dealey matança olhar zona plaza atirador

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dealey matança olhar zona plaza atirador
“Gloria al bravo pueblo!”
A GUERRA
MIDIÁTICA
NA VENEZUELA
MARIO DRUMOND
MDEditor
Copyright©2007 Mario Drumond
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“Gloria al bravo pueblo!”
A Guerra Midiática na Venezuela
e outros escritos bolivarianos
“¡Gloria al bravo pueblo!”
La Guerra de los medios de comunicación en Venezuela
Libro-reportaje echo totalmente por los recursos de navegación en la Internet. El autor, Mario
Drumond*, acompañó los hechos que ocurrieron entre los meses de diciembre de 2006 a julio
de 2007, durante los cuales se ha trabado una verdadera batalia de los medios de
comunicación motivada por la decisión del gobierno Hugo Chávez de no renovar la concesión
publica de canal abierto para la RCTV (Radio Caracas Televisión), emisora privada mas
antigua y hasta entonces líder de audiencia televisiva eu Venezuela.
Por ser una guerra de los medios de comunicación y haber sido acompañada por los señales
en vivo, páginas y videos disponibles en los sitios de los principales vehículos implicados, el
reportaje reivindica su validad y autoridad, mismo que el periodista no estuviese presente, en
persona, en aquellos acontecimientos que calentaron las calles y el pueblo venezolanos.
*Mario Drumond es escritor, periodista, artista gráfico e editor. Actua en la resistencia cultural desde el inicio de
los años 70. En 1974, fundó la Editora Cordel (libros y periódicos) y, en 1980, la Oficina Goeldi (grabados y
ediciones de arte), prolíficas casas editoras que dirigió hasta 1990. Por su acción multidisciplinar, recibió el
Premio Candango (Mejor Película del Festival de Cinema de Brasília, 1981) e el Premio Jabuti (Mejor Libro de
Arte, Câmara Brasileña del Libro/SP, 1984). Es autor de obras literarias de ficción, ensaística, planes de
películas y de espectáculos, algunos de ellos premiados e distinguidos en nivel nacional y en el exterior.
Desde 2002, colabora con la revista Caros Amigos (San Pablo, Brasil).
Mario Drumond
Belo Horizonte – Brasil
2007
1
2
Sumário
Prefácio
Uma grande reportagem com os olhos livres
Gilberto Felisberto Vasconcellos
5
Introdução
Oswald de Andrade e José Carlos Mariátegui
7
A Guerra Midiática na Venezuela
9
Apêndice
Neoliberalismo à brasileira
89
Escritos Bolivarianos
O Audiovisual do Novo Mundo
95
O Pacto do Novo Mundo
99
A TeleSur
123
Festa Latinoamericana
131
Orelhas
Olhar de condor
José Sette
3
Do autor (obras mais recentes):
Dans L'Air - A via Santos-Dumont
(MDEditor, Rio de Janeiro, 1996)
Alô Alô Rogério Sganzerla
(MDEditor, Belo Horizonte, 2004)
Tudo é Brasil - Fragmentos da Obra Literária de Rogério Sganzerla
(Letrad'agua, Florianópolis, 2005)
Tudo é Brasil - Frammenti dell'opera letteraria di Rogério Sganzerla
(Museo Nazzionale del Cinema, Torino, Itália, 2006)
O autodesenvolvimento de Marcello Guimarães (2007, em fase de finalização)
Contos anti imperialistas (2008, em preparo)
4
Uma grande reportagem com os olhos livres
Gilberto Felisberto Vasconcellos
Tipógrafo, internauta, escritor, jornalista, Mario Drumond consegue a proeza de,
arranchado em Belo Horizonte diante de um computador, lucidamente inteirar-se do que
está acontecendo na Venezuela de Hugo Chávez, talvez até com mais argúcia e
profundidade de que quem está lá envolvido no processo revolucionário. Enquanto por
estas bandas, nestes Brasis, a pasmaceira generalizada é reacionária, sem dúvida reflexo de
um governo multinacionalizado, comandado por interesses estrangeiros, a Venezuela de
Hugo Chávez coloca em cena o que pareceria ter sumido do mundo: o sujeito histórico ou a
idéia de vanguarda. Isso significa negar na prática a ideologia da impotência inoculada
pelas metrópoles imperialistas nas colônias ou nos países semicoloniais. Esse é o traço mais
relevante - essa gana de viver e de mudar as condições materiais da vida - que sobressai
hoje na Venezuela, a lembrar a heróica Palestina.
O grande mérito de Mario Drumond como pesquisador livre e independente é mostrar quão
determinante, para o destino de um povo, é o surgimento de um autêntico líder. Isso para
nós, brasileiros, é um alento, porque tivemos as cabeças cortadas desde 1964. Não por
acaso na prosa oswaldiana de Mario Drumond ressurge volta e meia o vulto de Leonel
Brizola, o último líder brasileiro nacionalista que denunciou a essência do nosso processo
civilizatório: o saqueio das riquezas, o roubo imperialista do trabalho do povo, enfim, as
"perdas internacionais" da economia.
Outro dado fundamental que se depreende dessa reportagem política de Mario Drumond,
que traz à baila o cinema de Glauber Rocha, é ter mostrado a conexão entre as Forças
Armadas nacionalistas de Hugo Chávez e a massa subproletária e marginalizada da
Venezuela.
Ainda outro elemento que merece observação é a análise feita por Mario Drumond do
estágio videofinanceiro do imperialismo neste século XXI, em que a mídia - os meios de
comunicação de massa - aparece como um dos principais agentes da reação histórica, no
caso da Venezuela como dispositivo golpista para derrubar o líder popular Hugo Chávez,
mas o comandante bolivariano está edificando um sistema de comunicação do povo, que
ineludivelmente acabará por derruir o aparato midiático oligárquico e imperialista. Não se
trata absolutamente de afirmar que a televisão é o motor da história neste século XXI, mas
sim que a luta de classes no capitalismo videofinanceiro está necessariamente determinada
pelo aparelho televisivo, aquilo que o inesquecível marxista venezuelano Ludovico Silva
conceituou como sendo "a mais-valia ideológica".
A única iniciativa de que carece ainda o governo Hugo Chávez é implantar um sistema de
microdestilarias de álcool em pequenas propriedades, valendo-se dos recursos auferidos do
hidrocarboneto (inclusive produzindo e exportando adubo nitrogenado petrolífero para a
agricultura dos países frios e temperados) com o objetivo de fazer a travessia energética
rumo à biomassa vegetal do trópico equatoriano. Sob esse ângulo, é um primor um outro
livro do autor, que está em adiantado preparo, sobre o invento tecnológico de Marcelo
Guimarães, um dos ilustres cientistas das escola da biomassa, cujo pensamento oriundo e
haurido dos trópicos é imprescindível à edificação do socialismo do século XXI, que será
necessariamente do ponto de vista energético o socialismo da fotossíntese. Equívoco
político, além de atropelo à ciência, é considerar o álcool-combustível um produto do
5
latifúndio e incompatível com a agricultura alimentar, como se houvesse antítese entre
energia da biomassa (álcool e óleos vegetais) e produção de comida. Esse raciocínio
abstrato, que identifica álcool combustível com plantation latifundiária multinacional,
demoniza a cana-de-açúcar, descuidando da possibilidade (sobretudo com o inevitável
ocaso do petróleo) desta milagrosa gramínea vir a ser a planta fornecedora de energia à
construção do socialismo.
A cana-de-açúcar é determinada pelo regime social e de propriedade, e não o inverso.
Dialético, Mario Drumond, neste livro ousado, focalizando o presente como história,
sintonizou a revolução bolivariana às microdestilarias de álcool, porque a Venezuela
equatorial de Hugo Chávez detém as condições políticas e econômicas de combinar a
energia do passado (o petróleo) com a energia do futuro: a biomassa.
Munida da idéia diretriz anti-imperialista, sem a qual a Pátria Grande latino-americana não
se torna realidade, a Venezuela poderá vir a ser, neste limiar do século XXI, o "lugar da
aceleração evolutiva", como dizia Darcy Ribeiro acerca do processo civilizatório no
mundo.
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Oswald de Andrade e José Carlos Mariátegui
Revendo, reencontrando e redescobrindo a obra de Mariátegui, muito por influência de
Hugo Chávez, que se esmera em citá-lo sempre que surge a oportunidade, encontrei uma
curiosa novidade (pelo menos para mim): uma sintonia de espírito, uma irmandade de
pensamento e uma incrível afinidade de idéias entre ele e Oswald de Andrade.
Estou certo de que Mariátegui não conheceu a obra de Oswald, e sei, também, que Oswald
não conheceu a de Mariátegui. É possível até que, sem se dar conta um do outro, tenham se
encontrado pessoalmente em Paris ou na Itália, numa roda de conhecidos, num café ou nas
noites boêmias, já que andaram pelos mesmos caminhos das primeiras décadas do século
20 na Europa revolucionária, conheceram muitas mesmas pessoas, e, pelo menos em uma
oportunidade, coincidiram suas estadias em Paris. Aliás, são muitas as coincidências que
podem ser anotadas nas biografias e obras dos dois gêmeos de gênio latino-americanos, até
1930, quando prematuramente faleceu Mariátegui.
Oswald viveu até 1954; eis por que, além de conhecer bem a obra que nos legou, sei que ele
não teve acesso a de seu irmão em gênio, pois só nos anos 60 as jovens gerações de
revolucionários brasileiros começaram a se interessar pela América Latina e deram com a
obra do mestre peruano. É possível que Darcy Ribeiro tenha algo a ver com isso.
Oswald e Mariátegui foram duas grandes expressões de uma mesma geração: a geração
modernista dos anos 20. Oswald nasceu em 1890, Mariátegui em 1894. Exatamente entre
os anos 1911 e 1919, ambos exerceram, com ousadia e criatividade, um prolífico
jornalismo crítico, literário e político. E jornalistas permaneceram - independentes! - até o
último dia de suas existências. Ambos descortinaram as origens culturais e a realidade de
suas terras natais em viagens à Europa, e ambos foram pioneiros em deduzir, nas
civilizações do índio americano e na importância da cultura européia, a modernidade
latinoamericana e a revolução socialista que dela seria resultante histórica e lógica.
Ambos romperam decididamente com a cultura colonizada, de importação, e abriram as
mentes da geração a que pertenciam para a modernidade universalista e revolucionária dos
trópicos, para a cultura miscigenada de criação antropofágica e de exportação da grandeza
libertária de homens e mulheres índios, negros, brancos e morenos ao romper os grilhões da
exploração imperialista sobre nossas terras, nossos povos.
Em Oswald, "a revolução caraíba". Em Mariátegui, "o socialismo indo-americano".
Ambos fundamentaram-se filosoficamente, desde Nietszche e a vanguarda do pensamento
crítico europeu, em amálgama às nossas raízes primitivas, indígenas e próprias. Ambos
declararam e publicaram suas predileções por escritores vanguardistas como James Joyce e
Fedor Gladkov, cujas obras Ulisses e Energia, respectivamente, deveriam, segundo
Mariátegui, "ser livro de cabeceira dos revolucionários", e que Oswald (que às mesmas
duas obras acrescentava Montanha Mágica, de Thomas Mann) considerava como "marcos
antinormativos", os "romances da construção socialista".
E ambos eram "contra a cópia" e "pela invenção e a surpresa" (as aspas remetem-nos aos
dois autores, simultaneamente) e expressaram tais pensamentos criadores nas línguas irmãs
quase como se um fosse tradução do outro, porém, são espíritos gêmeos!
7
Em 1923, quando Mariátegui retorna da Europa e dá conferências em Lima, Oswald está
em Paris, dando conferências na Sorbonne. Falam de arte, da crise da economia burguesa,
da revolução cultural e do novo mundo.
Entre 1926 e 1930, Mariátegui edita a Revista Amauta. Em 1928 e 1929, Oswald edita a
Revista de Antropofagia. Ambas recuperando a cultura indígena e a pré-história americana
para a revolução socialista na "América do Sol".
Fico apenas nestes poucos contatos de superfície que já dão uma idéia da congenialidade
dos dois, e deles com outros contemporâneos como Fernando Pessoa, Mario Sá Carneiro,
Mayakowski e Garcia Lorca, só para não sair da esfera da poesia que no espírito de todos
predominou de maneira determinante, na posição mais elevada que possa alcançar o
pensamento criador: a de "coordenador de toda a ação humana", como Oswald definia o
papel do poeta, quase exatamente como Mariátegui: "tudo o que é humano é nosso".
Faço essa introdução porque foi pensando neles e na irmandade que cultivaram sem nunca
se terem conhecido, nem por suas obras (pensavam a mesma revolução em dois idiomas
irmãos), que escrevi o registro deste que considero um dos nossos mais importantes fatos
históricos, no raiar do novo século. Se a paciência do leitor permitir que vá até o final, verá
que devo a ambos as conclusões que fecham este trabalho. Sem eles, faróis de primeira
grandeza, e outros como eles, que iluminam as estradas da história, do pensamento e da
literatura de Nuestra América, eu não teria como chegar até lá.
São as estradas do conhecimento e da conciência nacional que todos os revolucionários
temos de trilhar, desde o obscuro recolhimento deste autor no labor de suas linhas até a
fulgurância da estrela histórica e decisiva de um Hugo Chávez, no comando da vitoriosa
Revolução Bolivariana na Venezuela.
O autor
8
A Guerra Midiática na Venezuela
Mario Drumond
Belo Horizonte - Brasil
abril/maio/junho/2007
9
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A Guerra Midiática na Venezuela
"Fica de pé, fulgurante, a tese de Marx de que nas colônias o único meio que os
exploradores encontram para o seu rápido progresso econômico é a escravidão. Aqui
tivemos: a escravidão índia - finalidade heróica do bandeirismo inicial; a escravidão
africana - que Las Casas, o apóstolo da liberdade do índio, admitia; a escravidão do
colono - com a comédia da imigração. É lógico e justo que um dia os descendentes dos
índios, dos pretos e dos colonos tirem a forra." (Oswald de Andrade, Enciclopédia do Povo
Brasileiro, 1932)
Sexta-feira, 13 (de abril de 2007). "A alegria é a prova dos nove". São 16h em Caracas, e a
avenida está coberta por milhões de pessoas vestidas de vermelho e alguns milhares, de
verde, todos dançando um merengue arretado, muito bem tirado, ao vivo, por um conjunto
instrumental e cantores populares. É festa do povo, folia na rua. É o Dia Nacional da
Resistência, e os de verde são recrutas do (novo) exército popular de resistência e cadetes
do exército regular do país. O país chama-se Venezuela, e a festa comemora cinco anos de
um acontecimento inédito no continente sul-americano: o povo e as Forças Armadas, em
organização conjunta e espontânea, reverteram um golpe de estado comandado diretamente
pelos poderes imperiais. Em menos de 48 horas depuseram o ditador fascista e a camarilha
golpista, libertaram o presidente legítimo (que fora sequestrado, estava preso e condenado à
morte), colocaram nas mãos dele o poder que lhe fora usurpado e puseram para correr os
agentes do império, os locais e os estrangeiros. Depois, bateram no peito e desafiaram o
império: - "Aqui, não!" Missão cumprida, presidente bem guardado no Palácio, voltaram a
seus lares e quartéis para dar continuidade à Revolução Bolivariana, sob a liderança do
reempossado Comandante Hugo Rafael Chávez Frías.
Em 11 de abril de 2002, os agentes do império deram o golpe e tomaram o Palácio. Em 13
de abril, foram postos no olho da rua. "Todo 11 tiene su 13", foi o título desafiador da festa
comemorativa do primeiro lustro daquele evento histórico. A câmera de viVe TV procura
alguém no meio da multidão. Afinal, o encontra, é ele, "el Comandante", colecionador de
várias tentativas de magnicídio e permanentemente ameaçado de morte pela maior e mais
poderosa quadrilha de gangsteres do mundo. Lá estava ele, à vontade, abraçando, beijando
e sendo beijado, no miolo tumultuado e alegre da fuzarca. Uma boa meia-hora se passa até
que, afinal, ele suba ao palanque e ocupe o pódium de orador. Mas, antes de falar, ele leva
aos olhos um poderoso binóculo ("há que usar binóculos") a perscrutar a multidão, até que
a mira alcance o fim distante da imensa avenida - superlotada! Em seguida, tira o binóculo
e exibe às câmeras um semblante sereno e solene de chefe de Estado (latino-americano).
Um silêncio respeitoso toma conta da avenida: o "Homem do Equador" vai falar.
A Guerra dos Frames
Mas, ao invés de falar, Chávez canta: "Gloria al bravo pueblo...". Com voz afinada e bem
colocada, ele puxa o Hino Nacional venezuelano e é acompanhado pela multidão. A récita
sai tão boa que, pelos novos canais de TV criados pela Revolução Bolivariana, a Venezuela
inteira, de norte a sul, de leste a oeste, canta em coro seu belo hino. Por outro lado, as TVs
comerciais, as mainstreams do neoliberalismo globalizante, fingem ignorar o evento e
exibem programações de entretenimento. Talvez seja a Venezuela o primeiro país em que
se disputa, ferozmente, este novo tipo de guerra: a Guerra dos Frames.
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Referindo-nos a outras revoluções, vemos que a Revolução Bolivariana adotou uma
estratégia diferente (e mais eficaz, em nossa opinião) de consolidação do poder: a do
confronto democrático e, dentro do possível, pacífico, entre o ancien règime e o novo
regime, em todas as instâncias em que ambos se manifestam. No que diz respeito às mídias
de comunicação, optou por criar novos veículos com propostas revolucionárias de
linguagem, afinados ideologicamente com a Revolução Bolivariana. Não houve
fechamento, censura, perseguições a jornalistas nem tentativa de cooptação ($$$) de
veículos, empresas e profissionais do velho statu quo. A situação destes é que se inverteu agora são "oposição". E é aí que mora o grande lance dessa estratégia: nunca foram
oposição, só conheceram, sempre, uma única situação: a "situação", o poder.
Sem a mamata de que gozavam na "situação", a solução de sobrevivência foi pedir socorro
a Washington, porque a conversa fiada que jorra no atual chororô da derrota, de que são
"independentes" e se viabilizavam por suas próprias capacidades e eficiências empresariais,
gerenciais e administrativas e outros blá-blá-blas, só se sustenta em cabeças ingênuas ou de
quem não quer saber nada de comunicação nem de política. Porém, sabe-se o quanto é
mesquinho e avaro o tal Tio Sam. Acostumado a repartir com os cucarachas locais só a
menor parte dos gordos saques a países "amigos" com governos "amigos" contra os
próprios povos explorados, Tio Sam, quando muito, põe a mão no bolso para dar uma ou
outra esmola ou gorjeta demagógica. Acontece que uma mídia nacional de um país como a
Venezuela não se sustenta com pouca grana. Então, acabou a mamata, pois com Tio Sam
não tem mamata pra cucaracha. E a nova mídia revolucionária vai passando por cima deles
como um rolo compressor. Já os leva ao desespero e ao ridículo.
Desde que assumiu o governo, a estratégia midiática de Chávez começou a se estruturar
pela reformulação de linguagem do próprio canal do governo, que existia há mais de trinta
anos na usual condição de apêndice do poder (cabide de emprego), subalterno aos
interesses midiáticos coordenados por Washington. E, claro, desprezível enquanto veículo
de comunicação. A antiga CVTV (Cadena Venezolana de Televisión) foi transformada na
VTV - Venezolana de Televisión - "el canal de todos los venezolanos", e a equipe de
Chávez reestruturou-a radicalmente para livrá-la do ranço oficialista e dotá-la de perfil
dinâmico, ousado, vanguardista, influente e competente, a fim de torná-la um braço eficaz
do poder revolucionário. Isto foi conseguido: um momento de grande importância para a
vitória do contragolpe foi a retomada, pelo povo e as Forças Armadas, em 12 de abril de
2002, dos estúdios da VTV que tinham sido fechados e desativados pelos golpistas. A
reentrada no ar daquele canal (Canal 8) permitiu a divulgação, em âmbito nacional, da carta
de negação da renúncia escrita por Chávez e dos acontecimentos contragolpistas que
tomavam as ruas de Caracas e das demais grandes cidades, paralizando completamente o
país. Fatos que eram sistematicamente omitidos pela mídia hegemônica. Hoje a VTV é uma
das emissoras de maior audiência no país, com grade de programação variada envolvendo
documentários educativos, infanto-juvenis, muitos programas de opinião, de
entretenimento, e seus noticiários são os mais acreditados e de maior audiência.
O segundo passo foi a adoção de uma política exemplar de fomento à criação de TVs
Comunitárias, a partir da iniciativa independente e pioneira da Catia TV, emissora
independente que teve origens no movimento cineclubista dos anos 70 (Cine Clube
Manicomio) e que exerceu um papel importante nos eventos de 11 a 13 de abril de 2002,
quando, até a religação do Canal 8 (VTV), fez-se o único veículo a informar sobre os reais
acontecimentos de então, ainda que sua veiculação se restringisse aos bairros pobres de
Caracas. O governo Chávez criou instrumentos legais para facilitar a multiplicação dessas
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mídias em sinal aberto, e ajudou a transformar a Catia TV numa Fundação incubadora de
TVs Comunitárias, sem perda de sua natureza independente, nem das novas emissoras, as
quais funcionam por seus próprios meios e sem ter de dar satisfações ao governo. Hoje,
estão em processo de formação centenas dessas pequenas emissoras (o CONATEL Consejo Nacional de Telecomunicaciones já registra 28 delas em pleno funcionamento
como veículos influentes e de reconhecido valor midiático), por sua vez muito atuantes e
geradoras de material audiovisual nos quatro cantos do país. São pequenas equipes, porém
bem aparelhadas e bem treinadas pela Fundación Catia TV, sobrevivendo com a veiculação
da chamada "propaganda ética", que consiste na propaganda paga de pequenos negócios e
instituições locais ou regionais, e de vinhetas, anúncios e programas institucionais de
formato educativo e social, produzidos por órgãos governamentais e empresas estatais.
O passo seguinte da política midiática da Revolução Bolivariana de Chávez foi gigantesco,
além de tão ambicioso quanto audacioso e pioneiro: a criação da TeleSur. Formatada como
empresa transnacional-governamental exclusiva para os países da América Latina e Caribe,
ela tem 51% do seu capital de propriedade do governo venezuelano e o restante aberto aos
governos dos países que desejarem participar. Já conta com as adesões, ratificadas em
ingressos de capitais, dos governos de Cuba, Colombia, Bolívia, Argentina, Paraguai,
Uruguai, Equador e Nicarágua. O estado venezuelano bancou a implantação da empresa
com o que há de melhor, mais avançado, mais radical e mais revolucionário em matéria de
tecnologia e profissionalismo midiático, além de dotá-la de uma linguagem audiovisual
vanguardista e sofisticada em todos os níveis, para produzir uma grade de programação
jornalística, política, cultural e esportiva, 24 horas por dia, voltada prioritariamente para a
realidade latino-americana e, em âmbito mundial, para os países de Terceiro Mundo e para
as lutas anti-imperialistas. No primeiro estágio, a emissora foi capacitada para a veiculação
nas três Américas, no segundo, na Europa (já em andamento), e, no terceiro, mundial, com
distribuição gratuita do sinal e autorização para reprodução e reveiculação de seus
programas, bastando respeitar os contextos autorais e conteudísticos, e citar a fonte. Tal é o
sucesso do empreendimento que, há menos de dois anos de inaugurada e vivendo seu
primeiro estágio estratégico, a TeleSur já conquistou audiência reconhecida superior a 100
milhões de espectadores nos países das três Américas, índice que não pára de crescer e se
expandir. Essa expansão tem causado pesadas dores de cabeça nos altos escalões dos
veículos mainstream em todo o mundo, alguns dos quais, como a Globo brasileira, estão
exercendo fortes pressões sobre seus governos para reduzir e, se possível, bloquear o
crescimento extraordinário da TeleSur, em especial a penetração dela nas faixas de público
que consideram seus próprios "terreiros" ou em territórios geográficos nos quais se
pretendem detentores de domínio quase exclusivo do sinal aberto ou a cabo. Além do mais,
já iniciaram projetos de veículos novos em novos formatos para competirem com TeleSur.
Tal esforço é respaldado por setores do Congresso dos EUA que estão reunindo fundos para
"lançar um sinal que possa contrarrestar o sinal terrorista da TeleSur".
Em paralelo à TeleSur, o governo bolivariano da Venezuela criou a viVe TV, uma emissora
com finalidades mais ou menos semelhantes às das nossas TVs Educativas, porém,
apresentando um avanço de linguagem e de programação que a coloca anos-luz à frente de
tudo o que conheçemos a respeito. A viVe TV é, sem dúvida, uma experiência de televisão
posicionada radicalmente na ponta de lança da linguagem audiovisual televisiva.
Declaradamente inspirada nas lições imortais de Dziga Vertov (Cine-Olho e CinemaVerdade), ela se liga estrategicamente à rede de TVs Comunitárias da Venezuela e
aproveita a grande capilaridade do material nelas produzido, em geral, como de interesse
local e regional, para filtrá-lo e reeditá-lo em matérias de veiculação nacional, num novo e
surpreendente formato de jornalismo televisivo - um jornalismo sem jornalistas (em vídeo),
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100% editado com conteúdos audiovisuais das mais diversas origens. Possui uma linha de
produção e co-produção de programas infantis muito criativa e original, com belas
animações, teatro de bonecos e novos recursos de alta tecnologia, para ocupação dos
horários pertinentes, inclusive um inovador e muito bem realizado noticiário infantil todo
feito em animação. Além disso, e muito mais que as outras TVs bolivarianas, viVe TV
fomenta e difunde produções cinematográficas independentes de todas as metragens,
documentais e ficcionais, dando preferência às experiências de vanguarda, aportando
recursos técnicos e financeiros para produção e co-produção de novas obras e veiculação
das já realizadas. ViVe TV produz também cursos interativos de aprimoramento e
capacitação de artistas e técnicos do audiovisual, e realiza programas, em estúdio e em
locações externas, de debates e análises dos problemas nacionais e internacionais. "En viVe,
los protagonistas son los miembros de la comunidad, el ciudadano común, los millones de
venezolanos y latino-americanos invisibles para el imperialismo y sus medios de
dominación cultural. En su programación es posible conocer la realidad, vida y lucha de
nuestros afrodescendientes, indígenas, campesinos, obreros, mujeres, hombres, jóvenes y
niños." - informa o seu site (www.vive.gob.ve). Seu lema é: "Não veja TV, faça-a!"
Recentemente, um novo e importantíssimo passo nessa guerra de frames foi dado pela
Revolução Bolivariana de Venezuela: a Revolución de la Conciencia, comandada pelo
ministério da Cultura através de várias Plataformas revolucionárias, entre elas, La
Plataforma Cine y Audiovisual, que consiste na implantação de uma superestrutura de
criação, realização, produção, distribuição e exibição de cinema e audiovisual, com a
conclusão e inauguração, quase simultâneas, de quatro empreendimentos gigantescos: a
reestruturação da Fundación Cinemateca Nacional e do Centro Nacional Autónomo de
Cinematografía (CNAC), a criação da Fundación Distribuidora Nacional de Cine
Amazonia Films e a criação e construção da Fundación Villa del Cine. Tais chancelas não
remontam a órgãos de burocracia, como sói acontecer na maioria dos países da América
Latina e respectivos ministérios de cultura. Muito ao contrário, elas compõem um furacão
revolucionário destinado a encarar qualquer indústria cinematográfica de Primeiro Mundo,
inclusive Hollywood, como afirmou o próprio Chávez, em maio de 2006, no evento de
inauguração da distribuidora Amazonia Films e da Villa del Cine, onde se situam as bases
criativas e físicas da Plataforma: um megaestúdio de projeto e produção de cinema e
telefilmes, ricamente equipado com tecnologia e infra-estrutura para qualquer tipo de
realização cinematográfica e audiovisual de grande, médio e pequeno porte, para, em
paralelo, propiciar suporte técnico, de equipamentos, de infra-estrutura e até financeiro a
realizações independentes, além de promover cursos e oficinas nos vários níveis de
formação e aprimoramento de artistas, técnicos e outros profissionais do audiovisual. No
topo da Plataforma, encontra-se a Cinemateca Nacional, agora remodelada, bem equipada
e estruturada para conservar, restaurar, digitalizar, exibir e difundir todo o acervo fílmico
do país, atual e pregresso. Com tal acervo e servido de uma super distribuidora como a
Amazonia Films, o ministério da Cultura já deu início a um ambicioso projeto de
implantação de salas comunitárias de cinema com tecnologia digital, em todo o país, de
forma que, já em 2008, nenhuma cidade ou bairro, por mais longínquo que seja, deixará de
ter sua sala de cinema devidamente equipada e ocupada por uma programação diária de
filmes nacionais e latino-americanos.
E a inusitada "corrida armamentista" não pára aí. Poucos meses atrás, a Assembléia
Nacional de Venezuela inaugurou a AN-TV, um novo canal que se propõe a atuar no front
de uma pauta essencialmente política e legislativa, e cujos primeiros frames já demonstram,
em avanço de linguagem e programação, a infinita distância das oficialescas TVs Senado e
TVs Câmara da vida. A TeleSur anuncia a criação de um canal exclusivamente dedicado ao
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esporte, e se prepara para lançar sua emissora local na Venezuela com sinal aberto em
VHF. A ALBA TV, mais uma das idéias geniais de Chávez e Fidel Castro, mal começou a
dar os primeiros passos e, neste mesmo mês de maio, terá seu lançamento na Venezuela. A
ALBA TV, que tem por base a experiência da viVe TV e através dela fará as emissões
iniciais, se conectará às TVs Comunitárias e aos movimentos sociais de toda a América
Latina, numa proposta de amplificação da viVe TV na plataforma continental das três
Américas (incluindo EUA e Canadá).
Em 2008, a China colocará em órbita o satélite Simon Bolívar, desenvolvido e fabricado
com transferência de tecnologia para a Venezuela, para servir às comunicações na América
Latina e Caribe, em especial, ao "sistema bolivariano de rádio, televisão e comunicações".
Em paralelo, está sendo implantada em toda a Venezuela uma rede de troncos de fibra ótica
com 20.000 km de extensão (8.000 já em operação), acrescida de uma conexão, por cabo
submarino, com Cuba e outros países do Caribe, e uma série de "teleportos" e demais
recursos de infra-estrutura comunicacional de última geração (o Brasil possui cerca de
1.600 km de troncos de fibra ótica quase restritos ao eixo Rio-São Paulo).
É importante registrarmos que o pensamento conceitual que dá suporte a todo esse megacomplexo audiovisual, construído e em construção, tem por postulado a separação de
poderes, estrutural e estratégica, entre meio e mensagem. Isto é, essas superestruturas são
criadas para se fazerem meios audiovisuais e não realizadores das mensagens. Estas são
realizadas de forma independente para a ocupação de, no mínimo, 70% das grades
operacionais e de programação dos órgãos e veículos do audiovisual da Revolução
Bolivariana. Por sua vez, as decisões de escolha dos conteúdos para ocupar as grades são
feitas num terceiro poder, ou o maior dos poderes no conceito bolivariano de poder, ou seja,
o Poder Popular. Para o audiovisual, um amplo conjunto de instituições e organizações
socialistas direta ou indiretamente interessadas, tais como os Consejos Comunales, a
Cinemateca Nacional, o CNAC, comissões de concursos, festivais e certames, sindicatos,
cooperativas, grêmios e direções de escolas e universidades e associações de produtores
independentes, já se fazem atuantes. Essa postulação - além de oposta à da mídia
hegemônica, a qual persegue monopolizar tanto o meio como a mensagem rigorosamente
encerrados nos limites de poder de suas corporations - visa objetivos igualmente opostos: o
de libertar o processo criativo e gerador das mensagens das amarras dos meios. E quebrar a
espinha dorsal do poder hegemônico que escraviza as mensagens aos meios, rompendo os
grilhões de manipulação do público pelos interesses corporativos ou governamentais. Eis
por que, diante do mar de meios audiovisuais que as novas tecnologias vêm possibilitando,
à direita e à esquerda do espectro de poder, a estratégia midiática da Revolução Bolivariana
é completamente única e de fato revolucionária, se direcionando com clareza na busca do
socialismo do século 21, que deve ser, antes de tudo, verdadeiramente democrático.
Quanto às posturas institucionais, também elas se fazem opostas em suas pretensões e
formulações estratégicas: a mídia revolucionária não segue a pauta mainstream dos
noticiários da mídia hegemônica e não pretende ter um espectador o tempo todo ocioso,
diante das telas de suas TVs, e nem que estas fiquem competindo entre si, em disputa de
audiência. Ela não se importa com índices de sucesso e audiência e elabora grades de
programação moduladas para que seus programas sejam repostos ou repetidos em dias e
horários diversos, de tal forma que o espectador dedique apenas uma pequena parte de seu
tempo para assistir aos programas que deseja. Além do mais, a programação é dirigida para
assuntos e temas de fato relevantes e informativos para os adultos, e originais e educativos
para as crianças e adolescentes, não se propondo ao espectador como mero entretenimento,
e até estimulando-o para que se entretenha fora de casa, na vida real, cultural, social e
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desportiva de sua comunidade, e sugerindo que o entretenimento se faça de modo elevado,
tanto no plano espiritual como no existencial.
Por outro lado, esse complexo midiático audiovisual coloca seus microfones e lentes
direcionados para um filão de conteúdo praticamente inexplorado pela mídia hegemônica e
que oferece uma riqueza indescritível: a América Latina e o Caribe. "América - Tierra
Nuestra". Se destas terras o imperialismo histórico e atual vem sugando e saqueando
riquezas materiais incalculáveis, ocorre que as riquezas humanas e culturais que elas
oferecem, e que são muito mais elevadas, diversas e profusas, escaparam completamente à
sensibilidade de aço da maioria dos colonizadores, principalmente os atuais. Pelo contrário,
fomos os colonizados que capturamos e sincretizamos valores culturais dos colonizadores,
num processo que Oswald de Andrade denominou "antropofagia cultural". O compositor
Villa-Lobos disse certa feita que os portugueses levaram o ouro do Brasil mas nos deixaram
as modinhas. "- Foi um bom negócio" - concluiu. Assim, o que se pode chamar de "sistema
bolivariano de comunicação" tem pela frente um campo infinito para explorar e extrair
riquezas culturais inolvidáveis, enquanto a mídia hegemônica está cada vez mais restrita
aos desgastados cenários e conteúdos vazios, retrógrados, desumanos, estressantes,
estandardizados, repetitivos e cansativos de um limitado universo consumista europeunorte-americano, que se esgota no pensamento único (ou não pensamento) imperialcapitalista, de que mais adiante vamos tratar.
A Venezuela vive neste momento a grande batalha midiática, a maior de que se tem notícia
desde o golpe de Estado frustrado de 2002. No final de 2006, logo depois de mais uma
vitória eleitoral, Chávez anunciou a não renovação da concessão da RCTV, o canal mais
antigo e mais poderoso em operação no país, correspondente, no Brasil, à Rede Globo de
Televisão. Em substituição a “este canal fascista", como o denominou Chávez, propõe-se
uma televisão social de serviços, a Televisora Venezolana Social - TVes, com uma
programação revolucionária e essencialmente produzida no país, América Latina e Caribe.
A "não renovação da concessão" da RCTV, que deixará de ocupar o espectro radioelétrico
em sua faixa VHF mais nobre (Canal 2), e será substituída, em 28 de maio próximo, pela
TVes, já provocou um combate feroz da mídia hegemônica, e todas as forças a ela aliadas
em máximo poder de fogo contra a Revolução, chegando ao ponto de desafiar a soberania
do governo bolivariano, para, se possível, derrubá-lo. Tal combate, que a cada dia
recrudece e se propaga mundo afora, é o objeto principal do presente trabalho.
Vimos acompanhando, passo a passo, dia a dia, os eventos que se sucederam ao anúncio de
Chávez, graças à possibilidade de acesso audiovisual pela internet às emissoras TeleSur,
VTV (Venezolana de Televisión) e viVe TV, preciosas fontes de informação televisiva, (com
certeza, as melhores que conheçemos), às páginas destas mesmas emissoras, às de sites
como Rebelión, Aporrea, Resistir, RedVoltaire, entre outros, e às de periódicos impressos
como Ultimas Noticias, Venezoela Adentro, Diario Vea. Vez ou outra consultamos as
páginas de emissoras e veículos impressos e eletrônicos da mídia privada na Venezuela,
porém afora as demonstrações de despreparo, desespero e até histeria de que são
acometidas pela situação em que vivem, encurraladas como estão pelo povo venezuelano e
pelo elevado gráu de conciência política e existencial por ele conquistado nos sucessivos
governos Chávez, não passam de meros clones das mídias congêneres de qualquer lugar do
mundo e nada acrescentam como informação de interesse histórico. Para nós, o interesse
por esses meios é só pelo poder que ainda representam nesta fase final de suas existências
moribundas, ou pelo poder que está por detrás deles (igualmente moribundo), por força do
qual são capazes, ainda que em completo desatino, de sustentar o combate.
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Faltará aqui, é claro, já que não pudemos ir pessoalmente até lá, o sabor local, o sentimento
e a vibração do momento histórico onde ele ocorre, e outras virtudes e qualidades que um
testemunho in loco poderia acrescentar a este estudo. Também alguns erros ocorrerão, já
que é impossível filtrar todas as certezas de tantas informações provenientes de tão variadas
origens. Mas o leitor há de convir que estamos observando uma guerra midiática (o que, de
certo modo, é força de expressão), e as fontes a que tivemos acesso foram justamente os
veículos midiáticos envolvidos, portanto, válidos como matéria de substância para os
propósitos deste trabalho, que não são, é preciso sublinhar, acadêmicos. Este autor preferiu
seguir o caminho do registro de suas conclusões escritas durante e depois do desenrolar dos
fatos, sempre na qualidade de telespectador, internauta e observador de mensagens e fatos
históricos que testemunhou diante de seu computador, sem se preocupar com anotações
preciosistas de detalhes, nomes próprios, referências, datações de precisão, anotações e
demais chateações acessórias exigidas em trabalhos acadêmicos.
