o outro no desenvolvimento dos

Transcrição

o outro no desenvolvimento dos
APRESENTAÇÃO
Sob o olhar histórico e epistemológico, talvez a psicologia seja o campo
de conhecimento que mais exaustivamente tenha buscado sua unicidade e o que mais se beneficie de não tê-la jamais alcançado. De fato,
o constante debate entre e intra abordagens em psicologia, embora
muitas vezes tingido de tons dogmáticos e pouco produtivos, parece vir
garantindo, em suas melhores formas, o diálogo gerador da permanente
tensão entre possibilidades e limites de cada perspectiva teórica, favorecendo reconstruções criativas sobre a natureza do objeto da psicologia.
É nessa dimensão de diálogo que se situa a presente obra, oferecendo
ao debate epistemológico e ético em psicologia reflexões sobre o lugar
que a figura do outro ocupa no desenvolvimento humano. Nesse diálogo,
o outro vai aparecendo ao mesmo tempo como figura e como fundo na
relação com o sujeito, como construtor do sujeito, ao mesmo tempo que construído por ele, nas diferentes nuances dos processos de desenvolvimento
que cada texto focaliza e pelas diferentes ênfases que os autores propõem
para o eu e para o outro nessa relação de mútua constituição.
Cada um dos textos pode ser tomado, então, como um convite
ao diálogo sobre a relação sujeito-outro no desenvolvimento humano, diálogo este iniciado pelos autores participantes desta coletânea,
a partir das perspectivas que vêm construindo como docentes, pesquisadores e profissionais, e que poderá continuar com os leitores em
algum momento e lugar.
O livro traz quatro conjuntos de textos, agrupados segundo sua
abrangência teórico-epistemológica, sua temática e suas implicações
V
O OUTRO NO DESENVOLVIMENTO HUMANO
para a reflexão sobre as práticas profissionais em psicologia. Um critério
mais amplo, entretanto, os reúne: em todos eles propõem-se o aprofundamento e a recolocação de aspectos centrais da abordagem contemporânea das relações sujeito-outro em psicologia, tomando teóricos
clássicos como interlocutores que lhes inspiram e instigam à reflexão.
A organização dos textos nesses conjuntos é apenas uma das possíveis,
podendo o próprio leitor abordá-los na ordem que desejar.
É interessante destacar os desdobramentos e as implicações que os
trabalhos integrantes desta coletânea apresentam para o exercício profissional de psicólogos e educadores. Ainda que com diferentes níveis de
explicitação, em todos eles fica clara a importância das idéias discutidas
para a reflexão crítica e criativa sobre o desempenho e o compromisso
profissional, nos campos de ação em que as relações com os outros constituem eixo central, seja na pesquisa, na educação ou na saúde. Dessa
forma, adiciona-se ao convite inicial ao diálogo um convite a revermos
nossos fazeres e a construirmos novas práticas nos complexos espaços
interativos dos quais participamos ativamente como profissionais.
Eu e outro: subjetividade e alteridade
O texto de Fernando González Rey (Pontifícia Universidade Católica
de Campinas) começa por uma reflexão crítica sobre o enfoque que a
psicologia histórico-cultural e seus desdobramentos contemporâneos
têm priorizado ao tratar a relação sujeito-outro, apresentando então
conceitos nucleares da proposição teórica do autor (categorias de sentido
subjetivo, configuração subjetiva e unidade subjetiva de desenvolvimento)
que permitem redimensionar o papel que a figura do outro desempenha, como sentido subjetivo de outro, no processo dinâmico e integrativo
do desenvolvimento humano.
Lívia Mathias Simão (Universidade de São Paulo) parte da centralidade do diálogo eu-outro nas atividades humanas balizadas pela cultura e construtivas dessa mesma cultura, analisando, desde a perspectiva semiótico-construtivista, aspectos das relações entre subjetividade e
diálogo que permitem e requerem ir além dos conteúdos temáticos das
VI
APRESENTAÇÃO
interações verbais em si mesmos, para incluir a consideração do outro
numa relação de alteridade de significativa importância para os processos de desenvolvimento.
