Exilion - Ponto de vista de Belmorn

Transcrição

Exilion - Ponto de vista de Belmorn
U
Os Saqueadores
ma bela manha de terça-feira. O sol matinal aquecia o orvalho que cobria o telhado das casas de
Trondar, a capital de Exilion.
Era uma semana especial, pois se tratava do aniversário do segundo filho do Rei Erkand II, Guillian. A
cidade estava num alvoroço desde cedo, porque o rei promovia festejos em nome de seu filho. O pátio central da
cidade encontrava-se repleto de tendas de jogos, vendedores ambulantes, mercadores de terras distantes, e as
tavernas e estalagens estavam lotadas.
O dia era realmente especial. Dia de muitos acontecimentos, que iriam mudar o rumo dos ventos de
Exilion.
Belmorn estava mal-humorado na frente dos portões da Torre Arcana de Trondar. Seu velho mestre não
lhe deu mais do que uma mísera esmola para sua viagem. “Você deveria estar grato, Belmorn”, disse o velho.
“Estou deixando-o partir com seus pertences que estima, além do seu grimório”. Ultrajante!, pensava Belmorn.
Ao invés de focar minhas atenções no maldito Troll, terei de mendigar mundo afora por ajuda... Blah! Belo
teste, velho Belfanor.
A rua que descia da torre em direção ao centro da cidade estava muito lamacenta e escorregadia devido
aos três dias seguidos de chuva. As pessoas que por ali transitavam eram, em sua grande maioria, plebeus e
trabalhadores, que caminhavam com dificuldade pelas tábuas colocadas nas ruas embarradas, sem se importar
em se sujar em demasia com barro. Acho que está mais do que na hora do nosso nobre rei Erkand II olhar para
essas ruas imundas. Belmorn estava muito irritado ao descer pela rua e ver seus pés se camuflarem em meio à
lama.
A rua pela qual o mago descia era um pouco mais aberta do que as demais, pois a Torre Arcana
localizava-se numa região mais afastada, e ali não se encontravam tantas casas e estabelecimentos. Belmorn
estava caminhando vagarosamente pelas ruas, indo em direção ao Pátio Central, pois lá seria fácil encontrar
rumores sobre Trolls, afinal, havia muitos viajantes por ali. Quando sua visão começou a vislumbrar as grandes
armações que haviam sido levantadas no pátio, pessoas agrupadas por todos os lados e vendedores gritando,
Belmorn sentiu um baque no seu pé esquerdo, seguido de muitos estalidos de metal e uma voz chorosa...
- Maldita rua lamacenta... – praguejava um jovem rapaz, juntando uma quantia razoável de ferraduras
que haviam se espalhado pelo chão, até os pés de Belmorn, e as recolocava em um carrinho de mão castigado
pelo uso.
O jovem mago fitou-o com olhos semicerrados, enquanto o outro rapaz acabava de juntar todas as
ferraduras.
- Mil desculpas, senhor... – O rapaz, apesar de sua aparência plebeia e suja, era muito polido em sua
fala. – Estou com muita pressa e as ruas estão um caos – ele ofegava um pouco ao falar e secava o suor, que
escorrida pelos lados da testa, com a mão.
Belmorn hesitou antes de responder, mas cedeu à sinceridade do rapaz.
- Está tudo bem. Só tenha mais cuidado da próxima vez! – O mago tentava tirar o excesso de lama da
bota esquerda, batendo-a de lado no outro pé.
- Bem, preciso ir andando. Tenho que entregar estas ferraduras para meu pai urgentemente! – O Rapaz
levantou com facilidade o carrinho de mão com uma enorme pilha de ferraduras e partiu na direção oposta da
rua que Belmorn andava.
Vagarosamente, o mago foi chegando mais perto das armações em volta da grande praça central,
quando percebeu algo interessante: Um arauto real estava em um pequeno palanque, de um tamanho de uma
caixa, e um grupo de pessoas, com vestimentas de viajantes, alguns com armas a vista, o circundava.
- Aproximem-se! Aproximem-se! – Gritava o arauto real. – Aproximem-se todos aqueles que gostam de
aventura, que honram seu rei, ou que queiram ganhar um bom dinheiro extra.
Belmorn se acomodou em meio à multidão, de forma que conseguisse ouvir bem o arauto, e que não se
misturasse muito com o resto dos observadores.
- Como estão vendo, o rei está comemorando o aniversário de seu filho mais novo, Guillian. E como
também podem ver, estão acontecendo muitos festejos. – O Arauto falava de forma clara e com muita calma. –
Porém, temos algumas perturbações que precisam ser tratadas, e, aos interessados em aventura, dinheiro ou
honra, peço que se dirijam à taverna O Grão de Trigo. – O Arauto esticou o braço na direção da grande taverna,
localizada na frente do pátio central. – Lá, falem com o guarda real encarregado.
Logo que a multidão foi se dispersando, um grupo de aproximadamente dez pessoas foi em direção à
taverna. Belmorn ainda refletia os rumos que deveria seguir, quando notou o mesmo rapaz das ferraduras de
minutos atrás, olhando para o arauto e para o grupo de pessoas que seguia para a taverna. Intrigado, o mago
aproximou-se do rapaz.
- Achei que estava com pressa...
O rapaz fitou Belmorn, e, parecendo reconhecê-lo de momentos antes, esboçou um sorriso simpático.
- Pois sim. Meu pai irá me matar pela demora, mas fiquei curioso com vossa presença. – Seu olhar
examinava o grimorio que o mago carrega na cintura.
- Hmmm. Entendo. Isso é um grimório, meu rapaz, não entendo o seu olhar de espanto. – Quando
Belmorn acabou a frase, ele percebeu que não só o jovem, mas boa parte das pessoas que ali transitavam,
observavam-no, intrigados. Não era por menos: ele usava vestes exóticas, uma camisa de seda marrom e um
casaco de couro justo verde-oliva, os dois abertos no peito até a metade do abdômen, uma calça preta de linho
folgada, presa dentro de suas botas de viajem, e um robe desgastado também verde-oliva, amarrado na cintura.
- Então... – O rapaz falava com certa hesitação. – Então quer dizer que o senhor é um mago da Torre
Arcana?
- Sou sim. Estou em minha romaria arcana, no qual os magos de Trondar provam seu valor e poder,
tornando-se, assim, MAGOS! – Belmorn disse a última palavra com grande emoção. – Mas você voltou apenas
para me observar? – O mago levantou uma sobrancelha.
