leitura psicanalítica de dois irmãos - Início
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS-ICHL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS-PPGL VIVIANNE LIMA DE MORAES LEITURA PSICANALÍTICA DE DOIS IRMÃOS: UM ESTUDO SOBRE A RIVALIDADE FRATERNAL. Manaus-Am 2012 VIVIANNE LIMA DE MORAES LEITURA PSICANALÍTICA DE DOIS IRMÃOS: UM ESTUDO SOBRE A RIVALIDADE FRATERNAL. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Amazonas como parte dos requisitos para a obtenção de grau de Mestre em Letras Orientadora: Profa. Dra. Lileana Mourão Franco de Sá. Manaus-am 2012 Ficha Catalográfica (Catalogação realizada pela Biblioteca Central da UFAM) M828l Moraes, Vivianne Lima de Leitura psicanalítica de dois irmãos: um estudo sobre a rivalidade fraternal / Vivianne Lima de Moraes .- Manaus: UFAM, 2012. 141.; il. Dissertação (Mestrado em Letras) –– Universidade Federal do Amazonas, 2012. Orientadora: Profª. Drª. Lileana Mourão Franco de Sá 1. Literatura crítica- Obra “Dois irmãos”- 2. PsicologiaRivalidade fraternal 3.Crítica psicanalítica I. Sá, Lileana Mourão Franco de (Orient.) II. Universidade Federal do Amazonas III. Título CDU(1997) 82.091:159.9(043.3) À minha família, porto seguro, ninho aconchegante, berço de segurança e fonte de amor que me dá forças para continuar a caminhada. AGRADECIMENTOS À Deus Pai por todas as conquistas e graças concedidas e por estar ao meu lado, guiando-me nos momentos de desespero e diante das adversidades na longa batalha que foi esta dissertação.. Aos meus pais, Maria Guadalupe e José Antonio, os quais sempre me incentivaram a lutar por meus objetivos e sonhos, zelando por mim e rezando para que todas as dificuldades do caminho fossem superadas. Às minhas irmãs, Luzianne e Suzianne pela força, pensamento positivo, apoio e incentivo em todos os momentos que precisei. Ao meu fiel amigo, companheiro e eterno amor Thales que durante todos esses anos nunca mediu esforços na tentativa de me ajudar em meus estudos, dando seu colo e amparo quando tudo parecia dar errado, fazendo o possível e o impossível para que eu chegasse ao fim deste percurso. À minha querida família “torta”: minha sogra, Zeneide e meus cunhados Paulo e Luciana pelo apoio, dedicação e ajuda. À minha amiga Lourdes por ter cuidado da minha casa com tanto carinho e amor, a fim de que tudo estivesse em ordem À minha querida orientadora, professora Lileana Mourão Franco de Sá pela dedicação e incentivo, comprometendo-se integralmente durante a realização deste trabalho. Ao professor Marcos Frederico Krüger Aleixo, mestre e amigo de todos os momentos, grande incentivador da realização deste trabalho e da minha inteira paixão pela literatura. À professora Raquel Almeida de Castro pelo carinho e companheirismo devotados desde minha graduação de psicologia, ensinando-me a dar os primeiros passos no universo embriagante da psicanálise. Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive. (Fernando Pessoa) RESUMO O texto literário enquanto veículo plurissignificativo de expressão do homem é um espaço que permite ao inconsciente aflorar, configurando-se como um tecido de temas com referências histórias e práticas sociais humanas, capaz de traduzir seus desejos inconscientes, conflitos e angústias. Dessa maneira, o escritor amazonense Milton Hatoum, através da publicação da obra “Dois Irmãos”, reaviva de maneira original e inovadora o tema da rivalidade fraterna, cuja recorrência acompanha a história de nossa civilização, sendo explorado em todos os tempos e todas as culturas, passando pelas tragédias gregas e pelos mitos bíblicos de Esaú/Jacó e Caim/Abel. Tal tema é denotado na narrativa por meio dos protagonistas: os irmãos gêmeos Yaqub e Omar, os quais compartilham entre si sentimentos e comportamentos hostis, destrutivos e agressivos, configurando-se como antípodas que se digladiam física e oralmente, e se tornam verdadeiros inimigos no decorrer da ficção. Diante disso, este estudo teve a finalidade de analisar aspectos relativos à rivalidade presente na relação entre os gêmeos Yaqub e Omar, a fim de explicar o caráter oposto das personalidades desses irmãos; determinar o papel do Complexo de Édipo no aparecimento desta rivalidade e estabelecer como a conturbada relação dos irmãos com as figuras materna e paterna contribuiu para o desenvolvimento de tal conflito fraterno. Para obter tais objetivos, o trabalho foi ancorado nos pressupostos da Crítica Psicanalítica por esta buscar os conteúdos encobertos, latentes do texto literário, atuando como um recurso de interpretação e desvendamento das causas e condicionamentos da obra literária, quer sejam psíquicas ou sociais. Foi possível denotar que a rivalidade fraterna de Yaqub e Omar manifesta-se como produto de laços familiares fragilizados, marcados por relações de preferências parentais por um filho em detrimento de outro, impulsionando entre os gêmeos sentimentos de competição, ciúme, inveja e o ódio ao irmão rival, o detentor da posição de destaque e do afeto parental desejado. Palavras-chave: Milton Hatoum, Obra “Dois Irmãos”, Rivalidade Fraterna, Crìtica Psicanalítica. ABSTRACT The literary text as a multi-meaning expression of men is a space that allows the unconscious to blossom, making itself as a weave of themes with historical references and human social practices, capable of translating their unconscious desires, conflicts and torment. Thus, the Amazon writer Milton Hatoum, through the publishing of the book “Two Brothers”, relives in an original and innovating fashion the fraternal rivalry theme, which reoccurrence accompanies the history of our civilization, being explored at all times and cultures, passing through the Greek tragedies and the biblical myths of Esau/Jacob and Cain/Abel. Such theme is denoted in the narrative through the leading characters: the twin brothers Yaqub and Omar, that share between themselves hostile, destructive and aggressive feelings and behaviors, setting up as antipodes that gladiate physically and verbally, and become true enemies along the fiction. Given this, this study had the purpose to analyze aspects related to the rivalry present in the relationship between the twins Yaqub and Omar, in order to explain the opposing character of the personality of these brothers; to determine the role of the Oedipus Complex in the inception of this rivalry and to establish how the troubled relationship of the brothers with their maternal and paternal figures has contributed to the development of such fraternal conflict. To achieve such objectives, this dissertation was anchored in the assumptions of the Psychoanalytic Criticism for it searches the unseen, latent contents of the literary text, acting as an interpretation and revealing resource of the causes and conditionings of the literary work, whether they are psychic or social. It was possible to denote that the fraternal rivalry of Yaqub and Omar is unfolded as a product of the weakened family bonds, characterized by parental preference relations towards a son at the expense of the other, stimulating between the twins competition, jealousy, envy and hate feelings to the rival sibling, the one possessing the desired outstanding position and parental infatuation. Keyworks: Milton Hatoum, “Two Brothers” book, Fraternal Rivalry, Psychoanalytic Criticism. LISTA DE FIGURAS Figura 1: processo da projeção mútua de sombras entre os irmãos Yaqub e Omar. ............................. 96 Figura 2: processo da transferência nos irmãos Yaqub e Omar. ......................................................... 123 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 10 1. DOS DESALINHOS DE UMA FAMÍLIA AO SURGIMENTO DE UM PAR RIVAL .......... 15 1.1 NOS BASTIDORES DA TRAMA RIVALITÁRIA ....................................................................... 17 1.1.1 O início do percurso: Zana, Halim e a construção do vínculo conjugal....................................... 17 1.1.2 Zana: a eterna pérola do pai Galib................................................................................................ 21 1.1.3 Halim: o romântico pupilo seguidor de Zana ............................................................................... 30 1.2 A FAMÍLIA DE “DOIS IRMÃOS”: UM GRUPO TEATRAL SOB O COMANDO DE ZANA . 36 1.2.1 O nascimento dos filhos e a construção do laço filial .................................................................. 39 1.2.1 O Complexo de Édipo das personagens Yaqub e Omar .............................................................. 52 2. O PAR FRATERNAL DE “DOIS IRMÃOS”: A DINÂMICA DA SEMELHANÇA NA DIFERENÇA ....................................................................................................................................... 59 2.1 A DANÇA DOS CONTRÁRIOS: A BUSCA PELO PRAZER E A SUBORDINAÇÃO À REALIDADE ........................................................................................................................................ 61 2.2 QUALQUER DESSEMELHANÇA NÃO É MERA COINCIDÊNCIA: A PERSONA E A SOMBRA NO PAR FRATERNAL YAQUB E OMAR ...................................................................... 90 3. A RELAÇÃO FRATERNA DE YAQUB E OMAR: CAMINHOS DE PARADOXOS EMOCIONAIS .................................................................................................................................. 100 3.1 PRATICANDO A RIVALIDADE FRATERNA.......................................................................... 102 3.1.1 O preparo da arena para a batalha .............................................................................................. 102 3.1.2 Primeiro tempo da batalha: a competição pelo monopólio do amor materno ............................ 103 3.1.2.1 A multiplicação do amor materno: transferência e incesto ..................................................... 112 3.1.2.2 Domingas: amor de mãe postiça para Yaqub; objeto de dominação para Omar ..................... 114 3.1.2.3 Rânia: a sedução de uma cópia de Zana .................................................................................. 117 3.1.2.4 Lívia: o reviver da competição pela figura feminina............................................................... 119 3.1.2.5 Pau-Mulato: a “mãe não incestuosa” de Omar ........................................................................ 121 3.1.3 Segundo tempo da batalha: a gangorra do ciúme ....................................................................... 124 3.1.4 Desfecho da batalha: se pela inveja cobiçarei o que é teu, pelo ódio te aniquilarei ................... 127 CONCLUSÃO ................................................................................................................................... 132 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 135 10 INTRODUÇÃO Debruçar-se sobre a obra literária no intuito de estudá-la e, assim, compreender seu funcionamento e estrutura não é algo elaborado recentemente. Desde o período clássico de nossa história, os povos gregos já se preocupavam em traçar apontamentos literários, tomando como base as poéticas e retóricas de seu tempo. Todavia, Castro (1984) aponta que se buscava apenas o sentido formal dos textos, não evidenciando a literatura como forma de conhecimento estético e artístico. Entretanto, com a afirmação da Teoria da Literatura enquanto proposta de interpretação do fenômeno literário, “para compreender seus mecanismos de realização do modo mais eficiente possível” (OLIVEIRA, 2009, p.16), várias correntes teóricas surgem com a finalidade de auxiliar no estudo das obras, fazendo com que os textos literários sejam vistos não mais como “ um tecido de signos repetidos” (CASTRO, 1984, p.31) e sim como expressão e manifestação da relação do homem com as realidades sociais. Este fator promoveu o aparecimento da crítica literária, cabendo a ela a função de analisar a produção literária, conforme o que cada época julga como relevante em níveis artísticos e culturais (OLIVEIRA, 2009). Porém, as primeiras correntes de crítica literária, dentre elas podemos citar aquela que teve maior destaque no cenário literário, chamada de “Estruturalismo”, centraram seus estudos na análise da forma (rima, métrica, linguagem) almejando, principalmente, traçar uma “gramática” dos textos, uma espécie de “estrutura” comum a todos os textos literários, em detrimento do contexto e do conteúdo dos mesmos. Contudo, o movimento Pós-Estruturalista do século XX resgata os aspectos negligenciados pelo estruturalismo, mostrando que não se pode pensar em uma obra literária sem levar em conta o conteúdo e o contexto em que esta foi produzida Assim, pesquisadores, desde o início do século XX, têm se dedicado ao estudo e à crítica de textos e obras literárias, buscando compreender sua estrutura e interpretá-los. Tal motivação ocorre devido ao fato de que a literatura produz um mundo incompleto, ou seja, “as obras são fragmentos de mundos, constituídos por parte de personagens e diálogos, mas faltam parcelas inteiras da realidade” (RAVOUX-RALLO, 2005, p.220) cabendo ao leitor, preencher esses espaços em branco e as lacunas do texto. Dessa forma, os críticos literários passam a buscar arcabouço teórico em outras áreas do conhecimento, trazendo sua luz para a literatura, com o intuito de embasar suas 11 interpretações, criando, assim, outras correntes de crítica literária. Dentre essas correntes uma delas ganha destaque no século XX: a Crítica Psicanalítica. A Crítica Psicanalítica baseia-se nos conceitos da Psicanálise, linha teórica da Psicologia desenvolvida por Sigmund Freud, no final do século XIX. A Psicanálise insere-se no mundo literário por meio das pesquisas de seu fundador na interpretação de conteúdos oníricos (sonhos). Por meio destes trabalhos, Freud descobriu que um mesmo sonho poderia adquirir inúmeras sentidos diante de pessoas e situações diferentes. Pires (1989, p.119) salienta a importância de “Freud atribuir possibilidades várias à interpretação dos sonhos, tal como ocorre com um texto literário. Haverá sempre possibilidades de ser apontado um novo sentido como decorrência da infinita praticabilidade de condensação na sua linguagem”. Além disso, o próprio Freud recorreu à literatura, na história dos deuses gregos e nas tragédias gregas, procurando na arte a estrutura para denominação das categorias fundantes da Psicanálise. A Crítica psicanalítica busca, então, o que tem de mais rico na linguagem literária: a sua plurissignificação, entendendo que esta é repleta de especificidades, uma vez que seu sentido excede o que está escrito no texto, constando “tanto a verdade histórica (ideologia) como a representação simbólica (o inconsciente)” (PIRES, 1989, p.118). Tal característica ocorre, pois a principal função da Crítica Psicanalítica é buscar os conteúdos encobertos, latentes do texto literário. Por isso, Meneses (1995, p.18) expõe que a abordagem psicanalítica é recurso de interpretação, revelação, desvendamento, preocupandose em descobrir as causas e condicionamentos da obra literária, quer sejam sociais ou psìquicas. Segundo a autora, tanto Literatura como Psicanálise lidam com exegese; “são horizontes da hermenêutica. Hermeneuein: trazer mensagens (isto é agir como Hermes, o deus mensageiro) exprimir o pensamento pela palavra; fazer conhecer, traduzir, interpretar”. Mas as aproximações entre essas duas áreas do conhecimento vão muito além. Meneses (1995) aponta que a Literatura é um espaço que permite ao inconsciente aflorar, cabendo à psicanálise a função de reconhecimento desse inconsciente. Sampaio (1986), sobre as contribuições da psicanálise na literatura afirma que “como a arte é o produto de forças artísticas inconscientes que são em parte controladas pela razão, uma crítica racionalista e tradicional não consegue apreender sua verdadeira natureza”. Assim, Literatura e Psicanálise desempenham um papel em comum, que é fazer uma leitura da alma humana a partir da interpretação, isto é, “vista do ângulo da literatura, a psicanálise propicia um instrumento de leitura [...] para o literário” (MENESES, 1995, p.17), 12 e ao fazê-lo, na visão de Ravoux-Rallo (2005), procura sentidos ou, com mais precisão, dá sentido aos textos, desvendando aspectos até então não elucidados e latentes. Porém, uma leitura da alma humana não pode deixar de lado o fato de que o homem é um ser social, constantemente influenciado por aspectos históricos e simbólicos da cultura, os quais penetram na formação daquilo que Jung (1964) denomina como arquétipos, que correspondem a temas ou símbolos universais, transmitidos, de acordo com Fadiman (1986) por meio de mitos, contos e lendas de épocas e culturas diferentes. Dentre esses temas universais, percebemos que a animosidade, os conflitos, a violência doméstica e a discórdia entre indivíduos que compartilham um laço consanguíneo têm servido de matéria prima para a literatura durante séculos, sendo transmitidos a cada nova geração e exercendo forte influência em nossa cultura. Assim, a família, esse emaranhado e complexo grupo formado por pessoas aparentadas unidas afetivamente, perpassa o universo literário atuando não apenas na condição de palco de divergências, mas como elemento incitador dos conflitos entre as gerações. Dentro deste tópico tão vasto, a figura dos irmãos ganha destaque, aparecendo em inúmeros relatos de cunho dramático em que predominam o tema da rivalidade pela tentativa de usurpar o lugar de privilégio do irmão e subjugá-lo, embate este sempre temperado por fortes sentimentos de competição, ciúme, inveja. É neste sentido que situamos o objeto de estudo deste trabalho, a narrativa “Dois Irmãos”, do escritor amazonense Milton Hatoum, cujo enredo retrata a rivalidade fraterna dos protagonistas Yaqub e Omar, gêmeos idênticos, descendentes de imigrantes libaneses que residem na cidade de Manaus e oriundos de uma família marcada por histórias de abandono, negligência, orfandade e laços afetivos fragmentados que serão transmitidos a esse par de antípodas e influenciarão no aparecimento da dificuldade desses irmãos de compartilharem laços de amor e cumplicidade. Logo, de dramático a polêmico, o tema da rivalidade fraterna que acompanhará o trajeto de nossa leitura psicanalìtica sobre a obra “Dois Irmãos”, se mostra como um aspecto recorrente em nossa tradição cultural, sendo transmitido através de relatos mitológicos, como o mito de Ares e Hefesto, irmãos que rivalizam em virtude da traição da esposa de Hefesto, Afrodite, com Ares; nos contos de fadas, como o de Cinderela, em que a personagem disputa o príncipe com suas irmãs; nas tragédias gregas, podendo citar o exemplo de Etéocles e Polinices, filhos-irmãos de Édipo com sua mãe Jocasta, que disputavam o trono de Tebas. Não podemos deixar de mencionar ainda as histórias bíblicas de Caim /Abel e Esaú /Jacó, as quais merecem um pouco mais de nossa atenção não apenas por terem influenciado o 13 enredo da obra “Dois Irmãos”, sendo até mesmo citadas na narrativa (no caso da primeira), mas pelas semelhanças que encerram. No que tange à primeira história bíblica, encontramos Caim e Abel, filhos dos primeiros seres humanos habitantes da terra, Adão e Eva. Caim, o primogênito rivaliza com Abel a atenção e o amor do pai (Deus), o qual toma como seu preferido o filho mais novo. Como consequência desse ato, “num acesso de inveja e fúria, [...] Caim mata seu irmão Abel, [...] torna-se o primeiro assassino da história, inventor do homicídio, revelador da morte (BARCELLOS, 2009, p.53). Já na segunda, temos Esaú e Jacó, irmãos gêmeos, porém de aparências diferentes, filhos de Isaque e Rebeca. Mesmo diante do nascimento duplo, os pais considerarão Esaú o primogênito e Jacó, o caçula. Esses irmãos lutavam entre si desde o ventre materno, fadados à rivalidade já que Deus anuncia à mãe que os filhos criarão duas nações divididas, uma mais forte que a outra e que o filho mais velho terá que servir ao mais novo (Gênesis, 26, 22-23). Além disso, Rebeca tinha por preferido o filho mais novo que nesta condição, não gozava dos privilégios destinados ao primogênito naquela época. Assim, ela planeja fazer Jacó se passar por Esaú, enganar o cego pai, Isaque e roubar o direito do filho mais velho, fator que cria uma inimizade grande entre os irmãos que, no entanto, é desfeita no final da história. Partindo para a narrativa “Dois Irmãos, observaremos, ainda no início deste trabalho, que na história de Yaqub e Omar seus pais, Zana e Halim, não conseguiram coibir a manifestação da discórdia e da agressividade entre os filhos, pelo contrário, incentivaram tais perspectivas, uma vez que o pai rejeitará os filhos, permanecendo omisso na criação dos mesmos e a mãe adotará um sistema de preferências, elegendo Omar como seu filho favorito em detrimento de Yaqub, propiciando a eclosão do ciúme e da inveja que acompanharão o esfacelamento da família e a impossibilidade de reconciliação entre esses irmãos. Colocando as três histórias em paralelo, notamos que em ambas há o deslocamento do filho mais velho pelo caçula que vem ocupar o lugar de destaque seja pela violência, pelo poder do ardil ou pela preferência parental. Entretanto, o que as diferencia diz respeito aos desfechos: na primeira ocorre o fratricídio; na segunda, os irmãos encontram a reconciliação e, em “Dois Irmãos”, a paz e a harmonia aparecem como coisas impossíveis e impensáveis nesta relação fraterna, como o próprio Omar afirma: “O que ela [Zana] quer? Paz entre os filhos? Nunca! Não existe paz nesse mundo...” (Dois Irmãos, 2006, p.168). Isso porque Yaqub e Omar tinham em comum algo ainda mais intricado: a mesma aparência física, característica esta que se manifesta na literatura como a representação do 14 duplo, isto é, a imagem do ser duplicado, que “traz consigo o terror de alguém em ver sua sombra sempre presente, indicando o seu fim latente” (COSTA, 2010, p.17). A amedrontadora possibilidade de duplicação fará com que Yaqub e Omar elaborem personalidades extremadas – Yaqub, o filho racional, calculista e ambicioso; Omar, o gêmeo movido pela paixão e pelos instintos – que os levaram para caminhos opostos na tentativa de encontrarem uma forma de diferenciação. “Por isso, o embate entre os irmãos gêmeos é sempre tenaz, já que apenas a destruição de um implica a sobrevivência do outro” (COSTA, 2010, p.17). Porém, no decorrer da narrativa os aspectos obscuros e reprimidos da personalidade de Yaqub e Omar ganharão vazão e essa aparente polarização se diluirá, a ponto de não podermos diferenciar essas personagens pelo prisma de aspectos maniqueístas, ou seja, bom e mau, negativo e positivo. Se a possibilidade de reconciliação é vista na relação de Yaqub e Omar como algo impossível, a rivalidade se mostrará ainda mais acirrada entre esses irmãos que protagonizarão cenas de intensa violência e ódio, em uma batalha que se concretizará em momentos de intensa competição, seguidos do ciúme, da inveja e da necessidade brutal de aniquilar o irmão, no intuito de, assim, tomar para si o lugar de privilégio desfrutado pelo Outro. Diante desta relação conturbada, repleta de paradoxos emocionais, sentimentos ambivalentes e de forte animosidade que busquei retratar sobre o laço fraterno de Yaqub e Omar evidenciando a rivalidade que o constitui, suas nuanças e o desenvolvimento desta ferida incrustada na história desses protagonistas e de sua família, usando como ferramenta de análise os pressupostos da Crítica Psicanalítica através de duas vertentes teóricas: a Freudiana, do fundador da psicanálise, Sigmund Freud, que enfatiza “as forças inconscientes, os impulsos sexuais e de agressão baseados em impulsos biológicos e os conflitos inevitáveis na infância” (SCHULTZ & SCHULTZ, 2006, p.39) como dirigentes e moldadores da personalidade dos indivíduos e a Analítica, de Carl Jung, que ampliou a teoria freudiana enfatizando aspectos da personalidade como o inconsciente coletivo (depósito das experiências humanas transmitidas no decorrer das gerações), o princípio dos opostos e o princípio da entropia, o qual afirma que a personalidade possui uma tendência ao equilíbrio de suas características. Ambas as teorias, na condição de recursos de interpretação e revelação das causas e condicionamentos latentes da obra literária, auxiliaram a construir as inferências articuladas neste trabalho. 15 1. DOS DESALINHOS DE UMA FAMÍLIA AO SURGIMENTO DE UM PAR RIVAL O duelo entre os gêmeos era uma centelha que prometia explodir. “Duelo? Melhor chamar de rivalidade, alguma coisa que não deu certo entre os gêmeos ou entre nós e eles”, revelou-me Halim, mirando a seringueira centenária do quintal. “Dois Irmãos”, Milton Hatoum, 2006, p.46.” O escritor Milton Hatoum, através da publicação da obra “Dois Irmãos”, reaviva de maneira original e inovadora o tema da Rivalidade Fraternal, cuja recorrência acompanha a história de nossa civilização, sendo “explorado em todos os tempos e todas as culturas, [...] em todos os gêneros, do mito ao folhetim” (PERRONE-MOISÉS, p.285, 2007), passando pelas tragédias gregas e pelos mitos bíblicos de Esaú/Jacó e Caim/Abel. Na narrativa, tal tema é denotado por meio do delineamento dos protagonistas desse impasse irredutível e indissolúvel (NUNES, 2007; CURY, 2007): os irmãos gêmeos Yaqub e Omar, os quais compartilham entre si sentimentos e comportamentos hostis, destrutivos e agressivos, configurando-se como antípodas que se digladiam física e oralmente e se tornam verdadeiros inimigos no decorrer da ficção. Diante disso, esta “leitura psicanalítica” sobre a obra terá a finalidade de traçar apontamentos sobre as razões que levaram a tantas intrigas e divergências entre Yaqub e Omar, bem como ao aparecimento da rivalidade fraterna. Todavia, a jornada de nossa escritura não se inicia a partir dos rivais da narrativa de Hatoum; para compreendê-los, antes, será necessário voltar no tempo, refazer os passos de seus ancestrais e colher os fragmentos da história da família por eles deixados, buscando conhecer a maneira como foram organizados os vínculos1 entre seus membros até atingirem sua geração. Isso se dá, pois, a família, esse grupo de indivíduos ligados por um mundo de relações simbólicas e laços afetivos, cujo espaço multidimensional e intersubjetivo2 propicia a 1 A noção de vìnculo que será utilizada neste trabalho agregará não apenas a ideia de “tudo aquilo que ata, mantém relação ou subordinação” (FERREIRA, 2009), mas, principalmente, o conceberá como “um espaço intermediário ou potencial em que há um investimento significativo entre dois ou mais sujeitos, investimento que cria novas possibilidades de funcionamento psíquico para todos e para cada um” (TOZATTO, 2004, p.39), lugar onde a herança psíquica dos participantes se mantém em constante diálogo. 2 O espaço intersubjetivo diz respeito ao mundo ou conjunto onde o “eu” está com “outros” em singular relação de intimidade, construindo vínculos que propiciarão constantes trocas de sentimentos ambivalentes (amor e ódio, ternura e agressividade), o reconhecimento das proibições dentro desse espaço, assim como relações de desejo que possibilitarão identificações do “eu” com os membros do grupo em que esteja inserido (TOZATTO, 2004; ALMEIDA DE CASTRO, 2010). 16 convivência com as diferenças, contribuindo para a construção da subjetividade (MOGUILLANSKY, 2011), precede o indivíduo, não cabendo a esse escolher o seu pertencimento. Logo, devido à família, primeiro grupo intersubjetivo de que fazemos parte, somos detentores de uma história que “nos faz, antes de nascermos, sujeitos de um conjunto [...] do qual somos herdeiros e escravos de seus desejos insatisfeitos” (ALMEIDA DE CASTRO, 2010, p.58), de seus sonhos irrealizados, de seus discursos, de suas renúncias, fantasias e histórias. Tais características compõem o legado familiar que Tozatto (2009) reconhece como, uma “herança psìquica inconsciente, construìda pela suplementação das inscrições e impressões familiares, sociais e globais que incidem em cada sujeito” (p.35) por meio do fenômeno da transmissão psíquica, isto é, das relações imaginárias, reais e simbólicas mantidas, em primeira instância com o grupo familiar (ALMEIDA DE CASTRO, 2010). Na medida em que ocorre a apropriação deste legado, o sujeito passa a ser tanto protagonista como transmissor da história familiar veiculada. Por isso, podemos dizer que cada ser humano, em consequência dos vínculos, do investimento afetivo, bem como do legado familiar, começa a existir antes mesmo de nascer; é um sujeito da herança que se constitui pela necessidade dupla de atender aos seus conteúdos intrapsíquicos (espaço intrasubjetivo), sendo para si mesmo seu próprio fim e, ser o elo de uma corrente, cujo legado ele é obrigado a se apropriar, em prol da sua dependência psíquica ao grupo familiar (espaço intersubjetivo) a que está encerrado (FREUD, 1996a; MOGUILLANSKY, 2011; KAËS, FAIMBERG, ENRIQUEZ & BARANES (2001); TOZATTO (2004). Essa matriz familiar, na medida em que favorece a base de cuidado, a identificação entre seus membros e o sentimento de pertencimento a um conjunto de semelhantes, também elabora leis internas, outorga lugares/papéis, indica limites, enuncia proibições, produz sofrimento psíquico, bem como pressupõe e/ou favorece a eclosão de conflitos. Nesse sentido, RICHTER (1996), ALMEIDA DE CASTRO (2010), MOGUILLANSKY, 2011 e TOZATTO (2004) falam que o sofrimento de ordem psíquica não diz respeito apenas ao envolvido afetado, mas terá uma relação direta com os vínculos mantidos em seu grupo originário, isto é, a família, e só poderá ser compreendido, efetivamente, quando visto não como um problema individual, mas interpessoal, onde todos os membros contribuem para o adoecimento. Assim, um conflito aparentemente isolado, 17 como o conflito entre irmãos, pode ser apenas o porta-voz do desalinho de todo o grupo familiar. Aspectos como estes passam a compor nossa reflexão sobre a rivalidade entre Yaqub e Omar, na medida em que notamos a conturbada dinâmica da família da qual estes são originados, cuja história de abandono e luto acaba influenciando a construção do vínculo de seus sucessores e demarcando o que seria o futuro do relacionamento entre os irmãos: o órfão pai Halim, o qual oriundo de uma história de indolência parental, não desejava ter filhos, mas se vê pressionado pela imposição do desejo da esposa, Zana, em engravidar e com a chegada dos gêmeos, vislumbra no filho, Omar, um concorrente quase invencível, com o qual precisa dividir o amor da esposa. A mãe Zana, figura dominadora que organiza a família de acordo com suas necessidades e desejos, é integralmente devotada ao filho Omar, a ponto de nunca puni-lo por suas confusões e mau comportamento, negligenciando o afeto e a atenção aos outros filhos, Rânia e Yaqub, sendo os cuidados do segundo relegados à empregada da casa. Partindo disso, o presente capítulo irá adentrar no universo familiar de Dois Irmãos, palco das divergências entre Yaqub e Omar, buscando compreender aquele “algo” que, conforme elucida o patriarca Halim no inìcio desta sessão, “não deu certo” no vìnculo dos gêmeos com seus familiares e que pode ter influenciado o início da rivalidade fraterna vivenciada por essas personagens. 1.1 NOS BASTIDORES DA TRAMA RIVALITÁRIA 1.1.1 O início do percurso: Zana, Halim e a construção do vínculo conjugal A turbulenta trajetória de Yaqub e Omar começa a ser traçada muitos anos antes do nascimento destes protagonistas, através da união de seus pais, Halim e Zana, imigrantes libaneses que vieram para Manaus, no início do século XX. Por isso, passemos agora a transitar pelo espaço conjugal destas personagens, a fim de entender as bases de construção da famìlia retratada em “Dois Irmãos”. Zana e Halim se conheceram no restaurante de Galib, pai de Zana, onde a moça trabalhava como garçonete. Perdidamente apaixonado, Halim dá início a uma série de investidas amorosas com a finalidade de conquistar Zana e pedi-la em casamento, só conseguindo realizar o enlace matrimonial, após inúmeras imposições da moça, quanto ao local da cerimônia e de moradia do casal, já que Zana, mesmo ainda aos quinze anos, 18 demonstrava características de uma mulher decidida, impetuosa e de personalidade forte, ao contrário de Halim que não passava de um “modesto negociante possuìdo de fervor passional” (Dois Irmãos, 2006, p.39). Com o casamento, Zana e Halim dão início ao vínculo conjugal (de aliança ou amoroso), que além de corresponder à relação entre dois sujeitos, os quais ocupam, à priore, o lugar e a denominação de esposo e esposa e, posteriormente, de pai e mãe (TOZATTO, 2004), marca a fundação de uma nova família. Todavia, antes de pensarmos nos pais de Yaqub e Omar como um casal, é preciso identificar a procedência dos investimentos afetivos que os levaram a eleger um ao outro como parceiro amoroso, uma vez que, segundo Paiva (2009, p.43), “nunca a escolha de um cônjuge é casual, há sempre mecanismos inconscientes que envolvem a mesma”, os quais têm estreita relação com os conteúdos advindos da herança psíquica dos parceiros, cuja repercussão atinge não só o papel que cada um dos cônjuges assumirá na relação, mas, principalmente, os elementos por eles transmitidos aos seus descendentes. Partindo disso, nos apossaremos das concepções psicanalíticas a respeito da escolha do objeto amoroso com a finalidade de investigar a dinâmica conjugal e os possíveis aspectos psíquicos atuantes na união das personagens Zana e Halim. Freud (1996b) nos fala que todo ser humano é detentor, originalmente, de dois objetos sexuais/amorosos: ele próprio e sua mãe ou cuidador. No primeiro caso, temos o narcisismo primário, um estado precoce em que o sujeito procura a si mesmo e ao seu corpo como objeto amoroso, antes mesmo de escolher o Outro, isto é, um objeto exterior, como foco de seu investimento afetivo (FREUD, 1996b; LAPLANCHE, 2001). O segundo caso, diz respeito à escolha amorosa por apoio, onde o sujeito aprende a amar a pessoa que se preocupa com sua alimentação, cuidados e proteção: isto é, no primeiro caso, a figura materna ou cuidador, aquele que provê a conservação de sua vida e, posteriormente, aquele que o substitua (FREUD, 1996b; LAPLANCHE, 2001). A escolha amorosa por apoio é extremamente relevante em nossa discussão, pois, na vida adulta, ao eleger um parceiro amoroso, o sujeito recriará, potencialmente, as circunstâncias vivenciadas em sua mais primitiva relação dual: a relação com a mãe ou cuidador (TITAN, 1999). Sua escolha amorosa passará a ser orientada a partir do modelo das figuras parentais estabelecidas durante sua infância, ou seja, ele buscará parceiros que sejam substitutos do lugar da “mãe que o alimenta” ou do “pai que o protege” (TOZATTO, 2004). 19 Porém, Titan (1999) salienta que isso não significa dizer que todo homem ou mulher busque em seu parceiro a mãe ou o pai de maneira integral. “O que interessa, assim nos parece, é a instituição de uma relação onde as qualidades, boas e más, daquela primeira relação possam ser atualizadas” (p.17). Esse fator nos leva, inevitavelmente, ao Complexo de Édipo, esse “conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais” (LAPLANCHE, 2001, p.77), cuja vivência de fantasias sexuais forjadas inconscientemente, bem como o desejo de querer possuir e ser possuído pelo Outro a prepara como sujeito capaz de investir num vínculo conjugal na vida adulta (TOZATTO, 2004; NASIO, 2007). O Complexo de Édipo foi um conceito elaborado por Sigmund Freud, como uma forma de explicar a necessidade de disciplinamento das crianças, bem como a internalização de práticas aceitas pela moral e bons costumes da sociedade. O termo tem origem no mito grego descrito na peça Édipo Rei, do século V a.C., escrito por Sófocles. Sampaio (1986, p.04) assim resume o enredo desta tragédia: [...] o protagonista Édipo estava predestinado pelos deuses, em razão de uma maldição a casar-se com a mãe e a matar o pai. Ao conhecer as predições do oráculo, ele foge da sua cidade natal e vai para Tebas, onde decifra o enigma da Esfinge e se casa com a rainha viúva, Jocasta. Mas as pragas, depois de muitos anos, começaram a assolar a cidade, obrigando-o a consultar o oráculo que lhe disse que a cidade estava sendo castigada, pois o assassino do rei Laio estava impune. Édipo decide punir esse criminoso e nas suas investigações chega à descoberta de uma terrível verdade: ele havia matado o rei, seu pai e se casado com a própria mãe. Desesperado, ele se cega e se exila de Tebas. A partir da trágica história de Édipo, Freud elabora a definição deste fenômeno visto, dentro de sua teoria, como o evento mais importante da primeira infância dos indivíduos, bem como uma fantasia coletiva da humanidade. Esquematicamente, o Complexo de Édipo é um fenômeno que ocorre na infância, entre os 4 e 6 anos de idade, onde as crianças, no nível inconsciente, apresentam sentimentos amorosos e sexuais intensos pelo genitor de sexo oposto, demonstrando, ao mesmo tempo, sentimentos negativos e de morte para com o outro genitor de mesmo sexo. Quando a interdição de tal ato incestuoso acontece, vem a consciência e o sentimento de culpa ou, como denomina Freud, o superego3. Assim, o sujeito aprende a controlar seus 3 O superego, herdeiro do complexo de Édipo, “é o aspecto moral da personalidade: a introjeção dos valores e padrões dos pais e da sociedade” (Schultz & Schultz, 2006, p. 51). Ele também é reconhecido como o árbitro da moral e dos bons costumes, o qual atua na tentativa de anular os impulsos instintivos e animalescos do sujeito. Este conceito será discutido em detalhes no segundo capítulo deste trabalho. 20 impulsos sexuais e violentos, internaliza as leis e a moral da sociedade, passa a obedecer às regras da civilização e das convenções de sua cultura e se identifica com a figura parental, até então rival, adentrando no papel simbólico da masculinidade ou feminilidade, que o inscreverá, futuramente, na vida sexual com um parceiro amoroso, podendo, dessa forma, superar/resolver com êxito o Complexo de Édipo (EAGLETON, 2006). A resolução do Édipo possibilita ao sujeito aprender a limitar seu desejo sexual transbordante, ajustando-o ao seu corpo ainda imaturo, aos limites de sua consciência em desenvolvimento e às imposições da lei e da moral do mundo civilizado, as quais impõem o incesto como tabu, obrigando-o a não ver os pais como objetos sexuais. Assim, o Complexo de Édipo representa a dolorosa e iniciática passagem de um desejo selvagem para um desejo socializado, e a aceitação igualmente dolorosa de que nossos desejos jamais serão capazes de ser satisfeitos totalmente. [...] O Édipo [...] é uma explosiva alegoria da luta entre as forças impetuosas do desejo sexual e as forças da civilização que se lhe opõem. (NASIO, 2007, p.12-13). Caso isso não ocorra, ou seja, se o sujeito não conseguir superar todas as implicações do Édipo, esse pode apresentar características de imaturidade, falta de controle dos impulsos e forte dependência parental. Young (2005, p.7) salienta a questão de que estas pessoas mostram-se [...] incapazes de progredir, sentem-se dependentes do pai ou da mãe ou de ambos, passam a manifestar as suas dificuldades psicológicas em vez de contê-las e/ou sentem uma estagnação na carreira e nos relacionamentos, não conseguem controlar bem os impulsos, têm dificuldades com a autoridade e são presas fáceis de toda sorte de problemas. Por isso, o Édipo desempenha papel primordial na estrutura da personalidade e na formação da identidade sexual dos sujeitos, por corresponder ao desejo sexual de um adulto, sentido em profundidade na cabeça e no corpo de uma criança que elege como objeto de amor os pais. O infante edipiano, em toda sua inocência, sexualiza os pais e os coloca em suas fantasias na condição de objetos de desejo, reproduzindo, sem pudor ou senso moral, os gestos sexuais das figuras parentais (LAPLANCHE, 2001, NASIO, 2007). Dessa maneira, a criança vive a angústia pelo conflito entre desfrutar o prazer erótico que o impele e sofrer a punição por seu desejo incestuoso. Nesse sentido, Nasio (2007, p.10) descreve que no Complexo de Édipo: 21 é a primeira vez na vida que a criança conhece um movimento erótico de todo o seu corpo em direção ao corpo do outro. [...] Ora, se é verdade que a criança edipiana fica feliz ao desejar e obter prazer com isso, é mais verdade ainda que desejo e prazer a assustam, pois ela os teme como um perigo. Que perigo? O perigo de ver seu corpo desgovernar-se sob o ardor de seus impulsos; o perigo de ver sua cabeça explodir em virtude de não conseguir controlar mentalmente seu desejo; e, finalmente, o perigo de ser punida pela lei do interdito do incesto, por ter tomado os pais como parceiros sexuais. São as vivências e fantasias desse período, sejam elas gratificantes ou frustrantes, somadas às expectativas no relacionamento afetivo que serão repetidas e depositadas no parceiro durante a escolha amorosa e na construção do vínculo conjugal. Logo, cada cônjuge nada mais é do que uma tela na qual o Outro projeta aspectos bons, maus, idealizados ou jamais realizados, oriundos de suas experiências originais junto às figuras parentais (TOZATTO, 2004) e “isso significa tanto a vivência do paraìso como a do inferno, em perfeita consonância com o que terá passado [...] naqueles primórdios” (TITAN, 1999, p.17). Diante das reflexões acima, tomaremos em particular cada um dos parceiros deste vínculo conjugal, no intuito de compreender como foi edificado o potencial de Zana e Halim para o investimento em um vínculo amoroso, a partir das experiências vivenciadas com seus primeiros objetos sexuais durante a infância: as figuras parentais. 