filhos do sul - Autores Editores

Transcrição

filhos do sul - Autores Editores
filhos do sul
filhos do sul
Diogo Sinhoroto
João Costa
Pedro Tavares
Ricardo Diniz
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.
Qualquer forma de reprodução, distribuição,
tratamento digital ou modificação desta obra
só pode ser feita sob autorização prévia dos
seus autores.
---------------------------------------------------------2ª EDIÇÃO
---------------------------------------------------------© 2011, Expedição Filhos do Sul
Os Filhos do Sul
Diogo Sinhoroto
Jornalista
João Costa
Jornalista
Pedro Tavares
Engenheiro
Ricardo Diniz
Jornalista
F-1000 XK Deserter
Carro
O Projeto
De dezembro de 2004 a março de 2005, quatro amigos deram a
volta na América do Sul em uma caminhonete, munidos de equipamento fotográfico e de vídeo. O objetivo, conhecer um
continente que está escondido dos olhos do mundo, e mostrá-lo
a partir das impressões que tiraram como profissionais e habitantes dessa parte do planeta.
A expedição Filhos do Sul nasceu a partir de uma grande amizade entre os quatro integrantes do grupo que, desde que se conheceram, compartilham um interesse em comum, que beira o
fanatismo, por lugares, culturas e povos desconhecidos. Essa
paixão, somada ao amor pelas viagens de carro - e de baixo custo -, tornaram a América do Sul uma escolha óbvia.
A escolha do carro como meio de transporte se justifica, entre
outras facilidades, pela possibilidade de moldar itinerários, e de
atingir desde as grandes capitais até os rincões mais inexplorados. O roteiro da expedição Filhos do Sul foi baseado não apenas nos pontos turísticos tradicionais, mas nas estradas e cidades que estão entre eles, pedaços de América do Sul geralmente
esquecidos pelo turismo tradicional. Afinal, também é lá que estão os personagens principais desse continente.
O que o Brasil tem em comum com seus vizinhos? Como suas
histórias se influenciaram mutuamente? Quem é o povo sulamericano? Afinal de contas, o que é a América do Sul? Essas
foram algumas das questões que os Filhos do Sul tentaram desvendar.
Roteiro
diário de bordo
Brasil
10 de dezembro de 2004
Rio de Janeiro – São José dos Campos
Até que enfim chegou o dia. As últimas semanas em casa foram
corridas, cheias daqueles últimos preparativos que não acabam
nunca. E cheia de gastos também; alguns previstos e outros nem
tanto. Mas o que importa é que finalmente estamos na estrada.
Decidimos antecipar um pouco a saída, fazendo assim a primeira das inevitáveis alterações no nosso roteiro inicial. Em vez de
madrugarmos no sábado, saímos do Rio às 17 horas com destino a São José dos Campos. Conseguir começar a viagem foi um
parto, mas não poderia ser muito diferente. Definir o que levar
na bagagem e, principalmente, o que deixar para trás nos próximos três meses não foi fácil. E o passaporte? Comprovante de
vacinação? Cartões? Dólares? Cuecas? Não esquecemos nada,
ou, pelo menos, ainda não demos falta de nada. O que deve acabar acontecendo logo... Pegamos um engarrafamento enorme na
Dutra até chegarmos em Volta Redonda, a terra natal de dois
dos Filhos do Sul. Só chegamos em São José depois da meianoite, debaixo de muita, muita chuva, onde dormimos na casa
da Graziela, irmã do Diogo. A viagem no primeiro dia demorou
para engrenar. A idéia é conseguir sair o mais rápido possível do
Brasil. Ainda não dá para contar muita coisa, além do fato de
termos tido nossas últimas refeições saudáveis em um bom
tempo...
Na trilha sonora, os destaques foram: o primeiro do Los Hermanos, e o Rei Roberto cantando a chuva fina no nosso párabrisa (no nosso caso era um temporal mesmo). E ganhamos
também uma companheira de aventuras: uma Nossa Senhora de
Aparecida, que vê e ouve tudo o que acontece na F-1000. Já somos quase caminhoneiros!
