Untitled - Isthmus

Transcrição

Untitled - Isthmus
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MARIO PERNIOLA
ENIGMAS
egípcio, barroco e neobarroco
na sociedade e na arte
Tradução Carolina Pizzolo Torquato
Chapecó, 2009
© 1990 Mario Perniola
Título original: Enigmi: il momento egizio nella società e nell’arte
© 2009 da tradução brasileira: Editora Argos
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita
do Editor.
REITOR: Odilon Luiz Poli
VICE-REITOR DE PESQUISA, EXTENSÃO
E PÓS-GRADUAÇÃO: Claudio Alcides Jacoski
VICE-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: Sady Mazzioni
VICE-REITORA DE GRADUAÇÃO: Maria Luiza de Souza Lajús
111.85
P452e
Perniola, Mario
Enigmas: egípcio, barroco e neobarroco na sociedade e
na arte / Mario Perniola; tradução Carolina Pizzolo
Torquato. – Chapecó, SC: Argos, 2009.
223 p.
Tradução de: Enigmi: il momento egizio nella società e
nell’arte
Inclui bibliografia
1. Estética. 2. Civilização ocidental - Influências egípcias.
3. Arte e sociedade - História. I. Torquato, Carolina Pizzolo.
II. Título.
CDD 111.85
ISBN: 978-85-7897-008-6
Catalogação Daniele Lopes CRB 14/989
Biblioteca Central Unochapecó
Conselho Editorial: Elison Antonio Paim (Presidente);
Antonio Zanin; Arlene Renk; Claudio Alcides Jacoski; Darlan Christiano Kroth;
Edilane Bertelli; Iône Inês Pinsson Slongo; Jacir Dal Magro;
Jaime Humberto Palacio Revello; Leonardo Secchi; Maria dos Anjos Lopes Viella;
Mauro Dall Agnoll; Neusa Fernandes de Moura; Valdir Prigol;
Paulo Roberto Innocente; Ricardo Brisolla Ravanello; Rosana Badalotti
Coordenador: Valdir Prigol
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .......................................................................
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ENIGMAS DE FIM DE MILÊNIO
SEGREDOS, DOBRAS, ENIGMAS ............................................
O segredo .......................................................................................
A dobra ..........................................................................................
O enigma além do segredo e da dobra .......................................
O enigma e o banal ........................................................................
O princípio do enigma .................................................................
O pensamento enigmático ...........................................................
A ação enigmática .........................................................................
Referências ....................................................................................
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VIDEOCULTURA COMO ESPELHOS ....................................
A solenização do vídeo ...............................................................
O videonarcisismo .......................................................................
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O homem-vídeo ............................................................................
Videozen ........................................................................................
Catóptrica barroca ........................................................................
Videoelegância ..............................................................................
Referências ....................................................................................
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RUMO A UMA CIVILIZAÇÃO DA COISA ..............................
Uma filosofia do presente ..............................................................
A experiência de fazer-se coisa .....................................................
O fazer-se coisa neoapático ...........................................................
O fazer-se coisa neopagão .............................................................
Referências ......................................................................................
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VIRTUALIDADE E PERFEIÇÃO ...............................................
Atualidade e homologação ...........................................................
Além da sociedade da mídia .......................................................
O virtual ..........................................................................................
A perfeição ......................................................................................
O enigma da escritura e da leitura .................................................
Referências ......................................................................................
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ARTE, TEMPO E ESPAÇO ...........................................................
Arte e “espírito do tempo” ............................................................
O efeito egípcio: o completamento do tempo ...........................
Arte e museu ...................................................................................
O efeito barroco: o enigma da coleção .........................................
Referências ......................................................................................
115
115
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130
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ENIGMAS BARROCOS E NEOBARROCOS
BARROCO, EXPRESSIONISMO, INEXPRESSIONISMO .....
Barroco e expressionismo ............................................................
Técnica e possessão ......................................................................
O neobarroco social .....................................................................
Neobarroco e inexpressionismo .................................................
O neobarroco filosófico ...............................................................
Referências ....................................................................................
141
141
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154
159
161
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BELEZA ESTRATÉGICA E ENGENHO
ENIGMÁTICO EM BALTASAR GRACIÁN .............................
O belo como agudeza ...................................................................
O trânsito engenhoso ...................................................................
A arte da sutileza ............................................................................
A acolhida do conceito .................................................................
Referências ....................................................................................
169
169
174
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183
186
ITÁLIA ENIGMÁTICA
ENIGMAS E INEBRIAÇÕES NA
PINTURA ITALIANA DO NOVECENTOS .............................
O homem como coisa ..................................................................
O enigma da pintura metafísica ...................................................
