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Ano XI
Volume XII
Nº 24
Janeiro/Junho 2016
Rio de Janeiro
ISSN 1807-1260
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Patrimônio Cultural e Fronteiras no MERCOSUL: processos de tombamento e
patrimonialização no município de Jaguarão no Estado do Rio Grande do Sul
Maria de Fátima B. Ribeiro1, Isabel P. Nogueira2 e Carlos José de A. Machado3
Resumo
Esse artigo tem como objetivo refletir sobre o patrimônio cultural do MERCOSUL, especificamente na
fronteira do Brasil com Uruguai. É analisando o debate das políticas patrimoniais a partir do
tombamento da cidade de Jaguarão, situada no Brasil, que faz fronteira com Rio Branco, situado no
Uruguai e também, da Ponte Mauá como patrimônio binacional que consideramos o reconhecimento
compartilhado como um fator emblemático no processo de integração regional e cultural. Da mesma
forma buscamos mostrar como essas questões valorizam elementos culturais de união entre povos.
Palavras-chave: Patrimônio Cultural, MERCOSUL, Fronteira, Brasil, Uruguai.
Abstract
This article aims to reflect about the cultural heritage of MERCOSUR, specifically on the border
between Brazil and Uruguay. It analyzes the debate of heritage policies from the declaration of
historic landmark of the city of Jaguarão/Brazil, which makes border with Rio Branco/Uruguay and of
the Mauá Bridge as binational heritages considering its shared recognition as an emblematic factor in
the process of regional and cultural integration. Besides, it tries to show how these questions value
cultural elements such as the union among peoples.
Keywords: Cultural Heritage, MERCOSUR, Border, Brazil, Uruguay.
Doutora em História pela Unicamp. Professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas
(UFPEL). [email protected].
2 Doutora pela Universidad Autónoma de Madrid. Bolsista Produtividade CNPq. [email protected]
3 Mestrando na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) em Memória Social e Patrimônio Cultural. [email protected]
Recebido em 03/02/2016. Aprovado em 27/03/2016.
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Considerações Iniciais
E
m 2011 ,o conjunto histórico e paisagístico da cidade de Jaguarão 4, no Rio Grande do Sul, foi
tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Trata-se do
tombamento com maior número de imóveis do Estado, com mais de 800 exemplares. É um
conjunto arquitetônico inteiro, um acervo com edificações coloniais, ecléticas, art-déco e modernistas,
uma herança cultural reveladora de uma identidade hibrida, “um sincretismo de influências
portuguesas e espanholas, que resultaram em um projeto urbanístico único” (IPHAN, 2010). São
reconhecidos os valores históricos e paisagísticos da cidade,onde se destaca seu estado de
preservação, chamando atenção para sua característica intercultural. Conforme material
disponibilizado pelo IPHAN,
espera-se que o reconhecimento de Jaguarão como Patrimônio Cultural brasileiro
contribua não apenas para explicar e reforçar laços existentes com nossos vizinhos, mas
também para a percepção de que o Brasil é formado por diferentes nuanças culturais
com múltiplas origens, que contribuem igualmente para sua formação.
O Brasil, que tem na diversidade cultural um dos seus maiores patrimônios, se tornou signatário da
convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, que contribuiu para o avanço das políticas de
proteção ao patrimônio cultural e natural. O tombamento do centro histórico e paisagístico de
Jaguarão está inserido no contexto atual, em que se reivindica um esforço da convivência com as
diferenças, na conjugação do local com o global.
A primeira década do século XXI trouxe novos elementos para a pauta dos debates das políticas
culturais e patrimoniais. Durante muito tempo as práticas patrimoniais estiveram atreladas a ideias
de identidades nacionais, mas atualmente as políticas culturais são pautadas no conceito de Cidadania
Cultural. Fazem parte desses avanços as políticas patrimoniais e seu “entrelaçamento com as demais
políticas sociais e de desenvolvimento” (ALMEIDA: 2010, 12), em que questões de convivência e
tolerância passam a serem valorizadas. A cidade de Jaguarão possui uma acentuada marca fronteiriça
que desde suas raízes aprendeu a conviver com o outro, em contato com o diferente.
Esse argumento e revelador da transformação dos conceitos de avaliação com relação ao patrimônio
tombado, indo ao encontro de uma nova valoração em que a interculturalidade aparece como
elemento chave de diálogo. António Pinto Ribeiro (2011: 39), estudioso português sobre teorias da
cultura, aponta “para que se possa ir mais além quando as tradições ou as narrativas de um país
possam ser problematizadas a partir de fora das fronteiras geográficas”.
Reconhecer as diferentes nuanças culturais com a presença de múltiplas origens é reconhecer que a
cultura não é homogênea, e sim atravessada por contradições e conflitos; no caso da fronteira, é o
reconhecimento da tolerância no convívio com as diferenças. Contribuiu positivamente, nos
argumentos do dossiê de tombamento, sua heterogeneidade presente nos usos e costumes, nas
4Com
cerca de 30 mil habitantes, mas que, somados aos da cidade gêmea uruguaia de Rio Branco, alcança 45 mil pessoas,
que, poderíamos dizer, habitam um mesmo local geográfico: o entorno do Rio Jaguarão, em meio a uma "linha imaginária"
que chamamos de Fronteira.
