UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA: A REPRESENTAÇÃO DO NAZISTA
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UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA: A REPRESENTAÇÃO DO NAZISTA
UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA: A REPRESENTAÇÃO DO NAZISTA E DO NAZISMO APÓS A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Marcos Meinerz1 Universidade Federal do Paraná Resumo: Após o encerramento da Segunda Guerra Mundial, muitos nazistas que foram considerados criminosos de guerra deixaram a Alemanha. Um dos lugares que mais recebeu essas pessoas foi a América Latina, principalmente no Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia e Paraguai. Josef Mengele, Adolf Eichmann e Klaus Barbie, foram alguns dos nomes mais conhecidos que se refugiaram no continente. Estima-se que mais de cem mil nazistas tenham entrado ilegalmente nas terras latino-americanas. Esse fato deu o mote para a formação de muitas histórias, lendas, conspirações, mitos e imaginários sobre a presença desses nazistas no continente envolvendo suas pretensas atividades secretas com vista à reformulação do nazismo. Até mesmo Adolf Hitler teria passado o resto de sua vida na América, juntamente de seus “discípulos”, planejando a formação do IV Reich. Literaturas, cinema, programas de televisão, reportagens de jornais e revistas, dedicam-se a abordar essa temática desde o final do conflito até os dias atuais. A presente comunicação, portanto, visa apresentar os questionamentos e reflexões iniciais para tentar entender a formação dessas lendas, mitos e imaginários sobre o nazismo: como compreender a difusão e permanência desses discursos em vários meios de comunicação desde o final da guerra? Porque são produzidos? Qual o papel dos meios de comunicação em difundir essas histórias? Quais tipos de sentimentos estão presentes nesses mitos, lendas e imaginários? Para tanto, apoiar-nos-emos principalmente nos estudos do historiador francês Raoul Girardet, como suporte teórico para tentar elucidar algumas dessas questões. Palavras-chave: Imaginário; Mito; Nazismo; América Latina. Financiamento: Capes 1 Graduado em História pela Unioeste em 2010. Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná em 2013 e Doutorando em História pela mesma instituição desde 2014. 1478 “Hitler está vivo” Ladislao Szabo - 1947 “A nova Alemanha, há 23 anos do fim da guerra contra Hitler, é presidida por seis nazistas, segundo a polícia. E é também o IV Reich em instalação no Brasil” Erich Erdstein - 1977 “Hitler quando profetizou o „Reich de mil anos‟ não estava falando do seu governo, estava falando das sociedades secretas as quais ele era servo! o nazismo é cria do sionismo. A ascensão do nazismo foi uma etapa para a concretização do verdadeiro objetivo, que é o Governo Mundial, ou a Nova Ordem Mundial. E este governo totalitário e fascista será governado explicitamente pela elite financeira que controla tudo, corporações, bancos, mídia e até sua vida” Jim Marrs – 2008 “Hitler escapou da Alemanha três dias antes de seu suposto suicídio. Hitler teria se instalado em mais de uma residência na Patagônia, com Eva e duas filhas. Viveria mais 17 anos, e teria morrido no dia 13 de fevereiro de 1962, aos 72 anos” Gerrard Williams e Simon Dunston – 2011 Após o encerramento da Segunda Guerra Mundial, muitos nazistas que foram considerados criminosos de guerra deixaram a Alemanha. Um dos lugares que mais recebeu essas pessoas foi a América Latina, principalmente no Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia e Paraguai. Josef Mengele, Adolf Eichmann e Klaus Barbie, foram alguns dos nomes mais conhecidos que se refugiaram no continente. Segundo a Comisión para el Esclarecimiento de las Actividades del Nazismo en Argentina – CEANA2, estima-se que mais de cem mil alemães tenham entrado ilegalmente nas terras latino-americanas após o conflito. Esse fato deu o mote para a formação de muitas lendas, conspirações, mitos e imaginários sobre a presença desses nazistas no continente envolvendo suas pretensas atividades secretas com vista à reformulação do nazismo3. Até mesmo Adolf Hitler teria passado o resto de sua vida na América, juntamente