Eu e outro: consciência e complementaridade
O texto de Elizabeth Tunes (Universidade de Brasília) e Roberto dos
Santos Bartholo Júnior (Universidade Federal do Rio de Janeiro) revisita
o clássico debate em torno do projeto da psicologia científica no início do
século XX, com sua interdição ao estudo da consciência por meio da introspecção, para então trazer à tona a inevitabilidade da “psicologia com
consciência” quando se pretende compreender as condições de possibilidade de relacionamento do sujeito com a alteridade de outrem.
Em seu texto, Maria Thereza C. Coelho de Souza (Universidade
de São Paulo) discute o papel do “outro” na construção do “si mesmo”
e no desenvolvimento psicológico da criança, a partir do modelo epistemológico do construtivismo genético-dialético de Piaget, tornando
explícito o papel complementar das relações com o outro na construção
do conhecimento pelo sujeito, aspecto este relativamente pouco salientado nas referências ao modelo epistemológico piagetiano.
Eu e outro: criação e compromisso
Albertina Mitjáns Martínez (Universidade de Brasília) toma a questão
da relação entre o social e o individual na criatividade, questão esta ainda
em aberto na psicologia, para discuti-la e conceituá-la sob o enfoque
da concepção de subjetividade por ela assumida, recolocando assim os
termos da relação triádica indivíduo-outro-criatividade e suas implicações para a prática educativa.
Maria Carmen V. R. Tacca (Universidade de Brasília) focaliza, em seu
texto, a dinâmica das interações professor-aluno tomada como espaço de
alteridade, o que possibilita propor a compreensão das relações de ensinoaprendizagem no contexto escolar como sendo relações primordialmente
éticas, em que a responsabilidade dos atores pela e na relação permite, ao
mesmo tempo que circunscreve, possibilidades de desenvolvimento.
VII
O OUTRO NO DESENVOLVIMENTO HUMANO
Eu e outro: relação ressignificadora
Em seu texto, Álvaro Pacheco Duran (Universidade Estadual de Campinas), fundamentado na epistemologia construtivista, que questiona
os pressupostos objetivistas orientadores do tratamento da relação
“eu-outro” na maior parte da psicologia ocidental moderna, discute as
possibilidades abertas pela perspectiva construtivista na abordagem da
relação eu-outro, especialmente no tocante às suas implicações para a
compreensão da ação terapêutica como colaboração dialógica, co-construtiva e ressignificadora.
Marisa Japur (Universidade de São Paulo) parte da perspectiva do
construcionismo social, problematizando a centralidade das noções de
unidade/totalidade e de essência, presentes nos fundamentos teóricos
que têm pautado a prática grupal no campo da atenção psicológica em
saúde no Brasil, para recolocar a questão na centralidade dos processos
relacionais nessas práticas, com implicações tanto para a descrição das
práticas grupais como, conseqüentemente, para a atenção psicológica
no campo da saúde.
Lívia Mathias Simão e
Albertina Mitjáns Martínez
VIII
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1
O Sujeito, a Subjetividade e o Outro na Dialética
Complexa do Desenvolvimento Humano
Fernando González Rey . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
CAPÍTULO 2
Alteridade no Diálogo e Construção de
Conhecimento
Lívia Mathias Simão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
CAPÍTULO 3
Da Constituição da Consciência a uma
Psicologia Ética: Alteridade e Zona de
Desenvolvimento Proximal
Elizabeth Tunes e Roberto Bartholo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
CAPÍTULO 4
Alteridade na Construção do “Si Mesmo”
Maria Thereza C. Coelho de Souza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
CAPÍTULO 5
O Outro e sua Significação para a Criatividade:
Implicações Educacionais
Albertina Mitjáns Martínez. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
CAPÍTULO 6
Além de Professor e de Aluno: a Alteridade nos
Processos de Aprendizagem e Desenvolvimento
Maria Carmen V. R. Tacca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
CAPÍTULO 7
Relação Eu-Outro: um Paradigma sob a
Perspectiva do Construtivismo Terapêutico
Álvaro Pacheco Duran . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
CAPÍTULO 8
Alteridade e Grupo: uma Perspectiva
Construcionista Social
Marisa Japur . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145
O SUJEITO, A SUBJETIVIDADE E O
OUTRO NA DIALÉTICA COMPLEXA
DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
FERNANDO GONZÁLEZ REY
1
INTRODUÇÃO
As teorias do desenvolvimento humano têm percorrido os caminhos da
história da psicologia, com concepções associadas às diferentes representações do homem que têm hegemonizado o pensamento psicológico.