15
FILHOS DO SUL
11 de dezembro de 2004
São José dos Campos – Lages
O dia começou com a primeira boa notícia sobre o seguro do
carro em um bom tempo: Aloízio, o gerente de seguros
(ir)responsável, finalmente deu uma dentro e conseguiu mandar
os papéis do seguro por Sedex 10 a tempo. Depois de um bom
café da manhã, rearrumamos tudo no carro e partimos – mais
tarde do que gostaríamos - para o sul. Uma parada em São Paulo para um alinhamento de última hora na F-1000, e já estávamos de volta à estrada. Na tenebrosa “rodovia da morte”, que
liga São Paulo a Curitiba, fizemos um belo almoço à base de pão
de forma e patê de presunto, com suco de morangos silvestres
pra descer. Depois, dirigimos sem parar até Lages em Santa Catarina, onde chegamos já tarde da noite, com muito frio.
Na busca por um hotel para quatro rapazes, enfrentamos um
pouco do conhecido machismo sulista, vindo de um sujeito
muito do mal-encarado metido num poncho. Quarto para casal:
20 reais. Quarto para 2 homens 25. “Afinal, até onde eu sei, dois
homens não formam um casal...” Achamos um quarto péssimo
no hotel Paris, onde nos amontoamos pelo chão, entre penicos
e camisinhas usadas. No meio da noite, um momento de apreensão. Ainda dormindo, João levantou da cama chamando por
Juninho. Deitado ao seu lado em uma cama de casal, Diogo tentou acalmar o rapaz: O que foi, porra?
- João: Juninho, o carro!!!
- Diogo: O que foi, porra?
- João (já recobrando os sentidos): Esse carro anda muito...
16
ARGENTINA
Argentina
12 de dezembro de 2004
Lages (BRA) – Chajarí (ARG)
Fomos acordados junto com o galo pelo funcionário do Hotel
Paris. Ainda era muito cedo quando tomamos nosso delicioso
café da manhã na F-1000. Começar a viagem logo ao amanhecer
era fundamental pra cumprir nosso objetivo de terminar o dia
em solo argentino. Mais uma vez, botamos o pé no acelerador e
esquecemos do freio. A única parada do dia foi em um restaurante na beira da estrada em Canoas, onde pudemos cometer o
luxo de tirar a barriga da miséria. Com o estômago forrado, só
paramos a caranga em Uruguaiana. Lá estávamos nós, na esperada fronteira entre Brasil e Argentina. Cabe aqui uma errata: no
meio do caminho, decidimos tirar o Uruguai do trajeto. Seria
uma passagem rápida e decidimos evitar as estradas desertas da
noite uruguaia e toda a burocracia de passar por mais uma fronteira. Então, fica pra outra vez...
Resolvidos os trâmites burocráticos na fronteira (declaramos o
laptop e as câmeras para evitar problemas), pudemos, enfim,
respirar os ares argentinos. A cidade escolhida para passarmos a
noite foi Chajarí, a 500 km de Buenos Aires. Esperando uma cidade-fantasma de beira de estrada, fomos surpreendidos por
uma cidade bem agitada, povoada por belas mulheres que não
paravam de olhar pra gente. Ou pro carro. Ou sabe lá Deus o
porquê. Ficamos em um hotel luxuoso (para os padrões da viagem), mas com um preço que cabia no nosso bolso. O terceiro
dia da viagem terminou com cerveza Quilmes, briga de deliquentes juvenis e polícia botando geral no camburão. Nós, macaquitos, ficamos fora dessa.
17
FILHOS DO SUL
13 de dezembro de 2004
Chajarí – Buenos Aires
Saímos de Chajarí por volta das oito e meia. Preparamos um café da manhã com pão com presuntada, toddynho e pão de mel,
que comemos já na estrada. Logo que entramos na ruta principal, recebemos uma bela acolhida da simpática policia rodoviária
argentina. A infração, gravíssima, era a não utilização dos cintos
de segurança no banco de trás. A multa, 270 pesos, que depois
viraram 55 pesos, que acabaram se transformando em 55 reais.
Depois de muito choro e vela, a multa, aplicada em uma estrada
argentina, foi paga em moeda brasileira. De positivo, uma boa
conversa com os policiais, que versou sobre jornalismo, música
argentina e as sensacionais atrações turísticas da província de
Entre Ríos. Seguimos viagem já esperando outras abordagens
policiais igualmente mal-intencionadas, o que acabou não acontecendo, pelo menos não hoje.
