÊNCIA DO PODER REFORMADO10
No Brasil, a Constituição Federal, fruto de um legítimo processo constituinte, conferiu ao Congresso Nacional, um órgão constituído, a competência para a reforma da
mesma.11
A função legislativa deriva do Poder Legislativo e a função reformadora provém do Poder Reformador, que é exercido extraordinariamente pelo Congresso Nacional. Cada poder tem uma função e um fundamento jurídico distinto, necessitando também de diferentes graus de legitimidade12.
LÊNIO LUIZ STRECK13 especifica que uma questão ficou muito clara: cumpre
a este Congresso abster-se do estabelecimento de uma nova Constituição, por lhe
falecer legitimidade para tanto. Mais ainda: com a publicação da Constituição de
1988, exauriu-se a função do poder constituinte originário. Em decorrência, o atual
Congresso não tem mais o poder constituinte originário, uma vez que este é indelegável. Tentar fazer, pois, uma nova Constituição, ou não obedecer a qualquer limite, seria uma usurpação de competência do atual Congresso, que só tem a legitimidade de poder constituinte derivado.
Todavia, apesar de o Congresso Nacional não possuir mais nenhum poder constituinte originário, mas apenas a competência reformadora, isto não impede que este
mesmo Congresso, por intermédio de Emenda convoque um novo Poder Constituinte, isto como ocorreu com o atual Texto Constitucional, convocado pela Emenda nº 26
(promulgada em 27.11.85), o que não lhe retirou o caráter de inicialidade.
5.
FORMAS DE REALIZAR O PODER REFORMADOR
A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu corpo duas formas de se realizar o
poder reformador, ou competência reformadora. A primeira delas está descrita no artigo
6014 da Carta Magna, recebendo a denominação de Emenda. A Segunda vem descrita
no artigo 3º15 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, recebendo a denominação de Revisão.
10 Como será demonstrado mais a frente, a competência para o Poder Constituinte Decorrente é das Assembléias
Legislativas dos Estados (artigo 11 do Ato das Disposições Transitórias Constitucionais - ADCT).
11 Cf. Art. 60, §§ 2º e 3º, in verbis: § 2º. A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.
§ 3º. A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com
o respectivo número de ordem.
12 Cf. AGRA, Walber de Moura, In. Ob. Cit. p. 76
13 Cf. STRECK, Lênio Luiz. Constituição – Limites e Perspectivas da Revisão. Rigel, 2 ed., 1993, Porto Alegre,
p. 23.
14 Art. 60, “caput” da CF: A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:...”
15 Art. 3º do ADCT: A revisão constitucional será realizada após cinco anos contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral.
290
faculdade de direito de bauru
5.1. Emendas Constitucionais
É a espécie normativa capaz de alterar o texto da Constituição Federal. Uma
vez aprovada, promulgada e publicada, a Emenda Constitucional passa a se situar e
ter a mesma eficácia da Constituição Federal, isto no plano hierárquico.
A iniciativa para a proposta de Emenda constitucional pode ser:
Parlamentar, que pode ser subdivida em:
I - Coletivo - quando for preciso pelo menos 1/3 dos Deputados Federais ou
1/3 dos Senadores.
II - De iniciativa das Assembléias - pode ainda apresentar mais da metade das
Assembléias Legislativas das Unidades da Federação, manifestando-se cada uma delas pela maioria relativa de seus membros.
2. Extra-parlamentar, que pode ser: iniciativa do Presidente da República.
Não há previsão constitucional para a iniciativa popular. Todavia JOSÉ AFONSO DA SILVA16 diz que é possível a Iniciativa Popular para as Emendas Constitucionais e, tal como na lei, o projeto tem que estar subscrito com pelo menos 1% do eleitorado nacional e distribuído em pelo menos cinco Estados, com não menos de
0,3% do eleitorado de cada um deles. Art. 61, § 2º da Constituição Federal.
A Constituição Federal atual abrange como Princípio Fundamental a Democracia participativa, permitindo plebiscito, dizendo que todo o poder emana diretamente do povo, referendo popular.
Data vênia, Iniciativa Popular para Emenda Constitucional, não existe porque
a Constituição Federal é expressa ao dizer que seu cabimento é para projetos de Lei,
silenciando em relação às Emendas Constitucionais.
5.2. Revisão Constitucional
É a ampla alteração da Constituição Federal. A atual Constituição Federal estabelece que ela deveria ser revista 05 (cinco) anos após a sua promulgação (1993),
conforme especificado no art. 3º do ADCT17.
Esta Revisão nada mais é do que uma alteração ampla. Para que ocorra, exige-se a maioria absoluta do Congresso Nacional, em votação UNICAMERAL.
Por fim, há de se especificar que diferentemente do que ocorre com a Emenda
Constitucional que é promulgada pelas mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a Revisão Constitucional será promulgada pela Mesa do Congresso Nacional.
16 In. Ob. Cit. p. 460.
17 Como observa Sério Chimenti (Apontamentos de Direito Constitucional, Paloma, 1 ed., 2001, São Paulo, p.
30) trata-se de norma constitucional de eficácia exaurida, uma vez que perdeu toda e qualquer utilidade e praticidade. Neste mesmo sentido BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. Saraiva, 2 ed., 2001, São Paulo, p. 335.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
6.
n.
39
291
CARACTERÍSTICAS DO PODER REFORMADOR
Como ocorre com o poder constituinte originário, também o poder constituinte reformador, ou derivado, possui características próprias que são as seguintes:
a) Derivado. É derivado porque retira sua força do Poder Constituinte Originário;
b) Subordinado ou limitado. Encontra limitação nas normas expressas
e implícitas do Texto constitucional, não podendo, desta forma, contrariá-los,
sob pena de inconstitucionalidade. Assim, como bem observam LUIZ ALBERTO
e VIDAL SERRANO18, a Constituição impõe limites à sua alteração, criando determinadas áreas imutáveis, que se encontram indicadas no art. 60, § 4º, da Constituição Federal.
c) Condicionalidade. Seu exercício deve seguir as regras previamente estabelecidas no texto da Constituição Federal, conforme estabelece o art. 60 da Constituição Federal
7.
LIMITAÇÕES AO PODER DE EMENDA
O Poder de Emenda não é ilimitado, mas sim condicionado ao que diz a Constituição. Há quatro tipos de limitações: circunstanciais, materiais, formais e temporais.
1a. Limitações Circunstanciais é proibido discutir projetos de emendas durante o estado de sítio, estado de defesa e durante intervenção federal19,
conforme textualmente preceitua o art. 60, § 1º Constituição Federal20.
1b. Limitações Materiais. É aquela que está relacionada a determinadas matérias constantes no texto constitucional21. Podem ser: explícitas e implícitas.
1b1. Limitações Materiais Explícitas são as matérias em que a Constituição Federal proíbe expressamente as Emendas Constitucionais no sentido de restringir ou
abolir. Diz a Constituição Federal “é proibido Emendas Constitucionais, tendentes a
abolir: Federação, voto direto secreto, universal e periódico; separação dos poderes
e os direitos e garantias individuais.
18 In. Ob. Cit. p. 10.
19 O período mais próximo de uma intervenção federal em um Estado Federado ocorreu no ano de 1998, isto em
relação ao Estado de Alagoas. Todavia, o então Presidente da República Fernando Henrique entendeu pela não intervenção. Tal decisão foi de caráter eminentemente político, uma vez que estava em plena discussão e votação a
Emenda Constitucional nº 19, o que desta forma provocaria a sua paralisação.
20 Jorge Miranda (In. Ob. Cit. p. 402) lembra também da Constituição Belga que não admite a sua revisão em situações de necessidade, correspondentes ou não a declaração de estado de sítio ou de emergência, ou noutras circunstâncias excepcionais.
21Segundo Jorge Miranda (In. Ob. Cit. p. 408) a primeira Constituição a tratar de limitação material foi a norte-americana. Nela se dispõe que nenhum Estado poderá ser privado, sem o seu consentimento, do direito de voto no Senado em igualdade com os outros Estados (art. V ) e que os Estados Unidos garantem a todos os Estados da União
a formas republicana de governo (art. IV, nº 3).
292
faculdade de direito de bauru
As limitações materiais explícitas são conhecidas como cláusulas pétreas, ou
cláusulas imutáveis, uma vez que não podem ser abolidas por meio de Emendas
Constitucionais.
1b2. Limitações Materiais Implícitas ou Inerentes. São aquelas que, apesar de não especificarem de forma taxativa a impossibilidade de emendas no sentido de aboli-las, devem ser entendidas como tais, pois se pudessem ser alteradas, de
nada adiantaria a existência das Limitações Materiais Explícitas. Assim, implicitamente, é proibido Emenda Constitucional que verse sobre:
a. a expressão do § 4º do art. 60 da Constituição Federal, que prevê as cláusulas pétreas.
b. não pode haver emendas para tirar o Poder Constituinte Derivado do Congresso e transferir para outro órgão.
c. não pode haver Emenda constitucional para modificar o processo de alteração das Emendas Constitucionais.
Para aprovar Emenda Constitucional, é necessária uma votação cujo quorum
seja qualificado em 3/5 em cada uma das Casas em dois turnos. Não poderia haver
uma emenda no sentido de tentar diminuir esse quorum, porém, poderia haver se
fosse para aumentá-lo, tornando-o mais rígido.
1c. Limitações Formais. São as limitações referentes às formalidades, ou
seja, não pode uma Emenda Constitucional ser aprovada sem que sejam observadas
as formalidades e procedimentos descritos no próprio texto original, como, por
exemplo, não obter um projeto de emenda constitucional uma votação de 3/5 em
cada turno, nas duas casas do Congresso Nacional.
1d. Limitações Temporais. São aquelas que vedam modificações de uma
Constituição durante certo período de tempo22. A Constituição de 1.824 vedava
qualquer tipo de emenda a mesma por um período de 04 (quatro) anos após a
sua promulgação (art. 174).
Por sua vez, a Constituição de 1988, no art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, também especificou uma hipótese de limitação temporal à
modificação constitucional, todavia, em relação à Revisão Constitucional.
7.1. Limitação ao poder de revisão
Antes da realização da Revisão Constitucional de 1993 (art. 3º do ADCT) havia dúvidas na doutrina sobre se a mesma era ampla e sem limites, ou se a mesma
encontrava os mesmos limites para as emendas.
22 Segundo Jorge Miranda (In. Ob. Cit. p. 402) a revisão pode realizar-se a todo o tempo, a todo o tempo verificados certos requisitos ou apenas em certo tempo. Na grande maioria dos países pode dar-se a todo o tempo, mas
Constituições há que só admitem a sua alteração de tantos em tantos anos; ou que, antes de decorrido certo prazo, não a admitem senão por deliberação específica; ou que ostentam regras particulares para a primeira revisão,
vedada até certo prazo; ou para uma eventual revisão total.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
293
LÊNIO LUIZ STRECK23 especifica que o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Célio Borja, era defensor da chamada revisão ampla. Ele acreditava que a posição das pessoas que queriam restringir a revisão era política e não jurídica, entendendo que a reforma deveria abranger tudo aquilo que, pela prática, ficou provado
ser inconveniente.
Também defensor de que a Revisão era ilimitada encontra-se JOSÉ AFONSO
DA SILVA24, quando especifica que, salvo quanto as limitações formais, a lógica, quanto ao mais, conduz que as demais limitações não teriam aplicabilidade na Revisão,
pois se prevêm ali uma possibilidade de ampla mudança formal na Constituição, por
certo que isto abre exceção ao previsto no artigo 60. Demais, as limitações estão ligadas ao processo de emendas neste artigo estatuído e não no processo de revisão.
Apesar dos posicionamentos mencionados, prevaleceu o entendimento de
que também a Revisão deveria respeitar as limitações existentes no texto constitucional. MICHEL TEMER, diz que as limitações impostas no caso da Emenda Constitucional, também deve ocorrer na Revisão.25
8.
PODER CONSTITUINTE DECORRENTE
Além do Poder constituinte originário e do poder constituinte derivado (ou
Reformador), o art. 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias especifica o poder constituinte decorrente.26
Poder Constituinte Decorrente é aquele atribuído aos Estados-Membros de se
auto-organizarem de acordo com suas próprias Constituições, respeitando os princípios constitucionais impostos pelo Poder Constituinte Federal27.
No que diz respeito às suas características, o Poder Constituinte Decorrente
possui os mesmos do Poder Constituinte Derivado (ou Reformador).
Data venia, entendemos que o Poder Constituinte Decorrente possui também uma característica de ser originário, porem, não de forma absoluta ou ilimitada, uma vez que, com a criação das Constituições dos Estados, surge uma nova
forma de organização, de estruturação deste Estado Federado. Porém, mesmo
sendo originário, deve observar todas os princípios impostos pelo Texto Constitucional Federal.
23 In. Ob. Cit. p. 26
24 In. Ob. Cit. p. 62.
25 Cf. Elementos do Direito Constitucional, ob. cit., p. 38. Também neste mesmo sentido LUIZ ALBERTO DAVID
ARAÚJO e VIDAL SERRANO JÚNIOR (In. Ob. Cit. p. 12), LÊNIO LUIZ STRECK (In. Ob. Cit. p. 50)
26 Art. 11 ADCT: Cada Assembléia Legislativa, com poderes constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no
prazo de um ano, contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os princípios desta.
27 O Poder Decorrente é uma tradição que começou com o Texto Magno de 1891, sofrendo todavia restrição com
a Constituição de 1937. O texto da Constituição de 1967/1969 previa este cada Estado da Federação deveria elaborar a sua Lex Mater.
294
faculdade de direito de bauru
Dúvidas que existem na doutrina é o de se saber se o Poder Constituinte Decorrente também se estende aos municípios devido ao princípio federativo. Sobre
este assunto, pedimos venia para transcrever o entendimento de LUIZ ALBERTO
DAVID ARAÚJO e VIDAL SERRANO JÚNIOR28, quando assim especificam:
O Poder Constituinte Decorrente, conferido aos Estados-Membros da
Federação, não foi estendido aos Municípios, como se constata de
mera leitura do art. 29 do nosso Texto Maior. Enquanto aos Estados foi
conferida organização por Constituições, aos Municípios cogitou-se de
leis orgânicas, as quais, de sua vez, deveriam guardar fidelidade não só
à Constituição da República, mas também à respectiva Constituição do
Estado, revelando-se assim que o mais alto documento normativo municipal não adviria de um Poder Constituinte, mas de mero órgão legislativo: a Câmara de Vereadores.29 (grifo nosso)
Assim, pelo que é exposto pelos doutrinadores, a Constituição Estadual deve
respeitar os princípios fixados na Constituição Federal. Por sua vez, a lei orgânica
obedecerá aos princípios estabelecidos na Constituição Federal e Estadual, ou seja,
dois graus de imposição legislativa constitucional.
9.
MODIFICAÇÃO PELA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
A modificação pela mutação constitucional é a modificação operada na Constituição gradualmente no tempo, isto de modo informal, sem necessidade de emendas ou revisão, ou seja, sem atuação do Poder Reformador, mediante procedimentos jurídicos.30
Ao comentar a modificação pela mutação constitucional, MAURICIO ANTÔNIO RIBEIRO LOPES31 especifica ser ela um processo não previsto nas normas jurídicas.
A mutação constitucional produz uma transformação na realidade de atuação
do poder político, na estrutura social e no equilíbrio de interesses, sem que haja
uma atualização no documento constitucional. Pela mutação, o texto da Constituição sofre uma remodelação quanto à literatura do texto até então apresentado, quer
pela interpretação constitucional, quer por meio de construção jurídica, quer por
práticas constitucionais ou por usos e costumes, permanecendo, todavia, intacto.
28 In. Ob. Cit. p. 14
29 Seguindo o mesmo entendimento, porém, com outra justificativa Pedro Lenza (In. Ob. Cit. p. 66).
30 Cf. AGRA, Walber de Moura. In. Ob. Cit. p. 84
31 Cf. LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Poder Constituinte Reformador. Limites e Possibilidades da Revisão Constitucional Brasileiro. RT, 1993, São Paulo, p. 128.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
295
BIBLIOGRAFIA
AGRA, Walber de Moura. Manuel de Direito Constitucional. São Paulo: RT, 1 ed., 2002.
ARAÚJO, Luiz Alberto David. SERRANO JÚNIOR, Vidal. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Saraiva, 6 ed., 2002.
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. São Paulo: Saraiva, 2 ed., 2001.
CHIMENTI, Sérgio. Apontamentos de Direito Constitucional, São Paulo: Paloma, 1 ed., 2001.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder Constituinte. São Paulo: Saraiva, 2 ed.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: LTR, 4 ed., 2002.
LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Poder Constituinte Reformador. Limites e Possibilidades
da Revisão Constitucional Brasileiro. São Paulo: RT, 1993.
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 1 ed., 2002.
MORAES, Alexandre de, Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 1 ed., 2003.
SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 9 ed.,
1993.
STRECK, Lênio Luiz. Constituição – Limites e Perspectivas da Revisão. Porto Alegre: Rigel,
2 ed., 1993.
TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 10 ed., 1993.
O tratamento dado pelo ordenamento
jurídico brasileiro ao instituto
da coisa julgada1
José Renato Rodrigues
Procurador Federal – INSS – Botucatu-SP.
Graduado e Mestre em Direito pela Instituição Toledo de Ensino – ITE.
Professor da Instituição de Ensino Superior de Avaré-SP – FACCAA.
Desde a Constituição Federal de 1824, o constituinte teve uma preocupação
em assegurar, de forma absoluta e incondicionada, a irretroatividade das leis.2
Com o advento da Constituição de 1934, a inadmissibilidade da retroatividade
das leis, em qualquer hipótese, sofreu uma marcante restrição. A partir de então, a
irretroatividade das leis se limitou aos casos de direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada.3
Com exceção da Constituição de 1937, este panorama - consistente no resguardo da irretroatividade das leis quando presentes o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada - se repetiu nas demais Constituições do Brasil.4
1 Artigo que tem por base a nossa dissertação de mestrado: A flexibilização da coisa julgada.
2 “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade,
a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte:
(...)
III. A sua disposição não terá efeito retroactivo.”
3 “Art. 113. (...)
3) A lei não prejudicará o direito adquirido, o acto jurídico perfeito e a coisa julgada”
4 Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, p. 185.
298
faculdade de direito de bauru
Ao lermos a atual Constituição Federal, verificamos que o inciso XXXVI do artigo 5º assevera que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Pelo fato de este dispositivo estar inserido na Constituição Federal, somos tentados a concluir que o instituto da coisa julgada tem assento constitucional.
Aliás, embora Enrico Tullio Liebman não tenha analisado o aludido dispositivo constitucional, podemos concluir que ele pensava assim, pois, para ele, “o instituto da coisa julgada pertence ao direito público e mais precisamente ao direito
constitucional.”5
Entretanto, esta não é a resposta correta, haja vista que a proteção constitucional não é para o instituto da coisa julgada e sim para a coisa julgada.
O que o texto constitucional não admite é que uma nova lei ou uma nova decisão altere o conteúdo do julgado após a formação da coisa julgada, ou seja, ao caso
já discutido pelas partes e julgado, em definitivo, pelo Judiciário.
É possível que uma lei altere o instituto da coisa julgada. Contudo, as alterações só alcançam os casos não julgados, pois vige a lei existente ao tempo em que
ocorreu o trânsito em julgado.
Na verdade, esta proteção constitucional dada à coisa julgada no inciso XXXVI
do artigo 5º nada mais é do que uma das faces do princípio da irretroatividade da
lei dirigida ao legislador infraconstitucional e aos órgãos judicantes, sendo-lhes defeso tão-somente prejudicar a coisa julgada e não ao instituto da coisa julgada, o que
implica dizer que não é permitido, pela Constituição, a violação da imutabilidade do
julgado.
Na sagaz lição de Paulo Roberto de Oliveira Lima:
“Trata-se, pois, de sobre-direito, na medida em que disciplina a própria
edição de outras regras jurídicas pelo legislador ou seja, ao legislar é
interdito ao Poder legiferante ‘prejudicar’ a coisa julgada. É essa a
única regra sobre ‘coisa julgada’ que adquiriu foro constitucional.
Tudo o mais no instituto é matéria objeto de legislação ordinária”.6
Protege-se tão-somente a coisa julgada dos efeitos de uma nova lei ou de outra decisão. É verdadeiro tema de direito intertemporal (princípio da irretroatividade da lei nova).7
A propósito, vejamos o que o Ministro do Superior Tribunal de Justiça José Augusto Delgado pensa a respeito:
5 Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada, p. 55.
6 Contribuição à teoria da coisa julgada, p. 84.
7 Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria, A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
299
“O tratamento dado pela Carta Maior à coisa julgada não tem o
alcance que muitos intérpretes lhe dão. A respeito, filio-me ao posicionamento daqueles que entendem ter sido vontade do legislador
constituinte, apenas, configurar o limite posto no artigo 5º, XXXVI,
da CF, impedindo que a lei prejudique a coisa julgada”.8
Veja-se que o mesmo inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição Federal também protege o direito adquirido e o ato jurídico perfeito e não os institutos. O intuito da norma, em qualquer caso, é impedir que uma lei nova retroaja prejudicando o direito já adquirido, o ato já formado, e o caso já julgado.
Se defendermos a tese de que a proteção constitucional é para o instituto da coisa julgada, temos que, por coerência, defender a não-recepção, pela Constituição Federal de 1988, da ação rescisória, a qual nada mais é do que um instrumento que desfaz
a coisa julgada e está disciplinada nos artigos 485 a 495 do Código de Processo Civil.
O mesmo raciocínio (de não recepção) deveria ser aplicado à revisão criminal
que está prevista nos artigos 621 a 631 do Código de Processo Penal9, que é uma lei
ordinária posta à disposição do réu, possibilitando-lhe, a qualquer tempo, a oposição à coisa julgada.
José Afonso da Silva desenvolve o seguinte raciocínio:
“A proteção constitucional da coisa julgada não impede, contudo,
que a lei preordene regras para a sua rescisão mediante atividade
jurisdicional. Dizendo que a lei não prejudicará a coisa julgada,
quer-se tutelar esta contra atuação direta do legislador, contra
ataque direto da lei. A lei não pode desfazer (rescindir ou anular
ou tornar ineficaz) a coisa julgada. Mas pode prever licitamente,
como o fez o art. 485 do Código de Processo Civil, sua rescindibilidade por meio de ação rescisória.”10
Desta forma, é perfeitamente possível que uma lei altere o instituto da coisa
julgada, mesmo que a mudança seja para restringir sua amplitude, pois, repita-se: o
que a Constituição Federal não concebe é que uma nova lei ou uma nova decisão judicial ataque às sentenças que já transitaram em julgado.
Isto só se justifica pelo fato de o tratamento constitucional ser dado somente
à coisa julgada e não ao instituto.
O inciso XXXVI do artigo 5º, da atual Constituição Federal, nos dizeres de José
Souto Maior Borges:
8 Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais, p. 198.
9 Decreto - Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.
10 Curso de direito constitucional positivo, p. 439.
300
faculdade de direito de bauru
“(...) é ponto de partida, não o ponto terminal da hermenêutica
jurídica. Não diz o que é coisa julgada, nem o seu regime, efeitos e
limites. É essa uma função que à falta de determinação constitucional, incumbe à legalidade integrativa. Efeito da coisa julgada é
eficácia – suscetibilidade à produção dos efeitos jurídicos – prevista em lei infraconstitucional (CTN, CPC, etc). Não podem esses efeitos ser extraídos diretamente da Constituição Federal.”11
É bom frisar que o respeito à coisa julgada, bem como ao direito adquirido e ao
ato jurídico perfeito, é uma garantia fundamental que está prevista no inciso XXXVI do
artigo 5º da Constituição Federal de 1988, sendo, portanto, uma cláusula pétrea, o que
resulta na total impossibilidade de ser alvo de proposta de emenda constitucional.12
Ao percorrermos o ordenamento infraconstitucional, verificamos que é a Lei de
Introdução ao Código Civil Brasileiro que define a coisa julgada ao asseverar que “chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.”13
Os contornos e grau de imutabilidade da coisa julgada vêm traçados no Código de Processo Civil, que é uma lei ordinária e que foi recepcionada pela atual Constituição Federal.14
O entendimento aqui defendido, no sentido de ser o tratamento constitucional
limitado à coisa julgada, encontra respaldo em jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o qual, por ser o guardião da Constituição Federal (art. 102 da CF/88), não conheceu de vários Recursos Extraordinários por ofensa à coisa julgada, sob o fundamento de que esta ofensa seria apenas uma violação indireta da Constituição Federal.15
Em conclusão, temos a aduzir que a Constituição Federal de 1988, no inciso
XXXVI do artigo 5º, protege tão-somente a coisa julgada e não o instituto da coisa
11 Parecer sobre os limites constitucionais e infraconstitucionais da coisa julgada tributária: contribuição social sobre o lucro.
12 “Art. 60. (...)
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
(...)
IV - os direitos e garantias individuais.”
13 Art. 6º, § 3º do Decreto-Lei nº 4657, de 04 de setembro de 1942.
14 “Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais
sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.
15 “Direito constitucional e processual civil. Recurso Extraordinário. Coisa Julgada (Art. 5º, inc. XXXVI, da CF).
1. O tema relativo à coisa julgada foi examinado pelo Superior Tribunal de Justiça, estritamente sob o aspecto processual civil, concluindo aquela Corte pelo não conhecimento do Recurso Especial.
2. Ora, é pacífico o entendimento do Supremo Tribunal Federal, no sentido de não admitir, em Recurso Extraordinário, alegação de ofensa indireta à Constituição Federal, por má interpretação e/ou aplicação de normas infraconstitucionais, como são as de Direito Processual Civil sobre coisa julgada.” (AGRAG – 1722101/RJ – Ag. Reg. em Ag.
de Inst. ou de Petição, 1ª Turma, unâmine, rel. Min. Sydney Sanches, in DJ 19.09.1997, p. 45.532).
“Agravo Regimental.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
301
julgada. É verdadeiro tema de direito intertemporal, onde é defeso que uma lei nova
altere o conteúdo do julgado após a formação da coisa julgada. Por essa razão, uma
lei nova poderá alterar o instituto da coisa julgada, mesmo que seja para restringir a
sua amplitude, haja vista que é uma lei ordinária, denominada Código de Processo
Civil (artigo 467), que traça os contornos e graus de imutabilidade dos julgados.
BIBLIOGRAFIA
ADEODATO, João Maurício. Bases para uma metodologia da pesquisa em direito. In: Anuário
dos cursos de pós-graduação em direito. Recife: Editora Universitária da UFPE, nº 8, p. 201-224,
1997.
ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 4ª
ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001.
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1988-1989.
BORGES, José Souto Maior. Parecer sobre os limites constitucionais e infraconstitucionais da coisa julgada tributária: contribuição social sobre o lucro. In: Caderno de direito tributário e finanças públicas. [São Paulo]: Revista dos Tribunais: nº 27, abr./jun. de 1999.
CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil: compilação e
atualização dos textos, notas, revisão e índices. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 2000.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo. 16ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. In: II Seminário de Direito Ambiental Imobiliário. Série Eventos 7. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, p. 193-227, 1999.
Em se tratando de recurso extraordinário contra decisão prolatada em ação rescisória, deve ele dirigir-se aos pressupostos dela e não aos fundamentos do acórdão rescindendo.
Quanto à alegação de ofensa à coisa julgada, a questão dos limites objetivos dela é matéria que se resolve no terreno infraconstitucional, não havendo, assim ofensa direta à Constituição.
Agravo a que se nega provimento.” (AGRAG – 152.725/DF – Ag. Reg. em Ag. de Inst. ou de Petição, 1ª Turma, unâmine, rel. Min. Moreira Alves, in DJ 04.04.1997, p. 10.525).
“Agravo de instrumento. Recurso extraordinário. Afronta ao art. 5º - XXXVI da Carta. Súmula 288.
Não é possível, no Recurso Extraordinário, o exame, in concreto, dos limites objetivos da coisa julgada.” (AGRAG –
137.811/SP – Ag. Reg. em Ag. de Inst. ou de Petição, 2ª Turma, unâmine, rel. Min. Francisco Rezek, in DJ 25.04.1997,
p. 15.205).
“Não é admissível recurso extraordinário, com suposto fundamento em contrariedade ao disposto no inc. XXXVI
do art. 5º da Constituição, para reabrir controvérsia acerca dos limites objetivos da coisa julgada.” (AGRAG –
16754/SP – Ag. Reg. em Ag. de Inst. ou de Petição, 1ª Turma, unâmine, rel. Min. Otávio Galhotti, in DJ 27.09.1996,
p. 36.155).
302
faculdade de direito de bauru
DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao código civil brasileiro interpretada. São Paulo: Saraiva, 1994.
GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. V. 2, 14ª. ed., rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2000.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. Trad. Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Trad. textos posteriores à ed. de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Contribuição à teoria da coisa julgada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.
NEGRÃO, Theotonio. Código de processo civil e legislação processual em vigor. 32ª. ed. atual.
até 09 de janeiro de 2001. São Paulo: Saraiva, 2001.
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição federal. 6ª. ed. rev., ampl. e
atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
NUNES, Luiz Antonio Rizatto. Manual da monografia Jurídica. 3ª. ed., rev. e ampl. São Paulo:
Saraiva, 2001.
OTERO, Paulo. Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional. Lisboa: Lex Edições Jurídicas,
1993.
RODRIGUES, José Renato. A flexibilização da coisa julgada. Dissertação de Mestrado. Bauru:
Instituição Toledo de Ensino, 2002.
SANDIM, Emerson Odilon. Direito processual civil na prática e suas distorções. São Paulo: LTr,
1999.
SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários ao código de processo civil. Vol. IV – artigos 332 a 475.
3ª ed. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1982.
________. Primeiras linhas de direito processual. 20ª. ed. atual. Aricê Moacyr Amaral dos Santos. São Paulo: Saraiva, 2001.
SILVA, José Afonso Da. Curso de direito constitucional positivo. 19ª. ed., rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2001.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. V. 1, 31ª. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2000.
________; FARIA, Juliana Cordeiro de. A Coisa Julgada Inconstitucional e os Instrumentos Processuais Para Seu Controle. In: http://www.agu.gov.br/ce/cenovo/revista/0504HumbertoCoisaJulgada.pdf; em 20-05-01.
VIROU SÚMULA
Marcelo Cury
Advogado em Bauru-SP.
