As cartas que nunca te enviarei

Transcrição

As cartas que nunca te enviarei
Redação: Angélica Dias/Judite Rodrigues Fotografia: Helena Oliveira/Mariana Santiago
Página |1
As cartas que nunca
te enviarei...
Quatro décadas foram suficientes para quase acabar com a
correspondência escrita entre apaixonados. Duas pessoas de gerações
diferentes dão-nos conta do seu testemunho. Ontem era “cartas de
amor quem não as tem” e hoje é SMS‟s de amor quem não as recebe.
Tony de Matos está desatualizado…
Página |2
S
entada no sofá da sala de
resposta, mas como a letra era tão
estar,
bonita e ele escrevia tão bem e elas
Dona
Marinha
relembra com um sorriso
insistiram
tanto…
decidi
ternurento o dia 24 de Abril de
responder” (risos), recorda com
1973. Podia ter sido mais um dia
alguma
como todos os outros no atelier de
primeira de muitas cartas que
costura, não tivesse ela recebido a
recebeu de Joaquim Oliveira. É
carta
militar
com cuidado que a abre e, apesar de
português em serviço no norte de
as mãos que a abriram pela
Angola.
primeira vez já notarem o passar do
de
um
jovem
Durante a guerra colonial era
hábito os soldados enviarem cartas
a pedirem madrinhas de
o
tempo
e
partilharem o seu dia-a-dia
no ultramar.
Foi
a
primeira
carta
que
Fernanda Marinha recebeu, tinha
ela 21 anos. Um aerograma amarelo
que pedia ao carteiro que entregasse
a carta a uma moça de Guimarães.
Dona Marinha não ia responder,
cartas.
Todavia,
a
intensa
persistência das colegas fez com
que pensasse duas vezes: “nós
líamos sempre este tipo de cartas
em voz alta e ficavam sempre sem
pegar
na
o sorriso é radiante.
A partir desse
dia tudo mudou
para a costureira
e para o militar:
"Ficava
muito
contente quando
recebia as cartas dele, estava mais
próxima dele”, relata folheando as
cartas cautelosamente. À medida
que
foram
correspondência,
trocando
a
relação
foi
fortalecendo.
não era hábito das raparigas do
atelier responderem a este tipo de
ao
tempo, deixando a juventude lá trás,
“Nunca fiz
rascunhos, escrevia
só uma vez.
Esforçava-me imenso
para fazer uma
caligrafia bonita.”
guerra para que pudessem
passar
timidez
O vaivém de cartas durou cerca
de
sete
casamento.
guardadas.
anos,
As
seguindo-se
cartas
Eram
o
ficaram
enviadas,
religiosamente, duas por semana.
No total foram escritas cerca de 448
cartas. Algumas perdidas, outras
►
Página |3
Mariana Santiago
enroladas numa fita verde que as
mandada e recebida. “Falávamos de
segura e junta para que não se perca uma
muita coisa: o dia-a-dia, das saudades
palavra. Já lhes pesam os anos. As
dele de casa e da família e da vida em
esquinas rasgadas e a cor gasta dominam
ultramar”. Tal como Tony de Matos
o papel.
dizia na sua música “Cartas de Amor”:
►
rocurando mais cartas num baú
P
estragado pelo tempo, outrora
pertencente a sua mãe, Dona
Marinha admite que nunca
fazia rascunhos, só escrevia uma vez,
esforçando-se para fazer uma caligrafia
bonita.
cada
Selecionava
palavra
que
“Cartas de amor
Pedaços de dor
Sentidas de alguém
Cartas de amor, andorinhas
Que num vai e vem, levam bem
Saudades minhas
Cartas de amor, quem as não tem
(…)”
cuidadosamente
usava
para
se
expressar da melhor forma.
Dois a três dias era o tempo de
espera pelas cartas dos “enamorados”.
Se fosse hoje, Dona Marinha não teria
Os
assuntos
eram
diversos
e
desenvolviam-se a cada carta que era
que esperar tanto tempo por uma
resposta, já que a evolução das
►
Helena Oliveira
Página |4
Página |5
das tecnologias possibilitou uma
“Na carta vou dizer a razão pelo qual
comunicação quase imediata entre as
o amo e não simplesmente que o amo
pessoas.
(…)
►
longo e temos mais
um
sorriso
afirma
de forma quase exaustiva, basta uma
frase: "Eu amo-te".
Já não é tarefa compreensível pegar
Cátia Pereira, de 19 anos, pois
“envolve mais tempo, emoção e
mais entrega”.
Aproximadamente,
com
sentem a necessidade de se expressarem
carta é um processo
preocupação”
explica