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formas de organização cotidiana, nos traçados das ruas, no conjunto de sua preservada arquitetura, na
imponente Ponte Mauá, trabalho humano e natureza. Tais características, conjugadas, foram
fundamentais na alegação do processo (IPHAN, 2010).
Os argumentos utilizados foram a partir de um enfoque ampliado que não se limitou apenas a avaliar
o histórico da cidade e sim contextualizá-lo nos processos de formação política e social do sul do
Brasil e das relações com os outros países platinos, com destaque para o Uruguai, com o qual Jaguarão
faz divisa, mas também com a Argentina e o Paraguai.
É interessante no dossiê o reconhecimento da influência platina em um sistema cultural distanciado
da capital e manifestado nas mais diferentes formas de organização cotidiana.
Desta forma, o tombamento de Jaguarão como patrimônio nacional, ao mesmo
tempo em que reconhece a extensão dos processos econômicos e sociais do
Brasil, que chegaram até as fronteiras mais distantes, é também o
reconhecimento de um sistema cultural distanciado da “capital” e da “corte”,
que a despeito das disputas políticas, se desenvolveu entre a população dos dois
lados da fronteira, que se reconhece verdadeiramente como irmãos. Essa
influência platina faz com que a cultura local tenha, por vezes, mais
semelhanças com outros países da América do Sul como o Uruguai, o Paraguai e
a Argentina, do que com os elementos tradicionalmente reconhecidos como
referenciais para a “cultura brasileira”. E nesse contexto, Jaguarão representará
um capítulo pouco conhecido e menos ainda apropriado pela história brasileira
quando contada a partir dos bens reconhecidos atualmente como patrimônio
(IPHAN, 2010).
Não é por acaso que, na literatura, as narrativas, por exemplo, de Aldyr Schlee, premiado escritor
jaguarense, se identificam mais com os escritores uruguaios e alguns argentinos dos que com os
regionalistas brasileiros. Sua literatura é de inclusão, aberta para com a cultura do outro, é dialética,
revelando uma identidade fronteiriça, um pensamento fronteiriço, com espaço para diferenças.
Identidade que traz marcas das memórias construídas no local com forte influência de uma cultura
platina. O intelectual Arjun Appadurai (2009) chama nossa atenção para a relação, que deve ser
observada mais atentamente, que se estabelece entre a localidade e a subjetividade, “sobre a produção
da localidade e a estrutura dos afetos”.
Outro elemento que chama a atenção no dossiê, é que a proposta se torna referência para outros
tombamentos no estado do Rio Grande do Sul, “aumentando a representatividade do patrimônio
cultural gaúcho no conjunto dos bens protegidos no Brasil, e reconhecendo a importância desse
estado para a formação da nação brasileira” (IPHAN, 2010).
A Ponte Mauá, na sequência do Centro Histórico e Paisagístico, é outro tombamento nessa
direção em que característica hibridização da cultura é valorizada.
Esse é um patrimônio binacional tombado de maneira compartilhada, em que foram
considerados critérios para o reconhecimento do Patrimônio Cultural do MERCOSUL:
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qualquer bem cultural, material e imaterial, que manifeste os valores que
estejam associados a processos históricos vinculados aos movimentos de
autodeterminação ou expressão comum da região perante o mundo; expresse
os esforços de união entre os países da região; esteja diretamente relacionado a
referências culturais compartilhadas por mais de um país da região; e possa
oferecer, no presente ou no futuro, fator de promoção para a integração dos
países (IPHAN, 2011).
A formação do Conjunto Histórico e Paisagístico de Jaguarão faz parte da história, em que muito cedo
vive um processo de integração. Em 1802,uma cidade surgia, consolidava-se um espaço de acordo
com linguagem diplomática do território nacional, garantindo definição da fronteira. Com forte
presença militar desde sua formação, produto da política colonial expansionista portuguesa, que tinha
como objetivo estabelecer limites com o império espanhol. Das “fortificações” da época, restou a
presença das ruínas da antiga Enfermaria Militar.
A antiga Enfermaria Militar “opera como um monumento", evocando a formação da cidade de
Jaguarão a partir do acampamento militar,5 que envolveu disputas e batalhas entre as duas nações
(portuguesa e espanhola), a Guarda do Cerrito em 1802, como marco de início do povoado, em que
agrupamentos de soldados foram postos estrategicamente com a finalidade e de uma definição da
fronteira.6 Uma fronteira nada pacífica. Desde a sua formação, a cidade de Jaguarão tem a fronteira
como elemento político definidor e o Pampa em sua totalidade natural e cultural, como características
importantes na sua formação histórica e paisagística.
Mais tarde, Jaguarão foi palco da Revolução Farroupilha, movimento este de cunho separatista, sendo
a primeira cidade a aderir ao governo republicano, em 20 de setembro de 1836. Finalizada a guerra, a
cidade começa a se reorganizar após dez anos de paralisação de suas atividades, o que deixou
arruinadas as casas, os campos e as charqueadas (MARTINS: 2001).
A cidade foi se desenvolvendo a partir do comércio e do contrabando com o Uruguai, e a partir da
segunda metade do século XIX começa a ser edificado o casario que até hoje ostenta sua imponência.
Para sua construção foram utilizados milhares de braços negros escravizados, comum nesta área de
charqueadas. A memória da trajetória da presença negra, que chegou a ser mais de 50% da população
em 1845, começou a ser valorizada a partir do movimento voltado às políticas públicas em relação aos
grupos “minoritários”, e consolidando-se com o Tombamento Estadual do Clube 24 de Agosto, em
2012.
