Freud hoje
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Freud hoje
Ano IV - número 15 - Março / Abril / Maio 2006 Freud hoje Fábio Landa discute rumos da psicanálise nos 150 anos de seu criador EDITORIAL O século da psicanálise Conselho Editorial Ernesto Strauss, Flavio Mendes Bitelman, Luis S. Krausz, Michael Pinkuss, Raul Meyer, Yael Steiner Publisher: Flavio Mendes Bitelman Editor: Luis S. Krausz Direção de arte: Iaara Rosenthal Diretora de Relações Institucionais: Ana Feffer Executivo do Centro da Cultura Judaica: Giselle Tidei Administração: Adriane Oliveira Circulação: BrandMember Distribuição: Door to Door Gráfica: Ipsis Tiragem: 10.000 exemplares Colaboraram nesta edição: Andrea Lombardi, Adriana Kanzepolsky, Avraham Milgram (Jerusalém), Bertrand Costilhes (ilustração), Cláudia Altschüller, Dov Bigio, Enrique Mandelbaum, Graciela Karmann (revisão) José Arthur Gianotti, Klaus Billand (Viena), Leslie Susser (Jerusalém), Luis Dolhnikoff, Marcelo Lerner (fotografia), Marco Frenette, Marleine Cohen, Moacir Amâncio, Monica Nudelman Kalili (ilustração), Nahum Sirotsky (Tel Aviv), Samuel Feldberg, Susana Kampf Lages Foto da capa: Hulton-Deutsch Collection/Corbis/Stock Photos Impresso em papel Couché Reflex Matte 95 g/m2 (miolo) e 150 g/m2 (capa) da Cia. Suzano, produzido com recursos renováveis. Cada árvore utilizada foi plantada para este fim As matérias assinadas não necessariamente refletem a opinião da Revista 18 ou do Centro da Cultura Judaica Centro da Cultura Judaica – Casa de Cultura de Israel Rua Oscar Freire, 2500 São Paulo CEP 05409-012 fone (11) 3065 4333 e-mail: [email protected] Horário: de 2ª a 6ª feira, das 10 às 21h Sábados, domingos e feriados, das 14 às 19h Para receber nossa programação, envie um e-mail para divulgaçã[email protected] Na lista dos nomes que mais influenciaram os rumos da civilização ocidental nos últimos 100 anos, o de Sigmund Freud certamente ocupa lugar de destaque. O criador da psicanálise, cujo 150º aniversário se comemora no próximo dia 6 de maio, inaugurou uma nova maneira de compreender o ser humano – longe dos dogmas religiosos tanto quanto da febre da razão voltada para a produção, que se abateu, como uma epidemia, sobre a Europa (e sobre o restante do mundo ocidental) a partir do século 19. A complexidade do ser humano, o conceito de consciência individual e a noção de profundidade na vida psíquica foram temas centrais de seus estudos e de sua prática psicanalítica, e Freud deixou uma marca indelével sobre as humanidades de um modo geral, influenciando campos tão diversos como a antropologia, a educação, a arte e a literatura. Assim, esta edição da Revista 18 dedica dez de suas páginas a uma longa conversa com Fábio Landa, psicanalista e médico brasileiro há quase duas décadas radicado em Paris, onde se dedica ao ensino e à clínica, e um dos mais lúcidos representantes do pensamento psicanalítico contemporâneo. Landa analisa os rumos da psicanálise hoje, sempre tendo em vista, como Freud, sua ligação inextricável com as artes, com a estética, com a literatura e com a filosofia. E conclui que, num mundo onde outra vez os fanatismos – da religião tanto quanto das políticas laicas de opressão – ameaçam, de maneira cada vez mais avassaladora, a consciência e a liberdade individuais, a psicanálise preserva um espaço laico de reflexão e de lucidez. Freud é representante de um pensamento judaico europeu, de molde cosmopolita, tributário da tradição do humanismo, do pensamento científico e também do judaísmo. E as implicações políticas de seu pensamento estão vinculadas a ideais de democracia e de pacifismo que se tornam a cada tanto mais voláteis e ilusórios no mundo contemporâneo. A manipulação da consciência, seja por meio do terror puro e simples, seja por meio do fanatismo religioso, seja por meio da torrente incessante da propaganda, está na ordem do dia num mundo em que a retórica da ameaça, da demonização e do ódio ocupam, cada vez mais, o território do diálogo, do respeito mútuo, da emancipação. A psicanálise, portanto, é mais atual (e necessária) do que nunca: um século e meio depois de seu nascimento, Freud ainda explica. Luis S. Krausz SUMÁRIO ENTREVISTA 40 O mundo nos MUNDOS DE FRANZ KAFKA 4 RUMOS DA PSICANÁLISE, aos 150 anos do nascimento de seu criador 43 Nova antologia visita universo imortal de PRIMO LEVI PERISCÓPIO 14 MAHLER BANIDO de igrejas checas; a imortal SARAH BERNHARDT, Hugo Chávez e os judeus... 46 PAUL CELAN, comentado por Hans-Georg Gadamer 48 A LUCIDEZ DO ENSAIO em coletânea de Márcio Seligmann-Silva OPINIÃO 16 JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI e os limites da tolerância O REPÓRTER 20 UMA NOVA E TERRÍVEL FRONTEIRA entre o Irã e Israel 22 DESCAMINHOS DA DEMOCRACIA no Oriente Médio 50 Romance recria TEMPO DE MAIMÔNIDES 52 GUSTAV MAHLER, de ontem e de hoje CONTO 54 A HIPÉRBOLE JUDAICO-MEXICANA da escritora Margo Glantz ENSAIO 26 Da impossibilidade de diálogo com o ABSOLUTISMO ISLÂMICO ARQUIVO PERFIL 58 De Lucca a Foz do Iguaçu, a trajetória de um JUSTO ENTRE AS NAÇÕES 30 MAYANA ZATZ entre os limites e os horizontes da genética NA REDE 32 De uvas, raposas e HISTRIONISMO JUDAICO 62 O JUDAÍSMO CIBERNÉTICO, na tela do seu computador LETRAS E ARTES HUMOR 36 RITUAIS EM BRANCO E PRETO, por André Douek 64 A ÉTICA DOS SAMURAIS, em versão judaica Revista 18 1 CARTAS Quero cumprimentar os organizadores da Revista 18, da Casa de Cultura de Israel, que está muitíssimo interessante. Gostei dos artigos, do nível (nem muito superficial, como a maioria, nem muito cabeça). Levei comigo no avião achando que iria dar uma olhada e deixar lá mesmo, mas, que nada! Trouxe de volta. Parabéns! Adriana Jacobsberg - São Paulo, SP Passando os dias de Carnaval na casa de campo, em Teresópolis, de uma amiga, tive a oportunidade de conhecer a Revista 18. Li-a com o máximo interesse! Erika Mayer - Rio de Janeiro, RJ Acabo de receber a Revista 18 nº 14. Excelente como sempre. Meus parabéns pela escolha das matérias e o equilíbrio dos assuntos, tornando a Revista 18 um verdadeiro must. Joseph Eskenazi Pernidji - Rio de Janeiro, RJ Quanta alegria em meu coração ao receber a Revista 18! Li as matérias e alegrou-me ver um conteúdo tão diversificado e fundamentado em fatos históricos, sociais e culturais. Por gentileza de amigos, tive o prazer de conhecer a Revista 18, no seu número 14. Parabéns ! Comedida a entrevista com o rabino Henry Sobel. Acertada a matéria de Luis Dolhnikoff. A divulgação do genocídio armênio é importante... e assim vai ... com bastante variedade, leituras agradáveis, mais profundidade do que extensão, sem excessos publicitários, fotografias adequadas... enfim, vale a pena ! Nossos sinceros votos de um Ano Novo com grandes realizações, e que a Revista 18, continue honrando e orgulhando a intelectualidade judaica e brasileira, as quais vêm se banhando nos importantes artigos publicados, sem qualquer censura prévia e com os mais brilhantes colaboradores. Um grande abraço ao Conselho Editorial e ao Centro da Cultura Judaica. Felicidades e sucesso!!! Joaquim Rohr - São Paulo, SP Rachel Green, Centro de Memória e Acervo das Oficinas Culturais da Secretaria de Estado da Cultura - São Paulo, SP Em geral, eu não gosto de revistas de certa orientação segmentária – tipo femininas, juvenis, nordestinas etc. Isto inclui revistas para psicólogos, sociólogos, que tragam algo além de notícias específicas, digo, notícias sobre serviços. No começo, recebia a Revista 18 como se fosse mais uma. Devagar, fui sendo seduzida pela oferta de artigos que realmente me interessam. Não é apenas questão de concordar ou discordar. Os temas me interessam. Continuem, estou curtindo. Gostaria de agradecer e cumprimentar pela excelente qualidade da Revista 18! Sobre a Revista 18 nº 14, devo dizer que fiquei chocada com a publicação da matéria “Crônica de uma Guerra de Surdos”, de Marco Frenette, a propósito de um livro escrito há dez anos por Norman Finkelstein, em má hora publicado no Brasil, e que trata do conflito israelense-palestino. Frenette alega ter encontrado no livro “clareza e objetividade do começo ao fim”. Israel e sua história não podem ser divulgados pela ótica de autores que acham, a respeito de Finkelstein e de sua visão deturpada de sionismo, que “é forçoso admitir que estamos diante de um autor que busca, honestamente, descortinar esta justiça”. Marcelo Maghidman - São Paulo, SP Irene G. Freudenheim - São Paulo, SP Anna Verônica Mautner - São Paulo, SP Noé Darnel Lopes - Salvador, Bahia ASSINE REVISTA 18 [email protected] tel (11) 3971 4372 Sim, desejo receber 4 edições da Revista 18 Nome Endereço CEP Bairro Telefone ( Cidade ) Estado Fax ( ) e-mail Nascimento Formas de pagamento Anexo cheque nominal à Brand Member Marketing Direto Ltda. Valor de R$ 36,00 (assinatura nacional) / R$ 86,00 (assinatura internacional) Nº do cheque Banco Agência Depósito de R$ 36,00 (assinatura nacional) / R$ 86,00 (assinatura internacional) em nome de Brand Member Marketing Direto Ltda no Banco Bradesco conta nº 69798-2 agência 0200-3 Enviar cópia do comprovante do depósito e a ficha preenchida por fax (11) 3971 4372, ou correio para: Av. Deputado Cantidio Sampaio, 6095 - Jardim Brasília - São Paulo - SP - CEP 02860 001 Data Assinatura Foto: João Caldas SEÇÃO Parceiros e Mantenedores do Centro da Cultura Judaica Parceiros Esmeralda Banco Safra CSN - Companhia Siderúrgica Nacional Suzano Bahia Sul Papel e Celulose Mantenedores Esmeralda Edmundo Safdie Família Feffer Parceiro Rubi Unibanco Parceiros Platina Agora Sênior CTVM Banco Alfa Banco Calyon Brasil Banco Fibra Coteminas Hedging-Griffo Imetame Metalmecanica Inova Investimentos Julio Simões Transportes e Serviços Kvaerner do Brasil Metso Paper Polibrasil Resinas Triton e Forum Indústria e Comércio de Moda Unicard Mantenedores Platina Israel Vainboim Jayme Bobrow Roberto Feder Parceiros Ouro Adesi Indústria e Comércio de Adesivos Atlanta Química Industrial Booz Allen Hamilton Brascan Embalatec Fiorelli Comercial de Veículos Fortes Engenharia Guimar Engenharia Inpal S.A. Indústrias Químicas Invensys System Isapa Importação e Comércio KM Indústria e Comércio de Papel Mauá Investimentos Ltda. Paranasa Engenharia e Comércio Petroquímica União Politeno Química Fina REM Indústria e Comércio Satipel Industrial Savyon Indústrias Têxteis Securinvest Administradora de Recursos Ltda. Heilbut Arquitetura e Planejamento Ltda. Specialty Minerals do Brasil Voith Paper Mantenedores Ouro Flavio Mendes Bitelman Philip Wojdslawski Mantenedores Prata André Kauffmann Anuar Mitri Maluli Boris Tabacof Cláudio Hirschheimer David Erlich Eduardo Fischer Fredric Michael Litto Gustavo Halbreich Henri Philippe Reichstul Israel Grytz Jacques Sarfatti Jayme Garfinkel José Mindlin Mário Arthur Adler Mário Fleck Raul Meyer Renato Ochman Ruy Fischer Samuel Lafer Saul Olimpico Libman William Lohn ENTREVISTA Arquivo pessoal O divã, depois de um século e meio de Freud Fábio Landa: psicanálise longe das camisas-deforça que pretendem isolar, umas das outras, a psicologia, a estética e a literatura 4 Revista 18 paulistano Fábio Landa, radicado há quase duas décadas em Paris, é uma das vozes mais lúcidas do pensamento psicanalítico contemporâneo. Médico formado pela Escola Paulista de Medicina, doutorou-se em psicanálise pela Université Paris VII e continuou na França para dar seguimento a seus estudos. Acabou fazendo carreira em Paris: humanista à moda francesa, que se recusa a vestir as camisas de força artificiais que separam, em boa parte do universo acadêmico, a psicologia da filosofia e da estética, ele é um profundo conhecedor da tradição européia do humanismo judaico, leitor e intérprete de Canetti, Lévinas e Derrida (e tradutor destes dois últimos), e também um pensador original, dono de um olhar crítico sobre a realidade contemporânea, que sempre enxerga o homem dentro do contexto mais amplo em que vive, nunca se deixando levar pelos modelos reducionistas que se tornaram um estereótipo de certo tipo de psicologia. Por recuperar a O universalidade do pensamento freudiano, bem como suas interfaces com as ciências humanas de um modo geral, Landa é alguém que olha com extrema desconfiança para a fragmentação e a especialização das ciências em nosso tempo, cujo discurso, no seu entender, aproxima-se, de maneira cada vez mais perigosa, da superstição. Hoje ele atua em Paris como clínico e docente na área de filosofia, mas é também presença freqüente no Brasil, onde se dedica a ministrar seminários dirigidos a psicanalistas e também cursos em nível de pós-graduação em filosofia em diversas universidades (usp, Unicamp etc). Autor do livro Ensaio sobre a criação teórica em psicanálise (Editora da Unesp/Fapesp, 1999) e de numerosos artigos publicados por revistas como Les Temps Modernes (fundada por J. P. Sartre) e Le Coq Heron, Landa falou com exclusividade à Revista 18 sobre sua visão do papel da psicanálise e sobre os rumos da prática psicanalítica no mundo contemporâneo. Fotos: reprodução ENTREVISTA evista 18: 150 anos depois do nascimento de Freud, como o Sr. avalia a importância de seu pensamento no mundo contemporâneo ? A validade da psicanálise freudiana ainda se sustenta? R Fábio Landa: Talvez mais do que nunca, eu diria enfaticamente: sim, 150 anos depois do nascimento de Freud, no mundo contemporâneo, a psicanálise não só é válida como tem um imenso papel a desempenhar. Justificaria isso dizendo que, do meu ponto de vista, a psicanálise hoje talvez seja o último espaço laico, absolutamente laico, em que algo como um diálogo, mesmo que seja um diálogo impossível, como talvez seja todo diálogo, possa ter lugar. Num mundo com as determinantes que podemos pressentir, com espanto e perplexidade, num mundo em que se observa um ressurgimento agressivo da atuação das "ideologias", a psicanálise torna-se mais importante do que nunca. Hannah Arendt deu um sentido agora clássico ao termo “ideologias”, destacando que estas têm a pretensão de explicar tudo, pois consideram que o encadeamento dos eventos obedece à mesma “lei” que rege o encadeamento de idéias. Talvez se encontre aí a arrogância dos ideólogos que pretendem dominar tudo pelo seu pensamento, pretendendo mesmo controlar seu próprio pensamento. E hoje essas ideologias voltam a atuar de maneira agressiva por meio de todos os recursos que conhecemos: o apavoramento de grandes massas humanas, os meios mais intensos de propaganda, que impõem um comportamento extremamente primitivo calcado na violência sem limites. Aquilo que parecia ter sido solidamente conquistado não o foi. As “ideologias” totalitárias, o discurso totalitário com suas ramificações e até mesmo seus núcleos exterminadores e genocidas ressurgem. A mentira absoluta, de que falava Hannah Arendt, faz sua reaparição. Então, mais do nunca, a psicanálise surge como esse espaço antitotalitário. E como esse espaço de diálogo – possível e comprometido e ao mesmo tempo impossível – a psicanálise torna-se alvo, um dos alvos prediletos inclusive, do desprezo, do pouco caso, da tentativa de banimento. Este fenômeno é também fosse um balão de ensaio daquilo que Página do New York Times, de 1937, com artigo sobre o criador da psicanálise em seu 80º aniversário: psicanálise como resistência às simplificações grosseiras e ao materialismo crasso que caracterizam boa parte do século 20 pode vir a ser, do aniquilamento da opinião pessoal, da realidade interna das pessoas em prol do que Primo Levi apontava como uma sociedade governada pelos privilégios obtidos pela violência e mantidos pela violência. A ambição totalitária tende a apagar as fronteiras que conhecemos como esquerda ou direita numa busca aflita por privilégios. Hoje em dia, os discursos totalitários, a ambição totalitária, são mais do que nunca presentes, e portanto, mais do nunca, eu tenderia a afirmar a validade, a atualidade e sobretudo a necessidade do pensamento psicanalítico. 18: O projeto teórico de Freud explica a psique inconsciente como um Revista 18 5 ENTREVISTA repositório de conteúdos reprimidos por autoridades familiares e/ou culturais. A visão de inconsciente de Freud também toma como pressuposto que o irracional no homem pode ser explicado pela razão. Onde estão os limites desse projeto de desencantamento da psique ? FL: Talvez devêssemos discutir alguns dos pressupostos dessa pergunta antes de chegarmos ao desencantamento da psique. O projeto teórico de Freud a respeito do inconsciente é muito mais complicado que um mero repositório de conteúdos reprimidos. Alguns leitores críticos da psicanálise, como Canetti ou Lévinas, apontavam justamente, na psicanálise, essa aparência de uma certa mecânica de emoções, como se eu pudesse consertar minhas emoções. Como dizia Canetti, numa piada muito cruel, é como se eu fosse ao psicanalista com o mesmo estado de espírito com que levo ao mecânico meu automóvel, como se a psicanálise se propusesse a ser uma mecânica de emoções, uma arquitetura de articulações, em que alguém pudesse mexê-las, remexê-las ou normalizá-las. Mas o inconsciente freudiano não é simples memória reprimida. É isso também, mas não apenas. Freud não concebeu o inconsciente como um mero depositório, uma espécie de quintal onde se jogam coisas que não servem ou coisas que foram maceradas ou coisas que foram relegadas para a periferia de si. O valor da noção de inconsciente deve-se, justamente, ao fato de se ter de considerálo como se habitasse em mim um estrangeiro que está o tempo todo pedindo, exigindo, implorando, impondo, construindo em mim uma atitude hospitaleira, isto é, um estrangeiro que pede hospitalidade. Examinemos, por exemplo, a manifestação onírica: todas as noites sonhamos e o sonho aparece como a linguagem de um território estranho, numa língua estranha, da qual não conhecemos as palavras nem a gramática, e menos ainda a estrutura etimológica. Não conhecemos nada dessa língua, nada desse território e no entanto sabemos que há algo nos dizendo alguma coisa, alguém nos dizendo alguma coisa, e somos obrigados a fazer um esforço de tradução de um lugar para 6 Revista 18 outro, de uma língua para outra, de um registro afetivo a outro registro afetivo. Esse estrangeiro, que está sempre incomodando, me obriga a ter uma orelha para escutar uma língua que eu não conheço, ele me força a criar uma língua e faz com que eu lhe dê ouvidos porque insiste em falar comigo, insiste em obter uma resposta de mim. E esse estrangeiro, esse território estranho, demanda de mim, inclusive, algo que eu não tenho, quer que eu lhe diga “fique à vontade”, como quando a Alguns leitores críticos da psicanálise, como Canetti ou Lévinas, apontavam justamente, na psicanálise, essa aparência de uma certa mecânica de emoções, como se eu pudesse consertar minhas emoções gente recebe uma visita, “faça como se estivesse em casa”. Esse estrangeiro, que Freud me diz que eu acolho em mim – ou não acolho em mim – demanda a minha hospitalidade, meu esforço de tradução, meu esforço de compreensão. Às vezes suas maneiras me parecem até selvagens, me parecem pouco civilizadas, como se esse estrangeiro me falasse de alguma coisa que eu não reconheço como eu. O estrangeiro me fala de uma civilização ou de uma não-civilização, de uma anticivilização que coloca em questão a maneira pela qual eu vivo atualmente, pela qual eu disponho meu espaço, pela qual eu disponho os meus móveis, meus interesses. Esse estrangeiro apresenta-se, dia após dia, para me dizer que a minha maneira civilizada não é a única maneira civilizada, que dentro de mim existe uma outra maneira, um outro modo de fazer, de pensar as coisas, de querer. Portanto, o inconsciente é esse repositório, mas não só. Ele é esse repositório de assuntos reprimidos (é um aspecto importantíssimo; sem dúvida, foi a primeira definição do inconsciente), mas o inconsciente de Freud é muito mais do que isso. O inconsciente não está nos limites da consciência, não é algo que já foi consciente e não é mais. É algo que jamais foi consciente. Como se eu tivesse a memória de algo que não vi, e sobretudo não vivi. Se fosse a memória só daquilo que vivi, diria que seria um repositório. Mas é uma memória daquilo que não vivi. E como posso ter a “memória” de algo que não vivi? Esse é o grande interesse do inconsciente, tal como Freud formulou. Quando pensamos o inconsciente como essa “memória” daquilo que talvez eu nunca tenha vivido, abrimos o caminho para uma postura analítica segundo a idéia de Freud, em que o analista fornece, não interpretações, mas construções ao seu analisando. Freud preferia a palavra construção à palavra interpretação. O analista contrói modelos, hipóteses que ele submete ao seu analisando, de tal maneira que aos poucos essas construções daquilo que não foi vivido, daquilo que poderia ter sido vivido, seja o que talvez está sendo comunicado dis após dia pelos sonhos. Algo que não vivi mas também que não posso esquecer. Uma "memória" que se torna uma necessidade de conhecer. Preciso conhecer esse algo que habita em mim e que vem desse território em mim onde se encontra uma “memória” do não-vivido, por mais estranho que isso possa parecer. 18: Entretanto, a psicanálise freudiana muitas vezes é percebida como um método que busca, por meio da razão, conhecer e explicar as especificidades e patologias de cada indivíduo... ENTREVISTA FL: A visão de inconsciente de Freud não pressupõe uma explicação do irracional pela razão já supondo que a razão vá submeter a não-razão. Freud aponta para uma coabitação entre instâncias de naturezas distintas em que jamais uma vai submeter a outra definitivamente, o que estabelece a necessidade de negociação entre as instâncias. E esse é um dos grandes interesses do ensinamento psicanalítico: em cada um de nós coabitam instâncias distintas, que negociam perpetuamente, para desespero dos portadores das verdades e certezas únicas. Nenhuma instância em nós é capaz de ser o amo e senhor único, nem mesmo o tão decantado logos que, diga-se de passagem, pretendeu ter tomado o poder num aparentemente bem-sucedido golpe de Estado. A psicanálise mostrou que o rei, qualquer rei, está nu, inclusive o logos, que durante séculos animou a crença de tantas mentes brilhantes, pretendendo nos ensinar a nos desembaraçar de nossas paixões. A razão deve conhecer seus limites. A razão precisa aprender a ser humilde porque precisa negociar com outras instâncias que funcionam de acordo com outros princípios. Sigmund Freud: o inconsciente é como a memória de algo que não foi vivido 18: Parece-lhe que hoje, no universo da cultura e da sociedade, essses limites da razão estão se tornando mais nítidos e reconhecidos? FL: Hoje em dia assistimos ao reencantamento da natureza, dos céus, das relações humanas – mas por meio dos demônios, dos velhos demônios conspiracionistas, “complotistas”, da tentativa de explicar o mundo, novamente, pelos maus e os bons, Satã, Lúcifer, as hordas infernais contra as hordas celestiais. Isto é um reencantamento dos céus, da natureza, uma tentativa de dominar aquilo que nós não dominamos porque o mundo é complexo demais para que o possamos dominar e aceitamos isso muito mal. Então, depois do desencantamento, nós vemos o reencantamento dos céus pelos extraterrestres, pelos ovnis. Nós vemos o reencantamento das relações humanas pelos complôs, pelo racismo. O reencantamento – ou o encantamento que nunca desapareceu na psicanálise – não me parece passar por essa mágica um pouco virulenta... 18: A psicanálise hoje, então, surgiria como a ciência do convívio e da conciliação? A psicanálise nos obriga a estarmos acordados, a não podermos dormir, a estarmos insones, incomodados por aquilo que é estranho, estrangeiro, incontrolável, não-domesticável e que nos obriga a um doloroso abandono de uma posição de dominação absoluta FL: Sim, ela trata da imperiosa necessidade de coabitar. Quase como se pudéssemos dizer: podemos viver juntos? Como se eu pudesse transformar essa pergunta em mim mesmo: será que eu posso viver junto comigo? Será que os diversos "eus" podem coabitar em mim? Será que posso ser um território de coabitação? Não estamos, aqui, muito longe da palavra poética, uma palavra que é, ao mesmo tempo, comunicativa e performativa, e que porta em si a possibilidade de atravessar as barreiras entre eu e os meus outros, entre eu e o outro; atravessar as barreiras míticas, todas as barreiras mistificadas que existem entre eu e os outros, e os meus outros. A palavra poética vara essa carapaça e atinge o outro, e o outro me atinge numa afetação recíproca, nos afetamos, estamos afetados, não somos Revista 18 7 ENTREVISTA indiferentes. A palavra poética me arranca do meu isolamento, me arranca da minha ilusão de que posso reinar sozinho, me arranca da ilusão de que posso extirpar aquilo que me incomoda e me obriga a escutar e a tentar dizer, varando as barreiras aparentemente inexpugnáveis. Estamos próximos do que Blanchot dizia da psicanálise: “uma conversa sem fim”. 18: Antes do século 19 europeu, a humanidade norteou as suas sociedades pela crença religiosa e atribuiu à espiritualidade um papel fundamental na organização da vida humana. O Iluminismo, do qual a teoria freudiana é tributária, passou a colocar em xeque essa visão tradicional, buscando pela via da razão, o que se considerava como a real libertação do homem. O projeto iluminista, porém, vê-se esgotado em nossos dias. O que se passa com a teoria de Freud nesse contexto ? FL: Sim, de alguma maneira poder-se-ia pensar que uma das grandes fontes do 8 Revista 18 pensamento psicanalítico é o Iluminismo. Talvez devêssemos considerar alguns fatos que se passaram completamente fora do âmbito da psicanálise. Eu me refiro à introdução, não só dos discursos genocidas, mas da implementação de políticas genocidas que se tornaram práticas genocidas. Nesse sentido, o estabelecimento de todas as estruturas estatais fundadas no racismo nazista é um paradigma fundamental e fundador. Essas políticas genocidas, que se tornaram práticas genocidas, talvez tenham sido um grande sobressalto, uma tentativa desesperada de estabelecer uma onipotência do homem, ou seja, um domínio total do homem sobre o outro homem, domínio total de um pensamento sobre outro pensamento, domínio total de uma lógica sobre outra lógica, domínio total de uma idéia tomada como “verdade”. Hoje em dia somos, ao mesmo tempo, herdeiros dessas políticas genocidas e vítimas intelectuais e afetivas daquilo que nasceu com as políticas genocidas e tornou-se um veio persistente, duro, teimoso, perseverante: o negacionismo. Em última análise, o negacionismo quer dizer: “não, não houve exterminação, portanto precisamos exterminar hoje”. Diante dessa inflamação, Lévinas escreveu: “Amar mais a Torá do que Deus”; o estudo se sobrepõe à crença cega ou, se quisermos, o compromisso, a paciência, se contrapõem ao fanatismo, ao imediatismo, à força. Creio que é nesse contexto que podemos situar a psicanálise. Creio que a psicanálise não ficou imune a esse abismo que é a política genocida acompanhada de suas práticas genocidas, e ao mesmo tempo de práticas negacionistas. Hoje temos de reconhecer que está em curso uma tentativa de recuperar uma certa figura de onipotência ante o desespero da perda da onipotência. Figura de onipotência que parecia ultrapassada, figura pretensamente dominadora que pode determinar o fim do outro. Figura que usa todas as artimanhas e todos os argumentos e toda a retórica para estruturar, justificar, explicar, tornar aceitável ENTREVISTA o terror, paralisar o outro pelo terror, tornando-o objeto de um ato predatório, a caça do caçador. Talvez nesse contexto a psicanálise seja tributária do Iluminismo, mas também de algo mais sutil: ela rompeu com a hipnose, ela rompeu com o outro dormindo, com o outro em meu poder. Uma análise nos obriga a estarmos acordados, a não podermos dormir, a estarmos insones, incomodados por aquilo que é estranho, estrangeiro, incontrolável, não-domesticável e que nos obriga a um doloroso abandono de uma posição de dominação absoluta, que nos obriga a uma dolorosa acomodação com o outro irredutivelmente outro e diferente de mim. O outro enquanto outra pessoa, digamos assim, ou o outro enquanto as minhas outras instâncias que habitam em mim e que pedem, exigem, impõem, resistem a toda tentativa que não seja a de uma coabitação difícil, conflituosa. Neste sentido, a psicanálise não é o domínio da razão, mas é a aceitação do conflito. Conflito que não necessariamente tem que ser uma ruptura ou uma guerra. Mas A placa da campainha de Freud em seu famoso consultório na Berggasse, em Viena: relações do psicanalista com a capital austríaca sempre foram marcadas pelo sentimento de rejeição e pela atmosfera anti-semita um conflito, um conflito de interesses, que tem de ser negociado sem que nenhum dos parceiros possa impor sobre o outro suas próprias condições, e em que ambos têm que abandonar dolorosamente a onipotência, essa tentativa de domínio absoluto, para buscarem as condições de coabitação. 