Portanto, as diferentes visões do desenvolvimento humano carregam as
limitações das teorias ou representações gerais que lhes serviram de pano
de fundo. As teorias do desenvolvimento humano, fortemente influenciadas pelas representações epistemológicas que dominaram o campo da
psicologia no século XX, o racionalismo e o positivismo, apresentaram,
de um lado, uma visão naturalista evolucionista do desenvolvimento,
centrando-se em aquisições universais por idades que eram resultado de
um amadurecimento biológico (Gessell) ou na idéia do movimento das
pulsões (psicanálise). Por outro lado, focaram-se no desenvolvimento do
intelecto e das operações lógicas, marcando o forte cognitivismo e individualismo que ainda é hegemônico na compreensão do desenvolvimento
como é o caso de Piaget e muitos dos psicólogos cognitivos do desenvolvimento. Até Vygotsky, que na minha opinião funda uma nova alternativa
para a compreensão do desenvolvimento, orienta-se por um reducionismo cognitivo em certos momentos de sua obra (Bozhovich, 1992).
Uma posição que se separa das anteriores é o behaviorismo, que
ignorou qualquer forma de organização do desenvolvimento, permanecendo no nível do comportamento (Bijou). Apesar dos avanços de
1
O OUTRO NO DESENVOLVIMENTO HUMANO
Skinner no tratamento da linguagem, o lugar do simbólico no desenvolvimento não foi elaborado desde a perspectiva behaviorista.
As teorias do desenvolvimento, de forma geral, ignoraram o sujeito
que se desenvolve, assim como os contextos sociais e culturais diferenciados nos quais o desenvolvimento acontece. O caráter cultural do processo
de desenvolvimento foi marcado fortemente pelos trabalhos de M. Mead
na Antropologia, assim como pelos de Vygotsky na psicologia. Neste,
o conceito de cultura foi assumido, principalmente, pela ênfase na mediação dos signos no desenvolvimento das funções psíquicas, associando
com a cultura a emergência de uma nova concepção da psique que marcava uma diferença qualitativa entre o homem e o animal.
Mead enfatizou o aspecto cultural do desenvolvimento através das
instituições e das liturgias produzidas dentro da cultura, aspecto que
Vygotsky não considerou. A ênfase em uma representação cultural e social
do homem ganhou espaço não só na psicologia educativa, senão na psicologia social com os trabalhos de G. Mead, considerados em sua relevância
para as teorias do desenvolvimento apenas mais recentemente (Valsiner, J.,
Blanco, A., entre outros). O fato de considerar a presença da cultura essencialmente pela mediação dos signos gera uma especial sensibilidade para o
tema relativo ao outro, na medida em que esse outro representa o espaço
semiótico mais intenso da criança, logo após o nascimento.
O outro é um tema muito presente tanto em Mead quanto em
Vygotsky, apesar de, tal como no caso da ênfase dada ao simbólico, ter
conseqüências diferentes na obra de um e de outro, como veremos no
decorrer deste capítulo. Posteriormente, a questão do outro marca fortemente a obra de Wallon e, a partir dela, influencia de forma definitiva
o posicionamento da psicanálise francesa em relação ao desenvolvimento através de Lacan.
O outro tem cobrado uma grande força, em geral, nas teorias de
inspiração sociocultural, assim como nas teorias construtivistas póspiagetianas e socioconstrucionistas. O presente capítulo tem como
objetivo o debate em relação ao lugar do outro no desenvolvimento,
considerando o papel do sujeito e dos processos de subjetivação nesse
2
CAPÍTULO 1 – O SUJEITO, A SUBJETIVIDADE E O OUTRO NA DIALÉTICA COMPLEXA...
processo. A ênfase colocada no outro tem ocultado o lugar ativo e específico dos processos de auto-organização da pessoa nas etapas iniciais
do desenvolvimento e sua presença permanente em condição de sujeito
de suas inter-relações.