Chegamos em Buenos Aires depois das 3 da tarde. Achamos um
albergue aprazível, um estacionamento aceitável, e fomos pras
ruas da capital argentina. Comemos, conhecemos a Casa Rosada, a Plaza de Mayo, Puerto Madero, e voltamos para o albergue
para resolver nossas questões informáticas.
Fica a expectativa para um esperado desafio futebolístico entre
Brasil e Argentina, proposta pelo irritantemente simpático rapaz
do estacionamento. Aguardem notícias, se vencermos.
14 de dezembro de 2004
Buenos Aires
Acordamos no nosso quarto compartilhado com um inglês e um
francês e fomos aproveitar o café da manhã do albergue. Nada
de mais, mas era incluído no preço. Antes de sairmos para co-
18
ARGENTINA
nhecer a cidade, fomos convidados por um funcionário do albergue a comer um asado que ele faria para os hóspedes – a 12
pesos por cabeça, vinho incluído.
Saímos a pé por San Telmo, onde fica o albergue Corre Caminos, e resolvemos caminhar até La Boca, parando para reforçar
o café com umas maçãs. O imponente estádio de La Bombonera
nos anunciou que estávamos perto. Macaquitos pobres que somos, não quisemos pagar para entrar. Juninho ainda tentou
burlar a vigilância mas o segurança assinalou impedimento e tivemos que nos contentar em ver pelo buraco do portão. Demos
uma volta pelo bairro, onde éramos parados de 2 em 2 metros
por vendedores simpaticíssimos, oferecendo as mais baratas milanesas com papas da cidade. Recusamos polidamente, e nos picamos para Palermo, dessa vez de ônibus.
Em mais uma tentativa de melhorar a imagem dos brasileiros no
estrangeiro, oferecemos o lugar a uma senhora que morava por
lá, que impediu que saltássemos do lado oposto da cidade.
Os bosques de Palermo, cheios de simpáticas mulheres de biquíni na véspera, já não estavam tão bem freqüentados, e perderam muito do seu encanto. Andamos pelo Jardim Botânico da
cidade, olhamos por cima da grade do Jardim Zoológico e sentamos no gramado para comer umas hamburguesas. Sob um calor escaldante, fomos até a margem do rio da Prata. Exaustos,
voltamos de ônibus para o centro. Uma passada na calle Florida
para câmbio, casquinhas e uma pepsi, e já estávamos de volta ao
albergue. De banho tomado, ficamos jogando sinuca até sermos
chamados para o esperado asado. Estava muito bom, mas seria
ainda melhor se ao invés de vinhos quentes nos oferecessem
uma cerveja gelada – Ricardo chegou a recusar o vinho – e se os
homens não fossem maioria absoluta na mesa.
19
FILHOS DO SUL
Se o esperado desafio futebolístico não aconteceu, o Brasil não
fez feio na sinuca. João e Ricardo venceram primeiro um combinado franco-suíço, para depois ganharem duas cervejas do holandês Holandinho, que jogava com Juninho.
A partir daí, o que se viu foi muita cerveja e muita confraternização entre os povos – australianos, canadenses, israelenses, franceses, ingleses, chilenos, eslovacos e até argentinos. Até o palhaço resolveu dar uma passadinha por lá...
15 de dezembro de 2004
Buenos Aires – Neuquén
Em uma viagem de carro com duração de três meses, é natural
que alguns dias sejam monótonos. E assim foi a nossa saída da
capital argentina até a esperada chegada na Patagônia. Começamos o dia vencendo a ressaca e o calor insuportável do quarto
sem ventilador. A vontade de permanecer em Buenos Aires por
mais um dia era grande e unânime, mas decidimos seguir o cronograma e continuar a viagem. Despedimo-nos do pessoal do
albergue e botamos o pé na estrada. Entre a província de Buenos
Aires e a província de Neuquén, nosso ponto de chegada, passamos pela província de La Pampa e lá entramos oficialmente na
Patagônia. A refeição do dia, feita em um posto de gasolina na
beira da estrada em pleno deserto patagônico, foi choripán (pão
com chorizo - a linguiça deles - para os especialistas em culinária). Comemos (ou, pelo menos tentamos), assistimos “El Chavo
Del Ocho” (Chaves, para os especialistas em televisão) e o funcionário do posto que nos atendeu parecia saído do mesmo programa. Do nada, surgiram três jovens montados em uma única e
diminuta motoca. Entraram, compraram biscoitos, jogaram uma
partida de totó, subiram na moto e foram embora. Será essa a
diversão da juventude no deserto?