18: Trata-se, portanto, menos de um processo de libertação do que de um processo de aceitação de limites? FL: A libertação do homem é uma libertação muito precária, mais ou menos como sair de uma prisão para entrar em outra. Ou melhor, sair de uma prisão ilusória em que eu pretendo poder exterminar, eliminar, aniquilar o outro, os meus outros, todos os outros, para outra prisão, para uma zona de conflitos em que estou o tempo todo me afetando, me auto-afetando, sendo afetado pelo outro, afetando o outro, sem poder me socorrer da indiferença, numa “conversa sem fim”. Freud não conheceu os campos de concentração nem as câmaras de gás. Nós conhecemos e nós conhecemos algo mais também: a negação das câmaras de gás. Freud vivia num tempo em que aparentemente ainda podia acreditar, sem desconfiar, na liberdade. Liberdade que no pensamento ocidental sempre foi considerada como indiscutível, algo que ninguém ousava sequer tocar em sua primazia. Lévinas diz, muito apropriadamente, que a liberdade rapidamente se torna liberdade assassina e que a liberdade não tem essa primazia, mas que ela tem que ceder sua primazia, quase o seu privilégio, à responsabilidade, à responsabilidade infinita: sou infinitamente responsável pelo outro, por esse outro que Ícones religiosos de civilizações antigas pertencentes à coleção do primeiro psicanalista (da esquerda para a direita): retrato de jovem, de Roma, em marfim, século 1 a.C.; figura masculina, de Chipre, século 6 a.C.; Ushebti, ou criado, egípcio, em faiança, da 25ª-30ª dinastia, século 7-3 a.C.; Afrodite, de Mirna, do período helenístico, século 2 a.C.; ídolo antropomórfico Mescala, do México, século 12-15: o grande pesquisador da alma humana quis trazer de volta para a modernidade aquilo que a história sepultou na alma humana Revista 18 9 ENTREVISTA por aceitá-la e por aceitá-la como algo mais de nosso ambiente com o qual devemos nos acomodar. Talvez, se o intelectual, aquele que tem como profissão estar alerta, se deixa adormecer, ele trai sua tarefa social de barreira, de alarme de paralisia do pensamento de todos. O intelectual traidor torna-se traidor de todos e do pensamento. O homem aterrorizado já é vítima e vítima humilhada e ofendida na sua inteligência, presa fácil de tornarse apenas mais um na massa. Talvez devêssemos, com Karl Kraus, jamais ceder e abrir a brecha por onde passam as palavras que vão constuir Auschwitz. Os limites da psicanálise: dominação absoluta por meio da razão é a grande quimera que surge, na Europa, a partir do Iluminismo, e que só pode ser contida pela noção de responsabilidade e humildade não se deixa dominar, por esse outro que, sem ele, eu não sou eu. Nesse contexto em que a responsabilidade, lenta mas inexoravelmente, afasta a liberdade de sua posição majestática, imperial, a psicanálise e a filosofia têm de considerar a ética como filosofia primeira, como queria Lévinas. Não estamos longe do espírito freudiano. Freud dizia que o Ego, esse sacrossanto senhor, é um pequeno senhor, um ínfimo senhor, quase um não-senhor, é um anão que tem que lidar, negociar com dois gigantes, aquilo que Freud chamava o Superego, muito mais do que o Ego, aquele que está acima do Ego, e o Id. Então vemos que a questão de negociar não é nem mesmo negociar honrosamente, pomposamente, já que se trata da negociação de um anão com dois gigantes. Assim, homens hoje, ou mentimos, nos iludimos e permanecemos aspirando essa dominação senhorial, absoluta, sobretudo por meio do terror, ou somos obrigados humildemente, modestamente, quase submissamente, a negociar. Difícil entrada neste milênio que se anunciava radioso e cheio de promessas de liberdade e de felicidade. Gostaria de insistir sobre a palavra terror. De tanto repeti-la, manuseá-la, acabamos por torná-la familiar, acabamos 10 Revista 18 A psicanálise não é o domínio da razão, mas é aceitação do conflito. Conflito que não necessariamente tem que ser uma ruptura ou uma guerra. Mas um conflito, um conflito de interesses, que tem de ser negociado sem que nenhum dos parceiros possa impor sobre o outro suas próprias condições 18: A psicanálise surgiu como uma ferramenta para a cura de doenças psíquicas ou mentais. Ela também é capaz de proporcionar a felicidade e a realização do ser humano? FL: Gostaria de retomar o comentário de alguns leitores críticos da psicanálise que mencionei anteriormente: se fosse ao psicanalista como se estivesse levando meu automóvel ao mecânico, efetivamente a psicanálise, então, como ferramenta, não teria nenhum interesse. Mas creio que o valor da psicanálise é que começou a se interessar pelas doenças, como na formulação da pergunta, psíquicas ou mentais, e muito rapidamente deixou-se convencer pela evidência de que as doenças psíquicas ou mentais não são apanágio de alguns, os “doentes”, mas são propriedade de todos. Todos nós passamos por lá. Todos nós, sem muito caricaturar, passamos por experiências das quais pensávamos muito orgulhosamente, até algumas décadas atrás, estar resguardados. Nenhum de nós pode dizer que está do lado certo da fronteira entre os sadios e os doentes, porque estes limites, que nos pareciam tão evidentes, claros, intransponíveis que praticamente não teríamos com que nos preocupar, na realidade não são claros. Enfim, a psicanálise teve o mérito de abandonar muito rapidamente esta situação confortável que colocava os “doentes” de um lado e os “médicos” e os “sadios” de outro. Os psicanalistas reconheceram o interesse de buscar na literatura ou então nos casos ditos raros ou bizarros, alimento, fonte de aprendizado. Essa barreira julgada clara, determinada, entre saúde mental e doença mental, pode ser transposta com certa facilidade. Nesses termos, é muito difícil falarmos de felicidade, realização, quando reconhecemos a proximidade com o sofrimento, o drama e a tragédia. Felicidade, realização, são termos muito vagos para a psicanálise. Observamos, hoje ainda, disciplinas que tentam mostrar efetivamente que podemos nutrir as ilusões de que vamos dominar tudo. Cremos ou estamos dispostos a acreditar que somos científicos, que vamos resolver as coisas pela ciência, pelos comprimidos, pela mudança dos comportamentos. E vamos ser felizes. É interessante constatar como o pensamento científico, dito científico, está tão perto do pensamento mágico, do pensamento religioso, nessa ilusão de acreditar na salvação, redenção, felicidade, o equilíbrio e todas essas coisas que, se olharmos com olhos um pouco menos hipnotizados, não existem. 18: E em que medida pode a psicanálise aliviar os sofrimentos que são intrínsecos à condição humana? FL: A psicanálise, dizia na resposta à ENTREVISTA primeira pergunta, é um espaço leigo. Ela não promete a redenção ou então a recompensa, antes ou depois da morte, como no campo religioso, onde muitas vezes se afirma que se a felicidade não está aqui, ela está um pouco mais adiante. Se a recompensa não está aqui, não tem problema, ela está um pouco mais adiante, para além da vida, da morte. Para a psicanálise, do ponto de vista da negociação, a questão da felicidade e da realização surge como um problema insolúvel ou apenas temporariamente solucionável. Saímos de uma ilusão de libertação para um peso da responsabilidade, saímos de uma ilusão de tudo podermos para uma necessidade de negociar pacientemente. De tal maneira que a psicanálise, primeiro, não é uma ferramenta, segundo, pode até ser uma terapia, e pode até ajudar um pouco, mas absolutamente não promete a felicidade, muito menos a iluminação, menos ainda a realização humana. Mas ela promete algo muito difícil de aceitarmos como promessa: um caminhar lento, aflito, de negociação com os outros de mim, de dentro e de fora de mim e que muda completamente o registro da questão da realização ou da felicidade para o registro da negociação do conflito e para o registro da humildade, da modéstia. Sofremos, de nossas próprias pulsões, a pressão de termos de crescer e crescer é um trabalho de nomeação, de encontrarmos as palavras e a maneira de dizer, portanto também de aprendizado (no sentido forte do termo, aprender com a experiência). Ante doutrinas que prometem as maravilhas do além, como se a morte fosse algo nem tão grave assim, e ante os livros e os discursos que nos prometem que, fazendo isso e aquilo vai dar tudo certo, o psicanalista só pode oferecer um olho sorridente e outro lacrimoso. 18: Libertar o ser humano de seus condicionamentos e neuroses pressupõe a existência de um Eu verdadeiro que se encontra aprisionado. A noção de que o indivíduo nasce como uma tábula rasa e que ele é o fruto de suas expériências e traumas da infância, é compatível com a idéia de um Eu verdadeiro que busca realizar-se num mundo real ? O psicanalista e seu cão da raça chow-chow: conscientizar o indivíduo da multiplicidade de aspectos da personalidade é maneira de enfrentar o reducionismo racionalista e utilitarista que ameaça, cada vez mais, transformar seres humanos e cidadãos em autômatos Nesse contexto em que a responsabilidade, lenta mas inexoravelmente, afasta a liberdade de sua posição majestática, imperial, a psicanálise e a filosofia têm de considerar a ética como filosofia primeira, como queria Lévinas FL: No campo da psicanálise, estamos muito longe de pensar que uma criança é algo que nasce em branco. A criança, o pequeno homem, o homem que nasce, já nasce imerso numa tal complexidade, já nasce sendo de uma tal maneira complexo, que a última coisa que a gente poderia pensar, para sermos rigorosamente psicanalistas, é que o homem nasce como uma tábula rasa. Poderíamos lembrar uma passagem de Kafka que pode nos servir. Kafka, quando estava elaborando A muralha da China, escreveu no seu diário um pequeno conto: construir a si mesmo é como construir uma casa. Construir a si mesmo é como construir uma casa, em que começamos a desmontar a casa velha, construindo a casa nova. Terminamos por constatar que não só não temos mais a casa velha como ainda não temos a casa nova. Enquanto a casa velha já não tem mais teto, a nova só tem uns pilares. Mudamos de uma casa que não serve mais para uma casa que ainda não nos serve, de uma casa que já não nos abriga para uma casa que ainda não pode nos abrigar. O Eu verdadeiro, se é que existe algo como Eu e como verdadeiro, é um Eu nu, vulnerável, em busca de certo conforto ou proteção, um Eu fraco, frágil, laborioso, mas também preguiçoso. Então, se existe um verdadeiro Eu, é quase como se fosse um Eu em permanente exílio, um Eu que, se quiser possuir alguma coisa, possui muito pouco, e tem uma posse que não lhe serve Revista 18 11 ENTREVISTA para quase nada. Uma condição de habitação muito precária, quase como alguém que tem que prestar contas ao proprietário da casa ou do terreno. Quase alguém que tem sempre que estar pedindo empréstimo e financiando o teto ou a porta, sabendo que mesmo assim não vai conseguir construir uma fortaleza, não vai conseguir ficar sossegado. Está condenado a ser frágil. A condição de fragilidade talvez seja a condição mais complexa que possamos atribuir à criança. Todos nós começamos na condição complexa de dependência. Se não fosse o outro para cuidar de mim, eu, pequeno homem que acabou de nascer, não teria chance nenhuma. fação com a vida? Freud previa estes rumos para a civilização ocidental? 18: E o que é para Freud o mundo real ? A realidade palpável e concreta, os reflexos dessa realidade na psique humana ou os poderes psíquicos que cada indivíduo traz consigo? É interessante constatar FL: Talvez puséssemos dizer que a psicanálise trouxe algumas poucas contribuições, mas essas poucas contribuições são suficientes para que a psicanálise tenha um lugar respeitável na história do homem. Uma dessas contribuições é que Freud nos mostrou que a realidade também não é uma, a realidade é duas, pelo menos; que temos uma realidade interna e uma realidade externa e que essas duas realidades são tão reais uma quanto a outra. Vivo, não uma realidade, mas o encontro ou o choque ou o conflito entre duas realidades, que são irredutíveis uma à outra: a realidade interna e a realidade externa. Minha realidade interna constrói o mundo da mesma maneira que o mundo me constrói. Essas duas realidades estão, permanentemente, num comércio muito denso e talvez pudéssemos nos aproximar do que diziam os surrealistas: a convergência virtual entre duas realidades é a aspiração do homem. pensamento mágico, 18: Como se explica, à luz da teoria freudiana, o paradoxo que se observa no assim chamado “mundo desenvolvido”, onde segurança material parece ter como contrapartida, não um grau crescente de felicidade, mas problemas cada vez mais graves de consumo de drogas, explosões de violência e insatis12 Revista 18 FL: Freud, como profeta, não merece uma atenção particular; chegou a supor o nazismo como uma febre passageira. Porém, deixou um legado considerável ao prevenir que a psicanálise não poderia ter uma “visão de mundo”: um analista analisa. Nesses grandes eventos mencionados na questão – o consumo de drogas, as explosões de violência, a insatisfação com a vida, talvez pudéssemos pressentir uma tentativa mágica e imediata de buscar algo como uma felicidade prometida ou como o pensamento científico, dito científico, está tão perto do do pensamento religioso, nessa ilusão de acreditar na salvação, redenção, felicidade, o equilíbrio e todas essas coisas que, se olharmos com olhos um pouco menos hipnotizados, não existem então uma satisfação prometida. E a constatação de que essa felicidade, essa satisfação é uma promessa, e como toda promessa, uma dívida que não se paga. O consumo de drogas ou as explosões de violência têm, evidentemente, uma multiplicidade de fatores implicados, mas talvez também tenham a ver a com o fato de que a promessa do desenvolvimento científico não trouxe consigo a contrapartida que esperávamos. Nada parece poupar, abreviar ou aliviar a tarefa de cada um na construção de si mesmo. Essa tarefa, a construção de si mesmo, hoje parece em grande dificuldade. Ressurgem as ideologias totalitárias, com seus grandes mestres, suas ordens simples e peremptórias, sua massa de seguidores, mais ou menos vítimas, mais ou menos criminosos. Os discursos simplificadores, o ódio pela cultura e pela inteligência, as explicações conspiracionistas e diabólicas da história, infelizmente, estão outra vez em alta. 18: O pensamento freudiano está calcado sobre um rompimento radical com o legado espiritual e religioso do judaísmo, mas ao mesmo tempo Freud via-se, sempre, como judeu. De que maneira o pensamento de Freud está impregnado pela tradição judaica? FL: Teríamos que ser muito cautelosos para dizermos que o pensamento freudiano é um rompimento radical. Sim, é um rompimento radical com o legado espiritual e religioso de um certo judaísmo e de uma certa maneira de abordar o judaísmo. Numa troca de correspondência entre Freud e Abraham, verificamos algo significativo: os dois interlocutores diziam, um para o outro, que “talvez nós tenhamos abandonado o estudo do Talmude, mas o Talmude não nos abandonou”. Poderia ser uma anedota, mas nem tanto porque, com um certo judaísmo, sim, a ruptura de Freud é radical, mas com outro judaísmo seria mais difícil afirmar isto. Porque é uma vasta pergunta, essa. Alguns grandes trabalhos a respeito da relação de Freud com o judaísmo mostram que se trata de uma relação extremamente complicada, conflituosa, já começando pela história pessoal de Freud, de Freud com seu pai. Há um célebre episódio em que o pai de Freud conta a Freud que ele estava andando na calçada quando um antisemita passa por ele e joga o chapéu dele na rua e diz : “Vai pegar, judeu!” E Freud pergunta ao pai: “E o que você fez, pai?”. E o pai responde: “Eu desci da calçada e fui pegar o chapéu”. Seria oportuno avançar aqui, sem desenvolver a hipótese de que o interlocutor irredutível de Freud e da psicanálise é a figura do anti-semita? Talvez aí sim valesse a pena uma tentativa de resposta, evidentemente sujeita polêmica e a grandes divergências. Freud fundou um método baseado, entre outras coisas, sobre a resistência, quer dizer, eu resisto à análise. Aí não estamos longe de um certo judaísmo quando os judeus, ao receberem as Tábuas da Lei (e não é qualquer coisa receber as Tábuas da Lei. Primeiro, porque recebê-las impõe uma série de restrições, uma delas capital: não matarás) respondem, “faremos e compreenderemos” Nessa ordem. A compreensão no pensamento ocidental parece preceder a ação. Os judeus responderam, “faremos e compreenderemos”. Quer dizer, antes de compreender, a gente faz. E é para compreender que a gente faz. De tal maneira que Freud dizia: o senhor quer se analisar, pois não, o senhor vem aqui três ou quatro vezes por semana, o senhor deite no divã, o senhor fale tudo o que lhe passe pela cabeça, não esconda nada, não critique nada. Não quer contar tudo: resistência; não quer vir: resistência, não quer deitar: resistência. Quer dizer, faremos e compreenderemos. E esse fazer e compreender é, digamos assim, uma máxima ou então algo que talvez Freud tenha tomado do judaísmo e que de alguma maneira não é uma ruptura tão radical, mas é como um empréstimo radical, uma dívida radical. Faremos e compreenderemos. Outro grande eixo: a transferência. Eu estou na presença do outro e algo se passa que é uma repetição, mas também uma novidade. Saindo do campo da psicanálise, para depois voltarmos a ele, lembremos o face a face de Lévinas: um homem só pensa em face de um outro homem. Não estamos muito longe de Freud que dizia a mesma coisa, quer dizer: uma análise é sempre algo amendrontador para os dois. Se fosse uma mera repetição, qual seria o amedrontamento? Nenhum. Tanto para o analista quanto para o analisado, a situação analítica tem alguma coisa que incomoda, que desconcerta, que é uma não-repetição. Repete alguma coisa, mas há algo que se passa entre dois e que é uma afetação recíproca. Isso quer dizer, dois homens, dois seres humanos em presença um do outro, vão se modificar, um por causa do outro. Isso nos reconduz a alguma coisa que Canetti dizia, ele que foi um grande crítico da psicanálise, mas também um leitor extremamente atento: “Se alguém me escuta com atenção, verdadeiramente, Peter Aprahamian/Corbis/Stock Photos O consultório de Freud em Londres: a construção do ser humano se dá a partir do choque entre realidades O que a psicanálise promete é algo muito difícil de aceitarmos como promessa: um caminhar lento, aflito, de negociação com os outros de mim, de dentro e de fora de mim e que muda completamente o registro da questão da realização ou da me ocorrem pensamentos que jamais eu poderia pensar”, ou seja, uma conversa de verdade, com tudo que se pode dizer de uma conversa de verdade, efetivamente cria em mim e no outro algo que não existia antes. Quer dizer eu penso, eu descubro, eu vejo coisas que não tinha visto antes, eu penso coisas que não tinha pensado antes. De tal maneira que há uma dimensão fundamentalmente criativa na psicanálise e que vem, de alguma maneira, desse método, que temos que reconhecer – e eu repito, com todas as possibilidades de divergências, disputas, polêmicas, argumentações, que vem de um certo dizer judaico : “Faremos e compreenderemos”. felicidade para o registro da negociação do conflito e para o registro da humildade, Luis S. Krausz, editor da Revista 18, é mestre em Letras Clássicas pela University of Pennsylvania, pós-graduado pela Universidade de Zurique e doutorando em Literatura e Cultura Judaicas pela USP da modéstia Revista 18 13 Fotos: reprodução PERISCÓPIO Bem junto ao Ninho da Águia “Louvai ao Senhor” O Intercontinental Berchtesgaden, luxuoso resort situado nas belas montanhas de Obersalzberg, na localidade de Berchtesgaden, Alemanha, completa um ano de funcionamento em março de 2006. O hotel é dotado de 138 quartos, três restaurantes, piscinas (interna e externa), área de conferência, salão de beleza, campo de golfe, spa e uma belíssima vista para as montanhas. São instalações com padrão cinco estrelas voltadas para hóspedes exigentes. O resort aceita a presença de animais de estimação em suas dependências. Um detalhe apenas o transformou em alvo de espanto da comunidade internacional: Berchtesgaden era o lugar de repouso de Adolf Hitler, onde ele residiu por longas temporadas e planejou muitas ações da 2a Guerra Mundial. Ali tinha sua residência para férias e fins de semana, chamada O Ninho da Águia, à qual foram acrescentados, em 1943, uma fortaleza e um bunker. O Intercontinental foi construído no lugar de um antigo albergue para membros do partido nazista, próximo ao Ninho. O bispo da cidade tcheca de Brno determinou que as obras do compositor Gustav Mahler (1860 - 1911) não apresentam, em seu conjunto, louvores a Deus em quantidade suficiente. Por isto, os concertos dedicados à obra de Mahler, que desde o ano 2000 eram executados na catedral de Jihlava, foram proibidos pelo bispo, que apresentou como justificativa um decreto papal de 1987, que determina que “só músicas que contenham louvores a Deus podem ser apresentadas em igrejas”. O Conselho Municipal de Jihlava reagiu com espanto à ordem do bispo. Mahler passou nesta cidade seus primeiros 15 anos de vida, e é conhecido como um filho desta localidade na Moravia. E agora, Hamas? Enquanto não se definem os rumos do novo governo israelense, Hamas parece hesitar entre o desejo de diálogo com a União Européia e os Estados Unidos e o caminho de violência que vem seguindo até agora. Por Nahum Sirotsky ericó fica na Cisjordânia, nas proximidades do rio Jordão. Tem uns 20 mil habitantes. E disputa com Damasco, capital da Síria, o título de mais antigo centro urbano habitado nessa parte do mundo onde surgiu o monoteísmo. Segundo a Bíblia, Jericó foi a porta de entrada das terras prometidas aos hebreus, que vinham de 40 anos de andanças pelo deserto do Sinai. Tudo isto há muitos milhares de anos. Em 1967, na Guerra dos Seis Dias, os israelenses conquistaram a cidade, e em 2005 entregaram-na à Autoridade Palestina, então presidida por Yasser Arafat, como parte de um processo que, imaginava-se, levaria a um Estado palestino independente. Mas a chamada Intifada de Al Aksa, revolta palestina, interrompeu a marcha. Foram meses de choques. Depois, veio a morte de Arafat, e a queda de Sharon, em Israel. Eleições gerais na zona da Autoridade Palestina transferiram o poder para um Conselho Legislativo (Parlamento), com a J 14 Revista 18 imprevisível maioria absoluta do Hamas, grupo que promete governar com honestidade, implantar um Estado teocrático. E não reconhecer o direito de Israel existir. Eleições gerais em Israel foram marcadas para o fim do mês corrente. E devem decidir quem será o chefe de Governo, no lugar de Sharon, que foi substituído por um interino. No dia 14 de março, Israel invadiu Jericó, para capturar um grupo de palestinos que estavam confinados num presídio palestino. Entre eles incluíam-se indivíduos apontados como autores do assassinato do então ministro do Turismo, general Rehavam Zeevi, um dos grandes heróis militares do país. Os criminosos haviam sido entregues à Autoridade Palestina com o compromisso, garantido pelos Estados Unidos e Inglaterra, de serem mantidos em detenção. Um deles era o líder de Frente Palestina, em discordância com o processo de paz. Circulou a notícia de que ele seria solto pelo Hamas. Israel agiu para impedir que PERISCÓPIO Miss também é cultura Mais de 300.000 telespectadores franceses elegeram Alexandra Rosenfeld, de 19 anos, como a mulher mais bonita da França, e ela recebeu o título de Miss França 2006. A nova rainha da beleza, que se diz leitora e admiradora do escritor italiano Primo Levi, representou, no concurso nacional, a região do Languedoc, e representará o país no próximo concurso internacional de Miss Universo. Sarah, a Divina A grande atriz francesa Sarah Bernhardt (1844-1923) é o tema de uma exposição atualmente em cartaz no Jewish Museum de Nova York. Esta artista legendária, que é também descrita na obra-prima de Marcel Proust Em busca do tempo perdido, era filha ilegítima de uma cortesã judia holandesa, chamada Judith van Hard. Embora fosse batizada, Sarah Bernhardt foi alvo de anti-semitismo, principalmente no início de sua carreira, e ridicularizada pela imprensa da época por causa de sua “aparência judia”. Contra e a favor O New York Times de 3 de fevereiro citou palavras do secretário de Defesa dos Estados Unidos Donald Rumsfield, que comparam o presidente da Venezuela Hugo Chávez a Adolf Hitler. A comparação de Rumsfield desencadeou uma série de protestos, inclusive dentro da comunidade judaica norte-americana. Recentemente, Chávez fez um pronunciamento que poderia ser interpretado como sinal de anti-semitismo, porém, pouco depois, encontrou-se, de maneira respeitosa, com membros destacados da comunidade judaica venezuelana. O gesto de Chávez, de enviar óleo combustível para aquecimento doméstico a preços subsidiados para a população pobre dos Estados Unidos, tem sido aplaudido por muitos rabinos norte-americanos, indignados com o corte de subsídios por parte da