O OUTRO NO DESENVOLVIMENTO DOS
PROCESSOS SIMBÓLICOS DA CRIANÇA
Mead conferiu posição central ao outro na formação do self, o que expressa de forma muito clara ao afirmar (1972, p. 170):
O indivíduo experimenta a si mesmo como indivíduo, não de
forma direta, mas só indiretamente, desde os pontos de vista
particulares de outros membros individuais do mesmo grupo
social ou desde o ponto de vista generalizado do grupo social,
como um todo, ao qual pertence. O indivíduo entra na sua
própria experiência como pessoa, não direta ou imediatamente,
não se convertendo em sujeito de si mesmo, mas só à medida
que se converte em objeto para si, do mesmo modo que outros
indivíduos são objetos para ele... e converte-se em objeto para si
só quando adota as atitudes dos outros indivíduos para com ele
dentro de um certo meio social, contexto ou experiência, em que
tanto ele quanto os outros estão envolvidos.
Nesta citação o autor apresenta uma forma de ver o outro que tem
sido dominante na literatura psicológica: o outro aparece como a fonte
de produção da pessoa. Estabelece-se uma relação mimética entre os
comportamentos do outro dirigidos ao sujeito e a forma como esse sujeito se assume e se reconhece. Na minha opinião, essa visão desconhece
a complexidade da relação com o outro no processo de constituição
psicológica do sujeito.
O impacto do outro sobre a pessoa não é dado pelo caráter da
resposta do outro a uma ação da pessoa, nem é o resultado de uma ex-
3
O OUTRO NO DESENVOLVIMENTO HUMANO
pressão contextual de uma pessoa em relação a outra ou outras pessoas.
As relações humanas organizam-se, desde muito cedo, como sistema
em que as expressões emocionais têm um papel muito importante, inclusive o mais importante para a criança recém-nascida. Nesse sentido,
o outro aparece como um momento de produção emocional da pessoa
que não decorre apenas do tipo de expressão simbólica ou do comportamento que esse outro expressa como reação às expressões daquela pessoa implicada na relação com ele. O ocultamento do aspecto emocional
do relacionamento com o outro tem levado a psicologia a considerar a
emoção como um epifenômeno de outros processos, sem aprofundar-se
na questão do lugar da emoção nos processos mais complexos de configuração da subjetividade humana.
Na psicologia somente alguns autores de orientação psicanalítica
têm dado conta da importância das emoções no primeiro ano de vida da
criança e, dentre esses autores, merece destaque o trabalho de R. Spitz.
A emocionalidade é uma produção do organismo humano orientada à
estimulação do comportamento, essencial para a sobrevivência das espécies complexas. À medida que os organismos vivos aumentam a sua
complexidade, elevam sua capacidade para produzir emoções mediante
sinais de um meio cada vez mais complexo, permitindo ao organismo
comportamentos antecipatórios e proativos para evitar situações ameaçadoras e para expressar as demandas de suas necessidades vitais, conforme o caso. No ser humano essa capacidade de produção emocional
integra-se à produção simbólica da cultura.
O homem responde a sistemas de significação que têm um valor
apenas dentro dos marcos da cultura em que atua. Essa característica
integra as emoções dentro de espaços simbólicos e conduz ao que temos definido como sentido subjetivo, termo que aprofundaremos mais
adiante. Porém, o fato de as emoções responderem a um registro simbólico e se articularem na produção simbólica não significa que se afastem de outros complexos sistemas do organismo aos quais são sensíveis.
Pelo contrário, o que acontece é que a capacidade emocional humana
alcança formas de complexidade maiores que em qualquer outra espécie
4
CAPÍTULO 1 – O SUJEITO, A SUBJETIVIDADE E O OUTRO NA DIALÉTICA COMPLEXA...
animal, pois integra a condição biológica dentro de um corpus cultural
que modifica definitivamente a representação sobre o funcionamento
da psique e do corpo.
