Título do artigo - Laboratório de Educação Matemática – LABEM
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Título do artigo - Laboratório de Educação Matemática – LABEM
Boletim do LABEM, ano 5, n. 9, jul/dez de 2014 www.labem.uff.br Nicolas Bourbaki: passado, presente e contribuições para a Matemática no Brasil Karolina Barone Ribeiro da Silva* Universidade Estadual do Centro-Oeste - UNICENTRO Resumo Este artigo apresenta resultados de um projeto de pesquisa desenvolvido junto ao Departamento de Matemática da Universidade Estadual do Centro-Oeste, em Guarapuava. Os objetivos eram elaborar uma “biografia” de Nicolas Bourbaki, investigar aspectos de suas contribuições para a matemática no Brasil e pesquisar a situação atual do grupo. Para cumprir os objetivos recorreu-se à pesquisa bibliográfica. As fontes consultadas permitiram determinar local e data de fundação do grupo, nome dos fundadores, objetivos quando da sua formação, contexto histórico-matemático da época, aspectos relacionados ao nome adotado, que novas edições da obra de Bourbaki continuam a ser lançadas e que um seminário com seu nome ocorre na França, quatro vezes por ano. Em relação às contribuições para a matemática no Brasil, foram encontradas informações no que diz respeito a cursos, seminários, conferências, publicações, inovações nos currículos de cursos de graduação e uma orientação de doutorado de destaque. Graças a este grupo e a tantos outros matemáticos estrangeiros que aqui desembarcaram a partir dos anos 30, iniciou-se a consolidação da pesquisa em matemática no Brasil. Introdução Este artigo apresenta resultados do projeto de pesquisa Aspectos da presença Bourbaki no Brasil, executado de julho de 2011 a junho de 2013 e vinculado ao Departamento de Matemática da Universidade Estadual do Centro-Oeste, campus Guarapuava. O projeto teve por objetivos específicos compor um perfil biográfico de Nicolas Bourbaki, investigar aspectos das contribuições de Bourbaki para a Matemática no Brasil e pesquisar a situação atual do grupo. O interesse pelo tema se deve ao fato de que um estudo histórico da Matemática no Brasil inclui nos voltarmos para a criação e os primeiros anos de atividades de algumas das primeiras universidades brasileiras. Com a fundação da Universidade de São Paulo (USP) e sua Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 1934, alguns matemáticos estrangeiros foram convidados para nela trabalhar. Dentre esses, pode-se destacar Georges Dumas, Paul Rivet, Jean Marx, Pierre Janet, Luigi Fantappiè e Giacomo Albanese (SILVA, 2003, p. 50). Na década de 1940, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, outros matemáticos como André Weil, Jean Dieudonné e Jean A. F. Delsart foram também convidados para atuar na USP (SILVA, 2003, p. 137). Esses matemáticos integravam um grupo denominado Nicolas Bourbaki, nome considerado “um” dos matemáticos mais influentes do século XX (EVES, 2004, p. 691). Essa influência também se verificou no Brasil, como aponta D’Ambrosio (1996, p. 54): Houve grande influência de Bourbaki no desenvolvimento da matemática no Brasil, sobretudo nas décadas de 1940 e 1950. * E-mail: [email protected] 12 Boletim do LABEM, ano 5, n. 9, jul/dez de 2014 www.labem.uff.br [...] A obra monumental de Bourbaki teve grande repercussão na educação matemática de todo o mundo por intermédio do que ficou conhecido como matemática moderna1, que teve considerável importância no Brasil. Uma “biografia” de Nicolas Bourbaki Nicolas Bourbaki é o pseudônimo adotado por um grupo de matemáticos predominantemente franceses, provenientes da Escola Normal Superior (Paris), sobre o qual se pesquisou local e data de fundação, nome dos fundadores, objetivos quando da sua formação, contexto histórico-matemático da época, aspectos relacionados ao nome adotado e situação atual de Bourbaki. Para obter estas informações foram consultados livros de história da matemática, tanto gerais quanto específicos da história da