20
ARGENTINA
A monotonia imperou na maior parte da viagem e só foi quebrada por um maravilhoso pôr-do-sol quando o relógio já marcava mais de nove horas da noite. Simplesmente embasbacante.
Logo depois entramos em uma estrada que liga o nada ao lugar
nenhum, a famosa Conquista del Desierto. Chegamos em Neuquén de madrugada e decidimos passar a noite em um pequeno
hotel que se encaixava bem no nosso estilo. Bom e barato.
16 de dezembro de 2004
Neuquén – Junín de Los Andes
A partir de Neuquén, a Patagônia não é apenas uma imensa extensão de terras planas e desertas. Os lagos de água cristalina e
alguns picos nevados já começam a aparecer no caminho até Junín de Los Andes, onde iríamos passar a noite. Saímos de Neuquén bem cedo, em direção a um parque paleontológico no qual
foi descoberto o esqueleto do maior carnívoro do mundo. O dinossauro foi descoberto por um mecânico, um senhor de cerca
de sessenta anos, que estava lá no museu e nos explicou detalhes sobre as riquezas pré-históricas da região. Demos sorte dele
estar lá... Fomos conhecer também as pegadas fossilizadas dos
dinossauros, mas elas não eram grande coisa. A essa altura já
tínhamos visto crateras muito maiores nas estradas pelas quais
passamos. Depois fomos conhecer outro recorde mundial daquela região: o maior lago artificial do mundo, formado após o
represamento de um rio para a construção de uma hidrelétrica.
O lugar é lindo, as fotos ficaram legais, mas tínhamos que pegar
a estrada logo. Almoçamos numa parrilla assistindo a “Mujeres
Enamoradas”, a novela brasileira que fica muito melhor quando
dublada em espanhol. Chegamos em Junín de Los Andes no final da tarde, vimos o Vulcão Lanin, na divisa entre Argentina e
Chile, mas só de longe, porque o tempo fechou à medida que
nos aproximávamos. Mas o melhor do dia ainda estava por vir:
um camping à beira do lago Huechulafquen, sob um bosque
digno desses que se vê no cinema. O frio começava a apertar,
21
FILHOS DO SUL
então montamos o acampamento rápido: João e Juninho montaram a barraca, Ricardo fez o macarrão e Diogo acendeu a fogueira. O sol baixou tarde, quase dez da noite, quando fomos
deitar. Antes, uma partida de buraco. Na nossa primeira noite
acampados, dormimos impressionados com a beleza daquele lugar. Não vai dar pra esquecer esse cenário.
17 de dezembro de 2004
Junín de Los Andes – Bariloche
Acordamos à beira do Lago Huechulafquen com uma sensação
térmica não muito superior a zero grau. O sol estava totalmente
coberto pela neblina, o que impedia o passeio até a base do Vulcão Lanin. A alternativa foi um passeio pelo Parque Nacional
Lanin, que, além das árvores e lagos, era também cheio de coelhos, em habitat natural. Paramos algumas vezes numa tentativa
inútil de pegar os coelhos, mas, óbvio, eles eram muito mais ariscos do que nós, macaquitos brasileños. E além do mais, pegar
coelho pra quê?