A inebriação da pintura abstrata ................................................
Referências ..................................................................................
189
189
195
201
206
ENIGMAS DO SENTIR ITALIANO ........................................
O enigma de Pulcinella .................................................................
O cinismo italiano: um espetáculo sem sociedade ....................
O antipulcinella: o sentido histórico em Antonio Sarno ..........
O anticinismo: a persuasão em Carlo Michelstaedter ................
Referências ....................................................................................
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A P R E S E N TA Ç Ã O
A ART E E O AC O N T E C I M E N TO :
MARIO PERNIOLA E O
EFEITO EGÍPCIO
Mario Perniola não é um desconhecido entre nós, brasileiros. Muito de seu trabalho e de suas reflexões nos foi já
disponibilizado como aqueles reunidos em Repensando o ritual: sexualidade, morte e mundo (2000) e em Sex-appeal do
inorgânico (2005), ambos saídos pela editora Studio Nobel em
articulação com a Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Há ainda o livro Contra a comunicação,
publicado pela Editora da Unisinos, em 2006, e o livro Os
situacionistas (2009).
Sabemos, portanto, que Mario Perniola é autor de uma profunda análise sobre o nosso tempo e a nossa cultura ocidental e
moderna. A temporalidade que Mario Perniola escava na arte do
presente não é definida por um “neoecletismo” nem por um
“neorromantismo”; aliás, Perniola se abstém das noções determinadas por uma historicidade moderna, progressista e determinista.
Desse modo, não se vale de noções que obedecem a pautas
historicistas e catalogadoras do neo, remake, pastiche, paródia.
A temporalidade que Perniola arranca da arte do presente está
marcada por uma mutação mais radical e decisiva pensada como
um “efeito egípcio”. Partindo do princípio de que foi típica da
civilização egípcia a tendência em compreender numa única dimensão temporal o antigo e o novo, colocando-os um ao lado do
outro e deixando aberta a contradição que disso deriva, Perniola
entrevê na arte e na civilização egípcia essa temporalidade plena e
nem por isso menos digna. Para o filósofo italiano, as produções
egípcias oferecem a impressão de uma enigmática sincronicidade
de quase completamento do tempo.
A relação da obra de Perniola com o tempo não deixa de
ser histórica, mas ele não abre mão daquela característica que não
deixa o historiador perder o sentido de sua época, não deixando
com isso de contribuir para novas configurações de nossa própria
época. Ao afirmar, como escreve nas páginas de Enigmas em que
discorre sobre o problema do tempo presente, que o evento, o acontecimento marcado pelo tempo, é estranho à hermenêutica, porque
ele não pode ser interpretado, somente dobrado, ou seja, explicado,
diz-nos que todo evento é um “novo” prefigurado pela dobra que
lhe é anterior, mas é irredutível a ela, justamente por sua disposição
em não perder o sentido da época, o sentido do tempo.
Essa questão também é discutida por outros filósofos italianos de nossa época; tal discussão gera um acontecimento na
filosofia italiana da segunda metade do século XX, o de articular
um pensamento sobre o tempo e sobre a história da modernidade.
Giorgio Agamben, no livro Idéia da prosa, no fragmento “Idéia
da época”, argumenta que na catalogação e no recenseamento de
novos talentos que cada geração se apressa em fazer perde-se o único “título de nobreza” que nossa época poderia ter, “o de não querer
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já ser uma época histórica”1. O pensamento sobre o tempo produzido no âmbito dos conceitos de pós-moderno ou de novo
renascimento, entre outros, apenas indica o quanto de preconceito historicista, de pensamento da decadência tomado como
desaparição e de niilismo atravessa nossa relação com aquilo que
chamamos de “nossa época”. Não é outra inquietação filosófica
que leva Paolo Virno a argumentar em Il ricordo del presente (1999)
que o excesso de memória de nossa época traz consigo uma voracidade em conservar, arquivar, em transformar tudo em história.
Virno detecta uma perigosa e paralisante proximidade de toda
ação com a historicização. Perigo ao qual já se reportara Nietzsche
nas suas Considerações intempestivas: com o excesso de história
se perde a própria história. Numa época como a nossa, em que
tudo é passível de arquivamento, todos somos colecionadores em
potencial. Inclusive colecionadores de nossa própria vida enquanto
ela transcorre, tornamo-nos atores e espectadores de nossos próprios movimentos, pensamentos e ações. Nesse ponto, Paolo Virno
retoma de Guy Debord (1967) a noção de espetáculo, que não se
refere apenas ao consumo de mercadorias culturais, mas também
à tendência pós-histórica de “olhar-se viver”, para enunciar sua
tese de que nessa grande “exposição universal” na qual estamos
todos inseridos há um processo que nos reduz a meros atos já
realizados, a palavras ditas, a feitos concluídos.