matemática no Brasil (BALL, 1960; BERLINGOFF e GOUVÊA, 2008; BOYER, 1996; CAJORI, 2007; CONTADOR, 2006; EVES, 2004; GARBI, 2006; KATZ, 1998; LINTZ, 2007; ROQUE, 2012; SILVA, 2003; SILVA, 2009; STRUIK, 1997), um artigo (SENECHAL, 1998) e uma obra específica sobre Nicolas Bourbaki, Mashaal (2007), que possibilitou comparar informações encontradas nas outras fontes com as desta última. A situação atual do grupo foi estabelecida graças ao exposto por Berlingoff e Gouvêa (2008), Mashaal (2007), em um artigo (CLARK, 2005) e predominantemente no site da Association des collaborateurs de Nicolas Bourbaki. Como em algumas fontes são citados matemáticos sabidamente do grupo Bourbaki e não é feita esta ligação de forma explícita, para determinar dentre os matemáticos especificados quais eram bourbakistas, utilizou-se como fonte complementar um site mantido pela University of St Andrews, The MacTutor History of Mathematics Archive. Data e local de fundação A data e o local de fundação do grupo são muito variáveis de acordo com a fonte consultada, conforme apresentado no QUADRO 1. QUADRO 1 – Divergências sobre data e local de criação do grupo Bourbaki Fonte Data Berlingoff e Gouvêa (2008) Fim dos anos 30 (p. 55) Boyer (1996) 1A Meados do século XX (p. 438) Local França (p. 55) Nancy (França) (p. 438) Eves (2004) 1939 (p. 691) França (p. 691) Garbi (2006) Nada consta Nada consta Katz (1998) Metade dos anos 30 (p. 813) França (p. 813) matemática moderna foi um movimento ocorrido no século XX que teve por objetivo reformular e modernizar a matemática escolar. 13 Boletim do LABEM, ano 5, n. 9, jul/dez de 2014 www.labem.uff.br Lintz (2007) Década de 1930-40 (p. 538) França (p. 538) Roque (2012) Anos 30 (p. 473) Nada consta Silva (2003) Nada consta Nada consta Silva (2009) 10/12/1934 (p. 69) Struik (1997) 1940 (p. 334) Café no Quatier Latin, em Paris (p. 69) Nada consta Ball (1960)2 não cobre o período de fundação e desenvolvimento do grupo Bourbaki. O mesmo ocorre com Cajori (2007) 3 e Contador (2006)4. Mashaal (2007, p. 9) afirma que o grupo foi fundado em 10/12/1934, no Café A. Copoulade, em Paris, informação compatível apenas com Silva (2009), segundo o QUADRO 1. Pode-se especular que esta exatidão na última obra deve-se ao fato de o autor ter consultado dois textos importantes sobre o grupo, citados na bibliografia de seu livro (páginas 114 e 120): Beaulieu (1993) e Mashaal (2000). O primeiro é de uma autora que escreveu sua dissertação sobre o trabalho desenvolvido pelo grupo de 1934 a 1944. O autor do segundo já foi mencionado anteriormente. Fundadores Quantos aos membros fundadores de Bourbaki, as informações também divergem, de acordo com o QUADRO 2. QUADRO 2 – Fundadores Autor(es) Membros fundadores Berlingoff e Gouvêa (2008) Nada consta Boyer (1996) Nada consta Eves (2004) “Acredita-se que entre os membros originais figuravam C. Chevalley, J. Delsarte, J. Dieudonné e A. Weil” (p. 691). Lintz (2007) Nada consta Silva (2003) “... o matemático francês André Weil, um dos brilhantes matemáticos de sua geração. Ele desembarcou em São Paulo, em 1945, ali permanecendo até 1947. Na França, ele participou do Seminário Gaston Julia, e foi um dos fundadores do grupo Nicolas Bourbaki (Seminário Bourbaki).” (p. 137) O último capítulo do livro é “MATHEMATICS OF THE NINETEENTH CENTURY”. O último capítulo do livro é “SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX”. 4 Último capítulo do volume II: “Os séculos XVIII e XIX”. 