- Programa de Pós Graduação em História
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- Programa de Pós Graduação em História
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS MESTRADO EM HISTÓRIA HISTÓRIA, TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS GILBERT ANDERSON BRANDÃO SÍRIOS E LIBANESES EM CUIABÁ: IMIGRAÇÃO, ESPACIALIZAÇOES E SOCIABILIDADE. Cuiabá – MT 2OO7 GILBERT ANDERSON BRANDÃO SÍRIOS E LIBANESES EM CUIABÁ. IMIGRAÇÃO, ESPACIALIZAÇOES E SOCIABILIDADE. Dissertação apresentada para a obtenção do título de Mestre junto ao Programa de Mestrado em História – História, Territórios e Fronteiras do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso. Orientador: Professor Doutor João Carlos Barrozo. CUIABÁ – MT 2007 Ficha Catalográfica B817s Brandão, Gilbert Anderson. Sírios e Libaneses em Cuiabá: imigração, espacializações e sociabilidade / Gilbert Anderson Brandão – Cuiabá: O Autor, 2007. 144 f. : il. ; color. Dissertação (Mestrado em História). UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso. Orientador: Prof. Dr. João Carlos Barrozo. Inclui bibliografia. 1. História. 2. Sírios. 3. Libaneses. 4. Diversidade populacional. 5. Cuiabá. I. Barrozo, João Carlos. II. Universidade Federal de Mato Grosso. III. Título. CDU – 94:351.88 Catalogação elaborada por Leonel Gandi dos Santos Bibliotecário UNIC – CRB-512 GILBERT ANDERSON BRANDÃO SÍRIOS E LIBANESES EM CUIABÁ. IMIGRAÇÃO, ESPACIALIZAÇOES E SOCIABILIDADE. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________ Presidente orientador. Professor Dr. João Carlos Barrozo. ______________________________________________________ Examinador Externo: Professor Dr. Marco Aurélio de Oliveira. ______________________________________________________ Examinador interno: Professor Dr. Pio Penna Filho. Cuiabá, 10 de dezembro de 2007. DEDICATÓRIA A minha mãe Albertina, minha avó Glicélia e meu avô Domingos (in memorian). Por todo amor, dedicação e desprendimento, que possibilitaram o meu crescimento. Ao Meu Pai Khaled Mohamad Dahroug (in memorian), libanês de Karaoun, pela inspiração. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a vida, por sempre estar me dando chances de ousar e continuar crescendo. Ao Professor Doutor João Carlos Barrozo, orientador e amigo desde os tempos de graduação quando me deu a oportunidade de ingressar num projeto de iniciação científica. Muito do que sou e aprendi, devo a sua orientação criteriosa e dedicação que tem para comigo e com todos os seus orientandos. Aos professores Mestres Carlos Américo Bertoline, Flávio Paes e as Professora Mestre Thereza Marta Borges Pressoti, pelos primeiros incentivos nesse caminho acadêmico. Ao Professor Doutor Pio Penna Filho por todo o aprendizado desde os tempos de graduação, por acreditar e por ter viabilizado através do PADCT boa parte dessa dissertação. Aos professores do programa de Pós Graduação em História da UFMT, em especial os Professores Doutores Oswaldo Machado Filho, Vitale Joanone Neto e Carlos Alberto Rosa. E em especial as Professoras Doutoras Leny Caselli Anzai por toda dedicação à frente do Programa de Pós Graduação; Maria de Fátima Gomes Costa e Maria Adenir Peraro pela oportunidade de troca e aprendizagem durante o cumprimento dos créditos do mestrado, Regina Beatriz Guimarães Neto, pelos desafios impostos, por todas as recomendações para a feitura deste trabalho. A minha amiga de todas as horas Mirian Rejane Guimarães Ferreira, presença constante durante todos os momentos, desde a graduação até o mestrado, o coração registrou seus gestos. Aos meus amigos Anderson Domingos da Silva, Julio César Coelho, Maria Carolina Ramos e Rachel Tegon de Pinho, por terem feito cada momento valer a pena, por estarem sempre juntos a mim e participarem ativamente dessa minha conquista. Aos amigos Antonio Braz Spolti (Guido) e Priscila Xavier, como era bom “operar desvios”, alegria e companheirismo em todos os momentos do mestrado. A Antonio Leôncio pela irreverência, sua loucura é inspiradora. Aos colegas do programa de pós graduação, em especial Ângela Magalhães, Gilberto Brizola, Viviane Gonçalves e Célio Pedraça por todos os momentos de aprendizagem e descontração nesses últimos dois anos. A Mônica Acendino do Programa de Pós Graduação, presença constante, simpática e competente, pronta nos auxiliar em qualquer problema. Seu carinho ta registrado. A Famíla Ramos, nas pessoas de Severino Ramos e Neide Ferraz Ramos, por todo suporte, pela partilha constante. Aos amigos de longa data Cláudio, Eblin, Paulo, Davenir, Mario e Márcia, pela calorosa acolhida no Rio de Janeiro, por ocasião de minha visita ao Arquivo e Biblioteca Nacional, pela partilha, por tudo. Aos novos amigos, colegas da UNIC, Maristela, Rosemai, Gesevany, Maria Angélica e Débora, por terem agüentado toda minha loucura nesses últimos meses. A Yasmin Jamil Nadaf, e aos meus Depoentes Jamil Boutros Nadaf, Aidda Nagib Saddi, Mirian Saddi, Ivens Cuiabano Scaff e Lourdes Kalix Ferro, por me deixar ouvir suas histórias, pela partilha da vida e história de suas famílias. A Luis Castanha, quase um anjo da guarda, sempre possibilitando que eu tivesse livros à mão, mesmo quando não tinha recursos no momento. A Luzinete e Vanda Silva do Arquivo Público do Estado de Mato Grosso, por toda atenção e indicação de documentos durante minha pesquisa. Aos funcionários do NEDHIR toda atenção dedicada a nós pesquisadores. Aos meus irmãos Gislaine, Khadyge, Magyda, Oumar e Zaryf, por estarem sempre presentes em minha vida, por serem parte formadora do que sou. A Issaf Araji Dahroug pelo carinho, pela preocupação comigo durante esses anos de mestrado. A minha família materna, pelos incentivos, por suportarem minhas ausências nesse momento em que o recolhimento se fazia necessário Enfim, a CAPES /CNPQ, pelo financiamento dessa pesquisa, por tornarem possível a realização desse trabalho EPÍGRAFE “A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si, uma se articula na outra, como demonstraram os orientais. Em cada um deles vive uma Sherazade, que imagina uma nova história em casa passagem da história que está contando. Tal é a memória épica e a musa da narração”.1 1 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 31. RESUMO A presença de sírios e libaneses no Brasil se tornou bastante significativa a partir da década de 1880. Nesse período, dinâmico e conturbado, o Brasil, um país com suas instituições ainda se fortalecendo, elaborava leis e lançava decretos, visando uma melhor definição do perfil da população desejada para o país. Nesse sentido, definia-se o perfil de imigrantes desejados, idealizados, sempre ligado a teorias raciais em voga na época. Mesmo fora do perfil definido como ideal nas últimas décadas do século XIX, que era o europeu de origem latina, os sírios e libaneses constituíram parte importante do quadro de imigrantes que entraram no Brasil, contribuindo significativamente para formação da população e desenvolvimento da diversidade populacional do Brasil. No Estado de Mato Grosso, a ânsia propagada pelos discursos oficiais era a de povoar o Estado, com imigrantes e garantir a exploração de suas riquezas naturais propiciando seu desenvolvimento econômico. Havia também no Estado, a exemplo do Brasil, uma preferência pelos imigrantes de origem européia, e uma necessidade de se livrar do perfil de indolência atribuída à população local, num claro discurso “racista”. Os primeiros imigrantes sírios e libaneses que chegaram a Cuiabá, professavam a fé cristã e tinham suas atividades produtivas no país de origem ligadas a agricultura, entretanto se dedicaram as atividades de mascate num primeiro instante, e posteriormente a abertura de empresas comerciais. Fizeram-se presentes no processo de expansão comercial e populacional da Capital de Mato Grosso, e se integraram a sociedade local, estabelecendo sínteses culturais, a ponto de em tempos atuais, os descendentes desses primeiros sírios e libaneses corresponderem em parte, ao que comumente se representa como “Cuiabania”. Palavras chave: História, Sírios, Libaneses, Diversidade populacional, Cuiabá. RÉSUMÉ La présence des immigrants d‟origine syrienne et libanaise au Brésil est devenu très important dès la décennie de 1880. Au cours de cette période, dynamique et en difficulté, le Brésil, un pays avec ses institutions lesquelles étaient encore en renforcement, élaborait des projets des lois et des décrets en visant à mieux définir le profil de la population du pays. En conséquence, on a vérifié la mise en place du profil des immigrants, désirés et idéalisés, lequel est connecté à des théories raciales en vogue à l'époque. Même en dehors du profil défini comme idéal dans les dernières décennies du XIXe siècle, c‟est-à-dire le profil européenne d'origine latine, les immigrants d‟origine syrien et libanais ont constitué la majorité des immigrants qui sont arrivés au Brésil, en contribuant de manière significative à la formation et au développement de la diversité de la population au Brésil. Dans l'État du « Mato Grosso », le désir, propagé par les discours officiels, c‟était le désir de peupler l'état, avec les immigrants tel que assurer l'exploitation de leurs richesses naturelles pour aider le développement économique de cette région. Il y avait aussi dans l'État, comme le Brésil, une préférence pour les immigrats d'origine européenne, et il y a avait aussi la nécessité de se débarrasser de l'image de l‟apathie attribuée à la population locale, dans un discours «raciste». Les premiers immigrants libanais et syriens qui sont arrivés à « Cuiabá », étaient chrétiennes et leurs activités productives, dans le pays d'origine, étaient relatives à l'agriculture, mais ils, désormais, étaient consacrés à des activités d'un colporteur, et ensuite, ils sont consacrés à l'ouverture du marché des entreprises. Ils ont aidé le processus de l'expansion du commerce et de la population de la capitale du « Mato Grosso », et ils ont intégré la société locale par la création de la synthèse culturelle jusqu‟au présent de nos jours. On peut dire que ces immigrants, syrians et libanais, peuvent correspondre, en partie, à ce qui on est communément répresenté comme la « Cuiabania ». Parole-clé : Históire, Syriens, Libanais, Diversité de La population, « Cuiabá ». LISTAS Tabelas Tabela 1 - Imigração Estrangeira (sic) no Brasil entre 1884 e 1943 ....................... 53 Tabela 2 - Imigrantes residentes em Cuiabá conforme informações dos censos de 1890 e 1943 .............................................................................................................. 98 Tabela 3 – Quadro comparativo das imigrações para os estados de Goiás, Mato Grosso e sua capital Cuiabá ................................................................................... 100 Tabela 4 – Imigração para Mato Grosso e Cuiabá em 1920 ................................... 100 Tabela 5 – Empresas de sírios e libaneses abertas em Cuiabá 1905 até 1920 ...... 110 Figuras Figura 1 – Hotel Universal 1914 .............................................................................. 107 Figura 2 – Sobrado Casa Mansur ........................................................................... 108 Figura 3 – Boabaid e Irmãos – anúncio em jornal 1919 .......................................... 109 Figura 4 – Maria Bubarack Kalix e Miguel J. Kalix – fotografia tirada quando chegaram ao Brasil ................................................................................................. 123 Figura 5 – Miguel J. Kalix e Maria Mubarack Kalix – década de 1970 .................... 124 Sumário INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13 CAPÍTULO 1 - CENÁRIOS DESCOBERTOS .......................................................... 25 Tensão e sonho na pátria mãe. ............................................................................. 26 Império Turco Otomano - Síria e Líbano................................................................ 29 Fazendo-se migrante ............................................................................................. 43 Imigração para o Brasil .......................................................................................... 52 CAPÍTULO 2- TENSÃO E SONHO EM TERRA ESTRANHA .................................. 59 Brasil – Leis e projetos sobre imigração: a auto-imagem de um país, em comparação ao “outro”. ......................................................................................... 60 Mãos que trabalham e purificam a raça: criação do conceito de imigrante ideal. .. 66 Políticas imigratórias durante o Estado Novo ........................................................ 77 Mato Grosso – Conjuntura, projetos, discursos sobre imigração........................... 81 Imigrantes sírios e libaneses. ................................................................................ 88 CAPÍTULO 3. SÍRIOS E LIBANESES NO ESPAÇO URBANO DE CUIABÁ. PRÁTICAS E SOCIABILIDADES. ............................................................................ 91 Navegação da Bacia Platina, população e imigração de sírios e Libaneses para Cuiabá: dados demográficos. ................................................................................ 92 População de Mato Grosso, do recenseamento de 1872 ao recenseamento de 1920 ....................................................................................................................... 96 Sírios e libaneses na cidade de Cuiabá. .............................................................. 102 Sírios e Libaneses em Cuiabá – Trajetórias sociais e redes de cooperação ....... 115 CONSIDERAÇÕES FINAIS. ................................................................................... 130 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 136 13 INTRODUÇÃO Se cortássemos todos os cedros do Líbano E os cedros são fonte de inspiração E com eles erigíssemos aqui um templo Cujas torres atravessam as nuvens. Se arrebatássemos de Baalbeck e de Palmira Vestígios do nosso passado glorioso Se arrancássemos de Damasco O túmulo de Saladino E de Jerusalém, o sepulcro do redentor dos homens. Se doássemos todos esses tesouros À grande nação independente E a seus generosos filhos Sentiríamos que ainda assim Não pagamos tudo o que devemos Ao Brasil e aos brasileiros (Elias Farhat – 1928) 2 Este poema foi o vencedor do concurso realizado por ocasião da inauguração do monumento “Amizade Síria-libanesa” no Parque D. Pedro II em 1928. Em 1988 o monumento foi transferido para uma praça, nas proximidades da rua 25 de março, a mais tradicional rua de comércio de São Paulo. A poética de Farhat retrata as relações existentes entre os libaneses e o Brasil, mas que também poderiam ser utilizadas para outros grupos étnicos que se dirigiram para o Brasil. Por mais romântico que possa parecer, o poema e o contexto em que foi criado, trazem pistas importantes para se entender a importância da imigração de sírios e libaneses para o Brasil. Edgar Alan Poe em seu conto “O Homem das multidões” descreve um encontro casual e somente visual entre um observador, e um transeunte que lhe 2 Cf. KHATLAB, Roberto. Brasil-Líbano: Amizade que Desafia a Distância. Bauru: EDUSC, 1999. 14 chamou a atenção. Inquieto e curioso com o que via, se pôs a seguir compulsivamente aquele anônimo por entre as ruas da cidade. Depois de longo trajeto noite adentro, avançando pela madrugada, por entre avenidas, ruas, vielas e outros cenários como o porto da cidade com seus cassinos e casas de prostituição, percebe exausto, ter retornado ao lugar onde a perseguição havia começado. Perseguindo este tema, me deparei com novas possibilidades em relação àquelas que haviam pensado originalmente. Os novos estudos, propiciados nas disciplinas do mestrado em história revelaram novos caminhos, sepultaram outros, abalaram algumas certezas já cristalizadas, enfim libertou percepções. No trabalho de pesquisa é surpreendente perceber, no decorrer do caminho, sinais que apontam para outras abordagens diferentes daquelas que apontavam os primeiros indícios levantados. Tarefa difícil é realizar a depuração dos “achismos”, figuras mentais que só existem em nossas cabeças, quase sempre com começo, meio e fim. Por vezes partimos de impressões e pensamos abarcar o todo com elas, e construir a mais fabulosa e faustosa das narrativas. Neste caminhar, foi fundamental apreender que as primeiras impressões são figuras que servem de fio condutor para a realização de novos percursos, e não constituem um achado em si que se baste. Faltava nesse ínterim a mediação proporcionada pela prática do “fazer” história, para se apontar, descobrir novos meandros, novas abordagens. Faltava inteligibilidade teórica e metodológica para, nos moldes do proposto por Certeau 3 em “A Escrita da História”, “operar desvios” que possibilitassem o encadeamento de problemas necessários para a construção de uma narrativa. Quando pensava a pesquisa e a escrita, estava embasado por noções de período, sem a devida problematização. Nesse sentido, este trabalho que pretende abordar imigrantes sírios e libaneses em Cuiabá, é o desdobramento da pesquisa realizada durante a graduação em História, da qual resultou um projeto apresentado à banca avaliadora do programa de pós-graduação em História da UFMT em 2004. No 3 CERTEAU, Michel de. Operação Historiográfica. In: A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. 15 projeto inicial, pretendia estudar a presença de árabes em Cuiabá, motivado pelas impressões familiares, nas quais sírios libaneses e outros povos do Oriente Médio se denominam como árabes em Cuiabá. Tentando escapar da armadilha de tal generalização, uma vez que a documentação arrolada permite vislumbrar somente a presença de sírios e libaneses, e não de outras nacionalidades, optei por mudar o enfoque. Entretanto, outro “nó” se faz visível. Os sírios e libaneses constituem nacionalidades diferentes, e como tais apresentam especificidades. A opção por manter a abordagem de sírios e libaneses, se deu pela constatação de motivações semelhantes enfrentadas por ambos para emigrar, as quais podem ser sintetizadas em fatores religiosos e pela relação de submissão ao Império Turco otomano, e suas leis que regulavam o acesso a terra, mudando a estrutura fundiária dos países gerando aumento da população urbana e do o desemprego nesses países. 4 Há semelhanças nas práticas produtivas desempenhadas por esses imigrantes em Cuiabá, com destaque para suas espacializações e ausência de constituição de territórios étnicos e culturais, bem como suas relações com a sociedade local, que resultou na assimilação desses contingentes de fé cristã à cultura local. Sírios e libaneses passaram a chegar ao Brasil em levas consecutivas a partir das décadas de 1860 e 1870. Os primeiros indícios sobre a presença deles em Cuiabá aparecem nos dados do recenseamento de 1890. Segundo Hajjar, pode-se dividir a imigração de sírios e libaneses em duas grandes etapas: a primeira, iniciada nos anos de 1860/1870, a qual termina por ocasião da 2ª guerra mundial. A segunda começa a partir de 1945 e continua até os dias atuais.5 Os que vieram na primeira leva migratória eram em sua maioria cristãos, que estavam fugindo da dominação do Império Turco Otomano. Ivens Cuiabano Scaff, neto de libaneses, narra que um dos motivos que levou seus avôs e bisavôs a emigrarem foi a situação de guerra em que se encontrava o Líbano no século XIX, sobretudo pela perseguição sofrida pelos cristãos.6 Esses primeiros imigrantes 4 Cf. HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Cia das Letras. p. 291-3. NUNES, Heliane Prudente . A Imigração Árabe em Goiás. Goiânia: Editora UFG, 2000. p 23 5 HAJJAR, Claude Fahd. Imigração árabe: Cem Anos de Reflexão. São Paulo: Editora Ícone, 1985. 6 SCAFF, Ivens Cuiabano, médico, neto de libaneses, cujo pai nasceu em Corumbá em 1907. Residente em Cuiabá. 30/10/2006. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 16 ficaram conhecidos como turcos, porque seus passaportes vinham com o carimbo de registro do império Otomano. Convém destacar que no Brasil, no senso comum, mesmo em tempos atuais, o gentílico turco ainda é usado para denominar os povos oriundos do Oriente Médio, independente da nacionalidade. Esta imigração tem caráter espontâneo, pois não se deu por meio de projetos governamentais nem do Império Otomano nem tão pouco co Império e da república brasileira. Entretanto a “espontaneidade” está ligada a fatores de expulsão na terra natal, e a tentativa de re-criar melhores condições de vida, ainda que a opção seja emigrar. Chegaram ao Brasil num momento privilegiado no qual as bases do Estado Nacional brasileiro, firmadas desde o período Imperial já estavam alicerçadas, privilegiado pelas possibilidades recorrentes da implantação da república no Brasil, e pelo crescimento das cidades, o que favorecia o comércio. Entretanto também era um período de definição do perfil populacional desejado pelo Estado brasileiro, no qual a nação brasileira através de decretos e leis estabelece critérios para a vinda de imigrantes para o país, baseado, sobretudo nas teorias raciais em voga no período. Mesmo estando fora do perfil desejado para os imigrantes, os sírio e libaneses conseguiram se instalar no país e obter o que sociologicamente se denomina mobilidade social.7 Oswaldo Truzzi fornece pistas, roteiros, elementos para a observação e levantamento das trajetórias sociais e econômicas dos imigrantes Sírios e Libaneses. Destaca alguns elementos a serem considerados: a) distribuição demográfica dos sírios e libaneses nas mais variadas regiões do território brasileiro, e também as suas características predominantemente urbanas. b) as relações de complementaridade entre tais imigrantes, que vai desde a acolhida favorável à facilitação de crédito e fornecimento de mercadorias para o trabalho enquanto mascates. c) ressalta o que chamou de “processo de realimentação”, que consistia em trazer para o Brasil amigos e parentes. Aponta ainda que deva ter sido esta 7 Existem modelos de sociedade cujo sistema de classe se baseia na hereditariedade. Estas são chamadas de sociedades de classe fechadas, havendo imobilidade social. Outras sociedades nas quais os critérios se baseiam na seleção e competição é denominada de sociedades de classe abertas, nas quais é possível a mobilidade social, que se revela como uma mudança do status do indivíduo e por vezes do grupo a qual pertence. Cf. KOENING, Samuel. Elementos de sociologia. 5 ed. Trad: Vera Borda. Rio de Janeiro: Zahar editores. 1976. p. 262. 17 prática um fator impulsionador da imigração de grande parcela de sírios e libaneses. Truzzi ainda ressalta as relações de complementaridade e ajuda. 8 Os que chegaram primeiro vinham como temporários, na intenção de ganhar dinheiro e retornar à sua terra natal. Entretanto, o que se observou nessas experiências migratórias foi a adoção do trabalho de mascate, e depois a fixação no comércio. A instalação dos primeiros imigrantes atraiu membros das famílias e outras pessoas da mesma aldeia ou cidade. O que reforça a tese sobre as relações de complementaridade, exemplificada de maneira simples por Lourdes Kalix 9: “um olhava o outro”, que é uma expressão comum em Cuiabá, a qual remete ao sentido de cuidados com o outro. Uma atividade característica entre os imigrantes em Cuiabá, como entre os sírios e libaneses que se dirigiram aos estados do Norte do Brasil, foi a de mascates fluviais. Estes mascates viajavam pelos rios, em barcos pequenos ou grandes, vendendo suas mercadorias a comunidades ribeirinhas, favorecendo a comunicação dessas comunidades com as cidades. [...] Os sírios e libaneses colaboraram no processo de ocupação do território nacional e funcionavam como elementos dinamizadores dos mercados local e regional, integrando regiões até então isoladas do mercado consumidor. 10 Marco Aurélio Machado de Oliveira11 em sua tese de doutoramento informa que muitos dos sírios e libaneses que estavam em Corumbá, se dirigiram a outras cidades do sul do Mato Grosso no início do século XX. Entretanto, um dos apontados em suas pesquisas, Miguel Gattas Orro, após se casar com Sofia Scaff, se dirigiu a Cuiabá, mantendo os negócios familiares instalados em Corumbá, Cáceres e Cuiabá. A dispersão territorial dos sírios e libaneses pelo território matogrossense se torna visível no confronto dessas informações com os dados do censo de 1920, que apontava 91 imigrantes “turcos árabes” em Cuiabá, e 1232 no Estado 8 TRUZZI, Oswaldo M. Serra. A vinda de Libaneses e Sírios ao Brasil. In: Relações entre o Brasil e o Mundo Árabe: construção e perspectivas. – Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001. 9 FERRO, Lourdes Kalix. 71 anos, cuiabana, filha de pai e mãe libaneses, oriundos da cidade de Zahle no Líbano, chegaram a Cuiabá em 1912. 05/11/2006. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 10 NUNES, Heliane Prudente. A Imigração Árabe em Goiás. Goiânia: Editora UFG, 2000. p. 49. 11 OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de. O mais importante é a raça: sírios e libaneses na política em Campo Grande. São Paulo: FFLCH-USP. Tese de doutoramento, 2001. 18 de Mato Grosso. Lembrando que o território de Mato Grosso nesse período corresponde hoje aos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia. Para a feitura desse trabalho, foram realizadas consultas à bibliografia sobre a temática abordada, e outras obras que ajudaram a compor um referencial teórico e explicativo acerca do tema. Como fontes documentais, destaco os censos de 1890 e de 1920. A partir do cotejo das informações contidas nesses recenseamentos com os documentos da coletoria de Cuiabá, 1º e 2º distrito,12 foi possível realizar um quadro visível desses imigrantes na cidade, e suas práticas cotidianas. As quantificações das entradas de imigrantes no Brasil podem ser encontradas na revista de colonização e migração, editada entre os anos de 1939 e 1945. Nela estão presentes dados sobre a entrada e saída de imigrantes bem como as nacionalidades e religiões professadas. Entretanto, elas não apresentam detalhamentos sobre as migrações para os estados do Brasil. No tocante a Cuiabá e Mato Grosso, existem dados demográficos e quantitativos presentes em documentos da junta comercial, cartórios e documentos da Cúria diocesana microfilmados no Núcleo de Documentação e História Regional (NEDHIR). Além de dados demográficos, foram levantados no arquivo público de Mato Grosso e no site da Universidade de Chicago 13 os discursos dos presidentes da Província e do Estado, na tentativa de identificar as políticas governamentais no tocante à migração, colonização e população. A abordagem das famílias foi enriquecida com depoimentos da 2ª e 3ª gerações, possibilitando a recomposição de parte do processo imigratório. Entretanto, é necessária uma crítica interna apurada às entrevistas por se tratar de memórias familiares, apresentadas quase sempre de maneira romantizada. A maior parte das informações contidas nos depoimentos precisa ser decodificada, levandose em conta o tempo da memória, sua seletividade, e comparada com outras fontes para construção do trabalho. 12 O 1º distrito era composto pela Sé, que abrangia o centro da cidade e arredores. 2º distrito era comumente chamado de freguesia de São Gonçalo, e abrangia o bairro do Porto e arredores. 3º distrito era também chamado de “outro lado”, e corresponde hoje a Várzea Grande, cidade conurbada com Cuiabá. 13 http://www.crl.uchicago.edo/info/brazil 19 Nas análises dos documentos paroquiais e cartoriais, Marieta Moraes14 aponta dois caminhos: o primeiro direcionado para a quantificação do material levantado, podendo ser obtidos “índices de natalidade, mortalidade, idade média de casamento, número de filhos”. Outra abordagem possível é a que permite acompanhar as trajetórias pessoais e familiares “com vistas a obter informações que permitam a reconstrução das atividades econômicas, redes de relações sociais, estratégias matrimoniais, gerações, descendências e genealogias”.15 O cruzamento das fontes paroquiais e cartoriais com depoimentos de história oral possibilita recuperar as trajetórias de imigrantes e seus descendentes, detectando as ascensões e declínios econômicos. O trabalho de Knowlton 16 traz dados riquíssimos sobre os imigrantes sírios e libaneses, em São Paulo. O autor estudou a mobilidade social e espacial dos sírios e libaneses, examinando as características demográficas dos que vieram para o Brasil e para o estado de São Paulo. O estudo de Knowlton é um dos primeiros elaborados sobre essa temática. Posterior a Knowlton, Osvaldo Truzzi 17 realizou uma ampla pesquisa sobre o assunto, o que resultou em sua tese de doutorado. Na região Centro Oeste os trabalhos mais significativos são os realizados pela professora Heliane Prudente Nunes 18 de Goiás, que escreveu sobre a “Imigração Árabe” para aquele estado. Posterior ao trabalho de Nunes, o Professor e pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Marco Aurélio Machado de Oliveira 19 defendeu sua tese de doutorado analisando as trajetórias políticas dos sírios e libaneses em Campo grande. O mesmo continua, inquietantemente, pesquisando sobre a temática. No Estado de Mato Grosso, existe o trabalho de Marildes do Rego Ferreira, 20 que estudou a memória dos sírios e libaneses em Rondonópolis. Ainda há muito a fazer. 14 FERREIRA, Marieta de Moraes. Fontes Históricas para o Estudo da Imigração: "Perspectivas Teórico-Metodológicas”. GT. Migrações Internacionais. XXIV Encontro Anual da ANPOCS – 2000. 15 Ibidem, p. 03. 16 KNOWLTON, Clark S. Sírios e Libaneses. Mobilidade Social e Espacial. São Paulo: Anhembi, 1950. 17 TRUZZI, Oswaldo M. Serra. Patrícios, sírios e libaneses em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1995. 18 NUNES, Heliane Prudente. A imigração árabe em Goiás. Goiânia: Editora da UFG, 2000. 19 OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de. Op. Cit. 20 FERREIRA. Marildes do Rego. Memória da imigração de sírios e libaneses em Rondonópolis – MT. Cuiabá: UFMT. Dissertação de Mestrado. 2006 20 Tendo em vista a realização desse trabalho, defini como objetivo historicizar as trajetórias de sírios e libaneses até a cidade de Cuiabá e analisar as relações sociais praticadas nos espaços da cidade. Compreender as emergências que possibilitaram a emigração de suas respectivas nações, e sua posterior chegada ao Estado de Mato Grosso. Estudar as relações desses contingentes com os projetos governamentais definidos para o Brasil, traçando paralelos entre o que se discutia sobre imigrantes no país e no Estado de Mato Grosso. Estudar as estratégias de fixação desses contingentes populacionais na cidade de Cuiabá, suas interações com as práticas produtivas, e as relações sociais e espaciais produzidas, na fronteira cultural, compreendida enquanto muro que separa, mas também como ponte que une no encontro entre diferentes. Para a realização desses objetivos, essa dissertação foi dividida em 3 partes, apresentadas a seguir. No Capítulo I, abordo a problemática das imigrações sírias e libanesas no Século XIX e nas primeiras décadas do século XX. A tentativa é de estabelecer encontros narrativos entre as múltiplas emergências causadoras do processo migratório, utilizando os relatos de percurso (memória), pesquisa documental e bibliografia competente. Apresento o contexto vivido na Síria e no Líbano, pertencentes á época ao Império Turco Otomano, demonstrando as motivações para que ocorresse o processo emigratório. Os trabalhos escritos anteriormente sobre essa temática apresentam problemas de ordem econômica, religiosa e demográfica como causas da emigração. A análise de boa parte delas revela um enfoque marxista nas abordagens presentes nas narrativas. Atrevo-me a utilizar as noções de “poder”, delimitadas por Foucault. “Poder‟ este percebido nas relações sociais e na manutenção do “Status” familiar. Tal abordagem direciona para questões que vão além da “subsistência, demonstrando a existência de conceitos como “orgulho” familiar. Tenho a pretensão de utilizá-lo para explicar as micro-relações existentes entre as famílias das aldeias da Síria e do Líbano. Tento apresentar o “jogo de espelhos”21 que estas famílias travavam entre si como uma das motivadoras da emigração. 