de seus “discípulos”, planejando a formação do IV Reich. Literatura, cinema, programas de televisão, portais da internet, reportagens de jornais e revistas, dedicam-se a abordar essa temática desde o final do conflito até os dias atuais4. Na epigrafe desse ensaio, temos algumas passagens de obras que representam o fato. 2 Grupo criado em 1997, destinado a investigar a extensão e profundidade dos vínculos nazistas na Argentina durante e após a Segunda Guerra Mundial. A fuga dos criminosos de guerra para várias regiões do mundo ficou conhecida como Operação Odessa. Sobre esse fato, ver: GOÑI, Uki. A Verdadeira Odessa. Rio de Janeiro. Editora: Record, 2004. 3 Principalmente após o julgamento de Eichmann em Jerusalém. Isso trouxe à tona o fato de vários nazistas considerados criminosos de guerra terem fugido após a guerra para a América Latina. 4 Encontramos durante este período cerca de vinte e cinco livros que abordam a temática, várias reportagens de jornais, revistas e portais da internet (nacionais e internacionais), programas de 1479 A presente pesquisa, portanto, visa problematizar e refletir a formação desses mitos e imaginários formados sobre o nazismo após o encerramento da guerra, e este ensaio pretende lançar questões iniciais para tentar entendê-los: como compreender a difusão e permanência desses discursos em vários meios de comunicação desde o final da guerra? Porque são produzidos? Qual o papel dos meios de comunicação em difundir essas histórias? Quais tipos de sentimentos estão presentes nesses mitos, lendas e imaginários? Como esses sentimentos estão reverberados nas fontes? Para tanto, adentraremos em algumas problemáticas: do conceito de imaginário e mitos políticos, principalmente nos estudos do historiador francês Raoul Girardet; nos estudos sobre sentimentos na história; e no debate entorno da cultura de mídia. Com estas reflexões, espera-se ter um suporte teórico e metodológico para tentar elucidar as perguntas feitas e achar caminhos para tal empreendimento. O imaginário político conspiratório Todas as épocas possuem as suas modalidades específicas de fazer emergir um determinado imaginário, assim como possuem modalidades específicas de sentir e acreditar. Pensar contemporaneidade sobre imaginários, constitui tarefa difícil, mitos pois e mitologias pressupõe políticas considerar na uma pluralidade de propostas teóricas que sustentam e apontam diferentes abordagens sobre o que vem a ser esses conceitos5. Raoul Girardet sugere a concepção do mito ou de um imaginário como um reflexo de um sistema de valores ou de um tipo de mentalidade que surge e eclode em momentos de intensa crise, inquietação social, manifestação de medo ou de desnorteamento coletivo e como sintoma de anomia social6. Para ele são quatro os principais mitos políticos presentes no imaginário de nossa sociedade: O mito da Conspiração maléfica tendendo submeter os povos à dominação de forças obscuras e perversas. O mito do Salvador ou apelo ao chefe salvador, restaurador da ordem ou conquistador de uma nova grandeza coletiva. O mito da Idade de Ouro da qual televisão, e quatro filmes. Cabe ressaltar que nesta etapa da pesquisa ainda não foi feito um recorte das fontes. A escolha será feita posteriormente. 5 Dentre as principais abordagens sobre imaginários e mitos, podemos destacar os trabalhos de: Roland Barthes, Mircea Eliade e Lévi-Strauss. 6 GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 1480 convém redescobrir a felicidade ou de uma Revolução redentora que permite à humanidade entrar na fase final de sua história e assegurar para sempre o reino da justiça. E o mito da Unidade, ou seja, a ideia de uma sociedade coesa, feliz e igualitária7. O mito que se encaixa na nossa proposta de pesquisa é, justamente, o da conspiração. Um imaginário conspiratório possui todo um jogo simbólico essencial que podemos identificar. Nos seus discursos existe algo que podemos chamar de “bestiário do complô”: reúne tudo o que rasteja, infiltra-se, esconde-se; tudo o que é ondulamente viscoso, tudo o que é tido como portador de sujeira e da infecção como a serpente, o rato, a sanguessuga, o polvo; o subterrâneo ou seu equivalente – cripta, jazigo, quarto fechado. Esse imaginário carrega consigo um fluxo de imagens, de fantasmas e de representações simbólicas: Medo dos porões tenebrosos, das paredes sem saída que se fecham, das fossas escuras de onde não se sob de novo, medo de ser entregue a mãos desconhecidas, de ser roubado, vendido ou abandonado, medo, enfim, do ogro, dos dentes carniceiros dos animais de presa, de tudo o que tritura, despedaça e devora [..]