O Clube 24 de Agosto foi criado em 1918 por um grupo de trabalhadores negros, com o fim de
construir um espaço social, mediante bailes, desfiles e outras atividades. No Brasil, os clubes se
transformaram em importantes espaços de sociabilidade e resistência (RICARDO, 2010). O
tombamento do Clube em 2012 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE)
5Conforme
os registros, o município nasceu num tempo de intensas batalhas por conquista de terras, onde a coroa
portuguesa e a espanhola disputavam como um “jogo de xadrez as terras entre os rios Piratini e Jaguarão entre os anos de
1789 e 1801” (FRANCO, 1980).
6 Acampamento militar comandado pelo tenente-coronel Manoel Marques de Souza, fundado às margens do rio Jaguarão
com a intenção de reconquistar o território e atender aos interesses da Coroa Portuguesa. De acordo com o Tratado de
Santo Ildefonso, de 1777, o município de Jaguarão estava sob o domínio da Coroa Espanhola. É em 1821 que o rei de
Portugal D. João VI anexa a Cisplatina ao território português.
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não se deveu a suas características arquitetônicas7, mas ao seu valor histórico. A referência,
experiência de um grupo que é valorada no processo de tombamento, é a memória social do grupo. “O
estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da
história, em relação aos quais a memória está ora em retraimento, ora em transbordamento” (LE
GOFF: 1996).
Os tombamentos do Centro Histórico e Paisagístico, da Ponte Binacional Mauá, do Clube 24 de Agosto
e a Refuncionalização da Enfermaria Militar, fazem parte de um momento importante nos debates das
políticas culturais e patrimoniais. O reconhecimento da Ponte Mauá, que une as cidades gêmeas de
Jaguarão/Brasil e Río Branco/Uruguai é um importante passo para a valorização do Patrimônio
localizado na fronteira Brasil/Uruguai. Segundo Castriota (2009: 11), “entramos no século XXI com o
patrimônio ocupando um papel central na reflexão não só sobre a cultura, mas também nas
abordagens que hoje se fazem do presente e do futuro das cidades, do planejamento urbano e do
próprio meio ambiente”.
Com relação ao Patrimônio edificado do lado brasileiro, temos o Centro Histórico Tombado pelo
IPHAN e o primeiro bem tombado de forma Binacional, que foi a Ponte Internacional Mauá. Para se
chegar a este momento, em que estão prestes a começar as obras do "Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC) das Cidades Históricas", num total de 11 espaços, houve um longo caminho para o
reconhecimento e valorização desse patrimônio.
Políticas Patrimoniais no Brasil
No Brasil, a primeira norma jurídica que dispõe, objetivamente, sobre este tema, colocando o interesse
público pela proteção do patrimônio cultural brasileiro, foi o Decreto-lei nº 25, de 1937. Houve
algumas leis que, basicamente, o completaram. As políticas de preservação e memória se
diferenciaram pela velocidade, de acordo com a conjuntura. A Constituição Federal de 1988 vem
trazer de forma bem clara esta questão no nosso atual ordenamento jurídico. Podemos observar ao
longo de seu texto alguns princípios apresentados na Carta de Amsterdã, que reforçam aqueles que
lapidaram a Carta Europeia do Patrimônio Arquitetônico, de 1975. Os artigos 215 e 216 na CF vão
consagrar dois princípios basilares: da Cidadania Cultural (o Estado garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a
valorização e difusão das manifestações culturais) e da Diversidade Cultural (reconhece-se, assim, a
pluralidade étnico-cultural de nossa formação histórica).
Também a partir dos chamados Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL: 2000), as temáticas da
identidade, da pluralidade e da diversidade étnica e cultural vão ganhar espaço nos currículos
escolares, reconhecendo-se, assim, a pluralidade étnico-cultural de nossa formação histórica.
Observamos também que a questão do patrimônio vem com força renovada já a partir dos anos 70,
quando se avolumavam as pressões trazidas pela industrialização e pelo desenvolvimento acelerados.
Destaca-se o Programa de Cidades Históricas (PCH), criado em 1975, que vem propor a reinserção de
bens imóveis nas cidades como "elementos dinâmicos, e não mais estáticos, como eram tratados”
(CASTRIOTA: 2009, 101).
7“Trata-se
de um prédio de esquina construído em alvenaria, com arquitetura singela e fachada simples, apresentando
elementos decorativos geométricos e platibanda escalonada” (IPHAE, s/d).
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No entanto, percebe-se uma dificuldade de articulação entre as políticas públicas da União com os
municípios, com exceção de algumas regiões, como por exemplo, algumas cidades do nordeste, região
de Ouro Preto e Rio de Janeiro. Em muitos municípios até foram adotadas políticas próprias, que se
aproximavam da ideia de Conservação Integrada, apontada por Castriota.
Em relação à necessidade de trabalhar os princípios da Conservação Integrada, diversos municípios,
desde a década de 80, desenvolveram projetos que, em certa medida, se aproximaram deste viés, mas
a nível nacional é apenas em 1995 que o Governo Federal retoma sua ação nessa perspectiva, quando
o Ministério da Cultura (MINC) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) iniciam
negociações para viabilizar um programa dessa natureza. Em 2000 dá-se início efetivo ao Programa,
que recebeu o nome de Monumenta. Em 2003 ganham uma perspectiva diferente, estimulando a
contrapartida de estados e municípios e aumentando a sustentabilidade e capacidade de replicação.