1.1.2 Zana: a eterna pérola do pai Galib Zana, a impetuosa e determinada matriarca de “Dois Irmãos, cuja confiança de uma cartomante (Dois Irmãos, 2006) jamais a fazia ouvir conselhos de outrem, exigindo apenas suas próprias palavras diante das decisões da família, é detentora de uma história familiar em que o luto pela mãe e o sentimento de posse do amor paterno caminham em constante contradição, definindo aspectos de sua personalidade, bem como a dinâmica mantida por ela em seu vínculo conjugal. Na narrativa, a vida desta personagem é demarcada por sua saída, ainda aos seis anos de idade, da cidade natal de Biblos, com destino ao Brasil, acompanhada pelo pai Galib (Dois Irmãos, 2006). Zana era órfã de mãe e foi criada integralmente pelo pai, uma vez que este jamais adentrou em outro relacionamento amoroso após a morte de sua mãe, fator que contribuiu para que Zana, durante muitos anos, permanecesse sozinha ao lado de Galib, até a chegada de Halim. Com a ausência da figura materna, Zana passa a ter uma difícil elaboração da situação edípica, haja vista que uma das partes do triângulo proposto no Complexo de Édipo – 22 Pai/Mãe/filha (o) – lhe falta, parte esta extremamente importante em seu processo de identificação com o papel feminino. Isso por que, a figura materna, no desenvolvimento do Complexo de Édipo feminino, também reconhecido como “Complexo de Electra” 4, possui tanta relevância quanto no masculino, já que em ambas as situações, a figura materna representa o primeiro objeto de amor, haja vista que além de ser a fonte básica de alimento e segurança, suprindo as necessidades vitais de sobrevivência do infante (SCHULTZ & SCHULTZ, 2006), a mãe também o ensina a amar, despertando na criança o desejo sexual e a excitação, na medida em que o cobre de ternuras, beijos e carícias (FREUD, 1996c; NASIO, 2007). Contudo, na menina, o desejo de possuir a mãe não ocorre no período do complexo de Édipo propriamente dito; essa fase de ligação exclusiva à mãe é reconhecida por Freud (1996a) como pré-edipiana, etapa preparatória para uma posterior elaboração do desejo amoroso pelo pai. Logo, uma das principais diferenças entre o complexo de Édipo masculino para o feminino é que, durante todo o processo, “o menino deseja apenas um único objeto sexual, a mãe; ao passo que a menina deseja ambos: antes a mãe, depois o pai” (NASIO, 2007, p.48). Durante a fase pré-edípica, a menina acredita ser detentora de um pênis fantasiado, idealizado, representante do desejo, símbolo da onipotência e da geração de vida, denominado “Falo” (CHEVALIER, 1990). Assim, munida da fantasia de onipotência fálica, “durante esse período, a menina é animada pelo desejo incestuoso de possuir a mãe, regozija-se por tê-la toda para si” (NASIO, 2007, p.50), desempenhando caracterìsticas de um papel sexual ativo em relação à mãe. Todavia, ao descobrir as diferenças anatômicas entre sua genitália e a de um menino, denotando que não possui o altamente valorizado Falo e que nunca o terá, a menina é acometida por um brutal sentimento de dilaceramento, chamado de “fantasia de privação” (NASIO, 2007), oriundo da dor de ter sido despojada da posse do precioso Falo, o qual ela inveja no menino arduamente. 4 O Complexo de Édipo feminino é chamado de “Complexo de Electra” em referência ao mito de Electra que assim como a história de Édipo, também trata da rivalidade com o genitor do mesmo sexo e do amor pelo genitor do sexo oposto. O mito de Electra revela o rancor de uma filha em relação a sua mãe, devido ao fato de que esta, junto com o amante, Aegisthus, matou seu pai, Agamêmnon. O mito encontra um desfecho trágico, uma vez que, após anos de espera, Electra consegue empreender sua vingança, matando a mãe. 23 Sobretudo, no entanto, a menina sente a dor e a indignação de ter sido enganada por alguém que a fez acreditar que ela era detentora do falo (FREUD, 1996c; SCHULTZ & SCHULTZ, 2006) e quem seria este alguém supostamente enganador senão sua própria mãe, “uma mãe ontem onipotente e que agora se revela impotente para lhe dar um Falo que ela própria não tem nem nunca teve. Sim, sua mãe também é tão desprovida quanto ela, merecendo apenas desprezo e recriminações” (NASIO, 2007, p.51). Provida de sentimentos de privação e injustiça por sua condição hipoteticamente inferior, a menina despreza e censura a mãe, culpando-a por não lhe ter dado um Falo apropriado (FREUD, 1996c) e passa a se esquivar dela, dirigindo seu amor para o pai, o grande e verdadeiro detentor do Falo, na tentativa de que ele possa reparar ou compensar sua falta. De acordo com (OLIVIER, 1986, p.57), o deslocamento do desejo da menina em direção ao pai, que marca sua entrada no complexo de Édipo, é originária da perspectiva de que, para a mãe, a menina [...] é amada como criança, mas não desejada enquanto corpo. Ela não é um “objeto satisfatório” para sua mãe no plano sexual e só poderia sê-lo para o pai, que vê o sexo feminino como complemento do seu, indispensável ao seu prazer. Assim, só o pai poderia dar à filha uma posição sexual confortável. Logo, a menina se volta para o pai, primeiramente, na esperança de que ele lhe conceda o Falo, juntamente com toda a força, potência e poder que a fará tão onipotente e vigorosa como o pai. Diante do pedido da filha, o pai deverá empreender sua primeira recusa: “a recusa de dar o seu falo” e com este ato, a filha irá constatar que nunca será detentora deste elemento mítico e partirá de uma posição invejosa (desejo de possuir o falo) para outra, de cunho desejante: o desejo feminino de ser possuída pelo pai e isso, segundo Nasio (2007, p.55) significa dizer que a menina quer ser, ela própria e por inteiro, o Falo precioso. Em outros termos, quer se tornar a favorita do pai. Em virtude do “não”, primeira recusa paterna, a inveja ciumenta de deter o falo do pai dá lugar agora ao desejo incestuoso de ser possuída por ele, ser o Falo do pai e ao empreender tal fantasia, nasce tanto o desejo de ser “a mulher do pai” como o de dar-lhe um filho. Dessa maneira, a menina retoma a imagem da mãe que outrora era vista como impotente e desprezível, identificando-se agora com ela por representar um modelo de mulher amada e desejada, incorporando seus gestos, aparência e comportamentos. 24 Para que ocorra a resolução da travessia da menina pelo complexo de Édipo, será necessário que, com o surgimento do desejo pelo progenitor de sexo oposto, o pai ponha em execução sua segunda recusa: “a recusa de possuir sexualmente a filha”, levando-a a reprimir seu desejo incestuoso e, ao mesmo tempo, identificar-se com a figura paterna, incorporando valores morais, características e atitudes do pai em sua personalidade. Ao abandonar o pai fantasiado e idealizado do Édipo, identificando-se com a pessoa do pai real, a menina se abrirá para relacionamentos amorosos e sexuais com futuros parceiros na vida adulta (NASIO, 2007). Ao contrário deste modelo feminino para o Complexo de Édipo, a personagem Zana, ao ser privada da referência de uma figura materna, não passa pela fase pré-edípica e adentra imediatamente na crise edipiana, experienciando precocemente e de forma demasiado intensa o desejo incestuoso por Galib, mantendo com ele uma relação simbiótica, haja vista que, a ausência da mãe lhe permite ter só para si, de maneira irrestrita, o amor, a atenção e o afeto do pai, sem jamais necessitar dividi-lo, quer seja com uma madrasta, irmã ou irmão. A trama edipiana da matriarca se torna ainda mais intricada na medida em que seu pai não consegue impor sobre ela a lei e a autoridade, através da interdição do desejo incestuoso da filha, uma vez que Galib se apresenta na narrativa como uma figura de pulso fraco, passiva e jamais autoritária. A postura de Galib enquanto pai é perpassada pela falta de impetuosidade, pelo fraco vigor de espírito e pela ausência de autoridade, características estas que nos remetem ao modelo tradicional de papel sexual feminino existente na sociedade, o qual engloba, além da submissão, a fragilidade, o exercício de atividades domésticas e a reclusão ao espaço da família (APARECIDO NUNES, 1987), questões estas presentes no pai de Zana, principalmente, quando este demonstra: Sua inclinação para tarefas domésticas, escolhendo como profissão a atividade de cozinheiro, cuja característica principal é “servir”, ser solìcito e subserviente a outrem, em detrimento de uma profissão que lhe fornecesse o status e a virilidade da liderança: Ele mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava a servir e cultivava a horta (Dois Irmãos, 2006, p.36). O homem que deixara a clientela do restaurante manauara com água na boca já era um exímio cozinheiro na sua Biblos natal (Dois Irmãos, 2006, p.47). 25 Sua passividade e submissão, principalmente, às determinações da filha, obedecendo suas decisões, sem questioná-las, ou até mesmo sem impor restrições: Ele não tocava no assunto do Halim, e ela, com o olhar, pedia para decidir sozinha. [...] Assim fez. Solitária, reclusa entre quatro paredes [...], Zana foi falar com o pai. Já havia decidido casar-se com Halim (Dois Irmãos, 2006, p.40-41). Zana sugeriu que o pai viajasse para o Líbano, revisse os parentes, a terra, tudo. Era o que Galib queria ouvir (Dois Irmãos, 2006, p.42). Frente à falta de vigor de Galib para exercer o poder sobre a filha, Zana suplanta o domínio do pai e encontra o caminho aberto para demonstrar toda sua expansividade, impetuosidade e poder, tendo liberdade para tomar suas próprias decisões sem retaliações. Assim, ela se torna uma mulher decidida, impulsiva, intolerante às regras e à moral, cuja autoridade jamais deveria ser questionada, fatores decorrentes da pouca influência do superego em sua personalidade, em virtude da difícil resolução da situação edípica. Estas características como veremos no tópico 1.1.3, serão perpetuadas por Zana em seu relacionamento com Halim e determinarão a dinâmica empreendida por ela junto à família. Denotamos tais aspectos de Zana nas seguintes passagens: Zana não escutava vaias nem conselhos; escutava sua própria voz recitar os gazais de Abbas (Dois Irmãos, 2006, p.40). Ela esperava, a cabeça meio inclinada, o rosto sereno, e então falava, dona de si, uma só vez, palavras em cascata, com a confiança de uma cartomante. Foi assim desde os quinze anos. Era possuída por uma teimosia silenciosa, matutada, uma insistência em fogo brando; depois, armada por uma convicção poderosa, golpeava ferinamente e decidia tudo, deixando o outro estatelado (Dois Irmãos, 2006, p.40). Relembrou o dia em que leu para o pai os gazais e disse, à queima-roupa, sem um triz de hesitação: “Vou me casar com esse Halim” (Dois Irmãos, 2006, p.47). Além disso, a fraqueza e passividade de caráter de Galib acabam fazendo-o agir de maneira contrária ao que se espera da figura paterna durante o complexo de Édipo. Ao invés de repelir o desejo incestuoso de Zana, ele reforça cada vez mais esse sentimento, ao passo que se deixa totalmente entregue aos encantos e desejos edipianos da primogênita, a elegendo como sua favorita, a queridinha, “a pérola do pai, que lhe levava as refeições, contava-lhe as novidades do dia, as histórias dos clientes” (Dois Irmãos, 2006, p.40); aquela a quem ele seduz inocentemente, quando a “levava para banhar-se no Mediterrâneo, depois caminhavam juntos pelas aldeias” (Dois Irmãos, 2006, p.46), ou em situações como quando “entrava na sala do restaurante com a bandeja equilibrada na palma da mão esquerda; e a outra mão enlaçava a cintura de sua filha” (Dois Irmãos, 2006, p.36), conforme nos mostra Nael. 26 Com isso, o pai deixa espaço para que se perpetue em Zana a fantasia de ser possuída pela figura paterna, bem como de ocupar o papel de sua mãe na condição de “mulher substituta do pai”, de “falo precioso” e de “objeto sexual satisfatório” capaz de complementar a falta da esposa, expondo a filha a um prazer erótico intenso do qual sua imaturidade infantil ainda não é capaz de dominar e que marcará profundamente a construção de sua sexualidade, pois que este é o momento decisivo para ocorrer a interdição do pai, uma vez que, de acordo com Freud (1996, vol. XIX, p.193), no Édipo, a menina almeja ser aquilo que seu pai ama acima de tudo. Todavia, chega a ocasião em que ela precisa sofrer da parte dele uma punição, no intuito de ser atirada para fora de seu paraíso ingênuo, caso contrário, estará fadada a ser eterna prisioneira do mundo incestuoso fantasiado por ela. Assim, marcas da propagação da fantasia incestuosa de Zana são encontradas na narrativa, quando Nael nos relata o processo de luto dessa personagem após a morte do pai, demonstrando o quanto a perda de seu primeiro objeto de amor e primeira referência fálica afeta de forma significativa o psiquismo de Zana, a ponto de perder o interesse pelas situações e pessoas do mundo externo (incluindo Halim), afastando-se de toda e qualquer atividade que não estivesse ligada a Galib, qual uma “enlutada viúva” (Dois Irmãos, 2006, p.42), condição simbolicamente assumida por ela desde o falecimento da mãe. Mas a notícia tardou a chegar, e, quando Zana soube, se trancou no quarto do pai, como se ele ainda estivesse por ali. (Dois Irmãos, 2006, p.42). “Chorava que nem uma viúva”, disse me Halim. “Se esfregava nas roupas do pai, cheirava tudo o que tinha pertencido ao Galib. Ela se agarrou às coisas, e eu tentava dizer que as coisas não tem alma nem carne. As coisas são vazias ... mas ela não me ouvia”( Dois Irmãos, 2006, p.42). Duas semanas trancada no quarto, duas semanas sem dormir com Halim. Gritava o nome do pai, atordoada, fora de si, inacessível. Os vizinhos escutavam, tentavam consolá-la, em vão (Dois Irmãos, 2006, p.43). Enlutada, Zana se esquivava das carícias do marido e voltava ao assunto, falando na imagem do pai, no rosto do pai, nos gestos do homem que a criara desde a morte de sua mãe. Passou um bom tempo sem tirar da boca o nome de Galib (Dois Irmãos, 2006, p.47) Notamos ainda, na obra, manifestações inconscientes desse transbordante prazer erógeno empreendido por Galib a partir dos sonhos de Zana com as figuras parentais, os quais adentram em nossa discussão, pois, de acordo com a teoria psicanalítica, os sonhos representam realizações simbólicas de desejos, fantasias, medos e conflitos, principalmente de experiências da infância, que foram duramente reprimidos no inconsciente, só podendo vir à tona de forma disfarçada e camuflada, como um “quebra-cabeça pictográfico”, (FREUD, 27 1996d) no sonho, sendo necessário decifrar e interpretar seus conteúdos para obter a significação. Na condição de válvula de escape de conteúdos inconscientes reprimidos, os sonhos são dotados de um aspecto simbólico e enigmático, uma vez que se esses materiais chegassem diretamente ao nível consciente causariam desajustes à integridade psíquica do indivíduo. Eagleton (2006, p.236) reitera esta questão ao afirmar que os sonhos se vestem de uma forma simbólica, porque se esse material fosse expresso diretamente, poderia ser chocante e perturbador a ponto de nos despertar [...] o inconsciente caridosamente disfarça, ameniza e deforma seus significados, de sorte que nossos sonhos se tornam textos simbólicos que precisam ser decifrados. Na presença do enigmático como parte inerente das manifestações oníricas, Freud (1996d) passou a discriminar nos sonhos duas características, com a finalidade de auxiliar em sua interpretação. Segundo ele, todo sonho é dotado de um conteúdo manifesto referente aos eventos reais do sonho, os quais se tornam compreensíveis logo que tomamos conhecimento deles e um conteúdo latente, que diz respeito ao significado simbólico, oculto e enigmático dos eventos do sonho que precisam ser decifrados (SCHULTZ & SCHULTZ, 2006; FREUD 1996d). Com base nisso, voltemos para o sonho de Zana, a fim de apreendermos o conteúdo latente que subjaz a carga simbólica constituída por ele. Vejamos a passagem que narra tal manifestação onírica: Deitados na rede, conversavam sobre Galib, a infância de Zana em Biblos, interrompida aos seis anos, quando ela e o pai embarcaram para o Brasil. [...] Os sonhos que ela lhe contava: pai e filha abraçados à beira-mar, entrando na água que levou a mãe dela. Os dois, juntos no sonho, sempre perto do mar, contemplando o rochedo escuro como um navio encalhado, enferrujado (Dois Irmãos, 2006, p.46-47) Ao adentrar no conteúdo manifesto do sonho da matriarca de “Dois Irmãos”, notamos que a expressão onírica, em uma primeira instância, alude ao processo de luto pelo qual Zana e Galib passaram, após o falecimento de sua mãe (“pai e filha abraçados à beira-mar, entrando na água que levou a mãe dela”), evidenciando a nostalgia pela partida da figura materna e o conforto emocional que pai e filha devotavam um ao outro ante esta perda dolorosa. Todavia, se colocarmos em foco os pequenos detalhes deste sonho, isto é, seus conteúdos obscuros e latentes, poderemos observar que as personagens da trama onírica de Zana compõem o triangulo amoroso – pai, mãe e filha –, proposto no complexo de Édipo, 28 uma vez que, mostra tanto o afastamento da figura materna, a rival com a qual Zana disputa o amor do pai, a qual é levada pelo mar no sonho (“a água que levou a mãe dela”), como também reforça a fantasia edipiana do amor incestuoso pelo pai, na medida em que recria cenas onde Galib e a filha estão sempre juntos, sozinhos e em situações extremamente românticas, sem qualquer interdição ou lei que impeça tais comportamentos (“pai e filha abraçados”, “os dois, juntos no sonho, sempre perto do mar, contemplando o rochedo escuro”). Além disso, não se pode deixar de destacar a forte presença dos elementos “água” e “mar” no decorrer dos eventos encontrados no sonho de Zana. É o mar o veìculo responsável pela partida/morte da mãe (a “água que levou a mãe dela”), ou seja, ele concretiza o desejo de morte de Zana para com a figura materna, anulando e afastando sua presença diante do conflito edipiano. Conforme nos mostra Chevalier (1990), o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e da morte, símbolo detentor da propriedade divina de dar e tirar a vida; criar e destruir. Por isso, podemos afirmar que a morte da mãe de Zana representa o fim de sua capacidade geradora de vida e marca o início do caminho de feminilidade, fertilidade e procriação da filha, aspectos estes que são reforçados no sonho por meio da presença do rochedo em formato de navio, contemplado por Zana e o pai, (“Os dois, juntos no sonho, sempre perto do mar, contemplando o rochedo escuro como um navio”) o qual rememora o rochedo do deserto, “do qual Moisés faz jorrar a fonte: fonte de vida e manifestação das possibilidades originais” (CHEVALIER, 1990, p.782). Além disso, a imagem do navio pode ser comparada a um vaso ou receptáculo, designando, neste sentido, a matriz feminina, portadora de vida, o útero no qual se constrói um novo nascimento (CHEVALIER, 1990). Logo, no sonho, Zana procurará desempenhar sua nova função procriadora justamente com a figura paterna, concretizando a fantasia de ser possuída por Galib. Assim, abraçada ao pai em sinal de aliança, os dois contemplarão o mar e entrarão na água, elemento este que simboliza a grande força vital fecundante, geradora de vida e regenerescência, símbolo da fertilidade, atuando como semente ou sêmen divino produtor da vida (CHEVALIER, 1990). Ao adentrarem no mar, durante o sonho, Zana e Galib demarcam o início de uma relação incestuosa, pois a água enquanto semente e sêmen divino poderá fertilizar Zana, a qual, na condição de receptáculo (navio/vaso/útero), possibilitará o nascimento de uma nova vida. O sonho concede a Zana a possibilidade de receber de seu primeiro objeto amoroso (pai) o filho tão sonhado, como um presente que compensaria a ausência do falo. Freud (1996, p.198, vol. XIX) explica que o desejo de possuir um filho do pai ocorre na menina, pois 29 a renúncia do pênis não é tolerada [...] sem alguma tentativa de compensação. Ela desliza [...] do pênis para um bebê. Seu complexo de Édipo culmina em um desejo, mantido por muito tempo, de receber do pai um bebê como presente – dar-lhe um filho. Como o ato sexual incestuoso não se concretiza verdadeiramente na história de Zana, ela procurará um homem passivo, submisso e totalmente devoto a ela, assim como Galib, para lhe dar o filho que tanto sonhou em ter com o pai, encontrando em Halim o que buscava. Dessa união nascerá Omar, o herdeiro em que Zana projetará a imagem do filho querido e tão desejado, mantendo-o sempre sob sua guarda, a ponto de ficar aterrorizada com a possibilidade de perda de seu mais novo objeto de amor. Omar será, então, para Zana a personificação do fruto da relação fantasiada com Galib, característica esta denotada a partir do próprio nome dado ao caçula que, ao ser decomposto em duas partes, produz a frase “O Mar” (COSTA, 2010), o mesmo elemento fertilizador e gerador de vida presente no sonho de Zana e no qual ela e o pai adentraram. Portanto, podemos inferir que as problemáticas decorrentes da difícil elaboração edípica de Zana jamais foram completamente resolvidas, sendo repetidas e vivenciadas por essa personagem inúmeras vezes. Tal questão deriva-se, conforme nos esclarece Nasio (2007, p.118-119), do fato de que diante de um prazer erógeno excessivo, como o enfrentado por Zana a qual vive uma relação simbiótica com o pai, se vendo seduzida por ele, o eu do infante fica traumatizado. Isso significa dizer que quando o eu da criança é incapaz de assimilar um impacto tão forte de prazer sexual, fica desamparado e condenado a reviver o mesmo trauma mil e uma vezes. É então que a defasagem traumatizante entre um eu imaturo e um prazer intenso e precoce fica gravada na cera do inconsciente infantil. Qual uma placa sensível, o inconsciente guarda na memória o choque brutal do prazer erógeno e seu contexto, isto é, a presença sexual e desejante do adulto. [...] É assim que se molda, no inconsciente virginal da criança, o protótipo de uma cena fantasiada em que ela se vê seduzida por um dos pais. É exatamente com essa cena gravada no inconsciente que Zana experimentará, na vida adulta, uma necessidade compulsiva de reviver e representar as sensações oriundas do prazer erógeno intenso e maléfico sentido na infância, representando constantemente a mesma cena traumática, porém, não mais com seu pai e sim com Halim, o parceiro amoroso que atuará como extensão da figura paterna, conservando as ações de Galib, seja quando a seduz com os doces versos dos gazais5 -“Zana [...] escutava sua própria voz recitar os gazais de Abbas” - 5 Conforme Ferreira (2009, p.972), Gazal, também reconhecido como Gazel, corresponde a uma “poesia amorosa ou báquica, espécie de ode, dos persas e dos árabes, que se compõe de vários dísticos, 15 no máximo, rimando os versos do primeiro dístico entre si e com o segundo verso de cada um dos outros”. 30 (Dois Irmãos, 2006, p.40) - “Solitária, reclusa entre quatro paredes, extasiada com os gazais de Abbas”- (Dois Irmãos, 2006, p.40) ou amando-a incondicionalmente, a ponto de não querer dividi-la com mais ninguém. 1.1.3 Halim: o romântico pupilo seguidor de Zana Halim, o patriarca da famìlia de “Dois Irmãos”, é descrito na narrativa como um homem de poucas ambições, com hábitos simples e humildes, “um boa-vida no mar de miudezas da província” (Dois Irmãos, 2006, p.112), que prezava por uma vida sem luxo ou ostentação, de forma que “qualquer açúcar, grosso ou fino, adoçava seu café” (Dois Irmãos, 2006, p.112). Detentor de uma passividade de caráter, Halim não possuía a firmeza de um tradicional “chefe de famìlia”, já que não exercia a imposição de sua autoridade, mantendo o pulso fraco perante as decisões relativas à família, só se agigantando quando o assunto era o relacionamento com a esposa, paixão esta que fazia dele “um romântico tardio, um tanto deslocado ou anacrônico” (Milton Hatoum, 2006, p.39), “cultor do amor e seus transes” (Dois Irmãos, 2006, p.112), capaz de abdicar de qualquer ponto de vista ou do trabalho em função do amor e do afeto de Zana, conforme ele mesmo nos diz na seguinte passagem: “Por Deus, nunca pude levar a sério o comércio” [...]. “Não tinha tempo nem cabeça para isso. Sei que fui displicente nos negócios, mas é que exagerava nas coisas do amor” (Dois Irmãos, 2006, p.49). Contudo, este homem que “esbanjava nas coisas do amor” é detentor de uma história familiar maculada pela completa negligência e desamparo e, diferentemente de sua esposa que foi arrebatada por sensações de prazer intenso, oriundo da relação afetiva simbiótica com o pai, Halim jamais experienciou afeição, zelo ou amor por parte de suas figuras parentais. Órfão, Halim foi abandonado pelos pais ainda criança, sem nunca tê-los conhecido, sendo seus cuidados relegados a um tio que o trouxe, aos 12 anos, para Manaus, desaparecendo logo em seguida, deixando-o em uma pensão, sozinho, desprotegido e à mercê das adversidades do mundo. Vejamos como Halim descreve tais acontecimentos: Um pai... eu nunca soube que significa... não conheci nem pai nem mãe... Vim para o Brasil com um tio, o Fadel. Eu tinha uns doze anos... Ele foi embora, desapareceu, me deixou sozinho num quarto da Pensão do Oriente... (Dois Irmãos, 2006, p.135). 31 No caso de Halim, a ausência parental dificultou a vivência de seu complexo de Édipo, haja vista que as referências de pai e mãe foram dissipadas pelo abandono, prejudicando não só o processo de construção da sexualidade, desencadeado através do amor incestuoso pela mãe, mas também o de identificação com a figura paterna, símbolo de potência fálica, de autoridade e lei, um espaço que poderia ser assumido por ele na vida adulta, ao edificar uma família (EAGLETON, 2006; NASIO, 2007). Todavia, antes de dialogarmos sobre as implicações causadas a Halim pela difícil elaboração de seu complexo de Édipo é importante destacarmos como se dá este processo em crianças do sexo masculino. De acordo com Schultz & Schultz (2006), o Édipo masculino ocorre quando o menino começa manifestar seus desejos sexuais incestuosos pela mãe, decorrentes do forte vínculo afetivo construído desde o nascimento e, ao fazê-lo, passa a ver o pai “como um obstáculo no seu caminho, considerando-o um rival e uma ameaça. Ele percebe que o pai tem um relacionamento especial com a mãe, do qual ele não pode participar; então, fica enciumado e hostiliza o pai” (p.59) Entretanto, mesmo hostilizando e tendo sentimentos destrutivos para com a figura paterna, o menino ainda anseia pelo amor e carinho do pai, ao mesmo tempo em que teme uma possível retaliação e vingança, o que Freud denominou de castração, isto é, o medo de que o pai “lhe corte o órgão (o pênis), que é, nessa época, a sua fonte de prazer e desejos sexuais” (SCHULTZ & SCHULTZ, 2006, p.60). Do temor da castração vem a necessidade de a criança abandonar e reprimir os desejos incestuosos dedicados à figura materna, mandando-os para o inconsciente. Assim, “sob ameaça, o menino angustiado tem de escolher entre proteger a mãe ou o pênis. Pois bem é o pênis que ele protege e é a mãe que ele abandona” (NASIO, 2007, p.37). Dessa maneira, Eagleton (2006, p.232-233) esclarece que o menino [...] reprime seu desejo incestuoso em uma preocupada resignação, ajusta-se ao 6 “princìpio da realidade ”, sujeita-se ao pai, separa-se da mãe e conforta-se com o consolo do inconsciente de que embora não possa ter esperanças, agora, de expulsar o pai e possuir a mãe, o pai simboliza um lugar, uma possibilidade, que ele próprio será capaz de assumir e realizar no futuro. Por esses motivos, a psicanálise enfatiza a importância do papel dos pais no desenvolvimento infantil, uma vez que a não resolução do complexo de Édipo está 6 O princípio da realidade diz respeito à instância pela qual é possível providenciar as limitações adequadas à expressão e manifestação dos instintos (SCHULTZ & SCHULTZ, 2006), conceito este que será melhor explicitado no Capítulo 2 deste trabalho. 32 intimamente ligada à postura destas figuras durante esse processo. Em relação aos meninos, o pai precisa exercer seu papel de imposição da lei e da autoridade, bloqueando o desejo incestuoso do filho, pois “a autoridade do pai [...] é introjetada no ego 7 e aí forma o núcleo do superego, que assume a severidade do pai e perpetua a proibição deste contra o incesto, (FREUD, 1996f, p.47). Já a mãe não deve agir de maneira incisiva e possessiva sobre o filho, apropriando-se dele como seu objeto. Ela precisa permitir a participação do pai no complexo de Édipo e, consequentemente, sua intervenção como representante da lei, capaz de levar o filho a enfrentar seus desejos sexuais pela figura materna. Logo, longe das figuras parentais ou de pessoas que pudessem substituí-las, pois até mesmo seu tio Fadel se negou a exercer o papel paterno, Halim não pôde enfrentar com naturalidade o drama familiar do Édipo, passando a reviver, a cada dia, o terror do desafeto e o trauma indelével proveniente do abandono parental e da rejeição que acarretam ao acometido profunda aflição e sofrimento (NASIO, 2007). A falta de amparo, amor, proteção e auxílio dos pais frente à satisfação de suas necessidades básicas de sobrevivência, fazem com que o patriarca não construa bases de autoconfiança capazes de ajudá-lo a enfrentar os reveses da vida, permanecendo imerso em um meio externo inóspito, onde predomina a angústia da iminente destruição e morte, fatores que contribuíram para a forte passividade de caráter e a dificuldade de Halim em impor suas opiniões e desejos frente à esposa, a qual, por ter sido eleita como a única fonte de amor do pai, se tornou uma mulher confiante e orgulhosa de si mesma capaz de se transformar na figura dominante no vínculo conjugal formado por eles. Esses aspectos influenciaram fortemente a relação desse par, uma vez que as decisões a respeito da casa, da família e da vida dos filhos eram tomadas em primeira mão por Zana, cabendo à Halim, qual uma criança indefesa e submissa, o papel de acatar as vontades da esposa, sem questioná-las, como nos mostra os seguintes trechos da narrativa: Então era isso, assim: ela, Zana, mandava e desmandava na casa, na empregada, nos filhos. Ele, paciência só, um Jó apaixonado e ardente, aceitava, engolia cobras e lagartos, sempre fazendo as vontades dela, e, mesmo na velhice, mimando-a (Dois Irmãos, 2006, p.41). “A minha maior falha foi ter mandado o Yaqub sozinho para a aldeia dos meus parentes”, disse com uma voz sussurrante. Mas Zana quis assim... ela decidiu” (Dois Irmãos, 2006, p.43). 7 Ego, “para Freud, é o aspecto racional da personalidade, responsável pela orientação e controle dos instintos” (Schultz e Schultz 2006, p. 50). Este conceito será explicitado de forma mais detalhada no Capítulo 2. 33 [...] “pensei em levá-la a Biblos, desenterrar o Galib e dizer para ela: Fica com os ossos do teu pai, ou então vamos levar essa ossada para o Brasil, aí tu conversas com os restos dele até o fim da vida.” Não, não disse nada disso. Esperou: paciente, insistente na paciência. (Dois Irmãos, 2006, p.47) Tamanha devoção e submissão de Halim a Zana possuem raízes no fato de que, diante da indolência de seus pais, o patriarca se defronta com aquilo que Freud (1996g), denominou como uma das experiências de maior sofrimento enfrentadas pelo ser humano em suas relações interpessoais: o sentimento de perda do amor daquele de quem se é dependente, principalmente a mãe, uma vez que isto dá ao homem a percepção de estar exposto a toda e qualquer ameaça de perigo. Tal aspecto faz com que Halim busque incessantemente, na fase adulta, a satisfação do desejo de acolhimento materno que lhe foi negado, já que, na visão de Cardoso, (1987) quanto mais conturbada for a relação da criança com a mãe durante o conflito edípico, isto é, “quanto menos se sentir a criança amada e protegida pela figura materna, mais se agarrará a ela, e mais devastadoras serão as paixões desencadeadas na etapa posterior” de sua vida ( p.310). É exatamente neste ponto que Zana se torna um elemento tão expressivo na vida desta personagem, uma vez que por meio da relação amorosa e do afeto compartilhado entre ambos, Halim encontra na esposa a representação de uma figura materna, transmitindo nela a possibilidade de realização daquilo que Nasio (2007), caracteriza como uma das fantasias incestuosas do período edipiano: a fantasia de possessão, ou seja, “o desejo do menino de se apoderar da mãe e tê-la apenas para si” (p.30), fantasia esta jamais sentida na infância em virtude da ausência materna durante o complexo de Édipo. Isso ocorre, conforme Cardoso (1987), em virtude de, ao nascer, a criança precisar agarrar-se – fundir-se – à mãe, e essa necessidade será tanto mais convulsiva quanto menos segurança e garantia tiver ela do amor materno. Um náufrago, num mar proceloso, se aferrará à sua tábua de salvação na proporção direta do tamanho das ondas que o ameaçam. A criança, jogada no mundo com o nascimento, procederá dessa mesma forma. Ela irá ligar-se à mãe com desespero, e esta dependência desesperada será diretamente proporcional à sua insegurança (p.310). Por isso, Halim se tornou obsessivo por Zana e não suportava ter que dividi-la com os filhos, especialmente Omar, o favorito da esposa. O sentimento de posse de Halim era tão transbordante que ele não tolerava nem mesmo o período de resguardo da esposa, após o nascimento dos filhos, achando um absurdo ter que passar dois meses sem poder tocar no corpo de Zana (Dois Irmãos, 2006, p.51), chegando a sugerir manter relações sexuais com a 34 esposa na frente do filho, Omar (Dois Irmãos, 2006, p.52), no intuito de demonstrar a ele a quem a esposa realmente pertencia. O patriarca afirma, na narrativa, que após sua trágica história familiar foi à esposa que ele se agarrou, querendo tudo, até o impossível dessa paixão voraz (Dois Irmãos, 2006, p.135), na esperança de que a Zana pudesse preencher o vazio deixado pela figura materna. Isto porque Halim “queria gozar a vida com Zana, queria tudo, viver tudo com ela, só os dois, siderados pelo egoìsmo da paixão” (Milton Hatoum, 2006, p.41). E para não perder esse amor, ele não se incomodava em fazer os caprichos da esposa, bem como se submeter às suas ordens desde que Zana lhe recompensasse no leito de amor do casal. Vejamos algumas passagens da obra que ilustram as perspectivas acima mencionadas: “O que eu fiz para conquistar essa mulher! Meses e meses... os gazais, o vinho para vencer a timidez... [...] Ela foi corajosa, decidiu. E eu acreditei... Só pensava nela, só queria ela” (Dois Irmãos, 2006, p.135) Longe do filho, era a minha mulher, a mulher que eu queria. Sentia o cheiro dela, me lembrava das nossas noites mais assanhadas, nós dois rolando por cima desses panos velhos. De manhãzinha, íamos tomar café no quiosque do mercado, andávamos descalços pela praia... me dava vontade de fugir com ela, entrar num barco e ir embora para Belém, deixar os três filhos com a tua mãe... Pensava nisso, pensei em tudo... até em fugir sozinho... Mas não ia conseguir, ela ia reaparecer inteira na minha imaginação (Dois Irmãos, 2006, p.136) Ela sugeriu que abrissem um pequeno comércio na rua dos Barés [...] . Fechariam o restaurante, porque todos aqueles clientes [...] lembravam-lhe o pai. Halim concordou. Concordava com tudo, desde que todos os assentimentos terminassem na rede ou na cama ou mesmo no tapete da sala (Dois Irmãos, 2006, p.48) “Por Deus, Zana, se eu tivesse um lugarzinho no teu sonho teria enxotado os dois do nosso quarto e armado a rede” (Dois Irmãos, 2006, p.84). É importante destacar que a fantasia de possessão de Halim por Zana se torna ainda mais exacerbada com o advento do nascimento de seus herdeiros. Isso por que, na realidade, Halim nunca desejou ter filhos. Ele pensava em passar o resto de seus dias ao lado apenas de Zana, desfrutando de seu afeto e companhia sem a presença de crianças, as quais, a seu ver, interfeririam na vida amorosa, lhe dariam grandes preocupações e tirariam seu sossego. Isso pode ser vislumbrado na obra por meio da seguinte passagem: “Não queria três filhos; aliás, se dependesse da vontade dele, não teria nenhum. Repetiu isso várias vezes, irritado [...]. Podiam viver sem chateação, sem preocupação, porque um casal enamorado, sem filhos, pode resistir à penúria e a todas as adversidades” (Milton Hatoum, 2006, p.49). Tal perspectiva se deve não somente por Halim desejar manter o amor de Zana só para si, mas de modo especial ao fato de que o patriarca de “Dois Irmãos” não desfrutava de uma 35 visão positiva da paternidade, já que as duas figuras masculinas existentes em sua vida, o pai e o tio, lhe relegaram referências paternas de descaso, abandono e negligência, as quais foram por ele internalizadas e revividas na medida em que se via obrigado a assumir o papel de pai enquanto adulto. Mesmo cuidando dos filhos em tempos esparsos, contando-lhes histórias ou levandoos para pescar (Dois Irmãos, 2006, p.53), na tentativa de lutar contra os sentimentos negativos quanto à paternidade, marcados em seu psiquismo pelo trauma, Halim não conseguia manter a intimidade de um pai afetuoso com seus herdeiros, nunca se conformando com a intromissão das crianças em sua vida. De acordo com Nael, Halim “foi o que se poderia chamar de pai, só que um pai consciente de que os filhos tinham lhe roubado um bom pedaço de privacidade e prazer” (Dois Irmãos, 2006, p.53). A rejeição paterna de Halim se torna mais expressiva na narrativa a partir de sua relação com Omar, o filho querido de Zana, com o qual Halim mantinha uma convivência conflituosa, beirando a violência física e que era visto pelo patriarca como o grande rival na disputa pelo amor da esposa. Sobre esse aspecto negativo da paternidade demonstrado por Halim, Bettelheim (2007, p.270) aponta que em geral, quanto menos capaz alguém foi de resolver seus sentimentos edipianos de modo construtivo, tanto maior o risco de que possa ser novamente acossado por eles ao se tornar genitor. O genitor masculino que não conseguiu integrar no processo de maturação seu desejo infantil de possuir a própria mãe e seu medo irracional do pai está propenso a se angustiar a propósito do filho como competidor, e pode inclusive agir de modo destrutivo por causa do medo. Logo, provenientes de histórias familiares marcadas, respectivamente, pela falta/carência afetiva e pelo excessivo/desmedido prazer, as personagens Halim e Zana buscam na relação conjugal um complemento para suas privações parentais, bem como a resolução de conflitos edipianos não extintos na infância, deixando que suas feridas do passado, nascidas de suas experiências originais com suas famílias determinassem a dinâmica de ambos enquanto casal. Na perspectiva de Tozatto (2004), situações como esta ocorrem, pois, algumas pessoas casam-se procurando no cônjuge, inconscientemente, pais em vez de parceiros, a fim de que estes possam corrigir algo sobre si mesmos e sirvam apenas como um veículo de manutenção de seus antecessores (pais). 36 1.2 A FAMÍLIA DE “DOIS IRMÃOS”: UM GRUPO TEATRAL SOB O COMANDO DE ZANA No tópico anterior, notamos que a escolha amorosa e a construção do vínculo conjugal de Halim e Zana foram delimitadas por aspectos advindos de suas heranças psíquicas: carências e conflitos não resolvidos nas experiências primordiais do período edipiano, desfrutadas por essas personagens junto às suas figuras parentais e que ficaram gravadas inconscientemente em seu psiquismo, sendo revividas na vida adulta. A partir de agora, passaremos a analisar de que maneira esse legado familiar de cada um dos cônjuges atuou na determinação da dinâmica da família por eles construída, bem como na relação mantida com os herdeiros desta linhagem. Dessa forma, nossa discussão partirá do fato de que a união conjugal de Zana e Halim não propiciou apenas a concepção de um vínculo do qual eles e seus descendentes farão parte, mas também a formação de um grupo: a família, este conjunto intersubjetivo que será palco do conflito fraterno, cuja presença acompanhará o desenrolar da narrativa. Porém, para que a união deste casal gerasse, verdadeiramente, um novo conjunto familiar, um novo Um, era necessário, como pré-condição, que cada um dos cônjuges renunciasse suas filiações prévias. Isto significa suspender crenças, mudar lealdades e noções de pertencimento que, antes, os davam a convicção de serem membros das famílias de origem. Por isso, Moguillansky (2011, p.241) demonstra ser necessário para a edificação de um novo casal e uma nova família perder a segurança provinda dos referenciais identificadores outorgados pelas famílias anteriores, para, assim, dar lugar a uma nova linhagem. Cada casal, para se fundar, tem de produzir um novo Um, e dessa conjunção surgirá o substrato novo de um novo casal, de uma nova família. Todavia, tomando como referência o vínculo conjugal firmado entre as personagens Zana e Halim, não é esta a perspectiva que visualizamos. Zana, desde o início do relacionamento, não renuncia aos antigos vínculos firmados em sua filiação junto a Galib e impõe à Halim a manutenção da ordem, dos significados, das crenças e dos costumes pertencentes a sua família de origem. Logo, ela despreza o que de novo e diverso poderia provir da participação do esposo na constituição desta família, anulando, assim, a possibilidade de diferenciações de seu grupo de procedência, bem como a criação de uma 37 fonte de significações que fundariam o novo imaginário do casal e, consequentemente, uma legítima nova família. Essa resistência da matriarca a fazer distinções entre sua família de origem e a família edificada junto a Halim, negando o estabelecimento de um novo vínculo é manifestada na obra seja no episódio em que Zana exige como pré-requisito para o consentimento do pedido de casamento de Halim que esse aceite morar com ela na casa que era de Galib, dormir no quarto que era dela naquela casa (Dois Irmãos, 2006); ou quando negava a religião mulçumana do marido, impondo o catolicismo, já que “tinham de casar diante do altar de Nossa Senhora do Líbano, com a presença das maronitas e católicas de Manaus” (Dois Irmãos), manter na sala da casa um altar com imagens de santos e a bíblia católica, além de matricular os filhos em uma escola de filosofia cristã, como o colégio dos padres. Portanto, na visão de Moguillansky (2011), a peculiar forma com que o grupo familiar de “Dois Irmãos” foi construìdo, sem distinções e diferenciações da dinâmica da famìlia materna sucede, pois este conjunto se apóia e se institui em um Um que já vem dado desde a família materna, um Um que se supõe estabelecido desde as origens dos tempos, que faz parte de um mundo natural, o qual, então, não admite nenhuma relativização ou processamento por parte do novo casal (p. 241). Assim, desde seu princìpio, a famìlia de “Dois Irmãos” é conduzida e organizada apenas pelos desígnios da matriarca Zana que, à semelhança de um diretor de peça teatral, determina de acordo com suas próprias necessidades as regras, comportamentos e os papéis que cada um dos membros deve assumir dentro do grupo, instalando um completo regime de matriarcado, haja vista que é Zana quem resolve que Halim deve abrir um pequeno comércio, após a morte de Galib, quem decide ter três filhos e persuade o marido a mandar Yaqub e não Omar para o Líbano. A matriarca também interrompe o relacionamento de Omar com Pau Mulato, obrigando o filho a abandonar a mulher e voltar para casa ao lado dela e, ainda proíbe Rânia de viver com o homem que amava por achar que o namorado da filha era “um pé rapado” (Dois Irmãos, 2006, p.155), exigindo que Rânia se casasse com alguém de melhor poder aquisitivo, como um médico ou advogado. Sem jamais exercerem questionamentos sobre as decisões da matriarca, os membros desta família passam a aderir à encenação teatral proposta por Zana e acabam “todos 38 realmente negando a própria identidade, ou deixando de desenvolvê-la devotando-se mais ou menos exclusivamente aos papéis que lhes foram atribuídos” (RICHTER, 1996, p.42). Tais características assemelham a família da narrativa ao que Moguillansky, (2011) e Richter (1996) denominam, respectivamente, de “Famìlias Sagradas” ou “Famìlias Histéricas”, onde a ordem costuma ser regida apenas por um único olhar, o da mãe, soberana em sua função e porta-voz de um saber sagrado, estabelecido desde suas origens. A matriarca, então, configura a família a partir de um sistema de papéis proposto conforme suas exigências, simulando um teatro em que todos os outros membros se definem e se constituem em função dela própria, ou seja, da figura central dominante (Moguillansky, 2011; Richter, 1996) que, no caso da narrativa, é Zana, já que Halim sempre permaneceu obscurecido diante do poderio da esposa. De fato, esta é uma das principais características das famílias sagradas ou histéricas: os parceiros, frente à supremacia das matriarcas, ocupam um lugar secundário, sem autonomia ou voz próprias, permanecendo ausentes no que tange aos assuntos familiares, aceitando passivamente as sentenças da parceira. Assim o fez Halim, sem saber que o amor, a proteção e o afeto, vindos de Zana para sua direção, fazendo-o se sentir um invejável vencedor na conquista dessa mulher tão admirada e disputada, uma vez que “ninguém acreditava que um mascate pudesse atrair a filha do Galib” (Dois Irmãos, 2006, p.135), era nada mais do que uma forma de encontrar uma figura complementar que lhe permitisse compensar a falta de virilidade fálica da qual ela nunca se conformou (RICHTER, 1996; TOZATTO, 2004; PAIVA, 2009). Zana transforma Halim em um “comparsa garantido, um prìncipe consorte decorativo, submisso e devotado” (RICHTER, 1996, p.83), que ao admitir o domínio dela sobre a família, fazendo suas vontades, mimando-a, exagerando sua beleza, “tocando o alaúde8 só para ela” (Dois Irmãos, 2006, p.41) e nunca poupando um vintém nos presentes que dava a esposa (Dois Irmãos, 2006, p.43), ajudava Zana a manter-se segura de si. Ela, em contrapartida para fazê-lo permanecer nesta posição compensatória encantava e “se entregava a Halim com promessas de mulher apaixonada [...] pelas noites de amor em que não faltavam frases dóceis” (Dois Irmãos, 2006, p.49), agindo como um demônio na cama e na rede, local em que os dois se enrolavam e “onde os poderes de Zana se desmanchavam em melopéia de gozo e riso” (Dois Irmãos, 2006, p.41). Contudo, Halim não se configura como uma completa vítima da esposa, pois também a utiliza como objeto complementar tanto da ausência de amor e proteção materna, sentindo8 Conforme Ferreira (2009, p.83), alaúde corresponde a um “antigo instrumento de cordas dedilháveis, de origem oriental, com a caixa de ressonância sensivelmente abaulada, sem costilhas e em forma de meia pêra”. 