Assessor do TED-X.
Parece não haver dúvida de que a não intimação do defensor da expedição de
carta precatória para a oitiva de testemunhas sempre configurou nulidade, tanto assim que se discutia, na doutrina e nos Tribunais, se ela seria “relativa” ou “absoluta”,
valendo lembrar os arestos, num e noutro sentido, anotados por M. F. Podval em
prestigiado repertório jurisprudencial de autoria coletiva.1
Com efeito, para os partidários da primeira corrente, com base inclusive
na Súmula nº 155 do Supremo Tribunal Federal, tal nulidade restava “convalidada” “se não suscitada em tempo oportuno” e “se não demonstrado prejuízo à
defesa” (STF – HC – Rel. Célio Borja – RT 662/380), enquanto que, para os da
segunda, com base na Constituição Federal de 1988, ela era insanável em virtude de vulneração ao princípio do contraditório, ainda que nomeado, no Juízo
deprecado, advogado ad hoc (TACRIM-SP – AP – Rel. Canellas de Godoy –
Rolo-flash 969/027).2
De qualquer forma, fosse a nulidade tida como “relativa” ou “absoluta”, o
certo é que maciça era a jurisprudência no sentido de que, intimado o defensor da expedição da carta precatória, a não-intimação do defensor do dia e horário em que se realizaria a audiência no Juízo deprecado não constituiria
1 Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial. Coordenação: FRANCO, Alberto Silva e STOCO,
Rui. São Paulo: Ed. RT, 1999, Vol. 2, p. 2253-4.
2 Op. cit., p. 2254.
304
faculdade de direito de bauru
qualquer espécie de nulidade, até porque, segundo julgado compilado por Julio Fabbrini Mirabete,3 competiria ao advogado “cuidar da defesa de seu constituinte, acompanhando a designação da audiência” (RSTJ 32/110).
Tratasse tal juízo de uma tendência jurisprudencial, vá lá. Mas, infelizmente,
aconteceu o pior. Virou Súmula. Mais precisamente a de nº 273, do STJ: “Intimada
a defesa da expedição da carta precatória, torna-se desnecessária intimação da
data da audiência no juízo deprecado.”
É certo que, para o STJ, a intimação da expedição de carta precatória passou
a ser absolutamente necessária – “desnecessário” seria, conforme a referida Súmula, a intimação da data da audiência no Juízo deprecado.
Efetivamente, assim parece soar o novo enunciado sumular: “Tudo bem, intimar a defesa da expedição da precatória é indispensável. Agora, intimá-la também da data da audiência, ah, isso já é demais.” De qualquer forma, a não-intimação da expedição da precatória passou, a nosso ver, a acarretar nulidade absoluta,
quer tenham desejado isso ou não.
Entretanto, o sepultamento, ao menos no âmbito do STJ, da referida tese da
nulidade “relativa”, teve um custo alto, pois se consagrou um ato essencial ao pleno
direito de defesa em detrimento de outro, igualmente essencial.
Suponhamos, por exemplo, que uma carta precatória seja expedida de São
Paulo para Curitiba, para a oitiva de testemunhas arroladas pela acusação. De
acordo com a nova Súmula, só haverá nulidade – lembre-se: de natureza absoluta –
se o defensor do acusado, com escritório na capital paulista, não for intimado da expedição da carta precatória. Se não for intimado da data da audiência, não haverá nulidade alguma.
Três alternativas, assim, parecem restar ao referido defensor: (a) através de ligações telefônicas interestaduais diárias (a partir da expedição da precatória), suplicar a serventuários curitibanos por informações;4 (b) contratar um outro advogado
em Curitiba para freqüentar diariamente o Fórum competente; ou (c) descobrir, por
meios sobrenaturais, tal como um áugure amador, o dia em que as testemunhas arroladas pelo Ministério Público serão ouvidas.
Uma tal situação, de modo algum implausível, chega a causar pasmo, ainda
que a distância dos Juízos deprecante e deprecado sejam menores que a utilizada
no exemplo, sobretudo diante da importância e das peculiaridades da colheita da
prova oral num processo-crime.
3 Código de Processo Penal Interpretado. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 508.
4 Sim, suplicar, pois atualmente a obtenção de informações por telefone chega a ser impossível até mesmo em Comarcas vizinhas. É certo que, por vezes, o advogado é gentilmente atendido, por quem, principalmente, nutre respeito pela Instituição a que ele faz parte. Todavia, não se pode conceber que a defesa técnica dependa de favores
para ser exercida plenamente.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
305
Em obra exemplar sobre o assunto, assevera Antonio Magalhães Gomes Filho, com base em Delfino Siracusano, que a observância ao contraditório na introdução da prova no processo assume seus contornos mais característicos em relação à inquirição das testemunhas, “pois se trata de prova de estrutura complexa,
em que se ressaltam dois componentes essenciais: a narração do fato e o comportamento do depoente; disso decorre a constatação de que a aquisição da prova não
se limita à documentação de uma informação, mas exige uma participação ativa de
quem realiza a inquirição, com o objetivo de se proceder, concomitantemente, a
uma valoração sobre a idoneidade do testemunho.”5
Como se consagrar, assim, a “não-obrigatoriedade” de intimação do defensor da
data em que serão ouvidas testemunhas no Juízo deprecado sem golpear, duramente,
o direito pleno de defesa? Sim, direito pleno de defesa, pois é isso, e não menos que
isso, que a Lei Maior assegura aos acusados, ao dispor que, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório
e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (CF, art. 5º, LV).
Tratando da indispensabilidade do advogado durante o interrogatório judicial,
bem como do direito que possui o acusado de entrevistar-se e ser orientado por um
profissional antes do ato, já tivemos a oportunidade de aduzir: “Uma pessoa é honesta ou é desonesta. Não existe pessoa ‘meio’ honesta. Assim, segundo pensamos,
é que deve ser entendido o direito à ampla defesa: ou ela é ampla ou não é. Não
existe defesa mais ou menos ampla, ou ‘meio’ ampla.” 6
Ou, com as palavras de Adauto Suannes, citado no mesmo texto: “ou algo é
amplo ou é restrito. Uma mesa é larga ou é estreita. O contrário de mesa larga
não é, até onde o bom senso permite afirmar, mesa inexistente. Logo, o contrário
de defesa ampla é defesa restrita, reduzida, parca, escassa. Se a Constituição Federal
exige que a defesa seja ampla, pena de nulidade, tem-se que – a menos que se revoguem os dicionários – uma defesa escassa, parca, reduzida, restrita implicará a nulidade do processo. Contrapor amplo a existente é escamotear a garantia constitucional.”7
Ora, a não-intimação da data da audiência em que, no Juízo deprecado, serão
ouvidas testemunhas (sobretudo as arroladas pela acusação), mais não configura,
evidentemente, que violento golpe no trabalho do advogado criminal, que, no exercício de seu mister, não tem, não, obrigação alguma de “acompanhar” ou adivinhar
a designação da audiência (seja em São Paulo, seja em Curitiba, seja em São Luis do
5 Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: Ed. RT, 1997, p. 151-2.
6 “Assistência de advogado no interrogatório e orientação prévia. Ausência: nulidade absoluta do processo”. In: Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos – Divisão Jurídica, nº 32. Bauru: Ed. da Instituição Toledo de Ensino,
Agosto/novembro de 2001, nº 32, p. 313-38.
7 “O ativismo judicial”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Ed. RT, Julho/setembro de 1999, nº
27, p. 350; destacamos.
306
faculdade de direito de bauru
Maranhão), representando aquela omissão, mais do que tudo, uma verdadeira
agressão ao direito de defesa do acusado,8 que, ante a dicção da norma constitucional, bem como daquelas que regem a língua portuguesa, não pode ser meio ampla,
ou mais ou menos ampla.
Nem se alegue, como ocorreu no julgado citado por Mirabete, antes mencio9
nado, que “Entendimento contrário afogaria a atividade forense” (RSTJ, 32/110),
pois o que decorre da não intimação do acusado, ou, pelo menos, de seu defensor,
de todos os atos do processo, é o afogamento do próprio direito de defesa, assegurado constitucionalmente.10
Com efeito, não podem os fatores que impedem uma célere aplicação da Justiça (legislação penal e processual penal a exigirem reformas urgentes, número reduzido de Juízes e serventuários, deficiências materiais as mais diversas, etc.) servir
de mote à consagração do impensável “direito à defesa meio ampla”, que a Constituição Federal de 1988, desde sua promulgação, repele – daí a necessidade urgente
de revisão da referida Súmula.
O caso nos parece sério. Bem sério. Pois se agora um Tribunal Superior “autorizou” a não-intimação do defensor da data de audiência a ser realizada no Juízo deprecado (onde poderão, inclusive, ser ouvidas testemunhas de acusação, pois a Súmula 273 não faz qualquer ressalva nesse sentido), ficamos a pensar qual será o “próximo passo”, ou seja, o que mais será considerado “desnecessário”.11
Não sabemos se se acha em marcha a paulatina eliminação, agora através de
Súmulas, do direito à defesa efetivamente ampla. Mas a de nº 273, do Superior Tribunal de Justiça, parece ser, convenhamos, um bom começo.
8 E note-se que, por motivos óbvios, quando não movidos por intenso pessimismo, nem estamos falando na intimação pessoal do acusado, a bem da verdade imprescindível.
9 Op. cit., p. 508.
10 De mais a mais, será que simples intimações aos advogados constituídos, ainda que pela imprensa oficial (tais
como as referentes à expedição de cartas precatórias, que, agora, a nosso ver, passaram a ser indispensáveis), “arruinariam” o Poder Judiciário? Óbvio que não.
11 Quem sabe a intimação de qualquer audiência, pois se o defensor teria o “dever profissional” do mais (acompanhar a designação da audiência no Juízo deprecado, por mais distante que seja), exercer o “dever” do menos
(acompanhar a designação da audiência na Comarca em que mantém escritório) seria até “mais fácil”...
Ministério Público:
por uma verdadeira autonomia funcional.
Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo
Professor de Direito Penal e Processo Penal da UCSal
Universidade Católica de Salvador e da FABAC
Faculdade Baiana de Ciências.
1.
INTRODUÇÃO
Como é sabido, desde a Constituição de 1988, o ministério público, além de ter
se desvinculado institucionalmente do Poder Executivo, foi elevado à condição de órgão detentor de autonomia funcional e administrativa, sendo essa, aliás, a redação do
artigo 127, parágrafo 2º (segundo), da referida Magna Carta, que assim dispõe:
“Ao ministério público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no artigo 169, propor ao
Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas
e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento”.
Dito isto, necessário será que se tenha a exata noção do que se deve entender
por autonomia funcional, já que, no momento, não iremos tratar da autonomia administrativa. Vale dizer, mister será que se responda pelo menos as duas indagações
a seguir: a) quais os pressupostos da verdadeira autonomia funcional? e b) quais as
suas conseqüências na própria forma de atuação do ministério público?
308
faculdade de direito de bauru
Pois bem, este é o objeto de estudo e ênfase do presente texto, ou seja, tentar responder satisfatoriamente a estas duas indagações e, com isso, aproximar-se do
verdadeiro significado e extensão da expressão autonomia funcional.
2.
PRESSUPOSTOS PARA UMA VERDADEIRA INDEPENDÊNCIA
FUNCIONAL
Para que possamos admitir que um determinado ente (usamos a expressão
ente porque entendemos que, ao contrário da designação como órgão, denomina
melhor a verdadeira natureza jurídica do ministério público), seja ele qual for, detenha autonomia funcional (autonomia para desempenhar a sua função institucional)
é necessário que ele reúna, em torno de si, três pressupostos básicos, quais sejam,
uma lei, conforme os ditames da Constituição, que o institua juridicamente; uma
própria dotação orçamentária, que seja a ele designada; e uma função específica que
seja por ele desempenhada, isto é, uma função peculiar.
Com efeito, o primeiro dos pressupostos e de todos os mais importante, pois
lhe confere existência jurídica, é o de haver uma lei que o institua, obedecendo-se,
por óbvio que é, aos princípios e regras do ordenamento jurídico. Caso contrário,
tal ente não teria qualquer significação para o mundo jurídico.
Insta salientar, consoante se nota na redação do parágrafo segundo, do artigo
127 da Constituição Federal, que tal lei será de iniciativa do ministério publico, podendo este propor ao Poder Legislativo a criação e a extinção de seus cargos e serviços auxiliares, estabelecer a política remuneratória e os planos de carreira, bem
como disciplinar as suas organização e funcionamento.
Vê-se, portanto, que o espectro de atuação do Poder Legislativo é, neste caso,
de natureza reduzida, não tendo tal Poder a discricionariedade para regular toda e
qualquer matéria relativa acerca do parquet.
No que concerne à dotação orçamentária, quando a expusemos como um
dos pressupostos, o fazemos não com a exigência de que seja criada e aprovada pelo
próprio ente, mas que seja aprovada e criada em função de um determinado ente,
de forma obrigatória, sem que, por qualquer razão, mesquinhas ou não, uma pessoa
jurídica de direito público possa não direcionar uma determinada verba em prol de
determinado ente. Vale dizer, a porção do orçamento destinada àquele determinado ente não poderá ser redirecionada para qualquer outro fim, de maneira a comprometer o desempenho das funções por parte deste, pois se o fizer não só restará
configurada improbidade administrativa, como também desvio de finalidade.
Convém ressaltar que este segundo pressuposto também é, deveras, relevante,
visto que, conquanto exista juridicamente um determinado ente, fundamental é para
que desempenhe a função para qual foi concebido que tenha recursos para o fazer.
Aliás, a este respeito, cumpre destacar que a Constituição Federal, em seu artigo 127, parágrafo terceiro, determinou, expressamente, que o ministério público
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
309
elaborará a sua proposta orçamentária. Desta forma, nota-se, de forma insofismável,
que o espírito do legislador constituinte foi o de atribuir o máximo de liberdade possível a este órgão no que concerne à configuração de seu orçamento. Tanto é assim,
que a Constituição impôs como único limite no ato de elaboração da proposta orçamentária a obediência, por parte do parquet, aos limites estabelecidos na lei de
diretrizes orçamentárias.
Por fim, mas não menos importante, o terceiro pressuposto, como já expusemos há pouco, é o que estabelece como ente aquela figura jurídica que tem uma
função peculiar, ou seja, uma função que lhe seja específica e que, por isso, o diferencie entre os demais órgãos e instituições. Vale dizer, se o Estado cria dois ou mais
entes para desempenhar uma mesma função, o que não é, em princípio, impossível,
temos um Estado certamente ocioso, que se presta a destinar recursos e criar normas que, além de redundantes, acabam por ser, também, inúteis.
3.
O PROBLEMA DA NÃO-PERSONALIDADE JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Antes de adentrarmos propriamente nas conseqüências pragmáticas do princípio constitucional da independência funcional no ordenamento jurídico vigente,
releva assentar, inicialmente, que o ministério público, como a doutrina nacional na
sua totalidade assevera, não possui personalidade jurídica, cuidando-se, na realidade, de um órgão.
Todavia, interessante é notar que, apesar disso, tal órgão, não só pratica atos
em nome próprio, seja fora ou dentro da relação processual, como os membros que
compõe o mesmo, isto é, os promotores e procuradores de justiça (verdadeira personalização do ministério público), respondem, civil (CPC, art.85) penal e administrativamente (CF, art. 37, § 6º), por seus atos1.
Diante disso, poderia parecer, à primeira vista, que o ordenamento jurídico
criou uma situação inteiramente anômala no que tange ao Parquet, vez que, a um
só tempo, não conferiu personalidade jurídica, mas lhe atribui responsabilidade.
Em outras palavras, estabeleceu a conseqüência (responsabilidade pelos atos praticados) sem assentar seu pressuposto, qual seja, atribuir-lhe uma personalidade
jurídica.
Não fosse isso suficiente, a Constituição de 1988 ainda lhe atribuiu autonomia
funcional, ou seja, autonomia para que desempenhe a função para qual foi criado e
instituído. Dito isto, para que possamos resolver esta aparente difícil equação jurídica, faz-se necessário ter em mente, os pressupostos, já mencionados, da verdadeira
autonomia funcional, ao nosso ver.
1 FACHIN, Zulmar. Responsabilidade Patrimonial do Estado por Ato Jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 1ª ed.,
2001.
310
faculdade de direito de bauru
Releva notar, inicialmente, que não há qualquer contradição no ordenamento
jurídico pátrio ao definir um ente, o qual não é dotado de personalidade jurídica,
mas pode ser responsabilizado juridicamente por seus atos (assim como os seus
membros). Isto porque a idéia que marca a constituição do ministério público, é a
de conceber o Estado um ente, mantido e criado por ele, mas que tivesse, ao mesmo tempo, independência para atuar até mesmo, conforme o caso, contra ele.
Dentro desta concepção, tomando-se o ministério público tanto como um fiscal da lei quanto como parte em um processo, não poderia este se encontrar vinculado juridicamente a qualquer dos poderes do Estado, tanto para manter a igualdade de independência e autonomia entre esses (executivo, legislativo e judiciário2),
quanto para garantir a máxima autonomia deste ente, tudo em prol da manutenção
do ordenamento jurídico.
Sendo assim, optou o Estado por não conferir personalidade jurídica ao ministério público, como forma de não vinculá-lo juridicamente a si, pois, de outra
modo, isto é, conferida tal personalidade jurídica ao ministério público, este seria,
ao menos, uma pessoa jurídica de direito público (seja como autarquia, seja como
fundação pública), ou, quando menos, estaria submetido a esta (considerado, neste caso, como órgão, em sentido estrito, submetido ao Estado) e, portanto, nesses
casos, acabaria por restar, jurídica e institucionalmente, atrelado ao Estado.
Pensamos, assim, que o ministério público, apesar de ser considerado, pela
maior parte da doutrina3, como um órgão, ou seja, como um ente sem personalidade jurídica que se encontra submetido aos comandos da pessoa jurídica de direito
público a qual está subordinado (numa visão essencialmente administrativa4), não se
enquadra, a rigor, dentro desta moldura pré-fabricada do direito administrativo, vez
que possui características peculiares, que o diferencia desse.
Servem de exemplo, para evidenciar tais características peculiares, o fato de o ministério público possuir um regime jurídico próprio5, com uma lei orgânica própria6,
algo que não é comum, no ordenamento jurídico pátrio, à maioria dos órgãos.
2 MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Note-se que não há na doutrina um posicionamento pacífico quanto à divisão de poderes, havendo entendimentos que defendem dois poderes ou funções
(administrativa e jurisdicional, conforme Oswaldo Aranha Bandeira de Mello – Princípios Gerais do Direito Administrativo, Forense, v. I, 2ª, 1979, pp. 24 a 33, ou de criar o direito e executar o direito, consoante Hans Kelsen –
Teoria General Del Derecho y Del Estado, Imprensa Universitária, México, 1950, tradução de Eduardo García Maynez, pp. 268-269) e outros que defendem quatro “atividades” (executiva, legislativa, judicial e de governo, de acordo com Otto Mayer, citado por Celso Antônio Bandeira de Mello em seu “Curso de Direito Administrativo”, na sua
14ªedição, pp.17-18).
3 MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao ministério público. São Paulo. Saraiva. 3ª ed., 2000.
4 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. Malheiros, São Paulo, 2002; DE PIETRO, Maria Sílvia Zanella, Curso de Direito Adminitrativo, Atlas, São Paulo, 2002.
5 MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime jurídico do ministério público. São Paulo. Saraiva. 5ª ed., 2001.
6 Lei nº8.625 de 12 de fevereiro de 93, a qual deve ser analisada com o auxílio da lei complementar nº 75/93 modificada pela lei complementar nº88/97.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
311
Outra marca distintiva do parquet, é a própria independência funcional (princípio constitucional institucional7) e administrativa proclamada pela Constituição Federal, como já assinalado linhas atrás. Como se sabe, segundo a doutrina administrativista clássica8, os órgãos, em geral, não possuem independência funcional nem,
muito menos, uma independência elevada a um patamar constitucional. Estes, normalmente, são meras figuras auxiliares das pessoas jurídicas de direito público. Vale
dizer, são corpos auxiliares que colaboram no exercício e desempenho das atividades essenciais ou de alguma forma relacionadas com os fins daquela pessoa jurídica
de direito público. Em uma só palavra, os órgãos, tomados à luz do direito administrativo, são corpos sem vida própria, pois são acessórios que seguem o principal (a
pessoa jurídica de direito público).
Sendo assim, resta evidente, por conseguinte, que o ministério público não
se enquadra dentro da figura de órgão que o direito administrativo nos ensina. Desta forma, entendemos que a única solução para o deslinde desta problemática reside em considerarmos o ministério público como um órgão sui generis, um órgão
especial, ou seja, como um órgão em sentido amplo, vez que este tanto não se enquadra no conceito clássico de órgão quanto não possui uma personalidade jurídica própria.
Note-se, a esse respeito, que defendemos este posicionamento doutrinário,
pois se valendo do mecanismo da analogia9 (método integrativo de aplicação do direito10 utilizado quando não se encontra no ordenamento jurídico um instituto jurídico adequado para regulamentação de uma situação jurídica), o instituto jurídico
existente mais próximo (ou melhor, menos distinto) do ministério público é exatamente o órgão.
Desta forma, então, é possível conceber o ministério público como um órgão
(sui generis, é claro), e, ao mesmo tempo, contemplar uma solução para a pseudo
contradição em que teria supostamente incorrido o ordenamento jurídico constitucional, pois, utilizando-se de tal explicação, podemos admitir, a um só tempo, um
ente sem personalidade jurídica, mas dotado de responsabilidade jurídica. Diga-se,
então, que, por meio de tal raciocínio, podemos encontrar uma solução que preserve a unidade e harmonia do sistema jurídico11.
7 PINHO, Humberto Dalla. Princípios institucionais do ministério público. Rio de Janeiro: Lúmen Júris.
8 BANDEIRA DE MELLO, Osvaldo Aranha. Princípios básicos do direito administrativo. Rio de Janeiro, Forense,
1959.
9 ATIENZA RODRÍGUEZ, Manuel. Sobre la analogía en ele derecho, Madri, 1986, ed. Cívitas.
10 LACOMBE CAMARGO, Margarida Maria. Hermenêutica e argumentação. Rio de Janeiro, Renovar, 2ª, 2001;
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, Forense, Rio de Janeiro, 1999; STRECK, Lênio Luiz.
A hermenêutica jurídica e(m) crise, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
11 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito.
312
4.
faculdade de direito de bauru
CONSEQÜÊNCIAS PRAGMÁTICAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO
VIGENTE E SUA NECESSÁRIA RELEITURA CONSTITUCIONAL DE
MANEIRA A CONFERIR EFICÁCIA AO MANDAMENTO CONSTITUCIONAL QUE ESTABELECE A INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL DO
MINISTÉRIO PÚBLICO
Estabelecidos os pressupostos básicos de constituição do ministério público e analisado o problema da sua falta de personalidade jurídica, cumpre assinalar, agora, quais são as suas conseqüências na própria forma de atuação do ministério público.
Assentadas estas premissas e dirimidas estas falsas problemáticas, passemos,
então, a tratar de quais sejam as conseqüências da independência funcional na própria forma de atuação do ministério público12.
A primeira das conseqüências pragmáticas decorrentes da aplicação do princípio constitucional da independência funcional consiste em ter o ministério público um melhor amparo, no que concerne a certas atividades secundárias que dão
base ao desempenho de suas funções essenciais.
Vejamos o seguinte exemplo. Em um dado processo (ou inquérito policial, ou
procedimento administrativo), vê-se o membro do parquet com a obrigação de emitir um parecer acerca de determinada perícia contábil, a qual se encontrava anexada aos autos de um processo que apura a possível prática do crime de lavagem de
dinheiro (Lei nº 9.613/98)13. Poderá, realmente, diante desta situação, o membro do
ministério público formular a sua opinio delicti com tal consciência dos fatos?
Parece-nos, certamente, que não. E o motivo é óbvio: falta ao membro do parquet capacidade técnica “real” para emitir o aludido parecer.
Ora, como se sabe, um promotor de justiça tem formação em letras jurídicas,
não tendo nem sequer noção de conhecimentos básicos de contabilidade. Sendo assim, para que o ministério público possa, realmente, desempenhar com autonomia
processual as suas funções constitucionais, mister se faz que o mesmo se encontre
amparado por uma boa equipe de profissionais técnicos, com formação nas mais diversas áreas do conhecimento científico e que esta integre os quadros permanentes
desta instituição, pois, somente desta forma, o membro do parquet poderá formar
com segurança o seu juízo de convencimento em torno dos fatos que são apurados
no processo.
12 CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência – aspestos da cultura popular do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
13 Poderia se lembrar, ainda, o exemplo das desapropriações com fins de reforma agrária, nas quais o ministério público federal vê-se às voltas com o problema de como opinar com independência funcional em torno de qual seja,
realmente, o laudo técnico de avaliação das terras que se encontra perfeitamente correto, ou seja, se é aquele elaborado pelo perito do Juízo ou, se é o confeccionado pelo perito contratado pelo INCRA.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
313
Não se diga, por sinal, que esta última proposta é dispendiosa ou inovadora,
pois na verdade não o é, uma vez que o próprio constituinte a previu ao se referir a
serviços auxiliares no artigo 127, § 2º, da Constituição Federal, in verbis:
“Ao Ministério Público é assegurada a autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao
Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas
e títulos, a política remuneratória e os panos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento” (grifo nosso).
A segunda conseqüência é a do estabelecimento de uma nova regra para eleição do procurador geral de justiça. Ao nosso ver, tal regra deve ser marcada pelos
seguintes aspectos: a) elaboração de uma lista tríplice de força vinculante; e a b) extensão do direito de voto a todos os promotores de justiça, não ficando mais assim,
pois, tal eleição restrita aos votos dos procuradores de justiça14.
Estes novos aspectos certamente diminuirão em muito o grau de ingerência
política do Poder Executivo no ministério público, credibilizando, desta forma, mais
ainda, a função desempenhada pelos membros deste ente.
Note-se, por oportuno, que não partilhamos do entendimento que sustenta a possibilidade de o próprio ministério público, por meio do voto exclusivo
de seus membros, eleger seu procurador-geral de justiça, vez que admitida tal
possibilidade, a rigor, resta concretizada, no nosso entender, uma ofensa ao
princípio constitucional da autonomia e independência dos Poderes15 – CF, art.
2º -, já que se estaria conferindo ao ministério público o status de um órgão16
que não estaria submetido à ingerência de quaisquer dos Poderes do Estado, ou
seja, seria uma espécie de Quarto Poder, na medida que seria um Poder independente e autônomo.
Sendo assim, tal entendimento não merece prosperar, pois além de o ministério público não ter sido alçado pela Constituição Federal de 1988 ao status de
Quarto Poder, a própria Magna Carta permite ingerências por parte dos três Poderes do Estado, seja autorizando a escolha do procurador-geral de justiça por parte
do Chefe do Poder Executivo17, seja submetendo o projeto de lei orgânica do ministério público à aprovação do Poder Legislativo, apesar de esse ser de iniciativa do
14 Nesse sentido, aliás, é a lei orgânica do ministério público de São Paulo.
15 SALDANHA, Nelson. O Estado moderno e a separação dos poderes. São Paulo: Saraiva, 1987; BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 16-17; BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social, 5ª, Belo Horizonte: Del Rey Editora, 1993, p. 27.
16 Saliente-se que tal vocábulo deve ser entendido conforme os esclarecimentos desenvolvidos no terceiro tópico.
17 Observe-se, a esse respeito, as considerações feitas anteriormente.
314
faculdade de direito de bauru
próprio órgão, seja, por fim, admitindo o controle deste “órgão”, de seus membros
e de seus atos processuais ou não por parte do Poder Judiciário.
Uma terceira conseqüência, ao nosso ver, é a mitigação do princípio da obrigatoriedade no processo penal. Afinal, parece-nos, no todo, incompatível a convivência do princípio da independência funcional (de patamar constitucional) com
uma mordaça infraconstitucional (um limitador do pensamento e da livre consciência do promotor de justiça, o qual é considerado pelo ordenamento jurídico processual nacional, de origem facista, como ser que não pensa, mas que cumpre ordens),
erradamente confundida pela maior parte da doutrina processualista nacional com
o princípio da legalidade.
Com efeito, não nos parece admissível que um princípio constitucional seja limitado e interpretado à luz de um princípio infraconstitucional, tanto por razões e
hierarquia e harmonia do ordenamento jurídico quanto porque, no mundo moderno, marcado cada vez mais pela relatividade das definições, é impossível conviver
com conceitos absolutos.
Ademais, conceber o princípio da obrigatoriedade conforme os moldes atuais
é, como já tido, tomar o promotor de justiça, ou seja, o ser pensante, como um
mero cumpridor automático de ordens.
Desta forma, segundo o nosso entendimento, com a Constituição Federal de
1988, o membro do ministério público não se encontra mais obrigado a ter que oferecer, de regra, a denúncia, ou a não poder desistir do recurso interposto (CPP, art.
576), pois tem independência funcional (a qual é diferente da independência administrativa).
Cumpre salientar, ainda a esse respeito, que não se deve confundir o princípio da obrigatoriedade, de índole infraconstitucional, com o princípio do sistema
acusatório18, de feição constitucional, pois o fato de o ministério público deter, com
exclusividade, o poder de promover a persecutio criminis in juditio, ou seja, de
propor a ação penal, não significa que deva fazer isso obrigatoriamente em todos casos. Nesse sentido, a justa causa, entendida como uma das condições gerais da ação
penal – CPP, art. 43, deve ser entendida como uma decorrência do princípio constitucional da motivação das decisões – CF, art. 93, IX19, na medida em que se deve
exigir do promotor argumentos fáticos plausíveis para oferecer uma denúncia.
Aliás, é movido também por esse princípio, que já se identifica no ordenamento jurídico mitigações isoladas do princípio da obrigatoriedade (a exemplo dos artigos 72 a 76, da Lei nº9.099/9520), como é o caso, por exemplo, da transação penal.
18 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório no processo penal, Lúmen Júris, 2000.
19 Apesar de termos citado dispositivo constitucional relativo ao Poder Judiciário, ressalte-se que, assim o fizemos, com
o escopo de nos valermos de um recurso de analogia processual, expressamente permitido pelo artigo 2º do CPP.