Por outro lado, este trabalho tem também por objetivo trazer aos brasileiros e à Lingua
Portuguesa uma leitura mais real e compreensível do que vem ocorrendo na Venezuela nos
últimos anos, uma vez que a informação que aqui nos chega, pela via única da mídia
hegemônica, é falsa, parcial, desinformativa e distorcida, além de produzida para afastar o
povo brasileiro do projeto de integração latino-americano, evitando que tome conhecimento
das enormes conquistas históricas e populares que na Venezuela se concretizam e evoluem
através da Revolução Bolivariana. Tais conquistas podem e devem ser nossas também.
Somos, eles e nós, física e culturalmente de tal forma semelhantes e irmãos que não há
razões substantivas que nos impeçam de alcançá-las. E a Venezuela, vanguarda indiscutível
do processo libertário continental, já tem tantas lições vitoriosas que não temos o direito de
negligenciá-las. Eis porque consideramos o conhecimento sobre o que lá se está passando
de vital importância para todos os brasileiros. Também queremos fazer a nossa Revolução.
Antecedentes
Já é consenso entre historiadores que o marco inicial do processo revolucionário
venezuelano (e latino-americano no sentido de uma revolução anti-neoliberal) finca-se na
rebelião popular que ficou conhecida como Caracazo, em 27 de fevereiro de 1989. Apesar
do nome, o Caracazo não ocorreu apenas em Caracas, mas em todas as grandes cidades da
Venezuela. O nome pelo qual ficou conhecido o fenômeno se deu porque a mídia
hegemônica procurou abafá-lo e reduzi-lo a manifestações isoladas na capital do país. A
verdade, porém, transbordou sobre as limitações impostas pelos meios de comunicação e
até hoje se propaga pelas veias abertas da América Latina.
Mesmo que os poderes públicos da época tenham impedido o registro e a divulgação de
cifras oficiais, e tentado reduzí-las a algumas dezenas de vítimas, levantamentos de
estudiosos e pesquisadores exibidos em recentes programas da TeleSur dedicados ao tema
avaliam que, somente em Caracas, a polícia e as Forças Armadas assassinaram cerca de
1.400 manifestantes desarmados. No total, há quem estime em 3.000 ou mais mártires em
todo o país, num só dia, todos de origens humildes e populares.
A revolta se deu espontaneamente, logo após a publicação do pacote neoliberal do então
recém-eleito e empossado presidente Carlos Andrés Perez, em afronta a todas as promessas
de campanha. As primeiras medidas foram os aumentos dos preços de transportes e tarifas
públicas. É evidente que a revolta não era esperada na dimensão em que ocorreu, e nunca se
identificou uma organização, coordenação nem articulação centralizada ou localizada que
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pudesse ser responsabilizada pela rebelião. O fato é que, em protesto contra a vil traição do
presidente eleito, e simultaneamente em todas as regiões do país, rios de pessoas surgiam
dos bairros pobres e periféricos ocupando as principais ruas, praças e avenidas centrais das
grandes cidades, fechando o comércio, paralisando o trânsito, os transportes coletivos, os
serviços públicos e tudo mais. Os movimentos estudantis também saíram em apoio aos
populares. A atuação repressiva, coordenada a partir de Caracas, em emergência nacional,
só piorou a situação: o povo a recebeu com barricadas, invasões, depredações de espaços
públicos, saques a lojas e supermercados, queimas de ônibus e automóveis e confrontos
violentos com policiais. Incapazes de conter os protestos, as Forças Armadas e a polícia
receberam, de um comando desastroso e incompetente, tanto quanto fascista, a infeliz
ordem de atirar para matar, inclusive nos que a desobedecessem. E deu-se a carnificina.
Passados quase vinte anos daqueles trágicos eventos, o que nos impressiona - exceto por
alguns fotógrafos independentes que colheram instantâneos bons e significativos - é a
precariedade dos registros remanescentes, em especial os audiovisuais. Estes eram
exclusividade dos veículos da mídia hegemônica, à qual não faltavam condições para obter
bons registros da tragédia. Porém, se o fizerem, trataram de escondê-los ou destrui-los, e o
que deixaram sobrar são sequências banais de arruaças e enfrentamentos de populares com
policiais, com doses bem suavizadas de violência. Nenhuma morte foi registrada, nem
mesmo comunicada ou reconhecida pelos tais "meios de comunicação".
Mas, independente deles, o Caracazo não morreu com seus mortos. Já na madrugada do dia
seguinte, enquanto nas vias públicas soldados recolhiam corpos empilhando-os em
carrocerias de carretas e caminhões do Exército para enterrá-los às escondidas em valas
comuns (muitas já descobertas e reabertas pelo governo revolucionário para devolver os
restos mortais das vítimas às famílias e entes queridos, dar-lhes sepultamento digno e uma
justa indenização em dinheiro), um racha irreparável se abria entre oficiais e efetivos das
Forças Armadas, a maioria insatisfeita com a crueldade e a incompetência do comando
central e do Estado Maior. Com o tempo, a insatisfação foi crescendo, e para isso diversos
fatores contribuíram, a maioria já anotados por historiadores. A eles pode se somar, sem
dúvida, a desconfortável situação dos fardados perante o próprio povo, refletindo até nas
relações pessoais e familiares. As fardas, que já não eram bem vistas pela população,
passaram a ficar inviáveis, pelo menos socialmente. Atraíam vergonha, escárnio, vaias e
repúdio, onde quer que fossem vistas.
Um outro dado importante, apesar de pouco observado por historiadores, é que a
insatisfação dos militares era canalizada por uma organização revolucionária infiltrada nas
Forças Armadas, numa estratégia bem sucedida da guerrilha venezuelana dos anos 60,
dirigida pelo bravo Douglas Bravo, amigo de Che Guevara, que introduziu vários de seus
quadros no serviço militar. Estes conseguiram a adesão de outros militares, entre eles Hugo
Chávez e muitos dos atuais líderes do movimento bolivariano hoje no poder.
A rebelião militar estalou em 4 de fevereiro de 1992, coordenada pelos insurretos para
acontecer nos principais quartéis do país e, na capital, tomar o Palácio Miraflores e depor o
presidente Carlos Andrés Perez.
Estamos nos antecedentes da atual guerra midiática e, no centro dela, a Guerra dos Frames,
que tem por palco a nação venezuelana. Foi o bloqueio da mídia hegemônica um dos
fatores mais importantes para o fracasso da insurreição. Apesar de bem organizada do
ponto de vista militar, teve traidores e recuos de última hora, e, o que é principal, faltou-lhe
a necessária adesão popular, não porque esta lhe fora recusada, mas porque não chegou às
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massas a informação que as mobilizasse no momento certo. O erro tático dos rebeldes foi
contar com a difusão de seus atos pela mídia, o que, em seus cálculos, provocaria
mobilização popular semelhante ao Caracazo, só que desta vez tendo as Forças Armadas ao
lado do povo. Miraflores chegou a ser tomado, mas o presidente, avisado por traidores ao
movimento, tinha abandonado o Palácio e estava escondido e bem protegido nos estúdios
de Venevisión, a segunda maior rede de televisão da Venezuela. E a reação cercou o Palácio
e prendeu os rebeldes, que eram comandados por Hugo Chávez.
Porém, e nos parece que isto ainda não foi observado com a devida atenção, nos dois
episódios, o Caracazo e o 4 de Febrero, a mídia hegemônica cometeu dois graves erros
pelos quais agora paga caro.
No primeiro, o "abafa" sistemático e odioso provocou, em curto prazo, a queda de
credibilidade de seus veículos perante as massas. Os homens e as mulheres do povo não
viram seus mortos nas telas de TV, e muito menos os relatos de heroísmos e martírios a que
se submeteram. Pelo contrário, viram uma revolta que tanto lhes custara e na qual
participaram massivamente, com espírito de justiça e patriotismo, ser transformada, por
grosseira manipulação dos fatos, em mais uma arruaça irresponsável e inconsequente.
No segundo episódio, no afã de conseguir a rendição rápida dos insurretos no interior do
país, que já começavam a conquistar adesões populares, as TVs expuseram nacionalmente a
figura do comandante Hugo Chávez, preso e expulso do Exército, a fim de humilhá-lo e
dissuadir os companheiros. Apesar da situação desvantajosa, Chávez não perdeu a
oportunidade que se abria à sua voz e fez o primeiro discurso histórico de repercussão
nacional. Nesse discurso, que o tirou do anonimato e o projetou internacionalmente, além
de isentar os companheiros de responsabilidade nos eventos, pediu-lhes que baixassem as
armas (“por ahora”) para evitar derramamento de sangue. E assumiu sozinho toda a
responsabilidade pelos acontecimentos, o que lhe custou dois anos de prisão.
Em 1994, ao ser libertado, conquistou o povo venezuelano com duas entrevistas numa
emissora de televisão (TV Oriente), hoje extinta, num fenômeno muito semelhante ao de
Brizola, no Brasil, em 1980, quando retornou do exílio (de que nos recordamos bem).
Naquelas duas entrevistas, Chávez expôs com clareza cristalina o projeto revolucionário
socialista que vem até hoje realizando, linha por linha, sempre a aprimorá-lo e a radicalizálo, passo a passo.
Quatro anos depois, em 1998, Chávez seria eleito presidente da Venezuela enfrentando o
poderio da mídia hegemônica e das oligarquias do país, as quais, cientes do erro cometido
anos antes, procuravam recuperar-se e promoveram contra ele intensa e desonesta
campanha difamatória.
Num programa recente da viVe TV sobre os acontecimentos daquele 4 de Fevereiro, vimos
uma entrevista atual com um popular, um homem de cerca de 60 anos, forte, grisalho e bem
vestido. Com firmeza e em bom espanhol, ele assim respondeu à pergunta que lhe fora
feita, de sopetão, em plena rua: "Quando vi na televisão aquele homem, diante do país
inteiro, dizer serenamente que assumia sozinho a responsabilidade por toda aquela
confusão, pensei na mesma hora: eu nunca tinha visto ninguém neste país assumir
responsabilidade por coisa alguma! A partir dali, não mais me esqueci disso e nem deixei
de dar a ele o meu voto. Já votei nele umas oito ou nove vezes, e votarei nele em quantas
eleições se candidatar, pois nunca me arrependi!"
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Apesar do mau trocadilho, não há como recusar a Chávez o papel-chave na deflagaração da
guerra midiática na Venezuela, ainda em curso. Desde aquele primeiro discurso, ele
percebeu que era bom comunicador, ou melhor, um comunicador nato. E, de fato, o é, e
vem demonstrando isso a cada dia que passa. Além do mais, é um grande estrategista
militar e político, possui inteligência, intuição e memória brilhantes, é estudioso e cultiva,
em profundidade, a arte e a literatura. É ao mesmo tempo um político, um militar e um
artista. Foi valente agitador político, sem deixar de ser bom soldado e bom oficial nos
quartéis do Exército. Escreveu peças de teatro e em uma delas foi bem sucedido (O Gênio e
o Centauro, peça premiada pelo Teatro Histórico Nacional de Venezuela). Tem ouvido
musical, canta e declama bem, com voz boa e bem colocada. Na campanha de 98, revelouse excelente político, de invejável carisma. Da Oratória, tornou-se virtuose (os acadêmicos
discordarão, mas... que fazer?). Ideologicamente, é de uma firmeza invulgar. Suas
convicções socialistas e nacionalistas são, comprovadamente, em todos os testes por que
passou em sua fulgurante trajetória existencial e política, inquebrantáveis (os "esquerdistas"
discordarão, mas... que fazer?). Tudo isso vem temperado com ótimo humor. Chávez chega
a ser engraçado em certos momentos. E é sempre simpático e gentil, dizem as mulheres.
Sabe esconder seus defeitos, e como mantê-los a salvo da perseguição implacável de
poderosos inimigos, que ainda não puderam encontrar ou exibir algum que o desabonasse
ou o denegrisse de forma convincente (os oposicionistas discordarão, mas... é a História!).
Há nele, entre outras mais, duas virtudes que não podem ser deixadas sem registro aqui:
capacidade (impressionante) de trabalho; e de escolha dos quadros que o cercam, tanto pela
competência na execução de seus comandos, como pela lealdade com que os exercem,
lealdade que, pelo menos em muitos casos notórios, é mantida mesmo depois de
substituídos ou recolocados.
Além de grande estrategista, Chávez tornou-se grande estadista.
Ao assumir o poder presidencial em 1998, apesar de fazê-lo pela primeira vez em qualquer
das instâncias do poder político, o fez como se tivesse longa experiência de vários
mandatos e fosse profundo conhecedor dos melhores ensinamentos de Maquiavel. De
imediato, cortou vínculos e amarras que poderiam afetar seu poder de mando, inclusive
rompendo com aliados estratégicos como Teodoro Petkoff, que desviou-se à direita (na
qual atua hoje como raivoso opositor), e Douglas Bravo (que lhe faz oposição construtiva
em posição ainda mais à esquerda). Soube escolher ministros e assessores próximos,
supervisioná-los, dirigi-los e aglutiná-los em sólida e unida equipe de governo. Durante
seus mandatos, demonstrou saber o momento de alterar composições de cúpula sem deixar
que vazassem crises, cisões e fragmentações negativas. Enfim, recolheu para si as rédeas do
poder e as mantém firmes em suas mãos. E, desde o primeiro dia em que assumiu a
Presidência, tendo apenas a funda de Davi como arma e sem abrir mão de uma vírgula de
seu projeto original, entrou em guerra sem trégua contra o Golias midiático.
A guerra midiática
O conceito estratégico-militar atualmente definido como "guerra assimétrica" deve ser, na
verdade, tão antigo quanto a legendária luta entre o pequeno Davi e o gigante Golias. Um
comandante bem preparado como Hugo Chávez sem dúvida o domina bem, tal é a maneira
como o aplica no combate que corajosamente propôs ao povo venezuelano enfrentar e, de
resto, aos povos do mundo inteiro, e no qual colocou-se a si mesmo na posição de ponta de
lança.
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Contudo, não precisamos ser estrategistas para aprender, na lição antiga de Davi e Golias,
que a desvantagem assimétrica do pequeno em relação ao gigante vem a ser compensada
pelo poder da verdade ou da razão que move o primeiro à luta, e pela habilidade dele em
valer-se das próprias virtudes e das fraquezas do inimigo durante o combate.
Ora, o núcleo de toda comunicação é o pensamento de quem a comunica que se quer
transmitir a quem a recebe. Primitivamente, este pensamento é criador pois tem de ser
transformado em palavra ou texto (mensagem) que sai da boca do comunicador (emissor)
para o ouvido do receptor. A comunicação é, portanto, uma linguagem essencialmente
dialética, na medida que pressupõe o retorno crítico ou analítico em relação à mensagem,
por parte do receptor. Não é à toa que os antigos gregos advertiam para os cuidados com o
que se deixa passar pela "barreira dos dentes". A advertência é válida nos dois sentidos. Os
gregos entenderam que, tal como na alimentação, sem os cuidados necessários, já no mais
primitivo meio de comunicação haverá sério risco de a mensagem corromper o pensamento
que a originou, podendo produzir até efeitos opostos a seus propósitos. Com o advento da
escrita, um outro perigo se somaria ao anterior: o da manipulação da mensagem por
terceiros. Sendo a escrita a mais antiga tecnologia aplicada como meio de comunicação, as
demais que a sucederam até os atuais frames, se ampliaram a capacidade de difundir a
mensagem, ampliaram também, e muito, o perigo de manipulação dela.
E quanto mais se desenvolveram as sucessivas tecnologias, mais restrito se tornou o poder
sobre elas e mais vulnerável ficou a comunicação de ser corrompida ou manipulada pelos
proprietários dessas tecnologias (meios). Até meados do século 20, ainda se observava certa
postura ética, mais ou menos rigorosa, de preservação ou um mínimo de corrupção do
núcleo da comunicação. Travava-se, então, nos meios de comunicação, um combate
dialético entre os pensamentos de esquerda e de direita, numa época em que até a direita
possuía um pensamento. Não havia ali uma guerra midiática mas, sim, uma disputa interna
nos próprios meios de comunicação, pelo poder de dominá-los.
Nos fins dos anos 1950, derrotado o pensamento de direita, enquanto tal - com óbito
atestado por Simone de Beauvoir (O Pensamente de direita, hoje - 1955), - o capitalismo,
amedrontado, optou por deixar de ter pensamento e abandonar os pudores éticos em relação
ao núcleo da comunicação, a fim de conquistar os meios a qualquer custo. Como tática de
jogo sujo, naquela década e posteriores passou a utilizar a força de seus poderes imperiais
para criar a mídia hegemônica e estabelecer o "pensamento único" ou o "não-pensamento",
uma vez que, por sua natureza essencialmente humana e dialética, o pensamento, qualquer
que seja, é sempre criador, crítico e analítico, sendo, portanto, plural, jamais "único". Tal
termo só teria emprego (discutível) na definição de comandos automáticos ou robóticos, ou
do instinto animal, o que, de qualquer modo, se aprendemos as lições geniais de Álvaro
Vieira Pinto, o torna sinônimo de "não pensamento". Neste trabalho, usaremos os termos
"pensamento único" ou "não pensamento" como sinônimos e definidores de uma das
ferramentas de manipulação de que se vale o que chamamos pattern (padrão) midiático.
Veículos de comunicação que contestaram ou não aderiram a essa ditadura midiática foram
destruídos e eliminados, e a regência global de todos os que integraram a "nova ordem"
passou a ser ditada diretamente do Pentágono (código mainstream). Já pelos anos 1980,
percebendo que a história não lhe era favorável, a direita, em mais uma cartada suja e
desesperada, tenta decretar o "fim da história", e, num processo perverso que rotulou de
"globalização", tentou afastar em definitivo a linguagem de comunicação de sua essência
dialética, ao fazer com que os meios se confundam com as mensagens.
21
Tudo isso tem por única preocupação manter o modo de produção capitalista em vigor nos
países hegemônicos e exacerbado ao máximo nas nações por eles dominadas, sob a tutela e
em benefício exclusivo do império anglo-estadunidense e seus interesses, ainda que tal
estratégia claramente negativadora dos mais essenciais valores humanos, como a
diversidade plural de pensamento e a dialética da comunicação - ambos tão necessários à
humanidade quanto a diversidade do ecossistema para a Natureza -, seja obviamente
suicida, pondo em sério risco a própria existência humana no planeta Terra.
Mas o capitalismo tem suas contradições, já identificadas por Marx e Engels, e, entre estas,
é a de que traz no bojo de seu processo histórico um inevitável e forte vetor revolucionário.
As sucessivas inovações tecnológicas dos meios de comunicação produzidas no sistema de
competição autofágica que o capitalismo impõe a si mesmo e ao mundo na busca incessante
dos favores do Deus Mercado acabou por gerar nova etapa de tecnologia - a era digital -,
que, à revelia de seus objetivos originais, logrou democratizar, como nunca antes em toda a
história, o acesso aos meios de comunicação a todos os que deles querem se valer, com um
mínimo de recursos materiais ou financeiros.
Se nas tecnologias antecendentes à era digital, hoje chamadas "analógicas", os meios de
comunicação eram restritos a grupos capitalistas de alto poder econômico, nesta nova era
ou etapa da tecnologia os profissionais de comunicação e autores que não serviam ou eram
não alinhados aos interesses e ideologias neoliberais desses grupos, até então excluídos,
marginalizados e impedidos de atuar pela ditadura midiática do processo de "globalização",
passaram a ter acesso a meios alternativos. Estes meios, operados individualmente ou por
micro ou pequenas organizações independentes, lhes possibilitaram ampla difusão de
pensamentos (conteúdos - núcleos de comunicação).
Deu-se, assim, início ao surgimento de uma nova mídia que a cada dia se projeta mais
capaz de competir com a mídia hegemônica em qualidade de edição e capacidade de
distribuição e difusão de mensagens, e que a cada dia mais vem se capacitando para
disputar audiências em grandes amplitudes, inclusive das massas "invisíveis", até então
cativas e exclusivas da mídia hegemônica.
Essa nova mídia, que se pode chamar também de mídia alternativa, projeta-se nos espaços
que vai abrindo nas formas de expressão impressa, radiofônica, audiovisual e eletrônica
(internet), sem que se tenha descoberto até o momento, por parte da mídia hegemônica e
seus manipuladores, um meio eficaz de contê-la ou controlá-la. Já se faz perceptível a
penetração da nova mídia em ampla gama de atividades comerciais, culturais, institucionais
políticas e sociais, de variadas colorações ideológicas, mas dentro dela se destaca, forte,
uma mídia jornalística de opinião e cultura que se propõe a bater de frente com a mídia
hegemônica, e derrogar em definitivo o caráter hegemônico e ditatorial de sua prevalência
perante o grande público. Podemos chamá-la, desde já, de mídia de resistência. Seu
crescimento e penetração tem se revelado um fenômeno de enorme importância.
Ainda que tal fenômeno se verifique em escala mundial, na Venezuela ocorreu um fator
histórico que a tornaria caso único, uma vez que não se registrou nada semelhante em
nenhuma outra nação. Em 1998, Hugo Chávez assume a presidência e agrega à mídia de
resistência os poderes de Estado. Em primeiro lugar, o poder institucional, criando
instrumentos de legalização e direito de atuação dos diversos veículos de resistência, até
então na ilegalidade, na clandestinidade ou semi-clandestinidade, e, de imediato, livrandoos da repressão fiscal e policial que lhes era impiedosa (e ainda o é na maioria dos países,
22
inclusive o Brasil). A seguir, o poder econômico, estabelecendo relações legítimas e legais
entre o governo e a mídia de resistência a fim de fomentá-la e viabilizá-la, inclusive
recrutando os melhores valores intelectuais e profissionais nela revelados para atuarem nos
veículos de comunicação do Estado, tornando-os, desde logo, fortes aliados no combate
contra a mídia hegemônica. E, enfim, o poder militar, recém ideologizado para a defesa
nacional do socialismo bolivariano e, portanto, defensor e protetor dos veículos da mídia de
resistência. Pela primeira vez na história, a mídia de resistência tem um Estado poderoso
que a abrigue das intempéries do mundo capitalista e das perseguições de seus algozes.
Tudo isso também agrega o que é mais importante para qualquer veículo midiático: o
acesso à informação nos mais altos níveis de confiabilidade. Ou seja, a mídia de resistência
- independente, não estatal, alternativa e anti-capitalista -, conquista, pela primeira vez, uma
pátria. E esta pátria se chama Venezuela.
Essa adesão dos poderes de Estado à mídia de resistência foi entendida pela mídia
hegemônica como uma declaração de guerra. Guerra contra o Estado, contra seus chefes,
próceres, políticos e militantes, contra seus eleitores e simpatizantes, contra suas
instituições civis e militares, contra seus veículos de comunicação e contra os veículos de
comunicação da mídia de resistência. Como tudo isso hoje representa naquele país uma
maioria avassaladora, já demonstrada na sequência de nada menos que doze eleições e
referendos vitoriosos em cerca de oito anos, pode-se dizer que a guerra midiática é também
contra o povo e a democracia venezuelana. Os fatos que se sucederam ampliaram o cenário
do conflito para o plano mundial e, assim, pode-se dizer, também, que, ao aliar seu governo
à mídia de resistência, Hugo Chávez deflagaria o que, no futuro, os historiadores poderão
chamar de Primeira Guerra Midiática Mundial.
O inimigo
Mais uma vez, Marx tinha razão: o capitalismo é a nossa pré-história. Somente
com o socialismo a Humanidade inaugurará a fase histórica de nossa
existência. Apesar de todo o conhecimento e tecnologia desenvolvidos ao
longo dos últimos três mil anos, Molloch, que agora atende pelo nome de
"Market" ou "Mercado", permanece devorando, em quantidades cada vez mais
horripilantes, as vidas humanas que lhe são oferecidas em cruéis sacrifícios de
adoração primitiva e desumana. Nas duas últimas décadas, esse deus primário, tenebroso e
insaciável - ao qual a antiga Cartago às vezes oferecia centenas de jovens vidas em
holocausto - recebeu-as e devorou-as aos milhões. Em princípio, nada mudou, exceto a
quantidade de vítimas, a desproporção de desumanidade e a tecnologia de matança.
Molloch/Market tem hoje um olho tecnológico - a mídia hegemônica. Orwell a batizou de
Big Brother, o "grande irmão" todo-poderoso, onipresente, vigiando e hipnotizando a
Humanidade e transformando-a em gado para abate no matadouro de Molloch. Este Golias
tem muitas cabeças que saem de um só corpo que as alimenta (o pattern midiático). É, na
verdade, uma Hidra, a Hidra Midiática, a princípio e aparentemente, invulnerável e
imbatível. Mas, como veremos, nem sempre...
Ao pisar pela primeira vez em Miraflores como presidente da República, Chávez já trazia
consigo uma experiência pessoal do poder de fogo da mídia hegemônica, ainda que a meia
carga ou carga de demonstração. Sua eleição não fora propriamente uma primeira batalha.
A arrogância da mídia hegemônica por vezes permite-lhe deixar passar certos percalços,
tais como a eleição, contra a vontade dela, de um líder que demonstra real popularidade.
23
Porém, com a certeza de cooptá-lo logo depois de eleito, como fizeram com Lula no Brasil.
Daí porque moderar o fogo e dar só uma demonstração dele durante a campanha. Com
Chávez, mais uma vez, erraram os estrategos da mídia hegemônica.
Com a inteligência, a intuição e o talento de estrategista, Chávez não perderia aquela
primeira oportunidade de conhecer de perto o inimigo e de sentir a força dele na prória
pele. Na época, o monopólio da mídia hegemônica no país era absoluto e basicamente
constituído por quatro grandes canais de televisão aberta em VHF (RCTV, Venevisión,
Televen e Globovisión, pela ordem de importância e poder de fogo), dezenas de rádios AM
e FM, os grandes veículos de mídia impressa periódica e publicitária, além de diversos
canais de televisão por cabo, satélite e emissão aberta em UHF. Todos em uníssono
comunicacional. De resto, com pequenas variações quantitativas ou qualitativas, era essa a
realidade, com raras exceções, em todos os países das três Américas e em todo o mundo.
Conhecer o inimigo em termos estratégicos, não precisamos ser especialistas para sabê-lo,
significa encontrar seus pontos fracos. E, desde que Dalila cortou os cabelos de Sansão,
sabemos que, em geral, os pontos fracos dos fortes estão nas origens de suas forças.
Ora, onde estará a força (e, por boa probabilidade, a fraqueza) da mídia hegemônica?
Como ferramenta manipuladora da comunicação, o pensamento único exige um emissor
não pensante e também um receptor não pensante. Seu uso, enquanto tal, é restrito aos que
manipulam estes dois atores fundamentais do ato comunicacional. Caberá ao ente emissor
apenas emiti-lo, e deste não se necessita conciência nem participação na sua construção,
desde que, por ser único ou inexistente, já exclui o pressuposto dialético da resposta por
parte do ente receptor. Pois o que se pretende deste último é, além da adesão consciente ou
não ao pattern manipulador, a obediência cega ao seu comando, onde, enfim, residirá a
força e o poder da mídia hegemônica e, por conseguinte, de seus manipuladores.
A questão a resolver é que, na comunicação midiática, somente o primeiro dos dois atores é
de domínio exclusivo de seus manipuladores, e, com certa facilidade, se pode fabricar o
boneco ou boneca midiática para o papel de ente emissor, apesar de que o atual estágio da
tecnologia os obrigue a fabricá-los a partir de seres humanos, enquanto aguardam que a
robótica possa enfim fabricá-los mais facilmente, além de mais baratos e mais funcionais o boneco midiático robótico ideal. Porém, o outro ator, o receptor, em princípio estaria fora
de domínio, e nem sempre se poderia contar de antemão com adesão ou obediência dele,
especialmente se o comando emitido vai contra a sua conciência ou seus interesses. Sendo
assim, a mídia hegemônica visa, desde logo, o receptor mais incapaz de ter acesso à própria
conciência e ao conhecimento dos próprios interesses, e, quanto maior for a quantidade de
pessoas nessa condição, maiores serão a força e o poder da mídia hegemônica. Eis porque
ela exerce e promove, desde a década de 1960, o combate (cuidadosamente camuflado) à
educação pública e gratuita, ou seja, à principal via de acesso da maioria da "populaçãoalvo" à consciência e ao conhecimento de si mesmo por parte de cada um de seus
indivíduos.
Exemplos históricos são muitos. O mais notório foi o combate letal e bem sucedido
promovido pela Rede Globo de Televisão brasileira contra a iniciativa dos CIEPs (Centros
Integrados de Educação Pública) de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro. Quando no governo
do Estado do Rio de Janeiro, entre os anos de 1982 e 1985, o primeiro como governador do
Estado e o segundo como secretário de Educação, ideólogo e mentor do projeto, ambos
fizeram construir e implantar uma avançada e sofisticada rede de 500 novas escolas
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públicas, projetadas e inauguradas nos moldes "bolivarianos" (escola em tempo integral,
com três refeições ao dia, assistência médica e odontológica, transporte gratuito, esportes,
cultura, remuneração justa do corpo docente, etc). Mesmo tendo conseguido realizar tal
façanha, o combate contínuo da poderosa emissora, desqualificando o projeto e seus
mentores, logrou impedir que Brizola elegesse Darcy Ribeiro para sucedê-lo, e o projeto
caiu nas mãos de seus detratores de oposição. Eleito presidente da República em 1989, pela
força da mesma Rede Globo, que inclusive promoveu e deu respaldo à fraude eleitoral
contra Brizola para evitar que fosse seu principal adversário no segundo turno, Fernando
Collor, uma vez no poder e em rebeldia contra os patrocinadores de sua eleição, decidiu
retomar o projeto brizolista em nível nacional. Tão logo a decisão pareceu irreversível,
Collor foi destituído por um impiedoso golpe de Estado midiático (1992/3), capitaneado
pela própria rede de televisão que poucos anos antes o levara ao poder. E, desde então,
nunca mais se construiu sequer uma única sala de aula de ensino público no Brasil.
E não ficou nisso. As escolas públicas sobreviventes ao processo de destruição, a maioria
construídas nas décadas de 1950/60, foram administrativa e fisicamente arruinadas desde os
anos 1970/80, ao ponto de inviabilizarem seus edifícios, todos em estado de ruínas e cujos
telhados despencam. Há ocorrências em que heróicos professores, ao persistirem na
dedicação a tais escolas, procuram obter cessão gratuita de locais que não funcionam
durante o dia (bares noturnos, boates, danceterias ou "inferninhos") para neles continuarem
ministrando aulas. E a infância brasileira de origem humilde, se às vezes logra receber
primeiras letras, não raro o faz nesses impróprios, quando não, tenebrosos ambientes.
Um outro vetor importante de fortalecimento e poder da mídia hegemônica está justamente
no habitat que cria para si mesma nas sociedades em que atua. Em verdade, para sobreviver
e ter força, o pensamento único tem de ser realmente "único". E para ser assim, há de ser
seu habitat um ambiente de opressão, de fraqueza das instituições democráticas, de
fragmentação e destruição dos espaços libertários e de redutos de pensamento crítico, além
da subordinação obediente por parte da população ao statu quo opressivo e opressor.
Não é mera coincidência o fato de que a midia privada esteja por detrás (muitas vezes à
frente) de todos os golpes de Estado fascistas que ocorreram na América Latina, desde os
anos 1960. Convém-lhe, ou melhor, lhe é essencial o Estado fascista, entreguista e pseudoestabilizado à força de polícia e opressão militar. Um estado totalitário, submetido à sua
arrogância manipuladora, e completamente sem liberdade de expressão, lhe é o habitat
ideal, onde prospera, se fortalece e se torna poderoso o pattern comunicacional. Aliás, este
nada mais é do que o próprio fascismo atualizado e disfarçado de "democracia" ou até
mesmo, como difunde o próprio pattern, de "liberdade de expressão".
Com o tempo, nos países de Terceiro Mundo submetidos à ditadura midiática, ocorre o
inevitável esfacelamento das instituições políticas e a perda dos valores nacionais. E os
meios de comunicação se tornam poderosos ao ponto de assumirem funções decisivas de
Estado, substituindo inclusive as funções de partidos políticos e de diversas instituições
públicas, e controlando os três poderes constituídos nas repúblicas atingidas.
Muitos serão hoje os fatores de força e poder da mídia hegemônica, incluindo-se o poder
econômico e imperial que a sustenta, mas, para este autor, serão nos dois mencionados logo
acima - o pensamento único e a mídia privada - em que se concentrou Chávez, por
encontrar neles os pontos fracos do inimigo contra os quais poderia atacar e destruir a
hegemonia da mídia imperialista na Venezuela.
25
Os primeiros combates
Desde a campanha eleitoral, ficou claro que a estratégia de Hugo Chávez para o confronto
assimétrico com o statu quo tinha por doutrina uma revolução criativa e não violenta.
Confirmam-no, com segurança, as duas entrevistas que deu em 1994, onde já expunha com
clareza essa doutrina. Somente sob a proteção de boas leis e a ação efetiva e conjunta dos
três poderes da República, por sua vez legal e institucionalmente bem instrumentados,
haveria chances de sucesso nas batalhas que previa. Mas, como todo líder revolucionário,
Chávez sabe muito bem que nada disso poderia funcionar sem a adesão maciça do povo.
Claro, nenhum de seus planos poderia excluir o vetor principal de força e poder
revolucionários. De imediato, aproveitando o impulso de sua popularidade, da vitória
eleitoral e da força política que o levava ao poder, tão logo pisou em Miraflores tratou de
convocar um referendo para consultar o povo sobre a redação de uma nova Constituição,
aliás, um pleito de campanha. Propunha a transição da "democracia representativa", como
se autointitulam os sistemas neoliberais, para a verdadeira democracia participativa.
A resposta midiática, também de imediato, contestou a proposta e, manipulando os partidos
derrotados de oposição, propugnou pelo "no".
Com tal decisão, a oligarquia venezuelana, controladora da mídia hegemônica no país, não
fazia mais que dar continuidade a uma inacreditável sequência de erros e derrotas em suas
disputas com Chávez. A qualquer observador ou analista dos fatos históricos em nosso
continente, impressiona a estupidez das elites e oligarquias latinoamericanas. Como são
previsíveis, como são simplórias em seus raciocínios! Nelas impera, antes de tudo, um
preconceito irracional e sem sentido. É bastante um "mulato" irreverente como Chávez
pleitear o poder para lhes despertar a arrogância de pretensos "brancos" nobiliárquicos e
fazer vazar um ódio histérico e agitado, incapaz de abrigar qualquer bom senso ou análise
serena da situação. E não aprendem! É claro, foram mal acostumados. Sempre puderam se
dar ao luxo de cometer todos os erros, até os mais grosseiros, os mais absurdos. Também
nunca necessitaram fazer reflexões, autocríticas ou avaliações imparciais das próprias
atitudes. Na hora H, derrotadas por todas as vias democráticas, políticas e legais, bastavalhes pedir socorro ao 7º de Cavalaria e tudo se resolvia. A bem da verdade, o general Custer
poucas vezes visitou o quintal dos EUA onde habitamos. É-lhe suficiente mandar tocar a
corneta para os cucarachas locais, que previamente leva à Escola das Américas onde os
instrui e os arma para cair sobre seus próprios povos, e prontamente obedecerem.
Mas não na Venezuela. E, muito menos, com o esperto e audaz Hugo Chávez no poder.
Chávez ocupou a presidência de um Estado saqueado, aviltado, quase sem poder.
Praticamente todas as boas fontes de mando e poder foram usurpadas e surrupiadas ao
Estado venezuelano nas duas décadas anteriores, com anuência e participação de governos
entreguistas e neoliberais. As grandes estatais e toda a infra-estrutura do país haviam sido
privatizadas, incluindo os sistemas de educação, saúde, transportes e tudo o mais, quase
doados a grupos locais e multinacionais, e a seus capangas das elites nativas. Ao Estado,
com Chávez, restava o apoio popular legitimado pelo voto (56,2%, ainda com alto índice de
abstenção) numa coligação de inúmeros pequenos partidos políticos, e o setor das Forças
Armadas que lhe era fiel. Tudo mais, inclusive os grandes partidos políticos, estava nas
mãos das elites nacionais e "sócios" estrangeiros.
26
A proposta do MVR (Movimento 5ª República), que elegeu Chávez e reunia mais de trinta
pequenos partidos de esquerda e centro-esquerda, era mudar esse quadro de forma gradual e
não violenta, negociando passo a passo, caso a caso, as necessidades mais urgentes de um
povo cuja imensa maioria fora miserabilizada e praticamente ignorada pelo Estado. Para os
meios de comunicação nacionais e internacionais, essa maioria era invisível, isto é, não
existia. Mesmo assim, o raciocínio mais banal e sereno, para as elites, deveria ser o de ir à
mesa de negociações com o novo poder legítimo e abrir mão de alguma coisa. Mas, o quê?
Negociar com o "gorila", o "charlatão" e sua "gentinha"?
Pois deu no que deu. No referendo (15 de dezembro de 1999), cujo resultado foi um
massacrante 86% dos votos no "si", os até então "grandes" partidos políticos, que,
manipulados pela mídia hegemônica, apoiaram o "no", foram reduzidos a pó. Na seqüência
dessa primeira vitória, chamou-se para a votação nos deputados constituintes, e o MVR
elegeu 66% deles. No decorrer dos trabalhos, o texto original proposto por Chávez, chegou
a receber 90% de adesão e foi consagrado quase integralmente, linha por linha, como a
Constituição da nova "República Bolivariana da Venezuela".