Saindo de Junín de Los Andes, fomos para outra cidade: San
Martín de Los Andes, a uns 30 km de distância, onde se inicia a
Ruta de los Siete Lagos. De lá fomos para Villa La Angostura,
uma espécie de Campos do Jordão argentina. A ruta tem um trecho asfaltado e um trecho de rípio (terra e pedra), e é emoldurada por muitos lagos (ficamos com a impressão de serem bem
mais que sete...). O sol ia e voltava, o que tirou um pouco da beleza do lugar, mas nada grave. Continuamos na estrada até San
Carlos de Bariloche, onde a gente alugou uma casa. Cozinha
equipada, sala, quarto, banheiro: 10 pesos por pessoa. Valeu a
pena. Depois de um almoço com cara de jantar fomos ver a cara
da noite em Bariloche. Pegamos um dia surreal: o Boca Juniors
tinha acabado de ganhar a Copa Sul-Americana (2 a 0 contra o
Bolívar). Uma multidão foi pras ruas da cidade, enlouquecida,
ignorando completamente o frio absurdo que fazia naquela noi-
22
ARGENTINA
te. Nós fizemos o mesmo. E aprendemos vários gritos de guerra
“bocudos”, “boquenses”, sei lá, que diziam coisas como: “La
puta madre, la puta que te parió, ó, ó, ó” e “Boca no tiene marido... Boca no tiene mujer... Solo tiene un hijo bobo, que se llama River Plate”. Cariocas que somos, há muito tempo não comemorávamos um título com tanta intensidade. Seguimos a torcida até a entrada de uma discoteca: uma gente estranha, de 16
ou 17 anos em média, que enfrentava o vento frio do Lago Nahuel Huapi de camiseta regata... Desistimos de acompanhá-los.
Debaixo dos nossos quilos de casaco, achamos que aquela galerinha ali não era a nossa. Vimos outras discotecas da cidade (uma era até aceitável). Tomamos uma cerveja, comemos e voltamos pra casa, outra vez, mortos de frio.
18 de dezembro de 2004
Bariloche – Sarmiento
Acordamos no nosso cortiço muito bem aquecido, arrumamos
tudo e fomos pra rua. O frio habitual da cidade piora muito com
o vento, que não parava de soprar um minuto – coisa normal em
toda a Patagônia. Compramos mantimentos no supermercado e
comprovamos nossa vocação para macaquitos farofeiros: na avenida principal da cidade, encostamos o carro e devoramos o café
da manhã de sanduíche de mel com queijo e toddynho, sob o
olhar desconfiado dos turistas que saíam do hotel em frente.
Demos uma volta pelo centro de Bariloche, onde conhecemos a
belíssima catedral da cidade. Partimos então para mais um dia
de estrada, dessa vez descendo a região dos lagos em direção à
costa atlântica. O percurso é muito bonito nessa época do ano,
quando as flores amarelas e violetas cobrem a encosta das estradas, e os picos nevados completam a paisagem de Suíça latinoamericana.
O tempo continuou meio estranho, ora abrindo muito sol, ora
desabando pancadas de chuva. Paramos em El Bolsón, uma es-
23
FILHOS DO SUL
pécie de Visconde de Mauá Argentina, cheia de hippies e com
uma feirinha de artesanato muito da maneira. Comemos uma
hamburguesa pra variar e seguimos viagem.
Da paisagem meio serrana, passamos rapidamente à aridez do
deserto patagônico. Às vezes, no meio do nada, cruzávamos com
alguma cidade de não mais que uma rua, um posto de gasolina e
um comedor, na maioria das vezes, bem arrumadinha. No mais,
uma reta interminável, ou “infinita highway”, como já dizia
Humberto Gessinger. Aproveitamos o dia longo e decidimos
dormir em Sarmiento, no meio do caminho entre os Andes e o
Atlântico. Péssima escolha, como veríamos depois.
Já passava das 10 e meia da noite quando entramos na cidade.
Numa rápida busca pelos três hotéis da cidade, descobrimos que
estava tudo lotado por causa de uma tal domada de caballos. Que
tipo de cidade fica lotada por causa de uma domada de caballos???
A mais de 100 quilômetros de qualquer outra alma viva, e diante
da possibilidade de voltar para a estrada às 11 da noite, resolvemos decidir de barriga cheia, e paramos numa pizzaria. Sentamos, e tínhamos acabado de pedir uma pizza quando, do nada,
Diogo teve uma premonição. Levantou, foi ao carro e voltou
com a notícia: janela quebrada. Voamos para a F-1000, onde estavam, entre outras coisas, nosso laptop, filmadora e câmeras
fotográficas. O saldo, lamentável, foi uma filmadora roubada.