1
AGAMBEN, Giorgio. Idéia da prosa. Tradução João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1999,
p. 82.
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É nesse ponto que a reflexão de Mario Perniola se insere e
difere na análise de Virno. Também ao retomar a noção de espetáculo de Guy Debord, Mario Perniola propõe como ponto a partir
do qual girará sua investigação não a transformação do mundo
espetacularizado em um mundo não-espetacularizado, uma vez que
não filia seu trabalho ao ponto de vista utópico, mas sim o da indagação sobre o “como” lidamos com a sociedade contemporânea
absolutamente governada pela imagem. Contrariamente à ideia de
vazio ou de paralisia com a qual alguns teóricos caracterizam a sociedade do espetáculo, cujo fundamento é a exposição avassaladora
de imagens, isto é, a de uma sociedade espetacularizada, Mario
Perniola nos propõe pensá-la como um mundo pleno, de um
“pleroma”, no qual tudo está à disposição. O “pleroma”, que tem o
sentido em grego da plenitude, é também o tecido ou zona de crescimento no caule ou na raiz das plantas. É algo que está além da
percepção humana, um estado de não-ser que tem o sentido do
pleno, do qual, por emanação, toda existência manifesta-se, origina-se e para onde está destinada a voltar. Portanto, o pleroma é um
lugar vital. E, a partir disso, Perniola nos diz que a noção de simulacro com a qual nossa sociedade da imagem é caracterizada (Debord,
1967) não deve ser entendida como sinônimo de mentira ou de
engano – como afirma o ponto de vista metafísico que opõe o verdadeiro ao falso, sequestrando qualquer possibilidade de atribuição de sentido para o duplicado –, mas, ao contrário, a noção de
simulacro se coloca como a “garantia de dignidade da cópia, de seu
direito de durar: a importância da noção de simulacro está justamente no fato de que esta acentua e sublinha a presença física
do passado no presente.” (Perniola, 2009, p. 75). Essa presença
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não pode ser sublinhada nos termos que vinha e vem operando a
história da arte, ou o ensino da arte sob uma perspectiva historicista
e progressista. Mario Perniola nos propõe que o passado no presente vive, ou melhor, sobrevive fisicamente nesse turbilhão de imagens no qual nossa sociedade se constitui. Turbilhão, entenda-se,
visto por Perniola como “pleroma”, e não como catástrofe, quer dizer, as imagens em sua possibilidade e potência de produzir de novo
a vida, a experiência, isto é, o pensamento sobre o mundo, que é o
produtor do próprio mundo.
A noção de espetáculo ganha outro acontecimento que a
faz sobreviver no pensamento sobre o presente, pois associada ao
conceito de dobra de Gilles Deleuze faz com que Mario Perniola
devolva dignidade à noção de espetáculo retomada dessa maneira
como “especulum”, isto é, espelho, imagem, e imagem enigmática
e não apenas contraste entre uma forma e um fundo. O enigma
passa a ser, no livro de Mario Perniola, um conceito importante
para o pensamento sobre a arte. Ele produz um lugar de suspensão do sentido, um lugar intermediário, um intervalo entre a forma e o fundo da imagem, que não é destinado a ser preenchido. A
associação da noção de espetáculo ao conceito de dobra permite
Perniola lançar mão da noção de enigma por via da consideração
que Adorno elabora em Teoria Estética (1970) sobre o aspecto
egípcio de toda obra de arte, cuja essência residiria justamente em
produzir, cultivar e manter o enigma. Mario Perniola recoloca a
questão discutida pela mesma tradição filosófica italiana à qual
me referia anteriormente e, mais, recoloca a discussão empenhada pela filosofia idealista alemã cuja pergunta se formula sobre a
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possibilidade de o conceito filosófico ter o seu conteúdo de verdade desdobrado a partir da obra de arte.
A relação entre arte e filosofia seria, portanto, comparável
àquela que existe entre a dobra e a explicação? Mas a filosofia pode
limitar-se a ser a explicação do conteúdo de verdade implícito na
obra de arte? Na pretensão dos sistemas do idealismo alemão de
tomar a forma da arte como modelo para a filosofia está implícita a
intuição da afinidade substancial entre arte e filosofia. Mas essa afinidade substancial não deve permitir que se esqueça de que tanto a
arte quanto a filosofia miram o real, que existe um conteúdo coletivo da arte, que a experiência da arte pode se tornar filosofia.