administração Bush. Virá a vingança com a volta a ataques suicidas a Israel? Ou fossem liberados. Foi uma batalha de cerca de dez horas entre os novos líderes palestinos optarão por compensação compaforças de Israel e um grupo de detentos, que prometiam resistir tível com seus objetivos maiores? Europa e Estados Unidos se até a morte. Preferiram a vida. E se entregaram. negam a conversar com o Hamas enquanto o grupo islâmico Em Israel se discute, desde então, se a operação foi palestino persistir em sua linha de se justificada pela possibilidade de soltura recusar a aceitar a existência de Israel e de líderes perigosos ou se houve se reservar o direito de continuar como intenção eleitoral do atual chefe de movimento de libertação nacional, ou governo interino e candidato nas Como se verificou no caso das seja, de manter um estado de guerra. Mas eleições que se aproximam. Ninguém, imagina-se que talvez o Hamas prefira porém, discute a periculosidade dos reações às caricaturas de dialogar com os europeus e americanos, elementos detidos. Maomé, o que acontece na adquirindo, desta forma, legitimidade Nesta região do mundo, em que internacional, e reagindo com palavras nasceu a tradição do olho por olho, região tende a ser contagiante. no lugar de bombas. Como se verificou parece que nada pode ficar sem uma E perigoso no caso das reações às caricaturas de resposta, que tanto pode ser olho por Maomé, o que acontece na região tende olho quanto uma compensação adea ser contagiante. E perigoso. quada. A questão agora é saber como reagirão as organizações palestinas como o Hamas, que assumiu a responsabilidade por inúmeros Nahum Sirotsky, jornalista, é correspondente da RBS e do IG em ataques a Israel pelos chamados homens-bomba, os suicidas, Israel. Ex-diretor de Visão, Manchete, Diário da Noite do Rio, foi o arma que agora tanto se utiliza no Iraque. criador da revista Senhor Revista 18 15 Reprodução OPINIÃO Tolerância máxima José Arthur Giannotti reflete sobre os limites do conceito de tolerância religiosa no mundo contemporâneo e vê uma política estritamente laica como única maneira de garantir o convívio entre diferentes grupos de fé conceito de tolerância é multívoco, pois denota o aceitar, o condescender, assim como o suportar. Aceitar pode valer entre iguais, mas condescender e suportar implicam relações de desigualdade entre os agentes. Daí a necessidade de distinguir vários planos em que a tolerância vem a ser exercida. Já que não posso me aventurar por esses caminhos tortuosos, sou obrigado a escolher um deles, e tento o mais abrangente de todos, a tolerância religiosa, que afeta a totalidade de nossa existência, do nascimento à morte. Abarca até mesmo o universo dos não crentes, pois uns e outros convivem no mesmo espaço coletivo. Mas de que forma? A incredulidade não tende a se dar como infidelidade? O 16 Revista 18 OPINIÃO Cultos ecumênicos juntam, num mesmo espaço, Vale lembrar que, na metade do século 19, particularpráticas diferentes em vista de um objetivo comum, mas mente os comunistas acreditaram que o problema perdera cada indivíduo mantém sua identidade na medida em que relevância. A questão teórica da religião teria sido resolconserva intacto o cerne do ritual que pratica. Mesmo o vida, de sorte que o progresso e a Revolução terminariam sincretismo, ao articular, num todo, fragmentos de relipor dissolver esse ópio do povo. Enquanto isso, o Estado se giões diversas, continua preservando a unidade do culto: encarregaria de uma repressão educativa. Nem todos, um católico, adepto do candomblé, não aceitaria comungar porém, foram tão radicais; os primeiros sociólogos – Max num terreiro. Weber é um deles – diagnosticaram um progressivo desenCada crente pode orar sozinho, mas somente pratica um cantamento do mundo à medida que a ciência e a razão culto ecumênico se comungar com práticas cujo sentido, técnica estariam modificando as mentes e solapando no fundo, ele rejeita. Além do mais, quase sempre a reunião condutas de cunho religioso. No entanto, foi basicamente de indivíduos de crenças diferentes em vista de um objeo inverso que aconteceu. tivo comum – homenagear um morto, por exemplo – se faz Muitas vezes se ouve dizer que cada religião tem sua graças ao trabalho de intermediários institucionalizados, própria experiência do divino, como se elas apresentassem como o padre, o rabino, o bispo evangélico, que suspendem aspectos diferentes de um mesmo conteúdo. A multiplisuas diferenças para compor uma cerimônia coletiva. Cada cação dos encontros e cultos ecumênicos não o comprova? um está interessado em praticar suas Mas sem a idéia de Espírito Absoluto, que crenças e vigiar as transgressões a seus ganha esse caráter precisamente porque princípios, mas se participa de uma ceriincorpora todas as representações religiosas, mônia ecumênica é porque assim acrecada uma como um todo visto de certo dita estar fortalecendo sua Igreja e se ângulo, fica difícil pensar o que esse associa com outras na medida em que conteúdo possa ser. Talvez o místico, isto é, A destruição é sempre calcula os ganhos da ação coletiva. Qual é um conteúdo sem qualquer modalização. de alguns inimigos, de o sentido, porém, desse coletivo? Não é o Mas deixemos de lado essas firulas metaculto do morto, que poderia ser feito em físicas para nos perguntar como ficam as sorte que a política e as cada Igreja, mas a intenção de reunir fiéis, práticas religiosas diante do caráter profundaoperações de seu independentemente de suas crenças, para mente irreconciliável de seus princípios. que mostrem que, ao menos em vista do Não vejo como cada religião possa abrir aniquilamento ainda morto, podem estar juntos em vida. As mão de sua verdade. Sabe-se que as ciências devem criar as diferenças de políticas religiosas se contemporâneas deixaram de se tomar travam assim por intenções e práticas de como procura DA verdade, pois nelas há circunstâncias para que consenso, propriamente políticas, que uma determinação recíproca entre discursos os restantes um dia avaliam a aliança com os outros tanto e tecnologias, o que faz delas uma alterquanto a aliança com Deus. nância de perspectivas e uma procura sem também possam vir No entanto, essa relativa autonomia é fim. Mas o discurso religioso se arma em a ser amigos difícil de ser praticada. O adepto de uma confronto com o espírito científico. Isso não religião se liga tanto a Deus como aos significa que a fé seja irracional, mas ela fiéis da mesma crença e seguem as labora com seu próprio Absoluto, que tende mesmas regras como membros de uma a se fazer prática particular – inquestionável Igreja, de uma seita, de uma ordem e e intolerante. O protestante não pode assim por diante. Ora, desse ponto de aceitar, como o católico, a transformação da vista prático, os próprios princípios religiosos passam, eucaristia em corpo de Jesus; o judeu não pode aceitar a então, a ser iluminados sob o aspecto da prática políticotese do Apóstolo Paulo, segundo a qual a circuncisão religiosa; num mesmo texto, ordens diferentes ressaltam espiritual equivaleria à circuncisão física; o muçulmano aqueles aspectos que legitimam seu próprio apostolado. Até não pode aceitar os mistérios da Trindade, pois afirma e que ponto essa coexistência não degenera em conflito? Em reafirma a unicidade de Deus, sendo Maomé o seu profeta e particular, os mesmos princípios cristãos serviram para que assim por diante. Desse ângulo, os princípios de uma católicos, donatistas, maniqueístas, pelagianos se engalfireligião não toleram os outros. Os sacerdotes e os teólogos nhassem até à morte, mas quando se estudam esses movipodem dialogar, reunir-se em concílios, comparar seus mentos do início do cristianismo fica evidente que a questão pontos de vista, admirar o refinamento das teses, mas cada básica era como se apropriar dos restos do Império Romano. crente não duvidará de que está de posse de sua verdade, a Creio ser difícil uma disputa sobre princípios religiosos não ser que já tenha sido mordido pela cobra da indifedegenerar num conflito prático, a não ser que os agentes se rença. É interessante observar que, nos relatos dos percebam ameaçados em suas próprias identidades sociais. encontros ecumênicos, quase sempre um congressista se O céu pode comportar um diálogo infinito sobre diferenças distrai e não perde a vez de confirmar o caráter verdadeiro de fé, mas no nível da prática de cada religião, a tendência é de sua religião. Revista 18 17 OPINIÃO um pacto social além dos conflitos religiosos. É significao cerco dos fiéis pelas Igrejas. Na verdade, cada uma a seu tivo que nesta época se passa a pensar o Estado como modo: uma religião da salvação quer salvar os outros, uma contrato, sendo Thomas Hobbes um dos formuladores mais religião da transcendência almeja tornar conhecido o refinados desta teoria. No plano da prática e no plano teócaminho da ascese e assim por diante; mas, desse modo, rico, frente à ameaça de desastre total, inventa-se um cada uma está preparada para exercer um tipo de violência. contrato exclusivamente político que leva ao Estado absoNo entanto, mesmo no conflito, desde que este não degelutista. O Absoluto da religião dá lugar a outro Absoluto. nere numa matança generalizada, sempre se vislumbra um Vale a pena ainda lembrar o oportunismo exemplar de terreno coletivo onde as diferenças religiosas deixam de ser Henrique IV. Sendo um dos chefes do partido calvinista, pertinentes, onde outras diferenças se manifestam, pois consegue salvar-se do massacre pagando o preço da abjusomente assim a luta de um com o outro não termina eliração, vence seus inimigos, sagra-se em Chartres e entra minando o outro e o próprio conflito. triunfante em Paris – mas a cidade não vale uma missa? A associação de crentes numa comunidade requer, pois, Mais tarde, lá está ele se aliando aos príncipes protestantes mais do que a convergência de opiniões. Uns se re-ligam alemães. Dessas idas e vindas, porém, resulta o Édito de pelo sangue, pela aliança firmada, pela tradição; outros, pela Nantes, garantindo a liberdade de consciência para todos. entrega aos mesmos mistérios, prontos a irem além deles Cada um se obriga a respeitar a religião do outro, desde que mesmos e assim por diante. Mas convém salientar que venha a ser intolerante em relação aos qualquer conflito entre eles incorpora uma inimigos do Estado. Mas agora a crença dimensão prática impossível de ser resolpode virar arma política. vida no plano da fé e até mesmo das instiLembrei esses episódios para salientar tuições religiosas. Estas, por sua própria que a prática de uma política que se quer natureza, quando combatem o cismático, apenas política nos custou um longo e quando lutam contra uma ameaça que vem doloroso aprendizado. E agora, quando de de dentro, terminam recorrendo à força, novo a política se entrelaça com políticas colocando-o fora do campo religioso. Assim Enquanto o conflito tiver religiosas, acredito ser necessário repensar abandonam um projeto de paz e tendem a toda essa experiência. Em particular, na fazer do outro o infiel que deve ser morto. esse caráter, enquanto o democracia, quando os cidadãos devem Enquanto o conflito tiver esse caráter, outro for o absoluto, não ser tratados como iguais perante a lei, a enquanto o outro for o absoluto, não há tolerância prática passa a ter, como uma conciliação e paz possíveis, o que faz da há conciliação e paz de suas condições de possibilidade, a guerra de religião um processo sem fim. possíveis, o que faz da identificação de cada um como sujeito de Lembremos que, no Ocidente, até o direitos. Até há poucas décadas, no Ociséculo 16, era impossível alguém se aceitar guerra de religiões um dente isto se deu reconhecendo-se esse como incrédulo, descrente, de sorte que as processo sem fim sujeito como cidadão partícipe de um diferenças religiosas sempre foram pertiEstado. No entanto, não foi por isso que o nentes. Somente a repressão de uma Igreja século 20 foi um século de paz e de toleforte poderia assegurar uma paz relativa, rância. Mas esse dilaceramento, essas não havendo pois espaço para o pensaguerras totais também não se sedimenmento de uma política estritamente laica. taram em experiências que podem O Ocidente pagou um preço alto para orientar o pensamento do futuro? compreender que somente uma política laica Parece-me evidente que a política em estrito senso vem a ser capaz de limitar arma um espaço de decisões coletivas na base de pactos os exageros das políticas religiosas. Isso ocorreu, sobretudo, que somente se repõem no jogo de aliados e adversários. durante as guerras religiosas do século 16. Exemplificando: Parece-me ingênuo pressupor que a luta política possa ter o católico Carlos V, obcecado pelo projeto de unificar o na sua base uma ética visando o consenso e a reconciliação Santo Império Romano sob a mesma crença, só vence os totais. Por sua própria natureza, a luta pelo poder é exclupríncipes alemães protestantes depois de se comprometer a siva, uns fazem parte dele, outros são afastados. Daí o risco assinar o Tratado de Paz de Augsburgo (1555), segundo o constante. O jogo político do aliado e do adversário, do qual cada príncipe poderia determinar a sua religião como amigo e do inimigo, se transforma facilmente num regime aquela de seu povo. Obviamente, esse compromisso só autoritário quando o outro é pensado como devendo ser poderia ser passageiro por causa da disputa entre as velhas excluído do processo, quando é desenhado como a figura e as novas elites que modificavam o perfil da Europa. A do Mal. Isso aconteceu nos movimentos autoritários do guerra continua, mas os massacres chegaram a limites de século 20, quando o inimigo foi marcado pelo sangue, pela tal forma intoleráveis – em Paris, na noite de São raça, pela traição irrecuperável, merecendo, pois, ser Bartolomeu (agosto de 1572), foram mortos por volta de excluído do jogo da política transformada em religião leiga, 3.000 protestantes – que passaram a ameaçar a própria exisexcluído então do mundo dos seres humanos. tência de cada grupo. Fica então evidente a necessidade de 18 Revista 18 OPINIÃO No entanto, somente quando a luta política se entrelaça com a luta políticoreligiosa é que o inimigo necessita ser visto como o outro radical. A política democrática, pelo contrário, desde que aceita a inevitabilidade do conflito pelo poder, somente pode se configurar como democrática, operação entre sujeitos de direitos, se a oposição amigo/inimigo for relativa, o inimigo de hoje podendo vir a ser o amigo de amanhã. Até que ponto, porém, uma política democrática pode ser mantida quando o inimigo contesta o indivíduo como sujeito de direitos e prega sua eliminação total? Em primeiro lugar, há de se ter o cuidado de não aceitar o discurso radical sem antes verificar se não se transformou em arma ideológica do amigo. Em segundo lugar, se o inimigo radical se lança numa aventura terrorista, no ataque total, é óbvio que todos os atacados têm o direito de se defender. No entanto, se, ao exercer sua defesa no plano do próprio inimigo, eles convertem a luta política numa luta político-religiosa, no infinito conflito de uns contra os outros? Acontece, porém, que amigos e inimigos formam grupos que somente desencadeiam um processo de trucidamento recíproco se forem marcados para sempre como os inimigos uns dos outros. Não vejo, pois, outra política a seguir, se a paz ainda continua a ser almejada. A destruição é sempre de alguns inimigos, de sorte que a política e as operações de seu aniquilamento ainda devem criar as circunstâncias para que os restantes um dia também possam vir a ser amigos. José Arthur Gianotti é professor emérito do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, pesquisador sênior do CEBRAP e membro do conselho editorial da revista Novos Estudos, do CEBRAP Sinagoga de Tarnopol, Hungria, incendiada pelos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial: até que ponto uma política pode ser mantida quando se contesta o indivíduo como sujeito de direitos e se prega sua eliminação total? O REPÓRTER O Irã às portas de Israel? Aliança entre o Hamas e o governo abertamente disposto à aniquilação do Estado judeu, de Mahmoud Ahmadinejad, leva a regressão sem precedentes nas perspectivas de paz entre Israel e os palestinos. Por Leslie Susser oucos dias antes das eleições palestinas, no fim de janeiro, o presidente do Irã Mahmoud Ahmadinejad encontrou-se com os líderes do Hamas no exílio Khaled Mashal e Musa Abu Marzuk, em Damasco. Numa breve visita à capital síria, Ahmadinejad fez questão de encontrar-se com os homens do Hamas e com os líderes de nove outras facções palestinas que rejeitam qualquer tipo de acordo com Israel. O conflito israelensepalestino, ele lhes disse, segundo foi relatado pela imprensa do mundo árabe, seria o “foco central da guerra final entre o islã e o Ocidente”, e todos eles poderiam contar com o apoio irrestrito do Irã. Segundo fontes israelenses, um mês antes, num encontro com Ahmadinejad em Teerã, Mashal declarou seu comprometimento com o Irã: “Se o Irã for atacado, nós seremos parte da reação iraniana”, teria dito. E quando o Hamas venceu as eleições, em 25 de janeiro, o Irã declarou estar à disposição para fornecer fundos, suprimentos, armas e treinamento para ações de milicianos contra Israel. Reprodução P A amizade crescente entre o Irã e o Hamas faz surgir o espectro de um posto avançado hostil, patrocinado pelo Irã, bem às portas de Israel. Ou será que o Hamas pretende moderar-se, num esforço para garantir a continuidade de bilhões de dólares em ajuda ocidental? E se a decisão for manter o radicalismo, e o Ocidente suspender sua ajuda, o Irã estará disposto e será capaz de fornecer os us$ 1,5 bilhões por ano que os palestinos hoje recebem do Ocidente? E quem será o chefe nas relações entre o Irã e o Hamas? O Hamas será uma marionete iraniana, ou será independente, usando a ajuda oferecida pelo Irã da maneira que lhe convier? Alguns especialistas israelenses vêm falando de um “eixo Hamas-Irã”, e prevêem que o relacionamento entre o Irã e o Hamas levará a um perigoso processo de regionalização do conflito israelense-palestino, no qual o Hamas será apenas uma arma nas mãos de forças maiores. Outros dizem que o Hamas vai aproveitar o apoio iraniano para constituir um exército palestino forte e independente. Outros, Esquadrão de homens-bomba, que se mostram dispostos a atacar, em parada militar do Hamas: envolvimento do Irã no conflito israelense-palestino é cada vez mais intenso 20 Revista 18 ainda, afirmam que o nacionalismo do Hamas e o caos da Autoridade Palestina acabarão por inibir a relação com o Irã, embora isto não necessariamente signifique moderação com relação a Israel, ou que o Hamas vai optar por uma tranqüilidade tática, moderando suas posições e mantendo distância com relação ao Irã enquanto busca manter a ajuda ocidental. A relação entre o Irã e o Hamas começou, timidamente, no fim da década de 1980, com a primeira Intifada. O principal elo entre o Irã e os palestinos era a então diminuta facção Jihad Islâmica, que apoiava, sem restrições, a difusão de uma revolução islâmica ao estilo iraniano. O Hamas, uma organização muito maior, dirigida a objetivos nacionalistas, era muito mais circunspecto, e consciente de suas diferenças ideológicas com Teerã. Preservava, ciosamente, sua independência como organização nacional palestina, e enfatizava seus laços com a Fraternidade Muçulmana Sunita em vez do Irã xiita. Ainda assim, ambos desenvolveram laços operacionais estreitos, baseados em sua total rejeição a um compromisso de paz com Israel. Estes laços foram enfatizados significativamente no fim de 1992, quando Israel expulsou mais de 400 líderes do Hamas para o sul do Líbano. Ali eles foram abrigados pelo Hezbolá, patrocinado pelo Irã, e desde então o Hezbolá tem ajudado a treinar os guerrilheiros do Hamas, e tem servido como um canal para fundos e armas iranianos. Com o início da segunda Intifada, em 2000, o Irã incrementou seu envolvimento com os assuntos palestinos, aprofundando seus laços com um Hamas agora ansioso por cooperar, e com outras facções palestinas. O fornecimento de armas e de dinheiro cresceu de maneira O REPÓRTER significativa e o Hezbolá transferiu tecnologia de importância estratégica, como por exemplo da manufatura de morteiros. Os foguetes do tipo Qassam tornaram-se a principal arma palestina contra Israel nos últimos anos. Entre os pessimistas com relação ao futuro desenvolvimento da situação está o ex-embaixador de Israel junto às Nações Unidas, Dore Gold, um especialista em movimentos islâmicos e conselheiro político do partido Likud. Ele afirma que o Hamas e o Irã precisam um do outro estrategicamente, e que esta dependência mútua poderia levar à criação de um Estado controlado pelo Irã junto à fronteira de Israel. Gold afirma que o Hamas precisa do Irã para perseguir seu objetivo de destruição de Israel, enquanto o Irã precisa do Hamas para ampliar sua esfera de influência. “O Hamas depende de ajuda externa, tanto financeira quanto militar, e o Irã é a principal potência regional disposta a desafiar a tentativa ocidental de estabelecer paz entre israelenses e palestinos”, ele afirma. Gold prevê um cenário negro, no qual não só o Irã ocupa o espaço radical conquistado pelo Hamas depois de sua vitória nas eleições, mas a Al-Qaeda também. “Temos informações de que, no verão de 2005, a Al-Qaeda tomou a decisão estratégica de mudar alguns de seus chefes do Iraque para países seculares vizinhos – como a Síria, o Líbano e a Jordânia. Prova destas mudanças é o fato de que foram vistas operações da AlQaeda na Jordânia, em agosto e em novembro de 2005, enquanto foguetes Katyusha foram lançados sobre Israel pela Al-Qaeda a partir do Líbano, em 27 de dezembro de 2005. Ao mesmo tempo, há uma atividade contínua da Al-Qaeda no Sinai, inclusive presença da Al-Qaeda em Gaza”, diz Gold. “A questão crítica é saber se Israel será capaz de isolar as áreas controladas pelos palestinos de reforços externos, ou se não conseguirá impedir que insurgentes e armas cheguem de fora para aumentar as forças palestinas.” Yuval Steinitz, presidente do Comitê Parlamentar para Assuntos Exteriores e Defesa, membro do Likud, mostra-se menos preocupado com a Al-Qaeda do que com os desenvolvimentos no interior da comunidade palestina. Ele enxerga um processo já em curso que está conduzindo ao estabelecimento de um grande exército palestino que seria uma ameaça à existência de Israel. Em sua opinião, o aumento no fornecimento de armas, os campos de treinamento do Hamas e o controle, por parte do Hamas, das forças de segurança palestinas, criará a infra-estrutura necessária para uma força militar palestina considerável, ainda que os acordos de Oslo determinem que os palestinos estão proibidos de terem um exército. Será que o Hamas pretende moderar-se, num esforço para garantir a continuidade de bilhões de dólares em ajuda ocidental? Steinitz há muito tempo vem criticando a confiança de Israel no Egito como uma força capaz de controlar o terrorismo palestino. Ele manifesta grande preocupação com o crescimento do contrabando de armas para Gaza e para a Cisjordânia pelo Sinai. “O Sinai tornou-se um paraíso para os traficantes de armas. Muitas destas armas vêm do Irã, passando pela Líbia e pelo Sudão. Outras vêm de mercados ilegais no Egito e nos Bálcãs, e são levadas através do deserto por mercadores beduínos”, ele revela. E ao que tudo indica, os fornecimentos do Irã vão aumentar. Steinitz acusa também Israel por não ter evitado a construção de campos de treinamento do Hamas em Gaza. Se isto agora passar a ser permitido em Gaza também, no contexto de uma trégua prolongada, então forças palestinas bem armadas logo estarão a poucos quilômetros de distância de alvos estratégicos bem no centro de Israel. Boa parte das armas, dos recursos, da tecnologia e do treinamento virão do Irã. “O maior perigo”, diz Steinitz, “é que mais cedo ou mais tarde o Hamas passará a controlar a polícia da Autoridade Palestina, bem como forças de segurança preventiva e de inteligência, fundindo-as com suas próprias milícias, e confrontandonos com um exército de 80 ou 100 mil homens.” Um grande exército comandado pelo Hamas, e apoiado pelo Irã, poderá acabar fazendo uma guerra total contra Israel. “A organização não pode mudar sua ideologia. Ela pode, apenas, alterar suas táticas de curto prazo. A organização pode dizer que agora precisa de um ano de tranqüilidade, para armar-se e colocar seus homens à frente das forças palestinas. Mas, depois disto, pode acontecer qualquer coisa. E então não teríamos mais uma simples ameaça terrorista e sim uma ameaça à nossa existência.” Quanto às medidas que Israel pode e deve tomar ante a nova situação, Gold vê uma ameaça regional importante vinda do Leste e afirma que Israel precisa manter o controle sobre o Vale do Jordão. “Na nova equação estratégica, o Vale do Jordão torna-se uma barreira essencial para evitar que a Al-Qaeda, no Iraque, possa se tornar vizinha do Hamas”, diz ele. Steinitz sugere que Israel deve isolar os líderes palestinos e restringir ao máximo sua liberdade de movimento e seu contato com líderes estrangeiros. A vitória do Hamas nas eleições levou o conflito israelense-palestino de volta ao ponto em que se encontrava há quase 60 anos, quando da independência de Israel em 1948. Outra vez, o Estado judeu está lutando por sua independência, e por sua sobrevivência, com uma mão estendida para a paz, mas ao mesmo tempo disposto a garantir seu próprio futuro. Tudo depende do que Ahmadinejad e Khaled Mashal terão a dizer um ao outro em seu próximo encontro. © The Jerusalem Report Leslie Susser é jornalista Revista 18 21 O REPÓRTER O custo da democracia Samuel Feldberg reflete sobre a nova conjuntura política do Oriente Médio, em que Israel se vê cercado pelos poderes crescentes de radicais por todos os lados, ao mesmo tempo em que o Irã acompanha de ameaças e pesada retórica demagógica o esforço para se tornar uma potência nuclear rimeiro foi o Líbano. Em um país destroçado por uma longa guerra civil, o Hezbolá, grupo armado que controla um amplo território, optou por participar do processo político e tornouse um dos principais partidos do país representando quase com exclusividade a população xiita local. Depois vieram as eleições no Egito. Em um país com quase nenhuma tradição de eleições livres, uma pequena liberalização permitiu a inclusão de inúmeros representantes da Irmandade Muçulmana (a “raiz” do Hamas) no parlamento egípcio. Na seqüência, os iranianos optaram por substituir Khatami (presidente moderado que buscava uma flexibilização da sociedade e uma acomodação internacional e funcionava como elemento de equilíbrio para o radicalismo islâmico dos mullahs) por um representante das massas que vê no programa nuclear iraniano, na negação do Holocausto e na destruição de Israel, elementos de propaganda para fortalecer sua posição hierárquica. (Não custa lembrar que Hitler também começou assim). Finalmente, a