20 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance e GOMES,
Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: RT, 4ª, 2002.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
315
Note-se, contudo, que grande parte da doutrina nacional diverge deste entendimento por nós aqui defendido, sob o argumento de que se trata de hipótese de
aplicação do princípio da oportunidade21, ou da discricionariedade regulada ou regrada22. Mas o certo é que, qualquer seja o argumento, é indiscutível que o princípio
da obrigatoriedade está por sofrer uma inicial e progressiva mitigação no campo
processual penal.
Outra conseqüência da aplicação do princípio da independência funcional,
desta feita exercendo suas influências no campo processual civil (CPC, arts. 81 a 85),
é a flexibilização da intervenção do ministério público nas causas em que há interesse de incapazes (CPC, art. 82, I), isto porque não são todos os processos em que há
interesse de incapaz que se pode identificar uma das finalidades constitucionais de
atuação do ministério público (CF, art. 127, caput), ou seja, defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Tomemos o seguinte exemplo. Uma jovem de 17 (dezessete) anos presta concurso vestibular para faculdade de medicina de Alfenas (MG). Passados 03 (três) meses, esta impetra um mandado de segurança pleiteando a sua transferência para faculdade de medicina de Salvador (BA), alegando por motivos de ordem familiar e
econômica. Pergunta-se: é realmente necessário, nesse caso, a intervenção do ministério público no processo, somente por se tratar a jovem de menor relativamente incapaz?
Decididamente, pensamos que não. Não há na presente hipótese qualquer
interesse individual indisponível em jogo, mas apenas o interesse individual disponível exclusivo da jovem que deseja obter a transferência. Vê-se, então, que
não é caso de atuação do ministério público. Esta é, aliás, uma conclusão a que
se pode chegar por meio da aplicação do princípio da proporcionalidade23 ao
caso concreto dado como exemplo, já que é necessário se fazer uma ponderação de todos os valores envolvidos na determinação legal de intervenção ou não
do ministério público.
Outra conseqüência encontra-se na designação do segundo promotor de justiça pelo procurador geral de justiça para que aquele ofereça “obrigatoriamente” a
denúncia, nos moldes do artigo 28 do CPP.
No que concerne especificamente a essa providência, há uma acirrada discussão doutrinária. Senão vejamos.
21 JARDIM, Afrânio Silva. Ação Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
22 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance e GOMES,
Luiz Flávio..., p. 97.
23 Acerca do princípio da proporcionalidade é salutar o estudo dos seus subprincípios: a) subprincípio da adequação, b) subprincípio da necessidade e c) subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito. Sobre o assunto consulte-se BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Malheiros, 10ª, pp. 356 a
397.
316
faculdade de direito de bauru
Para a grande maioria da doutrina, a exemplo dos professores Vicente Greco Filho24, Fernando da Costa Tourinho Filho25, Eduardo Espínola Filho26, Julio Fabbrini Mirabete27, Damásio Evangelista de Jesus28, Edgard Magalhães Noronha29, Hélio Bastos Tornaghi30, Bento de Faria31, José Frederico Marques32 e Basileu Garcia33, não pode o promotor
designado pelo procurador-geral de justiça recusar-se a oferecer a denúncia por este determinada em razão de um imperativo de hierarquia previsto em lei (Lei nº8.625/93, art.
10, inciso IX, d), bem como porque não há qualquer ofensa à consciência do promotor,
vez que o mesmo age por delegação do chefe do ministério público.
Contudo, no nosso entender, e dos professores Paulo Cláudio Tovo34 e José Paganella Bosh35, o promotor, apesar de designado pelo procurador-geral de justiça, não deve
estar obrigado a oferecer a denúncia, pois tal exigência, além de ofender o princípio da
independência funcional (CF, art. 127, § 1º), é de todo desnecessária, vez que, se o procurador-geral de justiça está tão convicto do oferecimento da denúncia, nada impede que
ele mesmo o faça.
Com efeito, releva notar que a própria denúncia fica, em muito comprometida, se
o promotor que deve, em tese, oferecer a denúncia, não está convicto disso, pois se o
próprio está em dúvida acerca dos elementos que devem compor a exordial acusatória,
como, por exemplo, a justa causa, em obediência ao princípio constitucional do in dubio pro reo (CF, art. 5º, LVII), como quer o professor Afrânio Silva Jardim36, não deve ser
oferecida denúncia, vez que, em razão do aludido princípio, cabe ao ministério público,
no nosso entender, o ônus da prova, ou seja, o ônus de demonstrar que o acusado realmente é o autor de um determinado delito, na sua inteireza (tipicidade, antijuridicidade
e culpabilidade), como decorrência do princípio constitucional da presunção de inocência – CF, art. 5º, LVII37.
24 GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal, São Paulo: Saraiva, 1999.
25 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. vol. 02. São Paulo: Saraiva.
26 ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, vol. 1º, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1960.
27MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. São Paulo, Atlas, 1999.
28 JESUS, Damásio Evangelista. Código de Processo Penal interpretado, São Paulo: Saraiva, 2000.
29 NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 1996.
30TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de Processo Penal, vol. 02. São Paulo: Saraiva, 1977.
31 BENTO DE FARIA. Código de processo penal. vol. 02, 1942.
32 MARQUES, José Frederico. Elementos de Processo Penal, vol. 02, São Paulo: Bookseller, 1999.
33 GARCIA, Basileu, Comentário ao Código de Processo Penal, vol. 03, Rio de Janeiro: Forense, 1945.
34TOVO, Paulo Cláudio.Apontamento e guia prático sobre a denúncia no processo penal brasileiro, Porto Alegra, Sérgio Fabris, 1986.
35 BOSH, José Paganella. Processo penal, Porto Alegre, Aide, 1995.
36 JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 9ª ed., 2000.
37 Sobre o assunto é de grande importância a leitura do terceiro capítulo – “Sobre o conteúdo processual tridimensional do princípio da presunção de inocência” – da obra “Estudos de Direito Penal e Processual Penal”, São
Paulo: RT, 1ª edição, 2ª tiragem, 1999, de autoria do professor Luiz Flávio Gomes. Note-se, por oportuno, que o aludido autor diverge do posicionamento por nós defendido no presente artigo, sustentando que da aplicação deste
princípio não resulta tal conseqüência, ver páginas 110 a 114.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
317
Ademais, não há de se justificar tal exigência com base na hierarquia, vez que
o promotor, no desempenho de sua função ministerial, não está submetido a qualquer ingerência do procurador–geral de justiça, pois, se assim fosse, força é convir
que poderiam ocorrer situações que distorceriam a atividade do promotor, como,
por exemplo, a de este membro do parquet, para conseguir gratificação ou remoção para uma comarca mais próxima da Capital, promover uma determinada ação
penal para agradar o procurador-geral de justiça, que, seja por seu excesso de trabalho, seja por seu interesse pessoal no desfecho da ação penal, não queria promover,
pessoalmente, a mesma.
Note-se, ainda, que só há falar em hierarquia, no que concerne ao desempenho das atividades do promotor na esfera interno-administrativista do ministério
público, ou seja, interna corporis. Caso contrário, toda vez que o promotor fosse
oferecer alguma denúncia, teria a “obrigação institucional” de consultar o procurador-geral de justiça, para obter desse a sua opinio delicti.
Por fim, sustentamos, ainda, que não assiste razão àqueles que defendem o
posicionamento contrário sob o argumento de que se viesse a se permitir que o promotor designado pudesse divergir da instrução do procurador-geral de justiça, demorar-se-ia demasiadamente para se oferecer a denúncia, correndo-se, desta forma,
o risco de vir a prescrever o delito. Contudo, isto não é verdade, pois, como já foi
destacado, o próprio procurador-geral de justiça pode oferecer a denúncia, evitando, assim, uma possível prescrição.
Saliente-se, por fim, acerca das conseqüências pragmáticas, que as que foram
por nós aqui lembradas não são e não devem ser as únicas vislumbradas no ordenamento jurídico, havendo, a esse respeito, muitas outras. Vale dizer, os casos aqui
destacados devem ser tomados exemplificativamente.
5.
CONCLUSÃO
Ante o exposto, torna-se imprescindível uma releitura de toda a legislação infraconstitucional relativa à atuação do ministério público com espeque nos novos
princípios e finalidades estipulados pela Constituição Federal de 1988 e, mais notadamente, com base no princípio da independência funcional.
Vale dizer, é necessário pensarmos o ministério público conforme a Constituição, pois é ela que deve constituir a sua ação38.
Se o ministério público foi reinventado, regenerado e fortalecido pela atual
Magna Carta para que tenha uma atuação muito mais eficaz na sociedade39, força é
38 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego. 3ª edição. Portugal-Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp.439-517.
39 PASUKANIS, Eugeni B. Teoría general Del derecho y marxismo, trad. Virgílio Zapatero, Barcelona, 1976, ed.
Labor.
318
faculdade de direito de bauru
convir que esta mesma Magna Carta deve pautar e orientar todas as suas atividades
intra e extraprocessuais, pois, somente desta forma, poderá alcançar a defesa do ordenamento jurídico pátrio e do Estado Democrático de Direito, ainda que, dessa
maneira, não se desvincule da manutenção da ordem constituída e, por conseqüência, da defesa, direta ou indireta, dos interesses da classe social predominante, servindo assim como instrumento jurídico de controle40 sócio-econômico41 e políticocultural42, impregnado pelo seu “poder simbólico”43 44.
40 MARX, Karl. Manuscritos Econômicos – Filosóficos. Trad. Artur Morão. Portugal – Lisboa: Textos filosóficos, edições 70, 1964; LOCKE, John. Carta sobre a Tolerância. Trad. João da Silva Gama. Portugal – Lisboa: Textos filosóficos, edições 70, 1965; NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Trad. Artur Morão. Portugal – Lisboa: Textos filosóficos, edições 70, 1964.
41 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal – Introdução à Sociologia do Direito
Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos, Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1999; ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da reação social, Trad. E. Kosowski, Rio de Janeiro, 1983, ed. Forense; BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 5ª edição. Rio de Janeiro: Revan.
42 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas. Trd. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição, Rio de Janeiro: Revan, 1991.
43 SANTANA, Heron José de. “Ministério Público e Poder Simbólico”, in Revista do Ministério Público do Estado
da Bahia, Salvador, v. 06, nº08, jan-dez, 1997. Nesse sentido, vale transcrever o seguinte trecho: “O que importa ressaltar é que o Ministério Público, enquanto defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos
sociais, detém uma enorme gama de poderes, já que: a) como um delegado de polícia investiga ilimitadamente qualquer ofensa ao direito (por exemplo, instaura e preside o inquérito civil); b) como um juiz, homologa a
conciliação dos interesses ou decide pelo arquivamento das investigações, independentemente de pronunciamento do Poder Judiciário; c) ou como um advogado da sociedade, é legitimado, com relatividade exclusividade, a propor ações civis ou penais públicas, perante o judiciário, visando a condenação de qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada a submeter-se às sanções previstas na lei, nos casos de ilegalidade”. Com
efeito, “é este papel amplo e diversificado, aliado a um concurso público tradicionalmente sério e difícil (trazendo para os seus quadros boa parte dos melhores advogados do país) que, nos parece, determina o prestígio
(status, poder simbólico) de que gozam os agentes do Ministério Público no campo jurídico, a despeito do relativo desconhecimento do seu papel pelo senso comum”.
44 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, Rio de Janeiro: Graal, 1979.
O ENSINO JURÍDICO E A RESPONSABILIDADE SOCIAL
DO PROFISSIONAL DO DIREITO
Antonio Carlos de Oliveira
Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia.
Membro Efetivo da Academia Nacional de Direito do Trabalho.
Membro Efetivo da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.
Uma das grandes preocupações da Ordem dos Advogados do Brasil é a qualidade do ensino jurídico, não só para que cheguem ao mercado de trabalho profissionais preparados para o desempenho eficiente de suas atividades, mas também
para que saiam dos cursos de Direito pessoas comprometidas com a ética e com a
sua responsabilidade social.
Há muito, vem a OAB se dedicando, exaustivamente, ao exame detido e aprofundado das mazelas que contaminam a formação dos profissionais do Direito e que
os fazem estigmatizados perante a sociedade por causa daqueles que não se conscientizaram do relevante papel dos operadores do direito no momento histórico em
que vivemos.
Claro que quando se busca formar pessoas para a lida forense, o objetivo não
é somente dotá-las de uma bagagem de conhecimentos especializados, como instrumental para um bom desempenho nos misteres a que se dedicarem. É preciso que
se forme nessas pessoas a boa consciência da sua relevante missão de cidadão aliada ao seu importante destino como fator de influência no meio social, no cumprimento dos seus deveres profissionais, atuando com probidade e responsabilidade,
servindo de exemplo como paradigmas éticos, operosos e eficientes.
A comunidade em que atuam os profissionais de qualquer área tem a legítima
expectativa de vê-los a desempenhar os seus fazeres com a competência e a serie-
320
faculdade de direito de bauru
dade, que são as motivações para a sua credibilidade. No campo do Direito, quando, principalmente, o fator patrimonial está em jogo ou a liberdade, por exemplo, e
os conflitos de interesses alcançam índices acirrados, o empenho do profissional do
Direito assume fundamental importância para a salvaguarda dos direitos das pessoas, que nele confiam e que deles esperam a defesa responsável e eficiente de seus
interesses.
Estando, por conseguinte, na ordem do dia o ensino jurídico, e voltadas as atenções para a melhor forma de ser ministrado, dois aspectos são visualizados como fundamentais: a metodologia didático-pedagógica e o currículo mais apropriado. Em busca de encontrar-se o ideal nesses dois aspectos, fala-se em crise do ensino jurídico. Três
orientações, nesse particular, encontramos, com visões que seus seguidores consideram decisivas e solucionantes: 1) a que pretende verem os cursos de direito como meros formadores de técnicos em Direito e os aponta como excessivamente teóricos; 2)
a que insiste deverem estar esses cursos voltados para um questionamento da relação
entre o Direito, a Sociedade e o Estado, com pretensão de formarem eles juristas críticos, e ressaltam o mal de serem totalmente dogmáticos e sumamente práticos; 3) e a
que não quer que os cursos jurídicos sejam meras fábricas de práticos nem de críticos,
mas também formadores de profissionais perfeitamente habilitados para a sua missão
e conscientes de seu papel na sociedade.
Com efeito, não pode o ensino jurídico continuar sendo ministrado como
mero transmissor de conhecimentos jurídicos. O professor de Direito não pode
continuar a ser um mero exibidor de uma cultura jurídica de fachada, monologando em sala de aula, diante de estudantes ouvintes apáticos de uma verbosidade
muitas vezes incompreensível, testemunhas passivas e desmotivadas de um discurso vazio e inconseqüente.
O professor de Direito tem de estar comprometido com objetivos condizentes com um ensino jurídico engajado na construção de uma sociedade melhor e
mais justa, a fim de conscientizar o futuro bacharel do seu compromisso para com
a sociedade, não só como cidadão mas também como profissional do Direito, seja
qual for a sua área de atuação, isto é, como advogado, juiz, promotor, procurador,
delegado de polícia, e também como professor.
E quando me refiro ao compromisso do professor de Direito para com a sociedade, é mister que acentue a necessidade de, na admissão de docentes nas escolas de
Direito, não só serem apurados os seus conhecimentos e o seu domínio da disciplina
que vai lecionar, mas também de verificar qual a sua visão do papel do ensino jurídico
na formação de profissionais conscientes e comprometidos com o desenvolvimento da
sociedade, em que vivem para torná-la um habitat da justiça social.
É preciso evitar o que vem acontecendo há tempos: os estudantes de Direito
saem das Faculdades para sofrerem o impacto de descobrirem o descompasso entre a formação recebida nas salas de aula e o universo dos conflitos sociais; não trazem, para essa realidade crucial, o instrumental teórico-prático, que lhes petrecham,
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
321
acompanhado da consciência plena de seu relevante papel como operadores do direito diante das exigências de um sociedade necessitada de humanização, tão repleta de desigualdades e injustiças.
É comum ouvirmos de professores de direito referências contundentes contra o ensino jurídico da forma como vem se processando, com todos os vícios de
uma cultura juspositivista e jusnaturalista. Acentuam os males que ela provoca propiciando as lamentáveis distorções tão bem conhecidas. Todavia, em sala de aula,
boa parte desses mestres tão eficientes na crítica que fazem, têm um desempenho
que pouco se afasta da postura magisterial por eles mesmos repudiada.
Esse comportamento contraditório advém certamente da incapacidade de saberem aplicar na prática os postulados que sustentam tão veementemente ao fazerem a crítica do ensino jurídico.
É que está na vocação do mestre de direito a sensibilidade e o descortino que
lhes conferem condições efetivas de exercerem o magistério seguros e conscientes
de sua responsabilidade de guias de gerações na preparação do futuro operador do
direito, segurança e consciência que os libertam da metodologia ultrapassada de
meros transmissores de conhecimentos jurídicos e que os levam a pôr em prática,
com eficiência e aproveitamento, as concepções de uma pedagogia apropriada à
formação de cidadãos cônscios de seu papel social quando no exercício de seus misteres profissionais.
Não foi sem razão que a OAB criou a Comissão de Ensino Jurídico no Conselho Federal e nas Seccionais, “para uma reflexão revificadora da produção de conhecimentos jurídicos, e de seu ensino, em condições de perceber novos processos de
criação do direito”, como bem acentuou o Dr. Marcello Lavenère Machado, que,
com tanta proficiência presidiu a entidade. São também suas estas palavras lapidares e cheias de verdade:
“Sem dúvida a praxe judiciária, a prática jurídica em geral, e o ensino
jurídico interagem como expressões do mesmo universo, e reflexo
de um país cada vez mais imerso na desigualdade, na injustiça e na
violência. Melhorar o ensino jurídico significa fornecer ao futuro advogado o instrumental técnico e crítico para compreender a realidade dentro da qual exercerá sua profissão, agindo sobre ela. Isso implica uma visão permanentemente aberta, que ultrapasse o mecanismo positivista, reprodutor daquela realidade”.
Se o desiderato é preparar profissionais do Direito socialmente responsáveis
e comprometidos com uma política que atenda aos reclamos de uma sociedade que
vive à míngua de iniciativas eficazes para a concretização de uma cidadania autêntica e condizente com o estado democrático de direito, mister se torna que os professores de direito se espelhem nos seus colegas que já se encontram imbuídos do
322
faculdade de direito de bauru
espírito renovador de formadores de profissionais preparados para uma realidade
chocante em condições de poderem influir na modificação do status quo degradantemente injusto.
Nessa preparação, de que são mentores, devem levar em conta aspectos da
maior relevância para um desempenho produtivo.
A tarefa de ensinar envolve, essencialmente, um currículo, pelo qual se sabe o
que ensinar, e a didática, com a qual se sabe como ensinar (calco-me, de agora por
diante, no estudo de Álvaro Melo Filho, Juspedagogia: ensinar direito o direito).
Quanto ao currículo, hoje em dia existem diretrizes oficiais que apontam caminhos objetivos e salutares para que, nos cursos jurídicos, se consiga o atendimento às necessidades de uma formação fundamental exemplar.
No que tange ao como ensinar, isto é, quanto à metodologia didática, há indicações também nessas diretivas oficiais, consubstanciadas na Portaria MEC n.
1.886/94.
Como, geralmente, os professores de Direito não possuem qualquer formação ou mesmo informação sobre o método de ensino, os cursos jurídicos têm, na
sua maioria, se cingido a derramar no mercado de trabalho um número considerável de bacharéis em direito com gritantes deficiências técnico-profissionais.
A prioridade que se dá, ultimamente, a docentes titulados, a preocupação
com a adequação das instalações físicas; a atenção reservada acuradamente ao
acervo bibliográfico e o planejamento de um sistema didático-pedagógico abrangendo atividades complementares e procedimentos práticos vinculados à formação jurídica; todo um esforço concentrado, portanto, com vistas a uma qualificação de excelência, enfrenta um percalço, que bem pode tornar praticamente
inócuo o conjunto infra-estrutural perfeitamente constituído e custosamente
construído.
Esse percalço vem a ser o desempenho didático dos professores, com a adoção do método quase que exclusivamente expositivo, mediante aulas monologadas,
com uma carga horária insuficiente, em turmas gigantes, consideradas tais as com
mais de 50 alunos, juntando-se a isso o fato de cingir-se o estudo a um livro-texto ou
a apostilas e o de disciplinas mal dimensionadas (muito conteúdo para pouco tempo destinado ao seu desenvolvimento).
Por sua vez, os professores de direito são quase todos advogados militantes,
magistrados, procuradores, defensores públicos, promotores de justiça, gente, portanto, que exerce atividade paralela, que é a principal, porque lhe confere ganhos
maiores do que a baixa e ridícula remuneração de docente. Dando prioridade e
maior atenção a essa ocupação profissional, que lhes propicia melhor estabilidade
econômica, os professores de direito geralmente não se preocupam com a melhor
forma de transmitir seus conhecimentos jurídicos, limitando-se a dar o seu recado
deficiente, sem se integrar na vida universitária e sem ter consciência da imensa responsabilidade sua na formação do futuro bacharel em direito.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
323
Levando em conta essa realidade desanimadora é de premente necessidade
conscientizar o corpo docente dos cursos de direito sobre a sua relevante missão educadora e levá-los a reconhecer ser absolutamente indispensável uma mudança de postura objetivando os seguintes pontos, dentro outros, igualmente importantes:
a) a adoção de métodos de ensino que procurem aguçar o raciocínio lógicojurídico e propiciar a autonomia intelectual do estudante, garantindo-lhe
preparação para pensar juridicamente e aquisição do instrumental necessário ao enfrentamento dos imprevistos e das diversidades existentes
numa época de transição e de desafios;
b) uma didática jurídica eficiente e de bons resultados é aquela que converte
o aluno/espectador passivo em aluno/participante ativo no processo de
aprendizagem e iniciação ao mundo do direito, provocando a reflexão produtiva;
c) deve ser prioritária a aula dialogada com utilização das técnicas audiovisuais e dos recursos teleinformáticos, sem deixar de lado a realização de
seminários e debates, que promovam a atuação reflexiva e crítica;
d) a figura do professor-informador deve ser substituída pela do professoranimador, e a figura do aluno-ouvinte pela do aluno-pesquisador, pois o
importante em pedagogia jurídica é a consciência da problemática do campo do direito, mais do que o seu simples e puro conhecimento;
e) o ensino jurídico com criatividade deve conjuminar três instantes: o da exposição do problema, o da discussão do problema e o da solução do problema, instigando-se nos alunos o espírito dialético e a capacidade de argumentação, persuasão e improvisação, com respeito, naturalmente, às teses e opiniões contrárias;
f ) o exercício do magistério, no campo do direito, tem a mesma importância
e responsabilidade do exercício de qualquer outra profissão, devendo ter
o mesmo nível de eficiência e responsabilidade a pessoa que, ao mesmo
tempo, é professor e profissional em outra modalidade de atuação.
Ao referir-se ao perfil que ele vislumbra para o advogado na atualidade, mestre Roberto de Aguiar afirma que o grande desafio é superar visões imediatistas que
estão lastreadas, no século XIX, e que “amarram os juristas a um mundo coerente
internamente, mas que se distancia, cada vez mais, da concretude histórica hoje vivida”. Acentua o preclaro homem público:
“O advogado não pode, como agente essencial da aplicação e criação
do Direito, ser apenas um repetidor, mas um incentivador e agente
de transformação técnica, a fim de que a sociedade não fique à mercê dos autoritarismo, dos abusos de poder, das desobediências à legalidade, da banalização da violência e da morte. O advogado há de
ter uma ação transformadora dessas práticas ancestrais”.
faculdade de direito de bauru
324
O perfil que ele traça do advogado se ajusta perfeitamente ao perfil de todo
profissional do direito, o perfil “de um profissional atento às novas manifestações do
Direito, principalmente em um momento histórico onde se formam novas manifestações de poder, novas alianças econômicas, que geram direitos inter-ordenamentos
jurídicos, como no caso do Mercosul, além de estar atento a direitos planetários que
vão sendo constituídos, como nos casos de meio ambiente e no terrível problema
da fome, aspectos que transcendem o internacionalismo clássico para se tornarem
questões jurídicas e políticas que dizem respeito à totalidade do planeta”. E vai mais
além, dizendo:
“Não adianta sermos bons técnicos, com valores definidos, mas ignorando nosso interior, a vida, necessidades e características dos outros, o que está acontecendo com o mundo, quais as tendências da
história, do Direito, dos saberes que procuram dar um sentido para
a vida e para a natureza”.
E, categórico, conclui, e com suas palavras eu encerro a minha fala:
“As faculdades de Direito não podem se cingir a fornecer noções aguadas de tecnalidades normativas. Elas devem dialogicamente construir
instrumentais que propiciem um aumento de consciência de seus discentes, a fim de que eles sejam nimiamente aptos para entender o contexto onde vão operar e o sentido de sua ação no mundo”.
(Pronunciamento proferido no Seminário “Ensino Jurídico – Exame de Ordem”, promovido pela OAB/BA, realizado nos dias 22 e 23 de maio de 2003)
BIBLIOGRAFIA
O ENSINO DO DIREITO, OS SONHOS E AS UTOPIAS – Horácio Wanderley Rodrigues – em Ensino Jurídico: Para Que(M)? – Organizador: Horácio Wanderley Rodrigues – Fundação Boiteux, 2000.
A CONTEMPORANEIDADE E O PERFIL DO ADVOGADO – Roberto A R.de Aguiar –
em OAB Ensino Jurídico; Novas Diretrizes Curriculares – Brasília: Conselho Federal
da OAB – 1996.
JUSPEDAGOGIA: ENSINAR DIREITO O DIREITO – Álvaro Melo Filho – em OAB Ensino Jurídico: balanço de uma experiência – Brasília: Conselho Federal da OAB.
LIBERDADE SINDICAL E ANTINOMIAS
DA CARTA MAGNA DE 1988
Regiane Margonar
Advogada.
Graduada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Aluna especial do curso de mestrado em Direito da Instituição Toledo de Ensino – Bauru.
INTRODUÇÃO
Infelizmente, o art. 8˚ da nova Constituição manteve o sindicato
único (do qual somos adeptos do ponto de vista doutrinário) e a contribuição compulsória. Se, na alínea I, em seguimento ao mandamento do caput do artigo, se dá plena liberdade à organização sindical perante o Estado, devendo ser livre e autônoma a fundação do
sindicato, logo, na alínea II, só se permite a criação de um sindicato
único na mesma base territorial. Chega a lembrar a anedota do pai,
que dava à filha a plena liberdade de casar com quem quisesse, desde que fosse com o João... As primeiras palavras da alínea II chegam
a ser chocantes e pilhéricas: é vedada a criação...1 (grifo nosso).
Destacamos as palavras do renomado doutrinador Evaristo de Moraes Filho,
pelo manifesto poder de síntese e crítica do tema ora tratado. Ainda que se defenda o sindicato único, são inegáveis as antinomias existentes em nossa Constituição.
Mesmo que façamos uma interpretação sistemática do texto constitucional, como
1 MORAES FILHO, E. de. A organização sindical perante o Estado. Revista LTr, São Paulo, v. 52, n.11, p. 1307.
326
faculdade de direito de bauru
muito bem sugere a melhor doutrina, concluiremos pela inevitável contradição de
seus preceitos. Torna-se, dessa maneira, insuperável a tese que proclama por uma
mudança legislativa, no sentido de assegurar a liberdade sindical.
1.
LIBERDADE SINDICAL (DIFERENCIAÇÕES)
Em um primeiro momento, devemos esclarecer que liberdade sindical não se
confunde com pluralidade sindical (existência de mais de um sindicato, representando o mesmo grupo de trabalhadores ou empresários, sem a fixação de uma base
territorial). Esta só é possível em um sistema em que se reconhece a liberdade sindical; no entanto, por opção dos próprios interlocutores sociais, pode não estar presente neste sistema.
Daí surge o conceito de unidade sindical, ou seja, a existência do sindicato
único, quando se compreende ser este o melhor meio de atender aos interesses de
empregados e empregadores, mesmo com a possibilidade do reconhecimento jurídico de vários sindicatos.
A unidade sindical, por sua vez, difere do conceito de unicidade sindical, típico de sistemas de organização sindical em que se proíbe a existência de mais de um
sindicato; pode essa proibição estar baseada em fatores diversos como a categoria
ou a empresa.
Amauri Mascaro Nascimento2, com esplêndida sabedoria, aponta a diferença
existente entre unidade e unicidade:
Unidade sindical é o sistema no qual os sindicatos se unem não
por imposição legal mas em decorrência da própria opção. Diferem unicidade (por lei) e unidade (por vontade). A unidade não
contraria o princípio da liberdade sindical; a liberdade pode ser
usada para a unidade.
Feitas essas poucas, mas importantes distinções, é mister que nos atentemos mais detidamente à análise da liberdade sindical, no direito internacional.
2.
LIBERDADE SINDICAL E O DIREITO INTERNACIONAL
A liberdade sindical é um princípio que tende a ser universalizado por todos
os países democráticos. A Convenção internacional n. 87, aprovada pela OIT, preconiza a liberdade sindical, mas não pode ser ratificada pelo Brasil, em decorrência do
artigo 8°, da Carta Magna, que proíbe a pluralidade sindical e recepciona a contri-
2 NASCIMENTO, A. M. Compêndio de Direito Sindical. 2.ed. São Paulo: LTr, 2000. p.160.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
327
buição sindical compulsória. Como se sabe, conforme posição majoritária da doutrina, a convenção ratificada pelo Brasil passa a vigorar com força de lei federal e a esta
não é permitido contrariar a Constituição Federal.
Parece-nos importante dizer que a Convenção n. 87, apesar de não ser o único, é o mais significativo diploma internacional sobre o tema, por evidenciar de forma expressa o respeito à liberdade coletiva e individual. Assim, diz o artigo 2° da aludida Convenção3:
ART. 2°
Os trabalhadores e os empregadores, sem qualquer distinção e
sem autorização prévia, têm o direito de constituir as organizações que julguem convenientes, assim como de se filiar a essas organizações, com a única condição de observar seus estatutos.
Também a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia das Nações Unidas, em 1948, trata da liberdade sindical. Dessa maneira, diz
a referida Declaração, em seus artigos, XX e XXIII, respectivamente4:
Art. XX
1- Todo homem tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas.
2- Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.
Art. XXIII
4- Todo homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para a proteção de seus interesses.