39 se confortável em ser conduzido por Zana que lhe oferece a autoconfiança, autoridade e a expansividade por ele não elaboradas. Pensando nisso, Richter (1996) esclarece que o marido, na verdade, é completamente responsável pela própria sorte, uma vez que também possui uma parcela de responsabilidade nesta configuração matrimonial, onde predomina a autoridade feminina. Isso por que foi ele quem optou por não vencer sua autodesconfiança e fraqueza, apoiando-se, em contrapartida numa parceira compensatória capaz de lhe fornecer aquilo que ele não quis correr o risco de desenvolver em si mesmo. 1.2.1 O nascimento dos filhos e a construção do laço filial Atingidos pelo grande poder do matriarcado de Zana, os filhos compõem sua verdadeira troupe teatral, sendo treinados desde muito cedo a se encaixarem perfeitamente nos papéis criados pela mãe em sua encenação: Yaqub, o garoto ingênuo e passivo; Omar, o gigolô dependente de Zana e Rânia, a cópia da mãe. Todavia, como esses papéis surgiram? Quais as prováveis intenções de Zana ao criálos? Que implicações trouxeram esses papéis para a vida de cada um dos filhos? A fim de encontrarmos respostas para essas indagações, iremos buscar na narrativa o contexto do nascimento e desenvolvimento dos herdeiros de Zana e Halim. Porém, antes se faz necessário contemplarmos alguns conceitos da psicanálise que ajudarão a compreender a criação do vìnculo filial posto em “Dois Irmãos”. Observamos no tópico 1.1.1 deste trabalho que por meio do narcisismo primário, todo ser humano toma, inicialmente, a si mesmo como objeto de investimento afetivo antes de escolher objetos amorosos exteriores. Pois bem, ao buscar a segurança da continuidade de sua linhagem, se tornando desejante de um filho e a ele prestando atitudes afetuosas, através da manifestação de seu amor pelo herdeiro, o sujeito reviverá ativamente o seu próprio narcisismo primário (FREUD, 1996a, p.97). Isso ocorre, pois os pais irão fixar seus ideais nos filhos, fazendo desses herdeiros não só de uma carga genética, mas, especialmente, de seus desejos insatisfeitos, sonhos irrealizados e expectativas, devotando nesta geração sucessora a esperança de que ela concretize o que não foi realizado por eles (TOZATTO, 2004, PAIVA, 2009, MOGUILLANSKY, 2011; MAGALHÃES & FÉRES-CARNEIRO, 2005). Dessa forma, Freud (1996a), afirma que os pais atribuem um caráter onipotente ao filho, denominado por ele como “Vossa Majestade o Bebê”, uma vez que esta criança 40 terá mais divertimentos que seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram como supremas na vida. A doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão [...] ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação - „Sua Majestade o Bebê‟ [...]. A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram (p.98). Estes desejos parentais, revestidos de onipotência e fortes idealizações, irão construir a função e o espaço/posição que o filho irá ocupar dentro do grupo familiar muito antes de seu próprio nascimento, seja através da escolha de seu nome, das roupas, da escola, da alimentação, da profissão ou do espaço físico que ocupará na casa, (MAGALHÃES & FÉRES-CARNEIRO, 2005), de modo que ele passará a ser detentor de uma história e um projeto de vida que o antecede. Por isso, é possível afirmar que todo filho nasce com uma história pré-arranjada elaborada pelo desejo parental e pela imagem idealizada que os pais criam para o herdeiro (TOZATTO, 2004, PAIVA, 2009, MOGUILLANSKY, 2011). Estes aspectos compõem o contrato narcísico, cuja definição está centrada na questão de que todo ser humano está predeterminado por vínculos familiares, chegando ao mundo com a missão de garantir a continuidade do conjunto ao qual pertence (KAËS, 1998). Ao aceitar este contrato, firmado a partir de uma relação de obrigação e aceitação do desejo do outro (pais), o sujeito se encaixa nos modelos propostos para ele naquele grupo (KAËS,1998; PAIVA, 2009; MOGUILLANSKY, 2011), sendo compelido a “repetir os enunciados transmitidos pelo discurso familiar, garantindo assim a presença [...] dos legados” (TOZATTO, 2004, p.32). Partindo disso, retomemos o contexto do nascimento dos herdeiros das personagens Zana e Halim. A narrativa evidencia que a chegada dos filhos deste casal acontece somente após a morte de Galib, pai de Zana, uma vez que Halim não ambicionava a paternidade, depreciada por ele devido ao abandono paterno durante a infância. Ele pretendia desfrutar o resto de seus dias, sozinho, ao lado de Zana, revivendo na relação conjugal o amor materno que há muito lhe foi negado. Nota-se aqui indícios que nos levam a compreender a postura de Halim perante os filhos. Devido nunca tê-los desejado e por percebê-los como empecilhos à sua vida amorosa, Halim se configura no decorrer da ficção como um pai que se mantém omisso na decisão da vida dos filhos e ausente, na medida em que ansiava pelo momento que se veria longe da presença daquelas crianças que “mexiam no tabaco do narguilé, traziam calangos mortos para dentro de casa, enchiam as redes de urtigas e gafanhotos” (Dois Irmãos, 2006, p.51) e cujo “nascimento havia interferido em suas noites de amor” (Dois Irmãos, 2006, p.51) com Zana. 41 Halim não se esforçava para demonstrar carinho aos filhos, bem como em tornar a relação entre eles mais íntima e afetuosa. Nael nos relata que Halim o contou histórias de seu passado, jamais transmitidas aos filhos: A intimidade com os filhos, isso o Halim nunca teve. Uma parte de sua história, a valentia de uma vida, nada disso ele contou aos gêmeos. [...] Assim viveu, assim, o encontrei tantas vezes, pintando o bico do narguilé, pronto para revelar passagens de sua vida que nunca contaria aos filhos (Milton Hatoum, 2006, p.39). Na medida em que Halim se ausenta enquanto pai, nega os filhos muito antes do nascimento das crianças e se recusa a desfrutar de uma relação mais íntima e afetuosa com seus herdeiros, ele cumpre o legado da parentalidade negativa, inscrita em sua herança psíquica através da traumática história familiar vivida durante a infância, repetindo nos filhos a mesma negligência sofrida. Esta visão depreciativa da parentalidade será transmitida aos filhos, de modo que em nenhum deles brotará o interesse em assumir o papel parental, pois Rânia manteve-se reclusa “na solidão de solteirona para sempre” (Dois Irmãos, 2006, p.194) e, se partirmos da perspectiva de que Yaqub e Omar nunca desejaram ter Nael, o rapaz cuja dúvida sobre a paternidade pairava sobre um dos gêmeos, passando o resto de suas vidas sem se interessarem por confirmar tal incerteza, realmente “o que Halim desejou com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos” (Dois Irmãos, 2006, p.196). Contudo, mesmo não concordando com a concepção dos filhos, Halim cede às vontades de Zana, a qual deseja ardentemente ter no mínimo três herdeiros. Ela insistia junto ao marido por uma gravidez, utilizando-se dos galanteios, da sedução e da sensualidade que tanto encantavam Halim, a fim de convencê-lo e, dessa forma, alcançar seus objetivos: Não queria três filhos [...]. No entanto, teve de ceder ao silêncio da esposa e ao tom imperativo da frase posterior ao silêncio. Ela sabia insistir, sem estardalhaço: “Quer dizer que vamos passar a vida sozinhos neste casarão? Nós dois e essa indiazinha no quintal? Quanto egoìsmo, Halim!” “Um filho é um desmancha prazer”, dizia ele, sério. “Três, querido. Três filhos, nem mais nem menos”, ela insistia, manhosa, armando a rede no quarto, espalhando as almofadas no chão, como ele gostava. (Milton Hatoum, 2006, p.49). É importante destacar que a ânsia de Zana em ser mãe é alavancada, na narrativa, após o falecimento de seu pai, Galib, conforme percebemos na fala da matriarca a seguir: “Agora sou órfã de pai e mãe. Quero filhos, pelo menos três” (Dois Irmãos, 2006, p.42). Com a morte de Galib, Zana perde seu primeiro objeto de amor, bem como a figura fálica de maior 42 representatividade em sua vida, deixando um vazio do qual ela necessitava, urgentemente, preencher. Disso resulta a vontade incessante de Zana em ter filhos, os quais nascem predestinados a ocupar o espaço emocional deixado por Galib, reparando os sentimentos de carência e abandono da matriarca, demonstrados na narrativa através do medo de Zana em perder a atenção dos filhos, seja quando Omar ameaçava sair de casa para viver com a namorada Pau Mulato (Dois Irmãos, 2006, p.108) ou ainda quando a matriarca “tinha que aturar” as cunhantãs oferecidas que assediavam Yaqub com cartas repletas de versos de amor de poetas românticos (Dois Irmãos, 2006, p.24). Além disso, Zana ansiava ter com Halim três filhos, justamente o número considerado simbolicamente como “perfeito, a expressão da totalidade, da conclusão: nada lhe pode ser acrescentado. [...] Para os cristãos é, inclusive, a perfeição da Unidade divina: Deus é Um em três Pessoas” (CHEVALIER, 1990, p.899), fator que seria capaz de fornecer a matriarca o sentimento de completude ambicionado. Por isso, Zana jamais foi capaz de deixar que seus herdeiros vivessem livremente sem suas determinações e o domínio do poder matriarcal instalado por ela. Logo, com a gravidez tão sonhada de Zana vem o nascimento, primeiramente, dos gêmeos que “nasceram dois anos depois da chegada de Domingas9 à casa. Halim se assustou ao ver os dois dedos da parteira anunciando gêmeos. Nasceram em casa, e Omar uns poucos minutos depois” (Dois Irmãos, 2006, p.49-50). Por último, 4 anos depois, ocorre o nascimento de Rânia, a irmã detentora de uma admiração visceral pelos gêmeos (Dois Irmãos, 2006, p.73). Entretanto, a chegada das crianças, que já se mostrava problemática devido à divergência dos pais na concepção, torna-se mais conturbada com o nascimento de Yaqub e Omar, já que Zana e Halim não sabiam, até o momento do parto, que a primeira gravidez geraria dois filhos, (Halim se assustou ao ver os dois dedos da parteira anunciando gêmeos) e, por isso mesmo, provavelmente não haviam se preparado para esse aspecto e muito menos elaborado expectativas ou o espaço que este outro filho iria ocupar na família. Daí a grande dificuldade em lidar com a presença de duas crianças, de maneira tão repentina e inesperada, tendo que dividir cuidados, atenção e afeto, ou seja, algo problemático emergia diante desta situação. 9 A índia Domingas é a empregada da casa de Halim e Zana e mãe do narrador da obra, Nael. Sua figura será extremamente importante na vida do gêmeo Yaqub, haja vista que ela será a responsável pela devoção de cuidados, afetos e atenção a essa personagem durante toda a infância. 43 Decorridos alguns meses após o nascimento das crianças, o gêmeo Omar, denominado pela famìlia como o “caçula” por ter nascido alguns minutos depois de Yaqub, adoece de uma forte pneumonia. Esse evento mobiliza de Zana zelos, cuidados e mimos extremos para com Omar, dedicando-se integralmente a esse filho, em virtude da possível ameaça de morte da criança, reforçando cada vez mais o vínculo com Omar, bem como sua preferência e amor incondicional por este filho em detrimento dos outros. A respeito disso, encontramos a seguintes passagens na obra: O caçula. O que adoeceu muito nos primeiros meses de vida [...]. Cresceu cercado por um zelo excessivo, um mimo doentio da mãe, que via na compleição frágil do filho a morte iminente (Dois Irmãos, 2006, p.50). Zana se refestelava no convívio com o outro, levava-o para toda parte: passeios de bonde até a praça da Matriz, os bulevares, o Seringal Mirim, as chácaras da Vila Municipal, levava-o para ver os malabaristas do Gran Circo Mexicano, para brincar nos bailes infantis do Rio Negro Clube (Dois Irmãos, 2006, p.50). Assim, Zana transforma Omar no filho eleito, mais amado e sonhado desde a sua infância, no qual ela atribui a personificação do falo que jamais possuiu, já que este filho é uma parte dela mesma, de seu próprio corpo, porém de outro sexo; ele representa uma “imagem unificada do homem e da mulher, como traço do reencontro de dois mundos [...] o signo da reconciliação dos sexos e da sexualidade” (OLIVIER, 1986, p.155), capaz de fornecer a ela o momento de completude há muito ansiado. Por meio dele, a matriarca tem a oportunidade única de se ver sob a forma masculina, sensação esta que a fará não querer renunciar tão facilmente ao único homem que ela teve, verdadeiramente, como parte de si e para si. Por isso, Zana necessita manter Omar preso a ela, atraindo o filho “para si como um imenso ímã atrai limalhas” (Dois Irmãos, 2006, p.69), fazendo-o permanecer eternamente ao seu lado como um pequeno gigolô (RICHTER, 1996). Com o propósito de atingir esta meta, ela seduz Omar constantemente durante a narrativa, empreendendo no filho as sensações de prazer intensas que outrora foram experimentadas por ela junto ao seu pai, situação esta que pode ser vislumbrada na passagem abaixo: Às vezes, quando o filho se penteava diante do espelho da sala, a mãe se aproximava dele, cheirava-lhe o pescoço, e enquanto ele se arrepiava, vaidoso e possuído pelo amor materno, ela arrumava-lhe a gola da camisa; depois a mão de Zana descia, apertava o cinturão, e nesse momento dava um jeito de enfiar um maço de cédulas no bolso da calça (Dois Irmãos, 2006, p.98). 44 Por esse motivo, ela o cria com a ilusão de ser o filho único, “o único menino” (Dois Irmãos, 2006, p.12), postura apontada como negativa até mesmo por Halim “tu tratas o Omar como se ele fosse nosso único filho” (Dois Irmãos, 2006, p.22); supre todas as suas necessidade físicas, afetivas e financeiras, cobrindo-o de superproteção e de um amor incondicional que a fazia esconder, não punir e relevar seus maus comportamentos, conforme se observa nas passagens a seguir: [...] o Caçula foi mimado como nunca. Nem precisava pedir certas coisas: a mãe adivinhava seus desejos, dava-lhe tudo, desde que não se desgarrasse (Dois Irmãos, 2006, p.133). Ela considerou injusta a expulsão do filho [do colégio dos padres, por ele ter espancado o professor], mas Deus quis assim; afinal, até um ministro de Deus é vulnerável. “Esse Bolislau errou”, murmurava. “Meu filho só quis provar que é homem... que mal há nisso?” Ela não queria ver no homem o agressor (Dois Irmãos, 2006, p.29-30) Todavia, para atingir o controle total sobre Omar, impedindo o afastamento do filho de seu domínio, Zana continuamente evitava encorajar os impulsos de autonomia do filho, deixando o caçula sempre fraco, dependente e preso aos vínculos infantis firmados com a mãe desde o nascimento (RICHTER, 1996), preferindo ver Omar “se estragando com bebida e putas” (Dois Irmãos, 2006, p.126) a suportar tê-lo longe de sua casa, longe de si. Desse modo, a matriarca imperava onipotente sobre Omar, vendo “por todos os ângulos, de perto, e de longe, de frente e de viés, por cima e por baixo” (Dois Irmãos, 2006, p.95), interferindo em todas as facetas da vida desta personagem, especialmente no que tange aos seus relacionamentos amorosos, momentos em que Zana via o controle sobre o filho-falo ser ameaçado por outra figura feminina e a possibilidade de dividi-lo ou perdê-lo a invadia de ciúme, medo e indignação. Munida de forte aflição pela possível perda do filho, Zana adoecia, “andava tristonha, murmurava “Roubaram o meu Caçula”, sonhava pesadelos em noites maldormidas [...]. Não comia, só beliscava, bebericava [...], emitindo soluços de quieto desespero. Mãe enlutada (Dois Irmãos, 2006, p.110). Vejamos algumas passagens que denotam este desespero de Zana frente à iminência do abandono do filho: Depois da morte do Galib, o Omar foi crescendo na vida dela... Vivia dizendo que o Caçula ia morrer... Era uma desculpa, eu sabia que não ia acontecer nada com ele... Ficou louca, fez tudo por ele, é capaz de morrer com ele (Dois Irmãos, 2006, p.135-134) “Para onde vais? Que viagem é essa?”, gritou ela, puxando a manga do paletó e olhando para ele. “Já sei de tudo, Omar, essa viagem é um fingimento, uma 45 mentira. Sei direitinho quem é a mulher... ela vai te sugar, te enfeitiçar, tu vais voltar um trapo para casa... São todas iguais, ela vai te deixar louco... Um ingênuo, um meninão, isso é o que tu és” (Dois Irmãos, 2006, p.108) Zana interferiu, investiu contra ele armada do poder de mãe. Agora era a vez dela. Acuou o Caçula logo de cara, não ia admitir que o filho se embeiçasse por uma mulher qualquer. “Isso mesmo, uma qualquer! Uma [...] puta! Que ela passe o resto da vida mofando naquele barco imundo, mas não com o meu filho. Uma contrabandista! Falsária... Agiota [...] Eu não ia permitir... nunca! Ouviste bem? Nunca!” (Dois Irmãos, 2006, p.130). Conforme afirmava Halim, Zana “se agigantava quando sentia que ia perder o filho” (Dois Irmãos, 2006, p.110), então, ela imediatamente agia contra as namoradas de Omar e “todas foram vítimas de Zana” (Dois Irmãos, 2006, p.75), como “a peruana de Iquitos, miudinha e graciosa, que cantou a noite toda em espanhol, [...] até que Zana falou para todo mundo ouvir: „Filho, a tua mocinha está procurando emprego?‟” (Dois Irmãos, 2006, p.75); Dália, a mulher prateada a quem Zana subornou com dinheiro para que ficasse longe de seu filho, e ainda Pau Mulato a única mulher com quem Omar teve o ímpeto de iniciar um relacionamento conjugal, união esta que foi duramente perseguida pela matriarca, a ponto de obrigar o filho a abandonar a companheira e voltar para seus braços. De fato, no decorrer de toda a narrativa, as “assanhadas e oferecidas, não foram páreo para Zana, nem de longe ameaçavam o amor da mãe” (Dois Irmãos, 2006, p.75). Ela era a “mais forte, mais audaciosa, mais poderosa” (Dois Irmãos, 2006, p.74) mulher de quem Omar nunca conseguiu se desligar; era a “rainha-mãe jamais destronada” (Dois Irmãos, 2006, p.75), cujo poder coibia tanto Omar que, segundo Nael, “O filho de Halim: forte, viril com todas, [...] com a mãe se desmanchava em chamegos ou tremia como taquara verde. Vá entender o poder de uma mãe. Daquela Zana” (Dois Irmãos, 2006, p.104). Este poder da matriarca que intrigava Nael pode estar relacionado com o aspecto denominado a Grande-Mãe, símbolo feminino da maternidade, cujo caráter elementar agrega tanto as experiências vitais e boas com a figura materna, como ter nascido a partir da mãe, ser alimentado e protegido por ela, mas também as negativas, como sentir-se dominado e preso por esta mãe (HARK, 2000). Por isso, o símbolo da Grande-Mãe é frequentemente associado ao elemento Terra que por sua fertilidade e fecundidade é doador e protetor da vida, porém, na condição de continente, também retém e rouba a vida, já que é para ela que, na morte, todas as formas viventes retornam (CHEVALIER, 1990; NEUMANN, 2006). As características de Zana junto a Omar assemelham a matriarca ao lado negativo da Grande-Mãe, denominado de Mãe Terrível que, ao manifestar sua onipotência e buscar a dependência infantil do filho para com ela, o devora e o traga como uma vítima, perseguindo 46 e aprisionando seu herdeiro com laço e rede (NEUMANN, 2006). Assim, o filho “nada pode fazer ou desejar sem que seja a favor ou contra ela” (OLIVIER, 1986, p.158), adquirindo a responsabilidade de ser e fazer absolutamente tudo o que a mãe deseja. Dessa maneira ele não chega a nascer como sujeito, pois para desejar, escolher e viver qualquer coisa, antes será necessário que passe pela apreciação minuciosa da figura materna. Notamos na narrativa que Halim é uma das personagens que denota a escravização do filho perante Zana. Logo, não é por acaso que ele pronuncia as seguintes palavras sobre o filho: “Um fraco... deixou minha mulher sugar toda a força dele, a fibra... a coragem... sugou o coração, a alma... o desejo [...] O frouxo! Covarde” (Dois Irmãos, 2006, p.135-136). De acordo com Corcóvia e Radino (2008, p.48), essa situação de subordinação do filho em relação à mãe, a princípio, não gera sofrimento para nenhum dos dois, uma vez que se por um lado, o filho preenche o vazio da mãe, encarnando seu falo, por outro ele é pleno de desejo e não encontra rival nenhum em seu paraíso edípico. Ele vive, na verdade, a confortável situação de não ter que tomar decisões e de ter acesso irrestrito ao seu objeto de amor, a mãe. Ademais, ele personifica a onipotência, pois, nesta relação, ele é, de fato, considerado tudo de que a mãe precisa. É um estado de pretenso equilíbrio e satisfação. Contudo, a situação de tensão emerge quando o filho começa a ter consciência desta relação simbiótica/dependente/alienante com a mãe, passando a se insurgir contra o poderio materno, a fim de fugir de seu controle, vencê-la (CORCÓVIA & RADINO, 2008) e, finalmente, se tornar um sujeito por completo e não mais um mero objeto de satisfação da figura materna. Logo, no intuito de encontrar a liberdade, este filho se transforma num “sujeito agressivo com a mãe, e por extensão, com todos e todas. Opõe-se ao professor, briga com os companheiros [...]. Traz consigo a guerra; onde chega semeia pânico. Precisa se mostrar o mais forte, mais forte do que ELA e mais forte do que todo o mundo” (OLIVIER, 1986, p.54). Comportamentos estes que acompanharam a personagem Omar, já na vida adulta, em suas tão numerosas tentativas frustradas de se ver desprendido do domínio desta Mãe Terrível que representava Zana em sua vida. Não era à toa que sua agressividade para com o mundo e consigo mesmo se mostrava extremamente exacerbada, motivando-o a espancar o professor Bolislau da escola dos padres onde estudava; destruir seu corpo e sua mente com bebidas e drogas; deixar a família em estado de alerta e temor quando chegava em casa alcoolizado, uma vez que, a todo momento, suas condutas violentas e destrutivas poderiam desencadear um acidente de grandes proporções, como nos mostra Nael na passagem abaixo: 47 E havia também Omar. Aí tudo se embrulhava, foi um inferno até o fim. [...] Quando Omar esborniava, era um transtorno [...] se entrava meio lúcido, com força para mais algazarra, acordava as mulheres, e lá ia eu ajudar Zana e minha mãe [...], o Caçula se contorcia, arrotava, mandava todo mundo à merda, se exibia, era um touro, agarrava minha mãe, bolinava, dava-lhe um tapinha na bunda e eu pulava em cima dele, queria esganá-lo, ele me tacava um safanão, depois um coice, e aí a gritaria era geral, todo mundo se intrometia, Zana me despachava para o quarto, Domingas me socorria, chorava, me abraçava, Rânia enlaçava o irmão, “Pára com isso, pelo amor de Deus!”, mas ele persistia, queria acabar com a noite de todos, escornar Deus e o mundo, acordar os moradores do cortiço, da rua, do bairro (Dois Irmãos, 2006, p.65-66). ou ainda, em sua derradeira tentativa em prol da liberdade, enfrentar a proibição/reprovação da mãe, a fim de fugir da casa materna e de sua vigilância, escondendo-se de Zana por meses, sem deixar rastros, qual a um foragido da polícia. Vejamos o trecho da narrativa que elucida este episódio: Omar ouviu o ralho, suportou o olhar reprovador da mãe. Então, arrancou o paletó das mãos de Zana, apontou o dedo para ela: “A senhora tem o outro filho, que só dá gosto e tem bom posto. Agora é a minha vez de viver... Eu e a minha mulher, longe da senhora...” Ergueu a cabeça e gritou para o pai: “Longe do senhor também, longe dessa casa... de todos. Não venham atrás de mim, não adianta...”. Saiu gritando como um alucinado, sem se despedir de Rânia nem de Domingas. Era capaz de bater, de quebrar tudo se alguém o impedisse de partir (Dois Irmãos, 2006, p.109). Entretanto, este foi apenas mais um plano malogrado de Omar, já que Zana “se recompôs, repensou tudo. Quer dizer, desembaralhou as cartas até encontrar seu rei de espada” (Dois Irmãos, 2006, p.110) e conseguiu resgatar o filho, bem como manter sua relação de dependência com ele e, mesmo vendo Omar queimado e destruído por dentro, opaco e sem autoridade sobre sua própria vida, ela suspirava de felicidade porque ele estava ali e agora era só dela (Dois Irmãos, 2006, p.130). Tão distintos compromisso e devoção não eram visualizados no relacionamento de Zana com Yaqub e Rânia. Apesar de também viverem sobre as determinações da matriarca, o os dois, diferentemente de Omar, eram fortemente negligenciados por Zana, não só no que diz respeito ao afeto e à atenção, mas aos privilégios e até mesmo, na maior parte do tempo, eram privados da companhia da mãe. De acordo com Nael, isso acontecia, pois Zana elaborava uma hierarquia, no intuito de se reportar aos filhos: Yaqub sempre foi reconhecido como o filho “mais velho”, o “primogênito”. Porém, o outro gêmeo, Omar, aquele nasceu poucos minutos depois do irmão, nunca deixou de ser visto como o “Caçula”, mesmo depois do nascimento de Rânia, a verdadeira filha caçula, mudança esta que alterava não apenas a ordem dos nascimentos, mas, 48 principalmente, a maneira como cada um será visto perante a mãe. À respeito disso, o narrador nos fala ainda que logo após a chegada de Yaqub do Líbano, Zana tentou zelar por uma atenção equilibrada aos filhos. Rânia significava muito mais do que eu [Nael], porém menos do que os gêmeos. Por exemplo: eu dormia num quartinho construído no quintal, fora dos limites da casa. Rânia dormia num pequeno aposento, só que no andar superior. Os gêmeos dormiam em quartos semelhantes e contíguos, com a mesma mobília; recebiam a mesma mesada, as mesmas moedas, e ambos estudavam no colégio dos padres (Dois Irmãos, 2006, p.23-24). Todavia, com o tempo ela “punha os gêmeos numa gangorra e fazia loas ao Caçula, elogiando-o até a cegueira” (Dois Irmãos, 2006, p.95). Tendo em vista o desenrolar destes acontecimentos, notamos a grande discrepância existente no tratamento de Zana para com seus filhos, assim como na maneira pela qual foram criados. Na condição social de Caçula, além de ter todas suas necessidades básicas de sobrevivência atendidas, Omar ainda possuía a superproteção da mãe, bem como desfrutava dos mais renomados passeios e privilégios, uma vez que “os caçulas nunca enfrentam o choque do destronamento por outra criança e geralmente se tornam os „queridinhos da famìlia‟, [...] excessivamente mimados” (SCHULTZ & SCHULTZ, 2006, p.126). Yaqub e Rânia, no entanto, viviam a mercê da boa vontade de Domingas, a “cunhantã mirrada” que cuidava da casa, para lhe oferecer afeto e dedicação. Entretanto, eram seus filhos e, por isso, não passaram livremente sem participar do grande teatro da mãe, já que, para ambos, Zana também havia criado um repertório a ser seguido. No que tange à Rânia, a moça de olhos amendoados e graúdos que na infância era “uma menina alegre e apresentada” (Dois Irmãos, 2006, p.70), “revelando a cada ano os vestígios de um beleza” (Dois Irmãos, 2006, p.87) que impressionava, já que nas festas “era a mais alinhada da noite, quase mais bela que a mãe” (Dois Irmãos, 2006, p.70), fazendo com que recebesse “chuvas de confetes e serpentinas de rapazes imberbes e homens grisalhos” (Dois Irmãos, 2006, p.70), Zana, mesmo ao anular a filha de sua condição de caçula, relegando à Rânia um papel coadjuvante perante a família, se identifica com a moça devido aos traços de beleza compartilhados entre ambas. A tentativa da matriarca é transformar Rânia em uma personificação de sua própria imagem. Dessa maneira, ela encoraja a filha “a adotar todas as técnicas de sedução e fascìnio pessoal em que ela mesma é perita” (RICHTER, 1996, p.82), comprazendo-se com a capacidade da filha de ser admirada e encantar a todos, pois considera “o sucesso de sua „cópia‟ como seu próprio sucesso” (RICHTER, 1996, p.82). Com isso, Rânia se torna uma 49 moça encantadora e dissimulada que, tal qual a mãe, faz uso da sedução e de sua rara beleza para atrair inúmeros pretendentes nas festas organizadas por Zana, deliciando-se em, logo depois, aplicar sobre os mesmos seu golpe de descaso e desdém, pois “o que para a mãe era um golpe de sorte, para ela não passava de um prazer que durava três músicas ou quinze minutos” (Dois Irmãos, 2006, p.73). Podemos observar estes aspectos nas passagens a seguir: Eu sentia o cheiro de Rânia antes de escutar seus passos no corredor do andar de cima. Deixava-se admirar no alto da escada; depois, com movimentos meticulosos, descia, e aos poucos iam surgindo as pernas bem torneadas, os braços roliços e nus, o cabelo ondulado cobrindo- lhe os ombros, o decote do vestido que ampliava sua respiração [...]. Rânia causava arrepios no meu corpo quase adolescente (Dois Irmãos, 2006, p.72). Então a sonsa se acercava de mim, me dava um acocho e eu sentia os peitos dela apertando meu nariz. Sentia o cheiro de jasmim e passava o resto da noite estonteado pelo odor. Quando ela se afastava, alisava meu queixo como se eu tivesse uma barbicha e me beijava os olhos com os lábios cheios de saliva (Dois Irmãos, 2006, p.72). Eu invejava o pretendente da noite quando Rânia lhe estendia as mãos para receber o buquê. Depois ela se afastava com um olhar etéreo, enigmático, que encabulava o galanteador. Mas aceitava o convite para dançar, fingindo-se tímida e distante nos primeiros passos; aos poucos os braços morenos enlaçavam-lhe as costas, as mãos apertavam- lhe a cintura, e, de olhos fechados, ela apoiava o queixo no ombro direito do dançarino (Dois Irmãos, 2006, p. 72). Logo, Zana prepara Rânia para um “casamento esplêndido” (RICHTER, 1996, p.82), com um rapaz culto, de nobre estirpe que possa proporcionar à filha status social e à matriarca mais um vassalo. Por isso, Nael relata que “às escondidas, a mãe convidava algum pretendente para o jantar de aniversário, e fez a cada ano, porque vi muitos homens solteiros entrarem na casa com dois buquês, um para a mãe, outro para a filha (Dois Irmãos, 2006, p.71); nos encontros da filha com os pretendentes, “apagava as lâmpadas da sala e torcia para que da dança surgisse um namoro ou uma promessa de noivado” (Dois Irmãos, 2006, p. 72), além de cancelar a festa de 15 anos de Rânia, por não aceitar na sua casa o homem que a filha realmente amava, acreditando que ele não era o “rapagão” ideal para sua preciosa “cópia”, conforme vislumbramos no seguinte trecho: O aniversário dos quinze anos, a festança que não aconteceu. Ia ser no casarão dos Benemou [...]. Mas Zana cancelou a festa na última hora. “Ninguém entendeu por quê, só eu e minha mãe sabìamos o motivo”, disse Rânia. “Zana conhecia o meu namorado, o homem que eu amava... Eu queria viver com ele. Minha mãe implicou, se enfezou, dizia que a filha dela não ia conviver com um homem daquela laia... não ia permitir que ele fosse à minha festa. Me ameaçou, ia fazer um escândalo se me visse com ele... „Com tantos advogados e médicos interessados em ti, e escolhes um pé-rapado...‟ Meu pai ainda tentou me ajudar, fez 50 de tudo, implorou para que Zana cedesse, aceitasse, mas não adiantou. (Dois Irmãos, 2006, p.155-156). Todavia, diferentemente da postura de total subordinação de Omar à mãe, Rânia e até mesmo Yaqub, como veremos mais adiante, esforça-se com maior veemência para “nascer” enquanto sujeito e, ao se insurgir contra o poderio materno, demonstra à Zana que possui desejos próprios e que está disposta a transgredir as leis da matriarca em prol de seus próprios interesses. Estes aspectos se tornam mais evidentes na obra quando tomamos como referência a atitude de Rânia após a recusa da mãe em aceitar seu namorado; ela se “retraiu, emburrou a cara [...]; aderiu à reclusão, à solidão noturna do quarto fechado, [...] foi esse ser enclausurado [...]. Escondia muitas coisas: seus pensamentos, suas ideias, seu humor” (Dois Irmãos, 2006, p.70-71). Além disso, Rânia se recusava por completo a aceitar os pretendentes propostos pela mãe. Ano após ano Nael ouvia Zana dizer para a filha: “Perdeste um rapagão, querida. Estás jogando a sorte pela janela”. Rânia reagia com raiva: “A senhora sabe... Não era esse que eu queria. Nunca me senti atraìda por nenhum desses idiotas que passam por aqui” (Dois Irmãos, 2006, p.73). É possível vislumbrar tais características nas passagens abaixo: No entanto, não respondia às cartas de galanteio enviadas por médicos e advogados, cartas que Zana lia com voz terna e alguma esperança. Rânia rasgava todas elas jogava o papel no fogareiro. “É assim que tratas os teus pretendentes?”, dizia a mãe. “Fumaça! Todos viram cinza e fumaça”, ela respondia, sorrindo, mordendo os beiços. (Dois Irmãos, 2006, p.71) Rânia picava as cartas e despetalava as flores com naturalidade, e, quando o fazia diante de Zana, até mesmo com deleite. (Dois Irmãos, 2006, p.71). “Desprezei todos aqueles pretendentes... alguns até hoje aparecem aqui, fingem que querem comprar e acabam comprando as porcarias encalhadas... os restos... tudo o que eu não vendo durante o ano” (Dois Irmãos, 2006, p.155-156). No que diz respeito à Yaqub, “rapaz tão vistoso e alto quanto o outro filho, o Caçula” (Dois Irmãos, 2006, p.13), Zana sempre compartilhou com esse filho uma relação distante e artificializada, a qual foi proporcionada tanto pela ausência do fornecimento das necessidades básicas para a sobrevivência durante a infância, já que os cuidados de Yaqub foram entregues à Domingas; como pelo exílio do filho no Líbano, após o episódio gerador da cicatriz em seu rosto, causado por Omar. De fato, a ida de Yaqub para o Líbano, bem como a aquisição da cicatriz foram eventos primordiais na constituição do papel que Zana esperará que Yaqub assuma no interior 51 da famìlia de Dois Irmãos: o papel de rapaz ingênuo, vitimizado e de uma “fraqueza natural da expressões de sentimentos e opiniões” (RICHTER, 1996, p.82). Isso ocorre, pois a mãe passa a vê-lo como o filho fragilizado, passivo, o covarde que é incapaz de tomar qualquer iniciativa no intuito de se defender da violência empreendida pelo irmão; o gêmeo inseguro que foi mandado para longe da família, vivendo sozinho em uma terra distante e que volta com roupas surradas, “uma trouxa velha e fedorenta” (Dois Irmãos, 2006, p.19), agindo como um matuto, “um rude, um pastor” (Dois Irmãos, 2006, p.23), capaz de urinar em público, “comer como uma anta [...] cuspir no chão” (Dois Irmãos, 2006, p.12) e vomitar no barco durante a viagem, sem demonstrar malícia ou qualquer intenção maldosa, um “leso” (Dois Irmãos, 2006, p.102), como a própria mãe o chamava. De acordo com Richter (1996), tal perspectiva faz com que o filho, naturalmente, perca muito de sua naturalidade, espontaneidade, autoconfiança e autoestima, transformandose em uma pessoa cada vez mais cautelosa e reticente ao extremo, conforme podemos denotar nas características de Yaqub que se mostra uma personagem extremamente reservada, cautelosa, um rapaz “evasivo nas respostas, esquivo até nas miudezas do cotidiano” (Dois Irmãos, 2006, p.30). Todavia, Yaqub, com o tempo, começa a perceber a intenção da mãe em querer treinálo, a fim de que permaneça no papel do pequeno tolo, ingênuo e ridículo, uma figura esquecida e apagada diante das glórias de seu irmão. Além disso, nota que nenhum de seus parentes, verdadeiramente, se importa com o que ele é, mas somente com o efeito que ele é capaz de produzir (RICHTER, 2006). Porém, nem mesmo sua mãe imaginava que Yaqub sabia como ninguém se encasular no momento certo, mas “às vezes, ao sair do casulo, surpreendia” (Dois Irmãos, 2006, p.31). Assim, Yaqub inicia sua jornada na tentativa de escapar deste papel pré-elaborado pela mãe, mostrando que também poderia se tornar uma figura de destaque e admirado tanto quanto o irmão. Sua primeira tentativa em modificar a imagem de menino fragilizado propagada por Zana acontece quando ele resolve desfilar como espadachim no evento do exército, afirmando não só para a mãe, mas para toda a vizinhança que daquele momento em diante estava disposto a mostrar toda sua autoridade, racionalidade e determinação na busca por mudar o repertório criado para ele. Vejamos a passagem que ilustrar esse episódio: Zana foi a primeira a divisar uma figura de branco, ostentando uma lâmina reluzente. [...] O espadachim marchava à frente da banda e dos oito pelotões, sozinho, recebendo aplausos e assobios. Jogavam-lhe açucenas-brancas e flores do mato, que ele pisava sem pena, concentrado na cadência da marcha, sem dar bola aos beijos e gracejos que vinham da mulherada, sem nem mesmo piscar para Rânia. 52 Ele não olhou para ninguém: desfilou com um ar de filho único que não era. Yaqub, que pouco falava, deixou a aparência falar por ele. A aparência e a imprensa: no dia seguinte um jornal publicou a fotografia dele, com dois dedos de elogios (Dois Irmãos, 2006, p.32) A partir disso, Yaqub desenvolve um núcleo interior sólido, rígido, sendo inflexível nas metas que deseja alcançar, nas decisões tomadas para sua vida, bem como na concepção de que somente com o estudo e o trabalho árduo poderá atingir o sucesso e o reconhecimento da famìlia. Sua intenção é mostrar “o orgulho de alguém que quis provar a si mesmo e aos outros que um ser rude, um pastor, um ra'í, como o chamava a mãe, poderia vir a ser um engenheiro famoso, reverenciado” (Dois Irmãos, 2006, p.147). Podemos notar estes aspectos no episódio em que Yaqub resolve insurgir-se contra Zana, expondo categoricamente sua decisão de sair de Manaus e ir morar em São Paulo. Nas palavras de Nael, o inflexìvel Yaqub “enfrentou a resistência da mãe quando informou, no Natal de 1949, que ia embora de Manaus. Disse isso à queima roupa, como quem transforma em ato uma ideia ruminada até a exaustão” (Dois Irmãos, 2006, p.30). Não podemos deixar de citar ainda sua determinação em empreender a vingança contra o irmão, após o espancamento que o deixou hospitalizado, contratando advogados e coordenando uma perseguição desenfreada contra Omar, deixando, definitivamente, o papel de menino ingênuo e fragilizado que tanto a mãe havia articulado para ele em seu teatro. 1.2.1 O Complexo de Édipo das personagens Yaqub e Omar Tendo em vista o desenrolar das relações de Yaqub e Omar com as figuras parentais, elucidadas no tópico anterior, não poderíamos deixar de elucidar nesta análise a maneira como cada uma dessas personagens enfrentou o Complexo de Édipo, conceito psicanalítico crucial na compreensão da rivalidade fraterna entre os gêmeos, haja vista que neste processo os irmãos irão se defrontar com o primeiro elemento desencadeador da disputa entre ambos: o amor da figura materna. A partir da narrativa “Dois irmãos” e da dinâmica familiar retratada por Milton Hatoum, notamos alguns pontos que chegam à nossa reflexão no que tange aos vínculos incestuosos da relação edípica. Primeiramente, tomemos os irmãos Yaqub e Omar em planos individuais, cada qual mantendo uma relação com as figuras parentais de maneira particularizada durante o Complexo de Édipo. 53 No primeiro plano temos Yaqub – Zana – Halim, isto é, o triangulo edípico proposto por Freud. Aqui notamos pais cujos papéis foram, extremamente, ausentes perante o fenômeno edípico do filho: Zana nunca construiu um vínculo afetivo forte com Yaqub, mantendo-o sempre distante e, por isso mesmo, renegando ou não percebendo qualquer sentimento afetuoso do filho para com ela, quanto mais um incestuoso. Halim em virtude disso, não sente a necessidade de impor sua autoridade paterna frente a Yaqub, permanecendo ausente durante todo o processo. Diante disso, Yaqub não é interditado em seu percurso pelo Complexo de Édipo, tendo o caminho livre, durante a competição pela mãe com o pai, para dar vazão aos seus sentimentos sexuais incestuosos. Interdição esta tão esperada e clamada por ele a Halim, manifestada por meio da sua busca desenfreada pela polidez de comportamento, pela perfeição e por atitudes de decisão, amadurecimento e independência, conforme observamos respectivamente nas passagens abaixo: [...] rapaz altivo e circunspecto que não dava bola para ninguém [...] dias e noites no quarto sem dar um mergulho nos igarapés (Dois Irmãos, 2006, p.25). [...] varava noites estudando a gramática portuguesa; repetia mil vezes as palavras mal pronunciadas [...] Yaqub, em São Paulo, comunicou à família que havia ingressado na Escola politécnica („em brimeiro lugar, babai‟, escreveu ele, brincando) (Dois Irmãos, 2006, p.24-25). Por um momento a voz de Yaqub ressoou na casa, uma voz de homem, cheia de decisão, dizendo „Não, baba, não vou precisar de nada‟ [...]