- Não exatamente. Bem, quando você se distanciou, eu parei para ver se você era um mago mesmo.
Porém, acabei por ouvir o discurso do arauto do rei. – O rapaz parecia eufórico.
Belmorn soltou um suspiro e, decidido, virou-se em direção ao Grão de Trigo. – Até mais, meu jovem.
O jovem soltou o carrinho de mão rapidamente e correu à frente do mago, fazendo-o parar.
- Espere! – O rapaz sorria, como se aquilo tudo o deixasse feliz de alguma forma. – Por acaso você está
indo à taverna atender ao pedido do rei?
- Bem, eu... – Belmorn começou a falar, mas foi interrompido.
- Espere-me aqui! Eu não demoro! – O jovem voltou correndo ao carrinho de mão e, numa guinada,
levantou-o e partiu em disparada pela rua.
***
A taverna O Grão de Trigo era uma construção grande de dois andares, sendo o térreo construído em
pedra e o andar superior em madeira. No andar inferior, encontram-se mesas e compridos bancos, além do
balcão com cadeiras altas e rústicas. Do lado esquerdo de quem entrava, uma fileira de barris servia de depósito
para a cerveja e o vinho a serem servidos, e, nos fundos, atrás do balcão, uma cozinha espaçosa parecia
funcionar em tempo quase que integral. O andar superior era destinado para os quartos de hospedagem.
Belmorn e o jovem rapaz avistaram logo que entraram uma mesa grande, reservada para a guarda da
cidade e o encarregado do qual o arauto falou. Nesta mesa estavam sentadas algumas pessoas do grupo que
estava lá fora com o mago, além de mais alguns rapazes mal encarados, um pouco mais afastados.
- Ah! Já ia me esquecendo – disse o rapaz das ferraduras. – Meu nome é Maugor. Sou aprendiz de
ferreiro. Trabalho com meu pai.
Procurando um lugar para sentar-se à mesa, o mago apenas fez um aceno com a cabeça. Dando a volta
pela mesa, Belmorn achou um espaço livre entre um anão com um manto negro, e um jovem desgrenhado com
uma camisa de seda branca encardida, uma calça de linho suja e folgada, e uma barba por fazer, o que dava a ele
um ar de vagabundo. Maugor ficou em pé, escorado na parede, logo atrás de Belmorn.
O clima na mesa estava um pouco tenso. Os guardas pareciam estar com pressa e era notável o
desconforto do rapaz encardido ao lado de Belmorn em relação aos sujeitos mal encarados que estavam em pé,
mais afastados da mesa, principalmente com o que parecia ser o “cabeça” do bando. Um sujeito com dentes
sujos, bigode grande e barba mal aparada, e um leve corselete de couro. Ele brincava com uma adaga, tocando-a
de uma mão a outra.
- Bem, não irei esperar mais – Disse o encarregado da guarda. – Temos aqui um bom número de pessoas
e esta missão não pode se tornar uma expedição. – O guarda escorou os braços cruzados sobre a mesa,
inclinando-se para frente. – Cidadãos aqui presentes, creio que se vieram até aqui, é por que desejam o trabalho,
correto? – Um uníssono “sim” ressoou no grupo. – Como podem ver, os festejos do aniversário de Guillian
durarão duas semanas, e ainda temos o festejo real, que será na última delas. Estamos enfrentando um problema
com os mantimentos desta festa. O rei encomendou suprimentos da vila Alto do Salgueiro, os quais eram para
ter chegado há três dias. Precisamos que os interessados vão até Alto do Salgueiro, e descubram o que aconteceu
com a mercadoria, e a tragam para Trondar.
O homem mal encarado deu um passo à frente e rugiu em direção ao guarda.
- Cê fala demais, guarda. Quanto é que vão pagar por isso? Hein? Fazer esse serviço de entregador é
chato pra burro! – O sujeito espiou em direção ao rapaz encardido.
- Bem, os interessados devem apresentar-se hoje, após a meia-hora, na guarda, e procurar o capitão
Targos Stirk. Ele irá passar a vocês todos os detalhes minuciosos. – O guarda fez um sinal pra os outros
soldados, que começaram a se mobilizar para a retirada. – E para você, Brian... – O guarda apontou o indicador
para o rapaz encardido. – Não terá escolha, a menos que queria tirar umas férias na prisão, garanto-lhe que seria
muito reconfortante para você! – O guarda soltou uma garalhada e foi caminhando em direção à saída da
taverna.
Brian se levantou distraidamente e falou a meia altura – Não, meu caro. Farei o que você diz. Não lhe
darei o prazer de ter Brian como seu hóspede – um sorriso enigmático estava estampado no rosto do rapaz.
- Maldito! – Berrou o sujeito mal encarado. – Cê vai pagar por suas trapaças, meu jovem. – Ele e seus
camaradas começaram a sentar-se à mesa. – É bom ficar esperto... Cedo ou tarde pode acontecer algo contigo e
cê num vai gostar não! – O bando caiu em gargalhadas.
O sujeito que o mal encarado chamava de Brian se sentou do outro lado da mesa, de frente para o
fanfarrão, e, com um sorriso malicioso, tirou alguns dados de madeira do bolso de sua calça.
- Claro meu, bom homem. – Disse ele, sacudindo os dados na palma de sua mão. – Posso lhe pagar
agora, se quiser. E digo mais: o que acha de jogar um jogo, afinal, sei que você adora isso. Assim, pode até
ganhar um extra... O que me diz?
O anão que estava sentado ao lado de Belmorn pareceu desconfortável com algo e se levantou da mesa,
respirando pesadamente e ficando mais afastado de onde estava, parando logo atrás de Brian.
- Ah! Você é atrevido, sabia? – Gritou o mal encarado, e logo em seguida, baixando o tom da voz, abriu
um sorriso. – Vou jogar, vou ganhar, e vou te depenar, seu maldito!
Os comparsas do brutamonte começaram a gritar e bater na mesa feito gorilas enjaulados. Brian deu os
dados para o sujeito, o qual começou a balançá-los em sua mão. – Vamo lá! – Ele jogou os dados na mesa e
logo em seguida olhou nos olhos de Brian. – Quero ver cê me ganhar agora, malandrão! – Os gorilas em sua
volta voltaram a berrar e bater na mesa.
Brian esticou seu braço em direção aos dados, olhando o bom resultado que o rufião obteve. No instante
em que ele ia catar os dados, e aproveitando a algazarra que o pessoal estava fazendo à sua volta, ele trocou os
dados por outros semelhantes que tinha no outro bolso da calça. Apenas Belmorn e o anão perceberam o ato, e
estes trocaram olhares alarmantes. Maugor estava curioso com o que os homens jogavam e observava a cena
atenciosamente.