21 O que defino como “jogo de espelhos” é a necessidade de tentar parecer estar melhor do que realmente está, se mostrando ao outro numa teatralização da realidade, enaltecendo tão somente o 21 Além de representar uma fuga das dificuldades de caráter estrutural, a emigração passou a representar para as famílias da Síria e do Líbano, uma forma de manter seu prestígio, seu poder e sua honra, financiados pelos lucros advindos do exterior. As famílias foram sendo cada vez mais compelidas a enviar um ou mais de seus membros á America, se desejassem manter sua posição de destaque em suas aldeias ou cidades. 22 As definições de categorias são fundamentais neste trabalho. Para tanto utilizo as definições de migrante, nômade e sedentário discutidos por Deleuze e Guattari em Mil Platôs. O meu objeto, firma sua particularidade sobre o que ele não é. O migrante não é o nômade. Este último vive desterritorializado, percorrendo um espaço liso aquém do controle direto do estado. Migrante é um ser social, que recebe influência direta de todo o aparato governamental, constituindo um espaço estriado. Outro fator que caracteriza o migrante é o constante deslocamento, e a dimensão do “retorno”, como o discutido por Sayad.23 Por fim, apresento os dados demográficos das imigrações para o Brasil, dando ênfase à migração árabe. No Capítulo segundo procuro fazer uma discussão sobre o Brasil, analisando o contexto sócio econômico e as políticas públicas direcionadas à imigração, colonização e regulamentação das relações de trabalho. Durante a pesquisa pude constatar uma grande discussão, no fim do século XIX e primeira metade do XX, sobre assimilação, eugenia, mestiçagem, caldeamento de raças, ganhando mais força no período do governo provisório de Vargas, e durante o Estado Novo. Embora a periodização do Estado Novo não seja parte fundamental deste trabalho, considerei importante sua menção em se tratando do período no qual se instalam cotas para imigração, e as teorias raciais ganham força de políticas de governo com a criação do Conselho Nacional de que há de bom nas famílias. Orgulho pelo status que a família tinha, e vergonha em assumir perante a comunidade que a situação não estava tão boa assim. Essa relação é bem definida no depoimento de Ivens Cuiabano Scaff, quando afirma que lá, “não trabalhavam de vergonha de desempenhar qualquer função, já aqui faziam qualquer trabalho”. 22 NUNES, Heliane Prudente . Op. Cit. p. 36. 23 Cf. SAYAD, Abdelmalek. O retorno: Elemento Constitutivo da Condição do Imigrante. In: Travessia Revista do Migrante. São Paulo: número especial; janeiro. 2000. 22 Imigração. Utilizo para tanto, bibliografia específica e documentos como as leis aprovadas no Brasil para regulamentar a imigração. A teoria sobre governamentalidade elaborada por Foucault norteia a escrita no tocante ao estudo de populações. Foucault revela que na estruturação de um modelo de estado nacional a partir do século XVII, as preocupações com a soberania, cuja arte de governar, a manutenção e defesa do território, declina para outro modelo no qual a população, e suas problemáticas emergem como base de políticas estatais. Retrata o amadurecimento das táticas, técnicas e artes novas na maneira de governar. A população aparece, portanto, mais como fim e instrumento do governo que como força do soberano; a população aparece como sujeito de necessidades, de aspirações, mas também como objeto nas mãos do governo; como consciente, frente ao governo, daquilo que ela quer e inconsciente em relação aquilo que se quer que ela faça.24 Os projetos de imigração fazem parte de ações governamentais durante o Império e a República. Acrescentam-se ainda discussões sobre etnicidade. Segundo Lesser, a junção entre etnicidade e economia na formação das identidades brasileiras enfatiza o jogo de poder existente nas negociações destas identidades. Procura explicar o “como” foi possível a imigrantes não europeus definirem seus lugares dentro da identidade brasileira. 25 No tocante aos sírios e libaneses, é salutar observar que não se enquadravam no perfil do branco idealizado, nem tampouco podiam ser considerados amarelos ou negros. Lesser destaca ainda, o exotismo atribuído a esses contingentes por meio das pretensas elites brasileiras, e aponta algumas razões para a incorporação desse contingente na sociedade brasileira. Na segunda parte do Capítulo 2, apresento dados sobre os discursos dos presidentes de província e de estado a respeito da imigração, colonização e 24 FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2004. p. 289. Cf. LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. Trad. Patrícia de Queiroz Carvalho Zimbres. São Paulo, editora UNESP, 2001. p. 31 25 23 população. Procuro demonstrar, a partir dos discursos governamentais, qual era a imagem que se fazia sobre a população do Mato Grosso, e qual a relação existente entre a imigração e os discursos sobre progresso e povoamento da região. No capítulo terceiro estão presentes dados demográficos a respeito da população do Estado de Mato Grosso, de Cuiabá, a inserção dos imigrantes em meio ao quadro populacional da cidade. Destaco a importância da navegação fluvial pela Bacia Platina para o desenvolvimento sócio econômico do estado, e como caminho utilizado pelos imigrantes para chegar até Cuiabá. Através da articulação dos procedimentos de micro-história em consonância com os estudos de memória, levanto informações sobre imigração e as relações sociais vivenciadas em Cuiabá em seus múltiplos cenários representados pelas espacializações presentes na cidade. Para tanto, fontes privilegiadas são os dados contidos nos documentos da Coletoria de Cuiabá, de onde foram extraídas informações sobre os empreendimentos, profissões e localização desses imigrantes na cidade, demonstrando as espacializações realizadas pelos sírios e libaneses em Cuiabá, sobretudo as suas práticas cotidianas. As concepções de Michel de Certeau com relação a espaço, lugar e percursos apontam um direcionamento para a realização da narrativa. Michel de Certeau estabelece distinções entre os conceitos de lugar e espaço. Para este autor, lugar é: A ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. Aí se acha portanto excluída a possibilidades, para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a lei do “próprio”: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar “próprio” e distinto que define. Um lugar é, portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade. 26 Já espaço, em seu entender é condicionado pelo movimento realizado pelos sujeitos. Ele é produzido nas relações sociais. O espaço é o lugar 26 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Trad. Epraim Ferreira Alves. Petrópolis RJ, Vozes, 1994. p. 201 24 trabalhado, vivenciado, intercruzado, onde sonhos e desejos se manifestam, onde a existência se efetua. “Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e levam a funcionar em unidade polivalente proximidades contratuais”. de programas conflituais ou de 27 É nessa concepção que se apóia a narrativa sobre espacializações. Trata-se de uma busca por demonstrar a presença de sírios e libaneses, praticando um “lugar” e o transformando em espaço. Os estudos sobre a relação História e Memória servem para embasar, tanto a utilização de técnicas como a História Oral, quanto a análise documental escrita. Objetivando dar inteligibilidade as considerações sobre as relações de complementaridade e realimentação do processo migratório, bem como as sociabilidades alcançadas pelos sírios e libaneses em Cuiabá. Em síntese, dentro da urbanidade da cidade de Cuiabá, destaca-se a presença de imigrantes e analisam-se as relações sociais mantidas entre sírios, libaneses e a população local. Procura-se identificar também a existência ou não de territórios culturais sírios e libaneses em meio à cidade de Cuiabá. 27 Ibidem, p. 202 25 CAPÍTULO I - CENÁRIOS DESCOBERTOS Cantos Dos Emigrantes28 Com seus pássaros Ou a lembrança dos seus pássaros Com seus filhos Ou a lembrança dos seus filhos Com seu povo Ou a lembrança de seu povo Todos emigram De uma pátria a outra do templo De uma praia a outra do atlântico De uma serra a outra das cordilheiras Todos emigram Para o corpo de Berenice Ou o coração Wall Street Para o último tempo Ou a primeira dose de tóxico Para dentro de si Ou para todos Para dentro de si Ou para todos Pra sempre todos emigram 28 MELO, Alberto De Cunha: Cordel Do Fogo Encantado – Álbum Transfiguração, 2006 26 Tensão e sonho na pátria mãe. Olá, como vai? Eu vou indo e você, tudo bem? Tudo bem eu vou indo correndo pegar meu lugar no futuro, e você? Tudo bem, eu vou indo em busca de um sono tranqüilo, quem sabe... Quanto tempo... Pois é... Quanto tempo...29 Contar uma história é deveras prazeroso. Quando nos lançamos à construção de uma narrativa, várias e necessárias são as incursões às temporalidades diversas; passado e presente se misturam na tentativa de vislumbrar processos, aos quais as vidas das pessoas foram submetidas. Nessa epígrafe o poeta apresenta um encontro possível em seus percursos. Um encontro casual, que pode ser revelado na narrativa como cruzamento de intenções, aspirações. São, grosso modo, pessoas apresentando seus sonhos, suas buscas. “Pegar meu lugar no futuro” sugere incentivo a ações que propiciem um encontro no tempo projetado entre o sonho-desejo e sua realização. Ainda que pareça etéreo por não apresentar a que futuro se dirige, é de fato revelador na medida em que coloca os sonhos e a disposição por alcançá-los em primeiro plano. Mesmo não sendo contemporânea das pessoas que estudo, essa letra de música faz parte de todo um arsenal simbólico e cognitivo do qual me nutro para inspirar a narrativa sobre escolhas, trajetórias, ações de pessoas em seu tempo. Penso que esse encontro narrado na poesia de Paulinho da Viola, aplicado neste trabalho, pode suscitar a imaginação de muitos prováveis encontros entre amigos, familiares e desconhecidos. Imaginando os encontros e desencontros nos portos do Líbano, Turquia e Egito, entre tantos outros lugares. Portos são espaços de “encontros e despedidas” como já aludiu Milton Nascimento em sua letra ao falar das estações de trem de Minas Gerais. Encontros reveladores de sonhos, intenções desejos que coloquem a vida em movimento com promessas de futuro melhor. Encontro entre os que seguem juntos, os sonhos de “fazer a América, ou fazer-se na 29 VIOLA, Paulinho da. Sinal Fechado. In: Letras Brasileiras. Oswaldo Montenegro. 2000. 27 América”; entre os que vão e os que ficam com gosto de saudade e esperança, e tantos outros cenários possíveis. Se analisarmos com o olhar de Touraine, “o migrante é um ser de esperança, cheio de utopias as quais deseja concretizar. O migrante torna real um sonho”.30 Esse encontro na poesia de Paulinho da Viola ganha concretudes importantes. Os migrantes são seres sociais, que se dispuseram, ou foram dispostos por condições externas a se desterritorializar em busca de outros portos onde possam ancorar e realizar o que desejam. Um exemplo dessa busca foi a trajetória de Moysés Nadaf que nasceu na cidade de Seydanay na Síria, até então uma província do Império Turco Otomano, que vinha sofrendo conseqüências da 1ª guerra mundial. Emigrou de seu país em 1916, em busca de trabalho e enriquecimento rápido. Em seu trajeto, aportou na cidade de Buenos Aires, Argentina, onde residiu por 11 meses.31 A sua vinda para Cuiabá está enraizada na memória familiar como uma grande aventura em busca de riquezas, atraído pelas notícias de que Mato Grosso era uma terra riquíssima e em sua capital Cuiabá encontrava-se ouro nas ruas. Segundo Jamil Nadaf, sobrinho de Moysés, a intenção do tio era ficar pouco tempo. “Meu tio era moço, veio para trabalhar, tava com vontade de voltar em dois anos, ficar bem de situação e voltar”,32 no entanto, como em muitos outros casos, o sonho de “fazer a América”, e retornar à terra natal foi frustrado inicialmente pela própria realidade encontrada em chão mato-grossense. Apresentados como “aventura”, os percursos vividos por Moysés Nadaf e descritos por Jamil, apresentam alguns sentidos não ditos, sobretudo se observarmos sob o ângulo das reflexões sobre a situação social e econômica estabelecidas na Grande Síria, geradoras da necessidade de emigrar. A necessidade força a emigração, como uma resposta a situação que se está vivenciando, e leva a busca de melhores condições de sobrevivência e realização de sonhos pessoais. Sonho é algo que se cultiva no mais íntimo do ser juntamente com o desejo. Ambos são alimentados pela necessidade. O migrante quando se desloca, 30 TOURAINE, Alan. A Crítica da Modernidade. apud ZART, Laudemir L. Desencanto na Nova Terra: Assentamento no Município de Lucas do Rio Verde MT na Década de 1980. 1998. Florianópolis: UFSC, Dissertação de Mestrado. p. 39. 31 Cf. NADAF, Jamil Boutros. 16/12/2002. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 32 Ibidem. 28 o faz em busca de algo que está faltando. Essa busca pode ser forçada pelo tédio cotidiano que o arremessa a novas aventuras, e também pelo desejo de realizar sonhos, melhorar de vida, vontades estas que podem ser partilhadas por familiares, clãs e outros agrupamentos. Estudando o comportamento de migrações internas no Brasil, em específico de colonos da região sul, a antropóloga Wortman, conclui que a migração de grandes contingentes populacionais é sobremaneira, uma forma de reprodução da pequena propriedade, uma possibilidade de manutenção do homem na terra. Dessa forma, a migração é a solução mais coerente com o que se poderia chamar uma identidade camponesa: ela permite a reprodução enquanto camponeses, não só daqueles que migram, mas igualmente daqueles que ficam, ela significa a busca de novas terras em outro lugar, e a preservação da terra no lugar de origem.33 No entender da antropóloga migrar é antes de tudo um problema social, uma questão de utopia, e aqueles que migram o fazem para “melhorar de vida”, para construir um futuro. Esse deslocamento se faz necessário pela dificuldade enfrentada em manter as condições mínimas de sobrevivência no lugar de emigração. A busca dos migrantes por melhores condições de vida está relacionada às influencias políticas e econômicas. A Síria e o Líbano eram em fins do século XIX territórios eminentemente agrícolas, e a maior parte da população de tradição camponesa. Portanto, se a emigração de um grande número de pessoas contribuiu para a manutenção do sistema social familiar do lugar, o mesmo não se deu com as práticas realizadas por esses imigrantes na terra que os acolheu. Nas experiências americanas observa-se uma maioria de sírios e libaneses envolvidos em práticas comerciais, inicialmente como mascates, e posteriormente como comerciantes radicados em centros urbanos nos mais variados lugares dos estados nacionais americanos, seja Brasil, Estados Unidos, Argentina dentre outros. 33 WOORTMANN, Ellen F. Colonos do Sul e sitiantes do nordeste. apud ZART.Laudemir L. Op. Cit. p. 91. 29 O ato de migrar possui motivações que se relacionam tanto com a realidade vivenciada por esse grupo social em sua terra natal, quanto com a imagem oferecida pela terra que o acolherá. Nesse sentido é salutar lembrar o pensamento de Foucault34 sobre “emergências” que, para o filósofo, vão além do conceito de “evidência”, pois são frutos das relações sociais vivenciadas num tempo histórico. Importante é salientar como emergem as idéias motivadoras dos deslocamentos, e quando elas ganham visibilidade e importância a ponto de serem assumidas inclusive como projeto familiar. Os autores consultados35 apontam em seus escritos sobre condições de vida dos migrantes em sua terra natal, problemas como crises religiosas, condições políticas conflitantes e opressoras, aliadas a uma realidade econômica baseada em culturas agrícolas, cuja produtividade era incapaz de garantir a subsistência de toda a população. São essas as principais questões apontadas por esses autores para as tensões existentes no império Otomano. A essas tensões geradoras de necessidades é que pode ser creditado o impulso de migrar em busca de novas terras. Nas palavras de Toufic Doun [...] o bem que os libaneses possam ter feito aos países que procuraram deu-se a custo do mal que sofreram em sua própria pátria. Naturalmente a necessidade „mãe da invenção‟ foi o fator principal da conquista [...]. 36 Império Turco Otomano - Síria e Líbano O Estado Otomano originou-se de principados criados pelos avanços dos turcos para a porção oeste da Anatólia, estabelecendo contatos e proximidades com os Bizantinos. Todos os principados estavam sob controle dos Seljúcidas, dinastia dominante, entretanto, cada principado mantinha certa autonomia. O principal principado foi o fundado por Osman no século XIV (do nome Osman se originou a 34 FOUCAULT, Michel. A poeira e a nuvem. In: Estratégia, poder-saber. (Org) Manoel Barros da Motta. Trad.Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. 35 Cf. HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia de bolso, 2006. NUNES, Heliane Prudente. A Imigração Árabe em Goiás. Goiânia, Editora UFG, 2000. TRUZZI, Osvaldo Mario Serra. Patrícios, Sírios e Libaneses em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1995. 36 DOUN, Toufic. A imigração Síria-libanesa ás terras da promissão. São Paulo: Tipografia editora árabe, 1944. p 86. 30 expressão “Otomana”), na porção noroeste da Anatólia, em contato próximo com o Império bizantino. Inicialmente através de acordos diplomáticos, sobretudo nos estados balcânicos, os otomanos se fortaleceram, possibilitando ampliar suas fronteiras anexando terras a oeste do Mar Negro e os Bálcãs. Em 1453 avançou para a tomada de Constantinopla, incorporando o que havia restado do Antigo império bizantino no ano de 1455. Fortalecido pelas conquistas européias, o novo Império avançou para a porção oriental da Anatólia, e para as terras do Império Mameluco em 1517, que compreendia as terras do Egito e Síria.37 O Império Otomano era uma das maiores estruturas políticas que a parte ocidental do mundo conhecera desde a desintegração do Império Romano: dominou a Europa Oriental, a Ásia Ocidental, e a maior parte do Magreb, e manteve juntas, terras de tradições políticas muito diferentes, muitos grupos étnicos – gregos, sérvios, búlgaros, romenos armênios, turcos e árabes – e várias comunidades religiosas – muçulmanos sunitas e xiitas, cristãos de todas as Igrejas históricas, e judeus. Manteve seu domínio sobre a maioria deles por mais ou menos quatrocentos anos, e sobre alguns deles por até seiscentos anos.38 Uma das principais estratégias adotadas pelos otomanos, para garantir o controle sobre o Oriente Médio, foi a integração total entre Estado e instituição religiosa islâmica de motivações sunitas39. Implantaram as leis sagradas do Islã como lei principal sobre a terra. Fortaleceu-se como um defensor das tradições sunitas contra a ameaça constante dos xiitas, grupo majoritário na Pérsia, estado que freqüentemente ameaçava as fronteiras dos Estados Sunitas.40 O Império Otomano formou-se com anexações internas dentro da Anatólia, e externas, como o Leste europeu, e estados do Oriente Médio. Cristãos romanos e ortodoxos, muçulmanos sunitas e xiitas e algumas minorias compunham o mosaico 37 CF HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia de bolso, 2006. pp 285-6 38 Ibidem, p. 287. 39 Sunismo é um modo de pensamento baseado na importância do Corão e da prática (suna) do Profeta. São também conhecidos como ortodoxos. Xiitas é um grupo formado por ocasião da morte de Maomé, por parentes e pessoas ligados a família do mesmo. O grupo se formou por um cisma político, essas pessoas apoiavam a subida ao trono de Ali, marido de Fátima filha de Maomé. Cf. HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia de bolso, 2006. p. 63-4. 40 Cf. LEWIS, Bernard. O Oriente Médio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. p.108 31 religioso. O Império Turco Otomano estava estabelecido com características multiétnicas e multiculturais. O império otomano se organizava por meio de governos provinciais submetidos ao Sultanato central. Dentro da organização burocrática do estado, o posto mais alto cabia ao grão vizir, uma espécie de ministro de estado que presidia as reuniões do conselho de governadores e funcionários de alto escalão. Os governos provinciais tinham como principais funções garantir a segurança e o controle da população, bem como cobrar impostos. As taxações de impostos eram feitas sobre a produção do campo, das atividades produtivas desenvolvidas nas cidades, e um terceiro, os impostos pessoais, pagos por cristãos e judeus. Dono de um corpo burocrático poderoso, a sociedade otomana se dividia basicamente em dois pólos: os dominantes (aska) e súditos (reaya).41 O primeiro era composto pelos governos, exército e uma aristocracia feudal ligada ao Sultão, cuja principal função era manter as terras produzindo, e garantir o bem estar no campo. Embora estivessem acima das outras categorias de organização social na hierarquia, eram considerados como escravos pessoais do Sultão, uma vez que todos os seus privilégios e posses podiam ser revogados. O segundo grupo, mais numeroso, era formado pelas massas populares do campo e da cidade. Vale destacar que cristãos e judeus faziam parte do segundo grupo, não possuindo direito de ocupar cargos públicos.42 Durante séculos, a superioridade otomana sobre a Europa foi bastante visível. Os islâmicos detinham grande extensão de terras, e controle sobre pontos estratégicos de comercialização, navegação e dos caminhos de comercialização com as Índias. A respeito disso, Bernard Lewis escreve: Especiarias eram cultivadas em muitas partes do Oriente Médio e também importadas em grande volume do sul e sudeste da Ásia. Figuraram também com destaque as exportações para o mundo ocidental, até que as potências marítimas européias abriram, e em seguida dominaram, uma rota direta para a Ásia.43 41 Cf. HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia de bolso, 2006. p. 291 42 Cf. LEWIS, Bernard. Op. Cit. p 118. 43 Ibidem, p. 148 32 O equilibro do poder começou a mudar com as grandes descobertas marítimas para a América e com a nova rota para as Índias, contornando a África. Com esses fatores, as antigas rotas comerciais das especiarias foram perdendo força, e concomitantemente o império também, ficando cada vez mais endividado externamente. Nesse ínterim, os gastos com guerras, sobretudo contra a Rússia nos séculos XVII ao XIX, debilitaram ainda mais a economia otomana. “Exércitos otomanos dominavam a terra e suas frotas, durante algum tempo os mares. Os comerciantes europeus, porém, discreta e pacificamente capturaram os mercados”.44 As relações internacionais entre o Oriente Médio e a Europa estavam cada vez mais pendendo para os ocidentais. Os otomanos passaram a usar de diplomacia ao invés de beligerância contra a França e a Inglaterra, entretanto, esses acordos diplomáticos, contribuíram para um maior enfraquecimento da economia otomana, ocasionado pelo déficit da balança comercial com o Ocidente. Tal déficit encontrou razões fortes para seu desenvolvimento, sobretudo após a revolução industrial na Europa. Após a revolução, o Império Turco Otomano passou de grande exportador à consumidor de produtos industrializados da Europa, a se destacar: têxteis e armas. Tudo isso somado à maior riqueza da Europa em madeira, minerais, energia e transporte fluvial, contribuiu para debilitar o Oriente Médio em relação à Europa e para facilitar o estabelecimento e manutenção do domínio econômico europeu na área. O declínio dos otomanos, porém deveu-se não tanto a mudanças internas, mas à incapacidade deles de acompanhar o rápido avanço do Ocidente em ciência e tecnologia, nas artes da guerra e da paz, e no governo e comércio.45 Os países que hoje conhecemos como Líbano e Síria pertenciam, em fins do século XIX ao Império Turco Otomano, e estavam sujeitos às leis impostas pelo conquistador. O território compreendido pela Síria e Vale do Bekaa no sul do Líbano era conhecido como “A Grande Síria”. A região noroeste do Líbano, chamada de Monte Líbano, passou em 1864 a ser autônomo em relação ao governo turco. Após 44 45 LEWIS, Bernard. Op. Cit. p. 164 Ibidem. p. 259 33 a derrota turca na 1ª guerra mundial, o Monte Líbano foi anexado ao vale do Bekaa, formando o grande Líbano (1920), ficando sob o protetorado da França, como a Síria. Nessa região sob o domínio do império turco otomano até a 1ª guerra mundial, a estrutura da sociedade era bastante desigual, conforme o texto de Prudente, A estrutura social na grande Síria era formada no século XIX, por duas grandes classes sociais antagônicas, os senhores e os camponeses. As duas classes estavam em constantes conflitos, uma marcada pela opulência e a outra pela miséria, de forma que o abismo social que os separava era muito profundo.46 Mudanças na estrutura fundiária do Império contribuíram para o acirramento das desigualdades. As quais, segundo Hourani, são efeitos da expansão das economias dos países europeus sobre o Oriente Médio e o Magreb. 47 Tal influência se dava por meio da intervenção política, controle das economias através do comércio de exportação e venda de bens industrializados da Europa, principalmente França, Inglaterra e Alemanha. Outra forma de intervenção apontada pelo autor era o constante endividamento por parte do governo turco perante os países europeus, através de empréstimos a juros altos, a fim de custear gastos com o exército e a administração pública48. Em 1881 criou-se uma administração da dívida pública, representando os credores estrangeiros, os quais tinham controle sobre parte das receitas do Estado Otomano, dominando os atos do governo na área financeira. Os países europeus influenciavam econômica e politicamente o Império Turco Otomano, forçando-o a fazer reformas, como a lei de Terras de 185849 que definia as várias categorias de terra: 46 NUNES, Heliane Prudente. A Imigração Árabe em Goiás. Goiânia, Editora UFG, 2000. p 32. Região norte da África, que abrange o atual Marrocos, Saara Ocidental, Tunísia e Argélia, na orla mediterrânea. 48 Cf. HOURANI, Albert H. Uma História dos Povos Árabe. trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Cia das Letras. p. 286 49 Algumas analogias são possíveis entre essa lei, e um problema que é análogo ao Brasil: a minifundização das propriedades familiares e a concentração de terras nas mãos de latifundiários. Na França, a aplicação do Código Napoleônico instituiu a lei de herança, obrigando os antigos „patriarcas‟, a dividir as terras entre todos os filhos, e não mais deixá-la sob os cuidados do filho mais 47 34 A terra agrícola mais cultivada era encarada de acordo com a tradição de longa data, como pertencente ao Estado, mas os que a cultivavam, ou pretendiam fazê-lo podiam obter um título que lhes possibilitava desfrutar do uso pleno e inconteste dela, vendê-la ou transmiti-la a seus herdeiros.50 Para Hourani, à exceção do Líbano, onde as remessas feitas pelos emigrados às suas famílias propiciaram o trato das pequenas propriedades produtoras de seda, as terras próximas aos centros urbanos caíam nas mãos de famílias urbanas mais capitalizadas e com melhor acesso aos bancos para obter financiamento. Os camponeses que cultivavam eram trabalhadores sem terra ou meeiros, ficando com o suficiente da produção para sobreviver. O resultado direto da aplicação das leis foi a concentração de mais de 40% da terra cultivada nas mãos de grandes proprietários – mais de 50 feddans, o equivalente a 20 hectares nas medidas brasileiras - e cerca de 20% dividiam-se em propriedades de menos de cinco feddans (2 hectares). Caracterizando uma intensa minifundização no campo, dificultando para as futuras gerações o acesso a terra, O padrão no campo altera-se de pastores tribais organizados em clãs familiares para o grande proprietário que tinha suas terras cultivadas por camponeses, que entravam com a mão de obra e podiam alugar ou cultivar. Em outro lado estava um número cada vez maior de trabalhadores sem terra51. velho representando o fim do sistema de „patriarcado‟. Tais diretrizes legais forçaram a uma individualização da propriedade. No Império Turco Otomano, a Lei de Terras, concedeu valor de compra a uma terra outrora comunal, pertencente aos respectivos clãs. Conforme a obra de Hourani, o resultado direto foi a criação de uma força de trabalho, provocada pela expulsão do campo. Tais indagações foram suscitadas após prazerosa conversa com a Socióloga Sueli Castro pesquisadora do NERU que na sua tese de doutorado escreveu sobre as problemáticas das divisões de herança sobre comunidades tradicionais de organização patriarcal como eram as antigas sesmarias da baixada cuiabana. Cf. CASTRO, Sueli Pereira. A festa de Santo na Terra da Parentalha: Festeiros, Herdeiros, Parentes. Sesmaria na Baixada Cuiabana Mato-grossense. São Paulo: FFLCH /USP. Tese de Doutorado. 50 HOURANI, Albert H. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo, Cia das Letras. p. 291. 51 Ibidem, p. 293. 35 Segundo o autor, o governo aplicou as leis fundiárias obrigando os chefes tribais a registrar a terra em seu nome e, por conseguinte alterar a prática cotidiana de suas tribos da atividade pastoril para a agrícola, produzindo grãos e tâmaras no sul, voltados para a exportação. O autor traça ainda uma assertiva a respeito dos motivos do governo para que houvesse tal indução. Com os camponeses assentados em colônias agrícolas ficava mais fácil recrutá-los para o exército do que se fossem nômades, vivendo fora da comunidade política e podendo constituir um perigo para a ordem. Além do recrutamento, o assentamento favorecia também um melhor controle sobre a coleta de impostos, cada vez mais pesados à população. Às novas formas de apropriação da terra impostas pelo reordenamento político imposto pela Lei de Terras Turco Otomana de 1858, somam-se as questões econômicas e demográficas, que segundo Truzzi não diferem dos processos vividos pelos países europeus no mesmo período, gerados pela expansão mundial do capitalismo no século XIX. 52 Em função dos escassos meios de transporte e pouca comunicação entre si e com outros países, várias aldeias eram praticamente auto-suficientes. Os camponeses dessas regiões, a exemplo do europeu, produziam bens de consumo e instrumentos para sua subsistência. Tannou Afif, citado por Truzzi, traduz bem essa relação de trabalho. Num padrão em que o tear doméstico constituía um equipamento essencial à família, artesãos e agricultores também operavam quase que exclusivamente sobre a base territorial definida pela aldeia, em relações de caráter fortemente pessoais53. Hitti, citado por Truzzi, afirma que as atividades de agricultores e artesãos passavam a sofrer concorrência direta dos produtos fabricados nos grandes centros industriais da Europa. A concorrência dos produtos europeus foi possível pela abertura de estradas e melhorias na navegação marítima. Uma sociedade formada sob organizações tradicionais se via invadida por uma nova reordenação fundiária e mais próxima dos grandes centros produtores, desestabilizando o modus vivendi. Soma-se a esse fato o grande crescimento das cidades. “Beirute, por exemplo, que 52 Cf. TRUZZI, Osvaldo Mario Serra. Patrícios, Sírios e Libaneses em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1995. 53 Ibidem p 21. 