Buscou-se reaproximar o Programa do IPHAN, que havia sido relativamente afastado.
Outro pesquisador, Llorenç Prats (2005: 20), também chama a atenção para um trabalho neste
sentido. Para ele, a análise do patrimônio deve levar em conta dois vieses: pensar no sentido de
valorar (caráter instrumental) e pensar no sentido de gestão patrimonial em conjunto (diretrizes).
Observemos que as linhas de trabalho do Monumenta buscam ampliar a discussão destas políticas,
onde a partir de 2005 passam a abranger também a Capacitação Profissional, a Educação Patrimonial,
apoio operacional, eventos culturais, promoção turística e publicações. Após uma longa discussão
dentro do governo, uma articulação bem sucedida do IPHAN resultou no lançamento do Programa de
Aceleração do Crescimento - PAC Cidades Históricas, que, em certa medida, vai suceder o Programa
Monumenta (CASTRIOTA: 2009, 107).
A abrangência do PAC Cidades Históricas é bem superior à do Monumenta, sendo voltado inicialmente
para todos os municípios com sítios ou conjuntos urbanos tombados ou em processo de tombamento
pelo IPHAN. Este Plano, que segue diretrizes preconizadas pelo IPHAN, se enquadra na perspectiva da
Conservação Integrada.
Em 2009, com o lançamento do PAC Cidades Históricas, abriu-se um leque bem maior para
desenvolver e provocar políticas que discutam os usos do passado, e suas perspectivas para a
comunidade nos dias de hoje. A conservação de bens materiais ou imateriais, por si só, não parece
algo tão sólido se não estiver junto à preocupação com os usos, gestão e utilização pelas populações
contemporâneas, que vão, evidentemente, observá-las com um novo olhar.
As políticas de memória e patrimônio, quase indissociáveis, precisam estar interligadas com outras
políticas públicas, em especial as da educação, para garantir sua abrangência, pluralidade e
manutenção.
O processo da patrimonialização em Jaguarão
As primeiras discussões em relação às políticas públicas para o patrimônio remetem ao início dos
anos1980, conturbado período político-econômico, em que se viviam os últimos anos da ditadura
militar. Não se pode dizer o mesmo com relação ao debate das políticas patrimoniais. A discussão
deste tema no Brasil toma volume na década de 70, sob influência dos debates sobre o Patrimônio
oriundos da Europa, sobretudo em função do Ano Europeu do Patrimônio em 1975. Foram elencados
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alguns princípios da Conservação Integrada, que servirão de pilares para muitas políticas de memória
em vários países, incluindo o Brasil.
Nesse contexto, os debates fomentados pela sociedade civil em Jaguarão foram gestados e projetos
levaram adiante ações que resultaram no levantamento arquitetônico dos prédios da cidade, na forma
de inventário, com vistas à preservação do patrimônio. O projeto considerado “pioneiro”, denominado
Jaguar, englobou diversas ações além do inventário, como a utilização de espaços culturais como o
Teatro Esperança e a valorização das ruínas da Enfermaria Militar.
Uma das estratégias que faziam parte do Projeto Jaguar foi envolver a comunidade nas reivindicações
em defesa do patrimônio da cidade, em “vigílias” realizadas na Enfermaria Militar, como consta na
publicação do Jornal Zero Hora em 23 de fevereiro de 1984, na matéria “Vigília para salvar a velha
enfermaria”:
Visando despertar a comunidade Jaguarense para o valor histórico e cultural da
ruína da Enfermaria com a meta de transformá-la em Monumento Histórico
Municipal, criando na área que a circunda um “Parque Verde” conforme consta
na carta de intenções do Projeto Jaguar será realizada nesta sexta-feira no alto
do Cerro da Pólvora uma vigília com a presença de músicos da região.
Quem explica como será a vigília é Jorge Arismende Garcia, estudante de
arquitetura, que junto com Valdo Nunes, outro estudante da mesma área foi o
idealizador do Projeto Jaguar. “A vigília inicia às 20horas e vai até o amanhecer
e é aberta ao público em geral, pois um dos objetivos do Projeto Jaguar é fazer
com que um número cada vez maior de pessoas se interesse e participe do
movimento que visa preservar a memória cultural da cidade”.
A primeira vigília ocorreu em 83 no mesmo Cerro da Pólvora e começa a se
formar o embrião do que é hoje o Projeto Jaguar. Esta segunda vigília é marcada
pela presença de cerca de 25 grupos e intérpretes da região, com participação
ainda confirmada do grupo chileno Vertientes, que está em excursão pelo
Estado e se interessou pelo motivo da vigília. Uma boa atração promete ser a
vigília, que além de oferecer horas de lazer gratuitas é um bom momento para
se discutir o passado histórico e cultural de Jaguarão e do Estado.
Em setembro de 1983, a Universidade Federal de Pelotas - UFPEL e a Prefeitura Municipal de Jaguarão
firmaram um convênio para “o desenvolvimento de um programa de cooperação técnico-culturalcientifica e de extensão”. O objetivo era a recuperação das ruínas da Enfermaria Militar, realizando um
levantamento histórico e fotográfico, para análise e diagnóstico de estudo de viabilidade.8
Pelas informações contidas nos documentos da prefeitura, a primeira ação referente à preservação do
patrimônio cultural de Jaguarão é o Projeto Jaguar, de 1982. Posteriormente, como vimos, é firmado
convênio entre Prefeitura e UFPEL. A partir desse momento podemos falar em políticas públicas para
o Patrimônio Histórico Cultural de Jaguarão, e a partir de então começa a aparecer nos Planos
Diretores subsequentes.