É válido lembrar, nesse estudo, que todo direito fundamental deve ser interpretado de forma ampliativa. Dessa maneira, normas que vierem a cercear a aplicação dos artigos ora expostos estarão em confronto com a mencionada Declaração.
De qualquer sorte, importante corrente doutrinária aponta no sentido de que não
há obrigação jurídica na observação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em razão desta não ser um tratado5. Nossa Constituição, no entanto, no título dos princípios fundamentais, ao tratar das relações internacionais da República
Federativa do Brasil, traz como princípio, no inciso II do artigo 4°, “a prevalência dos
direitos humanos”. Daí, afere-se complicada antinomia constitucional, qual seja, al3 Texto in SÜSSEKIND, A.; MARANHÃO, D.; VIANNA, S.; TEIXEIRA, L. Instituições de Direito do Trabalho.
19.ed. vol. II. São Paulo: LTr, 2000. p. 1100.
4 Texto in TAVOLARO, A. T. Liberdade sindical: unicidade ou pluralidade. Revista LTr, São Paulo, v. 59, n.11, p.1494.
5 TAVOLARO, op. cit., p. 1497, nota 4.
328
faculdade de direito de bauru
guns incisos do artigo 8° em conflito com os princípios invocados pela Carta Magna. Esse raciocínio será melhor desenvolvido adiante.
Há outros diplomas internacionais que tratam do princípio da liberdade sindical, como:
- Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA);
- Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU);
- Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU);
- Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).
3.
CONCEITO DE LIBERDADE SINDICAL E A CF DE 1988
Um estudo superficial poderia sugerir a adesão de nosso país ao princípio da
liberdade sindical, tendo em vista o caput do art. 8˚, da CF, que reza ser livre a associação profissional ou sindical. O inciso I deste artigo também poderia direcionar
o mesmo raciocínio, posto que propugna a não intervenção e a não-interferência do
Estado na organização sindical, como também a proibição de lei que exija autorização para a fundação de sindicato.
O Brasil, no entanto, não adota esse princípio universal. Ao contrário, o viola,
se considerarmos as três acepções inerentes à liberdade sindical, quais sejam: liberdade sindical coletiva, liberdade sindical individual e autonomia sindical.
Arnaldo Süssekind6 nos ensina o conteúdo de cada uma das acepções aludidas. Dessa maneira, diz o notável mestre:
a) liberdade sindical coletiva, que corresponde ao direito dos grupos de empresários e trabalhadores, vinculados por uma atividade comum, similar ou conexa, de constituir o sindicato de sua escolha, com a estruturação que lhes convier;
b) liberdade sindical individual, que é o direito de cada trabalhador ou empresário de filiar-se ao sindicato de sua preferência, representativo do grupo a que pertence, e dele desligar-se;
c) autonomia sindical, que concerne à liberdade de organização interna e de funcionamento da associação sindical e, bem assim, à faculdade de constituir federações e confederações ou de filiar-se às já
existentes, visando sempre aos fins que fundamentam sua instituição.
Percebemos, diante desse largo conceito de liberdade sindical, que a Constituição Federal de 1988 tão-somente assegurou a autonomia sindical, preterindo as
liberdades sindicais, coletiva e individual.
6 SÜSSEKIND; MARANHÃO; VIANNA; TEIXEIRA, op. cit., p. 1103, nota 3.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
329
A unicidade sindical por base territorial e a sindicalização por categoria, perpetuadas pelo inciso II do art. 8˚ da CF, em afronta à manifestação volitiva dos grupos de trabalhadores e empresários, ferem as duas primeiras acepções da liberdade
sindical.
A primeira delas, a liberdade sindical coletiva, é desrespeitada pela proibição
da formação de sindicatos de acordo com a conveniência dos grupos sociais. Destarte, não se permite a criação de mais de um sindicato na mesma base territorial,
como também não se coaduna com nosso sistema legal a constituição de sindicatos
não baseados na categoria profissional ou econômica, ressalvada a hipótese de categoria diferenciada. Como exemplo, é juridicamente impossível a formação de sindicatos por empresa.
A segunda acepção, ou seja, a liberdade sindical individual, é desmantelada
em decorrência da violação da liberdade sindical coletiva, pois não se cogita em direito de escolha, quando a opção é una.
A contribuição obrigatória realizada por indivíduos não associados em prol da
associação representativa de suas respectivas categorias, mantida pela Carta Magna
de 1988, na parte final do inciso IV do artigo 8˚, também vem a ferir a liberdade sindical individual, já que o indivíduo será obrigado a efetuar a contribuição sindical em
nome da entidade sindical existente, concordando ou não com suas diretrizes.
Há, também, quem afirme que tal compulsoriedade vem a violar a autonomia
sindical, estando o Estado interferindo na atuação do sindicato. Nesse sentido, mostra Arnaldo Lopes Süssekind7 a posição da OIT:
Para a OIT, a contribuição imposta por lei aos integrantes dos grupos representados por associação sindical configura flagrante violação da Convenção n. 87, seja porque implica uma forma indireta de participação compulsória na vida do sindicato, seja porque
é incompatível com o regime da pluralidade sindical.
Podemos finalizar esse último raciocínio com a importante observação de
Georgenor de Sousa Franco Filho8:
É da essência da liberdade sindical que o custeio da sua atividade
decorra da contribuição espontânea de seus filiados e de outros
interessados, jamais de norma heterônoma que fixa o valor de tal
ou qual taxa, contribuição ou outra fonte de recurso.
7 SÜSSEKIND, op.cit., p. 1140, nota 3.
8 FRANCO FILHO, Georgenor de Souza. Contribuições sindicais e liberdade sindical. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, Belém, v.31, n. 60, p. 205.
faculdade de direito de bauru
330
E, mais adiante, completa:
Do ponto de vista do Direito brasileiro, comparativamente à posição consagrada pela OIT, temos que a contribuição sindical tem
natureza tributária, posto decorrer de lei (art. 217, I, do Código Tributário Nacional), violando flagrantemente o princípio da liberdade sindical, consagrado na convenção n. 87. Essa é a atual realidade que, parece, tende a mudar. 9
De nossa parte, não podemos deixar de observar as mazelas causadas pela contribuição imposta por lei. Além de favorecer pretensas representações sindicais, que
apenas sobrevivem dessas contribuições, pelo caráter não espontâneo, sem representar efetivamente trabalhadores e empregadores, enfraquece o verdadeiro sentido da
organização sindical que deve ter por base o princípio da liberdade sindical.
Para piorar a situação, além da contribuição anual compulsória, há quem considere obrigatórias a contribuição confederativa e a assistencial. Entendemos que
toda contribuição coercitiva vem ferir o princípio da liberdade sindical. Dessa maneira, consideramos correta a posição do TST, demonstrada no10 precedente normativo 119, que trata das contribuições, confederativa e assistencial.
4.
CONFIGURAÇÃO DAS ANTINOMIAS CONSTITUCIONAIS: PRINCÍPIOS DA CARTA MAGNA DE 1988 EM DISSONÂNCIA COM O DESRESPEITO À LIBERDADE SINDICAL
Diz o artigo 1° da CF, no título dos princípios fundamentais:
Art. 1. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
V- o pluralismo político.
Diz o artigo 4° da CF, também no título dos princípios fundamentai
9 FRANCO FILHO, op.cit., p. 208, nota 8.
10 CONTRIBUIÇÕES SINDICAIS
Contribuições sindicais- Inobservância de preceitos constitucionais. A Constituição da República, em seus arts. 5°,
XX e 8°, V, assegura o direito de livre associação e sindicalização. É ofensiva a essa modalidade de liberdade cláusula constante de acordo, convenção coletiva ou sentença normativa estabelecendo contribuição em favor de entidade sindical a título de taxa para custeio do sistema confederativo, assistencial, revigoramento ou fortalecimento
sindical e outros da mesma espécie, obrigando trabalhadores não sindicalizados. Sendo nulas as estipulações que
inobservem tal restrição, sendo passíveis de devolução os valores irregularmente descontados.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
331
Art. 4. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações
internacionais pelos seguintes princípios:
II- prevalência dos direitos humanos.
Aferem-se, dos aludidos artigos da Constituição, princípios básicos, incluídos
no rol das clausulas pétreas, que devem reger todas as normas de nosso ordenamento jurídico.
Temos, então, o respeito aos direitos humanos e a democracia, com todas as
conseqüências advindas de um verdadeiro regime democrático, como corolários de
nosso direito positivo.
Dentre essas conseqüências, existe, de forma expressa, o pluralismo político.
Mas, o que vem a ser o pluralismo político? Será que este se adstringe ao âmbito de
partidos políticos?
Cremos que não. O saudoso doutrinador Celso Ribeiro Bastos11, citado por
João de Lima Teixeira Filho, explica o que vem a ser pluralismo político:
Por pluralismo político não se deve entender tão-somente a multiplicidade de partidos políticos. Há de se entender também o pluralismo
dos sindicatos, das igrejas, das escolas e das universidades, das empresas, das organizações culturais e, enfim, de todas aquelas organizações que podem ser sempre de interesses específicos dentro do estado e conseqüentemente servir para opor-se-lhe e controlá-lo.
Podemos, assim, apontar a primeira das antinomias constitucionais, qual seja,
o pluralismo político em discordância com uma unicidade sindical imposta. Essa
contradição no texto constitucional encontra-se interligada a outras antinomias,
pois todos esses conflitos são provenientes dos princípios positivamente expressos
na Carta Magna.
Destarte, podemos, também, elencar outra antinomia relacionada com a “prevalência dos direitos humanos”. O princípio advindo do inciso II, do artigo 4°, da CF
coaduna-se com toda a lógica constitucional, pois, para um Estado democrático de
direito, os direitos humanos constituem sua própria essência, a razão de ser desse
Estado. No entanto, como já demonstrado, nosso país não aderiu ao princípio da liberdade sindical, notadamente inscrito como um dos direitos humanos, na famosa
Declaração Universal dos direitos do Homem. Ora, como pode existir um país democrático, como pode esse país estar alicerçado em direitos humanos se imposições herdadas do Estado Novo de Getúlio Vargas, como a unicidade sindical e contribuição sindical compulsória, são inalteradas?
11 TEIXEIRA FILHO, J. de L. A organização sindical na Constituição Federal de 1988. Revista da Academia Nacional de Direito do Trabalho. São Paulo, v. 4, n. 4, p. 98.
332
faculdade de direito de bauru
Compartilhamos o pensamento de Arion Sayão Romita12, quando este diz:
Se a Constituição de 1988 afirma solenemente, em seu pórtico, que
o Brasil se constitui em Estado democrático de direito, cabe-lhe a
tarefa de explicitar a assertiva em outros preceitos que a complementem.
Não visualizamos, no entanto, no que se refere à organização sindical brasileira, os princípios democráticos propalados pela CF de 1988.
5.
INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE
1988 (CONTINUIDADE DAS ANTINOMIAS)
É sabido que o melhor processo de interpretação é o sistemático, devendo-se
dar a um dispositivo entendimento compatível com todo o texto, de forma a não se
atritarem os princípios e regras básicas de um instituto. A harmonia de todo o texto
deve ser perseguida. Nas palavras de Carlos Maximiliano13:
Não se encontra princípio isolado, em ciência alguma; acha-se
cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo
não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta
unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de
normas coordenadas, em interdependência metódica, embora
fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos
mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando
em campos diversos.
Utilizando, então, o processo sistemático de interpretação ao texto constitucional, suavizam-se algumas antinomias. Podemos dizer que é muito intensa a elasticidade interpretativa permitida pelo processo sistemático. No entanto, esse mesmo processo deixa nítida a incongruência de alguns preceitos constitucionais que
não se harmonizam com os princípios democráticos e de direitos humanos de nossa Carta Magna.
12 ROMITA, Arion Sayão. O poder normativo da Justiça do Trabalho: antinomias constitucionais. Revista LTr, São
Paulo, v. 65, n. 3, p. 267. mar. 2001.
13 MAXIMILIANO, C. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 105.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
333
5.1. Antinomias suavizadas pelo processo sistemático de interpretação
Podemos analisar o preceito imperativo trazido pelo artigo 8°, II, da CF, sob
dois prismas:
1) a proibição de se criar mais de um sindicato, representativo de classe profissional ou econômica, na mesma base territorial, refere-se tão-somente à
possibilidade de participação em negociação coletiva, em ato de representação da respectiva categoria;
2) a vedação inserida no artigo ora comentado deve ser interpretada de forma ampla, relacionando-se à formação de mais de um sindicato, de classe
profissional ou econômica, na mesma base territorial, em qualquer situação, ou seja, tanto para o fim de representação da categoria em negociação coletiva, como também em razão da mera existência do sindicato.
Como já, enfaticamente, explicitado, o texto constitucional deve ser interpretado de modo a coadunar os princípios de um Estado Democrático de Direito com
as regras inerentes a esse Estado. Se considerássemos correta essa segunda posição,
estaríamos conferindo demasiado valor à interpretação literal da CF, preterindo sua
interpretação sistemática. Isso porque o primeiro aspecto apontado legitima uma
maior congruência do texto constitucional. Ao se permitir a criação de mais de um
sindicato, em uma mesma base territorial, estaremos respeitando o caput do artigo
8° e o seu inciso I que propugnam, respectivamente, pela liberdade de associação
profissional ou sindical e pela inexigibilidade de autorização do Estado para a fundação de sindicato. Cingir-se-ia, erroneamente, a aplicação de tais dispositivos se supervalorizássemos a interpretação literal do inciso II.
Por outro lado, pode-se questionar se não estaríamos ignorando o aludido inciso II do artigo 8°, reputando certo o primeiro aspecto mencionado. Ou seja, haveria a
reticência de que tal interpretação está em clara oposição à constituição escrita.
Todavia, acreditamos que isso não ocorre. Ao considerarmos plausível a existência de mais de um sindicato na mesma base territorial, não estamos conferindo
representatividade a todos esses sindicatos para a negociação coletiva. Assim sendo,
a unicidade de representação continua válida; apenas se confere a possibilidade de
existência jurídica a mais de um sindicato.
No entanto, a representação da categoria pode vir a ser retirada de um sindicato e conquistada por um outro da mesma base territorial, conforme o interesse
dessa categoria. Este se refletirá de acordo com a participação da categoria em dado
sindicato. Partilhamos do entendimento de João de Lima Teixeira Filho14, quando
este explica:
14 TEIXEIRA FILHO, op. cit., p. 97, nota 11.
faculdade de direito de bauru
334
Vale dizer, pode haver vários sindicatos que representem o mesmo
universo de trabalhadores na mesma base territorial. Todos são
sindicatos com existência jurídica válida. Todavia, como a representação da categoria é unitária, por disposição constitucional,
no ato da negociação coletiva só um deles poderá vocalizar os anseios daquele mesmo universo de trabalhadores.
E, antes disso, doutrina:
Temos, pois, que a representação dos trabalhadores na negociação
coletiva será enfeixada em um único sindicato da categoria - o
mais representativo-, nada impedindo que outras entidades existam e que busquem, conquistando o respaldo da categoria, a posição de novo protagonista na próxima negociação coletiva.
Percebemos, então, que essa interpretação, embora não nos satisfaça inteiramente, como veremos no próximo tópico, melhor harmoniza os incisos, como também o caput do artigo 8° da CF, encaixando-se mais com os princípios de nossa Carta Magna.
5.2. Continuidade das antinomias na Carta Magna de 1988
Aprendemos, nos manuais e cursos de Direito Constitucional, que há uma
unidade hierárquica entre as normas da Constituição.
Com efeito, o princípio da unidade da Constituição, explicitado por Canoti15
lho , manda que a constituição seja interpretada “de forma a evitar contradições
(antinomias, antagonismos) entre as suas normas.” Destarte, não há de se falar em
contradições positivas, posto não haver supremacia de qualquer norma constitucional em relação a outra regra ou princípio de nossa Carta Magna.
Do mesmo modo, não se inserem em nosso sistema constitucional contradições entre as normas positivadas da Constituição e as normas não positivadas, de direito natural, isto é, as famosas “contradições transcendentes”, explicitadas por Canotilho16. No Brasil, não podemos cogitar a existência de normas constitucionais inconstitucionais, ainda que o fundamento seja a própria idéia de direito, de justiça,
ao contrário do que ocorre na Alemanha.
No entanto, a mera constatação dessa unidade hierárquico-normativa não
sana o problema de contradições entre nossas normas constitucionais.
15 CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1999. p.
1096.
16 CANOTILHO, op. cit., nota 15, p. 1104.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
335
Como já observado, é mister que procedamos a uma interpretação sistemática dos preceitos da Constituição, a fim de conjugarmos harmonicamente regras e
princípios constitucionais.
Contudo, ainda que façamos uma interpretação sistemática, podem ocorrer
situações que, embora se suavizem, permanecem em atrito. Neste caso, a necessidade de uma emenda constitucional torna-se vital.
E, não será essa a ocorrência vislumbrada no art. 8°, da CF, e seus incisos?
Ora, ao permitirmos a existência de diversos sindicatos, na mesma base territorial, ainda que apenas um deles possa realizar acordos e convenções coletivos,
conforme a interpretação sistemática propugnada por João de Lima Teixeira Filho,
estamos, sem dúvida nenhuma, amenizando a problemática das antinomias referentes à liberdade sindical. No entanto, também consideramos inquestionável que, embora em menor grau, estas antinomias persistem. Isto porque a proibição de participação em negociação coletiva, em relação aos sindicatos menos representativos,
continua a tolher o direito dos indivíduos de se fazerem representar como mais lhes
aprouverem.
Ademais, o final do inciso IV, do multicitado artigo 8°, não permite outra interpretação, senão a de que a contribuição prevista em lei, no caso a contribuição
sindical, é obrigatória. Desse modo, ainda que compartilhemos do entendimento do
Supremo, segundo o qual, a contribuição confederativa é compulsória apenas aos
associados do sindicato, não há como desvincular essa compulsoriedade da contribuição sindical, sendo devida por todos os pertencentes à categoria, independentemente de serem associados.
Afinal, não podemos olvidar da impossibilidade de uma interpretação constitucional em afronte claro e direto daquilo que estiver sido escrito pelo legislador
constituinte.
Destarte, fica notória a permanência das antinomias constitucionais referentes à liberdade sindical, mesmo que procedamos a uma interpretação sistemática,
em sintonia com os princípios democráticos, pluralistas e de direitos humanos inseridos em nossa Lei Maior.
Daí, a forte necessidade de uma reforma legislativa, em nossa Constituição.
6.
LIBERDADE SINDICAL NO ÂMAGO DA ATUAL CONJUNTURA
BRASILEIRA
A realidade sindical brasileira, no presente contexto político, econômico e
social, possui peculiaridades que não podem passar despercebidas pelo jurista.
Destarte, as centrais sindicais e o atual projeto de lei que permite a negociação
in pejus ensejam a necessidade da discussão dos reflexos negativos que a não
aderência ao princípio da liberdade sindical acarreta, no âmbito das relações coletivas de trabalho.
faculdade de direito de bauru
336
6.1. Centrais Sindicais
Apesar da impossibilidade jurídica do reconhecimento das centrais sindicais,
certo é que elas existem. Mais que isso, são as verdadeiras responsáveis pelo posicionamento de muitos sindicatos, em um ou em outro sentido. Diante dessa realidade, não se pode ignorar os reflexos da factual organização sindical brasileira, solidificando a imposição de diretrizes a trabalhadores. Nos dizeres do mestre Arnaldo
Süssekind:17
Se o monopólio de representação sindical viola, como já sublinhamos, o princípio universalizado da liberdade sindical, certo é que
essa pluralidade de fato, num regime legal compulsório de representação unitária, afronta, em sua essência, a liberdade sindical
coletiva e também a individual: o trabalhador que não concordar
com a orientação doutrinária ou pragmática de determinada
central, à qual se vinculou o sindicato de sua categoria, somente
nele poderá ingressar como associado; e, ainda que se não sindicalize, será por ele representado em todas as questões de interesse
de sua categoria.
Muito embora as centrais compartilhem semelhanças, suas diferenças podem
despertar no trabalhador a vontade de seguir diretriz preconizada por determinada
central. Como exemplo de algumas dessas diferenças, Arion Sayon Romita18 revela que
Os sindicatos filiados à CUT diferem dos filiados à Força Sindical
pela própria linha que seguem: enquanto os primeiros são ideologizados, os integrados à Força cultivam “um sindicalismo de resultados”, indiferente à ideologia política. (grifo do autor).
Eis mais um grande argumento no sentido da necessidade da adoção do princípio da liberdade sindical. Não se pode germinar uma organização sindical rígida
em ambiente pluralista de fato. Isso só vem enfatizar a violação aos direitos humanos dos trabalhadores (estes podem saber da existência de diferentes linhas de
ações efetivadas pelas centrais, mas não podem optar por essas linhas). Ademais, é
profundamente estarrecedor não reconhecer às centrais as prerrogativas das entidades sindicais, quando as primeiras são as reais protagonistas das relações coletivas
de trabalho.
17 Süssekind, op.cit., p.1131, nota 3.
18 NASCIMENTO, A. M.; SILVESTRE, R. M. (coordenadores). Os novos paradigmas do Direito do Trabalho:
homenagem a Valentim Carrion. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 275.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
337
6.2. Negociação in pejus e liberdade sindical
É de realce, no âmbito das hodiernas inovações legislativas por que vem passando o direito do trabalho pátrio, a forte tendência em se conferir menor limite à
atuação da autonomia privada coletiva. O projeto de lei que permite ao “negociado”
sobrepor-se ao legislado, através da mudança do artigo 618 da CLT, reflete a validação de convenções e acordos coletivos que flexibilizam direitos trabalhistas. Muito
embora, não concordemos com essa provável inovação, tal qual é vislumbrada no
aludido projeto, não nos cabe, neste trabalho, analisar os percalços dessa mudança.
No entanto, nos é permitido realizar algumas asseverações, diante de seu estreito
liame com o princípio da liberdade sindical.
Sendo assim, podemos afirmar dque não há de se falar em prevalência do
ajustado sobre a legislação, através da autonomia privada coletiva, sem o respeito ao
princípio da liberdade sindical. Não se pode aplaudir o projeto de lei que “flexibiliza” a CLT, sem a anterior consagração do princípio da liberdade sindical.
A possibilidade de derrogação de leis trabalhistas por sindicatos que não representam efetivamente sua categoria acarretará uma verdadeira supressão de direitos. Não haverá troca, no sentido de abrir mão de uma vantagem pela concessão de
um outro benefício. Haverá um real sucateamento de direitos trabalhistas, sem que
o maior interessado, o trabalhador, possa se opor. Afinal, quer ele queira ou não,
pertencendo à categoria, deve submeter-se às regras “convencionadas” pelo sindicato único imposto por lei.
O ministro do TST, Francisco Fausto19, defende o fim da unicidade e contribuição sindical compulsória, diante da possibilidade da aprovação do projeto de lei que
permite a negociação in pejus. Afirma o presidente do TST:
Eu acho que os sindicatos devem estar fortes, pois só assim poderão
negociar. E esse fortalecimento só virá quando acabarem com a
unicidade sindical, com o imposto sindical, com tudo isso que favorece o pelego sindical.
Cabe, aqui, então, questionar se a unicidade sindical imposta realmente
implica em um maior poder de barganha aos representantes de trabalhadores e
empresas. Nesse sentido, a discussão dos benefícios e das desvantagens da unidade/unicidade e pluralidade sindicais torna-se necessária no contexto jurídico
atual.
19 TRT da 15ª Região. Disponível em: <http: //www.trt15.gov.br>. Acesso em 22/05/2002.
faculdade de direito de bauru
338
6.3. Vantagens e Desvantagens da Pluralidade e Unidade/Unicidade sindicais
Agostinho Toffoli Tavolaro20, em excelente estudo no qual se defende a manutenção do sistema da unicidade, aponta as vantagens e desvantagens da unicidade
sindical. Assim, traz como “falhas do sistema de unicidade”:
a) Leva ao domínio das organizações sindicais por grupos que
manipulam o sindicato ao seu bel-prazer;
b) O sindicato único não tem representatividade, refletindo o desejo e ambições de grupos e não da categoria profissional;
c) O sindicato único torna-se presa fácil da influência do governo
ou de grupos política ou economicamente poderosos que não refletem os anseios da categoria econômica ou profissional;
d) O sindicato único é assim um sindicato débil, sem força para
obter e consolidar as reivindicações dos membros de sua categoria
profissional ou econômica.
Adverte o mencionado autor que as “virtudes do sistema de unicidade são, paradoxalmente, antípodas dos defeitos que se lhe acoimam”. Aponta, então, como
vantagens desse sistema:
a) O domínio dos sindicatos por grupos tende a se tornar muito
mais evidente, o que não acontece quando os sindicatos se pulverizam, tendendo cada um a se tornar instrumento de um grupo específico;
b) A representatividade dos interesses da categoria representada
pelo sindicato se faz com muito maior fidelidade e vigor;
c) O sindicato único é um sindicato forte o suficiente para se contrapor às pessoas do governo ou de grupos políticos e econômicos.
Opinamos no sentido de que esse aparente paradoxo possa ser amainado se
levarmos em consideração nossa suposição de que as vantagens do sindicato único
somente configurar-se-ão realidade pela escolha da unidade sindical; deve essa escolha provir da conscientização de todos os membros da categoria. Na falta dessa
conscientização, sobrevirão as falhas do sistema de unicidade.
Para nós, os benefícios apontados como integrantes do sistema de unicidade
tornam-se efetivos se concretizado o sindicato único por opção de trabalhadores e
empregadores, ou seja, em um sistema de unidade.
20Tavolaro, op. cit., p. 1500, nota 4.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
339
Dessa forma, as conseqüências de um sistema de unidade são excludentes
dos vícios de um sistema de unicidade. Com o sindicato único imposto pelo Estado,
as circunstâncias serão propícias para o surgimento das falhas acima enumeradas.
Isso porque a contribuição imposta por lei mantém a existência de sindicatos que,
em um sistema de liberdade sindical, não mais pertenceriam ao mundo jurídico, já
que não possuem uma efetiva representatividade.
Com a possibilidade da pluralidade sindical e a não-interferência do Estado na
imposição de contribuições, sobreviverão apenas os sindicatos verdadeiramente representativos.
Ao contrário do que é alardeado, o respeito ao princípio da liberdade sindical,
com a conseqüente possibilidade de pluralidade sindical e proibição de contribuições compulsórias, diminuirá o número de sindicatos. E, se aliado a isso, compreender-se o quão mais forte pode ser o sindicato único, através da conscientização de
trabalhadores e empresários, esse sindicato, num real sistema democrático, conseguirá lutar pelos anseios de seus filiados.
Nota-se que em um sistema de unicidade, como é o nosso sistema, a impossibilidade de constituição de sindicatos por empresa pode, muitas vezes, dificultar a
negociação coletiva, em razão do grande número de categorias diferenciadas. É o
que mostra o ilustríssimo doutrinador João de Lima Teixeira Filho21:
Neste atomizado cenário de representação, não decorrente da
vontade dos interessados, raramente os empregados de uma empresa estão representados por um único sindicato. A regra é que as
empresas tenham em seus quadros motoristas, ascensoristas, advogados, engenheiros, entre outros, os quais possuem representação
diferenciada, qualquer que seja a atividade preponderante da empresa. Isso dificulta o afinamento de posições pelo lado dos trabalhadores, tão mais díspares quão maior seja o número de sindicatos e categorias, e também pelo lado do empregador, que se defronta com interesses que não são homogêneos.
E, aqui, também ocorre o problema da representatividade nas negociações coletivas, posto que em uma negociação podem não estar presentes os sindicatos das
categorias diferenciadas. Como mostra João de Lima Teixeira Filho22:
E se a negociação coletiva tem lugar sem a presença de todos os
sindicatos daquelas três categorias de trabalhadores, as condições
de trabalho não se aplicam uniformemente a todos os emprega21 TEIXEIRA FILHO, op. cit., p.91, nota 11.
22 TEIXEIRA FILHO, op. cit., p. 91, nota 11.
faculdade de direito de bauru
340
dos, eis que o efeito normativo do instrumento que as consubstancia exaure-se no âmbito da categoria acordante.
Neste caso, muito embora, em empresas com diversas categorias diferenciadas,
seja permitida a extensão das condições negociadas às categorias não participantes do
acordo ou convenção, em um sistema de pluralidade, por discricionariedade dos empregados, seria permitida a formação de um sindicato por empresa, de forma a não
mais ensejar a discussão da extensão das condições avençadas na negociação.
Rodolfo Pamplona Filho, citado por Suely Santiago23, diz que
a forma mais adequada de sindicalização seria a organizada por
empresa. Deste modo, as comissões de fábrica poderiam mobilizar
mais os trabalhadores, bem como os interesses discutidos estariam
muito mais próximos da realidade, evitando a enorme diversidade verificada entre os vários setores de uma categoria econômica.
7.
CONCLUSÃO
Afere-se, então, que a liberdade sindical é essencial em países democráticos,
já que, como direito fundamental do homem, possibilita o surgimento de sindicatos
não vinculados ao Estado e motivados a defender os reais interesses da classe que
representam.
Considerando que uma interpretação sistemática de nossa Lei Maior suaviza
as antinomias constitucionais que envolvem o tema, mas não as equaciona totalmente, vislumbramos a fervorosa necessidade de emenda constitucional, a fim de
abraçarmos, em sua plenitude, o princípio da liberdade sindical.
8.
BIBLIOGRAFIA
BASTOS, C. R. Liberdade de associação sindical e desmembramento da base territorial. Brasília: Revista do Ministério Público do Trabalho, v. 2, n. 4, p. 31-40, set. 1992.
CANOTILHO, J.J.G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1999.
FRANCO FILHO, G. de S. Contribuições sindicais e liberdade sindical. Belém: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, v.31, n. 60, p. 203- 210, jan./ jun. 1998.
ITURASPE, F. La libertad sindical y el derecho de sidicacion. Caracas: Revista de la Facultad
23 SANTIAGO, S. Unicidade e Pluralidade Sindical. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 9ªRegião, Curitiba, v. 23, n.2, jul/ dez. 1998, p. 107.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
341
de Ciências Jurídicas y Políticas, v. 36, n. 81, p. 173-185, 1991.
LEITE, C. H. B. A liberdade sindical e a reforma da Constituição de 1988. Vitória: Jurídica:
Revista do Curso de Direito, v. 1, n. 1, p. 21-50, dez. 1999.