36 havia iniciado o século 19 com menos de cinco mil habitantes chegaria ao seu final com mais de 120 mil”.54 O crescimento urbano gerou a demanda de uma grande produção agrícola, e sua comercialização, forçando as propriedades familiares a mudar o perfil de sua produção. Com todas essas mudanças impostas, a relação de subsistência entre a população e terra agricultável chegou a um limite, não sendo mais possível a reprodução do modo de vida tradicional, ligado a terra e a famílias numerosas. A manutenção do patriarcado tradicional no qual até três gerações de uma família conviviam sob o mesmo teto estava inviabilizado pela pouca oferta de terras, e baixa produtividade, ocasionada pelo uso de instrumentos rudimentares como a enxada, o arado e a pá entre outros.55 Nessa encruzilhada formada pelo aumento populacional, e a escassez de terras agricultáveis reside parte da tensão vivida pelos habitantes dessas regiões. As perseguições religiosas sofridas, pela minoria cristã, constituem outro fenômeno gerador de tensões. Mesmo partilhando das mesmas bases históricas e culturais, árabes cristãos e muçulmanos não constituem uma única identidade, havendo de ambos os lados posturas sectárias em relação ao outro. Em fins do século XIX as políticas de estado do império turco otomano, incentivaram discórdias entre cristãos e drusos no Líbano, e entre muçulmanos e cristãos na Síria. Heliane Prudente Nunes fez um levantamento sobre autores que escreveram sobre a problemática da religião nesses territórios, apurando na historiografia opiniões dissonante. “Alixa Naff sustenta a tese de que as perseguições religiosas ocorridas nos respectivos territórios não constituem causa que explique a emigração daqueles povos”.56 Nunes escreve que para Alixa Naff tal explicação foi propagada pelos cristãos maronitas, que desejavam o Líbano sob o protetorado francês novamente, entretanto, aponta para o fato da maioria dos emigrados professar a fé cristã, o que demonstra as perseguições religiosas com sendo uma das motivadoras dos deslocamentos. A respeito disso, Lourdes Kalix Ferro descreve: [...] papai era Miguel J Kalix, era Miguel porque era cristão. Então mamãe contava que lá no Líbano, que os cristãos, que os que 54 Ibidem. p. 22 Cf. NUNES, Heliane Prudente. Op. Cit. p. 23 56 Ibidem, p. 30 55 37 não eram cristãos, não gostavam dos cristãos, então se viam na calçada, descia da calçada para não passar junto. E aqui em Cuiabá ela ficou admirada, porque os que não são cristãos aqui também, e tem quem não é cristão, e que todos tinham amizade, aqui era diferente de lá, e ela achava muito bom que isso acontecia, porque lá era muito ruim isso [...]57 É preciso relembrar que a administração otomana incitava cristãos e muçulmanos ao conflito visando maior controle das regiões que compunham seu território. Ressaltam-se ainda as interferências européias nesse campo, incitando seitas religiosas, ansiando também por um maior controle sobre a região.58 Embora, a intolerância religiosa tenha sido uma das causas que motivou as grandes emigrações dos sírios e libaneses, os interesses políticos europeus no Oriente, em última análise, foram reconhecidamente fomentadores de discórdias. Truzzi apresenta outros fatores como competição e manutenção do status familiar. Apóia-se em Naff e nas suas considerações sobre as relações pessoais entre as famílias no tocante a troca de favores e presentes. A ênfase na manutenção da honra familiar denota o fenômeno da migração como um projeto muitas vezes gerado no meio da família. Em todas as aldeias havia famílias dominantes, tradicionais, que mantinham ao redor de si outras famílias coligadas em relações de reciprocidade. A preservação do status familiar foi parte das motivações para migrar, em busca de dinheiro para financiar plantios, resgatar terras e casas hipotecadas, comprar novas posses. Nesse sentido, os primeiros a migrar o faziam com a intenção de ganhar dinheiro e retornar à sua terra. Isso talvez explique a predominância de homens solteiros nesses contingentes de emigrantes.59 Levando em conta as questões familiares, e os relacionamentos mantidos com outras famílias das aldeias a que pertenciam, percebe-se as relações de poder existentes em cada aldeia. Práticas estas, presentes nas micro-relações, legitimadoras de ações cotidianas e culturais. Formando redes de relacionamentos, 57 FERRO, Lourdes Kalix. 71 anos, cuiabana, filha de pai e mãe libaneses, oriundos da cidade de Zahle no Líbano, chegaram a Cuiabá em 1912. 05/11/2006. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 58 Cf. NUNES, Heliane Prudente. Op. Cit. p. 31 59 Cf. TRUZZI, Osvaldo Mario Serra. Patrícios, Sírios e Libaneses em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1995. p. 27. 38 que influenciavam na vida dos grupos sociais. A respeito disso, as considerações de Roberto Machado sobre o conceito de poder defendido por Foucault é bastante significativo. Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele alijados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. E que funciona como uma maquinaria, como uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social.60 A manutenção da boa imagem familiar era uma questão de honra para esses povos. A grande preocupação com a castidade das mulheres é um traço comportamental e de princípio dessas sociedades, entendidas como questão de honra e prestígio. Da mesma forma a necessidade de ostentar financeiramente, demonstrar possuir riquezas era uma constante nessas relações. Nessa conjuntura, a necessidade de migrar baseou-se nas relações sociais existentes na grande Síria. As ações governamentais juntamente com as condições econômicas e demográficas desfavoráveis em relação direta com a reduzida área de terras agricultáveis incitaram de forma agressiva a essas famílias, o dever de encontrar soluções para sua crise e desprestígio local. O poder dos “dominantes” se apóia dessa forma sobre os “dominados”, e estes se apóiam onde esse “poder“ os afeta. Nesse sentido cultiva-se a necessidade de responder a esse quadro conjuntural, aliada ao sonho de trabalhar e ganhar dinheiro, como motivadores de buscas e realizações. Migrar é uma forma de resistência, mas também de legitimação das relações sociais existentes, uma vez que busca inclusive a manutenção dessas práticas. Quando se deslocou de Buenos Aires em direção a Cuiabá em 1917 Moysés Nadaf enviou à sua família em Seydanay na Síria a maior parte do dinheiro economizado em sua estada na Argentina. Seguiu a trilha do sonho rumo ao 60 MACHADO, Roberto. Por uma Genealogia do poder (introdução): IN FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2004. Página XIV. 39 desconhecido, porém sem descuidar de repassar aos familiares em sua terra natal parte de seus ganhos. Sua ação sugere se não um projeto coletivo formulado em família – não revelado no depoimento de Jamil Nadaf – uma intenção de garantir aos outros mais recursos, bem como provar ter sido bem sucedida sua aventura. Nagib Saadi saiu da cidade de Zahle, deixando sua mulher e filhos pequenos no Líbano no ano de 1909, viajou para França, para Nova Iorque nos Estados Unidos, finalmente chegou a Cuiabá, pelas embarcações que faziam a rota do Rio da Prata. Trabalhou como mascate, e mandava dinheiro para sua família semestralmente. Ficou em solo mato-grossense até meados de 1914, quando estourou a primeira guerra mundial, decidiu voltar para o Líbano, vindo a falecer de Febre Tifóide, com sua esposa grávida de oito meses do filho mais novo, Filipe Saadi. A experiência de Nagib foi repetida pelo filho mais velho César Nagib Saadi, que veio para Cuiabá em 1916, trabalhou como mascate até se estabelecer como comerciante na Rua 13 de junho centro de Cuiabá. Aidda Nagib Saadi narra que as remessas de dinheiro feitas por César garantiam a sobrevivência da família no Líbano, inspirando por sua vez a vinda para solo mato-grossense de Nicola Nagib Saadi, seu irmão, em 1925.61 A atitude de Moysés, Nagib e César, a exemplo de outras, feitas por outros migrantes, retro-alimenta em sua terra a ânsia por mudanças, e a esperança delas serem possíveis. Abdelmalek Sayad, ao realizar estudos sobre a emigração de argelinos em direção da França, aponta reflexões acerca das motivações da alimentação do processo migratório na Argélia. Nesse estudo, aparece o conceito paradoxal da "Elghorba”, definida a priori como “terra do exílio”, “escuridão”, “isolamento”, atribuída à terra estranha, fora de seu país, de sua terra natal. Entretanto, no operar da intenção de migrar, a terra estranha, é idealizada como “fonte de riqueza”, “felicidade”, “luz”, “alegria” e “segurança”. Em conseqüência, a terra natal ganha status de “Elghorba”. Sayad, a partir de suas entrevistas, identificou os mecanismos utilizados para realizar essa inversão, que era no caso dos imigrantes argelinos na França, o de mascarar a real situação em que se encontravam. 61 SAADI, Aidda Nagib. Libanesa da cidade de Zahle Líbano nascida em 1905, reside em Cuiabá MT. 30/08/2006. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 40 O desconhecimento coletivo da verdade objetiva da emigração que todo grupo se esforça por manter (os emigrantes que selecionam as informações que trazem quando passam algum tempo na terra; os antigos emigrantes que “encantam” as lembranças que guardavam da França; os candidatos à emigração que projetam sobre a França suas aspirações mais irrealistas) constitui a mediação necessária através da qual se pode exercer a necessidade econômica.62 Ivens Scaff informa que um dos motivos impulsionadores da saída dos membros de sua família de Zahle no Líbano ainda no século XIX foi a falta de trabalho, aliada à “vergonha” das pessoas em se dedicarem a qualquer trabalho em sua terra. Em seu entender, havia um consenso que membros de determinadas famílias não pudessem se dedicar a todos os serviços, como forma de manter o “status familiar”.63 A saída encontrada foi a busca por espaços onde pudessem desenvolver atividade de sobrevivência, sem expor a situação em que se encontravam, para isso, cruzaram o Atlântico em busca dessas realizações. Percebe-se a necessidade de demonstrar sucesso em suas incursões na nova terra, apresentando um tipo de realidade que nem sempre condizia com a situação vivenciada. Esse pode ter sido um dos fatores que contribuíram para a emigração. Farhat citado por Truzzi escreve a partir das cartas trocadas com sua mãe residente em uma aldeia no Líbano as quais retratam essas redes de re-alimentação de migrantes em busca de recursos. Nesse caso, a emigração de um membro da família motivou a emigração de outras, Patifes. Abusando da mãe sem importarem com minhas lágrimas, com meu sofrimento. Vou lá, apanho o que puder, e volto. Foi o que o Iskândar me falou. Disse que era fácil, contaram-lhe que o dinheiro estava na estrada, pra quem quisesse pegar, foi a conversa dele, do Iskândar. Eu ainda repeti umas cem vezes para ele que não era preciso muito. Sempre vivêramos com pouco. Que trouxesse só o que fosse possível. Sem demorar demais. 62 SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os Paradoxos da Alteridade. São Paulo: Edusp, 1998. p. 44. SCAFF, Ivens Cuiabano, médico, neto de libaneses, cujo pai nasceu em Corumbá em 1907. Residente em Cuiabá. 30/10/2006. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 63 41 Lembro-me muito bem do “volto podre de rico” do até então discreto Iskândar, o primeiro da fila, o puxador dos trânsfugas. Embora tudo tivesse ocorrido em anos diferentes, cada uma parecia ter passado ao outro o ensaio da astúcia ou empáfia na hora da despedida. Enquanto seu pai e eu fingíamos tranqüilidade no momento dos beijos e do “Allah mâak” (“Deus te abençoe”), cada aventureiro que foi soltou sua tirada de adeus. Ziad e In-Hula embarcaram juntos, talvez um para encorajar o outro. Mas antes de partir já roncavam como efêndis. Cada qual queria mais bolsos internos com forro de lona, nas calças, na frente e atrás e até embaixo das dobras, “para o massari (dinheiro), para muito massari” que haveriam de ganhar e trazer. Que dizer então da petulância desse sempre atrevido Muzáref? Depois dos abraços dentro de casa, saiu para a varanda e trovejou para o casario que se enfileirava rua abaixo: “Adeus, pobreza!” Felizmente eram cinco e meia da manhã. Caso contrário eu estaria até hoje ouvindo os ricochetes zombeteiros sobre as fortunas que meus filhos americanos amontoaram ou mandaram64. Está presente no texto, outra face da migração, representada por quem não viajou, ficando com suas saudades, temores, tristezas, esperanças e indignação. É possível também identificar a denúncia da pobreza dessa família, indignação diante da ausência prolongada dos emigrados e não remessa significativa de dinheiro por parte destes. Nesse texto identifica-se a maneira como essa sociedade representava a si mesma, e como a migração para a América apresentava uma saída em meio à crise econômica, demográfica e religiosa. Era um projeto de família, mas que ainda não havia obtido êxito. As histórias de sucesso dos expatriados representavam para os outros a possibilidade de vitória diante das dificuldades. As somas de dinheiro 64 FARHAT, Emil. Dinheiro na estrada: uma saga de imigrantes. apud TRUZZI, Oswaldo Mário Serra, Op. Cit. p. 33. 42 enviadas se avolumavam e eram maiores dos que as ganhos mensais dos que ficaram. Um analfabeto vai para a América e no curso de seis meses manda um cheque de 300 ou 400 dólares, mais do que o salário de um professor ou de um pastor em mais de dois anos. Durante os meses passados veio para Zahle da América uma média de 400 a 500 dólares diariamente. Quase tudo é usado para pagar velhas dívidas, hipotecas e para levar outros emigrantes além mar. Dos relatos dos emigrantes só se ouvem louvores irrestritos à América [...] A emigração, como um fermento possante, agita todas as aldeias e povoados de nosso campo. Todo mundo está em movimento e ninguém parece disposto a ficar, desde que possa, de um jeito ou de outro, arranjar dinheiro suficiente para pagar a viagem.65 O fenômeno migratório estava inserido num complexo jogo de relações de poder. Se as ações governamentais do império turco otomano, juntamente com a conjuntura econômica foram motivadoras dos sonhos de vida melhor, de outro lado tal busca aliviou as tensões existentes na terra de origem, diminuindo as pressões causadas pelo grande contingente populacional cuja sobrevivência estava ameaçada pela pouca oferta de terras. De outra forma os pioneiros na “aventura de migrar”, abriram caminhos para outros emigrantes, influenciados pelo exemplo de seus familiares e conterrâneos. O “sonho de fazer a América” estava incentivado pelas remessas de dinheiro e a imagem de “bem sucedidos,” mostrada pelos imigrados. 65 TRUZZI, Oswaldo Mário Serra. Op. Cit. p. 32. 43 Fazendo-se migrante A condição básica para a categoria migrante é o deslocar. Movimentos criam percursos e fundam novas significações na interação entre o lugar de partida, o caminho percorrido e do ponto de chegada. Nesse caminhar, ao já sabido na terra de origem somam-se experiências apreendidas no percurso realizado e na sociedade que o acolhe. Historicamente as sociedades primitivas ou primeiras, são classificadas como nômades, por serem errantes e não se fixar numa terra determinada. Costumeiramente se atribui a essa prática, a busca por melhores terras e condições de sobrevivência para um grupo de pessoas. Migrantes e nômades destoam dos sedentários, por serem os primeiros semelhantes no princípio de se deslocar. Entretanto, existem diferenças conceituais entre eles. “O nômade não é de modo algum o migrante, pois o migrante vai principalmente de um ponto a outro, ainda que este outro ponto seja incerto, imprevisto ou mal localizado”.66 Para Deleuze e Guatari embora o nômade siga caminhos costumeiros, este não realiza o caminho sedentário, que é o confinamento num espaço fechado, estriado, representado pelos territórios e estados. Nesse sentido, o nômade é um desterritorializado, porque não faz a reterritorialização posteriormente. A característica do nômade é ser desterritorializado na própria terra.67 Enquanto o migrante abandona um meio tornado amorfo ou ingrato, o nômade é aquele que não parte, não quer partir, que se agarra a esse espaço liso onde a floresta recua, onde a estepe ou o deserto cresce, e inventa o nomadismo como resposta a esse desafio68 O migrante apresenta características peculiares em comparação ao nômade. Quem migra o faz a partir de um espaço estriado, cercado e de ligação 66 DELEUZE,Gilles; GUATARI, Felix. Mil Platôs, Capitalismo e esquizofrenia. Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: ed. 34, 1997. Coleção Trans. p. 51 67 Cf. Ibidem. p. 53 68 Deleuze e Guatari fazem essa afirmação, concordando com Toynbee, “Eles se lançavam na estepe, não para atravessar seus limites, mas para ali fixar-se e ali sentir-se realmente em casa”. DELEUZE,Gilles; GUATARI, Felix. Op. Cit. p. 52. 44 sedentária. Movimenta-se quando este espaço se torna amorfo, incapaz de reproduzir seu modo de vida, e parte em busca de seus projetos. O migrante é aquele que vai de um ponto ao outro na definição de Deleuze. Entretanto, em situação análoga ao nômade, o trajeto é importante, uma vez que nele a migração soma consistência, com as múltiplas experiências acrescentadas ao vivido. Na vivência dessas experiências é que o migrante interage com o meio que o acolhe e produz novo significado. Nas relações sociais, torna visível em suas práticas o apreendido em seu ponto de saída e na trajetória desenvolvida. A materialização do vivido pelo migrante em seus percursos constitui parte das sínteses culturais que se formarão no encontro com o outro. No percurso sobre esse espaço estriado, controlado, já definido como territórios dos estados nacionais, o migrante constitui seus territórios. Para Rafestin69 “o espaço é anterior ao território, e este último somente se realiza a partir de uma ação programada de um sujeito que se apropria concreta e ou simbolicamente de um espaço”. Turra Neto acrescenta que a “apropriação de um determinado espaço constitui território a partir do momento em que o ator social o representa para si e para os outros” 70 . Os migrantes tentam de várias formas reproduzirem costumes, tradições, formas de vida, de trabalho, estabelecer relações econômicas e sociais análogas ao que viviam em seu lugar de origem. O migrante é alguém capaz de deixar o lócus estrutural onde se encontra, para ir à busca de um objetivo ou resolver uma necessidade, estruturando um novo lócus estrutural no ponto de chegada. Bourdieu define essa movimentação a partir de sistemas simbólicos, como arte, religião, língua, entre outros, que constituem estruturas simbólicas passíveis de análises71. Quando deixa sua terra, o migrante carrega consigo todo um arcabouço de experiências e estruturas simbólicas, que exercem poder sobre ele. Nesse sentido o poder simbólico dessas estruturas atua no modus operandi do imigrante, no contato com outras culturas. O migrante procura reconstruir no espaço de chegada muitas das relações sociais e espaciais que vivenciou no local de origem, e o instrumental precioso para a construção de tal território é a memória do vivido, quer seja individual ou coletiva. 69 RAFESTIN, Claude. Do Espaço ao Território IN: Por uma Geografia do Poder. trad. Maria Cecília França. p. 142. 70 TURRA NETO, Nécio. Do Território aos Territórios: Paisagem Território e Região – Em Busca da Identidade. Cascavel: EDUNIOESTE, 2000. p. 88. 71 Cf. BOURDIEU,Pierre. O poder simbólico. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 08-15. 45 Se na trajetória do migrante existe uma intersecção entre dois pontos, o de partida e o de chegada, o vetor da direção pode inverter-se e adquirir uma perspectiva de retorno. Para que haja imigrante é preciso que haja emigrante, um ser social cuja ausência é sentida em sua terra natal em função do seu deslocamento. O retorno é parte integrante de um processo imigratório, porém o desejo de fazê-lo, não o garante em si. Os primeiros imigrantes sírios e libaneses se aventuravam rumo à América com o intuito de ganhar dinheiro e retornar à sua terra e à sua família com os seus sonhos realizados. Nos depoimentos coletados por diversos autores, essa intenção da volta se faz presente de forma incisiva, como no texto de Farhat72 no qual sua mãe chama pelo retorno de seu filho “Tauil” que havia se deslocado para o Brasil em busca de seu irmão Iskândar. O trecho citado por Truzzi não apresenta afirmações sobre o retorno ou não desses imigrantes. A dor da ausência dos filhos, sentida pela mãe é que direciona a narrativa da carta. Em seu relato sobre a vinda de seu tio Moysés Nadaf aos 17 anos em 1917 para a cidade de Cuiabá, Jamil Nadaf assegura a intenção deste imigrante em trabalhar por dois anos na América e depois retornar para a Síria. O próprio Jamil saiu de seu país; a Síria, em 1948 com intuito de conhecer os parentes e depois retornar, entretanto, isso não ocorreu. Sayad afirma, em suas pesquisas, a dimensão do retorno como sendo uma condição específica do migrante. Fazer a América para sírios e libaneses era ganhar dinheiro e retornar para manter os planos familiares O retorno é naturalmente o desejo e o sonho de todos os imigrantes, é como recuperar a visão, a luz que falta ao cego, mas como cego, eles sabem que esta é uma operação impossível. Só lhes resta então, refugiarem-se numa intranqüila nostalgia ou saudade da terra73. 72 FARHAT,Emil. Dinheiro na estrada: uma saga de imigrantes apud, TRUZZI, Oswaldo Mário Serra Op.cit. p. 33. 73 SAYAD, Abdelmalek. O retorno: Elemento Constitutivo da Condição do Imigrante. In: Travessia Revista do Migrante. São Paulo: número especial; Janeiro. 2000. 46 A esses sentimentos constitutivos do imigrante, somam-se a manutenção dos laços de cooperação mantidos com a família. Rupin, citado por Truzzi afirma que entre um terço e metade dos emigrantes saídos voltaram para investir suas economias em terras e casas novas.74 A idéia de retorno, em alguns casos, faz então parte dos desejos de um grupo familiar, num projeto bem concebido e direcionado. A idéia de retorno apresenta limites, pois se pode sempre voltar ao ponto inicial, definindo outra trajetória, re-espacializar-se, reencontrar espaços. Porém não é possível retornar ao tempo da partida original. O tempo não se conforma às idas e vindas, permanecendo somente na memória. Com relação ao espaço, há mais flexibilidade. Este se adapta melhor ao ir e vir. Para Sayad, o espaço para onde se retorna é qualificado, repleto de nostalgias, carregado de afetividades. Se existe uma nostalgia agarrada ao espaço, e se este é no fundo de si mesmo um lugar de nostalgia, como se experimenta em todos os deslocamentos é porque se trata de um espaço vivo, concreto, qualitativo, emocional, e até mesmo apaixonadamente distinto.75 A terra natal ganha através da memória nostálgica, ares de sacralização. O espaço deixado é o da saudade, alimentado pela “nostalgia da memória”, e o retorno à terra natal é um reencontro consigo mesmo, retorno à origem, tornada sagrada pela nostalgia e pela afirmação de uma identidade de pertença a determinado espaço. Sayad usa como exemplo a história de Ulisses e sua trajetória em busca do lar que acredita ser seu. Poder-ia- falar de um lugar para onde retornar, vivido na memória e na saudade. Dentro dessa abordagem, entra o Estado nacional, e todos os seus tentáculos ideológicos e identitários. Não se retorna só à sua terra, mas à sua pátria, o lugar onde não se é diferente pela origem, onde há um maior pertencimento ao espaço, que é o nacional e a grupos que são grupos nacionais. Quando o migrante chega à terra de destino, ele é categorizado enquanto pertencente a este ou aquele 74 TRUZZI, Oswaldo M Serra. Op.cit. p. 30 SAYAD, Abdelmalek. O retorno: Elemento Constitutivo da Condição do Imigrante. In: Travessia Revista do Migrante. São Paulo: número especial; janeiro. 2000. p. 12. 75 47 país. A nação configura identidades. Os libaneses e os sírios eram cidadãos turcos, mas eles não se identificavam enquanto sendo. No Brasil eram classificados como turcos, mas não se reconheciam turcos. Para Sayad o imigrante só deixa de sê-lo quando não é mais nomeado enquanto tal, quando sua inserção na terra de destino faz com que ele não seja assim caracterizado e não se veja mais como imigrante. A extinção desta denominação apaga, a um só tempo, a questão do retorno inscrito na condição do imigrante. Na verdade não se trata, sob pretexto do retorno, da questão mais fundamental da legitimidade intrínseca da presença daquele que é visto e designado como um imigrante?76 O retorno é deslocamento, caracteriza o ser social como imigrante, o colocando na categoria de temporário em terra estranha. A sua permanência nesse espaço e suas novas territorializações frutos das relações sociais constituem novas sínteses culturais e étnicas. O produto dessas relações foi comumente chamado de assimilação77. Muito freqüente em documentações oficiais, o termo assimilação foi e ainda é utilizado “de forma simples”, para explicar as mudanças sociais e culturais que ocorrem da interação de minorias a uma determinada sociedade nacional. Quando as condições de sobrevivência na Grande Síria78 começaram a ficar difíceis pelas razões apontadas anteriormente, muitos dos habitantes dessa região se lançaram na aventura/projeto de migrar. A crise no campo contribuiu para o crescimento acelerado das cidades. O vai e vem constante dentro do território nacional configurou novo perfil de relacionamento produtivo com a terra. Esgotadas as tentativas na Grande Síria e no Monte Líbano a alternativa foi emigrar, ir de encontro ao diferente em vários aspectos, sobretudo culturais. Nova forma de se relacionar com o mundo conhecido, fazer-se migrante, descobrir o ainda não visto. Segundo Toufic Doun, no Oriente Médio, os libaneses foram os pioneiros a emigrar seguidos pelos sírios. Emigravam inicialmente para o Egito, e depois para 76 Ibidem. p 11 Ver conceitos sobre assimilação no capítulo 2. 78 Grande Síria era o nome dado a região compreendida pelos territórios da Síria e do vale do Bekaa. Este último corresponde ao leste e sul do atual Líbano. A região noroeste do Líbano era conhecida como Monte Líbano. 77 48 outros países. A vida de quem migra é feita de tentativas de onde resultam alguns ou muitos sucessos. De porto em porto, de ocupação em ocupação, os migrantes, sem perder a idéia de retorno vão constituindo suas trajetórias espaciais e sociais. As condições de permanência no Egito foram prejudicadas pela pressão inglesa, que ameaçava bombardear o porto de Alexandria e enviar soldados para intervir diretamente naquele país para acabar com a rebelião nacionalista do coronel Arabi. Encontravam-se naquela época de 1882 em Cairo, Alexandria e várias cidades agrícolas do Egito, muitos sírios e libaneses que para lá emigraram em busca de fortuna, eles foram surpreendidos por tal acontecimento que ameaçava tanto as propriedades como as vidas dos 88 estrangeiros sem exceção.79 Forçados a emigrar, os sírios e libaneses continuaram suas buscas aproveitando os navios oferecidos pelos ingleses para o transporte. Do Egito eles foram para países da América, Europa e para Austrália. Segundo Heliane Prudente Nunes, até 1890 o movimento emigratório limitou-se a princípio a algumas aldeias. A partir deste período, em meados do século XIX, a emigração se alastrou pela maioria das aldeias. Além das rotas que levavam ao Egito havia as que levavam às Américas e Oceania. Os cristãos eram a maioria nessas rotas ocidentais, partindo de Trípoli e de Beirute em péssimas condições de viagem.80 A esse respeito Doun é categórico ao denunciar as trapaças impostas por agentes que acompanhavam os migrantes desde suas aldeias. Na trajetória desses emigrantes, formou-se uma verdadeira indústria de migração, coordenada principalmente por sírios nos portos europeus. Os emigrantes viajavam em grupos da mesma aldeia ou em levas mistas, compostas de representantes de diversas regiões. A intenção de se fazer uma viagem direta ao destino era frustrada pelas articulações desses agentes “facilitadores” da emigração. Em ambos os casos os emigrantes hospedavam-se em albergues sujos e destituídos de toda a comodidade, a espera do 79 DOUN, Toufic. A imigração Síria-libanesa ás terras da promissão. São Paulo: Tipografia editora árabe, 1944. p. 89 80 NUNES, Heliane Prudente. Op.cit. p. 37 49 navio que os levasse, todos, porém eram explorados impiedosamente pelos intermediários que exerciam o tráfico de embarques clandestinos. Enganavam-nos, extorquindo, sob pretextos inúmeros, tudo o que podiam, ficando alguns com a impossibilidade de continuar a viagem por falta de recursos. Não era raro embarcarem alguns em navios que demandavam portos diferentes do combinado. A maioria dos navios era de pequena tonelagem de carga, fazendo escalas sem conta, e não obedecendo a itinerário nenhum, permanecendo em alguns portos dias a fio, para carregar ou descarregar81 Embarcando em portos do Levante, os emigrantes se dirigiam a portos europeus para depois se dirigirem ao seu destino. A falta de sincronia entre os navios dificultava a vida dos emigrantes, sendo estes, obrigados a ficar em hotéis próximos aos portos, onerando o custo da viagem. Alguns gastavam suas economias e eram obrigados a desistir da empreitada e retornar para casa. Alixa Naff citada por Prudente ilustra esse mercado que se formou nos portos em função do grande número de emigrados árabes. A indústria de emigração cresceu rapidamente e incluía desde transportes das vilas para os portos e hospedaria, para acomodar aqueles que tivessem de esperar por um barco, até serviços de guia, botes e remadores, que contrabandeavam emigrantes durante a noite, para os navios ancorados no mar, com o objetivo de evitar os fiscais do Serviço de Emigração. Agentes enganavam os oficiais turcos, e os guias conduziam os emigrantes a lugares escondidos, onde aguardavam os barcos que os levariam aos navios.82 Esses problemas com a imigração dificultavam o sonho de “fazer a América”, colocando em alguns o gosto amargo do retorno para suas aldeias com o desejo frustrado. Os que resistiam eram embarcados na segunda e terceira classe 81 82 DOUN, Toufic. Op.Cit. p. 90 NAFF, Alixa. Arabs in América: a historical overview. Apud NUNES, Heliane Prudente p. 39. 50 dos navios e ainda tinham que enfrentar, em muitos casos, os desvios de rota e eram aportados em outros países. Isso acontecia principalmente com os desejosos de aportar nos Estados Unidos, e que enganados, iam muitas vezes parar em portos do Brasil e Argentina.83 Quando chegavam ao país de destino permaneciam juntos, salvo nos casos de alguns terem de juntar-se a parentes ou amigos que os haviam precedido e que os esperavam em outras localidades. É por isso que se acham grupos radicados, naturais de uma aldeia ou cidade, em certa zona deste ou qualquer outro país de imigração.84 Os que não possuíam parentes, podiam ainda contar com o apoio das colônias radicadas em cidades portuárias, como o caso de Moysés Nadaf, que recebeu apoio da colônia de Seydanay em Buenos Aires. No Brasil é característica da imigração árabe a dispersão nos mais variados locais do território nacional, não se restringindo às regiões litorâneas, o que favoreceu a integração dos novos imigrantes nas cidades. Esses encontros com os “patrícios” amenizavam medos e traziam a possibilidade de permanência através das redes de cooperação. Encontrar pessoas conhecidas, ou que falem a mesma língua, pertençam ao mesmo país constitui uma tranqüilidade para o imigrante, que nos últimos meses haviam desenvolvido percursos por vezes intermináveis, expostos a toda sorte de acontecimentos como doenças, má alimentação e incertezas com o próprio destino. Ancorar no ponto de chegada os expõe a outra realidade, e o desejo da busca ter chegado ao seu final. Nos portos, locais de idas e vindas, as imagens mentais sugeridas e as experiências são muitas, ir e vir denota movimento, dinâmicas próprias. Pode significar buscas, gerar saudades, conotar ações externas à vontade de quem se movimenta. Nas estações e portos da vida, muitas são as paragens, variadas são as necessidades do movimento. Toda estação, deixa de ser lugar para se transformar em espaço, produtor de significado, repleto de múltiplas relações sociais conforme 83 84 Cf. DOUN, Toufic. Op. cit. p. 92. Ibidem, p. 92 51 os escritos de Michael de Certeau em Invenção do cotidiano. Em seu entender, espaço é o cruzamento de móveis, onde se cruzam percursos, temporalidades e múltiplas relações definidoras de espacializações.85 Seguindo o pensamento deste autor, os portos podem ser considerados como espaço das relações sociais entre inúmeros transeuntes que estão em busca de seus sonhos, realização de seus desejos. Mas também é espaço de recepção, triagem de pessoas, definidor de destinos. É a porta de entrada, mas também de dispersão e de exclusão. Muitos dos que chegavam eram albergados até conseguir uma ocupação, ou mesmo após a triagem partiam em busca de suas próprias oportunidades. Havia ainda os que ficavam de quarentena á espera de permissão para entrar. Doentes, velhos sem família eram descartados, sendo geralmente impedidos de realizar o sonho que os levaram a viajar meses em busca do sonho da “América”. Minha avó ficou retida na ilha das Flores pois estava com tracoma. Meu pai, minha mãe e meus tios imploravam às autoridades que a liberassem, mas não conseguiram. O governo de Washington Luís pagou sua passagem de volta ao Líbano aonde veio a falecer.86 A hospedaria da Ilha das Flores foi fundada em janeiro de 1877 em Niterói, pertencente ao governo da União. Nela eram albergados e registrados os estrangeiros. Essa hospedaria era o maior centro de convergência de imigrantes para o Brasil. Ela funcionava como lugar de referência para os imigrantes que não se adaptavam aos locais para onde eram enviados, sobretudo fazendas de café, e retornavam para serem redistribuídos.87 85 CERTEAU, Michel de Certeau. A invenção do cotidiano: Artes de Fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 202 86 Entrevista concedida por uma imigrante libanesa de Goiânia apud NUNES, Heliane Prudente. Op.cit. p. 41 87 Cf. ARAUJO, Maurício Thomaz de. Migrações na Baixada. http://www.ipahb.com.br/genera_migra.php, 31/08/2006. 