. „Nem um centavo‟, ele disse olhando para a mãe (Dois Irmãos, 2006, p.33). No segundo plano temos Omar – Zana – Halim e aqui os papéis paternos modificamse em alguns aspectos. Zana se deixa dominar pelos comportamentos dissimulados e pelos desejos sexuais de Omar para com ela, como encontramos nas passagens: “Zana não se despegava dele”, “Zana se refestelava no convívio com o outro” (Dois Irmãos, 2006, p.50). Suas atitudes de superproteção e possessão sobre o filho “caçula” anulam, completamente, o papel da figura paterna no processo do Complexo de Édipo, bem como durante toda a vida de Omar. Halim, inúmeras vezes, tentou interditar a manifestação dos comportamentos e desejos incestuosos do filho. Porém, como na sua relação com Zana ele constantemente acatava as decisões e vontades da esposa, a imposição de sua autoridade perante Omar sempre foi proibida por ela, impedindo que Halim desempenhasse o papel de pai de forma fidedigna, conforme podemos denotar no trecho a seguir: Como penava com o Caçula o pobre Halim”, disse Domingas, lembrando-se da época em que ele tentava apaziguar o filho. Quando se enfezava, corria pela casa 54 atrás de Omar, que trepava na jaqueira e ameaçava jogar uma jaca na cabeça do pai. Zana ria: “Pareces mais infantil que o Omar” (Dois Irmãos, 2006, p.52). A disputa de Omar com o pai e rival primeiro, Halim, pela posse da figura materna eram verdadeiros confrontos, intensos e conturbados, pois o pai também via no caçula um concorrente à sua altura, haja vista que a devoção de Zana para com Omar impedia que ela se dedicasse integralmente ao marido, como acontecia antes do nascimento das crianças. As passagens abaixo ilustram essas questões: Omar era mais ousado: entrava no quarto dos pais durante a sesta e dava cambalhotas na cama até expulsar Halim. Só aquietava quando Zana saía do quarto para brincar com ele no quintal. Os dois sentavam à sombra da seringueira, enquanto Halim, irritado, tinha vontade de trancar o Caçula no galinheiro (Dois Irmãos, 2006, p.52). [Halim] saltou da cama e viu o Caçula aninhado no corpo de Zana. Expulsouo do quarto aos gritos, acordando todo mundo, acusando Omar de incendiário, enquanto Zana repetia: “Foi um pesadelo, nosso filho nunca faria isso”. Discutiram no meio da noite, até que ele saiu de casa batendo a porta com fúria. [...] Dormiu duas noites no depósito da loja, não suportava a intromissão no leito conjugal (Dois Irmãos, 2006, p.52). Podemos encontrar semelhanças das características presentes na relação de Omar – Zana – Halim com a narrativa mitológica dos deuses gregos Cronos – Gaia – Uranos, os quais também compõem um triângulo edípico. Gonçalves & Vieira (2010) e Corcóvia e Radino (2008) nos relatam que Gaia, a deusa mãe-terra e uma das primeiras divindades femininas existentes, emerge do Caos e gera espontaneamente Uranos, o deus Céu, seu filho e também consorte, já que a ele Gaia se une maritalmente. Todavia, Uranos era temerário de sua prole e por isso, visitava Gaia na intimidade constantemente, fecundando-a, mas não permitia que os filhos oriundos dessa cópula vissem a luz. Dessa forma, ele os encerrava nas entranhas da Terra tão logo nasciam. Oprimida pelo cônjuge e desejosa de assegurar a continuidade de sua existência, Gaia planeja um atentado contra Uranos: ela cria uma foice afiada a partir do ferro resistente criado em suas entranhas e incentiva Cronos, o filho mais novo do casal, a subjugar o pai. Cronos, então, corta os órgãos genitais do pai e o destrona, tomando o poder. Assim, Cronos age como agente da vontade de Gaia, atuando como carrasco de Uranos, uma vez que destitui o pai de sua soberania e toma para si o trono paterno, com a ajuda da mãe. À semelhança de Gaia, Zana também era uma mãe desejosa de perpetuar sua existência através dos filhos (“Quero filhos, pelo menos três”; Dois Irmãos, 2006, p.42), ao passo que seu parceiro, Halim, assim como Uranos, era possuído por uma aversão à 55 paternidade (Não queria três filhos; aliás, se dependesse da vontade dele, não teria nenhum; Dois Irmãos, 2006, p.49). Omar, o herdeiro do casal, aquele que não era o filho mais novo, mais sempre visto e nomeado pela família como tal, pode ser comparado à Cronos por representar esse elemento fálico de Zana que a complementa, age conforme suas vontades e, ao mesmo tempo, é colocado pela mãe no lugar do pai, incentivado a tomar o poder do patriarca, o qual, por não querer filhos, impede Zana de ter o usufruto pleno de seu rebento. Logo, durante a narrativa, notamos a postura autoritária de Omar perante a família; impondo ordens; fazendo exigências; firmando sua soberania e domínio sobre a casa e a mãe; destronando e castrando o pai ao desacatar suas determinações; exercendo um poder que caberia à Halim desempenhar, além de atuar inúmeras vezes como o amante cativo da mãe, características estas que podemos observar nas passagens dispostas a seguir: O caçula, insolente, exigia tudo do bom e do melhor. Catavam as espinhas do peixe para ele comer sem chateação; o pudim de tapioca com coco ralado tinha que ser bem assado; comida mal passada ele mastigava e ia cuspir no galinheiro (Dois Irmãos, 2006, p.96). Eu não podia comer à mesa com o Caçula. Ele queria a mesa só para ele, alocava e jantava quando tinha vontade. Um dia, eu estava almoçando quando ele se aproximou e deu a ordem: que eu saísse, fosse comer na cozinha (Dois Irmãos, 2006, p.65). Omar se dirigiu à mãe, abriu os braços para ela, [...] e ela o recebeu com uma efusão que parecia contrariar a homenagem a Yaqub. Ficaram juntos, os braços dela enroscados no pescoço do Caçula, ambos entregues a uma cumplicidade que provocou ciúme em Yaqub e inquietação em Halim (Dois Irmãos, 2006, p.19). No aniversário de Zana, os vasos da sala amanheciam com flores e bilhetinhos amorosos do Caçula (Dois Irmãos, 2006, p.69). Perto do alpendre, o cheiro das açucenas-brancas se misturava como do filho caçula [...] e ali no alpendre lembrava a rede vermelha do Caçula, o cheiro dele, o corpo que ela mesma despia na rede onde ele terminava suas noitadas (Dois Irmãos, 2006, p.09). Mães-Gaia como Zana, de acordo com Gonçalves & Vieira Neto (2010), induzem seus filhos a uma parricídio simbólico, do qual são conscientes e cúmplices. Estas mães não são vítimas de uma tragédia, como aconteceu com Jocasta, mãe de Édipo da tragédia “Édipo-Rei, mas sim criadoras fundamentais e potencias dela. A Mãe-Gaia mata o pai pela mão de seu filho, uma vez que este herdeiro é seduzido deliberadamente por ela e colocado no almejado lugar do pai, mas apenas com a intenção de ser possuído e controlado pelo poder que a mãe exerce sobre ele. Diante do conteúdo supracitado, trazendo as personagens Yaqub e Omar para um mesmo plano, enquanto passam pelo Complexo de Édipo. Dessa forma, verificamos que este 56 processo revela-se muito mais difícil e complicado, pois ambos, além de disputarem pela figura materna com o pai, ainda necessitaram disputar entre si, o amor, o carinho e a atenção de Zana. Isto significa dizer que, no intricado processo edípico, cada um dos gêmeos possuía um rival primário, Halim, e um rival secundário, o irmão. Omar, o filho “eleito” e querido da mãe, o “peludinho” como ela mesma o chamava carinhosamente, devido ao fato de possuir toda a dedicação, e afeto da mãe, a qual provia suas necessidades básicas e lhe dava toda proteção, não sentia a ansiedade da perda da figura materna, tonando-se uma criança confiante, pronta para enfrentar adversidades e se entregar em aventuras que iam desde escalar árvores a se envolver em violentas brigas. Orgulhoso de si, Omar era valente, corajoso e, a partir dessas características começava a se sentir superior ao irmão. Observemos a passagem que ilustra tal questão: Quando chovia, os dois trepavam na seringueira do quintal da casa, e o Caçula trepava mais alto, se arriscava, mangava do irmão, que se equilibrava no meio da árvore, escondido na folhagem, agarrado ao galho mais grosso, tremendo de medo, tremendo perder o equilíbrio. [...] O Caçula, só de calção, enlameado, se atirava no igarapé perto do presídio. Eles viam as mãos e a silhueta dos detentos, e ele ouvia o irmão xingar e vaiar, sem saber quem eram os insultados (Dois Irmãos, 2006, p.14). Yaqub, tratado com indolência, não teve uma base consistente proteção e amor de Zana, a qual não correspondia de forma positiva aos sinais de afeto do filho, uma vez que este foi entregue, desde os 3 meses de idade aos cuidados de outra pessoa. Dessa maneira, Yaqub passa a demonstrar características de uma criança insegura, desconfiada, que não se sente capaz de sair de sua zona de conforto, não conseguindo, consequentemente, arriscar-se em desafios e aventuras como o irmão, estando sempre à mercê de alguém (“ esperava o irmão, sempre o esperava” Dois Irmãos, p.2006, p.14) ou sentindo que nunca recebeu os privilégios suficientes. Desse sentimento de inferioridade e impotência perante Omar, tanto no que diz respeito à forte preferência da mãe pelo irmão, como à sua incapacidade de realizar os mesmos feitos do irmão, um leve sentimento de ciúme começa a surgir na mente do filho “mais velho”, ainda na infância, já nos dando sinais de que a rivalidade poderia ser um futuro previsível na relação entre essas personagens. Vislumbremos a seguinte passagem da obra que retrata a questão do ciúme de Yaqub em relação ao irmão: Não. Fôlego ele não tinha para acompanhar o irmão. Nem coragem. Sentia raiva, de si próprio e do outro, quando via o braço do Caçula no pescoço de um curumim do cortiço que havia nos fundos da casa. Sentia raiva de sua impotência e 57 tremia de medo, acovardado, ao ver o Caçula desafiar três moleques parrudos, agüentar o cerco e os socos deles e revidar com fúria e palavrões. Yaqub se escondia, mas não deixava de admirar a coragem de Omar. Queria brigar como ele, sentir o rosto inchado, o gosto de sangue na boca, a ardência no abio estriado, na testa e na cabeça cheia de calombos; queria correr descalço, sem medo de queimar os pés nas ruas de macadame aquecidas pelo sol forte da tarde (Dois Irmãos, 2006, p.14). Anos depois, com o seu retorno do Líbano e após o evento que lhe deu a tão famosa cicatriz no rosto, os sentimentos de inferioridade e de ciúme começam a dar espaço para a revolta em Yaqub, o qual não se conformava em ter sido praticamente “exilado” no Lìbano, enquanto o irmão, causador de todos os problemas e discórdias, conseguiu permanecer no convívio com a família e ainda tinha total devoção da mãe, conforme notamos nas passagens abaixo: Não entendia por que Zana não ralhava com o Caçula, e não entendia por que ele, e não o irmão, viajou para o Líbano dois meses depois. [...] Sim, por que ele e não o Caçula, pergunta a si mesmo (Dois Irmãos, p.2006, p.16). “Não morei no Lìbano, seu Talib”. A voz começou mansa e monótona, mas prometia subir o tom. E subiu tanto que as palavras seguintes assustaram: “Me mandaram para uma aldeia no sul, e o tempo que passei lá, esqueci” (Dois Irmãos, p.2006, p.88). A importância do vínculo materno para o desenvolvimento psicossocial dos seres humanos, bem como para a formação da personalidade dos mesmos foi elucidada por Brum e Schermann (2004), as quais expõem que quando as mães (ou o pai e a mãe) cumprem, efetivamente, seus papéis de cuidadoras, isto é, fornecem proteção, afeto, nutrição e atenção aos sinais do bebê, elas criam um ambiente altamente favorável para a criança perceber a figura materna e o mundo como elementos de segurança, confiáveis e responsivos às suas necessidades individuais. Dessa maneira, a partir do momento em que tem asseguradas suas necessidades físicas e emocionais, a criança começará a desenvolver sentimentos a autoconfiança que lhe dará a possibilidade de usar sua curiosidade, a partir da base segura formada com seu cuidador (mãe), para desbravar e experimentar o mundo sem medos ou receios. Contudo, como observamos anteriormente, Zana tratava cada um de seus filhos, particularmente Yaqub e Omar, de maneira discrepante, gerando entre seus herdeiros uma disputa, à princípio silenciosa e tímida, pelo amor e atenção dessa mãe: um deles sendo o detentor da figura materna e de todos os benefícios (amor, proteção, nutrição, segurança) 58 ofertados por ela, enquanto o outro, desejoso de ser também o “escolhido” e receber da mãe o que, efetivamente, não lhe é concedido. Tais aspectos configuram-se como relevantes para esta análise, haja vista que na concepção psicanalista do relacionamento social, as interações entre os seres humanos são fortemente influenciadas pelas primeiras relações infantis com os membros da família, sendo determinantes para a o desenvolvimento das relações futuras. Fadiman (1986, p.24-25) esclarece que os modelos básicos de criança-mãe, criança-pai e criança-irmãos são protótipos a partir dos quais os encontros posteriores são inconscientemente avaliados. Os relacionamentos posteriores são, até certo grau, recapitulações da dinâmica, das tensões e das gratificações que ocorreram na família original. Nossas escolhas na vida – pessoas amadas, amigos, chefes, mesmo nossos amigos – derivam dos laços criados entre pais e filhos. Isso nos permite inferir que a conturbada convivência em família na qual Yaqub e Omar estavam dispostos, especialmente, no que diz respeito ao relacionamento com as figuras parentais, acarretou consequências desastrosas à vida dessas personagens, culminando com o rompimento do frágil vínculo afetivo entre eles e à brutal rivalidade entre os mesmos, a qual acompanhou a falência e a destruição da família. De relações iniciais (pais-filhos) marcadas por dubiedades (proteção X negligência; devoção X rejeição; preferência X esquecimento), os irmãos partem para caminhos opostos durante a vida adulta, em um futuro de infelicidades pessoais, permanecendo como eternos rivais, sem qualquer possibilidade de reconciliação. 59 2. O PAR FRATERNAL DE “DOIS IRMÃOS”: A DINÂMICA DA SEMELHANÇA NA DIFERENÇA Ah, se fosse assim tão simples! Se houvesse pessoas más em um lugar, insidiosamente cometendo más ações, e se nos bastasse separá-las do resto de nós e destruí-las. Mas a linha que divide o bem do mal atravessa o coração de todo ser humano. E quem se disporia a destruir uma parte do seu próprio coração? Alexander Solzhenitsyn 10 Ao trilhar caminhos na tentativa de compreender a rivalidade fraterna que permeia a narrativa “Dois Irmãos”, é inevitável conhecer com profundidade as peculiaridades e as características constituintes dos protagonistas desse intenso drama em família: os irmãos Yaqub e Omar. Para que isso ocorra, ao contrário do capítulo anterior, agora será necessário sair do contexto das relações hierarquizadas (pais-filhos) presentes no microcosmo da família desenhada por Milton Hatoum, no intuito de adentrar nas relações horizontais simétricas, ou seja, no universo fraternal dos gêmeos de Zana e Halim. Tal perspectiva se torna relevante uma vez que, segundo Britto (2002), Goldsmid (2009) e Barcellos (2009), a relação fraterna ou a “Fratria”11, a qual se inicia com a presença do irmão, além de se constituir como um arquétipo, sendo recorrente na história da humanidade desde tempos primordiais, configura-se como a primeira experiência do homem na constituição de sua individualidade, na diferenciação do Outro, isto é, na assimilação da alteridade12, além de possibilitar a instrumentalização e a fundação emocional para outros relacionamentos horizontais em sociedade. Assim, o irmão, esse sujeito cuja convivência não é escolhida, mas sim imposta pelos pais, nos compele ao compartilhamento da carga genética, da família, da história de vida, das lembranças e dos afetos, o que torna possível na fratria o relacionamento entre semelhantes. Todavia, esse mesmo irmão é diferente de mim; possui anseios, expectativas, desejos e características dessemelhantes às minhas. E, mesmo não sendo uma escolha deliberativa, essa 10 Disponível em: ZWEING, Connie; ABRAMS, Jeremiah. Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 2004. 11 Subdivisão de tribo ou outro grupamento, constituída por indivíduos ou grupos ligados a um genitor ou antepassado comum (FERREIRA, 2009, p.935) 12 Caráter ou qualidade do que é outro (FERREIRA, 2009, p.105) 60 relação ajuda na estruturação de nossas personalidades, já que é por meio do reconhecimento das diferenças e semelhanças que o homem percebe sua singularidade (GOLDSMID, 2009). Logo, Barcellos (2009, p.16) expõe que: Esse Outro-Irmão [...] – o semelhante que não é igual, mas é um par [...] – é um outro que, precisamente, divide comigo a mesma origem. Aquelas pessoas ou aquilo [...] que paternalizam e maternalizam esse outro são os mesmos que paternalizam e maternalizam a mim. E, no entanto, ele é diferente. Essa dinâmica da semelhança na diferença também atinge irmãos gêmeos, como o par fraternal de “Dois Irmãos” e, diferentemente do julgamento de Zana sobre os filhos ao afirmar que ambos: “ são iguais, têm o mesmo corpo e o mesmo coração” (Dois Irmãos, 2006, p.19) não se pode deixar de notar que, apesar da semelhança física, Yaqub e Omar possuem personalidades extremamente diferentes. Yaqub, o filho que ainda na adolescência foi privado do convívio familiar ao ser enviado para o Líbano, depois de ter sido golpeado no rosto por seu irmão, é o gêmeo decidido, responsável, sério, que sempre se move em função da razão, obtendo grande sucesso financeiro e profissional. Já Omar, “mimado” e superprotegido pela mãe, tratado como filho único desde a ida de Yaqub para o Líbano, é o gêmeo que vive em um ócio macunaímico (PERRONEMOISÉS, 2007), deixando-se entregue aos ímpetos do desejo, da boemia e da busca pelo prazer sem medidas, demonstrando um comportamento explosivo, agressivo, petulante e irresponsável. Entretanto, conforme o conflito entre os irmãos se acirra, vislumbra-se um Yaqub perverso que calcula friamente a vingança contra Omar, enquanto esse, após a morte da mãe e com a perda da liberdade devido à prisão, aparece cada vez mais fragilizado e menos ofensivo. Isso faz com que a aparente dualidade ou polarização entre os gêmeos se dilua a ponto de não podermos reconhecer essas personagens somente pelo prisma de aspectos maniqueístas, ou seja, bom e mau, negativo e positivo. Percebe-se, então, que os gêmeos possuem características que os diferenciam enquanto sujeitos singulares, mas também os unem como elementos que completam partes faltantes de suas personalidades, confirmando as palavras de Alexander Solzhenitsyn citadas no início deste capítulo, a respeito da inexistência de pessoas completamente más ou boas, bem como sobre a tênue linha que divide o bem e o mal no interior de todo o ser humano, sendo impossível desfazer-se de qualquer uma delas. 61 Diante do supracitado, este capítulo traçará um perfil das personagens Yaqub e Omar, evidenciando por meio da psicanálise que as possíveis diferenças entre os irmãos, além de terem desempenhado um papel decisivo no desenvolvimento da rivalidade fraterna, podem simbolizar também fortes traços de semelhança entre ambos. 2.1 A DANÇA DOS CONTRÁRIOS: A BUSCA PELO PRAZER E A SUBORDINAÇÃO À REALIDADE “Contrário”. Palavra que Ferreira (2009, p.540) define como tudo aquilo “que representa oposição ou diferença [...] Tudo que é oposto, adversário, inimigo”. Enquanto elemento norteador desta discussão, o esclarecimento do significado da palavra contrário não aparece aqui apenas com uma função didática. Sua importância se dá na medida em que é notada a recorrência do termo na composição de personagens que habitam o universo das narrativas de Milton Hatoum. Transitando entre emoção e razão, algumas das personagens de Hatoum mostram as contradições e angústias do homem moderno, dividido entre a necessidade de seguir à risca às exigências da cultura em favor da civilização13 ou buscar a satisfação de seus desejos e prazeres. Para exemplificar esta questão, trazemos à tona as personagens do livro Cinzas do Norte (2010), onde encontramos os pares de opostos Lavo (Olavo), o jovem de poucas iniciativas e ambições, preso às normas e regras sociais, e Mundo (Raimundo), rapaz de espírito revolucionário, insubordinado e visionário. Visualizamos Jano (Trajano), o empreendedor da juta, fissurado pela disciplina e pelo sucesso do mercado capitalista, e Ran (Ranulfo) que, alheio ao trabalho, desfruta do ócio e dos prazeres do sexo. Vemos também Ramira, a costureira totalmente entregue ao trabalho, incansável em sua busca pela ascensão financeira, e Alícia, a mulher de posses que se perde no vício do álcool e do jogo. Esta mesma “dança dos contrários” também pode ser observada em Yaqub e Omar, protagonistas no palco da narrativa “Dois Irmãos” (2000), os quais contracenam episódios de intenso conflito que tem como marca uma rivalidade irredutível e indissolúvel. Em meio a 13 O conceito de civilização que será utilizado no percurso deste trabalho é aquele proposto por Sigmund Freud (1996a, p.15-16) e corresponde por um lado a “ todo conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros”. 62 essa nebulosa relação fraterna, deparamos com um fato que torna a trama ainda mais complexa e intrigante: Yaqub e Omar representam a figura de irmãos gêmeos. O par gemelar sempre foi tema de fascínio e interesse recorrente em todas as mitologias, tradições simbólicas e na literatura no decorrer da história. Isso ocorre, pois os gêmeos demarcam a “ imagem da dualidade na semelhança, configuram o „estado de ambivalência do universo mìtico‟, um „sìmbolo da própria contingência de cada ser humano dividido em si mesmo‟” (BARCELLOS, 2009, p.28). Nesse sentido, por serem gêmeos, compartilharem o mesmo ventre materno, bem como o nascimento, Yaqub e Omar formam a imagem do “duplo” literário, cuja surpreendente semelhança física instala o paradoxo da paridade-diferença; traduz a própria angústia do ser humano pelo temor da duplicação/repetição e causa uma tensão que envolve reações emocionais extremas, como a atração e a repulsa (BRAVO, 2005; PERROT, 2005). Diante desse inusitado par fraternal, o desdobramento da imagem tensiona a visão da subjetividade de cada um dos indivíduos envolvidos. Tal perspectiva é denotada na obra pela presença da percepção confusa e amalgamada dos próprios familiares dos gêmeos, os quais se intrigam com os traços de semelhança entre ambos: Tinham o mesmo rosto anguloso, os mesmos olhos castanhos e graúdos, o mesmo cabelo ondulado e preto, a mesmíssima altura. Yaqub dava um suspiro depois do riso, igualzinho ao outro (Dois Irmãos, 2006, p.13). Rânia hipnotizava-se com a presença do irmão: uma réplica quase perfeita do outro, sem ser o outro (Dois Irmãos, 2006, p.17). A mesma voz, a mesma inflexão. Na minha mente, a imagem de Yaqub era desenhada pelo corpo e pela voz de Omar (Dois Irmãos, 2006, p.46). Todavia, “idênticos na aparência, os gêmeos não o são do ponto de vista intelectual e afetivo” (PERROT, 2005, p.391), já que foram desenhados pelo autor contendo personalidades divergentes, a ponto de obscurecerem a idêntica aparência física que compartilham. Isto se dá, segundo Guerra (2007, p.198-199), devido à representação simbólica de gêmeos introduzir no imaginário popular [...] o efeito do desdobramento e da completude, portanto o duelo em tais condições nos obriga à perscrutação obsessiva das diferenças entre seres que exprimem a unicidade. Nasce daí o mal-estar causado pelas narrativas que revelam pares de indivíduos autônomos no momento em que a perspectiva almejada é a de ver o idêntico. 63 Já que o idêntico só se concretiza na obra através do plano físico, é no nível da personalidade, ou seja, em relação aos aspectos internos e externos peculiares das personagens, os quais influenciam seus comportamentos em determinadas situações (SCHULTZ & SCHULTZ 2006), que a diferença emerge, fazendo da imagem dos gêmeos uma representação contrastiva, onde se pode observar razão/trabalho/civilização em oposição à natureza instintiva/agressividade/ócio. Para refletir sobre essa representação ambivalente dos irmãos busca-se ancoragem na concepção freudiana dos princípios que regem o funcionamento mental, denominados princípio do prazer e princípio da realidade, os quais, por serem de natureza antagônica, são capazes de auxiliar na tradução das diferenças entre os gêmeos e, a partir de suas singularidades, entender o que os tornam únicos, mesmo diante da semelhança do par gemelar na narrativa. Ao se debruçar sobre o estudo da personalidade, Freud (1996h) inferiu que o propósito dos homens é buscar a felicidade plena. O que significa dizer que o homem, em sua trajetória de vida, almeja uma constante ausência de desprazer, já que a presença deste implica no forte aumento da excitação, do desconforto e de sentimentos desagradáveis. Em virtude disto, o aparelho mental se esforça para manter a quantidade de excitação mais baixa possível, passando a ser regido por uma dominância do princípio do prazer que se define como uma instância psíquica cuja função é realizar a satisfação imediata dos desejos inconscientes e dos instintos14, ou seja, dessa “ forma de energia fisiológica transformadora que liga as necessidades do corpo com os desejos da mente” (SCHULTZ & SCHULTZ, 2006, p.47), lutando unicamente para obter prazer, evitando qualquer operação que dê origem a sensações de desprazer, desconforto e dor (FREUD, 1996h, 1996i; MARCUSE, 1975; LAPLANCHE, 2001). O princípio do prazer é a instância mais primitiva do aparelho mental, exercendo predominância sobre o homem em tempos mais arcaicos e remotos de sua evolução. Logo, regido por esse princípio o homem adquire uma aspecto animalesco, movendo-se em função da gratificação irrestrita e integral de suas necessidades instintivas. Este princípio é a instância operacional do Id, uma das três estruturas da personalidade (Id, Ego e Superego), na concepção de Freud. O id é a morada dos instintos, das paixões e do 14 Por ser originada da palavra alemã “Triebe”, há divergências entre alguns autores quanto à tradução deste vocábulo que pode ser reconhecido tanto por instinto como por pulsão. Porém, optou-se por adotar neste trabalho o uso do termo “instinto” quando a intenção for se referir à palavra Triebe, ou seja, “forças motivadoras que impulsionam o comportamento e determinam seu rumo [...] representações mentais e estímulos internos, como a fome, que levam uma pessoa a tomar determinadas atitudes (SCHULTZ & SCHULTZ, 2006, p.47). 64 inconsciente. Ele não reconhece os princípios e as leis que proporcionam ao homem a consciência e a vida em sociedade, ignorando valores e regras sociais, bem como a moral (FREUD, 1996f; MARCUSE, 1975). Portanto, o id só age em função da gratificação instantânea, “ nos conduz ao que queremos quando queremos, sem levar em consideração o que os outros querem. É uma estrutura egoísta que busca o prazer, é [...] amoral, insistente e impulsiva” (SCHULTZ & SCHULTZ, 2006, p.50) em detrimento da autopreservação do indivíduo. Todavia, Freud (1996g, 1996h, 1996i) salientava que a gratificação indiscriminada dos instintos é incompatível com as condições impostas pelo mundo exterior através da cultura, dos costumes, do trabalho e das relações em sociedade. Ele salientava que: Se se imaginarem suspensas as suas proibições - se, então, se pudesse tomar a mulher que se quisesse como objeto sexual; se fosse possível matar sem hesitação o rival ao amor dela ou qualquer pessoa que se colocasse no caminho, e se, também, se pudesse levar consigo qualquer dos pertences de outro homem sem pedir licença-, quão esplêndida, que sucessão de satisfações seria a vida! É verdade que logo nos deparamos com a primeira dificuldade: todos os outros têm exatamente os mesmos desejos que eu, e não me tratarão com mais consideração do que eu os trato (FREUD, 1996g, p.24). Por isso, alheio às imposições culturais o homem nada mais é do que um feixe de impulsos animais e, em função disso, esse “homem animal” precisa se tornar um “ser humano” civilizado (MARCUSE, 1975); precisa descobrir que é impossìvel obter a satisfação plena e constante de suas necessidades, caso contrário, estaria entrando em conflito com o mundo natural e humano. Essa mudança só é possível com repressão dos instintos, ou seja, a partir da substituição do princípio do prazer pelo princípio da realidade. O princípio da realidade surge como um fator decorrente do desenvolvimento cultural e visa à proteção do sujeito contra as manifestações destrutivas do id e do princípio do prazer, haja vista que da mesma forma que “ o ego-prazer nada pode fazer a não ser querer, trabalhar para produzir prazer e evitar o desprazer, assim o ego-realidade nada necessita fazer a não ser lutar pelo que é útil e resguardar-se contra danos” (FREUD, 1996j, p.241). Apenas com a instalação do princípio da realidade é que a civilização pode ser construída e o progresso alcançado, uma vez que este princípio possibilita ao homem o desenvolvimento da razão. Ele “ aprende a „examinar‟ a realidade, a distinguir entre bom e mau, verdadeiro e falso, útil e prejudicial [...]. Torna-se um sujeito consciente, pensante, equipado para uma racionalidade que lhe é imposta de fora” (MARCUSE, 1975, p.34), 65 conseguindo, dessa maneira, praticar atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas, ideológicas e exercer um papel importante na vida civilizada (FREUD, 1996g). Contudo, o princípio da realidade não anula completamente seu princípio opositor; sua função é adiar a satisfação do prazer em favor das condições impostas no mundo exterior. Neste processo, o homem aprende a renunciar ao prazer momentâneo e incerto, substituindo-o por outro adiado, garantido, seguro que ele imagina conseguir ainda mais intensificado no futuro, como recompensa por tamanha renúncia, sendo capaz, até mesmo, de tolerar, temporariamente, o desprazer (FREUD, 1996i; EAGLETON, 2006). Com isso, segundo Marcuse (1996), o homem modifica sua natureza instintiva, alterando os valores dos princípios que governam seus anseios, partindo da satisfação imediata do prazer, da receptividade e da ausência de repressão para a restrição do prazer, o adiamento da satisfação e a busca por segurança. Além da satisfação adiada e segura, a mudança do princípio do prazer pelo princípio da realidade também instala no homem a necessidade de ser produtivo para a sociedade, principalmente, através do esforço do trabalho, a fim de obter a sobrevivência, em detrimento do divertimento e da ludicidade, caso contrário, “ poderíamos simplesmente ficar deitados o dia inteiro, sem fazer nada” (EAGLETON, 2006, p.228) Diferentemente do princípio do prazer que acompanha o ser humano muito antes do início da civilização, o princípio da realidade começa a ser construído a partir da instalação da estrutura da personalidade denominada superego, também reconhecido como Ideal do ego, o qual se define como a base moral da personalidade, a compreensão das noções de certo e errado e a internalização das regras e normas de conduta, oriundas da cultura e do meio social, ou seja, o superego é o árbitro da moralidade, cuja função é inibir totalmente as demandas instintivas, principalmente aquelas referentes à agressividade e ao sexo, prezando pela perfeição moral (MARCUSE, 1975; SCHULTZ & SCHULTZ, 2006) Conforme elucidado no capítulo anterior, as restrições e imposições da moralidade são administradas ainda na infância pelos pais, por meio da interdição do desejo incestuoso pela figura parental. Por isso, Freud (1996f) afirmava que o Superego é herdeiro direto do Complexo de Édipo, sendo de fundamental importância na construção do caráter dos indivíduos. Isso por que a interdição e a lei impostas, em primeiro lugar, pelo pai à criança continuarão a incidir sua força sobre o indivíduo, seja por meio de “ professores e outras pessoas colocadas em posição de autoridade” (p.49), de instituições sociais ou, no futuro, após serem introjetadas, sob a forma de consciência e autocontrole capazes de exercer censura, 66 sentimento de culpa, perfeição moral e necessidade de punição ante o desejo de transgressão das normas. Porém, o princípio da realidade é a instância operacional do ego e não do superego. Contudo, o ego efetua as repressões dos instintos a serviço e a mando do superego. Sobre o ego é importante destacar que este corresponde à terceira estrutura da personalidade proposta pela teoria freudiana e diz respeito à parte racional da personalidade, a qual se encontra sob a influência constante do meio externo15. Ele possui a função de mediador entre id, meio externo e superego, por isso, Freud (1996f, p.68) fala que o ego é visto como “ uma pobre criatura que deve serviços a três senhores e, consequentemente, é ameaçado por três perigos: o mundo externo, a libido16 do id e a severidade do superego”. No que tange ao princípio do prazer operado pelo id, o ego não objetiva contrariar seus impulsos e desejos, mas sim reduzir a tensão causada por ele, adiando e redirecionando suas energias pulsantes às exigências da realidade, com o propósito de torná-lo cada vez mais dócil ao mundo externo. Por agir em favor do princípio da realidade, o ego é capaz de decidir quando, como e a melhor maneira dos instintos do id serem satisfeitos. Todavia, “a função de controlar e adiar do ego precisa ser constantemente exercida. Se não for, os impulsos do id podem dominar e subverter o ego racional (SCHULTZ & SCHULTZ, 2006, p.51), daí a importância da dissolução do complexo de Édipo e a internalização das regras e normas sociais que irão alimentar o superego. Partindo dos aspectos supracitados, pensemos, primeiramente, na imagem de Omar, o gêmeo cujos desejos e vontades em tempo algum eram adiados ou deixavam de ser saciados; o filho a quem Halim indagava ser “ um prisioneiro de tanto desejo” (Dois irmãos, 2006, p.120), capaz de empreender ações movidas por uma natureza instintiva, onde imperava a despreocupação com a consequência de seus atos e a satisfação sem medidas dos prazeres do corpo, em detrimento de qualquer atividade que pudesse gerar desconforto ou dissabor, denotando, assim, a presença constante do princípio do prazer em sua personalidade. Jamais interditado pelo pai durante o complexo de Édipo, devido à anulação deste pela possessiva mãe Zana, Omar não conseguiu submeter os instintos do id às exigências da realidade externa, ou seja, às repressões do superego, não sendo capaz de internalizar a lei, a 15 O meio externo diz respeito a tudo que está fora do universo psíquico do sujeito. Ele corresponde à realidade social, às manifestações da cultura e ao universo civilizado e racional dos homens (FREUD, 1996i, 1996f; MARCUSE, 1975, SCHULTZ & SCHULTZ, 2006) 16 Força propulsora ou energia psíquica que impulsiona os indivíduos a desempenharem comportamentos e pensamentos prazerosos (LAPLANCHE, 2001). Também reconhecida como uma “ força quantitativamente variável que poderia medir os processos e transformações correntes no âmbito da excitação sexual (FREUD, 1996k, p.205); 67 moral e as regras da vida em sociedade. Sem passar por tais interdições, o Caçula não teve como adquirir a consciência e o sentimento de culpa necessários para manter o autocontrole, tornando-se um homem impulsivo, inconsequente e amoral. “Filho sem culpa, livre da cruz” (Dois irmãos, 2006, p.27), Omar se entregava à satisfação de suas necessidades instintivas, vivendo intensamente cada prazer momentâneo, emoção ou aventura que a vida pudesse lhe proporcionar, sem recear qualquer punição; “ ignorava tudo o que não lhe desse um prazer intenso, fortíssimo, de caçador de aventuras sem fim” (Dois Irmãos, 2006, p.91). Na realidade, a aventura e a emoção eram o combustível que movia o motor da vida do Caçula, segundo o próprio pai Halim admitia: “Omar quer viver com emoção. Ele não abre mão disso, quer sentir emoção em cada instante da vida” (Dois Irmãos, 2006, p.91), e Nael17 reitera essa afirmação ao descrever que “ na vida de Omar aconteciam lances incríveis, ou ele os deixava acontecer, como quem recebe de mão cheia um lance de aventura. E não há pessoas assim? Pessoas que [...] apenas se deixam conduzir pelo acaso, pelo inusitado que assoma nas ventas” (Dois Irmãos, 2006, p.83). Logo, desde pequeno, Omar desfrutava das mais intensas aventuras, as quais envolviam escalar árvores, soltar papagaios18 com linha repleta de cerol19 ou insultar pessoas na rua, sem se atentar para as conseqüências que poderiam ameaçar sua integridade física, uma vez que com o superego inativo o id atuante lhe dava coragem e valentia para desempenhar tais ações. Vejamos as passagens que ilustram tais aspectos: Quando chovia, os dois trepavam na seringueira do quintal da casa, e o Caçula trepava mais alto, [...] O Caçula, só de calção, enlameado, se atirava no igarapé perto do presídio. Eles viam as mãos e a silhueta dos detentos, e ele ouvia o irmão xingar e vaiar, sem saber quem eram os insultados (Dois Irmãos, 2006, p.14). [...] queria correr descalço, sem medo de queimar os pés nas ruas de macadame aquecidas pelo sol forte da tarde, e saltar para pegar a linha ou a rabiola de um papagaio que planava lentamente [...]. O Caçula tomava impulso, pulava, rodopiava no ar como um acrobata e caía de pé, soltando um grito de guerra e mostrando as mãos estriadas [...] cheias de sangue, cortadas pelo vidro do cerol (Dois Irmãos, 2006, p.14-15). Alheio às coerções sociais e às exigências da cultura, as quais impõem ao homem a necessidade do trabalho, do desempenho, do esforço e da obediência a serviço do progresso 17 Esta personagem é o narrador da obra Dois Irmãos. Brinquedo que consiste em uma armação de varetas de bambu, ou de madeira leve, coberta de papel fino, e que, por meio de uma linha, se empina, mantendo-se no ar (FERREIRA, 2009, p.1482). 19 Mistura de cola de madeira e vidro moído que as crianças passam na linha dos papagaios para cortar as de outrem; cortante, preparo (FERREIRA, 2009, p.443). 18 68 (FREUD, 1996i; MARCUSE, 1975; EAGLETON, 2006), Omar agia em desacordo com esses comportamentos vistos como compatíveis com a realidade civilizada, na medida em que usufruìa do ócio de “bom vivant” e da orgia, dormindo “ até o meio-dia. O rosto inchado, engelhado pela ressaca” (Dois Irmãos, 2006, p.26), sem exercer qualquer empenho na tentativa de ser produtivo para a sociedade, conforme é preconizado pelo princípio da realidade em função da civilização, mantendo uma dinâmica em que seu corpo “ participava de um jogo entre a inércia da ressaca e a euforia da farra noturna. Durante a manhã, ele se esquecia do mundo, era um ser imóvel, embrulhado na rede” (Dois Irmãos, 2006, p.46). O esforço e a dedicação árdua aos estudos, como forma de qualificação exigida pelo mercado capitalista desde a Segunda Guerra Mundial (FRIGOTTO, 2001), período em que a narrativa decorre; ou para um trabalho penoso que lhe propiciasse segurança financeira e status social, nunca foram privilegiados na vida de Omar. De fato, seu histórico escolar denota uma vida acadêmica tumultuada, onde se somam situações em que “ o Caçula [...] gazeava lições de latim, subornava porteiros sisudos do colégio dos padres e saía para a noite, fardado, transgressor dos pés ao gogó (Dois Irmãos, 2006, p.26), agredia professores e era expulso do colégio. “Na verdade, o Caçula não terminou nada, jamais freqüentaria uma faculdade, desprezava um diploma universitário” (Dois Irmãos, 2006, p.80). É importante retomar o episódio da expulsão de Omar, uma vez que, após a perda da vaga na escola dos padres, onde apenas seu irmão permaneceu, o Caçula só conseguiu abrigo em uma escola: o Liceu Rui Barbosa, conhecida como o Galinheiro dos Vândalos, espaço em que “ reinava a liberdade de gestos ousados, a liberdade que faz estremecer convenções e normas” (Dois Irmãos, 2006, p.28), sem exigências e onde a escória de Manaus recorria com a finalidade de caçar um diploma. Esse lugar, cujo nome Vândalo, o destruidor, aquele que não respeita as normas (FERREIRA, 2009), é bastante sugestivo para caracterizar o espírito libertino de Omar oriundo da não repressão de seus instintos. No que diz respeito à atividade laboral, Omar tinha uma completa e radical “ aversão à rotina e aos horários de trabalho” (Dois Irmãos, 2006, p.166). Nunca conseguiu manter um emprego fixo e nem o queria, já que isto lhe traria a responsabilidade, a exigência do empenho, a perda da liberdade e o desprazer. Dessa maneira, as únicas vezes em que Omar se envolveu com o trabalho foi apenas para custear sua própria sobrevivência, como na situação em que ele saiu de casa e se manteve com o mísero dinheiro da venda de peixes, vivendo do previsível e do que a natureza pudesse lhe proporcionar no momento, persistindo numa posição aquém da modernidade e do progresso (VIEIRA, 2007; PIZA, 2007). 69 Por não produzir perante a sociedade, Omar “ tinha a astúcia de abocanhar com a maior naturalidade os frutos colhidos pela labuta dos outros” (Dois Irmãos, 2006, p.166), permanecendo na narrativa numa contínua receptividade dependente e egoísta que mobilizava toda a família, principalmente a mãe, a irmã Rânia e Domingas a proverem os elementos para a gratificação de suas necessidades e “ não [...] sentia um pingo de culpa ao sugar o suor das três mulheres da casa” (Dois Irmãos, 2006, p.166), como pode ser vislumbrado a seguir: “ Rânia passava arnica na face intumescida, a mãe alimentava o filhote na boquinha e Domingas ajeitava o penico para ele mijar. Três escravas de um cativo. (Dois Irmãos, 2006, p.68). O Caçula, insolente, exigia tudo do bom e do melhor. Catavam as espinhas do peixe para ele comer sem chateação; o pudim de tapioca com coco ralado tinha que ser bem assado; comida mal passada ele mastigava e ia cuspir no galinheiro” (Dois Irmãos, 2006, p.98). [...], acordava as mulheres, e lá ia eu ajudar Zana e minha mãe. “Traz uma bacia de água fria... O braço dele está sangrando... Corre, pega o mercurocromo!... Cuidado para não acordar o Halim... Ferve um pouco de água, ele precisa tomar um chá...” Não paravam de pedir coisas enquanto o Caçula se contorcia, arrotava, mandava todo mundo à merda (Dois Irmãos, 2006, p.66). Tudo isso acontecia sem que Omar levasse em consideração o que suas “escravas” queriam; se seus gritos noturnos incomodavam o sono do pai e da vizinhança, ou se o dinheiro dado para as sua orgias era desviado da loja que mantinha o sustento da família; dinheiro este que Rânia, muitas vezes cedia irritada, a conta-gotas “ fazendo sermões, enumerando os gastos da casa e da loja, como faz um contador ou um muquirana” (Dois Irmãos, 2006, p.133). A satisfação das necessidades e a evitação do desprazer, aliadas ao apoio incondicional da mãe no acobertamento e patrocínio de seus comportamentos inapropriados, fizeram com que Omar gozasse uma vida inteira de entrega à boemia, às festas noturnas na cidade de Manaus e ao uso constante de álcool e de outros entorpecentes que deterioravam seu corpo e sua mente, conforme se vislumbra nos trechos a seguir: O outro, o Caçula, exagerava as audácias juvenis: [...] saía para a noite, [...] rondando os salões de Maloca dos Barés, do Acapulco, do Cheik Clube, do ShangriLá. De madrugada, na hora do último sereno, voltava para casa. [...] Ia direto ao banheiro, provocava em golfadas a bebedeira da noite (Dois Irmãos, 2006, p.26). [...] quando o irmão entrou no quarto dele naquela madrugada [...] sentiu o cheiro do lança-perfume e suor [...]