NASCIMENTO, A. M. Compêndio de Direito Sindical. 2.ed. São Paulo: LTr, 2000.
NASCIMENTO, A. M.; SILVESTRE, R. M. (coordenadores). Os novos paradigmas do Direito
do Trabalho: homenagem a Valentim Carrion. São Paulo: Saraiva, 2001.
MAGANO, O. B. Proposta de Emenda Constitucional e Convenção n. 87 da OIT. São Paulo:
LTr: revista legislação do trabalho, v. 63, n. 1, p. 9-12, jan. 1999.
MARANHÃO, D.; SÜSSEKIND, A.; TEIXEIRA, L.; VIANNA, S. Instituições de Direito do Trabalho. 19.ed. vol. II. São Paulo: LTr, 2000.
MAXIMILIANO, C. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense,
2002.
MORAES FILHO, E. de. A organização sindical perante o Estado. São Paulo: LTr: revista legislação do trabalho, v. 52, n.11, p. 1302- 1309, nov. 1988.
ROMITA, A. S. O poder normativo da Justiça do Trabalho: antinomias constitucionais. São
Paulo: LTr: revista legislação do trabalho, v. 65, n. 3, p. 263- 268, mar. 2001.
SÜSSEKIND, A. L. Da ineficácia da eventual ratificação da Convenção OIT 187- a Convenção
sobre liberdade sindical e a Constituição Brasileira. São Paulo: Revista da Academia Nacional de Direito do Trabalho, v. 4, n. 4, p. 59-63, 1996.
TICLEA, A. Aspects de la liberte syndicale. Paris: Revue Internationale de Droit Compare, v.
45, n. 2, p. 355-60, avril/juin. 1993.
SANTIAGO, S. Unicidade e Pluralidade Sindical. Curitiba: Revista do Tribunal Regional do
Trabalho da 9ªRegião, v. 23, n.2, p. 89- 115, jul./ dez. 1998.
TAVOLARO, A. T. Liberdade sindical: unicidade ou pluralidade. São Paulo: LTr: revista legislação do trabalho, v. 59, n.11, p.1493- 1504, nov. 1995.
TEIXEIRA FILHO, J. de L. A organização sindical na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Revista da Academia Nacional de Direito do Trabalho, v. 4, n. 4, p. 89- 104, 1996.
A PRIVACIDADE DO TRABALHADOR
NO MEIO INFORMÁTICO
Antônio Silveira Neto
Juiz de Direito.
Mestrando em Direito Econômico.
Professor da Universidade Estadual da Paraíba.
Membro da Associação dos Juízes para a Democracia - AJD.
Instituto Brasileiro da Política e do Direito da Informática – IBDI.
Mário Antônio Lobato de Paiva
Assessor da Organização Mundial de Direito e Informática.
Membro da Federação Iberoamericana de Associações de Direito e Informática.
Membro da Associação de Direito e Informática do Chile.
Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico.
“o perigo da máquina para a sociedade não provém da máquina em si, mas daquilo que o Homem faz dela”1
1.
A INTERNET COMO FERRAMENTA DE TRABALHO
A Internet e sua tecnologia foram rapidamente absorvidas pelas empresas, que
se utilizam desse novo meio de comunicação para desenvolver os meios de produção,
proporcionando, dentre outras vantagens, maior eficiência para as suas atividades.
1 Wiener, Norbert. Cibernética e sociedade. Trad.: José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1954.
344
faculdade de direito de bauru
Através da Internet o empregado pode tornar-se mais produtivo, uma vez que
informações valiosas para o desenvolvimento do trabalho acham-se disponíveis de
maneira rápida e fácil. Na Internet, efetuam-se transações comerciais, pesquisas,
treinamentos, gerenciamento a distância de subsidiárias, troca de informações de
todo tipo, fóruns etc. Há, inclusive, algumas empresas que não exigem a presença
física do empregado no seu local de trabalho, desenvolvendo suas funções a distância e segundo critérios de produtividade. Deste modo, as novas tecnologias têm modificado bastante o modo como se desenvolve a atividade laborativa.
Todavia, no Brasil e no exterior, empresas têm despedido empregados por uso
indevido das ferramentas tecnológicas que são fornecidas pelos empregadores aos
trabalhadores para o desempenho de suas funções. Especialmente aquelas que utilizam os recursos da Internet estão passando por situações de má utilização da rede
de computadores pelos empregados. São casos que envolvem acesso a sites pornográficos, envio de mensagens ofensivas, humorísticas ou pornográficas a terceiros
ou a outros funcionários, queda da produtividade por uso da rede para tratar de assuntos não relacionados ao trabalho etc.
Pesquisa realizada pela Revista INFO EXAME e a Pricewaterhousecoopers com
836 maiores empresas brasileiras revelou que 25,5% das companhias já despediram
pelo menos um funcionário por uso inadequado da web ou do e-mail2.
Tem-se tornado muito comum procedimentos de monitoramento das ações
dos empregados no local de trabalho, quando acessam a Internet, seja por meio do
controle dos hábitos de navegação, seja através da verificação do destino e conteúdo das mensagens eletrônicas.
Essa prática de fiscalização e conseqüente rescisão do contrato de trabalho
por mau procedimento ou desídia no desempenho das respectivas funções, vem levantando um debate em torno da possível violação de preceitos constitucionais,
como, por exemplo o direito à privacidade, sigilo das comunicações e vedação do
uso de provas ilícitas. Tais problemas foram objeto de apreciação pelo Poder Judiciário, existindo posições favorável a fiscalização e também contrária.
No Brasil, não há qualquer legislação que regulamente o assunto, diferentemente do que ocorre em outros países. Daí a necessidade de analisar o problema
sob ponto de vista dos tribunais e também dos princípios que norteiam as relações
trabalhistas. Este é o escopo do presente artigo.
2.
A DIGNIDADE HUMANA E O DIREITO DO TRABALHO
Sabe-se que a dignidade humana é considerada pelas constituições modernas
como núcleo central dos direitos fundamentais. No Brasil, este superprincípio é inserido como um dos fundamentos da República (art. 1º, III, CF). O objetivo maior
2 Privacidade fora de controle? Revista Infoexame. São Paulo, ano 17, n. 199, p. 98.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
345
dos direitos fundamentais é conservar a dignidade humana. É o livre exercício dos
direitos que levará ao reconhecimento de que o ser humano vive condignamente.
LUIS ROBERTO BARROSO expressa com perfeição o sentido da dignidade
humana:
“A dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade
moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no
mundo (...) A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores
do espírito como com as condições materiais de subsistência”.3
Logo, terá respeitada a sua dignidade o indivíduo cujos direitos fundamentais
forem observados e efetivados, sejam os direitos individuais, direitos políticos e direitos sociais, econômicos e culturais.
Sendo assim, qualquer ação humana deverá estar pautada na observância do
conceito de dignidade, sobretudo aquelas que definam situações de aplicação dos
direitos fundamentais que dão conteúdo jurídico ao conceito de dignidade humana. Daí a conclusão de que o princípio da dignidade da pessoa humana deverá servir como norte interpretativo geral, vinculando o intérprete em seu ofício.
Neste sentido, pronuncia-se ANA PAULA DE BARCELOS:
“O intérprete deverá demonstrar explicitamente a adequação de
suas opções tendo em vista o princípio constitucional pertinente à
hipótese e o princípio geral da dignidade da pessoa humana, a que
toda a ordem jurídica afinal se reporta (...) Assim como se passa com
a fundamentação da decisão judicial, através da qual se observa o
percurso trilhado pelo juiz, permitindo identificar facilmente onde
ele porventura se tenha desviado da rota original, da mesma forma a
exposição de como uma determinada opinião jurídica se relaciona
com os princípios constitucionais aplicáveis permitirá certo balizamento e, em conseqüência, o controle constitucional do processo
de interpretação e de suas conclusões através da sindicabilidade da
eficácia interpretativa dos princípios constitucionais”.4
Além de vincular todos integrantes da sociedades aos seus compromissos
valorativos, sobretudo a dignidade humana, o sistema legal implantado pela constituição oferece a idéia, por meio de seus preceptivos, do conteúdo da dignidade humana, por meio do elenco de direitos fundamentais, sendo possível, pois,
3 Apud BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Renovar, 2002 [prefácio].
4 Ob. cit. p. 147.
faculdade de direito de bauru
346
definir quando um ato humano viola a dignidade. Basta verificar se transgrediu
um direito fundamental.
Quanto ao Direito do Trabalho, resta claro através da dicção do art. 170, caput, da Constituição Federal que a vida digna está intimamente relacionada ao princípio da valorização do trabalho humano. “A dignidade humana é inalcançável quando o trabalho humano não merecer a valorização adequada”.5
Segundo EROS ROBERTO GRAU a dignidade humana não é apenas o fundamento da República, mas também o fim ao qual se deve voltar a ordem econômica.
Esse princípio compromete todo o exercício da atividade econômica, sujeitando os
agentes econômicos, sobretudo as empresas, a se pautarem dentro dos limites impostos pelos direitos humanos. Qualquer atividade econômica que for desenvolvida
no nosso país deverá se enquadrar no princípio mencionado.6
Além disso, a ordem econômica também está condicionada à valorização do
trabalho humano e reconhecimento do valor social do trabalho, conferindo ao trabalhador tratamento peculiar, isto é “dá prioridade aos valores do trabalho humano
sobre os demais valores da economia de mercado”.7
É com base nessas normas constitucionais que podemos inferir outro princípio cardeal do direito do trabalho: o princípio da proteção. A Constituição promove, seja através do elenco dos direitos sociais, seja por meio da prevalência do valores do trabalho sobre o capital, um sistema de proteção ao hipossuficiente, no caso
do trabalhador, de modo que se busca uma igualdade substancial na relação de trabalho, obrigando o intérprete a escolher, entre várias interpretações possíveis, a
mais favorável ao trabalhador.
Com efeito, o estudo do direito à privacidade do trabalhador no local de
trabalho e seus possíveis casos de violação deve se pautar nos preceitos acima
aludidos, sendo crível ao intérprete direcionar seu pensamento de forma a garantir o máximo de dignidade, valorização do trabalhador e sua proteção. Aderindo a essas premissas, estará promovendo uma interpretação legítima, de
acordo com a Constituição.
3.
PRIVACIDADE E TRABALHO
O primeiro documento internacional que elegeu a privacidade como direito
fundamental foi a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada em 02 de maio de 1948. Logo em seguida, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, instituída pela ONU em 10 de dezembro de 1948, foi reconhecido
o direito à vida privada.
5 LEDUR, José Felipe. A Realização do Direito do Trabalho. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1998, p. 95.
6 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 5ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 221.
7 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 720.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
347
O Brasil só incorporou expressamente o direito à privacidade e intimidade ao
texto constitucional com a Constituição de 1988, embora já possuísse dispositivos
que tratavam indiretamente da matéria, tais como a vedação de violação de correspondência.
Portanto, antes da Constituição, a privacidade encontrava-se protegida por
normas esparsas, tais como os arts. 554, 573 e 577 do antigo Código Civil que tratavam do direito de vizinhança, alguns tipos penais referentes as violações de domicílio, correspondências, dados e segredos (arts. 150, 151 e 153) e, por fim, o art. 49, §
1º, da Lei de Imprensa que faz incorrer em ilícito civil aquele que divulga informação pertinente à vida privada do indivíduo, embora verdadeira, desde que não motivada no interesse público.
O novo código civil estabelece a proteção da vida privada no seu art. 21, in
verbis: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do
interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar
ato contrário a esta norma”.
Cumpre, ainda, observar que a constituição diferencia o direito à privacidade do
direito à intimidade. Para a maioria dos doutrinadores, a intimidade inclui-se no conceito geral de vida privada. Assim, a privacidade envolveria tanto os fatos da vida íntima
como outras situações em que não haja interesse social no seu conhecimento.
Desta forma, o direito à privacidade seria um modo de vida, consubstanciado
num conjunto de informações pessoais que estão excluídas do conhecimento alheio,
enquanto que a intimidade integraria a esfera íntima do indivíduo, sendo o repositório
dos segredos e particularidades, cuja mínima publicidade poderá constranger.
Reunidos em Congresso no ano de 1967, os juristas nórdicos definiram privacidade como sendo “o direito de uma pessoa a ser deixada em paz para viver a
própria vida com o mínimo de ingerências exteriores” 8.
Contudo, no mais das vezes, utilizam-se os termos privacidade e intimidade
como sinônimos.
No tocante ao trabalhador, vê-se que sua privacidade não se restringe à proteção fora da empresa, compreende também o ambiente de trabalho. A privacidade
do trabalhador deve ser preservada de maneira integral, pois o desenvolvimento da
personalidade humana, o exercício da liberdade de pensamento e expressão, do direito à crítica com relação às atividades da empresa dependem, necessariamente, de
uma ampla proteção da privacidade.
Todavia, antes de se referir aos casos de violação da privacidade no meio informático, é de bom alvitre tecer algumas considerações sobre o direito à privacidade.
Nem sempre é fácil definir a privacidade em situações concretas. Há uma certa dosagem de subjetividade no conceito, pois algumas pessoas não se sentem invadidas na sua intimidade ao serem observadas e até gostam disso. O fenômeno da
8 Encicloplédia Saraiva de direito, n. 61/171.
faculdade de direito de bauru
348
perda da privacidade, seja por meio da criação de instrumentos tecnológicos capazes de espionar com detalhes o comportamento dos indivíduos, seja pela superexposição voluntária das pessoas em busca de notoriedade e de identidade social, é
uma característica típica da sociedade contemporânea.
Os aspectos da vida privada variam conforme a categoria social do indivíduo,
havendo aqueles que preservam e ampliam os fatos privados e outros que se expõem e se alegram com a publicidade de suas vidas.
Todavia, o que se questiona não é a liberdade que as pessoas têm de suprimir
parcelas de privacidade, mas a sua invasão sem autorização, o monitoramento das
mensagens eletrônicas enviadas e recebidas pelo trabalhador, a fiscalização e demissão por justa causa em razão do uso não-autorizado dos equipamentos da empresa
para fins pessoais. Neste particular, a privacidade ganha importância e deve ser bem
definida de acordo com as circunstâncias do caso concreto, isto é, com base no comportamento do indivíduo e a sua inserção na vida social.
Não obstante, a privacidade, segundo a doutrina alemã, comporta divisões em
círculos concêntricos, conquanto preserve sua natureza plástica, flexível. Na medida
em que o universo dos fatos tornem-se mais íntimos, tem-se um esfera da privacidade que permite interferências cada vez menores. Essas esferas podem ser representadas pelo desenho abaixo:
CO
ÚBLI
SSE P
RE
INTE
Vida privada
Intimidade
Segredo
Na esfera maior, considerada a da vida privada, estão os fatos que o indivíduo
não quer que se tornem públicos. Seriam aqueles acontecimentos que não estariam
ao alcance da coletividade em geral, englobando todas as notícias e expressões que
a pessoa deseja excluir do conhecimento de terceiros, a exemplo da imagem física
e de comportamentos que só devem ser conhecidos por aqueles que interagem regularmente com a pessoa.
No segundo círculo (esfera confidencial ou íntima), encontram-se os fatos do conhecimento das pessoas que gozam da confiança do indivíduo. São as circunstâncias
da sua vida que somente são compartilhadas com familiares, amigos e colaboradores.
No centro, está a esfera do secreto, objeto especial de proteção, em que se
guardam os segredos revelados a poucas pessoas ou a ninguém, compreendendo
assuntos extremamente reservados, como a vida sexual, por exemplo.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
349
Assim, o direito à vida privada e intimidade dizem respeito a existência interior do sujeito, como, p. ex., hábitos, dados pessoais, lembranças de família, vida
amorosa, domicílio, local de trabalho, saúde física, pensamentos, opiniões, confidências e atividades profissionais consideradas sigilosas e restritas a um número limitado de indivíduos.
A distinção possui um importante caráter prático, uma vez que quanto menor
a esfera maior o nível de proteção. Logo, o simples conhecimento de um fato que
envolve as situações de segredo já é suficiente para caracterizar a violação da privacidade, enquanto que para se considerar violada a esfera da intimidade deve haver
tanto o conhecimento como a divulgação da notícia para terceiros.
Por outro lado, como todo direito, a privacidade não é absoluta, vindo a sofrer
restrições em face do direito à liberdade de expressão e informação. Há situações
em que a intromissão na vida privada do indivíduo justifica-se quando motivada pelo
interesse público.
Mas, há uma consideração importante a fazer: o direito fundamental à privacidade é um dos componentes da dignidade humana, sendo a intromissão na
vida privada uma excepcionalidade que deve vir precedida de um fundamento
de interesse público, a exemplo da liberdade da informação. Não é possível a
violação da intimidade para fins de atender a interesse privado ou meramente
econômico. A privacidade é também um dos elementos da autodeterminação
inerente a qualquer ser humano. Por isso, que as informações pessoais só deverão ser divulgadas com autorização ou por motivação pública, amparada em preceitos jurídicos relevantes.
No caso da tutela da privacidade do trabalhador, observa-se a existência de várias situações de violação, a começar, na fase de seleção para ingresso na empresa,
pela exigência de informações não necessárias à contratação. Indagações, na fase
pré-contratual, sobre opiniões políticas, religiosas, atividade sindical pretérita, origens raciais e preferências sexuais, são alguns exemplos de interferência ilícita na esfera da vida privada do empregado.
Com o advento da Lei 9.799/99 que inseriu modificações na CLT, diversas condutas consideradas pelos Tribunais pátrios como lesivas à integridade e intimidade
do trabalhador e trabalhadora foram vedadas, a exemplo da proibição da revista íntima e exigência de teste de gravidez.
Também são consideradas como transgressões à privacidade do trabalhador o
controle sobre as conversas no ambiente de trabalho através de instalação de gravadores e imposição quanto a exames periódicos para verificar se o empregado é portador de AIDS.
No desempenho das atividades que envolvem o uso de equipamentos de informática, sobretudo a Internet, o empregado está sujeito a uma série de ações do
empregador que objetivam acompanhar, por meio de programas espiões, os passos
dos usuários dos seus sistemas.
350
faculdade de direito de bauru
Podemos dividir as condutas de monitoramento da seguinte forma: 1) observação dos sites por onde trafegam os empregados; 2) controle sobre o conteúdo das
correspondências eletrônicas recebidas e enviadas pelo trabalhador.
De acordo com a pesquisa já mencionada, 51,4% das empresas monitoram a
navegação na Internet e 30,9% monitoram os e-mails. Nas estatísticas do instituto
de pesquisa americano Worldtalk Corp, registrou-se que 31% das mensagens que
trafegam nas empresas possuem conteúdo inadequado (piadas, pornografia, correntes etc).9
Evidente que a empresa, ao disponibilizar os recursos de informática para o
empregado, tem por objetivo o desenvolvimento de atividades relacionadas ao trabalho. A utilização desses recursos, que são de propriedade do empregador, para
fins particulares, pode ser proibida, seja porque leva ao desperdício de tempo e queda na produtividade, seja porque pode congestionar o tráfego de informações na
rede, diminuindo a velocidade de transmissão de dados.
Assim, com fundamento no poder diretivo do empregador (art. 2º, CLT) é
possível vedar a utilização da Internet para atividades improdutivas, isto é, que não
se relacionem com os objetivos da empresa.
Também se admite a fiscalização efetuada pela empresa com relação à navegação na Internet, uma vez que não há qualquer violação ao preceito da privacidade
ou do sigilo das comunicações. É que a garantia constitucional do sigilo da correspondência e das comunicações de dados visa, segundo escólio de JOSE AFONSO DA
SILVA10, a assegurar a livre manifestação do pensamento e a intimidade do indivíduo.
Este é o sentido da norma. Logo, o simples acompanhamento dos passos do trabalhador na Internet não afeta a sua privacidade ou reduz a sua liberdade, pois não há
interceptação de comunicação pessoal, mas acompanhamento das ações do trabalhador. Isto já é admitido no mundo real através da instalação de câmeras de vídeo
nos locais de trabalho. Desta forma, poderemos considerar o monitoramento digital como uma extensão do monitoramento por câmeras, sendo tal conduta permitida, se exercida com razoabilidade e dentro dos limites do poder de fiscalização próprio do empregador.
Problema maior, que tem gerado muita controvérsia entre o juristas, diz respeito ao controle sobre o conteúdo das correspondências eletrônicas recebidas e
enviadas pelo trabalhador. Por isso resolvemos inovar no sentido de proporcionar
ao leitor dois pontos de vista diferenciados de cada autor deste presente ensaio.
Deste modo, segue nos itens posteriores a posição doutrinária e divergente
de cada autor deste ensaio no que diz respeito ao acesso por parte do empregador
ao conteúdo do correio eletrônico do empregado.
9 Ob. cit. p. 26.
10 Ob. cit. p. 416.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
351
3.1. Acesso ao conteúdo das mensagens (visão de Antônio Silveira)
Tem-se notícia de duas decisões divergentes sobre a matéria no âmbito dos
Tribunais, in verbis:
“JUSTA CAUSA. EMAIL NÃO CARACTERIZA-SE COMO CORRESPONDÊNCIA PESSOAL. O fato de ter sido enviado por computador da
empresa não lhe retira essa qualidade. mesmo que o objetivo da empresa seja a fiscalização dos serviços, o poder diretivo cede ao direito do obreiro à intimidade (CF, art.5º, inc. VIII). um único email, enviado para fins particulares, em horário de café, não tipifica justa causa. recurso provido.” (Tribunal Regional do Trabalho da segunda região - SP - 6ª Turma - ROPS - 20000347340, ano: 2000, publicado no
D.J. em 08.08.00. Fonte: IOB - 16483)
“EMENTA: JUSTA CAUSA. E-MAIL. PROVA PRODUZIDA POR MEIO
ILÍCITO. NÃO-OCORRÊNCIA. Quando o empregado comete um ato
de improbidade ou mesmo um delito utilizando-se do e-mail da empresa, esta em regra, responde solidariamente pelo ato praticado por
aquele. Sob este prisma, podemos então constatar o quão grave e
delicada é esta questão, que demanda a apreciação jurídica dos profissionais do Direito. Enquadrando tal situação à Consolidação das
Leis do Trabalho, verifica-se que tal conduta é absolutamente imprópria, podendo configurar justa causa para a rescisão contratual, dependendo do caso e da gravidade do ato praticado. Considerando
que os equipamentos de informática são disponibilizados pelas empresas aos seus funcionários com a finalidade única de atender às
suas atividades laborativas, o controle do e-mail apresenta-se como a
forma mais eficaz, não somente de proteção ao sigilo profissional,
como de evitar o mau uso do sistema internet que atenta contra a
moral e os bons costumes, podendo causar à empresa prejuízos de
larga monta” (Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região - Distrito
Federal - 3ª Turma - RO 0504/2002. Fonte: Centro de Excelência em
Direito e Tecnologia da Informação).
Sobre as decisões acima expostas, nosso interesse recai na discussão da violação do direito à privacidade pelos empregados quando têm acesso ao conteúdo das
correspondências eletrônicas.
Os defensores da tese da permissão legal para o monitoramento se atêm a
quatro argumentos: 1 - que toda a estrutura de utilização do e-mail pertence à empresa, sendo os dados de sua propriedade; 2 - que o Poder de Direção do empregador, consubstanciado no direito de organização, controle e disciplina, admite a in-
352
faculdade de direito de bauru
terceptação das mensagens; 3 - sendo a companhia responsável pelos atos de seus
funcionários (art. 932, III, do Código Civil) é legítima a fiscalização e leitura das mensagens que circulam na rede de computadores do empregador; 4 - o e-mail não
guarda qualquer privacidade porque pode ser lido por qualquer administrador do
provedor por onde transitou a mensagem.
A invocação do direito de propriedade e a descaracterização da mensagem
como não privada, pois gerada nos computadores da empresa parece não resistir a
comparações simples. Ora, ninguém questiona que os banheiros instalados no estabelecimento empresarial são de propriedade da empresa e nem por isso se admite
que o patrão instale câmeras para vigiar a atividade do empregado nesse local. Os
telefones e as respectivas linhas também são da empresa e seu uso deve ser direcionado aos propósitos do negócios e também não há um só jurista que conteste a ilicitude da utilização de escutas telefônicas, sem autorização judicial, nas empresas
para tomar conhecimento das conversas do empregados. O fato é que o direito de
propriedade deve ceder a garantia da privacidade das comunicações que, embora
não absoluta, só pode ser relativizada por meio de ordem judicial.
O poder de direção também não pode justificar o desrespeito à privacidade
do trabalhador. Esta se constitui como um direito personalíssimo, inato, intransmissível, imprescritível, inalienável e oponível erga omnes. A intromissão na esfera íntima do indivíduo para o exercício do poder de direção apresenta-se como abuso do
direito de fiscalizar. O trabalhador não pode se submetido a ações que impeçam o
livre desenvolvimento de seu pensamento e da sua personalidade. Não é porque se
está dentro do ambiente de trabalho que o empregado terá seus direitos fundamentais aviltados, esquecidos ou reduzidos ao nada. Ao reverso, como é um espaço
onde se desenvolve uma relação de subordinação e dependência, a garantia legal
precisa ser melhor preservada.
O monitoramento do e-mail do empregado impede o exercício do direito à
liberdade de expressão, do direito à crítica e até de reflexão sobre as condições de
trabalho. De sorte que, a interceptação das mensagens impede que o trabalhador
possa discutir, com os demais as formas de desempenho das funções, os desgostos
com os superiores, a desconfiança de uma prática ilícita e a reivindicação por melhores condições de trabalho. Permitir o acesso ao conteúdo das mensagens é exigir um comportamento dócil e conformista do empregado diante do órgão empresarial, que nos tempos atuais tem por obrigação atuar de maneira ética e de acordo
com uma finalidade social que não se resuma a consecução do lucro, puro e simples. O monitoramento irrestrito do conteúdo das mensagens eletrônicas conduz a
um controle abusivo sobre a personalidade do trabalhador.
Conquanto a empresa responda pelo atos dos seus funcionários perante terceiros, isso não conduz necessariamente a permissão para invadir a privacidade dos
empregados. Existem instrumentos tecnológicos menos invasivos que podem evitar
danos aos agentes externos, sem necessidade de desrespeito à garantia fundamen-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
353
tal. Portanto, a empresa pode se valer de programas que impedem o envio de mensagem para endereços não cadastrados, rastrear, de maneira impessoal palavras
ofensivas nas mensagens, desde que previamente comunicado, além de impedir o
encaminhamento de imagens não relacionadas com o trabalho, proibindo, por meio
de código de conduta, o envio de imagens ou arquivos anexados ao e-mail.
Cumpre salientar que a proibição de leitura do conteúdo do e-mail aqui defendida não exclui a possibilidade da empresa, com base no seu poder de direção,
fixar regras e vedações para utilização da correspondência eletrônica.
Quanto ao argumento de que o administrador do sistema pode facilmente ver
o conteúdo do e-mail, não existindo, pois, comunicação privada, há de se trazer novamente à baila a comparação com a ligação telefônica. Tanto a comunicação por celular quanto aquela oriunda do telefone convencional são facilmente interceptadas
e podem ser ouvidas por qualquer pessoa que possua um pouco de conhecimento
técnico, inclusive a pessoa que administra as ligações na operadora. Isso nunca foi
motivo para se considerar impertinente a proteção dada pela Constituição Federal.
O que caracteriza a privacidade da comunicação é a sua emissão a destinatário ou
destinatários certos, com a intenção de não-divulgação para terceiros, e isso acontece com o e-mail.
3.2. Acesso ao conteúdo das mensagens (visão de Mário Paiva)
Verificamos que as questões que envolvem o correio eletrônico são deveras
delicadas por envolverem uma série de direitos e garantias constitucionais além de
gerarem discussões em uma área que já traz consigo uma certa conflituosidade natural como é a do Direito do Trabalho.
Os bens em jogo podem sofrer uma vulneração que permite denotar que nenhum direito é absoluto seja ele o de liberdade de organização da empresa, a titularidade na propriedade do correio eletrônico, a inviolabilidade sem restrições do sigilo de
dados. Assim, o empregador não possui o poder de acessar de maneira irrestrita o correio eletrônico do trabalhador nem o empregado tem o direito de acesso e utilização
de sua conta de e-mail para quaisquer fins alheios à prestação de serviço.
A palavra-chave para essas dúvidas concernentes ao modo de aplicação do direito chama-se equilíbrio, ou seja, a proporcionalidade de cada direito. Em virtude
da falta de legislação existente, somos chamados a aplicar normas gerais que não vislumbram de forma clara a limitação existente por exemplo no direito a intimidade.
Daí a necessidade da interpretação responsável e coerente resguardando o poder
diretivo do empregador para comandar a empresa sem que implique em lesão ao
direito do empregado de acessar os serviços eletrônicos.
Muitas das vezes constatamos uma certa erronia na conceituação do direito à
intimidade, pois, por exemplo, a funcionalidade do e-mail fornecido pelo empregador permite uma certa abstração de confidencialidade já que se olharmos por esta
354
faculdade de direito de bauru
ótica poderemos perceber que não se trata da privacidade do empregado e sim de
mero ofício encaminhado ou proposta de venda. Daí podemos assegurar que não
se trata de uma correspondência intima e sim de um mero expediente utilizável e
aberto a todos os que trabalhem na empresa.
Este pode ser absolutamente profissional e, portanto, não seria invocável o direito à intimidade, ou pode conter aspectos próprios daquilo que define intimidade: o âmbito privado das pessoas, inacessível aos demais. E neste último caso, naturalmente, o trabalhador tem que saber que este instrumento não tem o condão de
proteger sua intimidade, mas sim de veicular produtos ou serviços da empresa.
Devemos partir da premissa de que o e-mail dos trabalhadores na empresa é
um instrumento de trabalho e, em determinadas circunstâncias e com determinadas políticas, é possível que o empresário possa conhecer o conteúdo desses emails em situações de abuso a respeito das quais haja indícios objetivos de que estão sendo perpetrados.
Esses indícios devem ser baseados em critérios objetivos, como, por exemplo,
a freqüência no número de comunicações de caráter pessoal, ou o título próprio das
mensagens no caso do correio eletrônico. Nesses casos, se o empresário tiver um
indício objetivo de que está sendo produzida uma situação de abuso, deverá ser permitido o controle, estabelecendo o mínimo de garantias exigíveis, por parte do trabalhador, a respeito de seus direitos.