. O inimigo opera subterraneamente, clandestinamente versátil, inapreensivel, capaz de infiltrar-se em todos os meios, sua habilidade suprema é a da manipulação; suas tropas invisíveis 8 mas presentes em todas as partes. Nesse conceito encontramos a demonização do homem do complô, ou seja, o príncipe das “trevas” permanece, em pessoa, o herói privilegiado de uma vasta literatura. Continua a inspirar pavor, fascínio e no mínimo uma duvidosa curiosidade. Com afirma Girardet, “a multidão de seus fiéis é ainda suficientemente numerosa para permitir escroques diversos prosseguir com lucrativas mistificações”9. Nas fontes estudadas, o príncipe das “trevas” em questão é Adolf Hitler que, com auxílio de seus discípulos, Bormann, Eichmann, Mengele, Klaus Barbie - possuiria forças diabólicas empenhadas em fazer novamente o mal. E quaisquer que sejam a natureza e a aparente motivação da conspiração, tratam-se sempre de corresponder a uma inextinguível vontade de poder e de retornar o sonho eterno da edificação de um Império em escala universal, da unificação do globo sob uma única e total autoridade. Ou seja, Hitler e o IV Reich. 7 Ibidem. p.11. Ibidem. p. 57. 9 Ibidem. p. 48. 8 1481 Fato é que, uma construção mitológica conspiratória pode ser interpretada como uma resposta a uma ameaça, ou pelo menos como uma reação quase instintiva ao sentimento de uma ameaça10: Não há complô cuja descoberta não se apresente como uma descida progressiva para longe da luz, ali onde as trevas se fazem mais e mais densas. É quase sempre a noite que os conjurados escolhem para se reunir, dispersando-se com o nascer do dia. E envoltos em vestimentas sombrias que os representa geralmente o abundante conjunto de imagens 11 que lhes é consagrado. Os homens do Complô serão antes de tudo instruídos para esconder-se. Eles praticam a corrupção, o aviltamento dos costumes, a desagregação sistemática das tradições sociais e dos valores morais. Nas narrativas conspiratórias, é sentida a presença de certa angústia, a dos alçapões bruscamente abertos, dos labirintos sem esperança, dos corredores infinitamente longos e de suas duras paradas, impenetráveis e lisas. Homens da sombra, os homens do complô escapam por definição às regras mais elementares da normalidade social. Constituem, no interior de toda comunidade consciente de sua coerência, um corpo exógeno obscuramente submetido às suas próprias leis, obedecendo apenas a seus próprios imperativos ou a seus próprios apetites. Surgidos de outra parte ou de parte alguma, os fanáticos da conspiração encarnam o Estrangeiro no 12 sentido pleno do termo. Para Girardet, um discurso mítico está inserido em um meio social no qual já exista certa situação de disponibilidade, certo estado prévio de receptividade. O que significa entre outras coisas, que em sua estrutura, a mensagem a ser transmitida deve, para ter alguma possibilidade de eficácia, corresponder a certo código já inscrito nas normas do imaginário: Nenhum dos mitos políticos se desenvolve, sem dúvida, no exclusivo plano da fábula, em um universo de pura gratuidade, de transparente abstração, livre de todo contato com a presença das realidades da história. Mas, no que diz respeito à mitologia do Complô, aceita-se de boa vontade que a carga de densidade histórica se revela, com toda evidência, particularmente pesada: com efeito, nenhuma, ou quase nenhuma, de suas manifestações ou de suas expressões que não possa ser relacionada mais ou menos diretamente com dados factuais relativamente precisos, facilmente verificáveis em todo caso, e concretamente apreensíveis.13 10 Ibidem. p. 54. Ibidem. p. 42. 12 Ibidem. p. 42. 13 Ibidem. p. 51. 