- Bem, agora é minha vez. Que a sorte esteja do meu lado! – Brian soltou os dados sobre a mesa. Estes
rolaram até a frente do rufião e pararam, fazendo o homem berrar tão alto que seu rosto ficou vermelho. Brian
havia superado seu resultado.
- O dado trancou na mesa! – Ele batia com as mãos na mesa enfurecidamente. – Joga de novo,
desgraçado! Cê vai jogar de novo, eu tô dizendo!
Brian, calmamente e sem dizer nada, catou os dados e jogou-os de novo.
- Bem, agora toquei na região mais lisa da mesa... E caiu dois seis! – Rapidamente, Brian pegou os
dados de volta, segundos antes de o rufião tentar virar a mesa para o outro lado.
- Agarrem ele! Peguem esse filho duma rameira! Vou descascar o couro dele e pegar meu dinheiro! –
Quando todos estavam cercando Brian, o anão ficou ao seu lado, como um protetor, e Belmorn apenas se
levantou da mesa, afastando-se vagarosamente. Maugor foi para trás do anão. Aparentemente, não iria deixar os
dois sujeitos levarem uma surra sozinhos.
Quando o cerco iria se fechar para cima de Brian, o mesmo, bem tranquilamente, encolheu os ombros e
disse numa voz tranqüila:
- Meu bom homem, ninguém aqui quer confusão. Pague o que apostou comigo, e os guardas ali atrás
não precisarão prender você por ser um arruaceiro e um brigão de taverna. – Brian apontou para três guardas
que haviam acabado de entrar na taverna.
O Rufião tocou uma pequena algibeira e a arremessou na face de Brian, que apenas esquivou-se e
aparou-a com as costas do pé direito, antes mesmo que a algibeira caísse no chão. Guardando-a no bolso da
calça e espanando as mãos, ele voltou a sentar-se à mesa.
- Bem, companheiros. Como podemos ver, nós seremos camaradas de viagem. Deixem-me apresentarme: Chamo-me Sullivan. – Após apresentar-se, Sullivan fez uma reverência às pessoas que estavam ali na mesa.
- Achei que seu nome fosse Brian. Bom, chamo-me Maugor. – O jovem ferreiro fez uma reverência para
todos.
- Ah! Sim, Brian. Esta é outra história, não é, meu querido anão? – Sullivan fez um sinal positivo para o
anão que estava sentado ao seu lado agora.
- É, meu rapaz, e acho melhor você acalmar um pouco a sua ganância antes que ela acabe com sua vida.
– O anão era bem educado. Tinha uma voz rouca e grave como um tambor. Seu cabelo era ruivo e caía solto
pelas costas, e sua barba era uma longa trança vermelha. Como cobertura de sua velha cota de malha, uma capa
negra como a noite e seu grande escudo preso nas costas. Belmorn não tinha percebido antes, mas ele possuía
um martelo de guerra atado à cintura e o símbolo do deus Vorkanor, um livro dourado aberto, pintado no escuto.
– Chamo-me Thokul Ogrecrush. Sou um nobre sacerdote de Vorkanor. – Belmorn não era religioso, e como
passou a maior parte de sua vida na Torre Arcana, ele não compreendia bem e sequer demonstrava interesse por
padres.
- Chamo-me Belmorn Tarmikos. Sou um mago da Torre. – Belmorn se apresentou e, sem muitas
delongas, sentou-se ao lado de Maugor, que estava de frente para Sullivan. Ele pôde notar que as pessoas
ficaram olhando para ele intrigadas quando ouviram a palavra MAGO, mas ele não fez questão de dar-lhes
atenção.
Após todos terem se apresentado, Thokul e Sullivan chamaram a atendente da taverna e pediram uma
refeição. Maugor se sentia deslocado, afinal, nunca tinha frequentado muito as tavernas da cidade; passava
maior parte do seu tempo ajudando seu pai na forja. Belmorn, que não costumava comer muito em suas
refeições, pediu apenas uma jarra de vinho com mel, um pouco de frango e queijo.
Assim, todos fizeram o seu almoço, trocaram algumas palavras sobre seus afazeres e histórias, e
partiram para a guarda da cidade, na qual esperavam obter os detalhas da busca.
***
A Fortaleza da Guarda era uma construção muito parecida com um pequeno forte. Possuía um grande
muro e um grande portão de ferro, que levava para um grande pátio com algumas arvores e arbustos. No lado
direito de quem entrasse, encontravam-se, enfileirados, muitos bonecos de treino para os espadachins e
arqueiros da guarda. Sentinelas atentos percorriam os passadiços da murada, e arqueiros e besteiros atentos
ficavam de prontidão nas torres do forte.
Quando os companheiros atravessaram os portões, Maugor ficou extremamente excitado com o interior.
Provavelmente, seu desejo por aventuras é muito mais forte do que seu desejo por ferraduras. Um dos guardas
do portão escoltou a comitiva até a sala de Targos, a sala do Capitão da Guarda. No momento em que entraram,
o comandante não estava presente e um dos guardas que estavam por ali parecia tentar intimidar Sullivan.
- É, meu rapaz. Você quis fazer seus joguinhos nas tavernas, ir a bordéis sem pagar, e agora terá que
escolher entre a prisão ou viajar por terras inóspitas, correndo risco de vida contra saqueadores que nem você...
– O guarda ficou a gargalhar, enquanto Sullivan apenas lhe prestou um sorriso sarcástico.
No momento em que parecia que os guardas iriam começar a pressioná-lo, o Capitão da Guarda entrou
em sua sala, fazendo com que os guardas engolissem seus risos e frases de ameaça. Targos Stirk era um homem
jovem para seu cargo. Loiro, de cabelos compridos, uma barba levemente cerrada, dando-lhe uma expressão
séria. Ele caminhou até sua mesa e fez um sinal para um dos guardas, que acenou com a cabeça e saiu
rapidamente da sala.
- Bem, amigos. Vejo que gostaram da ideia de ganhar uma boa quantia de dinheiro, ajudando o Rei com
seus problemas. – Sua voz era calma. – Na verdade, nem todos gostaram da ideia, não é, meu caro Sullivan?
- Sim, sei que solicitaram meus serviços, nobre capitão, e aqui estou para realizar os desejos de nosso
muitíssimo amado Rei. – Sullivan fez uma reverência, sempre mantendo seu sorriso despreocupado.