Em primeiro lugar, deverá existir uma comunicação prévia do afetado para
essa vasculha; em segundo lugar, haverá de contar com a presença de um representante sindical, que tutele os direitos do trabalhador controlando as garantias de
transparência; e, por último, um procedimento que busque o nexo causal e a proporcionalidade entre a prática abusiva e a sanção aplicável ao fato.
Atualmente, não existe um regime de sanções para faltas relacionadas com o
uso das novas tecnologias, muito menos uma gradação da sanção, com qual se produz uma situação de arbitrariedade que provoca falta de defesa do trabalhador pela
ausência do princípio da proporcionalidade.
O que não podemos aceitar é que este poder de controle do empresário autorize uma intromissão indiscriminada em qualquer caso ao conteúdo das comunicações de seus trabalhadores via e-mail. Há de ser estabelecido neste campo as regras do jogo, e a via para fazê-lo que pode ser por meio da lei, convenção ou acordo coletivo.
Defendemos que o empresário pode acessar o e-mail de seus empregados,
porém não de uma forma indiscriminada e sistemática já que o trabalhador tem direitos que podem ser invocados legitimamente como o direito à inviolabilidade das
comunicações e direito ao exercício de trabalho em condições dignas. E, portanto,
o trabalhador tem direito a não sofrer intromissão em sua atividade.
Em todo caso, devem ser respeitados os princípios básicos a que regem qualquer contrato de emprego, como, por exemplo o da boa-fé, dentre outros pautados
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
355
na exata consecução das relações de trabalho. Assim, no que diz respeito aos limites
para o uso profissional do correio eletrônico, seja no contrato de trabalho de forma
individual ou nas convenções coletivas de trabalho, as partes têm que acordar as
condições que regulem a utilização profissional do e-mail obedecendo as diretrizes
legais e contratuais do direito do trabalho.
Não defendemos que os empregados fiquem isolados do mundo quando estiverem em serviço sem qualquer possibilidade de comunicação com a família e amigos. Esta deve ser comedida e de preferência restrita a outros meios menos dispendiosos até que em último caso se chegue ao e-mail. Assim, deve o empregador salientar que o e-mail não é um meio idôneo para comunicação pessoal, e por outros
meios, se possível à disposição do trabalhador para que este possa comunicar-se
pessoalmente fora da vigilância e controle da empresa de forma razoável e desde
que não traga prejuízos consideráveis a essa.
Repetiremos, por fim, que as inovações trazidas a universo jurídico trabalhista já são uma realidade e que somente agora começam a despontar em litígios nos
Tribunais. Por isso, desde já urge que tenhamos consciência de que a realidade nos
força a regulamentar estas situações através de convenções coletivas que estabeleçam a partir de agora, condições para o uso racional do e-mail por parte do trabalhador e condições de acesso a seu conteúdo por parte do empresário. Esses são os
grandes traços. Nossa proposta a respeito seria a de regular o tema do uso pessoal
do e-mail não só nas convenções coletivas mas também na CLT, como norma trabalhista básica.
4.
COMPROMISSO COM A PROTEÇÃO DO TRABALHADOR (CONCLUSÕES DE ANTÔNIO SILVEIRA)
A utilização da Internet pelo empregado pode ser regulamentada pelo empregador, desde que este não viole os predicados da dignidade humana, consubstanciados
na proteção aos direitos fundamentais, mormente a privacidade das comunicações.
O funcionário deve se conscientizar de que os equipamentos de informática
são propriedade do empregador, sendo o seu uso restrito aos assuntos da empresa.
Todavia, a subordinação do empregado e o poder de comando do empregador não podem servir de amparo para ações que desrespeitem o direito à privacidade e o sigilo das comunicações.
Neste sentido, é inadmissível a interceptação de mensagens eletrônicas dos
empregados no âmbito da empresa, com intuito de verificar o seu conteúdo, mesmo quando há o propósito de se evitarem atos ilícitos. Faz-se necessário ordem judicial para que o e-mail possa ser lido, sob pena de violação da regra constitucional
insculpida no art. 5º, inciso XII, da Carta Política.
Por fim, não se pode olvidar que a dignidade humana constitui uma das finalidades do próprio Direito do Trabalho. Assim, o jurista deve manter o compromis-
356
faculdade de direito de bauru
so com a defesa dos direitos humanos, direcionando a exegese do texto legal e das
situações passíveis de enquadramento jurídico no sentido de dar máxima proteção
aos direitos fundamentais, rechaçando condutas que ameacem esses direitos, através de uma interpretação restritiva.
5.
PROCESSO DE ADAPTAÇÃO (CONCLUSÕES DE MÁRIO PAIVA)
Em matéria de relações trabalhistas, temos passado por grandes mudanças. Essas transformações estão dentro de um âmbito mais amplo: o direito na
internet. Estamos assistindo ao nascimento do Direito das novas tecnologias.
Uma espécie de ciência autônoma do direito que atinge e influi em todos os ramos do Direito.
Estamos em um impasse objetivo, uma vez que os protagonistas das relações
trabalhistas, tanto os sindicatos como empresários, estão acostumados a um sistema
de organização de trabalho próprio do fordismo, da grande empresa, do trabalho
em cadeia, o que não corresponde mais ao modelo hoje visto em uma empresa moderna e competitiva.
A revolução tecnológica tem sido tão avassaladora que tem transformado
completamente o cenário da organização do trabalho. Agora, a indústria flexibiliza
os turnos de trabalho, descentraliza a empresa operando através de sujeitos infinitamente menos e dispersos no território.
Estamos vivenciando um dilema, pois nossos especialistas e legisladores estão
arraigados a velhos institutos tradicionais e os sindicatos amarrados a peias retrógradas e limitados em seu poderio são inibidos a praticar mudança e inserir cláusulas
em convenções, estatuindo o modus operandi das máquinas eletrônicas. Seria, portanto, impraticável, neste momento, a reprodução da atividade sindical feita nas
grandes empresas, onde todos trabalhavam nos moldes de grandes cadeias, em concentrações massivas de trabalhadores.
Possuímos um ordenamento jurídico inapto à conjuntura tecnológica e econômica. Tal situação traz uma série de malefícios para o contrato de emprego e as
relações de trabalho como um todo, pois sem esta adaptação à realidade tecnológica e a organização do trabalho, estamos contribuindo para o retrocesso da economia à medida que criamos desestímulos legais para a implantação da tecnologia por
gerar conflitos de difícil solução.
Para não sermos ameaçados com a extinção ou lesão de direitos fundamentais, por exemplo, devemos nos posicionar claramente com os fatos advindos do
caso concreto estabelecendo diretrizes gerais que não beneficiem apenas umas das
partes. Por isso, somos favoráveis a interpretações e decisões baseadas no equilíbrio
de direitos que permitam resguardar o direito do empregador de dirigir a empresa
tendo acesso de forma razoável aos e-mails dispostos e a liberdade de comunicação
do empregado através do uso social do e-mail.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
357
Cabe-nos por fim, alertar a todos que passamos por uma revolução cibernética que atinge em cheio as relações de trabalho e que, portanto, devem ser estudadas
e solucionados os conflitos provenientes dessas transformações, munindo os atores
sociais de arcabouços jurídicos e legais aptos para lidar com esses tipos de relações,
com vistas a criar um equilíbrio social entre os empregadores e empregados no trato das questões envolvendo as relações entre o direito do trabalho e a informática.
6.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da
dignidade da pessoa humana. São Paulo: Renovar, 2002.
BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. 5ª ed., São Paulo: Forense Universitária, 2001.
COSTA JÚNIOR, Paulo José. O direito de estar só – tutela penal da intimidade. 2ª ed. São
Paulo: Saraiva, 1995.
DINIZ, Carlos Francisco Sica. Enciclopédia Saraiva de Direito, n 61, São Paulo: Saraiva,
1977, pp. 170 a 176.
FARIAS, Edilsom Pereira. Colisão de Direitos – a Honra, a Intimidade, a Vida Privada e a
Imagem versus a Liberdade de Expressão e Informação. 2ª ed., Porto Alegre: Fabris Editor,
2000.
FINATI, Claudio Roberto. As relação de trabalho na era da informática. Síntese Trabalhista, São Paulo, n. 136, p. 17-23, out 2000.
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 5ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000.
JENNINGS, Charles. Privacidade.com. São Paulo: Futura, 2000.
LEDUR, José Felipe. A Realização do Direito do Trabalho. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1998.
LIMBERBGER, Têmis. A Informática e a Proteção à Intimidade. Revista Direito do Constitucional e Internacional, n. 33, São Paulo: RT, p. 111-124.
PAIVA, Mário Antônio Lobato de. E-mail e invasão de privacidade. Acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 58, ago. 2002. Disponível em:
<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3137>. Acesso em: 04 mar. 2003.
_______. Comentários à jurisprudência: justa causa. E-mail. Prova produzida por meio ilícito. Não ocorrência. 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho do Distrito Federal. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3337>. Acesso em: 06 mar. 2003.
358
faculdade de direito de bauru
_______. O monitoramento do correio eletrônico no ambiente de trabalho. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id = 3486>. Acesso em: 06 mar. 2003.
MARANHÃO, Délio; CARVALHO, Luiz Inácio B. Direito do Trabalho. 17ª ed., Rio de Janeiro:
Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1993.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995.
VICENTE, Nilza Maria; JACYNTHO AVILA, Patrícia Helena. Direito à intimidade nas relações
de trabalho. Síntese Trabalhista, São Paulo, n. 143, p. 15-18, maio 2001.
WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade. Trad.: José Paulo Paes. São Paulo: Editora Cultrix, 1954.
OS PLANOS ECONÔMICOS
E A MULTA DE 40% DO FGTS
Mário Gonçalves Júnior
Demarest & Almeida Advogados.
Pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito do Trabalho.
Como o Estado não gera riqueza (apenas se apropria e se sustenta dos rendimentos alheios), todas suas contas são cobradas dos contribuintes e/ou dos setores
verdadeiramente produtivos. E as idiossincrasias dos chefes do Executivo mais cedo
ou mais tarde caem sobre o colo da sociedade. Geralmente mais tarde, quando o regime republicano já cuidou de substituí-los no Poder...
Até hoje pagamos, direta ou indiretamente, a lambança dos planos Bresser,
Verão e Collor. Mais recentemente, os patrões têm sido chamados por ex-empregados a pagarem mais uma “fatura”: o reflexo das ilegalidades dos planos econômicos
pirotécnicos na multa de 40% do FGTS.
Trabalhadores demitidos há muito mais de dois anos estão ajuizando, agora,
reclamações trabalhistas contra seus ex-patrões, exigindo que a correção monetária
dos depósitos do FGTS, reposta pela Caixa Econômica Federal por força de decisões
judiciais, reflita sobre o valor das multas pagas pelos empregadores nas rescisões de
contratos de trabalho.
Com efeito, em agosto de 2000 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a
existência de direito adquirido à aplicação da correção monetária sobre os saldos
das contas do FGTS, suprimida quando da edição daqueles planos econômicos.
Quem diria que no século XXI estariam as empresas sendo estorvadas porque
algumas pessoas no Poder nas duas últimas décadas do século passado, resolveram
“zerar” a inflação por Decreto?
360
faculdade de direito de bauru
Mas é ao que se assiste mais uma vez. Lautos políticos já deixaram gabinetes,
alguns até ousaram retornar em outras experiências mirabolantes, e as “cobaias”
(sociedade), que não se alternam como a República, estão aqui a postos “para o que
der e vier”: é o preço do árduo aprendizado da democracia, mas é sempre cobrado
de nós!
Mesmo quando a Justiça condenou o órgão gestor do FGTS a pagar os expurgos inflacionários artificialmente pulverizados numa “penada”, outra (“penada”) majorou a multa do FGTS de 40 para 50%, para que, com a sobretaxa criada, a sociedade tratasse de sanar as experiências econômicas mal sucedidas.
Penso que um bom vaticínio para essa cômoda prática de os governantes se despirem das conseqüências de seus atos seria, simplesmente, chamá-los individualmente
à correção. Isto seria visionário demais, além de financeiramente impraticável: só os bilionários não escapariam da corrigenda, os quais, mesmo entre os políticos, devem ser
poucos num País miserável, se comparados aos estragos que a concentração de renda
impõe também às chamadas “elites intelectuais” que pululam no poder.
Juridicamente, até que haveria base sólida para a cobrança, já que todos os
que causam danos a outrem, por dolo ou culpa, estão obrigados a repará-los, conforme o art. 159 do Código Civil de 1916.
Nada obstante, obrigações legais ainda mais literais não raras vezes são “depuradas” pelo processo de “interpretação jurídica”, de modo que talvez seja melhor
deixar de lado essa idéia, a não ser que se quisesse abusar da paciência exigida pelas longas e revividas maratonas judiciais.
Mas cobrar do Estado, ou do órgão gestor do FGTS (CEF), os danos causados
aos trabalhadores, inclusive os seus reflexos na multa de 40%, não constitui, a meu,
ver nenhum delírio. Afinal, por que cobrar dos patrões, que só fizeram cumprir a lei
quando, de posse do saldo das contas vinculadas, apuraram e pagaram as indenizações cabíveis nas demissões sem justa causa? Naquela época, o saldo das contas só
não era maior por causa da vontade do Estado onipotente!
Há um cem número de fundamentos técnicos para isso, além do já mencionado (art. 159 do Código Civil). A começar pelo fato de que nenhuma empresa fez parte das ações em que seus ex-empregados exigiram da Caixa Econômica Federal reposições inflacionárias surrupiadas.
O artigo 472 do Código de Processo Civil é explícito: “A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando nem prejudicando terceiros (...)”.
Muito embora seja isolada, qual lampejo na escuridão, já há decisão nesse sentido, como a proferida pela 4ª. Turma do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais, propugnando que,
“não obstante a decisão do STF relativa aos índices inflacionários dos
planos econômicos Bresser, Verão e Collor, certo que a mesma não
tem efeito erga omnes e nem vincula o empregador, uma vez que se
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
361
trata de lide ajuizada por trabalhadores em face do órgão gestor do
FGTS, com o escopo de alcançar, na via administrativa a correção
monetária daqueles depósitos, razão pela qual a decisão ser proferida pela Justiça Federal, com este desiderato, não vincula o empregador, haja vista que a autoridade da coisa julgada vincula as partes do
processo, sem alcançar terceiros estranhos à lide” (proc. TRT/3ª. Região, RO-3586/01 – Relator Juiz Júlio Bernardo do Carmo, publicado
no DJMG de 19/05/01, pág. 15).
A 3ª. Turma do mesmo Tribunal foi ainda mais explícita e contundente:
“(...) A circunstância de depositar o correspondente a 40% do saldo
da conta de FGTS – quando o saldo for inferior ao devido em função
do Gestor ter deixado de computar a atualização monetária correta,
procedendo a expurgos inflacionários, não é elencada à relação legitimante do empregador ser acionado na Justiça do Trabalho para responder pela conseqüência do descalabro da política econômica. O
empregador, em causas dessa pretensão é parte ilegítima passiva. A
parte legitimada a responder por essa pretensão é, exclusivamente,
quem procedeu à subtração dos índices de correção monetária devidos, o que implica em ser desta a responsabilidade reparatória do
dano, tanto do principal como de todos os acessórios e/ou resultantes (onde os 40% são inequivocamente alcançados), e no seu correspondente foro, que não é o da Justiça do Trabalho. (...)” (proc.
TRT/3ª. Região – DJMG 04.12.01, pág. 8).
Nunca é demasiado consignar que a discussão é relativamente recente na jurisprudência trabalhista, mais precisamente quanto a se definir se caberá ao ex-empregador ou à Caixa Econômica Federal pagar a diferença da multa de 40% do FGTS
em razão dos reflexos dos expurgos inflacionários dos planos econômicos.
Uma coisa é certa:
a jurisprudência não vacila quanto à responsabilidade da Caixa quanto à correção monetária dos depósitos mensais das contas vinculadas. Basta citar, à guisa de exemplificação, decisão da 5ª. Turma do
Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, de cuja ementa se extrai
que “(...) O ex-empregador é parte ilegítima ad causam em ações
pretendendo diferenças do FGTS em razão da correção monetária
dos índices expurgados pelo Governo Federal, em razão dos planos
econõmicos. Como gestora do FGTS, a ação deve ser dirigida contra
a Caixa Econômica Federal. (...)” (DJSP 15.02.02, pág. 143).
362
faculdade de direito de bauru
Em nosso ver, quem causou o dano principal (diferença dos depósitos do
FGTS mês a mês) deve pagar também o dano acessório (reflexos daquelas diferenças, ao final do contrato de trabalho, na multa de 40%). Se este entendimento prevalecer e as diferenças da multa de 40% vierem a ser cobradas também da Caixa Econômica Federal, mais tarde uma brutal conta engrossará também o passivo do Estado brasileiro.
Dessa opinião não participa o Ministro Barros Levenhagen. Votos proferidos
em dois recursos de revista deixaram assente que
“pela análise das normas, verifica-se que o único que deve responder
pela multa fundiária é o empregador. O fato de a diferença advir da
aplicação dos expurgos inflacionários, reconhecidos pelo STF como
direito adquirido dos trabalhadores, não afasta a responsabilidade do
empregador, uma vez que a reparação caberá àquele que tinha obrigação de satisfazer a multa à época da dispensa sem justa causa” (RR
1129/2001 e RR 880/2001).
Outro aspecto que ainda promete muita discussão, sobre o qual o Supremo
Tribunal Federal provavelmente dará a última palavra, é a questão em torno do termo inicial da prescrição para o trabalhador reclamar do ex-patrão essa diferença.
Duas correntes estão se polarizando: uma, favorável aos trabalhadores, que
sustenta que os dois anos de prescrição começam a fluir a partir do trânsito em julgado da decisão da Justiça Federal (que condenou a Caixa Econômica a recompor
os depósitos do FGTS com os índices inflacionários abiscoitados pelos planos Bresser, Verão, Collor) ou da recomposição da conta vinculada; outra, favorável aos patrões, que aplica simplesmente o texto do artigo 7º., XXIX, da Constituição, ou seja,
passados dois anos da data da rescisão do contrato de trabalho, o trabalhador não
pode mais reclamar coisa alguma, nem a diferença da multa de 40% do FGTS em
questão.
A 4ª. Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, já se perfilhou a
primeira corrente:
“Reconhecido o direito à correção monetária, que fora expurgada
por plano econômico, por força de decisão proferida pela Justiça Federal, e, ressalte-se, confirmada até mesmo pelo Supremo Tribunal
Federal, como é público e notório, uma vez que houve ampla divulgação da matéria por todos os meios de comunicação do País, correto o entendimento de que teve início, a partir desse momento, o prazo para o empregado ingressar em juízo para reivindicar as diferenças de seu FGTS” (TST, 4ª. Turma, AIRR-40750/2002 – Rel. Min. Milton de Moura França, j. 11/12/2002, DJ de 21/02/2003).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
363
O Juiz Salvador Franco de Lima Laurino, da 3ª. Vara do Trabalho de São Bernardo do Campo, por outro lado, se convenceu pela segunda corrente, proferindo
sentença com interessante linha de raciocínio:
“Em face da presunção jure et de jure contida no artigo 3o. da Lei de
Introdução ao Código Civil - “Ninguém se escusa de cumprir a lei,
alegando que não a conhece” -, resulta evidente que não foi com a
edição da Lei Complementar n. 110 que os titulares tiveram ciência
da lesão aos depósitos do FGTS, mas sim com a publicação no Diário Oficial da União das normas que, em janeiro de 1989 e abril de
1990, violando o direito adquirido, excluíram os reajustes das contas
vinculadas do FGTS. Nem se argumente com a jurisprudência do E.
Supremo Tribunal Federal, que, em época recente, reconheceu a violação ao direito adquirido dos titulares de contas-vinculadas do
FGTS, pois, a par dos limites subjetivos da coisa julgada proclamados pela regra do art. 472 do CPC, esses pronunciamentos, de natureza declaratória, não criaram o direito às diferenças, mas apenas revelaram, como em uma fotografia, que o direito subjetivo a elas já
existia desde abril de 1990, uma vez que, mercê do princípio constitucional da segurança jurídica, a lei nova não poderia prejudicar o
direito a reajustes cujas condições de aquisição já tinham se consumado sob o império da lei velha” (proc. 0127/2003).
Também nos alinhamos a esta segunda corrente porque nada nos seduz na
antônima. Costumamos acrescentar que o fato de a recomposição das contas vinculadas dependerem da decisão de outro processo e do pagamento de outra entidade (CEF) não impedia os trabalhadores de ao menos interromperem a prescrição da
ação contra o ex-empregador (para cobrar reflexos na multa de 40%) porque há inúmeros meios, judiciais e extrajudiciais, destinados apenas a produzir esse efeito (interrupção da prescrição).
Além do protesto judicial (artigo 867 do CPC), o artigo 172 do CPC autoriza
qualquer meio extrajudicial inequívoco:
“A prescrição interrompe-se:
I – Pela citação pessoal feita ao devedor, ainda que ordenada por
juiz incompetente.
II – Pelo protesto, nas condições do número anterior.
(...)
IV – Por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor.
V - Por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial,
que importe reconhecimento do direito pelo devedor”.
faculdade de direito de bauru
364
Nesse sentido:
“A notificação, a interpelação e o protesto podem ser feitos por
via extrajudicial, quando a lei não prevê expressamente a judicial (RT 509/193). E aquela não exige o mesmo rigorismo desta,
sendo válida a interpelação ou a notificação quando a carta,
apesar de não entregue em mãos do destinatário, tiver chegado
ao seu conhecimento (RP 4/395, em. 129, noticiando reforma de
acórdão em RT 483/133; JTA 36/347). No mesmo sentido: Arruda
Alvim (RP 3/222)”.
Fonte: NEGRÃO, Theotonio, CPC e Legislação Processual em Vigor,
Saraiva, 33a. ed., São Paulo, 2002, pág. 845, nota “1” ao art. 867.
Ou seja, uma simples carta dirigida ao ex-empregador já seria suficiente para
interromper o curso da prescrição trabalhista, porque o informalismo do processo
do trabalho atrai a aplicação supletiva de todos esses institutos de direito processual
comum (artigo 769 da CLT).
Um outro método judicial, um pouco mais sofisticado mas nem por isto desconhecido da comunidade jurídica, seria a propositura da reclamação trabalhista
contra o patrão dentro dos dois anos seguintes à rescisão, a ser sentenciada somente após o trânsito em julgado da ação movida contra a Caixa Econômica Judicial, instituto que se convencionou chamar de “prejudicialidade externa” e que tem sede no
artigo 265 do CPC:
“Suspende-se o processo:
(...)
IV – quando a sentença de mérito:
a) depender do julgamento de outra causa, ou da declaração
da existência ou inexistência da relação jurídica, que constitua o
objeto principal de outro processo pendente;
(...)”.
Entretanto, não é de hoje uma certa tentação dos Tribunais Superiores em
prolongar o prazo prescricional com base no frágil argumento da existência de outra decisão judicial que tenha reconhecido a existência de direito. O Enunciado n.
350 do Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, também deforma a prescrição
trabalhista a partir do critério do trânsito em julgado: “O prazo de prescrição com
relação à ação de cumprimento de decisão normativa flui apenas a partir da data de
seu trânsito em julgado”.
Criticamos o Enunciado 350 na época de sua edição (LTr 61-06/733) por sentir que todo direito de ação é subjetivo ou facultativo e nem por isso a prescrição
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
365
deixa de iniciar seu curso. A facultatividade do direito de ação não é causa legal de
suspensão da prescrição. Quando se torna possível a propositura da ação, começa a
fluir a prescrição. Daí se dizer que “nasce” nesse instante (teoria da actio nata), o
da lesão do direito, e não com o simples reconhecimento judicial dela.
Mas se a senda deixada pelo Enunciado 350 inspirar novamente o TST e o STF,
felizes os patrões que tiverem posto desde já as barbas de molho...
AÇÃO ANULATÓRIA DE CLÁUSULA DE NORMA COLETIVA:
competências material e hierárquica
Mauro Cesar Martins de Souza
Professor de Direito na UNESP - Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho”, em Presidente Prudente - SP.
Mestre em Direito pela UEL. Doutorando em Direito do Trabalho pela PUC-SP.
Juiz do TRT da 15a Região. Juiz Convocado do TST de 17/08/1999 a 09/12/1999.
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
A competência em razão da matéria se define pela causa de pedir narrada e
pelo pedido formulado pelo autor.
No caso de ação anulatória de cláusula de norma coletiva extrajudicial, segundo o art. 114 da Constituição Federal e os arts. 625 e 643 da CLT, a competência em
razão da matéria é da Justiça do Trabalho.
A nulidade de cláusula de convenção ou acordo coletivo, com efeito, vincula-se ao contrato de trabalho dos empregados representados pelas entidades
sindicais pactuantes, por encontrarem-se inseridos em seu contexto, atraindo,
assim, a competência da Justiça do Trabalho, pois é direito que, deles, contratos de trabalho, se projetam. Trata-se de demanda decorrente de relação de emprego, eis que a cláusula de norma coletiva que se queira anular repercute nos
contratos de trabalho dos funcionários abrangidos pela mesma.
Ademais e, principalmente, com o advento da Lei nº 8.984, de 07/02/1995, a
questão restou sacramentada, verbis:
368
faculdade de direito de bauru
“Art. 1º. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios
que tenham origem no cumprimento de convenções coletivas de trabalho ou acordos coletivos de trabalho, mesmo quando ocorram entre
sindicatos ou entre sindicato de trabalhadores e empregador.”
Mencionado dispositivo legal estabelece a competência desta Especializada
para conciliar e julgar os dissídios que tenham origem no cumprimento de convenções ou acordos coletivos de trabalho, mesmo quando (e não apenas quando)
ocorram entre sindicatos ou entre sindicato de trabalhadores e empregador.
Em outras palavras, tratou a Lei Ordinária de estabelecer a competência da
Justiça do Trabalho também para dirimir controvérsias acerca de direitos e obrigações derivados de norma coletiva extrajudicial (convenção ou acordo).
No caso de ação anulatória intentada pelo Ministério Público do Trabalho, que
é parte legítima para tal (cf. TST no RO-AA nº 423.633/98.4, ac. da SDC, rel. Min. Ursulino Santos, in Genesis Revista de Direito do Trabalho, v. 83, p. 722-724), a competência em questão é reforçada pelo disposto no art. 83, inc. IV, da Lei Complementar nº 75, de 20/05/1993, verbis:
“Art. 83. Compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das
seguintes atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho:
IV - propor as ações cabíveis para declaração de nulidade de cláusula de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole as liberdades individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis dos trabalhadores;”.
Acrescente-se, ademais, que os Excelsos STF, STJ e TST têm decidido pela
competência da Justiça Laboral nos casos de ação fundada em norma coletiva, restando superada a jurisprudência em sentido contrário. À propósito, traz-se à colação ementas que tratam do assunto:
“À Justiça Especializada compete conciliar e julgar os dissídios que
tenham origem no cumprimento de convenções coletivas de trabalho ou acordos coletivos da categoria, mesmo quando ocorram entre sindicatos ou entre sindicato de trabalhadores e empregador. Lei
nº 8.984/95, art. 1º.” (STF, RE nº 214.121-6, ac. da 2ª T., rel. Min. Maurício Corrêa, in DJ-U de 27/02/1998);
“SINDICATO - AÇÃO DE CUMPRIMENTO - COMPETÊNCIA - CONVENÇÕES COLETIVAS - CF, ART. 114 - LEI 8.984, DE 07.02.95 - I. A
competência para o processo e julgamento da ações de cumprimento de sentenças normativas havidas em dissídios coletivos ou em
convenções ou acordos coletivos de trabalho, é da Justiça do Traba-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
369
lho, tendo em vista a inovação, em termos de competência, inscrita
no art. 114 da Constituição, presente, também, a Lei 8.984, de
07.02.95, art. 1º. II. RE não conhecido.” (STF, REsp. nº 140.341-1 - SP,
ac. da 2ª T., rel. Min. Carlos Velloso, in DJ-U de 07/06/1996);
“COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO – ART. 114 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – LEI Nº 8.984/95 – O art. 114 da Constituição
Federal assegurou competência à Justiça do Trabalho para apreciar,
‘na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de
suas próprias sentenças, inclusive coletivas’. A Lei nº 8.984/95, de natureza infraconstitucional, ampliando a competência desta Especializada para dirimir controvérsias oriundas de ACT e CCT, favoreceu o
cancelamento do Enunciado nº 334, pela Resolução nº 59/96. Declara-se, portanto, a competência da Justiça do Trabalho para apreciar a
presente ação anulatória, negando-se provimento ao recurso adesivo das empresas.” (TST, RO-AA nº 384.349/97.0, ac. da SDC, rel. Min.
José Luiz Vasconcellos, in DJ-U de 06/03/1998);
“Com o advento da Lei nº 8.984/95, dispondo que incumbe à justiça
do trabalho conciliar e julgar os dissídios que tenham origem no
cumprimento de convenções coletivas ou acordos coletivos de trabalho, mesmo quando ocorram entre sindicatos ou entre sindicatos
de trabalhadores e empregador, restou inteiramente superada a jurisprudência que se atinha à parte final do art. 114 da constituição,
para definir a competência da justiça comum. Constitucionalidade
do dispositivo. Conflito conhecido, declarando-se a competência da
justiça do trabalho.” (STJ, CC nº 22.830 - SC, ac. da 2ª S., rel. Min.
Costa Leite, in DJ-U de 12/04/1999, p. 90);
“CONFLITO DE COMPETÊNCIA – AÇÃO DE CUMPRIMENTO PROPOSTA POR SINDICATO PATRONAL CONTRA EMPRESA – CONTRIBUIÇÃO ASSISTENCIAL PATRONAL PREVISTA EM CONVENÇÃO COLETIVA – 1. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar ação judicial proposta por sindicato patronal contra empregador, na qual se
discute sobre a exigibilidade, ou não, de contribuição destinada ao
custeio das atividades daquele, prevista em convenção coletiva. 2.