. Notou o irmão sair lentamente do quarto, o cabelo e a camisa cheios de confete e serpentina, o rosto sorridente e cheio de prazer. [...] Foi [...] a última manhã que viu o irmão chegar de uma noitada de arromba (Dois Irmãos, 2006, p.16). 70 Quando Omar esborniava, era um transtorno. Às vezes vinha tão chumbado que perdia o equilíbrio e tombava, anulado (Dois Irmãos, 2006, p.65). Estava descalço, sem camisa, a calça encharcada. Um espantalho fugido do dilúvio, e bêbado, a ponto de esbarrar nos dois vasos de porcelana e no console antes de cair na rede vermelha (Dois Irmãos, 2006, p.79). Compelido pelo princípio do prazer a efetuar seus desejos irrestritamente, Omar também recorria à vida de malandro meliante, no intuito de aplacar seus instintos de aventura e desfrutar da euforia e da excitação que o mundo da criminalidade pudesse lhe oferecer. Por conseguinte, sua ficha criminal vai ganhando corpo gigantesco, conforme o desenrolar da narrativa. Isso se torna ainda mais significativo para expressar a amoralidade de Omar se tomarmos como referência o Código Penal Brasileiro (1940) e visualizarmos o número de artigos infringidos pelo Caçula, vejamos alguns: Art. 155: Furto da mãe e do irmão Yaqub: O Caçula esvaziava a bolsa da mãe (Dois Irmãos, 2006, p.68) O êxtase do lança-perfume induzia Omar a surrupiar uma parte do dinheiro do mercado e da feira. Várias vezes fez isso (Dois Irmãos, 2006, p.98). Muito bem, que o pulha levasse [...] a gravata de seda, as camisas de linho, mas dinheiro... [...] oitocentos e vinte dólares roubados. Uma fortuna! A poupança de um ano de trabalho (Dois Irmãos, 2006, p.93). Art. 150: violação do domicílio do irmão: Ficou irado por que o Caçula entrou no apartamento dele e vasculhou tudo, encontrou as fotos do casamento, [...] encheu o rosto de Lívia de obscenidades, cobriu as fotografias do álbum de casamento com palavrões e desenhos (Dois Irmãos, 2006, p.93) Art. 299: prática de falsidade ideológica ao se passar pelo irmão com a intenção de viajar para os Estados Unidos: “Ele roubou meu passaporte e viajou para os Estados Unidos. O passaporte, uma gravata de seda e duas camisas de linho irlandês!” (Dois Irmãos, 2006, p.92). Art. 318: facilitar a prática de contrabando de mercadorias: A mãe cascavilhou [...] descobriu [...] a teia de contrabando em que se envolvera Omar. [...]. A muamba era transportada nos navios da Booth Line, Omar conferia tudo no armazém número nove e saía sozinho no conversível, enquanto as piabas da rede levavam a mercadoria para uma chácara. Chocolate suíço, roupas e caramelos ingleses, máquinas fotográficas japonesas, canetas, tênis americanos. Tudo o que naquela época não se via em nenhuma cidade brasileira: a forma, a cor, a etiqueta, a embalagem e o cheiro estrangeiros (Dois Irmãos, 2006, p.104-105) 71 Art. 129: lesão corporal praticada contra o irmão Yaqub, o único delito que lhe rendeu punição: uma condenação de dois anos e sete meses de reclusão, sem direito a liberdade condicional (Dois Irmãos, 2006, p.194). Omar deu um salto, ergueu a rede e começou a socar Yaqub no rosto, nas costas, no corpo todo. Corri para cima do Caçula, tentando segurá-lo. Ele chutava e esmurrava o irmão (Dois Irmãos, 2006, p.175). Os comportamentos meliantes e criminosos de Omar se devem ao fato de que “aquele que em consequência de sua constituição indomável não consegue concordar com a supressão do instinto, torna-se um criminoso, [...] diante da sociedade” (FREUD, 1996k, p.173.), uma vez que não se verga aos ditames da moralidade e das leis que dão ao homem a convivência pacífica em comunidade. Tais aspectos indicam que o princípio do prazer em Omar nunca foi substituído pelo princípio da realidade e exprime na fragilidade do ego de Omar em prezar pela sua autopreservação e protegê-lo das manifestações instintivas do id, cuja forte pressão exigia a gratificação instantânea e constante dos desejos do Caçula, haja vista que um estímulo instintual “ jamais atua como uma força que imprime um impacto momentâneo, mas sempre como um impacto constante. Além disso, visto que o instinto incide não a partir de fora mas de dentro do organismo, não há como fugir dele” (FREUD, 1996g, p.124). Por isso, o instinto é visto como uma necessidade fisiológica que só é eliminada com a satisfação, daí a dificuldade de escapar da pressão incisiva operada por ele. Portanto, sem defesas e totalmente exposto ao domínio do princípio do prazer, Omar não consegue enfrentar seus instintos, reprimi-los e muito menos direcioná-los para objetivos superiores de maneira racional e civilizada, como o trabalho e a intelectualidade, permanecendo em sua essência um ser indócil, um “homem animal”. Partindo desta perspectiva, Omar se apresenta na narrativa como um homem grotesco, envolto em uma rebeldia incontrolável que o atraía para paixões extremas, sendo detentor de uma irracionalidade, cujas ações eram indomáveis, impulsivas e animalescas, um “bichohomem” (Dois Irmãos, 2006, p.161) beirando o primitivismo do ser selvagem, anterior ao início da civilização, quando o princípio do prazer imperava absoluto sobre o psiquismo (Freud, 1996i). 72 Esta visão da personagem Omar como “homem-bicho”, que “plantava-se no alpendre tal um animal acuado, esquivando-se do contato humano” (Dois Irmãos, 2006, p.134) é reiterada, constantemente na obra, na medida em que este é comparado com figuras de animais selvagens seja pela sua aparência física, pelas suas atitudes ou comportamentos. Dessa maneira, encontramos passagens na narrativa que descrevem Omar como: Onça ou Jaguar, “senhor dos animais selvagens” (CHEVALIER, 1990), aquele que é sedento de desejo e valentia, demonstrando a predominância dos instintos, da emoção e da aventura na vida do Caçula: Omar [...] rosnava pedindo água gelada, e lá ia Domingas [...] derramava-lhe na boca aberta o líquido que ele primeiro bochechava e depois sorvia como uma onça sedenta (Dois Irmãos, 2006, p.26). O suor ralo dos drinques e coquetéis, e o suadouro espesso, com cheiro mareante de bebida forte e amarga, nhaca de pelame de jaguar (Dois Irmãos, 2006, p.111). Leão, sìmbolo de um impulso social pervertido que possui a “tendência a dominar como déspota, a impor brutalmente a sua autoridade e a sua força” (CHEVALIER, 1990, p.539) e, no caso de Omar, aquele que rugia para demarcar seu território e impor sua tirania e poder soberano sobre as fêmeas da casa (Zana, Domingas e Rânia): No começo da tarde, rugia, faminto, bom vivant em tempo de penúria (Dois Irmãos, 2006, p.46). O cachorro, reconhecido como símbolo de potência e voracidade sexual, um sedutor transbordante de virilidade (CHEVALIER, 1990) cuja ferocidade precisa ser aplacada pela domesticação, demarcando o espírito indomável e a ausência de repressão dos instintos de Omar: Na extremidade do porto da Escadaria, amarrado a uma canoa, latia um cachorro, e babava, o vira-lata, de tanta agonia; dessa vez eu ri de verdade, pois a visão do cachorro amarrado me remetia ao cativo de cara inflada. [...] Durante as duas noites de cativeiro, ouvíamos os urros de Omar (Dois Irmãos, 2006, p.69). Ainda sobre esses aspectos, é importante destacar o fato de que Omar era chamado carinhosamente pela mãe Zana de “Meu mico-preto, meu peludinho” (Dois Irmãos, 2006, p.53), desde o episódio ocorrido na infância, onde [...] aos dois anos ele foi fotografado com a fantasia de sauim-de-coleira que ela, Zana, guardou como relíquia (Dois Irmãos, 2006, p.50), evidenciando a comparação do filho com a figura do macaco, cuja agilidade, espontaneidade, 73 o espírito aventureiro e comicidade (CHEVALIER, 1990) retomam o comportamento lúdico, o júbilo e a diversão propiciados ao homem pelo princípio do prazer (MARCUSE, 1975). Conforme Jaffé (2008, p.237), a profusão de motivos animais na arte e na literatura acompanha a história da humanidade e simboliza habitualmente a natureza primitiva e instintiva do homem. Mesmo os homens civilizados não desconhecem a violência dos seus impulsos instintivos e a sua impotência ante as emoções autônomas que irrompem do inconsciente. Esta é uma realidade ainda mais evidente nos homens primitivos, cuja consciência é menos desenvolvida e que estão menos bem equipados para suportar as tempestades emocionais. Outro fator que marca o gêmeo Omar como homem animalesco, regido pelo princípio do prazer, diz respeito à sua forte inclinação para a agressividade, aspecto definido por Laplanche (2001, p.11) como um “conjunto de tendências [...] que se atualizam em comportamentos que visam prejudicar o outro, destruí-lo, constrangê-lo, humilhá-lo, etc.”, podendo manifestar-se não somente através da ação física violenta, mas também a nível simbólico com a ironia e o sarcasmo. Isto se dá, pois “a inclinação para a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-subsistente” (FREUD, 1996h, p.125), sendo o maior impedimento do ser humano no caminho para o mundo racional civilizado. Além disso, o impulso agressivo é um dos componentes daquilo que Freud denominava de instinto de morte, uma energia inconsciente voltada para o exterior que leva o sujeito na direção da degeneração, compelindo-o a destruir, subjugar e matar (SCHULTZ & SCHULTZ, 2006). A inclinação de Omar para a agressividade é percebida na obra ainda durante a sua infância, quando ele desafiava os “curumins” e “moleques parrudos” do bairro onde morava, empreendendo ações violentas com toda sua fúria e, ao mesmo tempo, aguentando os socos advindos das lutas: [...] o braço do Caçula enroscado no pescoço de um curumim do cortiço que havia nos fundos da casa. [...] tremia de medo, acovardado, ao ver o Caçula desafiar três ou quatro moleques parrudos, agüentar o cerco e os socos deles e revidar com fúria e palavrões (Dois Irmãos, 2006, p.14). Na adolescência, o comportamento violento e a crueldade de Omar tomam proporções ainda maiores e sua agressividade passa de uma mera vontade de disputa para a concretização de uma vingança, objetivando, dessa forma, o aniquilamento e a destruição total do outro. Como exemplo disso, podemos citar a situação em que Omar espanca o professor Bolislau, por este ter lhe empreendido o castigo de ficar ajoelhado ao pé da castanheira, por horas, 74 repreensão esta jamais esquecida pelo Caçula, devido a humilhação sofrida diante dos colegas de classe: O Caçula se levantou, caminhou para o quadro-negro, parou cabisbaixo diante do gigante Bolislau, deu-lhe um soco no queixo e um chute no saco: um petardo tão violento que o pobre Bolislau se agachou, muito corcunda, e rodopiou como um pião bambo (Dois Irmãos, 2006, p.29). E não se pode deixar de mencionar ainda um dos acontecimentos agressivos de maior relevância no desenvolvimento da rivalidade entre Omar e o irmão Yaqub, sendo capaz de demarcar definitivamente a distância e o rancor entre os dois: o episódio em que Omar fere o rosto do irmão, como símbolo de vingança pela perda do afeto de seu primeiro amor, Lívia, devotado por ela a Yaqub: alguém abriu uma janela e a platéia viu os lábios de Lívia grudados no rosto de Yaqub. Depois, o barulho de cadeiras atiradas no chão e o estouro de uma garrafa estilhaçada, e a estocada certeira, rápida e furiosa do Caçula. O silêncio durou uns segundo. E então o grito de pânico de Lívia ao olhar o rosto rasgado de Yaqub. [...] O Caçula, apoiado na parede branca, ofegava, o caco de vidro escuro na mão direita, o olhar aceso no rosto ensanguentado do irmão (Dois Irmãos, 2006, p.22). Sempre temperada com uma boa dose de ironia e sarcasmo, a agressividade empreendida por Omar transparecia seu prazer em prejudicar o outro e, mesmo quando a força física não lhe era suficiente, ele sabia utilizar como ninguém o poder de suas palavras cruéis, seja quando humilhava Nael ao caçoar de sua condição financeira, chamando-o de “filho da minha empregada” em público; quando se referia a Yaqub como o “filho que só tem cabeça”; nas vezes em que zombava do irmão e de sua esposa Lìvia, afirmando que: “mesmo selvagem, Louisiana é mais civilizada que vocês dois juntos. Se vierem, tratem de pintar o cabelo de loiro, assim vão ser superiores em tudo” (Dois irmãos, 2006, p.92), ou ainda quando, em seu momento de glória, após a agressão ao professor Bolislau, referiu-se a esse da seguinte forma: “O Bolislau parrudão viu todas as estrelas do céu, mama. E nem tinha céu. Não é um milagre? Ver uma constelação sem céu? (Dois irmãos, 2006, p.29). A animalidade de Omar também se concretizada no erotismo e no ardor sexual que esta personagem exprime durante a narrativa. A necessidade de mitigar o instinto sexual, por meio do prazer do corpo, emprega em Omar uma luta desenfreada pelo gozo do sexo e pela volúpia em uma ânsia sexual jamais saciada; uma falta nunca preenchida (BORGES, 2008), uma tensão da qual o Caçula busca aliviar-se, desesperadamente, na medida em que não mantinha relacionamentos duradouros, envolvendo-se com inúmeras mulheres, inclusive prostitutas, as quais, quase sempre, “ele não escolhia, não se empolgava com a cor dos olhos 75 ou cabelos. Namorava as anônimas [...]. Galanteava as desconhecidas [...]. Além disso, não tinham nome, quer dizer, o Caçula só as chamava de queridinha ou princesa” (Dois irmãos, 2006, p.74-75). De acordo com Freud (1996h), tal vigor do instinto sexual se deve ao fato de que o objetivo primeiro desse não é a reprodução, como a sociedade civilizada tanto pregou por muitos séculos, mas sim a obtenção de prazer, o que o tornou um interdito moral, cuja manifestação livre precisa ser renunciada em prol da cultural e da boa convivência. Entretanto, Omar não renuncia a seus instintos sexuais e sua sexualidade não tem restrições ou pudores quanto ao excesso. Ele não sente culpa ou receio em desfrutar do ato sexual em lugares públicos, como portos, carros ou até mesmo diante de seus familiares, conforme se vislumbra nas passagens a seguir: No meio da madrugada, Omar e a mulher gemiam na rede que ondulava, como se estivessem numa praia deserta, numa das mil ilhas Anavilhanas. Foram imprudentes, amos do mundo, felizes em excesso (Dois Irmãos, 2006, p.131). Abraçados, grudados, caminharam até o conversível. Entraram no carro. [...] Ela tirou a blusa, Omar bolinou os peitos dela, sem pressa. Ela deixou, se entregou, meio deitada no banco. Depois a cabeça dela sumiu, e um dos braços, o direito, também. Não pude ver, não posso afirmar o que ela fez. Sei, ouvi ele miar que nem jaguatirica no cio, mas abafado, mordendo, engolindo os dedos da mão esquerda dela. Um bêbado apareceu no outro lado da rua. [...] De soslaio, observou a bandalheira. Uma festa carnal ao ar livre. (Dois Irmãos, 2006, p.107). certa noite, entrou em casa com uma caloura, uma moça do cortiço da rua dos fundos [...]. Fizeram uma festinha os dois: dançaram em redor do altar, fumaram narguilé e beberam á vontade. De manhãzinha, do alto da escada Halim, [...] viu o filho e a moça, nus, dormindo no sofá cinzento (Dois Irmãos, 2006, p.68). Também não se incomodava em pegar doenças sexualmente transmissíveis ao se envolver com prostitutas: 20 “Está com o ramêmi ensopado de pus”, disse Domingas. Zana se espantou: “O que é isso? Estás louca?". Minha mãe balançou a cabeça: “A senhora não sabe... Não é a primeira vez que ele pega essa doença”. [...] Dessa vez tinha sido forte, uma gonorréia galopante, como se dizia. [...] Ele teve que ir ao médico, e agüentou umas duas agulhadas na bunda. [...] “Quem fez isso contigo?”, quis saber Zana. Ele não falou. Suplicou silêncio da mãe com um olhar de sofrimento. O querubim. Não ia denunciar as putas (Dois Irmãos, 2006, p.157). ou abusar sexualmente de alguém, como fez com Domingas, desde que satisfizesse suas necessidades corporais e fisiológicas: 20 Referência ao pênis humano. 76 “Com o Omar eu não queria... Uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado... Ele me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão” (Dois Irmãos, 2006, p.180). Assim, uma sexualidade exuberante como a de Omar, exprime a transgressão desta personagem ao proibido e retoma o desejo de viver apenas do prazer momentâneo, ao mesmo tempo em que o mantém em uma persistência na vida animal, afastando-o da consciência, da racionalidade e diminuindo sua faculdade de discernimento. Pensando nisso, (BATAILLE, 1987) aponta que esse movimento/investimento carnal é “alheio à vida humana. [...] Aquele que se abandona a esse movimento não é mais humano. Como os animais, reduzir-se-á ao cego desencadeamento dos instintos, gozando momentaneamente da cegueira e do esquecimento (BATAILLE, 1987, p.69). Em meio à representação de Omar como homem instintivo, animalizado, irracional, dominado pelos impulsos e pelas fatalidades das exigências da própria carne e dos prazeres do corpo em prol do prazer (BOSI, 2006), nota-se uma forte aproximação das descrições de Hatoum, ao construir esta personagem, com a estética naturalista. Entretanto, diferentemente dos ideais da escola inaugural do século XIX, podemos inferir a partir da maneira como a narrativa é delineada que não há uma preocupação em utilizar os atributos das personagens para comprovar pressupostos científicos deterministas, ou mostrar uma visão patológica do homem, como, de acordo com Proença-Filho (2004), acontecia naquela época, mas sim, levando os comportamentos de Omar ao extremo da animalidade e da despreocupação com a moral, mostrar o lado primitivo e destrutivo que habita o universo sombrio e inconsciente da alma humana. Voltemos, agora, nosso olhar para o outro gêmeo, Yaqub, o homem introspectivo, “lacônico, carente de prosa” (Dois Irmãos, 2006, p.25) que desde a adolescência pouco se socializava com as pessoas. O filho que, por sua grande capacidade intelectual em lidar com números, “prometia ser o cérebro da famìlia” (Dois Irmãos, 2006, p.28); aquele que, visando o sucesso, se entregava completa e arduamente aos estudos e ao trabalho de maneira racional, sempre tentando atingir o máximo da perfeição em tudo o que fazia, mesmo que para isso fosse necessário renunciar aos prazeres e às regalias da juventude, revelando a contínua repressão dos seus instintos em favor do princípio da realidade. Ao resgatar a trajetória desta personagem notamos que, desde a infância, Yaqub é obrigado a aprender que suas necessidades instintivas e desejos nunca poderiam ser plenamente satisfeitos, haja vista que seu objeto materno e cuidador, Zana, o mantinha em 77 completa negligência, não fornecendo os elementos básicos para sua sobrevivência, como a proteção, o afeto e a saciação de suas demandas fisiológicas advindas do id. Dessa maneira, a mãe, ao invés de exercer o amparo e a assistência ao filho, a fim de que no futuro ele pudesse lidar com as adversidades da vida, o deixou exposto à angústia da destruição e da morte frente às exigências do meio externo, o qual sempre lhe aparecia como inóspito, em virtude da predominância do sentimento de rejeição e de perda do afeto materno (FREUD, 1996k; SCHULTZ & SCHULTZ, 2006; DELOUYA, 2008), fato que se concretiza na obra em sua timidez; no pouco tato de Yaqub com o público – Era um tímido, e talvez por isso passasse por covarde. Tinha vergonha de falar (Dois Irmãos, 2006, p.24) – em sua pusilanimidade durante a infância e adolescência – Não, fôlego ele não tinha para acompanhar o irmão. Nem coragem (Dois Irmãos, 2006, p.14) – na inadaptação à terra natal e ao espaço da casa, após o retorno da Líbia – Seu quarto era “vazio, sem marcas ou entulho: abrigo de um corpo, nada mais (Dois Irmãos, 2006, p.80) – como também na fraca convivência em família – nunca foi tagarela. Era o mais silencioso da casa e da rua, reticente ao extremo. [...] Ele era evasivo, nas respostas, esquivo até nas miudezas do cotidiano (Dois Irmãos, 2006, p.25-30). Diante da indolência da mãe, Yaqub se defronta com aquilo que Freud (1996g), denominou como uma das experiências de maior sofrimento enfrentadas pelo ser humano em suas relações interpessoais: o sentimento de perda do amor materno, ou daquele de quem se é dependente, uma vez que isto dá ao homem a percepção de estar exposto a toda e qualquer ameaça de perigo. Em função disso, ainda criança, o filho mais velho de Zana e Halim passa a fugir de qualquer atitude ou comportamento quer inadequado, perigoso ou impulsivo que pudesse desagradar sua fonte primeira de amor e afeto, a mãe, temendo uma punição que rompesse por completo o já frágil vínculo entre ambos. Assim, Yaqub não conseguia subir no galho mais alto das árvores, como o irmão; ele se escondia de brigas e confusões, jamais lambuzava as mãos com cerol e tremia de medo com a possibilidade de perder o equilíbrio (Dois Irmãos, 2006), aspecto este que Yaqub suplicará incessantemente que nunca o abandone. A resignação precoce dos instintos e a submissão paciente às pressões e sofrimentos decorrentes da ausência materna possibilitaram a Yaqub internalizar a autoridade e a lei, durante o complexo de Édipo, mesmo sem a forte presença do pai para interditar seu desejo incestuoso. Logo, o superego consegue se estabelecer em sua personalidade, dando-lhe a consciência e o autocontrole para exercer censura na presença do desejo de infringir as 78 normas, capacitando-o a realizar a substituição do princípio do prazer pelo princípio de realidade. Tal procedimento é possível ocorrer em Yaqub, pois a domesticação dos instintos [...] mediante controles repressivos não é imposta pela natureza, mas pelo homem. O pai [...] inicia a reação em cadeia de escravização, [...] e dominação reforçada, que caracteriza a história da civilização. Mas [...] a repressão externa foi sempre apoiada pela repressão interna: o indivíduo escravizado introjeta seus senhores e suas ordens no próprio aparelho mental (MARCUSE, 1975, p.36) e ao exercê-lo percebe que não há mais diferenças entre fazer ou desejar fazer algo errado moralmente, uma vez que nada escapa à vigilância constante do superego (consciência) que esta sempre à espera da oportunidade de punir o ego pecador (FREUD, 1996g). Com a internalização da lei, Yaqub não precisa mais de uma autoridade externa (pai) para cumprir as regras e normas sociais, bem como abdicar dos instintos do id, haja vista que seu superego se organiza como uma autoridade interna que motiva a essa renúncia pelo medo da onipresente consciência que traz o sentimento de culpa e a necessidade de punição diante das más ações ou intenções do ego (MARCUSE, 1975; SCHULTZ & SCHULTZ, 2006). Esse aspecto é reiterado por Freud (1996g, p.21) ao afirmar que: Acha-se em consonância com o curso do desenvolvimento humano que a coerção externa se torne gradativamente internalizada, pois um agente mental especial, o superego do homem, a assume e a inclui entre seus mandamentos. Toda criança nos apresenta esse processo de transformação; é só por esse meio que ela se torna um ser moral e social. Esse fortalecimento do superego constitui uma vantagem cultural muito preciosa no campo psicológico. Aqueles em que se realizou são transformados de opositores em veículos da civilização. Assim, devido à constante vigilância, censura e severidade de seu superego para não aderir à supremacia do princípio do prazer, Yaqub se apresenta como um homem de comportamento extremamente austero, equilibrado e inflexível, sempre de “passos rápidos e firmes que davam ao corpo um senso de equilìbrio e uma rigidez impensável” (Dois Irmãos, 2006, p.11), jamais vista no irmão, o qual ao inverso dele era dominado pela natureza animalesca e instintiva do princípio do prazer. Yaqub “deixava transparecer certas linhas de conduta, e não eram tortas” (Dois Irmãos, 2006, p.67), uma vez que indicava uma polidez de caráter que não admitia falhas, criando a imagem do homem sensato e “senhor” da moral e dos bons costumes; a figura “ de um ser perfeito, ou de alguém que buscava a perfeição” (Dois Irmãos, 2006, p.83); aquele sobre o qual Nael indagava que: “ se for ele o meu pai, então sou filho de um homem quase perfeito (Dois Irmãos, 2006, p.83). 79 Esta perspectiva do gêmeo Yaqub como homem resignado que busca a perfeição moral e a polidez de caráter também é reforçada na obra na medida em que esta personagem é constantemente equiparada a um pastor – “O pastor, o rapaz rústico” (Dois Irmãos, 2006 p.27-28) – figura que agrega valores como a sabedoria, a prática constante da vigilância e está envolta em grande simbolismo religioso, uma vez que, na bíblia, o pastor é a pessoa escolhida por Deus para guiar seu povo no caminho da integridade e da exatidão (CHEVALIER, 1990). Ainda neste sentido, encontramos na narrativa a passagem em que Yaqub carrega a espada no desfile pelo dia da independência – Em seu último ano no colégio dos padres [...] ia desfilar como espadachim [...] com a espada reluzente que ele empunhou diante do espelho (Dois Irmãos, 2006 p.27-28) – a qual se torna relevante para ilustrar esta questão, já que, de acordo com Chevalier (1990), aquele que possui o poderio da espada é visto como o destruidor da injustiça, da maleficência e da ignorância, capaz de manter a paz e a justiça. “A espada relaciona-se também à razão, que reúne a um só tempo os dois atributos de bondade e poder” (p.392-393), os quais Yaqub sustentava perante os seus. Por influxo da razão e do princípio da realidade, o equilíbrio e a perfeição moral de Yaqub aparecem como exigências de seu o superego, o qual “é implacável, até cruel, na sua busca pela perfeição moral. Em termos de intensidade [...] e insistência na obediência, ele não difere do id. Seu objetivo não é simplesmente adiar as demandas de busca de prazer do id [...] mas sim inibi-las totalmente” (SCHULTZ & SCHULTZ, 2006, p.51). Todavia, tamanha virtuosidade e renúncia descomunal aos prazeres e desejos não foram conseguidas por Yaqub de forma arbitrária, mas sob a pena de conviver diariamente com a frustração, a angústia e o sofrimento por reprimir de sua personalidade suas tendências vingativas e agressivas, as quais só aumentavam no decorrer da narrativa, na medida em que ele negava satisfazê-las. A recusa em dar vazão à agressividade confere a Yaqub a personificação do homem dócil, submisso e domável que em momento algum requisitou o amor da mãe, devotado integralmente a Omar; que não se revoltou com os pais por ter sido enviado para o Líbano por um erro cometido pelo irmão e “não reagiu na juventude, quando um caco de vidro cortou-lhe a face esquerda” (Dois Irmãos, 2006, p.148) deixando-lhe uma marca que o expôs a inúmeros insultos, os quais em favor da sustentação de sua máscara moral, ele os enfrentou em silêncio como um [...]mestre do equilìbrio quando as partes se tensionam” (Dois Irmãos, 2006, p.148), conforme vemos abaixo: 80 Ela [Zana] chorou quando viu o rosto de Yaqub [...]. Treze pontos. O fio preto da costura parecia uma pata de caranguejeira. Yaqub, calado, matutava. Evitava falar com o outro. Desprezava-o? Remoía, mudo, a humilhação? "Cara de lacrau", diziam-lhe na escola. "Bochecha de foice." Os apelidos, muitos, todas as manhãs. Ele engolia os insultos, não reagia. Os pais tiveram de conviver com um filho silencioso (Dois Irmãos, 2006, p.22-23). A psicanálise mostra que a agressividade é vista como um dos maiores impedimentos no caminho da civilização e, portanto, necessita ser inibida. Isso só ocorre quando a agressividade é introjetada, internalizada pelo homem. Assim, ela é, na realidade, mandada de volta para o lugar de onde proveio, “isto é, dirigida no sentido de seu próprio ego. Aí, é assumida [...] como superego, e [...] sob forma de „consciência‟, está pronta para pôr em ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego teria gostado de satisfazer sobre os outros indivìduos” (FREUD, 1996h, p.127), só que, neste caso, através da exigência da rigidez de comportamento e da submissão irrestrita às normas e regras em detrimento dos instintos, da maneira como acontece com Yaqub. Contudo, manter controlados impulsos poderosos do id, como a agressividade, é uma tarefa árdua que carece exercício e vigilância incessantes, já que o triunfo do princípio da realidade sobre o princípio do prazer jamais é completo e seguro, pois sua força sobrevive no inconsciente e continua buscando uma maneira de encontrar vazão (MARCUSE, 1975). Logo, notamos que, em alguns momentos da narrativa, Yaqub enfraquecia e deixava transparecer a carga de violência que o acompanhava em estado reprimido, especialmente, quando o tema era a sua reclusão no Líbano. Dois trechos são bastante ilustrativos desta questão: o primeiro se refere à insistência de Rânia para que ele falasse sobre a vida naquele país e Yaqub, “se tornava áspero, quase intratável, contrariando a candura dos gestos e a altivez e aderindo à rudeza que cultivava na aldeia” (Dois Irmãos, 2006, p.30); o outro diz respeito à situação em que Talib, vizinho da família, pergunta se Yaqub sente saudades do Líbano, vejamos a passagem; Foi então que aconteceu o inesperado: Talib, voz grossa e troante, triscou no assunto: “Não sentes saudades do Lìbano?” Yaqub ficou pálido e demorou a responder. Não respondeu, perguntou: “Que Lìbano?” [...] “Não morei no Lìbano, seu Talib.” A voz começou mansa e monótona, mas prometia subir de tom. E subiu tanto que as palavras seguintes assustaram: “Me mandaram para uma aldeia no sul, e o tempo que passei lá, esqueci. É isso mesmo, já esqueci quase tudo: a aldeia, as pessoas, o nome da aldeia e o nome dos parentes. Só não esqueci a lìngua...”. [...] “Não pude esquecer outra coisa”, Yaqub interrompeu o pai, exaltado. “Não pude esquecer...”, ele repetiu, reticente, e se calou. [...] Só Yaqub permaneceu debaixo da seringueira. Ele e sua frase incompleta. A reticência. O ruído de sua vida. [...] Percebi que estava nervoso, fumava com ânsia, 81 os olhos fixos no chão. Eu não me aproximei dele, não tive coragem. Estava transfigurado, parecia trincar os dentes até a alma (Dois Irmãos, 2006, p.88-89). Observa-se que apesar de se defrontar com um comentário que o ofende profundamente, haja vista que retoma todo sofrimento e mágoa por ter sido subitamente expulso do seio familiar, durante anos, sem ter cometido qualquer erro que justificasse essa ação, Yaqub luta para não descarregar a agressividade que o impele naquele momento, preferindo calar-se e deixar seu severo superego agir novamente sobre si. De fato, a moralidade predomina nesta personagem até mesmo quando ela consegue empreender sua vingança contra o irmão, após o espancamento empreendido por esse que o deixou hospitalizado, pois Yaqub só dá início a esta ação no momento em que goza dos aparatos legais para executá-lo, através da denúncia da agressão na delegacia, da presença de testemunhas e do exame de corpo delito. Portanto, podemos inferir que a personagem Yaqub serve como metáfora do homem resultante do processo edípico, o qual é um sujeito bipartido, dividido entre desfrutar ou restringir o prazer; entre o consciente e o inconsciente, esse que pode ressurgir a qualquer momento para persegui-lo e amedrontá-lo (EAGLETON, 2006). Ao contrário do irmão que imerso na descarga de seus instintos, gozava da irrestrita liberdade e da ausência de repressão que o princípio do prazer lhe proporcionava, Yaqub, adepto do princípio da realidade, caminhava no sentido oposto a esta liberdade, na proporção em que adiava os prazeres momentâneos, incertos e destrutivos, abandonando e até esquivando-se das possibilidades que o levariam a obter a satisfação do prazer. Com isso, este “rapaz altivo e circunspecto que não dava bola para ninguém” (Dois Irmãos, 2006, p.25), passava dias e noites recluso em seu quarto, enfurnado em sua toca “ sem dar um mergulho nos igarapés” (Dois Irmãos, 2006, p.25); “ desprezava, altivo em sua solidão, os bailes carnavalescos [...]; as festas juninas, a dança do tipiti, os campeonatos de remo, os bailes a bordo dos navios italianos e os jogos de futebol no Parque Amazonas (Dois Irmãos, 2006, p.25), não prezando pela boemia que tanto alimentava o fulgor do irmão. Por viver em seu mundo particular sem se importar com ninguém mais, Yaqub era reconhecido pelos pais como um “amarelão” mofando na vida (Dois Irmãos, 2006, p.25). Na medida em que o filho mais velho “renunciava à juventude, ao barulho festivo e às serenatas que povoavam de sons as noites de Manaus” (Dois Irmãos, 2006, p.25), ou seja, reprimia a gratificação dos prazeres momentâneos e dos instintos, o princípio da realidade o capacitava a redirecionar todas suas energias juvenis para atividades psíquicas superiores, como a educação, executando atividades intelectuais com o mesmo ímpeto com que controlava seus impulsos instintuais. 82 No que tange aos estudos, a obstinação de Yaqub pela perfeição se mostrava impiedosa, haja vista que o superego atuante exigia um rigor de comportamento que não lhe possibilitava cometer erros. Assim, Yaqub “varava noites estudando a gramática portuguesa; repetia mil vezes as palavras mal pronunciadas” (Dois Irmãos, 2006, p.24); no colégio dos padres onde estudava “ele encontrava sempre, antes de qualquer um, o valor de um z, y ou x” (Dois Irmãos, 2006, p.26) e, ao ingressar na escola politécnica de São Paulo, conseguiu o primeiro lugar na classificação: “em brimeiro lugar, babai, escreveu ele, brincando” (Dois Irmãos, 2006, p.25). Sua capacidade de examinar a realidade de maneira racional lhe dava inclinação para os conhecimentos científicos, por isso, “compensava a ausência dos gozos do sol e do corpo aguçando a capacidade de calcular, de equacionar, e “o que lhe faltava no manejo do idioma sobrava-lhe no poder de abstrair, calcular, operar com números, (Dois Irmãos, 2006, p.25-26), o que garantiu a esse “eremita” “seu ingresso na Universidade de São Paulo [...] ia ser engenheiro. Um politécnico, calculista de estruturas” (Dois Irmãos, 2006, p.44-45), bem como, futuramente, uma posição de destaque na sociedade em meio aos “ sisudos mestres engravatados, venerados” (Dois Irmãos, 2006, p.45) por ele. Tais comportamentos denotam a tolerância desta personagem ao desprazer como uma etapa da longa jornada a caminho de um suposto prazer futuro, ainda mais intensificado, certo e garantido que o momentâneo, uma vez que sua dedicação árdua aos estudos, além de lhe render honrarias, homenagens, medalhas e elogios de latinistas e matemáticos (Dois irmãos, 2006) do colégio em que estudava, também traz a ele, durante a narrativa, inúmeras promessas de um destino próspero e exitoso no caminho do mundo civilizado e moderno da época, como é possível observar a seguir: “o montanhês rústico que urdia um futuro triunfante (Dois Irmãos, 2006, p.26). Os religiosos sabiam que o ex-aluno tinha futuro; naquela época, Yaqub e o Brasil inteiro pareciam ter um futuro promissor (Dois Irmãos, 2006, p.33). Yaqub [...] deixava transparecer certas linhas de conduta, e não eram tortas. No fim de cada linha havia uma flecha apontando um destino glorioso (Dois Irmãos, 2006, p.67). Os aspectos supracitados elucidam o tema da “educação em prol do sucesso”, sendo necessário fazer uma pequena interrupção no curso desta discussão, a fim de resgatar alguns pressupostos teóricos que nos permitirão compreender a importância desse aspecto no delineamento da personagem Yaqub. 83 Em princípio, é importante destacar que a ideia de emancipação financeira e mobilidade social a partir da educação é uma visão existente desde a segunda metade do século XX, período correspondente ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), por influência do capitalismo que operou uma mudança profunda no papel atribuído à escola a qual passa a ser um campo disciplinar, cujo objetivo visa o desenvolvimento econômico, a formação para a empregabilidade e a inserção dos indivíduos no mercado de trabalho (FRIGOTTO, 2001). É exatamente esse espaço temporal abarcado pela narrativa “Dois Irmãos”, época em que o Brasil, motivado pelo ideal de progresso e desenvolvimento, foi altamente influenciado pelas tendências capitalistas das grandes potências econômicas mundiais, iniciando uma vertiginosa expansão industrial, com a instalação de empresas multinacionais no cenário econômico nacional, principalmente, no trecho Rio de Janeiro – São Paulo, locais que se tornaram centros industrializados e símbolos nacionais de referência da modernidade (SILVA, 1992). A escola, então, aparece neste contexto, pois a entrada de empresas internacionais, com grande carga tecnológica, demandava material humano qualificado para atuar neste novo ramo. Assim, a educação brasileira teve que se adequar para prover esse corpo de trabalhadores e uma das principais alternativas criadas pelo governo se deu com a Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação – (atualmente reconhecida como Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) que implantou os cursos técnicos profissionalizantes, possibilitando o engajamento direto do aluno na força de trabalho (SILVA, 1992). A educação, então, passou a ser considerada uma alavanca capaz de preparar os sujeitos para o futuro. A escola seria a promotora não só de mão-de-obra, a fim de atuar no mercado de trabalho, mas também uma possibilidade de ascensão e mobilidade socioeconômica. A esta altura, parece que passamos inesperadamente de uma abordagem psicanalítica para outra de cunho sociológico. Entretanto, não podemos esquecer que Freud (1996g, p.20) ressaltava o fato de que “toda civilização repousa numa compulsão a trabalhar e numa renúncia ao instinto”, isso significa dizer que a substituição do princìpio do prazer pelo princípio da realidade é motivada não por fatores psíquicos, mas sim por um motivo econômico: a necessidade de trabalhar com o propósito de manter a sobrevivência, o qual acompanha a história e a cultura do homem e ganhou maior notoriedade com a instalação do modelo econômico capitalista. 