Com todos os canhões da mídia hegemônica troando forte contra o processo constituinte,
um novo chamado de referendo teve de ser feito para a aprovação do eleitorado ao texto
votado. Uma poderosa campanha pelo "no" tomou conta de todos os espaços possíveis, até
do ar que se respira. E o resultado? 72% "si"!
Somente nesse curto processo constituinte, de menos de um ano, Chávez ganhou a
possibilidade de se reeleger por mais seis anos nas eleições convocadas para o ano 2000, a
possibilidade de releger-se depois por outros seis anos, de eleger uma nova Assembléia
Nacional (num congresso unicamenral), de eleger novas autoridades dos poderes judiciário,
fiscal e eleitoral, todos estes poderes, legislativos e judiciários, até então sob o controle
total, direto ou indireto, das elites oligárquicas do ancien régime (4ª República).
Não sabemos se Chávez conheceu Brizola, Darcy Ribeiro e os CIEPs do Rio de Janeiro. É
provável que sim. Chávez demonstra bom conhecimento do trabalhismo brasileiro e tem
revelado predileção especial pelo presidente João Goulart, entre os chefes de Estado
históricos do Brasil. Se conheceu, com certeza deve ter extraído lições preciosas daquela
história de um fracasso. Uma delas é que um processo de mudanças radicais, em
enfrentamento com interesses hegemônicos e imperialistas, requer o estabelecimento prévio
de novas leis que equipem o Estado de poderes suficientes para impô-las e ao mesmo
tempo reter o assalto aos cofres públicos e às riquezas nacionais. Enfim, uma nova
Constituição que se coloque bem distante do perfil neoliberal das Constituições que
vigoravam em quase todos os países latino-americanos na década de 1990. Este foi um erro
de Brizola: tentar mudanças radicais sem a força de novas leis, ainda que, no caso dele, em
esfera estadual. De qualquer forma, foi um erro que Chávez não cometeu.
Assim, com a democracia participativa implantada legalmente, à revelia das elites e das
campanhas da mídia hegemônica, o governo Chávez tratou de fomentar o processo de
educação em massa, além de incrementar a Saúde Pública. Para tanto, deu início ao
aprofundamento das relações com a Revolução Cubana, que vivia dias difíceis pela queda
da URSS e o bloqueio dos EUA. Essa relação não só seria salvadora para a Revolução
Cubana como traria para a Revolução Bolivariana de Venezuela todo um conhecimento e
uma vivência que lhe seria fundamental, em especial, nas áreas de Educação e Saúde.
27
Reeleito em 2000 com 59% dos votos (ainda com grande índice de abstenção), para seis
anos de mandato (2001-2006), Chávez insistia nas tentativas de negociar com as elites.
Teve por resposta o incremento da força oposicionista contra seu governo, desta vez
assumida diretamente pelos canais midiáticos mais poderosos, em especial os televisivos, e
diversas instituições como a FEDECÁMARAS (a maior federação empresarial do país) e a
pelega CTV (Confederação Venezuelana de Trabalhadores), com o apoio declarado do
governo dos EUA, apoio este que seria reforçado com a eleição de Bush II, o cowboy
texano. Esse fenômeno deve ser sublinhado aqui, pois foi a primeira vez que a mídia
hegemônica assumiu direta e nominalmente a sua condição de co-ator político, não
legítimo, sem se esconder por detrás de partidos por ela manipulados.
Porém, como já vimos, ao longo de todo o processo, desde 1992, a cada passo ou a cada
erro, a mídia hegemônica perdia credibilidade perante o povo venezuelano, com reflexos
em toda a América Latina. Por sua vez, Chávez incrementava seu próprio projeto midiático,
fortalecendo a VTV e as rádios e televisões comunitárias, além de incentivar e ajudar a
diversos jornais e revistas independentes, impressos e eletrônicos.
Percebendo as sucessivas perdas, as elites e a mídia hegemônica, com apoio declarado de
Washington, decidiram sair definitivamente dos trilhos da legalidade para tentar um golpe
de Estado que derrubasse de uma vez por todas a "ditadura castro-comunista" de Hugo
Chávez. A conspiração tinha a adesão assumida e declarada de parte importante da cúpula
das Forças Armadas e toda a Polícia Metropolitana de Caracas, a FEDECÁMARAS, as
grandes empresas estatais privatizadas (PDVSA, CANTV, Cias de Eletricidade, SIDOR, etc),
a CTV, a Igreja Católica, todas as ONGs estabelecidas no país vinculadas a interesses
imperialistas, a grande maioria dos pequenos e médios empresários, das classes médias e
altas, dos políticos de oposição, de dissidentes do chavismo, e 95% da comunicação
midiática de real influência e grande audiência no país.
O processo conspiratório foi detonado ainda no início de 2001, com uma declaração-senha
do ex-presidente Carlos Andrés Perez, pela televisão, logo seguida de uma série de atos
isolados de boicotes, greves e sabotagens, ao longo de todo aquele ano, concatenados para
desgastar o governo e fragmentar suas bases, sendo tudo coordenado, sob a supervisão da
CIA e do Pentágono, pelos veículos da mídia hegemônica, então capitaneada por
Venevisión, com apoio uníssono de todas as demais.
Como vimos na introdução deste trabalho, o golpe foi desfechado em 11 de abril de 2002,
tendo sido abortado menos de 48 horas depois, no dia 13 de abril. A Venezuela pagou 19
cidadãos assassinados por franco atiradores contratados pelos golpistas e por atiradores da
polícia metropolitana, que tinham planos comprovados para o assassinato de centenas de
cidadãos (cerca de 400). Desta vez, as equipes da VTV, TVs e rádios de resistência, jornais
e fotógrafos independentes, não só atuaram bravamente junto a heróis resistentes armados
que respondiam ao fogo policial para impedir o massacre, denunciando-o ao vivo, como
também conseguiram registros preciosos de toda a tragédia. A partir desses registros, vários
documentários foram realizados com sucesso, entre os quais, destacamos Puente Llaguno claves de uma masacre (dir. Angel Palácios, 2004), sobre o qual redigimos um artigo tão
logo tivemos a oportunidade de visioná-lo, pelo ineditismo de linguagem de um registro
histórico, pioneiro na história do cinema, que só se tornou possível graças à mídia de
resistência equipada, fomentada e livre para existir e produzir em sua pátria venezuelana.
Com o fracasso golpista, a Revolução Bolivariana de Chávez ganhou um fôlego inaudito e
inesperado. Os militares e funcionários públicos envolvidos foram expulsos das Forças
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Armadas, dos órgãos e entidades públicas em que se mantinham, e, junto aos demais
conspiradores, tiveram de prestar contas à Justiça em processos que o Ministério Público
desfecharia contra eles, inclusive por razões criminais. Os cargos militares e públicos
liberados foram ocupados por funcionários leais ao governo. Os cabeças da conspiração
tiveram de sair do país para fugir às penalidades que com certeza lhes seriam impostas por
atos criminosos e de traição à Pátria. Muitos deles ainda são procurados pela polícia e
encontram-se "exilados" em Miami ou em outros "paraísos" do Império.
Os golpistas perderam as Forças Armadas, em suas três armas, e a Guarda Nacional, toda a
Polícia Metropolitana de Caracas, muitas das polícias estaduais e municipais em todo o
país, as principais lideranças da FEDECÁMARAS, da CTV (reduzida a nada), muitas
cúpulas dirigentes das empresas estatais privatizadas e boa parte do apoio de boa fé que
lhes fora dado pelas classes médias e altas e por pequenos e médios empresários. E a
credibilidade da mídia hegemônica, que já não era lá essas coisas, foi para o espaço: sua
audiência começou a despencar em favor do crescimento da estatal VTV.
A partir daí, também a situação dos fardados mudou radicalmente. As fardas voltaram a
trazer o orgulho, a simpatia e o respeito de todos. Militares eram aplaudidos quando
entravam uniformizados em espetáculos, peças teatrais, cinemas e eventos sociais, ou
quando chegavam a seus bairros e se viam cercados por crianças pedindo autógrafos.
Chávez mandou colocar nos quartéis e instalações militares cartazes e faixas com uma frase
famosa de Bolívar: "Maldito seja o soldado que ataca o próprio povo!"
Além do mais, Chávez deu ali o início do incremento em alta escala de investimentos e
reequipagem das Forças Armadas, sem precedentes e ainda em curso, envolvendo grandes
obras de engenharia, montagens de indústrias bélicas, compras de equipamento e material
bélico pesados, leves e estratégicos, de sistemas sofisticados de radares e de tecnologia de
informação e inteligência, aumentos substanciais de soldos e benefícios, ingressos de novos
contingentes (a UNEFA, academia de formação militar das Forças Armadas, tinha 600
alunos em 1998; hoje são 180.000, e os planos para 2010 pretendem capacitá-la para
1.000.000 de alunos), e inúmeras outras medidas, algumas delas em segredo de Estado.
Mas, como dissemos, os golpistas não aprendem! Mesmo com o fracasso do golpe, não se
deram conta das perdas que sofreram e nunca morria neles a esperança de o general Custer
chegar triunfante em Caracas, ao som das conhecidas cornetas roliudianas. Por estar quase
totalmente privatizada, a oligarquia e seus sócios transnacionais, mesmo depois da tentativa
de golpe, mantinham em seu poder boa parte dos cargos de mando da PDVSA (Petróleos
De Venezuela Sociedade Anônima), que era, de longe, o principal pilar da economia do
país. Parece que na avaliação dos estrategos golpistas, como sempre provocados por
Chávez, que ameaçava tomar-lhes a PDVSA, o governo bolivariano teria saído
enfraquecido do combate em abril e não teria condições de suportar novo golpe. Talvez por
isso, ao invés de baixarem o tom de ataques contra o governo, o aumentaram. Juntando
todos os cacos que lhe sobraram da tentativa de golpe em abril, os golpistas, ao final do
mesmo ano de 2002, decidiram promover um boicote petroleiro - o Paro Petrolero - com a
paralisação de todas as atividades produtivas da PDVSA e da maioria das empresas do país
(lock out). Assim, a partir de 6 de dezembro de 2002, semearam o caos no país.
Durante 64 dias consecutivos, a mídia hegemônica naquele país mudou de formato,
dedicando-se - em cadeia 24 horas por dia das quatro grandes emissoras privadas, que
abriram mão até da grade de entretenimento e da publicidade comercial - a um processo
declarado e aberto de derrubada do governo. A mídia hegemônica mundial, por sua parte,
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deu cobertura integral a favor do novo golpe. Desta vez, o movimento cobrou três mortos
em atos de violência, pelos quais a mídia hegemônica, sem provas e de imediato,
responsabilizou o governo Chávez. Além disso, Venezuela perdeu 3.800 poços de petróleo
sabotados e destruídos por funcionários golpistas de PDVSA, que destruíram também todos
os sistemas informatizados da empresa. Nos 64 dias em que durou o movimento, foram
veiculadas pela mídia hegemônica venezuelana mais de 17.000 mensagens publicitárias de
insultos ao governo e ao presidente, ou com finalidade de emular o caos e a desordem, o
que, no pensamento equivocado desses estrategistas, enfraqueceria o governo e colocaria o
presidente de joelhos aos pés dos golpistas.
Pois deu-se exatamente o contrário, como era de se esperar para quem tem um mínimo de
bom senso. As sedes das quatro emissoras golpistas viram-se cercadas pelo povo de
Caracas, e seus funcionários ficaram reféns do cerco, que os impedia de entrar e sair dos
edifícios. De fora, os populares gritavam em coro aos de dentro: "- Digam a verdade!
Digam a verdade!" O povo soube também suportar as adversidades inerentes ao
desabastecimento e ao caos implantado no país. Aliás, o povo sabe suportar tais
adversidades muito melhor que as classes médias e altas. Por sinal, foram estas últimas que,
impacientes com a demora da queda do governo (a cada dia mais firme), começaram a
melar o golpe. A audiência da VTV e das emissoras comunitárias, é óbvio, aumentava e
começava a incomodar as poderosas emissoras da mídia hegemônica. Chávez, por sua vez,
valendo-se de um dispositivo da nova Constituição que autoriza os poderes de Estado a
convocar, a critério de suas autoridades máximas, uma cadeia nacional de rádio e televisão
obrigatória a todos os veículos radioelétricos, fazia vários pronunciamentos demolidores
por dia contra os traidores golpistas.
Comentando sobre aqueles dias tenebrosos, Chávez disse certa feita que Fidel Castro, que,
de Cuba, acompanhava cada minuto da confusão, o teria elogiado depois pela forma
inusitada de combate, no qual Chávez era bombardeado e depois, usando os mesmos
canhões do inimigo, os bombardeava.
Os pequenos e médios empresários e comerciantes que se aliaram ao que restava da
FEDECÁMARAS, promotora oficial do novo golpe, viram suas receitas natalinas irem para
o espaço. Muitos fecharam as portas e milhares de trabalhadores ficaram nas ruas, com
mais tempo, inclusive, para apoiar o governo. Faltava tudo, até gasolina. Pela primeira vez
na história, a Venezuela teve de importar gasolina. Nas mesas fartas das classes médias e
altas, faltava sobremesa, patê-de-fuá e uísque.
Com o governo firme e o povo nas ruas aguardando seu sinal, Chávez, em comício
histórico transmitido em cadeia nacional no dia 23 de janeiro de 2003, na avenida Bolívar
abarrotada por seus eleitores, convocou a invasão da PDVSA, que, em 3 de fevereiro, foi
tomada e ocupada sem resistência. Toda a direção da empresa e mais de 15 mil
funcionários golpistas foram postos no olho da rua, e o governo decretou o início do
processo de reestatização da empresa.
E a oposição, acrescentando mais um erro monumental a todos os que já cometera, perdeu
desta feita a PDVSA. Em contrapartida, o governo Chávez conquistava vitoriosamente o
maior de seus triunfos.
30
Educação, liberdade de expressão e novas batalhas
A conquista da PDVSA deu ao governo Chávez o que precisava para deslanchar a nova fase
de sua estratégia, que soma dois vetores básicos: educação e liberdade de expressão.
A arrecadação da PDVSA era agora de seu domínio, e a montanha de dinheiro que a
empresa passou a faturar com os preços do petróleo supervalorizados por causa do novo
golpe fracassado (Venezuela ficou 64 dias sem exportar uma gota de petróleo e 3.800 dos
seus poços foram destruídos) abria-lhe condições magníficas de pôr em prática o seu plano
original, além de poder radicalizá-lo ainda mais.
Chávez deixou os golpistas aos cuidados dos poderes judiciário e policial, sem destes exigir
muito, pois as complicações intrínsecas a tais poderes estavam longe de uma solução que
satisfizesse a revolução. Não houve retaliações, perseguições, fechamento de empresas e
instituições envolvidas nos dois golpes de Estado, nem dos meios de comunicação, que
continuaram a funcionar como se nada tivesse acontecido. O estrategista Hugo Chávez
tinha de conter o ímpeto retaliatório dos próprios partidários e os induzia a concentrar
esforços no objetivo mais imediato da Revolução: o de eliminar o analfabetismo e
implantar uma estrutura de Educação e Cultura no país jamais vista na América Latina.
Urgia estreitar laços com Cuba, ajudar aquele país a sair de suas dificuldades e trazer a
contribuição dos cubanos ao processo revolucionário venezuelano. Com o apoio dos
cubanos, o governo bolivariano deu início ao programa das missões e da construção das
escolas bolivarianas. São 8.200 escolas para todos os graus de educação, de berçários
(simoncitos) a universidades; 14.400 "aldeias universitárias" (já entregues - é um conceito
de municipalização do curso superior e de transição do nível médio ao superior, exclusivo
da Missão Sucre), e 28 novas e grandes universidades, até o fim de 2010. As missões são
forças-tarefas organizadas pelo governo com profissionais de Educação, Saúde, Assistência
Social, Esporte e Cultura contratados pelo governo em Cuba e Venezuela, que, junto ao
trabalho voluntário ou contratado com as populações de bairros, de pequenas cidades,
prefeituras e governos de estados, resolvem uma série de problemas localizados e
implantam uma conexão local com as políticas governamentais. Com esse dispositivo, o
governo driblava as burocracias estatais ainda infestadas de ranços do passado neoliberal,
incluindo o vírus da corrupção. A revolução já promovia mudanças profundas nessas
estruturas mas, para a urgência que requeria, eram morosas, ineficazes e sem agilidade.
Para as missões de Educação e Saúde, Cuba enviou à Venezuela exércitos de professores e
médicos (cerca de 43.000 profissionais) para trabalharem em colaboração com profissionais
venezuelanos, além de equipamentos, tecnologia e materais de consumo. Em contrapartida,
a Venezuela resolveu para Cuba os problemas de suprimento de petróleo e ajudou a
solucionar as dificuldades da ilha causadas pelo bloqueio dos EUA e pelo fim da URSS.
Os objetivos das missões focaram primeiro a Educação (Missões Robinsón I, Robinsón II,
Ribas, Sucre, Ciência e Cultura), que cobrem desde o pré-parto até a formação superior de
jovens das classes pobres, Saúde (Missões Milagro, Barrio Adentro) e Assistência Social
(Missões Negra Hipólita, Madres del Barrio). Várias outras missões foram depois criadas
pelo governo para ajudar o povo na solução de problemas de habitação, urbanização,
higiene e até no ingresso nas Forças Armadas e na preparação da resistência popular.
Porém, temos de repetir, os golpistas não aprendem!
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Os garis ainda limpavam as ruas imundas de Caracas, transtornadas pela balbúrdia golpista,
e já eles queriam Chávez fora do governo, desta vez, por um referendo revogatório cujas
regras deveriam ser ditadas por eles próprios. O referendo revogatório é um instrumento
criado por Chávez na nova Constituição com o objetivo de dar ao eleitorado a oportunidade
de rever os mandatos das autoridades eleitas, quando tais mandatos estivessem no meio de
seus períodos legais. A Constituição prevê um regulamento para que se ponha em prática o
instrumento, mas os golpistas insistiam em modificá-lo para novos critérios a eles mais
favoráveis. Evidentemente, uma campanha midiática foi encomendada a Washington para
apoiar o intento, o que abriria novo front de batalha midiática entre governo e golpistas.
A Revolução Bolivariana tem por alicerce doutrinário o rigor da legalidade democrática.
Para ela, a sociedade só será estável quando todos os setores, sem exceção, estiverem
enquadrados e funcionando rigorosamente de acordo com os instrumentos constitucionais e
legais a eles pertinentes, instrumentos estes que devem ser definidos e regulados pela
vontade da maioria do povo, expressa em urnas isentas de fraudes e corrupção. Desta
forma, o pleito oposicionista não tinha chances de ser aceito pelo governo revolucionário,
que não abriria mão de uma vírgula do texto constitucional e dos regulamentos que impõe.
Mas a oposição insistia em mudar as regras e, para tanto, movia novamente mecanismos
golpistas cada vez mais desgastados e inúteis. A campanha midiática encomendada não
adiantou nada. Agora, a mídia hegemônica não era tão hegemônica assim, pelo menos na
Venezuela. Os espaços de audiência da VTV e TVs Comunitárias já se faziam significativos
e importantes. Além disso, o próprio Chávez, com seus dotes inatos de comunicador,
decidiu por entrar pessoalmente na batalha com o programa "Alô Presidente", que
rapidamente alcançou a posição de maior audiência de rádio e TV em todo o País.
O conceito de liberdade de expressão deixava de ser, naquele país, um conceito distorcido
e exclusivo do pensamento único ou não-pensamento manipulador, e passava a ser um
conceito verdadeiro de evolução e desenvolvimento do pensamento crítico, dialético e, em
síntese, libertário. Em tais condições, a convivência dos dois conceitos, num mesmo tempo
e espaço de comunicação midiática, se tornará, na sociedade socialista, impossível. E o
pensamento único com o tempo desaparecerá, pois a natureza da comunicação, inserida no
verdadeiro e socialista conceito de liberdade de expressão, é, antes de tudo, dialética. Isto já
está acontecendo na Venezuela, e é o principal fator possibilitador da decisão tomada pelo
governo de não renovação da concessão da RCTV, como veremos. A estratégia de Chávez
não só é correta, como tem bases teóricas e científicas sólidas.
Um dos maiores erros da URSS foi o de implantar uma comunicação socialista de
pensamento único e manipulador, o que é, desde logo, em teoria, um absurdo, pois o
socialismo é um sistema essencialmente dialético e libertário. O pensamento único só
sobrevive numa sociedade arrestada pelo capitalismo com todas as suas formas de
opressão. Eis porque a propaganda socialista da URSS foi fragorosamente derrotada pela
propaganda capitalista dos EUA.
Como conseqüência da nova realidade midiática venezuelana, ainda que em sua aurora
primeira, a oposição não teve outra saída senão a de se submeter, pela primeira vez, às
novas regras constitucionais. Valendo-se do poder de fogo de seus canhões midiáticos mais poderosos que os do governo e aliados, porém tendo de conviver com a existência
destes, se bem que em fase experimental mas já eficazes e úteis -, conseguiram afinal,
depois de várias tentativas de fraude aos regulamentos, todas repudiadas pela Justiça
Eleitoral, levar Chávez a se submeter ao referendo revogatório de seu próprio mandato.
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Mais uma vez a oposição, querendo o oposto, iria ajudar Chávez e a Revolução
Bolivariana. Isto é, mais um erro da oposição a favor da Revolução. E o general Custer
atolado nas areias movediças do Iraque, até o pescoço.
O referendo deveria ocorrer em 2003, mas, dadas as condições do país pós golpeado e os
estrategemas fraudulentos dos requerentes, acabou sendo adiado para o dia 15 de agosto de
2004. Foi este pleito o primeiro em que Chávez pôde aferir a dimensão, mais próxima da
exata, de seu eleitorado. Na Venezuela, o voto não é obrigatório. O programa educacional e
as missões, funcionando muito bem com ajuda cubana, iria diminuir as abstenções que, no
referendo, caíram pela primeira vez a cerca de 30% (nas eleições anteriores, situava-se nos
60%). Além disso, nas eleições anteriores, o voto em Chávez poderia ser, antes, um voto
contra o sistema neoliberal e não seguramente dele. Portanto, os 59% que obteve neste
referendo, depois de quase cinco anos no governo, lhe consagrava a legitimidade (até então
contestada por causa dos altos índices de abstenção) e a dimensão bem próxima e mais real
de sua força pessoal no eleitorado - e esse é um dado valioso para qualquer governante em
qualquer processo político, mais ainda na Revolução Bolivariana, em que a democracia é,
ao mesmo tempo, doutrina e paradigma.
Neste mesmo ano de 2004, a UNESCO declarou Venezuela "nação livre de analfabetismo".
Cerca de 1.800.000 venezuelanos foram incorporados ao universo de leitores e escritores de
mensagens (hoje totalizam cerca de 3.500.000). A primeira leitura a eles recomendada foi a
Constituição da República Bolivariana da Venezuela. O governo fez gratuita a distribuição
do livrinho a quem dele quisesse se valer para conhecer o texto que rege a sociedade
republicana, a cidadania e os seus direitos dentro delas.
Um depoimento de um dos alfabetizados que vimos num programa de viVe TV é-nos
importante aqui: "Para mim" - disse à câmera da viVe TV aquele operário de obras, um
senhor negro, desinibido, vestindo o uniforme de trabalho e sendo entrevistado numa obra
em andamento - "só havia o rádio como meio de informação. A televisão ainda me exigia,
em muitos momentos, a leitura de textos e legendas que eu não podia fazer. Quanto a
jornais, revistas e computadores, eu nem passava perto. Hoje estou na Missão Robinsón II e
já posso operar um computador, escrever mensagens e ler jornais na internet".
Um outro depoimento no mesmo programa consideramos também importante. Foi dado por
um jovem office-boy, de vinte e poucos anos, numa praça central de Caracas: "Antes" disse o garoto -, "esta praça era muito diferente para mim. Nada significavam as placas e
anúncios que vemos aqui em toda parte. Agora tudo passou a ter sentido, e é como se eu
tivesse nascido de novo, em um novo mundo que entendo melhor e que não mais me dá
medo, porque agora sei o que ele está me dizendo".
Estes dois depoimentos nos dão uma amostra significativa da importância do processo de
alfabetização e educação para a verdadeira liberdade de expressão, em particular, num
mundo cada vez mais equipado de instrumentos e meios de comunicação. Ambos eram
antes receptores praticamente indefesos sob a manipulação do pensamento único, sem
capacidade de análise crítica das mensagens que lhes eram endereçadas, inclusive com
recursos subliminares de dominação e manipulação de seus pensamentos, idéias e desejos.
Eram também restritos a pouquíssimos meios de acesso à informação, sendo estes
completamente dominados pela mídia hegemônica.
Agora, graças às estratégias de Educação e Comunicação do governo bolivariano - que não
se reduz à alfabetização, e vai muito além dela, propiciando consciência e capacidade
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crítica inclusive aos que já eram alfabetizados, e emulando o progresso e a evolução de seus
processos individuais e coletivos de auto conhecimento e contato com a realidade tornaram-se receptores e potenciais emissores do pensamento crítico, incorporando-se
como entes ativos e conscientes do processo dialético de comunicação, propugnado pelo
Estado em direção a uma sociedade socialista justa, libertária e igualitária.
É nesse sentido que, no início de 2005, o governo fez aprovar na Assembléia Nacional a
chamada "Ley RESORTE", a Lei de Responsabilidade Social em Rádio e Televisão, que,
entre inúmeros novos e revolucionários dispositivos, regulamenta o uso de veículos
radioelétricos, estabelece mecanismos de proteção jurídica a telespectadores e ouvintes,
promove e facilita o acesso da produção independente, exige a comunicação da informação
noticiosa veraz e oportuna, etc.
É este o ambiente em que a mídia hegemônica perde força e poder, sem que seja necessário
reprimi-la por meios convencionais e ultrapassados, tais como censura, perseguição a
jornalistas, fechamento de jornais e o mais das receitas fascistas e neoliberais . É bastante
que uns poucos veículos de comunicação comecem a surgir com algum poder real na
contravia da mídia hegemônica, mesmo em flagrante inferioridade de alcance e audiência,
mas criando espaço de recepção do pensamento crítico, para que o pensamento único
comece a desinflar como um balão furado.
Eis que, então, dentro dos parâmetros estabelecidos pela Ley RESORTE, o governo funda a
viVe TV, que, associada às TVs Comunitárias, fomentando-as e incubando novas, cria um
novíssimo, poderoso e revolucionário espaço de comunicação dentro do velho e desgastado
espaço midiático, justamente para absorver e dar espaço ao novo receptor/emissor que o
sistema educacional introduz em massa no ambiente de real liberdade de expressão, o qual
vem sendo até criticado por setores conscientes da sociedade, justamente pelo excesso de
liberdade (permissividade) que tem sido admitida pelos poderes públicos. Reivindicam tais
setores a aplicação da Ley RESORTE que lhes parece valer só para veículos do governo e
da mídia de resistência, e são afrontados e desobedecidos com desafiante contumácia por
todos os veículos da mídia privada, sem que os órgãos encarregados de fazer cumprir a Lei
tomem providências. Também os tribunais estão abarrotados de demandas de ouvintes e
telespectadores instrumentados pela nova Lei para fazer valer os direitos contra abusos dos
veículos privados, e nada acontece, pois o Ministério Público e o Procurador Geral parecem
não querer mover os instrumentos de direito que lhes são pertinentes. O governo pede
calma. "Tudo tem o seu tempo", costuma dizer o estrategista Hugo Chávez
No plano internacional, o governo revolucionário inaugura a TeleSur, a super emissora
encarregada de cuidar das propostas revolucionárias na contra mão da mídia hegemônica
mundial, com o objetivo de quebrar essa hegemonia.
Mas, outra vez mais, teremos de repetir: as oligarquias latino-americanas não aprendem!
A Revolução Bolivariana da Venezuela entrara no ano de 2005 com a retomada do
desenvolvimento e do crescimento econômico, e mobilizada para as eleições legislativas
previstas no calendário constitucional para o fim do ano. Pela primeira vez, o governo
bolivariano alimentava a perspectiva de eleger um corpo legislativo mais bem configurado
para com a Revolução, e fazer da Assembléia Nacional um vetor de fato ativo e relevante
em seu papel legislador e aprimorador da democracia revolucionária.
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Os fragmentos que restaram da oposição, os ex-grandes partidos, os ex-grandes líderes, os
financiadores de Miami e a mídia privada (não mais hegemônica) se unem para reverter a
tendência de maioria bolivariana na composição da Assembléia Nacional.
Em relação à AN (Assembléia Nacional), a Revolução enfrentava sério problema. Para o
povo, aquela casa sempre fora antro de políticos corruptos e sem credibilidade, que nada
faziam e ao povo só se dirigiam com interesses clientelistas de comprar ou obter votos.
Uma vez lá, se locupletavam com as facilidades, mordomias e vantagens da Casa, sempre
usadas em benefício próprio e de seus apaniguados. Os enormes índices de abstenção em
eleições legislativas (cerca de 75% nas de 2000) eram uma tendência histórica que não
poderia ser ainda revertida pela Revolução; o processo de conscientização das massas
apenas se iniciava e não chegara ao ponto de mostrar a importância do poder legislativo
para a democracia e a Revolução. Para as massas, a palavra deputado era sinônima de
salafrário, malandro, corrupto, de gente que quer se dar bem às custas do povo. Pelo
histórico da casa, temos de convir em que a sensibilidade do povo captava boa parte da
verdade, e o que há de exagero nela deve ser debitado à mídia privada e ao papel nefasto
que exerce na opinião pública. Infelizmente, para a Revolução Bolivariana, as massas só
reconheciam a existência e a importância do presidente Chávez e seu poder Executivo.
Por outro lado, este seria um fator extremamente favorável à oposição, uma vez que seus
eleitores vêm das classes médias e altas, que, bem mobilizadas, poderiam comparecer
maciçamente e até conquistar, senão uma maioria, a manutenção da presença expressiva
que já possuíam na Casa e lhes dava condições de ser a pedra no sapato do governo
Chávez, além do poder de frear ou retardar o processo revolucionário.
Até aquele momento, a oposição mantinha 79 das 165 cadeiras da AN, as quais não davam
tréguas ao governo. Em boa parte, a presença significativa da oposição naquela casa tinha
logrado travar mudanças necessárias à Revolução, como as do Poder Judiciário, o qual,
apesar de tudo, ainda tinha o TSJ (Tribunal Supremo de Justiça) em mãos das oligarquias.
E de uma forma tal que elas obtiveram do TSJ o maior absurdo jurídico da história do país:
uma sentença declaratória de que "nunca houve golpe de Estado na Venezuela, em 11 de
abril de 2002"! Com tal aberração, o TSJ legalizava a impunidade de quase todos os
envolvidos naquele golpe. Muitos conspiradores puderam retornar ao país e voltar a
conspirar. Houve até os que pretenderam a restituição de cargos. Quando chegou nisso,
Chávez bateu o pé: "Terão de me derrubar para terem de volta esses cargos" - provocou.
Eis que, então, as cúpulas oposicionistas chegam a uma brilhante idéia: boicotar, em bloco,
as eleições legistativas, deslegitimar o pleito, dissolver a AN, deslegitimar o governo e,
enfim, - oh, glória! - derrubar Chávez! Ou seja, um novo golpe de Estado!? Há que
reconhecer, eles não aprendem...
Com essa obcessão ocupando todos os espaços que deveriam estar dedicados aos
raciocínios lógicos e estratégicos, as oposições deram início às conhecidas catimbas,
fraudes, sabotagens e aos golpes midiáticos. E, na última hora, todos os seus candidatos
retiraram as candidaturas, tornando-se, talvez, um caso inédito mundialmente de suicídio
político coletivo. O governo, por sua vez percebendo as óbvias intenções golpistas, tratou
de convocar observadores internacionais para acompanhar as eleições.
"Os observadores internacionais que acompanharam o processo eleitoral afirmaram, no
final da tarde de domingo, que tudo estava transcorrendo em um clima de normalidade. As
eleições foram acompanhadas por 150 observadores da União Européia, 100 da OEA e por
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um grupo de 180 personalidades, entre as quais os presidentes dos organismos eleitorais do
continente. O chefe da missão de observadores da Organização dos Estados Americanos
(OEA), Rubén Perina, disse que, nos lugares que visitou, o processo eleitoral na Venezuela
'foi normal e tranqüilo'. A organização venezuelana Ojo Electoral, a mais credenciada entre
as nacionais dedicadas à observação, confirmou a normalidade do pleito em seu primeiro
boletim do dia." (site altermidia.info, em 11/12/2005)
Assim, sem a concorrência de candidatos da oposição, os partidos que apoiavam Chávez
elegeram todas as 167 cadeiras da Assembléia Nacional. Depois, de nada adiantou o
chororô oposicionista diante do leite derramado.
Na mídia privada, caíram em si a Venevisión e a Televen. Ambas, depois de tantos e
sucessivos fracassos golpistas, e desde o fracasso do golpe petroleiro, enfim perceberam o
tamanho do abismo que estavam cavando entre suas empresas e os objetivos dos próprios
contratos sociais que as constituem. Não é que tenham mudado de posição ideológica ou
aberto mão da linha editorial de oposição a Chávez. Porém, abandonaram o golpismo e o
desrespeito raivoso e preconceituoso contra o governo. Procuram agora fazer uma mídia
mais imparcial e uma oposição mais responsável (com muitas recaídas), mas, enfim,
começaram a se enquadrar nos propósitos dialéticos e democráticos da Revolução, que não
dispensam, e até necessitam, opiniões contrárias e oposições construtivas.
Em recente entrevista, o multimilionário Gustavo Cisneiros, presidente da Venevisión
afirmou: "Depois dos acontecimentos de abril de 2002 e do referendo revogatório de 2004,
fiquei convencido de que um canal de televisão não pode, nem deve tomar a posição de ser
protagonista de um conflito político, por mais seja a favor ou contra o governo." E foi mais
longe: "(as televisoras) não podem nem devem parcializar-se no no conflito nacional, e nem
devem pretender substituir os partidos políticos, se não quiserem piorar o conflito. Isto é o
que se está passando em Venezuela."
Tempo de bonança
A entrada do ano de 2006 foi bastante tranqüila para a Revolução. As mudanças no Poder
Legislativo, e, conseqüentemente, no Judiciário, onde enfim o governo revolucionário pôde
nomear novos ministros do TSJ, davam a ela o ambiente democrático equilibrado, com três
poderes autônomos e independentes, em pleno exercício de suas prerrogativas
constitucionais, saneados de muitos dos vícios e gangrenas neoliberais da 4ª República.
A recuperação da PDVSA, capitaneada pela competente equipe do governo, com total apoio
dos trabalhadores e funcionários revolucionários, fora sucesso absoluto e tornou a empresa
ainda mais eficiente, produtiva e rentável que antes. Isto tendo ela sido sabotada em todos
os seus sistemas informatizados e perdido, de forma irrecuperável, 3.800 poços produtivos.
Em sua maior parte estrutural, a PDVSA fora renacionalizada, restando em mãos privadas
as explorações na chamada "faixa do Orinoco", que ficaram para uma segunda fase, que
ocorreu no início de 2007.
Os índices macroeconômicos vinham cada dia mais favoráveis, com alto crescimento do
PIB, baixa inflação, queda nas taxas de juros, etc. Os índices sociais, melhores ainda, com
queda radical nos níveis de pobreza, queda nos índices de desemprego, aumento de
benefícios sociais, salários, distribuição de renda e tudo mais.
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Chávez não vacilou e pôs a máquina para funcionar a toda potência. Com vistas às eleições
presidenciais previstas no calendário eleitoral para o final do ano, ele transformou a
Venezuela num canteiro de obras em grande escala, com atividades em todas as áreas. Seria
longo e fora do nosso assunto dar uma relação, mesmo resumida. O que se pode dizer é que
todos os ministérios e missões tiveram pela frente um volume de realizações de tal ordem
que era difícil acreditar que dessem conta. No entanto, com a competência e a capacidade
de trabalho de Chávez e sua equipe, não só deram conta de tudo com sobras, mas deram-se
ao luxo de aprimorar, e até avançaram projetos que poderiam ser postergados.
No campo das comunicações, a revolução já contava com um "sistema bolivariano de
comunicações" razoavelmente parrudo, desde a ABN - Agencia Bolivariana de Noticias, a
RNV - Rádio Nacional de Venezuela, a VTV - Venezolana de Televisión, a viVe TV
Educativa, a TeleSur, até as diversas e já estáveis Rádios e TVs Comunitárias, lideradas
pela Catia TV. A Revolución de la Consciencia foi, durante este ano, alicerçada e erguida
pelo ministério da Cultura, junto a outras macroiniciativas governamentais.
Com tudo isso em andamento e evoluindo, Chávez partiu para uma grande ofensiva na
política externa, com duas vertentes bem claras: a integração latinoamericana e caribenha e
a aproximação da Venezuela com governos progressistas de todo o mundo, visando a
construção de uma nova realidade multipolar de poder mundial.
Confiante na competência e lealdade de suas equipes, Chávez deu início a uma série de
giros internacionais pelos quatro cantos do mundo, levando, além de solidariedade e
amizade, propostas irrecusáveis aos governantes dos os países que visitou na Europa, na
Ásia, no Oriente Médio, na África, na América Latina e no Caribe. Ele tinha um grande
trunfo.
Com a recuperação da PDVSA, o governo revolucionário pôde enfim ter acesso ao
inventário real de suas riquezas petrolíferas. E teve bela surpresa. As prospecções
realizadas na "faixa do Orinoco", antes tida como área de baixa rentabilidade por causa do
tipo de petróleo que reservava, mostravam uma realidade completamente oposta, até então
mantida em segredo pelos grupos transnacionais que a exploravam, em conluio com os
oligarcas criollos, como gosta de dizer Chávez. Na verdade, as prospecções confirmadas na
região, algumas já registradas em nome de transnacionais que ali operavam, demonstram
que a Venezuela é possuidora da maior reserva mundial de petróleo e de uma das maiores
reservas de gás natural do planeta.