11 1482 Conforme o autor, a denúncia de uma conspiração, de um complô, não deixa de se inscrever em um clima psicológico e social de incerteza, insegurança, de temor ou de angústia14. São nos “períodos críticos” da sociedade que os mitos se afirmam com mais nitidez, impõem-se com mais intensidade e exercem com mais violência seu poder de atração. São ao longo das linhas das mais fortes tensões sociais que se desenvolvem os mitos políticos. Não há nenhum dos sistemas mitológicos – Idade de Ouro, Revolução redentora ou do Complô – que não se ligue muito diretamente a fenômenos de crise: aceleração brutal do processo de evolução histórica, rupturas repentinas do meio cultural ou social, desagregação dos mecanismos de solidariedade e de complementaridade que ordenam a vida coletiva. Nenhum que não se relacione a situações de vacuidade, de inquietação, de angústia ou de contestação15. Os apelos dos mitos políticos de nosso tempo, em sua multiplicidade e em suas contradições, podem refugiar em nós mesmos “virtualidades de resposta, já que foi em nós mesmos, por nós mesmos, na banalidade de nosso inconsciente, que encontraram sua primeira expressão, manifestaram suas primeiras exigências”16. Portanto, um mito, um imaginário, antes mesmo de ser coletivo é individual: O nascimento do mito político situa-se no instante em que o traumatismo social se transforma em traumatismo psíquico. É na intensidade secreta das angústias ou das incertezas, na obscuridade dos impulsos insatisfeitos e Verificamos que a “disponibilidade”, “verossimilhança” e a “receptividade” para que as lendas, os mitos e os medos sobre o nazismo possam ter se formado no contexto do pós-guerra, encontram seu alicerce na fuga de muitos nazistas para várias regiões do mundo, principalmente para a América Latina, como Josef Mengele, Adolf Eichmann e Klaus Barbie. Isso ajudou a formar um “clima” psicológico e social de incerteza, de temor ou de angústia, dada a desconfiança de que o nazismo pudesse se reestruturar em algum lugar do mundo sendo guiado por tais pessoas, e que até mesmo o próprio Hitler estaria vivo para novamente liderar a “raça ariana”. Isso nos faz pensar, assim como assinala Girardet, sobre a importância de se estudar o contexto histórico que um mito/imaginário surge e atua. 15 Ibidem. p. 180. De fato, os eventos ocorridos com a ascensão dos nazistas deixaram graves traumas e sequelas em inúmeras pessoas de vários países, principalmente quando nos referimos ao holocausto. Logo após o término da guerra, os países que sofreram os seus males, passavam por várias reestruturações sociais, políticas e culturais, e o mundo já começava a ser assombrado pelos temores da Guerra Fria, que juntamente com a Segunda Guerra, teve efeitos psicológicos devastadores. É justamente nesse “período crítico” do pós-guerra, que observamos a formação de alguns sentimentos de medo e insegurança no ocidente. Dentre eles podemos citar: o medo da conspiração comunista para dominar o mundo, o medo dos discos voadores, o medo da Terceira Guerra Mundial e da eminente destruição de todo o planeta pelas bombas nucleares, e o medo (que é um dos nossos objetos de estudo) da formação do IV Reich na América Latina. 16 GIRARDET, Raoul. Op. Cit. p. 186. 14 1483 das esperas vãs que ele encontra sua origem [...]. Os grandes mitos políticos das sociedades contemporâneas não podem deixar de aparecer como uma das formas de expressão de bom número das principais constantes psicológicas inerentes à pessoa humana. A denúncia do complô é libertadora do medo, do ressentimento e da cólera.17 Sentimentos na História: O medo do nazista Nesse ponto, podemos perceber a importante carga dos sentimentos (angústia, medo, insegurança, temor, etc.), nos estudos sobre o mito político conspiratório. Isso nos conduz a outra indagação: o papel das emoções e dos sentimentos na política. Esse é um campo relativamente novo, que começou a ganhar destaque a partir da década de 80 do século passado. Segundo Pierre Ansart, a dimensão afetiva da vida política, os sentimentos comuns, as paixões coletivas que participam das práticas políticas constituem um domínio de difícil conhecimento, um desafio. Portanto, indaga Ansart, “como compreender e explicar a intensidade de uma emoção coletiva e suas conseqüências, a persistência de um apego, a violência de um amor ou de ódios