Novamente recorro ao pensamento de Giorgio Agamben
para aproximar o pensamento sobre a arte na tradição italiana
contemporânea. No livro Infância e história (1978), Agamben reivindica, constatando o colapso da possibilidade de transmissão
da experiência na modernidade, analisada por Walter Benjamin,
em “Experiência e pobreza” (1933), e “O narrador, considerações
sobre a obra de Nikolai Leskov” (1936), um pensamento capaz de
fazer coincidir experiência e conhecimento, duas instâncias que o
pensamento moderno opôs, desde logo, ao impor ao sujeito da
ciência a impossibilidade de alcançar, “ter experiências”, a maturidade e a sabedoria pela experiência, restando-lhe apenas a possibilidade de “fazer experiências”, isto é, acrescer seus próprios conhecimentos. O que parece interessante à luz da reflexão empenhada por Mario Perniola é que com a ideia de “tempo presente”,
ou o seu equivalente em Agamben “nossa época”, é que, nesse modo
de pensar sobre a temporalidade do presente, está incluída como
tarefa da arte e da filosofia o fazer coincidir essas duas ações que o
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pensamento moderno esgotou na sua própria instituição, a coincidência da possibilidade do conhecimento e a da experiência. O
que não quer dizer em absoluto a transformação da arte em filosofia. Quando no livro Categorias Italianas (1996), retomando e
parafraseando Wittgenstein sobre o risco de caírem na banalidade
tanto a prosa filosófica quanto a poesia, ao fazerem coincidir “o
som e o sentido”, “a experiência e o conhecimento”, Agamben está
desdobrando e tentando flexionar a moderna relação entre a experiência e o conhecimento, entre o dispêndio e o acúmulo, entre
diferença e identidade, entre coparticipação e autonomia. No entanto, Agamben não descarta o “risco” de a filosofia cair na banalidade e a poesia se inflacionar de cerebralismo, é o perigo da morte,
da filosofia deixar de ser filosofia e a poesia de ser poesia.
A esse temor de Wittgenstein e Giorgio Agamben a reflexão
produzida por Mario Perniola replica com a noção de trânsito e
acrescenta que o que aproxima a filosofia à arte é o copertencimento
de ambas à realidade e daí adviria o seu conteúdo enigmático.
Nesse sentido, Perniola reafirma que o caráter enigmático da arte
e da filosofia está assentado na realidade, que é enigmática. Com
isso, Mario Perniola redireciona o problema da dobra ao “do enigma a partir do momento em que se renuncia a privilegiar a dobra
sobre a explicação ou, vice-versa, a explicação sobre a dobra. Vai-se
da dobra à explicação e se retorna da explicação à dobra através de
um trânsito, através de um processo que vai do mesmo ao mesmo.”
(Perniola, 2009, p. 32). A noção de trânsito, portanto, enfrenta o
risco da morte, incluindo o enigma como agente imunológico,
pois o trânsito é um movimento entre o ponto de partida e o
ponto de chegada, tomados como “simultaneamente os mesmos
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e radicalmente diferentes: aprofundando a prova de diversidade
encontra-se a unicidade e, vice-versa, aprofundando a prova de
uniformidade encontra-se a mudança.” (Perniola, 2009, p. 32).
Susana Scramim
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ENIGMAS DE FIM
DE MILÊNIO
SEGREDOS, DOBRAS, ENIGMAS
O segredo
Depois de mais de vinte anos de quase ininterrupto silêncio teórico, o pensador mais secreto da nossa época, o francês Guy
Debord, publicou em 1988 um complemento ao seu famoso volume A sociedade do espetáculo, cuja primeira edição saiu em 1967.
O novo livro, intitulado Commentaires sur la société du spectacle,
se qualifica pela importância atribuída à noção de segredo. Segundo Debord, ao longo dos vinte anos que separam os dois livros, nasceu e se desenvolveu um terceiro tipo de sociedade do
espetáculo, que se soma às duas precedentes: a primeira, caracterizada pelo espetacular concentrado, encontrou a sua plena manifestação na Rússia stalinista e na Alemanha nazista; a segunda, caracterizada pelo espetacular difuso, se expressou inteiramente nos
Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial; a terceira,
enfim, caracterizada pelo espetacular integrado, pertence ao passado mais próximo e se realizou na França e na Itália. É justamente nessa última forma de espetáculo que o segredo assume um
papel essencial: ele se tornou não apenas o complemento decisivo
daquilo que é mostrado, mas inclusive a mais importante operação tática. De fato, em um mundo pós-histórico, neo-obscurantista e criptocriminal, como é este em que vivemos, a principal
arma é a chantagem. A frase “saber é poder”, em conformidade
com a qual nasceu e se desenvolveu a modernidade, assume hoje
uma acepção derrisória: a importância do segredo na vida contemporânea está estreitamente ligada à imposição e à difusão em
todos os âmbitos da sociedade do modelo mafioso.