8
Jornal da UFPEL, 1987, p. 15.
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É importante entender que este processo se insere num contexto maior, numa discussão nacional e
mundial. A partir do Ano Europeu do Patrimônio (1975) este tema passou a fazer parte da agenda
política em praticamente todos os continentes. No Brasil, as Universidades tiveram um papel
importante, e entre estas, encontram-se inicialmente a Ritter dos Reis, de Porto Alegre, e a
Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), onde estudavam os acadêmicos jaguarenses nos cursos de
arquitetura, que idealizaram o Projeto Jaguar.
O acervo arquitetônico da cidade já vinha chamando a atenção do corpo docente daquela
universidade, destacando-se o trabalho da Professora Ana Lúcia Costa de Oliveira, resultando no
chamado Projeto Jaguar. Após a primeira eleição pós-ditadura (1985), o prefeito eleito, entusiasmado
com a movimentação deste projeto, institucionaliza algumas atividades e começa a organizar a
revitalização das Ruínas da Enfermaria.
Em 3 de outubro de 1986, é iniciado o processo de tombamento da antiga Enfermaria Militar de
Jaguarão. O encaminhamento foi feito em conjunto pelo Projeto Jaguar, NEAB, FAU/UFPEL e a
Prefeitura Municipal de Jaguarão,recebendo parecer técnico favorável,em reconhecimento do seu
valor histórico e paisagístico, “não restam dúvidas quanto a sua validade em ser considerado bem
cultural de interesse público” (Portaria n.08/90, do órgão estadual).
O Parque Municipal da Enfermaria foi construído com apoio de professores e estudantes da Faculdade
de Arquitetura, que, dentre outras ações, desenharam brinquedos que ficariam no local, assim como
uma praça em frente ao imóvel foi incorporada para execução do parque, mais tarde denominado
como Fernando Correa Ribas, em homenagem póstuma ao Prefeito que liderou esta iniciativa
(RIBEIRO; MELO: 2011, 288).
Para a preservação das ruínas, foram importantes as ações desenvolvidas no Projeto Jaguar como, por
exemplo: um convênio entre Prefeitura e UFPEL (1987), que leva ao surgimento posterior do
Programa de Revitalização Integrada de Jaguarão (PRIJ), em1991. Ainda em 1987, foi fundada a
Sociedade Independente Cultural (SIC), com forte influência deste movimento e que vai protagonizar
algumas atividades importantes na área cultural, e servir de base para a equipe da gestão de Cultura
em 2009.
De acordo com o livro “Programa de Revitalização Integrada de Jaguarão”, de Oliveira e Seibt (2005), o
trabalho desenvolvido era uma proposta de preservação integrada entre poder público, comunidade e
iniciativa privada.9O Programa de Revitalização Integrada de Jaguarão é fruto do convênio entre a
Universidade Federal de Pelotas e a Prefeitura Municipal de Jaguarão, chamado de “Revitalização e
Preservação Paisagístico Cultural de Jaguarão” sob o n. 01/91/UFPEL/PM. Os princípios norteadores
do documento foram cinco itens do Manifesto de Amsterdam relativos à Conservação Integrada,
juntamente com os dez itens da Carta de Veneza, e as recomendações constantes na Carta de Porto
Alegre. O programa reflete ideias difundidas na época,como, por exemplo: “que as cidades precisam de
cuidados permanentes, como organismos vivos”. E mais: “Um Programa de Revitalização precisa
abranger a memória” (OLIVEIRA; SEIBT: 2005, 11). Não podemos deixar de mencionar que, nos anos
80 do século passado, o debate em torno da memória revisitada foi colocado no centro das atenções
dos pesquisadores e na década de 90 questões da identidade (D’ALESSIO: 1998).
9O
Programa determina uma série de instrumentos urbanísticos e detalha critérios de análise do acervo arquitetônico,
baseado no cadastramento do Inventário do Patrimônio Arquitetônico da cidade de Jaguarão (IPACJ) para orientação das
obras de conservação e intervenção nas Zonas de Preservação, concedendo ainda níveis de isenções tributárias conforme
características dos imóveis.
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Em 1980 um novo órgão era criado: SPHAN/ Pró-Memória, coordenado por Aloísio Magalhães, que via
a cultura como objeto de ação política. Nesse período passa a fazer parte dos conceitos de bens
culturais o fazer-se dos indivíduos. Essa nova perspectiva influenciou os trabalhos desenvolvidos no
projeto de revitalização de Jaguarão. Um projeto de revitalização pressupõe de um planejamento com
inserção da comunidade.
Ainda em 1990, a cidade tem quatro prédios tombados pelo IPHAE: o Teatro Esperança, as Ruínas da
Enfermaria Militar, a Igreja Divino Espírito Santo e a Casa de Cultura. O Teatro encontrava-se em
precárias condições de deterioração e em 1998, nos seus 100 anos,foi municipalizado.