- Ora, não sabia que amava tanto assim vosso Rei. Muito bom, meu caro, que isso sirva de exemplo. –
Targos falou as últimas palavras olhando nos olhos de Sullivan. – Bom, como meus guardas devem lhes ter dito,
sou o Capitão da Guarda Real de Trondar, e um dos Conselheiros do Rei. Chamo-me Targos Stirk, e, como já
sabem, o Rei está precisando de alguém que não seja da guarda real para ajudar neste problema relativo aos
suprimentos de sua celebração.
- Hm... – Belmorn ponderou por um instante. – Mas imagino que não é somente uma busca de
suprimentos em Alto do Salgueiro, estou certo? Afinal, se assim fosse, não haveria necessidade de tanta
comoção... – Belmorn estava desconfiando de que havia algo mais grave do que uma simples carga atrasada.
Targos levantou-se da sua cadeira, bebericou um copo d’água e prosseguiu.
- Sim, meu rapaz, há mais coisas por trás deste atraso de mantimentos. – Voltou a encher seu copo. –
Senhores, temos informações de uma forte ação de saqueadores na estrada que leva a Alto do Salgueiro.
- Mas estas informações são seguras? As pessoas de vilarejos pequenos costumam criar boatos
espalhafatosos para qualquer coisa que não compreendem. – No passado, Belmorn havia feito uma rápida
viagem, em uma pequena vila perto de Trondar. Ele tinha ido com alguns outros aprendizes da torre para buscar
um novo lote de grimórios e escutara muitas histórias bizarras dos plebeus, sobre ratos gigantes, vampiros e
lagartos assassinos.
Targos soltou uma leve risada, seguida de um suspiro. – Ah! Sim, meu jovem, mas esta que lhes conto
infelizmente é verdadeira. Temos aqui um homem que nos serviu como batedor, e nos trouxe as informações
cruciais para este caso. – Targos apontou para a porta. O guarda que havia saído anteriormente acabara de
regressar com um sujeito esquisito. O homem que estava presente ali exalava um cheiro misto de folhas e terra,
usava uma surrada capa marrom com vestígios de plantas, e uma armadura simples de couro. Seu rosto era
magro e tinha uma pequena barba pontiaguda. Dois riscos escuros adornavam suas maças do rosto, parecendo
uma espécie tinta para camuflagem. Seu cabelo era curto e da mesma cor de seus olhos castanhos.
- Este homem se chama Caedmon. Ele nos prestou um grande serviço nas estradas ao sul de Trondar. –
Targos gesticulou para Caedmon comparecer ao seu lado.
- Boa tarde, companheiros. – Sua voz era enérgica, porém gentil. – As notícias que tenho são as
seguintes. Durante minhas patrulhas pelo Bosque Cinzento, próximo ao vilarejo de Beiral, de onde venho,
encontrei trilhas estranhas, pertencentes a criaturas que não pude reconhecer. Elas levaram a uma árvore, na
qual estava atado o cadáver de um homem. Ele possuía feridas de armas rudes, talvez lanças, e faltavam-lhe
alguns dedos da mão esquerda. Patrulhei durante algum tempo e descobri que este homem havia sido capturado
na estrada, vindo de Alto do Salgueiro para Trondar. No entanto, as chuvas tornaram impossível seguir o rastro
dos assassinos, então resolvi vir para cá para relatar o caso.
Targos acariciava a barba pensativamente. – A descrição dada por Caedmon bate exatamente com a de
Onar Velhurt, o emissário do Rei responsável por trazer os mantimentos de Alto do Salgueiro.
- Targos, tendo estas informações, imagino que o senhor já tenha elaborado um plano. – Maugor, apesar
de jovem, parecia ser um jovem bem astuto e sábio.
- Sim. Na verdade, é um plano bem simples. Nós lhes daremos uma carroça cheia de feno, e vocês irão
se passar por comerciantes, transportando mercadorias.
- Entendo. Você quer que nós sirvamos de cobaias para os tais saqueadores, e, assim, descobrir quem
são, onde estão e recuperar o possível furto de suprimentos reais. – Belmorn adiantou-se a Targos, antes que
este procedesse com sua fala.
- Bem colocado, rapaz. Aliás, quais são vossos nomes? – Targos realmente era um homem muito
educado. – Com exceção de você, é claro, Sullivan.
- Chamo-me Belmorn Tarmikos, da Torre Arcana. – Belmorn, apesar de se apresentar, não fez nenhuma
reverência, nem esticou sua mão para um aperto. Permaneceu de braços cruzados, com sua arrogância sempre
predominante.
- Ora, ora. Bem que notei. Não é comum termos magos andando pelas ruas de Trondar, apesar de termos
a Torre Arcana aqui. Sua ajuda será muito valiosa.
- Eu sou Maugor, aprendiz de ferreiro. – Maugor pôs a mão no peito e fez uma longa reverência a
Targos.
- E eu sou Thokul Ogrecrush, servo de nosso grande deus Vorkanor. – O anão fez uma reverência a
Targos e brandiu rapidamente seu símbolo sagrado, ostentando o livro de seu deus.
- Companheiros, infelizmente, peço que vocês partam amanhã na primeira luz do dia. O tempo está
curto para trazermos de volta estes suprimentos e o Rei está muito impaciente. Muitos problemas resolveram
aparecer de uma vez só.
- Perdão, Targos, mas e quanto ao nosso pagamento? – Sullivan esfregava as mãos rapidamente, como
se quisesse aquecê-las.
- Ah! Sim, o pagamento. – Targos fez um olhar severo para Sullivan e escorou as duas mãos na mesa. –
Você deveria ficar grato por não ser preso, Sullivan, afinal, não são todos os arruaceiros que recebem essa
chance.
Sullivan pigarreou.
- É, meu amigo. E aconselho o senhor a ficar longe daquela taverna. O taverneiro quer sua cabeça por
ter deitado com sua mulher. Mas, lhe respondendo: o pagamento será feito quando regressarem, cinquenta
moedas de ouro. Passem aqui na aurora para pegarem a carroça. Agora, preciso continuar meus afazeres, se me
permitem. Nunca sobra muito tempo para o Capitão da Guarda, não é? – Targos sentou-se e começou a trabalhar
em alguns papéis.