recente vitória do Hamas nas eleições parlamentares realizadas em Gaza e na Cisjordânia (alguns leitores preferirão a denominação Judéia e Samária) encerra um ciclo que pode ser visto como o resultado adverso da demanda norte-americana pela democratização do Oriente Médio. Não podemos, entretanto, esquecer que eleições livres são somente um dos muitos elementos P 22 Revista 18 O Hamas está dividido entre os que clamam pela luta permanente e os que acreditam ser longa a história, e que a trégua pode durar o suficiente para que os palestinos se fortaleçam a ponto de poder derrotar Israel que caracterizam os regimes democráticos. A quase totalidade dos outros (liberdade de expressão, garantias individuais, o direito de ir e vir, e muitos mais) não está e nunca esteve presente nos países mencionados acima. Israel, como não poderia deixar de ser, é diretamente afetado por todos estes desenvolvimentos. No Líbano, o fortalecimento do Hezbolá, que continua a fustigar o norte de Israel com seus foguetes e recentemente viu frustrada sua tentativa de seqüestrar soldados de um posto fronteiriço, torna-se mais perigoso à medida que adquire legitimidade sem abandonar a luta armada servindo, obviamente, de modelo para o Hamas e criando na prática uma fronteira geográfica entre o Irã e Israel. A eleição de elementos radicais para o parlamento egípcio não representa um problema imediato para Israel, mas certamente acende uma luz vermelha junto à inteligência israelense, que nunca deixou de considerar a possibilidade de uma renovada guerra convencional contra o Egito, apesar da paz (fria) que já dura quase 30 anos. Um “Irã democrático” na fronteira sul de Israel certamente obrigaria as forças armadas israelenses a considerarem uma nova ação preemptiva nos moldes de junho de 1967. Enquanto isso, os egípcios sofrem os efeitos da anomia na Faixa de Gaza, impossibilitados de controlar o fluxo através de sua nova fronteira e tendo de suportar, inclusive, o seqüestro de seu representante diplomático por uma das facções que hoje lá circulam, livres e armadas. A trajetória do Irã rumo ao status de potência nuclear precisa ser vista por dois prismas diferentes; por um lado, o Irã almeja a entrada no restrito clube por uma questão de prestígio, parte da velha disputa que teve seu ápice com o pan-arabismo no século passado (o Irã, não árabe mas muçulmano xiita, sempre foi o adversário do Iraque, do Egito e outros países menores, seja sob o Xá, seja na era dos aiatolás). Por outro lado, a posse de armas nucleares também permitiria ao Irã garantir uma ampla retaliação a um possível ataque norte-americano, não contra o território dos EUA, mas contra sua força-tarefa no oceano Índico, ou a interrupção do fluxo de petróleo, por meio de um amplo bloqueio do estreito de Hormuz. Visto desde Israel, o problema é muito mais psicológico que estratégico. Um Irã munido de armas nucleares e dos meios de lançamento necessários (seus foguetes, desenvolvidos com tecnologia russa e norte-coreana, já têm alcance para atingir o território israelense, ainda que sem muita precisão) embarcaria numa aventura completamente irracional e suicida caso ameaçasse Israel, já que o Estado Judeu é, sabidamente, detentor de mais de uma centena de bombas e da capacidade para lançá-las contra o território iraniano. Mas há os adeptos do chamado “equilíbrio do terror”1, que alegam que um Irã nuclearizado contribuiria para a estabilidade regional, nos moldes da que se estabeleceu entre a Índia e o Paquistão, por receio de uma escalada que levasse a uma conflagração nuclear. Ao mesmo tempo, a vitória do Hamas nos territórios autônomos palestinos acontece num momento especialmente delicado para Israel. O cenário político israelense apresenta-se completamente indefinido com a ausência de Sharon, até há pouco tempo seu ator principal, e a tentativa de consolidação de um novo partido que deveria dar seguimento a suas propostas. Para avaliar esta situação, é preciso compreender, primeiramente, o cenário externo: o caminho trilhado por Israel desde a primeira eleição de Sharon aponta para uma separação cada vez mais completa entre israelenses e palestinos. Se as duas sociedades já estiveram intimamente ligadas, por meio de trocas comerciais, da absorção de dezenas de milhares de trabalhadores palestinos no mercado israelense e do compartilhamento de uma ampla infra-estrutura, agora estão quase completamente separadas. O fluxo comercial quase desapareceu; a mão de obra palestina foi substituída em Israel; o fornecimento de energia elétrica serve hoje como elemento de chantagem e as estradas construídas nos territórios ocupados servem para separar bolsões palestinos e não para permitir a movimentação entre eles. E o muro (ou cerca) que está sendo construído terminará de dividir os dois povos, deixando de um lado uma população israelense permanentemente em alerta e do outro uma população palestina, talvez formalmente independente, mas amargurada e com aspirações Reprodução O REPÓRTER O candidato derrotado nas eleições presidenciais do Irã no ano passado, Mustafá Moin, ao lado de sua esposa: setor moderado é minoria enfraquecida e inexpressiva nas repúblicas islâmicas O voto palestino foi de protesto; protesto contra as condições de vida, a corrupção, o desemprego, a desilusão. Mas apesar disto, o Hamas eleito prega, sim, a destruição de Israel irredentistas, uma espécie de “Alemanha pós-Versalhes”. Sharon já não voltará à vida ativa. A separação unilateral será certamente a lembrança mais concreta de sua longa carreira pontilhada de polêmicas. Seus admiradores lembrar-se-ão da unidade por ele comandada, que terminou com os ataques dos fedayeen na década de 1950; da travessia do canal de Suez durante a guerra de 1973, que determinou a vitória israelense e da ação no Líbano, que de lá expulsou a olp. Mas seus detratores certamente acrescentarão à lista sua decisão durante a Guerra do Sinai, que custou as vidas de inúmeros soldados, as centenas soldados mortos no Líbano para expulsar palestinos que em 1993 voltariam a Israel para governar a Autoridade Palestina, e as vitimas de Sabra e Shatila, massacres pelos quais foi responsabilizado. Muito se tem discutido a respeito de quem tem a responsabilidade pela atual situação nos territórios palestinos. Os palestinos certamente são responsáveis pelas catastróficas condições em que se Revista 18 23 Reprodução O REPÓRTER Mahmoud Ahmadinejad: retórica do ódio como força de manipulação política é endossada por liderança religiosa encontra o povo; pela corrupção que grassa na sua liderança; pela ausência de um controle das armas em poder das milícias. Mas os israelenses seguramente são responsáveis por terem adiado até o limite qualquer tentativa de acomodação, especialmente após a guerra de 1967, quando líderes como Ben Gurion já perceberam a impossibilidade de manter sob domínio israelense uma população de milhões de árabes. Se a expulsão da população árabe não era possível, manter o território tampouco o seria. A mudança de governo em 1977, com a ascensão do Likud, colocou no poder o adversário histórico de Ben Gurion, Menachem Begin, que não tinha dúvidas em relação ao direito do povo judeu de controlar as áreas em que se encontravam seus símbolos mais sagrados. Daí surgiu o messianismo religioso, o movimento de colonização simbolizado pelos solidéus bordados (kipot srugot), abraçado por grande parte da população atual dos assentamentos. Um exemplo de como será difícil eliminar esses assentamentos, que o atual governo 24 Revista 18 considera insustentáveis, encontra-se, não na retirada pacífica da faixa de Gaza, mas na recente evacuação de Amona, na margem ocidental do Jordão, que gerou violento confronto e vários feridos. Resta agora descobrir como encarar o novo governo palestino. Nenhuma das artimanhas da Autoridade Palestina foi suficiente para evitar que o Hamas obtivesse maioria absoluta dos votos. É certo que a população palestina não elegeu o Hamas por seu empenho em destruir o Estado israelense. O voto palestino foi de protesto; protesto contra as condições de vida, a corrupção, o desemprego, a desilusão. Mas apesar disto, o Hamas eleito prega, sim, a destruição de Israel, ainda que o movimento esteja dividido entre aqueles que clamam pela luta permanente e aqueles que acreditam ser longa a história, e que a trégua e o cessar-fogo podem durar o suficiente para que os palestinos se fortaleçam a ponto de poder derrotar os israelenses. A vantagem com que Israel conta no momento está na definição de um endereço para o Hamas: até agora, o assassinato seletivo da liderança terrorista (ainda que o Sheik Yassin tivesse sido reiteradamente denominado seu “líder espiritual”) demandava um amplo esforço da inteligência israelense para localizá-la; no momento em que se tornarem governo, não mais poderão esconder-se e evitar assumir a responsabilidade por futuros atentados, ainda que perpetrados por outras organizações como o Hezbolá ou a Jihad Islâmica. O Egito provou deste amargo remédio na década de 1950, quando das incursões palestinas de Gaza, que culminaram na campanha do Sinai. As últimas notícias mencionam esforços israelenses e norte-americanos para “secar” as fontes de recursos da Autoridade Palestina, o que levaria a um colapso e à realização de novas eleições. Não posso deixar de associar os acontecimentos no Chile de Allende, em que os Estados Unidos financiaram as greves de caminhoneiros, levando ao golpe que derrubou Pinochet. Mais recentemente, a dissolução do exército iraquiano após a ocupação do país colocou nas ruas uma multidão de homens armados e amargurados, que em parte se voltou para a resistência contra a ocupação. A ausência de fundos para manter a folha de pagamento das forcas policiais da Autoridade Palestina poderia ter o mesmo efeito. Que fazer então? Financiar uma entidade que possivelmente continue engajada na perpetração de atentados, ou na produção de foguetes para lançamento contra alvos israelenses? É a difícil decisão que terá de tomar o novo partido Kadima, quando vencer as eleições de março e encontrar os parceiros com quem tentará formar um novo governo de coalizão. Samuel Feldberg é bacharel em Ciência Política e História pela Universidade de Tel Aviv, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP e membro do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional da USP 2 A situação de equilíbrio gerada pela paridade de forcas nucleares entre os Estados Unidos e a União Soviética durante a Guerra Fria, que garantia a mútua aniquilação em caso de uma guerra entre as duas super potências. AF rev 18 14 301105 27/3/2006 11:47 Page 59 ENSAIO O Islã e o mundo A doutrina islâmica, que se impõe a seus seguidores como única doutrina verdadeira, não admite a legitimidade da existência do outro e é incompatível com a noção ocidental de sociedade civil e democracia. Para Luis Dolhnikoff, as tiranias muçulmanas são mera conseqüência deste fato esde a revolução islâmica de 1979 no Irã, o islã tornou-se um ator central no cenário internacional. Isto gera uma série de problemas de várias ordens, a começar pelos termos da discussão. Pois sequer haveria um islã, já que este termo se refere, ao mesmo tempo, a uma religião – que em si não é monolítica – e a uma cultura, ainda menos monolítica do que a religião. No entanto, existe um islã. Pois todos os “islãs” têm certos denominadores comuns. E o conjunto desses denominadores comuns pode, com pertinência, ser chamado de o islã. Os primeiros denominadores comuns são a adoção de Alá como Deus, de Maomé como Profeta e do Corão como livro sagrado. Outros, os “cinco pilares” do islã, práticas de cumprimento obrigatório: a profissão de fé (chahada), as rezas diárias (salat), o dízimo (zakat), o jejum (saum) no mês do Ramadã (que comemora a data da “revelação” do Corão) e a peregrinação a Meca (hajj). Há, porém, outros denominadores menos conhecidos, como o Hadith, conjunto de histórias, normas e comentários, atribuído a Maomé, e que complementa o texto do Corão (atribuído a Alá em si mesmo, que, segundo a crença, doou-o a Maomé por meio do anjo Gabriel). Por fim, mas não menos importante, há o conceito básico da religião islâmica, a submissão – daí a palavra islã (submissão em árabe). Em princípio, tratase da submissão do homem a Alá. Na prática, trata-se da submissão dos fiéis ao próprio islã. Um denominador comum menos “oficial”, mas não menos verdadeiro, é o fundamentalismo. O termo fundamentalismo originou-se nos EUA, no início do século 20, para designar protestantes que pretendem se ater aos “fundamentos” do D 26 Revista 18 cristianismo contra o criticismo moderno. Isto inclui a noção de inspiração divina – e não de criação histórica – da Bíblia, o que implica sua interpretação literal. Terem adotado um nome específico, cuja conotação é majoritariamente negativa, indica quão minoritários são no campo cristão. No caso muçulmano, porém, a leitura literal ou fundamentalista do Corão é a A shariá, ou lei islâmica, é a lei. Não há, assim, nenhum país islâmico em que a shariá não esteja presente. O que varia é apenas o tipo de presença. Ou a shariá é a lei em si mesma, ou é a parte principal da lei, ou é a sombra que paira pesada sobre leis não-religiosas norma e o ideal. Assim, nas escolas religiosas (madrassas), os anos de “estudo” praticamente se limitam à memorização do texto – que em minha edição tem, com notas, 781 páginas, fora o índice (SP, Marsam, 2001, trad. direta do árabe por Samir el Hayek). Não por acaso, o oposto da leitura literal, isto é, a livre interpretação do Corão e também do Hadith (chamada ijtihad), passou a ser condenada já a partir do século 11, quando o corpus teórico do islã – que além dos dois primeiros, inclui ainda a shariá, ou lei islâmica – foi concluído. O que nos leva a outro denominador comum do islã. Não se trata da famosa não-separação entre Estado e Igreja. Pois embora o próprio Maomé – ao contrário de Abraão, Moisés, Buda ou Cristo – tenha sido ao mesmo tempo líder religioso e político, além de militar, e apesar de os principais títulos islâmicos, como califa (“sucessor” [de Maomé]) e xeque (“ancião”, autoridade doutrinária), serem tanto religiosos quanto políticos, há diferenças entre as posturas sunita e xiita. A primeira costuma defender apenas a submissão do governante à lei islâmica, enquanto a segunda prefere o poder direto dos sacerdotes (sunismo e xiismo; não por acaso, são divisões originalmente políticas, surgidas na sucessão de Maomé no século 7). O outro denominador comum é, na verdade, a não-separação entre a lei civil e a lei religiosa. De fato, é a própria inexistência, na tradição islâmica, do conceito de lei civil. A shariá, ou lei islâmica (baseada tanto no Corão quanto no Hadith, e concluída no século 11), é a lei. Não há, assim, nenhum país islâmico em que a shariá não esteja presente. O que varia é apenas o tipo de presença. Ou a shariá é a lei em si mesma (como no Irã, na Arábia Saudita ou no Afeganistão dos talibãs), ou é a parte principal da lei (como nos inúmeros países que adotam leis complementares), ou é a sombra que paira pesada sobre leis não-religiosas (como na Turquia). À sombra da lei islâmica, não apenas é impossível uma verdadeira lei civil, como também é impossível uma imprensa livre (pois tudo tem de ser “religiosamente correto”). E sem uma lei civil e uma imprensa livre, não existe sociedade civil que mereça o nome (desconsiderando-se muitos outros impedimentos, como as fidelidades tribais e o profundo patriarcalismo). Porque a sociedade civil depende, entre outras coisas, de um sistema legal que proteja sua autonomia (“norma própria”), assim como de uma imprensa livre que garanta sua voz. Sendo a democracia a expressão política da sociedade civil, e não havendo uma verdadeira sociedade civil nos países islâmicos, explica-se a impermeabilidade das sociedades islâmicas à democracia. Explica-se, também, a persistência de ditaduras e reinados no mundo árabeislâmico, que não é, portanto, mera conseqüência do interesse ocidental em apoiar a ordem em países produtores de petróleo, mas igualmente o resultado da ausência de uma sociedade civil. Explica-se, ainda, o verdadeiro problema da política de exportação da democracia. Os argumentos habituais baseiam-se em premissas ideológicas: dizem que a democracia, um produto cultural do Ocidente, não pode ser exportada; a democracia não deve ser exportada, pois isto seria uma imposição cultural. O primeiro argumento não resiste à história: de um modo ou de outro, a democracia ocidental foi exportada para o Japão, a Coréia, Taiwan e a Índia. O segundo argumento não resiste aos fatos: não há, infelizmente, regime melhor (ou menos pior, parafraseando Churchill) no cardápio mundial. Não por acaso, nenhum outro garante o respeito aos valores internacionais fundamentais, como os direitos humanos. Qual é, então, o problema da política de exportar a democracia? É não se estar a exportar a democracia – já que não se pode exportar a sociedade civil. Exporta-se, portanto, apenas o método eleitoral. Existe hoje o hábito desinteligente de reduzir a democracia ao processo eleitoral. Eleições, porém, são apenas um método de referendar governos representativos. Democracia, por outro lado, não é um método, mas um sistema político e jurídico. Na verdade, o método de escolha do governante é de relevância menor para a definição da democracia. Os eua escolhem seu presidente por via indireta. No parlamentarismo, é o Parlamento que escolhe o chefe de governo. O que Reprodução ENSAIO Charge publicada no jornal saudita de língua inglesa The Arab News retrata Ariel Sharon brandindo um machado em forma de suástica crianças palestinas: demonização e incitamento ao ódio estão, há décadas, na ordem do dia da imprensa do mundo árabe O islã, como religião e como cultura, pressupõe uma sociedade tutelada, originalmente, pela própria religião. O antagonismo, assim, não é com a democracia em si, mas com a concepção de sociedade conforme a reconhecemos e defendemos no Ocidente importa é a existência da sociedade civil soberana (apesar mesmo das injunções econômicas do capitalismo) – que então, soberanamente, escolhe como quer escolher seus governantes. Não surpreende, em todo caso, que exportar eleições para lugares onde a sociedade civil é fraca ou inexistente, enquanto são fortes os grupos antidemocráticos (como no mundo muçulmano), resulte, cedo ou tarde, no fortalecimento desses mesmos grupos por meio das próprias eleições. Mas como se resolve, então, o problema dos grupos antidemocráticos muito populares, como a Frente Islâmica de Salvação na Argélia e o Hamas nos territórios palestinos? Considerando que a democracia tampouco tem a ver automaticamente com maiorias eventuais – mas sim com regras republicanas. Ou seja, regras que têm de valer para a totalidade do espectro político. Uma eventual maioria eleitoral que confronte essas regras não merece, portanto, participar do jogo – muito menos vencê-lo. É o caso dos grupos que pregam a teocracia (de fato proibidos na Turquia, a menos imperfeita das democracias muçulmanas – de modo equivalente, na Alemanha, grupos que pregam abertamente o nazismo não podem concorrer nas eleições). O caminho, na prática, é o desenvolvimento das instituições mínimas e da Revista 18 27 ENSAIO mentalidade básica de uma sociedade civil antes da realização de qualquer eleição. O que foi feito na Índia pelos ingleses, no Japão pelas forças americanas de ocupação, na Coréia do Sul por uma ditadura autóctone, em Taiwan pelo Kuomintang, e mesmo no México pelo pri. Mas não pela Autoridade Palestina – que, apesar de eleições mais ou menos periódicas, instituiu uma autocracia corrupta, na qual as instituições e os serviços públicos são completamente seqüestrados por um partido (Fatah), não representando, portanto, a sociedade civil, enquanto se tolera o fortalecimento de grupos antidemocráticos (pois terroristas e teocráticos) como o Hamas. Em suma, o islã, como religião e como cultura, pressupõe uma sociedade tutelada, originalmente, pela própria religião (o que faculta e facilita a eventual tutela de outros tipos). O antagonismo, assim, não é com a democracia em si, mas com a concepção de sociedade conforme a reconhecemos e defendemos no Ocidente (plural que se justifica pelo fato de a única grande corrente política antidemocrática ocidental, o comunismo, ter sido extinta: somos hoje, portanto, todos democratas, nem que seja por falta de alternativa). Esse antagonismo fica claro na vitória ou na votação expressiva de grupos e tendências teocráticos em todos os países islâmicos onde, nas últimas décadas, houve eleições, desde a Argélia em 1991 (o que, aliás, resultou na anulação dos resultados) até o Irã em 2005 (com o retorno da linha dura), passando pelo Líbano (com a grande representação parlamentar do Hezbolá) e o Egito (o mesmo para a Irmandade Muçulmana), até culminar na eleição do Hamas nos territórios palestinos. Cada eleição envolve questões internas imediatas, como, no caso palestino, a censura à corrupção e à inépcia do Fatah. Mas isto não explica tudo. Tampouco o explica a consagrada crença de que o que acontece no mundo muçulmano é mera reação a ações ocidentais. Pois o islã, além de denominadores comuns, tem vida própria – inclusive como ideologia política. O antagonismo com a concepção ocidental de sociedade civil fica também claro no recente episódio das charges de Maomé publicadas na imprensa européia. 28 Revista 18 De instituições supranacionais como a Organização da Conferência Islâmica (oci) e a Liga Árabe, passando por inúmeros governantes e ministros, até chegar aos clérigos e às multidões, o mundo muçulmano, tanto oficial quanto oficiosamente, pronunciou-se de forma massiva, agressiva e intolerante contra a liberdade de expressão (e, na prática, contra os direitos humanos, pelo teor da maioria das reações). Qualquer outra consideração é ociosa: tratou-se pura e simplesmente da defesa da supremacia do dogma religioso (a proibição de retratar Maomé) sobre a liberdade de expressão – que inclui, Dizem que a democracia, um produto cultural do Ocidente, não pode ser exportada, pois isto seria uma imposição cultural. O primeiro argumento não resiste à história: de um modo ou de outro, a democracia ocidental foi exportada para o Japão, a Coréia, Taiwan e a Índia. E o segundo argumento não resiste aos fatos naturalmente, a liberdade de não seguir dogmas religiosos. Pois a partir do instante em que um dogma tenha o direito de restringir a liberdade de expressão, outros dogmas prontamente se apresentarão. E não existe meia liberdade de expressão. Daí não haver verdadeira liberdade de expressão no mundo muçulmano (nem, portanto, liberdades e garantias civis). Em compensação, há uma infinidade de matérias diárias obscenamente antisemitas, anti-ocidentais e anticristãs em todos os meios de comunicação, dos jornais às tevês (em que, por exemplo, judeus roubam órgãos de crianças palestinas para transplantá-los em pacientes israelenses). Mas isso, ao contrário das charges de Maomé, isso parece não incomodar ninguém – nem no mundo muçulmano, nem no complacente mundo ocidental. O que nos leva a outro denominador comum do islã: o conceito de Umma (comunidade), o conjunto dos “fiéis” (daí os líderes islâmicos se referirem constantemente os “1,5 bilhões de muçulmanos”; daí haver a Organização da Conferência Islâmica, única organização de Estados no mundo de caráter confessional). A partir de tal conceito, a doutrina islâmica divide o mundo em duas partes: as terras onde os “fiéis” dominam formam o Dar el Islam, “a casa do islã”, enquanto o resto do mundo é o Dar el Harb, “a casa da guerra” (porque não sujeita à lei islâmica, que garantiria a paz, e porque passível de ser guerreada pelo islã). É essa visão dicotômica, aliada à crença na superioridade do islã como última – e definitiva – das religiões monoteístas, que explica o duplo padrão referido acima. Tal dicotomia também explica mais um denominador comum: os muçulmanos habitualmente se manifestam sobre questões que lhes interessam diretamente, mas, ao contrário do que ocorre em outras culturas, jamais se manifestam sobre questões que não lhes interessam diretamente (guerras que não envolvem muçulmanos, problemas ambientais, genocídios vitimando “infiéis”, fomes africanas etc.). A mesma dicotomia explica, ainda, o completo descaso pelas legislações nacionais e pela lei internacional quando em confronto com a lei islâmica. E, sem esse descaso, um líder islâmico não poderia decretar uma condenação contra um cidadão qualquer, de qualquer origem, sem qualquer julgamento, e ver seu decreto respeitado pelos muçulmanos. Sem ele, tampouco poderia o islã prever em seus códigos punições (naturalmente distintas) para muçulmanos e para não-muçulmanos de todos os lugares, por crimes que só existem para o próprio islã, numa espécie de jurisdição universal autoproclamada. E isto, não apenas as ações ocidentais de qualquer tipo, explica muito das tensões atuais. Luis Dolhnikoff é escritor e ensaísta PERFIL Teoria e prática das células-tronco A geneticista Mayana Zatz está na linha de frente da pesquisa com células extraídas de embriões humanos. Mas enfatiza que ainda está no estágio de pesquisa, não de tratamento. Por Cláudia Altschüller geneticista Mayana Zatz hoje lidera um grupo de cientistas que se dedicam à pesquisa de ponta em células-tronco. Professora titular de genética, diretora do renomado Centro de Estudos do Genoma Humano da USP e, desde dezembro de 2005, pró-reitora de pesquisa da mesma universidade, é autora de 270 artigos científicos publicados em periódicos especializados. Mayana coordena uma equipe de 16 pesquisadores, entre alunos de graduação, doutorado, pósdoutorado e técnicos. Todos trabalham na identificação de novos genes relacionados a doenças neuromusculares, que afetam uma em cada mil pessoas ao redor do mundo, e em pesquisas com célulastronco visando futuras terapias. Mayana descobriu a enzima responsável por um tipo de distrofia muscular e fez parte do grupo que descobriu seis genes ligados a doenças neuromusculares. Aperfeiçoou também métodos de diagnósticos precoces de distrofia e testes que permitem descobrir a chance de ter filhos com a enfermidade. Recebeu distinções como o prêmio Women in Sciences, unesco/l’oreal (2001), por suas pesquisas em distrofia muscular, e Basic Medical Sciences, Third World Academy of Sciences (2004), entregue a cientistas que se destacaram em suas áreas de conhecimento no chamado Terceiro Mundo. As células-tronco embrionárias têm o potencial de formar todos os 216 tecidos do corpo humano e, portanto, podem vir a beneficiar portadores de diferentes tipos de A 30 Revista 18 doenças como síndromes neuromusculares, diabetes e mal de Parkinson. Porém, tratase de um campo de pesquisa que, para além das dificuldades científicas propriamente ditas, envolve também uma série de questões éticas e legais. No Brasil, as célulastronco somente podem ser extraídas de Grupos de judeus ortodoxos