Os Fóruns foram espaços importantes de debates e parcerias. Em abril de 2009 organizaram-se o
Fórum de Patrimônio Histórico e Cultural, o Seminário Internacional do Bioma Pampa, e a parceria
entre IPHAN e Prefeitura Municipal para o Centro de Interpretação do Pampa (CIP) nas antigas ruínas
militares.
Refuncionalização da Enfermaria Militar
A fim de sintetizarmos melhor, buscaremos tratar de forma mais particular a revitalização das Ruínas
da Enfermaria, dentro das políticas públicas desenvolvidas.
A Enfermaria Militar é um espaço carregado de lembranças, sentimentos e singularidades e, ao mesmo
tempo, de tensão. O local traz a marca de uma história de batalhas, conflitos, portanto uma memória
de luta. Construída na parte mais elevada da cidade, a enfermaria oferece uma ampla visão de toda a
região, o Rio Jaguarão e a Ponte Mauá, que liga o Brasil ao Uruguai. Observa-se à distância o outro
lado, a fronteira com todos os seus significados. No passado, nada pacífica e, no presente, modelo para
o mundo de integração e convivência.
É paisagem da memória, com valor histórico, arquitetônico e paisagístico. É a origem da cidade que as
ruínas evocam coma presença militar, batalhas e disputas, tratados na “formação da fronteira” do país
e do Estado do Rio Grande do Sul. Traz também muitas histórias, como, por exemplo, das construções
de obras, da engenharia em nosso país, com descrições detalhadas, presentes nos relatórios de obras.
Também evoca a história da medicina e suas práticas.O trabalho da escavação arqueológica revelou a
descoberta de uma lixeira hospitalar. Enfim, seria interessante uma “escavação arqueológica” do
“monumento”, pois são muitos mundos que se entrecruzam nesse espaço fronteiriço entre Brasil e
Uruguai, com diferentes discursos e narrativas. Nesse sentido, concordamos com as reflexões de
LeGoff (1996), que afirma: “O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um
produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder”.
São séculos de histórias, de lendas e de mitos que permeiam o imaginário dos habitantes da região
fronteiriça Brasil/Uruguai, que ainda continuam vivos, sendo narradas de geração para geração,
presentes nas mais diferentes formas de organização cotidiana. A paisagem é portadora de memória,
de lendas, mitos, como a história que segue:
Contam que, por volta de 1965, uma mulher foi até o quartel pedir ao General a
autorização para a retirada de algumas madeiras que estavam caídas no local,
correspondente à ala de isolamento. O General autorizou tal pedido (algumas
pessoas comentam que ela era amante dele). Após verem a mulher retirando as
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telhas, os moradores do entorno também retiraram materiais construtivos,
inclusive de caminhão. De acordo com os informantes foram retirados telhas,
madeiras, ferros, ladrilhos, peças do banheiro, portas etc. Rapidamente, do
prédio foi feito ruína (VERGARA; ZORZI; PEIXOTO: 2012, 255).
Se o prédio foi feito ruínas em apenas uma noite,quando da construção em 1845 os moradores, de
maneira inversa à depredação de 1965, contribuíram para a obra do “forte”, que de acordo com
documentação estava sendo construído no Cerro da Pólvora, com o oferecimento de materiais para a
obra, como tijolos e madeiras, conforme consta em uma cópia de um ofício de 1845.
Existe uma dúvida com relação ao prédio da antiga enfermaria: seria este um forte? Essa construção
estaria relacionada às manifestações de Caxias com relação a uma possível guerra na Bacia do Prata,
quando findou a Revolução Farroupilha em que foram preparadas várias guarnições fronteiriças
(CUNHA: 2012, 127). Conforme correspondências do major Alexandre Manoel Albino de Carvalho,
Deputado do Quartel e Mestre General, ao conde de Caxias, em 11 de julho de 1845, o forte começava a
ser construído no Cerro da Pólvora (id.). Sérgio da Costa Franco (2001:.71) também se refere ao
projeto, afirmando que este não se concretizou servindo como curiosidade para ilustrar a história do
Cerro da Pólvora.
O IPHAN, com orientação da historiadora Beatriz Muniz Freire, realiza um trabalho de transcrição de
documentos sobre a Fortificação localizada no Município de Jaguarão, que começara a ser construído
na metade da década de 1840. A delimitação da Pesquisa é 1845/1848. A escolha desse recorte se
deve ao fato de não terem encontrado mais documentos sobre a construção, até o ano de 1860.
O início das obras do prédio em estilo neoclássico da Enfermaria Militar é de 1880, e em 1883ela é
concluída. Há ampliação em 1915, com a criação de espaços em função da capela e necrotério. Ainda
estava em funcionamento no início dos anos 50, e o ano de 1966 marcou o fim do funcionamento.10
Com o passar do tempo, foi palco dos mais diferentes usos, revelador dos conflitos e tensões, como
também de redes de solidariedades.
Existe uma relação de pertencimento dos moradores com esse bem cultural, uma memória
compartilhada, um sentimento manifestado em diferentes épocas: nas vigílias em 1983, 1984 e em
2009 no “abraço da enfermaria”. O “Abraço na Enfermaria em defesa do Centro de Interpretação do
Pampa” destinou-se a pressionar a Câmara Municipal para que fosse permitida a contratação do
projeto arquitetônico e a concepção museográfica e museológica pela Prefeitura de Jaguarão, e que
mais tarde o seu detalhamento fosse custeado pela UNIPAMPA. Novamente a parceria com uma
universidade foi fundamental. O recurso disponível para a execução do projeto foi anunciado na
própria cidade pelo Presidente do IPHAN, Dr. Luiz Fernando Almeida.