***
Era preciso somente coletar informações sobre os Trolls, talvez juntar uma boa quantia de ouro, e, com
sorte, algum “ajudante”. Mas as coisas pareciam não ser tão simples assim. O grupo de mercenários com os
quais estava envolvido não proporcionava essas coisas a Belmorn. Sullivan era astuto, de pensamento rápido,
dedos ágeis, mas não era um homem de fácil motivação. Belmorn não saberia, ainda, como o fazer ajudá-lo em
sua busca. Maugor era forte e leal, mas era um rapaz muito inexperiente no mundo. Thokul, o anão servo de
Vorkanor, era muito sábio, possuía algumas habilidades interessantes, mas um sacerdote não iria viajar com um
mago atrás de um Troll, a menos que fosse ludibriado a isso. Por fim, Caedmon, o mateiro de Beiral, era a
última pessoa que Belmorn escolheria para viajar. O mago não gostava nem um pouco do mateiro, achava-o um
vagabundo errante das florestas, e gostava menos ainda de sua índole “caridosa”, que o tornava irritante em
diversas ocasiões. E o pior de tudo, ninguém sabia nada sobre Trolls. Só restava torcer para que esta viajem lhe
oferecesse algo para sua busca.
A princípio, a missão era simples. Se existisse mesmo saqueadores, tal como Caedmon relatou, seria
muito provável que Belmorn e os outros seriam atacados durante a viagem. Maugor ficou encarregado de
conduzir a carroça com feno. Belmorn e Sullivan ficaram atrás na parte traseira do veículo, e Caedmon e Thokul
seguiam cada um de um lado.
O mago havia se hospedado na humilde residência de Maugor, enquanto os outros ficaram alojados na
taverna O Grão de Trigo. O Pai de Maugor, Enkor, um velho ferreiro de Trondar, era um sujeito muito
amigável. Belmorn ficou amigo do senhor rapidamente, e presenciou inclusive, Maugor receber um grande
incentivo para aventurar-se mundo a fora, ganhando um escudo especialmente feito pelo seu pai quando mais
novo.
Como previsto, partiram logo no amanhecer, e a viagem pela estrada foi tranqüila. Apenas encontraram
alguns mercadores comuns indo em direção a Trondar durante o dia todo, e eles nada sabiam sobre os
saqueadores e nem perceberam qualquer atividade suspeita. Durante o dia, Belmorn passou na carroça, ora
comendo frutas e fumando seu cachimbo, ora estudando seu grimório ou tendo rápidas conversas com Sullivan.
Ao anoitecer, chegaram a uma grande ponte de madeira sobre um rio que cruza a estrada real ao sul de Trondar,
e ali montaram seu primeiro acampamento. Embaixo da ponte, na margem norte, os aventureiros se
acomodaram na areia, ao leito do rio, e fizeram uma leve refeição. Belmorn, aproveitando a tranqüilidade
momentânea que o lugar proporcionava, iniciou uma rápida averiguação na ponte, examinando sua construção.
O mago tinha aprendido outros conhecimentos interessantes na Torre Arcana, dentre eles arquitetura e
engenharia. Os tutores sempre acharam que Belmorn tinha bom raciocínio para cálculos e observação de fatores
físicos, e lhe instruíram na arte arquitetônica histórica do seu povo e estudos da engenharia.
Caedmon, o Ermitão, como era conhecido em Beiral devido ao seu costume de viver isolado das
cidades, fazia uma rápida patrulha noturna, enquanto o resto da comitiva dormia. A ordem da guarda seguiria
com um revezamento entre o grupo, porém Belmorn foi acordado aos solavancos por Sullivan, antes da sua hora
de guarda. O rapaz fez um sinal para o outro lado da ponte e pediu para fazer silencio. O dia havia sido tranqüilo
para o grupo, mas a noite estava prometendo ser agitada.
Com muita cautela, Belmorn conseguiu avistar, junto à floresta, perto da ponte e da estrada, pequenas
silhuetas em movimento, que pareciam estar indo em direção a ponte, de maneira a pegá-los desprevenidos. O
mago viu Sullivan andar silenciosamente até um dos pilares da ponte. Caedmon, que havia visto os movimentos
soturnos em sua guarda, já estava com seu arco preparado, escorado em um dos pilares da base ponte, oposto a
Sullivan. Maugor estava ajustando seu equipamento e acordando o anão, que parecia ter dificuldades para
acordar. Rapidamente, Belmorn pegou seu grimório e correu para a base da ponte, escondendo-se de quem
viesse por ela.
Em questão de poucos minutos, já podiam ouvir a movimentação das silhuetas sobre a ponte e uma
espécie de murmúrios, em uma língua estranha e esganiçada, lembrando sons de lagartos. De repente, Caedmon
soltou um assovio, mas este não partiu de sua boca, e sim de seu arco, e quem quer que estivesse em sua mira
tombou da ponte, ficando imóvel ao lado da carroça com feno. Ao mesmo tempo em que Belmorn e os outros
olhavam a pequena criatura escamosa estatelada no chão, duas delas desciam aos gritos, uma de cada lado da
ponte, fazendo a volta para descer o declive do solo em direção ao rio e abaixo da ponte, onde estava a comitiva.
Maugor disparou em direção ao ser que descia pelo lado direito da ponte, e engajou em combate,
erguendo seu martelo, disparando golpes na criatura que parecia um lagarto humanóide, com um pequeno chifre
no lugar do nariz, e que tentava dar estocadas com uma azagaia.
Quando o anão Thokul fez menção de ir a auxilio de Maugor, setas de besta ricochetearam na areia e
outras caíram nas águas do rio, revelando a presença de mais criaturas do outro lado do rio.
- Tem mais do outro lado! – O anão gritava para Caedmon – Tente derrubá-los com seu arco!
A movimentação em cima da ponte, acima de Belmorn, parecia intensa, podendo ter um número maior
do que se esperava ali. Sem muito tempo para planejar algo melhor, o mago decidiu criar uma distração para os
atacantes. Abriu seu grimório e rapidamente folhou as grossas páginas do livro, até parar onde queria. Sua mão
direita começou a fazer movimentos cadenciados, sua boca pronunciou palavras místicas, no antigo e misterioso
dialeto arcano de Torken. Em um breve instante, três globos luminosos surgiram na frente de Belmorn, e, como
se houvesse linhas em seus dedos ligando-os às esferas douradas, ele as conduziu até juntá-las, fundindo-as em
uma esfera maior. O grande globo luminoso desceu até o solo, e, aos poucos, foi tomando uma forma humana,
irradiando uma forte luz dourada. O mago gesticulou para cima, e o corpo luminoso começou elevar-se pelo ar,
flutuando até o topo da ponte e assustando os seres que ali preparavam seu ataque.