14h10min horas 52 Imigração para o Brasil O processo de imigração para o Brasil estava inserido dentro de um contexto internacional bastante agressivo com as transformações trazidas pela 2ª revolução Industrial, também chamada de revolução tecnológica. Soma-se a isso o capital monopolista internacional, que fortaleceu o capital financeiro em detrimento de outras formas de produção como a agricultura e as indústrias antigas. A crise do campo na Europa deveu-se à revolução industrial e à expansão do capitalismo industrial e financeiro provocando a dissolução, falência das indústrias artesanais domésticas88. A expansão do capitalismo industrial e financeiro gerou grande riqueza para uma parcela da população, excluindo um número muito maior dos meios de produção, e mesmo de sobrevivência, como os artesãos e agricultores. Somam-se a estes fatos as grandes crises econômicas e as guerras pela formação dos estados nacionais europeus. No caso dos países árabes, a expansão do poder dos países europeus sobre o império Turco Otomano, a imposição de reformas governamentais e controle financeiro gerou uma crise social e econômica análoga á vivenciada pelos europeus. O contexto da época era de grande miséria no campo, o que gerou a emigração de um grande número de pessoas para as Américas. Estes imigrantes vinham atraídos por promessas de uma vida melhor, veiculadas através de propagandas do governo e companhias de imigração. A tabela abaixo aponta os números dessa imigração para o Brasil. 88 Cf. MARX, Karl, Cap. XXIV – A Assim Chamada Acumulação Primitiva; XXV – A Teoria Moderna da Colonização in: O Capital – Crítica da Economia Política. V. I: O Processo de Produção do Capital. Tomo 2 (capítulos XIII a XXV). São Paulo: Nova Cultural, 1985. HOBSBAWN, Eric J. A Era do Capital: 1848-1875: Trad. Luciano Costa Neto. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 3 ed. 1982. 53 Tabela 1- Imigração estrangeira (sic) no Brasil entre 1884 e 1943 Nacionalidade Número de Imigrantes Porcentagem do Total Turco – árabes 106.088 2,5% Italianos 1.412.880 33,7% Portugueses 1.224.274 29,2% Espanhóis 582.536 13,9% Japoneses 188.769 4,5% Alemães 172.347 4,1% Russos 108.168 2,6% Austríacos 85.834 2,1% Poloneses 48.609 1,1% Romenos 39.204 0,9% Franceses 32.926 0,8% Lituanos 28.707 0,7% Ingleses 24.567 0,5% Iugoslavos 22.891 0,5% Argentinos 20.763 0,5% Outros 97.272 2,3% Todos os imigrantes 4.195.832 100% Fonte: Revista de Imigração e Colonização, ano 1, n. 4, p. 641-642, out. 1940 e ano 4, n. 136, p. 209223, dez. 1945. Na segunda metade do século XIX a imigração árabe se deu de forma bastante acentuada devido ao período de conflitos políticos e econômicos em razão do domínio do Império Otomano na região do Oriente Médio. Porém, o período de maior fluxo migratório árabe, especialmente de sírios e libaneses, foi entre 1920 e 1930. Os recenseamentos de 1920 e 1940 revelam o número de imigrantes sírios e libaneses fixados no Brasil. O estado São Paulo destacou-se como principal centro de absorção de imigrantes, calculado entre 38,4% e 49,0%. Os libaneses não só aportaram em São Paulo, como também chegaram de outros estados da União, atraídos pelo desenvolvimento da lavoura cafeeira e, principalmente, pelo seu parque industrial, onde marcavam presença. O estado de Minas foi o segundo estado a receber o maior contingente de libaneses. Em muitas cidades, eles dominaram o comércio varejista. O antigo Distrito Federal, composto pela cidade do Rio de Janeiro ocupou o terceiro lugar, seguido do estado do Rio de Janeiro. A presença do imigrante árabe na Amazônia também foi significativa. 54 Para Jamil Safady, a vinda dos imigrantes, do Oriente Médio, iniciada em 1871, fez-se tradicionalmente com moradores do campo, lavradores ou proprietários de terras. Esses, porém, não vinham para dedicar-se a esta atividade, preferindo atuar no que parecia mais propício à obtenção de lucros rápidos, com os quais eles pretendiam voltar às suas terras de origem. A maior parte dos imigrantes síriolibaneses que veio para o Brasil estava disposta a trabalhar para enriquecer. Esse desejo esteve presente durante todos os movimentos de adaptação e todos os passos de construção da sua vida neste país. Os imigrantes libaneses em sua maioria não buscaram trabalho em fábricas ou propriedades agrícolas. Dedicaramse especificamente ao comércio e às pequenas indústrias. 89 Os árabes, sobretudo os que professavam a fé cristã, começaram a chegar ao Brasil em grandes levas a partir de 1875, e tiveram um número significativo de entradas no país até 1940. Em sua maioria eram da Síria – até então uma província do Império Otomano que incluía o território do Líbano. Segundo Khatlab tal deslocamento se acelerou após as visitas que o imperador D. Pedro II fez à região do Levante em 1876.90 Segundo o autor, esta visita estimulou a emigração espontânea91 do Levante para o Brasil, se configurando como uma “estratégia para estimular a imigração de mão de obra para o Brasil, já que o trabalho escravo estava em vias de abolição”. Toufic Doun em seus escritos caracteriza essa visita como de fundamental importância para o processo migratório É também sabido que o próprio imperador D. Pedro II empreendeu uma excursão ao país dos sagrados cedros e onde foi tão bem recebido e venerado que voltou com a melhor das impressões e as mais duradouras das lembranças. Para patentear o seu contentamento se dignou a manifestar o desejo de ver no seu querido Brasil o maior número possível dos filhos do Líbano e 89 SAFADY, Jamil. Panorama da Imigração árabe. São Paulo: Editora Impressora de jornais e revistas, 1970. 90 Levante, é o nome dado antigamente aos países da orla mediterrânea oriental ocupada pelos muçulmanos, aonde os mercadores Cristãos, sobretudo italianos iam comprar especiarias e sedas do oriente. Cf. KHATLAB, Roberto. Op. Cit. p.19. 91 Imigração espontânea é aquela que ocorre sem o patrocínio de nenhuma empresa, e não faz parte de nenhum projeto governamental. Ela se dá como resposta ao próprio contexto sócio econômico cultural em que esse migrante vive, e a atração que o local de destino exerce sobre o mesmo. 55 prometendo-lhes toda a proteção e assegurando-lhes voltar prósperos e felizes.92 Apesar das paixões demonstradas nesses textos, o imperador não tinha condições de acolher e garantir nenhuma condição de sobrevivência a esse imigrante em uma sociedade cuja relação de trabalho era escravista. Entretanto, talvez em função da visita, a quantidade de imigrantes aumentou consideravelmente depois de 1880 podendo apresentar uma chave para se entender o Brasil como escolha. Segundo Knowlton Muitos sírios e libaneses vieram para o Brasil porque tinham parentes no país, que mandaram chamá-los ou animaram-nos a vir. E finalmente, muitos imigraram para o Brasil porque acreditavam que o país fosse mais propício a fazer dinheiro do que outros. Emigrantes de torna viagem, saques bancários e cartas dirigidas a pessoas nas suas aldeias natais convenceram-nos de que o Brasil continha grandes possibilidades financeiras93 Dados do Departamento Nacional de Imigração demonstram a entrada de somente 156 Sírios e Libaneses, registrados até 1892. E até esta data eram classificados como turcos. Depois, os libaneses foram incluídos entre os sírios, só vindo a ser listados como libaneses a partir de 1926 quando o Líbano se tornou independente.94 Durante muito tempo, no Brasil, quaisquer estatísticas de entradas de imigrantes daquela região eram consolidadas sob a categoria ‟outras nacionalidades‟ e somente no estado de São Paulo, cuja organização dos serviços migratórios tornou-se mais cuidadosa a partir de 1908, esses imigrantes foram registrados ora como turcos, turcos asiáticos, libaneses ou sírios95. 92 DOUN Toufic. A imigração síria-libanesa ás terras da promissão. São Paulo: Tipografia editora árabe, 1944. p 87. 93 KNOWTON, Clark. Sírios e libaneses: mobilidade social e espacial. São Paulo: Anhambi, 1961. p. 35 94 Cf. Ibidem, p. 37. Ver também: NUNES, Heliane Prudente. Op. Cit. p. 44. 95 TRUZZI, Oswaldo M. Serra. A vinda de Libaneses e Sírios ao Brasil. In: Relações entre o Brasil e o Mundo Árabe: construção e perspectivas. – Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001. 56 Reflexo dessa imprecisão com relação a origem das nacionalidades dos imigrantes árabes é a confusão que se faz até os dias atuais ao se chamá-los vulgarmente de turcos. O estereótipo “turco” assume um caráter pejorativo, quando do uso das expressões “turco miserável”, “pão duro”. A continuidade do uso da denominação Turcos para tratar sírios e libaneses tem sua base na ignorância, e na falta de informação da população brasileira a respeito da diversidade de culturas – costumes, etnias – que compõe a estrutura populacional e política do Oriente Médio no início do século XX. A imigração para o Brasil aumentou pós 1910, em razão da fuga dos jovens do alistamento militar obrigatório do Império Otomano. Este fluxo aumentou entre 1911 e 1913, devido ás fugas, em razão das pressões feitas pelos turcos. Nos anos de 1920 e 1930, a imigração árabe para o Brasil atingiu seu apogeu com uma média de 5000 pessoas ao ano e em 1926 chegou ao ápice com 7308 entradas.96 Essa intensa emigração para o Brasil proporcionou, segundo dados obtidos por Khatlab, a formação da maior comunidade de origem libanesa fora do Líbano, com aproximadamente seis milhões de pessoas, entre imigrantes e descendentes. Tal valor corresponde a aproximadamente 3,2 % da população brasileira em 2006 e mais que o dobro da atual população do Líbano. É de se destacar também, o fato de que em 1999, 10% do congresso nacional brasileiro era formado por descendentes de Sírios e Libaneses.97 Ao desembarcarem no Brasil, os sírios e libaneses iam principalmente para os estados da região sudeste e para a Amazônia – na época vivendo o grande surto da borracha. A maioria dos imigrantes era vinculada ao trabalho no campo em sua terra natal. Entretanto, no Brasil, tiveram que encarar uma situação completamente nova. Todo um sistema de grandes lavouras, uma estrutura agrária centrada nas mãos de grandes latifundiários, e a terra possuía um valor de compra e venda definido pela lei de terras de 1850. Em São Paulo, alguns se empregavam como colonos nas grandes fazendas, mas logo fugiam para as cidades próximas. O faziam pela desmotivação 96 97 Revista de Imigração e colonização 1942. Arquivo Nacional. Rio de janeiro. Cf. KHATLAB, Roberto. Op. cit. p. 19. 57 com a vida nas fazendas, e com o sonho presente em todo aquele que migra, que é o de mudar de vida. Os sírios e libaneses, procuravam novas formas de inserção no mercado de trabalho, optando quase sempre por uma atividade autônoma, no caso especifico o comércio. Além do comércio urbano, a principal atividade desses imigrantes era a de mascate, responsável pelo fornecimento de mercadorias para cidades do interior do Brasil e para as zonas rurais, onde eram bem recebidos pelos colonos. Ao comprar do mascate, o colono diminuía a dependência em relação ao armazém do fazendeiro. Com isso, a atividade de mascate contribuía para a redefinição de novas relações sociais além de ser um ótimo meio de comunicação sertão adentro. Depois de algumas experiências mal sucedidas nas fazendas de café a atividade de mascate foi o primeiro trabalho autônomo realizado pelos imigrantes libaneses. Importante salientar que, muitas vezes, os mascates trabalhavam para seus patrícios, já estabelecidos, que forneciam mercadorias a serem pagas quando retornavam de suas viagens. Esses fornecedores eram quase sempre ex-mascates que haviam ascendido socialmente tornado-se lojistas. Deduz-se, portanto que tal atividade era provisória e aconteceria até que este imigrante conseguisse acumular e se estabelecer numa loja nas cidades. 98 Na região Amazônica a riqueza propiciada pela extração e venda de látex foi fundamental para a atração de um contingente considerável de imigrantes sírios e libaneses, que dirigiam os regatões, barcos-armazéns que subiam os rios rebocados por gaiolas99. Inúmeros regatões eram de origem libanesa ou Síria e exerceram, sobre as populações ribeirinhas dispersas nos principais rios produtores de borracha do Amazonas, um verdadeiro fascínio porque traziam novidades e as notícias da capital. Varriam os rios em embarcações típicas, de madeira, cobertas com palha ou lona de meia-nau para ré, fechada com laterais de tábuas pintadas e abarrotadas de mercadorias variadas. 100 98 Cf. TRUZZI, Oswaldo M. Serra. Patrícios, Sírios e Libaneses em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1995, passim. 99 Barcos maiores que os regatões, que também levavam passageiros. 100 TRUZZI.Oswaldo M. Serra. A vinda de Libaneses e Sírios ao Brasil. In: Relações entre o Brasil e o Mundo Árabe: construção e perspectivas. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001. p 301. 58 A imigração de libaneses e sírios para a Amazônia se deu efetivamente até a 1º Guerra Mundial e o fim do ciclo da borracha, quando vários imigrantes se mudaram para São Paulo, Rio de Janeiro e para as zonas agrícolas de Minas Gerais. No Rio de Janeiro, a maior parte se concentrou nos arredores da Rua da Alfândega, onde mais tarde, a partir dos anos de 1960 criou-se a associação conhecida como SAARA (Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega). Já em São Paulo, eles foram se fixando pouco a pouco nos arredores da Rua 25 de março a partir de 1885, montando seus comércios e fixando residências. Em Cuiabá, os locais iniciais de fixação de comércio dos primeiros imigrantes eram as ruas De baixo, e do meio, atuais Galdino Pimentel e Ricardo Franco respectivamente, e a Rua Conde D‟eu atual XV de Novembro e praça Luís de Albuquerque no bairro do Porto. Estes eram os espaços da cidade com intensa atividade comercial. O estudo sobre os espaços urbanos de Cuiabá, e as práticas dos imigrantes sírios e libaneses, será apresentado no 3º capítulo. Segundo Truzzi um dos fatores da concentração na Rua 25 de março é o fato de lá terem se fixado os pioneiros, o que atraiu outros patrícios, que lá chegando encontravam apoio, para se ajustar à nova vida. Informa também um movimento muito comum entre os sírios e libaneses até a primeira guerra mundial, que era o de retornar à terra de origem com algum recurso. No entanto, muitos dos que vieram solteiros para o Brasil ganharam dinheiro e voltaram para a terra natal onde ao comparar as condições locais com as possibilidades encontradas no Brasil, casaram e migraram novamente.101 No segundo capítulo, serão apresentadas discussões sobre as políticas de imigração do Brasil nos séculos XIX e início do século XX, destacando os projetos encaminhados pelo governo no tocante à imigração e colonização no Brasil. Destacam-se ainda as mudanças nos princípios que regulam as leis aprovadas nessa periodização. Permeiam essas discussões, conceitos como assimilação cultural, caldeamento, eugenia, arquétipo do imigrante ideal. Há que se destacar as estratégias praticadas pelos imigrantes de origem árabe para obterem sucesso em seus projetos. Serão apresentados também, os discursos dos presidentes de Província e de Estado no Mato Grosso, e sociedade sobre a imigração e colonização. 101 Cf. ibidem. p 301. 59 CAPÍTULO 2- TENSÃO E SONHO EM TERRA ESTRANHA O POETA COME AMENDOIM102 - 1924. Noites pesadas de cheiros e calores amontoados... Foi o sol que por todo o sítio do Brasil Andou marcando de moreno os brasileiros. Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer... A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos... Silêncio! O imperador medita os seus versinhos. Os Caramurus conspiram à sombra das mangueiras ovais. Só o murmurejo dos cre'm-deus-padre irmanava os homens de meu país... Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos, Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu... Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta República temporã. A gente inda não sabia se governar... Progredir, progredimos um tiquinho Que o progresso também é uma fatalidade... Será o que Nosso Senhor quiser!... [...] [...] Brasil amado não porque sejam minha pátria, Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der... Brasil que eu amo porque é o ritmo no meu braço aventuroso, O gosto dos meus descansos, O balanço das minhas cantigas amores e danças. Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada, Porque é o meu sentimento pachorrento, Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir. 102 Mário de Andrade, escrito em 1924. http://www.culturaemtopicos.hpg.ig.com.br/andrade2.htm. Acessado em 14/09/2006, 22: horas. 60 Brasil – Leis e projetos sobre imigração: a auto-imagem de um país, em comparação ao “outro”. Décadas atrás a sambista carioca Dona Ivone Lara, compôs esta canção: “Foram me chamar, eu estou aqui o que é que há. Eu vim de lá pequenininho, alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho” [...]. Nessa letra a autora descreve a história de uma pessoa que foi da Bahia para o Rio de Janeiro, e se declara como partidária do samba cultivando outras identidades. Sem assombro, utilizo tal texto, como alusão aos projetos e leis discutidos e aprovados no Brasil, tendo em vista a regularização da colonização e imigração no Brasil. Pisar no chão “devagarinho” remete a cuidados em terra estranha, sugere atenção ao que se aproxima e respeito com o desconhecido. Na temporalidade vivida pelos imigrantes pesquisados, essa música não existia, porém certamente, estes haviam de tomar cuidado, pisar devagar nessa terra, conhecê-la. Submeter-se às leis que regulamentavam a estada de imigrantes no Brasil, e quando possível resistir. Na nascente Nação brasileira, em pleno século XIX, muitos foram os projetos elaborados com o intuito de promover o desenvolvimento do país. Com este objetivo, foram criadas leis através das quais os projetos de colonização e imigração fossem regulamentados. Dentro da organização de um estado, o direito é a forma pela qual uma sociedade representa para si e para o estrangeiro, suas diretrizes, normas, condutas. É através da legislação que uma sociedade se organiza, e este código de leis obedece ao pensamento em voga no seu tempo, atendendo diversos interesses. Ainda que não universalmente, reflete formas de pensar e organizar de cada sociedade. Michel de Foucault, em seus escritos sobre relações de poder, enfatiza o papel do direito na regulamentação e exercício do poder dentro de um estado. Na introdução do livro Microfísica do poder, Roberto Machado faz algumas análises do pensamento de Foucault a respeito do poder e do direito. Por um lado, as teorias que têm origem nos filósofos do século XVIII que definem o poder como originário que se cede, se aliena para constituir a soberania e que tem como instrumento privilegiado o contrato; teorias que, em nome do sistema jurídico, criticarão o arbítrio real, os excessos, os abusos de poder. Portanto, exigência que o poder se exerça como direito, na forma da 61 legalidade. Por outro lado, as teorias que, radicalizando a crítica ao abuso do poder, caracterizam o poder não somente por transgredir o direito, mas o próprio direito por ser um modo de legalizar o exercício da violência e o Estado o órgão cujo papel é realizar a repressão. Aí também é na ótica do direito que se elabora a teoria, na medida em que o poder é concebido como violência legalizada. A idéia de Foucault é de mostrar que as relações de poder não se passam fundamentalmente nem ao nível do direito, nem da violência; nem são basicamente contratuais nem unicamente repressivas.103 Foucault aborda a dinâmica do poder de forma positiva, como uma maquinaria capaz de criar e moldar o indivíduo. Não estando este, alijado desse processo. Daí a importante e polêmica idéia de que o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e de outro, aqueles que se encontram dele alijados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que poder á algo que se exerce, que se efetua, que funciona. E que funciona como uma maquinaria, como uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação.104 No texto sobre a questão da governamentalidade, as relações entre direito e poder ficam claras, quando Foucault apresenta a disciplinarização da população como um instrumento de poder utilizado pelo estado. Aborda a transferência da noção de economia, outrora centrada na família, para o de população. Para Foucault essa transferência foi possível graças à interferência de processos mais gerais como 103 MACHADO, Roberto. Por uma Genealogia do poder (introdução): IN Michel Foucault. A Microfísica do Poder. São Paulo: Paz e Terra, 2004. p. XV. 104 Ibidem. p. XIV. 62 o crescimento demográfico, a expansão agrícola e abundância monetária no século XVII. O problema do desbloqueio da arte de governar está em conexão com a emergência do problema da população; trata-se de um processo sutil que, quando reconstituído no detalhe, mostra que a ciência do governo, a centralização da economia em outra coisa que não a família e o problema da população estão ligados.105 A utilização das novas artes de governo, da instrumentalização do saber econômico, fortaleceu as relações de soberania, à medida que a disciplinarização da população foi realizada. Na aplicação disciplinar tenta-se gerir as populações em minúcias. Utilizam-se dados estatísticos, definições de categorias apoiadas nas ciências emergentes. Nesse percurso o estado deixa de ser somente imaginado e operado, tendo como base a noção de território nacional. Passa-se a abordar a problemática da população categorizada em sua massa, sua densidade, e a disciplinarização desse contingente humano tendo em vista a manutenção da governamentalidade. Pensando no caso do Brasil, utilizando essa base de análise, pode-se destacar a relação existente entre população e território nacional como base para criação das leis e políticas de imigração. Uma das primeiras iniciativas de colonização e imigração no Brasil foi a de suíços, fundadores de Nova Friburgo na região serrana do Rio de Janeiro. Essa iniciativa tornou-se real a partir de um tratado assinado por D. João VI em 1818, cujo objetivo era o de diversificar as produções agrícolas, em regiões periféricas ás grandes propriedades escravistas. Posteriormente, a partir de 1824, as pressões ocasionadas pela tensão na fronteira do Brasil com a Argentina, e a disputa pela província da Cisplatina (atual Uruguai), motivaram novos projetos de colonização. Esta ocupação coordenada pelo governo se deu, sobretudo com imigrantes açorianos e alemães, e tinha motivações relacionadas a geopolítica do lugar. O maior objetivo era de povoar “terras vazias” no sul do país com imigrantes europeus preservando as fronteiras com a ocupação territorial. A lógica da ocupação se dava em função dos conflitos internacionais que 105 FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. São Paulo: Paz e Terra, 2004. p. 288. 63 se prenunciavam, com os países vizinhos. Fazendo valer o princípio do “Uti Possidetis”, inspirada em teorias liberais como a teoria da propriedade formulada por John Locke, filósofo contratualista inglês do século XVII. Para Locke o ser humano era por natureza livre e proprietário de si mesmo e do seu trabalho. Se na prática cotidiana desse trabalho, o homem amealha para si bens materiais, esses bens eram por direito dele.106 Ou seja, o trabalho incorporado a terra é que legitimava o direito de propriedade. No entender dos governantes a ocupação de um território e o uso deste para atividades produtivas garantiriam a posse das terras fronteiriças aos países Sul-americanos. Nos primeiros séculos de colonização portuguesa no Brasil, a base da economia estava alicerçada nas relações sociais de produção escravagista. Diante de crises internacionais em relação ao tráfico negreiro, e da impossibilidade de manutenção desse sistema, o governo brasileiro iniciou uma série de medidas visando estabelecer regras nas relações de trabalho através da regularização dos preços das terras consideradas devolutas. Esse ordenamento se deu através da instauração da lei de terras em 1850, o que só viria a ser regulamentada em 1854. O objetivo era regulamentar as relações de trabalho em função da provável abolição da escravatura, e da imigração para o Brasil. Uma nova fase das políticas imigratórias se alicerçava na necessidade de suprir a carência de mão de obra para as lavouras cafeeiras. O imigrante europeu nesse momento era imaginado como sendo o ideal, por possuir experiência na agricultura, e por apresentar cor branca. Estes direcionamentos estavam presentes de maneira indireta nos discursos proferidos nas leis. 107 A função da lei de terras de 1850 era impedir que todo imigrante residente no Brasil, ou escravo liberto pudesse se tornar proprietário das terras devolutas, oriundas do rompimento do sistema sesmarial em 1822. 106 WEFFORT, Francisco C. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 1998. p. 85-6. Cf. SEYFERTH, Girarda. Colonização imigração e a questão racial no Brasil. In: Revista USP. São Paulo: nº 53. p. 117-149, março/maio 2002. p. 118. 107 64 O sistema sesmarial correspondeu à ordenação jurídica de apropriação territorial que a metrópole impôs à colônia enquanto durou o seu domínio sobre ela [...] [...] o instituto de sesmarias foi criado em Portugal, nos fins do século XIV para solucionar uma crise de abastecimento. As terras portuguesas ainda marcadas pelo sistema feudal eram na maioria apropriadas e tinha senhorios, que em muitos casos não as cultivavam, nem arrendavam. O objetivo básico da legislação era acabar com a ociosidade das terras, obrigando ao cultivo sob pena de perda de domínio. Aquele senhorio que não cultivasse nem desse em arrendamento suas terras perdia o direito a elas, e as terras devolutas (devolvidas ao senhor de origem, à Coroa) eram distribuídas a outrem para que as lavrassem e aproveitassem e fosse respeitado, assim, o interesse coletivo. 108 A Lei de Terras em 1850 estabeleceu um valor de compra para a terra, inclusive as devolutas, tornando-as um equivalente de capital, uma mercadoria. De fato, a Lei de Terras, ao estabelecer um valor de compra à terra, obrigou o imigrante europeu a trabalhar nas fazendas de café e nas colônias de abastecimento para sobreviver, e tentar acumular capital a fim de adquirir a tão sonhada terra. O sonho de fazer a América, presente no imaginário do imigrante estava dificultado pelas medidas legais tomadas pelo governo do Brasil, representado pelas novas relações de trabalho e políticas fundiárias. A realidade social e econômica do Brasil não estava distanciada do resto do mundo, e sofria influências da expansão do sistema capitalista, assim como os países da Europa no mesmo período. Segundo Martins havia um descompasso entre a reprodução da força de trabalho baseada no escravismo, e a influência do sistema capitalista, gerando um prenúncio de crise na estrutura produtiva brasileira. Fatores internos também contribuíram para essa crise, como a sanção da Lei de Terras em 1850 e a aprovação da Lei Áurea em 1888. Martins acrescenta que a base legal e situacional para a instauração de uma política de imigração para o Brasil se justificava em razão dessa crise, e não o contrário.109 108 . SILVA, Lígia Osório da. Terras Devolutas e Latifúndios. Efeitos da Lei de 1850. São Paulo: EdUNICAMP, 1996. p. 36. 109 Cf. MARTINS, José de Souza. A imigração e a Crise do Brasil Agrário. São Paulo: Pioneira, 1973, p. 17. 65 Dentro do projeto de imigração havia basicamente dois modelos: a) o sistema de colonato em São Paulo, no qual os imigrantes assalariados substituíram a mão de obra escrava negra nos cafezais b) no sul, a formação de colônias agrícolas, constituídas de pequenas propriedades dirigidas por imigrantes açorianos, alemães e italianos. O que se buscava era depois da criação das condições institucionais de trabalho livre, a garantia de mão de obra para as lavouras de café em expansão, substituindo gradativamente o trabalho escravo. 110 A partir de 1870 [...] a vinda de imigrantes europeus para o Brasil, principalmente para a lavoura cafeeira em São Paulo, ou como pequenos proprietários para os núcleos coloniais no sul do Brasil, recebeu apoio tanto do governo imperial como de particulares. No sul, os incentivadores da imigração juntaram-se à corrente favorável à colonização por meio da pequena propriedade. 111 As políticas imigratórias, coordenadas a partir das necessidades governamentais, estavam alicerçadas em toda uma tecnologia estatal de governo, visando o ordenamento de populações. Nas grandes propriedades, produtoras de café para exportação, a imigração em massa abria novas possibilidades de manutenção da produção agrícola, embasadas no trabalho dos imigrantes. Nas Colônias do sul questões geopolíticas, e de relações internacionais com a Argentina e a Província Cisplatina, aliada à necessidade de ocupação territorial e diversificação agrícola foram os objetivos almejados pelas iniciativas governamentais. 110 Cf. Ibidem, p. 17. HUTTER, Lucy Maffey. A imigração Italiana no Brasil. Apud, CUSTÓDIO Regiane C. São Domingos: A Outra Face de Sorriso. Cuiabá UFMT, 2002. Monografia de graduação. 111 66 Mãos que trabalham e purificam a raça: criação do conceito de imigrante ideal. Enquanto teoria, a prática da governamentalidade prevê a criação de tecnologia de poder que possa garantir uma disciplinarização da população, que se torna base das políticas governamentais. É imprescindível associar o modelo de composição étnica, racial e econômica desejada para uma população às políticas implantadas para introduzir no seio da população brasileira, novos contingentes oriundos de outros países. O discurso governamental é elaborado consoante às práticas e teorias do período. No século XIX, a formulação do conceito de “raça” pelas ciências biológicas é influenciada pelas teorias de Darwin, e ganha credibilidade e funcionalidade no campo social, gerando o darwinismo social e o evolucionismo social. Segundo Shwarcz havia duas correntes de pensamento principais durante o século XIX: a visão monogenista, que acreditava numa origem única para a humanidade e, e as teorias poligenistas que defendiam a existência de vários centros de onde a humanidade teria se originado. Cada local de origem configuraria a criação de uma “raça” diferente.112 De um lado, monogenistas como Quatrefage e Agassis, satisfeitos com o suposto evolucionista da origem una da humanidade continuaram a hierarquizar raças e povos, em função de seus diferentes níveis mentais e morais. De outro lado, porém, cientistas poligenistas, ao mesmo tempo em que admitiam a existência de ancestrais comuns na pré-história, afirmavam que as espécies humanas tinham se separado havia tempo suficiente para configurarem heranças e aptidões diversas.113 A aplicação política dos conceitos Darwinistas sustentou e direcionou práticas de governo em todo mundo ocidental. Segundo Hobbsbawn, serviu de base para a expansão do “imperialismo europeu” por sobre a América, África e Ásia, como uma forma de justificativa para o domínio ocidental. O conceito de “raça” no século XIX assume um postulado de “povo”, e se confundia com nação. A pretensa superioridade européia se baseava também em conceitos como civilização e 112 Cf. SHWARTZ,Lilia Moritz. O Espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. p 48 113 Ibidem, p. 55. 