Chávez, que de bobo não tem nada, sabia que os EUA tinham essa informação e estavam de
olho no maná de petróleo, ali, bem no seu "quintal". Decidiu então decretar que aquelas
reservas só poderiam ser exploradas por empresas mistas, com a participação obrigatória e
majoritária do governo venezuelano em todas elas, e deu prazo até o início de 2007 para a
reforma dos contratos em vigor, desde já avisando às empresas que estavam explorando e
prospectando a região que teriam de se submeter ao novo decreto ou sair da Venezuela. O
governo se comprometeu a estudar, caso a caso, os valores das indenizações às empresas
que tivessem feito inversões como sócias majoritárias de algumas das reservas que estavam
em fase de exploração e extração de petróleo (as reservas de gás estavam intocadas, assim
como a grande maioria das de petróleo).
Chávez foi então a todos aqueles países, governados por líderes progressistas e anti-EUA,
levando propostas de convênios de toda espécie, econômicos, culturais, esportivos, o diabo,
mas, entre elas, a de compor empresa mista com a Venezuela para a exploração de petróleo
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na "faixa do Orinoco". Foi um sucesso! Inclusive empresas estadunidenses, francesas,
inglesas, alemãs, chinesas, russas, além de empresas de petróleo da África, América do Sul,
América Central e Caribe aceitaram convites para a formação de empresas mistas de
exploração de petróleo e gás na Venezuela, sempre, é claro, com participação majoritária
do governo venezuelano (51% ou mais, dependendo da capacidade de inversão em capitais
e tecnologia de cada convidado).
Douglas Bravo criticou Chávez por esta iniciativa que chamou de "socialismo fifty-fifty",
alegando que o petróleo é 100% venezuelano, e o governo não precisa fazer sociedade com
ninguém, muito menos com empresas transnacionais capitalistas. No nosso modesto
entender, devemos discordar de Bravo. Na atual situação unipolar do poder mundial e,
dentro dela, a crise de energia e, em particular, o fim da matriz energética petrolífera, o
único país do mundo que pode dizer que é o dono exclusivo de 100% do petróleo
encontrado em seu território é os EUA. Ora, o único poder que pode contrarrestar o poder
estadunidense é o poder de todos os outros países do mundo juntos. O que Chávez está
fazendo é colocar todos os países do mundo interessados no petróleo da Venezuela,
inclusive transnacionais dos EUA, mas com preferência para países e potências não
alinhadas com a política imperial, e ainda garantindo o mando e a soberania venezuelana
nos pactos que fizer. Grandes inversões de capitais de potências como Rússia, China,
Inglaterra, Alemanha, França, Holanda, além de potências de médio porte como Irã, Brasil,
Argentina, Canadá, Malásia, Vietnam, e, ainda, inúmeros países, que vão desde a Gâmbia,
na África, até a Nicarágua, na América Central, passando por Cuba, Bolívia, Equador,
Bielorrússia e outros, já estão sendo feitas na Venezuela, dentro do sistema proposto por
Chávez, sem desprezar os demais convênios, que envolvem todas as áreas da economia,
indústria, comércio, infra-estrutura, agropecuária, armamentos, transportes de massa,
refinarias, informática, cultura, esporte, cabos submarinos, gasodutos e o escambau.
De forma que, a cada dia que passa, fica mais difícil o desembarque do general Custer e o
seu 7ª de Cavalaria (e o cowboy texano, não podemos nos esquecer) tocando as cornetas de
roliúde (ou as trombetas do Apocalipse). O que Douglas Bravo propôs a Chávez foi o que
fez Saddam Husseim. E deu no que deu. Ainda que Custer tenha se atolado em definitivo
nas areias movediças do Iraque, e que a vitória chegará um dia para o povo iraquiano, o que
passou e o que passa aquele povo "hermano y amigo" não é de modo algum o que Chávez e
todos nós desejamos para o povo da Venezuela.
Chávez enfrentou as eleições de 2006, praticamente sem fazer campanha. O seu programa
"Alô, Presidente" tornou-se grande sucesso, e ele o fazia na Bolívia, no interior do país, na
inauguração de escolas e hospitais, nas savanas retomadas de latifundiários e entregues a
camponeses, nas indústrias tomadas de patrões e entregues a operários, e por aí afora.
A mídia privada (RCTV, Globovisión, rádios e jornais associados) estrilava, estrebuchava,
esperneava, mentia, falsificava pesquisas, tentava de tudo, com as mesmas ladainhas, os
mesmos insultos, o mesmo desprezo, o mesmo desrespeito, a mesma empáfia, a mesma
traição aos valores nacionais, à cultura, à pátria, mas nem chegou a fazer cócegas. Chávez
ganhou facilmente a eleição com 63,7% dos votos, quase dois terços do eleitorado, com um
índice de abstenção, pela primeira vez na história do país, menor que 25% (no Brasil, onde
o voto é obrigatório, os índices de abstenção giram em torno do mesmo percentual).
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O comandante presidente Hugo Rafael Chávez Frías
Por tudo o que vimos, ainda que resumidamente, acreditamos ser bastante para ficarem
demonstradas algumas teses iniciais deste trabalho que afirmam ser Hugo Chávez não só
grande estrategista mas, também, grande estadista.
O maior de todos os erros das oposições na Venezuela foi não reconhecer esta verdade que
o povo, com toda a sua humildade, pobreza e sabedoria, reconheceu ao primeiro olhar.
E, entre todos os estadistas históricos e contemporâneos, o único a ter um papel chave
numa guerra midiática de repercussão mundial.
O segundo maior erro das oposições foi o de nunca perceber que Chávez é, por natureza,
um guerreiro, e, como tal, se sente em casa nos campos de batalha. Sabe que a revolução
precisa do conflito para ativar as forças e desenvolver os músculos que a fortalecem, e que,
para ela, o maior inimigo é a paralisis, a falta de combate, de ameaça, de perigo. Um bom
estrategista e bom guerreiro como Chávez, se não lhe vem o combate, ele o busca onde
estiver. Para ele, a paz é um paradigma que só será alcançado quando as paralelas se
encontrarem... no infinito. Isto não quer dizer que seja afoito, açodado. Muito pelo
contrário, poucos sabem como ele que o bom guerreiro só luta depois que conhece bem o
inimigo e quando são altas, senão quase certas, as chances de vitória. E que as maiores
virtudes do bom guerreiro estarão na prudência e na infinita paciência. Saber esperar,
esperar e esperar, mantendo-se pronto, preparado e alerta para lutar. E sempre surpreender,
nunca ser surpreendido. Pois "tudo tem seu tempo".
Por todos os fatos ocorridos e escaramuças lançadas contra Chávez e seu governo, em
apenas uma vez, em 11 de abril de 2002, parece que correram perigo real. Contudo, mesmo
ali, dada a esperteza e a inteligência de Chávez e seu Estado Maior, ainda não ficou
provado que estiveram de fato em risco a sua vida e o seu governo, ou se foi uma tática
bem urdida do grande estrategista para fortalecer-se, a si e ao governo. Analisando os fatos,
por documentos de todo tipo disponíveis em diversas mídias, não vimos prova concreta de
que a vida de Chávez e o governo estiveram por um fio naqueles dias.
As versões de Chávez e Fidel Castro, por exemplo, que confirmam o perigo real, não nos
parecem muito conformes com o comportamento que revelaram os dois líderes, quando nos
falam dos momentos mais críticos que viveram no desenrolar da trama. Uma certa
tranquilidade perpassa a história que contam, que, aliás, nos parece verdadeira, ainda que os
fatos reais dela tivessem sido prévia e cuidadosamente bem calculados.
O que temos de tudo o que nos chegou até o momento, é que houve, ou pode ter havido, a
possibilidade de risco real de Chávez ser assassinado em Miraflores no dia em que as coisas
ultrapassaram todos os limites em Puente Llaguno, e por isso resolveram (ele e o seu
Estado Maior) tirá-lo de lá. É muito difícil acreditar que Chávez esteve por um segundo
sequer nas mãos dos golpistas - eles o teriam fuzilado imediatamente e sem piedade, para
depois vir com a velha estória do suicídio em nome da pátria, com fizeram com Allende, no
Chile. A questão da renúncia não teria mais sentido com o presidente morto.
E a retomada do poder foi, na verdade, uma barbada. Os golpistas nunca tiveram poder
algum, apenas acreditaram, na cegueira estúpida que lhes é peculiar, que tiveram. Ou seja,
mais uma vez caíram nas armadilhas geniais do grande estrategista e tático político-militar
que se revelou no estadista Hugo Chávez. Aqueles golpistas só perceberam a armadilha
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depois que não tinham como sair dela, e então tentaram passar a versão da renúncia, que
não convenceu ninguém, nem a eles mesmos.
Chávez com certeza não gostaria de ler esta interpretação dos fatos e até poderia dizer que
estaríamos dando razão ao TSJ (que se fundamentou na tese do "vazio de poder"). Já
dissemos que aquela decisão do TSJ foi absurdo jurídico. Houve golpe de Estado na
Venezuela, e os golpistas chegaram a empossar o presidente de fato e oficializá-lo
solenemente em Miraflores, para as câmeras da mídia mundial. Obtiveram, inclusive, o
reconhecimento dos EUA, e nem disfarçaram que estavam coordenados por órgãos de
Inteligência daquele país, o que, por si, constitui crime de traição à patria. Além do mais, se
era ou não armadilha, isto nunca se poderá provar, e, mesmo que se pudesse, isso não
anularia as intenções dos golpistas nem os atos criminosos e ilegais que cometeram.
O que é seguro e firme em toda a história é que, ao final dela, Chávez e o seu governo
saíram enormemente fortalecidos e livres de toda uma ala militar e mais um bando de
gângsteres e oligarcas poderosos, em cuja convivência não era possível governar, e muito
menos levar adiante o projeto revolucionário.
Chávez também consolidou ali o carisma de grande líder e desde então tornou-se um
daqueles líderes que a história só concede ao mundo cerca de uma dúzia em cada século, tal
como Lenin, Mao Tsé Tung, Stalin, F. Roosevelt, Ho Chi Min e Fidel Castro, no século 20,
líderes que, uma vez no poder, só o deixarão mortos ou se quiserem. Chávez tornou-se o
primeiro grande fenômeno político do século 21. Na Venezuela, não há político de qualquer
partido ou corrente ideológica que chegue a seus pés, e é falta de razão política, ou mesmo
um contra-senso, pensar em substituí-lo por qualquer outro. Também para isso serviu o 11
de Abril: para demonstrar o ridículo de um Carmona substituindo Chávez, por algumas
horas que se foram e jamais voltarão.
As oposições, melhor dizendo, a direita nazi-fascista mundial, o querem morto tão logo
possam matá-lo. Também querem o mesmo de Fidel Castro, já faz quase cinqüenta anos.
Chávez não pára de alimentar essa fobia ultra direitista, porque sabe que ela os cega e os
torna presas mais fáceis de seus ardis estratégicos magistrais.
Mas o principal, o golpe de mestre, ainda está por ser relatado neste trabalho, pois acabou
de acontecer. Um por um, caíram aos pés (ou nas mãos) de Chávez e do seu governo os
principais redutos de poder que estavam em mãos das oposições. Resta-lhes agora quase
que somente a Hidra Midiática, porém não mais hegemônica, mas com algumas de suas
cabeças cuspindo fogo, estabanadas e agitadas pela histeria golpista.
O Povo e o Poder
Tão logo foram proclamados os resultados das eleições de 3 de dezembro de 2006, em que
se consolidou o apoio maciço do eleitorado venezuelano ao Comandante Hugo Chávez,
este, num de seus pronunciamentos públicos (uma inauguração, abertura de um evento,
recepção a um visitante, ou qualquer outro, não nos recordamos), como gosta e prefere
sempre fazer, solta, no meio de seus longos, fluentes e didáticos discursos, a seguinte
mensagem à emissora RCTV: "- Gritem, sapateiem, façam qualquer coisa. Acabou a
concessão para este canal fascista!"
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É inacreditável que, num caso desses, os responsáveis por RCTV e os que estão por detrás
dela nos projetos golpistas e desestabilizadores não parem para pensar e não se façam as
seguintes perguntinhas básicas:
- Por que Chávez faz uma declaração dessas em público?
- Por que tal declaração é feita com seis meses de antecedência?
- Por que o tom de provocação, ou de desafio?
Bem, pelo que até o momento estudamos e pesquisamos, as respostas seriam, numa análise
sensata das perguntas, mais ou menos as seguintes:
A declaração foi feita em público porque Chávez pratica a comunicação dialética com o
povo venezuelano e, em particular, com a maioria maciça que o apóia. Ao fazer uma
comunicação importante pelos meios de comunicação, ele a usa como senha endereçada ao
povo para informá-lo de que a decisão foi tomada nas instâncias do poder e que tudo está
pronto, por parte das equipes do governo, para que seja efetivada. Só então (com tudo
pronto) ele comunica publicamente qualquer decisão, para que o povo faça a sua parte,
dando a ela o retorno crítico, o respaldo político e a participação popular, a fim de que se
faça legal, democrática e bem sucedida a sua execução.
A declaração foi feita com atecedência de seis meses para que o povo tivesse tempo
suficiente para refletir sobre ela, conhecer seus fundamentos, opinar e dar seu apoio
consciente à decisão, além de se preparar para enfrentar a reação que haveria de causar.
A declaração foi feita em tom de provocação justamente para detonar a esperada e
previsível reação desatinada e furibunda de seus opositores e dos que estão por detrás
destes na conspiração internacional, exasperando-os, cegando-os, e fazendo com que
revelem planos golpistas e desestabilizadores, colocando-os, desde já, em posição defensiva
e enfraquecida.
Claro que, antes de partir para o ataque, o governo tentou negociações com a RCTV e a
Globovisión, como o fez com a Venevisión e a Televen. A prepotência das primeiras não
permitiu diálogo; as últimas caíram na realidade e baixaram a bola. É verdade, também, que
a Globovisión está de olho na herança publicitária da RCTV, nada menos de 400 milhões de
dólares/ano. A aliança delas nada mais é que oportunismo da menor que quer o bolo da
maior. Então, tudo o que Globovisión deseja é que "RCTVas" para sempre.
Numa situação dessas, o empresário sensato e disposto a defender seus interesses e os de
sua empresa procuraria imediatamente o governo para uma saída honrosa e com um
mínimo de repercussão (que só favorece ao governo). Assim fizeram, em situações muito
semelhantes, os empresários de transnacionais do petróleo, de metalurgia (SIDOR), de
bancos, de companhias de eletricidade e telefonia, de transportes, indústria, comércio,
agropecuária, etc. Sabiam contar com um governo em busca de paz com soberania, e
disposto a negociar com generosidade e dinheiro com que pagar para não brigar.
Sabiam também que, se fosse para brigar, a briga não seria boa para o lado deles. Suas
empresas não são partidos políticos nem organizações ideológicas, e não tem legitimidade
para se bater contra governos e instituições públicas, a não ser que lhes firam interesses e
direitos legalmente constituídos. E não são otários para se baterem sem motivos contra um
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governo forte e poderoso como o de Chávez. Para um empresário, um litígio com governos
ou quaisquer outras partes, quando não resolvido por acordo, se extingue, com a maior
discrição possível, na decisão final do Tribunal Supremo de Justiça. É aceitar a decisão,
cumpri-la, e ponto final.
Acontece que os donos da RCTV, com Sr. Marcel Granier à frente como sócio majoritário,
e muitos de seus empregados, lacaios, bonecos e bonecas midiáticas, depois de tantas e
sucessivas derrotas para Chávez, parece que começaram a padecer de um delírio midiático
que os fizeram acreditar que a RCTV não mais era uma empresa, e tinha se transformado
magicamente em partido de oposição, com legitimidade democrática e apoio da maioria do
povo, ambos alicerçados em pesquisas de audiência por eles mesmos encomendadas, e nas
próprias e delirantes concepções de direito, justiça e democracia. Em verdade, e isso um
psiquiatra poderá explicar melhor, a situação política na Venezuela e a nova realidade
revolucionária devem ter fomentado tais delírios até o ponto onde chegaram.
A oposição legítima e democrática havia sido pulverizada por conta dos próprios erros e
desastres cometidos ao longo das tentativas golpistas que se frustraram. Os setores da
sociedade que em outras ocasiões porventura as apoiaram tinham abandonado o barco.
Todos estão bem, satisfeitos e já enquadrando-se nas novas disposições e realidades
revolucionárias, até porque todo mundo que trabalha, cria, produz, empreita, ensina,
comercia, informa, realiza, pensa, vende, planta, compra, pesquisa, colhe, escreve, fabrica,
transporta, estuda, presta serviço ou faz alguma coisa útil naquele país, não está com tempo
para mais nada a não ser cuidar da própria vida e de seus interesses, trabalhos e negócios,
uma vez que vão todos de vento em popa.
Só não tem o que fazer quem cuida de roubar, mentir, sabotar, usurpar, fraudar, catimbar,
desinformar, manipular e outros verbos tais praticados por veículos de comunicação da
mídia privada no país e da mídia hegemônica mundial. Esta, valendo-se da ingenuidade
delirante, furibunda e espumante dos proprietários da RCTV, resolveu declarar guerra à
Venezuela, ao seu povo e ao seu governo legítimo. Isto é, também caíram nas provocações
de Chávez e nas armadilhas que, há tempos, ele vem armando para a "grande batalha".
Nem os cálculos mais otimistas do planejamento original do processo revolucionário
poderiam conceber para período tão curto uma conquista tão grande. Na melhor das
hipóteses, dever-se-ia imaginar que em 2007 renovariam as concessões por prazo mais
curto, talvez cinco anos, como de fato assim foram renovadas agora as concessões da
Venevisión e da VTV. Este autor não acreditava que viveria o suficiente para testemunhar
tamanha conquista por parte de uma revolução latinoamericana.
Reconhecemos que até o momento o nosso trabalho pode ser interpretado como desigual e
injusto com a Revolução Bolivariana ao atribuir grande parte dos créditos e vitórias dela
aos erros e equívocos das oposições e da mídia antes hegemônica. Nossa opinião, de certa
forma, concorda com a de Chávez, a quem já ouvimos dizer: "Quanto mais nos atacam,
mais nos fortalecem." Optamos por um enfoque assim porque as análises que temos visto
em veículos de resistência procuram atacar as oposições na Venezuela pelo argumento
ideológico, como se tentassem convencê-las de mudar suas convicçõe$. Consideramos isso
uma perda de tempo. Em verdade, muitas de tais análises desmerecem ou desconsideram
virtudes e conquistas importantes da Revolução Bolivariana que, em nossa opinião,
deveriam motivar dissertações e avaliações bem aprofundadas e detalhadas para que fossem
difundidas, debatidas e conhecidas ao máximo, além de servir de exemplo e orientação a
movimentos sociais e revolucionários de outros países.
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Mas um fato inusitado ficou revelado em nossas pesquisas para este trabalho. Também as
esquerdas, por seus intelectuais e porta-vozes, parecem ter ficado chocadas (este é um
termo provisório) com a não renovação da concessão daquele canal mainstream da mídia
ex-hegemônica na Venezuela. Não é nova para nós a observação, que vem desde os anos
80, de que a grandes alas de militantes, políticos, intelectuais e artistas que se posicionam
como "de esquerda" agradam muito as programações de entretenimento dos veículos de
comunicação de direita. Não faltam os que dizem abertamente que elas atendem à perfeição
ao que se poderia chamar de "cultura popular". É o ranço pequeno-burguês na formação
deles que a mídia sabe detectar, usar e explorar muito bem. São muitos os exemplos, mas
não precisamos deles aqui. Quanto à intelectualidade, mais erudita, mais estudiosa e
também mais radical em seus textos e pronunciamentos ideológicos, notamos agora uma
novidade: parece que também eles têm dificuldades com a liberdade de expressão, a
verdadeira. São muito fluentes e produtivos em tempos e situações repressoras e opressoras,
a que parecem estar mais acostumados e a que desafiam corajosamente em veículos
alternativos e de resistência. Mas é bastante um espaço de comunicação livre como o da
Venezuela para inibi-los e fazê-los deixar as penas de molho. Sobre aquele país onde todos
se pronunciam, todos mesmo, operários, estudantes, artistas, empresários, donas de casa,
políticos, camponeses, motoqueiros, jornaleiros, enfim, todos os setores da sociedade,
independente de origem de classe, raça, credo, idade, profissão ou "perfil", podendo dizer o
que bem entenderem (quase todos com bom discurso, na ponta da língua) e com espaço
farto em televisão de alcance nacional (principalmente viVe TV, onde pudemos ver
centenas, senão milhares deles), é notável e sem explicação a carência, nos veículos da
mídia de resistência, de artigos e estudos detalhados sobre um processo histórico tão
importante, o que está se dando na maioria das páginas publicadas (com a brilhante exceção
de Aporrea.org, um dos mais abertos e combativos sites do pensamento crítico da internet).
Podemos até denunciar um silêncio senão suspeito pelo menos estranho de proeminentes
vozes da resistência em relação ao que hoje está ocorrendo na Venezuela, cujas ações se
reduziram a um manifesto de apoio a Hugo Chávez, com assinaturas de muitos deles. Por
enquanto não vamos dar nomes, preferimos alimentar a esperança de que estão, como nós,
trabalhando e se alimentando de informações e pesquisas para devolver-nos matérias
sólidas e consistentes. O site Rebelión parece que acordou. Vamos esperar...
Eis por que nossas pesquisas lograram mais informações em tais veículos sobre o passado
revolucionário e estas, no enfoque mencionado (o debate ideológico com a direita). Eis o
motivo pelo qual ficamos sabendo mais dos erros das "oposições" do que dos acertos da
Revolução. Mas, desde a reeleição de Chávez em 2006, vimos acompanhando os passos
magistrais da Revolução Bolivariana, e o nosso trabalho foi enriquecido por excelente
material produzido pelos veículos do governo-resistência daquele país e, agora sim,
podemos sustentar posições nas virtudes vitoriosas daquele glorioso processo histórico.
O povo venezuelano é talvez, depois do cubano, o povo mais bem preparado do mundo
para a democracia participativa e revolucionária. Não fosse assim, seria sem chances uma
atitude como a não renovação da concessão da RCTV. No Brasil, por exemplo, se um
governo ousar tocar nas concessões da Rede Globo, o povo irá maciçamente às ruas para
derrubar o governo e recolocar no ar o "seu" canal predileto. Isto demonstra que a educação
revolucionária funcionou e está funcionando bem, lado a lado com a verdadeira liberdade
de expressão, ambos em contínua expansão de qualidade e quantidade.
É também um povo mobilizado, como nunca se viu. Todo venezuelano que quer se engajar
no processo revolucionário (e é cada dia maior o número dos que querem) tem várias
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entradas organizadas para recebê-lo. São Conselhos Comunais, Conselhos de Fábrica,
Conselhos Campesinos, Conselhos de Estudantes, Mesas Técnicas, Comitês de Saúde e de
Educação, Células Partidárias, Projetos de Bairro, de Cooperativas, de Comunidades
Socialistas, Rádios e TVs Comunitárias e outros instrumentos criados pela Revolução com
muita competência para introduzir a cidadania na militância política organizada.
Para aferir tal realidade é bastante um dado incontestável. O Partido Socialista Unido de
Venezuela - PSUV, proposto por Chávez logo depois de eleito em 2006, já recebeu, em
menos de um mês, a inscrição de mais de 5.600.000 de eleitores aspirantes à sua militância,
isto num país com cerca de 14.000.000 de eleitores registrados, e com uma população total
de 27.000.000 de habitantes. Somente este dado já coloca o PSUV como o maior partido da
América Latina e possivelmente o único a ser fundado e organizado desde as bases de sua
militância, sendo esta proveniente de todos os estratos sociais.
Assim, quando Chávez e sua equipe decidiram aproveitar o vencimento do prazo
concessional para retirar do ar uma emissora de TV maligna e substituí-la por uma benigna
(por favor, no sentido vetorial do crescimento da sociedade, e não num maniqueísmo
banal), sabiam o que estavam fazendo, pois contavam com respaldo popular equivalente a
uma muralha quanto à pretensão golpista que tentasse ameaçá-los.
O recado de Chávez no pronunciamento que abre este tópico foi dirigido ao povo, mas
visava também um alvo muito além da insignificância do Sr. Marcel Garnier et caterva.
Sua flecha foi disparada com precisão na direção do coração do Império, mais precisamente
da mesa principal do Salão Oval da Casa Branca. E acertou em cheio. Confirma-o o
papelão da Sra. Condolezza Rice na reunião da OEA, há poucos dias. Seu pronunciamento
presunçoso e arrogante contra o governo venezuelano por causa da RCTV, acionado pelo
patrão Bush e à revelia de decisão tomada por unanimidade na OEA de que tal assunto não
seria pauta da reunião, foi demolido pela resposta implacável do chanceler venezuelano,
Nicolas Maduro, que não deixou pedra sobre pedra na pobreza leviana da argumentação
daquela senhora. Isolada, e sem apoio de nenhum dos chanceleres presentes, que lá
representavam os países das três Américas (menos Cuba), ela então se retirou da reunião
com a insolência que lhe é costumeira, e não mais retornou.
Mais recentemente, foi o próprio cowboy texano que, da Casa Branca, fez comentários
vazios mas sempre agressivos à Venezuela. E foi seguido por alguns de seus assessores
mais próximos e pelo Senado dos EUA. Chávez nem deu bola a nenhum desses arroubos
que só atendiam a pressões midiáticas e a grupelhos de picaretagem e "inteligência"
subvencionados com o dinheiro do contribuinte estadunidense.
O estrategista Chávez descobrira o ponto fraco do Império. Está na origem de sua força e
poder, e não são porta-aviões, bombas e foguetes - é a mídia hegemônica. Estudando-a e
enfrentando-a durante a construção de sua Revolução, o governo Chávez percebeu onde ela
é vulnerável, e que o seu poder é só um balão inflado, sem conteúdo. Uma vez furado, por
menor seja o furo, se esvaziará rapidamente. E depois, caindo a Hidra Midiática, cairá o
Império. É só uma questão de tempo, talvez pouco tempo. "Tudo tem seu tempo".
A grande batalha
Ao ser reeleito, Chávez com certeza tinha um plano detalhado de trabalho, com um
complexo e recheado cronograma de ação em velocidade máxima, cuja primeira fase (curto
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prazo) teria por data-marco a Copa América de Futebol, pela primeira vez na Venezuela,
com abertura em 26 de junho e encerramento em 15 de julho de 2007.
Dentro do cronograma, algumas datas-chave foram pré-estabelecidas como pontos de
referência, tais como 4 de Fevereiro (Insurreição Militar), 27 de Fevereiro (Caracazo), 1113 de Abril, 1º de Maio e... claro, 28 de maio de 2007. Nesta última, alguns minutos depois
de zero hora, seria colocada no ar a Televisora Venezolana Social - TVes, utilizando a faixa
principal e mais nobre de emissão televisiva em VHF, o Canal 2, até então ocupado pela
RCTV, desde 1954. A última renovação da concessão dos canais televisivos e radiofônicos
fora feita, em bloco, por decreto presidencial de 27 de maio de 1987, com prazo de 20 anos.
Portanto, em 27 de maio de 2007, às 23h59min, o prazo expirará para os veículos que nele
tiveram as concessões renovadas (entre as atuais emissoras de TV, estão neste caso somente
a RCTV, a Venevisión e a VTV).
O anúncio de Chávez, tão logo reeleito, de que não renovaria a concessão da RCTV, causou
um terromoto na mídia mundial e abriu um debate nacional sem precedentes. Como era
esperado pela tática de provocação utilizada por Chávez, as "oposições" (vamos agora
colocá-la entre aspas, mais à frente daremos o motivo) trataram de mostrar logo seus planos
golpistas e exibir suas garras macabras, sedentas de sangue.
Quanto ao governo, foi desfechada uma ação organizada e bem planejada de trabalho, em
todos os setores, cujo início se deu em 14 de janeiro de 2007. Neste dia, no Teatro Tereza
Carreño, o maior e mais majestoso centro cultural de Caracas, Chávez apresentou ao povo
venezuelano, em cadeia nacional de rádio e TV, seus novos 27 ministros. Para quem fora
eleito há pouco mais de um mês, pode-se considerar um tempo recorde (Lula, por exemplo,
eleito em outubro de 2006, não tinha um novo ministério completo em abril de 2007).
O novo ministério de Chávez surpreendeu por várias alterações inesperadas. Porém,
analisando seus governos anteriores, observamos que os ministros são parte de uma equipe
muito maior e mais transcendente que atua organizadamente, com disciplina revolucionária,
em todos os setores da vida nacional. Os membros de ministérios anteriores são sempre
realocados em funções estratégicas em outros pontos da ação governamental, institucional e
da iniciativa privada, em certos casos, até no exterior.
Um exemplo é o de José Vicente Rangel, o vice de Chávez no governo anterior (na
Venezuela, o presidente eleito escolhe seu vice, que atua como um super-ministro, em
funções coordenadoras de todos os outros), e que, nessa condição, prestou serviços
relevantes à Revolução. Rangel, jornalista respeitadíssimo no país (foi dos primeiros a
entrevistar Chávez, quando candidato maldito pela mídia, no programa que mantinha na
Televen), de perfil moderado e idade avançada, foi substituído pelo combativo e radical
Jorge Rodrigues, mais jovem, ágil e dinâmico, e que está exercendo papel importantíssimo
no atual governo, atuando pessoalmente nos fronts mais críticos e mais arriscados da
ofensiva socialista a que se propôs Chávez no novo mandato, papel que sem dúvida seria
difícil para um homem como Rangel. Este nosso juízo tem respaldo no do General Alberto
Muller Rojas, veterano militar, membro do Estado Maior das Forças Armadas e um dos
mais importantes teóricos da estratégia revolucionária que assessoram Chávez. Tendo sido
publicado bem depois que escrevemos a nossa análise, vamos inseri-lo aqui: "No tengo casi
dudas que si José Vicente Rangel, con su experiencia y madurez, sin menospreciar su
talento, fue el ejecutivo capaz de administrar el gobierno en la etapa de consolidación del
régimen, Jorge Rodríguez es el hombre adecuado para la profundización de la política de
transformación estructural de la sociedad venezolana adelantada dentro de la visión
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socialista." (aporrea.org, 22/6/2007) Por sua vez, Rangel voltou ao seu programa na
Televen, agora em novo e sofisticado formato (bancado, é claro, pelo governo) e exerce ali
papel estratégico para o governo na atual batalha midiática.
Outro exemplo é o de Aristóbolo Isturiz, ministro da Cultura no primeiro governo Chávez,
depois ministro da Educação e dos Desportes, depois alocado no projeto de alfabetização
em massa na Bolívia, e agora atuando em várias frentes de jornalismo televisivo nos canais
do governo. Há mais exemplos. O desenrolar dos fatos nos vários fronts da atual ofensiva
socialista do governo Chávez demonstrou que ele e seu Estado Maior escolheram a dedo
cada uma das posições-chave, tanto no ministério como nas demais funções estratégicas
revolucionárias.
Naquele dia 14 de janeiro, Chávez anunciou também a ofensiva radical e acelerada "rumo
ao socialismo do Século 21", cujo cronograma já estava desenhado até o ano de 2021. Para
isso, ele ativava, naquele momento, o que havia anunciado dias antes e chamou de "Os
cinco motores da Revolução Bolivariana", a saber, resumidamente:
1º motor: La Ley Habilitante - é um dispositivo constitucional, tradicional nas leis
venezuelanas, que permite ao Presidente da República, devidamente autorizado pela
Assembléia Nacional, a legislar por emergência ou por necessidade estratégica sobre
determinados assuntos e por um tempo determinado. No caso, a solicitação foi por 18
meses consecutivos para uma série de assuntos e temas especificados no documento.
Chávez necessita deste dispositivo para barrar com mais facilidade as tentativas golpistas
que se valem de frestas legais, como lock outs e estocagem especulativa de produtos, e, por
outro lado, apressar certas mudanças indispensáveis em alguns setores da administração.
2º motor: La reforma profunda de la Constitución Bolivariana - o que o governo
revolucionário propõe neste motor é, basicamente, retirar cacos neoliberais, capitalistas e
pseudo-representativos que acabaram incluídos na Constituição em 1999, por conta de
negociações da época. O mais importante, porém, é dar ao cargo presidencial o direito de
reeleição por número indefinido de mandatos consecutivos, o que significa dar a Chávez a
possibilidade de continuar governando depois do atual mandato, e enquanto viver ou quiser,
coisa que a Constituição ainda não permite. Deseja-se, também, a inclusão de avanços
revolucionários por novas invenções e descobertas e abrir portas para futuras inovações
(Revolução Criativa).
3º motor: La Jornada Nacional de Educación Popular "Moral y Luces" - Moral e Luzes, se
traduzirmos ao pé da letra, é o dístico do pensamento educacional bolivariano, a partir de
Simon Bolívar e Simon Rodrigues, ideólogos históricos da educação nacionalista no país,
que Chávez pretende contrapor ao que seria o da educação capitalista, que é "vencer
(destruindo concorrentes) e ganhar dinheiro (a qualquer custo)". Para Chávez, os problemas
de corrupção e mal uso de bens públicos só se resolverá em definitivo pela educação
socialista. É preciso clarear que em espanhol a acepção que prevalece para a palavra
"moral" é a da ética, da auto-estima, da valorização do ser, e não a de um estatuto de
princípios e velhas regras sizudas de comportamento (moral convencional) como em nosso
idioma. Usamos, às vezes, a palavra tal como na língua espanhola quando dizemos, por
exemplo: "Fulano está com a moral toda", isto é, está sendo valorizado, com a auto-estima
em alta. Este motor tem sido considerado por analistas o mais importante para Chávez, que
nomeou como "propulsor" ninguém menos que seu irmão, Adan Chávez, tido por
ideologicamente mais radical e à esquerda de Hugo. Adan assume também o Ministério da
Educação no atual mandato, e adotou por lema deste motor a frase: "Toda la patria una
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escuela". O projeto, grandiosíssimo, quer assegurar educação socialista de nível superior e
alta qualidade a todos, todos mesmo, os venezuelanos até o ano de 2021.
4º motor: La Nueva Geometría del Poder - a meta deste motor é a redução, ou a
eliminação, se possível, do poder burocrático sobre o poder do trabalho produtivo e
realizador. Envolve o conceito de "poder comunal", diretamente conectado ao "poder
central", fazendo, em nossa interpretação, uma leitura criativa e latinoamericanizada do
"centralismo democrático" de Lenin. Envolve também o redesenho geopolítico do país,
estabelecendo novos critérios para o status de municípios, comunidades de bairros,
comunidades campesinas e outras, além de áreas territoriais federais, que não deverão
funcionar isolados ou independentes uns dos outros, mas sim como um "sistema
direcionado para o socialismo do século 21".
5º motor - La Explosión del Poder Comunal - os chamados "Conselhos Comunais" são a
grande aposta inovadora da Revolução Bolivariana e trazem conceitos que avançam e
atualizam os conceitos leninistas de soviets, partindo de princípios teóricos semelhantes.
Em nossa opinião, Chávez e sua equipe buscam lograr com eles uma conquista que se
perdeu na URSS (sem Lenin). Isto é, que o poder seja distribuido de tal forma até que um
dia se confunda com o próprio povo.
A partir daquele dia, Chávez e sua equipe entraram na maratona de inaugurações e eventos
políticos, sociais e culturais por todo o país, como nunca se vira antes. A impressão de
quem acompanhava é de que aquelas pessoas não dormiam. Como dormir? Não havia
tempo! Três ou quatro inaugurações de obras em grande escala, todos os dias, com
multidões mobilizadas, recepção de visitas de delegações estrangeiras (retorno dos giros de
Chávez no ano anterior), recepções de cúpulas internacionais, congressos de várias classes
sociais e profissionais, além dos programas "Alô, Presidente" nos pontos mais distantes do
país, e até no exterior, visitas a obras em andamento, lançamentos de novos projetos,
anúncios de novas políticas, novos decretos, enfim, uma atividade frenética de tal ordem
que era difícil até de acompanhar. No mesmo passo, seguia a política acelerada de
alterações institucionais "rumo ao socialismo", e de reestatizações de tudo o que havia sido
privatizado nos períodos neoliberais, além de novas estatizações revolucionárias.
No tópico das alterações institucionais, uma delas causou alvoroço enorme na oligarquia
local, com reflexos fortes nas oligarquias do império que, no entanto, não permitiram que
fosse vazada pela mídia a seu cabresto. Chávez declarou o 4 de Fevereiro feriado nacional
para celebração da Revolução Bolivariana, e realizou um desfile militar das Três Armas
diante de milhões de pessoas, a aviação já exibindo seis dos 24 Sukoys russos adquiridos
para ela. Durante o desfile, quando os regimentos passavam pelo palanque do presidente,
no centro de uma grande arquibancada lotada, paravam, faziam continência ao presidente e
ao povo, e, com o punho direito fechado sobre o peito, em reverência solene e tipicamente
militar-revolucionária, bradavam em alto e bom som: "- Patria, socialismo o muerte!" Ao
que o presidente respondia, também em voz alta: "- Venceremos!"
A determinação, institucionalizada nas Três Armas e na Guarda Nacional, é de que a frase
tem de ser usada sempre, seguida da resposta, dentro e fora dos quartéis, em determinadas
circunstâncias de regulamento, sejam elas internas ou públicas. O lema pode ser usado
também, a critério dos comandantes locais, em grandes cartazes gráficos colocados nas
portas dos quartéis e instalações militares. Muitos já os exibem em suas fachadas.