Poderia ter sido bem pior, mas esse tipo de pensamento positivo
não ajudou muito na hora. Demos mole, isso era fato. Mas lembramos de Aloízio, o corretor de seguros já citado neste diário,
que uma vez disse: não adianta ficar caçando as bruxas, é melhor tentar desfazer o feitiço. Saímos desabalados, meio procurando suspeitos, meio procurando uma delegacia. Acabamos na
segunda, onde fomos atendidos pela simpática, mas burocraticíssima polícia da província de Chubut. Uma mega-operação foi
24
ARGENTINA
montada para buscar os ladrões. Ela durou mais ou menos 10
minutos, e envolveu um policial e uma patrulha.
Ao nosso lado, uma senhorinha que parecia habitué do local reclamava de qualquer coisa que não conseguimos entender. Ao
mesmo tempo, a mãe de uma menina de 14 anos pedia ajuda
para achar a filha, sumida há mais de um dia. Era demais para a
valente polícia de Chubut.
Depois de quase duas horas preenchendo um boletim de ocorrência, o delegado concordou em nos deixar dormir por lá, já
que já eram quase 2 da manhã. Ele nos levou então a uma sala
cheia de homens estranhíssimos, que logo percebemos serem os
presos. O lugar era uma espécie de sala de recreação, com televisão, jogatina, chimarrão e artigos de artesanato que eles fabricavam. Parados na porta com sacos de dormir na mão, vimos os
detentos saindo um a um, uns rindo da nossa cara, outros irritados por terem sido interrompidos no que quer que estivessem
fazendo. Para nosso estupor, eles foram ocupando quartos vizinhos ao nosso, sem que a policial fizesse nenhuma menção de
trancar qualquer porta. Quando perguntamos se elas não seriam
fechadas, a resposta foi intrigante: eles são quase de confiança...
Quase!!!
Bloqueamos nós mesmos a porta com uma cadeira e, depois de
uma noite de tensão absurda, tivemos um acesso de riso incontrolável. Nos ajeitamos no chão entre os pertences dos presos,
em meio a um cheiro de cola insuportável, e dormimos.
19 de dezembro de 2004
Sarmiento – Río Gallegos
Depois de uma noite tensa na delegacia, uma vez que qualquer
barulho era motivo para cagaço, acordamos e vimos o sol nascer
25
FILHOS DO SUL
quadrado. Como era de se esperar, a câmera não foi encontrada
durante as horas em que tentamos dormir. Era hora de seguir
viagem e a primeira providência a ser tomada era a colocação de
um novo vidro na janela da caranga. Como sempre não pudemos contar muito com a sorte, pois não seria fácil fazer isso em
pleno domingo na cidade sem lei da Argentina. Fomos conduzidos por uma policial ao vidraceiro oficial da cidade de Sarmiento. O sujeito até foi simpático, mas não pôde fazer nada além de
improvisar um plástico no buraco da janela até a nossa próxima
parada em Río Gallegos. Conseguimos nos despedir da traumática cidade de Sarmiento com a janela de plástico que foi descartada alguns quilômetros depois.
Como desgraça pouca é bobagem, assim que arrancamos o plástico entramos em uma fortíssima chuva de granizo. Além de nos
preocupar com o gelo na pista e com as pedras atingindo o vidro
dianteiro, tivemos que enfrentar o vento incrivelmente gelado
que entrava belo buraco da janela. Vencida a tempestade, voltamos a improvisar um plástico que nos protegeu o resto da viagem da chuva que ia e voltava, dessa vez, em menor intensidade.
A sorte voltou a nos sorrir assim que chegamos em Río Gallegos. Chegamos tarde demais pra trocar o vidro, mas em tempo
de conseguir um bom hotel com estacionamento, banho quente
e TV a cabo. Comemos um bom miojo e fomos dormir com a
impressão de que o dia seguinte seria melhor. Afinal, era hora
de pegar a estrada rumo a Ushuaia.