Aplicação literal do art. 1º da Lei nº 8.984, de 07.02.1995. 3. Conflito
conhecido para declarar a competência da Justiça do Trabalho.” (STJ,
CC nº 22.572 - SP, ac. da 2ª S., rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, in DJ-U de 30/11/1998, p. 00045);
faculdade de direito de bauru
370
“Com o advento da Lei 8.984/95, a competência para processar ação
em que se discute obrigação oriunda de convenção coletiva não homologada pela Justiça do Trabalho transferiu-se para este ramo do
Poder Judiciário. A Súmula 57 está superada.” (STJ, CC nº 14.063-3 –
DF, ac. da 1ª S., rel. Min. Humberto Gomes de Barros, in DJ-U de
25/09/1995);
“Constitucional - Conflito de Competência - Contribuição Assistencial - Instituição por Acordo ou Convenção Coletiva - Exigência Competência da Justiça do Trabalho - Lei nº 8.984/95 - Revogação da
Súmula nº 57/STJ - Com o advento da Lei nº 8.984/95, a competência para julgar os dissídios que tenham origem no cumprimento de
acordo ou convenção coletiva de trabalho, independentemente de
estar homologada judicialmente, é da Justiça Trabalhista. A Súmula
nº 57 desta Corte está revogada.” (STJ, CC nº 12.730-0 - SP, ac. da 1ª
S., rel. Min. Cesar Asfor Rocha, in DJ-U de 29/05/1995);
“COMPETÊNCIA – AÇÃO DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA PROFERIDA PELA JUSTIÇA DO TRABALHO – ART. 114, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – I. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar
ação de cumprimento de sentença proposta por Sindicato contra
empregador, a fim de compeli-lo ao cumprimento de cláusula estabelecida em dissídio coletivo de trabalho.” (STJ, CC 18.371 – SP, ac.
da 2ª S. (96/0061046-0), rel. Min. Waldemar Zveiter, in DJ-U de
16/02/1998, p. 16).
Enfim, compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios que visem
anular cláusulas de norma coletiva. Exegese dos arts. 625 e 643 da CLT, 83 IV da Lei
Complementar nº 75, de 20/05/1993, 1º da Lei nº 8.984 de 07/02/1995, e, 114 da
Constituição Federal/1988.
COMPETÊNCIA HIERÁRQUICA
Há grande discussão a respeito da competência hierárquica na Justiça do Trabalho ( JCJ’s ou TRT’s) para análise de ação anulatória de cláusula de norma coletiva extrajudicial.
A Carta Magna tem como princípio importantíssimo o duplo grau de jurisdição, consoante assevera em seu inc. LV do art. 5º: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e
ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Assim, somente em casos excepcionais é que se admite a competência originária dos Tribunais, não sendo exceção na Justiça do Trabalho. É o que se depreende dos arts. 5º, inc. LIII e 113 da Constituição Federal, litteris:
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
371
“ART. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
...................................................................................................................
...
LIII - ninguém será processado nem sentenciado se não pela autoridade competente”;
“ART. 113 - A Lei disporá sobre a constituição, investidura, jurisdição,
competência, garantias e condições de exercício dos órgãos da Justiça do Trabalho.”.
Com efeito, não se pode frustrar a garantia derivada do postulado do juiz natural, o qual tem o condão de reafirmar o compromisso do Estado brasileiro com a
construção das bases jurídicas necessárias à formulação do processo trabalhista democrático, eis que assiste, a qualquer pessoa, quando eventualmente submetida a
juízo, o direito de ser processada perante magistrado imparcial e independente,
cuja competência é predeterminada, em abstrato, pelo próprio ordenamento
constitucional.
Segundo se infere do art. 678, I, “a” e “b”, da CLT, não se inclui na competência originária dos TRT`s, o processamento e julgamento de ação anulatória. A questão de não contemplação legal e regimental da hipótese originária relativa à ação em
foco, deve ser interpretada restritivamente, sem qualquer extensão e ou analogia,
pois, como já mencionado, trata-se de excepcionalidade que deve estar nominada
de forma clara e precisa, sendo vedado dedução, ilação ou presunção a respeito
(CPC, arts. 91 e 93).
Doutra parte, considerando o disposto no caput do art. 14 da Lei Complementar nº 35, de 14/03/79-LOM, e, o contido no art. 653 “f ”, da CLT, COMPETE ÀS
JUNTAS DE CONCILIAÇÃO E JULGAMENTO EXERCER GENERICAMENTE QUAISQUER OUTRAS ATRIBUIÇÕES QUE DECORRAM DA SUA JURISDIÇÃO. Neste sentido, é de competência originária das JCJ`s toda e qualquer variedade de ações trabalhistas sui generis a que as normas consolidada e especiais não fizeram referência
expressa, mas que são admitidas por aplicação subsidiária da lei processual civil
(CLT, arts. 8º parágrafo único e 769), como é o caso da ação monitória, de consignação em pagamento, prestação de contas, protesto contra alienação de bens, ação civil pública (cf. Constituição Federal, art. 129, inc. III, Lei nº 7.347/1985, art. 1º, inc.
IV, e, Lei Complementar nº 75/1993, art. 83, inc. III), dentre outras, INCLUSIVE A
AÇÃO ANULATÓRIA DE CLÁUSULA DE ACORDO COLETIVO.
A ação anulatória é uma ação ordinária de conhecimento, cabendo à JCJ sua
apreciação originária, como órgão julgador de primeiro grau, sob pena de supressão
372
faculdade de direito de bauru
de instância. Trata-se de dissídio individual plúrimo, com finalidade coletiva, e não
um dissídio coletivo, pois visa-se à aplicação de normas públicas laborais já existentes, donde não há, como nos conflitos coletivos, a pretensão de novas normas através do poder normativo, mas apenas a incidência de normas já existentes, de forma
a abranger os trabalhadores, atingidos em seus direitos individuais e sociais, assim
como os que o serão, no futuro, se a atuação lesiva permanecer.
Os TRT’s não detêm competência em relação a pedido de declaração de nulidade de dispositivo inserido no bojo de instrumento normativo, ainda mais quando
há pretensão de devolução de valores descontados de empregados, com base em
cláusula cuja nulidade pretende-se seja declarada, eis que envolve direitos concretos de índole individual. A competência originária pertence às JCJ’s.
A regra geral é que a ação seja interposta em primeira instância, devendo prevalecer a mesma diante da inexistência de regra especial expressa que a ação anulatória de cláusula de norma coletiva deva ser intentada na segunda instância, mesmo
porque trata-se de demanda de caráter individual. Neste sentido o entendimento jurisprudencial, verbis:
“PROCESSUAL CIVIL – CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA –
Conflito negativo entre os Juízos Comum e Trabalhista. É competente a Junta Trabalhista para julgar ação anulatória de cláusula de convenção coletiva de trabalho.” (STJ, CC nº 13.583-SP, ac. da 2ª S., rel.
Min. Waldemar Zveiter, in DJ-U de 18/12/1995, p. 44456);
“Justiça do Trabalho: competência: demanda de trabalhadores contra o empregador e o sindicato a que filiados, na qual se discute cláusula de convenção coletiva celebrada pelos dois últimos (obrigação
da empresa de descontar do salário dos seus empregados e recolher
contribuição social em favor do sindicato); lide que configura dissídio individual entre empregado e empregador, pouco importando
que, para a solução dela, se tenha de discutir incidentur tantum sobre a validade da cláusula convencional questionada; inaplicabilidade à espécie da jurisprudência do STF que afasta a competência da
Justiça do Trabalho para as ações entre sindicato e empregador relativas ao cumprimento de convenções ou acordos coletivos de trabalho” (STF, RE nº 140.998-3-SP, j. em 23/11/1991, rel. Min. Sepúlveda
Pertence, in JSTF - Lex 162/241);
“JUIZ RELATOR - COMPETÊNCIA MONOCRÁTICA PARA DECLINAÇÃO DE OFÍCIO DA COMPETÊNCIA HIERÁRQUICA (OU FUNCIONAL) DO TRIBUNAL. O Juiz Relator pode (e deve) declinar de ofício
da competência hierárquica do Tribunal, que é absoluta, em prol da
competência de JCJ sob sua jurisdição, em ação anulatória de cláusulas de convenção coletiva proposta pelo Ministério Público do Traba-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
373
lho, na forma do que dispõem os arts. 113 caput in initio e, 301
inciso II e parágrafo 4º, do CPC combinado com o art. 41 inc. VI, do
Regimento Interno deste E. TRT da 15ª Região.” (TRT 15ª Reg., AR nº
357/98, ac. da SE nº 183/99, rel. Juiz Mauro Cesar Martins de Souza,
in DJ-SP de 11/03/1999, p. 63);
“AÇÃO ANULATORIA DE CLÁUSULA DE ACORDO COLETIVO DE
TRABALHO - COMPETÊNCIA - É DA JUSTIÇA DO TRABALHO, ATRAVÉS DAS JUNTAS DE CONCILIAÇÃO E JULGAMENTO, E NÃO DO
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO, A COMPETENCIA PARA
APRECIAR ORIGINARIAMENTE AÇÃO QUE VISE A ANULAR CLÁUSULAS CONTIDAS EM ACORDO COLETIVO DE TRABALHO, APLICÁVEL NO ÂMBITO DE SUA JURISDIÇÃO. Compete à Justiça do Trabalho conhecer de ação anulatória de cláusulas de acordo coletivo
(CLT, arts. 625 e 643 c/c Lei nº 8.984, de 07/02/95, art. 1º, e, Constituição Federal, art. 114). Ademais, segundo se infere do art. 678, I,
“a” e “b”, da CLT, não se inclui na competência originária dos TRT`s,
o processamento e julgamento de ações anulatórias, o que também
não consta do Regimento Interno deste E. TRT da 15ª Região. Doutra parte, considerando o disposto no art. 14 parágrafo 1º da Lei
Complementar nº 35, de 14/03/79-LOM, e, o contido no art. 653 “f ”,
da CLT, COMPETE ÀS JUNTAS DE CONCILIAÇÃO E JULGAMENTO
EXERCER DE FORMA GENÉRICA QUAISQUER OUTRAS ATRIBUIÇÕES QUE DECORRAM DA SUA JURISDIÇÃO, sob pena de supressão de instância. Assim, observando-se o princípio da legalidade (CF,
art. 5º-II), caracterizada está a incompetência absoluta deste E. TRT
em razão da hierárquica, eis que não tem competência originária
para conhecer de ação anulatória de cláusulas de acordo coletivo,
motivo pelo qual fica anulada a r. decisão interlocutória que concedeu em parte liminar, devendo os autos serem remetidos para uma
das JCJ`s que abranger a área onde se localiza a empresa acordante
por existir efeitos que incidem apenas na mesma, para que processe
e aprecie como lhe aprouver a ação anulatória com pedido de liminar (CLT, art. 795 parágrafo 2º c/c CPC, art. 113 parágrafo 2º “in
fine”).” (TRT 15ª Reg., AA nº 238/98, ac. da SE nº 32/99, rel. Juiz Mauro Cesar Martins de Souza, in DJ-SP de 28/01/1999, p. 46);
“A Justiça do Trabalho é competente para conhecer e julgar ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho visando anular cláusula de convenção coletiva de trabalho, que estabelece o desconto assistencial mensal em dois por cento do salário dos empregados, independentemente de filiação sindical e assegurar o direito de
374
faculdade de direito de bauru
oposição. Matéria de índole trabalhista, que afeta direta e inequivocadamente os contratos de trabalho individuais de trabalho. Aplicação da Lei nº 8.984/95 que amplia a competência da Justiça Especializada para conhecer e julgar dissídios entre sindicatos, ou entre este
e empresa, fundados em acordos e convenções coletivas. Recurso de
revista conhecido e provido, determinando-se o retorno dos autos à
JCJ de origem para julgamento da ação.” (TST, RR nº 268.416/96.4,
ac. da 4ª T. nº 4.405/96 de 19/06/1996, rel. Min. Almir Pazzianotto, in
LTr 61-03/359);
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA – INCOMPETÊNCIA FUNCIONAL DO TRIBUNAL REGIONAL – A competência originária dos tribunais é sempre
fixada expressamente em lei, dado o seu caráter de excepcionalidade. Assim, inexistindo qualquer dispositivo legal a determinar que a
Ação Civil Pública, no âmbito da Justiça do Trabalho, seja julgada originariamente por Tribunal Regional, deve prevalecer a competência
dos órgãos de primeiro grau – as Juntas de Conciliação e Julgamento.” (TRT 24ª Reg., AD nº 85/96, ac. nº 329/97 do TP, rel. Juiz João de
Deus Gomes de Souza, in DJ-MS de 03/03/1997);
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA E DISSÍDIO COLETIVO – COMPETÊNCIA
MATERIAL E FUNCIONAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO – LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO – O art. 114 da Constituição Federal atribui à Justiça do Trabalho competência material para conhecer
também de ‘outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho’. A Ação Civil Pública teve seus limites ampliados pelo art. 129,
III, da Constituição Federal e pelo Código de Defesa de Consumidor,
o qual adiciona o inciso IV ao art. 1º da Lei nº 7347/85, colocando
sob a égide da Ação Civil Pública ‘qualquer outro interesse difuso ou
coletivo’. Por outro lado, a Lei Complementar nº 75/93 determinou
expressamente, em seu art. 83, III, a legitimidade do Ministério Público do Trabalho para promover a ação civil pública em face desta
Justiça Especializada, visando à defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais protegidos na Carta Política, o
que, entretanto, não implica desconsiderar a legitimidade concorrente do sindicato representativo da categoria. Ressalte-se ainda que,
enquanto a ação civil pública se baseia no ordenamento jurídico
preexistente para busca da tutela jurisdicional, no dissídio coletivo –
fonte do poder normativo da Justiça do Trabalho – o comando pretendido se equipara à lei, instituindo nova ordem jurídica para os
membros da classe representada. Já a competência do primeiro grau
para conhecer da lide emerge da ordem instrumental vigente, na
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
375
qual a competência originária dos Tribunais se dá apenas em caráter
excepcional, e, portanto, há que ser expressa, comando este inexistente na hipótese da ação civil pública. Portanto, é de se concluir
pela competência desta Justiça Especializada para – em primeiro
grau de jurisdição – conhecer de litígio instaurado pelo Ministério
Público do Trabalho, visando à proteção de interesses difusos e coletivos dos trabalhadores, em nada violando os limites do Poder Normativo da Justiça Obreira.” (TRT 2ª Reg., ac. nº 02990077337 da 2ª T.,
rel. Juíza Yone Frediani, in DJ-SP de 12/03/1999);
“Ação anulatória de cláusula de acordo coletivo de trabalho. Incompetência hierárquica do Tribunal Regional do Trabalho. Por tratar-se
de ação que possui natureza condenatória, é das Juntas de Conciliação e Julgamento a competência originária para processar e julgar
Ação Anulatória de cláusula de Acordo Coletivo de Trabalho celebrado extrajudicialmente. Dentre as hipóteses elencadas nos arts. 678
usque 680 da Consolidação das Leis do Trabalho e no art. 18, incisos
I e II, do Regimento Interno do Egrégio Regional, que tratam da sua
competência originária por força do que dispõe o art. 96, inciso I, alínea a, da Constituição Federal, não se encontra a de processar e julgar a legalidade de cláusulas de Acordo Coletivo de Trabalho celebrado extrajudicialmente. O princípio do Juiz Natural, instituído pelo
art. 5º, inciso LIII, da Constituição Federal, é estatuto de garantia fundamental, que não deve ser desprezado. Pronunciando de ofício a incompetência hierárquica do Tribunal Regional do Trabalho para processar e julgar a presente Ação anulatória, determinando-se a remessa dos autos a uma das Juntas de Conciliação e Julgamento de Manaus, a fim de oferecer a prestação jurisdicional requerida.” (TRT 11ª
Reg., AA nº 02/97, ac. nº 541/98 do TP, rel. Juiz José dos Santos Pereira Braga, in DJ-AM de 19/03/1998).
Por oportuno, consigne-se que somente a LEI em sentido formal, próprio e específico, é que pode impor às pessoas (físicas ou jurídicas) o dever de fazer ou deixar
de fazer alguma coisa (CF, art. 5º, II), e desde que não afronte a limitação constitucional vigente. No caso da ação anulatória de cláusula de norma coletiva (extrajudicial), não existe qualquer dispositivo legal que estipule a competência de
ações de interesse e ou caráter coletivo de forma indistinta e genérica.
“Só a lei pode definir e limitar o exercício dos direitos individuais”...
“de modo que, `tudo o que está proibido pela lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser obrigado a fazer o que ela não ordene”
376
faculdade de direito de bauru
(Carlos Ari Sundfeld, in “Fundamentos de Direito Público”, 1. ed,
São Paulo: Malheiros, 1992, p. 45). Repetindo, não existe qualquer
dispositivo legal que estipule a competência de ações de interesse e
ou caráter coletivo, de forma indistinta e genérica (CF, art. 5º, II).
Assim, em observância ao princípio da legalidade e, inexistindo exceção expressa à regra geral, a competência hierárquica para conhecer de ação anulatória de
cláusula de norma coletiva extrajudicial é das JCJ’s (CLT, art. 653 “f ”; CPC, arts. 91 e
93; Lei Complementar nº 35, de 14/03/1979-LOM, art. 14, caput; Constituição Federal, arts. 5º, incs. II, LIII e LV, 113 e 114).
Inclusão social
direito das minorias
Grotesco nos programas de televisão versus
dignidade humana: notas acerca da tutela
jurídica civil oferecida às pessoas com
necessidades especiais pelo direito
brasileiro em vigor1
Jacqueline Sophie P. Guhur Frascati
Mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá.
1.
NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
Na sociedade contemporânea, movimentada por uma ideologia de mercado,
o homem valorizado é aquele que se destaca por seu esforço, merecimento, persistência, em sua busca pela obtenção do lucro, e tudo aquilo que é estimado como
útil para alcançar o lucro é perseguido, almejado.
Daí porque, nesta sociedade: (a) não há espaço para as pessoas com necessidades especiais. Elas ou são consideradas como não dotadas das mesmas habilidades e potencialidades dos indivíduos ditos “normais”, ou, possuindo certas habilidades, não recebem as oportunidades/condições necessárias para demonstrá-las; e (b)
os valores hegemônicos que regulam a vida social parecem estar exclusivamente
submetidos ao valor econômico, ou seja, a idéia corrente é de que não há valores
que não possam ser dominados pelo valor econômico.
1 O presente texto consiste em um resumo ampliado da dissertação de mestrado intitulada “Programas de televisão e pessoas com necessidades especiais: uma reflexão acerca do grotesco e da tutela civil da dignidade humana”,
defendida na Universidade Estadual de Maringá, em 30 de setembro de 2003.
380
faculdade de direito de bauru
Diante disso, as pessoas com necessidades especiais enfrentam inúmeras barreiras em sua busca por aquilo que é considerado indispensável à existência humana saudável. No âmbito dos meios de comunicação de massa, em especial nas redes
nacionais de televisão “aberta”, também existem obstáculos.
Um dos obstáculos seria o fato de os programas que, geralmente, transmitem
alguma mensagem relacionada à pessoa com necessidades especiais – em maior número, os programas de auditório – associarem a deficiência à monstruosidade, ao
bizarro, ao exótico, ao estranho, ao misterioso.
Descobriu-se que a exploração da deficiência, quando realizada de modo a
destacar, negativamente, a característica que torna um ser humano “anormal”, estranho, é um recurso útil para a obtenção do lucro. A televisão, ao sofrer a pressão do
campo econômico, submete sua programação à medição do índice de audiência.
Mas nestes últimos anos, a exploração da deficiência (e de certas minorias) pelos programas de auditório da televisão aberta, nacional, tem chamado a atenção de
telespectadores, políticos e cientistas de diferentes áreas do saber; existe um clamor
público pela moralização da televisão brasileira.
Tendo em conta a relevância que assume o assunto em relação às pessoas com
necessidades especiais, uma vez que cerca de dez por cento (10%) da população
brasileira possui algum tipo de deficiência,2 surge o problema investigado: como o
Direito se posiciona diante dessa realidade?
A partir desse, foram elencados os seguintes subproblemas: qual é a proteção
oferecida, no plano do direito material, à pessoa com necessidades especiais e aos
programadores da televisão? Sendo o direito desses indivíduos colidentes, qual é a
regra a ser formulada pelo juiz, como aplicador do direito, para a solução de um
caso concreto? Qual deve ser a tutela jurisdicional oferecida à pessoa com necessidades especiais, quando essa possui razão consoante o direito material, a fim de que
ela obtenha um resultado adequado e efetivo em sua vida?
A pesquisa foi estruturada para responder os subproblemas levantados. Tendo-se por matriz teórica a concepção de que as idéias acompanham e refletem o movimento mais amplo da transformação da sociedade, foram realizadas três análises
diferenciadas, sendo que as duas análises preliminares foram feitas com o fim de
contextualizar o objeto da pesquisa.
A pesquisa realizada foi, caracteristicamente, bibliográfica. Foram consultados
textos produzidos na última metade do século XX, época em que é possível encontrar trabalhos de conteúdo fértil e diversificado, principalmente a respeito dos direitos da personalidade, estendendo-se até aqueles produzidos na atualidade. Os tex2 STAROBINAS, Marcelo. Casa de bonecas. In: PINSKY, Jaime (org.) 12 faces do preconceito. São Paulo: Contexto, 1999, p. 96.
* As notas de rodapé seguintes indicam os principais autores e obras valoradas/consultadas para a realização da pesquisa; não esgotam, contudo, o material utilizado na elaboração da dissertação.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
381
tos escolhidos são de autores brasileiros e, como material de apoio, alguns referentes à doutrina portuguesa, espanhola, italiana e francesa, dada a sua reconhecida
contribuição ao tema. Os textos são da área jurídica, sobretudo, de autores civilistas,
constitucionalistas e processualistas, bem como de outras áreas do saber, como a
Educação e a Comunicação, essas últimas visualizadas como úteis para uma profícua
percepção do tema.
2.
AS DUAS ANÁLISES PRELIMINARES: CONTEXTUALIZAÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA
Num primeiro momento, foi feita a análise das diferentes noções de deficiência e de dignidade humana, construídas historicamente, tendo-se por referência os grandes momentos históricos.
Partindo-se do pressuposto de que a maneira de pensar a deficiência, bem
como a dignidade humana, acompanharam as transformações nas relações sociais,
sobretudo as mudanças ocorridas nas relações de produção, buscou-se demonstrar
a ligação entre as noções de deficiência e dignidade nos diferentes períodos históricos. Por meio da análise, obtiveram-se os seguintes resultados:
(a) Na medida em que o homem foi desenvolvendo os instrumentos de produção adequados a transformar a natureza em um produto útil para sua existência,
ele adquiriu novos anseios, mudou suas concepções, o modelo de homem valorizado e modificou a idéia que possuía acerca das pessoas que, em razão de sua incapacidade ou pela sua deficiência, mesma, não integravam ou não podiam integrar esse
processo.
Assim é que a deficiência foi sendo entendida, nos diferentes períodos, como
um estigma gerado ora em razão da incapacidade de certas pessoas (cegas, coxas,
anãs, etc.) produzirem a sua subsistência e a dos demais, ora em razão da deficiência (física, mental, sensorial, etc.), em si, de alguma pessoa, em razão da qual ela se
via impedida de participar do processo de produção.* 3
(b) A noção de dignidade, identificada com tudo aquilo que é considerado essencial para a existência humana saudável,4 é um valor presente na história da hu3 SILVA, Otto Marques da. A epopéia ignorada: a pessoa deficiente na história do mundo de ontem e de hoje. São
Paulo: CEDAS, 1986; GUHUR, Maria de Lourdes Perioto. Representação da deficiência mental: esboço de
uma abordagem histórica, 1994 (Dissertação de Mestrado. Universidade Metodista de Piracicaba); DIAKOV V.;
KOVALEV S. A sociedade primitiva. 2 ed. São Paulo: Global, 1985; BIANCHETTI, Lucídio. Aspectos históricos da
Educação Especial. Revista Brasileira de Educação Especial, v. 3, p. 7-19, 1995; GILISSEN, John. Introdução
histórica ao Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001; ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1999; PESSOTTI, Isaías. Deficiência mental: da superstição à ciência. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1984.
4 JABUR, Gilberto Haddad. Liberdade de pensamento e direito à vida privada: conflitos entre direitos da personalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 210.
382
faculdade de direito de bauru
manidade5. Ao tempo em que o homem, no decorrer dos períodos históricos, criava novas expectativas, modificava aquilo que até então era considerado como indispensável para a sua existência.
(c) A noção de deficiência, até o predomínio da sociedade capitalista, relaciona-se com a noção de dignidade na medida em que a pessoa que “carregava” o estigma da deficiência não podia alcançar o que era considerado indispensável à existência humana saudável.
(d) A consagração de inúmeros direitos no último século evidencia que o
conteúdo da noção de dignidade humana foi ampliado. Passou a ser considerado indispensável à existência humana ter acesso a certos bens da vida (educação, saúde, lazer, etc.) e deles poder desfrutar com segurança, tranqüilidade
(ter assegurada a sua integridade psíquica, física, etc.). Uma vez que o Estado
não consegue garantir a todos os indivíduos o acesso a esses bens, apenas
aquele que tiver condições de custeá-los é que poderá deles gozar com tranqüilidade. Assim é que a pessoa com necessidades especiais, porque incapaz para
o trabalho ou porque vislumbrada como improdutiva, ainda não possui, na sociedade contemporânea, acesso a tudo aquilo que integra a noção de dignidade humana.6
(e) A Constituição Federal brasileira de 1988, ao declarar que a dignidade
humana é fundamento da República, estimula o desenvolvimento social para a
sua realização, deixa claro que a legislação deve estar voltada à sua implementação e barra as condutas humanas que colocam em risco sua concretização. A
dignidade é, pois, um ideal a ser perseguido.
Num segundo momento, foi examinado o apelo rotineiramente utilizado pelos programas de auditório da televisão: a categoria do grotesco de forma
associada à deficiência. Por intermédio dessa análise, objetivou-se demonstrar
que o conteúdo de certos programas televisivos, especialmente os de auditório,
está subordinado à busca, a qualquer custo axiológico, do maior índice de audiência, indicador da rentabilidade econômica. Foram obtidos os seguintes resultados:
(a) A utilização da categoria estética do grotesco de forma associada à deficiência é uma fórmula que se mostrou idônea a conquistar grandes parcelas
de audiência. Na forma em que esses programas são elaborados, o gênero gro-
5 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 204-207.
6 BOBBIO, Norberto. Direitos do homem e sociedade. In: _____. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson
Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992; Idem. Presente e futuro dos direitos do homem. In: _____. A era
dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992; COMPARATO, Fábio Konder. A
afirmação histórica dos direitos humanos. 2 ed., São Paulo: Saraiva, 2001; LORENZETI, Ricardo Luis.
Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
383
tesco, que se identifica com o bizarro, o exótico, o estranho, é funcionalizado
para apontar as pessoas que não se inserem na estrutura da sociedade. 7
(b) Aventou-se que os programas de auditório que se utilizam dessa categoria estética fazem sucesso entre os telespectadores por lhes proporcionar
uma catarse8. Ainda, que o interesse do público pelas diversas formas de deficiência é determinado pela cultura oral da população brasileira, influenciada
pelas noções de deficiência construídas historicamente. Daí porque se inferiu a
existência de um diálogo entre a produção e o consumo; mas, uma vez que a
maior parte da população brasileira encontra na televisão aberta uma forma de
lazer acessível e dispõe de um poder de opção reduzido, esse diálogo não é, de
todo, equilibrado.
(c) Os efeitos que essas mensagens produzem são especialmente ofensivos à concretização da dignidade: das pessoas com necessidades especiais que
são usadas como atração, porque são degradadas, ridicularizadas, depreciadas
e colocadas em situações desconfortáveis, incômodas, pelo apresentador do
programa; das pessoas com necessidades especiais que são telespectadoras do
programa, uma vez que essas experimentam as mesmas sensações acima narradas ao se identificarem com o personagem do vídeo; e, indiretamente, de todas as pessoas com necessidades especiais que participam da sociedade, posto
que essas experimentam as mesmas sensações negativas, ao serem discriminadas. É que, nessa última hipótese, parte-se do pressuposto de que essas mensagens cooperam para o desenvolvimento do preconceito pelo homem dito
7 SODRÉ, Muniz. A comunicação do grotesco. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 1988; Idem. O social irradiado: violência urbana, neogrotesco e mídia. São Paulo: Cortez, 1992; FONTES JUNIOR, João Bosco Araújo. Liberdades e limites na atividade de rádio e televisão: teoria geral da comunicação social na ordem jurídica brasileira e no direito comparado. Belo Horizonte: Del Rey, 2001; MIGLIACCIO, Marcelo. “‘O Povo na TV’ foi pioneiro na
apelação para o mundo cão”. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 nov. 2001. Caderno Tv Folha, p. 9; VALLADARES,
Ricardo; SANCHES, Neusa. O novo fenômeno da tv. Veja, edição 1.538, ano 31, n. 11, p. 120-126, 18 mar. 1998; BUCCI, Eugênio. Quando a desgraça dá lucro. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 nov. 2001, Caderno tvfolha, p. 02;
Idem. O pior do povo. Veja, edição 1.538, ano 31, n. 11, p. 126, 18 mar. 1998. VALLADARES, Ricardo. O “desmiolado”. Veja, edição 1.747, ano 35, n. 15, p. 114, 17 abr. 2002.
8 A catarse era uma das funções da tragédia grega, juntamente com a expressão artística e a educação do público.
Pode-se dizer que ela é preenchida “quando uma peça permite reduzir, no público, a tensão pulsional, provocada
pelos conflitos individuais e sociais encenados, por meio da identificação das pessoas com um ou outro personagem da peça” ( VIDAL-NAQUET. Apud FREITAG, Bárbara. Itinerários de Antígona: a questão da moralidade. Campinas: Papirus, 1992, p. 19). Na hipótese em questão, os telespectadores deslocam as suas pulsões para os personagens do vídeo, projetando suas angústias, temores (no caso, o “fantasma” da deficiência), o que lhes proporciona a
sensação de purificação, de alívio. Em meio a essa projeção, os telespectadores identificam-se com certos personagens, nos quais vêem determinadas características que julgam que lhes pertençam, ou mesmo com a situação vivida pelos personagens (de privação, de humilhação, de exclusão), que sentem estar vivenciando. Ao final, o telespectador ri de uma “tragédia” que não é apenas do outro, mas que também é ou pode vir a ser sua (SODRÉ, Muniz. Op. cit., 1988, p 60).