Nesse momento, carregado de tensões, os gestores da Prefeitura e os que estavam envolvidos no
processo temiam perder o projeto para outro município da região; houve resistências por parte de
alguns com relação ao projeto e novamente a comunidade foi importante nas ações desenvolvidas na
10Sabemos
que, além das constantes batalhas travadas nesse espaço, houve ainda duas grandes epidemias de cólera: a
primeira em 1855, “trazida por via fluvial ceifou 200 vidas. Dois terços da população refugiaram-se no interior.” E em
1867, durante a Guerra da Tríplice Aliança em que morreram “79 jaguarenses, também responsável por milhares de baixas
entre as tropas de ambos os lados durante a guerra” (CUNHA: 2012, 270).
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busca de preservação dos bens culturais da cidade. A comunidade se apropriou dos debates e o
projeto passou a ser assunto em rodas de conversas, e-mails, jornais, rádio, assembleias, escolas,
fóruns de debates, chamadas de solidariedade. Merece destaque o convite feito à população para
comparecer a um ato púbico na enfermaria, o “grande abraço”. A mensagem circulou, na época, em
diferentes meios de comunicação local. Vejamos um fragmento do texto:
O abraço representa uma ação de reapropriação da comunidade com a sua história, com o
uso do espaço público. Nada é mais revolucionário que o abraço! É nesse contexto que
pedimos ajuda de todas as pessoas sensíveis ao projeto e comprometidas com o
desenvolvimento turístico e cultural na nossa região, do nosso Pampa. Repassem o
chamado para o abraço e vamos juntos mobilizar o maior número de pessoas possíveis.11
O abraço rememora as vigílias dos anos 80 em que a comunidade se reuniu para defender o seu
patrimônio do abandono e esquecimento. O abraço representava essa reapropriação do espaço
público pelos moradores, um “gesto revolucionário”, provocador de mudanças. Afinal toda revolução é
transformadora! Era a oportunidade de romper com a imagem negativa da cidade do “Já teve”, uma
visão pessimista impregnada na população devido aos anos de estagnação econômica e para isso era
necessário sensibilizar os vereadores, que tinham o poder na Câmara de vetar a remessa proposta.12
O projeto apontava para essa possibilidade de mudança e para isso a população se mobilizou. O
convite feito à comunidade comparava o abraço a um gesto revolucionário, buscando referência em
uma memória de luta. Afinal, Jaguarão é conhecida como Cidade Heroica, pelos seus feitos no passado.
Se ruínas remetem a representações que evocam o passado, queda de uma civilização, a comunidade
de Jaguarão invertia essa relação e transformavam as ruínas da Enfermaria em representação do
futuro.
Assim como a população abraçou a Enfermaria, o mesmo aconteceu com a Universidade Federal do
Pampa, e talvez não tenha sido por acaso que no discurso do dia 20 de janeiro de 2010, ao assinar o
convênio com a Prefeitura Municipal e a empresa Brasil Arquitetura, visando o desenvolvimento do
projeto arquitetônico e da concepção museológica e museográfica, para a criação do Centro de
Interpretação do Pampa, a reitora Maria Beatriz Lucese refere ao projeto como um projeto de futuro:
“Ao abraçaras ruínas da Enfermaria Militar, como a população de Jaguarão já o fez, assume o
desenvolvimento do projeto do Centro de Interpretação do Pampa”.13
A Enfermaria, que já foi hospital militar, escola e também prisão política no período da ditadura,
começava em 2009 a ser projetado para se tornar um local da memória, um espaço para narrar as
diferentes linguagens da fronteira trazendo o universo do Pampa, com toda sua diversidade, Pampa
que é brasileiro, uruguaio e argentino. (RIBEIRO; MELO: 2011, 289)
11Mensagem
da vereadora Thiara Gimenez, enviada para os diferentes meios de comunicação em Jaguarão, 04 de agosto de
2009.
12Tramitava na Câmara Municipal um projeto que autorizava a abertura de crédito especial no valor de R$ 100.000, que
visava atender a contratação de serviços de terceiros para a execução de projeto técnico. Este recurso estava previsto no
orçamento da gestão anterior, uma rubrica especifica para as ruínas da enfermaria.
13O projeto arquitetônico consiste na estabilização das ruínas da antiga Enfermaria Militar (1880), situada no Cerro da
Pólvora, o ponto mais elevado da cidade de Jaguarão, com a construção de novos pisos, paredes e tetos,
predominantemente em vidro e concreto.
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O projeto envolveu a Prefeitura Municipal, a Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e o IPHAN,
ficando a cargo da Brasil Arquitetura, empresa do Estado de São Paulo, coordenada pelos arquitetos
Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci. Contou com a criação e concepção museográfica de Isa Ferraz e
Marcelo Macca, entre cujos trabalhos estão o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo e o Museu do
Pão em Ilópolis no Rio Grande do Sul (RIBEIRO; MELO: 2011, 288).