No que essa concepção, que contém elementos de indubitável
agudeza, se revela uma consideração mais aprofundada, não inteiramente satisfatória? Em A sociedade do espetáculo já resulta, a meu
ver, inadequado o pressuposto dualístico, maniqueísta, em última
análise não dialético, sobre o qual ela se sustenta: tal pressuposto
não é tanto de natureza política quanto de natureza essencialmente
filosófica. Em 1967, Debord acreditava na existência de dois partidos que se enfrentavam e combatiam entre si: o partido da burguesia e o do proletariado. Vinte anos depois, ele pensa que o partido
do proletariado foi vencido e que o primeiro partido apenas vigia a
si mesmo e conspira contra si mesmo. Mas essa importante mudança não altera a ideia fundamental segundo a qual a tarefa da razão, no fim das contas, é fácil e pode ser desempenhada de uma vez
por todas. Em 1967, tudo era claro, aberto, desdobrado, enquanto
que vinte anos depois tudo é obscuro, escondido, secreto: a sociedade era então transparente, hoje é envolta por um manto que torna a compreensão impenetrável. Se esse manto fosse tirado, a verdade voltaria a resplandecer por si só, sem que isso comportasse
um grande trabalho para a razão.
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O que vejo de insatisfatório e no fundo ingênuo nas teses
de Debord, e por extensão na própria noção de segredo, é exatamente essa concepção da verdade como algo que às vezes aparece
e às vezes desaparece independentemente do exercício do pensamento. O conceito de segredo remete à existência de uma verdade
simples: o caminho para chegar a ela pode ser longo, complicado
e tortuoso, mas anula-se no momento em que aparece a verdade.
Na noção de segredo acho inaceitável a atribuição de um papel
secundário e, em última análise, inessencial à atividade de pensar.
Cada vez que esta é apresentada como o modelo de uma investigação policial atenta-se contra a sua dignidade, compromete-se a
sua primazia, não se sai do quadro cultural de neo-obscurantismo
e de neobarbárie delineado por Debord.
A dobra
Em um mundo cheio não de segredos, mas de dobras nos
introduz o livro de Gilles Deleuze A dobra, que traz como subtítulo Leibniz e o barroco. Aqui a atividade do pensamento é apresentada não como a revelação de um segredo, nem como uma
iluminação, nem como uma clarificação, uma Erklärung, mas sim
como uma explicação. Agora é interessante observar que a palavra
explicação para indicar a atividade de conhecer existe apenas nas
línguas romance (em italiano, em francês, em espanhol...). A diferença entre a clarificação (Erklärung) e a explicação (explicatio) é
exposta lucidamente por Kant na Crítica da razão pura: aqui Kant
privilegia a primeira sobre a segunda. Enquanto a primeira – diz
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Kant – consiste em expor originariamente o conceito explícito de
uma coisa dentro dos seus limites, a segunda tem um âmbito de
aplicação meramente empírico. Na explicação, segundo Kant, o
conceito não se encontra dentro de limites certos e, portanto, não
pode ser definido. Se penso no ouro, por exemplo, não posso nunca
estar certo de também pensar em todas as suas características. Kant
cita o exemplo da ferrugem: alguém pode pensar na noção de ouro
o fato de que ele não enferruja e outra pessoa, diferentemente, não
saber nada dessa propriedade.
Aquilo que a Kant, todavia, parece um defeito da explicatio
pode se revelar sob um outro ponto de vista uma qualidade. Se a
atividade de pensar não se encontra nunca dentro de limites certos, mas tende sempre a superá-los, é porque ela implica a experiência de um desenvolvimento. Explicatio e explicare significam desenvolvimento e desenvolver. Daqui deriva que o conhecimento
não é simplesmente a revelação de um segredo, nem a iluminação
de algo obscuro, nem, enfim, a exposição de um conceito dado a
priori, mas o estender, o deslindar, o exprimir algo que está embrulhado, envolto, recolhido.
O horizonte conceitual aberto pela dobra e pela explicação
permite sair do beco sem saída em que a problemática do espetáculo e do segredo colocou uma geração inteira de militantes. O escolho contra o qual naufragou o barco da militância antiespetacular é
antes de tudo o problema da novidade histórica. Vítima de uma
concepção estreita e maniqueísta da realidade, o triunfalismo utópico dos anos sessenta e setenta se subverteu em negação da história: a frustrada realização daquilo que se esperava e se almejava
gerou cegos diante das dobras, das complexidades, da sinuosidade
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da realidade efetiva. Assim, preferiu-se pensar que a história tivesse acabado ao invés de reconhecer a insuficiência dos próprios
instrumentos conceituais para compreender o que acontecia. A
atribuição de um papel fundamental ao segredo é parte integrante
dessa deposição do pensamento filosófico.