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Esta nova provocação de Chávez tem um outro sentido bem prático. Apesar de ter feito boa
limpeza nas Forças Armadas, desde o fracassado golpe de 2002, era fora de dúvidas que
nelas restavam ranços alienígenas ou anti-revolucionários por força da sedimentação
viciosa que se produzira nos longos períodos de servilismos e lacaísmos a que se viram
submetidas no processo histórico-reacionário do país. Ora, fazer um militar latinoamericano reverenciar o povo e o presidente, e ainda dar o brado revolucionário de Che
Guevara, só mesmo na Venezuela (o que não é idéia tão nova assim, se lembrarmos que o
brado independentista do Brasil, proferido por Pedro I, em 1822, era "Independência ou
Morte", ou, no início do século 20, de um Emiliano Zapata: "É melhor estar morto numa
pátria viva do que estar vivo numa pátria morta").
A imprensa esbravejante noticiou dissenções e baixas em larga escala que o governo
desmentiu sem fornecer dados, alegando razões de estado. Durante a guerra midiática,
veículos lançaram rumores de que os dissidentes se organizavam para "retomar o poder".
Mas o expediente, se não sanou completamente o problema, deve tê-lo reduzido o
suficiente, pois as Forças Armadas demonstraram absoluta lealdade no decorrer da batalha,
em especial nos momentos mais críticos.
Por seu lado, nas "oposições" verificava-se um fenômeno novo, talvez nunca visto.
Começaram a surgir no painel da troca de farpas entre a mídia privada e o governo algumas
estranhas "entidades de oposição", claramente se posicionando como partidos políticos.
Afora as empresas midiáticas privadas, ao invés dos partidos de oposição (que ainda
existem, porém insignificantes), faziam pronunciamentos, sempre publicados como "furos"
de destaque na mídia privada e até ganhando manchetes garrafais em primeira página de
grandes diários impressos (hoje não tão grandes assim), uma série de ONGs e instituições
esquisitas, sem funções sociais definidas, ou, quando o eram, com práticas muito afastadas
de seus objetivos. Em geral, tinham origens em outros países. Siglas, palavras e nomes
nazistex, como ORVEX (de Miami), nazistor, OTPOR (Kosovo), ou nazislight, Freedom
House (parece que é austríaca), RSF - Reporteros Sin Fronteras (França, ficou claro que só
os bolsos e o caráter deles é que são "sem fronteiras"), fakes de "instituições acreditadas"
de nomes pomposos como Albert Einstein Institut (pobre Einstein, revirando no túmulo),
CIDH (Conselho Interamericano de Direitos Humanos, para confundir com as Comissões
de D. H. da OEA e da ONU) e a mídia hegemônica dos EUA (CNN, Fox News), Espanha,
Áustria, Bélgica e outros países europeus. A dos países latino-americanos como Brasil,
Chile, México, Colômbia, Peru e outros intentaram uma adesão que murchou rápido porque
foi denunciada, e devem ter achado melhor não mexer no assunto. Enfim, as "oposições" na
Venezuela moravam em Miami, em Kosovo, em Madri, em Paris, em Belgrado, na Áustria,
nos EUA e o diabo. Dentro do país, as "oposições" eram só RCTV e Globovisión, e seus
afiliados nas mídias radiofônicas e impressas. Venevisión e Televen mantiveram-se
relativamente neutras, mas com tendências viciosas apoiando as emissoras privadas (a
mídia privada possuía então 75% dos veículos de mídia do país). Por isso, ao nos referimos
às "oposições" na Venezuela, devemos fazê-lo entre aspas, pois são compostas por
interesses e entidades ilegítimas, alienígenas, anti democráticas e golpistas por natureza.
Como veremos, no desenrolar da "batalha" verificou-se que todas elas (inclusive as mídias
privadas) não passam de cabides de empregos pendurados na CIA, no Pentágono e no
Departamento de Estado dos EUA. Em geral, reúnem maltas de alijados de seus países por
serem vendilhões de pátrias, participarem de torturas e matanças de compatriotas, ou por
serem procurados por corrupção e crimes comuns, além de jornalistas e lacaios locais.
Numa segunda vertente estão "projetos especiais" de órgãos de Inteligência dos EUA,
disfarçados de ONGs, com a missão de desestabilizar nações não alinhadas às políticas
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imperialistas. Tiveram algum sucesso discutível na Sérvia e na Ucrânia, e insucessos
registrados em outros países como Bielorússia, Senegal e Irã. Na verdade, as duas vertentes
não são mais que arranjos para levantar grana dos otários da "Inteligência" do governo
Bush, que a liberam com facilidade por "serviços prestados" só com base em papelório
comprovante e informações colhidas em veículos midiáticos (que também levam parte no
trampo). No fundo, é meio de vida de criminosos proscritos de países latino-americanos,
que migram para Miami, ex-funcionários de órgãos públicos dos EUA e jornalistas e
picaretas locais tarifados. Criam siglas de picaretagem, com página na internet, fazem
"projetos" fajutos mancomunados com as CNNs, Fox, RCTVs e Globos da vida, sempre
prometendo valiosos serviços ao Império, pegam uma grana gorda, vão aos países-alvos,
fazem as bagunças e os vandalismos possíveis pagando gorjetas ou usando de graça os
otários locais (sempre estão lá), depois prestam relatórios com mais promessas mediante
mais grana, e por aí vão vivendo suas existências indignas e medíocres.
Faz tempo que caiu a máscara de competência infalível de CIA, FBI, Pentágono, etc,
moldada em filmes de espionagem. Nos filmes, os estratagemas "geniais" funcionam, claro.
Mas só nos filmes. Na realidade, casos de inadmissível incompetência têm sido registrados
com freqüência, a maioria sem divulgação, porque seriam "segredos de Estado". Um caso
famoso, que acabou divulgado, foi o de um biógrafo de John Lennon. Sabendo que CIA e
FBI tinham arquivos secretos sobre o ex-Beatle, tratou de reivindicá-los para seu livro.
Depois de uma batalha judicial que durou quase vinte anos, obteve os documentos. Ao vêlos, compreendeu por que aqueles órgãos lutaram tanto para mantê-los secretos. Não
passavam de bobagens mal copiadas de revistas roqueiras de segunda, com informações
equivocadas ou que qualquer um obteria em melhor qualidade. E os encarregados do
serviço eram tidos por bambas entre agentes do FBI e da CIA. Na época, faziam em
máquina de escrever os relatórios das "investigações". Hoje, basta copiar e colar de uma
página de internet, e eis um catatau em forma de relatório que ninguém vai ler, mas alguém
vai emitir a autorização de pagamento, e outro alguém vai emitir o cheque (ou providenciar
a mala cheia de doláres, como nos filmes). Eis a "Inteligência" do Império.
Precisamos agora introduzir o agente mais importante dessa batalha - o povo venezuelano.
Mobilizado por Chávez desde o primeiro pronunciamento, rapidamente se formou em todas
as instâncias da sociedade, organizadas ou não no processo bolivariano, uma rede de
intensos e magníficos debates. Em pouco tempo não havia uma pessoa de qualquer classe
social, idade, profissão, escolaridade, sexo e credo que não soubesse debater fluentemente
sobre temas como "ondas hertzianas", "canais VHF", "UHF", "TV a cabo" e tudo o que
pode ser dito de "concessão pública", "espectro radioelétrico", "grade de programação",
TVs públicas e privadas, televisão de serviço público, etc. Pela primeira vez, a população
toma conhecimento de que o tal "espectro radioelétrico" tem a faixa mais nobre em emissão
VHF, a qual comporta somente seis ou sete canais de TV, sendo que justo o Canal 2 é o que
mais tem alcance de sinal com qualidade de imagem e som. E este mais nobre sinal esteve
nas mãos de uma empresa privada durante 53 anos e ninguém nunca fora informado disso!
Agora, a Revolução Bolivariana precisa dele para prestar serviço social, e as elites, que o
usurparam durante mais de meio século, resolvem que é propriedade delas. E propriedade
hereditária, por certo!? Cedida originalmente a um barão do Império, com poder de
tranferi-la aos descendentes, geração após geração. No Brasil, poderíamos comparar as
concessões às Capitanias Hereditárias, dos tempos da colonização mais bárbara e genocida.
Crescendo dia a dia, aceleradamente, o debate chegaria ao auge no mês de maio, quando
não se falava de outra coisa na Venezuela. Mas ali, o povo já havia tomado posição:
49
"Estamos com el Comandante. RCTVas!". Como sabemos de tudo isso? Ora, o povo
venezuelano dispõe de ótimos veículos midiáticos, superiores em qualidade de edição e
programação aos veículos privados. Talvez seja esta a verdade que mais exaspera a mídia
privada, pois está se refletindo em grave perda de sua audiência, e até no repúdio de vastos
setores da sociedade, antes seus escravos, contra ela.
Há que reconhecer o belíssimo trabalho da VTV, viVe TV, TeleSur, AN-TV e os canais de
TVs Comunitárias. A pobre mídia privada e o pensamento único não têm mais paz nem
sossego naquele país. Todos os truquezinhos manipuladores, que antes levavam multidões
às ruas para derrubar governos, são agora denunciados e postos a nu, no ato ou com
antecedência, pelas emissoras públicas e comunitárias. Não raro, ridicularizam a mídia
privada, ao vivo e a cores, para a Venezuela inteira. Os bonecos e bonecas midiáticas são
vistos lá como "bocones" (em português-brasileiro, bocós). Mal saem às ruas, pois são
motivos de risos e chacotas. Além do mais, só o "sistema bolivariano de comunicação" abre
espaços a todos os venezuelanos, inclusive os de "oposição".
As grades dos canais públicos contemplam uma série de programas de opinião e debates de
ótimo formato e muito atraentes, moderados por excelentes profissionais de comunicação e
jornalismo, alguns merecedores de condecoração por serviços prestados à Venezuela e ao
mundo. E há os programas protagonizados pelo próprio povo nas comunidades de bairro,
de fábrica, de campesinato, de trabalho, de estudantes, recebendo também a participação de
intelectuais, artistas, políticos e celebridades da Revolução.
A TeleSur tem os ótimos Mesa Redonda Internacional (Rhandy Alonso - Cuba), Videoteca
Contracorriente (também cubano, protagonizado por intelectuais convidados), Agenda del
Sur (Mario Lopes), Em Vivo desde el Sur (Patricia Villegas), além de densos noticiários,
únicos da mídia mundial a pautar com prioridade a América Latina, os países de terceiro
mundo e os movimentos populares e sociais.
A VTV dá shows de comunicação, jornalismo e opinião da melhor qualidade em vários
programas de diversos formatos, a ressaltar La Hojilla (Mario Silva), Dando y Dando
(Tania Diaz), Contra-Golpe (Vanessa Davies), Dialogo Abierto (Jorge Arreaza), Al
Momento (Maria Tereza Gutierrez), Kiosco Veraz (Earle Herrera), En Confianza (Ernesto
Villegas), Como usteds pueden ver (Roberto H. Montoya e Roberto Malader) entre outros.
E noticiários, editoriais e avanços de notícia pautados na resistência anti-imperialista, anticonsumista e anti-manipuladora da informação.
A grade da viVe TV, mais vanguardista, experimental e flexível, além de excelentes
programas periódicos como Intercambio, Comunicando Medios Comunitarios, Real y
Medios, Medio Mundo, Caras del Mensaje, já dedicados ao tema midiático, permite
adaptações ao momento histórico-político-social e, no caso dessa batalha, destinou uma
série de programas-debates que normalmente faz com membros das mais variadas
comunidades venezuelanas, tais como, Construyendo Republica, Ecos de la Revolucion, La
Hora de los Mangos, Cresciendo com el Pueblo, De Pueblo a Pueblo, ao tema da "no
renovación de la concessión", fazendo, assim, incluir no rol dos protagonistas da mídia de
resistência as vozes populares de todas as cores e matizes, o que ninguém imagina o quanto
enriqueceu e fortaleceu o poder de fogo da mídia de resistência apoiada pelo governo
venezuelano e seus veículos de comunicação. A ViVe TV contribui também com bons e
criativos noticiários: Inf, Noticiero del Sur, Venezuela Adentro, Noticiero Indígena.
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A internet ainda não nos oferece acesso direto ao sinal da Catia TV e demais TVs
Comunitárias (hoje em número de 28, que subirá para 71 ano que vem), mas muitas de suas
imagens vimos na viVe TV e em diversos programas da VTV. Destaca-se nesse grupo Ávila
TV, uma experiência fascinante de cultura comunicacional a partir de uma rapaziada da
pesada e que tem rendido matérias audiovisuais que, pelas poucas a que assistimos, são
avanços reais na ponta de lança dos Godard, Glauber, Pasolini, Antonioni, etc.
E das oficinas cinematográficas da Villa del Cine começam a sair as produções
revolucionárias, com destaque para Bolivar Eterno, primeira super-produção de longametragem do estúdio; e a nova safra de longas (só em 2007, já produziram 19 longas),
inúmeros documentários realizados e em produção, minisséries para televisão e filmes
infantis, que estão emplacando inegável sucesso de público e crítica. Há poucos dias, na
comemoração do primeiro ano do estúdio, o ministro Francisco Sesto (Cultura) revelou que
o sucesso da iniciativa foi tal que o governo já liberou recursos para a construção de outros
seis estúdios similares em diferentes pontos do país.
Da parte do governo revolucionário, não houve necessidade de entrega à batalha com todas
as forças. Firmemente estruturado no pilar principal da vontade popular maciçamente
expressada por maioria crescente em nada menos de 12 eleições seguidas, consolidado no
vigor nunca antes registrado das forças institucionais (poderes Executivo, Legislativo,
Judiciário, as Forças Armadas e policiais), econômicas, culturais e de justiça social, e
solidamente apoiado por quase todos os setores da sociedade venezuelana, o governo
Chávez hoje é um governo absolutamente estável e impossível de ser derrubado por
qualquer força política, econômica, militar ou midiática, interna ou externa. O maior
interesse do governo nessa "batalha" é pelo debate e ampliação da consciência popular
sobre a ação midiática e os direitos do cidadão dentro dela. Assim, destacou para a linha de
frente do combate apenas três de seus 27 ministros para cumprirem funções específicas nos
momentos certos. A saber, entraram em cena, por ordem, o ministro Jesse Chacon
(Informática), o ministro Pedro Carreño (Segurança) e o ministro William Lara
(Comunicações). Chávez, em momentos importantes, também fez intervenções.
Mas as "oposições" insistiam em peitar o governo e derrubá-lo. O Sr. Marcel Granier,
desde o pronunciamento de Chávez sobre a não renovação de sua concessão televisiva,
decidiu por travestir-se em estadista e candidato à presidência da República pós-chavista,
que, com base em seus delírios e nas pesquisas de audiência que encomendara, seria
declarada ainda em maio deste ano. Imaginando-se, desde ali, um Berlusconi dos trópicos,
saiu por um giro internacional em busca de apoio externo. Não conseguiu a almejada
audiência com o "presidente Bush", nem com presidente nenhum de país nenhum, nem com
ministros e autoridades importantes de países importantes ou não importantes, nem com
celebridades internacionais, nem com ninguém de real interesse. Seu "giro internacional" se
reduziu a uma viagem a Miami e à Europa em visita a obscuros setores de ultra direita
neofascistas e neonazistas, cujos nomes tinham de ser cuidadosamente soletrados para que
fossem publicados em seus próprios jornais e veículos midiáticos. Gastando regiamente o
próprio dinheiro, proveniente de vasta fortuna herdada e acumulada desde que a família de
sua esposa ganhou de presente a concessão da RCTV, andou por Espanha, Parlamento
Europeu, França e Itália com um bando de assessores, picaretas pagos pela CIA (e por ele
também) e políticos desacreditados de ex-partidos falidos, alguns dos quais dando vexames
em diversas ocasiões. Mas o Sr. Marcel Granier só obteve o apoio que já teria de qualquer
modo, mesmo que nada fizesse, isto é, o apoio da mídia hegemônica mundial, que se via
ameaçada pelo governo revolucionário da Venezuela, ao qual decidiu dar combate por
todos os meios que possui, independente de o Sr. Marcel Granier pedir ou não tal combate,
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e usando-o também como bucha de canhão, já que ele mesmo se dispôs a ser usado como
vítima e mártir da "ditadura castro-comunista" de Hugo Chávez.
No capítulo dos vexames que fizeram o mundo e a Venezuela rirem às gargalhadas, entre
os vários casos registrados, dois merecem destaque como anedotas já integrantes do
folclore político venezuelano. Como toda anedota, há diferentes versões para um mesmo
caso. Damos aqui uma só das que nos chegaram de cada caso. A primeira foi a tentativa de
um ex-deputado de oposição de penetrar em sessão do Parlamento Europeu com carteira
falsificada da Assembléia Nacional da Venezuela. Denunciado pelo embaixador do país
junto ao Parlamento, o penetra foi delicadamente convidado a se retirar. Ao que recusou-se
com arrogância, talvez esquecendo-se de que não estava na América Latina, e acabou sendo
retirado por força policial e preso por invasão ao Parlamento e desrespeito à autoridade. O
segundo caso, protagonizou-o um ex-senador da 4ª República, também integrante da
comitiva do pretenso estadista. Numa entrevista coletiva que Marcel Granier contratou a
jornais e veículos da mídia de Paris, o ex-senador, depois de vociferar sobre as desgraças e
agruras de seu país sob a "ditadura castro-chavista" foi questionado por um repórter
desavisado sobre se ele estava em Paris pedindo asilo político (??). Um "branco" geral se
instalou no salão onde se dava a entrevista, seguido das gargalhadas dos jornalistas que,
mesmo bem pagos pelos entrevistados, não conseguiram contê-las. E a entrevista gorou.
E assim se passaram os meses de fevereiro e março, até chegarmos no 11-13 de Abril,
quando iniciamos este trabalho. O governo cumprindo a super-agenda, recebendo
presidentes de vários países do mundo e da América Latina para inaugurar poços de
petróleo na "faixa do Orinoco", firmando contratos de empresas mistas, assinando
convênios e fazendo pronunciamentos, estatizando as empresas de eletricidade para o Plano
Energético Nacional (a correr no segundo semestre de 2007), inaugurando, em blocos,
escolas, universidades, hospitais, fábricas e comunidades agrícolas de produção socialista,
desapropriando terras de latifúndio para a Reforma Agrária, inaugurando grandes obras
viárias e de infra-estrutura, pontes, viadutos, novas linhas de trens e de metrôs, fazendo
anúncios de novas leis e decretos distributivos de renda, como a redução de impostos e
tarifas, a reintegração de pensões a aposentados de empresas privatizadas que as haviam
perdido com a privatização, o tabelamento de alimentos e produtos de primeira necessidade
a "preços socialistas", recebendo cúpulas de governos continentais (UNASUR, na Ilha de
Margarida, e ALBA, em Barquisimeto), anunciando novas instituições integracionistas
(BancoSur e Banco Alba) e novas metas de governo, inaugurando os super-estádios da
Copa América (nove, ao todo; o último será inaugurado às vésperas da Copa), anunciando
seus sucessos econômicos, políticos e sociais, enfim, esses felizardos, que são hoje todos os
que habitam um país chamado Venezuela, não passam um dia sequer sem receber duas,
três, às vezes, quatro, cinco ou mais boas e ótimas notícias do governo.
E as "oposições" no seu baticum de sempre, mentindo, fraudando, manipulando,
catimbando, sabotando, ameaçando, chantageando, negando, omitindo, tudo na espera vã
do som das cornetas do 7º de Cavalaria. Só que não mais sem revide por parte das mídias
de resistência, as populares e as do governo. Revide à altura e contundente.
A presepada midiática que se produziu nos veículos privados nesse período é caso a se
estudar em círculos especializados de psiquiatria, psicologia e psicopatologia criminal. Ao
sentir a perda e o desprezo de suas sagradas audiências, o desespero, a insânia, a histeria e
outros sintomas colaterais iam tomando conta daqueles estúdios de "criação" midiática, e se
projetando, sem qualquer tipo de censura (ou auto censura), diante da população atônita e
cada vez mais escandalizada com a impertinência e a falta de respeito de que eram vítimas
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os telespectadores e ouvintes. Chegaram ao ponto de usar adolescentes de doze, treze anos,
em cenas de sexo explícito e pornografia, colocar atrizes "provocadoras" desnudas nas ruas
de Caracas para capturar "flagrantes" de "chavistas tarados", montar longas e intermináveis
sequências de baixezas indescritíveis em novelas de horários nobres, valorizar crimes
hediondos e violência gratuita, abusar de mediocridades, hipocrisias, bobagens e futilidades
ao ponto de torná-las agressivas e ofensivas à inteligência e à sensibilidade do espectador
ou do ouvinte, o mesmo valendo-se para mentiras em série, falsificações e montagens
grosseiras de notícias que a realidade desmentia sem que o espectador ou o ouvinte
precisasse sair de casa, enfim, todo o tipo de apelação, de jogo sujo, de baixeza, de
impropriedade, de irresponsabilidade, de ausência de espírito de cidadania, de desprezo
pelos valores éticos, profissionais, sociais, humanos e nacionais, foi urdido sem piedade por
aquelas mentes sórdidas que habitam a caverna macabra de Molloch/Market. Era a Hidra
Midiática, desatinada e furibunda, revelando-se e exibindo-se, sem nenhum pudor
autocrítico por sua horripilante feiura e monstruosidade, perante a população boquiaberta
mas não mais assustada nem amedrontada.
Muito pelo contrário, os caraqueños, com seus espíritos abertos e chegados ao deboche e
ao bom humor (são parecidos com os nossos cariocas), começaram a chamar a RCTV da
RCTVas!, e a Globovisión, de Globoterror.
O 11-13 de Abril marca o início da reta final até o 28 de maio. Na avenida superlotada fala
"o homem do Equador", em cadeia nacional, dando contas ao povo das mudanças que nos
levarão ao novo mundo de poder pluripolar. Entre os tantos projetos realizados e a realizar,
ele aponta a "não-renovação da concessão" do Canal 2 e a criação de uma nova televisão
para este novo mundo. Pede a anuência do povo, que a dá, de imediato, num só brado, que,
de tão forte e uníssono, deve estar ecoando até hoje naquela avenida.
A super-agenda do governo continua, no dia a dia, construindo a República e o Novo
Mundo. No marco de 1º de Maio, a "faixa do Orinoco" amanhece ocupada por operários da
PDVSA que, sob o comando do governo e do ministro Rafael Ramirez (Energia e Petróleo),
tomaram as ex-empresas privadas que exploravam o petróleo da região e foram
nacionalizadas pelo Governo Revolucionário. Cantaram o hino e içaram a bandeira
nacional em cada uma das instalações retomadas. Chávez os cumprimenta pessoalmente em
comício grandioso na região, transmitido em cadeia nacional, e aproveita para anunciar o
aumento de 20% no salário mínimo em todo o país, muito acima da inflação, o que torna o
novo salário mínimo (quase US$ 300,) o maior entre todos os países latino-americanos.
Poucos dias depois é a vez da CANTV - Companhia Anônima Nacional de Telefonia de
Venezuela, que havia sido privatizada em 1991. Chávez ocupa a empresa, tendo ao lado o
ministro Jesse Chacón e equipe, fala com os trabalhadores locais e, em cadeia nacional,
com os das muitas filiais espalhadas pelo país. Ele anuncia a redução de 20% nas tarifas de
telefones celulares, além de outras reduções e aprimoramentos tarifários para a telefonia.
Nenhuma (nenhuma, mesmo!) dessas notícias foi notícia para a mídia privada na
Venezuela. Ela parecia ser mídia de outro país. Isto se deu até nas seções esportivas.
Quando houve a reunião da ALBA, houve também os Jogos Olímpicos da ALBA, um super
evento esportivo com os maiores atletas de toda a América Latina, que durou cerca de vinte
dias, nas principais praças esportivas do país. A mídia privada não publicou sequer uma
nota a respeito, enquanto cobria jogos sem importância de ligas menores dos EUA. Nem a
Copa América, com seus nove novos grandes estádios sendo inaugurados em todo o país,
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são notícia na mídia privada. Chegou ao ponto em que os envolvidos nela (emissores e
receptores) passaram a ser chamados de "disociados" (de la realidad).
Na medida em que se ia aproximando o "Dia D", ou seja, o 27 de maio (para a mídia
privada, este era o "dia D", o dia em que vencia a concessão da RCTV), ela aumentava o
tom de ameaças, prevendo sempre para a próxima semana a queda de Chávez. Afirmava
que 80% da população estava com a RCTV, e a popularidade de Chávez, sempre segundo
pesquisas de opinião, caíra para menos de 40%. Quanto aos EUA, já que não era possível a
vinda de Custer (falecido no Iraque), haviam posto em marcha o chamado "golpe brando",
ardil que se mostrara vitorioso na Sérvia e na Ucrânia, na derrocada dos "comunistas"
daqueles países. A cada dia, as manchetes da mídia privada anunciavam novos apoios
internacionais, novas siglas e nomes esquisitos inundavam as primeiras páginas bradando
contra o absurdo e a ilegalidade que se estava cometendo contra o "povo venezuelano"
(passaram a falar muito desse "povo" que nunca havia freqüentado aqueles espaços antes),
aviltado em seus "direitos humanos" pela ditadura "castro-comunista" que se abatera na
"hoje sombria Venezuela querida". Houve jornalistas que afirmaram preferir o comando de
um general dos EUA do que permanecer sob o governo do "gorila" fardado. Era por aí.
Mas a mídia de resistência contra-atacava, cada vez com maior resposta de audiência. Lá
pelas tantas, surge em suas telas Eva Golinger, advogada e escritora dos EUA, amiga da
Venezuela e apaixonada pela Revolução Bolivariana. Eva já batalhava judicialmente nos
EUA, há anos, pela desclassificação de documentos do Departamento de Estado daquele
país, em que se informavam as despesas que eram feitas na Venezuela com o dinheiro do
contribuinte dos EUA. Por sorte, a última e definitiva das marteladas dos juízes de lá
ocorreu em maio de 2007, e os documentos foram enfim liberados. Foi mais um grande
vexame da mídia privada nativa. Todos, todos os seus jornalistas estavam nominalmente
listados, naqueles documentos, como "empregados do Departamento de Estado dos EUA".
Nestes termos! Maior vexame era a mixaria que recebiam para se submeterem a tão vil e
vergonhosa condição: em média seis a oito mil dólares por ano!
A partir dessa revelação, toda vez que um canal da mídia privada dava um "furo"
sensacionalista de ameaça à Revolução, sua audiência caía imediatamente. Eram os
telespectadores mudando para os canais do governo para saber o que realmente estava
acontecendo. A mídia privada na Venezuela estava em sinuca de bico! Os índices da VTV
subiram tanto que em certos momentos de La Hojilla (A Lâmina), do jornalista Mario
Silva, um programa de combate e polêmica permanente com a mídia privada (e que não
perdoa nada), deu-se a esgrima verbal, diretamente e ao vivo, com a RCTV e a Globovisión,
abrindo-se janelas nas telas das três emissoras para o bate-boca entre seus jornalistas. Já
não podiam fingir ignorar a audiência da VTV. Isto sim, é liberdade expressão! Mario Silva
demoliu os outros jornalistas com facilidade. Os bonecos e bonecas midiáticas não sabem o
que fazer sem o teleprompter. Ficam perdidos, desorientados. A fleugma pré-ensaiada, as
mãozinhas educadas e os sorrisos estudados vão pras cucuias. Perdem a compostura e
partem para a apelação, revelando logo quem de fato são. Outros programas como Dando y
Dando, da jornalista Tania Diaz, e Contra-Golpe, da jornalista Vanessa Davies, ganhavam
enorme audiência desfazendo no dia seguinte, com seus convidados, tudo o que a mídia
privada, assessorada por empresas de comunicação e publicidade que contrataram a peso de
ouro nos EUA, tinha urdido no dia anterior.
Nesses dias, ia ficando mais difícil conectar pela internet os sinais ao vivo da VTV e da viVe
TV, tal fora o aumento de suas audiências também em níveis mundiais. O mesmo se deu
com a TeleSur quando entrou com mais força no combate. E, uma vez conseguido o sinal, o
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delay (retardo) de sintonia, normalmente entre três a cinco minutos, chegava, às vezes, a 15
minutos!
Por meados de maio, o ministro Jesse Chacon deu entrevista coletiva para explicar como
seria a saída do ar da RCTV e a entrada da nova TV, a TVes. Poucos dias antes, o governo
nacional tinha publicado no Diário Oficial a constituição e o estatuto da Fundación
Televisora Venezolana Social, e a concessão dada a esta fundação para explorar o Canal 2
do espectro radioelétrico em VHF. Chacon teve de agüentar com muita diplomacia as tão
irritantes quanto impertinentes intervenções dos jornalistas da RCTV e da Globovisión.
Pareciam querer dar a impressão de que fazer televisão era coisa exclusiva da competência
dessas duas empresas, e nenhum governo, muito menos o de um "gorila", tinha a menor
condição de operar um mistér tão sofisticado e exigindo capacidades profissionais e
especializadas necessariamente tão extraordinárias que só eram encontráveis nos quadros
das duas emissoras. Chacon pôs abaixo tal argumentação presunçosa com surpreendente
(pelo menos para nós, que não o conhecíamos) conhecimento sobre a matéria, e só não
humilhou aqueles(as) jornalistas por não ser próprio à gentileza e elegância com que deve
conduzir uma entrevista coletiva a autoridade e a nobreza de um Ministro del Poder
Popular para las Telecomuniciones y la Informatica. Nessa entrevista, foi discutida a
capacidade da nova TVes para abranger o território nacional, e Chacon reconheceu que isto
se daria dentro de seis meses e que, no início, o sinal só seria recebido em grandes cidades
como Caracas e Maracaibo. Disse também que o governo tentaria negociações com a
empresa RCTV, proprietária das antenas atuais de transmissão, para adquiri-las.
Foi bastante saírem as duas últimas declarações para que a mídia privada estampasse, com
alvoroço, manchetes sobre a "gravíssima" situação em que ficaria a maioria do "povo
venezuelano", privado de seu direito (Direitos Humanos! Direitos Humanos!) de captar o
sinal do Canal 2 por "incompetência absoluta" das autoridades governamentais. Marcel
Granier, por sua vez, apressou-se em declarar que de modo algum venderia suas antenas ao
governo do "tenente-coronel" (era esse o tratamento que a RCTV dava ao presidente), até
porque ele nunca precisaria delas, pois estava prestes a cair (eles, de fato, não aprendem e
caem em todas as armadilhas). Alguns outros tratamentos dados ao presidente da República
Bolivariana de Venezuela pela mídia privada do país, durante o período: el paracaidista de
Sabaneta, Totalitario, Mico mandante, Mono, Gorila rojo, Loco, el perturbado peligroso,
Autoritario, Zambo, Loco de Carretera, Caudillo, Dictador, Matonista, Estrafalario,
Populista, Comunista, Castrocomunista, Tirano, Asesino, Taliban, Hitler, Mussolini,
Terrorista, Tipejo, el dictadorzuelo sudamericano, Demagogo, cuasidictador, el arbitrario,
el injerto comunista, clono de Castro, amigo de Khadafi, narcoguerrillero, agresivo, el
autoritario colectivista, caudillista unipersonal, desestabilizador, el provocador
continental, el autoritario a ultranza, pobre diablo, demente, esquizofrénico, etc.
Na seqüência, Chávez mandou publicar a nomeação para a diretoria da nova Fundação
Televisora. Para a presidência da nova TVes, ninguém menos que Lil Rodriguez!
Essa nomeação calou a boca de muita gente. Lil Rodriguez, além de jornalista veterana da
mídia de resistência, é escritora e pesquisadora de música e dança e é, reconhecidamente,
uma das maiores autoridades em cultura latinoamericana. Recentemente, havia recebido da
Prefeitura de Caracas o título de "Patrimônio Cultural Vivente de Caracas". É uma mulher
extraordinária, atuante, vanguardista e, entre seus muitos trabalhos em várias linguagens da
arte e do jornalismo, é a roteirista, diretora e produtora de Sones y Pasiones, programa de
grande sucesso da TeleSur. Sua nomeação a incorpora ao staff de mulheres atuantes no
primeiro time da Revolução, ao lado de outras personalidades femininas cuja importância
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neste processo de conquistas mereceria um trabalho específico. Além do mais, com a
nomeação dela, Chávez deu a linha de televisão que quer para a Revolução - uma televisão
de linguagem avançada e que tenha por linha mestra a cultura e a arte latinoamericana.
A entrevista coletiva de Lil Rodriguez, apresentando os demais membros da diretoria da
TVes, ocorreu em 18 de maio, portanto a dez dias do "Dia D". Ela advertiu que dois outros
diretores seriam depois nomeados, um pela ANMCLA (Associação Nacional de Meios
Comunitários Livres e Alternativos) e outro pela Associação de Produtores Independentes,
cuja sigla não recordamos. Estavam presentes representantes de várias entidades culturais,
além de artistas, intelectuais e produtores independentes. A nomeação de Lil teve também
essa importância para a batalha: ela trouxe para o centro do front os realizadores culturais,
de todas as tendências e formações, que antes se mantinham numa participação bastante
discreta. Lil mostrou a todos uma pasta com vários DVDs, contendo já 340 horas de
programação da nova TV, e, sob aplausos, proclamou: "Eis a TVes!" E projetou numa tela
alguns flashes da programação, todos muito aplaudidos.
Em 19 e 20 de maio, a TeleSur promoveu a I Jornadas Internacionales de Comunicación,
coordenada por seu presidente, Andrés Izarra, e com a presença de jornalistas e editores da
mídia de resistência e de governos progressistas, convidados para debater o tema "O direito
de informar e ser informado". Claro que o tema da "não renovação da concessão" da RCTV
não faltou nos debates. Célebres autores, jornalistas e profissionais da mídia de resistência
em todo o mundo vieram à Venezuela para o evento, realizado no Teatro Tereza Carreño,
onde foram recebidos pelo próprio Chávez, que os homenageou, em cadeia nacional, com
um discurso de mais de três horas. Com este evento, a Venezuela, confirmando uma de
nossas teses aqui expostas, afirma-se solenemente como pátria da mídia de resistência
Naquela ocasião, a mídia privada não estava mais preocupada em só fazer mau jornalismo,
ou, como resumiria Gilberto Felisberto Vasconcellos numa só palavra, ou "palavrão" - o
pornovideofasciofinanceiropolicial. O que ela fazia era terrorismo midiático da pior
espécie, em forma de ameaças de catástrofes inventadas diariamente. "Washington havia
marcado a data da queda de Chávez". "O país estava a um passo da ingovernabilidade".
"Exércitos de paramilitares colombianos atravessavam a fronteira e movimentavam-se em
direção a Caracas". Vários integrantes do alto comando militar de Chávez eram citados
nominalmente como dissidentes e coordenadores de uma fulminante reação paramilitar.
Foi o momento em que entrou em cena o Ministro del Poder Popular del Interior y
Justicia, Pedro Carreño. A figura atarracada do Ministro nos dá, em primeira impressão, a
sensação de que estamos diante de um homem tosco e simplório. No entanto, quando fala,
revela-se homem de pensamento sofisticado e seguro de sua competência profissional e
política. Cada fala do ministro Pedro Carreño, quase afogado por microfones de todos os
veículos de comunicação, era um balde de água fria nas fogueiras virtuais da mídia privada.
Sua firmeza, sua segurança, sua competência, sua capacidade de argumentação e contraargumentação, além da serenidade de suas respostas bem informadas e objetivas, vazavam
diretamente para os telespectadores e ouvintes, tranqüilizando-os e desmontado todo o
arsenal terrorista implantado por força de invencionices e mentiras descaradas.
Em paralelo, como se quisesse disputar em importância com os ministros, o Sr. Marcel
Granier convocou uma coletiva para anunciar que havia entrado com pedido cautelar junto
ao TSJ a fim de obrigar o governo a renovar-lhe a concessão. E ameaçava o TSJ, caso não
lhe concedesse a liminar, ao mesmo tempo que apelava para o "patriotismo" e o "bom
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senso" dos ministros do TSJ para julgarem no sentido de "evitar o caos", do que "é melhor
para o país" e do que atendesse "a vontade da maioria do povo" (sempre o "povo").
Mas, na quarta-feira, 23 de maio, o TSJ bateu o martelo e, numa sentença sucinta e bem
escrita, negou a liminar. O que gerou imediatamente a seguinte manchete nos jornais
vespertinos e nos noticiários noturnos das TVs e rádios privadas: "Esgotou-se a via legal"!
Em verdade, ainda faltava o consentimento da Assembléia Nacional, previsto em lei, mas
este já era dado como certo. No entanto, a AN havia convocado para o dia seguinte, 24,
uma sessão ordinária numa praça central de Caracas, aberta a todos os que desejassem se
manifestar, para depois votar a decisão. Compareceram artistas, escritores, produtores
independentes, jornalistas, homens e mulheres do povo, todos apoiando a decisão do
governo. Nenhum orador se inscreveu para contrariá-la. E a AN votou pela "não renovação
da concessão" da RCTV por unanimidade.
Nesse ínterím, a RCTV e a Globovisión se tornaram praticamente uma só emissora. Faziam
shows de atores e atrizes de novelas chorando para o público, implorando, de joelhos, que o
povo não permitisse "tamanha maldade". Promoviam atos públicos e marchas, que não
reuniam nem dez mil pessoas, e as publicavam como se fossem "milhões". Faziam
montagens de notícias com celebridades que apoiavam o governo, dizendo o contrário do
que realmente tinham dito, duas das quais vimos, uma delas mostrando Eva Golinger
desmentindo as farsas midiáticas de que tinham sido vítimas e exigindo o direito de
reposição da verdade, que ambas as emissoras nunca concediam. A tais alturas, as ações
judiciais que se acumulavam nos tribunais contra as duas emissoras, inclusive por parte do
Ministério Público, eram incontáveis (só a RCTV tem contra si mais de 2.000 ações
judiciais que justificam a perda legal da concessão).