aprovam as pesquisas, pois chegaram à conclusão de que um embrião congelado não tem o status legal e religioso de um ser humano embriões humanos inviáveis (ou seja, que por algum defeito genético pararam de se dividir e não servem para implantação) ou que estejam congelados há mais de três anos. Em todos os casos, a instituição de pesquisa precisará do consentimento informado dos pais biológicos do embrião. Mayana ficou conhecida fora da comunidade acadêmica ao se tornar uma das líderes mais ativas da campanha pela liberação do uso de embriões humanos em pesquisas com células-tronco na época em que se debatia a lei de biossegurança, aprovada em março de 2005. Esteve nas principais mídias, pois achava que a sociedade deveria também discutir as questões éticas da lei. À época, houve intensa pressão de grupos conservadores como a Igreja Católica e parte da comunidade evangélica, que se opunham às pesquisas por razões religiosas. Os judeus liberais e os ortodoxos não são contrários às pesquisas. “Há algum tempo, participei de um debate com um rabino ortodoxo e ele era, inicialmente, contra. Dizia que não se podia destruir uma vida para salvar outra. Expliquei que não estávamos destruindo vidas; estávamos pegando embriões congelados, que têm um potencial de vida baixíssimo”, diz. Depois, a bióloga soube que grupos de judeus ortodoxos passaram a aprovar as pesquisas, pois chegaram à conclusão de que um embrião congelado não tem o status legal e religioso de um ser humano. Mayana adverte que os benefícios das pesquisas com células-tronco não serão imediatos. “Eu fiz um barulho grande para a aprovação da lei e agora tenho que colocar água na fervura porque as pessoas querem resultados imediatos. E, com isso, já está cheio de charlatões oferecendo células-tronco para curar Arquivo pessoal PERFIL Mayana Zatz: pesquisa de ponta não destrói vidas e apenas trabalha com embriões que têm baixíssimo potencial para sobreviverem qualquer coisa”, adverte. Ela considera importante enfatizar que ainda se está no estágio de pesquisa e não de tratamento. Serão necessários alguns anos para que se possa comprovar a eficácia da terapia. Existe uma grande diferença entre tentativa terapêutica e tratamento. Paralelamente ao trabalho de pesquisa, Mayana tem se empenhado em melhorar a qualidade e expectativa de vida de portadores de distrofias musculares. Em 1981, fundou a Associação Brasileira de Distrofia Muscular (Abdim), que atende gratuitamente pacientes que previamente passaram por uma triagem no Departamento de Biociências – USP. A entidade, localizada em São Paulo, tem como objetivo principal consolidar-se como centro de referência, no Brasil, no tratamento e apoio aos portadores da enfermidade. Mayana, que nasceu em Tel Aviv em 1947, passou na França a primeira infância e mudou-se para o Brasil com a família em 1954. Construiu em São Paulo sua sólida carreira científica, cujas raízes remontam à infância. “Quando menina, eu não sabia direito se ia ser médica ou cientista. No colegial, resolvi, então, fazer genética humana porque poderia aliar as duas coisas, a pesquisa e a parte de lidar com pessoas”, diz. Ingressou no curso de Ciências Biológicas da USP, onde permanece até hoje. Cláudia Altschüller é jornalista Revista 18 31 Fotos: divulgação PERFIL Humor à moda judaica Marleine Cohen encontra-se com os integrantes do grupo Os Raposas e a Uva, que mantém vivo o humor muitas vezes esquecido da tradição hebraica S ão seis humoristas e uma sonora gargalhada! – Conhece aquela da mulher que se enrosca no marido e com jeitinho lhe pede: “David? Fofo, compra um radinho para mim?” E ele lhe responde: “Qual o rádio que você quer ganhar, fofa?” E Sarah diz: “Ah!... Pode ser um daqueles que têm carro por fora!” Seja ashkenazi, seja sefardita, não há como ficar alheio às alfinetadas do grupo de humor judaico Os Raposas e a Uva. Embaixadores do bom-humor, como se autodefinem nas palavras de Ahuva Flint – educadora e única mulher do grupo –, entre o palco e a mais distante comunidade judaica da face da terra a milhões de léguas de distância, os Raposas não poupam ninguém: da mocinha idish com sotaque yeke, incorporada por Ahuva, a Mohamed, judeu palestino representado por Alberto Simantob, único sefardita da turma, ninguém escapa. “A coisa já começa a ser engraçada quando se pensa que se trata de um grupo de judeus que... não cobra nada para se apresentar!”, provoca Jô Soares, que os recebeu em seu programa, assim como Faustão e várias entrevistadoras. 32 Revista 18 A bem da verdade, a química que faz desopilar o fígado do público se impôs assim que os seis camaradas se reuniram pela primeira vez. Isso aconteceu por acaso, por ocasião do lançamento do livro Enciclopédia do Humor Judaico, de Henry Spalding, no Brasil, em outubro de 1997. Lembra Ahuva: “Como o autor do livro não podia comparecer ao evento por ser um homem de idade avançada, o editor, Jairo Fridlin, da Editora Sêfer, teve a idéia de convidar alguns amigos, humoristas notórios, amadores e contadores de piadas, para animar a noite na Livraria Cultura de São Paulo”. Dito e feito: os convidados foram à noite de autógrafos: David (Kaleka), Zig (Mermelstein), Rubens (Bisker) – a quem Ahuva já conhecia –, e mais Alberto (Simantob), Marcos (Susskind), entre tantos outros. “Em determinado momento, me pediram para contar uma piada no microfone: eu não tive como recuar. Então, arrisquei: E Moishe pergunta ao amigo: – Chaim, diga-me, tua mulher faz sexo contigo por amor ou por interesse? Ao que ele responde: – Creio que por amor, Moishe. – E como sabe? PERFIL – Ora! Porque ela não mostra nenhum interesse!” Naquela mesma noite, duas ou três piadas depois, estava formado o grupo Os Raposas e a Uva – e o público se contorcia de rir, sentado no chão. O nome escolhido? Uma licença poética para um jogo de palavras com Ahuva, nome próprio que em hebraico significa querida. A missão: “Principalmente fazer benemerência”, elegendo o humor como ferramenta para ajudar a aliviar o dia-a-dia dos necessitados e menos favorecidos, explica ela. “Mas também consolidar a idéia de que o judeu não é um avarento, ranzinza, que só pensa em guerra e ocupar terras da Palestina; é um povo capaz de fazer piadas e de rir de seu cotidiano e das próprias vicissitudes”, como bem mostram Woody Allen, os irmãos Marx, Jerry Seinfield, Mel Brooks, Peter Sellers e tantos outros humoristas, através da história. A partir daquele dia, na carteira de clientes dos Raposas, além do Pioneiros de Santo André – primeira instituição a encomendar um novo espetáculo poucos dias depois da noite de autógrafos –, surgiria um número crescente de ongs, instituições sociais e entidades religiosas: o Instituto Padre Cacique, de Porto Alegre; a Igreja Perfect Liberty, de Arujá; a Associação Minha Rua Minha Casa, de São Paulo; a Doentes Carentes do Hospital Amaral de Carvalho, em Jahu, além – é claro – da Unibes, do Lar Golda Meier, do Refeitório Comunitário Ten Yad e tantas outras instituições beneficentes da comunidade judaica. “Trabalhamos exclusivamente com entidades e instituições não políticas que possuam boa administração financeira, credibilidade e notória ação social em comunidades carentes ou assistência às pessoas especiais”, afirma a educadora. Ao todo, segundo o empresário Alberto Simantob, são 126 espetáculos gratuitos realizados até o momento por todo o Brasil – dos quais 82 para entidades beneficentes não pertencentes à comunidade judaica. Em comum, têm o propósito de revolver e trazer à tona características próprias aos judeus dos quatro cantos do mundo: os percalços da Diáspora e as agruras da imigração, a relação com o dinheiro e a religião, a comida kasher, os laços familiares, os guetos urbanos, como o Bom Retiro e Higienópolis, em São Paulo, e o exercício da medicina, entre outras tantas. “Fazemos um show por mês, em média, buscando acima de tudo mostrar o judeu como um benemerente, e vincular esta benemerência a causas sociais”, explica Ahuva Flint, lembrando que as apresentações extrapolam não só a comunidade, mas também a cidade de São Paulo. “Começamos a trabalhar em março para chegar a um total de sete eventos ao ano, dirigidos tanto a crianças de 7, 8 anos quanto a idosos. Quando fazemos shows em Rubens Bisker, David Kaleka e Ahuva Flint com Jô Soares: “A coisa já começa a se tornar engraçada quando se pensa que se trata de um grupo de judeus que não cobra nada para se apresentar...” lugares particulares, como, por exemplo, em navios ou bufês, atribuímos um valor comercial ao espetáculo e o atrelamos à benemerência de alguma entidade”. Benemerência? Explica-se: os espetáculos dos Raposas são gratuitos por ideologia e por opção. “Somos artistas amadores, não temos nenhuma pretensão ao estrelismo e, sim, de atender a um preceito judaico e do Arquiteto do Universo denominado tzedaká – o maior de todos no judaísmo”, explica Alberto Simantob. Segundo ele, a palavra em hebraico é muitas vezes erroneamente traduzida por caridade, mas, na verdade, quer dizer justiça, e, neste caso, particularmente, significa justiça social. Integração e farra E de que se alimenta o humor de Os Raposas e a Uva? Além do banco de piadas, existente no site do grupo (www.osraposaseauva.com.br) e aberto a todos, os integrantes vão pesquisar em livros e revistas, discos e filmes. “Também recebemos piadas de amigos e nos inspiramos no dia-a-dia, sempre atentos a situações que têm a ver com o universo da nossa comunidade e que podem se transformar em algo engraçado”, conta Ahuva. Mas é acima de tudo o clima mágico de integração, presente durante os ensaios, que fornece a matéria-prima necessária para o bom humor do grupo: “Uma vez por semana, nos reunimos na casa de um de nós e começamos a ensaiar. Estes encontros são muito divertidos; lanchamos juntos, trocamos piadas novas, idéias; rimos muito”, relata Ahuva. Cada integrante tem sua “especialidade”. Assim, Alberto (Simantob) tem como principal função no grupo, segundo ele próprio, “coordenar as correspondências e as reuniões de ensaio e agendar shows”. Ele entra no palco na pele do judeu Revista 18 33 PERFIL Alberto Simantob, Marcos Susskind, David Kaleka, Ahuva Flint e Rubens Bisker e, deitado, Zig Mermelstein: cada integrante tem sua “especialidade” no grupo palestino, aventurando-se pelo mundo sefardita. Rubens (Bisker) é considerado o mentor intelectual dos Raposas, enquanto David (Kaleka) é “o mais organizado do grupo”. Marcos (Susskind) é chamado de “o detalhista” – e encarna o clássico ashkenazi; como tal, não precisa de muito esforço para provocar risadas: “Minha função no grupo é talvez a mais importante de todas”, diz. “Sou eu quem leva o pano de chão para limpar o palco, antes e depois das apresentações. É claro que se um dia eu faltar, não tem espetáculo!” “Entrei no grupo por recomendação do grande Rashi, rabino que previu que eu seria um grande humorista e que disse isto para minha tataravó. De bate-pronto, ela morreu de rir. Quem duvidar que se mate para encontrá-la no Paraíso e confirmar esta versão!” “Se não fossem Os Raposas, não sei o que seria da minha vida: é que graças ao grupo eu tenho... tantas dívidas!” Ahuva Flint, por sua vez, entra no palco com o ouvido afiadíssimo, disposta a passear pelos diversos personagens femininos existentes no Bom Retiro: a polonesa, a hebraica e outras. Quanto a Zig (Mermelstein), tem a seu favor uma estatura invejável que lhe permite se impor de pronto e ser reconhecido pelo público simplesmente como “o Zig, o grandão!” São 75 minutos de puro deleite; os integrantes se revezam diante do público e dispõem, cada qual, 34 Revista 18 de um bloco no qual chegam a contar seis piadas ou “causos”. O sucesso é tão grande que a agenda dos seis humoristas inclui o lançamento de um dvd, com exímia seleção de piadas, e o desdobramento da mera apresentação artística no palco: um trabalho de orientação empresarial às entidades que os contratam, com dicas de como vender o espetáculo ao público, como montar o show e buscar patrocínio, entre outras. “Fazemos o que fazemos porque temos certeza de que assim ajudamos o outro, ora com o dinheiro arrecadado durante o espetáculo, ora com o lazer proporcionado. Nosso objetivo é dar felicidade às pessoas. É o nosso maior presente”, explica Ahuva Flint, concluindo: “Rir faz esquecer os problemas”. Disposto a não encerrar o bate-papo, Alberto Simantob ainda emenda: “Gostaria de contar aos leitores a piada do papagaio que o Jacó ganhou, mas que a redação censurou. Então, quem quiser ouvi-la deve assistir ao nosso show...” Seria este um convite formal, Alberto? “Bem... sabe como é”, diz. “Esta é a diferença entre a saída à francesa e à judaica; na primeira, o sujeito vai embora sem se despedir. Já na saída à judaica, ele se despede, mas nunca vai embora...” Marleine Cohen é jornalista Nossa História Fotos: divulgação LETRAS E ARTES A cerimônia de kapará, realizada um dia antes do Yom Kipur, dia do perdão: rito de absolvição Gestos de fé Fotografar o invisível parece ser o objetivo de André Douek ao documentar os preparativos das celebrações da liturgia judaica tradicional azer uma documentação fotográfica dos rituais da liturgia judaica conforme praticados pelos seguidores da ortodoxia é uma tarefa praticamente impossível. Isto porque as leis que se referem à maior parte dos dias santos do calendário judaico proíbem, nestas datas, o exercício de qualquer trabalho – inclusive o de fotografar. Deparando-se com esta impossibilidade, André Douek, fotógrafo brasileiro nascido no Egito, começou a procurar meios para a realização de um projeto que, havia anos, germinava em sua imaginação. F 36 Revista 18 Seu desejo era documentar os ritos judaicos, associados a dimensões da existência que não fazem parte do mundo quotidiano e, em seu caso, ligados também às suas memórias da terra natal, que deixou aos sete anos de idade, em 1962 – ele e sua família foram dos últimos a deixarem o Egito, depois da expulsão promulgada por Nasser em 1957, que pôs fim a uma das mais antigas e tradicionais comunidades judaicas do mundo. As lembranças nítidas da infância e da vida familiar no Cairo permaneceram com Douek, porém, como matrizes que organizam o universo LETRAS E ARTES A purificação do lar por meio da remoção do chametz, realizada um dia antes de Pessach: para contornar proibição religiosa de fotografar durante os dias santos, Douek optou por documentar os preparativos das principais cerimônias que marcam o calendário litúrgico judaico dos sentimentos, de maneira que presenciar a celebração das festas religiosas, cada qual com seu sabor específico, tornou-se, também, uma maneira de reencontrar o passado irremediavelmente perdido, não obstante as diferenças entre as celebrações judaicas no Egito e no Brasil. Tanto quanto para as festas em si, a nostalgia de Douek volta-se para o Cairo de sua infância, onde a vida, seja a dos muçulmanos, seja a dos cristãos coptas, seja a dos judeus, lhe parecia impregnada de religiosidade em todos os seus aspectos. “No Egito daquele tempo a palavra de uma pessoa valia tudo. Havia um grau enorme de confiança entre as pessoas, nem se pensava em contratos”, diz ele. Recuperar a inocência e a simplicidade perdidas na voragem materialista e no cinismo, e evidenciar a sacralidade do tempo conforme cultivada pelos que seguem a fundo todos os preceitos do judaísmo tradicional; fotografar o invisível e o proibido, porque sagrado, foram, assim, os objetivos que ele tinha em vista ao se lançar neste projeto, que a Revista 18 publica em primeira mão. Em meio à desorientação da vida mundana – e da história – o ritual proporciona refúgio, segurança e libertação. A santificação do tempo suspende as incertezas para mergulhar quem dela participa no sentimento e no sentido de maravilhamento. E o rigor das leis judaicas referentes às festas tem como objetivo, justamente, preservar este espaço de suspensão dos condicionamentos, construir, como que uma cerca em torno destes momentos apartados do calendário comum, para que nada perturbe sua vivência. O ritual judaico não é algo que pode ser descrito em palavras, nem compreendido pela razão ou pelo intelecto. É algo que ameaça perder-se no tempo e nas migrações dos judeus por todos os quadrantes Revista 18 37 38 Revista 18 Na página oposta, no alto, dedicação de uma letra de um Sefer Torá por uma família e, abaixo, preparação para o toque do Shofar, que marca as cerimônias relativas ao Ano Novo judaico: manutenção da tradição atravessa os séculos, os continentes e as adversidades da história. Acima, prece ante o santuário onde ficam guardados os pergaminhos enrolados que contêm, em manuscritos hebraicos, os cinco livros de Moisés: a Torá é o templo portátil do povo judeu do mundo, mas que acaba por sobreviver, como um legado, tão abstrato quanto precioso, a ser transmitido às novas gerações. Como conciliar, então, as múltiplas restrições que envolvem o ritual com seu desejo de documentá-los? De uma maneira muito judaica, isto é, contornando o problema sem perder de vista o objetivo, Douek teve a idéia de retratar os preparativos das festas, antes de seu início propriamente dito, produzindo imagens que são, por assim dizer, um índex, um sinal daquilo que está por vir. Assim, por exemplo, ao abordar a festa de Pessach, em que se comemora, justamente, a libertação dos judeus da escravidão do Egito, Douek fotografou aquele momento, antes do início da festa, em que as crianças das casas, munidas de velas, acompanham o pai em busca do chametz, isto é, dos alimentos fermentados que precisam ser retirados, para simbolizar uma ruptura com o passado e um novo início – da mesma forma que a partida do Egito representou, para o povo judeu, o começo de uma nova vida. “Na véspera do Pessach é feita a busca do chametz. O chefe da casa faz uma bênção e, com uma única vela acesa, passa pelas dependências escuras, em todos os lugares onde possa haver chametz. Na manhã seguinte, o chametz coletado é queimado numa pequena fogueira”, narra Douek em sua apresentação destas fotografias. Outra das celebrações abordadas é a de Shavuot, festa que se comemora 50 dias depois de Pessach, e que celebra a colheita dos grãos na terra de Israel. Simchat-Torá, que comemora a outorga da Torá ao povo judeu, junto ao Monte Sinai, e ao mesmo tempo a renovação das gerações, é evocada pela presença de crianças junto aos manuscritos sagrados, ao mesmo tempo em que Douek documenta o trabalho de um escriba. Rosh Hashaná, o início do novo ano, e Yom Kipur, o dia da expiação, são abordadas, entre outras imagens, por meio do toque do Shofar e dos ritos preparatórios da Kapará, em que uma galinha simbolicamente expia as transgressões cometidas. Estas fotografias despertam a memória e a presença de um universo que está além dos sentidos. São os gestos de uma fé milenar, que resiste a tudo. (L. S. K.) Revista 18 39 Franz Kafka, leitor da realidade concreta? Enrique Mandelbaum discute ensaios de Michael Löwy, que buscam compreender o instigante legado de Kafka como reflexo de realidades históricas, mas deixam de lado aspectos importantes inerentes à sua literatura m maio de 1924 Kafka agonizava, dilacerado por uma tuberculose que provocava lesões na garganta, tão graves que a respiração, a fala e a deglutição estavam seriamente comprometidas. Sua aparência física materializava uma agonia na qual se tornava quase impossível encontrar a esperança de vencer a morte. Aos 41 anos, kafkianamente, Kafka morria de fome, realizando um incrível esforço para revisar as provas tipográficas de seu texto Um artista da fome. No dia 2 de junho, a agonia atingia o nível do insuportável. Ele pede ao seu médico: “Mate-me, senão você é um assassino”. Finalmente numa terça-feira, 3 de junho, ao meio-dia, Kafka morre. Morre mas não desaparece. A partir daí, uma literatura que se estima em mais de 20.000 títulos, sem contar as centenas de milhares de páginas nunca publicadas de autores anônimos e as incalculáveis reflexões que sua pequena obra escrita desperta em cada um de seus leitores, é posta em movimento, com uma intensidade tão enérgica que nada indica que virá a se esgotar. Enquanto os homens enfrentarem as mazelas do dia-a-dia urbano, do mundo organizado do qual nunca mais se espera que eles saiam, Kafka estará presente como um outdoor afixado permanentemente numa das vias principais, próximo do olhar de toda a multidão anônima que E 40 Revista 18 por ali circula. Kafka é daqueles poucos autores cuja obra transborda os textos e se transforma em parte do cenário das vidas humanas, ressoando em todas as dimensões das situações dos homens. Toda organização estatal de qualquer país do mundo tem algo de kafkiano. Toda instituição, pública ou privada, religiosa, acadêmica ou mafiosa, midiática, beneficente, esportiva, social ou o que seja, tem algo de kafkiano em seu interior. Toda casa, toda vida em família reserva, em seus aposentos, um nicho kafkiano. Toda fala entre os homens, toda comunicação acolhe também tanto a demanda por um entendimento quanto o mal-entendido, sendo que ambos podem ser kafkianos. Enfim, todo homem guarda em seu interior uma estranheza de si consigo próprio que é também kafkiana. Kafka penetra tão fundo a vida que é capaz de se instalar em compartimentos e lugares do acontecer humano tão raros que poucos autores, para não dizer nenhum outro, conseguem lhe fazer companhia. Entre as letras e a vida humana, o espaço é difícil de ser encurtado e não existe, como os velhos rabinos já sabiam, qualquer trilha fácil, qualquer atalho facilitador. Por isto, é bom desconfiar de toda escrita e, antes de mais nada, desconfiar de nós próprios. Dostoievski disse: “O homem é um patife – e patife é aquele que diz sê-lo”, incluindo a si próprio como uma voz portadora da Marcelo Lerner LETRAS E ARTES LETRAS E ARTES qualidade de patife, para despertar em seus enorme desejo de liberdade e uma extrema leitores uma desconfiança que não se sensibilidade para com a violência promoreduza à relação com os outros e com o vida pelas fontes de poder arbitrárias, que mundo que os rodeia, mas que inclua se deslocariam como que em ondas antes a eles próprios, fazendo de cada um sísmicas desde um epicentro do poder do pai sobre os filhos até as instâncias buroalguém desconfiado de si mesmo. Kafka é herdeiro desta tradição que cráticas do estado autoritário, e que o visa levar os homens a desconfiarem de si levariam a criar uma obra literária na qual próprios, exacerbando-a ao máximo, a todo o estado de coisas é considerado ponto de que ela incida sobre o próprio “desde o ponto de vista de suas vítimas”. texto que realiza (não devemos esquecer Löwy propõe-se a acompanhar com cuidado sua séria demanda de que sua obra escrita e atenção o que ele chama de um “fio fosse queimada após a sua morte). E é esta vermelho” presente nos textos kafkianos, ampliação da desconfiança por sobre todo através de uma leitura que ele nomeia o campo textual que levou muitos de seus como “sociopolítica” e que lhe permite primeiros críticos a ver em seus escritos apontar o conteúdo anti-autoritário da algo assim como uma ruína do trabalho escrita kafkiana. E o faz como um autor acostumado ao diálogo literário, a represenpolêmico com outros tação de um declínio críticos, e como um contextualizado histoexperimentado invesricamente: os escritos tigador de textos das de Kafka como portaEnquanto os homens ciências políticas e vozes das impossibienfrentarem as mazelas sociais. Sua pesquisa lidades burguesas de fixa um Kafka que responder com posido dia-a-dia urbano, do flerta simpaticamente tividade às demandas mundo organizado do com idéias libertárias, históricas que exigifazendo das experiam a superação da qual nunca mais se riências do escritor própria burguesia. espera que eles saiam, com leituras e persoOu ainda o registro nagens anarquistas das impossibilidades Kafka estará presente uma das evidências do homem diante do como um outdoor afixado de suas convicções acúmulo de insupessoais, que atuariam cessos história adentro. permanentemente numa com profundidade ao Porém, mesmo os das vias principais longo de toda a sua críticos mais inquietos obra. É verdade que, com o estado de coisas em Kafka, as organirealizado por Kafka zações sociopolíticas reconhecem em suas obras a presença de um grande escritor. E e culturais são responsáveis, em grande principalmente a realização de um medida, pelo sofrimento dos homens, mas enigma que nunca se fecha plenamente, este sofrimento, ao nosso ver, não se reduz porque nele, apesar de tanta negatividade, em seus escritos apenas a um produto do apesar de tanta desconfiança, o homem entorno, não provém exclusivamente do estranhamento e da hostilidade do mundo ainda se ergue por inteiro. Michael Löwy, em Franz Kafka, sonhador exterior. Ethos e Cosmos se integram, mas insubmisso, recolhe um Kafka que poria um não se dilui no outro. Em Kafka, um em atividade, em seu trabalho literário, um agulhão de estranhamento parece estar implantado nas próprias entranhas de cada homem e impede a possibilidade de Esculturas da Ponte Carlos, em Praga, e, ao uma síntese pessoal estabilizadora. fundo, a entrada do Museum Regni Bohemiae: Löwy, porém, deixa de lado, neste literatura e escrita decerto obedecem a leis estudo, esta dimensão da obra kafkiana, próprias, porém é inegável que a atmosfera de privilegiando uma leitura que responsaPraga, do Império Austro-Húngaro declinante e biliza as estruturas burocratizadas do do império da razão que se instalou com o poder pelo sofrimento e a alienação dos século 20, impregnaram a obra de Franz Kafka Revista 18 41 LETRAS E ARTES homens, e promove assim uma redução da complexidade kafkiana, na qual, como no relato A colônia penal, a violência se inscreve como letra no corpo humano e faz de cada um não apenas uma vítima, mas também um sujeito capaz de suscitála. Esta é a gravidade do universo kafkiano: cada um, mesmo aquele que mais sofre, pode ser um agente violento. Esta é a situação kafkiana por excelência, na qual todos atropelam todos e todos são atropelados pela máquina burocrática que é posta em atividade. Um dos intuitos centrais da leitura de Löwy é tentar evidenciar quais seriam as motivações e as fontes de inspiração do trabalho literário de Kafka. Assim, por exemplo, ele sustenta que A colônia penal teria como origem uma crítica de Kafka ao colonialismo, ao militarismo e à burocracia, chegando até a argumentar em favor de um colonialismo bem específico – o colonialismo francês – que estaria na mira da crítica de Kafka, sendo que Löwy hesita entre saber se o espaço territorial em que se passa o relato seria a Ilha do Diabo, “para onde o Capitão Dreyfuss havia sido remetido após sua condenação, mas lá não havia população indígena”, ou a Nova Caledônia, “essa ‘colônia penal’ francesa habitada por melanésios, para onde foram deportados os prisioneiros communards, mas Kafka não menciona prisioneiros deportados, políticos ou outros” (p. 83). Para O processo, Löwy põe em cena a hipótese de que processos antisemitas teriam sido