20 de dezembro de 2004
Río Gallegos – Ushuaia
Ótima noite de sono, problema do vidro resolvido logo pela manhã, estávamos prontos para sair do continente e chegar à Terra
do Fogo. Río Gallegos, que é muito mais um ponto de parada
para quem viaja de carro pela Patagônia, não é uma cidade mui-
26
ARGENTINA
to especial. E parece que está cada vez mais decadente, já que as
rotas de vôo pela região esvaziam o local. Ir de Río Gallegos até
Ushuaia é um trajeto comum, mas nada fácil. Estradas de rípio,
burocracia na fronteira entre Argentina e Chile, mais estradas de
rípio, esperar a balsa para cruzar o Estreito de Magalhães e chegar na Terra do Fogo, mais burocracia na fronteira – dessa vez
para sair do Chile e voltar para a Argentina (só dá pra chegar de
carro em Ushuaia se você passar pelo Chile). Mas o trajeto é bonito. O oceano aparecia e sumia com freqüência à nossa esquerda, e os animais ao redor da estrada eram desculpa para encostar
o carro toda hora: grupos de guanacos (espécie de lhama), ovelhas, muitas ovelhas, patos selvagens e uma ave de pernas compridas parecida com um avestruz ou ema, mas que não era nem
uma coisa nem outra. Tinha até uma placa mandando tomar
cuidado com raposas na pista. Parecia coisa para encantar turista, mas uns cinqüenta metros depois cruzamos com um filhote
de raposa atravessando a rodovia com toda calma. Mas não tão
calma o suficiente para que a gente conseguisse fazer a foto. Vai
ficar só na história mesmo... Um pouco depois um pássaro suicida cruzou o nosso caminho, coitado, e bateu no carro.
O ambiente árido da Terra do Fogo vai mudando bastante de
figura à medida que a gente se aproxima de Ushuaia. Bosques
com troncos super-retorcidos pelo vento, lagos e montanhas. Lá
no alto, neves eternas. Chegamos na cidade junto com o pôrdo-sol, cerca de 22:30, depois de enfrentarmos uma nuvem de
poeira interminável na estrada, que, contra o sol, atrapalhava
bastante a visibilidade. Tentamos ficar no mesmo albergue que
Diogo, João e Marcos ficaram em 2002, mas o preço havia quase
dobrado desde aquela época. Encontramos uma opção mais barata, com uma cara ótima, e bom clima. Além de nós, estão hospedados aqui um espanhol, um canadense e um monte de israelenses. Uma das meninas nos explicou que todos eles (inclusive
as mulheres) tinham acabado de sair do exército, onde foram
obrigados a servir ao país por três anos (os homens) ou um ano
27
FILHOS DO SUL
(as mulheres). Ela nos contou que sua base era na Faixa de Gaza, e que a cada dia dois de seus amigos ou conhecidos não voltavam para o acampamento porque tinham morrido em algum
conflito. Depois da dureza do exército (que não é uma opção,
mas uma obrigação de qualquer israelense), eles saem pelo
mundo viajando por cerca de um ano. Viajar é sempre bom, mas
para eles parece ter outro significado.
Antes de dormir fizemos um macarrão e começamos a planejar
nosso natal. Os papéis do amigo-oculto já foram sorteados; temos que comprar os presentes.
21 de dezembro de 2004
Ushuaia
Acordamos para um ótimo café da manhã, com direito a uma
tradição que pretendemos adotar para a viagem: doce de leite no
pão. Comemos cerca de 10 pãezinhos e, satisfeitos, estávamos
prontos para conhecer a mais austral e uma das mais belas cidades do mundo. No café, mais conversa com os gringos (leia-se
israelenses) e uma conclusão: o brasileiro é mesmo o povo mais
bem-humorado do mundo. Enquanto nós rimos e brincamos a
cada 2 minutos de conversa em português, os outros hóspedes
às vezes parecem muito sérios, não soltam uma risada, e parecem estar sempre discutindo os destinos da humanidade. Eles
devem nos achar encantadores, ou completos idiotas. O único
momento de descontração maior para eles é quando nos perguntam (e TODOS nos perguntam) como é o carnaval no Brasil. Rio ou Salvador? Rio, claro! Violência? Não, é só não dar
mole pelas ruas, nada que impeça a visita.