políticos?”18. Essas observações foram feitas por Ansart na introdução de seu livro, La gestion des passions politiques, de 1983. Segundo ele, a recusa em enfrentar essas dificuldades, no início da década de 1980, era a solução mais comum. A ciência positivista optou por eliminar de seu campo de observação essas experiências cotidianas para somente reter da “realidade” política aquilo que pode ser traduzido racionalmente. Mas segundo Ansart, essa escolha custa o preço de um fracasso: “é impossível dar conta da experiência concreta dos agentes da história tais como eles a vivenciam ou a sofrem”19. Uma das primeiras pensadoras a dar atenção às paixões, aos sentimentos e às sensibilidades no atuar político foi Hannah Arendt. Segundo Marion Brepohl de Magalhães, quando a maioria dos historiadores interpretava os processos históricos como exclusivamente movidos pelo pensamento organizado, a que denominava ideologia ou utopias, “Arendt colocará em evidência sentimentos coletivos que se 17 Ibidem. p. 181. ANSART, Pierre. La gestion des passions politiques. APUD: SEIXAS, Jacy, BRESCIANI, Maria, BREPOHL, Marion. Razão e paixão na política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. p. 7. 19 Ibidem. P. 7. 18 1484 cristalizavam, por exemplo, no antissemitismo, no racismo e na adoração ao líder, acontecimentos tão ou mais importantes que ideias, doutrinas e instituições”20. Tempos depois, autores como o já citado Girardet e o próprio Ansart resgataram e aprofundaram, de maneira mais sistematizada, métodos e abordagens que contemplassem os sentimentos na política. De acordo com Magalhães, outrora considerados pelos historiadores com sintomas de desnorteamento coletivo ou ainda, como um conjunto de reações violentas e passionais típicas das camadas subalternas, a partir destes autores, o estudo dos sentimentos e das sensibilidades como um novo lugar para a História tem se consolidado cada vez mais, justificado, por um lado, por razões epistemológicas, e por outro lado, pela experiência mesma com os acontecimentos contemporâneos: os ódios públicos, as paixões revolucionarias, o fenômeno do engajamento, os mitos de unidade irracionais, tão decisivos na ação política quanto as sociabilidades entretecidas a partir do pensamento organizado. Assim, tais fatores exigem, uma investigação que dê conta de analisar as diferentes maneiras de sentir, bem como de eliminar a rígida dicotomia entre o sentir e o 21 pensar. No atual estágio das Ciências Humanas um dos temas mais pesquisados dentro do amplo núcleo do estudo dos sentimentos é o medo. Durante o século XX esta modalidade de estudo foi ganhando forma e espaço no campo específico da História, como é o caso da publicação do livro, A história do medo no ocidente de Jean Delumeau, inspirado pelo clássico de Lucien Febvre, O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais22. É importante frisar que a pesquisa sobre o medo tem grande relação com a literatura, principalmente no que diz respeito à História, pois as produções culturais são de fato elementos de grande valia para a percepção dos comportamentos e sentimentos de época. Vale lembrar as palavras de Delumeau quando de sua pesquisa em 1978: [...] a literatura progressivamente restituiu ao medo seu verdadeiro lugar, enquanto a psiquiatria agora se inclina cada vez mais sobre ele. Em nossos dias, são incontáveis as obras científicas, os romances, as biografias, os filmes que trazem no título o medo. Curiosamente, a 20 BREPOHL DE MAGALHÃES, Marion. Imaginação literária e política: os alemães e o imperialismo 1880/1945. Uberlândia: EDUFU, 2010. p. 29. 21 Ibidem. p. 30. 22 FEBVRE, Lucian. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 1485 historiografia, que em nosso tempo deslindou tantos novos domínios, 23 negligenciou este. É justamente na obra de Delumeau que podemos observar os mais variados tipos de medos que se formaram ao longo dos séculos no imaginário do ocidente: medo do mar desconhecido, da escuridão, das trevas, dos fantasmas, da morte, da feiticeira, das bruxas, da noite, dos medos escatológicos, etc. Dos “agentes do satã”: os muçulmanos, os judeus e as mulheres24. Isso nos fornece indícios para analisar os medos - das alteridades, do outro, do desconhecido -, que atravessam a história do homem no tempo. Esse fato nos faz pensar no sentimento estudado em questão: o medo. Após a Segunda Guerra Mundial, como podemos perceber através das fontes selecionadas para o trabalho, os nazistas passaram a ser representados no imaginário coletivo como agentes do mal, monstros sádicos sedentos por sangue, desprovidos de quaisquer sentimentos humanos. Hannah Arendt25 demonstra isso com o seu livro, Eichmann em Jerusalém, quando todos esperavam ver Adolf Eichmann como um gênio do mal, como um homem violento e racista. Ao contrário disso, Arendt afirma que apesar dos esforços para torná-lo um ser diabólico, descreve-o como um medíocre burocrata que cumpria ordens, um homem normal sem capacidade de avaliar o mal que praticava. Norbert Elias por sua vez, no livro, Os alemães, afirma que os genocídios nazistas durante a guerra subsistiram como a imagem central da maldade para a maioria das pessoas no Ocidente, e que o "Holocausto" permaneceu certamente como a imagem central do mal para a maioria dos cientistas sociais, pelo menos desde o julgamento de Eichmann em 1961, e provavelmente desde os julgamentos de Nuremberg26. As fontes que pretendemos analisar, a nosso ver, reverberam esse medo do nazismo e do nazista, medo desse ser monstruoso e não humano capaz de possuir “forças sobrenaturais” para enganar até mesmo a morte. Ele não morre facilmente, ele continua vivo, senão formalmente, pelo menos na mente das pessoas. Como Hitler, que, como afirmam várias obras, simplesmente não pode ter se suicidado no 23 DELUMEAU, Jean. A história do medo no ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 16. 24 Ibidem. 25 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das letras, 1999. 26 ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. 1486 final do conflito. Enfim, medo desse ser desconhecido, da personificação do mal que se tornou o nazista após a guerra. E todos esses medos culminariam no medo no qual os nazistas não poupariam esforços para se reestruturar em algum lugar do mundo. Assim, uma das problemáticas da pesquisa é trabalhar com essa alteridade ameaçadora, o nazista/nazismo, que passou a ser relacionado como sinônimo de medo e insegurança durante e após a Segunda Guerra Mundial. Mas o que vem a ser o sentimento de medo? Ou, quais os sentidos culturais do medo? Podemos dizer que o medo é o hábito que se tem, em um grupo humano, de temer tal ou tal ameaça (real ou imaginária). Segundo Adauto Novaes, o medo é um daqueles sentimentos que, nunca vencidos completamente, voltam a assombrar a razão. Parte da vida social e política, o medo é um princípio regulador do próprio equilíbrio humano e um dos fundamentos da humanidade, de sua constituição e preservação, já que é o alerta de um perigo27. É alimentado continuamente pela memória de ameaças passadas, por relatos de experiências de risco alheias, por nossas convicções sobre os perigos que estamos submetidos. Para Zygmunt Bauman, aquilo que não conseguimos administrar nos é desconhecido e tudo o que é desconhecido nos é assustador, gera medo 28. Já Freud estava ciente de que uma das principais fontes do medo eram as experiências de algum modo relacionadas à morte, cadáveres, suposto retorno dos mortos, espíritos e fantasmas29. Sobre o medo Delumeau afirma que: Ao lado das apreensões vindas do fundo de nós mesmos, e daquelas motivadas por perigos concretos, devemos ceder um lugar aos medos mais culturais, que podem, igualmente, invadir os indivíduos e as coletividades, fragilizando-os. É o medo do outro. A raiz disso se encontra na apreensão provocada entre pessoas que conhecem, ou que se conhecem mal, que vêm de fora, que não se parecem conosco e que, sobretudo, não vivem da mesma maneira que vivemos. Falam uma outra língua e têm códigos que não compreendemos. Têm costumes, comportamentos, práticas culturais que diferem das nossas, não se vestem como nós, não comem como nós, têm religião, cerimônias e ritos cujo significado nos escapa. Por todas essas razões, eles nos assustam e somos tentados a toma-los como bodes expiatórios em caso de perigo. Se uma desgraça acontece a uma 30 coletividade, é por causa do estrangeiro. 