67 progresso, caros às idéias iluministas, e consideradas como premissas universais. Do ponto de vista europeu, o progresso cultural, científico, característicos da “civilização ocidental” garantiriam o direito de intervenção em outros povos eles consideravam “menos evoluídos” enquanto civilização. 114 Coadunante a essas incursões ocidentais sobre o continente africano e asiático, as concepções de seleção natural de Darwin eram transformadas pelos poligenistas em “degeneração social”. Nesse ínterim, a percepção em torno da “mestiçagem racial” era tida como negativa. Um outro tipo de determinismo, um determinismo de cunho racial, toma força nesse contexto, denominada „darwinismo social‟ ou „teoria das raças‟, essa nova perspectiva via de forma pessimista a miscigenação, já que se acreditava que „não se transmitiriam caracteres adquiridos‟, nem por meio de um processo de evolução social. Ou seja, as raças constituiriam fenômenos finais, resultados imutáveis, sendo todo cruzamento, por princípio, entendido como erro. As decorrências lógicas desse tipo de postulado eram duas: enaltecer a existência de „tipos puros‟ – e compreender a mestiçagem como sinônimo de degeneração não só racial como social. 115 Lilia Schwartcz chama a atenção, ao fato de que no Brasil os modelos deterministas raciais passaram por adaptações. A autora fez um estudo apurado sobre os perfis das instituições científicas fundadas no Brasil a partir de meados do século XIX, destacando as transformações das teorias raciais originais, realizadas por esses institutos. O desafio de entender a vigência e absorção das teorias raciais no Brasil não está, portanto, em procurar o uso ingênuo do modelo de fora e enquanto tal desconsidera-lo. Mas interessante é refletir sobre a originalidade do pensamento racial brasileiro que, em seu esforço de adaptação, atualizou o que combinava e descartou o que de certa forma era problemático para a construção de um 114 115 Cf. HOBSBAWN, Eric. A era do Capital. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. SHWARTZ Lilia Moritz. Op. Cit. p. 58. 68 argumento racial no país.116 [...] aqui se fez o uso inusitado da teoria original, na medida em que a interpretação darwinista social combinou com a perspectiva evolucionista e monogenista. O modelo racial servia para explicar as diferenças e hierarquias, mas feitos rearranjos teóricos, não impedia pensar na viabilidade de uma nação mestiça. [...] 117 Pensava-se no Brasil, devido à composição “altamente mestiçada de sua população”, na viabilidade de uma nação mestiça. Esses debates se davam sobretudo entre os “Homens de sciência”, sendo posteriormente aplicados às políticas estatais. Nos estudos de Schwartcz aparece o discurso científico brasileiro legitimando o perfil de mestiço para a população do Brasil, porém, aponta o preconceito em relação a essa condição. O mestiço seria viável desde que se aproximasse do perfil europeu, branco, através de “cruzamentos raciais”. Grande ícone desse pensamento é Silvio Romero, da faculdade de direito de Recife, que ao mesmo tempo em que defendia a mestiçagem, defendia as teses poligenistas baseadas no princípio de diferenças entre os seres humanos, teorizados pelo determinismo racial. De fato, Silvio Romero, que se dizia avesso “a contemplação exclusiva das coisas”, afastou-se dos modelos teóricos puros para encontrar no mestiço “a condição da vitória do branco no país”. Ou seja, em vista da constatação da inexistência de um grupo étnico definitivo no Brasil, esse intelectual elegia o mestiço como um produto final de uma nação em formação. Utilizando forma pouco ortodoxa as máximas poligenistas da época, Romero encontrava na mestiçagem o resultado da luta pela sobrevivência das espécies, como estabeleciam as teorias evolucionistas da época. Porém, paradoxalmente, ao invés de condenar a hibridação racial, seguindo os modelos evolucionistas raciais, esse autor encontrava nela a futura “viabilidade nacional”.118 116 SHWARTZ Lilia Moritz. Op. Cit p. 19 ibidem, p. 65 118 ibidem, p. 154 117 69 Assumindo perspectivas cada vez mais políticas no mundo, o darwinismo social, se desdobra para uma teoria e prática conhecida como Eugenia. Baseada na concepção de diferenças raciais, e numa pretensa hierarquia, a Eugenia pretendia intervir na reprodução da população. As concepções sobre “hierarquização das raças” avançam da Biologia para o campo político, e este último utiliza como força legitimadora desse pensamento, as práticas higienizantes, a psiquiatria e outros saberes médicos. Ao conceber a eugenia em 1883, seu criador Francis Galton estava teorizando através de estatística e genealogia, que as funções humanas em geral se davam em função da hereditariedade, e não através da criação ou da cultura. Dessa forma pessoas alcoólatras, alienadas entre outras eram considerados problemas, pois transfeririam esses “caracteres indesejáveis” para os seus descendentes.119 Nova ciência a eugenia consiste no conhecer as causas explicativas da decadência ou levantamento das raças, visando a perfectibilidade da espécie humana, não só no que respeita o phisico (sic) como o intelectual. O método tem por objetivo o cruzamento dos sãos, procurando educar o instinto sexual, impedir a reprodução dos defeituosos que transmitem taras aos seus descendentes. Fazer exames preventivos pelos quais se determina a siphilis (sic), a tuberculose e o alcoolismo, trindade provocadora da degeneração. Nesses termos a eugenia não é outra coisa senão o esforço para obter uma nação pura e forte... os nossos males provieram do povoamento, para tanto basta sanear o que não nos pertence.120 Estando consonante com as teorias em voga no século XIX e nas primeiras décadas do século XX, as práticas governamentais procuravam adequar a população brasileira a esses novos postulados. Paralelo a necessidades de mão de obra, o determinismo racial avança do campo discursivo e científico para se constituir em legalidades, a partir da constituição de 1891. Princípios como a eugenia e a frenologia, eram aplicados no início do século XX como uma maneira de em longo prazo, formar o perfil ideal para a população brasileira. Nesse sentido, as 119 120 Cf. SHWARTZ Lilia Moritz. Op. Cit. p. 60. Ibidem, pg. 231 70 políticas de imigração visavam atender não só a necessidade de mão de obra, mas também a intenção de produzir um perfil de população, condizente com os ditames do período. No caso do Brasil a síntese ideal apontada pelos discursos seria a mestiçagem, com o prevalecimento do perfil europeu. As descrições e análises feitas neste levantamento têm por objetivo demonstrar essas práticas como constituidoras do pensamento defendido no período estudado. Certamente não se aplicam a outros períodos uma vez que a naturalização e a defesa das diferenças e superioridades raciais são contrárias a máxima da “igualdade” preconizada pelos iluministas, e bem distante das concepções da antropologia no presente. As políticas de imigração durante o império, mesmo assinalando o caráter geopolítico, como no caso da colonização do sul, apresentavam uma condição fundamental, a presença de pessoas com fenótipo da pele branca, ligadas a contingentes de origem européia. Salvo exceção das experiências com chineses, a partir de 1810, trazidos para o Brasil com o intuito de agregar mão de obra, sobretudo para o cultivo de chá no Rio de Janeiro. A justificativa para a inserção dos chineses estava na alegação de que eram laboriosos e conhecedores de técnicas agrícolas. Estavam, portanto, de maneira geral, propícios a constituir parte da população brasileira. Entretanto a presença dos chineses não era unanimidade, pois estavam em discussão outros atributos, como a capacidade de assimilação desses povos á cultura brasileira.121 Deve-se fixar no povo que melhor pode convir, e como sobre assunto ultimamente apareceu um folheto com o título de “A crise da Lavoura”, apresentando os Coolies como a imigração mais fácil, a mais conveniente e a mais profícua, eu direi que, considerando a corrente da imigração espontânea como termo emergente de todos os nossos esforços, e não tendo até hoje, a raça asiática, apresentado a menor tendência ou sintoma de seu desenvolvimento, por qualquer forma que seja, não sei como possamos admitir a possibilidade de entreter uma imigração cuja ineficácia neste ponto fica provada nas próprias palavras do escripto 121 Cf. LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. Trad. Patrícia de Queiroz Carvalho Zimbres. São Paulo: editora UNESP, 2001. p. 40-41. 71 (sic) [...]. mas nas circunstâncias em que nos achamos, ela somente viria a entorpecer ou retardar esse desenvolvimento que o país precisa, e que nasce e se desenvolve com a concorrência de braços laboriosos, e convenientemente educados. Para aproveitarmos os Coolies devemos aspirar que maior auxílio se preste ao assunto da catequese.[...]122 Está presente nesse discurso uma clara associação dos chineses aos indígenas brasileiros, motivados pelas semelhanças físicas entre os dois povos. Propõe nesse sentido a catequese como um procedimento necessário ao processo civilizatório dos chineses. Almeida Portugal afirmava que a assimilação dos índios asiáticos só seria possível quando a imigração de europeus fosse significativa. 123 Por trás do discurso operante que criava como colono ideal o imigrante que possuísse experiência agrícola, e que migrasse com toda a família, estava a afirmação da superioridade branca européia em detrimento das outras. Indígenas e africanos eram respectivamente os últimos nessa escala de preferências. As primeiras iniciativas de colonização colocavam os alemães como colonos ideais, o sucesso obtido nas colônias formadas no Rio Grande do Sul e Santa Catarina entre 1824 e 1829 reforçava este pensamento. [...] há uma premissa básica articulada a essa imigração: a classificação do colono alemão como agricultor eficiente, um critério presente em toda legislação imigratória vinculadas à colonização. Nas regras de admissão de estrangeiros o imigrantes ideal, o único merecedor de subsídios é o agricultor: mais do que isso, um agricultor branco que imigra juntamente com a família.124 O agenciamento de imigrantes foi suspenso por uma lei aprovada pela oposição em 1830, porém incentivado pelo governo recomeçou em 1845 com a fundação de novas colônias alemãs no sul do Brasil. A relação privilegiada com 122 PORTUGAL, Joaquim Maria de Almeida. Crítica a imigração chinesa presente na proposta para organização de um conselho de emigração apresentada ao ministério de obras públicas em 1868. apud SEYFERTH Girarda. Op. Cit.123-4. 123 Ibidem p. 124. 124 SEYFERTH, Girarda. Op. cit p. 119. 72 colonos alemães perdurou até 1870, quando as pressões dos discursos nacionalistas se tornaram mais freqüentes. A preocupação desse segmento nacionalista era a introdução de pessoas com língua, religião protestante e culturas diferentes, de difícil assimilação.125 As colônias do sul tinham um perfil homogêneo, no qual a maioria alemã não se submetia a aculturação de maneira acelerada e nem muito menos a assimilação cultural. Tinha influência definitiva nessa resistência a língua, a cultura bem enraizada e a religião predominantemente protestante. Nos projetos de formação da identidade nacional no século XIX, e primeiras décadas do século XX, estavam em pauta a aspiração pela modernização e a composição étnica fazia parte deste jogo de interesses. Associavam-se novos componentes étnicos para a miscigenação, associados à imigração branca. [...] o distanciamento cultural (marcado pela continuidade do uso cotidiano da língua alemã e pela presença protestante) e ideologia germanista, depois codificada na imprensa pelo termo Deutchutm, deram motivação ao discurso assimilacionista e a conseqüente desqualificação da imigração alemã. Isso remete a um desvio na concepção do imigrante ideal no final do século XIX, definido como aquele que melhor se deixa assimilar. Nos idos de 1850 ou 1860, assimilar significava uma adequação do estrangeiro à formação latina e católica do país, mantendo-se, por certo, a opção preferencial pelos brancos, agora, da Península Ibérica e da Itália. 126 O agenciamento preferencial de latinos se baseia num novo modelo de imigrante ideal, além da pele branca, traços culturais como línguas semelhantes e mesma religião são preponderantes dentro de um projeto de assimilação do estrangeiro. Segundo o sociólogo Samuel Koening, a assimilação se dá num processo de interação entre grupos diferentes e não é de forma alguma homogênea, uma vez que acontece em diferentes escalas. É um conceito análogo ao utilizado pelas 125 126 Cf. Ibidem, p. 121. SEYFERTH, Girarda. Op. cit. p. 129. 73 ciências biológicas, que trata da incorporação de um substrato ou de um organismo por outro. Para a sociologia, bem como para outras ciências sociais e humanas, a aplicabilidade de tal conceito se dá na esfera da cultura. O primeiro passo para a assimilação é a aculturação, que ocorre quando um indivíduo ou grupo cultural interage com outro, se apropriando de características, elementos culturais, incorporando a sua própria cultura ocasionando sua modificação. A aculturação se dá numa relação de forças que poderíamos tratar “grosseiramente” de “mais forte culturalmente”, e “menos forte culturalmente”. Entretanto, mesmo que o “mais forte” submeta o “mais fraco”, este último também influencia o primeiro.127 Assimilação, disseram Park e Burgess, é um processo pelo qual „pessoas e grupos adquirem as memórias, sentimentos e atitudes de outras pessoas ou grupos e, compartilhando sua experiência e história, são incorporados numa vida cultural comum‟. No processo de assimilação, indivíduos ou grupos abandonam sua própria cultura para adotar a de outros. Em outras palavras, como observa Henry Pratt Fairchilde em Immigrant Backgrounds, „o processo envolve tanto a desnacionalização quanto a renacionalização‟. 128 No Brasil do início do século XX a perspectiva apontada pelos nacionalistas era de um processo assimilatório unidirecional desembocando no abrasileiramento, que seria a transformação dos „imigrantes alienígenas em Brasileiros. 129 Tal conceito é problemático atualmente, pois assume perspectivas raciais e biológicas, num momento em que a própria Biologia revê conceitos como racialidade. Entretanto, em fins do século XIX e primeiras décadas do século XX a tônica nos discursos e projetos governamentais no tocante ao estrangeiro se baseava nessa premissa. A miscigenação assume também a ponta das discussões, o objetivo era promover gradativamente o branqueamento da população brasileira. 127 Cf. KOENING, Samuel. Elementos de Sociologia. 5 ed. Trad: Vera Borda. Rio de Janeiro: Zahar editores. 1976. p. 319-320. 128 Ibidem, p 319. 129 Cf. SEYFERTH, Giralda. Assimilação dos Imigrantes no Brasil. GT Migrações Internacionais XXIV Encontro Anual da ANPOCS. 2000. 74 O conceito de assimilação passa a ser visto não só a partir de questões culturais, mas também raciais, e “indicava a crença numa seleção „social‟ e „natural‟ pelo qual a população mestiça chegaria progressivamente a um fenótipo branco, com a conseqüente eliminação das raças inferiores”. 130 Seyferth conceitua, que as confusões entre assimilação e nacionalismo provocaram a condenação das diferenças de natureza étnica e das diversas categorias de pluralidade cultural e social decorrentes do processo de imigração. Outra abordagem conceitual a respeito do termo assimilação é dada por Emílio Willens, que em 1940 discordando do conceito estabelecido pelas políticas brasileiras de imigração afirma que a assimilação social somente se compreende como processo bilateral, embora prevaleça em geral, o padrão de um grupo. A assimilação implica na seleção de certos dados dos grupos adventícios e a eliminação de outros. A assimilação se estende apenas aos dados transmitidos pelo convívio e pela educação, não abrangendo elementos biológicos 131 Longe de chegar a uma conclusão definitiva, o conceito de assimilação aparece nesse trabalho como uma forma de demonstrar como a questão do imigrante era tratada pelas autoridades brasileiras nas primeiras décadas do século XX. Nesse perfil enquadram-se fundamentalmente, portugueses espanhóis e italianos, para os quais incentivos de uma imigração coordenada pelo governo em coadunância com os agentes foi estabelecida. A Latinidade assume uma posição de preferência nesse contexto. Segundo Seyferth o conceito de latinidade se torna fundamental na idealização do imigrante desde o início da república. A idéia era “amalgamar”, “caldear”, “fundir”, “miscigenar”, “assimilar” imigrantes e descendentes para atingir uma totalidade brasileira totalmente homogênea.132 Em 1891 o governo brasileiro ao promulgar a constituição, na seção II, título IV – Declaração de Direitos– assegurava a brasileiros e estrangeiros, residentes no 130 Ibidem, pagina 4. Ibidem, página 9 132 Cf. SEYFERTH, Girarda. Colonização imigração e a questão racial no Brasil. In: Revista USP. São Paulo: nº 53. p. 117-149, março/maio 2002. 132. 131 75 país, a inviolabilidade dos direitos à liberdade, à segurança e à propriedade, e algumas garantias funcionais e militares. A Constituição no título IV, Sessão I, artigo 69, procedeu também a uma grande naturalização em 1891, e reconhecia como cidadãos brasileiros 4º) os estrangeiros, que achando-se no Brasil aos 15 de novembro de 1889, não declararem, dentro em seis meses depois de entrar em vigor a Constituição, o ânimo de conservar a nacionalidade de origem; 5º) os estrangeiros que possuírem bens imóveis no Brasil e forem casados com brasileiros ou tiverem filhos brasileiros contanto que residam no Brasil, salvo se manifestarem a intenção de não mudar de nacionalidade; 6º) os estrangeiros por outro modo naturalizados. 133 Entretanto, as teorias e os direcionamentos das políticas de imigração por parte do governo eram fundamentados em bases racistas. Mesmo com a grande naturalização, a cidadania não era concedida a todos que entrassem no país. Em 1889, o governo republicano proibiu a entrada de asiáticos e africanos no Brasil, reafirmando a proibição nas décadas posteriores. Estavam implícitas nessa determinação, teorias relacionadas a “degenerescências”, que seriam ocasionadas, segundo o discurso, pelo cruzamento com raças asiáticas e africanas. Pretendia-se o afastamento de qualquer contato com povos oriundos desses continentes. Os contingentes oriundos do Oriente Médio desafiavam tal proibição, pois não se enquadravam no perfil sonhado como o europeu, nem tampouco eram associados aos asiáticos e africanos. Os princípios eugenistas avançam para o século XX, constituindo a tônica dos discursos oficiais. A idéia de um Brasil ideal, branco, racialmente se afirmava por sobre os que eram considerados indesejáveis. Na intenção das políticas públicas, a incorporação progressiva do elemento branco resultaria na criação de uma 133 Constituição da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891. Título IV Dos Cidadãos Brasileiros. Seção I – Das Qualidades do Cidadão Brasileiro Art. 69 – são cidadãos brasileiros. 76 sociedade ideal, entretanto abrasileirada, com os traços culturais brasileiros destacados, e com a assimilação das culturas estrangeiras. No período republicano, a crítica veemente às políticas imperiais foi constante. A primazia pela imigração alemã era duramente atacada. O objetivo de assimilação dos estrangeiros, chamados de alienígenas no século XX não surtiu efeito. Os projetos de homogeneização da população brasileira enquanto branca, cristã, e enaltecendo a “brasilidade”, imaginada como ideal para o progresso da nação, havia falhado. No século XX, a questão racial estava implícita em vários discursos, que objetivavam o branqueamento da raça, baseados em teorias eugenistas. Entretanto a constituição cultural dos imigrantes e sua capacidade ou não de assimilação passam a ser determinantes para sua aceitação, ou não. Um dos pensadores mais expressivos sobre esse assunto foi Oliveira Vianna. [...] foi defensor da imigração européia não mudou sua opinião sobre a inferioridade racial dos não brancos, embora atenuasse a retórica racista na década de 30, expressando-se por eufemismos teve grande influência nos assuntos de imigração durante o Estado Novo.134 Oliveira Vianna entre outros, defendia a retórica da unificação racial, pregando à homogeneização do “tipo” brasileiro, que deveria ser baseada em característica fenotípica comuns, que em sua definição seria a “branca”. Concebia a “brasilidade” enquanto origem e sínteses diante das misturas raciais e culturais. As teorias tratavam as interações raciais como reagentes num laboratório de química. As ações do estado falharam nas tentativas de se produzir o brasileiro ideal, pois esbarraram em grande parte nas idiossincrasias dos imigrantes. Importante destacar, o conhecimento do caráter mestiço da população brasileira. Não era a mestiçagem que estava sendo negada, mas a aproximação fenotípica negra e índia. 134 SEYFERTH, Girarda. Colonização imigração e a questão racial no Brasil. In: Revista USP. São Paulo: nº 53. p. 117-149, março/maio 2002. p. 133 77 Enfim, os pensadores sociais, a elite imigrantista comprometida com o modelo de colonização baseada na pequena propriedade, e os próprios assimilação/miscigenação com legisladores, imigração ao articular européia, estavam sinalizando a noção pretendida – mestiça, porém com um povo branco na aparência, mantidas as características sócio culturais da civilização latina de língua portuguesa.135 Políticas imigratórias durante o Estado Novo O Estado Novo, período da história do Brasil iniciado em 1937, foi rico em ações governamentais, especialmente aquelas voltadas para o controle da população. Desde a posse de Getúlio Vargas em 1930, o discurso nacionalista assumiu relevância fundamental no direcionamento político do Brasil. Entretanto, é a partir de 1932 que essas ações se intensificam em defesa do nacionalismo brasileiro, combatendo os “enquistamentos” sociais e raciais no Brasil. Enquistamento é uma palavra emprestada da medicina, utilizada nesse período, fazendo alusão à presença de quistos num organismo. No caso, os quistos seriam os imigrantes inassimiláveis ao organismo nacional. As colônias alemãs do sul do Brasil eram citadas freqüentemente como exemplos de enquistamentos sociais. Era classificado como alienígenas todos estrangeiros e descendentes nascidos no Brasil que não fossem assimilados. A imagem do migrante ideal durante o governo Vargas passa a ser o agricultor, e categorias de trabalho ligadas a urbanidade como o técnico e o operário. Segundo Pájaro Peres, a exemplo dos modelos imperiais e da primeira república, imigrantes considerados vagabundos, mendigos, indolentes, ciganos eram completamente rechaçados, não importando a nacionalidade. O que importava, em um primeiro momento era sua capacidade em desempenhar funções ou transmitir conhecimentos que atendessem aos interesses do país adotivo. No entanto, 135 Ibidem, p. 134 78 aparece como sendo de extrema importância a questão do potencial reprodutor do imigrante. Fala-se em braços para lavoura e indústria, mas também em “sangue novo” ou plasma de reprodução. 136 O ano de 1938 foi emblemático na criação e aplicação das políticas de estado. Cria-se o Conselho de Imigração e Colonização, e promulga-se o decreto 2.265 de 25 de janeiro de 1938, criando a comissão de nacionalização. O objetivo da comissão de nacionalização era instituir, e viabilizar os canais necessários à assimilação dos estrangeiros, seja através da nacionalização em massa e forçada, seja por meio do impedimento crescente de contato com seus países de origem. 137. Outra ação do governo brasileiro foi o decreto 383 de 18 de abril de 1938 que proibia aos estrangeiros a atividade política no Brasil. Consta também das ações governamentais a criação da resolução 3.010 de 20/08/1938, que criou o serviço de registro de estrangeiros no Distrito Federal e nos estados, implantando o registro de permanência. Pelo artigo 149 os estrangeiros residentes no país deveriam registrar-se nas delegacias policiais, caso não existisse nesses locais o serviço de estrangeiros. Em 20 de outubro de 1938 foram feitas revisões na lei, e as disposições ficaram: Art. 91. As autoridades imigratórias, policiais e sanitárias reunir-se-ão em torno de uma mesa, para a visita, cabendo a presidência a autoridade imigratória. Artigo. 120. Dentro do limite de quota, não havendo impedimento da saúde ou da polícia e para o fim da legalização de documentos, poderá a imigração autorizar, excepcionalmente, o desembarque de estrangeiros, mediante caução em dinheiro, correspondente à passagem de volta. 138 136 PERES Elena Pájaro. Proverbial Hospitalidade? A revista imigração e colonização e discurso oficial sobre o imigrante (1945-1955). In: Acervo: revista do Arquivo Nacional. – v.1, n. 2, jul./dez. de 1997. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1998. p. 55 137 Cf. DUARTE, Adriano Luiz. A criação do estranhamento e a construção do espaço público. In: Acervo: revista do Arquivo Nacional. – v.1, n. 2, jul./dez. de 1997. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1998. p. 133. 138 Revista Nacional de imigração e colonização. 1940. p. 144. 79 Para fins de divulgação das idéias e das resoluções do Conselho de Imigração e Colonização, foi criada em 1940 a Revista de Imigração e Colonização. Nela estão presentes informações demográficas sobre imigração desde o século XIX. Porém, o papel de maior destaque da revista foi de porta voz do pensamento político cultivado pelo conselho. As informações geralmente continham idéias racistas, princípios eugênicos de branqueamento da raça, existentes ainda na ainda na década de 1940, talvez coadunante com o nazi-facismo. È fato, que mesmo com a instauração de cotas para a imigração a partir dos decretos lei 406 de maio de 1938, e 3010 de agosto de 1938, o conselho nacional de imigração, controlador da revista de imigração e colonização publicava periodicamente elevação de taxas anuais para imigrantes europeus, como os oriundos da Noruega, descritos abaixo Tendo em vista a solicitação da Legação da Noruega no sentido de que seja elevada para 3000 pessoas a quota anual atribuída àquele país, a qual, presentemente, é apenas de 1,52; e Considerando que a imigração norueguesa consulta (sic) perfeitamente os interesses nacionais nos seus aspectos étnico, econômico e cultural; O conselho de Imigração e Colonização, de acordo com os artigos 14, § 5.º, e 76, letra a, do decreto lei n º 406, de 4 de maio de 1938, e artigos 4.º e 226, letra a, do decreto nº. 3.010, de 20 de agosto de 1938, resolve: I – Elevar para 3000 pessoas a quota anual da Noruega.139 É notória a preocupação com o número reduzido desses contingentes imigratórios em território brasileiro, uma vez que as cotas foram elaboradas tendo em vista a porcentagem de cada nacionalidade presente no país até o ano de 1938. Entretanto é preciso atentar para a ênfase dada às questões étnicas e culturais desses países cujas cotas foram elevadas, em relação às resoluções anteriores. Situação essa que se repete com 139 Resolução nº. 7 de 24 de outubro de 1938: Elevação da quota anual de imigração destinada aos nacionais da Noruega. In: Revista Nacional de imigração e colonização. 1940. p. 147. 80 a Suíça, resolução nº. 9 de 7 de novembro de 1938; com os Estados Unidos, resolução nº. 15 de 5 de dezembro de 1938; com o Grão-Ducado de Luxemburgo resolução nº. 17, de 12 de dezembro de 1938; com os Países Baixos, resolução nº. 22 de 9 de janeiro de 1939; da Tchecoeslováquia resolução nº. 25 de março de 1939; Argentina resolução nº. 26 de27 de março de 1939; Alemanha, resolução nº. 30 de 3 de abril de 1939; Isenção de quotas para os portugueses, resolução nº. 34 de 22 de abril de 1939; Polônia, resolução nº. 40 de 23 de junho de 1939; Hungria, resolução nº. 43 de 23 de junho de 1939; Bélgica, resolução nº. 46 de 14 de julho de 1939. 140 Segundo Pájaro Peres, a revista recebia contribuição de médicos, psiquiatras, higienistas, jornalistas, juristas, educadores e diplomatas. Discutiam e publicavam textos referentes ao perfil do imigrante ideal, utilizando saberes médicos e psiquiátricos para fazer a distinção entre desejáveis e indesejáveis. O discurso racial não estava abandonado, uma vez que os atributos psicológicos e físicos considerados indesejáveis continuavam sendo atribuídos à população não branca. 141 O imigrante, segundo os autores da revista, serviria para encher os „espaços vazios‟ e cultivar os campos, mas também contribuiria para a formação étnica brasileira, favorecendo o „embranquecimento da raça‟, ou até a formação de uma „nova raça, uma vez que o brasileiro, contudo sendo, na opinião de muitos um poço em formação. Considera-se necessário examinar o „pedigree dos reprodutores‟ [...]142 O “pedigree” era avaliado através de seleção médica e psiquiátrica, devendo evitar a entrada de imigrantes com deficiências morais, físicas e mentais. Essas atribuições da medicina, ligadas às estratégias de governo, remetem à governamentalidade. O estado investe sobre a população, a fim de ordená-la, 140 Revista Nacional de imigração e colonização. 1940. p. 147-72. Cf. PERES, Elena Pájaro. Op. Cit. p. 54-55. 142 PERES, Elena Pájaro. Op. Cit. p. 56. 141 81 utilizando para isso os saberes médicos. São estratégias definidas por Foucault como bio poder, socialização do corpo. Segundo Lesser143 as experiências assimilatórias no Brasil foram raras, mas não as cita prontamente. Considera como mais constante a aculturação, entendida como a modificação de uma cultura específica, pelo contato com outra. Sustenta em sua tese, que conceitos como latinidade foram amplamente negociadas entre as diversas nacionalidades estrangeiras no Brasil, e a cultura brasileira. Os projetos políticos de assimilação esbarraram na resistência étnica. Mato Grosso – Conjuntura, projetos, discursos sobre imigração A imigração para a província de Mato Grosso nos séculos XIX estava associada ao contexto internacional vigente. As emergências dos processos de emigração de sírios e libaneses se relacionam diretamente com a imagem de prosperidade atribuída à terra que os receberia. A imigração de sírios e libaneses para o Mato Grosso iniciou-se a partir da década de 1880. Em se observando o contexto local, se torna imprescindível à visualização das questões pertinentes á população na província de Mato Grosso nas últimas décadas do século XIX, e a continuidade dessas políticas no estado no século XX. Havia uma preocupação por parte dos governantes da província no tocante á constituição étnica da população, relacionada com a carência de mão de obra para o trabalho na agricultura. A população local era representada como sendo indolente, preguiçosa, não afeita ao trabalho. Em contraste, estavam as “inumeráveis riquezas naturais” carentes de braços para fazê-las produzir, alcançando o tão sonhado progresso. O desprestígio da população local se articula diretamente no discurso governamental à preferência pela vinda de imigrantes que pudessem “alavancar”, o progresso da região. A imigração serviria para aproximar o Mato Grosso do processo de desenvolvimento experimentados pelas outras províncias. 143 LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. Trad. Patrícia de Queiroz Carvalho Zimbres. São Paulo: editora UNESP, 2001. 82 O único meio de que pode servir-se o governo brasileiro para salvá-la, é abrir mão das suas riquezas às companhias estrangeiras, principalmente as inglesas, que, está provado, são as que com mais vantagens e energia levam avante as suas empresas, já pelo gênio empreendedor e audaz que sempre manifestaram [...]