Caedmon aproveitou a distração das criaturas e disparou mais uma flecha, ferindo um dos seres.
Maugor, após abater facilmente seu atacante, correu para cima da ponte, atacando-os de surpresa. Sullivan
rapidamente saiu das sombras de um dos pilares da ponte e começou a escalar rapidamente o levadiço no lado
esquerdo, perto de onde estava a carroça de feno. Após subir discretamente, Sullivan desferiu um rápido golpe
com sua espada curta na criatura que estava ferida, matando-a. Maugor, com sua grande força, girou habilmente
seu martelo sobre a cabeça e o enterrou no crânio do outro ser que restava.
Quando menos se esperava, as criaturas restantes do outro lado partiram numa corrida frenética sobre
Maugor e Sullivan. Este, no instante que percebeu os atacantes se aproximando, saltou lateralmente para a
carroça de feno, mas seu pé de apoio resvalou, fazendo-o perder o controle do seu movimento e cair espatifado
em meio ao feno. Em meio às sombras, perto da carroça, surgiu um dos seres, gritando palavras estranhas em
sua língua desconhecida. Ele andou até Thokul sorrateiramente, para desferir o golpe fatal, mas não passou
despercebido por Belmorn.
- Thokul! Atrás de você! – Ao gritar as palavras, o mago gesticulava sua mão direita e ao apontar o
indicador para o ser esverdeado, uma energia roxa se concentrou no seu dedo, e se moveu rapidamente para o
rosto da criatura, acertando-a na testa e ferindo-a gravemente.
Ao se virar, o anão viu a criatura desesperada, e desferiu o golpe fatal com seu martelo, rachando o
pequeno crânio do ser ao meio. O jovem Maugor não tinha dificuldades em liquidar com seus inimigos em cima
da ponte.
Belmorn preparava-se para se juntar ao anão e subir a ponte, quando outra criatura pulou de cima da
ponte, caindo na frente do mago. Quando este estava prestes a sofrer uma forte estocada com a azagaia do
inimigo, Sullivan, em meio aos tufos de feno, arremessou uma de suas adagas, acertando as costelas da criatura,
que berrou de raiva e dor. Surpreendentemente, Belmorn fechou seu grimório, prendendo-o em seu cinto, e, com
apenas sua mão esquerda, agarrou o inimigo pelo pescoço e desferiu um forte soco com a direita, largando o
monstro sem vida ao chão. Quando o anão voltava para ajudar o mago, o silêncio já predominava no
acampamento. O combate estava ganho.
- Então eram kobolds! – Caedmon saiu de uma copa de arvores, perto do inicio da ponte. – Como não
havia percebido antes? – O Ermitão vasculhava os corpos.
- Talvez não seja tão bom mateiro quanto diz... – Belmorn se acomodava novamente junto à ponte. – E
digo mais, é melhor jogarem os corpos no rio. Não queremos chamar mais atenção. – O mago já fechava os
olhos para voltar ao seu sono interrompido, enquanto o anão e Maugor arrastavam os corpos dos kobolds até a
água turva do rio.
- Que seres esquisitos! – Maugor disse, em voz alta. – Nunca tinha visto nada igual... Será que eram
somente estes os saqueadores?
- Provavelmente não. Eles costumam andar em grandes números, e vi alguns deles fugirem pela floresta,
quando viram a maioria de seus amigos serem mortos por nós. – Caedmon parecia atento ao seu redor, a procura
de algo.
- Bem, seja como for, eles não voltarão a atacar hoje. Acho que podemos descansar e seguir viagem até
Alto do Salgueiro. Lá podemos bolar algum plano. – Thokul se preparava para ficar de sentinela, em cima da
carroça.
- Amigos, voltarei ao meu precioso sono. Com sua licença. – Sullivan tirava o feno que grudara em sua
roupa, e se acomodava perto de Belmorn para dormir.
***
A viagem nos dias seguintes foi tranqüila. Belmorn aproveitou a paz momentânea para admirar um
pouco a região, até então desconhecida por ele. Conforme se aproximavam do vilarejo, a massiva Floresta da
Beira ia se tornando gradativamente menos densa, até reduzir-se apenas a árvores esparsas nas planícies. Aos
poucos, o descampado foi sendo trocado por suaves colinas, com muitas fileiras de parreirais, dando-lhes uma
peculiar cor verde, marrom e roxa. Foi preciso somente uma pausa para o almoço e uma noite para dormir a
cada dia, e, ao fim da tarde do quarto dia, a comitiva chegava ao vilarejo Alto do Salgueiro. Subindo uma das
colinas de parreirais, a comitiva de Belmorn pôde compreender o significado do nome da pequena comunidade.
Em meio a pequenas casas, baixas e apinhadas umas às outras, no centro do vilarejo, encontrava-se um enorme
e majestoso salgueiro, debruçando-se sob o peso de sua imensurável idade.
A pequena cidade era conhecida entre as outras localidades de Exilion por possuir as melhores vinhas e,
conseqüentemente, produzir o melhor vinho de todo o reino. O solo era escuro e fértil, e as chuvas regulares.
Seus moradores eram constituídos, em sua maior parte, por agricultores comuns, produtores e comerciantes de
vinho, além de pequenas companhias mercantes que viam nos negócios vinícolas um grande investimento. Uma
milícia simples e pouco preparada realizava a defesa da cidade e mantinha a área livre de ladrões e feras
selvagens.
Belmorn desceu da carroça, assim que adentraram a cidade, e pôde perceber que as pessoas que ali
transitavam não lhes davam muita atenção. O sol estava se encaminhando na cabeceira do mundo, e as pessoas
estavam voltando de sua lavoura nos parreirais. Maugor, que guiava a carroça, observou um senhor de idade
carregando nas costas um enorme cesto com uvas, e parou para pedir informações.
- Meu bom homem, gostaria de falar com o líder deste vilarejo. Somos aventureiros a serviço de
Trondar.
O velho olhou para cada um do grupo com olhos cansados, soltou seu enorme cesto no chão e sentou-se
em cima dele.
- Ah! Bem, ele vive nesta casa grande, em frente ao grande salgueiro. – Soltou um suspiro, parecendo
recuperar o fôlego gasto em seu penoso dia de trabalho. – Sim, ele deve estar lá. Seu nome é Arkon Luraz.
Caedmon se aproximou do homem. – Mas que belas uvas o senhor tem aí!
- Sim, muito belas. São uvas para uma reserva especial aqui do Alto do Salgueiro. Colhidas
especialmente para os melhores vinhos. – O sujeito falava aquilo com orgulho.