2 3 14 Boletim do LABEM, ano 5, n. 9, jul/dez de 2014 www.labem.uff.br Silva (2009) Henri Cartan, Claude Chevalley, Jean Delsarte, Jean Dieudonné, André Weil (p. 69) Embora Katz (1998) cite o nome do grupo, ele não faz menção direta aos seus fundadores, apenas aponta Henri Cartan e André Weil como seus integrantes (p. 813). Algo parecido ocorre em Roque (2012), contudo além de Weil é citado o nome de Dieudonné, como sendo de alguns dos seus “membros mais ilustres” (p. 475). O nome do grupo também é referido por Struik (1997), porém apenas André Weil é mencionado, conforme o trecho a seguir: [...] As matemáticas nos EUA receberam um grande impulso através da migração de europeus eminentes durante o período nazi. Já referimos a vários, entre eles Einstein, Weyl e Emmy Noether. Outros ainda são E. Artin, [...] André Weil e R. von Mises. [...] (p. 345) Garbi (2006, p. 305) não menciona o nome do grupo, apenas os de dois de seus integrantes, Jean Dieudonné e Laurant Schwartz, ao comentar no penúltimo capítulo da obra, “A Matemática contemporânea” que “muitos outros grandes matemáticos ou físicos-matemáticos do século XX” mereceriam ainda ser comentados no livro, como é o caso dos dedicados à Matemática pura, ocasião em que Dieudonné e Schwartz são citados mas, continua Garbi, “as limitações de espaço neste livro não nos permitem fazê-lo”. Por outro lado, Mashaal (2007, p. 11 e 12), nos informa que os fundadores do grupo foram Henri Cartan, Claude Chevalley, Jean Delsarte, Jean Dieudonné, André Weil e René de Possel. Mais uma vez Silva (2009) é a única obra em que a lista de fundadores está mais completa. É importante que se diga que a composição do grupo era variável e que seus integrantes deveriam se desligar dele ao completarem 50 anos. Objetivos Os objetivos do grupo ao ser formado também variam de acordo com as fontes. Berlingoff e Gouvêa (2008, p. 55-56) dizem que um dos objetivos do grupo era coletivamente escrever “um livro texto em muitos volumes, um compêndio de toda a matemática fundamental”, que eles chamaram de Elementos de Matemática. Bourbaki decidiu também “manter um seminário regular – que se tornou conhecido como “Seminário Bourbaki” – sobre o que se passava na matemática”. Boyer (1996) menciona que o grupo produziu [...] várias dúzias de volumes numa grande obra que ainda prossegue, Éléments de mathématique, que pretende captar toda a matemática que vale a pena (p. 438). Eves (2004) não explicita os objetivos do grupo, mas faz um interessante comentário de onde encontrar essa explicação: [...] O nome Bourbaki começou a aparecer em algumas notas e artigos publicados nos Comptes rendus da Academia de Ciências da França e em outros veículos. 15 Boletim do LABEM, ano 5, n. 9, jul/dez de 2014 www.labem.uff.br Depois disso começaram a aparecer os diversos volumes do grande tratado de Nicolas Bourbaki. O propósito dessa série de obras foi explicado num artigo que, numa tradução inglesa, apareceu em 1950 no The American Mathematical Monthly com o título de “The archicteture os mathematics” [...] (p. 691). O artigo mencionado acima foi lido e em momento algum traz explicitamente a explicação mencionada por Eves (2004). Ele também é citado por Mashaal (2007, p. 96), que afirma se tratar de um “manifesto ideológico de Bourbaki”, mostrando como “ele” vê a Matemática (ou as Matemáticas). Contudo não há, no artigo, referência direta à obra Elementos de Matemática. Katz (1998) afirma que [...] His original aim was to write a modern version of the classic French Cours d’analyse, the text used (in various versions) in French universities since early nineteenth century.5[...] (p. 813) Lintz (2007) e Silva (2003) não fazem menção aos objetivos. Silva (2009, p. 69) afirma que o objetivo do grupo era “redigir bons textos para suas aulas, e também redigir um tratado de Análise”. Roque (2012) afirma que o objetivo do grupo “era elaborar livros atualizados sobre todos os ramos da matemática, que pudessem servir de referência para estudantes e pesquisadores” (p. 473) e completa dizendo que “A grande obra com que esse grupo pretendia reformular toda a matemática – Elementos de matemática – era um livro-texto para ensinar análise matemática sob novas bases” (p. 475). Mashaal (2007) reproduz o trecho de uma conversa que Henri Cartan teve em 1982 com Marian Schmidt sobre a origem de Bourbaki. Nele, o matemático revela que em 1934 ele e Weil estavam na Universidade de Estrasburgo e muitas vezes trocavam impressões