A atenção teórica em relação às noções de dobra e de explicação nasce justamente da necessidade de repensar a emergência
histórica: como é possível hoje pensar o novum? O que quer dizer desenvolvimento?
Em primeiro lugar, na noção de desenvolvimento parece
implícita uma certa afinidade de forma, de estrutura ou de substância entre o ponto de partida e o ponto de chegada: essa afinidade exclui a concepção dualística, maniqueísta da realidade. Afirmar que a sociedade se tornou essencialmente secreta significa
reconhecer que o pensamento se tornou essencialmente turvo.
A explicação pertence ao mesmo mundo ao qual pertence a dobra. O pensador é tal exatamente na medida em que é capaz de
permanecer em ligação direta com a realidade histórico-social. Em
segundo lugar, a explicação traz algo novo, algo diferente em relação à dobra. O importante não é que seja melhor ou pior: noções
como progresso e retrocesso, vantagem e desvantagem, melhora e
piora são relativas e suscetíveis de se subverter rapidamente uma
na outra. O importante é que a uma concepção estática como aquela
sobre a qual se sustenta a noção de segredo sucede uma concepção dinâmica em que todo o universo é continuamente animado
por micromovimentos incessantes, por deslocamentos insensíveis,
através dos quais se realiza uma efetiva, contínua e quase imperceptível mutação.
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Os campos semântico-conceituais abertos por Deleuze são
quatro. Eles derivam de quatro verbos latinos: volvo, plecto, flecto
e clino. O primeiro, aquele sobre o qual se fundamentam as noções de desenvolvimento e de envolvimento, é volvo, virar, girar
em torno (em grego, eilúo). Ele nos introduz no mundo não do
segredo, mas da voluta, termo que em latim indica não apenas o
ornamento do capitel, mas também a espiral da concha. Como
também nas palavras vulva e volumen, a ideia de proteção e de
defesa é tão importante quanto a de enrolamento e desenrolamento. Isso é ainda mais evidente no grego eíluma, que quer dizer
cobertura. Ao invés de seguir à procura de uma transparência absoluta, é preciso interrogar-se sobre os aspectos positivos implícitos no percurso dos caminhos labirínticos da experiência e do
pensamento. No movimento em espiral, o caminho não é retilíneo,
e no entanto existe.
O segundo campo semântico-conceitual é aquele do plecto,
do qual, justamente, deriva plica. Aqui a ideia fundamental é a de
tecer (do grego pléco, entrelaçar) e, portanto, a de tecido. O conceito de dobra nos introduz numa ideia de verdade como algo
essencialmente vestido. Filosofar é como descascar uma cebola:
debaixo da casca tem outra casca e assim por diante. Debaixo do
vestido tem a pele, mas a pele ainda é tecido. Sob esse ponto de
vista o pensamento da dobra se move numa direção oposta em
relação a uma obra que, junto com aquela de Debord e de Deleuze,
parece marcar o declínio do niilismo no clima filosófico atual, a
Kritik der zynischen Vernunft de Peter Sloterdijk. Para este autor,
de fato, o remédio para o cinismo moderno deve ser procurado
no cinismo antigo, em um retorno à natureza ou até mesmo à
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nudez da existência animal. Mas o pensamento da dobra é um
pensamento da veste, do amplexus e da complexio, do abraçar e
tecer junto coisas diferentes.
O terceiro campo semântico-conceitual é o do flecto, dobrar,
flexionar, curvar. A inflexão é para Deleuze o processo graças ao qual
a flutuação da norma substitui a permanência da lei: no lugar das
separações claras se impõe um continuum que através de transições
insensíveis opera uma mutação sem saltos nem bruscas variações.
A inflexão é uma modulação, um plasmar, um modelar em modo
contínuo e perpetuamente variável. No polo oposto da inflexão encontra-se a rigidez, o endurecimento, a esclerose, a inflexibilidade.
O quarto campo semântico-conceitual é o do clino (igual
ao grego clíno): ele remete à noção de transversalidade, mas também à relação que se estabelece entre dois planos, entre o alto e o
baixo. Klímax em grego quer dizer escada: trata-se da gradatio
latina, que tem o sentido retórico de elevar progressivamente o
estilo, repetindo a palavra precedente e corrigindo-a com outra
mais forte. Inclinatio é a derivação, a formação das palavras.