O projeto arquitetônico buscou, dentro do possível, preservar o aspecto de ruína, sobretudo na parte
frontal, a qual estava mais bem erguida, complementando com outras intervenções para dar vida ao
complexo Centro de Interpretação do Pampa. De acordo com o projeto, a ideia é de um espaço vivo em
que os visitantes possam vivenciar as mais diferentes experiências: sonoras, sensitivas, imagéticas. Ele
terá eixos para contar e recontar a história do Pampa: Paisagem natural do Pampa; Antiguidade da
ocupação da região; Mestiçagem; Fronteira e a construção de uma identidade. A proposta é trabalhar
com elementos que remetem ao Pampa, como se constituem e como este é representado. A
singularidade física e humana do que se chama Pampa é o tema central desse centro de interpretação
(RIBEIRO; MELO: 201 289).
Questionamentos e criticas também foram feitas ao projeto, como o que segue:
o projeto de restauração de um bem não pode desconhecer os significados que lhe são
associados pelos diversos setores sociais que com ele convivem e não pode desconsiderar as
expectativas destes setores na funcionalização do bem a ser reciclado, restaurado. A
observação dos usos presentes leva a propor ruma reformulação de paradigmas em termos
de restauração: porque não restaurarem as pichações e grafites, por que não incluírem os
registros dos usos da fase de abandono, por que não, mais importante ainda, pensarem
estratégias que evitem a total ruptura com os usos do prédio pelos setores subalternos
durante seu abandono? (VERGARA; ZORZI; PEIXOTO: 2012, 263).
Em 2015 encontrava-se consolidado 60% da obra do Centro de Interpretação do Pampa (CIP),
segundo o historiador da Unipampa Alexandre Villas Boas.14 Porém, mais do que isto, foi estabelecida
outra parceria, desta vez com a Unipampa, onde se responsabilizará pela Gestão do Centro de
Interpretação do Pampa, bem como pelos procedimentos futuros para sua revitalização.
Esta ideia já vinha sendo amadurecida, partindo de uma premissa básica: as Administrações
Municipais têm uma rotina de mudanças mais rápidas, onde muitos projetos não gozam de
continuidade por falta de vontade e sintonia política entre uma gestão e outra. Já as universidades,
apesar de possibilidades de mudanças políticas no governo central, gozam de uma estabilidade muito
maior. Isto garantiria que o CIP seguisse seus passos independentes do “humor” das gestões do
município. Sem contar o próprio custo de manutenção, que seria quase impossível para um município
com pouco mais de 30 mil habitantes.
Com a mudança da Gestão municipal em 2009, a Secretaria de Cultura e Turismo é desmembrada do
Desenvolvimento Econômico, e o grupo que assumiu esta pasta tinha influência direta do Projeto
Jaguar e da SIC. A nova gestão procurou juntar alguns quadros ligados ao movimento cultural,
associados ao conhecimento técnico em algumas áreas. Isto, associado à vontade de colocar em
prática políticas públicas que dessem conta desta riqueza patrimonial que a cidade possuía, levou o
município a dialogar mais diretamente com o IPHAN. O contexto local, nacional e internacional foi
14Historiador
da Universidade Federal do Pampa.
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favorável para a consolidação de políticas públicas para o Patrimônio Cultural, dando sequência a uma
nova fase deste processo que vinha caminhando lentamente desde 1980.
Foi importante o processo de Assembleias que nortearam os debates sobre o Orçamento do
município, já a partir de 2009, onde as questões ligadas ao Patrimônio Arquitetônico da cidade eram
sempre levantadas, principalmente em relação àqueles locais que se encontravam em abandono ou já
em ruínas.
A restauração do Teatro Esperança ocorreu neste período, e em 2011 o tombamento nacional do
Centro Histórico de Jaguarão, o tombamento Binacional da Ponte Internacional Mauá (2012) e, ainda
em 2013, 11 projetos foram aprovados pelo PAC Cidades Históricas, que totalizarão 40 milhões de
reais. Com os debates com grupos que não tinham maior visibilidade, como os ligados à religiosidade
afro-brasileira, também se desenvolveu atividades relacionadas às festas de Iemanjá e São Jorge, que
eram tradicionais, mas pareciam invisíveis para muitos jaguarenses. Como fator importante para a
conservação dos prédios hoje tombados nacionalmente, é o fato de eles encontrarem-se habitados por
moradores, muitos ligados às residências há várias gerações.
Conclusões
Há de se levar em conta que as instabilidades políticas das gestões podem atrapalhar o processo de
revitalização. Por isso, tão importante quanto às ações públicas positivas, é o trabalho dos ativistas
que militam em ações não governamentais. O fortalecimento de entidades culturais, dos Pontos de
Cultura, entre outros, poderá ser que vai garantir a continuidade ou não de programas deste porte.
Um exemplo é o PAC Cidades Históricas. Uma vez entregue à população um bem, como, por exemplo,
o Teatro Esperança, reinaugurado em 13 de novembro de 2015 após um período de restauro, não é
garantia de que o mesmo se manterá aberto à comunidade. A garantia de sua continuidade passará
pelo debate da gestão e uso deste bem. O envolvimento organizado da comunidade é fundamental
para que estas políticas dêem certo.
Este processo de discussão patrimonial em Jaguarão, que começou a tomar fôlego no início da década
de 80, e que veio lenta e gradualmente se construindo nas duas décadas posteriores, teve uma
efetividade maior quando se partiu para um pensar e uma prática governamental e não
governamental que implicou a busca de participação de vários grupos envolvidos com o tema, e a
vontade, incomum em gestões, de colocar a cultura como tópico principal em suas políticas públicas.
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