sobre o curso de Cálculo Diferencial e Integral que Cartan lecionava. Segundo ele, [...] A licenciatura de matemáticas compreendia três ramos: física geral, cálculo diferencial e integral, mecânica racional. Melhor dizendo, como havia apenas um certificado em matemáticas tornava-se necessário incluir nele muitas outras matérias. Muitas vezes me interrogava sobre a forma como deveria conduzir este curso, uma vez que as obras existentes não me pareciam satisfatórias no que se refere, por exemplo, à teoria dos integrais múltiplas e à fórmula de Stokes. E era sobre isto que falava com André Weil que um dia me disse: “agora basta, torna-se necessário passar à escrita. É preciso escrever um bom tratado de análise e depois não se fala mais nisso!” (p. 9) Ainda na obra de Mashaal, é citado um trecho da autobiografia de Weil, no qual este último confirma a versão de Cartan, dizendo que [...] num dia de inverno, pelo fim do ano de 1934, acreditei ter tido uma ideia luminosa para acabar com as perguntas constantes do meu colega (Henri Cartan). Somos cinco ou seis amigos que têm a seu cargo ensinar a mesma matéria em várias universidades. Juntemo-nos, cheguemos a um consenso de uma vez por todas e, depois disso, ficarei livre de tuas perguntas. Eu ignorava então que tinha acabado de nascer Bourbaki.” (p. 10) Seu objetivo original era escrever uma versão moderna do clássico francês Cours d’analyse, o texto usado (em várias versões) em universidades francesas desde o início do século XIX. [tradução nossa] 5 16 Boletim do LABEM, ano 5, n. 9, jul/dez de 2014 www.labem.uff.br Mashaal ainda completa dizendo que o objetivo inicial de Bourbaki era redigir um [...] tratado de análise para o ensino da licenciatura em matemáticas, destinado a preencher falhas e insuficiências dos manuais existentes; tratava-se principalmente do Curso de análise de Edouard Gousart, cuja primeira edição datava de 1902 e era largamente utilizada na França.” (p. 45). Desta forma, apenas Katz (1998) e Silva (2009) se aproximam mais das explicações encontradas em Mashaal (2007). Cabe ressaltar que o objetivo destacado por Mashaal se tornará muito mais abrangente. Em uma entrevista (SENECHAL, 1998, p. 3), o bourbakista Pierre Cartier lembra que o grupo compôs mais de 10.000 páginas, contidas em 40 volumes. Contexto histórico-matemático (Mashaal, 2007) O que acontecia na França na época em que Nicolas Bourbaki “nasceu”? A matemática francesa estava defasada não só em Análise, mas em outras áreas da Matemática, sem contato com os avanços alcançados em outros países, especialmente em Álgebra, na Alemanha. Os problemas teriam começado na Primeira Guerra Mundial. Quase metade dos alunos que haviam ingressado na Escola Normal de 1911 a 1914 tinham morrido no conflito. Outras instituições de ensino superior tinham sofrido o mesmo tipo de perdas. O trecho de uma conversa que Dieudonné teve com M. Schmidt deixa claras as consequências destas perdas: [...] os jovens matemáticos mortos na guerra deveriam ter continuado os trabalhos de Poincaré ou de Picard. A minha geração sentiu de forma muito dura as consequências desta interrupção que se prolongou durante 15 anos: os nossos professores tinham 20 ou 30 anos mais que nós, estavam a par, sobretudo das matemáticas da sua juventude e não nos ensinavam teorias novas. [...] Ora a verdade é que foi – diga-se sem que eu esteja a gabar-me – a fundação do grupo Bourbaki que permitiu renovar uma tradição que estava a desaparecer (MASHAAL, 2007, p. 53). Segundo André Weil, muito do que aprendiam na graduação era fruto de cooperação e estudo entre os alunos e não do contato com os professores, ainda que tenham aprendido muito com Hadamard. Devido a esta escassez de informação, muitos dos futuros integrantes de Nicolas Bourbaki foram completar seus estudos em outros países, como Weil (Itália e Alemanha), Szolem Mandelbrot (Itália e Estados Unidos), Paul Dubreil (Alemanha e Itália), Claude Chevalley (Alemanha), René de Possel (Alemanha e Hungria), Jean Dieudonné (Estados Unidos, Alemanha e Suíça), Charles Ehresmann (Alemanha e Estados Unidos) e Jean Leray (Alemanha). Explicações para o nome do grupo O nome Nicolas Bourbaki não foi adotado no ano de criação do grupo. Foi somente em julho de 1935, no “plenário de fundação”, que os membros decidiram utilizar o pseudônimo 17 Boletim do LABEM, ano 5, n. 9, jul/dez de 2014 www.labem.uff.br coletivo Bourbaki. O Nicolas seria “necessário” apenas meses depois. Uma das vantagens de se adotar um pseudônimo era evitar a extensa lista de nomes que assinariam a obra que começava a ser produzida, nomes estes que variariam com o tempo (MASHAAL, 2007). Ao ler o nome do grupo, logo vem à mente a curiosidade sobre sua origem. Poucas são as fontes que a explicam. Várias justificativas foram encontradas para o “Bourbaki” e poucas para “Nicolas”. Berlingoff e Gouvêa (2008, p. 55), Boyer (1996, p. 438) e Eves (2004, p. 692) afirmam que “Bourbaki” teria inspiração no nome do general Charles Denis Sauter Bourbaki6 (1816-1897), que se tornou famoso na Guerra Franco-Prussiana. Eves (2004) dá também outra explicação. Nicolas Bourbaki teria sido o nome escolhido por um ator amador ou um calouro que, em 1930, na Escola Normal Superior, foi responsável por uma falsa aula na Instituição. Mashaal (2007) inicialmente comenta algo parecido aos últimos dois parágrafos, dizendo que Em 1923 Raoul Husson, então aluno do 3° ano da Escola normal aceite em 1921, pregou uma partida aos recém-chegados, ou seja, aos alunos do primeiro ano da Escola normal. Anunciou em panfletos que um certo professor Holmgren viria dar uma conferência na Escola e que os alunos estavam convidados para assistir (p. 30). O mesmo autor afirma que André Weil, em sua autobiografia, conta que Raoul apresentouse aos calouros disfarçado, usando barba, forçando sotaque e terminou a sua apresentação com um teorema de Bourbaki. Ele teria escolhido o nome do teorema com base no general Charles Denny Sauter Bourbaki, "que tomou parte e se destacou na guerra franco-prussiana de 1870" (p. 31). Uma explicação totalmente diferente é mencionada por Mashaal (p. 32), como tendo sido dada pelo matemático Sterling K. Berberian, da Universidade do Texas, em 1980, na revista The Mathematical Intelligencer, que comenta que o nome Bourbaki tinha sido utilizado pelo escritor Octave Mirbeau em uma obra de 1900, intitulada Le journal d'une femme de chambre. A obra conta a história de um capitão que tem um ouriço chamado Bourbaki, "um animal inteligente e dissimulado", insaciável, que come de tudo. Berberian sugeria que o nome Bourbaki tinha sido adotado talvez por refletir "a ambição e a gulodice matemática do tratado que o grupo projectava escrever". Quanto ao “Nicolas”, Berlingoff e Gouvêa (2008) afirmam que “A motivação para “Nicolas” não é clara, mas sua escolha tornou as iniciais, N. B., um bônus atrativo” (p. 55). Mashaal (2007, p. 34) informa que primeiramente foi utilizada apenas a inicial "N" antes de “Bourbaki”, uma "letra tradicionalmente utilizada nos cartazes que anunciavam o curso em vez do nome do professor se este ainda não estava escolhido". A necessidade de um nome próprio surgiu no outono de 1935, quando o grupo decidiu tornar Bourbaki oficial. Para isso queriam publicar um artigo assinado com o seu pseudônimo nos Relatórios da Academia das Ciências. Porém, qualquer autor que fosse submeter um artigo aos 6 O general vinha de família de origem grega, segundo Mashaal (2007, p. 30). 