. Se os estrangeiros, como dissemos, não virem arrancar do abandono esses tesouros quase fabulosos, ficarão estes para sempre sepultados no esquecimento sem que produzam os resultados que deviam produzir, e a província de Mato Grosso representará sempre um papel bem diferente daquele a que foi fadada pela beneficência da natureza.144 As considerações de Moutinho encontravam ressonância com outros da elite Cuiabana e Presidente da Província, para os quais a imigração propiciaria a exploração das riquezas do Mato Grosso. Galetti, ao analisar esses discursos, concluiu que [...] sua realização, que requeria inicialmente o povoamento e colonização do território mato-grossense, ponto de partida para a exploração inteiramente e comercialização do concurso de de suas capitais riquezas, dependia estrangeiros. Estes preferencialmente europeus, que acreditavam dotados de atributos opostos aos da população local – amor ao trabalho, disciplina e espírito empreendedor.145 Galetti destaca também nesses discursos, o fato de que o nativo é visto como mero figurante do processo de modernização. Não estava, pela indolência, aptos a coordenar suas ações, dirigir sua própria história, necessitando, pois do braço estrangeiro. A representação acerca da indolência da população matogrossense é reforçada nos diários de viajantes que passaram pela província no 144 MOUTINHO Joaquim Ferreira. apud GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Nos Confins da Civilização: sertão, fronteiras e identidade nas representações sobre Mato Grosso. São Paulo: USP, Tese de Doutoramento. p. 130 145 GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Op. Cit. p.130 83 século XIX. Alguns como Smith, assinalavam para a futura extinção da massa de pessoas caracterizadas por ele como “escória social”, que não resistiria ao avanço do progresso. [...] aumentam as listas da população, mas para o estado são verdadeiros zeros. [...] quase nada trazem ao mercado ainda menos levam para casa; vivem ao deus dará satisfeitos porque tem provisões para um dia e palhoça que os abrigue. Hão de desaparecer em grande parte à medida que da terra se forem apossando gentes mais industriosas. Hão de submergir-se e morrer diante da onda de imigração européia. Pois que morram! É o único serviço que podem prestar ao país, e a lei inexorável do progresso determinou sua extinção. Não lhes contesto sua felicidade presente. E seu viver pitoresco tem certo encanto, não há dúvida. Também uma árvore morta é pitoresca, mas prefiro-as vivas. 146 Os discursos dos presidentes de província reforçavam a idéia da Indolência da população, e que esta vivia à margem das transformações ocorridas no mundo. A imigração européia contribuiria para a civilização do Mato Grosso, livrando a província, dos “selvagens”. O pronunciamento de João José Pedrosa, Presidente da Província em 1878, é emblemático nesse sentido, afirmando que as longas distâncias, a falta de recursos do estado e os índios, dificultavam a imigração para o Mato Grosso. Suprima-se a distância, catequise-se o selvagem menos bravio, e afugente-se o mais indomável, se tanto for preciso, e a colonização espontânea, única profícua, virá com seus braços e capitais transformar esta terra dita de desterro num Éden do Brasil. Não vejo outro meio de progresso e engrandecimento para esta província. 147 A esse respeito Moutinho discorre: 146 147 SMITH, Herbert. apud GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Op. Cit. p. 129 Pronunciamento de João José Pedrosa, Presidente da Província do Mato Grosso em 1878. APMT 84 E se o Brasil banir a escravidão: se reconhecer que um homem não deve ser escravo de outro [...] perece de fome a província de Mato Grosso? Há de perecer [...] seu principal defeito é a preguiça, é a indolência [...] a fome e a miséria são só devidas à preguiça do povo que ali devia viver na abundância. [...] lance o governo um olhar de compaixão para aquele povo, e procure lhe dar remédio eficaz à preguiça, ao contrário terá de vê-lo sempre miserável. É lhe necessário um reativo violento.148 A tônica dos discursos presidenciais em Mato Grosso se baseava na relação existente entre a grande oferta de terras, e a ausência de mão de obra para explorar e desenvolver esses potenciais locais. A questão “racista” aparece na preferência dada aos imigrantes de origem européia, aos quais se creditava ser os mais capazes de levar o Mato Groso a condição de grande estado da nação. Não havia, entretanto, uma política imigratória nacional voltada para o Mato Grosso, a exemplo das que ocorriam em São Paulo e nas províncias do Sul do país. Em função da falta de recursos, os projetos de colonização na província de Mato Grosso ficavam inviabilizados. Além destes fatores, a grande distância em que se encontrava a província em relação aos principais portos brasileiros dificultava a implantação de projetos de colonização. Essas dificuldades ficam evidentes no discurso de Pedrosa, quando se refere à imigração espontânea como a única possível. Em 1907, atrair e fixar “imigrantes voluntários” em lotes coloniais do Estado constituía-se em uma das principais metas do governo de Mato Grosso. A categoria de “imigrante espontâneo” foi regulamentada, sendo considerada, como tal, os que chegassem à cidade de Corumbá, vindos de qualquer porto estrangeiro ou qualquer dos estados da união como passageiros de 3ª classe, a 148 MOUTINHO, Joaquim de Souza. 1869. APMT 85 custa própria, com o propósito deliberado de se ocuparem da agricultura nas colônias do Estado. (decreto nº. 200, 1907, art.28)149 A preferência pelo imigrante espontâneo se deu em função da ausência de meios para se efetuar uma colonização dirigida. Entretanto, as políticas governamentais traçadas, visaram estabelecer colonos em território mato-grossense. A intenção era ceder lotes de 50 mil hectares, a serem divididas entre 500 famílias, totalizando 100 hectares cada família. A idéia era a cessão de até um milhão de hectares, e instalação de cerca de 40.000 pessoas nessas áreas.150 Nos jornais de Cuiabá, alguns discursos eram escritos reforçando as idéias sobre imigração e colonização. Num artigo de 1910, Antonio F. de Souza, traçava considerações sobre a imigração para Mato Grosso, argumentando que sem a mão de obra migrante, seriam difíceis o desenvolvimento e progresso do estado. Apresenta queixas sobre a baixa produção agrícola e o pouco aproveitamento das terras do estado. Cita em especial o não aproveitamento das terras do Vale do Rio São Lourenço, que a seu ver seriam “fertilíssimas”, em condições de suprir de cereais a Cuiabá e Corumbá. Compara as experiências de colonização nos estados do Sul do país em relação ao Mato Grosso. [...] bastam os exemplos dos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e tantos outros, onde os braços de colonos estrangeiros vêem aumentar a produção fazendo mesmo concorrência aos produtos iguais da indústria e agricultura de outros países. E enquanto esses estados progridem, acompanhando a evolução da culta e velha Europa, Mato Grosso continua no status-quo, importando por preços fabulosos toda a classe de produtos que o seu invejável solo poderia produzir em abundância. É preciso que se faça uma propaganda inteligente e contínua sobre o clima, as terras, os meios naturais e a posição geográfica do Estado, a fim de torná-lo conhecido dentro e fora do país atraindo assim capitais e braços de que ainda tanto carece.151 149 CERZÓSIMO GOMES, Cristiane T. do Amaral. Viveres, fazeres e experiências dos italianos na cidade de Cuiabá 1890-1930. Cuiabá: Entrelinhas, EdUFMT. 2005. p. 47 150 Ayala & Simon. Álbum Gráfico de Mato Grosso. 1914. p. 171. 151 SOUZA, Antonio F. de. Imigração. Jornal O Comércio. 14/04/1910, p.1. 86 Antonio Souza propunha a utilização da publicidade como meio de atrair imigrantes para a colonização do estado. Refuta a idéia da espera pelos imigrantes espontâneos chamando a atenção para a necessidade de juntar esforços para atrailos, por meio da propaganda oficial sobre as riquezas e possibilidades do estado. Em seu entender, o Mato Grosso era pouco conhecido fora de seus limites, e aponta este desconhecimento como causa da pouca procura pelo estado, em detrimento de outros, localizados no litoral. Em um outro artigo de março de 1911, chamava a atenção para a necessidade de políticas governamentais. Reitera o discurso sobre a aquisição de “mãos laboriosas” que fizessem desenvolver a lavoura e a indústria definhante. Venha, pois, o nosso governo em auxilio de nossa lavoura agonizante, criando e dirigindo associações que cuidem seriamente e patrioticamente da colonização de nossas imensas florestas; mas para alcançar o fim desejado torna-se necessário o emprego de muito critério em todo esse serviço, principalmente na escolha do respectivo pessoal dirigente, do contrário será o dispêndio de pura perda de dinheiro público.152 Em 1910, outro articulista que assinava L.P. denuncia as imagens negativas que se faziam sobre o Mato Groso nos estados litorâneos. O Estado de Mato Grosso era representado como sendo um lugar no qual animais caminhavam livremente pelas ruas das cidades, bem como índios e suas “flechas envenenadas”. Em tempo, acusa as elites locais de não reagirem, fazendo uma propaganda positiva a respeito do estado, se importando somente em fazer políticas. No decorrer do seu texto fica perceptível a irritação com o jogo político imperante, e as disputas entre adversários, por fim encerra com a seguinte frase “chega de atraso. Bugres, bugres, não somos, mas bem possível é que lá cheguemos. É preciso reação! Mudemos de Rumo, sejamos unidos”.153 152 153 SOUZA, Antonio F. De. Colonização. Jornal O Comércio. 03/ 1911. p.1 Cf. L.P. Conversa fiada. Jornal O comércio. 03/03 de 1910. 87 Século XX adentro os discursos em torno da necessidade do progresso para a região se acentuam. Outros fatores se associam à questão populacional, como a necessidade de maior infra-estrutura. Sobre esse dado discorre Galetti. [...] colonização, investimentos de grandes volumes de capitais e imigração estrangeira, preferencialmente de europeus. Eis a síntese da fórmula civilizadora prescrita para Mato Grosso... [...] ferrovias, navegação empreendimentos que a vapor, aparecem, estradas, então, telégrafos como são instrumentos fundamentais, juntamente com a presença de imigrantes e capitais, para preencher o vazio e concretizar em Mato Grosso a versão moderna do paraíso. 154 Cerzózimo Gomes aponta que as iniciativas do governo mato-grossense no tocante a imigração e colonização como infrutíferas. Fato este, comprovado na documentação existente. Escrevendo sobre os italianos em Cuiabá, não encontrou vestígios de italianos nas zonas rurais próximas a cidade, e indica nestes, práticas ligadas predominantemente a atividade urbana.155 Com os sírios e libaneses o processo de ligação cidade se deu de maneira semelhante, com a predileção pelos ambientes urbanos e práticas comerciais. Em 1920, o censo apontou como o proprietário de terras, Moysés Nadaf, no município de Nossa Senhora do Livramento; José Caim Mansur em Aquidauana; Abdo Manzud em Campo grande e Salvador Waldk Hoge Chaim em Coxim.156 154 GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Op.cit. p. 131 Cf. CERZÓZIMO GOMES, Cristiane Thaís do Amaral. Op. Cit. p. 49. 156 Diretoria geral de estatística. Recenseamento realizado em 1º de setembro de 1920. Relação dos Proprietários dos estabelecimentos rurais recenseados no Estado de Mato Grosso. APMT. 155 88 Imigrantes sírios e libaneses. Mesmo estando fora do perfil cultivado como “ideal” para a imigração, os turcos, libaneses e sírios, dentre outros do Oriente Médio começaram a se deslocar em grandes levas a partir de meados do século XIX. Apesar de serem agricultores em seus países, no Brasil se concentraram principalmente em atividades urbanas ligadas ao comércio, desafiando o modelo ideal, que era a do agricultor. Os sírios e libaneses não eram os imigrantes idealizados, não eram “brancos europeus”, não se dispuseram de maneira efetiva ao trabalho agrícola, e não receberam incentivos governamentais, consistindo em imigrações espontâneas. Entretanto, a maioria dos que chegaram ao Brasil era de origem cristã, o que os aproximava no aspecto religioso. Mesmo não sendo agricultores, a ascensão social de parte considerável de seu contingente, ligado às atividades comerciais, atendia prontamente aos anseios das elites e do governo, ansiosos por braços laboriosos e industriosos. No caso dos imigrantes árabes (sic), Lesser defende a criação de uma cultura hifenizada, um cruzamento das etnicidades brasileiras e árabes. Estes não deixavam todos os seus costumes, e assimilavam outros costumes da cultura brasileira.157 A atitude de se dedicar a atividades comerciais certamente foi estimulada pela presença de grandes latifúndios, e uma estrutura agrária voltada para a exportação. Os reflexos a Lei de Terras se faziam sentir de uma forma geral a imigrantes de todas as nacionalidades. O preço da terra afastava da posse aqueles imigrantes agricultores desprovidos de recursos, restando como alternativa direta o trabalho como colonos nas grandes fazendas. Truzzi argumenta as diferenças existentes entre o modelo agrícola vivenciado na Síria e no Líbano em contraste com a estrutura agrária do Brasil. As práticas agrícolas desses países estavam sustentadas sobre pequenas propriedades cultivadas pela famílias, enquanto que no Brasil, havia predominância de latifúndios e monocultura.158 Outro fator determinante seria o caráter espontâneo da imigração Síria e Libanesa, e um maior número de homens solteiros nesse contingente, bem como os 157 Cf. LESSER, Jeffrey. Op. Cit. passim. Cf. TRUZZI, Osvaldo Mario. Patrícios, Sírios e Libaneses em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1995 p 43 158 89 parcos recursos financeiros, impeditivos de se adquirir terras e trabalhar como agricultores. A junção desses fatores, certamente os impeliu a trabalhar como mascates. Mas de qualquer forma, o importante a se reter no caso de sírios e libaneses é que a manutenção original do ramo de atividade ou do tipo de inserção na estrutura ocupacional, a etnia em massa optou por esta última, ao reafirmar, desde o início, usa aspirações ao estabelecimento do seu próprio negócio – no dizer de um entrevistado, ao optarem por “cuidar de seus próprios narizes”, no dizer emproado de outros, “ao não se sujeitar a ocupações servis” 159 A prática de mascate se fixou tanto nas vivências urbanas quanto nas inserções pelo interior do Brasil. Seja entrando pelo porto de Santos, Rio de Janeiro ou mesmo via Bacia do Prata, os imigrantes sírios e libaneses se dispersaram para as mais distantes regiões do Brasil. Buscavam brechas, maneiras de se colocarem profissionalmente, e a prática de mascate foi a escolhida, viabilizando uma trajetória econômica e social ascendente em boa parte dos casos. Truzzi já havia aludido à grande expansão demográfica e espacial dos sírios e libaneses, no estado de São Paulo, fato este que pode ser observado em outros estados também. Aponta ainda outros elementos para se entender as trajetórias econômicas e sociais destes imigrantes, relacionadas diretamente com as relações de complementaridade existentes dentro das colônias. Destaca nesse sentido a acolhida, a facilitação de crédito e fornecimento de mercadorias para o trabalho. Outro elemento apresentado por Truzzi e que se aplica às várias experiências no Brasil é o “processo de realimentação” que consistia em trazer para o Brasil amigos e parentes.160 Nos dados coletados durante a pesquisa sobre a imigração de sírios e libaneses para o Mato Grosso, ficam claras as relações de complementaridade, bem como a dispersão espacial por sobre o território do estado. Nas primeiras décadas do século XX é possível encontrar indícios de sírios e libaneses nas principais 159 KURBAN, Taufik. Ensaios e biografias. Apud . TRUZZI, Osvaldo Mário Serra. Patrícios, Sírios e Libaneses em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1995 p 45 160 Cf. Ibidem,. passim. 90 cidades de Mato Grosso, a se destacar Cuiabá, Campo Grande, Corumbá, Aquidauana, Livramento, Poconé e Cáceres.161 161 Censo 1920. Relação dos proprietários dos estabelecimentos rurais recenseados no Estado de Mato Grosso. APMT. 91 CAPÍTULO 3. SÍRIOS E LIBANESES NO ESPAÇO URBANO DE CUIABÁ. PRÁTICAS E SOCIABILIDADES. “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boa dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso”.162 162 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 226 92 Navegação da Bacia Platina, população e imigração de sírios e Libaneses para Cuiabá: dados demográficos. Um dos grandes problemas enfrentados pelo Estado de Mato Grosso nos seus primeiros séculos foi grande distância deste, dos grandes centros do Brasil como o Rio de Janeiro, em relação com os meios de transporte da época. Nos primeiros tempos de sua colonização, o trajeto monçoeiro constituía a principal forma de se chegar às minas do Cuiabá. A grande questão inicial era a de buscar um atalho que diminuísse as 530 léguas que separavam Porto Feliz de Cuiabá. Além das Monções, foi aberto um caminho terrestre via Goiás, utilizado por tropeiros em lombo de mula. Os governantes de Mato Grosso almejavam buscar alternativas à navegação monçoeira e aos caminhos terrestres que, através de Goiás, permitiam chegar ao centro–sul, como única forma de barateamento dos custos do transporte de mercadorias e de romper o isolamento com o restante do império. No leque de soluções, a Bacia do Prata passou a ser área de profundo interesse dos governos imperial e provincial, pois era vista como única via de acesso para extensas áreas do Brasil central.163 Fruto de intensa negociação por parte da diplomacia brasileira, estabelece-se em 6 de abril de 1856 um “Tratado de Amizade, Navegação e Comércio” entre Brasil e Paraguai, permitindo a navegação pelo Rio Paraguai de navios brasileiros. Entretanto tal tratado fixava limites na comercialização, ficando os navios impedidos de atracar de porto a porto de cada nação, para fins de comercialização. Tal limitação se deveu também pelo fato de ainda existir disputas fronteiriças entre Brasil e Paraguai, que ainda não estavam resolvidas.164 Tal indefinição em relação às fronteiras foi uma das causas da Guerra com o Paraguai, que paralisou a navegação em 1864, a qual só foi retomada em 1870 no pós-guerra. Segundo Peraro, a 1º contribuição da navegação para a Província de Mato Grosso foi a diminuição do tempo de trajeto do Rio de Janeiro para Cuiabá que 163 PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império: família e sociedade em Mato Grosso no século XIX. São Paulo: Contexto, 2001. p. 37. 164 Cf. BRANDÃO, Jesus da Silva. História da Navegação em Mato Grosso. Cuiabá: Livro Matogrossense, 1991. p. 47 93 encurtou dos 180 dias gastos pelas monções, para 30 dias com a utilização dos navios a vapor. A produção de açúcar passou a ser exportada, juntamente com o gado bovino.165 Peraro escreve, entretanto, que no espaço de abertura da navegação, até o início da guerra com o Paraguai, que paralisou a hidrovia, os grandes beneficiados eram uma pequena parte da população correspondente aos proprietários de terras. A exportação de açúcar, poaia, e couro não garantiram nesse primeiro momento uma dinamização da economia, nem tão pouco, renda para os cofres públicos, que permanecia deficitário, dependente de recursos do tesouro nacional para garantir a administração da província.166 No período posterior à guerra, ocorreu uma maior dinamização. “No prazo de 10 anos, de 1873 a 1882, Mato Grosso conseguiu duplicar a produção de açúcar – se em 1873 a produção de rapadura era de 7.043 unidades, em 1882 esse total ascende a 17.101 unidades”. 167 A reabertura da navegação facilitou a exportação dos produtos mato-grossenses e importação de máquinas modernas para as usinas de açúcar, propiciando um aumento da produção e aquecimento da economia local.168 Em 1880 foi fundada a Usina da Conceição às margens do rio Cuiabá, e em 1895, de posse de Antonio Paes de Barros foi fundada a Usina de Itaici, também às margens do rio Cuiabá, que produzia açúcar, aguardente e álcool.169 Por essa época enxameia o rio Cuiabá de embarcações, que vão levar às usinas os artigos de importação e buscar o açúcar fabricado, para oferecer aos consumidores distantes. Chatas, a reboque de lanchas, ou tocadas por zingueiros, barcos acondicionados a mascateação com os ribeirinhos, batelões, a remos, de reduzida capacidade, para cargas menores, e até canoas, tudo contribui para o transporte de sacas de açúcar e garrafões ou pipas de álcool ou aguardente. Como também dos produtos da lavoura ribeirinha, que procuram o mercado consumidor franqueado pelas usinas. Principalmente para o corte dos seus canaviais, que 165 Cf. ALEIXO, Lucia helena Gaeta. Mato Grosso: trabalho escravo e trabalho livre. (1850-1888) PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império: família e sociedade em Mato Grosso no século XIX. São Paulo: Contexto, 2001. p 40 167 Ibidem, p. 63 168 Cf. SILVA, Edil Pedroso. O Cotidiano dos Viajantes nos Caminhos Fluviais de Mato Grosso 18701930. Cuiabá: UFMT, dissertação de Mestrado. 169 PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império: família e sociedade em Mato Grosso no século XIX. São Paulo: Contexto, 2001. p. 63 166 94 as abastecem de matéria-prima, conforme alguns dos convênios adotados.170 Nesse período se identifica a presença de mascates – mercadores ambulantes que faziam nesse caso específico, comércio junto às populações ribeirinhas. Os imigrantes europeus foram os primeiros a se dedicar a essas atividades em solo mato-grossense. Nesse período era muito utilizado o sistema de escambo como meio de pagamento das mercadorias levadas pelo mascate. Brandão cita como exemplo o caso do português Manoel Cavassa, que se tornou o maior comerciante de Mato Grosso à época, trabalhando inicialmente como mascate.171 Posterior à reabertura da navegação, o comércio instaurado a partir dela, provocou sensíveis mudanças na vida do povo mato-grossense. A navegação propiciou o crescimento das cidades ribeirinhas, que se encontravam às margens dos grandes rios. A cidade que mais se desenvolveu foi Corumbá, em função de ser o maior porto e ter a Alfândega instalada em seu território. Corumbá passou a ser maior arrecadadora de tributos, tornando-se praticamente a capital econômica da província. Tratando ainda de perceber as emergências viabilizadoras do processo migratório para Mato Grosso, convém estabelecer relações entre a conjuntura mundial no último quarto do século XIX – já descritas no capítulo 2 – com a abertura da navegação pela bacia do Prata, que facilitou o acesso à Província de Mato Grosso. Segundo Brandão, o caminho fluvial se estabeleceu como uma porta de entrada de imigrantes em território mato-grossense. O governo imperial tendo em vista o estímulo à imigração para a província oferecia a todos que se identificassem como “colonos” no consulado brasileiro em Montevidéu; passagem, ferramentas e víveres por um ano. A companhia de navegação do Alto Paraguai recebia subvenções do governo para transportar até 20 colonos por viagem. Muitos destes não eram colonos, mas pessoas em busca de fortuna rápida. Partindo da reflexão de que memória também pode ser entendida como relatos de percurso, o trajeto pela hidrovia se apresenta como uma das partes 170 171 CORREA FILHO, Virgílio. Fazendas de gado no pantanal mato-grossense. p. 37 Cf. BRANDAO, Jesus da Silva. Op. Cit. p. 57. 95 constitutivas da migração para o Mato Grosso. Segundo os depoentes, os libaneses que se encontravam em Cuiabá eram em sua maioria, oriundos de Zahle, cidade do Vale do Bekaa, região sul do Líbano. Os Sírios eram em sua maioria oriundos de Seydanay na Síria. Saindo de seus respectivos países, desenvolveram diversos trajetos até chegar a Cuiabá. [...] quando meu tio Moysés chegou pra cá em 1917 ele já tinha passado 11 meses na Argentina. [...] Ele saiu da Argentina por um conhecimento de um que foi de Cuiabá pra lá, voltando para Síria, voltando para minha cidade natal. Então a colônia de Seydanay lá de Buenos Aires receberam, fizeram festa e perguntaram: Como vai Mato Grosso? “é um lugar muito rico, acha ouro na rua, é o mais rico que tem” meu tio como era moço novo, veio pra trabalhar, tava com vontade de voltar em 2 anos, ficar bem de situação e voltar. No final da festa perguntou pra ele? Como que é, como vai lá, realmente tem ouro? “é fácil, vem aqui no alto do Prata, vai pra Corumbá, depois pega outro navio e vai pra Cuiabá direto” [...]chegou em Corumbá, ficou quase 15 dias para poder encontrar navio. Aí ele chegou em Cuiabá [...]172 A respeito do percurso realizado pelos seus pais, Miguel J. Kalix e Maria Mubarack Kalix, Lourdes Kalix depõe: Mamãe estava prometida pra papai, porque naquele tempo era assim, pra casar com papai. Aí o papai queria vir pro Brasil, casaram... ela tinha 17 anos e ele 18. Casaram em Zahle e vieram, aí chegaram a Bahia, onde estava tio Abrão, irmão de papai. Aí tio Abrão já tinha falado que vinha pra cá, porque Miguel Mansur tava aqui, aí vieram pra Cuiabá. Vieram de Lancha, do que eles podiam vir naquela época?173 172 NADAF, Jamil Boutros Sírio da cidade de Seydanay. Residente em Cuiabá desde 1948. 16/12/2002. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 173 FERRO, Lourdes Kalix. 71 anos, cuiabana, filha de pai e mãe libaneses, oriundos da cidade de Zahle no Líbano, chegaram a Cuiabá em 1912. 05/11/2006. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 96 População de Mato Grosso, do recenseamento de 1872 ao recenseamento de 1920 Em 1869, a província detinha 52 mil habitantes. O censo de, 1872 apontou para a província, uma população de 60.417 Mil habitantes, e sua capital Cuiabá com 37.020 mil em seu município.174 Contava também com uma população imigrante de 524 pessoas.175 Segundo Brandão, em 1875 entraram na província mato-grossense 485 estrangeiros, sendo 228 paraguaios, 109 italianos, 31 espanhóis, 30 portugueses e 20 argentinos.176 Apresentando números modestos em se comparando as províncias do centro sul do país, Mato Grosso recebeu imigrantes europeus e platinos no período pós-guerra com o Paraguai. Segundo Peraro o crescimento demográfico a partir de 1870 ocorreu em função do crescimento vegetativo, e das migrações internas e internacionais. A esse respeito Elisabeth Madureira Siqueira discorre: O aumento da população mato-grossense se deveu à nova fase econômica imperante a partir de 1870, quando, atendendo à dinâmica do capitalismo internacional, tornou seu território atrativo para os empresários que, pessoalmente ou através de suas representações comerciais, povoando e transformando sua antiga paisagem. Nessa dinamização a figura dos adventícios ganhou expressão.177 O censo de 1890, primeiro realizado no período republicano e segundo do Brasil – o primeiro foi em 1872 – demonstra a existência de um contingente considerável de imigrantes na cidade de Cuiabá. Os trabalhos coordenados por José Barnabé de Mesquita resultaram em dois livros, dos quais é possível extrair múltiplas informações, como nome de moradores, idade, profissão, raça, estado civil, religião, nacionalidade, defeitos físicos, instrução. De outra forma, ao esquadrinhar as ruas 174 BUENO, Francisco A. P. apud SIQUEIRA, Elisabeth Madureira. Luzes e Sombra: a população da Província de Mato Grosso. 175 Censo demográfico de 1872 - APMT 176 BRANDÃO, Jesus da Silva. Op. Cit. p. 112. 177 SIQUEIRA, Elisabeth Madureira. Luzes e Sombra: a população da Província de Mato Grosso. p. 97 com seus respectivos nomes, moradores e estabelecimentos comerciais, permitem a reconstrução das práticas desenvolvidas no cotidiano das ruas da cidade. No censo de 1890, a população de Cuiabá era de 17.759 mil habitantes, sendo que destes, 56 eram imigrantes locados nos distritos da Sé e da Freguesia de São Gonçalo. Os números de nativos e imigrantes no censo de 1890 apontam para um decréscimo populacional de ambos na cidade de Cuiabá em relação ao censo de 1872. Esse fato se deve provavelmente ao desmembramento de municípios originados a partir do município de Cuiabá. Exemplo disso são: Nossa Senhora do Livramento (ex São José dos Cocai), que desde 1835 era distrito de Cuiabá, elevado à categoria de município por lei provincial de 21-05-1883. esse desmembramento implicou, por parte de Nossa Senhora do Livramento, a incorporação das freguesias de Nossa Senhora de Brotas (atual Acorizal) e de Nossa Senhora da Guia, auferidas do município de Cuiabá. Ainda Santo Antônio do Rio Abaixo (hoje Santo Antônio do Leverger), desmembrado de Cuiabá e elevado á categoria de município em julho de 1890, com a instalação em 1900. ressalte-se que em 1899 o distrito de Brotas voltou a ser incorporado ao município de Cuiabá.178 Na observação do censo de 1890, foi possível encontrar a presença de imigrantes de origem árabe dentro do contingente de estrangeiros em Cuiabá já no século XIX.179 Felipe Jorge, apontado como o primeiro sírio a penetrar em terras cuiabanas; José Fortunato, João Jorge, Cecília Raphaela, Jorge José Marcum, Felippe de Siqueira, Jorge e Cecília. No censo, são todos descritos como turcos, entretanto fica a indagação em relação aos sobrenomes brasileiros de alguns deles, e a ausência de sobrenome em outros, fato que os dados presentes no censo não permite apurar.180 O censo de 1920, já demonstra um considerável aumento populacional. O Estado de Mato Grosso contava com 220.948 mil habitantes e sua capital Cuiabá 178 PERARO, Maria Adenir. A imigração para Mato Grosso no século XIX – Mulheres paraguaias: estratégias e sociabilidades. p. 4. 179 PERARO, Maria Adenir. A população urbana de Cuiabá em 1890. Censo de 1890. 180 Ibidem. 98 contava com 33. 678 mil habitantes. Destes 16.440 mil eram homens e 17.238 mil eram mulheres. 181 Tabela 2 - Imigrantes residentes na Cidade de Cuiabá, conforme informações dos censos de 1890 e 1920 Nacionalidades Africanos Censo de 1890 63 Censo de 1920 - Alemães 11 19 Argentinos 04 8 Austríacos 01 3 Belgas - 1 Bolivianos 03 - Chilenos - 1 Dinamarqueses 01 - Espanhóis 01 12 Franceses 02 19 Ingleses 01 1 Italianos 18 112 Norte Americanos - 8 Paraguaios 133 63 Portugueses 25 60 Suíços 01 - Turcos árabes 08 91 Uruguaios - 13 Total 204 441 Fontes: Censo demográfico de Cuiabá, 1890. APMT Censo demográfico de Mato Grosso e Cuiabá de 1920 – APMT. Estabelecendo-se comparações entre os dois censos, percebe-se um aumento considerável de imigrantes no período de 30 anos que os separa, bem como a diminuição de alguns contingentes populacionais. O dinamarquês e o suíço catalogados no censo de 1890 desaparecem no censo de 1920, os motivos de tal decréscimo não foi possível apurar. De mesma forma a presença de 63 africanos em 181 População recenseada em 1920 no estado e na capital, segundo os principais aspectos de sua composição geral. APMT. 99 1890, não se repete em 1920. Observando o censo de 1890, a população é descrita nominalmente, e um dos dados informados é a idade na data da consulta. Os africanos catalogados em 1890 apresentavam idades que variavam de 66 anos a 100 anos. Certamente vieram para o Brasil como escravos, possivelmente antes da proibição do tráfico negreiro em 1850. A ausência de africanos em 1920 se reflete também na proibição de entrada no Brasil de imigrantes africanos, homologadas na Constituição de 1891, e mantidas durante a república velha. A população de paraguaios na cidade diminuiu, ao passo que no estado aumentou. A maior parte deles se concentrou na porção sul do Estado de Mato Grosso, dado a proximidade com o Paraguai. Entretanto o numero de Argentinos embora pouco expressivos, aumentou. Chilenos, norte-americanos e uruguaios que não apareciam em 1890, são catalogados em 1920, embora com números pouco expressivos. Em contraponto, o número de imigrantes de origem européia aumentou, ainda que se comparado com os números nacionais, figurassem como pouco expressivos. Com destaque ao acréscimo mais significativo de italianos, portugueses, franceses, espanhóis e alemães respectivamente. Esses números se encontram consonante com o aumento da imigração para o Brasil desses contingentes, sobretudo os de origem Latina. Em destaque nesse trabalho é a presença oficial de 91 imigrantes sírios libaneses em solo cuiabano – catalogados no censo como “Turcos árabes”. Em números relativos á imigrantes, a população de sírios e libaneses em Cuiabá é muito expressiva, só ficando atrás da imigração italiana. Em se considerando que a população total de imigrantes em Cuiabá em 1920 era de 441 pessoas, os sírios libaneses correspondiam a mais de 20% desse total. Embora as comparações com os números de entradas de imigrantes no centro sul, os números de Mato Grosso sejam reduzidos, o censo de 1920 demonstra um afluxo bem maior de imigrantes para o Mato Grosso que para o vizinho estado de Goiás. Conforme demonstrado na tabela abaixo. 