Esta questão de como a cultura irá modificar a pessoa em toda sua
complexidade, e não apenas em um determinado aspecto, é algo do
qual Mead não se deu conta, dentre outras razões, em função dos referentes filosóficos que serviram de base para suas posições. Vygotsky se
dá conta dessa questão de forma melhor que Mead, já que não separa a
psique humana dos processos de comunicação social da cultura na qual
o homem está inserido. Diferentemente de Mead, o autor situa a psique
a partir da condição cultural do homem, em um processo progressivo
que começa com o conceito de função psíquica superior e alcança seu
momento mais elevado com o conceito de sentido, desenvolvido na
última parte de sua obra. Já Mead mantém uma dicotomia entre sua
concepção de uma natureza humana instintiva e a dimensão simbólicosocial que conduz à formação do self.
O outro na obra de Vygotsky aparece mais associado com o processo de uso e mediação dos signos que com uma comunicação rica e de
múltiplos canais entre a criança e os outros, principalmente entre ela e
os adultos que a integram no mundo da cultura. Desafortunadamente,
Vygotsky não teve tempo de associar o tópico do desenvolvimento à
categoria de sentido, o que a meu ver teria, sem dúvida, modificado seu
posicionamento em relação ao lugar do outro no desenvolvimento.
A teoria histórico-cultural não chega a desenvolver um conceito
do outro como sujeito complexo que aparece associado a um posicionamento afetivo nas relações. Isso, como expresso em 1995 na análise
da categoria de situação social do desenvolvimento, leva Vygotsky
a considerar o outro mais em uma perspectiva instrumental do que
relacional. Ao definir o lugar do outro na zona de desenvolvimento
proximal, Vygotsky não considera a qualidade do relacionamento
afetivo desse outro com a criança, senão que se refere apenas ao apoio
instrumental que ele/ela pode dar-lhe no processo de solução das tarefas que enfrenta.
5
O OUTRO NO DESENVOLVIMENTO HUMANO
O tema do lugar da comunicação no enfoque histórico-cultural e
de forma particular na Teoria da Atividade de A. N. Leontiev tem sido
objeto de crítica desde finais dos anos de 1970. Mesmo assim, esse tema
continua sendo objeto de atenção dos psicólogos russos. E. Smirnova,
na sua apresentação na Conferência “M. I. Lizina e a psicologia infantil
contemporânea” (1999, p. 90), expressou:
De acordo com as posições de L. S. Vygotsky, o mundo social e
os adultos que rodeiam a criança constituem as condições orgânicas necessárias do desenvolvimento humano. A criança, desde
o começo de sua vida, se inclui nas relações sociais e, quanto
menor for, ela aparece como uma essência social... Porém, para
o mesmo Vygotsky e seus seguidores, o adulto atua como um
intermediário entre a criança e a cultura, como um “portador”
abstrato de signos, normas e formas de atividade, não como uma
pessoa viva, concreta. Apesar do reconhecimento geral do papel
da comunicação com os adultos no desenvolvimento psíquico
da criança, o próprio processo de comunicação não foi pesquisado nos marcos do enfoque histórico-cultural.
O lugar da comunicação é discutido por mim em vários trabalhos
anteriores (1985, 1989, 1991, 1997, 2002), nos quais analiso o fato
de que a teoria da atividade de A. N. Leontiev passou a hegemonizar a
interpretação histórico-cultural e de que o princípio da atividade acabou monopolizando a representação teórica dominante sobre a psique.
Assim, a comunicação passou a ser considerada como mais uma forma
de atividade (Elkonin, Lizina), e o conceito de atividade reitora, como
o conceito central para a explicação do desenvolvimento psíquico. Em
1985 já faço uma análise crítica à teoria da periodização do desenvolvimento de Elkonin. Nessa crítica introduzo os conceitos de sistemas de
atividades e de comunicação, como dois campos de desenvolvimento
da criança, com pontos de contatos e contradições entre si e dentro
dos quais a criança se expressa de forma diferenciada como sujeito do
6
CAPÍTULO 1 – O SUJEITO, A SUBJETIVIDADE E O OUTRO NA DIALÉTICA COMPLEXA...
desenvolvimento. Essa categoria foi completamente ignorada na versão
da Teoria da Atividade, que passou a ser dominante até fins dos anos
1970 na psicologia soviética (González Rey, 1985, 1989, 1997 e 2002
e A. Mitjáns, 1989, 1990).