envergonhado. Os jovens de hoje já não
UMA VISÃO DIFERENTE
“A
",
quarenta
anos separam a juventude de Dona
numa caneta e num papel,
“As pessoas
têm receio de
escrever
cartas, é
quase uma
pressão (…)”
Fernanda e da jovem. E esse
período de tempo foi suficiente para que
a carta deixasse de fazer parte essencial
das histórias de amor. Esta é cada vez
mais substituída pelos jovens que optam
por meios mais práticos e fáceis para se
expressarem, “assim sabemos mais
rapidamente se a pessoa recebeu a nossa
mensagem, por e-mail, por SMS…”,
acrescenta a jovem.
começando
bonequinha
por
“olá
querida”
e
acabando com “ recebe votos
de felicidade e um beijinho
com muito respeito na testa
deste que apesar de tudo te ama muito e
que te deseja de todo o coração”, tal
como Joaquim escrevia à sua amada e
madrinha de guerra. Agora, "as pessoas
têm receio de escrever cartas, é quase
uma pressão”, diz Cátia com alguma
incerteza. “Podem ser ridículas para
quem está de fora, mas para nós têm
muito mais valor” (risos). A este
propósito também o heterónimo de
Fernando Pessoa, Álvaro de Campos,
Mariana Santiago
mencionava no seu poema “Cartas de
amor” que:
Agora existem meios mais práticos: e-mail,
SMS, redes sociais…
"Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não
fossem
Ridículas.”
Página |6
No coração de quem um dia recebeu
DO DECLÍNIO À SIMBOLOGIA
cartas de amor fica a saudade da época
em que uma folha de papel servia para
muito mais que escrever duas frases na
sala de aula.
O tempo leva algumas coisas e trás
outras e o que o homem estranha, no
momento
seguinte
é o melhor em todos os aspetos.
meios
atualmente,
mais
para
práticos,
comunicar
relevância prende-se com a questão do
pois
estas
ferramentas
tecnológicas são limitadas quanto à
capacidade
informação.
de
mais jovens, quer pelos mais
velhos, o meio de comunicação que
prima no que toca ao romantismo. Era o
perfume
Era o perfume, as
fotografias, as
rosas e as
despedidas
sentidas.
apresentam desvantagens. A de maior
arquivo,
são consideradas quer pelos
entranha.
Todavia, o que é novo nem sempre
Os
A
s cartas, apesar de ridículas,
armazenamento
de
que
se
colocava, as fotografias
que
se
recebiam,
mandavam
e
sempre
escolhidas com cuidado,
as rosas encarnadas e as
despedidas sentidas de quem estava
longe, mas perto.
Outrora, as cartas traziam memórias
e sonhos, hoje são apenas recordações
de um tempo lá longe. Agora é o ►
Mariana Santiago
Helena Oliveira
Página |7
Hoje as mensagens de
amor são mais objetivas
e diretas.
Página |8
►►toque
do telemóvel a anunciar a
Dona
Agora “os
namorados (…)
escrevem „minha
bebé‟ e „fofinha‟”.
receção de uma mensagem onde “os
Marinha foi-
namorados são mais objetivos e diretos,
se adaptando
dizem logo que sentem saudades,
às
escrevem „minha bebé‟ e „fofinha‟ “,
formas
afirma Cátia com alguma tristeza.
comunicar. As suas mãos não seguram
A forma de as pessoas comunicarem
mudou. Mudou também a maneira
como os jovens namorados comunicam
e partilham o seu amor. Hoje são
poucos aqueles que usam cartas para
manter contacto quase diário. Existem
novas
de
mais cartas de amor, mas um telemóvel
que segundo a mesma serve sobretudo
para
“despachar”.
Confessa
que
atualmente era capaz de mandar uma
declaração de amor por SMS, “mas não
tem tanto valor…”.
SMS, redes sociais ou outras formas. As
Nem mesmo a fita verde que prende
cartas, esse meio mais sofisticado e
as cartas conseguiu manter a esperança
romântico, são usadas
em
de estas permanecerem no imaginário
momentos mais especiais como em
dos jovens casais como o único meio de
aniversários e reconciliações.
transmitir o amor.
apenas
O meio usado para comunicar pode
As cartas de Dona Marinha ainda se
já não ser o mesmo mas o conteúdo das
encontram guardadas no baú velho,
mensagens,
algumas partes soltas de frases sentidas,
esse
manterá: o amor.
sim,
sempre
se
escritas há mais de 30 anos. ●
Helena Oliveira

Documentos relacionados