Mas, em uma das transgressões, o governo interveio. Durante todo o mês de maio, a mídia
privada difundiu rumores de magnicídio. "A vida de Chávez estava por um fio". Aliás, os
serviços de Inteligência do governo lograram capturar vários atiradores profissionais com
os quais foram apreendidos armamentos equipados com sofisticadas miras telescópicas,
metralhadoras e armas de grosso calibre. Entre os homicidas capturados havia até um
mafioso italiano. O governo exibiu as armas apreendidas e os prisioneiros encapuzados,
dando inclusive os nomes de cada um deles, geralmente colombianos e cucarachas de
Miami. Eis que, neste clima de ameaças contra a vida de Chávez, no intervalo de um
programa de entrevistas da Globovisión, no qual o entrevistado era o Sr. Marcel Granier,
foi exibido um clip musical em que a letra da música dizia: "Tenha fé, isto não vai ficar
assim...". As imagens montadas ao som da música eram as da tentativa de assassinato do
Papa João Paulo II, em 1983, várias vezes repetidas, em câmera lenta, justo no momento
em que tomava o tiro e caía!
Foi a vez de surgir em cena o Ministro del Poder Popular para las Comunicaciones,
William Lara. Lara é desses jornalistas da velha guarda da mídia de resistência, cuja
reputação é inquestionável, e que não teme ninguém. Ele convocou entrevista coletiva para
desancar a mídia privada, a nacional e a internacional, e avisar que a paciência do governo
tinha limites. Exibiu o clip do Papa e também umas montagens fajutas da CNN, onde, num
noticiário, imagens de uma passeata ocorrida no México pela ocasião do assassinato de um
jornalista de lá eram mostradas como se fossem em Caracas. Passou uma descompustura
nos jornalistas da mídia privada que estavam presentes e avisou que o seu ministério estava
apresentando denúncia ao MP (Ministério Público) contra a Globovisión, baseada no laudo
de dois semiólogos que interpretaram o clip como clara instigação ao magnicídio. Lara
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aproveitou a oportunidade para convidar a todos os caraquenhos para a festa de celebração
do novo sinal televisivo, que seria dada pela TVes, no domingo à noite, ao longo de toda a
avenida Universidad (centro de Caracas).
Na manhã do dia 25 de maio, que o governo decretara que passaria a ser o dia do Hino
Nacional, Chávez surge em cadeia nacional de rádio e TV, com todo o comando das Forças
Armadas em um palanque, para condecorar a primeira turma de pilotos e pessoal de terra
formados para a base dos oito Sukoy já entregues pelos fabricantes russos à Força Aérea.
Após a exibição dos belos vôos dos Sukoy, pilotos e formandos se dirigiram marchando em
formação até o palanque e, lá chegando, fizeram alto e se dirigiram ao presidente (de
uniforme militar e boina vermelha) e ao Estado Maior da FAN (Fuerza Armada Nacional),
com a mão no peito e a frase "Pátria, Socialismo o Muerte!" Em seu longo discurso, diante
dos condecorados e do Estado Maior, Chávez mencionou os rumores de divisão e
dissidência, plantados em veículos da mídia privada, em que muitos dos nomes citados
estavam ali presentes, a seu lado. Ao final do discurso, cantaram juntos o Hino Nacional,
como sempre puxado pela voz afinada de Chávez.
Nesse mesmo dia, à tarde, o TSJ surpreendeu a mídia privada com uma decisão favorável a
um pedido de liminar da Associación de Usuários y Usuárias de Rádio e Televisión,
instituição criada nos parâmetros da Ley RESORTE, que advogava a necessidade de as
antenas da RCTV serem confiscadas pelo governo para que telespectadores de todo o país
tivessem o direito de acessar o Canal 2 e desfrutar da programação da nova emissora. O
TSJ concedeu ao governo o poder de um confisco temporário dos equipamentos, até que
fossem obtidos novos, dentro de um determinado prazo. Imediatamente, todas as antenas da
RCTV, espalhadas pelo país, foram ocupadas pela Guarda Nacional. O sinal de TVes estava,
assim, garantido em todo o território nacional!
A decisão, inapelável, foi contestada pela mídia privada como nova agressão à propriedade
privada cometida pela ditadura "castro-comunista" de Hugo Chávez, o qual mantinha "sob
férreo controle ditatorial todas as instâncias do Poder Judiciário, inclusive o TSJ".
No sábado, 26, a mídia privada convocou novo ato público em frente à sede da RCTV ao
qual compareceram cerca de cinco mil pessoas que vociferaram insultos contra Chávez e o
governo, e depois entraram no chororô midiático, com atrizes, atores, bonecos e bonecas
midiáticas dando declarações em prantos convulsivos. Uma das bonecas, quase uma
criança, dizia que vinha de um bairro pobre e, "graças à bondade do Sr. Marcel Granier",
tinha se tornado o que era. Devia tudo à RCTV. E, no final, fazendo um beicinho choroso,
perguntava: "Quem é esse homem para achar que pode agora 'cerrar my television'?”
Outros atores, atrizes, jornalistas e profissionais que tinham passado pela RCTV não tinham
a mesma opinião sobre o Sr. Marcel Granier. Muitos vieram a público, durante os meses de
batalha, para dizer o que passaram lá e como eram tratados pelo patrão. Alguns nem eram
chavistas ou bolivarianos, mas desancavam publicamente as pilantragens, os jogos sujos, as
chantagens, as perseguições e as censuras que sofreram sob a arrogância, o autoritarismo e
a prepotência do Sr. Marcel Granier, o que, aliás, era notório nos meios profissionais de
comunicação. Só que tinham de ser engolidos em seco por força do poder patronal que ele
até então possuía. Uma palavra dele, e o profissional amaldiçoado entrava numa lista negra
que o impedia de trabalhar não só na Venezuela, mas em vários países latino-americanos
onde o ex-biguebós mantinha poder econômico, influência e compadres poderosos.
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Na noite daquele sábado, Chávez fez mais um pronunciamento em cadeia de rádio e TV
(ele teve ter feito isto umas dez ou doze vezes na semana de 20 a 26 de maio), recebendo
estudantes universitários no Teatro Tereza Carreño. Com a moçada lotando aquele teatro,
Chávez puxou uma grande vaia para o Senado dos EUA (que votara moção contra ele no
dia anterior, chamando-o de ditador) e para as mídias privadas nacionais e internacionais,
as quais esculhambou. Depois, em mais uma provocação a certos setores que ele queria que
pusessem logo as garras de fora, anunciou, sob os aplausos entusiásticos da estudantada, a
criação de mais 28 universidades públicas, até 2010, o aumento imediato de 30% no valor
pago às bolsas de estudo, de 37% nos salários dos professores de escolas e universidades
públicas, a entrega de 200 ônibus diretamente ao movimento estudantil para o transporte até
as universidades, uma nova rede de "bandejões", e muitas outras ótimas notícias, daquelas
que todo movimento estudantil aplaudiria com o maior entusiasmo e alegria.
E a noite de sábado em Caracas (e em todo o país) transcorreu dividida em duas
informações midiáticas opostas. A mídia privada (desacreditada) aterrorizando com o caos
a começar daquela mesma noite, e a mídia de resistência e governamental convocando para
a festa do dia seguinte. Foi uma noite tranqüila e normal em todo o País.
O domingo, 27 de maio, amanheceu em toda a Venezuela como um domingo qualquer. As
feiras do MERCAL (uma iniciativa do governo para a venda de alimentos nas ruas das
cidades venezuelanas, por sinal, feiras muito populares e concorridas) transcorrendo
tranqüilas e cheias como sempre. Os postos para inscrições de aspirantes a militantes do
PSUV, muito movimentados, trabalhando a todo vapor. As classes médias nas praças,
fazendo exercícios e caminhadas, outros fazendo compras, pessoas passeando pelas ruas,
povo sereno, tocando e ouvindo música nos bairros periféricos, curtindo a domingueira.
A Polícia de Pedro Carreño, em alerta, registrava um ou outro foco, em pontos diversos de
Caracas, onde pequenos grupos queimavam pneus, faziam piquetes e tentavam perturbar a
paz. É nossa opinião que o fato mais importante do dia não foi o fim do prazo da concessão
da RCTV, que eram favas contadas, mas a apresentação ao mundo de uma nova polícia: a
Polícia Metropolitana de Caracas, que, no Governo Bolivariano, foi completamente
reformulada em sua filosofia de trabalho, em suas táticas de segurança pública e em seus
objetivos enquanto instituição de serviço público. Atualmente, o governo Chávez dá os
últimos retoques a uma Ley Habilitante que, ainda este ano, transformará as polícias
estaduais e municipais em Polícia Nacional e criará a Polícia Comunitária, esta vinculada
aos Conselhos Comunais. Logo vamos relatar os fatos que nos motivaram a tal opinião.
No início da tarde, flashes da VTV e da viVe TV já exibiam uma avenida Universidad
bastante ocupada por chavistas e bolivarianos que aderiram ao convite de William Lara,
quase todos vestindo a tradicional camisa vermelha. A avenida fora coberta de quiosques
para serviços de lanches e bebidas, ao lado de palcos onde se dariam eventos culturais e
musicais, todos equipados com grandes telões nos quais se projetariam as primeiras
imagens da TVes, nos primeiros minutos da madrugada do dia seguinte, 28 de maio.
Ao fim da tarde, a equipe da VTV cobria a maior manifestação das "oposições" daquele dia,
em ruas perto do CONATEL. As "oposições" tinham de mostrar alguma coisa na mídia e
nos relatórios a seus patrões nos EUA. Tinham, por primeiro objetivo, um morto (de
preferência, um jovem ou uma jovem), um cadáver que pudesse ser exibido mundialmente
como vítima e mártir da ditadura "castro-comunista" de Hugo Chávez, um cadáver que
fizesse as populações dos países "livres e democráticos" clamarem por justiça e vingança,
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um cadáver que despertasse o general Custer de seu túmulo e trouxesse para Venezuela o
glorioso 7º de Cavalaria ao som das cornetas vibrantes e salvadoras.
Um agrupamento de cerca de mil pessoas, a maioria piqueteiros e arruaceiros profissionais,
pretendia invadir a sede do CONATEL para impedir a interrupção do sinal da RCTV do
Canal 2 de transmissão VHF. Vamos assistir agora à primeira apresentação mundial da
nova Polícia de Caracas.
Os "oposicionistas" vinham em bloco coeso e articulado, gritando "palavras-de-ordem" e
insultos ao governo e a Chávez, quando deram com a barreira bem formada da Polícia de
Caracas. Uma polícia... desarmada! Uma polícia sem instrumentos de agressão de espécie
alguma, nem cassetetes, e sem qualquer outro aparato para confrontos, a não ser os escudos
que portavam, e os capacetes e coletes à prova de balas que vestiam seus policiais. E, na
linha de frente do confronto, somente mulheres policiais!
O bloqueio policial parou com firmeza os manifestantes a uns 50 metros da porta do
CONATEL, e o agrupamento foi se comprimindo com os piqueteiros ficando irados e
raivosos, tentando forçar e furar o bloqueio. A barreira policial não arredou um passo
sequer (quando há ameaça de violência, as mulheres são substituídas por homens na linha
de frente). Foi então que as câmeras da VTV começaram a registrar uma chuva de pedras,
garrafas e outros projéteis atirados pelos "manifestantes" contra os policiais. Estes
protegiam-se com escudos e não recuavam um milímetro. A coisa chegou a ficar preta
quando caíram os primeiros policiais atingidos por pedras de quase dois quilos. Veio, por
detrás do bloqueio, o "rinoceronte", um caminhão de polícia que atirou jatos d'água sobre o
agrupamento, espalhando-o. Era a direita, pela primeira vez, enfrentando a polícia, só que
uma polícia desarmada e treinada para não matar, não ferir, não machucar. De repente,
ouviram-se disparos de armas de fogo. Prontamente, a barreira policial avançou e, por estar
bem treinada e bem ensaiada, dissolveu rapidamente a manifestação, usando bombas de gás
lacrimogêneo lançadas do "rinoceronte". Resultado do "conflito": 11 policiais feridos,
quatro deles levados ao hospital; nenhum "manifestante" sequer arranhado.
Na cidade de Mérida, mercenários infiltrados em manifestações "pacíficas" de estudantes
de direita, tentaram "fazer" o cadáver que lhes fora encomendado, e disparam contra os
próprios manifestantes e contra os policiais desarmados. Balearam quatro policiais (um
deles corre risco de ficar tetraplégico) e quatro estudantes. Todos foram hospitalizados, mas
sem risco de morte. A polícia prendeu os homicidas, que aguardam julgamento.
E nisto, além de umas poucas "guarimbas" sem conseqüências, ocorridas em Caracas e
grandes cidades, ficou a "resistência" das "oposições", que iria "levar o caos ao país".
Em seus estúdios, a RCTV fazia o show do próprio funeral. Um falso funeral, pois na
verdade a emissora vai continuar a sair por cabo, só que seus geniais eestrategistas
conceberam o plano de fingir que ela estava sendo fechada, para que "multidões" saíssem
às ruas exigindo seu retorno. Os boatos diziam que a RCTV ficaria um mês sem emitir, ou
até o governo Chávez cair. Lá estavam todos, os bonecos e bonecas midiáticos, lacaios e
patrões, em prantos "dramáticos", abraçando-se, dando adeus aos telespectadores. Às
11h59, se puseram de joelhos, baixaram as cabeças e, em postura de devoção a Molloch,
esperaram o corte do sinal da emissora. Que dramalhão!
Na avenida Universidad, lotada de gente dançando, bebendo, tocando e feliz, a noite já ia
alta, e a festa também. Deu meia-noite, e o foguetório estourou. RCTVas! Para sempre...
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Passados alguns segundos, os telões exibiram, junto a estonteante foguetório, o logotipo da
TVes. Daí a 15 minutos, inicia-se a programação da nova televisão social de Venezuela.
Com a espada de Bolívar e a força do povo, Chávez decepou a cabeça da Hidra. As outras
cabeças, agitadas e furiosas, vão tentar retaliar.
TVes
Para quem conhece e trabalha com a linguagem audiovisual, os primeiros fotogramas ou
frames de uma realização já trazem a dimensão, possível de ser avaliada, da qualidade e do
valor da realização como um todo. Isto não é novidade e nem é exclusivo da linguagem
audiovisual. Toda expressão de linguagem pode ser avaliada pelo detalhe. Dilthey já
postulava, no início do século XIX, que "o detalhe pressupõe o todo". Ou, bem antes,
Spinoza: "Se o que expressa é substância, o que é expressado é essência."
Sendo assim, não poderíamos deixar de perder essa oportunidade, única na História, de
conhecer, em tempo real, os primeiros frames de um novo e pioneiro canal revolucionário
de televisão, sendo inaugurado na faixa mais nobre e mais importante do espectro
radioelétrico de um país como a Venezuela. Acompanhamos através do sinal da VTV.
Não nos referimos ao slide de logotipo nem ao vídeo de abertura, que já conhecíamos, pois
foram amplamente divulgados com antecedência. Nem ao Hino Nacional, aliás, magnífica
apresentação da célebre Orquestra e Coral da Juventude da Venezuela, com regência
impecável do famoso maestro venezuelano Gustavo Dudamel, previamente gravado com
excelente qualidade de som, imagem e edição, bem de acordo com a gala e a solenidade do
grande evento. Até aí, tudo correto: belas imagens, belo texto, bela música, mas ainda uma
seqüência protocolar e obrigatória ao momento histórico. O que estamos falando é do
primeiro plano criador do discurso audiovisual próprio do novo veículo, do primeiro frame
de transmissão de conteúdo, de preferência, ao vivo e em tempo real.
E a TVes não decepcionou. Não poderia ser mais bela e significativa!
Em plonge panorâmica, do alto de uma montanha, a imagem noturna, escultural, majestosa
e belissimamente iluminada da arrojada e moderna arquitetura do edifício do Teatro Tereza
Carreño, o principal símbolo da cultura venezuelana, no interior do qual se realizam as
manifestações do que há de melhor na produção artística, popular e erudita, de extração
nacional e internacional. A câmera e o objeto são estáticos, e o movimento fica por conta
das luzes dos veículos que circulam nas imediações. Na banda sonora, o rumor suave da
madrugada na cidade noturna, em baixo volume.
Nestes primeiros frames já temos muitas informações importantes à analise e avaliação do
que estamos por conhecer, pois tudo é informação para quem trabalha e estuda esta
linguagem, desde as posições de câmera, a composição do quadro, a inflexão de linguagem
(tempo, som, luz) e, o que é fundamental, o objeto-conteúdo e o propósito (intenção) da
direção, que desde o primeiro frame se revelam ao espectador. Em linguagem audiovisual,
a direção é tudo. Melhor, talvez, seria dizer: o resultado final do produto audiovisual é
responsabilidade de quem o dirige.
E o que nos informa a TVes em seu primeiro frame? O seu compromisso com a cultura, em
primeiro lugar, e com o que há de melhor e mais importante em suas manifestações através
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da arte e do talento criador. Na ousadia e na composição do plano, ela já nos informa da
intenção vanguardista, própria e peculiar no uso da linguagem de comunicação, em
contraposição ao uso estandardizado das emissoras privadas, em geral numa metralhadora
de imagens carregadas de interesses comerciais, voltadas para a conquista (do bolso) e
manipulação do consumidor. Sendo o Teatro Tereza Carreño também um símbolo de
cidadania, a TVes se colocou, desde as primeiras declarações públicas de sua direção, como
emissora voltada para o cidadão, e não para o consumidor. E o primeiro frame confirma a
intenção diretora. Muitos outros signos e significados podem ser extraídos de um primeiro
frame, mas não é nosso objetivo aqui produzir um tratado de semiologia, mas, sim, o
registro do grande momento histórico que significou a entrada no ar, em Venezuela, do
primeiro frame produzido, em transmissão ao vivo para todo o país, da TVes.
Visto o primeiro frame, o próximo interesse analítico do audiovisual será o primeiro corte,
onde começa a se realizar a montagem do discurso nesta linguagem. Não vamos dissertar
sobre as teorias e técnicas de corte e montagem audiovisual, que não cabem neste trabalho.
Mas, podemos dizer que, também aí, a TVes se saiu com muita felicidade, em corte seco
para panorâmica do interior do teatro repleto, com Lil Rodrigues, no palco, já posicionada
para o discurso inaugural. Em seguida, close no rosto de Lil. Está no ar...a TVes!
E o que se seguiu foi uma bela e bem produzida seqüência de skets demonstrativos da grade
de programação da TVes, levados ao vivo no palco do teatro e transmitidos para todo o país
pelo Canal 2, abrangendo as artes populares e eruditas, e os demais assuntos a que se
dedicará o novo veículo, que se propõe cultural até nos espaços desportivos e noticiosos.
Parabéns, TVes! Viva a TVes! Viva o Governo Bolivariano da Venezuela!
Algumas horas antes, pelas câmeras da VTV, viVe TV e TeleSur, tínhamos visitado o
interior do belo teatro, quando já se encontrava cheio e recebendo mais pessoas, inclusive
de outros países, para presenciar o grande momento. Vimos aquele bochicho de artistas,
intelectuais, jornalistas e profissionais do audiovisual se encontrando, se congratulando, se
abraçando, formando grupos de falatório e bate-papos. Gente de todas as idades e perfis,
velhos e jovens, as cabeças brancas, os enfants terribles, as mulheres artistas, os malucos de
todas as artes. Pareceu-nos um daqueles encontros de que participávamos nos finais dos
anos 60 e início dos 70, nas vésperas ou nas esperas de eventos e espetáculos que sabíamos
importantes e históricos. Vivíamos uma aura de grandeza, de sintonia espiritual com o
momento e a realidade, e a sensação de estarmos realizando, criando, contribuindo e
participando de um processo libertário, num clima de consideração e respeito. A diferença é
que naqueles idos tínhamos contra nós as ditaturas militares cuja implacável repressão
destruiu nossas esperanças e anseios, mas não a semente que ali plantamos em todas as
partes do planeta. Agora, ao ver tudo aquilo retornar com o apoio firme e corajoso do
governo de um grande país como a Venezuela, é como se víssemos a continuidade
audiovisual de planos tomados 30, 40 anos atrás, montados em sequência com os atuais
momentos gloriosos por que passaram os realizadores audiovisuais em Venezuela no
Teatro Tereza Carreño, à espera do sinal da nova e revolucionária emissora, desta vez
nossa e verdadeira, que ocupará a faixa mais nobre do espectro radioelétrico do país. E que
sinaliza também uma nova época, como bem advertiu o novo presidente do Equador,
Rafael Correa. Uma época em que o horror fascista e neoliberal será deixado no lixo da
história e em que o mundo retomará o afluxo libertário e renovador dos anos 60 e 70.
São muitos os pensadores que antenaram este grande momento, desde Hegel até um atual
Fritjof Capra, por exemplo, passando por José Carlos Mariátegui e Oswald de Andrade. E
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quantos não foram os libertadores da América cujos espíritos também estavam lá, desde
Tiradentes e Simon Bolívar a Ernesto "Che" Guevara?
A TVes tem pela frente um grande desafio que, temos certeza, vencerá.
Pela primeira vez, vamos poder saber quanto tempo será necessário para a readaptação de
vastos setores da população a uma realidade midiática não manipuladora. A TVes haverá de
nos dizer, será a primeira a fazê-lo como emissora audiovisual atuando em igualdade de
condições com as emissoras da mídia privada em termos de acessibilidade e sintonização.
Sim, porque a manipulação midiática pelo pensamento único, propagada pelas emissoras da
mídia privada na Venezuela e hegemônica na maior parte do mundo, se faz a partir de dois
comandos básicos: o pattern comunicacional (que os manipuladores chamam "padrão de
qualidade") e o código de adesão (obediência do receptor).
Temos mencionado esse pattern anteriormente e cremos que chegou o momento de definilo, segundo os conceitos que vimos desenvolvendo.
O que, para nós, é o pattern comunicacional manipulador?
Atribuem a Goebbels sua criação, e é verdade que o fascismo e o nazismo o adotaram em
sua primeira versão onipresente e, digamos, científica. Mas, sem dúvida, sua origem
remonta à indústria de produção em série e ao subseqüente comércio consumista. É o
conceito de propaganda que eleva a sucesso de vendas um refresco sem sabor, sem valor
nutritivo, de cor repugnante. É a estandardização viabilizadora do produto "barato", um
Ford, por exemplo, invertendo o conceito anterior de utilidade ao usuário, uma vez que é o
consumidor que passa a ter de se adequar ao produto, e não este ao usuário.
Nossas observações, dividem o pattern comunicacional em três subpadrões básicos: o
padrão de discurso (inflexão de linguagem); o padrão de comunicação não dialética (não
pensamento ou pensamento único); e o padrão estético (forma-embalagem).
Estes padrões estão implantados em todos os veículos da mídia hegemônica mundial com
poucas adaptações a certas realidades locais. De qualquer modo, a uniformidade é
chocante. A partir deles, é possível produzir a "matriz de opinião", que é, na verdade, o
código de adesão, automática ou quase automática (há casos em que se necessita recursos
extras de persuasão) por parte do receptor, o qual deverá aceitar como verdade indiscutível
toda e qualquer comunicação vinda de um emissor inserido naquele pattern, e, também, a
recusar como inverídica ou desqualificada qualquer comunicação vinda de fora dele. No
código inclui-se o mecanismo de obediência cega do receptor a uma voz de comando que
eventualmente os manipuladores queiram inserir.
A batalha midiática que se trava na Venezuela provocou a exarcebação desses padrões e
comandos que, em tempos de "paz", são usados com sutilezas e camuflagens, e promoveu
demonstrações preciosas de seus efeitos, poderes e fraquezas, que, a nosso ver, devem ser
estudados em profundidade pelos os que se interessam e possam colaborar na construção da
comunicação midiática revolucionária. Mais à frente veremos alguns exemplos.
Do código de adesão, a revolução bolivariana já livrou boa parte da população venezuelana
e uma parte pequena mas importante da América de língua espanhola, e isto é fundamental,
tanto quanto obrigatório, como primeiro passo. Mas o mesmo ainda não ocorreu com o
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pattern comunicacional, o que explica os níveis significativos de audiência que são
mantidos pela mídia privada, apesar do histórico golpista, traiçoeiro e reacionário que a
caracteriza, e de forma cada vez mais escancarada, em todo o processo revolucionário que
se instalou na Venezuela, desde 1999.
O código, por ser primário (adere/não adere; obedece/não obedece), pode ser derrubado
com mais rapidez, como o fez a revolução venezuelana, e para tanto foi importante a
liderança de Hugo Chávez. Entre o comando codificado pela mídia privada "não ficar com
Chávez" e o apelo da realidade objetiva que envolve o receptor a "ficar com Chávez", o
receptor, percebendo as reais mudanças sociais que lhe são claramente favoráreis, superou a
força subliminar e inconsciente do comando codificado (mas já desgastado e desacreditado,
como temos visto) e optou por desobedecê-lo. Isto, porém, não o libertou do pattern, a que
vem sendo submetido ao longo de várias décadas.
O primeiro padrão do pattern comunicacional, sempre segundo nossas observações, o
padrão de discurso, impõe a forma exclusiva e pré-determinada de "dizer a verdade" através
do boneco ou boneca midiática (emissor) e da montagem gráfica-sonora-audiovisual. Este
padrão impõe a montagem linear do discurso gráfico ou narrativa sonora/audiovisual e o
texto óbvio ou banal, feito para ser "compreendido" em sua mensagem primária, sem
necessidade de raciocínios complexos, deduções críticas, comparações ou avaliações
subjetivas de conteúdo. No jornalismo, determina a interposição obrigatória, entre a
mensagem e o receptor, do ente emissor (boneco ou boneca midiática). Este, por sua vez,
sem direito a existência própria nem participação na elaboração da mensagem, a não ser
que seja aprioristicamente aderente à "verdade" manipulada que transmite, tem só a função
de representar o veículo midiático. Há estudos que concluíram ser este padrão desenvolvido
para manter ou retardar o receptor numa idade mental situada em torno dos 12 anos, faixa
onde o pattern almeja medianizar todos os receptores, pela docilidade e ingenuidade que os
caracteriza, tendo já adquiridas as capacidades plenas de leitura e escrita básicas. O que os
tornaria, nos padrões perseguidos pelos manipuladores, o "receptor-consumidor ideal".
O segundo padrão, a comunicação não dialética, estabelece a direção unívoca, obrigatória,
do emissor ao receptor, mesmo que às vezes faça camuflagens simuladoras de que permita
a direção contrária da comunicação (resposta) e, quando o faz, permite apenas o retorno não
crítico, não dialético e sob controle dos manipuladores. É a essência do pensamento único
manipulador. Por este padrão, a mensagem também se torna um meio, ou se confunde com
ele, isto é, não é o conteúdo da mensagem o objetivo da comunicação, mas o que através
dela se quer obter do receptor, por manipulação. Daí a necessidade de os meios
hegemônicos serem também produtores de mensagens, seja produzindo-as nos próprios
veículos midiáticos ou em produtoras deles dependentes.
O terceiro e último, o padrão estético, é o que reveste os dois anteriores em linguagem
gráfica, fonográfica e audiovisual, sob o aspecto estético e formal, devendo neles
enquadrar-se e ao mesmo tempo torná-los atraentes ao receptor. Seu objetivo é reduzir o
gosto estético do receptor, ou impedir que se desenvolva, a sinais sonoros e visuais fáceis,
de rápido reconhecimento e impacto imediato. Cores vulgares, materiais brilhantes, sons
estridentes, composições plásticas bizarras, trilhas sonoras cacofônicas, luzes chapadas,
pieguices e banalidades predominam no limitado repertório de recursos estéticos a que se
permite embalar o pattern comunicacional manipulador. Envolve também o "perfil"
estético dos entes emissores (bonecos e bonecas midiáticas), estabelecendo padrões de
"beleza", raça, ideologia e comportamento, de acordo com as determinações diretivas, as
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quais devem eles representar e simbolizar também visualmente e em consonância com as
marcas e padrões gráficos-visuais de identidade corporativa dos veículos a que servem.
A tudo isso vêm sendo submetidas as populações de quase todos os países do mundo,
inclusive a Venezuela, ao longo de décadas, como critérios de "padrão de qualidade". Tal
padrão exclui toda e qualquer manifestação cultural com validade artística ou estética real,
em que não pode haver padrões nem critérios absolutos. Também a manifestação cultural e
artística estabelece um processo comunicacional, mas tal processo só pode ser dialético, e
não se estabelecerá nunca univocamente com um receptor passivo, mas, biunivocamente,
com um fruidor crítico. Portanto, jamais se poderá submetê-lo a um pattern, qualquer que
seja ele, nem a nenhum dos três padrões nele contidos, mas, sim, produzir o que chamamos
de uma cultura comunicacional. E é neste caminho, ou contra corrente, que se lança,
pioneira, nacional e mundialmente, a TVes.
Por outro lado, a TVes se estabelece no contexto de um processo revolucionário que vem
sendo amadurecido com rapidez graças ao gênio do estadista Hugo Chávez e a competência
de sua equipe e, pelo que vamos ver, somente na Venezuela poderia se realizar uma
conquista popular, democrática e revolucionária de tamanho vulto.
Segundo Lil Rodrigues, em sessenta dias terá se instalado o site na internet, e disponível o
sinal ao vivo de TVes. Teremos grande prazer em visioná-la. O gosto musical de Lil nos
garante que a música da TVes é muito boa, e isto, em nossos critérios, é fundamental na
qualidade de tudo o que é composto em linguagens sonoras e audiovisuais. Aliás, a música
da Revolução Bolivariana é toda muito boa, uma delícia de ouvir. Estamos certos de que
Lil Rodrigues tem muito a ver com ela (e o ouvido musical de Chávez também).
Day after... e alguns dias depois
O saudoso deputado Sette de Barros contava que, na ocasião do golpe de 1964, em que se
derrubou o Presidente do Brasil, João Goulart, ele estava em sua terra, Ponte Nova, Minas
Gerais, quando um amigo o procurou aflito em busca de notícias, pois os veículos do
Estado estavam todos sob controle dos golpistas. Sette possuía um bom equipamento de
radioamador e conseguiu sintonizar uma rádio de Porto Alegre, a mesma em que Brizola
fazia pronunciamentos de resistência, a qual dava notícias alvissareiras de uma resistência
prestes a reverter o golpe. Em determinado momento, o locutor anunciou: “Agora vamos
ouvir... o presidente do Sindicato dos Sapateiros de Pelotas!”. Ouvindo isso, o amigo disse
ao deputado: “Compadre, é melhor acharmos um jeito de sumir logo daqui!”.
É de se imaginar uma situação muito parecida, apesar de inversa, dos antros golpistas ao
sintonizarem as TVs e rádios naquela manhã de 28 de maio. Durante a semana anterior seus
veículos bombardearam a população com cenários catastróficos de greves gerais,
transportes parados, comércio fechado, apagões, caos nas ruas, violência e tudo mais, tão
logo "o povo" se desse conta da saída do ar da "querida RCTV". Nós mesmos, curiosos,
tratamos de conectar a página da golpista Globovisión. Depois de montar planos fechados
com cenas de pequenos piquetes de meia dúzia de arruaceiros profissionais em algumas
esquinas de Caracas, dizendo que a Venezuela inteira vivia o caos, e Chávez estava para
cair a qualquer momento, um boneco midiático apontou o microfone para um sujeito
branco e bem nutrido, com cara de gringo, e disse: “Agora vamos ouvir... John Goicochea,
do Centro de Estudantes da Universidade Católica Andrés Bello!”. Imediatamente, nos
lembrou a anedota do velho Sette de Barros. Só rindo!...
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A Venezuela amanheceu no 28 de maio com todas as atividades absolutamente normais,
não parou uma kombi! As "oposições" tinham, nas ruas, só o protesto dos estudantes... das
universidades e escolas particulares! Mesmo assim, ficou depois provado à exaustão, era
tudo coordenado pelas ORVEX, OTPOR, Freedoms Houses e Albert Einstein Insituts da
vida, com dinheiro do Sr. Marcel Granier. Foi a tentativa de golpe de Estado mais inusitada
que já se viu. Mas a resposta bolivariana, o contra-golpe, foi genial! Ela trouxe como
resultado a comprovação empírica do que ainda estava em teoria em nossos estudos: a
dissolução do pensamento único quando em convivência com o pensamento crítico, num
espaço de tempo socialista de liberdade de expressão (mesmo levando-se em conta que a
Venezuela está num estágio "rumo ao socialismo").
Necessitamos aqui de um pequeno histórico para melhor compreensão do fenômeno que
vamos descrever. As universidades tradicionais e privadas restaram como o único espaço
de poder (público/privado) em mãos das oligarquias. Isto ficou mais que comprovado
agora, quando não houve adesão de nenhum outro setor aos planos golpistas abertamente
acalentados durante seis meses consecutivos, por iniciativa da mídia privada. Se há um
espaço de poder em que a revolução não tocou, até por ser de importância estratégica não
prioritária aos primeiros momentos revolucionários, foi justo neste segmento. Com a
reeleição de Chávez e a ativação dos "5 Motores", ficou claro, já na redação do título do 3º
Motor, que o governo revolucionário estava de olho nele. De cara, Chávez criou o
Ministerio del Poder Popular para la Educación Superior, nomeando para o cargo Luis
Acuña, que, para se preservar, manteve-se discreto no desenrolar dos fatos, dando apenas
alguns depoimentos em programas de rádio e TV. Lembramos que, no dia 26 de maio,
Chávez recebeu os estudantes no Teatro Tereza Carreño onde fez as conhecidas e bem
sucedidas provocações, desta vez contra os interesses oligárquicos neste setor, que já vinha
aborrecido com o governo por causa das "aldeias universitárias" e do sucesso que
representaram. A "aldeia universitária" tem por meta a municipalização do ensino superior,
com o intuito de evitar que os melhores cérebros das cidades interioranas abandonem suas
terras natais para cursar universidades nas grandes cidades, e não mais voltarem. O governo
revolucionário então decidiu levar as universidades até as pequenas cidades do interior,
implantando excelentes módulos de ensino universitário, de acordo com o tamanho dos
municípios, e que funcionam como campus avançado de universidades públicas. Isto
significou grave queda de receita das universidades particulares. Agora Chávez volta à
carga e anuncia a criação de 28 novas universidades públicas até o ano de 2010, o que
representará nova e brutal queda de receita das particulares e quase total perda de influência
das tradicionais (que são públicas mas mantidas em mãos elitistas). Chávez não parou aí.
Declarou que, em 2008, será posta em prática a reforma total dos ensinos público e privado,
que deverão se dedicar à educação socialista (Moral y Luces), e anunciou ter decretado a
extinção dos exames vestibulares das universidades públicas e privadas. Tal decreto impõe
também, para o fim deste ano, o fechamento da lucrativa indústria de "cursinhos prévestibulares" e tudo o que gira em torno deles e dos exames vestibulares. Essa "indústria",
claro, é controlada e explorada por reitores e professores das universidades tradicionais e
privadas, e diretores e professores das escolas privadas de 2º grau.
Esses senhores e senhoras, provenientes da "nata" das elites criollas, se uniram com as
"oposições" e a mídia privada para, sob o pretexto da "não renovação da concessão" à
RCTV , tentar derrubar o governo! E botaram seus muchachos y muchachas nas ruas...
Ocorre que esses muchachos y muchachas nunca em suas vidas fizeram manifestação ou
protesto de qualquer espécie. Porém, constituem boa parte do que restou da população
venezuelana ainda codificada com adesão e obediência ao comando do pattern
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comunicacional. De fato, precisavam de "orientação". Esta fora encomendada ao must da
"Inteligência" manipuladora a serviço do império, o Albert Einstein Institut, trazido à
Venezuela para aplicar o (já) famoso e fajuto plano de "golpe brando".
Foi ridículo!... Resume-o a manchete do Diario Vea, de domingo, 10 de junho, depois de
duas semanas de marchas tontas e sem sentido: "Niños ricos quieren tumbar el Gobierno"!
Mas, já no day after, surgiu no cenário político da Venezuela (e do mundo) um tipo de
manifestante e de manifestações de "protesto" jamais imaginados.
Apresentaram-se primeiro, aos grupelhos, em ingênuos piquetinhos, em nome de "todos os
estudantes da Venezuela, contra o fechamento da RCTV". Por serem poucos (até crianças
de sete a doze anos foram "recrutadas"), foram instruídos a organizarem-se em pequenos
grupos distribuídos em diversos pontos estratégicos, para os quais era fornecido logística
(lanches, refrigerantes, pneus para queimar, coquetéis molotov, sprays para pintar vidros de
carros, etc), transportes em carros, ônibus e caminhões alugados, faixas, panfletos e roteiros
com slogans de protesto e palavras-de-ordem "criados" em agências de publicidade e, claro,
ampla cobertura da mídia hegemônica nacional e mundial. O primeiro problema deles é que
a Revolução Bolivariana tem câmeras e microfones espalhados por todo lado, as TVs e
Rádios Comunitárias, e, por mais sigilosos fossem os pontos escolhidos, os veículos
midiáticos que deveriam estar lá buscando informações privilegiadas nunca estavam
sozinhos como desejavam. De pronto, os veículos da mídia de resistência e do governo
exibiam imagens que desmentiam as manipulações da mídia privada e davam voz aos
verdadeiros líderes estudantis, todos bolivarianos, que informaram ter a Venezuela 13
milhões de estudantes, que havia lideranças legítimas para representá-los, que os
muchachos y muchachas não eram lideranças estudantis, que o movimento estudantil
jamais se mobilizaria em defesa de empresas capitalistas, muito menos pela RCTV, que os
golpistas nem pensassem em usar os estudantes contra a Revolução Bolivariana, e
convidavam os "colegas" para o debate aberto e democrático, onde e quando quisessem.
Os manipuladores não estavam interessados em debates, e muito menos seus manipulados
teriam condições de debater coisa nenhuma. Como dissemos antes, a meta deles era clara:
um cadáver (um muchacho ou uma muchacha, de preferência) para as garras sedentas da
mídia hegemônica, e tinham pressa. Mas a nova polícia da Revolução não o concederia.