18 Boletim do LABEM, ano 5, n. 9, jul/dez de 2014 www.labem.uff.br Relatórios, precisaria informar o seu nome completo. Em uma das reuniões do grupo, Éveline, esposa de René de Possel e futura mulher de Weil, escolheu o nome Nicolas (MASHAAL, 2007, p. 34). O verdadeiro Bourbaki Uma curiosidade acerca de Bourbaki é revelada por Mashaal (2007, p. 36-40). Em 1948 Henri Cartan, um dos fundadores do grupo, recebeu uma ligação de Nicolaides Bourbaki, adido comercial da embaixada da Grécia em Paris. Eles se encontraram e Nicolaides explicou que Bourbaki era o nome de uma família tradicional na Grécia e que ele tinha sido informado por um artigo escrito por André Lichnerowicz, na revista La Vie intellectuelle, da existência de um grupo de pessoas utilizando este nome. O adido tinha sido então, incumbido de se informar quem estava utilizando um nome tão importante sem autorização. Primeiramente Nicolaides tinha procurado o editor das obras de Bourbaki, M. Freymann, que respondeu às perguntas do adido dizendo que ele deveria procurar Henri Cartan. Esclarecida a situação, Nicolaides tornou-se amigo do grupo e por muitos anos participou de seus jantares. Nicolas Bourbaki ainda existe? Os volumes de Elementos de Matemática continuam sendo produzidos? Berlingoff e Gouvêa (2008) comentam que três vezes por ano é realizado em Paris o Seminário Bourbaki7, “um dos mais importantes seminários sobre progressos recentes na área, e no qual os melhores estudiosos discutem novas idéias importantes e teoremas ante uma audiência repleta de matemáticos de todo o mundo” (p. 56). Contudo, os mesmos autores destacam que as publicações dos Elementos de Matemática se reduziram. Mashaal (2007, p. 72) afirma que entre 1980 e 1983 foram publicados apenas cinco volumes da obra do grupo, novos ou reeditados e que somente em 1998 foi publicado mais um volume (o décimo capítulo do livro de Álgebra Comutativa), o último dos Elementos até a época da obra de Mashaal, com tiragem de centenas de exemplares, enquanto que as tiragens dos anos 60 estavam na casa dos milhares. Clark (2005, p. 83) informa que o último trabalho de Bourbaki tinha apenas 187 páginas e dele foram feitas 200 impressões. A mesma autora obteve informações da “secretária” de Bourbaki que uma versão revisada do capítulo 8 do volume sobre Álgebra, dos Elementos, estava sendo preparada e que Bourbaki estava reescrevendo o capítulo 11 do volume sobre Topologia Geral. As informações mais atuais sobre atividades que divulgam o nome do grupo estão disponíveis no site da Association des collaborateurs de Nicolas Bourbaki, no qual é possível saber do andamento do Seminário Bourbaki e da obra Éléments de mathématique (os Elementos). Em 29 de abril de 2015 constava no site que uma nova edição (1ª edição: 1958) do capítulo 8, do volume sobre De acordo com Mashaal (2007, p.128), este evento teve início em 1948. Contudo, em 1933 o grupo Bourbaki, com auxílio de Gaston Julia, professor de alguns de seus integrantes, já havia dado início a este tipo de evento, chamando-o inicialmente de Seminário de Matemáticas (ou Seminário Julia). Este evento terminou em 1939, devido à guerra e em 1948 foi retomado como Seminário Bourbaki. 7 19 Boletim do LABEM, ano 5, n. 9, jul/dez de 2014 www.labem.uff.br Álgebra, dos Elementos, havia sido publicada em 2012 (concretização do que havia sido comentado no parágrafo anterior). Em 2013 ocorreram quatro edições do Seminário Bourbaki: em janeiro, março, junho e novembro. Em junho, dentre os palestrantes estava o bourbakista Pierre Cartier (1932 - ), que participa do evento desde 1953. Em 2014 novas edições ocorreram nos mesmos meses citados acima. As duas primeiras de 2015 também já se efetuaram. Não foi possível determinar se ainda há um grupo de matemáticos que se intitulam Nicolas Bourbaki. Nicolas Bourbaki no Brasil Para elaborar esta seção foram consultadas fontes que tratam especificamente da história da matemática no Brasil (ACERVO HISTÓRICO VIRTUAL DO IME-USP; ALBUQUERQUE e HAMBURGUER, 1996; CANAL CIÊNCIA; CASTRO, 1953; D’AMBROSIO, 2008; NOBRE, 1997 e SILVA, 2003; 2009). Os integrantes do grupo que vieram para o país foram: Alexander Grothendieck (1928-), André Weil (1906-1998), Charles Ehresman (1905-1979), François Bruhat (1929-), Jean Delsarte (1903-1968), Jean Dieudonné (1906-1992), Jean-Louis Koszul (1921-), Laurent Schwartz (1915-2002), Pierre Samuel (1921-2009), Roger Godement (1921-) e Samuel Eilenberg (1913-1998). A seguir são destacadas as contribuições desses matemáticos, no que diz respeito a cursos, seminários, conferências, publicações, inovações nos currículos de cursos de graduação e uma orientação de doutorado de destaque. André Weil Um dos fundadores do grupo Bourbaki, atuou na USP de 1945 a 1947. Sob sua influência foi fundada, em 1945, a Sociedade Matemática de São Paulo, responsável pela publicação do Boletim da Sociedade de Matemática de São Paulo, que obteve reconhecimento internacional e no qual foram publicados trabalhos de matemáticos como J. Delsarte, A. Grothendieck e J. Dieudonné. Este boletim “veio contribuir decisivamente para que se rompesse o isolamento científico em que viviam poucos matemáticos brasileiros” (CASTRO, 1953, p. 74). De acordo com D’Ambrosio (2008, p. 85), André Weil, em São Paulo, e Antonio Monteiro, no Rio de Janeiro, foram os principais responsáveis pela formação de uma comunidade brasileira de matemáticos de alto nível. Ambos chegaram em 1945 e imediatamente se dedicaram a completar a formação dos jovens pesquisadores que haviam sido iniciados pelos italianos e a identificar e atrair novos talentos. A partir de 1945, Weil passou a dar aulas de Análise Superior na USP (LIMA, 2012, p. 91). Alexander Grothendieck Chegou à USP logo depois de Weil e trabalhou também no Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), em seguida à sua fundação, ocorrida em 1952. Charles Ehresman 20 Boletim do LABEM, ano 5, n. 9, jul/dez de 2014 www.labem.uff.br Trabalhou no Departamento de Matemática da Faculdade Nacional de Filosofia8 (FNFi-RJ), na década de 50, no Instituto de Física e Matemática da Universidade de Recife 9, a partir da mesma década e na USP em 1960. Alexandre Augusto M. Rodrigues, docente da USP, orientou, em conjunto com Ehresman, um curso extracurricular sobre Sistemas Diferenciais Exteriores, em 1959. Este curso influenciou no Brasil o crescimento do interesse por Geometria Diferencial. François Bruhat A partir da década de 50, atuou no Instituto de Física e Matemática da Universidade de Recife, onde ministrou, em 1957, um curso de dois meses sobre álgebra de Lie, grupos de Lie e aplicações. Jean Delsarte Assim como Grothendieck, chegou à USP logo depois de Weil. Nesta instituição orientou Elza Furtado Gomide que, em 27 de novembro de 1950, tornou-se a primeira brasileira a obter o título de doutora em Ciências (Matemática), com a tese Sobre o Teorema de Artin-Weil, cujo tema havia sido sugerido por André Weil. Entre 1949 e 1951 Delsarte passava três meses por ano no Brasil, segundo Cândido Lima Silva Dias, em entrevista concedida à Vera Rita da Costa, publicada em 1997, disponível na seção Notáveis da Ciência e Tecnologia, no site Canal Ciência. Jean Dieudonné Atuou na USP de 1946 a 1947 e no Departamento de Matemática da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi-RJ), na década de 50. Ministrou um curso de extensão em Álgebra, Teoria dos Corpos Comutativos, na USP, entre 1946 e dezembro de 1947, que atraiu muitos interessados. Luiz H. Jacy Monteiro redigiu as notas de aula do curso, depois publicadas em livro pela Sociedade de Matemática de São Paulo. Um artigo escrito por ele, publicado na França em 1942, iniciou no Brasil o interesse por estudos sobre Espaços Vetoriais Topológicos, que se destacaram entre 1942 e 1954. Em 1944, com a criação da Teoria das Distribuições, por Laurent Schwartz, a motivação para pesquisas em Espaços Vetoriais Topológicos aumentou ainda mais. Na FNFi, Dieudonné ministrou o curso Análise Harmônica, em 1952. Além de Dieudonné, Delsarte e Weil também ministraram diversos cursos sobre Álgebra Abstrata nesta época. Eles proporcionaram a ampliação dos estudos e pesquisas em Álgebra em nosso país, iniciados com a chegada de Luigi Fantappié e Giacomo Albanese à USP em 1934 e 1936, respectivamente. 