Clinamen é a palavra com a qual Lucrécio descreve no quadro da
filosofia epicurista o encontro entre os átomos que dá vazão à
formação do mundo. É importante observar que essa declinação
em relação ao movimento vertical é a mínima possível: o movimento do clinare ocorre através de deslocamentos que são infinitamente pequenos. A efetividade é inversamente proporcional à
amplitude do distanciamento da verticalidade da queda.
Esses quatro campos semântico-conceituais concordam
entre si no delinear uma concepção do mundo em que o aspecto
da continuidade prevalece sobre o da fratura. Essa continuidade,
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todavia, é concebida em modo dinâmico, como uma passagem,
um trânsito de uma determinação a outra do ser. Para Deleuze,
Leibniz foi o grande pensador da dobra, aquele que deu o destaque máximo à fluidez da matéria, à elasticidade dos corpos, aos
recessos e aos esconderijos do ânimo. Sob esse aspecto, Leibniz
não é o fundador da metafísica wolffiana, nem o precursor do
idealismo alemão, mas o pensador barroco por excelência, no qual
a imensa sutileza das coisas se desdobra e a luz se refrata em uma
infinita riqueza de cores.
Enquanto o pensamento do segredo enfatiza ao máximo
os aspectos negativos da realidade e descreve um mundo em que
triunfa o nada, o pensamento da dobra nos propõe a imagem de
um mundo não vazio, mas pleno, ou melhor, pleníssimo, apinhado, repleto, no qual há um máximo de matéria por um mínimo
de extensão. A metáfora da dobra significa exatamente essa plenitude: tal é o mundo barroco, em que todas as coisas são dobradas
para ocupar menos espaço possível; tal é o mundo contemporâneo, em que tudo já se dá no presente, tudo está disponível aqui e
agora, e nada falta. Assim Deleuze leva adiante e desenvolve a justa
intuição de Debord, que em A sociedade do espetáculo havia sublinhado o caráter antecipatório da experiência barroca em relação à idade contemporânea, dando-lhe uma avaliação positiva.
Vinte anos depois, no mundo do segredo que ele esboça não há,
porém, mais espaço para a herança barroca. O fio condutor do barroco é retomado por Deleuze, que nos introduz num pensamento
do pleroma e da plenitude. Entre o pensamento do segredo e o pensamento da dobra há uma clara contraposição sobre esse ponto: o
primeiro considera a sociedade do espetáculo integrado a pior de
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todas as sociedades já existentes, o segundo pensa que a pior realidade é sempre melhor que a melhor utopia, exatamente porque
é, ao menos, uma realidade. Se o mundo existe – escreve Deleuze
interpretando Leibniz – não é porque seja o melhor, é antes o
inverso, é o melhor porque existe, porque é aquele que existe.
O pensamento da dobra é por assim dizer pós-niilista: ele toma
como sua a mentalidade estoica, segundo a qual alguma coisa, como
quer que seja, é sempre melhor que nada. Isso, todavia, não deve
ser entendido como uma justificativa da renúncia e da conformação, mas, exatamente ao contrário, como a premissa de um pensamento que quer permanecer a qualquer custo em ligação direta
com a realidade.
Tanto Debord quanto Deleuze atribuem à dimensão do
presente um papel fundamental em relação ao passado e ao futuro, mas também sobre este ponto a avaliação é oposta. Para Debord
a sociedade do espetáculo integrado nos introduz em um presente perpétuo que abole a experiência da história, pois inflacionando
a importância da novidade destrói qualquer critério de medida.
Para Deleuze a primazia do presente é, ao contrário, uma característica da mentalidade barroca, que está ligada a um modo de sentir ao mesmo tempo antinostálgico e antiutópico; nessa tonalidade afetiva, ela se encontra, paradoxalmente, de um lado com a
experiência poética e artística do século XIX, de outro com a experiência do Maio francês: a razão filosófica se solda assim com a
razão poética e a razão social em um presente carregado de passado e impregnado de futuro.
O pensamento da dobra é tão estranho à hermenêutica
quanto o é ao utopismo. A explicação é essencialmente diferente
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da interpretação porque é evento, é um novum pré-figurado pela
dobra, mas irredutível a ela. Na filosofia de Leibniz não há nenhum
dualismo entre sujeito interpretante e objeto interpretado: a alma é
expressão do mundo, porque o mundo está contido na alma. O
fechamento da mônada, o fato de ela não ter nem portas nem janelas, não significa de forma alguma estranheza da mônada em relação ao mundo, porque o mundo já está na mônada. Os muitos universos implícitos nas mônadas são apenas um único universo considerado sob os diferentes pontos de vista de cada mônada. De tal
forma Leibniz atribui um significado novo, essencialmente mundano, à experiência do recolhimento que tem os seus precedentes
na mística renana (Meister Eckhart e Johannes Tauler) e na
espiritualidade espanhola do século XVI (o recogimiento). Nessa
transposição mundana de uma experiência espiritual Leibniz é verdadeiramente barroco. Tal mundanização é, porém, exatamente o
contrário da frivolidade e do efêmero. Ela considera ao máximo o
que protege, o que envolve, o que resiste e permanece.