27 NOVAES, Adauto. Ensaios sobre o medo. São Paulo: Senac São Paulo, 2007. BAUMAN, Zygmunt. Medo Liquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008 29 FREUD, Sigmund. O estranho. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XVII). Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 233-269. 30 DELUMEAU, Jean. Medos de ontem e de hoje. In: NOVAES, Adauto. Op. Cit. p. 45. 28 1487 Segundo Novaes, para Thomas Hobbes o medo é um sentimento que nos inspira a possibilidade real de sermos afetados por um mal real, por uma mal que conhecemos pela experiência31. Nesse sentido, o filósofo Francis Wollf afirma que o medo é um sentimento negativo engendrado não por alguma coisa relacionada ao presente, como a cólera, mas por alguma coisa ligada ao futuro. Temos medo, não do que acontece no presente, mas daquilo que vai acontecer, ou melhor, daquilo que pode acontecer. O medo, segundo Wolff, sempre contém algo de incerto, ou até de desesperador. Ter medo é sentir no momento presente um desconforto em relação à ideia de que se sofrerá, no futuro, de algum mal32. Feita essas considerações, podemos adicionar mais um problema à pesquisa. Será que a produção selecionada para a análise não responde também ao medo, existente desde o final da Segunda Guerra Mundial, de que o fascismo possa voltar em algum lugar do mundo? Ainda mais quando nos últimos anos, observamos países como Suíça, Áustria, França, Dinamarca, Noruega e Finlândia elegeram partidos classificados como de direita ou extrema direita. Assim, medo de um perigo que está por vir, a partir de uma ameaça real e possível? A cultura do medo: o papel dos meios de comunicação Outro problema diz respeito à produção cultural sobre o tema. Numa análise simplista, podemos afirmar que os discursos que apontam a existência de uma conspiração para formação do IV Reich na América Latina e que Hitler não morrera no final da guerra (ou seja, as lendas, os mitos, os imaginários), são produzidos, pois encontram um mercado consumidor. Mas fica a pergunta, porque vendem? Partimos então, da pressuposição de que vendem justamente por entrarem no campo dos sentimentos: do medo, da insegurança, do fascínio pelo oculto e desconhecido. Cabe então, analisar como esses sentimentos estão representados nas fontes. A constante produção da temática pelos meios de comunicação33 e, juntamente, os medos reverberados nela, nos dão subsídios para melhor entender, e esse é um problema importante para a pesquisa, à difusão e permanência desses 31 NOVAES, Adauto. Políticas do medo. In: Novaes, Adauto. Ensaios sobre o Medo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 32 WOLLF, Francis. Devemos temer a morte? In: NOVAES, Adauto. Op. Cit. p. 17-38. 33 Cinema, televisão, Literatura, jornais, revistas e portais da internet. 1488 discursos no imaginário coletivo desde o final da guerra até os dias atuais. Ou seja, qual o papel desses meios de comunicação ao difundirem essas histórias? Uma discussão importante para tentar entender esse “papel”, é o de cultura de mídia. Ou seja, analisar como os textos culturais veiculados pela mídia agem na formação de opiniões e sentimentos públicos, influenciando comportamentos e construções de imaginários. A cultura da mídia proporciona material farto para as fantasias e sonhos, modelando o pensamento, o comportamento e as identidades. Os meios de comunicação manipulam os imaginários e fomentam falsos medos. Constroem e destroem mitos. Segundo Douglas Kellner, as narrativas e as imagens veiculadas pela mídia fornecem os símbolos, os mitos e os recursos que ajudam a construir uma cultura comum para a maioria dos indivíduos em muitas regiões do mundo de hoje. Numa cultura contemporânea dominada pela mídia, os meios dominantes de informação e entretenimento contribuem para nos ensinar como nos comportar, o que pensar e sentir, em que acreditar, o que temer e desejar, e o que não. Influencia o modo como as pessoas pensam e se comportam, como se veem e veem os outros e como constroem sua própria identidade34. Para o sociólogo Barry Glassner pode-se entender que vivemos numa cultura do medo fabricada por alarmistas, e seus protagonistas são: imprensa escrita, jornalistas, grupos