Nosso primeiro passeio em Ushuaia foi no Parque Nacional de
Tierra del Fuego. O lugar é lindo, com várias opções de trilhas
para todos os gostos. Escolhemos uma que João e Diogo já conheciam da outra viagem, e fomos em frente. Chegamos ao alto
28
ARGENTINA
de um morro, de onde se tem uma visão panorâmica do fim do
canal de Beagle e da cadeia de montanhas do lado chileno. Lá
no alto, uma árvore estrategicamente colocada nos colocou ainda mais perto do céu. Um detalhe interessante sobre o parque, e
sobre a vegetação da região, é a mudança das cores de acordo
com as estações do ano. Quando estiveram nesse mesmo lugar,
no outono de 2002, João e Diogo viram uma paisagem muito
vermelha e laranja, um dos símbolos daqui. No primeiro dia
desse verão 2004/05, a história é bem diferente: muito, muito
verde. Difícil escolher a melhor época para se vir a Ushuaia.
No caminho pela trilha vimos o trabalho engenhoso dos castores, na construção das castoreras, represas feitas de galhos e
troncos. Chegamos a avistar uns dois bichos, mas eles mergulharam mais rápido que o flash das nossas máquinas. Dentro do
parque também fica a Baía Lapataia, que marca o final da Ruta
Panamericana (Ushuaia-Alasca). Muitas fotos, e uma sensação
boa de se sentir no fim do mundo.
Encerramos o dia no parque e voltamos correndo para o albergue para preparar um almoço, que a fome já apertava. Saímos de
novo para a rua depois de meia-noite e acabamos parando num
lugar chamado Lennon Pub, que não tocava nada relacionado
aos Beatles, mas era até bem divertido. Tomamos umas cervejas
e voltamos para dormir no albergue.
22 de dezembro de 2004
Ushuaia
Devido às sérias restrições que fazemos ao nosso limitado orçamento, acordar cedo para conseguir comer um bom café da manhã no albergue se torna uma obrigação e é uma missão das
mais difíceis. Mas vale o esforço, pois, além de encher a barriga,
nos sobra mais tempo para curtir as belezas do Fim do Mundo.
É muita coisa pra ver e aproveitar e muito pouco tempo. E olha
29
FILHOS DO SUL
que por aqui a noite começa perto da meia-noite e o dia seguinte começa a raiar antes das quatro da manhã...
Decidimos aproveitar o tempo bom pra fazer um passeio de barco pelas pequenas ilhas próximas a Ushuaia. Depois de analisar
a relação custo-benefício de várias propostas, optamos por desembolsar cinqüenta pesos por cabeça para embarcar no barco
de nome Barracuda. A partida estava marcada para as três da
tarde, o que nos deixou com tempo para subir o Glaciar El Martial. Pegamos a caranga, fomos até o teleférico e começamos a
subida. O frio já começava a apertar e a tornar a caminhada mais
complicada e bem mais prazerosa. Na primeira meia hora de subida, avistamos e tocamos no primeiro bloco de gelo. E o frio
transformava a chuva em pequenos flocos de gelo. A paisagem
fascinante serviu para revigorar o ânimo para terminar o trajeto
até a base do glaciar, ou até aonde a nossa falta de equipamento
apropriado nos permitia chegar. Mas era mais que suficiente...
era ótimo. Estávamos na neve e estávamos muito felizes. Esquecemos o frio e decidimos esquiar. Com os pés, com a bunda ou
de qualquer outra maneira.
Saímos do glaciar perto das três horas e aceleramos até o barco.
Sem tempo para o almoço, a refeição do dia foi biscoito cream
cracker e água. O sacrifício valeu a pena. O passeio pode não ser
lá muito barato e o frio pode beirar o insuportável em alto mar,
mas a recompensa está em cada parada nas pequenas ilhas para
avistar centenas de aves e dezenas de lobos-marinhos. A atração
final é a chegada ao Farol do Fim do Mundo e, de lá, voltamos
pra terra firme.
Depois saciar a fome, que não era pouca, descansamos e aproveitamos o tempo para atualizar o diário de bordo e ligar para as
famílias (cada vez mais preocupadas desde o episódio do roubo
em Sarmiento). Assim que voltamos para o albergue, descobrimos que mais israelenses haviam chegado. A invasão estava
30

Documentos relacionados