100 Tabela 3 - Quadro Comparativo das imigrações para os estados de Goiás e Mato Grosso e sua capital Cuiabá. NACIONALIDADE GOIÁS MATO GROSSO CUIABÁ Turca 528 1232 91 Portuguesa 304 1310 60 Italiana 268 810 112 Espanhola 192 570 12 Fontes: Censo demográfico de Mato Grosso e Cuiabá de 1920 – APMT. Censo demográfico de 1920 – Goiás apud NUNES, Elaine, Prudente. A imigração Árabe em Goiás. – Goiânia: Ed., da UFG, 2000. p. 69. Tabela 4. Imigração para Mato Grosso e Cuiabá em 1920. Países Mato Grosso Cuiabá Alemanha 117 19 Áustria 34 3 Bélgica 10 1 Espanha 570 12 França 109 19 Inglaterra 118 1 Itália 810 112 Portugal 1.310 60 Argentina 2.833 8 Chile 12 1 Estados Unidos 31 8 Paraguai 13.118 63 Uruguai 448 13 Japão 514 - Turquia Asiática 1232 91 Outros Países* 7093 30 Soma 25.321 441 Fonte: Sinopse Estatística do Estado. População recenseada em 1920 no Estado e na Capital segundo os principais aspectos de sua composição geral. APMT. Analisando a tabela acima, fica explícita a grande diferença entre o contingente imigrante recebido pelo estado de Mato Grosso e o recebido pela capital Cuiabá. Convém salientar que o estado de Mato Grosso à época deste recenseamento correspondia territorialmente aos atuais estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e a maior parte de Rondônia. Os dados disponíveis não são 101 suficientes para fazer um detalhamento sobre as outras cidades de Mato Grosso, o que dificulta os procedimentos de análise e comparação. A esse respeito, Marco Aurélio de Oliveira reflete sobre a ausência de estudos demográficos sobre o Sul do Estado de Mato Grosso em fins do século XIX, e na primeira metade do século XX. Não existe estudos demográficos sobre a região que hoje compreende o estado de Mato Grosso do Sul, o que me impede de refletir sobre questões como: número de imigrantes, divididos por nacionalidade, faixa etária e sexo, o que traria mais luz a esta pesquisa. Para contornar este problema, consultei os livros de registro de casamentos em Corumbá e Campo Grande, do período de 1896 a 1944.182 É correto afirmar que referente ao censo de 1920, os “turcos árabes” correspondiam ao quarto maior grupo de imigrantes em solo mato-grossense, ficando atrás apenas dos paraguaios, argentinos e portugueses. No caso específico de Cuiabá, o maior contingente é o italiano seguido pelos turcos árabes, paraguaios e portugueses. No Estado, do total de 7.093 pessoas, oriundas de países não declarados: 3.354 são oriundos de países europeus; 3.705 são de países da América e 34 são de outros continentes não especificados. Na Capital Cuiabá das 30 pessoas, 12 são européias; 13 são oriundas da América do Norte e 5 de outros continentes não especificados. 182 OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de. O mais importante é a raça: sírios e libaneses na política em Campo Grande. Tese de doutoramento. São Paulo: FFLCH-USP, Tese de doutoramento, 2001. p. 83. 102 Sírios e libaneses na cidade de Cuiabá. “Já menos interior a meu corpo que essa vida dos personagens, vinha a seguir, meio projetada diante de mim, a paisagem onde se desenrolava a ação e que exercia sobre meu pensamento uma influência bem maior que a outra, aquela que tinha sob os olhos quando os erguia do livro”183 A presença de sírios e libaneses em Cuiabá se deu, sobretudo no espaço urbano. Na cidade desenvolveram práticas, enunciaram relações sociais e participaram da constituição de espaços. “Espaço é um lugar praticado” 184 . Na urbanidade previamente traçada das ruas e praças, se dão encontros e desencontros. São em suas calçadas, pistas e passeios que o público e o privado se entrelaçam, construindo relações sociais, definidoras de práticas cotidianas. “A cidade, a maneira de um nome próprio, oferece assim a capacidade de conceber e construir o espaço a partir de um número finito de propriedades estáveis, isoláveis e articulados uma sobre a outra”.185 No espaço, organizado, estriado, da cidade de Cuiabá, foram encontrados indícios sobre a presença de imigrantes de várias nacionalidades, dentre elas os sírios e libaneses. Os relatos de percurso serão feitos de acordo com as informações contidas no recenseamento de 1890 e nos lançamentos da décima predial do 1º distrito da capital relativos ao exercício de 1908, 1909, 1917, 1918, 1920.186 O ano era de 1890, na casa de número 830, na Rua 13 de Junho estava estabelecido em Cuiabá o senhor João Jorge, 26 anos, negociante, católico, “turco”, casado com a senhora Anna Carvalho Jorge, brasileira. Na mesma casa estava Felipe Jorge, irmão de João, 25 anos, negociante, “turco”, casado com a brasileira Ana Josefa Bueno Jorge, 18 anos, branca, e a filha do segundo casal, Amélia Jorge, de 1 ano.187 183 PROUST Marcel. No caminho de Swann. p. 87 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Trad. Epraim Ferreira Alves. Petrópolis RJ, Vozes, 1994. p. 202 185 Ibidem, pg. 173 186 Relatórios da coletoria de tributos da capital. Lançamento de imposto de patente a que se refere o §2º do artigo 1º da lei de orçamentos. APMT. 187 Recenseamento de 1890. 184 103 Seguindo o percurso traçado por José Barnabé de Mesquita, encontramos na mesma rua, Cecília Raphaela 16 anos, branca, “turca”, casada com José Marcum, 27 anos, branco, “turco”, profissão declarada de mascate. Na Rua 27 de Dezembro, antigo “Beco do Candieiro”, residia Felipe de Siqueira, 21 anos, branco, solteiro, mascate e que a despeito do sobrenome é apontado como “turco”. Ainda na mesma casa, havia Jorge (sobrenome não declarado), 28 anos, mascate, casado, “turco”, e Cecília 20 anos, branca, casada, nacionalidade não apontada. Ainda nessa rua, José Fortunato, 26 anos, mascate, casado e “turco”. Chama atenção na leitura do censo, a categorização destes imigrantes como turcos em virtude, da já discutida, submissão dos territórios da Síria e do Líbano ao controle do Império Turco Otomano. Outro dado importante se dá em relação à religião professada como sendo a católica, o que reforça o já escrito pelos pesquisadores da imigração de sírios e libaneses para o Brasil, que estes primeiros imigrantes eram em sua maioria cristã. Num salto temporal, chegamos aos anos de 1908 e 1909. A escolha dessas referidas datas, se deve à localização de indícios de sírios e libaneses em atividades comerciais em Cuiabá. Os documentos reportados são os da coletoria municipal, nos quais são descritas as firmas instaladas em Cuiabá, 1º distrito – Sé, e 2º distrito – São Gonçalo, com os nomes dos proprietários, número da casa e ruas onde estão os estabelecimentos. A localização dos imigrantes sírios e libaneses foi feita a partir das informações obtidas através do cotejo das entrevistas realizadas e trechos de jornais. Nos livros da coletoria aparece a razão social dos estabelecimentos e não o nome fantasia, o que possibilita fazer uma triagem dos sírios e libaneses e suas práticas dentro da urbanidade de Cuiabá. Convém destacar, que essa triagem, é feita a partir do “espaço estriado” 188 , controlado pelos poderes governamentais, legitimados pelas leis vigentes. Na feitura da documentação, os estabelecimentos eram classificados de acordo com a sua “função”, comercial, fábricas e serviços. Eram catalogados 188 Espaço estriado se opõe a definição de espaço liso. O primeiro se refere aos espaços controlados, e legitimados por todo um aparato de leis estatais de cada Estado Nação. O segundo se refere ao espaço habitado por nômades, que não se adéqüem ao controle do Estado Nação. Cf. DELEUZE, Gilles & GUATARI, Felix. Mil Platôs, Capitalismo e esquizofrenia. V. 5. Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: ed. 34, 1997. Coleção Trans. 104 profissionais como barbeiros, dentistas, médicos, alfaiates entre outros, e lojas classificadas a partir dos produtos que comercializavam como fazendas, armarinhos, panificações entre outros. Outro dado importante era a classificação dessas casas em 1ª, 2ª e 3ª classe, que refletia a quantidade de tributos que deveriam ser pagos por esses estabelecimentos, de acordo com a natureza e o tamanho do negócio, enquanto variedade de produtos e numero de vendas.189 Ano de 1909, estabelecendo um percurso pelas ruas do centro de Cuiabá, encontramos na Rua 13 de Junho 5 lojas de 1ª classe, uma delas pertencente ao português Gabriel Francisco de Mattos, inaugurada em 1887, vendia fazendas em geral, ferragens, secos e molhados. Na Sé, Praça da República, não havia nenhum estabelecimento comercial registrado. Na rua 1º de Março, antiga rua do meio – atual Galdino Pimentel havia quatro lojas de 1ª classe, dentre elas a dos italianos Orlando Irmão & Cia, proprietários da Casa Orlando, que trabalhavam com importações em geral, exportação de borracha, transações bancárias e eram proprietários de seringais.190 E também a do sírio Felipe Jorge, que trabalhava com importações e exportações.191 Na Rua Sete de Setembro, continuação da 1º de Março, havia a casa de 1ª classe Euphrosina, da portuguesa Euphrosina H. Mattos, e as lojas dos libaneses Salomão Scaff e José Scaff, e do italiano Raphael Verlangiére, todas de 2ª classe. Paralela à Rua 1º de Março, a Rua Ricardo Franco – antiga Rua do Meio – encontramos 4 lojas de 2ª classe dos libaneses Anagib Miguel Amin, Salomão Cerme Mussi, Abraão Nicola Maluf, Aide Ferres Assem Sebba. E uma de 1ª classe, de Abdala Assem Sebba. Na Rua Antonio Maria, que se inicia na Sé, e segue paralela a Rua 13 de Junho, encontramos Salim Boabaid, e a italiana Nedi Naceralla, ambos com lojas de 3ª classe.192 De comércio ainda modesto, em 1909, Cuiabá já apresentava em termos relativos, um número considerável de imigrantes estabelecidos nessas atividades. A grande concentração de Sírios e libaneses se deu nesse período, sobretudo, nas 189 As casas importadoras e exportadoras de 1ª classe pagavam 300$000. As casas somente importadoras de 1ª classe pagavam 250$000. As casas comerciais importadoras de 2ª classe, 150$000. As casas importadoras de 3ª classe 100$000. As que trabalhavam com jóias 150$000. As casas que vendiam somente gêneros do país, 30$000. os profissionais liberais 50$000. Coletoria Municipal, 1909 e 1920. APMT. 190 AYALA & SIMON. Álbum Gráfico Mato Grosso. Anexo X. 1914 191 Coletoria municipal. 1909. APMT. 192 Coletoria Municipal. 1909. APMT. 105 Ruas 1º de Março e Ricardo Franco, no centro histórico de Cuiabá. A maioria das lojas, cujos proprietários eram sírios e libaneses pertenciam às categorias de 2ª e 3ª classe. A exceção se dá com Felipe Jorge, que já era apontado em Cuiabá desde o recenseamento de 1890, e Abdala Assem Sebba que aparece nos documentos da Cúria, já no ano de 1901, solicitando a realização de seu casamento com Naza Aid Fery. 193 Laura Antunes Maciel em sua dissertação de mestrado destaca que a partir de 1910, embora tenham sido modestos, a capital de Mato Grosso passou a receber alguns investimentos em melhorias urbanas. Os esforços de modernização estavam inseridos dentro da preparação do bicentenário de Cuiabá, que aconteceria em 1919.194 Em Cuiabá, algumas ruas da capital foram pavimentadas rapidamente, pois de abril a novembro do mesmo ano, várias foram calçadas de pedra cristal, porém o melhor serviço foi feito pelo processo macadame, que consistia compactar pedras de cor ferruginosa, que em Cuiabá se chamava de “pedra canga”, formando uma pista sólida por onde o carro passaria. [...] em 1919, não havia firma de engenharia em Cuiabá e o desejo do presidente do Estado de modernizar a capital pavimentando as ruas principais não poderia ser realizado se a agilidade comercial da Casa Dorsa não criasse as condições.195 Cerzózimo Gomes demonstra em sua dissertação a participação dos italianos no processo de transformação urbanística da cidade. Embora considerado acanhado, a pavimentação de algumas ruas com pedra propiciou no cenário cuiabano a inserção de dois novos elementos, o automóvel e os ônibus, que faziam a ligação do centro ao 2º distrito, o bairro do Porto, substituindo os bondes puxados a burro, que operavam desde 1891. Interessante observar que a mesma empresa realizadora dos serviços públicos de pavimentação, os italianos “Irmãos Dorsa”, 193 Documentos da cúria, caixa 52, rolo 33 NEDHIR. MACIEL, Laura Antunes. A capital de Mato Grosso. São Paulo: PUC/SP, 1992. Dissertação de mestrado. p. 65 - 75 195 CORREA, Afrânio. Os automóveis em Cuiabá – décadas de 1920 e 1930. apud. CERZÒZIMO GOMES, Cristiane Thaís do Amaral. Op.Cit. p. 120. 194 106 também recebeu concessão do transporte coletivo e foram proprietários dos primeiros automóveis da cidade, e dos primeiros carros de aluguel.196 Em se tratando de sírios e libaneses, os indícios revelam uma inserção no ramo comercial da cidade, com suas lojas e casas de importação e exportação. Seguindo o percurso pelas já ladrilhadas ruas de Cuiabá, destaca-se a maior densidade de pessoas e maior variedade de estabelecimentos comerciais no ano de 1919 em relação a 1909. Na Praça da República, que em 1909 não possuía registro de nenhum estabelecimento comercial, em 1919 se apresentava além de espaço de civismo, quando da comemoração do bicentenário de Cuiabá, como um espaço praticado pelo comércio e serviços. Nela encontramos Jorge Haydammus & Irmão, libaneses proprietários de lojas de fazendas armarinhos e calçados, a filial Mutran & irmãos, que vendiam além de fazenda e armarinhos, guaraná no varejo, Gabriel Saadi libanês de Zahle e Miguel Boldstein, tabelião e escrivão e o Drº Edmundo Ludolf, advogado. 197 Encontrava-se também, Felipe Jorge, proprietário de loja de fazendas, armarinhos, chapéus, calçados, gêneros alimentícios que desde em 1914, já aparecia no álbum gráfico como proprietário do Hotel Universal localizado na Praça da República, centro de Cuiabá. O sobrado onde se localizava o Hotel foi antes residência do primeiro bispo de Cuiabá D. José Antônio dos Reis. Arthur Jorge, filho de Felipe, assumiu a direção do hotel que passou a se chamar “Hotel Esplanada”. Após sua morte o hotel foi vendido, demolido e os irmãos Affi –de origem libanesa – construíram o Hotel Centro América198 que foi comprado e demolido pela rede de lojas Riachuelo na década de 1990. 196 CERZÒZIMO GOMES, Cristiane Thaís do Amaral. Op. Cit. pp. 121-122 Coletoria da capital. 1919. APMT 198 Cf. PÓVOAS, Lenine C. “Sobrados e Casas Senhoriais de Cuiabá”. Fundação Cultural de Mato Grosso. 197 107 Figura 1 Fonte : Álbum Gráfico de Mato Grosso. Ayala & Simon. Anexo XX, 1914. Seguindo pela Rua 1º de Março, aberta durante o período da mineração no século XVIII, encontramos também uma densidade comercial maior em se comparando a 1909. Estavam instaladas as lojas de fazendas, armarinhos e chapéus de Gabriel Mansur Haydammus, a matriz de Mutran & Irmãos, e ainda a tipografia de Boldstein e Cia. Por ser uma rua do comércio, mas também local de residência da população havia a padaria de Latorraca & Fogari. Depois da pausa na padaria, seguimos para encontrar as lojas do sírio Wady Boabaid, dos libaneses da cidade de Zahle, Kalil Mansur Bunlai, e de Felix Mansur & irmão, vendendo fazendas, armarinhos, calçados e chapéus. Nem só de lojas de fazenda se compunha o cenário da Rua 1º de Março. Seguindo o percurso encontramos a alfaiataria de Gulhermina de Carvalho, e a barbearia de seu marido Heráclito de Carvalho, o advogado Manoel Francisco da Neves, e Miguel Kalix, libanês, com armazém vendendo gêneros alimentícios nacionais e molhados.199 199 Coletoria municipal 1919. 108 Figura 2 Sobrado da casa Mansur. Fonte Lenine Póvoas, “Sobrados e Casas Senhoriais de Cuiabá”. Fundação Cultural de Mato Grosso. Na Rua Ricardo Franco, encontramos os mesmos estabelecidos em 1909, os libaneses Nagib Miguel Amin, Salomão Cerme Mussi, Abraão Nicola Maluf, Aide Ferres Assem Sebba, com lojas de fazendas, armarinhos e chapéus, e ainda Miguel Kalix, vendendo produtos nacionais, molhados e gêneros alimentícios em pequena escala.200 Seguindo pela Rua 13 de junho, percebe-se a ampliação do comércio em relação a 1909. Em 1920 estavam instaladas nessa rua dezoito lojas, entre drogarias, e casas de fazenda e de gêneros alimentícios. Acompanhando a expansão do comércio na Rua13 de Junho, encontramos Gabriel Haydammus & Abib Haydammus, Jorge Mutran, César Saddi, Antonio Abdalla Herani, Felipe Jorge & Filho, Nagib Badur, José Abdalla Herani, Hid & Irmão, todos vendendo fazendas, armarinhos e chapéus.201 A expansão também se deu em à Praça Ypiranga, onde se encontrava Wady Saddi, e na Avenida Ponce, antiga travessa Villas boas, onde encontramos 200 201 Coletoria de Cuiabá. 1920, livro 04. APMT Coletoria de Cuiabá, 1920, livro 04. APMT 109 Miguel Haydammus, Abraão Maluf, Elias Feriz Nemir, Pedro Haydammus, Felipe Azar e o italiano Domingos Tenuta, todos vendendo fazendas, armarinhos, calçados e chapéus.202 No Bairro do Porto, encontramos as lojas de Salim Haddad, Miguel Ahi, David Saadi na Rua 13 de Junho, Gabriel Saadi na Praça Luís de Albuquerque e a empresa Boabaid & Irmãos, na Avenida 15 de novembro, esquina com a Praça Luís de Albuquerque. Figura 3 Fonte: Jornal o Mato Grosso, 31 de março de 1919. NEDHIR Na cidade ansiosa por mudanças, onde o discurso da modernidade e do progresso compunha a tônica dos discursos oficiais e dos editoriais, que enfrentava dificuldades ocasionadas pela baixa produção local, e altos preços de produtos importados, os sírios e libaneses participaram ativamente da constituição dos espaços urbanos. A atividade de imigrantes em Cuiabá foi bastante intensa, como demonstra também o trabalho de Cerzózimo Gomes ao escrever sobre os italianos em Cuiabá. A cidade em 1909 tinha sua vida comercial, restrita quase que totalmente as três ruas mais antigas, a Rua de Baixo, do Meio, e a de Cima, e ao bairro do Porto. O comércio de Cuiabá se projeta já em 1919 para outras ruas centrais, se ampliando e se diversificando. Os imigrantes sírios e libaneses, juntamente com outros imigrantes, fizeram parte desse processo de construção e 202 Coletoria de Cuiabá, 1920, livro 04. APMT 110 edificação desses novos espaços, representados pelas Ruas 13 de Junho, Avenida Ponce e Praça Ypiranga. Tabela 5 - Empresas abertas por sírios e libaneses abertas em Cuiabá de 1905 até 1920. Empresas 01 Felipe Atividade Jorge Irmão 02 Abdalla & Loja importadora de 1ª classe. fazendas, 1905 Rua armarinhos e chapéus. calçados de 1ª classe 03 Aid Ferres Assem Loja Sebba de 2ª classe, vendendo Rua Ricardo fazendas 1907 Rua Ricardo armarinhos. Cerme Idem Franco 1907 Rua Ricardo Franco Nicola Idem Maluf 06 Nagib de Franco Mussi 05 Abraão 1º Março Assem Loja de fazendas, armarinhos, chapéus e Sebba 04 Salomão Ano Logradouro 1907 Rua Ricardo Franco Miguel Idem Amim 07 Salim Boabaid 1907 Rua Ricardo Franco Idem 1907 Rua Antonio Maria 08 Felipe Jorge Café vendendo bebidas a varejo e artigos de 1910 Praça cigarraria com bilhares de 2ª classe 09 Felipe Jorge Hotel da República 1914 Praça da República 10 José Affi Casa comercial importadora de 2ª classe, 1916 Rua Ricardo vendendo jóias, roupas feitas ou qualquer Franco outros artigos 11 Boabaid & irmãos Casa comercial importadora de 1ª classe 1916 Praça da República 12 Dib Aical Nemir Idem 1916 Não consta 111 13 Kalil Mansur Idem Bunlai 1916 Rua 1º de 1º de Março 14 Kalil Sebba Idem 1916 Rua Março 15 Jorge Idem Haydammus & 1916 Rua 13 de Junho Irmão 16 Nagib Badur Idem 1916 Não consta 17 Miguel Mutran Idem 1916 Rua 1º de Março 18 Abdala Homesse Casa somente importadora de 3ª classe 1916 Não consta 19 Abdala Gazar Idem 1916 Não consta 20 Nicola Hayk Idem 1916 Não consta 21 Dib Aical & Salim Idem 1916 Não consta 22 João Jorge Idem 1916 Rua 13 de Junho 23 Nacib Nagib Cury Idem 1916 Não consta 24 Jorge 1916 Não consta Abilem Idem Tannus 25 Félix Sebba Casa vendendo somente gêneros do país. 1916 Não consta 26 Gabriel Saadi Armazém 1917 Praça da República 27 Celine Haddad Armazém 1917 Rua 13 de Junho 28 Garzuzi Cury Armazém 1917 Rua 13 de Junho 29 José Saadi Casa comercial somente importadora 1917 Rua 13 de Junho 112 30 Abdalla J. Athaya Casa comercial somente importadora 1917 Não consta 31 Hannum & irmão Casa comercial somente importadora 1917 Não consta 32 Wady Saadi Casa de Fazendas e armarinhos em pequena 1917 Praça escala 33 Miguel Kalix Casa Ypiranga especial de gêneros alimentícios 1919 Rua nacionais e molhados 34 Felix Mansur de 1º de Março & Fazendas, armarinhos, chapéus, calçados. irmão 35 José 1º 1919 Rua março Abdala Casa Herani especial de gêneros alimentícios 1919 Rua 13 de nacionais e molhados 36 Hid&irmão Junho Casa de fazendas, armarinhos, chapéus e 1919 Rua 13 de calçados 37 Gabriel Junho Casa de fazendas, armarinhos, chapéus e 1919 Rua 13 de Haydammus & calçados Junho Abib Haydammus 38 Jorge Mutran Casa de fazendas, armarinhos, chapéus e 1919 Rua 13 de calçados 39 César Saadi Casa de fazendas, armarinhos, chapéus e 1919 Praça calçados 40 Antonio Junho Ypiranga Abdalla Casa de fazendas, armarinhos, chapéus e 1919 Praça Herane calçados 41 Felipe Ypiranga 1919 Rua 13 de Jorge&Filho Junho 42 Abraão Maluf Casa de armarinhos 1919 Av. Ponce 43 Miguel Casa de Armarinhos em grande escala 1919 Av. ponce Haydammus 44 Elias feriz Nemir Casa de Fazendas, armarinhos, chapéus, Av. Ponce calçados 45 Pedro Casa de fazendas, armarinhos, chapéus e Av. Ponce 113 Haydammus 46 José Mubarack calçados Mercador de Cereais 1919 Rua 15 de Agosto 47 Salim Haddad Casa especial de fazenda em pequena escala 1920 Rua 13 de Junho - Porto 48 David Saadi Casa de fazendas e armarinhos em pequena 1920 Rua 13 de escala Junho - Porto 49 Gabriel Saddi Casa de fazenda s, armarinhos, chapas, 1920 Praça Luís calçados, arreios, louças, ferragens, gêneros de alimentícios e sal. Albuquerque, Porto Fontes: Coletoria da Capital. Anos de 1905 a 1920, jornal O Mato Grosso, janeiro de 1916 e 1917. Além das práticas comerciais em loja, os sírios e libaneses praticavam também a mascateação fluvial, comumente denominada de “zinga” em Cuiabá. Imigrantes como Miguel Kalix e Abraão Kalix são exemplo dessas práticas, entretanto os maiores “exploradores” do comércio fluvial foram os Boabaid e os Scaff Gathas. Em 1926 foi fundada a empresa de navegação Boabaid & irmãos, que fazia viagens entre Cuiabá e Corumbá. O governo estadual dava aos Boabaid um incentivo mensal para que estes realizassem duas viagens semanais.203 Outros imigrantes, os Gathas e os Scaff controlaram o comércio com os ribeirinhos por todo e eixo navegável, de Corumbá a Cáceres e Cuiabá. Em Cuiabá era Alfredo Scaff, em Corumbá era Fauzi Gathas. Em Cáceres era o José Grande, tinha o Jorge Gathas, o José era Scaff... [...] Miguel Gathas viajava daqui para Corumbá, de Corumbá a Cuiabá e de Corumbá a Cáceres e voltava. Vendia mercadorias na 203 BRANDÃO, Jesus S. Op. Cit. 114 beira do rio e comprava mercadoria, comprava couro... [...] chegava até a vender pros Estados Unidos. Exportar couro.204 Na descrição de Jamil aparece nitidamente a prática do escambo feita pelos Scaff e Gathas com os ribeirinhos. Muitas vezes, entregavam suas mercadorias em troca de couro seco e salgado, pronto para a exportação, permitindo a estes mascates fluviais um processo de acumulação. Esta atividade só conheceu crise com a instalação do curtume Stefano. Outro relato de Jamil é em relação às exportações de Mato Grosso, passando pela alfândega de Corumbá, e seguindo para Buenos Aires e Montevidéu e daí para a Europa e os Estados Unidos. A respeito da mascateação fluvial, Ivens Cuiabano Scaff depõe: Meu pai passou os primeiros anos dele na lancha, porque o pai e a mãe dele moravam na lancha. Meu pai era mascate de “zinga”. Com doze anos começou a fazer comércio e vender material dentro das lanchas né. Ele fez dos doze anos até mais ou menos os sessenta e poucos, que foi quando a estrada de chão começou a tomar conta e aí a navegação deu aquela murchada. [...] então cada família ficou assim, uma parte em Cáceres, uma parte em Corumbá e uma parte em Cuiabá, com comércio e a navegação, as duas coisas desbloqueadas.205 O depoimento de Ivens Cuiabano Scaff confirma o que já havia sido citado por Jamil Nadaf em relação à distribuição da família Scaff Gathas Orro pelas principais cidades portuárias de Mato Grosso, e sua prática no comércio com os ribeirinhos. A união das famílias se deveu pelo casamento de D. Sofia Scaff com Miguel Gathas Orro, ambos viúvos. D. Sofia tinha filhos do primeiro casamento com Kalil Scaff: Ive Alfredo Scaff, pai de Ivens, que se casou com a cuiabana Lucinda Cuiabano; Heloísa Scaff, Luís Miguel Scaff e José Miguel Scaff, popularmente conhecido como José grande, que morava em Cáceres e se casou com uma 204 NADAF, Jamil Boutros Sírio da cidade de Seydanay. Residente em Cuiabá desde 1948. 16/12/2002. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 205 SCAFF, Ivens Cuiabano, médico, neto de libaneses, cujo pai nasceu em Corumbá em 1907. Residente em Cuiabá. 30/10/2007. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 115 cacerense de nome não revelado por Ivens. Do Casamento de D. Sofia e Miguel Gattas Orro nasceu Jorge Scaff Gattas Orro e Ada Scaff Gattas. A respeito das mercadorias comercializadas pela família, Ivens Scaff depõe Eles vendiam tudo quanto é intercâmbio (sic) desde rapadura, açúcar, cimento tinha muito cimento eu me lembro, então todos esses produtos vinham de cá, e daqui desciam outros [...] eles levavam de Cuiabá para Corumbá, de Corumbá a Cáceres, de Corumbá para Cuiabá. Corumbá tinha cimento, vinha de Corumbá pra cá. Mais tinha de tudo, era os estivadores, era o pessoal com saco nas costas, era um grande movimento o Porto.206 Sírios e Libaneses em Cuiabá – Trajetórias sociais e redes de cooperação Na história dos imigrantes sírios e libaneses em Cuiabá, se repete um fenômeno comum em outras experiências migratórias no Brasil e outros países, a formação de redes familiares e de solidariedade. Podendo ser definidas como estratégias motivadoras da emigração e facilitadoras da adaptação e da manutenção da vida em terra estranha. Nesse processo de alimentação da emigração e adaptação na terra que acolhe, o papel dos que chegaram primeiro é fundamental. As remessas de dinheiro e as boas novas anunciadas em relação ao país que acolhe operam num jogo de interesses que vai da necessidade material até aparatos simbólicos como identidades culturais, e possibilidade de reprodução do modus vivendi. Na busca do sonho de enriquecer, a trajetória de uns não significa necessariamente que todos terão o mesmo sucesso, entretanto é preciso atentar para o fato da constituição de redes familiares e de cooperação realizada entre imigrantes. Essas redes são fundamentais na construção do discurso de que é possível realizar o sonho na sociedade que o acolhe. 206 SCAFF, Ivens Cuiabano, médico, neto de libaneses, cujo pai nasceu em Corumbá em 1907. Residente em Cuiabá. 30/10/2007. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 116 Os imigrantes num espaço interativo marcado pelo confronto diferencial e étnico com a sociedade receptora buscaram se acomodar às estruturas sócio-econômicas da cultura hospedeira, realizando esforços constantes dirigidos à manutenção dos laços de solidariedade grupal e alimentação de suas identidades sociais. Sírios e libaneses por um lado se incorporaram à sociedade brasileira, mas por outro, o fizeram como um grupo que é visto e percebido como demarcaram etnicamente fronteiras sociais diferente em específicas, virtude de do que inclusão e exclusão.207 Exclusão e inclusão, entendidas como faces de uma mesma moeda, se articulando conjuntamente, cada inclusão traz em si um sentido de exclusão, uma vez que pertencendo a um lugar não o somos de outro. Nesse sentido, entende-se fronteira como um produto da cultura e não da natureza. Essa leitura pode se aplicar tanto a fronteiras entre países, ou mesmo fronteiras mentais, formuladoras de identidades e de pertença a uma ou outra região, etnia, e por que não salientar, os gostos. As fronteiras se marcam porque as distintas comunidades interagem de diversas maneiras com outras entidades das quais são, ou desejam ser distintas. A consciência de uma comunidade inclui a percepção de quais são as suas fronteiras. Estes limites podem ou não estar marcados nos mapas, porém sempre estão em nossas mentes. A fronteira separa o “nós” do “eles” e ao definir o “outro” definimos simultaneamente a “nós” mesmos.208 Em sua tese sobre a imigração árabe para Goiás, Heliane Prudente salienta também a formação de redes por proximidade, de caráter associativo. O que ela descreve através de um de seus depoentes, é a elaboração de uma estratégia de manutenção dos imigrantes em Goiás, que ela denominou companheirismo étnico. 207 FÍGOLI, Leonardo Hipolyto G. Migração internacional, multiculturalismo e identidade: sírios e libaneses em Minas Gerais. p. 14. 208 KAVANAGH, Willian. A natureza das fronteiras. In: Fronteras Y Fuente Oral. Barcelona: n. 12 1991, p. 7 117 Um amigo do meu pai arranjou-me emprego e alojamento. Nessa casa onde hospedei-me tinha dez jovens, que como eu, estavam aprendendo a forma de mascatear. Nos vivíamos muito próximos uns dos outros, e nós mantínhamos certos costumes na alimentação, nas diversões e o respeito para com os mais velhos. Nós cantávamos, dançávamos o dabkeli e discutíamos sobre os acontecimentos do dia... 209 Em Corumbá as estratégias de cooperação ganham mais vigor com a instituição da sociedade de Beneficência Otomana, fundada em 07 de março de 1909. Um anúncio da sociedade, no Álbum Gráfico de Mato Grosso, editado em 1914, sugere a importância da instituição e o poder econômico da colônia sírio libanesa em Corumbá. Importante ressaltar, que embora a instituição se chame Sociedade de Beneficência Otomana, esses imigrantes eram na verdade sírios e libaneses cujas nações ainda se encontravam sob o jugo do Império Turco Otomano. Abaixo, reproduzo trecho do anuncio feito no Álbum Gráfico. Dados os fins belíssimos que visa a nova agremiação que, tendo por norma (um por todos e todos por um), e encarando a reciprocidade de auxílios, a permuta de socorro entre seus associados, a Sociedade de Beneficência Otomana é merecedora da simpatia geral e da cooperação de todos os sírios que longe da pátria, queiram continuar a engrandece-la praticando actos militantes, e que irmanados pelos vigorosos lados de fraternidade, realizando um ideal elevado. [...] levar o seu concurso a tudo quanto se prender ao progresso desta terra hospitaleira e boa, onde os sírios como todos os estrangeiros laboriosos que a ela aportam, são recebidos com verdadeiro carinho.210 João Carlos Barrozo em sua tese de doutorado aborda a trajetória dos garimpeiros do Alto Paraguai, e baseado em Bertaux e Batagliola, descreve um emaranhado de situações nas quais as redes familiares e de solidariedade, 209 210 Entrevista concedida a NUNES, Heliane Prudente. Op. Cit. P. 86. Ayala & Simon. Álbum Gráfico de Mato Grosso. p. 337-338 118 associadas à escolaridade foram fundamentais para mudança na trajetória individual e mobilidade social. A partir do conceito de “trajetória Social”, entendido como “o encadeamento temporal das posições sucessivamente ocupadas pelos indivíduos nos diferentes campos do espaço social”, concluiuse que a posição social não é estática, e que os indivíduos, a cada momento de sua existência ocupam simultaneamente várias posições “resultantes dos seus lugares nos campo profissional e familiar”. Com o tempo estas posições se deslocam, se redefinindo em um ou vários campos, traçando assim uma trajetória social constituída de um feixe de itinerários.211 No entender de Barrozo, as trajetórias, e as conseqüentes mobilidades dependem de um emaranhado de fatores, que vão desde as redes, a escolaridade, esforço pessoal e utilização de recursos não monetários.212 Entretanto, é preciso salientar que embora análogas, as experiências não são iguais. Cada realidade apresenta um determinado tipo de dificuldade, e cada trajetória corresponde a uma história ímpar. Embora a prática da associação seja um fato, ela não se dava para todos os grupos de imigrantes de forma irrestrita. Pesam geralmente nessa formação laços de proximidade como pertença à mesma família, nacionalidade ou aldeias. Em se tratando deste trabalho, procuro analisar um microcosmo dessas relações, buscando identificar a existência dessas relações de complementaridade, e não necessariamente estabelecer um estudo completo sobre as trajetórias dos imigrantes sírios e libaneses. Apresento a formação de dois grupos distintos, que se organizaram em Cuiabá, baseadas em informações cedidas pelos depoentes Segundo Jamil Nadaf quando seu tio Moysés Nadaf aportou em Cuiabá por volta de 1917, já encontrou na cidade Azis e Anis Boabaid, Toufick Affi, Felipe Jorge, Miguel Gathas, os Scaff, os Houssein, Abdala Mansur. Jamil relatou também em entrevista fatos e curiosidades, histórias que ouvia seu tio Moysés Nadaf contar. No 211 BARROZO, João Carlos Barrozo. Em Busca da Pedra que brilha como estrela. Um estudo sobre o garimpo e os garimpeiros do Alto Paraguai. Araraquara, UNESP. 