a sua fonte, ou ainda que a irmã Otla seria o modelo arquetípico sobre o qual teria sido construída a personagem Amália, da novela O castelo. O diálogo entre realidade e obra literária nunca é fácil, e a crítica contemporânea há muito que abriu mão de ver a obra literária como cópia do real. Löwy, porém, aponta para cada obra uma origem na realidade social, da qual a obra seria um desdobramento imaginativo. Que em toda literatura uma determinada ideologia se materialize numa ação imaginária é inquestionável. Ocorre que o caso de Kafka é emblemático de uma literatura que, para além de querer representar um estado de coisas da vida dos homens, toma a si própria como o problema a ser trabalhado. E Löwy parece, neste trabalho, pouco atento a este fato. 42 Revista 18 Ao priorizar a apresentação de um Kafka anti-autoritário, ele termina por filtrar aspectos importantes do texto kafkiano, principalmente no que diz respeito a questões referentes à forma da escrita, lugar por excelência da singularidade de que o texto de Kafka é dotado. Löwy privilegia uma crítica apoiada sobre o que seria o argumento do texto. Mas o trabalho literário consiste basicamente na operação textual que é realizada, isto é, nos artifícios de escrita que o escritor põe em cena, selecionando cada palavra, construindo cada oração, atento à estrutura frasal, e assim por diante. E isto mais ainda em Kafka, um autor que operava consciente de sua atividade textual e Que em toda literatura uma determinada ideologia se materialize numa ação imaginária é inquestionável. Ocorre que o caso de Kafka é emblemático de uma literatura que toma a si própria como o problema a ser trabalhado crítico dela, atuando não através da linguagem mas na linguagem, lugar em que estão alocadas, pela forma como Kafka opera, grande parte das tensões constitutivas de seu texto. E Löwy, em seu filtro crítico, muitas vezes termina por privar o texto kafkiano desta tensão, o que significa, de algum modo, privar a letra do “espírito kafkiano” (a expressão é de Löwy). Isto não quer dizer que a leitura de Löwy não seja de grande valia. Ao contrário, ela contribui em muito para destacar um Kafka que é também um genial leitor crítico do estado de coisas entre os homens. E isto não é pouco diante de um panorama da crítica literária contemporânea, que muitas vezes tende a encerrar a obra literária num compartimento estético-lingüístico, destituindo a obra de toda a sua potência crítica. E o próprio Löwy sabe dos limites de seu trabalho, quando escreve que “a leitura ‘política’ proposta aqui evidentemente é parcial: o universo de Kafka é rico, complexo e multiforme demais para ser redutível a uma fórmula única. Seja qual for a pertinência de uma interpretação, sua obra guarda todo o seu inquietante mistério, sua singular consistência onírica como um ‘sonho desperto’, inspirado pela lógica do maravilhoso” (p. 13). Se toda leitura de Kafka é parcial, se nenhuma a esgota, por que então o enorme esforço de Löwy para se colocar como original dentro do gigantesco campo crítico deste autor? Ele diz: “Em lugar algum encontrei uma análise sistemática de sua obra pelo ângulo da paixão antiautoritária que a atravessa como uma corrente elétrica” (p. 12). Não é o caso de trazer aqui o incrível leque de críticos que assentam sua leitura de Kafka justamente nesta “paixão anti-autoritária”. Citemos apenas Canetti. Diz ele: “Desde um princípio, Kafka foi partidário dos humilhados”. E referindo-se a O castelo: “Nunca se escreveu um ataque mais claro contra a submissão ao que é superior, tanto se queremos entender por isto um poder divino ou meramente terreno”.1 É importante salientar que toda a leitura de Canetti desdobra este pensamento em profundidade, bem como a de Benjamin, Adorno, Ritchie Robertson, Hannah Arendt, Marthe Robert, Deleuze e Guattari e tantos outros que o próprio Löwy cita. Porém, se Löwy não é o primeiro a vê-la por este ângulo, este volume tem o mérito indiscutível de iluminar em que medida esta paixão antiautoritária percorre a obra kafkiana em sua totalidade, situando-a no contexto da realidade européia da primeira metade do século 20. Enrique Mandelbaum é psicanalista, coordenador pedagógico do Colégio Iavne e autor de Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002 1 Canetti, E. El otro proceso de Kafka. Barcelona: Muchnik Editores, 1981, p. 146. Gianni Giansanti /Sygma/Corbis/Stock Photos 71 faces de Primo Levi Nova antologia de contos do escritor italiano é retrato dos caminhos percorridos por um dos mais originais ficcionistas do século 20, desde suas raízes judaicas até o suicídio. Por Andrea Lombardi Primo Levi em seu escritório, em Turim, janeiro de 1986: escritor tematizou elementos constitutivos da tradição judaica e ao mesmo tempo reafirmava uma certa distância, típica do judaísmo italiano esenhar estes 71 contos do escritor judeu italiano Primo Levi (19191987) apresenta uma óbvia dificuldade: como dar conta, em poucas linhas, de textos tão ricos, tão diferentes entre si e originários de publicações tão distintas? Esta nova antologia é uma suma de três coletâneas: Histórias Naturais, de 1966, com 15 contos, assinados pelo autor com o pseudônimo de Damiano Malabaila; Vício de forma, de 1971, com 20 contos e, finalmente, Lilith e outros contos, de 1981, com 36 contos. Na leitura, há fatores diferentes que pesam: o estilo do autor, a afinidade com o tema ou com o gênero, algumas condições de espírito (às vezes gostamos mais disso ou daquilo), a gênese e a estru- R tura da obra. Em sua excelente introdução, Maurício Santana Dias, o tradutor, enfatiza o desconcerto que provocou a publicação de certos contos aqui incluídos, pois não tinham como tema (ou como tema único) o campo de concentração de Auschwitz – desconcerto que os críticos europeus manifestaram, como se Levi “fosse condenado a repetir, eternamente, os horrores do Lager”. A primeira coletânea, Histórias Naturais, consiste de contos de ficção científica, relatando, portanto, histórias e acontecimentos projetados para o futuro, ou melhor, projetados no futuro daquele passado específico, que era o contexto do autor: a década de sessenta, interessada em Ovnis e em habitantes de outros planetas. O segundo livro, Vício de forma, traz contos ambientados num anômalo presente; um presente que apresenta sempre um vício de forma, um problema ou um pequeno desvio, que dá origem a um mundo paradoxal e distorcido. Tratase de contos que pertencem a um gênero que se situa entre a ficção científica e o conte philosophique, e que, na Itália, possui sólida tradição, desde o poeta romântico Giacomo Leopardi (1798-1837) até o escritor Italo Calvino (1922-1985), contemporâneo de Levi. Quanto mais imperceptível e anômalo o desvio, tanto mais surreais serão seus efeitos. Para usar o paradigma do tempo, tão forte nesta coletânea, o presente de que aqui se trata seria futuro do presente, Revista 18 43 LETRAS E ARTES um presente como aqueles que o filme de ficção científica De volta ao futuro mostra, monstruoso e resultado de modificações indevidas. Em “Agentes de negócio”, por exemplo, um funcionário, vestido de branco, toca a campainha e, no melhor estilo dos caixeiros viajantes, apresenta sua mercadoria: “Somos especialistas na terra... Nós nos encarregamos do Gênero Humano...” e passa ao mostruário, apresentando breves filmes de exemplares do gênero humano, para facilitar a escolha: “Homens e mulheres... O senhor conhece a diferença, não? É pequena, mas fundamental...”. O interlocutor, que é uma alma à espera de uma encarnação e um potencial cliente, desconfia de possíveis falhas e problemas na “mercadoria”. O caixeiro viajante admite, finalmente: “Parece-me que o senhor teve uma intuição; alguém, em algum ponto, deve ter errado, pois os planos terrestres apresentam uma falha, um vício de forma...”. O terceiro e último livro da trilogia aqui reunida chama-se, numa alusão inequívoca à tradição cabalista judaica, Lilith e outros contos, e reúne 36 contos, divididos em três seções, emblematicamente intituladas: Passado próximo, Futuro anterior e Presente indicativo. Estes três tempos gramaticais do italiano aludem, evidentemente, a três momentos na relação entre o passado e o nosso presente. Passado próximo reúne contos sobre o campo de concentração de Auschwitz, de onde Levi foi libertado em abril de 1945, e tema de seu magistral relato É este um Homem, de 1947 (Lilith é o apelido que Levi dá a uma prisioneira). Futuro anterior e Presente indicativo incluem visões fantasiosas, advindas de um passado ainda não superado, e sinais de incompreensão, de choques entre culturas, de mudanças de perspectiva e situações paradoxais. Na leitura, cada palavra tem seu peso, um peso específico, bem material. Como o peso dos tijolos. Se com estes é possível construir palácios e pontes (esta última, uma metáfora bastante presente na obra de Levi, especialmente em La chiave a stella, num diálogo ideal entre um engenheiro e um escritor), com as palavras é possível descrever essas pontes, mudar a perspectiva de onde são olhadas, apontar para os “vícios de forma”, na ilusão, talvez, de que uma transformação seja possível 44 Revista 18 (ao menos, uma transformação de ponto de vista). Por meio das palavras observamos nosso presente, relembramos o passado que nos influencia e construímos um futuro, que depende, em grande medida, do exercício de liberdade que sabemos realizar em nossa leitura. O que confirma, ainda, o papel fundamental do exercício de leitura na época da globalização e da descrença. Por meio das palavras observamos nosso presente, relembramos o passado que nos influencia e construímos um futuro, que depende da liberdade que sabemos realizar em nossa leitura Há dois detalhes que chamam a atenção nesta antologia: o título do livro e a última frase, duas pequenas idiossincrasias desta edição brasileira. Trata-se de marcas quase imperceptíveis que deixa a transposição de uma língua para outra, de um universo cultural para outro, como rastros da memória. O título 71 contos existe somente na edição brasileira e é uma criação que, enquanto tal, modifica algo na leitura, estimulando especulações, conjeturas, hipóteses, não necessariamente fundamentadas na lógica (mas a literatura cria sua própria lógica, as palavras escapam do discurso racional!). E isto vale especialmente para um escritor que, químico de profissão e escritor em seu tempo livre, estava sempre muito atento às coincidências, que procurava palavras especiais, como os palíndromos (palavras que podem ser lidas nos dois sentidos, da esquerda para direita e viceversa), ou o aspecto específico das palavras: seu peso ou tamanho. Os 71 contos poderiam ser lidos como os 49 degraus (título de um livro de ensaios do escritor italiano Roberto Calasso), considerando o aspecto numerológico da tradição cabalista. “O servo”, por exemplo, um dos contos deste volume, apresenta uma nova versão do mito do Golem, metáfora do poder da letra, dentro da escrita alfabética. Na versão relatada por Gerschom Scholem (A Cabala e seu Simbolismo, São Paulo, Perspectiva), ao Golem, que é uma figura de barro, é dada a vida pela inscrição de uma palavra: “Sobre a testa da imagem, escrevem emet, isto é, verdade”. Mas, vice-versa, quando é necessário parar sua atividade é sempre Scholem que afirma: “Eles apagam rapidamente a letra alef da palavra emet sobre a testa, ficando apenas a palavra met, que significa morte. Feito isto, o Golem desmorona e se dissolve no barro, no lodo que fora antes...”. Ou seja, o texto, enquanto composto de letras alfabéticas permutáveis, comporta-se como um organismo vivo. Primo Levi, em sua versão nesta coletânea, acentua o papel dos números: “O Golem ia tomando forma, e ficou pronto no ano 1579 da Era Vulgar, 5339º da Criação; ora, 5339 não é propriamente um número primo, mas quase, pois é produto de 19 [...] multiplicado por 289, que é o número dos ossos que compõem nosso corpo...”. É conhecida a relação contraditória de Primo Levi com o judaísmo, pois o escritor italiano tematizou elementos constitutivos da tradição judaica e, ao mesmo tempo, reafirmava uma certa distância, em certa medida típica do judaísmo italiano. A propósito do número 71 do título desta nova coletânea, coincidentemente, o capítulo de número 71 do tratado Kidushin do talmude babilônico trata da questão dos segredos relativos à pronúncia do Tetragrama, o inefável nome divino. Esta é uma alusão irônica, talvez, por mera associação livre, mas fala-se, aí, Reprodução LETRAS E ARTES texto famoso de Walter Benjamin, seria possível dizer que “um autor que se suicida aos 68 anos será sempre um autor que se suicidou aos 68 anos”. Uma aparente tautologia. Esta frase abre, porém, dramaticamente, uma série de questões, pois o suicídio pode tornar-se um aspecto privilegiado para a leitura da obra de Levi. Há outras perguntas: o leitor tem o direito de indagar sobre a vida particular do autor? Ela fornecerá elementos interessantes para a leitura? Trata-se de um interesse mórbido – a morte que chama a atenção – ou esta indagação é parte de uma necessidade de comparar os dados biográficos com a produção, segundo o ultrapassado estilo biográfico da crítica literária? Temores e fantasias referentes aos extraterrestres, tão em voga no mundo ocidental na década de 70, estão também presentes em parte da obra ficcional de um escritor que, não obstante, tornou-se quase sinônimo de literatura de testemunho sobre um jovem que “antes de ter a idade certa, subiu atrás dos irmãos nos degraus e prestou ouvido ao Grande Sacerdote e percebeu como ele mantinha o Nome encoberto pelo canto de seus irmãos e dos sacerdotes”. Outra menção, neste mesmo tratado talmúdico, sempre no capítulo de número 71, parece dar indicações sobre o sagrado Nome. Ambos podem ser lidos como metáfora do encobrimento, o que seria bastante intrigante para um escritor como Primo Levi, que defendeu sempre seu caráter laico e um estilo transparente, um “escrever claro”, abrindo, como lembra o prefácio de Maurício Santana Dias, uma polêmica com Giorgio Manganelli (exuberante escritor da vanguarda italiana) e, indiretamente, com Paul Celan, escritor romeno de língua alemã – além de Franz Kafka, embora deste último Levi tenha traduzido O processo, para o italiano. O segundo detalhe consta no final da edição, onde há uma breve nota biográfica, quase enigmática; seis linhas, que terminam com a frase: “Primo Levi suicidou-se em 1987”. Parafraseando um É conhecida a relação contraditória de Primo Levi com o judaísmo. Ele tematizou elementos da tradição judaica ao mesmo tempo em que reafirmava certa distância, típica do judaísmo italiano Há duas respostas, ambas interessantes e pertinentes, pois vêm do próprio Primo Levi. A primeira, uma veemente crítica à atitude de Hans Mayer (“entrar em polêmica com um morto é embaraçoso e pouco leal”), crítico alemão de origem judaica, que após a monstruosa experiência de Auschwitz resolveu mudar de nome (passou a chamar-se Jean Améry), mudou de nacionalidade, mudou de língua, em sinal de protesto radical contra tudo que estivesse vinculado ao nazismo. Améry “o filósofo suicida e teórico do suicídio, que se matou em 1978”; Levi dedica a ele um capítulo de seu Afogados e Sobreviventes. Levi mostra pudor e constrangimento em polemizar com Améry e em aprofundar as “razões de seu suicídio”, pois não pode haver uma explicação exaustiva para o suicídio, além de meras hipóteses e dos diagnósticos dos médicos. No conto “Rumo ao Ocidente”, sobre o qual o prefaciador se detém, três biólogos estão incumbidos de estudar o comportamento dos lemingues (uma espécie de roedores) e da tribo dos arundes (cujo habitat seria o Amazonas). Ambos os “seres”, roedores e homens, mostrariam um instinto suicida irrefreável. Entre os biólogos há divergências: “ ‘Por que um ser vivo deveria querer morrer?’ E a resposta: ‘E por que deveria querer viver?’ ‘É preciso ter coragem para dizer isso –, quem tem razão são eles.’ ‘Os lemingues?’ [...] ‘Nós nos enganamos e sabemos disso, mas preferimos continuar de olhos fechados. A vida não tem um objetivo; a dor sempre prevalece sobre a alegria; somos todos uns condenados a assistir ao fim das pessoas mais queridas...’ ”. Os três resolvem testar um antídoto contra a vontade suicida dos lemingues e dos arundes, mas... não há um final feliz nesta história. O conto é brutal e aponta para uma filosofia que vai muito além do Além do princípio do Prazer, o texto em que Freud identifica no princípio de morte a contrapartida ao princípio do prazer, e afirma que nosso desejo mais profundo vai em direção ao primeiro: paz, descanso. Morte. Mas, na leitura, não há uma interpretação única. Há um tecido de contos que se interligam, que se superpõem, que se interseccionam. Palavras ligadas a outras palavras. Abertas, todas, para outras significações. Andrea Lombardi é professor de língua e literatura italiana da UFRJ 71 Contos de Primo Levi Tradução de Maurício Santana Dias Cia. das Letras, 528 p. R$ 41,00 Revista 18 45 LETRAS E ARTES Para ler PAUL CELAN Antologia Hausto-Cristal, comentada pelo filósofo Hans-Georg Gadamer, chega ao leitor de língua portuguesa e propõe seu emaranhado de significados como objeto de diálogo. Por Moacir Amâncio uem sou eu, quem és tu?, livro recém-lançado pela editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, reúne os ensaios que o filósofo Hans-Georg Gadamer escreveu sobre a série de poemas Hausto-Cristal, de Paul Celan. O livro, que traz também os poemas, chega ao leitor brasileiro em tradução criteriosa e sensível de Raquel Abi-Sâmara. Neste volume aparentemente despretensioso encontra-se um esplêndido curso sobre como ler poesia na contemporaneidade. Sobretudo tendo em mente a complicada frase feita de Adorno segundo a qual, depois da Shoá, não se pode mais escrever poemas. Fazê-lo seria um ato de “barbárie”. A realidade desmente a frase, mas só em parte. Porque falta a ela o seguinte complemento: não se pode mais escrever poemas como antes da Shoá. De igual modo, se o registro da escrita mudou, também a leitura muda. Ela se torna um desafio radical, como vem proposta nos poemas de Celan aqui comentados. Em Quem sou eu, quem és tu, encontramse uma série de poemas breves, de exterior impenetrável, e que colocam em xeque tanto o leitor quanto as fórmulas literárias tradicionais. Ao mesmo tempo, cada um dos poemas revela uma forte comoção e é através desta que se estabelece o vínculo entre leitor e texto. Os poemas não estão aí para serem decifrados como relojoaria, mas para serem captados por meio de sutilezas e obscuridades. É a isso que se propôs o crítico alemão, ao levar os 21 poemas da série para uma viagem de relaxamento, disposto a lê-los de maneira descondicionada, em busca da sintonia mais íntima com cada palavra escrita por Celan. Observe-se, o texto enigmático contemporâneo é muito diferente do texto difícil Q 46 Revista 18 de Góngora, conforme o exemplo dado por Octavio Paz em um de seus ensaios. Em Góngora, o poema é complicado e o uso de chaves específicas permite a sua compreensão cristalina. Já na poesia atual, o texto revela-se enigmático. De um lado, sabe-se, Celan vinculou-se por algum tempo ao surrealismo, escola anti-escola Neste volume aparentemente despretensioso encontra-se um esplêndido curso sobre como ler poesia na contemporaneidade. Sobretudo tendo em mente a complicada frase feita de Adorno segundo a qual, depois da Shoá, não se pode mais escrever poemas que se propunha a expor o que permanecia oculto pelas receitas totalitárias da estética tradicional. A convulsão no lugar da técnica e do racionalismo constrangedor, que teve como resultado máximo a Shoá. Daí o horror das imagens surrealistas. O mesmo se vê em Picasso: Guernica não pode ser uma obra fácil e muito menos bonita. Ela é o avesso da estética “apolínea”. E propõe ao espectador uma decifração também emocional. Algo parecido ocorre com os poemas de Celan, que exigem, antes de mais nada, uma aproximação livre e desarmada. O desafio foi aceito com plenitude por Gadamer, erudito que soube perceber a condição primeira para tratar esses textos. Não se trata de descartar a erudição, algo de resto impossível, mas de permitir que ela seja trabalhada pela experiência da linguagem do poeta – uma entrega à poesia e não uma tomada da poesia. Esta, na opinião do crítico-filósofo, por sua vez não pretende se colocar como seletiva, poesia feita para alguns intelectuais, mas para essa entidade vaga e ampla chamada leitor. Nesse sentido evidencia-se um dos conteúdos políticos dos escritos. Como política é a atitude que o leitor deve adotar diante deles: em vez de pretender dominar a matéria que lhe é dada, dialogar com ela, na aceitação do outro, sob o signo da interrogação do título. Quem sou eu, quem és tu? É o diálogo e, ao mesmo tempo, o monólogo proposto pelo poeta e que o crítico procura explicitar com a devida humildade e atenção. O leitor profissional pode desse modo encontrar-se com o chamado leitor comum, desde que ambos estejam munidos de certa ardente paciência, pois, como diz Gadamer: “Quem deseja compreender e decifrar a lírica hermética não pode, certamente, ser um leitor apressado. Mas não precisa, por outro lado, ser um leitor erudito ou especialmente instruído: deve ser um leitor empenhado em continuar ouvindo”. Quer dizer, em vez da solução pronta, de pacote, torna-se necessário o convívio constante e despreocupado com as palavras de Celan. Outro dado fundamental nessa aventura sem garantia de êxito é que o mito de domínio do escritor sobre o que escreve também deve ser deixado de lado. Gadamer assinala que o próprio poeta atendia com gentileza aos pedidos de informação sobre as condições, motivos do momento da escrita. Isso pode eventualmente elucidar algum detalhe, mas pode ser fator de complicação. Isto é, se não ajuda, atrapalha. Gadamer pergunta: “Serão necessárias indicações sobre aquilo em que um poeta pensou ao escrever seu poema? O que importa, é evidente, é o que o poema efetivamente diz – e não aquilo que seu autor teria pensado sem saber talvez expressá-lo”. Porque os motivos iniciais e “contingentes” do poeta não se encaixam de modo necessário no texto efetivo em sua dinâmica própria. Podemos concluir que o poeta se encontra com o público e o crítico na condição de leitor dessa obra, liberada de autoria. Não é mais o escritor que fala, mas o poema. É isso, mais o cuidado em evitar imposições ao leitor, a lição básica de Gadamer. Ele descarta uma linguagem complexa ou que se colocasse, por equívoco, num ângulo mimético em relação aos claros enigmas de Celan. É outro risco a que a crítica se expõe diante de textos como o seguinte – o escritor definiu a poesia como, talvez, “uma mudança de ar”. Isto é, um novo modo de estar no mundo: Nas serrilhas da moeda celeste, na fresta da porta, prensas a palavra, de onde desenrolei-me ao demolir, com punhos trêmulos, o teto sobre nós, telha a telha, sílaba a sílaba, por amor ao cupriradiante prato do mendigo lá no alto. Moacir Amâncio é professor de língua e literatura hebraica da USP, autor de Óbvio (poemas, Travessa dos Editores), entre outros livros Quem sou eu, quem és tu Tradução de Raquel Abi-Sâmara Hans Georg Gadamer Editora da uerj, 164 p. Reprodução LETRAS E ARTES Paul Celan: representante de uma tradição judaica em língua alemã, cujas raízes estão na dupla monarquia dos Habsburgos, e que foi sepultada pelo Holocausto aul Celan é considerado por diversos autores como o maior P poeta de língua alemã do século 20. O próprio filósofo Martin Heidegger, conhecido tanto pela originalidade de suas obras quanto por sua adesão ao nazismo, encontra-se entre os que partilham dessa opinião. Ele e o poeta se conheceram e trocaram cartas, mas essa amizade continua envolta num mistério. Paul Antschel, seu nome de família, nasceu em Czernovitz, cidade de sólida tradição cultural judaica que pertenceu ao Império Austro-Húngaro e, depois da 1ª Guerra Mundial, tornou-se parte da Romênia. Celan, por isto, pertencia ao grupo de judeus que falavam alemão. Era descendente de judeus religiosos. Em 1942 seus pais foram deportados para campos de extermínio, onde morreram. O poeta passou 19 meses num campo de trabalhos forçados na Romênia, onde, apesar das condições concentracionárias, continuou a escrever. Terminada a guerra, trabalhou como tradutor de prosa e poesia do russo ao inglês e, em 1947, transferiu-se para Viena, onde se engajou numa manifestação surrealista, sem acreditar na bênção do papa do movimento, André Breton. Em 1948 foi para Paris. Trabalhou como professor de alemão e engajou-se no debate político-intelectual. Seu modo original de se referir à Shoá provocou polêmica entre escritores de língua alemã. Em 1955 teve um filho, Eric, com Gisèle Lestrange. Data de nascimento: 23 de novembro de 1920. Data da morte: 19 de abril de 1970, quando se suicidou no Sena. (Dados básicos colhidos na apresentação feita pela tradutora.) M.A.A R$ 30,00 Revista 18 47 LETRAS E ARTES Aporias da cultura, depois do século da barbárie Volume de ensaios de Márcio Seligmann-Silva reúne, de maneira original e sem solução de continuidade, alguns dos temas fundamentais da reflexão humanística contemporânea. Por Susana Kampf Lages local da diferença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução, título de volume recém-lançado que traz 26 ensaios do crítico e teórico de literatura Márcio Seligmann-Silva, já dá uma idéia da complexidade dos temas e problemas que serão tratados ao longo de suas 357 páginas. Muito diversos e ao mesmo tempo muito afins entre si, estes textos são resultado da compilação de trabalhos apresentados em diferentes ocasiões, no âmbito da atuação acadêmica e ensaística do autor. O título O local da diferença faz alusão a dois autores de destaque no panorama dos estudos humanísticos, que se inscrevem no âmbito do pósestruturalismo ou da pós-modernidade. São eles o intelectual indo-britânico Homi Bhabba, que ganhou notoriedade com o livro O local da cultura, em que trata, a partir da situação pós-colonial, de temas afins aos de Seligmann-Silva, e o filósofo judeu argelino e francês, recentemente falecido, Jacques Derrida, que cunhou o conceito de diferença/différence, a quem é dedicado especificamente um dos ensaios do volume, e cujo pensamento perpassa, de uma forma ou de outra, todos os textos contidos neste volume. O jogo de alusões anunciado no título remete, ademais, a outro aspecto da escrita de Seligmann-Silva: a incorporação do princípio construtivo haurido do primeiro romantismo alemão e levado ao paroxismo pela literatura da modernidade e da pós-modernidade, qual seja, a justaposição de textos que funcionam como fragmentos de reflexão. Nesse livro, ímpar pelo nível de erudição e de agudeza do pensamento, cada ensaio compõe uma totalidade coerente em si, mas aberta e comunicante O 48 Revista 18 com os demais ensaios do mesmo volume, e com outros do autor e de outros autores, à maneira de uma composição constelar – imagem cara a outras duas referências fundamentais