384
faculdade de direito de bauru
“normal” (porque perpetuam o estereótipo da deficiência e o estigma), e que
o preconceito conduz à prática de atos discriminatórios.9
3.
A TUTELA JURÍDICA OFERECIDA PELO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
EM VIGOR À PESSOA COM NECESSIDADES ESPECIAIS
Num terceiro momento, a análise voltou-se, propriamente, ao objeto de
pesquisa: investigar como o direito posiciona-se frente à exploração da deficiência
pela televisão aberta brasileira, direcionada para a obtenção de maiores índices de
audiência. Se na exacerbação da visão capitalista tudo é considerado mercadoria,
procurou-se demonstrar a antítese: que certos valores, bens imateriais, não podem
ser submetidos ao valor lucro. Para tanto, foram apontadas algumas pistas a respeito da tutela jurídica oferecida pelo direito brasileiro à pessoa com necessidades especiais para o combate às produções culturais sujeitas ao índice de audiência. A análise foi realizada, sobretudo, sob o enfoque do direito civil.
Como resultado de nível mais genérico, entendeu-se que as pessoas com necessidades especiais (assim como os programadores da televisão), encontram proteção no
direito material, no plano do direito civil e constitucional, nos direitos da personalidade
e nos direitos da personalidade fundamentais, respectivamente; que as pessoas com necessidades especiais podem ser vitoriosas num eventual conflito de direitos da personalidade colidentes; e que essas pessoas dispõem de uma tutela jurisdicional adequada (a
satisfazer as pretensões que exsurgem dos direitos da personalidade) e eficaz.
Os resultados parciais da análise foram elencados tendo-se por referência as
seguintes palavras-chaves:
(a) As agressões. Na análise, levou-se em consideração as agressões à concretização da dignidade humana das pessoas com necessidades especiais que estão relacionadas ao seu próprio “ser”, à sua personalidade humana: as agressões à sua integridade psíquica (à paz espiritual/ao sossego) e à sua integridade moral (à honra
subjetiva). Restou observado que a expectativa da pessoa com necessidades especiais de ter assegurada a sua paz espiritual e sua honra pode entrar em conflito com
um anseio do homem contemporâneo, também integrante da personalidade humana (pertencente ao domínio da integridade intelectual), que é o anseio por expressar, livremente, o pensamento por intermédio dos meios de comunicação, como a
televisão (a liberdade de comunicação).
9 CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em psicologia, n. 3, p. 47-70, 1996; COLLARES, Cecília Azevedo Lima; MOYSÉS, Maria Aparecida Affonso. Preconceitos no cotidiano escolar. São Paulo:
Cortez, 1996; GOFFMAN, Erving. Apud AINLAY, Stephen C.; CROSBY, Faye. Stigma, justice and the dilemma of difference. In: AINLAY, Stephen C.; BECKER, Gaylene; COLEMAN, Lerita M. (orgs.) The dilemma of difference. New
York: Plenum Press, 1986 (Trad. livre); GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2001.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
385
(b) O direito material. Por meio da análise do sistema jurídico, demonstrouse que, no âmbito do direito civil, a proteção dos diferentes domínios da personalidade humana é realizada por meio dos direitos da personalidade. Esses têm por objeto certos bens da personalidade, como o sossego/paz espiritual, a honra e a liberdade de expressão, entre outros; não são direitos taxativos, uma vez que se encontram em constante gestação. Alguns desses direitos também recebem a denominação de direitos fundamentais, por estarem consagrados na Constituição Federal brasileira de 1988 e por ostentarem uma tutela publicista.10
(c) O novo fundamento axiológico. A proteção conferida à pessoa, considerada em “si mesma”, teve lugar no ordenamento jurídico civil em razão da alteração do fundamento contemplado pela ordem jurídica. Sob a égide do Código Civil brasileiro de 1916, vigorava como fundamento axiológico o indivíduo e a sua
proteção se dava, principalmente, por meio da proteção de seus bens individuais.
Mas, a Constituição Federal brasileira de 1988 trouxe em seu bojo um novo fundamento – a pessoa humana –, que passou a ser compreendido como o “valorfonte”11 de todos os valores. O homem, ao presenciar, no século XX, diversos aviltamentos à pessoa (os últimos ocasionados, sobretudo, pela constante subordinação dos valores preponderantes da sociedade à lógica do mercado), optou pela
sua salvaguarda.12
Com a adesão ao movimento universal de repersonalização13 do Direito, a proteção conferida pelo direito material, na ordem jurídica brasileira, vem sendo redirecionada para a pessoa, em si, nas legislações pós-Constituição, sendo um último
10 TOBEÑAS, José Castan. Los derechos de la personalidad. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1952; GOMES, Orlando. Direitos de personalidade. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 216, 1966; FRANÇA, Rubens Limongi. Direitos privados da personalidade: subsídios para sua especificação e sistematização. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 370, p. 7-16, 1966; MAZEAUD, Henri y Leon; MAZEAUD, Jean. Lecciones de Derecho Civil: los sujetos de
derechos, las personas. Trad. Luis Alcalá-Zamora y Castillo. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América,
1959, p. 268, v. 2; JABUR, Giberto Haddad. Op. cit.; SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993; SOUZA, Rabintranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de
personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995.
11 REALE, Miguel. Op. cit., 1999, p. 212-213.
12 MORAES, Maria Celina Bodin de. Constituição e Direito Civil: tendências. Revista dos Tribunais, São Paulo, v.
779, p. 47-63, set. 2000; TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e relações de direito civil na experiência brasileira. In: Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra. Conferências na Faculdade de Direito de
Coimbra 1999/2000. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 323-345; COMPARATO, Fábio Konder. A humanidade no
século XXI: a grande opção. In: Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra. Conferências na Faculdade de Direito de Coimbra 1999/2000. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 217-232.
13 Na lição de Pietro Perlingieri, “com o termo, certamente não elegante, ‘despatrimonialização’, individua-se uma
tendência normativa-cultural; se evidencia que no ordenamento operou uma opção, que, lentamente, se vai concretizando, entre personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade
fim a si mesma, do produtivismo, antes, e do consumismo, depois, como valores)” (sic.) (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 33).
386
faculdade de direito de bauru
exemplo dessa modificação a regulamentação dos direitos da personalidade, pelo
Código Civil brasileiro de 2002.
(d) O conflito de direitos. A proposta de encaminhamento à questão da colisão dos direitos da personalidade está pautada no novo fundamento da ordem jurídica (a pessoa humana), que apregoa a realização de valores existenciais. Seguindose as diretrizes propostas por Robert Alexy14, na versão apresentada por José Joaquim Gomes Canotilho15, tem-se que a hipótese de confronto entre o direito à honra e à paz espiritual e o direito à comunicação é um conflito de princípios. As normas que enunciam esses direitos não os impõem em termos definitivos, mas ordenam que sejam satisfeitos na maior medida do possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas.
Para a solução do conflito, um princípio deve ceder diante do outro. Aplicado
o método sugerido por José Joaquim Gomes Canotilho, o juízo de ponderação ou
já é efetuado no momento em que o legislador enuncia a norma, por meio do estabelecimento de restrições legais, ou, não existindo essas restrições, deve ser realizado pelo juiz, por meio da formulação de uma regra de solução para o caso concreto, consistente em estabelecer entre os princípios uma ponderação condicionada.16
Observa-se que a Constituição Federal brasileiram de 1988, exclui, expressamente, do âmbito da proteção conferida à liberdade de comunicação, a expressão
do pensamento lesiva à honra e aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Mesmo que a restrição seja evidente em relação à necessidade de preservação
da honra, a preservação desse direito, em todos os casos de conflito com o direito
à liberdade de comunicação, levaria, por exemplo, à anulação do direito da coletividade de ser informada sobre acontecimentos gerais, potenciais a lesionar a honra da
pessoa objeto da notícia. Daí porque se entende necessário formular uma regra de
solução: elabora-se uma que dispõe que o direito à liberdade de comunicação tem
maior peso do que o direito à honra, num caso concreto, quando a informação prestada em relação à pessoa com necessidades especiais for de inequívoco interesse
público, ou seja, trouxer benefícios à coletividade, auferíveis por meio da realização
de valores jurídicos importantes.17 Aplicada a regra ao caso específico, em questão,
14 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Políticos y Constitucionales, 2001, p. 81-172.
15 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1215; 12291241.
16 Ibidem, p. 1231-1241.
17 Em investigação aos limites da informação jornalística, Mayra Rodrigues Gomes aduz que “o âmbito privado só
merece exploração e é sujeito a julgamento público, sob o ponto de vista moral, quando justamente cruzar-se com
questões de interesse público” (GOMES, Mayra Rodrigues. Ética e jornalismo: uma cartografia dos valores. São
Paulo: Escrituras, 2002, p. 52). Gilberto Haddad Jabur leciona que a esfera íntima de uma pessoa pode sofrer intromissão quando presente a necessidade de justiça aliada ao interesse público. Desenvolve, entretanto, o tema, mais
em relação à vida privada de pessoa notória ( JABUR, Gilberto Haddad. Op. cit. p. 287-295).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
387
conclui-se que os valores que as mensagens televisivas visam a realizar (entre os
quais se destaca o valor lucro) sejam de menor importância que o valor honra. Nesse caso, o direito à liberdade de comunicação deve ceder diante do direito à honra.
Por meio da interpretação daquilo que o legislador constitucional denominou de “valores éticos e sociais da pessoa e da família”, pode ser revelada uma
restrição constitucional que exclua, do âmbito da proteção conferida à liberdade de comunicação, a expressão do pensamento lesiva ao direito à paz espiritual. Entendeu-se que o vocábulo ético remete ao valor bem e que esse se revela por meio da prática de valores positivos. Visando ao direito, essencialmente,
ao bem comum, aos valores de convivência, infere-se, da Constituição Federal
de 1988, que esse bem se realiza por meio da composição dos valores do indivíduo e da coletividade, de modo que reste sempre preservado o valor pessoa humana. Com isso, entende-se que o legislador constitucional quis fazer referência
aos “valores individuais (positivos) da pessoa” e aos “valores (positivos) da sociedade” (como a proteção conferida à família).
Ainda por meio da interpretação, infere-se que a expressão “valores individuais (positivos) da pessoa” remete aos valores tidos como positivos e relevantes
para cada pessoa. Em relação às pessoas com necessidades especiais, aventa-se que
o valor inclusão/integração assume especial importância e polariza os demais valores. A partir destas interpretações, entende-se que o valor inclusão/integração não
pode ser realizado de forma dissociada do valor paz espiritual; evidenciar, negativamente, que as pessoas com necessidades especiais não se ajustam à estrutura da sociedade, é realizar uma conduta contrária ao valor inclusão/integração. Com isso,
concluiu-se que o direito à liberdade de comunicação deve ceder diante do direito
à paz espiritual.
Já, trabalhando-se com a hipótese de que o valor paz espiritual não integra
aquilo que o legislador constitucional denominou de valores éticos e sociais da
pessoa e da família, formula-se uma regra de solução no mesmo sentido daquela
elaborada em relação ao direito à honra, a qual, aplicada ao caso concreto, leva a
mesma conclusão: que o direito à liberdade de expressão deve ceder diante do
direito à paz espiritual.
(e) A tutela jurisdicional. Entendeu-se que o processo deve conduzir a uma
tutela jurisdicional que esteja afinada com o direito material invocado, a fim de que
seja outorgado, ao sujeito que possui razão, um resultado adequado e efetivo em
sua vida.18
Na busca de uma tutela jurisdicional sincronizada com os direitos da personalidade é que, melhor se investigando essa categoria de direitos, chegou-se às seguintes conclusões pontuais:
18 DINAMARCO, Cândido Rangel. Tutela jurisdicional. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 334, p. 19-41, abr. maio
jun. 1996.
388
faculdade de direito de bauru
A primeira é a de que os direitos da personalidade são direitos subjetivos. Valendo-se de algumas noções de direito subjetivo19, inferiu-se que os direitos da personalidade podem ser assim qualificados na medida em que a regra jurídica que protege determinado(s) bem(s) da personalidade humana confere a seus titulares a
possibilidade de dele(s) gozar e pretender algo em relação a esse bem em face dos
destinatários da norma.
Até o advento do Código Civil brasileiro, de 2002, não existia uma norma genérica, formulada nesses termos, no ordenamento jurídico. Havia uma norma constitucional prevendo o dever de respeito (de abstenção) a certos bens da personalidade, dirigido a toda a coletividade (artigo 5º, caput e incisos I, IV, VI, IX, X, da
Constituição Federal brasileira, de 1988); e uma norma penal dispondo acerca do
dever de praticar atos de salvaguarda a bens da personalidade com o fim de impedir um resultado lesivo, dirigido a determinadas pessoas (artigo 13, §2º, do Código
Penal brasileiro de 1984). Mas não era conferido ao titular desses bens o poder de
exigir judicialmente tal respeito ou o comportamento positivo de salvaguarda.
Em todo caso, pode-se dizer que o ordenamento jurídico já reconhecia a existência de direitos subjetivos da personalidade ao conferir o poder de exigir um comportamento abstensivo por meio de uma multiplicidade de normas, tanto em relação a bens individualizados (liberdade, saúde, autoria, etc.) como em relação à generalidade dos bens da personalidade (ao oferecer instrumentos de proteção, como
o mandado de segurança e a ação inibitória; e prever o instituto da legítima defesa).
O Código Civil brasileiro de 2002, pacificou a questão ao dispor uma norma genérica que confere ao titular de um bem da personalidade a possibilidade
de pretender uma abstenção de outrem (artigo 12, caput). Da referida norma legal, observa-se que, ao titular dos direitos da personalidade, é reconhecido o poder jurídico de exigir dos demais sujeitos o respeito à sua personalidade, aos atributos humanos que a compõem, por meio da abstenção de atos (positivos ou negativos) que ameacem ofender ou ofendam os bens da personalidade. Cuida-se,
portanto, do poder de exigir um non facere, um comportamento negativo, dos
outros sujeitos.20
19 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 262; AMARAL, Francisco.
Direito civil: introdução. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 177.
20 A esquematização da estrutura dos poderes e deveres jurídicos é realizada com base na lição de Rabindranath
Valentino Aleixo Capelo de Souza, elaborada em estudo voltado à análise da tutela geral da personalidade humana,
prevista no artigo 70 do Código Civil português (SOUZA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. Op. cit., p. 393428). Nessa oportunidade, o autor faz menção, ainda, ao poder de exigir um comportamento positivo de salvaguarda de bens da personalidade e aos deveres correlatos a esses direitos. Mas, uma vez que o ordenamento jurídico
brasileiro não garantiu ao titular dos direitos da personalidade o poder jurídico de pretender um comportamento
positivo (de salvaguarda), não se fez alusão a ele, na presente pesquisa, como sendo integrante da estrutura do poder jurídico. Reconheceu-se, em todo caso, que existe um dever de prática de atos positivos de proteção a bens da
personalidade.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
389
Outra conclusão é a de que, em especial, duas das características dos direitos
da personalidade revelam alguns traços da tutela jurisdicional adequada: por serem
oponíveis erga omnes – o poder de exigir determinado comportamento negativo
dirige-se a todos21 – requerem uma tutela forte, que permita a fruição dos bens da
personalidade in natura. Ou seja, requerem uma tutela preventiva, possível de ser
atuada antes da ocorrência do ilícito e contra o ilícito. Por serem extrapatrimoniais
– não avaliáveis em dinheiro22 –, a proteção material do bem só pode ser realizada
por meio da tutela preventiva. Daí porque a tutela reparatória apenas produzirá resultados paliativos.
A terceira conclusão, obtida com a investigação do conteúdo das pretensões
que emanam dos direitos da personalidade, conduziu, também, à idéia de que a tutela jurisdicional adequada deve ser preventiva do ilícito. As pretensões que decorrem dos direitos da personalidade caracterizam-se por serem exigências de não-ingerência, de abstenção de prática de atos positivos ou negativos, que ameacem ou
lesionem bens da personalidade; por se dirigirem a todos; e exsurgem juntamente
com o nascimento do direito. Esse último dado revela que a violação da pretensão
(a sua não satisfação) ocorre com a conduta contrária ao direito.23
Por meio das referidas conclusões pontuais é que restou inferido que apenas
uma tutela que se presta a inibir a prática de atos (positivos ou negativos) que ameacem ou lesionem bens da personalidade, é adequada a tutelar os titulares desses direitos. E a fim de que essa tutela seja efetiva, é preciso que o provimento voltado a
outorgá-la possa ser antecipado, em se apresentando iminente o descumprimento
do dever, e que seja dotado de meios coercitivos.
O ordenamento jurídico brasileiro apenas conheceu uma tutela inibitória individual que conjugasse tais características após a reforma processual ocorrida em
1994, que trouxe o fundamento de uma tutela inibitória autônoma. A partir de então, iniciaram-se vários estudos voltados a conferir-lhe a dimensão esperada.
No direito civil, é preciso desvencilhar o ilícito do dano, que é conseqüência
eventual sua, e da verificação da culpa, posto que apenas exige-se que o ato seja contrário ao direito.24 O legislador do novo Código Civil brasileiro não atendeu a essas
premissas, ao conceituar o ato ilícito (artigo 186).
21 SOUZA, Rabintranath Valentino Aleixo Capelo de. Op. cit., p. 401-402; TOBEÑAS, José Castan. Op. cit., p. 23; GOMES, Orlando. Op. cit., p. 7.
22 SOUZA, Rabintranath Valentino Aleixo Capelo de. Op. cit., p. 414-415; GOMES, Orlando. Op. cit., p. 7.
23 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral. 3 ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, t. V.
24 MARANHÃO, Clayton. Observações sobre o ilícito, o dano e a tutela dos direitos fundamentais. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 4, p. 18-19, out. dez. 2000; MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória:
individual e coletiva. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000a, p. 36-4; ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela inibitória da vida privada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 151-161; MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 495-496, t. V.
390
faculdade de direito de bauru
No direito processual, o problema está na classificação das sentenças, que não
apresenta um provimento adequado para que a tutela jurisdicional prestada seja efetiva.25 Tal questão parece ter sido solucionada, também, com a reforma processual
de 1994 que trouxe o fundamento legal da sentença a ser proferida na ação inibitória (artigo 461 e seus parágrafos do CPC; em especial, o § 5º teve nova redação conferida pela Lei 10.444/02). Assim é que o juiz pode ordenar a cessação da ameaça de
ilícito ou da prática de ilícito, sob pena de multa, seja na sentença ou na tutela antecipada, e, ainda, determinar as medidas que se fizerem necessárias para o alcance
do fim pretendido.26
Outra tutela é a reparatória. Uma vez descumpridos os deveres legais de abstenção ou de salvaguarda de bens da personalidade, surge para o titular desses bens
um direito subjetivo, consistente no poder de exigir do ofensor a reparação dos danos morais ou materiais ocasionados, com o fim de restaurar o equilíbrio rompido.
A possibilidade de exigir a reparação por danos materiais estava declarada no Código Civil, brasileiro de 1916, enquanto que a de exigir a reparação por danos morais
foi conferida pelo texto constitucional de 1988. O Código Civil brasileiro, de 2002,
conferiu ambas as possibilidades.
Por ser o dano direto, ocasionado pelo descumprimento dos deveres, com
maior freqüência27, de ordem moral, a investigação foi direcionada, especificadamente, a ele.
Em síntese, entendeu-se que, embora após a Constituição Federal brasileira,
de 1988 (artigo 5º, inciso X), o conceito de dano tenha sido modificado para adequar a tutela oferecida ao indivíduo proprietário de bens patrimoniais ao indivíduo
titular de bens da personalidade (e outros extrapatrimoniais), a tutela reparatória é
uma tutela secundária. Ela apenas será útil para mitigar as conseqüências diretas –
os danos morais – eventualmente ocasionadas pela lesão a um bem da personalidade. Isso porque: (a) o momento de atuação dessa tutela não é o ideal (após ocorrida a lesão e verificado o dano); e (b) tendo em vista que ela não propicia a proteção
material do bem (sua função, no caso, é compensatória28). A transformação desses
direitos em pecúnia é algo realizado em desarmonia com a sua característica de extrapatrimonialidade.
25 MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit., p. 483, t. V; DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p. 29.
26 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit., 2000a, p. 76-79; Idem. Tutela inibitória. Revista Consulex, ano IV, n. 41,
p. 42, maio 2000b.
27 Diz-se “com maior freqüência”, uma vez que se presume que nem toda lesão a um bem da personalidade de uma
pessoa conduz, invariavelmente, a um dano moral. Sendo a subjetividade imanente à própria natureza do dano moral, a percepção do prejuízo requer, do magistrado, uma criteriosa análise do caso concreto (CARNEIRO, Maria Francisca. A avaliação do dano moral e discurso jurídico. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998, p. 59). Ora,
inexistente a dor, não há que se falar em reparação de danos morais (BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por
danos morais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 33-34).
28 REIS, Clayton. Os novos rumos da indenização do dano moral. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 173.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
391
(f) Uma proposta alternativa de controle da liberdade de comunicação. Ao final, chegou-se à conclusão de que a tutela jurídica oferecida à pessoa com necessidades especiais apresenta-se, ainda, insuficiente para combater a conduta dos programadores da televisão.
Daí porque se entende como relevante a discussão de um novo tipo de controle à liberdade de comunicação. Mas, considerando-se que a censura e a licença
prévias são expressamente proibidas pela Constituição Federal, e que algumas das
propostas até então debatidas/implementadas convivem sob a suspeita de censura,
trabalhou-se como uma outra alternativa, fundada na necessidade de se assegurar o
pluralismo político e social nos meios de comunicação (princípio democrático). Desenvolvendo o caminho propugnado por José Joaquim Calmon de Passos29, qual
seja, tornar sociais os meios de comunicações, entendeu-se que o controle pela sociedade possa ser realizado, ao menos, de dois modos:
Primeiro, dando voz, na televisão, àqueles que possuem consciência dos mecanismos de manipulação da televisão, que são funcionalizados em favor dos índices de audiência.30 Com isso, imagina-se ser possível tornar o telespectador mais
consciente da manipulação que sofre, ou seja, de que é a concorrência entre as
emissoras que faz nascer esses espetáculos degradantes.
Segundo, concedendo espaço, na televisão, às diversas instituições da sociedade
civil, recolocando-as no papel de formadoras de opinião pública, com o fim de promover a educação dos telespectadores para a decodificação das mensagens televisuais.31
Supõe-se que esse encaminhamento dado à questão do controle da liberdade
de comunicação possa ser eficiente, na medida em que o telespectador, melhor informado e mais exigente, se dispuser a usar o poder que possui de neutralizar a concorrência orientada apenas pelo lucro.
4.
À GUISA DE CONCLUSÃO
As noções atuais que se têm da deficiência e da dignidade humana não são
conceitos fechados, imutáveis, mas conceitos em constante ampliação/modificação.
A maneira de pensar e considerar a pessoa deficiente, assim como a de valorar aquilo que é considerado indispensável à existência humana saudável, acompanharam e
acompanham, sobretudo, as transformações nas relações sociais de produção. O direito precisa apreender essa realidade para que possa contribuir, adequadamente,
para a integração/inclusão das pessoas com necessidades especiais nos diferentes
campos da sociedade.
29 PASSOS, José Joaquim Calmon de. A imprensa, a proteção da intimidade e o processo penal. Revista de Processo, ano 19, n. 73, p. 98-99, jan. mar. 1994.
30 BORDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Trad. Maria Lucia machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 78-79.
31 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Op. Cit., p. 98-99.
392
faculdade de direito de bauru
Diante da exploração da deficiência com o objetivo de aumentar o índice de
audiência dos programas de televisão, pode-se concluir que o sistema jurídico brasileiro atual, fundado na pessoa humana e voltado para a realização de valores existenciais, protege a pessoa com necessidades especiais, no âmbito civil, no domínio
do direito material (por meio dos direitos da personalidade e da personalidade fundamentais); no momento do juízo de ponderação dos direitos da personalidade
contrapostos (das pessoas com necessidades especiais e dos programadores da televisão) – pelo legislador, quando enuncia as normas; e pelo juiz, quando formula
uma regra de solução para o caso concreto –, e por intermédio do oferecimento de
uma tutela jurisdicional adequada e efetiva (a tutela inibitória).
Mas uma vez que a pessoa com necessidades especiais, por força do sistema
de socialização a que é submetida, desde os seus primeiros anos de vida, dificilmente possui consciência de seus direitos e da possibilidade de exercê-los, e tendo em
conta que a tutela inibitória só pode ser concedida pelo judiciário quando verificada a ameaça, a prática ou a repetição do ato ilícito (sob pena de caracterizar censura), é preciso discutir outros meios de controle da liberdade de expressão, tal como
a proposta de colocar a televisão sob o controle da sociedade. E se essa alternativa
se apresenta utópica aos olhos de alguns, tal não significa que ela deva ser esquecida. A utopia, enquanto objeto virtual do desejo, é a fonte de onde a ação extrai o seu
significado.32
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Políticos
y Constitucionales, 2001.
ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela inibitória da vida privada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
BIANCHETTI, Lucídio. Aspectos históricos da Educação Especial. Revista Brasileira de Educação Especial, v. 3, p. 7-19, 1995.
BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.
BOBBIO, Norberto. Direitos do homem e sociedade. In: _____. A era dos direitos. Trad.
Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
32 Cfr. GODET, Michel. Crise de la prévision, essor de la prospective. Paris, Puf: 1997, p. 21.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
393
_____. Presente e futuro dos direitos do homem. In: _____. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BORDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Trad. Maria Lucia machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1997.
BUCCI, Eugênio. Quando a desgraça dá lucro. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 nov. 2001,
Caderno tvfolha, p. 2.
_____. O pior do povo. Veja, edição 1.538, ano 31, n. 11, p. 126, 18 mar. 1998.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2002.
CARNEIRO, Maria Francisca. A avaliação do dano moral e discurso jurídico. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris, 1998.
COLLARES, Cecília Azevedo Lima; MOYSÉS, Maria Aparecida Affonso. Preconceitos no cotidiano escolar. São Paulo: Cortez, 1996.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2 ed., São Paulo:
Saraiva, 2001.
_____. A humanidade no século XXI: a grande opção. In: Boletim da Faculdade de Direito
Universidade de Coimbra. Conferências na Faculdade de Direito de Coimbra 1999/2000.
Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 217-232.
CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em psicologia, n. 3, p. 4770, 1996.
DIAKOV V.; KOVALEV S. A sociedade primitiva. 2 ed. São Paulo: Global, 1985.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Tutela jurisdicional. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 334, p.
19-41, abr. maio jun. 1996.
FONTES JUNIOR, João Bosco Araújo. Liberdades e limites na atividade de rádio e televisão:
teoria geral da comunicação social na ordem jurídica brasileira e no direito comparado. Belo
Horizonte: Del Rey, 2001.
FRANÇA, Rubens Limongi. Direitos privados da personalidade: subsídios para sua especificação e sistematização. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 370, p. 7-16, 1966.
GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
GODET, Michel. Crise de la prévision, essor de la prospective. Paris, Puf, 1997.
GOFFMAN, Erving. Apud AINLAY, Stephen C.; CROSBY, Faye. Stigma, justice and the dilemma of difference. In: AINLAY, Stephen C.; BECKER, Gaylene; COLEMAN, Lerita M. (orgs.) The
dilemma of difference. New York: Plenum Press, 1986 (Trad. livre).
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade.
Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2001.
394
faculdade de direito de bauru
GOMES, Mayra Rodrigues. Ética e jornalismo: uma cartografia dos valores. São Paulo: Escrituras, 2002.
GOMES, Orlando. Direitos de personalidade. Rio de Janeiro: Revista Forense, v. 216, 1966.
GUHUR, Maria de Lourdes Perioto. Representação da deficiência mental: esboço de uma
abordagem histórica, 1994 (Dissertação de Mestrado. Universidade Metodista de Piracicaba).
JABUR, Gilberto Haddad. Liberdade de pensamento e direito à vida privada: conflitos entre direitos da personalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
LORENZETI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
MARANHÃO, Clayton. Observações sobre o ilícito, o dano e a tutela dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Revista Trimestral de Direito Civil, v. 4, p. 17-22, out. dez. 2000.
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória. Revista Consulex, ano IV, n. 41, p. 42, maio
2000b.
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória: individual e coletiva. 2 ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000a.
MAZEAUD, Henri y Leon; MAZEAUD, Jean. Lecciones de Derecho Civil: los sujetos de derechos, las personas. Trad. Luis Alcalá-Zamora y Castillo. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1959, v. 2.
MIGLIACCIO, Marcelo. “O Povo na TV’ foi pioneiro na apelação para o mundo cão”. Folha
de São Paulo, São Paulo, 25 nov. 2001. Caderno Tv Folha, p. 9.
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral. 3 ed. Rio
de Janeiro: Borsoi, 1970, t. V.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Constituição e Direito Civil: tendências. São Paulo: Revista
dos Tribunais, v. 779, p. 47-63, set. 2000.
PASSOS, José Joaquim Calmon de. A imprensa, a proteção da intimidade e o processo penal.
Revista de Processo, ano 19, n. 73, p. 94-103, jan. mar. 1994.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 1999.
PESSOTTI, Isaías. Deficiência mental: da superstição à ciência. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1984.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
_____. Filosofia do direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
REIS, Clayton. Os novos rumos da indenização do dano moral. Rio de Janeiro: Forense,
2002.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
n.
39
395
SILVA, Otto Marques da. A epopéia ignorada: a pessoa deficiente na história do mundo de
ontem e de hoje. São Paulo: CEDAS, 1986.
SODRÉ, Muniz. A comunicação do grotesco. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 1988.
_____. O social irradiado: violência urbana, neogrotesco e mídia. São Paulo: Cortez,
1992.
SOUZA, Rabintranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995.
STAROBINAS, Marcelo. Casa de bonecas. In: PINSKY, Jaime (org.) 12 faces do preconceito.
São Paulo: Contexto, 1999.
SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.
TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e relações de direito civil na experiência brasileira. In: Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra. Conferências na Faculdade de Direito de Coimbra 1999/2000. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 323-345.
TOBEÑAS, José Castan. Los derechos de la personalidad. Madrid: Instituto Editorial Reus,
1952.
VALLADARES, Ricardo. O “desmionlado”. Veja, edição 1.747, ano 35, n. 15, p. 114, 17 abr.
2002