ativistas, empresários, religião, políticos. Destacando crimes, enfatizando a violência, adulterando números e dados estatísticos. Assim, falsas crenças são mantidas, e estas constituem mitos e lendas urbanas que compõem uma crescente “cultura do medo”35. Para obter lucros, a mídia passa a utilizar expedientes sensacionalistas, normalmente dando conta de fatos negativos, como crimes e catástrofes, disseminando o sentimento de insegurança no meio social, ocasionando a formação da “cultura do medo”. De acordo como Felipe Lazzari da Silveira, essa cultura possui forte influência na formação do imaginário das pessoas e tem como principal característica o sentimento coletivo de insegurança: A mídia, que ao atingir as grandes massas assume um importante papel na engrenagem da indústria cultural, atuando através de um sistema de comunicação que dissemina ideias e sentimentos. Dentro desse contexto, a mídia, que engloba a televisão, o rádio, os jornais e a internet, alcançou o 34 35 KELLNER, Douglas. Cultura de mídia. Bauru, SP: EDUSC, 2001. GLASSNER, Barry. Cultura do medo. Brasília: Francis, 2003. 1489 domínio da inteligência, da vontade, do sentimento e da emoção de 36 milhares de seres humanos. Trata-se da necessidade de reconhecer e compreender, que os meios de comunicação operam, de forma crescente, com uma racionalidade produtora e organizadora de sentidos, afetando e produzindo sentimentos, aspirações, medos, angústias, temores e inseguranças. Em consequência, atuam como uma instância que configura a realidade social interferindo nas memórias e nos imaginários produzidos. Segundo a historiadora Denise Cogo é importante entender como os meios de comunicação convertem-se em cenários cotidianos de reconhecimento social, na medida em que se encarregam de construir, expressar, oferecer e selecionar imaginários sociais relacionados a modos de ser, a expectativas, a desejos, a temores, a esperanças, que aparecem reconstruídos pela memória 37. Para Cogo, a memória histórica (no estudo em questão, a memória sobre a Segunda Guerra Mundial) atua como algo crucial para a internalização dos imaginários, e como processos decisivos de fixação e seleção dos fatos veiculados pelos meios de comunicação. Considerações finais Embora os livros pudessem ser trabalhados isoladamente, e são as fontes principais do trabalho, à incorporação de outras fontes para a pesquisa, podem ser de grande valia para intenção geral da pesquisa38. Pretendemos analisar e entender como a memória histórica “alimenta” os imaginários, que por sua vez “alimenta” a literatura, que “alimenta” o cinema, a televisão e também as reportagens de jornais e revistas. Ou seja, precisamos analisar esses diferentes campos discursivos, não vendo barreiras que os separam, mas sim os elementos que interseccionam-se e relacionam-se. 36 SILVEIRA, Felipe L. A cultura do medo e sua contribuição para a proliferação da criminalidade. In: Anais do 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede. Universidade federal de Santa Maria –RS, junho, 2013, p. 297. 37 COGO, D. Los Estudios de Recepción en América Latina: perspectivas teóricometodológicas. In: Lecciones del Portal. 2011. Disponível em: http://portalcomunicacion.com/lecciones_det.asp?lng=esp&id=48 > Acesso em: 10/06/2014. 38 Outra questão de suma importância para o desenvolvimento da pesquisa será identificar, analisar e explicar cada tipologia das obras selecionadas. Isso nos dará subsídios para tentar entender melhor o que é essa literatura: ficção, história, jornalismo investigativo, ou uma outra tipologia? 1490 Portanto, ao adentrarmos brevemente nos conceitos de: imaginário político, sentimentos na história (medo) e cultura de mídia - o que se pretendeu foi demonstrar a pertinência desses debates para a intenção geral da pesquisa. A partir dessa discussão, ainda que de forma incipiente, espera-se ter uma base teórica que ajudará a desenvolver e analisar os problemas postos a presente investigação. Fontes ERDSTEIN. Erich e Bean, Bárbara. Renascimento da Suástica no Brasil. São Paulo: Circulo do Livro S.A., 1977. FARAGO, Ladislas. Aftermath: Martin Bormann and the Fourth Reich. 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