É precisamente essa presença do outro como portador abstrato
de signos, normas e formas de atuação, criticada por Smirnova, que se
tornou dominante na tradição psicológica. Um outro colocado em uma
posição de externalidade que determina o comportamento da pessoa,
pelas reações desta ao seu comportamento, comportamento que, tanto
Mead como Vygotsky, colocam no plano simbólico. Mas nem um nem
outro orientaram-se na direção da compreensão do outro como um
sujeito concreto, que existe para a criança dentro de sistemas históricos
e complexos de atividades e comunicação, e não só em atos e expressões
isoladas que vão marcando o processo de desenvolvimento do self da
criança envolvida nesse relacionamento.
A psicologia tem analisado o outro no espaço direto e imediato das
relações entre pessoas, omitindo o outro como espaço social complexo,
momento de uma subjetividade social que se delimita como campo
simbólico e de sentido, e dentro do qual o sujeito concreto precisa encontrar consigo mesmo. Essa forma de encontro está mediada
pela organização subjetiva dos espaços sociais em que o sujeito atua,
os quais influenciam a subjetividade não apenas através de um outro
em um espaço concreto de inter-subjetividade, mas também pela ação
permanente de processos simbólicos e de sentido que se produzem em
dimensões diferentes do sistema da subjetividade social. A psicologia
do desenvolvimento de forma geral tem atendido pouco àqueles processos sociais e institucionais que transcendem os processos imediatos de
relações do sujeito com os outros.
O outro não existe como acidente comportamental, o outro existe
numa seqüência histórica de uma relação que vai se transformando em
um sistema de sentido, a partir do qual esse outro passa a ter uma significação no desenvolvimento psíquico da criança, tanto pela produção simbólica delimitada nesse espaço de relação, como pela produção de sentido
7
O OUTRO NO DESENVOLVIMENTO HUMANO
que a acompanha. Por sua vez, estes complexos sistemas de relações
entre as pessoas sempre são parte dos espaços institucionais nos quais os
relacionamentos têm lugar. São esses espaços de sentido, que se tornam
sensíveis para novas aquisições do desenvolvimento, que definimos como
unidades subjetivas do desenvolvimento (González Rey, 1985).
O outro deve ser um outro portador de sentido subjetivo para atuar como figura significativa para o desenvolvimento, mesmo que esse
sentido possa se expressar tanto em prol do desenvolvimento, quanto
em prol do caráter patológico desse processo. A hipótese que coloco sobre o lugar do sentido no processo do desenvolvimento opõe-se ao lugar
protagonista que Mead dá à influência imediata do outro em termos de
comportamento social. A posição de Mead fica clara quando expressa
(1964, p. 137):
O self emerge na conduta quando o indivíduo se converte em
objeto social para ele mesmo. Isto acontece quando o indivíduo
assume a atitude ou usa o gesto que usaria outro indivíduo e lhe
responde... Neste processo a criança vai se convertendo gradativamente em um ser social na sua própria experiência e atua com
respeito a si mesma de uma maneira análoga àquela apresentada
na relação com outros. Especialmente ela se fala a si mesma
como fala aos outros e, mantendo essa conversação, seu mundo
interno vai construindo o campo que chamamos de mente.
Nesta citação expressam-se elementos que, ao meu ver, justificam
a identificação de Mead com um behaviorismo social, como alguns
autores o classificaram. O mundo do sujeito é preenchido pelos atos e
atitudes dos outros, tanto no nível de comportamentos concretos quanto simbólicos, os quais ele usa para responder, e nesse processo ele vai se
constituindo como “mente”.
A conotação do mental aparece na citação anterior de Mead como
uma internalização individual e mecânica de formas de comportamento
de um outro que passam a definir o mental na pessoa como um trân8