do autor: o multivalente ensaísta e escritor alemão Walter Benjamin e o igualmente multifacetado poeta brasileiro Haroldo de Campos. Trata-se de uma obra singular no panorama dos estudos literários e culturais brasileiros, também pela rara faculdade de conjugar amplitude temática e histórica com profundidade analítica e originalidade interpretativa Embora em parte ainda tributária do estilo expositivo do filosofar, criticado pelos românticos, a escrita de SeligmannSilva liberta-se dele ao justapor textos sem a preocupação de compor um todo inteiramente fechado. Trata-se de uma obra singular no panorama dos estudos literários e culturais brasileiros, também pela rara faculdade de conjugar amplitude temática e histórica com profundidade analítica e originalidade interpretativa. Entretanto, toda esta carga positiva tem naturalmente sua contrapartida numa exigência: a de um leitor igualmente culto, ou, pelo menos, um leitor que tenha o mesmo desejo de percorrer as sinuosidades da trajetória da constituição, ou melhor, da formação (Bildung) de um pensamento que trabalha permanentemente no registro de aporias e de paradoxos. Seguindo de perto as solicitações dos românticos de Iena, a obra de Seligmann-Silva não possui um fio condutor único; o leitor deve selecionar os fios da complexa rede temática e conceitual que o autor constrói. Aqui poderemos apenas seguir, de modo extremamente superficial, alguns desses fios. Alguns deles nos são indicados pelo subtítulo: “Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução”. Ao denominar a obra como um conjunto de ensaios, o autor assume a visada subjetiva que passa de um objeto ao outro, deixando-se determinar por cada um deles. Entretanto, de modo algum encontramos certa arbitrariedade e o aberto impulso egóico presente no ensaísmo tradicional: cada uma das opiniões emitidas e reflexões apresentadas encontra lastro em uma (enorme) bibliografia que aparece de modo explícito no corpo do texto, na forma de citações, no melhor estilo de uma escrita acadêmica que preserva a densidade sem ser pernóstica. A memória é um dos temas centrais do livro e é anunciada desde a bela capa que apresenta a foto de uma instalação da artista plástica brasileira Leila Danziger, denominada Greifswalder Str. 138. E é o trabalho da memória que dá sustento a todo o projeto intelectual que atravessa este livro, e que tem como um de seus núcleos sensíveis o complexo de questões humanas, éticas e estéticas, desencadeado pelo evento histórico que mais marcou o século passado: a Shoá, o genocídio de milhões de judeus nos campos de extermínio nazistas. O livro coloca-se, então, por uma ética da memória – e este também poderia ser um subtítulo fiel à reflexão que pacientemente se estrutura neste livro, que afinal também tem sua dimensão autobiográfica, já que a família da mãe do autor foi obrigada a deixar sua cômoda vida burguesa em Berlim para buscar uma vida possível no exílio brasileiro, na década de 30. Esta vivência familiar é, entre outros, o desencadeador de uma busca intelectual, através da qual o autor põe em prática de forma eficaz o difícil diálogo judaicoalemão – talvez só possível, ou pelo menos, possível de modo crítico, menos apaixonado, fora da Alemanha. O imperativo de descrever o indescritível, pois de uma abjeção impensável, intraduzível em palavras, se impõe a partir da necessidade de sobreviventes darem seu testemunho do Genocídio (e todos os demais genocídios da história do século 20, bem como dos assassinatos políticos perpetrados por ditaduras latino-americanas). Dar testemunho é uma necessidade imperiosa – mas, simultaneamente, uma impossibilidade, pois em sua dimensão terrificante, repulsiva e sinistra, os eventos ultrapassam os limites do representável. A literatura de testemunho – novo gênero literário por força própria? – radicaliza o questionamento das fronteiras entre real e ficcional e o próprio estatuto da literatura em si, evidenciando as intrincadas relações entre a dimensão ética e estética da obra literária. O leitor poderá acompanhar os meandros complexos dessas relações ao seguir as reflexões de Seligmann-Silva sobre a obra de Binjamin Wilkomirski, suíço que se fez passar por sobrevivente de Auschwitz, e obteve sucesso no panorama literário e cultural internacional com suas falsas memórias, e em vários outros ensaios que tematizam os efeitos traumáticos de catástrofes coletivas (e de modo paradigmático, a Shoá) sobre a vida social, a arte e o pensamento. Ao perseguir as origens e desdobramentos históricos de conceitos como o sublime e o abjeto, o sinistro (o Unheimlich, em termos freudianos), o trauma, o autor realiza uma verdadeira empresa arqueológica, trazendo à luz os lados mais sombrios e mais ambíguos de nossa humanidade, assim como eles se manifestaram historicamente na arte, na literatura e no pensamento ocidental. Ao longo de todo o livro, afirma-se uma crise da representação, constituída como culminância de uma série de tensões que acompanham a história da arte e da literatura no Ocidente. Mais do que historiar fatos e conceitos de maneira arquivística (embora o volume de informações seja enorme), o livro explicita e problematiza as formas tradicionais de pensar o real e de representá-lo. Nesse sentido, ganha particular relevo um processo fundamental, presente em toda forma de representação: a tradução. É a tradução o operador de O trabalho da memória que dá sustento a todo o projeto intelectual que atravessa este livro tem como um de seus núcleos sensíveis o complexo de questões humanas, éticas e estéticas, desencadeado pela Shoá passagens entre as polaridades que o autor anuncia, para imediatamente relativizar e dissolver no movimento da reflexão. Entre passado e presente, entre próprio, nacional e estrangeiro, entre imagem e palavra, entre eu e o outro, entre essência e fenômeno, os segundos termos ressignificam e problematizam os primeiros, num movimento espiralado em que as ambigüidades, antinomias, contradições, Sergio Mekler LETRAS E ARTES Márcio Seligmann-Silva: “Crise da representação atinge o paroxismo ante o imperativo de narrar o inenarrável, isto é, a abjeção dos genocídios” paradoxos e aporias são apresentados sem que a reflexão os resolva num movimento unificador; antes, eles são como que potencializados e sintetizados na figura exemplar do double bind, do duplo vínculo, aquela situação em que um processo se afirma como simultaneamente impossível e necessário. A tarefa do escritor/tradutor, do artista e também do crítico é hoje mais do que nunca marcada por um duplo vínculo. Ou nós o aceitamos, e procuramos atender ao imperativo de narrar o inenarrável (e, no limite, uma resenha crítica é sempre o produto desse impulso, pois nada substitui a leitura direta do livro resenhado), ou nos abandonamos ao silêncio. Também ao leitor caberá fazer a sua escolha no diálogo aberto por este livro complexo e fascinante. Susana Kampf Lages é professora de língua e literatura alemã na Universidade Federal Fluminense O local da diferença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução Márcio Seligmann-Silva Editora 34, 2005. 547 p. R$ 46,00 Revista 18 49 Reprodução LETRAS E ARTES Romance da intolerância Marco Frenette lê novo romance de César Vidal, que narra a vida de Maimônides sob o signo do exílio, da perplexidade e da solidão título do livro do escritor madrilenho César Vidal, Maimônides – O Médico de Sefarad, sugere um mergulho na vida e obra do médico e filósofo judeu do século 12. Não é o que acontece. Seu embate médico-filosófico que desembocou na aceitação da lógica aristotélica na Idade Média não foi romanceado; e nem se criaram situações ficcionais para sua aproximação crítica da filosofia com a medicina. Maimônides tampouco é citado pelo escritor como o autor de Os 13 Princípios da Fé, da Mishnê Torá ou do Guia dos Perplexos, obras pilares do pensamento judaico. Naturalmente, há passagens referentes à vida de Moshê ben Maimon, ou Maimônides, ou simplesmente Rambam (acrônimo de Rabi Moshe bem Maimon) – mas, ao fim da leitura, ninguém entenderá por que ele é comparado a Moisés, tal sua importância para o judaísmo. Sendo assim, é preciso trocar de expectativa para apreciar esse romance. O Maimônides em questão tem muito mais a ver com a necessidade de Vidal – militante dos direitos humanos – de usar um personagem para aglutinar as diversas facetas de um tema que lhe é caro: a vida asfixiante que se leva em qualquer lugar dominado pelo fanatismo religioso e por sua filha mais perigosa, a intolerância. A partir dessa intenção narrativa, surge um retrato vívido de dois importantes aspectos da história judaica: a necessidade do deslocamento para continuar a viver e a inabalável fé no Deus único, a despeito das circunstâncias mais terríveis. Para tanto, o período histórico abordado não poderia ser mais propício. Maimônides nasceu em 1135, na cidade O 50 Revista 18 espanhola de Córdoba. Era uma época em que, mesmo sob domínio do Islã, as culturas islâmica, judaica e cristã conviviam e participavam da vida pública local. Porém, em 1148, Córdoba foi tomada pelos Almóadas, guerreiros que pregavam a restauração da fé islâmica em sua radicalidade, dando pouco valor à vida de seguidores de outras religiões e não tolerando muçulmanos com os mais leves traços de liberalidade. Instalado o clima de terror, Maimônides e sua família fogem. A partir daí, começa a peregrinação do personagem por vários lugares da Espanha, até se assentar como médico na cidade de Fostat, no Egito. Escrito num tom intimista e na primeira pessoa, o romance mostra um homem que, a despeito de sua sapiência, retidão e importantes serviços prestados à comunidade, vive sob o jugo da subserviência devido à sua condição de judeu em terra estrangeira. A cada chamada para uma consulta na casa de um muçulmano, não sabe se voltará com vida, pois um deslize verbal, o toque na mulher errada ou algum suposto desrespeito a Alá poderá significar seu fim. Um dos trechos mais marcantes descreve a volta do pai de Maimônides para casa, em Córdoba, após ter ido negar sua fé, ajoelhando-se aos pés do líder muçulmano e clamando, em árabe: Asadu Al-lah ila-lah ua Muhammad al-rasul Al-lah – Não há outro Deus senão Alá, e Maomé é o seu profeta. Fez isso sob extrema pressão, para evitar que seus patrícios fossem massacrados. Mas, ao chegar à rua LETRAS E ARTES de sua casa, a vê tomada por pessoas nem um pouco interessadas em explicações. Pessoas que durante anos foram até seu lar para receber ensinamentos judaicos, conselhos matrimoniais, pedir dinheiro ou simplesmente demonstrar respeito. Alguns dos rostos eram de amigos que já haviam sido queridos e fiéis. No entanto, era chegada a hora de ele provar um pouco da intolerância religiosa, não mais vinda dos previsíveis muçulmanos, mas de sua própria comunidade. Ele é chutado, cuspido, esbofeteado e seu corpo é coberto com lixo e excrementos. Como um Cristo local e deslocado, ele suporta sua via crucis, entra em sua casa com os ombros arqueados, e se põe a rezar ao seu verdadeiro e único Deus. Ao ver seu pai passar de respeitado Dayan (juiz) a execrável apóstata, plantase no espírito de Maimônides uma convicção que o acompanhará por toda a vida: “Quando nos encontramos mais felizes e quanto mais despreocupados nos sentimos, os tempos mudam, toma o poder um rei que não chegou a nos conhecer e nos vemos submetidos a uma nova perseguição”. Ele também aprende, com a visão do pai machucado e sujo, rezando na sala mal iluminada enquanto as pessoas que ele tanto ajudara ainda gritam do lado de fora querendo sua morte, que os desígnios do Criador são realmente inescrutáveis. Esses momentos de tônus literário se mesclam com outros mais frouxos, nos quais se percebe a pena do autor manipulando os personagens. E, há, também, momentos impagáveis de humor involuntário, como, por exemplo, quando Vidal concebe Maimônides a discorrer sobre a obviedade de o gênero humano ser marcado pela desigualdade: “Basta lembrar que de Caim e Abel, os dois primeiros descendentes de Adão e Eva, um foi justo e piedoso, e outro um assassino cruel. (...) faz-se imprescindível que sejamos diferentes. Se só houvesse carpinteiros, quem se ocuparia de semear a terra? Se existissem só açougueiros, quem construiria as casas? (...) Por outro lado, não quero sequer imaginar as conseqüências caso todos os filhos de Adão resolvessem se tornar estudantes de filosofia”. Entre altos e baixos, nos deparamos com trechos em que Vidal parece dominar a arte do romance histórico na primeira pessoa, a ponto de atingir uma densidade poética comparável a obras mestras do gênero, tais como Memórias de Adriano, de Yourcenar, e Pela Mão do Anjo, de Dominique Fernandez. É assim quando Maimônides descreve seu amor platônico pela bela Susana, judia de olhos claros e cabelos castanhos, que acaba ficando para trás por conta de sua fuga de Córdoba. A nostalgia acentuada pelo duro sentimento de desterro também é descrita com maestria poética. As partes em que Maimônides rememora os cheiros, as cores e as texturas que compõem o cenário quotidiano de sua doce e longínqua Sefarad (Al-Andalus, para os muçulmanos, Um personagem para aglutinar as diversas facetas de um tema que é caro ao autor: a vida asfixiante que se leva em qualquer lugar dominado pelo fanatismo religioso e por sua filha mais perigosa, a intolerância e Hispania, para os cristãos) tem uma agradável semelhança com os trechos mais poéticos das declarações de amor à cidade de Alexandria feitas por Lawrence Durrell em seu famoso Quarteto. O autor também se preocupou em demonstrar quais são os caminhos e descaminhos que levam à estupidez. Em seus anos de formação, Maimônides ouve histórias de tolerância e generosidade contadas por sábios judeus, que servem como antídoto ao veneno do fanatismo que invadia as almas dos jovens estudantes da Torá. E ao se deparar com a brutalidade muçulmana, ele próprio começa a tomar consciência dos riscos que correra em seus estudos das Sagradas Escrituras: “Nessa época, vivi a embriagante sensação de acreditar que tinha nas mãos as chaves da explicação de qualquer fato que pudesse ocorrer sob o sol. A leitura, durante várias horas do dia, foi criando em mim a convicção de entender tudo e – o que era pior – de poder tudo explicar”. Como César Vidal – doutor em história, teologia e filosofia – tem altas pretensões estéticas, ele optou pelo entrelaçamento cronológico. Capítulos que contam a infância de Maimônides e sua formação intercalam-se com outros sobre sua vida adulta. A deficiência dessa estrutura está no fato de os capítulos, muito curtos, causarem insatisfação permanente, em vez de gerar o pretendido suspense ao deixar uma história inacabada de sua infância para voltar a outra, igualmente inacabada, de sua vida adulta. Essa construção literária é usada com freqüência por escritores que querem ver seus livros transformados em filmes, e, por isso, já os escrevem a meio caminho da linguagem cinematográfica, facilitando o trabalho do roteirista. Mas é um problema fácil de resolver: basta ler em seqüência todos os capítulos referentes à sua infância e adolescência, e depois voltar e ler todos os referentes à sua vida adulta. Desse modo, evita-se a estrutura manquitola forjada pelo autor, e a leitura ganha fluência. A despeito desses problemas estruturais e de certa frouxidão narrativa, o livro vale a pena por conta da criação de sentimentos e emoções que evidenciam a perigosa espiral descendente causada pela intolerância religiosa. Há uma frase de Maimônides que Vidal poderia ter usado como epígrafe: “Há coisas que estão dentro do âmbito e da capacidade de apreensão da mente humana; há outras que o intelecto não pode, de maneira alguma, captar – as portas da percepção estão fechadas”. Esse romance trata exatamente disso, de pessoas que se debatem diante de portas mentais e espirituais que se recusam a abrir. Marco Frenette é jornalista Maimônides, O Médico de Sefarad Tradução de Ledusha Spinardi Relume Dumará, 312 p. R$ 44,90 Revista 18 51 Fotos: reprodução LETRAS E ARTES GUSTAV MAHLER: a criação de um ícone O grande compositor, perseguido em vida em Viena e esquecido por décadas a fio, tornou-se hoje uma espécie de ícone propagandístico da cultura austríaca. Klaus Billand acompanha esta singular trajetória póstuma Gustav Mahler: busca pelos problemas fundamentais da existência humana, pacifismo, engajamento contra a opressão social e posicionamento em favor da integridade da natureza fizeram do compositor um homem à frente de seu tempo á cinqüenta anos foi fundada, em Viena, a Sociedade Internacional Gustav Mahler (em alemão, Internationale Gustav Mahler Gesellschaft ou igmg). Isto acontecia numa época em que o anti-semitismo da primeira metade do século 20 ainda se encontrava em pleno vigor em países como a Alemanha e a Áustria, o que implicava, entre muitas outras coisas, total descaso para com a música de Mahler. Quando vivo, Mahler (1860-1911), tanto por sua personalidade artística quanto por sua obra, foi alvo de intensas polêmicas – e de desprezo por boa parte da crítica da mais importante metrópole musical européia de então. A incompreensão estética e o preconceito antisemita o acompanhariam também postumamente e foram raros os maestros que, nas décadas que se seguiram à sua morte, se empenharam na apresentação de suas obras. Para os editores, ao longo de toda a primeira metade do século 20, a publicação de partituras de Mahler representava um risco comercial considerável. Durante os anos 60, porém, uma virada totalmente inesperada levou ao início de uma era de sucessos mahlerianos sem H 52 Revista 18 precedentes, que perdura até hoje. Intérpretes conhecidos e pesquisadores descobriram o compositor, enquanto gravações discográficas divulgavam uma obra até então desconhecida do grande público. Há uma série de fatores envolvidos nesta transformação do “patinho feio” da música vienense em figura central da história da música do século 20. A visão de mundo de uma geração mais jovem certamente teve influência central aqui: o dilaceramento interior de Mahler, sua busca pelos problemas fundamentais da existência humana, seu pacifismo, seu engajamento contra a opressão social e seu posicionamento em favor do respeito à integridade da natureza – tudo isto tornou-se, subitamente, muito atual para a geração que nasceu no pós-guerra, e que queria romper com os paradigmas do universo de seus pais. Desde 1955 a Sociedade Internacional Gustav Mahler, sediada em Viena, também passou a contribuir de maneira significativa para esta história de sucesso. A iniciativa foi da Filarmônica de Viena, que convidou o maestro Bruno Walter, pioneiro na divulgação da obra do compositor, a ocupar o cargo de primeiro presidente. Mas, afinal, quem acabou por ocupar este posto foi o vienense Erwin Ratz, teórico da música e ex-aluno de Arnold Schönberg, eleito para o posto na reunião da assembléia geral da instituição realizada na sede da Filarmônica de Viena em 11 de novembro de 1955. Bruno Walter foi nomeado presidente de honra, e da primeira diretoria da instituição participaram, entre outros, Theodor Adorno, Rafael Kubelik, Ernst Krenek, Donald Mitchell, Eduard Reeser, Alfred Rose e Georg Solti. Hoje, a Sociedade é o centro de pesquisas mais importante a respeito da vida e da obra de Mahler, e seu trabalho de recuperação e divulgação de um dos mais ricos legados musicais da Áustria foi o tema de uma recente exposição, realizada pelo Museu Judaico de Viena, por ocasião da comemoração do Jubileu de Ouro da Sociedade, que levou o título de Mahleriana. Organizada pelos curadores Reinhold Kubik e Erich Wolfganf Partsc, a mostra focalizou a história de uma instituição cujo objetivo tem sido a transmissão de um legado artístico, mas trata, igualmente, da criação de um ícone, isto é, do surgimento de uma figura de culto, que LETRAS E ARTES Casinhas que Mahler mandou construir em meio ao idílio da paisagem dos Alpes austríacos para compor: sensibilidade do artista tinha na natureza seu mais forte manancial, e só foi reconhecida, em vida, por poucos espíritos sintonizados com seu próprio tempo entrementes se transformou numa espécie de cartaz de propaganda do patrimônio cultural austríaco. O que hoje soa como evidente, e em parte conduz à mercantilização do nome de Mahler, soaria altamente improvável à época da fundação desta Sociedade. Para citar só um exemplo, gravações discográficas do ciclo de canções Das Lied von der Erde (A canção da terra) de antes de 1955, são praticamente desconhecidas (um dos primeiros registros foi realizado por Bruno Walter em 1936). Hoje há no mercado mais de 80 gravações diferentes em cd desta obra. Isto não significa, porém, que Mahler tenha sido desconhecido em seu tempo. Sempre houve pessoas sensíveis o suficiente para perceberem a enorme riqueza e profundidade de sua música, embora a massa do público musical vienense de sua época o tenha desconsiderado. Entre os que já o reconheceram em vida está, por exemplo, o escultor francês Auguste Rodin, que criou, em 1909, uma série de bustos do compositor – e que também incorporou suas feições a uma escultura que retratava Mozart, realizada em 1911, pouco depois da morte de Mahler, como se o fundisse, para a posteridade, com este outro mito da música austríaca. Um aspecto interessante abordado por esta mostra é ao amor incondicional de Mahler pela natureza, sempre presente em sua obra. O compositor dedicava inteiramente à criação musical os meses de verão, quando tinha férias de suas incumbências como regente da Ópera Imperial de Viena, e no idílio dos Alpes austríacos da virada do século recolhia-se em pequenas cabanas que lhe permitiam afastar-se dos afazeres quotidianos e dedicar-se inteiramente à criatividade. Essas chamadas “casinhas de composição” existiram em localidades como junto ao lago Atter; em Klagenfurt-Maiernigg no lago Wörth e em Toblach (hoje Dobbiaco), no Tirol do Sul . Em Steinbach, onde passava os verões a partir de 1883, Mahler empreendia longas caminhadas, que lhe proporcionaram inspiração para sua 2ª e 3ª sinfonias, bem como para algumas das canções do ciclo Des Knaben Wunderhorn. Conta-se que, ao contemplar a vista esplêndida das montanhas ali, ele teria dito: “Tudo isto já Auguste Rodin criou, em 1909, uma série de bustos do compositor e também incorporou suas feições a uma escultura de Mozart, realizada em 1911, pouco depois da morte de Mahler foi transformado em música”. Maiernigg foi seu refúgio criativo entre 1901 e 1907, onde ele passou os primeiros verões com a esposa Alma e as filhas Anna e Maria, e onde criou suas sinfonias de números 5 a 8, seu ciclo de canções baseado em poemas de Rückert, e completou o ciclo Des Knaben Wunderhorn. Em Toblach, onde passou os verões de 1908 a 1910, compôs sua 9ª sinfonia, e a 10ª, inacabada, assim como Das Lied von der Erde (A canção da terra). Comparar a simplicidade espartana destas casinhas com a enorme complexidade das obras ali criadas, bem como sua importância para a história da música do século 20, fala muito sobre a genialidade do compositor – e sobretudo sobre a real origem de sua musicalidade. Estas casinhas de Mahler, que foram totalmente abandonadas e esquecidas na Áustria no pós-guerra, transformaram-se hoje em memoriais graças à ação da Sociedade Internacional Gustav Mahler. O mundo onírico dos Alpes do início do século 20 certamente voltará à memória de quem, tendo uma imagem desses despojados retiros musicais de Mahler, voltar a ouvir sua música grandiosa. Mahler foi também regente titular da Ópera Imperial de Viena, da qual se tornou diretor artístico em 1897. Vale lembrar que converter-se ao catolicismo era conditio sine qua non para ocupar este posto de prestígio na burocracia artística dos Habsburgos. Depois de 10 anos no cargo, tendo sofrido perseguições não obstante sua conversão, Mahler abandonou a Ópera Imperial e passou algum tempo nos Estados Unidos, tornando-se regente titular da Filarmônica de Nova York e regendo também no Metropolitan Opera House. Voltou à Áustria pouco antes de morrer de uma doença cardíaca incurável. Sua máscara mortuária, de 1911, mostra a face de um músico prematuramente falecido, marcado pelo dilaceramento e pelo amargor, e que certamente não suspeitava que, na passagem do século 20 para o 21, sua música ombrearia, no gosto do público, com a dos maiores compositores da história. Klaus Billand é crítico de ópera da revista Der Neue Merker, de Viena. www.der-neue-merker.at Revista 18 53 CONTO As letras fragmentadas de Margo Glantz Adriana Kanzepolsky discute a escrita irreverente de uma autora nascida no México, filha de imigrantes judeus do Leste europeu, que tem como objetivo minar a aparente tranqüilidade reinante em torno das palavras o capítulo XXII de Las Genealogías, livro em que reconstrói as memórias de seus pais, a escritora judia mexicana Margo Glantz, nascida em 1930, relata uma viagem ao Brasil, na qual comprou uma fitinha do Senhor do Bonfim. De volta à cidade do México, ela tenta ocultá-la dos olhos de seu pai, o poeta ídiche Jacobo Glantz. Este, porém, imediatamente percebe o amuleto em seu pulso e comenta: “O que é isso? Chozerain, porcarias.” “São superstições de mamãe, quem sabe de onde ela as tirou”, comenta sua filha Renata, ao mesmo tempo em que mostra ao avô sua própria fitinha. As duas páginas e meia deste capítulo se limitam a essa viagem, que fez junto com outras escritoras para propor ao Ministro da Educação do Brasil da época um intercâmbio entre autoras mexicanas e brasileiras. O relato da viagem mantém o mesmo tom leve, brincalhão e despreocupado dos demais capítulos do livro, e a narrativa do encontro com diversas escritoras e psicanalistas de prestígio no Brasil articula-se ao redor da reação desse grupo de pessoas quando descobrem a “infame” N Ilustração: Monica Nudelman Kalili 54 Revista 18 fitinha. Com sua costumeira agudeza, Margo Glantz deixa claro que, apesar de algumas reações espantadas, uns mais, outros menos, todos contavam com fitinhas ou com algum outro tipo de amuleto para se protegerem do azar. Apesar desta viagem e de algumas outras, de caráter acadêmico, que a trouxeram ao Brasil, Margo Glantz continua sendo uma figura desconhecida e quase inédita no país. A única exceção é seu curto romance Aparições, publicado pela editora Autêntica, de Belo Horizonte, em 2002. Descendente de imigrantes judeus russos, ela é uma figura importante no México. Mas é também alvo de controvérsias, por suas posições políticas e porque sua narrativa escapa aos cânones tradicionais da literatura desse país. Autora de uma extensa obra de ficção, escreveu também grande número de ensaios, marcados por uma vasta erudição, que cobrem um espectro que vai da literatura colonial aos debates em torno do lugar da mulher na sociedade contemporânea. Uma das maiores especialistas Reprodução CONTO Margo Glantz: erudição a serviço da irreverência, da ruptura dos cânones e do esfacelamento dos chavões da cultura mexicanas na poetisa barroca Sor Juana Inés de la