O enigma além do segredo e da dobra
A noção de enigma constitui o ponto de chegada ao qual
conduz o aprofundamento das problemáticas do segredo e da
dobra. Em que o enigma é diferente do segredo? Como escreve
Charles Malamud, o segredo nasce da vontade não de proteger o
mistério, mas de criar um; o enigma obtém a sua força da tensão
interrogativa que suscita. Diferentemente do segredo que se dissolve na sua comunicação, o enigma tem a capacidade de se explicar
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simultaneamente sobre inúmeros registros de sentido, todos igualmente válidos, e abre um espaço suspensivo intermediário que
não é destinado a ser preenchido. No fundo o segredo se baseia
sobre uma concepção simplificadora da realidade e sobre a intenção subjetiva de velá-la, de mascará-la, de ocultar a sua evidência:
ele implica a existência de alguém que seja o seu detentor e saiba
manter um completo domínio da sua administração através de
processos de comunicação a um pequeno número de confidentes
e de sinalização à grande maioria dos excluídos. A partir do momento em que o segredo foge ao controle do seu detentor, porque
a realidade se lhe apresenta sob uma dimensão mais complexa,
articulada, multifacetária e contraditória do que imaginava, passa-se a um outro horizonte, que é aquele do enigma. Por exemplo,
no quadro da sociedade do espetáculo integrado, delineada por
Debord, isso ocorre quando os governantes se encontram no ponto
de confluência de muitíssimas tramas que em grande parte fogem
ao controle deles: uma sociedade em que ninguém sabe mais o que
acontece realmente, na qual é impossível calcular exatamente o preço da produção do que quer que seja, na qual a incerteza é organizada em todo âmbito, ainda pode ser definida como uma sociedade
do segredo? Esta é, na realidade, uma sociedade do enigma.
(continua...)
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Título Enigmas: egípcio, barroco e neobarroco na sociedade
e na arte
Autor Mario Perniola
Tradução Carolina Pizzolo Torquato
Revisão técnica Susana Scramim
Assistente editorial Alexsandro Stumpf
Assistente administrativo Neli Ferrari
Secretaria Alexandra Fatima Lopes de Souza
Divulgação, distribuição e vendas Neli Ferrari, Jocimar Vazocha Wescinski,
Maiara Demenech e Marta Rossetto
Projeto gráfico Alexsandro Stumpf e Ronise Biezus
Diagramação Ronise Biezus
Capa Alexsandro Stumpf
Revisão Jakeline Mendes Ruviaro
Formato 16 X 23 cm
Tipologia Minion entre 9 e 15 pontos
Papel Capa: Cartão Supremo 250 g/m2
Miolo: Pólen Soft 80 g/m2
Número de páginas 223
Tiragem 1.000
Publicação julho de 2009
Impressão e acabamento Gráfica e Editora Pallotti – Santa Maria (RS)
Argos – Editora Universitária – UNOCHAPECÓ
Av. Attilio Fontana, 591-E – Bairro Efapi – Chapecó (SC) – 89809-000 – Caixa Postal 1141
Fone: (49) 3321 8218 – [email protected] – www.unochapeco.edu.br/argos
SOBRE O AUTOR
Mario Perniola: Nasceu em Asti, na Itália, em 20 de maio
de 1941. É relevante na sua formação o estudo sobre as vanguardas literárias, artísticas e políticas do século XX. Professor de Estética na Università di Roma, elegeu como eixo de sua produção a
reflexão filosófica sobre as questões que emergem da experiência
contemporânea. Dirigiu as revistas Agaragar, Clinamen e Estetica
News. Atualmente dirige a revista Ágalma. Rivista di studi culturali
e di estetica. É autor de Il metaromanzo (1966), L’alienazione artística (1971), Bataille e il negativo (1977), Dopo Heidegger (1982),
La società dei simulacri (1983), Presa diretta. Estetica e política
(1986), Transiti (1989), Disgusti. Nuove tendenze estetiche (1999),
Ritual Thinking (2000), Del sentire (2002), Contro la
comunicazione (2004). No Brasil, teve publicados seus títulos:
Repensando o ritual: sexualidade, morte e mundo (2000), Sexappeal do inorgânico (2005), Contra a comunicação (2006) e o
livro Os situacionistas (2009).
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