- Gostaria de comprar algumas, amigo. – O ermitão já começava a tirar algumas moedas de sua
algibeira.
- Hm. Não sei, meu rapaz. Estas uvas que carrego são para Arkon. – O velho ficou pensativo. – Mas,
posso vender meia dúzia de cachos.
- Está bem, meu velho. Tome estas moedas. – Caedmon lhe deu duas moedas de prata.
Logo que o ermitão guardava em sua mochila as belas uvas que comprara, uma mulher de seios fartos
passou por ele, trazendo em seus braços uma vasilha com uvas. Caedmon a despiu com os olhos, de forma
grotesca, chamando a atenção tanto da moça quanto de seus companheiros. A moça não esboçou nenhuma
reação, apenas o observou rapidamente, enquanto seguida seu destino. Sullivan limitou-se a dar um suave riso
abafado. Por algum motivo, as atitudes fúteis do mateiro irritavam Belmorn, que evitava se relacionar com o
mesmo.
A casa de Arkon não foi difícil de encontrar. Era a maior construção da cidade, e ficava bem à frente do
robusto salgueiro, no centro do vilarejo. Ao chegarem à entrada da mansão, uma sentinela que estava ali os
abordou e logo entrou na casa para chamar Arkon. Dentro de alguns minutos, regressou com o prefeito da
cidade, o qual os saudava com um sorriso carismático.
- Entrem amigos, entrem. – Arkon gesticulou para dentro da sua casa. – Sintam-se à vontade. – O velho
comerciante era muito educado, e, apesar de ter passado anos na lavoura, como explicaria mais tarde, tinha um
ar muito refinado.
Um serviçal do prefeito os conduziu até uma sala de estar bem decorada, sem muitos exageros, mas com
mobílias de bom gosto. Belmorn e os outros se sentaram em cadeiras confortáveis ao redor de uma mesa baixa e
retangular. Logo que se acomodaram, um serviçal lhes trouxe um vinho cheiroso e alguns petiscos de queijo,
carne de porco e uvas com creme.
- Bem, companheiros, eu soube que os senhores estão ao serviço de nosso Rei. Existe algo em que lhes
posso ser útil?
O mago e os outros trocaram olhares, esperando quem iria contar-lhe sobre a missão. Maugor, que não
estava a deliciar-se com o vinho e os petiscos, tomou a dianteira.
- Bem, Arkon, foi-nos dito que um carregamento de suprimentos havia sido encomendado pelo Rei... –
Maugor não teve tempo de acabar sua fala. Arkon, com um olhar de curiosidade, interrompeu-o.
- Sim, mas nós enviamos o carregamento solicitado há três dias. – O prefeito estava muito intrigado,
fazendo-o largar seu copo de vinho e reservar toda sua atenção ao assunto que lhe era trazido amargamente à
mesa.
- Bem, Arkon, serei direto, pois infelizmente o Rei nos deu um prazo curto para resolver esta situação. –
Belmorn tomou um bom gole do vinho adocicado. – Precisamos de mais mantimentos para a festa do rei. O
carregamento que você enviou infelizmente foi saqueado por kobolds.
- Por Vorkanor! – Arkon estava transtornado. – O ultimo carregamento quase nos esvaziou os
mantimentos. – O prefeito pôs a mão no queixo pensativo. – Desculpe, mas só posso conseguir mais uma
carroça cheia.
- Arkon, nós sabemos que os kobolds que estão efetuando estes saques tem algum esconderijo por
perto. Fomos atacados por alguns no primeiro dia de viagem para cá, mas alguns conseguiram fugir. – Belmorn
intercalava suas falas com grandes goles de vinho. – Acho que iremos à frente, para evitar que esta ultima
carroça seja saqueada.
- Bom, isso me soa razoável. Amigos, passem a noite em minha casa. Amanhã pela manhã os
suprimentos estarão prontos, e, assim que quiserem, despacharei-os para Trondar. – Arkon tirou do bolso um
pequeno maço de fumos e um cachimbo.
- Oh! Vejo que tem um belo gosto. – Belmorn ficou surpreso com o fumo que Arkon fumava. Tinha um
cheiro adocicado e suave. Seu pai sempre lhe dissera que os fumos bons se reconheciam pelo cheiro.
- Não se acanhe, meu rapaz. – Arkon lhe alconçou um punhado de fumo.
- Muito obrigado. – Ao tirar seu cachimbo do bolso, o mago lembrou-se de que seu fumo havia acabado
no ultimo dia de viagem. – Arkon, se não for lhe pedir muito, você teria mais deste maravilhoso fumo?
O prefeito levantou-se sem dizer nada, caminhou até um balcão que estava atrás dele, e, de uma gaveta,
tirou uma bonita caixa de fumo, feita de carvalho esculpido.
- Tome, meu amigo. – O prefeito lhe estendeu a caixa. – Temos muito deste fumo aqui. É uma das
especiarias de Alto do Salgueiro, apesar de ainda não ser tão difundida quanto o vinho.
O passar da noite foi prazeroso e tranqüilo para o grupo. Belmorn permaneceu até tarde conversando e
bebendo com Arkon, até que o cansaço da viagem derrotou seu corpo. O mago despediu-se do amigável prefeito
de Alto do Salgueiro, e foi dormir em um dos quartos de hóspedes da casa.
***
O orvalho da manhã cobria os parreirais quando Belmorn fazia seu desjejum na casa de Arkon. Podia-se
ouvir lá fora o som da carroça sendo preparada, e de Maugor e Thokul discutindo algo sobre a viagem de volta.
Sullivan estava acomodado na sala de estar de Arkon, degustando vagarosamente as ultimas guloseimas que
havia na mesa. Belmorn tirou o último maço de fumo que trouxera, pôs no seu cachimbo e caminhou até o lado
de fora da entrada da mansão, onde estava o resto do pessoal e a carroça de mantimentos.
- Partiremos agora? – Belmorn perguntou com uma voz grave e rouca, de quem recém havia acordado, e
soltando a fumaça do cachimbo pelas narinas.
- Não. – Respondeu Thokul, parecendo contrariado. – Vamos esperar Caedmon regressar. Ele saiu cedo
para vasculhar o caminho. Achar indícios do bando de kobolds. – Ao terminar sua fala, o anão e os demais
companheiros puderam ver, subindo o suave aclive no centro do vilarejo, o mateiro ermitão.