No dia seguinte, 29 de maio, os manipuladores tentaram manter a estratégia a que
chamavam "protestos pacíficos", mas logo viram que não dava certo dividi-los em
grupelhos. Assim, cerca de três mil muchachos y muchachas se concentraram à tarde numa
praça de Caracas para "pacificamente" protestar e, se possível, provocar repressão policial,
coisa que de novo não deu certo. Desta vez, falavam em nome de "todos os estudantes
universitários de Caracas", e os protestos não eram mais pela RCTV, mas por "liberdade de
expressão". E faziam cena. Em conformidade com o manual do "golpe brando" do Albert
Eintein Institut, os muchachos se ajoelhavam diante dos policiais com as mãos para o alto,
como que pedindo clemência de quem nem pensava em agredi-los. Posavam para fotos de
correspondentes internacionais. Só que as fotos tiveram de receber tratamento de imagem
para escurecer o rosto dos policiais, pois eram mulheres e riam muito, não havia como não
achar engraçado aqueles niños ridículos. A melhor foto, publicada nos principais jornais do
mundo, foi a de um muchacho na posição ensaiada diante de um "rinoceronte". Foi até
comparada com a do muchacho chinês diante do tanque de guerra na Praça da Paz
Celestial, em Pequim (lembram-se?). Para os microfones que tentavam conseguir alguma
coisa dos niños não saía nada. Só repetiam sem cessar: "Queremos liberdade de
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expressão!". Avisados por um repórter que já tinham liberdade de expressão, contestavam,
com arrogância, que "sem a RCTV não há liberdade de expressão!". Mas o repórter insistia:
“a RCTV não está no cabo porque não quer, ninguém fechou a RCTV, apenas não lhe
renovou a concessão do Canal 2”. A resposta eram novos berros repetindo: "Queremos
liberdade de expressão!". Vendo que aquilo não ia sair do lugar, os manipuladores
nomearam John Goicochea e Stalin (que ironia!) Gonzalez os líderes oficiais dos
muchachos y muchachas e os instruíram a convocar uma marcha para o dia seguinte.
Esqueceram-se, porém, que a Constituição Bolivariana estabelece regras e regulamentos
claros para tais marchas, e o governo não abre mão de uma vírgula dela. Tinham de dizer
de onde saíria a marcha, a que horas, para onde iria, a que horas previam chegar, fazer o
pedido por escrito, com antecedência mínima de 24 horas. E se tivessem duas marchas
pretendendo o mesmo percurso, a que pedira primeiro o teria. Enfim, sem a licença da
Prefeitura da cidade e das autoridades policiais, que exigiam o cumprimento rigoroso dos
regulamentos e regras, não tem marcha. Para onde iria a marcha, Sr. Goicochea, Sr. Stalin?
- perguntavam os repórteres. Eles não sabiam, tinham de consultar "as bases".
À noite, declararam que a marcha, agora em nome "da maioria dos estudantes
universitários" e em protesto pelos "direitos civis", seria marcada para o dia seguinte pela
manhã, saindo da Universidade Católica para a Assembléia Legislativa. O pedido fora
encaminhado já desrespeitando o regulamento legal, que pedia 24 horas de antecedência. A
reitoria resolveu também liberar os estudantes de todas as aulas por tempo indeterminado.
Porém, a marcha não pôde ser autorizada, porque os estudantes bolivarianos, liderados por
Hector Rodriguez (UCV - pública) e Robert Serra (Católica), indignados com o papelão de
seus colegas universitários, já haviam solicitado, com a antecedência legal, uma marcha no
mesmo horário e local de chegada (Assembléia Legislativa), para o desagravo dos
estudantes revolucionários.
Aqui devemos abrir espaço para um breve comentário sobre o que na Venezuela parece-nos
ser o conceito de democracia participativa. De início, não se reconhece a autoridade de
pseudo lideranças forjadas em conchavos de cúpulas sindicais ou de categorias
profissionais, de valor meramente cartorial e sem respaldo nas coletividades que dizem
representar, muito comuns e recorrentes à assim chamada democracia representativa. Na
Venezuela, a legitimação de uma liderança passa necessariamente por instâncias de bases
(Conselhos Comunais), têm de ser bem demonstradas e comprovadas, e não se reduzem a
meros registros cartoriais. Devem também ser realizadas dentro de parâmetros legais muito
exigentes quanto à participação de cada cidadão em seu direito de ser informado, de
pleitear, de reivindicar, de propor, de influir e exercer a opinião com liberdade, sem temer
pressões e retaliações. E as minorias derrotadas não ficam impedidas de se manifestarem,
dispondo, para isso, de vários instrumentos legais. Eis porque as minorias estudantis
manipuladas puderam se manifestar com tanta liberdade, e com o estado obrigando-se a
protegê-las e a dar condições para que exerçam este direito. A única exigência, repetimos, é
que tudo seja feito conforme as leis e os regulamentos.
Mas os filhos de oligarcas de última geração são como os pais e os avós: não aprendem!
Depois de viver séculos como donos do País, ainda não perceberam que agora são minoria
e não mandam mais. Por isso, a qualquer interposição impeditiva ao que eles chamam
"meus direitos", que quer dizer "meus desejos", se põem logo a se destemperar numa
arrogância prepotente e raivosa acusando a tudo e a todos de "ditador", de "repressor" e o
mais que lhes vier à cabeça. E resolveram fazer a marcha sem autorização. Mas não saíram
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do lugar! A polícia cercou a universidade e os impediu de sair. Tentaram forçar a situação
para obter o almejado cadáver, em vão. Para a mídia hegemônica, tudo isto nada mais era
que "repressão" e "intolerância" da ditadura "castro-comunista" de Hugo Chávez.
Vendo que não iam conseguir nada, os manipuladores dos muchachos y muchachas
orientaram os "líderes" para convocar outra marcha para o dia seguinte, desta vez registrada
a tempo e sem impedimentos, para ir até o TSJ.
Enquanto isso, a imensa marcha dos estudantes bolivarianos, como de costume
preenchendo as enormes avenidas de Caracas com a alegria, a chama e a energia da
juventude revolucionária, mostrava a toda a Venezuela quem de fato representava os
estudantes no país. Para a mídia hegemônica e a mídia privada, esta marcha nunca existiu.
Mas as mídias de resistência e do governo não perderam tempo. Abriram a grade para
programas de debates, mesas redondas e entrevistas, convidando também estudantes
"oposicionistas" para participarem, e mostravam coberturas detalhadas dos eventos de
ambos os lados. Muitas vezes dividiam as telas para mostrar as diferenças entre as duas
manifestações. As bolivarianas, cheias de colorido, repletas de estudantes, plenas de alegria
e entusiasmo revolucionário, e as das "oposições", quase vazias, sem densidade, cinzentas,
carrancudas e mal humoradas. Fizeram especiais e programas documentários com a
memória do heróico movimento estudantil dos anos 60 a 90, na Venezuela e no mundo. De
novo, a audiência delas subiu vertiginosamente, mas os estudantes "oposicionistas"
recusaram os convites para debates e "exigiam" espaços próprios e exclusivos para se
pronunciarem. Obtiveram-nos. Só que, no lugar deles, compareceram reitores e professores
de universidades golpistas. Que eram recebidos.
Nesse mesmo dia, depois da marcha dos estudantes bolivarianos até a porta da AN, onde
foram recebidos pelo vice-presidente Jorge Rodriguez (que é filho de um estudante
assassinado pela polícia na década de 70), pela presidente da AN, Cília Flores, e os demais
deputados e deputadas, Chávez, que tinha sumido do cenário, reaparece em cadeia nacional,
num evento dedicado ao "Adulto Mayor", em que ele anunciava a concessão de pensões
vitalícias, no valor de 60% do salário mínimo, a venezuelanos maiores de 65 anos.
Chávez retomava a série de cadeias nacionais, que transtornam as grades de programação
dos veículos de comunicação, em especial os privados, causando ataques de ira e histeria
nos seus departamentos comerciais (vendo o faturamento despencar) e editoriais (vendo
seus próprios canhões serem usados contra eles mesmos). Em sua velha tática de
provocação, sempre vitoriosa, Chávez faz questão de estender a ocupação desses espaços
ao máximo, com duração média de três ou quatro horas, em que faz longas e pacientes
digressões sobre o socialismo, com detalhadas dissertações sobre a história e a geografia do
país, destacando os heróis bolivarianos revolucionários, o papel reacionário das oligarquias,
exibindo às câmeras livros e obras do pensamento crítico, que recomenda, lendo citações e
trechos, às vezes, longos, de alguns deles, mostrando mapas, desenhando croquis e
esquemas. Faz também pregações ideológicas, com lições minuciosas sobre as idéias de
Bolívar, Marx, Engels, Trotsky, Gramsci, José Marti, Mariátegui, Che Guevara e tantos
outros titãs do pensamento revolucionário nas Américas e no mundo.
Desta vez, a mídia hegemônica retrucou com uma bomba mundial, publicada em todas as
páginas na internet, primeiras páginas impressas e jornais televisivos vespertinos de seus
maiores veículos: o primeiro cadáver! Uma jovem universitária tinha sido barbaramente
assassinada por "capangas do ditador"! Mas o tiro saiu pela culatra e, como sempre, o
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ministro Pedro Carreño, afogado em microfones, desmontava a trama. A polícia agiu
rápido. No mesmo dia prendeu a dupla de assassinos, um casal que confessou ter sido
contratado por uma madame golpista, co-proprietária de um jornal fascista (Diario 2001),
que lhes pagou US$ 10.000 para eliminar a rival em negócios e herança familiar. Era um
crime passional em que o oportunismo da mandante aproveitava o momento para "ajudar"
aliados golpistas.
Na quarta-feira, 30 de maio, a concentração "oposicionista" demonstrava um reforço
substancial, que elevava em mais de dez vezes o número de manifestantes em relação às
primeiras concentrações. As mídias de resistência e do governo chegaram a demonstrar
certa apreensão com o fenômeno, mas isto porque passaram batido nas suas causas. Não
perceberam (ou até perceberam, mas não lograram explicar) que aos "oposicionistas"
começaram a aderir todos os codificados ainda submissos aos comandos manipuladores do
pattern comunicacional - os "disociados". Nesta situação, como na dependência química de
drogas, o receptor codificado, na falta da dose diária do pattern de sua predileção, no caso a
RCTV, se desespera e faz qualquer coisa. Gente que nunca na vida pensara em participar de
uma manifestação de protesto, vendo na Globovisión os manifestantes que reivindicavam a
mesma droga de que eram dependentes, decidiram participar, fazer alguma coisa. Eram
donas de casa, solteironas, dondocas de society, burocratas, solitários mal-amados e outros
servos do pensamento único ou não pensamento que, carentes da droga que "o governo lhes
confiscara", segundo o mesmo pattern a que dão crédito, partiram para engrossar as fileiras
dos muchachos y muchachas manipulados.
Ficou "chic" marchar em Caracas. As colunas sociais de jornais reacionários passaram a
publicar, com destaque, fotos de peruas conhecidas em plena marcha, "misturando-se ao
povo", com as caras pintadas, carregando cartazes e faixas, "em apoio aos estudantes",
vestindo-se com a bandeira invertida e a berrar pelas ruas por "la libertad de expressión",
com notas e legendas elogiosas "à coragem e à rebeldia das beldades".
Num congresso de escritores na Itália, Eduardo Galeano arrancou gargalhadas da platéia ao
comentar o caso da Venezuela. Disse ele: "Lá, você liga a televisão e vê um senhor dizendo
acá no hay libertad de expressión; você liga o rádio e ouve uma voz dizendo acá no hay
libertad de expressión; você pega o jornal e vê estampado, em letras garrafais, na primeira
página, acá no hay libertad de expressión!"
O TSJ, por sua presidenta Luisa Stella Lamuño, já havia se manifestado dispondo-se a
receber os estudantes "oposicionistas". A marcha, a maior registrada por eles (cerca de 30
mil pessoas), correu normalmente, pacificamente, etc, com a participação de reitores e
professores, que se faziam porta-vozes das "reivindicações", que desta feita eram pelos
"direitos civis", e não reivindicavam representação de estudantes; eram agora "seres sociais,
mas não socialistas", reivindicando o "direito sagrado de protestar". O Albert Einstein
Institut havia introduzido uma novidade: a bandeira de Venezuela era conduzida pelos
manifestantes de cabeça para baixo, "em sinal de protesto". Tal gesto, que na simbologia
significa rendição e reconhecimento de pátria derrotada, só viria aumentar a revolta e a
indignação popular contra os fedelhos. Se tem uma coisa que a revolução bolivariana
elevou até a grandeza máxima possível foram os símbolos pátrios nacionais, que o povo
aprendeu a respeitar e a reverenciar quase à idolatria.
Chegando lá, alguns muchachos y muchachas escolhidos entraram em comitiva na sede do
TSJ pela primeira vez em suas vidas; foram recebidos pela presidenta e todos os ministros,
agradeceram muito e, sem mais nada, se retiraram. Na porta do TSJ, a imprensa toda os
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aguardava, e alguns dos estudantes, com discursos nitidamente decorados a partir de clichês
típicos, vomitaram nos microfones um destampatório gaguejado, quase incompreensível
pela desarticulação oratória e pelo ódio incontido que deles vazava, com "exigências" e
ataques à Assembléia Nacional que, segundo eles, se recusara a recebê-los para receber os
estudantes bolivarianos, em "mais uma demonstração da falta de democracia que impera na
atual ditadura”, etc e tal. De nada adiantou reitores e professores tentarem explicar, porque
ninguém entendeu nada, nem as mídias hegemônicas e privadas.
Neste mesmo dia, Chávez, aproveitando um evento qualquer (não nos lembra qual), abriu
nova cadeia nacional para convocar uma marcha partindo dos quatro pontos cardeais de
Caracas, para um comício monstro na Av. Bolívar, no sábado próximo, 2 de junho.
Ainda neste dia, os estrategistas da manipulação golpista, desconfiando que dos estudantes
pouco iam obter, decidiram por plantar na mídia uma série de boatos de paralisações de
transportes, hospitais e indústrias. Arrependeram-se amargamente e nunca mais ousaram
repetir a traquinagem. Todos os representantes dos setores trabalhistas envolvidos nos
"rumores" compareceram em bloco no Ministério do Interior e Justiça e, em coletiva de
imprensa, junto ao ministro Pedro Carreño, afirmaram que os trabalhadores de todos os
setores apoiavam sem restrições a democratização do espaço radioelétrico em curso pelo
governo do presidente Chávez, e mais: declaravam que, se houvesse qualquer tentativa de
greve patronal (lock out), os trabalhadores ocupariam e tomariam as empresas (a legislação
bolivariana prevê, para tais casos, que empresas abandonadas pelos donos podem ser
tomadas pelos trabalhadores e convertidas em cooperativas ou empresas socialistas). E cada
uma das lideranças trabalhistas ali presentes fez questão de fazer o próprio e contundente
discurso de apoio incondicional ao "presidente Chávez e ao seu governo".
No dia 31, pela manhã, os estudantes "opocionistas" realizaram marcha igual, só que pela
"autonomia das universidades" (que já são autônomas por determinação da própria
Constituição) até a Procuradoria Geral da República. Foram recebidos pelo procuradorgeral, agradeceram muito, e, sem nada a dizer, se retiraram, com suas bandeiras de cabeça
para baixo. Desta vez, não houve destampatórios nem discursos decorados para a imprensa.
Porém, à tarde, a Assembléia Nacional convocou uma entrevista coletiva bombástica onde
as deputadas Desirée Santos e Cília Flores, entre outros deputados e deputadas, exibiram
gravações obtidas pela Inteligência das Forças Armadas nas quais ficava comprovada a
manipulação dos estudantes "oposicionistas" por pessoas ligadas à RCTV, Globovisión e
membros de entidades e ONGs estrangeiras declaradamente envolvidas na tentativa de
golpe de estado na Venezuela, coordenadas pelo Departamento de Estado dos EUA. As
gravações demonstravam que os estudantes eram usados como "carne de cañon" em
propósitos golpistas de manipuladores, que deixavam entrever a necessidade de um morto
entre eles. As deputadas fizeram apelo às mães dos estudantes para evitarem a manipulação
dos filhos, pois a vida deles estava sendo colocada na mira de assassinos profissionais.
Lembravam os mortos de 2002 e apelavam também ao governo, que impedisse a repetição
daqueles acontecimentos. Foi um contragolpe desmoralizador do "movimento estudantil
oposicionista", o qual, por sua vez, fez ouvidos de mercador e não se manifestou.
Mas a contra ofensiva do pensamento crítico se manifestou. As lideranças do movimento
estudantil bolivariano, tendo por porta-voz Hector Rodriguez, declararam distinguir entre
os "oposicionistas", os manipuladores, os que eram conscientemente manipulados e os que
estavam se manifestando de boa fé, por convicções próprias, ainda que equivocadas. Com
os últimos, pediram um debate franco e aberto.
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Fazendo eco, o Ministro Pedro Carreño deu declarações em que insinuava o possível
envolvimento de reitores, professores e funcionários de universidades públicas e privadas
na manipulação dos estudantes e que gestões para a aplicação de ferramentas legais da
Justiça estavam em andamento pelo Ministério Público. A estratégia de Chávez funcionava
com precisão, a partir dos erros de seus opositores. Paira agora, sobre as reacionárias
administrações universitárias, a balança da Justiça Bolivariana.
Eis que as "lideranças" dos estudantes "oposicionistas", sem considerar nada disso,
desferem ataques violentos à Assembléia Nacional e reivindicam "direito de réplica" em
forma de debate, na própria AN. E ainda "exigiam" que o debate fosse transmitido "por
todos os canais da mídia pública e privada". Em resposta, Cília Flores manifestou a
concordância com o debate, que seria promovido pela Assembléia com até dez estudantes
"oposicionistas" e dez bolivarianos, cujos participantes ficariam à escolha de ambas as
correntes. Depois de várias negociações, o debate ficou marcado para o dia 7 de junho.
À noite, o programa "La Hojilla", de Mario Silva, mostrou novas gravações. Uma delas era
uma ligação do filho do Sr. Marcel Granier para sua "mami". Queixava-se do cansaço dos
últimos quatro dias, por "incendiar as ruas com os estudantes", e confessava-se "exausto",
querendo ir para Miami. A "mami" retrucou estar preocupada com a asma do filhote (pelos
40 anos de idade) por enfrentar bombas lacrimogêneas, e o aconselhou a usar máscaras
contra gases, inclusive oferecendo uma que tinha em casa, pedindo a ele que fosse buscá-la
no dia seguinte. O diálogo não só expunha mãe e filho ao ridículo como comprovava o
envolvimento do Sr. Marcel Granier e família na manipulação dos estudantes.
O dia primeiro de junho transcorreu sem marchas estudantis, com o povo mobilizando-se
para o comício convocado por Chávez para o dia seguinte. Os veículos da mídia de
resistência e do governo divulgavam apoios internacionais de intelectuais, das Mães da
Praça de Maio, de entidades culturais e humanistas européias e latinoamericanas e
entidades governamentais de vários países. A mídia privada e a hegemônica, na rotina
desinformativa de sempre. E o "movimento estudantil oposicionista", que, segundo Mario
Silva, era "movimento estudantil burguês", murchando, ao invés de marchando.
Chegamos, então, ao glorioso 2 de junho em Caracas. Pela manhã, os quatro pontos
escolhidos para a concentração a leste, a oeste, a norte e a sul da cidade estavam cobertos
pelos diversos veículos da mídia governamental e de resistência (comunitários e outros),
que mostravam as grandes aglomerações se formando, se compactando. Até camponeses
montados a cavalo comparecem. Para os veículos da mídia hegemônica, nada do que estava
acontecendo e do que aconteceria naquele dia existiu, a não ser quando obrigados a
transmitir em cadeia nacional.
As massas compactas de chavistas começaram a se mover pelas artérias da cidade,
preenchendo-as de vermelho, bandeiras nacionais, faixas e cartazes. Foi notável! Os planos
aéreos de helicópteros eram contundentes: quatro correntes vermelhas caminhavam em
direção ao centro de Caracas, onde a avenida Bolívar se encontrava pronta e equipada para
recebê-las. Vinham dançando, cantando, exibindo a alegria e a euforia da vitória. Quase já
se tornara rotina para eles esses eventos, mas, a cada novo episódio, o prévio combate com
as mídias inimigas contribuíam para torná-los mais picantes, saborosos e prazerosos.
Na avenida superlotada, a câmera da VTV procura alguém na multidão. Num palco lateral, a
orquestra Dimensión Latinoamericana tira uma salsa arretada, daquelas sob que ninguém
fica sem dançar. Todos dançam e cantam. Eis que, num plano destinado a mostrar os
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músicos da orquestra, a câmera descobre alguém tocando um instrumentinho de percussão,
ao lado do vocalista. É ele, el comandante! Ele ginga, dança e batuca a varetinha em seu
babilaque metálico, no ritmo frenético da salsa. E faz um dueto vocal com o cantor,
repicando juntos, no mesmo microfone, o refrão salsense. O povo delira!
Corte para o "homem do Equador" no podium do palanque. Estamos em mais uma cadeia
nacional de rádio e TV. Vamos com Chávez cantar o Hino Nacional: Gloria al bravo
pueblo... Terminada a récita, a explosão do poder popular. Chávez começa o discurso,
bravo, em tom de desafio: “Se vierem com um novo 11 de abril, eu mesmo vou comandar o
13, mas, desta vez, antes do 11!”. Depois de longa preleção didática sobre as idéias e
teorias gramscianas, lá pelas tantas, já falando do espectro radioelétrico, o povo, que
superlota a larga e extensa avenida, o interrompe (isto muito raramente acontece), e brada
em coro, por uns dois minutos, a mesma e repetida frase:
- Agora é a vez da Globovisión! Agora é a vez da Globovisión!
É a força do povo querendo a outra cabeça da Hidra. A espada de Bolívar ele já possui.
Quando chegar a hora, Chávez poderá decepá-la também.
Se fôssemos proprietários da Globovisión, já teríamos procurado as autoridades do governo
para negociar uma saída honrosa. Será que eles não aprendem mesmo?
Liberdade de Expressão
"Ser jovem e não ser revolucionário é uma contradição." (Salvador Allende)
Na semana que se seguiu, já o assunto RCTV era coisa do passado. Tudo parece ocorrer na
Venezuela de acordo com a estratégia de Hugo Chávez. Agora, o povo queria saber sobre
aqueles fedelhos que ousavam afrontar o seu Governo Bolivariano. Quem eram? O que
faziam pelo povo? Por que nunca apareceram nos bairros, nas vilas, nas zonas rurais, nas
missões? E essas universidades? Quanto gastava o governo com elas? Por que estavam
contra o governo? A grade da viVe TV era quase toda preenchida por reuniões de bairros,
conselhos comunais, mesas técnicas e populares fazendo essas perguntas. Ficou assentado
que o debate na Assembléia Nacional seria bastante esclarecedor. Enfim, conheceríamos
alguma coisa sobre o que têm a dizer os universitários venezuelanos, de um e outro lado.
Assim correu a semana até quinta-feira, 7 de junho, com grande expectativa nacional pelo
debate, apesar de, estranhamente, a mídia privada não o mencionar, agindo como se o
estivesse boicotando. Chegado o dia, os arredores da Assembléia Nacional ficaram repletos
de populares bolivarianos curiosos, querendo acompanhar de perto a peleja. Foi preciso
instalar telões em locais estratégicos. Os estudantes bolivarianos chegaram sob os aplausos
dos populares e ingressaram no interior da Assembléia, também repleta, com todos os
deputados e deputadas presentes e as galerias lotadas. Mas, os estudantes das "oposições"
não davam as caras. Procurados, descobriu-se, segundo Mario Silva, que estavam reunidos
na sede da Globovisión, de onde pediram garantias para chegar ao local do debate, no que
foram prontamente atendidos pelo comando geral da Polícia de Caracas. Finalmente, com
mais de uma hora de atraso, entraram na Assembléia os dez estudantes das "oposições"
vestidos com camisas vermelhas como se fossem bolivarianos, para perplexidade geral.
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Tudo pronto, Cilia Flores convocou cadeia nacional de rádio e TV, e deu a palavra ao
primeiro dos "oposicionistas", de nome Douglas Barrios, que subiu ao podium trazendo um
texto. Vamos, enfim, saber o que dizem esses enigmáticos jovens que fazem marchas tontas
e carrancudas por toda Caracas, sem nada dizer do que realmente querem com elas.
O garoto, duro como um tarugo de pau, gaguejou, nervosíssimo, a leitura do texto, de cabo
a rabo, quase sem tirar os olhos do papel. Que estudantes esquisitos, esses! Jovens sem
brilho nos olhos que parecem querer esconder, que não citam um poeta, que não têm heróis,
que lêem um texto mal escrito por alguém com a idade mental de um velho, um texto de
baboseiras quase sem nexo e que abusa de termos nobres como "liberdade de expressão",
"luta estudantil" e "direitos humanos" como se fossem lugares comuns ou palavras banais a
serviço de qualquer contexto. Ao final daquele xarope, diante do pasmo geral e o silêncio
sepulcral dos presentes, os garotos tiraram as camisas vermelhas, disseram que não estavam
ali para debater nada e que já iam cair fora.
Mas os estudantes bolivarianos intervieram, questionaram os colegas, alegando que faziam
o mesmo que Condolezza Rice no plenário da OEA e acabaram convencendo-os a ficar.
Subiu então ao podium a estudante bolivariana Andreina Tarazon, uma moreninha de uns
vinte anos de idade, traços angelicais e olhos tão brilhantes quanto o discurso que, de
improviso, proferiu e com que arrebatou o país. Sua voz macia e cálida ecoava pela
Assembléia levando palavras de uma consciência bem formada e bem cultivada nos mais
nobres valores humanos e revolucionários. Seus argumentos eram cristalinos, objetivos,
sinceros e apoiados em raciocínios às vezes complexos, mas que ela lograva tranformar em
mensagens claras e acessíveis a todos os que a ouviam. Firme, segura, fluente e persuasiva,
ela foi um encanto, uma surpresa e uma porrada, tudo ao mesmo tempo. Sob aplausos
entusiásticos dos presentes, várias vezes, de pé, ela pôs abaixo toda a farsa que mascarava a
presepada golpista que quer macular a história de lutas do movimento estudantil, e
reivindicou a urgente reforma do ensino superior proposta pelo governo.
Na seqüência, Cilia Flores chamou John Goicochea. Ele subiu ao podium só para repetir,
como um papagaio, que não vieram ali para debater. Em seguida, desceu, juntou-se aos
outros "oposicionistas", e saíram com o rabo entre as pernas, vergados ao escárnio da nação
inteira.
Chocada com aquela atitude, Cilia Flores fez um breve discurso para dizer que aquilo só
confirmava a manipulação vergonhosa a que se submetiam aqueles estudantes e que, de
resto, todo o país tinha conhecimento. Disse também que prosseguiria a sessão, dando a
palavra aos que nela ficaram, e se os que saíram retornassem a tempo, a teriam de volta.
Falaram, consecutivamente, os estudantes bolivarianos Robert Serra, Mayerling Arias, Eder
Dugarte, Osly Hernandez, Cesar Trompiz, Yahir Muñoz, Libertad Velasco, Manuel Dum e
Hector Rodriguez. Todos com discursos de improviso, espontâneos e perfeitamente
articulados, citando seus poetas, seus heróis, lembrando e homenageando os mártires e os
líderes de movimentos estudantis do passado, trazendo ao presente as lições da história,
propondo ousadias revolucionárias e mudanças radicais no ensino superior, manifestando a
inquietação política da juventude e o espírito revolucionário que os embala e os motiva, ao
lado do povo, a encarar todos os desafios.
A seqüência oratória foi de tal magnitude que os deputados mais velhos, veteranos curtidos
nas muitas lidas revolucionárias, choravam, vendo naqueles jovens as lideranças que os
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sucederiam, e os mais novos preocupavam-se, pela evidente possibilidade de tê-los como
concorrentes em eleições futuras. Em muitos momentos de todas as locuções, o plenário e
as galerias levantaram-se em entusiasmados aplausos, o que não é fácil de se conseguir
naquela casa onde os melhores oradores do país, filtrados no crivo das urnas de um
processo democrático e dialético, freqüentam rotineiramente.
Muito nos alongaríamos se tratássemos de cada uma das intervenções. Porém, merece
destaque a de Mayerling Arias, porque falou na condição de estudante e de mãe de recémnascido. Apontou o filho e, por extensão, os recém nascidos na Venezuela, como maiores
beneficiários da vitória da Revolução, que para eles reivindicou, pois já na infância terão
TVes e não RCTV por entretenimento, o que já os torna mais livres, e não serão obrigados a
suportar a "basura" (lixo) midiática de que ela mesma fora vítima indefesa durante toda a
infância, adolescência e juventude
Hector Rodrigues, que foi o último orador, trouxe uma folha de papel que fora esquecida na
tribuna pelo estudante "oposicionista" Douglas Barrios, e que Andreina Tarazon recolhera.
Hector leu-a toda, para estupefação da platéia e do país. Era a página final do texto lido por
Douglas, um texto que era também o roteiro do comportamento deles durante a fala, dando
até o momento em que deviam tirar as camisas vermelhas, antes de pronunciar o último
parágrafo. E o pior, era uma folha timbrada da agência de publicidade ARS Propaganda,
empresa de capital estadunidense filiada ao grupo Globovisión.
À noite, Chávez recebeu os dez estudantes bolivarianos no Palácio Miraflores, que foram
acompanhados por comitivas de todas as universidades, inclusive professores e reitores de
muitas delas, em apoio ao governo e à política de reformas. Chávez abriu nova cadeia
nacional para sentar a pua na covardia dos golpistas e homenagear os "dez heróis e
heroínas" (em certos casos, a etiqueta bolivariana não aceita o tratamento no masculino
como abrangente de conjuntos em que coabitam os dois gêneros; é preciso citar a ambos).
A derrota dos estudantes das "oposições", ou "disociados", foi, assim, completa e
desmascaradora. Em seu programa, Mario Silva concluiu que a luta dos muchachos y
muchachas era pela "liberdade de inexpressão". Qualquer tentativa de desculpas pelo
vexame só pioraria a situação deles. Pois tentaram! No mesmo dia, os "lideres" do
"movimento" deram entrevista coletiva alegando que foram traídos pela Assembléia, que
não pediram debate, mas réplica, que não pediram cadeia nacional, e outras desculpas
esfarrapadas. E anunciaram nova marcha para o dia seguinte, a fim de ocuparem todas as
principais praças do centro de Caracas.
Só que a marcha não obteve autorização. As praças que queriam haviam sido reservadas
pelos "Adultos Mayores" para comemorar as pensões recebidas e apoiar o governo "no
processo em curso de democratização do espaço radioelétrico". E, na sexta-feira, dia 8, os
avôs e avós venezuelanos tocaram, dançaram e cantaram nas praças de Caracas, deram
entrevistas (muitos foram líderes de movimentos estudantis no passado) em apoio à
revolução e repudiaram aqueles jovens "reacionários" que queriam desestabilizar o país.
Vejam só onde as coisas chegaram!
A partir daí, os estudantes "oposicionistas" exibiram as diferenças internas identificadas por
Hector Rodriguez em declarações anteriores. Dividiram-se em “manipulados” e “de boa
fé”. Os primeiros são os que foram à Assembléia. Os outros, injuriados e desapontados com
a covardia dos colegas, se dispuseram a ir a debates promovidos por veículos de resistência
e do governo, à revelia da orientação do "movimento", que, agora sabiam (ou ao menos
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desconfiavam), era manipulada. Vieram os debates na VTV, na viVeTV e na TeleSur, com
presenças dos dois lados, cuja audiência deve ter sido significativa, pois atraiu o interesse
da Venevisión e da Televen, que se dobraram à verdadeira liberdade de expressão, apesar da
relutância e das reservas de sempre. Só a Globovisión não os programou.
Era o pensamento único recuando frente ao pensamento criador e crítico num espaço de
tempo socialista com liberdade de expressão, comprovando assim, na prática, uma de
nossas teses. Ressaltamos que não foi necessário reprimi-lo ou censurá-lo, e, se isto fosse
feito, a vitória seria do pensamento único ou não pensamento.
Alguns dias depois, a Globovisión, pela primeira vez, permitiu a entrada de um chavista em
seus estúdios: Hector Rodriguez, em debate com John Goicochea. Infelizmente, perdemos
este momento, que obviamente deu no resultado esperado, e não podia ser de outra forma.
O problema do momento inicial de penetração da liberdade de expressão nos redutos do
pensamento único é que seus "defensores" não têm pensamento nem preparo dialético para
enfrentar um debate, e são inevitável e fragorosamente derrotados. Há, então, o obrigatório
recuo daqueles redutos a fim de se preservarem, como de fato houve, na Globovisión, que
não programou outros debates.
Mas é assim que se vai afirmando o processo dialético, por ondas de fluxo e refluxo, e, aos
poucos, os espaços vão sendo conquistados, um a um. "Tudo tem o seu tempo".
A realidade midiática na Venezuela hoje está à frente da de todas as nações onde podemos
fazer observações, e por isso há que estudá-la em profundidade. A mídia privada e o
pensamento único foram derrotados no que diz respeito ao código de adesão e, agora, o
problema se encaminha para o descolamento da audiência do pattern comunicacional e de
suas matrizes de opinião manipuladoras e pré-fabricadas.
Neste sentido, é a viVe TV, por força e influência das TVs Comunitárias, entre todas as
experiências midiáticas de Venezuela, a que nos parece estar em posição ponta de lança.
Na TeleSur e na VTV ainda há a necessidade de um pattern, mesmo que livre do segundo de
seus padrões (pensamento único), e que se procure diferenciá-lo do da mídia privada no
primeiro (inflexão do discurso) e no terceiro (estética), e que não se proponha como um
pattern manipulador. Mas ainda é um pattern comunicacional de que necessitam para que a
audiência, por longas décadas submetida ao pattern manipulador, as considere como "boa"
televisão (que diz a "verdade"), apesar de que são boas mesmo (dizem, sim, a verdade).
Mas note-se que o "La Hojilla", de Mario Silva, um dos programas de maior audiência no
país, já se livrou completamente do pattern e desenvolve uma cultura comunicacional
própria, sob a direção do jornalista e a participação de artistas que o cercam.
Hugo Chávez é outro que contribui, enquanto comunicador e artista da oratória, para a
criação de uma cultura comunicacional de pronunciamentos políticos e exercício do poder.
Não raro ele interfere, por telefone, nos programas de opinião de Vanessa Davies, Tania
Diaz e Mario Silva, só para citar os que vimos, estabelecendo uma comunicação dialética
com a mídia de resistência e levando a público informações em primeira mão, anúncios de
novas medidas de governo, e diálogo com os telespectadores e os jornalistas. Além do
mais, os programas "Alô, Presidente" e as "cadeias nacionais" fogem completamente ao
pattern comunicacional e estabelecem uma cultura própria de relacionamento povo/poder
através dos meios de comunicação, cuja eficiência comunicacional é indiscutível.
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Mas, entre os veículos da Revolução, é a viVe TV - que não tem compromisso com nenhum
tipo de audiência manipulada e se volta para a comunicação com os excluídos, no sentido
até de alfabetizá-los também na linguagem audiovisual - que já se conduz livremente sem
pattern comunicacional, e está se dando muito bem. Mesmo na atual e primária fase - e
toda experiência de vanguarda tem de passar por ela - a viVe TV alcança uma performance
comunicacional surpreendente e segue na direção da verdadeira cultura comunicacional,
popular, que, numa segunda fase que nos parece estar bem próxima, abrigará a contribuição
de artistas de todas as expressões, formações e extrações de classe na construção de seu
discurso socialista e com liberdade de expressão, a mais total e absoluta.
É uma TV que tem por missão estar sempre no front de vanguarda, entendendo vanguarda
como a pesquisa, a que segue na frente abrindo caminhos. Para tanto, ela tem tudo o que
precisa, ou seja, as TVs Comunitárias, com a liberdade intrínseca que nelas há e a produção
diversificada que nelas é gerada, seja para dentro do País ou para o exterior, como requer a
sua atual missão propulsora da ALBA TV.
O futuro da mídia audiovisual socialista com liberdade de expressão não contempla a
existência de um pattern comunicacional, mas de uma cultura comunicacional, a ser
desenvolvida, como toda cultura, no sentido da elevação da conciência e do conhecimento
(Foucalt, Sartre, Barthes) e por verdadeiros artistas, no caso, por criadores e cineastas
capazes de, como propunha Eisenstein, montar sequências de "atrações" audiovisuais cujo
resultado é subjetivo e se realiza no pensamento crítico/dialético do fruidor/expectador e
não na linearidade formal e objetiva das pistas de imagem e som.
Nestes termos, a Venezuela já está preparando um exército de criadores revolucionários do
audiovisual - é a Revolución de la Consciencia, do ministério da Cultura, sobre a qual nos
referimos no início deste trabalho. A nosso ver, o Ministerio del Poder Popular para la
Cultura, atualmente conduzido pelo ministro Francisco Sesto, deverá ser o ministério mais
importante da Revolução na nova etapa que se aproxima de consolidação de uma cultura
comunicacional endógena e verdadeiramente popular.
É neste caminho que vemos com grandes esperanças o progresso e o crescimento da TVes,
atuando numa faixa de público muito mais ampla e mais eclética do que a viVe TV, e
administrando um elenco de possibilidades e recursos muito mais poderosos, não podendo
se dar aos riscos de avanços radicais em experiências vanguardistas, as quais nem sempre
darão os resultados esperados nos curtos prazos de resposta exigidos a esse tipo de veículo.