84 Neste ponto, não podemos deixar de notar certa semelhança da teoria freudiana com o marxismo, uma vez que ambos destacam o papel central do trabalho na sociedade, bem como o caráter educativo e repressivo que o propaga como um dever a ser aprendido e reiterado perante os indivíduos desde a infância, a fim de que o homem possa vê-lo como atividade necessária e, assim, com sua força de trabalho e submissão de suas necessidades à cultura sirva de engrenagem para manutenção e reprodução desta realidade (FRIGOTTO, 2001; PISANI, 2004). Logo, não se pode dizer que Freud se mostrava alheio ao universo sociocultural de sua época, haja vista que seu estudo “caracteriza-se por uma obstinada insistência em expor o conteúdo repressivo dos valores e realizações supremas da cultura” (MARCUSE, 1975, p.36) e Eagleton (2006, p.229) reitera esta afirmação ao expor que “se Marx analisou as consequências de nossa necessidade de trabalhar em termos de relações sociais, [...] Freud estudou suas implicações para a vida psìquica”. Portanto, no processo de civilização oriundo do princípio da realidade, a sociedade necessita conter a estrutura instintiva e impulsiva do homem e o faz a partir da imposição de medidas coercitivas racionais existentes na cultura (necessidade do trabalho). Tais medidas são materializadas no sistema de instituições sociais (escola, família, religião, etc.), e aprendidas pelo homem que as internaliza e transmite à geração seguinte (MARCUSE, 1975), tornando-o, dessa forma, um veículo facilitador e mantenedor da civilização por promoverem inúmeras “vantagens mentais” (FREUD, 1996g, p.20), como por exemplo: a sobrevivência, a segurança, o conforto, a melhoria financeira, os bens materiais, a ascensão e a mobilidade social, etc., a fim de recompensá-lo pelo sacrifício da privação dos instintos. É exatamente neste ponto que os aspectos sobreditos adentram no plano interpretativo da personagem Yaqub, uma vez que são as possibilidades de ascensão financeira e de mobilidade social que, primeiramente, motivam esta personagem a renunciar à gratificação dos seus instintos e a se dedicar por inteiro ao estudo e ao trabalho. Além do mais, o fator econômico propiciador da substituição do princípio do prazer pelo princìpio da realidade, que se concretiza em “Dois Irmãos” através dos preceitos capitalistas, em voga no espaço temporal da narrativa, foi introduzido a ele por uma instituição social: a escola, particularmente, pelo professor de matemática, o padre Bolislau, que o motivou a migrar para o universo industrializado e moderno da região sudeste do Brasil (São Paulo): 85 Yaqub vinha ruminando a mudança para São Paulo. Foi o padre Bolislau quem o aconselhou a partir. “Vá embora de Manaus”, dissera o professor de matemática. “Se ficares aqui, serás derrotado pela província e devorado pelo teu irmão (Dois Irmãos, 2006, p.32). e “como toda e qualquer forma de princípio da realidade deve estar consubstanciada num sistema de instituições e relações sociais”(MARCUSE, 1975, p.51), este princìpio continuou a empreender sua força repressora sobre Yaqub através de outras instituições, nas quais a personagem se insere no decorrer da narrativa, como o exército, onde foi oficial, o casamento e, ainda no âmbito educativo, a Escola Politécnica e a Universidade de São Paulo, reforçando o redirecionamento de seus instintos para atividades superiores e fazendo-o interiorizar que a privação do prazer, a educação e o labor árduo são os únicos caminhos para o progresso e o bom êxito. De fato, essas as promessas de sucesso se concretizam na obra, uma vez que, conforme os anos passam, o narrador enumera os grandes feitos de Yaqub, a prosperidade e perfeição de sua vida, a ascensão econômica que possibilitou melhorias na casa e na loja da família, bem como a imponência que sua profissão trazia perante a sociedade e que o tornava “cada vez mais orgulhoso de si próprio, cada vez mais genial (Dois Irmãos, 2006, p.67), observemos essas características nas passagens a seguir: Zana não entendeu direito o significado da futura profissão do filho, mas engenheiro já bastava, e era muito. Um doutor (Dois Irmãos, 2006, p.45). O engenheiro se engrandecia, endinheirado. [...] Yaqub havia prosperado, aspirando, talvez, a um lugar no vértice. [...] ele não nada falou da engenharia e suas façanhas. Nem era preciso: tudo dava tão certo na vida dele que os atropelos e o purgatório do dia-a-dia só pertenciam aos outros. E nós éramos os outros. Nós e o resto da humanidade (Dois Irmãos, 2006, p.88). E, quando menos esperávamos, o pequeno deus agiu sobre nossa vida. Yaqub agiu e foi generoso. [...] O homem que estrebuchou por oitocentos e vinte dólares e uns poucos pertences transformou a nossa casa. [...] Uma boa amostra da indústria e do progresso de São Paulo estacionou diante da casa. [...] Yaqub surpreendeu ainda mais: mandou dinheiro para restaurar a casa e pintar a loja. Então, uma aparência moderna lustrou o nosso teto. [...] Graças a Yaqub, os nossos cômodos tornaram-se habitáveis em qualquer época do ano (Dois Irmãos, 2006, p.96-97). É importante salientar que, no percurso de renuncia do princípio do prazer e aceitação do princípio da realidade, a ida de Yaqub para São Paulo se mostrou como um evento imensamente importante, haja vista que favoreceu o contato desta personagem com uma região do país onde, naquela época, a civilização atingia seu ápice em decorrência do alto grau de desenvolvimento intelectual, científico e econômico, oriundo da modernização 86 capitalista. Foi neste lugar que ele se deparou concretamente com a imposição cultural da necessidade do trabalho e com as “vantagens mentais” que a adesão a esse universo poderiam lhe proporcionar. O próprio Yaqub relata em suas cartas à família “a perturbação da metrópole, a seriedade e a devoção das pessoas ao trabalho” (Dois Irmãos, 2006, p.44). Diante disso, as imposições econômicas da cultura agiram imediatamente em Yaqub e ainda “no sexto mês de vida paulistana começou a lecionar matemática” (Dois Irmãos, 2006, p.44), fazendo com que, deste momento em diante, o trabalho efetivamente passasse a ser o motor de sua vida e nesse processo, a inibição de sua agressividade foi um aspecto primordial, haja vista que somente com a anulação das características destrutivas e violentas é que o homem é capaz de desempenhar a docilidade necessária para ser subserviente à cultura e ao trabalho, pois “ o instinto de destruição, moderado e domado, e, por assim dizer, inibido em sua finalidade, deve, quando dirigido para objetos, proporcionar ao ego [...] o controle sobre a natureza” (FREUD, 1996h, p.125) e extrair as riquezas dessa através do trabalho. O afinco de Yaqub para com o trabalho aliou seu excessivo esforço e perfeição, já praticados desde os tempos da escola, à obstinação pela produtividade preconizada pelo princípio da realidade, empreendendo a mesma devoção e compromisso pela labuta que os paulistanos com quem convivia. Essa consagração pelo trabalho era notada por Nael quando Yaqub visitava a família em Manaus: Naqueles dias o que mais me impressionou foi a obstinação de Yaqub pelo trabalho. E também a coragem. Ele passava uma boa parte da noite trabalhando, a mesa da sala coberta de folhas quadriculadas, cheias de números e desenhos. Levantava-se às cinco, quando só eu e Domingas estávamos acordados (Dois Irmãos, 2006, p.148). Diferentemente de Omar, cuja dependência e receptividade escravizavam as mulheres da família para manterem seu sustento, a produtividade de Yaqub fazia com que ele recusasse qualquer ajuda financeira dos pais e o forçava a obter seus bens materiais apenas à custa de muito empenho e do suor de seu trabalho, vejamos algumas passagens: Os pais mandaram-lhe dinheiro e um telegrama; ele agradeceu as belas palavras e devolveu o dinheiro. Entenderam que o filho nunca mais precisaria de um vintém. Mesmo se precisasse, não lhes pediria (Dois Irmãos, 2006, p.45). Yaqub já estava casado, e, mais uma vez, não aceitara um vintém dos pais; talvez recusasse até uma dádiva da mão de Deus (Dois Irmãos, 2006, p.69). Isso acontecia, pois Yaqub acreditava que o trabalho, para ser estimado perante a sociedade e propiciar progresso e desenvolvimento, deveria ser penoso, árduo e jamais 87 prazeroso, ou seja, somente com resignação se obtém grandes frutos. Daí a valor dado por ele à solidão, às dificuldades financeiras e à labuta diária sofridas em São Paulo, sem aceitar qualquer ajuda da família, exprimindo o quanto sua personalidade estava adaptada à racionalidade imposta pelo princípio da realidade. Podemos notar esta perspectiva na passagem em que Yaqub expõe a importância dada por ele ao dinheiro conseguido com seu labor e que o irmão havia furtado: “Uma fortuna! A poupança de um ano de trabalho. Um ano calculando estruturas de casas e edifìcios na capital e no interior. Um ano vistoriando obras” (Dois Irmãos, 2006, p.93). Foi com esse espírito que ele se recusou a dar abrigo ao irmão, já que “acreditava que o sofrimento, a labuta, o transtorno do dia-a-dia e o desespero da solidão seriam decisivos para a educação de Omar. Ele não ia ajudá-lo. Acreditava que o desamparo engrandece a pessoa” (Dois Irmãos, 2006, p.81-82), o que em seu caso se aplica, uma vez que foi da convivência com o sentimento de abandono desde a infância que Yaqub pôde alcançar o princípio da realidade. Esse mesmo senso do trabalho também o levava a criticar a forma pouco rigorosa com que o pai administrava os negócios da família, a qual se mostrava atrasada e incompatível com a realidade por ele aderida, já que valorizava o prazer da convivência harmoniosa com a clientela em oposição à selvageria do lucro exorbitante. Os trechos a seguir são ilustrativos dessa questão: [...] ouço a voz dele criticar o comércio anacrônico do pai e os amigos que rodeavam o tabuleiro de gamão. “São pessoas que atrapalham o movimento da loja, uns urubus na carniça que ficam esperando o lanche da tarde. Assim vocês não vão muito longe (Dois Irmãos, 2006, p.87). [...] Halim, apoiando os braços no balcão, perguntou: “Para que ir tão longe? E o prazer do jogo, da conversa?” “O comércio não se alimenta de prazeres fortuitos”, disse Yaqub (Dois Irmãos, 2006, p.87). Segundo a perspectiva freudiana, o trabalho que amplia a base material da civilização é não-libidinal, isto é, desagradável, penoso e, por isso, precisa ser imposto a partir de medidas coercitivas, administradas pelo princípio da realidade (FREUD, 1996g, vol.XXI; MARCUSE, 1975), que reprimem a gratificação dos instintos, já que “os homens não são espontaneamente amantes do trabalho” (FREUD, 1996g, p.18) pelo fato de o funcionamento mental agir naturalmente através do princípio do prazer. 88 Logo, se não fosse pela convicção de que a renúncia dos prazeres momentâneos traria recompensas maiores no futuro; garantiria uma posição de destaque na sociedade e, quem sabe, chamaria para si a atenção da mãe e da família, depois de tantos anos atuando como coadjuvante, talvez Yaqub não tivesse aderido com tanto fervor à vida árdua do trabalho, ao progresso da civilização e ao princípio da realidade, “pois que motivo induziria o homem a colocar a sua energia [...] a serviço de outros fins, se pelo seu uso podia obter um prazer inteiramente satisfatório? Ele nunca se afastaria desse prazer nem realizaria maiores progressos” (MARCUSE, 1975, p.85). As repressões do princípio da realidade, juntamente com a severidade do superego e a rendição ao trabalho penoso afastaram Yaqub do caminho de animalidade traçado por seu irmão, haja vista que “com as proibições que as estabeleceram, a civilização - quem sabe há quantos milhares de anos? - começou a separar o homem de sua condição animal primordial” (FREUD, 1996g, p.20). Portanto, da mesma forma que Yaqub inibia a agressividade de sua estrutura psíquica, ele o fazia com os instintos sexuais, os quais eram mantidos em estado atenuado, pois sua energia libidinal e prazerosa era sublimada, ou seja, passava por uma transformação em que sua meta original (satisfação erótica) era desviada para outro canal de expressão socialmente aceitável e sem qualquer relação aparente com a sexualidade (LAPLANCHE, 2001; SCHULTZ & SCHULTZ, 2006), neste caso, o trabalho. Assim, Yaqub, mesmo sendo “alvo de olhares femininos” (Dois Irmãos, 2006, p.24) devido à “timidez que o fazia passar por galanteador” e seu “olhão de boto” (Dois Irmãos, 2006) que “encantava Domingas, arrancava suspiros das meninas nas praças, bailes e arraiais e prometia levar todas elas para o fundo do rio” (Dois Irmãos, 2006), não sucumbiu aos “versos de amor copiados de poetas românticos” (Dois Irmãos, 2006, p.24) contidos nos muitos bilhetes deixados a porta de sua casa, mantendo seu foco no estudo e no trabalho. Yaqub, de maneira inversa ao irmão, nunca teve muitas namoradas e nem se deixou levar pelo prazer do sexo descomedido e indiscriminado (até mesmo por que o superego com sua moralidade incisiva jamais permitiria tal comportamento libertino), sustentando em toda a narrativa um único relacionamento afetivo-sexual com Lívia, a primeira mulher por quem ele e o irmão se apaixonaram e com a qual Yaqub abraçou a vida monogâmica, através do casamento. É possível afirmar que a animalidade do prazer sexual jamais se concretizou em Yaqub, não apenas pela rigidez de seu superego, mas também por sua racionalidade e fervor ao trabalho, pois no dizer de Bataille (1987, p.105): 89 [...] uma sexualidade livremente transbordante diminui a aptidão para o trabalho, da mesma forma que um trabalho contínuo diminui a fome sexual. Há, pois, entre a consciência, estreitamente ligada ao trabalho, e a vida sexual uma incompatibilidade difícil de ser negada. Na medida em que o homem se definiu pelo trabalho e pela consciência, teve não só de moderar, mas de ignorar, e algumas vezes maldizer, em si mesmo a exuberância sexual (p.105), Diante de uma vida tão regrada, repleta de inúmeras coerções instintuais e imposições morais havia espaço para a felicidade na vida da personagem Yaqub? Se resgatarmos a visão freudiana ficará difícil contar com uma resposta positiva, já que como a felicidade só é conseguida com a plena satisfação das necessidades instintuais, as quais são restringidas por nossa constituição sócio-cultural que impõe o princípio da realidade, Yaqub, ao negligenciar o prazer vivendo apenas da atividade laboriosa, se acostumou a moderar suas reivindicações de felicidade (MARCUSE, 1975; FREUD, 1996h). Isso ocorre, pois diante das possibilidades de sofrimento, o homem cria uma falsa ilusão de felicidade, simplesmente por que escapou da infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento, colocando a intenção de obter prazer em segundo plano (FREUD, 1996h). Pelo princípio da realidade e à custa de muita renúncia, sofrimentos e da venda de seu trabalho, Yaqub conseguiu um alto controle sobre a sua vida, assim como a mobilidade social e a ascensão financeira. Todavia, jamais conseguiu possuir o amor e a atenção integral da mãe como o irmão e em tempo algum desfrutou da liberdade de poder determinar suas próprias necessidades e satisfações, permanecendo um ser coagido, domável, nunca integralmente realizado e, por isso, infeliz. Denotamos esta perspectiva na passagem em que Yaqub, alguns anos após o casamento e o surto de prosperidade em São Paulo, envia fotografias suas e da esposa para a família em cenários que ilustram toda a grandiosidade e sucesso alcançado, porém, deixam transparecer o descontentamento e o vazio de sua vida, vejamos: O engenheiro se engrandecia, endinheirado. [...] Yaqub havia prosperado, aspirando, talvez, a um lugar no vértice. Ele mudara de endereço, e o novo bairro paulistano onde morava dizia muito. O bairro e o apartamento, por que agora as fotografias enviadas por Yaqub revelavam interiores tão imponentes que os corpos diminuíam, tendiam a desaparecer. Rania reclamava disso: “Querem mostrar a decoração e se esquecem de mostrar o rosto”, dizia. Realmente, os rostos do casal Yaqub se afastaram da lente do fotógrafo (Dois Irmãos, 2006, p.95). Desse modo, podemos inferir que tanto Yaqub, ao abraçar a realidade de maneira feroz e racional, como Omar, que deu livre caminho para seus desejos, praticaram comportamentos 90 extremados, se tornando verdadeiros escravos, inteiramente sujeitos ao julgo de seus senhores: a razão e o prazer, respectivamente. Devido a isso, nenhum dos dois conseguiu gozar de uma vida plenamente realizada, uma vez que “qualquer escolha levada a um extremo condena o indivìduo a ser exposto a perigos, que surgem caso uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se mostre inadequada” (FREUD, 1996h, p.91). Assim, fica fácil compreender a sábia fala do narrador ao apontar que “a loucura e a paixão de Omar, suas atitudes desmesuradas contra tudo e todos nesse mundo não foram menos danosas do que os projetos de Yaqub: o perigo e a sordidez de sua ambição calculada (Dois Irmãos, 2006, p.196). 2.2 QUALQUER DESSEMELHANÇA NÃO É MERA COINCIDÊNCIA: A PERSONA E A SOMBRA NO PAR FRATERNAL YAQUB E OMAR Algo que ocultávamos nos enfraquecia, até percebermos que esse algo éramos nós mesmos. 21 Robert Frost Na sessão anterior verificou-se, por meio dos princípios do prazer e da realidade, as diferenças presentes nas personalidades de Omar e Yaqub e de que maneira essas disparidades e os comportamentos extremistas dessas personagens tornava obscura a mesma aparência física compartilhada por ambos. Contudo, após vários episódios de forte tensão entre os irmãos, a oposição presente na personalidade dos gêmeos acaba se diluindo não podendo mais se distinguir o rapaz “certinho” e ìntegro de seu opositor. Notamos estas perspectivas na medida em que Yaqub, o gêmeo tímido, calculista e racional, se deixa levar pelo ódio e rancor, arquitetando silenciosamente uma intensa vingança contra o Omar: [...] enviaram cartas a Yaqub, pediram-lhe que perdoasse Omar, ou pelo menos esquecesse tudo. Yaqub não respondeu a ninguém. Rânia logo percebeu que o irmão, em São Paulo, contratara advogados e coordenava a perseguição ao Caçula. [...] Aos poucos, ela foi descobrindo que o irmão distante havia calculado o momento adequado para agir. Yaqub esperou a mãe morrer. Então, com truz de pantera atacou. (Dois Irmãos, 2006, p.191-192). 21 Disponível em: ZWEING, Connie; ABRAMS, Jeremiah. Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 91 Ao mesmo tempo, o bom vivant, agressivo e insubordinado Omar, após a morte de seus pais e do período que passa na prisão, se tornou cada vez mais introspectivo, fragilizado e retraído. Ele se isola do convívio social e familiar, não possuindo mais o ardor e a insolência que o levava a enfrentar as aventuras e os prazeres da vida: Rânia fez de tudo para se aproximar dele, mas Omar se esquivava, fugia da irmã e de todos os vizinhos. Durante uns meses ainda foi visto aqui e ali, perambulando à noite pela cidade (Dois Irmãos, 2006, p.195). Talib o encontrou uma vez, e diz que só falava da mãe. Chorou, com desespero, quando o viúvo quis acompanhá-lo até o cemitério para visitar o túmulo de Zana (Dois Irmãos, 2006, p.195). Diante disso, a possibilidade de colocar os irmãos em um plano maniqueísta é malograda, uma vez que aspectos reprimidos e ocultos dessas personagens os quais, possivelmente, sempre se fizeram presentes, sendo arrastados por eles em uma sacola invisível (BLY, 2004), ganham vazão no decorrer da narrativa, deixando transparecer em Yaqub e Omar o que eles haviam encoberto por uma máscara, isto é, o que de Mr. Hyde havia nos conteúdos mais profundos de Dr. Jekyll22. Passamos, então, a questionar se além da fisionomia e do parentesco não existem outros pontos de convergência entre os irmãos, ou seja, será possível encontrar semelhanças entre duas personagens aparentemente tão diferentes? Na tentativa de achar respostas, encontramos ancoragem nos arquétipos persona e sombra de Carl Jung (2008a). Os arquétipos são conteúdos do inconsciente coletivo23 que correspondem a padrões recorrentes, temas, resíduos arcaicos, ou, conforme denominava Jung (2008a; 1964), imagens primordiais e universais, as quais existem em todo o tempo e em todo lugar, desde épocas 22 O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde é uma obra escrita, em 1886, pelo autor Robert Louis. O romance conta a história de um advogado londrino que investiga a estranha ligação entre o seu velho amigo, o conceituado Dr. Jekyll, e o perturbante e duvidoso Mr. Hyde. O comportamento do Dr. Jekyll começa a preocupar os seus empregados e amigos, pois este recebe constantemente visitas de Hyde e fica cada vez mais recluso em seu laboratório. Temendo pela vida do amigo, o advogado resolve tirar a limpo a história e vai à residência do médico, a fim de procurar uma explicação para tão bizarro comportamento. No surpreendente final, o Dr. Jekyll revela que ele e Mr. Hyde são um só, em resultado de uma experiência realizada no seu laboratório. Ao tomar a fórmula, a sua personalidade dividiu-se, ora tomando a forma do amável médico ora a do temível Mr. Hyde. 23 É o nível mais profundo da personalidade e diz respeito ao armazenamento e acúmulo de experiências da espécie humana, as quais são transmitidas a cada nova geração (JUNG, 1964; JUNG, 2008a; SCHULTZ & SCHULTZ, 2006). Jung (1964, p.67) entendia que da mesma forma como o nosso corpo corresponde a um “(...) verdadeiro museu de órgãos, cada um com a sua longa evolução histórica, devemos esperar encontrar também na mente uma organização análoga. Nossa mente não poderia jamais ser um produto sem história, em situação oposta ao corpo em que existe”. 92 mais remotas. Eles “são repetidos na vida de várias gerações subsequentes, [...] gravados na nossa psique e expressos nos nossos sonhos” (Schultz & Schultz, 2006, p.97), fantasias, mitos, contos e lendas populares de épocas e culturas diferentes. No que diz respeito ao arquétipo da persona esse corresponde a uma máscara, um rosto público usado pelo indivíduo com o intuito de apresentar-se como alguém diferente do que verdadeiramente se é, ou seja, “poderíamos até dizer que a persona é o que não se é realmente, mas sim aquilo que os outros e a própria pessoa acham que se é” (JUNG, 2008a, p.128). A persona é uma forma de adaptação do indivíduo em sua relação com o mundo, sendo “necessária porque somos forçados a representar vários papéis na vida para nos sairmos bem na escola e no trabalho e para nos darmos bem com uma série de pessoas” (Schultz & Schultz, 2006, p.93). Assim em favor de uma imagem ideal de personalidade com a qual o indivíduo se identifica e deseja moldar-se, ele rejeita várias de suas características, potencialidades e sentimentos que são inadequadas a sua auto-imagem e os relega ao inconsciente, recusando-se a admitir sua existência (ZWEING e ABRAMS, 2004. JUNG, 2008a, JUNG, 2008b). Tais conteúdos e características da personalidade que o consciente se recusa a admitir são negligenciados e enterrados na “sacola invisìvel”, chamada sombra, arquétipo que contém o lado mais obscuro da natureza humana. Ele é formado pelos instintos animais básicos e primitivos, bem como por tudo aquilo que seja contrário à atitude consciente escolhida em relação à personalidade e que foram reprimidos para o inconsciente (ZWEING e ABRAMS, 2004; PITHON, 2006). A sombra se desenvolve na medida em que passamos a nos identificar com características ideais de personalidade (persona), as quais são moldadas a partir da necessidade de aprovação do sujeito, seja do mundo familiar como social. Dessa forma, enterramos na sombra tudo aquilo que não é adequado à nossa autoimagem ou que, por alguma razão, ameaça a integridade do ego. Pithon (2006, p.26) esclarece que a sombra corresponde ao eu reprimido ou rejeitado e contém os aspectos obscuros negados pelo ego, tratando-se de “desejos reprimidos e de impulsos não-civilizados, de motivos moralmente inferiores, de fantasias e ressentimentos infantis, etc.”. A autora alega ainda que “ estes aspectos obscuros, muitas vezes, dizem respeito aos defeitos e características não necessariamente negativas, mas julgadas como tal pelo ego, aprendidas durante toda a infância, e tidas como inadequadas pelo indivìduo” (2006, p.26). 93 Assim, a sombra contém “todos os tipos de potencialidades não desenvolvidas e não expressas [...] ela representa as características que a parte consciente recusa-se a admitir e, portanto, negligencia [...] até redescobri-las em confrontos desagradáveis com os outros” (ZWEING e ABRAMS, 2004, p.17). Sobre isso, Jung (2008a, p.31) afirma que o encontro com a sombra representa o reflexo no espelho, já que o espelho não lisonjeia, mostrando fielmente o que quer que nele se olhe; ou seja, aquela face que nunca mostramos ao mundo, porque a encobrimos com a persona, a máscara do ator. Mas o espelho está por detrás da máscara e mostra a face verdadeira. [...] o encontro consigo mesmo pertence às coisas desagradáveis que evitamos, enquanto pudermos projetar o negativo à nossa volta. Dessa forma, podemos inferir que Yaqub e Omar aderiram à persona do “rapaz moralmente correto” e do “bom vivant agressivo” respectivamente, no intuito de possuir uma personalidade que lhe concedessem aprovação e respeito perante os outros, seja buscando a atenção e o prestígio negligenciados no seio familiar, no caso de Yaqub, ou a manutenção do afeto e da total devoção da mãe às suas necessidades, no que se refere a Omar, conforme se observa a seguir: Um outro Yaqub, usando a máscara do que havia de mais moderno no outro lado do Brasil. Ele se sofisticava, preparando-se para dar o bote: minhoca que se quer serpente, algo assim. Conseguiu. Deslizou em silêncio sob a folhagem. Por fora, era realmente outro. Por dentro, um mistério e tanto: um ser calado que nunca pensava em voz alta (Dois Irmãos, 2006, p.45). Tinha asas, era impulsivo, mas faltou-lhe força para voar alto [...] No fundo, Omar era cúmplice de sua própria fraqueza, de uma escolha mais poderosa do que ele; [...] Preferiu as putas e o conforto do lar a uma vida humilde ou penosa com a mulher que amava. Tentou se conformar com essa frustração que ele supunha pacificada, e nunca mais ousou entregar-se a mulher nenhuma (Dois Irmãos, 2006, p.109-134). Partindo da perspectiva de Yaqub, à semelhança de Dr. Jekyll, sua máscara escondeu os aspectos mais perversos, agressivos, desagradáveis, emotivos e moralmente inferiores de sua personalidade, elegendo como imagem ideal a figura do ser racional, moral, submisso, entregue ao estudo e ao trabalho penoso, isto significa dizer que Yaqub sentia “a necessidade de ser aprovado pelos seus semelhantes e por isso, assumia uma postura diante da sociedade, ou seja, adotava uma persona agradável que lhe granjeava a aprovação e o respeito dos outros” (SANFORD, 2004, p.52) Tal atitude fez com que sua sombra assumisse o caráter negativo, deixando a moralidade, a rigidez de comportamento e os compromissos para o ego, enquanto ela própria 94 ela toma para si os impulsos interiores e proibidos, completamente alheia e isenta dos efeitos atenuantes de qualquer sentimento de certo ou errado (SANFORD, 2004; ZWENG & ABRAMS, 2004). No plano referente a Omar, o inverso acontece: sua máscara oculta todo o potencial intelectual, moral e passivo de sua personalidade, restando apenas a volúpia, a violência, o ócio, assim como o desejo e o prazer imediatistas, podendo ser comparado com a figura de Mr.Hyde que “não é espicaçado pela consciência e é incapaz de sentir culpa” (SANFORD, 2004, p.52). Logo, a sombra de Omar se mostra repleta de características positivas que foram reprimidas e com as quais ele não se identificou. Sobre isso, Whitmont (2004, p.40) nos fala que a sombra positiva é evidenciada quando “a pessoa é incapaz de integrar seu potencial positivo e se desvaloriza em excesso, ou quando ela é idêntica [...] ao próprio lado negativo, então o potencial positivo torna-se a caracterìstica da sombra.” Entretanto, Yaqub e Omar não reconhecem os aspectos de suas sombras como parte de si mesmos, aceitando as máscaras como suas verdadeiras personalidades. De acordo com Jung (2008b; 1964a), Whitmont (2004), Zweing e Abrams (2004) e Pithon (2006), isto ocorre, pois não podemos olhar diretamente para a sombra por ela representar o nosso eu reprimido; ela é tudo aquilo que não desejamos jamais ser ou aceitar em nós mesmos, por isso a negligenciamos. Entretanto, os conteúdos enviados para a sombra escapam ao domínio consciente e tentam, a todo instante, encontrar vazão e isso se torna ainda mais complicado quando a sombra é ignorada, já que se torna hostil, perseguidora, uma verdadeira inimiga. Se Yaqub e Omar não reconheciam suas sombras e muito menos podiam se defrontar com elas diretamente, de que forma os conteúdos reprimidos destas personagens se revelaram? Eles encontraram um modo seguro de aflorarem, uma forma externa em que pudessem ser observados e criticados livremente, evitando, assim que fossem reconhecidos no interior de cada um dos irmãos: arremessando-os sobre os traços e ações desagradáveis de outras pessoas (ZWEIG & ABRAMS 2004) e, no caso das personagens em questão, ninguém melhor para servir de depositário da minha sombra do que aquele com quem se compartilha a mesma aparência física, mas que jamais poderá ser eu: o irmão gêmeo. Dessa maneira, Yaqub e Omar viam um ao outro como seres repugnantes, odiosos e inaceitáveis, cuja companhia ou até mesmo a recordação do irmão fosse, extremamente, negada e evitada em quase todas as circunstâncias, até mesmo em eventos, como quando Yaqub se recusa a hospedar Omar em sua casa, em São Paulo: 95 Yaqub negou abrigo ao irmão. Escreveu à mãe que podia alugar um quarto numa pensão para Omar e matriculá-lo num colégio particular [...], mas não ia permitir que o irmão dormisse sob o seu teto. “Que ele encontre o caminho dele, mas longe de mim, muito longe da minha seara” (Dois Irmãos, 2006, p.78). ou quando Omar expõe a ojeriza pelo irmão e impede a existência de fotografias de Yaqub na casa da família em Manaus: Ele não queria ouvir falar de Yaqub, o nome do irmão o estorvava (Dois Irmãos, 2006, p.168) Omar exigia que nenhuma fotografia do irmão fosse vista na sala (Dois Irmãos, 2006, p.172) Notamos que Yaqub e Omar passam a reconhecer suas sombras refletidas um no outro, ou seja, a perversidade, a amoralidade e a agressividade são vistas por Yaqub apenas em Omar, e não em si mesmo. Esse processo ocorre através do mecanismo inconsciente da projeção, onde encontramos nos outros algo que é parte de nós, mas não queremos ver (MILLER, 2004). Logo, se confrontar com o irmão implica, necessariamente, ver refletida nele a sua própria sombra, daí a recusa em desempenhar tal ato, fator que destrói qualquer possibilidade de uma relação afetuosa e autêntica entre Yaqub e Omar e, ao mesmo tempo, contribuiu para o aparecimento das intrigas e da rivalidade entre ambos. Por isso, o relacionamento de Yaqub e Omar é marcado por uma projeção mútua de sombras, onde Yaqub projeta no irmão aspectos moralmente inferiores, enquanto Omar projeta em Yaqub características valorizadas socialmente. É possível observar essa afirmativa por meio da forma como cada um das personagens descreve seu irmão, a partir das passagens abaixo: Yaqub reportando-se a Omar: “Um mal- agradecido, um primitivo, um irracional, estragado até o tutano. Fez pouco de mim e de minha mulher.” (...) O patife! Muito bem, que o pulha levasse o passaporte, a gravata de seda, as camisas de linho, mas dinheiro... “Deixou a mixaria, deixou o que ele é. Esse é o teu filho. Um barami, ladrão!” Mimem esse crápula até ele acabar com vocês! Vendam a loja e a casa! Vendam a Domingas, vendam tudo para estimular a safadeza dele! (Dois Irmãos, 2006, p.91-93). 96 Omar falando sobre Yaqub: Omar leu a carta e começou a rir como se estivesse caçoando de todos. Mas o tom de zombaria se desfez: “O que o sabichão quer dizer com cena bìblica, hein, Rânia? O que o teu irmão entende de civilidade? (...) “Um cena bìblica, não é? Então vamos ver se o sabichão conhece mesmo a bìblia” (Dois Irmãos, 2006, p.171-172). “Acertei em cheio o professor de matemática, o mestre do teu filho querido, o que só tem cabeça” (Dois Irmãos, 2006, p.171-172). “Omar [...] mandou um bilhete desaforado, xingando o irmão de „fresco, pulha e falso‟” (Dois Irmãos, 2006, p.78). Neste ciclo, Yaqub vê em Omar uma ameaça, pois ele é detentor de características que, se forem assumidas, denegrirão sua imagem de rapaz “politicamente correto”, por isso o chama de “ladrão, patife e safado”. Em contrapartida, Yaqub é para Omar elemento de inveja, já que o irmão atingiu todo o sucesso financeiro, profissional e intelectual jamais conseguido por ele, fazendo com que Omar se remeta ao Yaqub como “o gênio, o cabeça da famìlia, o filho exemplar”, porém com forte tom de sarcasmo e ironia. Pithon (2006) nos revela ser essa a maneira pela qual é delineada a dupla de rivais, na medida em que o irmão recebedor da carga positiva se torna objeto de inveja e aquele que recebe a carga negativa se transforma em objeto ameaçador. Figura 1: processo da projeção mútua de sombras entre os irmãos Yaqub e Omar. Fonte: Elaboração própria a partir do referencial teórico A projeção mútua de sombras faz com que o convívio entre Yaqub e Omar se torne insuportável e agressivo, já que o irmão se transforma no “lado sombrio de si mesmo, o Outro desconhecido do Eu” (CURY, 2007, p.91), o inimigo que precisa ser eliminado, dando inìcio a uma rivalidade sangrenta que acompanhará o desmoronamento da família. Levando em 97 consideração o dizer de Whitmont (2004, p.37), é possível afirmar que tais características decorrem em virtude de a sombra ser [...] a experiência arquetìpica do “outro”, aquele que, por ser estranho, é sempre suspeito. A sombra é o impulso arquetípico de buscar o bode expiatório, de buscar alguém para censurar e atacar a fim de nos vingarmos [...]; ela é a experiência da culpabilidade que sempre recai sobre o outro [...]. Em outras palavras, na medida em que é preciso que eu seja bom e justo, ele, ela ou eles tornam-se os receptáculos de todo mal que deixo de reconhecer dentro de mim mesmo. Partindo desse pressuposto fica fácil entender o “porquê” de tantos episódios de digladiação física, insultos e perseguições entre essas personagens, haja vista que é necessário eliminar o inimigo, aquele que ameaça a integridade do ego e a imagem idealizada de mim mesmo. Outra característica presente nos irmãos Yaqub e Omar e que torna a questão da rivalidade ainda mais crítica está relacionada à gemelidade. Irmãos gêmeos ou de mesmo sexo são o nosso reflexo no espelho, “que revela tanto uma profunda identidade quanto uma profunda diferença. Quer ligados pelo sangue ou pelo espírito, podemos ver um no outro a sombra e o eu” (ZWEIG e ABRAMS, 2004, p.85). A figura do irmão gêmeo remonta à reprodução de um mesmo rosto e corpo, demandando dos indivíduos duplicados uma necessidade incessante de individuação e diferenciação de sua “cópia”, representada na obra pela personalidade diametralmente oposta dos irmãos. Isso se deve ao horror da presença do duplo que, conforme diz Bravo (2005), simboliza “o medo de viver consigo mesmo” e Costa (2010, p.61) reitera afirmando que criaturas que se repetem dão a impressão de que uma delas [...] está sempre sobrando, como se houvesse ali um simulacro e uma matriz, um original e uma cópia. Por causa dessa necessidade de autoafirmação, eles estarão competindo cada vez mais por espaço, amor e atenção para se afirmarem enquanto seres não-fragmentados. A ideia de original e cópia, bem como de que um dos duplos fica deslocado e sobrando é figurada na narrativa se tomarmos a fala do narrador Nael, quando se refere às semelhanças entre os irmãos e ao desejo recorrente em Yaqub de permanecer distante do seio familiar, por não conseguir reintegrar, verdadeiramente, a casa cujo espaço há muito lhe haviam negado. Vejamos passagens da narrativa que ilustram essas questões: [...] ele dizia, e com uma voz tão parecida com a do irmão que Domingas, assustada, procurava na sala um Yaqub de carne e osso (Dois Irmãos, 2006, p.46). 98 Rânia hipnotizava-se com a presença do irmão: uma réplica quase perfeita do outro, sem ser o outro. Ela o observava, queria notar alguma coisa que o diferenciasse do Caçula (Dois Irmãos, 2006, p.17). Faz anos que não vemos o Yaqub (Dois Irmãos, 2006, p.84). A visita de Yaqub mesmo que passageira, permitiu que eu o conhecesse um pouco (Dois Irmãos, 2006, p.85). Cresci vendo as fotos de Yaqub e ouvindo a mãe dele ler suas cartas (Dois Irmãos, 2006, p.85). A projeção dos conteúdos da sombra no irmão de mesmo sexo, ainda que ele possua, realmente, as características atribuídas, embaça a visão dos sujeitos envolvidos, dificultando o estabelecimento de uma relação amigável, conforme é delineado no romance, na forma como cada um dos irmãos vê o outro. Como descrito por Whitmont (2004), a projeção fornece a ilusão de estar se confrontando com a própria sombra, a qual distorce a visão real do outro, e o fator agravante desta situação está no fato de que os irmãos vão “reprimir e projetar a sombra mutuamente, muitas vezes em busca de uma personalidade valorizada pelos pais e, ao mesmo tempo, irão competir pelo amor, admiração e atenção dos mesmos, como se ambos não pudessem ter acesso a este afeto ao mesmo tempo” (p.37). Tal aspecto está intimamente relacionado ao papel da família, uma vez que o contexto familiar constitui o espaço propício para a eclosão da competição pelo afeto, principalmente, quando um dos pais escolhe o filho preferido, fazendo surgir no irmão sentimentos hostis, rivalidade e a necessidade de disputa do amor, da atenção e dos privilégios, os quais não estão sendo despendidos de maneira igualitária em sua concepção (PITHON, 2006). Tendo em vista o desenrolar da narrativa, notamos essas perspectivas na disputa de Yaqub e Omar pela mãe, oriunda da grande discrepância do tratamento de Zana para com seus filhos, assim como na maneira pela qual foram criados. Além de ter todas suas necessidades básicas de sobrevivência atendidas, Omar ainda possuía a superproteção da mãe, bem como desfrutava dos mais renomados passeios e privilégios. Yaqub, no entanto, vivia a mercê da boa vontade de Domingas para lhe oferecer afeto e dedicação, sendo uma figura esquecida e apagada diante das glórias de seu irmão. De relações com a família marcadas por dubiedades (proteção X negligência; devoção X abandono; preferência X esquecimento), os irmãos partem para caminhos opostos durante a vida adulta, em um futuro de infelicidades pessoais, permanecendo como eternos rivais. Além disso, se pensarmos que tanto Yaqub como Omar refletem a parte reprimida da personalidade um do outro, isto é, a sombra, eles poderiam ser vistos como seres 99 complementares, cuja completude só ocorreria com a reconciliação de ambos, a qual promoveria a integração da sombra (PITHON, 2004), pois na relação entre irmãos do mesmo sexo, eu sou quem ele não é. Ele é o que eu mais gostaria de ser, mas acho que nunca serei, e também o que mais me orgulho de não ser, mas tenho medo de vir a ser (DOWNING, 2004). A perspectiva da complementaridade entre os irmãos e a ideia de que um representa a parte oculta do outro é evidenciada na obra em várias passagens, tanto na fala do narrador, como de outras personagens. Vejamos algumas delas: [...] era tanto mais estranho por que, juntos, pareciam a mesma pessoa (Dois Irmãos, 2006, p.20) [...] olhava para Yaqub como se visse nele alguma coisa que o outro não tinha (Dois Irmãos, 2006, p.21) Talvez Rânia quisesse pegar uma daqueles pamonhas e dizer-lhe: Observa o meu irmão Omar; agora olha bem para a fotografia do meu querido Yaqub. Mistura os dois, e da mistura sairá o meu noivo (Dois Irmãos, 2006, p.73). Entretanto, como a reconciliação não se concretiza na narrativa, impera entre Yaqub e Omar a infelicidade e o desejo de destruição um do outro, vendo o irmão como um mensageiro da morte, o duplo que “traz consigo o terror de alguém em ver sua sombra sempre presente, indicando o seu fim latente” (COSTA, 2010, p.17), como se apenas a destruição de um pudesse trazer a sobrevivência do outro. Porém, conforme salienta Zweig e Abrams (2004, p.28) “se num momento crucial um homem vê o outro como sombra/inimigo, esse irmão poderá morrer pelas mãos do seu gêmeo”. Contudo, naquele exato momento, uma parte do irmão assassino também morre. 100 3. A RELAÇÃO FRATERNA DE YAQUB E OMAR: CAMINHOS DE PARADOXOS EMOCIONAIS E disse o Senhor a Caim: “Onde está Abel, teu irmão?” E ele disse: “Não sei; sou eu o guardador do meu irmão? Bíblia Sagrada, livro de Gênesis, 4,9 “Fraternidade”, “Fraterno”. Palavras utilizadas cotidianamente para expressar o parentesco formado por irmãos e relações de irmandade, onde predominam o amor ao próximo, a união, a relação afetuosa, a harmonia, a paz e a concórdia (FERREIRA, 2009, p.935). Todavia, conforme nos mostra Britto (2002) a convivência pacífica e amistosa está longe de ser uma realidade na maioria dos relacionamentos fraternos. O lado oculto e sombrio desse vínculo, marcado pela rivalidade, altera “de forma dramática a natureza conceitual da ligação entre eles, a ponto de apenas restar a soberania inquestionável do parentesco, única coisa que os irmãos ainda não conseguiram eliminar” (p.17). Tal aspecto se dá, pois, com o irmão, esta figura de extrema importância no processo de construção da subjetividade e primeira experiência no eixo das relações horizontais simétricas, não mantemos um vínculo de dependência e subordinação, conforme aquele observado com os pais. Além do mais, a convivência com um irmão nunca é escolhida e muito menos eleita, como ocorre nas melhores amizades, ela é imposta, dada a nós por imposição do destino e dos pais (BARCELLOS, 2009), um dos fatores que favorece para que, na maioria das vezes, o laço fraterno se mostre problemático/conturbado, predominando em seu interior situações de distanciamento, competição, ciúme, inveja e afastamento (BRITTO, 2002; BARCELLOS, 2009; PITHON, 2006). De fato, rivalidade e inveja, ciúme e competição são aspectos inerentes à constelação fraterna, haja vista que estão profundamente enraizados em nossa tradição cultural, representando uma ferida muito profunda e inconsciente que acompanha a história de nossa civilização (BARCELLOS, 2009; BRITTO, 2002), sendo encontrados, por exemplo, na clássica narrativa bíblica dos irmãos Caim e Abel que, religiosamente, delimita o inicio das relações fraternas a partir de uma história de competição, rivalidade e ciúme entre irmãos, cujo desfecho leva ao fratricídio. 101 Logo, somos herdeiros de uma tradição cultural e religiosa que demarca o início das relações fraternas num patamar de horror, morte e impossibilidade de afetividade, pois ao mesmo tempo em que se descobre no irmão a figura do “semelhante”, capaz de possibilitar o convìvio entre iguais numa relação horizontal, também favorece a imagem do “inimigo”, o adversário com quem é necessário compartilhar o amor preferencial dos pais e que, por isso, impulsiona o aparecimento do desejo de vencê-lo e eliminá-lo (BRITTO, 2002; PITHON, 2006). Daì a questão de que em “nenhum outro relacionamento os paradoxos emocionais de intimidade e distância, longe e perto, igual e diferente estão como categorias, tão ardentes, tão aparentes, tão imediatos” (BARCELLOS, 2009, p.17-18) como na relação fraterna. Em “Dois Irmãos”, é Nael quem reaviva a presença da rivalidade fraterna como uma ferida inconsciente de nossa tradição cultural, uma vez que ele, qual a um oráculo, cuja sentença ou decisão é infalível e inspira absoluta confiança e autoridade (FERREIRA, 2009, p.1445), prediz em vários momentos da narrativa o desfecho dramático que terá a relação de Yaqub e Omar, como se verdadeiramente os irmãos tivessem “nascido perdidos” (Dois Irmãos, 2006) e fadados à irreconciliabilidade, conforme observamos a seguir: A cicatriz já começava a crescer no corpo de Yaqub. A cicatriz, a dor e algum sentimento que ele não revelava e talvez desconhecesse (Dois Irmãos, 2006, p.22). [...] fui o observador desse jogo e presenciei muitas cartadas, até o lance final (Dois Irmãos, 2006, p.23). O abismo mais temível estava em casa, e este Halim não pôde evitar (Dois Irmãos, 2006, p.33). O duelo entre os gêmeos era uma centelha que prometia explodir (Dois Irmãos, 2006, p.46). Assim, neste capítulo, após termos conhecido os protagonistas da trama rivalitária proposta por Hatoum, bem como as influências da dinâmica familiar na eclosão do conflito entre os irmãos, passaremos a desnudar a relação fraterna de Yaqub e Omar, evidenciando a maneira como estas personagens experienciaram a rivalidade fraterna e, dessa maneira, verificar as causas latentes que encobrem os possíveis motivos das brigas, dos insultos, da disputa e da irreconciabilidade entre os irmãos. 102 3.1 PRATICANDO A RIVALIDADE FRATERNA 3.1.1 O preparo da arena para a batalha No primeiro capítulo deste trabalho destacamos a relevância do contexto familiar na formação do laço filial constituído por Yaqub e Omar, especialmente, no que tange à relação destas personagens com seus pais, Zana e Halim, antecedentes responsáveis pela formação da família, cuja história é versada por Milton Hatoum. Nesta sessão, a perspectiva parental retornará a nossa discussão, uma vez que a arena onde ocorrerá a efetiva rivalidade entre os antìpodas de “Dois Irmãos” será preparada e alavancada por uma ação parental: a iniciativa de Zana, mesmo sem a aprovação de Halim, em gerar uma Fratria, isto é, o grupo fraterno que irá compor sua linha de descendência. Na visão de Britto (2002), a fratria é introduzida com o nascimento do segundo filho. É a chegada deste elemento secundário que inserirá na dinâmica familiar o tripé de sustentação da rivalidade fraterna, isto é, os sentimentos de competição, ciúme e inveja. Tal questão ocorre, pois, a chegada do irmão “vai provocar um „terremoto‟ afetivo no mundo do até então filho único, pois vai abalar seus privilégios, obrigá-lo a dividir vantagens, além de reorganizar o funcionamento familiar” (GOLDSMID, 2009, p.29). O primogênito após a chegada do irmão é obrigado a renunciar as suas fantasias de onipotência, de ser o único para os pais e para o mundo, em função de um “estrangeiro”, um “intruso”, aquele que com sua presença é capaz de perturbar o equilíbrio construído, tornando-o apenas mais um entre outros (GOLDSMID, 2009, BRITTO, 2002). Kaës (2011) reitera esta questão ao afirmar que a presença do irmão representa um impacto traumático na vida do primogênito, uma vez que a “criança não é mais o centro do mundo, ela é invadida pela inveja e pelo ódio a este intruso que a expulsa da posição que ela acha que tem no amor dos pais” (p.25). Freud (1996l, p.337) em seus estudos também aborda a situação do destronamento do primogênito em função da chegada de uma nova criança, bem como o sentimento egoístico de haver sido prejudicado que o domina. Segundo este autor, “as crianças são completamente egoístas; sentem suas necessidades intensamente e lutam de maneira impiedosa para satisfazêlas - especialmente contra os rivais, outras crianças, e, acima de qualquer outra coisa, contra seus irmãos e irmãs” (FREUD, 1996m, p.277-278). 