- Bom dia, amigos. – Caedmon os saudou com uma curta reverência. – Trago boas notícias. – O mateiro
tirou seu odre do cinto e tomou um longo gole de água. – A estrada está muito calma, e pude me deslocar
rapidamente e passar despercebido de olhos indesejados. Não muito longe daqui, rastreei traços familiares dos
kobolds que enfrentamos na ponte, e acho que achei a região do seu covil.
- E o que esperamos, então? – Maugor começava a pôr sua mochila nas costas.
- Chamar o Sullivan. – Belmorn apontou com o dedão, para a porta da mansão as suas costas.
Maugor abriu metade da porta e gritou pelo companheiro de viagem. – Estamos partindo, Sullivan!
Após poucos minutos, Sullivan apareceu com um olhar sonolento, mas em compensação estava com a
barba feita, diferente dos outros dias.
- Desculpem a demora, estava acertando os últimos detalhes com Arkon. – O ladino apertava os
cadarços de suas botas e ajustava sua pequena espada na cintura. – Ele vai mandar a carroça assim que nos der a
autorização.
Thokul olhou para ele, desconfiado. – Hm. Certo. Vamos andando então. – Disse, com sua voz rouca.
***
A estrada estava muito, realmente muito calma. Eram apenas eles ali, caminhando atentos ao seu redor,
e ouvindo somente as lufadas de vento e o barulho de cascalho da estrada. Caedmon os guiou até a região da
floresta na qual ele encontrou os vestígios dos kobolds saqueadores. Saindo cautelosamente da estrada,
adentrando a floresta da Beira, Belmorn conseguiu avistar pequenas trilhas cobertas de folhas, provavelmente
utilizadas pelos kobolds. Após um curto período andando pela mata, Belmorn e Sullivan observaram um
pequeno grupo deles, acampados entre as árvores, provavelmente um grupo de batedores e sentinelas.
Sullivan sinalizou a presença das criaturas aos companheiros, e se escondeu atrás de um pequeno
arbusto, preparando sua besta. Belmorn ficou atrás de uma árvore, do lado esquerdo de Sullivan, e Caedmon em
outra árvore, à direita do mesmo. Maugor e Thokul preparam seus martelos para o combate iminente e
caminharam lado a lado em direção aos kobolds.
Aproveitando o fator surpresa, Sullivan disparou uma seta com sua besta, acertando em cheio o crânio
de uma das criaturas que comia um animal assado junto à uma pequena fogueira, matando-o instantaneamente.
Maugor correu em investida em direção ao kobold que estava ao lado do companheiro inerte, e desferiu um
terrível golpe lateral no omoplata da criatura, fazendo-a tombar com um estrondo. Após verem dois dos seus
serem mortos, outros dois kobolds se revelaram na copa das árvores do acampamento e arremessaram suas
azagaias em Maugor e Thokul, porém os dois guerreiros as bloquearam com seus escudos de metal. Belmorn
preparou sua funda, e arremessou um potente disparo em um dos kobolds das árvores, acertando no ombro. Este
ficou a praguejar lá de cima, mas foi silenciado quando uma flecha acertou-o transversalmente na cabeça, e seu
corpo despencou sem vida.
O kobold restante pulou de árvore em árvore, até chegar a uma grande clareira. Belmorn e os outros
foram avançando atrás da criatura, assim descobrindo o covil escondido. Uma pequena elevação rochosa
encontrava-se na clareira, com uma fina cachoeira e um pequeno lago. Atrás das águas que ali despencavam,
havia uma gruta, na qual uma dúzia de kobolds gritava e gesticulava freneticamente.
Thokul e Maugor avançaram corajosamente em direção à gruta, com Sullivan logo atrás, esgueirando-se
pelas paredes rochosas da pequena colina de pedra. Belmorn e Caedmon ficarem escondidos em algumas
árvores que cercavam a beira do lago. Assim teve início o combate final contra os saqueadores. O anão Thokul e
o jovem Maugor destroçaram grande parte dos kobolds que os enfrentaram na entrada da gruta, enquanto
Sullivan aproveitava os espaços e distrações das criaturas, para lhes dar fim à vida com golpes bem colocados.
Os kobolds que tentavam fugir, e alguns que escalaram as paredes rochosas para atacar com suas azagaias pelo
alto, foram abatidos por Caedmon e Belmorn. O Ermitão, com seu arco, era mortal como uma ave de rapina que
persegue sua caça nas montanhas. Belmorn, apesar de não ser um homem de armas, era muito preciso em sua
pontaria com a funda, acertando os projéteis com força, incapacitando os inimigos e, quando estavam longe de
sua mira, os alvejava com sua poderosa magia arcana, disparando dardos de uma energia lilás.
Como esperado, a gruta era o esconderijo dos saqueadores kobolds. Lá dentro estavam as três carroças
com os mantimentos do rei, quase intactas, com exceção de uma, que estava com suas rodas em péssimo estado.
Desta última, os companheiros recolheram o carregamento para si, e as outras duas, levaram de volta para o
Alto do Salgueiro.
***
-Ah! Mas que ótima notícia vocês me trazem, amigos! – Arkon estava muito contente com o regresso
positivo de Belmorn e seus companheiros. – Vamos conseguir enviar as três carroças e minimizar as atividades
hostis da redondeza.
- Sim, ficamos muito felizes em ajudar o Rei e em proteger o reino e seus cidadãos. – Maugor fez uma
forte reverência ao prefeito.
- Fico grato por seu reconhecimento, Arkon. Lembrar-me-ei de sua amizade e hospitalidade, pode ter
certeza. – Belmorn cumprimentou o prefeito, antes de subir em uma das carroças e pegar uma maçã para comer.
- Até mais, prefeito, espero vê-lo em uma situação mais feliz. – Sullivan o saudou e subiu em outra
carroça.
- Lembre-se, meu bom senhor, sempre que precisar e auxilio, pode procurar por Caedmon. É uma honra
servi-lo e ao nosso Rei. – O ermitão fez uma reverência.
- Pode dar o pagamento dos serviços dele para mim, já que a honra o satisfaz. – Belmorn deu uma risada
sarcástica. – E pode dividir comigo! – Completou Sullivan, com um tom de piada.
- Que Vorkanor o proteja, meu bom Arkon. – Thokul o presenteou com um pequeno símbolo de
madeira de seu deus, e despediu-se.
Em rápidos três dias, a comitiva regressou a Trondar, com as três carroças de mantimentos, seus
estoques cheios com o que encontraram na gruta, e encheram seus bolsos com o ouro que lhes havia sido
prometido, juntamente com a gratidão do Capitão da Guarda Real, o senhor Targos Stirk.

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