1997. Tese de doutorado. p. 277. 212 Cf. ibidem, p. 278 119 trecho abaixo, Jamil relata a primeira experiência de seu tio, então com 18 anos, no trabalho de mascate. [...] Não falava português, não falava nada. Aí um dia ele tava na praça Luís de Albuquerque no porto e ele escutou dois ou três conversando em árabe e ele se aproximou deles, cumprimentou, ficaram conversando e perguntaram de que cidade ele era, quando chegou. Aí ele falou “sou de Seydanay, eu cheguei aqui já tem uns 10, 15 dias e eu queria trabalhar e não sei como começar, vim com a fama que era muito rico, muito dinheiro, muito ouro [...] mas não é tão fácil assim”. Aí tanto o Boabaid quanto o Affi, Anis Boabaid e Toufick Affi que já tavam aqui falaram “ah não há problema, nós te damos mercadoria, você paga na volta não tem problema”. Aí ele comprou 2 burros, cavalos, carregou mercadoria e ensinaram como que vai lá pra Rosário Oeste. A Primeira viagem que ele fez foi pra Rosário. E foi indo nesse mato. Até chegar no Rosário, vendeu no caminho até chegá lá, ele vendeu toda a mercadoria, foi feliz, mas na volta tava tão apressado pra chegar, morreu um dos cavalos. Então o lucro da primeira praticamente perdeu, mas foi certo. Chegou aqui, carregou de novo, foi voltando e foi... viajando.213 Ao chegar a Cuiabá, Moysés se encontrou com Aniz Boabaid e Toufick Affi. Na descrição desse encontro é perceptível o estabelecimento de uma atitude de cooperação, quando Affi e Boabaid cedem para Nadaf mercadorias para iniciar suas atividades como mascate, o pagamento da mercadoria só seria feito na volta de Rosário Oeste. Moysés realizou essa viagem, mas na volta segundo Jamil “morreu um dos cavalos, e o lucro se foi, mas foi certo, chegou aqui, carregou de novo, foi voltando e foi viajando”. Aí ele começou a trabalhar, trabalhar, quando melhorou instalou em Várzea Grande. Várzea Grande pertencia a Cuiabá, não era independente, não era município. E lá começou com seu 213 NADAF, Jamil Boutros Sírio da cidade de Seydanay. Residente em Cuiabá desde 1948. 16/12/2002. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 120 comércio, ficou feliz, prosperou muito, casou e depois foi pra Nossa Senhora do Livramento. Aí depois resolveu, comprou uma fazenda num aterrado, num lugar chamado Pinto, no município de Livramento. Abriu comércio na fazenda para os que moravam ao redor, os fazendeiros. Depois encontraram ouro na terra dele, aí ele deixava o pessoal garimpar, e comprava o ouro e vendia mercadoria. Ele dizia que não ia tirar ouro, ele era o comerciante, o intermediário. “o povo fala ficou muito rico porque achou ouro, mas eu comprava e vendia pro Banco do Brasil”.214 A estratégia de Moysés para ganhar dinheiro com o ouro é interessante, cedia a terra para os garimpeiros e lhes vendia produtos de primeira necessidade. Jamil não informou a relação existente entre os valores de venda da mercadoria e o preço pago ao ouro. Mas pra se tirar dinheiro de uma relação tratada dessa maneira, o ouro certamente era comprado por Moysés a preço de ouro bruto, e depois transformado em barras de ouro e vendido ao Banco do Brasil, Moysés não confeccionava jóias. A narrativa feita por Jamil Nadaf é muito rica em detalhes, permitindo leituras sobre a condição dos mascates e suas aventuras pelo sertão mato-grossense, ás vezes num tom bastante romântico. Seguindo o raciocínio de que na trilha de uns, outros vem, o próprio Jamil veio para Cuiabá para conhecer o tio em 1948, terminou por se estabelecer, casar e ter os filhos em Cuiabá. Interessante notar que o exemplo de um incita o outro de alguma forma. Quando Jamil Chegou a Cuiabá, Salim Moysés Nadaf seu primo era Suplente de deputado estadual e havia comprado a usina de Flexas em sociedade com Fauze Gattas.215 Nagib Saadi, Libanês da cidade de Zahle, é apontado no depoimento de Aidda Nagib Saadi como um “aventureiro que gostava de conhecer o mundo”. Aidda informa que antes de chegar ao Brasil, Nagib Passou Pela Austrália, Nova York, aportando em Buenos Aires. De Buenos Aires seguiu para Cuiabá, fixando residência em Santo Antonio de Leverger. Retornou ao Líbano, se casou e em 1909 retornou a Cuiabá, deixando a esposa e os filhos em Zahle. 214 NADAF, Jamil Boutros Sírio da cidade de Seydanay. Residente em Cuiabá desde 1948. 16/12/2002. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 215 Cf. PÓVOAS, Lenine Campos. O ciclo do Açúcar e a política de Mato Grosso. 2ª ed. Cuiabá: IHGMT, 2000. p. 22 121 “Ele ficou 5 anos no Brasil[...] primeiro começou a guerra, ele tava aqui. Ele pensou, a guerra vai demorar, e minha família sozinha no Líbano [...] ele ficou lá, abriu armazém muito grande de mantimento, pessoas tava morrendo de fome [...]” 216 Num caminho inverso, César Nagib Saadi veio para o Brasil em 1914, trabalhando inicialmente como mascate, até abrir armazém na Rua 13 de Junho217. Seguindo a trilha de César, vieram inicialmente dois irmãos, Gabriel Saadi, e Wady Saadi, ambos com lojas de fazenda e calçados na Rua 13 de Junho e Avenida Ponce.218 Nicola Saadi chegou a Cuiabá em 1925. “Papai não foi mascate, meu avô quando veio para o Brasil sim, meu tio César quando chegou trabalhou como mascate, quando meu pai chegou, tio César já era comerciante na rua 13 de junho”.219 Percebe-se uma intensa trama familiar, motivada pelas dificuldades que se apresentaram no Líbano após o retorno de Nagib. Ao retornar ao Líbano, Nagib e sua esposa tiveram mais um filho, Jan Saadi, e quando a esposa estava grávida de oito meses do último filho, Felipe Saadi, Nagib faleceu vítima de febre tifóide durante a 1ª guerra mundial. Sem Nagib, e com irmãos mais velhos emigrados para o Brasil, Aidda e a mãe faziam bordados em tecidos e vendiam aos franceses, para se manterem, quando César e os outros não mandavam dinheiro para eles. Sobre a situação de Zahle durante a guerra, Aidda descreve As pobres coitados vinham de longe, sem roupa, sem descanso, sem comer. Morreram na rua não sei quantos... não sei, gente morreram na rua...eles vieram de terra deles, não tem comida lá vieram nossa cidade e fica lá, graças a Deus tem bastante para comer. Mas eles não tem automóvel... eles vêm a pé da cidade deles para nossa cidade. Não sei quantos morreram de fome na rua. Bastante gente, não é pouca. Cada um dia... um morre. 216 SAADI, Aidda Nagib, 30 de agosto de 2006. Libanesa da cidade de Zahle Líbano nascida em 1905, reside em Cuiabá MT. 30/08/2006. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 217 Coletoria da Capital. 1920. 218 Coletoria da capital 1919. 219 SAADI, Mirian. Cuiabana, filha de libanês. 31/08/2006. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 122 Ao ser perguntada sobre o período pós-guerra, e se vieram muitas pessoas de Zahle para o Brasil, Aidda responde: Tava cheio deles aqui... eles veio, aí cada um deles ia, passar tempo lá, põe cadeira na frente da casa, fala do que tava fazendo, eles davam alimento lá [...] eles assam carne, ficavam contente[...] eles [...] aí os de lá... eles puxam cadeira, ficavam sentados, na hora, maio, julho, pouco calor em Zahle, eles iam, sentavam lá. A narrativa de Aidda, se assemelha a alguns casos descritos por Sayad,220 quando do estudo sobre os emigrantes argelinos, e seus retornos para suas aldeias, as histórias fabulosas que contavam sobre a França, alimentando nos jovens o desejo de emigrar, e a certeza de serem bem sucedidos em território francês. No caso descrito por Aidda, se intercalam uma situação de poucas oportunidades, por ocasião também da 1ª guerra mundial, com as visitas rotineiras que os emigrados de Zahle faziam á cidade, narrando suas experiências e alimentando o desejo de migrar. Seguindo parte do caminho já realizado pelo pai Nagib, os filhos mais velhos se deslocam a Cuiabá em busca de trabalho, artigo raro durante a 1ª guerra mundial segundo Aidda, e aos poucos esse ramo da família Saddi se instalou em Cuiabá. Um seguindo as trilhas dos outros, articulados em laços familiares e de reciprocidade. Em 1912 chegaram a Cuiabá Miguel J. Kalix e sua esposa Maria Mubarack Kalix. Juntamente com eles veio Abraão Kalix, irmão de Miguel e esposa. Optaram por Cuiabá devido às histórias que Miguel Mansur,221 libanês de Zahle, radicado em Cuiabá desde os primeiros anos do século XX contava. [...] “com a vinda da família de Miguel Mansur que eram parentes, vizinhos dos pais de mamãe e papai lá no Líbano, papai também veio”.222 220 Cf. SAYAD, Abdelmaleck Sayad. A imigração e os paradoxos da alteridade. São Paulo: EdUSP, 1999. 221 O indício mais remoto encontrado da presença de Miguel Mansur em Cuiabá é a solicitação de permissão para realização de festa em 1905, encontrado nos documentos da Cúria de Cuiabá. Rolo 53. NEDHIR. 222 FERRO, Lourdes Kalix. 71 anos, cuiabana, filha de pai e mãe libaneses, oriundos da cidade de Zahle no Líbano, chegaram a Cuiabá em 1912. 05/11/2006. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 123 Figura 4 Maria Mubarack Kalix e Miguel J. Kalix. Fotografia tirada quando chegaram ao Brasil. Cedida por Lourdes Kalix Ferro. A cooperação existente entre os Mansur, Kalix e Mubarack, todos de Zahle, atraíram para Cuiabá José Salomão Mubarack e sua Esposa Rosa Mubarack. José Turquinho, como ficou conhecido em Cuiabá, era proprietário de armazém na Rua 15 de Agosto, e posteriormente na Avenida 15 de novembro, bairro do porto. Eram pais de “Linda” Mubarack, que posteriormente, na década de 1940 se casou com Nicola Nagib Saadi. Tanto Miguel quanto Abraão Kalix iniciaram suas atividades em Cuiabá trabalhando como mascates de “zinga”, vendendo produtos para comunidades ribeirinhas, rio abaixo, em direção a Santo Antonio de Leverger, e Rio acima em Direção a Rosário Oeste. Posterior à sua experiência como mascate de “zinga” Miguel Kalix se estabeleceu em comércio no centro de Cuiabá, inicialmente com lojas de produtos alimentícios, e posteriormente com lojas de bebidas alcoólicas. 223 Por intermédio de um senhor, de nome José Varandis, que viria a ser seu compadre, ao batizar seu filho Abraão, Miguel passou a fabricar licor de Pequi cristalizado, da marca cruzeirinho. . 223 Cf. Coletoria da capital. 1917 e 1920. 124 De papai eram aquelas pedras lindas, que formavam no galho chamado cruzeirinho. Então ia pegar cruzeirinho no tempo da seca porque não podia molhar. Aí trazia a gente tirava toda aquela florzinha dele, lavava e punha pra secar. Quando secava, papai tinha umas garrafas chamadas “viúva rober” que vinha com um vinho muito bom então papai comprava dessa garrafa, depois passou a comprar em São Paulo, direto da fábrica. A gente punha o galhinho aí enfiava na garrafa aí punha metade da garrafa de álcool, aí tampava e ia passando de uma garrafa na outra, e quando ia ficando mais escuro, porque o galhinho soltava uma corzinha, ai trocava de álcool, passava em todos, punha rolha de cortiça. Aí ele fazia o licor e ainda quente despejava nas garrafas. Aí que cristalizava, lindo... teve uma vez que veio um senhor de fora que comprou 100 dúzias de licor... mas foi uma trabalheira, nós éramos todos crianças, e todo mundo admirava.224 Figura 5 Miguel J. Kalix e Maria Mubarack Kalix. Fotografia tirada na década de 1970. Cedida por Lourdes Kalix Ferro. 224 FERRO, Lourdes Kalix. 71 anos, cuiabana, filha de pai e mãe libaneses, oriundos da cidade de Zahle no Líbano, chegaram a Cuiabá em 1912. 05/11/2006. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. . 125 Vendendo Licor de pequi, Miguel Kalix e sua esposa criaram os filhos e como se repete em outras experiências migratórias primaram pela educação dos mesmos. A esse respeito descreve Lourdes Kalix “Miguel Mansur veio, todos já vinham, queria vir pro Brasil, foi muito bom, aqui nós nascemos, criamos, um é médico, Dito é farmacêutico e bioquímico e Abraão meu irmão fez dois anos de curso de ótica, e tem ótica em Cuiabá”.225 A partir das redes de solidariedade e redes familiares se constrói todo um arsenal de possibilidades viabilizadoras da integração á sociedade que acolhe, estabelecendo não só situações de fronteira enquanto muro que separa, mas também relações de ponte com o diferente, se integrando, como disserta Willian R. Douglas.226 As situações de “ponte” terminam por gerar sociabilidades, e integração com outras comunidades. Em Cuiabá se verifica a aceitabilidade e a incorporação do elemento sírio e libanês á cultura e a sociedade local, talvez facilitado pelo fato de professarem a fé cristã. Exemplos como o de Miguel Kalix, que começou a fabricar e comercializar uma bebida tradicional da região reforça a idéia de que em situações de fronteira, ambos os lados se afetam, buscam sínteses que garantam a sobrevivência dos grupos. Casos como o de Toufick Affi e esposa, freqüentadores dos carnavais cuiabanos, comparecendo sempre fantasiado, reflete bem essas relações de troca, e de troca cultural.227 O fato de serem cristãos, certamente facilitou uma maior integração de sírios e libaneses em Cuiabá. Marco Aurélio Machado de Oliveira, afirma que em Corumbá, “o fato desses imigrantes serem cristãos, criou uma espécie de identificação religiosa, o que foi condicionante para a aproximação social”.228 Ele o faz baseado em depoimentos, entre os quais se destaca o de Miguel Bechara 225 FERRO, Lourdes Kalix. 71 anos, cuiabana, filha de pai e mãe libaneses, oriundos da cidade de Zahle no Líbano, chegaram a Cuiabá em 1912. 05/11/2006. Entrevista concedida a Gilbert Anderson Brandão. 226 Cf. DOUGLAS, William R. As Fronteiras: Muros ou Pontes? In: fronteras. Historia Y Fuente Oral. Barcelona: n. 12, 1994, p. 43-50 227 Cf. CERZÓZIMO GOMES, Cristiane Thaís do Amaral. Op. Cit. p. 113. 228 OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de Oliveira. Op. Cit. p. 83 126 “O fato de sermos cristãos nos deu tranqüilidade ao chegarmos aqui, pois tínhamos a certeza de que não seríamos perseguidos, como no Líbano. Os turcos muçulmanos não toleravam as diferenças que existiam entre nós”.229 Quando da morte de João Jorge, um dos primeiros sírios que vieram pra Cuiabá conforme o censo de 1890, o articulista do jornal o Mato Grosso escreveu o seguinte anúncio: Minado por uma grave enfermidade cruel, faleceu nesta cidade, no dia 13 do corrente, às 23 horas e meia o Sr. João Jorge, conceituado negociante nesta praça. Muito jovem ainda era o estimado morto de hoje quando transportou-se para este estado, e aqui radicou-se, tornando-se um dos nossos, de alma e de coração. Ao enterramento de nosso inditoso sírio, que teve lugar no dia 14 do fluente, no cemitério do 1º distrito, compareceu grande numero de pessoas de sua amizade. À sua inconsolável família nossas condolências.230 Percebe-se que possíveis tensões são aliviadas, quando elementos diferentes passam a interagir uns nos problemas de outros. Quando da conquista da independência da Síria, fizeram em Cuiabá festas e comemorações, conforme o anuncio do Jornal “O Mato Grosso”. A laboriosa colônia síria, desta capital associando-se aos seus compatrícios residentes em nosso país, festeja hoje a libertação da sua pátria, realizando entre outras demonstrações de regozijo, uma sessão cívica, às 20 horas, no salão do “Cine Parisien” a que comparecerão S Exc Revma. O Presidente Estado, altas autoridades e distintos convidados. do Como demonstração de simpatia a essa numerosa e esforçada colônia, o 229 Entrevista com Michel Bechara. Corumbá, MS, 28 de setembro de 1996. Apud OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de. Op. Cit. p. 83 230 Jornal “O Mato Grosso” 16 de março de 1917. NEDHIR. 127 governo do Estado resolveu mandar declarar feriado o dia de hoje em todos as repartições públicas. Enviando nossas efusivas congratulações aos dignos representantes da luzida colônia síria, que representa entre nós um grande elemento de trabalho e de progresso, agradecemos o convite com que nos distinguiram para a patriótica festa e nela nos faremos representar.231 O mesmo jornal, que tinha circulação semanal, em sua próxima publicação referenda a comemoração ocorrida por ocasião da independência da Síria, destacando a festa que se seguiu regada a pratos tradicionais da Síria, e a participação das autoridades cuiabanas nos festejos. O articulista destaca nos sírios, o perfil de laborioso, e em suas palavras, “elemento do trabalho e do progresso”. No cotejo com as mensagens de Presidente de Província e de Estado, nas quais apareciam a necessidade de braços laboriosos para fazer desenvolver o Estado, eles respondiam ao perfil e as qualidades esperadas dos imigrantes, o que certamente contribuiu pra sua socialização em meio à sociedade cuiabana. Segundo José de Souza Martins, A fronteira só deixa de existir quando o conflito desaparece, quando os tempos se fundem, quando a alteridade original e mortal dá lugar à alteridade política, quando o outro se torna parte antagônica do nós. Quando a história passa a ser a nossa história, a história da nossa diversidade e pluralidade, e nós já não somos nós mesmos porque somos antropofagicamente nós e ou o outro que devoramos e nos devorou.232 Em 1987, Lenine Póvoas escreveu um artigo denominado “cuiabanidade” no qual expunha seu descontentamento com os ataques feitos contra a “cuiabania” por meio dos migrantes oriundos de outros estados do Brasil, que vieram para o Mato Grosso nas frentes de expansão a partir da década de 1960. A vinda de gaúchos, 231 Jornal “O Mato Grosso” 17 de outubro de 1918. NEDHIR. MARTINS, José de Souza. O Tempo da Fronteira: retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da frente de expansão pioneira. In: Tempo Social, vol. 8, n. 1, maio, são Paulo: USP, 1996, p. 27. 232 128 paranaenses, mineiros, catarinenses entre outros, gerou no Estado de Mato Grosso diversas tensões no encontro entre os diferentes. Póvoas reage contra o que ele chama de “atrelamento” da cuiabania e da cidade de Cuiabá a uma imagem de “inimiga do progresso”, propagado segundo ele em panfletos no interior do Estado. Curiosamente, para responder a novas questões que estavam surgindo na década de oitenta, Póvoas usa como base de seu discurso, as relações sociais estabelecidas com outros contingentes migratórios, que se estabeleceram em Cuiabá antes destes aos quais está combatendo. Para nós, cuiabano não era apenas o que nascia na nossa cidade, mas também aquele que aqui se estabelecia, “com ânimo definitivo”, compartilhando conosco das dificuldades da vida numa urbe tão isolada e tão distante dos grandes centros do país e desfrutando conosco das delícias de uma comunidade solidária e hospitaleira. Os estrangeiros que no século passado e no atual vieram para Cuiabá de tal forma integraram-se ao meio social que se sentiram como se pertencessem a uma só família. De fato, que um foi mais cuiabano do que os Fortunato, os Cândia, os Fava, os Miraglia, os Gaeta, os Tenuta, os Barbieri, os Lotufo, os Guerrize, os Dorsa, os Laraya, os Maiolino, os Boabaid, os Mansur, os Gattas, os Ayoub, os Affi, os Biancardinni, os Haddad, os Malouf, os Feguri e centena de outros.233 Não cabe a este trabalho resolver situações de conflito da “cuiabania” dita “elite cuiabana”, com os novos elementos que vieram a se incorporar a população de Mato Grosso posterior a década de 1960. Entretanto, o texto de Povoas referenda a constatação de que houve uma grande integração destes primeiros contingentes de imigrantes sírios e libaneses cristãos, que chegaram a Cuiabá em levas sucessivas, a partir do último quarto do século XIX, e suas histórias se confundem com a história de Cuiabá durante o século XX. 233 PÓVOAS, Lenine C. Cuiabanidade. SAD APMT Biblioteca. 1987. p. 7-8. 129 Este trabalho apresenta limitações, não dá conta de tratar de questões como inserção desses imigrantes na política, das estratégias para uma melhor sociabilidade com os naturais de Cuiabá, definidas em parte pelos casamentos interétnicos, apontados nos depoimentos, mas inviável de ser tratado nessa estrutura de dissertação. Lacunas existem, muitos assuntos não foram tratados, como os imigrantes de fé muçulmana que chegaram em maior número a partir do fim da 2ª guerra mundial. 130 CONSIDERAÇÕES FINAIS. Uma das pretensões deste trabalho foi a de historicizar a trajetória de um grupo de imigrantes que residiu em Cuiabá em fins do século XIX e primeiras décadas do século XX. Acredito que a guisa de conclusão, se tornou imprescindível verificar as emergências que geraram o processo de emigração na Síria e no Líbano. No demonstrado no primeiro capítulo, as emergências podem ser visualizadas na relação entre as condições ruins de sobrevivência de sírios e libaneses em seus respectivos países por ocasião da dominação do Império Turco Otomano. Tanto pela posição geográfica, como pelas quantidades herdadas, os libaneses, acossados pela necessidade, formavam na primeira linha do ataque rumo ao estrangeiro, arrastando consigo, mais tarde, por efeito de competição natural, os irmãos mais necessitados e oprimidos na Síria, que foram os cristãos da cidade de Homs, e gradualmente os de outros continentes além-mar. (...)234 Encaixam nessa explicação, questões como intolerância religiosa, problemas de ordem social e econômica, geradas pela redefinição fundiária no Império Otomano, em consonância com a competição de produtos industrializados europeus. As conseqüências da lei de Terras Otomana de 1858, se fez sentir na redefinição do acesso à terra, modificando as relações de patriarcado, causando mudanças no sistema tradicional, forçando a uma emigração para as cidades, e posteriormente para outros países. Em se tratando de uma leva majoritariamente cristã, questões como intolerância religiosa também são apontadas como causas para emigração. Nesse bojo estavam cristãos Ortodoxos da Síria e Maronitas do Líbano. As condições adversas geraram a necessidade da emigração em busca de recursos para a manutenção e reprodução familiar em seus países. Percebe-se que a emigração não se constitui de experiências somente individuais, 234 DOUN Toufic. A imigração síria-libanesa ás terras da promissão. São Paulo: Tipografia editora árabe, 1944. p. 83 131 mas faziam parte de projetos familiares e ás vezes até de grupos de uma aldeia ou cidade. A necessidade da emigração se justifica na manutenção do status familiar perante a sociedade local. Isso se torna visível no cotejo da bibliografia abordada com algumas entrevistas, nas quais, os relatos apontam para a emigração deu membro da família, notadamente do sexo masculino e a constante remessa de dinheiro feito por estes a seus familiares. Os imigrantes viajaram em grupos, formando unidades ligadas por laços de parentesco, amizade ou pela vizinhança, ou ainda por serem naturais da mesma aldeia, cidade ou distrito. Quando chegavam ao país de destino permaneciam juntos, salvo nos casos de alguns terem de juntar-se a parentes ou amigos que os haviam precedido e que os esperavam em outras localidades. E por isso que se acham grupos radicados, naturais de uma aldeia ou cidade, em certa Zona deste ou de qualquer outro país de imigração.235 Nesse sentido, os primeiros a chegar ao Brasil o faziam com a intenção de ganhar dinheiro e retornar para investir em seu país. Em vez disso, as constantes remessas de dinheiro causaram o que Truzzi chama de processo de realimentação do processo migratório, fazendo com que outros membros das famílias e pessoas próximas às aldeias emigrassem para o lugar onde estavam os primeiros que migraram. A esse respeito Clarck Knowton também cita: Muitos sírios e libaneses vieram para o Brasil porque tinham parentes no país, que mandaram chamá-los ou animaram-nos a vir. E finalmente, muitos imigraram para o Brasil porque acreditavam que o país fosse mais propício a fazer dinheiro do que outros. Emigrantes de torna viagem, saques bancários e cartas dirigidas a pessoas nas 235 DOUN Toufic. A imigração síria-libanesa ás terras da promissão. São Paulo: Tipografia editora árabe, 1944. p. 92 132 suas aldeias natais convenceram-nos de que o Brasil continha grandes possibilidade financeiras.236 Destacam-se também as relações de complementaridade ocorrida na terra hospedeira. Exemplos como a relação existente entre as famílias Mansur, Kalix e Scaff Gattas Orro. Ou de outra forma, a atitude de Aniz Boabaid e Toufick Affi, que mesmo não sendo da mesma cidade de Moyses Nadaf forneceram-lhe mercadorias para iniciar suas atividades como mascate. No capítulo 2, a abordagem sobre os projetos de imigração, colonização oficiais no Brasil no século XIX, revelam a preferência por pessoas oriundas da Europa. Essa preferência se justificava sobre o discurso claro de povoamento do território, mão de obra para a lavoura e ainda seleção do perfil fenotípico da população. Alguns políticos e intelectuais atribuía ao grande número de negros e “mulatos” as causas do pouco desenvolvimento do país em comparação com as nações européias. “o país necessitava naquele momento histórico, de imigrantes que dispusessem de capacidade técnica e de capital. Nesse sentido os grupos étnicos formados por italianos e alemães tinham maior aceitação”. 237 Num outro momento, passou-se a dar preferência por imigrantes de origem latina, como forma de minimizar impactos culturais com a população brasileira. Entrava em debate conceitos como aculturação e assimilação. Acrescenta-se a estes últimos, novas discussões que incluem o conceito de “etnicidade hifenizada” defendido por Jeffrey Lesser, como forma de explicar o sucesso de imigrantes que não estivessem dentro do perfil desejado. As estratégias incluíam a negociação da identidade, sem todavia, se deixar aculturar. Estratégias notáveis foram os esforços por conseguir mobilidade social e econômica, ora negociando suas identidades, ora as afirmando. A esse respeito, Oswaldo Truzzi é categórico ao afirmar: 236 Referido por informantes a KNOWTON, Clark. Sírios e libaneses: mobilidade social e espacial. São Paulo: Anhambi, 1961. p. 35 237 NUNES, Heliane, Prudente. A imigração árabe em Goiás. Goiânia: Editora da UFG, 2000. p. 49 133 A pluralidade de combinações entre herança cultural e as interações mantidas entre grupos e subgrupos étnicos e a nova sociedade constitui um processo muito mais rico e contradiz a noção de um padrão dominante em direção ao qual esses grupos tenderiam a aproximar com o tempo. Os imigrantes não necessariamente foram “assimilados”, mas construíram relações sociais absolutamente sobrevivência na nova terra. originais como estratégias de 238 À guisa de conclusão, percebe-se um jogo muito bem elaborado, com bases alicerçadas nas necessidades dos atores sociais envolvidos, sejam nacionais ou estrangeiros. Pode-se afirmar que alguns imigrantes entenderam o que o país almejavam e utilizaram de estratégias bem definidas para faze -los, sem contudo abandonar a referencia do país de origem. No tocante ao Estado de Mato Grosso, a partir meados do século XIX, foram elaboradas várias propostas visando o crescimento populacional e econômico da província. Os discursos de presidente de Província, e de Estado, reforçavam a imagem de indolência da população já alardeada por viajantes e cronistas que passaram pelo Mato Grosso. A tônica dos discursos comparava sempre as grandes riquezas naturais de Mato Grosso, e a “falta de braços” que as fizessem produzir. Os governantes incorporam o discurso de preguiça e indolência da população, passando a apostar na imigração como forma de povoar e desenvolver o Estado. Entretanto, ao contrário dos imigrantes que se dirigiram ao Sul do Brasil, os que aportavam em Mato Grosso não contavam com subvenções governamentais. Todas as iniciativas governamentais com o objetivo de atrair os imigrantes falharam. Os que se dirigiram para Mato Grosso o fossem europeus, sírios, libaneses entre outros, o fizeram espontaneamente, sem incentivo oficial. No capítulo 3, conclui-se que a cidade de Cuiabá vivenciava, ao modelo do Brasil, uma busca pela “modernidade” e ansiava por “braços” que fizessem a terra produzir e baratear custos como da alimentação. A exemplo dos discursos 238 TRUZZI, Oswaldo M. Serra. Patrícios, sírios e libaneses em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1995. p. 228. 134 nacionais, via na imigração européia uma saída pra solucionar tanto as dificuldades econômicas quanto traçar um perfil de população próxima ao da Europa. As estratégias de integração traçadas pelos sírios e libaneses passaram pelo o comércio, seja na prática de mascate, ou na abertura de lojas. Estratégias para realizar o sonho de ganhar dinheiro e retornar as suas terras. Entretanto como o observado nas outras regiões do Brasil, o retorno não aconteceu de maneira generalizada. Importante salientar, diante das evidências demográficas e, sobretudo com o crescimento comercial da cidade e da participação destes imigrantes nesse contexto, que a pretensão do retorno se colocava mais distante. Em vez disso, as famílias eram trazidas para Cuiabá, para trabalharem juntas. Exemplo disso são algumas lojas que em 1909 apareciam com um único dono. Posteriormente em 1920 já apresentavam sócios. Casos como o comércio de Miguel Mutran, que depois passa a se chamar Mutran & irmãos, abrindo inclusive filial, ou o caso dos irmãos César, Gabriel e Wady Saddi, cada um com suas respectivas lojas, que vieram pra Cuiabá seguindo o trajeto já feito pelo pai Nagib Saddi. Em Cuiabá, sírios e libaneses não constituíram territórios culturais e étnicos, estando em contato direto e cotidiano com a população local nascida na cidade, e com imigrantes de outras nacionalidades ali residentes. È também visível nos imigrantes, chegados na 1ª etapa,239 a integração dos mesmos à sociedade cuiabana. Isso se deve certamente ao sucesso econômico e social, e ao status conseqüente dessa mobilidade, e também a uma intensa negociação das identidades, criando novas sociabilidades, influenciando também a cultura local, sobretudo na culinária. Outro fator de adaptação foram os casamentos inter-étnicos, fora da colônia. Segundo os entrevistados, os casamentos ocorreram principalmente entre os descendentes dos imigrantes. Entretanto, não foi possível chegar a um resultado conclusivo neste trabalho. É inegável a importância dos imigrantes sírios libaneses para o desenvolvimento do estado de Mato Grosso. A incorporação desses imigrantes à vida urbana da cidade é tamanha, que em tempos atuais, passa quase despercebida 239 Segundo Claude Hajjar, a imigração síria e libanesa para o Brasil se divide em duas grandes etapas. A primeira de 186/70, até a segunda guerra mundial, de maioria cristã, e a segunda que vai desde 1945 até dias atuais, de maioria muçulmana. Cf. HAJJAR, Claude Fahd. Imigração árabe: Cem Anos de Reflexão. São Paulo: Editora Ícone, 1985. 135 a existência de logradouros públicos com os seus nomes, como a rua Sírio-libanesa, Rua Toufick Affi; Praça Rachid Jaudy; Museu do Rio, Alfredo Scaff; Avenida República do Líbano onde está localizada o clube Monte Líbano na saída para Chapada dos Guimarães.. 136 REFERÊNCIAS Arquivo Público de Mato Grosso Recenseamento Geral de 1872 – APMT Recenseamento de 1890 – APMT Recenseamento Geral de 1920 – APMT Recenseamento de 1937 – APMT Coletoria de Cuiabá, 1905 – 1920. APMT Arquivo Nacional - Rio de Janeiro Acervo: Revista do Arquivo Nacional. – v.1, n. 2, jul./dez. de 1997. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1998. Revista Nacional de imigração e colonização. 1939. 1940, 1941, 1944, 1945. 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