103 Diante dos pressupostos acima, a esta altura o leitor pode estar se perguntado: “Qual a importância de tratar sobre o destronamento do primogênito em função da chegada de um irmão se nos defrontamos com um caso de filhos gêmeos na narrativa „Dois Irmãos‟?” De fato, a fratria disposta na narrativa principia com esta peculiaridade: irmãos que compartilham o mesmo útero materno e a mesma data de nascimento, não havendo, a princípio, uma hierarquia por ordem de chegada na fratria. Todavia, a relação de Yaqub e Omar se aproxima da situação discutida anteriormente não por um motivo temporal, mas simbólico, uma vez que os pais atribuem aos gêmeos os papéis de filho primogênito – Yaqub e caçula – Omar; são eles que dão sentido e reforçam a existência dessas categorias a partir de um critério determinado apenas pelos minutos que um dos filhos sucede o outro: “Omar, o Caçula, o gêmeo que nascera poucos minutos depois” (Dois Irmãos, 2006, p.12), “Nasceram em casa, e Omar uns poucos minutos depois” (Dois Irmãos, 2006, p.12). Dessa maneira, algo que potencialmente não deveria existir na relação de Yaqub e Omar, a hierarquização da ordem dos filhos, se torna uma realidade mediante a intervenção e o investimento representativo dos pais. Logo, a instalação dessas posições simbólicas na fratria, onde cada filho será obrigado a se enquadrar, somado ao lugar afetivo de destaque que Omar ocupará em relação ao objeto de desejo de Zana (aspecto este já elucidado no primeiro capítulo), a qual por meio do processo de preferência parental privilegia um filho em detrimento do outro, fazendo surgir um “preferido” e um “excluìdo”, serão a centelha que acenderá em Yaqub e Omar os sentimentos de ciúme e inveja, haja vista que promoverá a necessidade de disputa do amor, da atenção e dos privilégios, os quais não estão sendo despendidos de maneira igualitária em sua concepção, servindo de cenário para a rivalidade que transcorre na narrativa (PITHON, 2006; BRITTO, 2002). 3.1.2 Primeiro tempo da batalha: a competição pelo monopólio do amor materno Em “Dois Irmãos”, nos defrontamos com um par fraternal que instiga o interesse não apenas pelo caráter paradoxal que a relação de Yaqub e Omar encerra, mas, principalmente, pela busca incessante dessas duas personagens em encontrar a diferenciação e a individualidade em meio aos laços parentais e a idêntica aparência física que os une. Para os gêmeos de Zana e Halim, mais do que para qualquer outro par de irmãos, esse processo de diferenciar-se do Outro que, neste caso, se mostra igual num nível que vai além 104 do vínculo fraterno, se apresentava como algo extremamente intrincado, complexo e difícil de realizar, pois, na realidade, “dividir” sempre foi um aspecto inerente a Yaqub e Omar desde a gestação. Eles tiveram que conviver a vida toda com a divisão: do mesmo útero materno, dos mesmos pais, da mesma data de nascimento e da mesma aparência física. Todavia, é importante destacar que um dos primeiros sentimentos existentes no ser humano é o egoísmo (BRITTO, 2002) e dividir, de acordo com Goldsmid (2009), não é uma tarefa fácil, já que todos nós desejamos ser alguém único para aqueles que amamos, especialmente, a mãe ou cuidador, nosso primeiro objeto de investimento amoroso. Assim, na tentativa de obter a diferenciação, os gêmeos procuram um primeiro caminho: o desenvolvimento de personalidades contrárias, uma movida pelo princípio do prazer (Omar) e outra pelo princípio da realidade (Yaqub). Contudo, esta não foi uma tentativa completamente eficaz. Era necessário ser a figura de destaque, ser o preferido, o filho mais amado e, dessa forma, mostrar sua superioridade frente ao irmão. É neste momento que a competição se aloja na relação fraterna e o primeiro tempo da rivalidade dessa história começa. A competição, esta busca simultânea de dois ou mais indivíduos por um mesmo objetivo, uma vantagem, uma vitória ou por elementos necessários à vida que se mostram escassos no grupo ou comunidade de que fazem parte (FERREIRA, 2009), caminha lado a lado com a rivalidade desde a origem dessa palavra, uma vez que, conforme nos mostra Kaës (2011), rivalidade designa primitivamente o acesso à água pela margem de um rio, afluente ou lago, fator que obriga os homens a competirem, no intuito de garantir o espaço de melhor acesso a este bem tão necessário à vida. Transpondo o conceito de rivalidade para a relação de Yaqub e Omar, surge o seguinte questionamento: na narrativa, qual seria esse elemento água, o bem tão necessário para a manutenção da vida dessas duas personagens, que foi capaz de levar os irmãos à competição? No intuito de responder a essa indagação, chegamos ao primeiro e mais importante elemento partilhado por Yaqub e Omar: a mãe, Zana, figura que na visão da psicanálise é a principal responsável por prestar assistência, amparo, proteção, além de prover todas as necessidades físicas e emocionais do filho, agindo em prol da manutenção e da sobrevivência dessa criança. Zana é, então, a representação da água que impele os filhos a competirem pelo acesso a essa fonte de vida. Isso porque, a mãe, na visão de Elyseu Júnior (2003), corresponde a uma figura de posse, um bem que possui características para serem usufruídas pelo indivíduo de maneira imediata ou oportuna, já que, além de corresponder a uma figura sexual para o filho, ela assume o papel de provedora de alimento, proteção e afeto, aspectos determinantes na 105 manutenção da vida da criança. Por isso Kaës (2011, p.122) afirma que “o amor, o seio, o objeto possuído pelo outro são as margens em que se vive o risco da falta, da raridade”, por isso, é necessário lutar para ter acesso a esses recursos ou eles serão destinados a outrem e este ficará em falta (PITHON, 2006). Dessa maneira, Yaqub e Omar passam a ter um desejo em comum: obter a admiração, o amor e a atenção preferenciais da mãe, condição que cria um forte potencial para a presença de desafetos, capaz de transformá-los em ferrenhos adversários (GOLDSMID, 2009), uma vez que a eclosão da competição se nutre desse sentimento de ambição pela exclusividade, por ser o mais amado e o mais importante perante a figura disputada, neste caso, Zana. (BRITTO, 2002). Logo, Omar, que “durante anos [...] foi tratado como filho único, o único menino” (Dois Irmãos, 2006, p.12), em virtude da ausência do irmão, lutará para manter a soberania de sua unicidade junto à mãe. Já o primogênito Yaqub que nunca conseguiu reinar absoluto diante do amor de Zana, devido à presença imediata e constante do irmão, deseja incessantemente a exclusividade, como é possível vislumbrar na passagem a seguir: “Yaqub [...] desfilou com um ar de filho único que não era” (Dois Irmãos, 2006, p.31-32). Diante do supracitado, pensemos hipoteticamente numa outra realidade para a narrativa “Dois Irmãos”, onde Zana e Halim tivessem conseguido driblar os sentimentos hostis e competitivos de Yaqub e Omar, por meio de uma dinâmica familiar estruturada, do desenvolvimento de fortes vínculos de cumplicidade e integração entre os membros do grupo, sem tratamento diferenciado entre os filhos (BRITTO, 2002). Se esta suposição se concretizasse, além de não termos uma obra cujo brilhantismo do enredo ganhou o mundo, também não teríamos a animosidade entre essas personagens e a competição poderia ser saudável e equilibrada (GOLDSMID, 2009). Todavia, a narrativa verdadeira expõe exatamente o contrário desse paraíso familiar ideal. O que encontramos é um sistema relacional rígido, permeado por preferências, exclusões e privilégios de um filho em detrimento do outro: estamos falando da preferência afetiva de Zana por Omar, uma relação simbiótica que elucida a necessidade da matriarca em atribuir a este filho a personificação do falo que ela jamais possuiu. Dessa forma, Zana transforma Omar no filho eleito, o mais amado, cobrindo-o de mimos e privilégios, com a finalidade de mantê-lo preso aos vínculos maternos firmados desde a infância. É exatamente neste momento que o estopim da competição é deflagrado, haja vista que agindo dessa maneira, Zana inicia um processo chamado de preferência parental, onde os pais empregam condutas privilegiadoras em relação a um dos filhos, em detrimento de outros, 106 ocasionando o aparecimento de um “preferido” e um “preterido” (BRITTO, 2002; KAËS, 2011; PITHON, 2009; GOLDSMID, 2009). Por isso, é possível afirmar que não existe imparcialidade parental quando o assunto é rivalidade fraterna. Na realidade, a maioria delas origina-se justamente da diferença empregada por alguns pais no tratamento com seus filhos (BRITTO, 2002; BETTELHEIM, 2007). O processo de preferência parental ocorre dentro de um sistema que depende de pelo menos três elementos para existir, dos quais, dois serão comparados por um elemento terceiro, responsável por executar a escolha por um deles. É o sistema frequentemente encontrado na relação de uma mãe com dois filhos. Britto (2002) esclarece que este sistema de preferência surge no núcleo familiar a partir do nascimento do segundo filho, evento gerador do aparecimento de outro núcleo triangular, diferentemente do edípico, constituído pelos dois irmãos que serão comparados e a mãe, que é quem efetua a escolha. Tal núcleo triangular já havia sido suscitado por Freud (1996n), através da elaboração do conceito de Complexo de Família, que o autor descreve da seguinte maneira: Quando outras crianças aparecem em cena, o complexo de Édipo avolumase em um complexo de família. Este, com novo apoio obtido a partir do sentimento egoístico de haver sido prejudicado, dá fundamento a que os novos irmãos e irmãs sejam recebidos com aversão, e faz com que, sem hesitações, sejam, em desejos, eliminados (1996n, p.337). Atualmente, o Complexo de Família é reconhecido como Complexo Fraterno, o qual, no dizer de Kaës (2011, p.43), não se caracteriza apenas pelo lado negativo do vínculo fraterno, ou seja, aquele marcado pelo ódio, pela competição, ciúme e inveja, mas sim, designa uma organização intrapsíquica triangular dos desejos amorosos, narcísicos e objetais, do ódio e da agressividade em relação a este “outro” no qual um sujeito se reconhece como irmão ou como irmã. Como o complexo edipiano, o complexo fraterno inscreve na psique a estrutura das relações intrapsíquicas organizadas pela representação inconsciente das posições correlativas ocupadas pelo sujeito, pelo “irmão ou pela “irmã” e o terceiro termo que os liga, opondo-os na conflitualidade própria a este complexo. Kaës (2011) também demonstra que o complexo fraterno é tão crucial quanto o complexo de Édipo, uma vez que o segundo representa o eixo vertical da estruturação da psique, pois ao fazer variar o amor e o ódio pelos pais ajuda o indivíduo a discriminar as diferenças de sexo, das gerações e das relações hierarquizadas; já o primeiro é o eixo horizontal dessa estruturação, fazendo o homem se defrontar com o amor e o ódio não mais pelos pais e sim pelo semelhante contemporâneo: o irmão que será, ao mesmo tempo, familiar 107 e diferente, cujo modelo de vínculo servirá de base para outros relacionamentos na vida adulta (BARCELLOS, 2009). Contudo, em virtude da natureza dos conflitos fraternos dispostos na narrativa “Dois Irmãos”, exploraremos apenas o lado negro do complexo fraterno, ou seja, o triângulo rivalitário, Ego (Eu) – Pais (Mãe/Pai) – irmão/irmã, (KAËS, 2011), exposto por Elyseu Júnior (2003), como a hostilidade manifestada pela criança em relação aos seus irmãos, vistos como rivais, a qual é despertada pela ocorrência, possibilidade de perda ou divisão entre si do amor dos pais. Diante dos esclarecimentos supracitados, retomemos a questão da preferência parental empregada por Zana em “Dois Irmãos”. Este processo no qual participam três elementos, a saber: Yaqub – Zana – Omar, é movido pela comparação, ato desencadeador da escolha de um dos elementos que será o preferido da mãe. Comparar é sinônimo de pôr em igual nível, igualar (FERREIRA, 2009). Nesse sentido, a “escolha deve nascer de elementos equiparados, com atributos individuais distintos, mas com as posições dos status análogas” (BRITTO, 2002, p.226), haja vista que se não há a possibilidade de realizar a comparação, não existem motivos para a competição acontecer, como ocorre no triângulo edípico: a criança deseja possuir a mãe e, por isso, rivaliza com o pai, mas ela não busca a preferência, somente a posse, já que o pai hierarquicamente ocupa um papel superior sobre ela (BRITTO, 2002; KAËS, 2011). No que diz respeito aos gêmeos Yaqub e Omar, a comparação pode acontecer, pois, na condição de irmãos, os dois mantêm uma relação horizontal simétrica: são análogos por dividirem a mesma origem, o mesmo laço consanguíneo, a mesma aparência e, ao mesmo tempo, distintos já que possuem personalidades singulares. Assim, a escolha de Zana acontece: Omar. É com este filho que Zana deleitava-se da companhia, levando-o para passeios e bailes; é o filho a quem ela chama carinhosamente pelo apelido de “Meu mico-preto, meu peludinho” (Dois Irmãos, 2006, p.53); o Caçula para quem seu rosto se iluminava quando ouvia o assobio prolongado proferido por ele que anunciava sua chegada (Dois irmão, 2006, p.19) e a quem ela manteve sobre sua proteção, impedindo que fosse para o Líbano no lugar do irmão, mesmo sabendo da vilania cometida por Omar contra Yaqub. Entretanto, esta escolha parental traz consigo não só a preferência, mas também a atitude de menosprezo pelo preterido e, neste ensejo, quem se sentirá rejeitado e insultado como um perdedor é Yaqub, o qual “não entendia por que Zana não ralhava com o Caçula, e 108 não entendeu por que ele, e não o irmão, viajou para o Líbano dois meses depois [...]. Sim, por que ele e não o Caçula, perguntava a si mesmo” (Dois Irmãos, 2006, p.16). A rejeição e a indolência da mãe trazem a Yaqub o sofrimento da perda do amor materno e de tudo que ele lhe pode proporcionar (proteção, afeto, saciação das demandas fisiológicas advindas do id), fazendo com que o primogênito sinta aversão a Omar, elegendoo como seu grande inimigo, já que é ele quem o impede de possuir o amor exclusivo de Zana. Segundo Bettelheim (2007, p.327), a atenção especial de uma mãe por apenas um dos filhos só é vista como insulto pelo outro caso esse, em contraste, tema estar sendo menosprezado pelos pais, ou se sinta rejeitado por eles. É devido a essa angústia que um ou todos os irmãos ou irmãs de uma criança podem se tornar um tormento constante. O temor de que, em comparação com eles, ela não possa conquistar o amor e a consideração dos pais é o que atiça a rivalidade fraterna. No caso do preterido, este temor é alavancado pela presença da baixa autoestima e da falta de confiança em si mesmo apresentados frequentemente por estes filhos, os quais “têm em comum o fato de acharem que são um si-mesmo ruim em um mundo ruim, que não têm nenhum direito inquestionável à existência e que são, por fim, elas mesmas, culpadas” (KAST, 1997, p.173) por não serem os “filhos preferidos” da figura materna. Se pensarmos na narrativa “Dois Irmãos, de fato, Yaqub, principalmente durante a infância e a adolescência, nunca foi um notável exemplo de sujeito autoconfiante: ele não tinha fôlego “para acompanhar o irmão. Nem coragem” (Dois Irmãos, 2006, p.14); ensombreceu quando encontrou com sua grande paixão, Lívia e “Não teve coragem de falar com ela” (Dois Irmãos, 2006, p.16) e jamais enfrentou os insultos advindos dos colegas da escola por causa de sua cicatriz. Por isso, Yaqub se sentia tão ameaçado por Omar, cuja confiança transbordava em sua personalidade, uma vez que, de acordo com Freud (1996o, p.167), se um homem foi o predileto de sua mãe indiscutivelmente, ele conservará durante toda a vida o sentimento triunfante, a confiança em seu êxito. Nesse sentido, movido pelo sentimento vital de que precisa lutar por tudo que necessita, de que no lugar de amor não exigente, segurança e proteção, oriundos da figura materna, há somente solidão, a sensação de estar à mercê de alguém, o sentimento de não receber o bastante para a vida, mas em demasia para morrer (KAST, 1997), Yaqub elabora o desejo de ocupar o lugar de privilégio no amor de Zana, passando a almejar possuir todos os atributos e bens que ele acredita serem essenciais para que esse desejo se realize (BRITTO, 2002). E nesse percurso, era imprescindível superar Omar, mostrando-se superior, a fim de 109 atrair os olhares da mãe para si. Assim, a maneira encontrada por Yaqub para alcançar esse objetivo foi empreender uma luta desenfreada pela obtenção do sucesso profissional e financeiro, obtendo com isso ascensão e prestígio social. Conforme nos mostra Kast (1997), essa é uma característica bastante recorrente na maioria dos homens que se sentem em desvantagem no que diz respeito a possuir o carinho e atenção maternos. Eles se refugiam no mundo da produção, do desempenho e da busca por prestígio, fazendo altas exigências para consigo mesmo, especialmente se forem talentosos e conseguirem alcançar status no mundo, almejando manter o controle sobre todas as coisas. No que tange a Yaqub, a competição em prol de suplantar o irmão, tornando-se superior a ele se dá, inicialmente, em um nível intelectual, com a demonstração de sua grande habilidade matemática que lhe angariou duas medalhas na escola dos padres, elogios de professores, latinistas, matemáticos (Dois Irmãos, 2006, p.35) e até mesmo de Halim que dizia “só cabeça, só inteligência, e isso o nosso Yaqub tem de sobra” (Dois Irmãos, 2006, p.25). Com isso, ele demonstra a superação da animalidade do irmão, pela suas capacidades intelectuais, oriundas da aquisição de conhecimento, fator que corresponderia a uma representação da superioridade do homem racional sobre o instintual, do mundo moderno e civilizado sobre o primitivo Em seguida vem o reconhecimento proveniente do meio social, cujo episódio mais significativo se dá na ocasião do desfile de Yaqub no evento das comemorações da independência do Brasil, conforme podemos observar nas passagens a seguir: Yaqub recusou o dinheiro e a bicicleta. Pediu uma farda de gala para desfilar no dia da Independência [...] desfilou com um ar de filho único que não era. Yaqub, que pouco falava, deixou a aparência falar por ele. A aparência e a imprensa: no dia seguinte um jornal publicou a fotografia dele, com dois dedos de elogios (Dois Irmãos, 2006, p.31-32). O desfile com a farda de gala fora a despedida de Yaqub: um pequeno espetáculo para a família e a cidade. No colégio dos padres prestaram-lhe uma homenagem (Dois Irmãos, 2006, p.35). Era de fundamental importância para Yaqub demonstrar que o rapaz maltrapilho regressado do Líbano, de gestos rudes e sem domínio da língua portuguesa, por meio de muito esforço e dedicação, foi capaz de mudar sua sorte, tornando sua imagem tão evidente não só em Manaus, como já era a do irmão, mas também em São Paulo, espelho do Brasil naquela época e nada melhor do que fazer isso utilizando a figura do militar espadachim, símbolo do guerreiro, da bravura, do poder e da autoridade, aquele que golpeia o culpado, 110 neste caso, Omar, separando o íntegro do não íntegro, empreendendo a justiça (CHEVALIER, 1990) e exaltando a pessoa cujo mérito precisa ser reconhecido, ou seja, ele próprio. O último passo de Yaqub foi atingir o sucesso profissional e a ascensão financeira, condições estas obtidas com a carreira de engenheiro. Por meio dela Yaqub engrandecia e enriquecia em São Paulo, mandando cartas para a famìlia com fotografias que “revelavam interiores tão imponentes que os corpos diminuíam, tendiam a desaparecer” (Dois irmãos, 2006, p.95). O poder financeiro do primogênito confirmará ainda mais sua superioridade perante o irmão, na medida em que mostrará aos familiares a necessidade que esses tinham de sua ajuda, uma vez que Omar não contribuía para sanar as despesas da casa, pelo contrário, o custo de suas orgias estava ocasionando uma iminente falência do negócio da família. É neste momento que o “pequeno deus” (Dois Irmãos, 2006, p.96), como se refere Nael a Yaqub, age, reformando a casa dos pais e reerguendo a loja da família, indicando que ele sim era essencial na vida dos familiares e, por isso, deveria possuir o mérito de ser o favorito da mãe, de receber sua bênção e o reconhecimento de seu erro em desvalorizar o filho “verdadeiramente justo”. Tais aspectos podem ser observados na passagem abaixo: [...] O homem que estrebuchou por oitocentos e vinte dólares e uns poucos pertences transformou a nossa casa. Halim não teve tempo de recusar a ajuda providencial Uma boa amostra da indústria e do progresso de São Paulo estacionou diante da casa. Os vizinhos se aproximaram para ver o caminhão cheio de caixas de madeira lacradas [...]. Vimos como dádiva divina, os utensílios domésticos novinhos em folha [...]. Se a inauguração de Brasília havia causado euforia nacional. A chegada daqueles objetos foi o grande evento da nossa casa. [...] Yaqub surpreendeu ainda mais: mandou dinheiro para restaurar a casa e pintar a loja (Dois Irmãos, 2006, p.96-97). Dessa maneira, Yaqub se apresenta na narrativa como o filho íntegro, esforçado e honesto que sofreu o rebaixamento, os insultos e a violência vindos de Omar, sendo injustiçado pela mãe em função desse irmão, o favorito de Zana. Assim, podemos inferir que sua intenção é de corresponder à figura do herói degradado, o qual passa por inúmeras provações em prol da vitória sobre aquele que o subjuga. Tal aspecto fica bastante evidente quando Nael chama Yaqub de “pequeno deus”, já que o herói “é o produto do conúbio de um deus ou de uma deusa com um ser humano, [...] simboliza a união das forças celestes e terrestres [é um] deus decaìdo ou homem divinizado” (CHEVALIER, 1990, p.488). 111 Podemos encontrar aproximações desse aspecto de Yaqub com a personagem do conto de fadas “Cinderela24”, uma vez que a história retrata não apenas a perspectiva da rivalidade fraterna da personagem principal com suas meio-irmãs, as quais são as preferidas da mãe/madrasta, mas também a vitória e o triunfo da heroína subjugada pelas figuras fraternas que a maltratavam e pelas quais ela foi obrigada a sacrificar seus próprios interesses, assim como Yaqub, o qual foi compelido a abandonar a casa da família e a terra natal devido ao capricho de Zana e seu temor descomunal em perder a relação simbiótica com Omar. Essa aproximação é possível, haja vista que, conforme Bettelheim (2007), a história de “Cinderela” é um conto de fadas cujo conteúdo pode atingir tanto mulheres como homens pois as crianças de ambos os sexos sofrem igualmente com a rivalidade fraterna e têm o mesmo desejo de serem resgatadas de sua posição inferior e de sobrepujar aqueles que lhes parecem superiores. [...] Por mais exageradas que as tribulações e degradações de Cinderela possam parecer ao adulto, a criança arrastada pela rivalidade fraterna sente que: “Essa sou eu; é assim que eles me maltratam ou gostariam de maltratar; esse é o quão pouco me consideram (p. 328-329). À semelhança de Cinderela, Yaqub almejava traçar uma história em que seu desejo de desfrutar os privilégios da preferência pudessem se tornar realidade; uma história em que ele, na condição de humilde fosse exaltado, seu esforço recebesse o verdadeiro mérito, sua virtude, recompensada, “sendo reconhecido mesmo quando oculto sob farrapos” (BETTELHEIM, 2007, p.329), castigando dessa forma a presumida maldade que vinha do irmão. Contudo, o conto de fadas sonhado pelo primogênito de Zana e Halim se concretizará efetivamente apenas no mais íntimo de seu inconsciente, uma vez que a realidade enfrentada por ele na narrativa, no que diz respeito à obtenção do amor integral da mãe, será dura e o fará levar a competição a um nível ainda mais acirrado, conforme perceberemos no tópico 3.1.4 deste trabalho. 24 A versão mais famosa da história da Cinderela é a de Perrault. Nela, a moça possui uma madrasta que a maltrata, juntamente com suas duas filhas. Cinderela trabalhava de sol a sol para as três, sem demonstrar rancor e mantendo-se afável com todos. Um dia chega o convite do rei para um baile no castelo e a ninguém ocorreu que ela poderia comparecer, afinal, era como uma criada. Foi nesse momento que surgiu sua fada madrinha que com vários passes de mágica, providenciou a carruagem e o vestido para que ela fosse à festa. Mas havia um senão: o encantamento só durava até a meia-noite. Na festa, ela encontra o príncipe pelo qual se apaixona e com quem se distrai, perdendo a noção da hora, tendo de sair correndo quando soaram as doze badaladas. Na pressa, deixa cair um de seus sapatos de vidro. Na posse dele, o príncipe determinou-se a encontrar a amada misteriosa. Procuraram entre todas as mulheres do reino e em nenhuma o calçado servia, até chegar à casa de Cinderela, que pediu para prová-lo também. Quando o calçado serviu, a moça tirou o outro par de sapatos do bolso e a fada madrinha apareceu para transformar seus trapos no mais belo dos vestidos. A boa Cinderela de Perrault casou-se com seu amado e ainda perdoou suas irmãs malvadas (CORSO & CORSO, 2006). 112 3.1.2.1 A multiplicação do amor materno: transferência e incesto Discutimos no primeiro capítulo de nossa análise a relevância do papel de Zana na elaboração da famìlia de “Dois Irmãos” e do quanto sua influência incisiva sobre o marido e os filhos, principalmente Yaqub e Omar, instalou um completo regime de matriarcado, já que nada se concretizava sem antes passar pelo crivo de sua aprovação. Zana também é o elemento impulsionador da competição entre esses irmãos, pois o amor, a atenção e o afeto da matriarca que precisavam ser partilhados por Yaqub e Omar de maneira igualitária, foram devotados integralmente apenas a um dos filhos pelo processo da preferência parental. Contudo, não podemos deixar de mencionar o fato de que, enquanto mãe e figura feminina, Zana corresponde ao primeiro objeto de investimento amoroso dos gêmeos antípodas de Hatoum e a maneira como o vínculo foi firmado com os dois influenciou de forma significativa o estabelecimento dos outros relacionamentos de seus filhos, sendo determinante no processo de escolha da parceira amorosa, através do mecanismo da “escolha amorosa por apoio”, onde procuramos amar parceiros que possam substituir a figura do cuidador (FREUD, 1996b; LAPLANCHE, 2001). No caso de Yaqub e Omar, o relacionamento com Zana foi marcado por uma dinâmica extremada de negligência e proteção excessiva, respectivamente, ambas vivências angustiantes, já que na primeira predomina o sentimento de desamparo, enquanto na segunda predomina o medo de ser absorvido por uma mãe que o toma como parte de si mesma e não permite que a subjetividade do filho se desenvolva. Logo, esses conflitos decorrentes do conturbado vínculo materno, continuarão vivos no inconsciente desses irmãos e buscarão uma maneira de serem reeditados, revividos e, assim, resolvidos no decorrer de suas experiências amorosas em outros relacionamentos. É neste momento que a figura de Zana, em toda sua imponência exprimida na vida dessas personagens, ganha um fator expansivo e multiplicativo durante a narrativa, uma vez que em cada elemento feminino procurado por Yaqub e Omar, haverá a intenção de buscar uma extensão das experiências anteriores vivenciadas com a figura materna. Isso porque, na visão de Freud (1996p), aquele sujeito cujas necessidades amorosas e eróticas não tenham sido inteiramente satisfeitas e resolvidas na infância está fadado a aproximar-se com representações libidinais antecipadas a cada nova pessoa que encontra. Tais representações são oriundas, conforme nos diz Cordioli (2008, p.75), de um relacionamento do passado, “em geral com pessoas significativas dos primeiros anos de vida de uma criança”. 113 A fim de investigar esse universo de constante repetição apresentado pelas personagens Yaqub e Omar, adentraremos em um conceito crucial na psicanálise, presente tanto no processo terapêutico como em todas as relações mantidas pelo ser humano (MAURANO, 2006): o mecanismo da transferência. Freud (1996q) reconhecia a transferência como um mecanismo onde ocorrem reedições e reproduções dos conflitos e fantasias oriundos do período edípico. Por meio dela, a relação do sujeito com as figuras parentais, juntamente com toda a carga de ambivalência pulsional que a constitui, é revivida em relacionamentos com outras pessoas (LAPLANCHE, 2001; CORDIOLI, 2008; MAURANO, 2006). Por isso, se diz que a transferência “é uma repetição de situações cujas origens se encontram no passado” (CORDIOLI, 2008, p.75), correspondendo a um processo pelo qual “os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos [...]. Trata-se aqui de uma repetição de protótipos infantis vivida com um sentimento de atualidade acentuada” (LAPLANCHE, 2001, p.514). Essas reedições de um relacionamento objetal passado ocorrem, constantemente, pois as reações transferenciais são inconscientes e inadequadas ao contexto atual, já que o sujeito não é capaz de trazer para a consciência os impulsos insatisfeitos, passando a vivê-los de maneira repetitiva com outras pessoas. Além disso, na transferência se busca a satisfação de um impulso que nunca é inteiramente completo, haja vista que a satisfação transferencial é apenas uma substituta da verdadeira; é um derivado regressivo que o sujeito reproduz inconscientemente. Por não recordar do material esquecido ou reprimido, ele o vive de novo, todavia, não como uma recordação, mas sim em ato; repetindo sem saber que o repete (FREUD, 1996q; CORDIOLI, 2008). O processo da transferência, ou seja, este fenômeno de passar para pessoas e situações do presente aspectos psíquicos referentes a experiências vividas no passado, está presente em todas as nossas relações, “por esse aspecto, ela em nada difere do que se passa no amor. Afinal, quando nos apaixonamos, resumimos nesse sentimento uma série de experiências anteriores” (MAURANO, 2006, p.18). Logo, a transferência também pode acontecer durante o processo de escolha do parceiro amoroso, como forma de procurar um substituto para o pai ou a mãe, na tentativa de vivenciar relações afetivas suscitadas nas relações primárias, com outras figuras não parentais. Nesta perspectiva, grande parte das atrações amorosas é gerada, principalmente, pelo fenômeno da transferência, reproduzindo entre os parceiros o mesmo tipo de relações que existia com o parente do sexo oposto (ALMEIDA, 2003; CORDIOLI, 2006; MAURANO, 2006). 114 Tomando como referência a obra “Dois Irmãos”, voltemos nosso olhar para as figuras femininas presentes na vida das personagens Yaqub e Omar, nas quais o amor até então devotado por eles à mãe Zana é transferido como forma de reviver a relação primária do passado. 3.1.2.2 Domingas: amor de mãe postiça para Yaqub; objeto de dominação para Omar Depois de Zana, a primeira figura feminina que Yaqub e Omar tiveram contato foi Domingas, a empregada órfã que chegou ainda menina à casa de Zana e Halim, ofertada por uma freira ao casal. Conforme Halim, Domingas era “uma beleza de cunhantã, [...] uma menina mirrada, que chegou com a cabeça cheia de piolhos e rezas cristãs [...]. Andava descalça e tomava bênção da gente. Parecia uma menina de boas maneiras e bom humor: nem melancólica, nem apresentada” (Dois irmãos, 2006, p.48). Ela presenciou a chegada dos gêmeos, os quais nasceram dois anos depois de sua instalação na casa. E, apesar de ter tido contato com ambos, foi à Yaqub que Domingas se vinculou, provendo a ele não só as necessidades físicas, mas também e, principalmente, afetivo-emocionais, envolvendo-se em uma relação forte, de “amor de mãe postiça, incompleto, talvez impossìvel” (Dois Irmãos, 2006, p50), conforme pode ser observado nas passagens a seguir: Domingas ficava com Yaqub, brincava com ele [...]. Ela o levava para outros lugares: praias formadas pela vazante, onde entravam nos barcos encalhados, abandonados na beira de um barranco. Passeavam pela cidade, indo de praça em praça até chegar à ilha de São Vicente, onde Yaqub contemplava o Forte, trepava nos canhões, imitava a pose das sentinelas. Quando chovia, os dois se escondiam nos barcos de bronze da praça São Sebastião, contava Domingas, depois iam ver os animais e peixes na praça das Acácias (Dois Irmãos, 2006, p.50-51). Murmurou que gostava tanto de Yaqub... Desde o tempo em que brincavam, passeavam. Omar ficava enciumado quando via os dois juntos, no quarto, logo que o irmão voltou do Líbano (Dois irmãos, 2006, p.180). Consequentemente, Yaqub passará a ver em Domingas a representação de uma figura materna, capaz de fornecer um mínimo de afeto, carinho e dedicação, aspectos esperados por ele pela verdadeira cuidadora, Zana, e que jamais foram concedidos. A existência desse vínculo maternal é possível de ser observado no episódio em que Yaqub, após o retorno do Líbano, pergunta imediatamente por Domingas, ao chegar em casa, vejamos a citação: 115 [...] ela ouviu a voz agora grave perguntar “Onde está Domingas?”, e viu o irmão caminhar até o quintal e abraçar a mulher que o esperava. Entraram no quartinho onde Domingas e Yaqub haviam brincado. Ele observou os desenhos de sua infância colados na parede: as casas, os edifícios e as pontes coloridas, e viu o lápis de sua primeira caligrafia e o caderno amarelado que Domingas guardara e agora lhe entregava como se ela fosse sua mãe e não a empregada (Dois irmãos, 2006, p.17). Não podemos esquecer que, na condição de elemento maternal/cuidador, Domingas não estava isenta de receber de Yaqub aspectos advindos do período edípico, como suas fantasias e desejos sexuais de ser possuído pelo Outro, bem como de apoderar-se da figura materna, tendo-a só para si. Todavia, nesta relação, algo intricado acontece: se por um lado podemos afirmar que esses desejos sexuais devotados a Domingas seriam incestuosos, já que ela representa uma figura materna substituta para Yaqub; por outro, ao contrário do que ocorre no triangulo edípico, Domingas não corresponde a um elemento incestuoso, uma vez que não compartilha com Yaqub laços consanguíneos, fator que abre espaço para que um relacionamento amoroso possa, efetivamente, ocorrer. Esse emaranhado jogo transferencial ocorre a partir do momento em que o narrador, Nael, relata sua desconfiança de que um dos gêmeos poderia ser seu pai, aspecto que incita a presença de um possível ato sexual entre Yaqub e Domingas, como pode ser verificado na passagem abaixo: Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quando eu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez pensando que um dia eu pudesse descobrir a verdade. Eu sofria com o silêncio dela; nos nossos passeios, quando me acompanhava até o aviário da Matriz ou a beira do rio, começava uma frase mas logo interrompia e me olhava, aflita, vencida por uma fraqueza que coíbe a sinceridade. Muitas vezes ela ensaiou, mas titubeava, hesitava e acabava não dizendo. Quando eu fazia a pergunta, seu olhar logo me silenciava, e eram olhos tristes (Dois irmãos, 2006, p.54). Além disso, notamos também a presença de sentimentos ambivalentes na relação de Domingas e Yaqub: ao mesmo tempo em que compartilhavam afeto e carinho materno-filiais, apresentavam uma intimidade própria de um vínculo conjugal, uma vez que Domingas se encantava com a beleza do rapaz, deliciando-se com seus afagos, ao passo que Yaqub empreendia comportamentos sedutores para com a empregada da família, conforme se observa nos trechos a seguir: E olhar Yaqub sabia. De frente, como um destemido, arqueando a sobrancelha esquerda: um tímido que podia passar por conquistador. [...] Domingas também se deixava encantar por aquele olhar. Dizia: “Esse gêmeo tem olhão de boto; se deixar, ele leva todo mundo para o fundo do rio” (Dois irmãos, 2006, p.24). 116 Domingas largou o ferro e foi acolher o recém-chegado. Abraçou-o, e foi o abraço mais demorado que ela deu num homem da casa. Depois serviu-lhe suco de jambo, armou a rede no alpendre e pôs ali uma mesinha com pupunhas cozidas e um bule de café. Ele deitou na rede e, com um gesto, pediu que minha mãe ficasse junto dele (Dois irmãos, 2006, p.145-146). Notei que alguma coisa nele havia mudado, pois na outra visita não ficara tão perto de Domingas. Agora os dois pareciam mais íntimos, confabulavam à vontade. Quando a rede se aproximava de minha mãe, Yaqub passava-lhe a mão no cabelo, na nuca (Dois irmãos, 2006, p.145-146). No que diz respeito a Omar, Domingas, na condição de objeto sexual não incestuoso, representa uma de suas muitas tentativas de escapar da angústia advinda da relação com a mãe, onde o tabu do incesto é iminente, haja vista que Zana o seduz continuamente para que este permaneça sob seu poderio. Entretanto, a violência marcará esta relação transferencial que acontecerá por meio de um estupro, conforme ilustra a seguinte fala da personagem Domingas: “Com o Omar eu não queria... Uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado... Ele me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão” (Dois irmãos, 2006, p.180). Conforme nos mostra Zuwick (2002), a violência sexual por meio do estupro está situada no campo das relações desiguais de poder e dominação sobre o Outro, especialmente, o elemento feminino. A autora salienta ainda que O estupro e suas repercussões estão fundamentados nas relações assimétricas entre homens e mulheres, as quais propiciam as condições de possibilidade da violência e produzem significados no imaginário social quanto ao corpo e à sexualidade. [...] O que acontece em relação ao estupro é que a violência, [...], é uma “conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão” (p.38). Logo, podemos inferir que a violência sexual empregada por Omar contra Domingas manifesta-se na relação transferencial com esta personagem como uma possibilidade de desempenhar um papel viril, a dominador e de detentor do poder sobre uma figura feminina não autoritária e submissa; situação esta não desfrutada na relação com a mãe, Zana, uma vez que a matriarca se mostrava incisiva e soberana na vida de Omar, mantendo total controle sobre os desejos e atos do filho, cuja vassalagem para com a mãe era obrigado a cumprir. 117 3.1.2.3 Rânia: a sedução de uma cópia de Zana A outra figura feminina que merece destaque em nossa discussão é Rânia, a irmã dos gêmeos Yaqub e Omar, a jovem solteira que, após a desaprovação de seu relacionamento amoroso pela mãe, “só tocou em dois homens: os gêmeos” (Dois Irmãos, 2006, p.70), devotando uma admiração visceral e quase simétrica por eles durante muito tempo (Dois Irmãos, 2006), capaz de denotar a existência de um triângulo fraterno incestuoso na narrativa. Essa perspectiva ocorre, pois, conforme relata Kaës (2011), nas relações fraternas também incidem componentes referentes ao amor e a sexualidade, um deles é o desejo de incesto fraterno, um poderoso vetor das pulsões libidinais e da erótica, cujas fantasias se mostram universais e inerentes às relações simétricas. O autor afirma ainda que “o fantasma incestuoso impõe-se como um componente do complexo fraterno, como uma figura do desejo pelo duplo e como uma modalidade sexual de sua realização” (p.166). Assim, a irmã de “corpo esbelto, alongado por uma pose altiva, o queixo levemente empinado, que lhe dava um ar autoconfiante e talvez antipático ou alheio” (Dois Irmãos, 2006, p.17), torna-se um elemento facilitador do processo transferencial para os gêmeos, principalmente, a partir do desenvolvimento de sua adolescência, quando suas características físicas passam a se assemelhar cada vez mais com as da figura materna, segundo nos mostra Nael: “Rânia emagrecera, tornara-se mais bonita, os olhos amendoados mais graúdos, o pescoço alongado e o rosto, tal o da mãe, quase sem rugas” (Dois Irmãos, 2006, p.87). Entretanto, o que nos intriga neste triângulo fraterno transferencial é o fato de Rânia não se apresentar como uma figura passiva frente aos irmãos, pelo contrário, ela é solícita aos galanteios dos gêmeos e os seduz com sua beleza e sensualidade: [...] via Rânia interromper bruscamente a dança e atirar-se nos braços do Caçula quando este entrava na sala. O pretendente, boquiaberto com a intimidade dos irmãos [...]. É que nenhum tinha o olhar do Caçula: um olhar de volúpia, devorador (Dois Irmãos, 2006, p.73). Ela conversava com a imagem de Yaqub, beijava-lhe o rosto no papel fosco, soprava-lhe uma sequência de murmúrios, palavras que punha numa carta (Dois Irmãos, 2006, p.73). Ela o abraçava [...] e Omar reaparecia, de carne e osso, sorrindo cinicamente para a irmã. Sorria, fazia-lhe cócegas nos quadris, nas nádegas, uma das mãos tateava-lhe o vão das pernas. Rânia suava, se eriçava (Dois Irmãos, 2006, p.69). Ele [Omar] [...] começava a acariciar a irmã: um beijo nas mãos, um afago no pescoço, uma lambida no lóbulo de cada orelha. Enlaçava-a, carregava-a no colo olhando para ela como um conquistador cheio de desejo. As palavras que ela 118 adoraria ouvir de um homem ela ouviu de Omar [...]. Rânia se derretia, sensual e manhosa, e a voz dela, mais pausada, ia cedendo (Dois Irmãos, 2006, p.133). Ela mimava os gêmeos e se deixava acariciar por eles, como naquela manhã em que Yaqub a recebeu no colo. As pernas dela, morenas e rijas, roçavam as do irmão; ela acariciava-lhe o rosto com a ponta dos dedos, e Yaqub, embevecido, ficava menos sisudo (Dois Irmãos, 2006, p.87) . Além disso, Rânia tinha os irmãos como potenciais pretendentes a um relacionamento amoroso, desejando fundir suas características, a fim de criar um par perfeito que lhe completasse, que fosse capaz de lhe proporcionar a unicidade e, nada melhor do que a figura dos irmãos, seus semelhantes, de mesmo sangue e que sempre estiveram tão próximos de seu alcance para lhe proporcionarem tal perspectiva. [...] naquela única manhã do ano, Rânia esquecia o farrista cheio de escárnio e via no gesto nobre do irmão o fantasma de um noivo sonhado (Dois Irmãos, 2006, p.69). Talvez Rânia quisesse pegar um daqueles pamonhas e dizer-lhe: Observa o meu irmão Omar; agora olha bem para a fotografia do meu querido Yaqub. Mistura os dois, e da mistura sairá o meu noivo (Dois Irmãos, 2006, p.73). Como ela se tornava sensual na presença de um irmão! Com esse ou com o outro formava um par promissor (Dois Irmãos, 2006, p.87). Rânia não demonstrava qualquer angústia pela possível realização do interdito do incesto com os gêmeos, cuja concretização é anunciada, de maneira enigmática, pelo narrador num episódio entre Yaqub e a irmã, o qual está disposto a seguir: Nos quatro dias da visita ela se empetecou como nunca, e parecia que toda a sua sensualidade, represada por tanto tempo, jorrava de uma só vez sobre o irmão visitante. Rânia, não a mãe ganhou os melhores presentes dele [...]