Cruz, a escritora, membro da Academia Mexicana da Língua, é colunista de alguns periódicos de seu país e, desde 1995, professora emérita da Faculdade de Filosofia e Letras da unam (Universidad Nacional Autónoma de México). Margo Glantz estreou na escrita de ficção com Las mil y una calorías (novela dietética), de 1978, à qual seguiram, entre outros títulos, Doscientas ballenas azules... y ...cuatro caballos, de 1981; Las genealogías, que entre 1981 e 1997 teve diversas edições, nas quais ia acrescentando novos capítulos; Zona de derrumbe, uma coletânea de contos editada em 2001 na Argentina; El rastro e Historia de una mujer que caminó por el camino de la vida con zapatos de diseñador, ambos publicados na Espanha em 2002 e 2005, respectivamente. Se fizéssemos um corte diagonal na narrativa que Margo Glantz produziu ao longo destas três décadas, reconheceríamos nela algumas marcas e alguns núcleos que se reiteram no transcurso dos anos. Refiro-me a textos que não se deixam classificar facilmente em um único gênero, mas que transitam pelo relato de viagem, pelo romance, pelo conto, pelo ensaio, pela reportagem, pelas O humor de Margo Glantz confronta a autora – e também aqueles que a cercam – mesmo quando se reveste de uma acidez que chega à beira do sarcasmo memórias pessoais, entre outros, numa prosa que já foi qualificada de indômita. Uma prosa que oscila entre o registro culto e o popular, trate-se de estribilhos de boleros, de clichês do espanhol mexicano, que pontuam El rastro, por exemplo, ou de provérbios, frases feitas e piadas em ídiche, como acontece em Las genealogías. Mesmo que a erudição possa, dissimuladamente, entrar em seus textos de ficção, nos quais encontramos inúmeras referências a outros escritores e a outras literaturas (a inglesa, a russa ou a ídiche) e que tenha uma preocupação constante com a língua que se traduz em um trabalho obsessivo em torno da etimologia das palavras, devemos destacar que, nestes procedimentos, o irreverente tem primazia sobre o solene. Para sermos mais justos, deveríamos dizer que eles foram colocados a serviço da irreverência, não porque a escritora não leve a sério a alta cultura, mas sim porque, no processo de despedaçar as palavras, de rasgar seu sentido canônico, desdobrando-o em suas contradições, Glantz elabora uma escrita que aposta em minar a tranqüilidade suspeita que rodeia essas palavras, expressões ou discursos que, por serem comuns e repetidos, Revista 18 55 CONTO ficaram invisíveis e, assim, adquiriram o caráter de verdades irrefutáveis. Claro que não existe irreverência sem humor, o que faz deste uma das características constantes de sua narrativa. Trata-se de um humor que a confronta e confronta aqueles que a cercam, mesmo quando se reveste de uma acidez que chega à beira do sarcasmo, como em Historia de una mujer..., ou quando oscila entre a inocência e a ironia, como acontece em Las genealogías, em que o humor parece ter sido posto em cena, dilatada e repetidamente, expandindo a frase que no começo do livro define os judeus “como pessoas menores, com um sentido de humor maior”. Na prosa de Glantz reiteram-se alguns núcleos que convocam sua escritura – obsessões, a partir das quais constrói uma narrativa que se interna na vida da matéria e que faz do quotidiano, do insignificante, o objeto do relato Dizia eu antes que na prosa de Glantz, seja a de ficção ou a ensaística, reiteram-se alguns núcleos que convocam sua escritura – obsessões, como ela as denomina em uma reportagem. Refiro-me, em particular, ao corpo, em suas manifestações de prazer ou de dor, ou a um corpo fragmentado em pés, cabelos e dentes, às viagens, à língua, alheia ou própria, ao lugar da mulher não só nas passarelas de alta costura, mas também nos campos de extermínio nazistas, e à roupa, em particular os sapatos, objeto que a fascina e é prenda de sua memória pessoal. Obsessões a partir das quais constrói uma narrativa 56 Revista 18 que se interna na vida da matéria e que faz do quotidiano, do insignificante, o objeto do relato. “Todos, sejamos nobres ou não, temos nossas genealogias. Eu descendo do Gênesis, não por soberba, mas por necessidade”, escreve jocosamente Margo Glantz no prefácio de Las genealogías, livro em que se propõe indagar a instabilidade que reconhece como condição própria porque, como diz, “e tudo é meu e não o é, e pareço judia e não pareço, e por isso escrevo estas minhas genealogias”. Paralelamente, ela se dedica à tarefa incerta de fixar a memória daquilo que foram as vidas de seus pais, Jacobo e Luci Glantz. “Ligo o gravador (com todos os agravantes, assegura meu pai) e inicio uma gravação histórica, ou pelo menos assim me parece – e também a alguns amigos. Quem sabe fixe a lembrança”, anota no primeiro capítulo (itálico meu). Estamos, então, diante de uma memória que se grava e que, depois, por meio da narradora, se transforma neste gênero escorregadio que são as memórias escritas. Trata-se de uma memória a três, que se desdobra numa extensa conversação pontuada pelas lembranças da própria Glantz, e que se faz na fala e na boca destes outros, que são seus pais. Uma memória que, na conversação, desliza entre o russo, língua materna dos pais, o ídiche, uma língua meio trazida da Europa e que terminam de aprender na América, e o espanhol, idioma materno da narradora e língua sempre precária na boca dos pais. Neste trânsito entre as três línguas, na acumulação de versões, na oscilação entre a lembrança e o esquecimento, na multiplicidade de tempos que o atravessam, Las genealogías é uma tentativa de reterritorializar Jacobo e Luci Glantz, isto é, de criar uma zona de segurança, ancorada na palavra escrita, para estes imigrantes que, ao chegar ao México, são uma espécie de náufragos, faltos de território e de língua e, até certo ponto, despidos, porque sua roupa e/ou seu aspecto é inadequado, o que os expõe demasiadamente seja ao riso ou à agressão. Mas, como contar vidas que se fizeram em uma terra e em uma língua distintas das da narradora e das do leitor a quem o livro é destinado? Duas são as estratégias a que Glantz recorre: pontuar estas memórias com episódios que se articulam em torno à comida e fazer de Las genealogías o relato de um longo exercício de tradução em que as experiências vividas em russo ou em ídiche são contadas em um espanhol permeado por estas línguas européias. Desde o primeiro capítulo, a comida aparece como uma espécie de pano de fundo que acompanha os encontros de Margo Glantz com seus pais. E esse ato quotidiano e trivial de reunir-se à mesa e comer comida da Europa Oriental não só produz um salto da memória, mas também funde passado e presente, convertendo-se, deste modo, em memória e genealogia. Por seu lado, a tradução é uma prática que permeia e organiza o relato. Conseqüentemente, ser intérprete é uma das funções que a narradora assume. Entre a fronteira do espanhol e do ídiche, ela traduz e interpreta. Translada à margem do espanhol mexicano o russo e o ídiche de seus pais, assim como também translada ao universo cultural mexicano seus hábitos gastronômicos e culturais. Ao traduzir, então, intervém como “lançadeira entre duas culturas diferentes”, isto é, intromete-se, corrige, interpreta, acrescenta dados históricos que contextualizam as lembranças fragmentadas de seus pais. Uma tradução que articula sobre duas estratégias: o parêntese, que repete em espanhol a palavra ou expressão que originalmente escreve em ídiche e uma segunda, na qual não importa tanto o sentido literal dos termos, mas sim a possibilidade de imaginar o passado europeu de Jacobo e Luci Glantz. Neste ponto, ela apela a autores como Isaac Babel, Bashevis Singer ou Kafka, que em sua literatura já narraram esta realidade que não lhe pertence. É assim que, entre o começo e o fim do texto, um círculo se fecha ao redor da palavra escrita. Se a narradora descende do Gênesis, a literatura judeo-européia parece ser uma via-régia para traduzir ao espanhol e à realidade mexicana a cultura européia que foi deixada para trás. Adriana Kanzepolsky é doutora em Literatura Hispano-Americana pela USP e doutoranda em Teoria Literária na Unicamp Genealogias (Prólogo) Todos, sejamos nobres ou não, temos nossas genealogias. Eu descendo do Gênesis, não por soberba mas sim por necessidade. Meus pais nasceram numa Ucrânia judia, muito diferente da de hoje, e ainda muito mais diferente do México em que nasci, este México, Distrito Federal, onde tive a sorte de ver a vida entre os gritos dos mercadores de La Merced, estes mercadores a quem minha mãe observava, assombrada, vestida totalmente de branco. A mim ninguém pode acusar, como a Isaac Bábel, de preciosismo ou de biblismo, pois ao contrário dele (e de meu pai), eu não estudei hebraico, nem a bíblia, nem o Talmude (porque não nasci na Rússia e porque não sou homem) e sem dúvida muitas vezes me confundo, pensando como Jeremias e evitando como Jonas os gritos da baleia. Como Joana d´Arc ouço vozes, porém nem sou donzela nem quero morrer na fogueira, ainda que me sinta atraída pela beleza destas cores berrantes, de que Shklóvski reclamava a Bábel quando ainda não eram velhos, e que agora ele recorda com nostalgia, pois é velho (Shklóvski, porque Bábel morreu num campo de concentração na Sibéria em 14 de março de 1941). Talvez o que mais me atraia de meu passado em meu presente judaico seja a consciência das cores, do berrante, do grotesco, esta consciência que faz dos judeus verdadeira gente menor com um senso de humor maior, por sua crueldade simples, sua desaventurada ternura e até por sua ocasional sem-vergonhice. Ma atraem estas velhas fotografias de um mascate lituano, com sua barba pontiaguda (propícia às perseguições) e seu abrigo desmesurado, olhando a câmera com um sorriso “bêbado e roliço”, enquanto oferece mercadorias baratas. A seu lado aparece, solene porém desalinhado, o vendedor de roupas de mortos, chacal dos currais, porque sabe cheirar a morte próxima daqueles cujos trajes haverá de vender. Também me atraem estas crianças do cheder (escola judaica) que vão acompanhando um avô, o menino sem sapatos e o avô com o olhar desgastado e a barba branca, porém não pertenço a eles, apenas uma parte adormecida de mim mesma a eles pertence, a parte que me cabe de proximidade com meu pai, menino camponês, Benjamin de uma família de emigrantes, cuja irmã mais velha, Rochel, desapareceu de casa ainda criança, talvez na Bessarábia (talvez em outro lugar, que importa a esta altura!) e cujos irmãos começaram a emigrar para os Estados Unidos depois dos pogroms de 1905. Se vejo um sapateiro de Varsóvia ou um alfaiate de Wolonin, um carregador de água ou um barqueiro do Dnieper, me parece que são irmãos de meu pai, ainda que seus irmãos tenham se tornado prósperos comerciantes na Filadélfia e tenham trocado o solidéu e a barba por roupas das grandes lojas – provavelmente da Macy´s. Se vejo várias crianças de Lublin, que mal alcançam a mesa e se sentam, muito surpresas, sempre com seus gorros, diante de uns velhos livros, enquanto o melamed (professor) lhes indica com um marcador as letras do alfabeto hebraico, me parece também que vejo meu pai terminando os trabalhos no campo, com os sapatos enlameados (do outro lado seus irmãos usam sapatos Andrew Geller), sem poder brincar porque tem que aprender os mandamentos, o Levítico e o Talmude e as regras destas festas e celebrações que me são muitas vezes estranhas. Não tive uma infância religiosa. Minha mãe não separava os pratos e as tigelas, não fazia uma separação taxativa entre os recipientes que podiam abrigar carne e aqueles destinados ao leite. Minha mãe nunca usou, como minha avó, aquelas perucas que escondiam os cabelos porque só o marido podia ver o cabelo de sua legítima esposa, e além disto minha avó Sheine foi a segunda mulher de meu avô (a primeira morreu, de parto? Não se sabe. Ninguém se lembra) e sua filha Rochel, a que emigrou para o coração imenso da Rússia Branca, era filha do primeiro casamento... ARQUIVO “Cabe ao homem salvar o homem” A história do Justo frei Arturo Paoli, que salvou as vidas de perseguidos do nazismo e hoje vive em Foz do Iguaçu, onde se dedica à melhoria das condições de vida da população carente. Por Avraham Milgram m 1999, o memorial Yad Vashem agraciou frei Arturo Paoli com o título de Justo entre as Nações, por salvar judeus na Itália ocupada pelos alemães durante a 2ª Guerra Mundial. Seu nome figura ao lado de Raoul Wallenberg, da Suécia, do cônsul português Aristides de Sousa Mendes, do embaixador brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas e de outras 21.000 pessoas até hoje reconhecidas como Justos. A maioria dos Justos já não está mais em vida, e entre os vivos o único que reside no Brasil é o frei Arturo Paoli, de 94 anos de idade. Entre os Justos, poucos foram aqueles que explicaram por que fizeram o que fizeram. Paoli é um deles. No ato oficial da entrega do diploma e medalha de Justo realizado em Brasília, frei Arturo Paoli expressou o fundamento moral que o levou a agir em circunstâncias de injustiça total. Paoli nasceu em 1912, na cidade de Lucca, Itália. Em 1936, após concluir os estudos universitários em letras clássicas, optou pela vida sacerdotal, pois esta lhe oferecia condições para dedicar-se a causas justas: “Acabados meus estudos universitários, senti um impulso irresistível de dedicar-me à defesa dos injustiçados, porque de criança, aos seis anos de idade, assisti numa praça da minha cidade natal a cenas de violência com derramamento de sangue. Era o tempo em que se instalava a ditadura fascista. O imenso amor de que me envolvia minha família não alcançava sarar este trauma que mais tarde compreendi que só podia se transfigurar em fome e sede de justiça”. Esta sensibilidade humana, incubada desde tenra idade, manifestou-se a toda prova a partir de setembro de 1943, quando parte da Itália foi conquistada por Hitler. Foi nestas circunstâncias que Paoli se viu na E 58 Revista 18 obrigação de salvar judeus perseguidos. Um deles foi Tzvi Yakov (Herman) Gerstel, judeu ortodoxo, que se refugiara na Itália com sua esposa. Tzvi Yakov (Herman) Gerstel, nasceu em Colônia, Alemanha, em 1921, de uma família de imigrantes judeus poloneses. Em 1927 emigrou para a Bélgica com os pais e o irmão Samuel. A família estabeleceu-se em Antuérpia e, ao cabo de Depois de alguns anos na Argentina, Paoli delinearia, no início dos anos 70, uma teologia comprometida, que se tornou uma espécie de prelúdio à Teologia da Libertação alguns anos, ele ingressou numa Yeshivá para estudar o Talmude. Foi nesta condição que testemunhou a invasão do exército alemão na Bélgica, na primavera-verão de 1940. Numa sexta-feira à noite de setembro de 1942, alemães e agentes da polícia belga invadiram a residência dos Gerstel para deportá-los para os campos de extermínio. Os irmãos Tzvi Yakov e Samuel conseguiram escapar e se esconderam no telhado do edifício, lá permanecendo até o amanhecer. Os pais não tiveram a mesma sorte. Levados a AuschwitzBirkenau, foram assassinados. Alguns meses mais tarde, foi a vez do irmão, deportado em janeiro de 1943. Depois disto Tzvi Yakov Gerstel decidiu fugir da Bélgica, entrando ilegalmente na França com ajuda de um agente que operava nas fronteiras. Lá, refugiou-se em Limoges, e mais tarde em Lyon. Em novembro de 1942 os alemães invadiram a França de Vichy não ocupada. Ou seja, Gerstel encontrou-se, novamente, sob domínio alemão. Pouco depois, fugiu para Nice, no território francês ocupado pelos italianos, onde os judeus não eram perseguidos como no restante da França. Ali casou-se e, juntamente a cerca de 800 refugiados, o casal foi levado a St. Gervais du Bains, uma espécie de residência forçada sob controle italiano. A única obrigação dos refugiados era apresentarse diariamente nos escritórios das autoridades italianas. Havia algo de surreal nas condições de vida dos refugiados judeus desta localidade turística e pacífica, sob regime italiano, se as compararmos ao que se passava no resto da Europa sob domínio alemão. No entanto, a queda de Mussolini e a invasão dos aliados pela parte setentrional da Itália levou os alemães a invadir os territórios franceses sob domínio italiano e o norte da Itália. Pela terceira vez, Gerstel se via sob domínio nazista. Como muitos outros refugiados, escapou para a Itália com sua esposa. Em Turim encontraram refúgio num albergue para idosos judeus. Certo dia, apareceu no asilo Giorgio Nissim, judeu italiano e membro da delasem (Delegazione Assistenza Emigrati Ebrei), para transferir o casal Gerstel para outro refúgio. Nissim encaminhava refugiados judeus para Lucca, pois lá contava com a Reprodução ARQUIVO Frei Arturo Paoli: “O Ocidente cristão é o centro organizado da guerra, da carestia, da acumulação de riqueza nas mãos de poucos” ajuda de padres e freiras – principalmente de frei Paoli – que se encarregavam de esconder judeus em instituições cristãs e casas particulares. Depois de passar por um castelo que pertencia a um aristocrata italiano, Gerstel e sua esposa foram transferidos para a casa de uma camponesa, onde permaneceram duas semanas. Como é sabido, para esconder um judeu durante o Holocausto eram necessárias dezenas de pessoas, porém bastava uma só para delatar vários judeus. A esta altura, o casal teve que separar-se pois a esposa de Gerstel estava prestes a dar a luz. Frei Paoli, com quem Nissim mantinha contato, arranjou para que a levassem ao hospital de Lucca para conceber. Lá nasceu Rosa, a primeira filha do casal, e lá mãe e bebê permaneceram escondidos até o final da guerra. Após um bombardeio que atingiu a casa onde se escondia, Gerstel resolveu buscar o seminário de Paoli, localizado na mesma cidade. Durante o período que passou escondido no seminário, os alemães invadiram várias vezes a instituição em busca de judeus e de indivíduos pertencentes à resistência antinazista. Nestas “visitas” eles aterrorizavam os padres com gritos, violência, quebravam móveis, portas e utensílios domésticos. Paoli, porém, o protegeu, escondendo-o durante vários meses até a chegada das forças americanas, que libertaram Lucca em 6 de setembro de 1944. Terminada a guerra, protegido e protetor se separaram, cada qual tomou seu rumo. Em 1998, passados 54 anos da última vez que se viram, Gerstel lembrouse de procurar seu salvador. Após curta investigação por intermédio dos consulados italianos, veio a informação de que Paoli se encontrava em Foz do Iguaçu, no Brasil. Ainda naquele ano, o frei e o extalmudista da Yeshivá, acompanhado pela mulher, duas filhas e uma neta, se encontraram em Milão. Giorgio Nissim, na ocasiao, já tinha falecido. Após o final da guerra, Paoli dedicou-se à vida sacerdotal em Lucca, e em 1949 foi convocado por Monsenhor Montini, futuro Papa Paulo VI, para atuar na Juventude da Ação Católica. Em meados dos anos 50, influenciado pela filosofia de Charles Foucauld, confrontou-se com as doutrinas conservadoras do Vaticano, o que o levaria a um distanciamento de Roma e a buscar comunidades periféricas na América Latina. Depois de alguns anos na Argentina, Paoli delinearia, no início dos anos 70, uma teologia comprometida, que se tornou uma espécie de prelúdio à Teologia da Libertação. Neste período, publicou o livro Diálogo da Libertação, que o levou a ser visto como inimigo do regime militar argentino, correndo perigo de vida. Refugiou-se na Venezuela, onde atuou como responsável pela Ordem dos Pequenos Irmãos da América Latina. Em 1983, no ocaso da ditadura militar, estabeleceu-se no Brasil, inicialmente em São Leopoldo e, em 1987, em Foz do Iguaçu. Residindo num bairro pobre, Boa Esperança, fundou a Associação Fraternidade Aliança, (afa) entidade filantrópica com a finalidade de promover solidariedade entre as pessoas, que tem resgatado a cidadania de famílias inteiras. Em 9 de fevereiro de 2000, na presença do Cardeal de Florença Silvano Piovanelli e do Rabino Yoseph Levi, por ocasião de uma homenagem pelo sexagésimo aniversário de sua ordenação eclesiástica, Paoli fez a seguinte declaração: “Tutta la nostra cultura è una cultura di morte, l'occidente cristiano è il centro che ha organizzato la guerra, la carestia, l'accumulazione delle ricchezze nelle mani di pochi”. (Toda nossa cultura é uma cultura de morte. O Ocidente cristão é o centro organizado da guerra, da carestia, da acumulação das riquezas nas mãos de poucos.) Aos 94 anos de idade, Paoli continua atuante na Associação Fraternidade Aliança em Boa Esperança de Foz do Iguaçu, escreve, publica, dá palestras, educa e luta em prol dos carentes por um mundo melhor e mais justo. Avraham Milgram é historiador do Instituto Internacional para a Pesquisa do Holocausto no Yad Vashem, Jerusalém. Escreveu sua tese de doutorado em História Judaica Contemporânea na Universidade Hebraica de Jerusalém Revista 18 59 NO CENTRO Aconteceu no Centro da Cultura Judaica 5 DE SETEMBRO DE 2005 Inauguração da Exposição Albert Einstein: o personagem do século 20 DE OUTUBRO DE 2005 Homenagem a David Reznik, que representou Israel na Bienal de Arquitetura de São Paulo Da esquerda para a direita, William Lohn, da Casa de Cultura de Israel; Chaim Rabinovich, reitor da Universidade Hebraica de Jerusalém e Morris Dayan, presidente da Sociedade Amigos da Universidade Hebraica de Jerusalém O arquiteto David Reznik A embaixadora de Israel no Brasil, Tzipora Rimon 27 DE OUTUBRO DE 2005 Inauguração do 3º Ciclo Multicultural Judaico-Brasileiro Cláudia Matarazzo, Walter Feldman, secretário das Subprefeituras de São Paulo, e David Feffer, presidente da Casa de Cultura de Israel Boris Cambur e Ana Feffer José Serra e José Mindlin 60 Revista 18 Ana e David Feffer, José Mindlin e Cláudia Costin NO CENTRO 9 DE NOVEMBRO DE 2005 Lançamento do documentário Jamais Esqueceremos, de Francisco Gotthilf Rachela Gotthilf e Raul Mayer, vicepresidente da Casa de Cultura de Israel Francisco Gotthilf, diretor e produtor do documentário, e o rabino Shabsi Alpern Inauguração da exposição Albert Einstein: o personagem do século, na sede da Fundação Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, MG Sarah Klein, Raphael Klein, Michael Klein e Francisco Gotthilf 22 DE MARÇO DE 2006 Encontro sobre o tema “O surgimento do Golem” Regina Igel e Lyslei Nascimento Raul Meyer, vice-presidente da Casa de Cultura de Israel, e Rafael Alves de Moura, o vencedor do concurso de caricaturas de Albert Einstein, realizado em Volta Redonda Ilana Adour, assessora do vicepresidente da Fundação Companhia Siderúrgica Nacional Anita Novinsky e Vlad Eugen Poenaru Seleção e edição de imagens por Giselle Tidei e Beatriz Reingenheimer Revista 18 61 NA REDE INTERNET por Dov Bigio [email protected] Beit Chabad do Brasil - http://www.chabad.org.br/ Principal movimento do judaísmo ortodoxo, o Chabad Lubavitch possui mais de 3.300 instituições pelo mundo, dirigidas por mais de 4.000 famílias de shlichim (emissários), que trazem a mensagem do movimento para as comunidades judaicas. Fundado há cerca de 250 anos, o movimento busca levar o conhecimento e a prática da vida judaica para as comunidades em que atua. No Brasil, o movimento atua desde antes da 2ª Guerra Mundial, e hoje está presente praticamente em todas as principais cidades onde há comunidades judaicas, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Brasília, Belo Horizonte, entre outras. Há diversas sinagogas do Beit Chabad. O site do Beit Chabad Central, situado em São Paulo, é o mais completo, com informações sobre as festas judaicas, o ciclo de vida, artigos sobre o modo de vida judaico, além de uma divertida seção dedicada às crianças. CIP - Congregação Israelita Paulista - http://www.cip.org.br/ Principal representante do judaísmo liberal em São Paulo e no Brasil, a cip foi fundada em 1936 por judeus refugiados da Alemanha nazista. Atuando na cip desde 1970, o Rabino Henry Sobel preside o Rabinato desta instituição, uma das maiores sinagogas do Brasil em número de associados. Seu site apresenta textos sobre judaísmo (festas, ciclo de vida, cultura, receitas etc.) além de informações sobre as atividades da entidade. Está disponível também, na integra, o livro Os Porquês do Judaísmo, com perguntas e respostas sobre as principais questões do judaísmo contemporâneo. Jewish Things - http://www.jewishthings.com/ Concentrar a melhor seleção de livros, música, dvds, software e outros produtos ligados ao judaísmo é a proposta do JewishThings.com, um dos maiores sites de produtos judaicos. Se você estiver procurando um livro, uma música ou um filme, este é o local certo para começar sua busca. Na verdade, o site não vende nem distribui produtos, apenas centraliza uma seleção de itens disponíveis na amazon.com, num sistema totalmente integrado. Isto garante a segurança e a qualidade do serviço prestado pela renomada amazon.com, e facilita a pesquisa deste tipo de produtos. Jewish Jokes - http://www.jewishjokes.net/ Mães judias, relacionamento entre ashkenazim e sefaradim, a própria religião e o relacionamento de D'us com os homens e o anti-semitismo. Estes são apenas alguns dos diversos temas que enriquecem o humor judaico. Para tentar centralizar as piadas judaicas, este site faz um grande ranking das piadas publicadas, 62 Revista 18 além de permitir que os visitantes enviem suas próprias anedotas. Capazes de rir de sua própria situação, de suas crenças e de seu relacionamento com o mundo, os judeus sempre foram conhecidos por suas piadas bem-humoradas, e neste site é possível divertir-se com elas. Revista 18 5 62 Ernst Young HUMOR á muitos e muitos anos, na época em que os samurais eram muito importantes, havia um imperador que precisava de um novo samurai-chefe, então ele mandou circular por seu reino um decreto, anunciando que estava à procura do melhor dos samurais. Passou-se um ano e só três candidatos se apresentaram para as provas: um samurai japonês, um samurai chinês e... um samurai judeu. O imperador convidou o samurai japonês a entrar e demonstrar suas habilidades com a espada. O samurai japonês abriu uma caixa de fósforos, e de lá saiu uma abelha voando... Uóoosh! Com sua espada mais afiada do que uma navalha, o samurai japonês cortou a abelha em duas partes e o inseto caiu morto no chão. “Impressionante!”, exclamou o imperador. Em seguida, convidou o samurai chinês, que também abriu uma caixa de fósforos, e dela saiu, zumbindo, uma mosca. Uóoosh! Uóoosh! fez sua espada reluzente, e a mosca caiu morta no chão... esquartejada! “Realmente MUITO impresionante!”, o imperador exclamou, admirado. Agora o imperador voltou-se para o samurai judeu, e pediu-lhe para demonstrar, também, suas habilidades. O samurai judeu também abriu uma caixa de fósforos, e dela saiu voando um mosquito. Sua espada, rápida como um raio, fez Uóoosh! Uóoosh! Uóoosh!... mas o mosquito continuava a voar. O imperador, evidentemente desapontado com a demonstração do judeu, disse: “Vejo que você não serve para o cargo. O mosquito não está morto!” O samurai judeu apenas sorriu, e disse: “A circuncisão não foi feita para matar”. H 64 Revista 18 Blue Tree Safra