8 9 Hoje parte da UFRJ. Atual UFPE. 21 Boletim do LABEM, ano 5, n. 9, jul/dez de 2014 www.labem.uff.br Estudos e pesquisas em Álgebra Linear também foram introduzidos no país pelo grupo. Em entrevista concedida a Ubiratan D’Ambrosio (NOBRE, 1997), Elza Furtado Gomide (1925 -) ressalta que Bourbaki introduziu a disciplina de Álgebra Linear no currículo da graduação. Jean-Louis Koszul Informações sobre as contribuições deste bourbakista para a matemática no Brasil foram encontradas apenas no Acervo Histórico Virtual do IME-USP, em dois artigos, citados nos próximos parágrafos. Koszul ministrou na USP o curso Faisceaux et Cohomologie, cujas notas de aula foram publicadas em 1957. Em setembro e outubro de 1958 foi responsável por seminários sobre Espaços Simétricos, na mesma instituição (GORODSKI, s.d., p. 4). Jean-Louis foi professor no IMPA, conforme mencionado por ele em Koszul (1959, p. 2). Laurent Schwartz Trabalhou no Departamento de Matemática da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi-RJ), na década de 50 e no Instituto de Física e Matemática da Universidade de Recife, a partir da mesma década. Pierre Samuel Atuou como professor visitante no IMPA, em 1958 e também no Instituto de Matemática da Universidade Federal do Ceará, na década de 60. Em 1958, no IMPA, ministrou um curso de Introdução à Geometria Algébrica e outro sobre Álgebra Local. O seu texto Elementos de Geometria Algébrica, publicado nas Notas de Matemática n° 18, serviu como base para um curso ministrado em 1959, por Alberto de Azevedo, L. H. Jacy Monteiro e Renzo Piccinini. Roger Godement Trabalhou no Instituto de Física e Matemática da Universidade de Recife, a partir da década de 50. Lá, ele e outros estrangeiros, como François Bruhat, Laurent Schwartz e Charles Ehresman [...] iniciaram e mantiveram estudos matemáticos de graduação e de pósgraduação, tanto quanto seminários de formação, visando complementar a formação de graduação dos jovens estudantes, bem como aperfeiçoar e atualizar a formação científica de licenciados e dos professores assistentes (SILVA, 2003, p. 141). Godement ministrou, em 1956, no instituto mencionado, um curso de três meses sobre variáveis diferenciáveis e análise harmônica e em 1961 e 1962, minicursos e conferências, nos quais estiveram presentes jovens matemáticos de São Paulo e Rio de Janeiro. Além disso, um dos títulos da série Textos de Matemática (criada pelo professor Alfredo Pereira Gomes, um dos responsáveis pela criação do Instituto de Física e Matemática da Universidade de Recife), foi Variétés Différentiables, de Roger Godement. 22 Boletim do LABEM, ano 5, n. 9, jul/dez de 2014 www.labem.uff.br Samuel Eilenberg Juntamente com Koszul, foi difícil obter informação sobre a atuação deste matemático no Brasil. Contudo, graças à entrevista concedida por Cândido Lima da Silva Dias a Ubiratan D’Ambrosio em 1991 e publicada na Revista Brasileira de História da Matemática (2007, p. 261), foi possível estabelecer ao menos o período em que o topólogo Eilenberg esteve na FFCL da USP: três meses do ano de 1952. Considerações finais Os ideais matemáticos de um grupo formado na França em 1934 retumbam ainda hoje na Matemática mundial e deixaram sua marca também na Matemática no Brasil. O grupo Bourbaki e tantos outros matemáticos estrangeiros que aqui desembarcaram a partir dos anos 30, contribuíram para o início da consolidação da pesquisa em Matemática no País. Espera-se que este artigo estimule novos estudos sobre Nicolas Bourbaki. Referências ACERVO HISTÓRICO VIRTUAL DO IME-USP. Apresenta informações sobre história da matemática no Brasil. Disponível em: <http://www.ime.usp.br/acervovirtual/>. Acesso em: 17 mar. 2013. ALBUQUERQUE, I. F. M.; HAMBURGUER, A. I. Registros de Interações de Luiz Freire (Recife, 1896 – 1963) com o Contexto Francês de Idéias. In: HAMBURGUER, A. I. et al. (Org.). A ciência nas relações Brasil-França (1850 – 1950). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Fapesp, 1996. p. 205-228. ASSOCIATION DES COLLABORATEURS DE NICOLAS BOURBAKI. 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