. Ainda chovia muito quando a vi subir a escada, de mãos dadas com Yaqub; entraram no quarto dela, alguém fechou a porta e nesse momento minha imaginação correu solta. Só desceram para comer (Dois Irmãos, 2006, p.87-88). É importante destacar que quem aparece como protagonista do ato sexual incestuoso, não é Omar, o gêmeo voluptuoso, e sim Yaqub, o filho, supostamente, racional, prudente e moralmente correto, o que pode denotar uma possível necessidade do primogênito em dar vazão aos seus instintos sexuais reprimidos ou, até mesmo, a realização do desejo incestuoso de possuir a mãe, mesmo que seja com uma cópia representativa da mesma. De acordo com Kaës (2011), essa sedução do irmão pela irmã e da irmã pelo irmão corresponde a uma fase preliminar de descoberta da sexualidade que poderá desencadear o despertar do desejo incestuoso. Neste processo, os irmãos se 119 olham um ao outro, ou se veem num espelho, e quando olham o corpo do outro, o que encontram nele é o conhecimento ou reconhecimento de seu próprio corpo, de seu próprio sangue. O longo caminho que vai da descoberta da existência do outro à fusão dos corpos já está completamente percorrido por este olhar que traz em si o reconhecimento do totalmente semelhante, do já conhecido, do quase si - mesmo, bem próximo, totalmente semelhante, tendo já partilhado as experiências fundadoras (p.170). 3.1.2.4 Lívia: o reviver da competição pela figura feminina Não poderíamos deixar de mencionar a personagem feminina causadora do estopim da digladiação entre Yaqub e Omar, deflagrada desde a infância: Lívia, a meninona loira, de tranças brilhantes; a mocinha apresentada e nada sonsa “que sorria sem malìcia e atraìa os gêmeos e todos os meninos da vizinhança quando trepava na mangueira, e em redor do tronco um enxame de moleques erguia a cabeça e seguia com o olhar a ondulação do short vermelho” (Dois Irmãos, 2006, p.21). O processo transferencial dos gêmeos para com esta personagem feminina é facilitado pelo fato de Lívia, assim como Pau Mulato, como veremos mais à frente, apresentar características semelhantes à da matriarca, especialmente, no que diz respeito: à atração pela sedução; Zana: [...] quando o filho se penteava diante do espelho da sala, a mãe se aproximava dele, cheirava-lhe o pescoço, e enquanto ele se arrepiava, vaidoso e possuído pelo amor materno (Dois Irmãos, 2006, p.98). Lívia: A meninona loira apreciava um selo raro, e seus braços roçavam os dos gêmeos. Alisava o selo com o indicador, os outros meninos se entretinham com o batalhão verde, e ela parecia atraída pelo aroma que exalava dos gêmeos. Lívia sorria para um, depois para outro, e dessa vez foi o Caçula quem ficou enciumado, disse Domingas (Dois Irmãos, 2006, p.21). Mas ela gostava mesmo era dos gêmeos; olhava dengosa para os dois; às vezes, quando se distraía, olhava para Yaqub como se visse nele alguma coisa que o outro não tinha (Dois Irmãos, 2006, p.21-22). e ao ardor sexual; Zana: Ela [Domingas] se assustava com o estardalhaço que os patrões faziam na hora do amor, e se impressionava como Zana, tão devota, se entregava com tanta fúria a Halim. “Parece que toda a tara do corpo deles aparece nessa hora”, disse-me Domingas, numa tarde em que enxaguava no tanque os lençóis dos patrões. 120 Com o tempo, ela acabou por se acostumar com os dois corpos acasalados, escandalosos, que não tinham hora nem lugar para o encontro (Dois Irmãos, 2006, p.48-49). Lívia: “Parecia a mesma meninona, só que naquela visita a Lìvia mostrava uma parte dos peitos e das coxas”, disse-me Domingas [...]. Lívia se afastou e saiu da sala, atraindo Yaqub para o quintal. Sussurraram com muitos risinhos e logo sumiram no matagal dos fundos. Demoraram o tempo da sobremesa, do café espesso e da sesta. [...] Estavam espichados no mato, e Yaqub acariciava o ventre e os seios da mulher, adiando a despedida. [...] Lívia não apareceu, deve ter saído pela ruela dos fundos. Depois Yaqub entrou sozinho na sala, o pescoço com arranhões e marcas de mordidas, a expressão ainda incendiada (Dois Irmãos, 2006, p.35). Ao despertar o amor transferencial de Yaqub e Omar, Lívia não só propiciará que o afeto até então devotado por eles à mãe, Zana, seja transferido para ela como forma de reviver a relação primária do passado com uma figura amorosa não incestuosa, mas também possibilitará uma revivescência da competição fraterna pelo amor materno, já que os irmãos disputarão no intuito de saber quem será o escolhido da amada. [...] no meio das tantas cores e das máscaras ele viu as tranças brilhantes e os lábios pintados, e logo ficou trêmulo ao reconhecer o cabelo e o rosto semelhantes ao dele, pertinho do rosto que admirava. Lívia e o irmão dançavam num canto da sala. Dançavam quietos, enroscados, movidos por um ritmo só deles, que não era carnavalesco [...]. Yaqub ensombreceu. Não teve coragem de ir falar com ela. Odiou o baile, “odiei as músicas daquela noite, os mascarados, e odiei a noite”, contou Yaqub a Domingas na tarde da Quarta-Feira de Cinzas (Dois Irmãos, 2006, p.16) Então ela tirou um selo do álbum e ofereceu-o a Yaqub. O Caçula detestou isso, disse Domingas; detestou ver os dedos do irmão brincarem de minhoca louca com os dedos de Lívia (Dois Irmãos, 2006, p.21). Yaqub reservou uma cadeira para Lívia e o Caçula desaprovou com o olhar esse gesto polido (Dois Irmãos, 2006, p.22). Além disso, o processo transferencial com a personagem Lívia ocasionará uma mudança na posição da preferência firmada anteriormente, uma vez que, nesta disputa, o vitorioso será Yaqub, sobrepujando Omar. É o primogênito o preferido de Lívia e é com Yaqub que ela decidirá casar, para desespero e revolta do Caçula, cuja batalha, até então, nunca havia sido vencida e que jamais se conformará em ser o preterido, mostrando sua indignação de forma declarada, seja cortando o rosto de Yaqub ou quando rabisca de formas obscenas o álbum de casamento do irmão, conforme vislumbramos abaixo: Uma pane no gerador apagou as imagens, alguém abriu uma janela e a platéia viu os lábios de Lívia grudados no rosto de Yaqub. Depois, o barulho de cadeiras atiradas no chão e o estouro de uma garrafa estilhaçada, e a estocada certeira, rápida 121 e furiosa do Caçula. O silêncio durou uns segundos. E então o grito de pânico de Lívia ao olhar o rosto rasgado de Yaqub. [...] O Caçula, apoiado na parede branca, ofegava, o caco de vidro escuro na mão direita, o olhar aceso no rosto ensangüentado do irmão (Dois Irmãos, 2006, p.22). Só eu sabia que a Lívia, a primeira namorada do Yaqub, tinha viajado para São Paulo a pedido dele. Ele queria manter esse segredo, mas Omar acabou sabendo. Não sei qual dos dois ficou mais enciumado, mas a verdade é que Yaqub não perdoou os desenhos obscenos que Omar fez nas fotos de casamento. [...] “Isso mesmo: Omar encheu o rosto da Lìvia de obscenidades, cobriu as fotografias do álbum de casamento com palavrões e desenhos (Dois Irmãos, 2006, p.93) 3.1.2.5 Pau-Mulato: a “mãe não incestuosa” de Omar A última personagem que trataremos neste tópico sobre a transferência foi a única mulher capaz de abalar a relação simbiótica de Omar e Zana, a ponto de fazê-lo fugir do domínio materno em prol de um relacionamento amoroso intenso e, aparentemente, promissor. Esta figura feminina que encantou Omar era reconhecida pelo apelido de PauMulato, sendo descrita na narrativa da seguinte maneira: Pau-Mulato: bela rubiácea. E que apelido para uma mulher! [...] Uma giganta. Uma mulher maçuda, roliça, alta e escura. Um tronco de mulateiro. Por pouco, uma pura africana. O rosto esculpido, a pele lisa, o nariz pequenino. Uma covinha no queixo, de dar água na boca. Uma boca normal. Um riso solto, musical, notas mais agudas que graves, em tons de bandalheira. Cabelo longo, alisado, ainda assim crespo. Uma trancinha caindo no ombro direito, salpicada de pontos prateados, bijuteria barata, por certo. Os anéis dela, estes sim: metal precioso. O colar, miudezas de marfim, lá da terra ancestral dela (Dois Irmãos, 2006, p.100107). Nota-se na descrição do narrador a imponência do porte físico da mulata, a qual é comparada com a imagem do vegetal “Calycophyllum spruceanum”, árvore da família das rubiáceas25, popularmente reconhecida como “Pau-Mulato” ou “Mulateiro”, que atinge de 20 a 35m de altura. Além disso, a árvore de Pau-Mulato possui um tronco retilíneo, na cor pardacenta até castanho-escura avermelhada, de um aspecto liso que dá a impressão de ter sido envernizado (HOOK & SCHUM, 2004), características estas que se assemelham à personagem Pau-Mulato, a qual também era alta, roliça, de cor escura e pele lisa. 25 Família de plantas floríferas, da ordem das rubiales, composta de ervas até árvores de folhas opostas e estipuladas, flores pequenas (raro grandes), com estames isômeros e ovário ínfero, e frutos variados [...]. Há cerca de 5.000 espécies, distribuídas pelo orbe todo, muitas das quais de grande importância, como, por exemplo, o café (Coffea arabica) (FERREIRA, 2009, p. 1778). 122 A imagem da árvore atribuída a esta personagem é extremamente relevante para compreendermos sua significância no processo transferencial de Omar, uma vez que, simbolicamente, Chevalier (1990, p.88) afirma que a árvore é um elemento ambivalente, pois a árvore [...] pode ser considerada como imagem do andrógino inicial. Mas, no plano do mundo dos fenômenos, o tronco erguido em direção ao céu, símbolo de força e de poder eminentemente solar, diz respeito ao Falo, imagem arquetípica do pai. Ao passo que a árvore oca, da mesma forma que a árvore de folhagem densa e envolvente onde se alinham os pássaros e que periodicamente se cobre de frutos, evoca, por sua vez, a imagem arquetípica lunar da mãe fértil. Logo, Pau-Mulato será para o caçula a representação de dois elementos que o completarão, desmistificando a imagem tão necessária da mãe em sua vida: primeiramente, uma figura materna que o amará e cuidará, provendo suas necessidades físicas e afetivas, – “é a mulher que dá banho nele, de cuia, ensaboa ele todinho, o bebezão nu.” (Dois Irmãos, 2006, p.128) – como também uma mulher, possuidora do mesmo ardor sexual demonstrado pela mãe, com quem ele poderá concretizar o ato incestuoso, como observamos a seguir: Beijaram-se na boca. Muitos minutos. Abraçados, grudados, caminharam até o conversível. Entraram no carro. Mais um beijo, agora breve, sem ânsia. Ela tirou a blusa, Omar bolinou os peitos dela, sem pressa. Ela deixou, se entregou, meio deitada no banco. Depois a cabeça dela sumiu, e um dos braços, o direito, também. Não pude ver, não posso afirmar o que ela fez. Sei, ouvi ele miar que nem jaguatirica no cio, mas abafado, mordendo, engolindo os dedos da mão esquerda dela (Dois Irmãos, 2006, p.107). Em segundo, Pau-Mulato será para Omar seu “tronco rìgido e erguido”, seu “sìmbolo de força e poder”, seu “Falo”. Ao lado desta personagem de aparência imponente, Omar retirará o vigor e a robustez que lhe foram castrados pelo domínio materno, demonstrando, pela primeira vez, uma tentativa impetuosa, porém frustrada, de romper com a simbiose materna, seja escondendo o relacionamento da mãe – “Omar se escondeu com a Pau-Mulato. Não a trouxe para casa, e por um bom tempo deixou de visitar os clubes noturnos.” (Dois Irmãos, 2006, p.101) – ou fugindo de casa com a companheira – “Agora é a minha vez de viver... Eu e a minha mulher, longe da senhora...” (Dois Irmãos, 2006, p.109). Ainda pensando na imagem da árvore de Pau-Mulato com a qual a parceira de Omar é comparada, Hook & Schum (2004) expõem o poder curativo e medicinal desta planta, cujas partes possuem agentes antimicóticos, antibactericidas, antioxidantes e antiparasitários, sendo largamente utilizados na medicina caseira. Esses aspectos ganham destaque na relação de Omar com Pau-Mulato, pois o Caçula muda seu comportamento e sua postura após o envolvimento com a “bela rubiácea”, como se 123 ela fosse capaz de empreender no filho galanteador e farrista de Zana uma espécie de cura para seus males amorais, uma cura pelo amor. Quem nos relata com detalhes as mudanças desse “homem metamorfoseado em anjo” (Dois Irmãos, 2006, p.101), que tanto assombrava a mãe é Nael, vejamos: Voltava sereno, sem a expressão estúrdia e os tropeções da bebedeira. Passou a dormir no quarto dele. Ele, que se excedera na algazarra, agora exagerava na discrição. Tanto silêncio parecia um excesso. Omar amanhecia no quarto e amanhecia em paz, sem ressaca, sem aquele olhar esgazeado das noites insones e insanas (Dois Irmãos, 2006, p.101). Já não o víamos de pernas para o ar na rede vermelha, as unhas sujas e compridas esperando pela tesourinha de Domingas, nem ouvíamos a voz meio pastosa exigindo que lhe cozinhassem tal peixe com tal recheio. [...] Ele parou de rosnar quando despertava faminto ao meio-dia, e eu me livrei dos recados que mandava para mulheres de vários bairros distantes. Voltava sóbrio das noitadas e, quando não ia direto para o quarto, sentava no quintal, respirava o ar úmido, meditava. Ria sozinho. Nas noites enluaradas, quando eu queimava as pestanas para terminar uma lição, via a cabeça erguida de Omar, o rosto iluminado por um sorriso (Dois Irmãos, 2006, p.102). Logo, diante dos aspectos supracitados, podemos resumir o processo transferencial de Yaqub e Omar conforme o esquema disposto abaixo: Figura 2: processo da transferência nos irmãos Yaqub e Omar. Fonte: Elaboração própria a partir do referencial teórico. 124 3.1.3 Segundo tempo da batalha: a gangorra do ciúme Deflagrada a competição entre os irmãos e dada a largada de Yaqub em busca de suplantar Omar com a finalidade de obter a preferência da mãe, entra em cena neste triângulo rivalitário mais um componente da rivalidade fraterna: o ciúme, sentimento corrosivo em que experimentamos o temor/medo de que outra pessoa leve o que temos (BARCELLOS, 2009). Ferreira (2009) afirma que ciúme diz respeito ao desejo de posse da pessoa amada; um sentimento doloroso frente a suspeita ou certeza da infidelidade, ainda pode ser o receio de perder alguém ou alguma coisa, mantendo, dessa forma, extremo cuidado e zelo. Neste sentido, Pithon (2006) e Barcellos (2009) corroborarão com tais pressupostos na medida em que afirmam ser o ciúme um sentimento de detenção pela figura de posse, o qual surge a partir do momento em que um rival aparece e ameaça tomá-la para si. Sendo assim, o ciúme irrompe quando se descobre que outra pessoa está usufruindo ou querendo usufruir do objeto desejado, em vez dele mesmo. Na relação fraterna, o ciúme é desencadeado pela indulgência parental excessiva ou pelo tratamento diferenciado dado pelos pais a um dos filhos. Por isso, o ciúme está intimamente relacionado com um desejo natural de exclusividade, isto é, a vontade de ocupar o lugar de privilégio para o outro; desejo este criado a partir da lógica do eleito e do menosprezado, advinda da preferência parental. Logo, o ciúme promotor da rivalidade fraterna não eclode, a princípio, nem do amor pela mãe, nem do ódio pelo irmão, na competição desse afeto, mas sim do egoísmo, da necessidade psicológica e vital de ter a exclusividade daquele que elegerá o seu preferido (BRITTO, 2002). Diante disso, pensemos no triângulo rivalitário Yaqub – Zana – Omar, disposto na narrativa “Dois Irmãos”. Inicialmente, observamos que o sentimento de ciúme era uma realidade apenas do primogênito Yaqub, o qual, após longos anos distantes, retorna à casa materna e se defronta com o fato de Omar ter sido criado como filho único, de ser o preferido de Zana e, além disso, o caçula gozava de um vínculo de intimidade com a figura materna que ele jamais teve a possibilidade de desfrutar. Este ciúme de Yaqub se apresenta ainda no primeiro dia de seu retorno à Manaus, no jantar de boas-vindas, organizado pela família, vejamos: Omar se dirigiu à mãe, abriu os braços para ela, como se fosse ele o filho ausente, e ela o recebeu com uma efusão que parecia contrariar a homenagem a Yaqub. Ficaram juntos, os braços dela enroscados no pescoço do Caçula, ambos entregues a uma cumplicidade que provocou ciúme em Yaqub (Dois Irmãos, 2006, p.19) 125 Todavia, conforme Yaqub adquiria o reconhecimento do meio social, a partir do empenho nos estudos e do engrandecimento de sua profissão como engenheiro, desfrutando da ascensão financeira e de uma posição de destaque, os olhares de Zana mudam de foco e passam a mirar o primogênito. Assim, os feitos intelectuais e profissionais desse gêmeo preterido começam a ser motivo de interesse da matriarca, a qual passa a se encantar com a máscara de um Yaqub grandioso, imponente, decidido e determinado. Ela o olhava com “o olhar maravilhado, não sabia se mirava o filho ou a imagem dele. Talvez tivesse olhos para mirar os dois” (Dois Irmãos, 2006, p.31) e ainda dizia para Halim: “O montanhês é o teu filho” [...]. “O meu é outro, é esse futuro doutor em frente do Teatro Municipal” (Dois Irmãos, 2006, p.45) Somente quando Yaqub muda sua postura frente à família e se esforça a fim de deter os atributos necessários para tentar suplantar Omar é que Zana demonstra certo apreço pelo filho, sempre com um toque de exagero e exibicionismo. Tal aspecto fica bastante evidente com o episódio do desfile de Yaqub no evento do dia da independência do Brasil e após a ida deste filho para São Paulo: “durante meses Zana mostrou aos vizinhos o parágrafo a respeito do belo espadachim que ela havia parido” (Dois Irmãos, 2006, p.32); falava orgulhosa do seu “filho paulista” (Dois Irmãos, 2006, p.44), do “filho doutor” (Dois Irmãos, 2006, p.45), mostrando para a vizinhança as fotografias de Yaqub e dizendo: “É um grande engenheiro, um dos melhores calculistas do Brasil” (Dois Irmãos, 2006, p.169), de forma que o pouco que ele revelava dos lugares frequentados e das situações vividas em São Paulo, por meio de cartas e bilhetes, era motivo para Zana fazer grande festejo (Dois Irmãos, 2006, p.45). Com isso, aquele que era considerado o centro das atenções na vida de Zana, Omar, começa a temer a perda de sua posição privilegiada junto à mãe, posição está que ele duramente aprende não ser imutável, experimentando pela primeira vez o medo de que alguém leve sua figura de posse, a figura materna. Logo, a partir desse fato, Omar enfrenta o gosto amargo do ciúme, um sentimento extremamente competitivo que, na visão de Freud (1996i, p.237), é composto, essencialmente, “de pesar, do sofrimento causado pelo pensamento de perder o objeto amado, [...] de sentimentos de inimizade contra o rival bem-sucedido, e de maior ou menor quantidade de autocrìtica, que procura responsabilizar por sua perda o próprio ego do sujeito”. Isso ocorre, pois seus artifícios para manter a exclusividade e a permanência da figura de posse ao seu lado falham, não conseguindo, naquele momento, atingir o sucesso das estratégias empreendidas por Yaqub. Dessa maneira, por uma vez, Omar é esquecido pela matriarca, “que só tinha olhos para o viajante” (Dois Irmãos, 2006, p.33) Yaqub, deixando o 126 Caçula apreensivo e “atento aos movimentos da mãe” (Dois Irmãos, 2006, p.33), zelando por aquela figura que a qualquer momento, poderia deixar de ser inteiramente sua. Entretanto, ao contrário do irmão, extremamente reservado quanto aos seus sentimentos, a expansividade de Omar o fazia demonstrar claramente seus acessos de ciúme. Dessa maneira, ele expressa “seus sentimentos de forma clara e age de maneira direta, sem subterfúgio” (BRITTO, 2002, p.18), seja através de comportamentos rìspidos ou de palavras irônicas devotadas ao irmão, conforme vislumbramos nas passagens abaixo: [...] o Caçula espiava a cena sentado na bicicleta, a cara meio alesada com um sorriso esquisito, vá saber se de despeito ou irrisão. Ele ignorou o desfile e a Independência (Dois Irmãos, 2006, p.31). Não queria ver o irmão altivo, sereno, ouvindo a mãe pedir a Yaqub que lhe escrevesse uma carta por semana, nem pensasse em deixá-la sem notícias, preocupada (Dois Irmãos, 2006, p.34). [Omar] Não participava da leitura das cartas, ignorava o oficial da reserva e futuro politécnico. No entanto, mangava das fotografias expostas na sala. “Um lesão com pinta de importante”, ele dizia (Dois Irmãos, 2006, p.46). Omar desprezou a reforma da casa e da loja. Proibiu que pintassem seu quarto, privou-se de qualquer sinal de conforto material que viesse do irmão (Dois Irmãos, 2006, p.98). Como podemos notar neste segundo tempo da trama rivalitária de Yaqub e Omar, “Zana [...] punha os gêmeos numa gangorra” (Dois Irmãos, 2006, p.95) de sentimentos: num primeiro momento, quem se encontra no alto da gangorra é Omar, o qual tinha a atenção da matriarca inteiramente para si, de forma que ela “fazia loas ao Caçula, elogiando-o até a cegueira” (Dois Irmãos, 2006, p.95). Todavia, em toda gangorra temos um tempo de ascensão e outro de descida, invertendo a posição dos participantes que nela se encontram, e é nesse segundo momento que Yaqub se eleva e ganha o foco da mãe, mesmo que apenas pelo interesse de Zana na nova imagem de homem intelectual e bem sucedido do filho “mais velho”. Esse processo de oscilação dos sentimentos de Zana é decorrente do sistema triangular formado entre a mãe e dois irmãos, cuja principal característica se encontra em produzir um ciúme ativo naquele que foi o relegado, mas, por outro lado, também gera um ciúme potencial no filho preferido, uma vez que esse sistema o ensina que sempre irão existir duas posições nesse processo (preferido X preterido) e, além disso, essas posições são voláteis, isto é, a qualquer instante ele pode passar de preferido a excluído. 127 Por isso, Britto (2002, p.200) nos mostra a importância da postura dos pais em relação à distribuição do amor, de atenção e de privilégios para com os filhos, já que as características do ciúme não dependem apenas de um suposto desejo natural de exclusividade, mas é consequência direta do que os pais dizem ou fazem: a distribuição desigual de amor por parte deles aos filhos forma um ciúme ativo no relegado e um ciúme potencial no preferido, que aprende que, como o irmão, pode um dia também ser preterido, gerando uma reação em cadeia que trará para a relação fraterna além do ciúme, a competição e a inveja, conforme podemos denotar na relação de Yaqub e Omar. 3.1.4 Desfecho da batalha: se pela inveja cobiçarei o que é teu, pelo ódio te aniquilarei O terceiro tempo dessa batalha fraterna inicia com Yaqub, tendo vantagem sobre o rival Omar, no que tange a obter o amor materno. Contudo, apesar de a empreitada do primogênito parecer promissora, ela não lhe dava garantias de que sua repentina posição de destaque junto à mãe perduraria, uma vez que o jogo entre esses irmãos ainda não havia terminado e uma última cartada, capaz de mudar os rumos dessa história, ainda estava por vir, acabando com os sonhos de triunfo pela preferência materna do “humilde e injustiçado herói” Yaqub sobre seu rival. Isso ocorre, pois, se repentina foi a mudança do olhar de Zana para Yaqub, mas rápido ainda será seu abandono, fazendo com que ela se volte, novamente, para o seu verdadeiro filho preferido, Omar. Mesmo após ter empreendido tantas mudanças de comportamento e postura, conseguido honrarias e alcançando méritos com a finalidade de mostrar sua superioridade intelectual, profissional e financeira sobre o irmão à mãe, Yaqub não conseguirá atingir seu maior objetivo: possuir o amor integral da mãe que manterá sua preferência perniciosa, cega, rígida e imutável (BRITTO, 2002) para com Omar, recriminada até mesmo por Halim, principalmente quando Zana se indagava sobre o que poderia fazer para amenizar a intriga entre os filhos, como ilustra a seguinte passagem: “O que eu posso fazer? Nossos filhos não se entendem...” “O que podes fazer? Dá um pouco de atenção ao outro filho. Faz anos que não vemos o Yaqub. Olha o que ele conseguiu fazer, sozinho em São Paulo. Tem a vida dele, a mulher dele” (Dois Irmãos, 2006, p.84). 128 Vejamos outras passagens da narrativa que denotam a preferência imutável e incondicional de Zana para com o filho caçula: Zana foi a primeira a ver o filho, a primeira a se debruçar sobre ele e a beijálo, mas logo se afastou porque ouviu gemidos que vinham do quarto de Omar (Dois Irmãos, 2006, p.147). “O Omar pegou chuva, adoeceu por causa do Laval, aquele poeta doido”. [...] “Vou chamar um médico, o pobre do Omar mal consegue engolir saliva”. Yaqub apenas seguiu com o rabo do olho os movimentos de Zana (Dois Irmãos, 2006, p.148). “Meus filhos iam abrir uma construtora, o Caçula ia ter uma ocupação, um trabalho, eu tinha certeza...” [...] “O Omar perdeu a cabeça, foi traìdo pelo irmão. Sei de tudo, Domingas... Yaqub se reuniu com aquele indiano, fez tudo escondido, ignorou meu Caçula, estragou tudo...” Domingas ouvia e se afastava, deixava a outra sozinha, maldizendo a trama de Yaqub (Dois Irmãos, 2006, p.177). Eu a via ajoelhada, no meio do quarto de Omar, suplicando a Deus que o filho voltasse. Orando, em êxtase de fervor, para que Omar não morresse [...] Não a ouvi pronunciar o nome de Yaqub. O filho distante que abraçara um destino glorioso, fora banido de sua fala (Dois Irmãos, 2006, p.189). A ação empreendida pela personagem Zana ao preferir irrestritamente Omar em detrimento de Yaqub é inerente a um sistema denominado por Britto (2002) de Aceitação Incondicional que, além de garantir a permanência do sujeito na posição de escolhido, também representa o aspecto mais desastroso e facilitador da rivalidade fraterna que pode existir dentro de um funcionamento familiar, visto que implanta no filho excluído um “sentimento frequente de injustiça, já que não há regras que o orientem, não são estabelecidos critérios para a escolha, nem oferecido um código que determine os valores que ele deva seguir para que possa, enfim, ser comparado” (p.236). A autora afirma ainda que a escolha incondicional uma vez instalada não consente ao filho preterido a possibilidade de quebrar ou participar dessa eleição, “simplesmente porque ele também está sob uma incondicionalidade, só que ao contrário do outro irmão. Independentemente da situação, do que quer que ele faça ou diga, ele sempre será um excluìdo incondicional” (BRITTO, 2002, p.236). À semelhança de Omar, o filho visto como o preferido da mãe, geralmente, não precisa ser uma pessoa de sucesso, de inteligência aguçada ou um profissional exemplar, pelo contrário, ele pode até depender dos pais em níveis afetivo e econômico e, mesmo assim, terá de graça esse amor, uma vez que a escolha incondicional é essencialmente subjetiva; não há uma razão lógica ou concreta que dê àquele filho o mérito de ser o eleito, ele simplesmente o tem. Por isso, de nada adianta ao preterido tentar chamar atenção demonstrando seus grandes 129 feitos e o resultado de seus esforços nos estudos, no trabalho ou na aquisição de bens materiais, como fez Yaqub, ele jamais sairá da condição de excluído perante a mãe (BRITTO, 2002; PITHON, 2006; BARCELLOS, 2009). Assim, Yaqub se torna o iniciador de uma batalha infernal dentro daquele núcleo familiar. A intolerância do primogênito em relação ao irmão e à postura dos pais, especialmente da mãe, a qual nunca repreende o mau comportamento de Omar e ainda assim o tem como favorito, o faz sair de uma posição passiva com o propósito de demonstrar sua não conivência com tal situação que para ele se mostra tão injusta. Logo, ele denunciará as mentiras e os crimes do irmão, mas também apontará os erros e as dificuldades dos pais na resolução desse problema fraternal, vejamos: “Durante cem dias o teu filho foi disciplinado como não tinha sido em quase trinta anos, mas foram cem dias de farsa”, disse Yaqub ao pai (Dois Irmãos, 2006, p.92). “Deixou a mixaria, deixou o que ele é. Esse é teu filho. Um barami, ladrão!”. “Gritou ladrão tantas vezes que pensei que estivesse se referindo a mim”, disse Halim. “Bom, ele falava do meu filho, e de alguma forma me atingia” [...] Depois eu disse: „Não dá para esquecer essas coisas? Perdoar? Meu Deus, foi pior!” Yaqub passou da acusação à cobrança. Não ia sossegar enquanto o irmão não lhe devolvesse os oitocentos e vinte dólares (Dois Irmãos, 2006, p.92). Zana devia conhecer essa história, e aí sim, ela ia entender o verdadeiro caráter do caçulinha dela, o peludinho frágil. Mimem esse crápula até ele acabar com vocês! Vendam a loja e a casa! Vendam a Domingas, vendam tudo para estimular a safadeza dele! (Dois Irmãos, 2006, p.93). “Quer dizer que não vou conhecer minha nora?", insistiu a mãe. “Ela está com medo do calor ou pensa que somos bichos?” “O outro filho vai te dar uma nora e tanto”, disse Yaqub, secamente. “Uma nora tão exemplar quanto ele”. Zana preferiu não responder (Dois Irmãos, 2006, p.84). Com isso, Yaqub é invadido pelo sentimento de inveja que se configura como a forma mais destrutiva, maligna e crônica da rivalidade fraterna. Ela pode ser conceituada como o sentimento de ódio ao rival pelo privilégio da figura de posse ou do usufruto dela. Ela ocorre quando um dos irmãos ganha amor e atenção especiais dos pais, tornando-se, na mente do rival, tão identificado com esse papel, que o ciúme já existente, torna-se inveja (PITHON, 2006). A inveja aparece como o último estágio ou instância da rivalidade fraterna. Neste, o irmão é definitivamente o privilegiado, não adiantando mais sentir ciúmes ou competir para adquirir esses privilégios. A inveja é, então, a cobiça, o desejo voraz de possuir algo que pertence ao outro, isto é, o objeto invejado, visto como valioso, um tesouro (PITHON, 2006). 130 O sentimento de inveja eclode quando a vaidade do invejoso, isto é, o “desejo imoderado de atrair admiração ou homenagens” (FERREIRA, 2009, p.2031), que no caso de Yaqub é alavancada no segundo tempo desta batalha, em que ele ganha a atenção da mãe, é atingida e isso irá ocorrer quando houver uma equiparação desnivelada, como aquela que acontece feita pela mãe na escolha incondicional. Assim, Britto (2002, p.212) salienta que a vaidade de um indivíduo será abalada “quando outro, pertencente à mesma categoria, e igualmente reconhecido e valorizado por seu núcleo familiar, se sobrepuser a ele em relação aos atributos apresentados, conseguindo, dessa maneira, atingir a meta pelos dois almejada.” É exatamente esta situação que visualizamos no triângulo rivalitário encontrado na narrativa. Dessa forma, frustrado por não ter o acesso direto e irrestrito ao amor de Zana, este grande e inestimável “manancial de valor” (PITHON, 2006), a fonte de água que nutre a disputa dos antìpodas de “Dois Irmãos”, Yaqub se deixa dominar pela inveja e, principalmente, pelo componente agressivo contido nela: o ódio, haja vista que se o Outro possui algo do qual eu nunca poderei desfrutar, a única solução para privá-lo desse atributo julgado valioso (CARDOSO, 1987; KAËS, 2011), extravasando todo rancor e a repugnância sentida, é aniquilá-lo. Isso porque a dor provocada pela inveja, muitas vezes “não é pelo objeto desejado que não está ao alcance. O sofrimento vem da alegria, da imensa satisfação que o invejoso vê no outro, vitorioso. É essa imaginada felicidade que o invejoso não suporta e tenta destruir” (BRITTO, 2002, p.212). Este será, exatamente, o mais novo objetivo de Yaqub: anular Omar; destruir a suposta felicidade do caçula, reduzi-lo a nada, transformá-lo na verdadeira “mixaria” que Yaqub acreditava ser o irmão e, com isso, o primogênito se vingaria das agressões jamais perdoadas, da cicatriz causada pelo irmão, a qual nunca o deixou esquecer tamanha humilhação e do amor da mãe que ele nunca pôde ter só para si devido à presença de Omar. Todavia, a vingança de Yaqub chega silenciosa; ele era inteligente, racional e astuto o suficiente para perceber que um ato impulsivo de sua parte não seria suficiente para arruinar com o irmão, definitivamente. Logo, “ele se sofisticava, preparando-se para dar o bote: minhoca que se quer serpente, algo assim. Conseguiu. Deslizou em silêncio sob a folhagem” (Dois Irmãos, 2006, p.45), esperando pelo momento certo para atacar. Por isso Nael falava que Yaqub não reagiu na juventude, quando um caco de vidro cortou-lhe a face esquerda; tampouco conformou-se com a cicatriz no rosto, como alguém que aceita pacificamente um traço do destino. Minha mãe via Yaqub cada vez mais decidido, 131 mais energético, “pronto para dar o bote de cobra-papagaio”. Ela pressentiu que ele matutava alguma coisa (Dois Irmãos, 2006, p.148). Yaqub esperou por um momento de fraqueza do irmão, mais um de seus atos de impulsividade, para colocar seu plano em ação o que não demorou a chegar: foi justamente o episódio do espancamento do primogênito por Omar, o qual ainda se sentia incomodado pela presença do irmão no negócio da construção de um hotel com o indiano Rochiram: Então eu o avistei: mais alto que a cerca, o corpo crescendo, se agigantando, a mão direita fechada que nem martelo, o olhar alucinado no rosto irado. Arfava, apressando o passo. Quando gritei, Omar deu um salto, ergueu a rede e começou a socar Yaqub no rosto, nas costas, no corpo todo. Corri para cima do Caçula, tentando segurá-lo. Ele chutava e esmurrava o irmão, xingando-o de traidor, de covarde (Dois Irmãos, 2006, p.175). [...] no meio da tarde daquele mesmo dia, o Caçula irrompeu no hospital e por pouco não agrediu outra vez o irmão. Yaqub gritou ao ver Omar na enfermaria. O Caçula foi expulso do hospital, arrastaram-no na marra até a rua (Dois Irmãos, 2006, p.191). Era o pretexto esperado por Yaqub para iniciar sua vingança: incriminar Omar por crime de agressão, coordenando uma perseguição ao caçula que só teria fim quando esse, finalmente, se encontrasse na prisão, indefeso e sem qualquer possibilidade de se livrar das acusações, uma vez que o primogênito estava munido de todos os aparatos legais e ainda contava com o fato de que o escudo protetor de Omar, Zana, já não se encontrava presente para proteger seu filho favorito. Vejamos a passagem que ilustra a trama vingativa de Yaqub: Rânia logo percebeu que o irmão, em São Paulo, contratara advogados e coordenava a perseguição ao Caçula. Havia testemunhas de sobra: médicos e enfermeiras que evitaram a agressão no hospital. E também o exame de corpo de delito a que Yaqub foi submetido antes de viajar para São Paulo. Aos poucos, ela foi descobrindo que o irmão distante havia calculado o momento adequado para agir. Yaqub esperou a mãe morrer. Então, com truz de pantera, atacou. A fuga foi pior para Omar. Agora ele não tentava escapar às garras da mãe, mas ao cerco de um oficial de justiça (Dois Irmãos, 2006, p.191-192). Desse modo, podemos dizer que a vingança calculada de Yaqub realmente alcançou o efeito desejado, já que Omar foi condenado a dois anos e sete meses de reclusão sem direito à liberdade condicional, envelhecendo sozinho, “perambulando à noite pela cidade” (Dois Irmãos, 2006, p.195), sem dinheiro e sem as glórias da juventude. Contudo, se tomarmos como referência o motivo primeiro da vingança, a luta contra o irmão pelo espaço de preferência junto à Zana, teremos apenas uma tentativa frustrada, já que a matriarca, até o fim da vida clamava pelo filho preferido, esperando ansiosamente pelo seu regresso, sem sequer mencionar Yaqub. 132 CONCLUSÃO O texto literário enquanto mecanismo de comunicação vai muito além de uma simples produção intelectual do ser humano, ele se configura como uma manifestação cultural, dotada de uma linguagem plurissignificativa que “se dirige diretamente aos sentidos e atinge a consciência por uma cadeia de associações afetivas” (PROENÇA FILHO, 2004, p.34), sendo necessário conhecê-lo a fundo para compreender, verdadeiramente, o sentido e as mensagens ocultas e latentes a serem transmitidas. Nesse sentido, correntes de crítica literária como a psicanalítica, utilizada na trajetória de nossa escritura, têm buscado abranger não apenas o estudo da estrutura dos textos literários, mas, principalmente, exercer a interpretação, preenchendo os espaços em branco, imaginando detalhes não informados pelo autor, a fim de fazer o texto funcionar, entender o sentido da obra de maneira holìstica e integradora e, principalmente, “revelar o conteúdo oculto do texto, que está por baixo, que se esconde e determina o conteúdo manifesto” (SAMUEL, 2010, p.86). Partindo desses pressupostos, a intenção de nosso trabalho foi concretizar a realização do estudo interdisciplinar da obra de Milton Hatoum, trazendo à Literatura a luz do saber da psicanálise, com o propósito de compreender os processos simbólicos, históricos e culturais que tem levado à recorrência do tema da rivalidade fraternal em obras literárias, particularmente, a narrativa “Dois Irmãos”, expandido o campo de possibilidades neste universo incontável que é a interpretação. Logo, pelo delineamento da relação conflituosa entre as personagens Yaqub e Omar, percebemos o quão contemporâneo é o tema da rivalidade fraterna, podendo a imagem do irmão se apresentar como um arquétipo, isto é, um tema recorrente que está incrustado “ na fibra de nossas tradições culturais e religiosas” (PITHON 2006, p.08), fazendo parte da vida do homem desde os primórdios da civilização, sendo passado a cada nova geração e influenciando fortemente a cultura ocidental. Dessa forma, a família, grupamento institucional tão explorado nas obras Hatoum, aqui, se configurou como elemento crucial no entendimento da discórdia dos gêmeos Yaqub e Omar, já que serviu tanto de palco da rivalidade fraterna, como também foi a grande fomentadora deste intenso conflito. Isso porque, seus fundadores, Zana e Halim não foram capazes de construir laços de respeito, amor e cumplicidade entre os filhos, uma vez que, eles próprios advieram de bases familiares desestruturadas, seja em virtude da negligência e do 133 abandono parental, no caso de Halim, ou da sedução desmedida no relacionamento com a figura paterna, no que se refere à Zana. Essas experiências traumáticas da “falta” e do “excesso”, não resolvidas por Zana e Halim, atravessaram o limite do individual e foram transmitidas na relação de cada um dos fundadores com seus herdeiros, qual um constante repetir, manifestando-se seja por meio da rejeição de Halim para com seus filhos, no seu distanciamento frente à educação dos mesmos ou na necessidade de Zana de impor sua autoridade e instalar um completo regime de matriarcado sobre a família, vista por ela como sua grande trupe teatral sob seu comando, ou ainda reproduzindo na relação com Omar a mesma sedução e simbiose vivenciada com seu pai, Galib. Dentre a participação da família na manifestação dessa rivalidade fraterna, não podemos esquecer, ainda, que os pais instalaram posições hierarquizadas entre os filhos na medida em que elaboraram, simbolicamente, os papéis de primogênito (Yaqub) e caçula (Omar) quando, na realidade, isso nunca deveria existir, já que os filhos eram gêmeos. Além disso, foi por meio do regime de preferência parental empreendido por Zana na maneira com a qual abordava os filhos, assim como sua escolha incondicional pelo filho Omar em detrimento de Yaqub a grande geradora do triângulo rivalitário, fazendo eclodir a competição, o ciúme e a inveja entre esses irmãos. Alavancadas pela desestruturação familiar e somadas a inquietante e aterrorizadora aparência física compartilhada pelos gêmeos, as rupturas do laço fraterno de Yaqub e Omar foram inevitáveis, exigindo que esses irmãos encontrassem a diferenciação e a singularidade através da oposição de características de suas personalidades. Assim, as antíteses razão/trabalho/civilização de Yaqub X natureza instintiva/ ócio/ agressividade de Omar aparecerão como uma constante no decorrer da narrativa, aproximando essas personagens dos dois elementos opostos presentes na tragédia, denominados por Nietzsche (2005) de Apolíneo e Dionisíaco: Yaqub com sua máscara de bom moço seria o Apolíneo, representante de Apolo, deus da beleza, brilhante e resplandecente como o sol, capaz de com seu brilho ocultar os aspectos sombrios e tenebrosos da vida a partir da criação de uma aparência que torna a vida desejável, encobrindo o sofrimento pela criação de uma ilusão (Machado, 2005). Já Omar com sua voluptuosidade e expansividade seria o Dionisíaco, representante de Dionísio, deus da desmesura e da desmedida que provoca a desintegração do eu, a abolição da subjetividade, o entusiasmo, a entrega ao êxtase e à loucura do prazer sem medidas, lutando contra o equilíbrio e a tranquilidade do Apolíneo (Machado, 2005). 134 Todavia, a integração do Apolíneo com o Dionisíaco, conforme propunha Nietzsche (2005), só ocorre verdadeiramente na elaboração de uma tragédia, haja vista vez que, em “Dois Irmãos”, a união dessas duas pulsões contrárias, isto é, a reconciliação de Yaqub e Omar se mostra irrealizável, acirrando ainda mais a rivalidade entre esses irmãos que empreenderão uma complexa rede de intrigas, violência, insultos e ódio, competindo pelo privilégio e pelo amor da figura materna frente à necessidade de ser o preferido, o mais amado, aniquilando brutalmente o rival que se encontra no caminho, aspectos estes que resultarão no esfacelamento da família, sem qualquer possibilidade de reerguimento. Desta intricada trama notamos inúmeras consequências desastrosas a vida dos irmãos e, principalmente, à relação mantida entre eles. Omar, por sempre ter tido a devoção da mãe, se torna uma pessoa confiante, valente, sempre disposta a enfrentar desafios e aventuras, porém, arrogante, agressivo, petulante e extremamente dependente da figura materna, seja emocional, física ou financeiramente, entregando-se às orgias e à criminalidade, sem conseguir escapar da escravidão sufocante que Zana impusera sobre ele. Em contrapartida, Yaqub, o gêmeo que não pôde gozar de todas essas regalias e prestígios de afeto, proteção e atenção maternos, se tornou um homem retraído, calculista e vingativo, movido por fortes sentimentos de rancor, ciúme, revolta e competição que o impulsionaram ao interesse desenfreado pelo sucesso, mas também ao desejo de aniquilação de Omar, seu maior rival. Depreende-se, pois, que a rivalidade fraterna foi uma semente plantada na relação de Yaqub e Omar desde muito cedo, por meio de eventos marcantes durante a infância, das dificuldades parentais na educação e tratamento dos filhos, bem como na formação dos laços da fratria, brotando lenta e silenciosa no seio daquela família, prometendo eclodir de forma arrasadora, mudando completamente a história desses irmãos. 135 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Thiago de. O perfil da escolha de objeto amoroso para o adolescente: possíveis razões, 2003 Disponível em: <http://www.thiagodealmeida.com.br/site/files/pdf/O_ perfil_da_escolha_de_objeto_amoroso_para_o_adolescente_%20possiveis_razoes.pdf.>. Acesso em: 15 de junho de 2010. BARCELLOS, Gustavo. O irmão: psicologia do arquétipo fraterno. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. BATAILLE, Georges. O Erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987. BARCELLOS, Gustavo. O Irmão: psicologia do arquétipo fraterno. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. BETTELHEIM, Bruno. 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