É preciso prestar atenção neste ponto, pois é essa necessidade de resposta que acaba
induzindo à solução fácil pela adoção de um pattern comunicacional, podendo isto ocorrer
tanto em sociedades capitalistas como socialistas, como foi o caso da URSS. É nessa
encruzilhada que estão vivendo hoje TeleSur e VTV, mas ambas, assim como a TVes, terão
na viVe TV e as relações dela com as TVs Comunitárias, dentro e fora da Venezuela, o
maior e mais prolífico laboratório de experimentações de vanguarda que se posssa
conceber, de cujas experiências e resultados todas poderão se valer na construção de suas
próprias e particulares culturas comunicacionais.
Acreditamos que tudo isso está sendo pensado na Venezuela com mais profundidade do
que onde pudemos chegar em nossas ainda superficiais especulações, mas infelizmente não
tivemos o privilégio de acessar ou conhecer os trabalhos teóricos e analíticos que devem ter
sido produzidos a respeito. Pois não poderia ser mera coincidência o desenvolvimento de
tão diferentes e tão bem delineadas emissoras de frames, voltadas, desde que fundadas, para
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o enfrentamento da guerra midiática com os mais poderosos veículos do pensamento único
e do pattern comunicacional manipulador, e que, afinal, estão dando conta do recado.
Lil Rodrigues já adiantou definições importantes ao posicionar a TVes como veiculadora de
realizações audiovisuais independentes, e, neste caso, tal palavra só poderia ser usada por
alguém como Lil no sentido revolucionário, e não no formal. Realização independente, em
linguagem audiovisual, como nos ensina o cineasta Sérgio Santeiro, é, antes de tudo, uma
postura ideológica. Por uma ideologia socialista e libertária, por certo.
Os açodados já se manifestam, em especial os "de esquerda". Nem completou o primeiro
mês de vida, e TVes se vê alvo de críticas ásperas e nervosas por "excesso de musicais e
material histórico em P&B", exigindo o "padrão de qualidade" das TVs privadas "para não
desapontar a audiência" e "mostrar que a Revolução também sabe fazer televisão", como se
o caminho comunicacional da Revolução pudesse ser o do pattern manipulador. São os
mesmos críticos da VTV, que acham-na insuportável e péssima televisão. E ficam cobrando
índices de audiência (rating) como se este paradigma capitalista-consumista se prestasse a
objetivos comunicacionais socialistas. Postulam-se ideologicamente como "esquerda" mas
não se descolam da velha droga ( pattern) que, no fundo, é a que acolhem no conformismo
codificado a que deixam submetidas suas mentes acomodadas e espíritos pouco cultivados.
Falta-nos a abordagem da questão da publicidade comercial, que é a maior interessada e
fomentadora do pattern comunicacional, criado pelos grandes grupos transnacionais
capitalistas para conduzir o receptor codificado inconsciente e diretamente a seus caixas e
balcões de créditos (manipulação primária). Dela, os veículos do governo e de resistência
na Venezuela já se viram livres, uma vez que não a veiculam, o que os coloca mais perto da
realidade socialista de comunicação, com liberdade de expressão. Como a Revolução
Bolivariana não propõe a socialização de todos os meios de produção e riqueza, mas apenas
os estratégicos e os que são deveres de Estado por razões humanitárias, de segurança e
soberania, sempre restará a questão da veiculação de publicidade dos negócios restantes em
mãos privadas, que dela necessitem. Neste caso, os veículos independentes, como as rádios
e TVs Comunitárias, além dos veículos impressos, começaram a equacioná-la pelo conceito
de "propaganda ética". Esta também deverá criar uma cultura comunicacional, como a
proposta pela TVes, de uma comunicação voltada para o cidadão e não para o consumidor,
que deverá ser aplicada também à publicidade ética. E sempre haverá a questão da
propaganda governamental e política que na Venezuela já se faz sem a adoção do pattern
comunicacional, pelo menos quanto ao segundo (pensamento único) e terceiro (estética)
padrões, o que significa que existe nos comunicadores do governo a consciência de ambos.
Porém, ainda não enxergamos nas peças publicadas a que tivemos acesso um processo em
andamento no sentido de adotar uma cultura comunicacional que faça abolir também o
primeiro padrão (inflexão de discurso) que nelas permanece, talvez porque não foram
objetos de estudos mais profundos, com a participação de artistas cênicos e do audiovisual
(cineastas, músicos, bailarinos, atores), da gráfica (artistas plásticos e gráficos) e do texto
(poetas e escritores). Bem, temos tempo; "tudo tem seu tempo".
Mas é bom lembrar que o sucesso de comunicação com as massas dos primeiros momentos
da Revolução Russa ocorreu, sem sombra de dúvidas, graças à contribuição de artistas
plásticos, artistas cênicos, poetas, escritores, cineastas e pensadores de vanguarda, que por
Lenin foram estimulados a empregar seus talentos na solução do problema, ao que
responderam com a criação da cultura comunicacional que foi adotada nos primeiros sete
anos da Revolução de 1917, até o presente, jamais igualada em qualidade artística e em
poder comunicacional, em todos os níveis e sob todos os aspectos.
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O aprofundamento neste fato histórico não cabe aqui, não porque o assunto não pertença ao
objeto de nossas pesquisas, mas porque alongaria por demais este estudo e o desviaria de
seu foco, que é a Revolução Bolivariana na Venezuela e a guerra midiática que lá está em
curso, com fortes reflexos e influência em todo o planeta.
Assim, voltando aos estudantes da Venezuela, o certo é que, mesmo com o previsível
tumulto provocado pelos fatos que vimos relatando, a paz e a estabilidade do país sequer
foram tocadas, muito menos afetadas ou ameaçadas. Ambas estão mantidas e alavancam
forte atividade produtiva dentro de um bem planejado crescimento econômico e social, e do
projeto socialista bolivariano que o governo do país persegue e desenvolve com muita
habilidade e competência.
Como queria seu maior estrategista, Hugo Chávez, toda a nação se dedica hoje ao debate
sobre a questão estudantil, em todos os níveis, que tem por meta reativar e propulsionar o
movimento dos estudantes bolivarianos e organizá-lo em definitivo nos espaços de real
poder, a serem conquistados no quadro político, como requer a atuação de tão importante
segmento da sociedade. Uma minoria insignificante de estudantes manipulados ou
equivocados, mas superexpostos pela mídia golpista, procura a todo custo impedir este
processo que, por ironia, eles mesmos detonaram, e do qual agora não têm como sair ou
escapar (as já nossas conhecidas armadilhas do mestre estrategista).
Se até maio a Venezuela debateu espectro radiolétrico, ondas hertzianas, concessão pública,
etc, e sobre tudo isso ampla maioria da população conquistou invejável consciência e
conhecimento, ambos fundamentais para que apoiasse, como apoiou, a não renovação da
concessão do Canal 2 e a consequente democratização deste bem público, a partir de junho
o povo venezuelano tem por pauta o debate sobre as universidades, as escolas privadas, os
estudantes, os professores e os administradores escolares na construção do socialismo do
século 21. Entraram em cena, por iniciativa de setores golpistas dentro e fora do país, mas
sem controle deles e ao revés de suas deletérias intenções, os assuntos ligados a educação e
a universidades públicas e privadas, sobre os quais a consciência bem formada e o amplo
conhecimento pelas bases populares se tornarão núcleos estratégicos da Revolução
Bolivariana para realizar as reformas e as mudanças radicais que planeja.
Já estão em cena novas e poderosas lideranças formadas no processo revolucionário e agora
reveladas, que não se reduzem aos "10 heróis e heroínas" de 7 de junho. Vimos dezenas,
talvez centenas de jovens estudantes, professores, profissionais da educação e integrantes
de missões educativas manifestando-se nos diversos canais da mídia de resistência, tão
capazes e tão bem preparados, e que revelam a erupção de um verdadeiro vulcão no velho e
arcaico modelo de educação vigente nas escolas públicas e privadas do ancien régime. Já
está em andamento a mobilização nacional desses jovens, incluindo os agora famosos "10
heróis e heroínas", preparatória para a detonação propulsora do 3º Motor (Moral y Luces),
logo no início de 2008. Como disse Chávez, há poucos dias, "ninguém é capaz de segurar
essa juventude, ninguém!" E só agora as "oposições" começaram a perceber o tamanho da
caixa de maribondos onde, ingenuamente, meteram a mão.
Acreditamos que, por todos os fatos aqui descritos, fica bem fundamentada e comprovada a
nossa tese, entre outras que propusemos neste trabalho, de que a liberdade de expressão e a
estratégia de revolução não violenta, sem repressões, censuras, perseguições e sectarismos
tem boa parte dos créditos de tantas e superlativas conquistas revolucionárias, as quais, dez
anos atrás, eram inimagináveis e podiam até ser classificadas como meras utopias.
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Quanto à liberdade de expressão, ao não renovar a concessão daquele canal de televisão, o
governo livrou o pais do pattern comunicacional mais nefasto e corrosivo que se possa
conceber. No caso RCTV e similares mundo afora, o pattern comunicacional não se
restringe ao uso corruptor da linguagem audiovisual como codificadora do não pensamento
no receptor-consumidor, e a conseqüente e quase completa alienação deste, de si mesmo e
da realidade. Seus manipuladores o utilizam como armas sujas de chantagem, de
terrorismo, de intimidação, da mesma maneira que gângsteres se valem de metralhadoras.
Não é à toa que aquela empresa televisiva não obteve solidariedade de setores empresariais
e comerciais capitalistas. Todos eles, pequenos, médios e grandes, ficaram aliviados com a
derrubada do poder daquele canal. Tal como as metralhadoras, o pattern comunicacional
nada pode construir, mas pode destruir muito. Destrói reputações de indivíduos e famílias,
aniquila empreendimentos comerciais, industriais e governamentais, e até promove e
justifica matanças, como no Iraque e Afeganistão.
Não faz uns dois dias e a mídia hegemônica veio com outra de suas bombas: "A ditadura de
Hugo Chávez prendeu um jornalista!". Mais uma "demonstração" de que não há liberdade
de expressão para o pobre povo venezuelano. De novo estava o ministro Pedro Carreño
afogado nos microfones para explicar o caso. Era a denúncia de um empresário que estava
sendo chantageado por um jornal de economia da capital. Ele iria entregar um jabá para o
jornalista que ameaçava melar seus negócios através do jornaleco. A polícia deu o flagrante
no jornalista pegando cinco mil dólares do empresário, e transportando outros quatrocentos
mil dólares que pretendia levar a Miami (sempre Miami) para depositar em um banco de lá.
Ora, esse já é um reflexo positivo da negação da concessão da RCTV. Porque, se ela
estivesse no ar, esse empresário jamais teria coragem para a atitude que tomou, pois sabia
que quem acabaria preso seria ele. Se um jornalistinha de um jornaleco pode fazer isso,
imagine-se o que não poderia fazer um Marcel Granier?
Mas nem por estar fortalecida e poderosa, e os golpistas várias vezes derrotados e
enfraquecidos, a Revolução abre a guarda ou negligencia o estado de alerta permanente.
Chávez tem investido na Inteligência revolucionária, inclusive criando a "Inteligência
social", da qual participam as bases revolucionárias, e mantém a estratégia ofensiva
permanente, seja por provocações verbais, por atitudes radicais de pressão revolucionária
(incluindo cadeias nacionais de rádio e TV) ou pelas inegáveis realizações bem sucedidas
de seu governo, a fim de encurralar os setores golpistas em minorias reacionárias e seus
aliados externos em posições de defesa, portanto, mais fáceis de serem identificados,
monitorados e vigiados. E tem logrado êxito.
Em breve, será a hora do "contra-ataque" prometido por Chávez durante a batalha. O
inimigo, como sempre, facilita-lhe a estratégia ao colecionar, no período, uma numerosa
série de transgressões, infrações e desrespeitos à legislação que o governo haverá de cobrar
por via judicial aos veículos envolvidos, punindo-os de acordo com aqueles estatutos, até
que, enfim, aprendam a ler os contratos sociais que constituem as próprias empresas "de
comunicação" e passem a entender que elas não são partidos políticos, que a função delas
não é a de escolher ou derrubar ministros nem interferir ou ter poder de mando em políticas
públicas, e que, como todas as demais empresas privadas do país, devem obediência às leis
e regulamentos estabelecidos por governos legitimados na democracia participativa que
rege a nação bolivariana da Venezuela.
A Revolução tem pressa em suas reformas, pois, como vimos afirmando neste trabalho, a
liberdade de expressão do pensamento criador e crítico só eliminará o pensamento único
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em uma realidade de fato socialista. E o pensamento único, além de só ter força e poder em
uma realidade capitalista, é, de longe, a maior ameaça ao processo revolucionário e sua
vitoriosa estratégia de não violência e conscientização das massas. Assim, enquanto houver
redutos capitalistas expressivos no país, mesmo que em desespero e em decadência, a
Revolução não pode descansar nem baixar a guarda em relação às ameaças internas.
Quanto às ameaças externas, a Revolução joga na pluripolarização do poder mundial, que
inegavelmente tem evoluído com as recentes posturas da Rússia, China e Índia, na política
externa de aproximação com os novos pólos de poder e nos países não-alinhados, além dos
fracassos econômicos e militares dos EUA e o crescente descrédito das massas em relação
à mídia hegemônica, para o qual muito tem contribuído. Não ficam aí os problemas da
Revolução, que são muitos. E, muito mais que aos logros dela, não falta quem a eles se
dedique, à direita e à esquerda, em todos os espaços possíveis, dentro e fora do país. Em
geral passam longe do objeto deste trabalho, nem precisamos tratá-los aqui.
A Venezuela vive agora o debate entre estudantes em todos os locais, nas ruas, nos espaços
públicos e privados e nas universidades. Gradativamente o debate vai se circunscrevendo
aos espaços universitários, que são os espaços onde deve acontecer e permanecer, sem
interrupção. Os estudantes golpistas continuarão fazendo marchas cada vez mais murchas,
que já voltaram ao quórum inicial de três mil manifestantes ou menos, até que o cansaço, o
desânimo, a falta de estímulo (e de grana) façam dissipá-las em definitivo. Por sua vez, os
manipuladores e a mídia privada, sem o almejado cadáver e desencantados com o insucesso
dos muchachos y muchachas, já ameaçam sabotar a Copa América. Bem, temos de
reconhecer, eles não vão aprender nunca!
Mas é fato, também, que este é o meio de vida deles. Precisam enviar relatórios a
Washington e justificar novos pedidos de grana para novos planos golpistas. Chávez, no
melhor estilo Sun Tzu, aproveita a força e o dinheiro do inimigo, e dialeticamente os aplica
no incremento da consciência popular, aceleradora do processo revolucionário.
Pelo lado do governo, o segundo semestre, pós Copa América, não fica só na reforma do
ensino superior, que é preliminar ao grande plano nacional para a educação socialista
(Moral y Luces), a ser instalado no país ano que vem. Será também o da nova e principal
fase da Revolución de la Energia, com a criação da Corporación Eletrica Nacional, que
engloba todas as empresas de energia elétrica do país, a maioria reestatizadas no início
deste ano, e do Plan de los 100 dias, prazo com data de início já definida, no qual o
governo pretende reformar, ampliar, modernizar e atualizar toda a estrutura de geração e
distribuição de energia elétrica, automotiva e alternativa produzida no país. Isto foi o que
Chávez anunciou, mais uma vez, em cadeia nacional, ao inaugurar a Usina Termoelétrica
de Zúlia, com tecnologia de ponta aplicada ao reaproveitamento de gases, numa nova e
numerosa série de inaugurações e reestatizações, envolvendo um sistema de trolebus em
Mérida, o viaduto Caracas-La Guaira (com quase 1 km de extensão e construído num
tempo recorde de um ano e três meses, o que significou grande vitória da engenharia
nacional), a ocupação da La Eletricidad Caracas, pelo vice-presidente Jorge Rodriguez e os
operários da ex-empresa privada, Centros de Produção e Genética Pecuária, além dos novos
estádios de futebol que iam ficando prontos.
E o Ministro William Lara comunicou à imprensa que a TVes fora escolhida a emissora
oficial da Copa América.
No domingo, 24 de junho, em comemoração ao Dia do Exército, Chávez reuniu na
Academia Militar todo o elenco de cúpula dos três poderes e das Forças Armadas num
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enorme palanque titulado pelo lema "Patria, socialismo o muerte!", diante do qual se exibia
o moderno equipamento do novo Exército Bolivariano, com tanques, veículos de guerrilha,
helicópteros e outros equipos militares de todos os portes, e a presença imponente e bem
formada de vários regimentos e batalhões em uniformes de gala, numa clara exibição de
força. O Comandante, em trajes militares (no caso dele, mais para uniforme de guerrilha),
fez ali, outra vez em cadeia nacional, um de seus mais contudentes e virulentos discursos.
Depois de anunciar o imediato aumento geral dos soldos em 30%, e ordenar ao ministro da
Defesa, general Raul Baduel, que desse início ao processo de completa profissionalização
das Forças Armadas até o ano 2010, fustigou o império norte-americano por ter declarado
guerra permanente ao mundo e avisou que a Venezuela estava em plena batalha de defesa
nacional. Falou da doutrina de guerra assimétrica, das estratégias que o Estado Maior da
FAN desenvolvera para enfrentar o "golpe brando", a guerra eletrônica e a guerra midiática,
de como seus vários ataques têm sido neutralizados, mostrou os fuzis Kalashnikov
comprados na Rússia, "a melhor arma do soldado de infantaria", e anunciou para o próximo
ano que a Venezuela já os estaria fabricando até que tivesse em seus arsenais um fuzil para
cada patriota disposto a enfrentar uma invasão militar, "caso o império decidisse cometer a
loucura de invadir o país". Atacou violentamente a política de Bush de tentar interferir na
soberania de seu país e chamou as "oposições" e a mídia privada de "cachorros do
Império".
E desfechou, com ira solene, sob os aplausos de todos os presentes:
"Qué no se equivoque el imperio norteamericano, porque esta es la tierra de Guaicaipuro,
de José Leonardo Chirinos, de Josefa Camejo, de Bolívar, de Sucre, y llevamos su misma
sangre antiimperialista. Qué no se equivoque, como ya se equivocó una vez, en abril de
2002, y salieron corriendo de aquí con el rabo entre las piernas, entonces no teníamos la
preparación que hoy tenemos."
Hoje, 26 de junho, é dia de festa na Venezuela. São 20h em ponto, e é inaugurada a Copa
América, com o jogo entre as seleções de Bolívia e Venezuela. O belo e novíssimo estádio
de San Cristóbal, capital do futebol venezuelano, estado Táchira, está repleto. No centro do
campo, o convidado especial Maradona, entre os presidentes Evo Morales e Hugo Chávez,
dará o pontapé inicial da partida. Em meio aos foguetórios e à alegria do povo, elegemos a
bola no centro do campo o ponto final deste trabalho. Graças ao editor digital, ele pode vir
em qualquer parte, sendo ponto final por ser o último a ser posto e não por ser o fim do
trabalho, como neste caso, pelo que pedimos um pouco mais da paciência do leitor.
Festa latino-americana
"Certamente, não queremos que o socialismo na América Latina seja cópia e decalque.
Deve ser uma criação heróica. Temos de dar vida, com nossa própria realidade, em nossa
própria linguagem, ao socialismo indo-americano. Eis aqui uma missão digna de uma
geração nova." (José Carlos Mariátegui, revista Amauta, 1928)
As primeiras conseqüências já se fazem notar. Comecemos pela Organização dos Estados
Americanos, a OEA, de histórico penoso, desde que foi fundada, na década de 1940. Até
poucos meses atrás, Chávez a intitulava, com razão, o "Ministério para as Colônias dos
Estados Unidos". São mais de 50 anos de subserviência humilhante às determinações dos
amos de Washington. Mas as recentes ondas libertárias levantadas na América Latina a
partir de Venezuela começaram a mudar o quadro. As pressões reacionárias sobre os países
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membros da OEA para manifestarem-se contra a Venezuela no caso RCTV devem ter
levado as cúpulas dos governos latino-americanos e caribenhos, de um extremo a outro do
espectro ideológico, a meditar o seguinte: "Ora, se são empresas de comunicações que
mandam em nossos países, então elas que nos governem, somos desnecessários!".
E um fato inédito ocorreu. A moção dos EUA pela intervenção na Venezuela, apresentada
com arrogância por Condolezza Rice a mando de seu boss, o cowboy texano, foi rechaçada
por 34 dos 35 países membros. Só os EUA votaram em si mesmos. Até o Canadá rechaçou
a moção. Agora, a Venezuela contra-ataca e propõe o reingresso de Cuba na OEA, fato que
praticamente refundará a entidade, desde que, nos anos 60, por votos pelos EUA comprados
de pequenos países como o Haiti (cujo ditador vendeu o voto decisivo de seu país em troca
de um aeroporto, e acabou levando calote do Tio Sam), Cuba foi expulsa sem motivos,
porque Washington assim o exigira. Se agora Cuba retorna à OEA, é possível que a
entidade se torne um vetor de real poder e importância para a integração e a aliança entre os
países membros, e abra nova época de independência e soberania para todos eles.
Da OEA vamos à ALBA - Alternativa Bolivariana para as Américas, idéia proposta por
Hugo Chávez, que recebeu imediata adesão de Fidel Castro, e já reúne Venezuela, Cuba,
Bolívia e Nicarágua, sendo quase certa, nos próximos meses, a adesão do Equador. Neste
círculo intercontinental de colaboração entre nações se debatem, entre questões
econômicas, políticas e culturais, a dos meios de comunicação e o paradigma inaugurado na
Venezuela dos canais de serviços públicos. Todos deram apoio irrestrito ao governo
venezuelano pela atitude de não renovar a concessão da RCTV e, exceto por Cuba, que tem
já o problema em parte resolvido por sua revolução (lá, o problema é outro), manifestaram
a intenção de pôr em prática políticas bem semelhantes em seus países.
Vamos agora ao México, onde governa de forma ilegítima o ultradireitista Felipe Calderon,
beneficiado nas últimas eleições por fraude, coordenada pela CIA, contra André Manuel
Lopez Obrador, da coligação das esquerdas naquele país. Na gestão anterior, do também
ultradireitista e lacaio do império Vicente Fox, foi aprovada a "Lei Televisa-Asteca", os
nomes das duas maiores redes de televisão privadas que operam no México. A lei,
nitidamente inspirada no caso RCTV, obrigava o Estado a renovar automaticamente as
concessões de canais do espectro radioelétrico, e foi votada por fácil maioria no Congresso.
Depois de efetivada na Venezuela a não-renovação da concessão da RCTV, mesmo com um
governo de continuidade ultradireitista no poder, o TSJ mexicano revogou-a, por considerála inconstitucional. A decisão ficou conhecida como "efeito RCTV".
No outro extremo ideológico, vamos ao Equador, onde governa Rafael Correa, um líder
revolucionário sintonizado com Chávez e a revolução bolivariana. Correa, depois da não
renovação da concessão da RCTV, já se posicionou pela reavaliação das concessões do
espectro radioelétrico equatoriano, tão logo comece os trabalhos da Assembléia
Constituinte recentemente convocada por referendo popular naquele país.
Assim caminham quase todos os países latino-americanos de língua espanhola, com maior
ou menor avanço, dependendo das posições ideológicas de cada governo ou das transições
políticas em que se encontrem, na direção de uma completa remodelação dos regulamentos
e políticas comunicacionais, um processo que para eles se tornou inevitável desde que na
Venezuela foi inaugurado com a Revolução Bolivariana. E que agora atravessa o marco das
atitudes concretas e definitivas com a atitude pioneira e corajosa do governo Chávez em
não renovar a concessão do Canal 2 do espectro radioelétrico, até então em mãos privadas.
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Porém, são dois entre os maiores países latino-americanos em número de habitantes os que
se encontram mais distantes e à margem de tudo isso. O Brasil, o maior deles, a que
dedicamos um apêndice ao final deste trabalho, por razões que lá estão expostas, e os EUA,
o terceiro maior país latino-americano (depois do México), onde residem hoje 45 milhões
de nossos irmãos, o que significa cerca de 15% da população estadunidense. É nos EUA,
sem dúvida, que os latino-americanos vivem a situação de contradição extrema, sob todos
os aspectos, que até têm sido temas de estudos e análises; porém, poucas ou quase nenhuma
informação logramos obter que nos respaldasse em dissertação útil ou enriquecedora neste
trabalho. Pelo que vimos, a questão midiática latino-americana nos EUA é tema que merece
pesquisas e estudos, que teríamos muito interesse em conhecer, mas não em proceder.
A região geográfica que nos atrai é a que abriga a América Latina e o Caribe - Nuestra
América -, ou seja, os continentes das Américas do Sul, Central e do Norte, até a fronteira
do México com os EUA. É nesse espaço que sobrevive e prolifera a cultura riquíssima e
multimilenar indo-afro-americana, até hoje invisível para a mídia hegemônica - e talvez
tenhamos de dar graças a Deus por isso.
A realização do presente trabalho foi, antes de tudo, muito prazerosa, pois, através das
câmeras do "sistema bolivariano de comunicações", temos viajado bem ciceroneados nesse
belíssimo espaço geográfico, desde a Natureza, que preservou, até os povos que abriga e as
culturas que fertiliza, mantém e faz evoluir. A música e a dança se destacam, de imediato.
São povos que trazem em si, cada um deles, uma beleza peculiar, não contida só nos traços
físicos e nas cores da pele de sua gente, mas, também, nos espíritos musicais, nos gestos
graciosos de dançarinos e nas sabedorias pré-históricas, transcendentais e filosóficas de
suas culturas. São eles os maiores artistas contemporâneos que conhecemos - os povos da
América Latina e do Caribe (estamos nos incluindo, os brasileiros). É verdade que para nós
a grande novidade tem sido os povos dos países de língua espanhola, pois só agora, com os
recursos de internet e as mídias bolivarianas, tivemos a oportunidade de observá-los mais
de perto e com acesso a informações valiosas, uma vez que poucas foram as oportunidades
que tivemos de visitar alguns de seus países (só tivemos o privilégio de conhecer o Peru e a
Argentina, em tempos que já vão distantes e de não tão boas memórias).
Eis que constatamos uma bela verdade. Há, poderoso e vibrante, o inter-relacionamento
entre a Revolução Criativa "Bonita y Hermosa" capitaneada por Hugo Chávez na
Venezuela e a alma sensível de todos os povos. Conscientes ou não, o fato é que nossas
antenas captaram o sinal que nos impregnou do charme deste processo revolucionário,
relevando a mais rica de nossas virtudes: a liberdade de expressão. Sim, porque a liberdade
de expressão é, antes, algo que possuímos dentro de cada um de nós, ou não possuímos. E é
preciso tê-la interiormente para conquistá-la exteriormente (precisamos ter e saber o que
fazer passar pela "barreira dos dentes", como sugere a antiga sabedoria).
Ao ver os garotos esquisitos, perdidos, fazendo marchas tontas em Caracas, pedindo
"liberdade de expressão", percebemos logo que eram manipulados, mas havia também o ato
falho no pedido. De fato, eles não possuem liberdade de expressão, não porque esta lhes é
negada, mas, sim, porque não a possuem dentro de si mesmos. De tal forma se deixaram
codificar, que chegaram ao ponto de perderem a expressão dos próprios espíritos, das
próprias almas, do próprio saber, para só responderem, obedientes, aos comandos do
pattern comunicacional. Eis porque a manifestação deles só ocorre depois que sai do ar o
pattern a que obedeciam. Dependentes dele, sem ele, ficaram perdidos... e saíram, tontos,
marchando sob o comando de outro canal emissor do mesmo pattern manipulador, a outra
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cabeça ainda não decepada da Hidra que tentava retaliar usando, como "carne de cañon",
os niños ricos, os muchachos y muchachas que a tiveram por babá e professora.
Mas, por outro lado, vimos também as massas bolivarianas se manifestando com a
liberdade de expressão que dentro de cada um deles há, e com aquela que conquistaram no
processo rumo ao socialismo do século 21. Cantavam e dançavam com espontaneidade e
alegria, e, quando era para falar aos microfones das mídias revolucionárias, inclusive em
cadeia nacional, falavam muito bem. E com eles cantamos e dançamos; e quando pudermos
também falar como eles podem falar, vamos dizer: "Somos todos irmãos, camaradas!".
Tudo isso constatado, nos vemos agora na necessidade de parodiar Franklin Delano
Roosevelt, quando disse que "A guerra é importante demais para deixá-la nas mãos dos
militares". Temos a dizer o seguinte: a comunicação social é importante demais para deixála nas mãos dos comunicadores. Pelo menos, em uma sociedade socialista.
E concluímos: na Rússia de 1917, foram Malevich, Maiakowsky, Kandinsky, Dziga
Vertov, Stanislavsky, Eisenstein, Rodchenko, Tatlin, Gladkov, Eisenin, Isadora Duncan,
John Reed e outros mestres das vanguardas estéticas e filosóficas, incluindo Lenin e
Trotsky, saídas de dentro ou vindas de fora da grande nação revolucionária, que criaram a
cultura comunicacional vitoriosa e catalizadora do apoio e da participação popular naqueles
pioneiros e verdadeiros momentos de tranformação socialista, acontecendo e mudando a
realidade mundial.
Pois são os artistas e pensadores de vanguarda os que devem ser responsáveis pela criação
de uma cultura comunicacional para a sociedade socialista. São eles que historicamente
sempre fizeram este trabalho, e todo o legado comunicacional das gerações passadas é
produção exclusiva deles. São eles os que têm, na liberdade de expressão, a essência do que
são e do que fazem. E são eles que derrubarão o pattern comunicacional manipulador e
criarão a cultura comunicacional libertária e revolucionária do século 21. Já o estão fazendo
na Venezuela. Convém participarmos, os que não estamos na Venezuela.
Desde os primeiros frames que logramos capturar da TeleSur, percebemos as vinhetas
criativas e originais de artistas e pensadores da música, da dança, das artes plásticas, da
literatura, do teatro, do cinema, da filosofia e da ideologia, enfim, do pensamento criador,
crítico e dialético. Muito já fazem, também, a VTV e a viVe TV. A TVes não deixará por
menos.
Aliás, sobre o pensamento criador, de que, em essência, pouco temos tratado, uma vez que
este trabalho é mais voltado ao pensamento crítico (como consequência do pensamento
criador, claro), a Revolução não negligencia. O Ministério da Cultura, Revolución de la
Consciencia, tem se esmerado no apoio e fomento ao pensamento criador, pela mídia que
lhe é a mais própria e adequada: o livro.
Chávez também faz sua parte na política do livro. Não há um só de seus discursos em que
deixe de apresentar duas ou três obras de que está desfrutando ou estudando, recomendando
a leitura e o aproveitamento dos conhecimentos que abrigam, ou propondo reedições e
novas impressões de obras históricas ou que sabe esgotadas. Tornou-se célebre o discurso
de Chávez na ONU, quando apresentou um livro de Chomsky recomendando-o aos leitores
dos EUA, e o livro passou no mesmo dia à condição de best seller, saindo de posições
insignificantes para o 1º lugar em vendas naquele país.
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A política do livro na Venezuela, pela plataforma Libro y La Lectura, é tão ou talvez mais
ambiciosa que a do audiovisual. Só para se ter uma noção, o Ministério da Cultura
implantou super gráficas nas capitais de cada estado (são 23 estados e o Distrito Federal),
todas com alta tecnologia e capazes de produções de livros em grandes tiragens. Essas
gráficas têm, por "conselho editorial", os Conselhos Comunais formados nos respectivos
estados (o país já tem 19.000 Conselhos Comunais registrados, esperando chegar, até 2010,
a um total de 52.000). Em Caracas está para ser inaugurada, nos próximos dias, a Imprenta
de la Cultura, uma super gráfica de quase 10.000 m2, com equipamentos de última
geração, totalmente informatizada e capaz de rodar 20 milhões de exemplares de livros por
ano. Seus primeiros trabalhos serão a publicação de100 títulos históricos da literatura
nacional para 50.000 bibliotecas básicas comunitárias, e o lançamento do semanário La
Tarea (A Tarefa). Uma rede de livrarias (livros gratuitos ou a preços popularíssimos) e
bibliotecas abrangendo todas as pequenas cidades e bairros, por mais distantes que se
situem, já está em formação com as produções dessas gráficas, das editoras do Ministério
da Cultura e do governo, e dos círculos independentes de resistência, que, com os apoios
que recebem do governo revolucionário, são cada dia mais prolíficos e produtivos. Na
Venezuela, o movimento editorial multiplicou-se de tal maneira que já se equipara aos de
Cuba e Espanha, os dois maiores centros editores de livros em língua espanhola.
Incrementando este apoio, a República Bolivariana da Venezuela, por seu Ministério da
Cultura, instituiu o "Prêmio Libertador", outorgado anualmente a obras do pensamento
crítico publicadas em língua espanhola. Ainda em sua segunda edição, o prêmio já se impõe
entre os mais prestigiosos e disputados certames do livro nas três Américas.
E, como vimos dizendo, eis-nos em Nuestra América, situação geográfica onde os povos se
tornaram - por suas expressões libertárias, espontâneas, de ressonância e consonância à
Revolução Bolivariana da Venenzuela - grandes artistas contemporâneos. Pois reúnem, em
si mesmos e nas coletividades que os agrupam, a mais prolífica, a mais antiga e a mais
original de todas as culturas. Que hoje se libertam - e como! E, se foram inexploradas nas
comunicações capitalistas, receberão agora o mais nobre dos espaços nas comunicações do
socialismo indo-americano, que virá com a vitória da Revolução Caraíba.
Festa Latino-americana!
Aos venezuelanos e venezuelanas
Peço agora permissão para dirigir-me a vocês na primeira pessoa, porque saem do coração
mais que da mente, as palavras com que encerro este trabalho.
Em primeiro lugar, o prazer que tive em fazê-lo, eu o devo integralmente a vocês.
E, advirto: não se sintam responsáveis pelas fraquezas e defeitos que inevitavelmente este
trabalho apresenta em sua construção apressada. Assumo, sozinho, a responsabilidade.
Mas, quero dizer a vocês que, daqui, eu vi vocês:
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Eu vi indígenas reconquistando tradições e terras que lhes são sagradas.
Eu vi afrodescententes altivos e livres falando coisas que devem ser ouvidas.
Eu vi eurodescendentes serenos e livres ouvindo coisas que devem ser ouvidas.
Eu vi coisas que devem ser vistas e ouvi coisas que devem ser ouvidas.
Eu vi vocês pensando, escrevendo, lendo, trabalhando e lutando.
Luchando por América - Tierra Nuestra
Eu vi vocês mulatos, mulatas, mestiços, mestiças, dançando, cantando e falando.
Hablando por América - Tierra Nuestra
Eu vi vocês as mais belas, os mais belos - de alma, de espírito, de corpo e alegria.
Alegria de Nuestra América
Eu vi a revolução de vocês, e ela é, de fato, bonita y hermosa.
Não tenho palavras para agradecer por tudo e por tanto que de vocês recebi.
E penso que tudo o que escrevi se pode resumir em uma só palavra, três vezes exclamada:
- Vitória! Vitória! Vitória!
Ou na frase de uma canção que vocês conhecem e sabem muito bem amar e cantar:
- "Gloria al bravo pueblo!"
Mario Drumond
Belo Horizonte, Brasil, abril/maio/junho/2007
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Apêndice
Neoliberalismo à brasileira
Começamos por justificar o apêndice: não poderíamos incluí-lo no texto principal, porque
não é possível, no Brasil e sobre o Brasil, escrevê-lo com as mesmas espécies de fontes,
meios de comunicação e acesso às diversas linguagens de informação, via internet, de que
nos valemos lá - em língua espanhola, por certo.
Resultaria em hibridez de composição, em prejuízo dela e do conteúdo informativo que
buscamos trazer ao leitor em língua portuguesa, não por mera tradução de conteúdos, mas
pelo garimpo que temos feito na proposta e no fazer deste trabalho.
Em suma, não podemos, vivendo no Brasil, escrever sobre o Brasil o que, vivendo no
Brasil, escrevemos sobre a Venezuela. Porque aqui a mídia hegemônica e os poderes de
Estado a seu reboque cerceiam, censuram, policiam e proíbem a liberdade de expressão.
Infelizmente, a mídia hegemônica no Brasil será talvez a mais hegemônica, oligopólica e
onipresente de todas as que assolam as nações deste mundo. Aqui não temos como acessar
nem obter informações confiáveis, dignas de crédito, de valor histórico ou de substância
conteudística que possam alicerçar o pensamento criador, crítico e dialético.
Dos veículos da mídia hegemônica, claro, nunca esperamos obtê-las.
Dos veículos de resistência que por aqui sobrevivem, alguns heróicos e combativos, pouco
podemos exigir ou esperar. Ou trabalham em condições de indigência financeira, sem a
mínima estrutura e na base do voluntarismo - sem falar da insignificância de audiência - ou
são perseguidos e ameaçados, tendo sobre si uma polícia feroz que, ao comando da mídia
hegemônica, fecha rádios comunitárias e empastela jornais alternativos, inclusive com a
perseguição e prisão de editores e jornalistas; se sobrevivem, têm de ceder a pressões do
poder hegemônico que, a qualquer tempo, pode esmagá-los. Nenhum desses veículos tem
acesso a fontes importantes de informação em níveis confiáveis.
Assim, a onipresença do pattern comunicacional manipulador é avassaladora.
E é tal a codificação do pensamento único na acachapante maioria da população, em todos
os extratos de classe e em todas as colorações políticas e ideológicas, que nem se pode por
agora imaginar, internamente, um poder que possa enfrentá-lo e, muito menos, ameaçá-lo.
No Brasil não há guerra midiática, somos um país ocupado e completamente sob domínio
de poderes estrangeiros que sustentam a mídia privada e suas ramificações em todos os
meios possíveis de expressão. Aqui lograram instalar a paralisis, a fragmentação da
resistência e o enfraquecimento da inteligência e da opinião, que, pode-se dizer, não
permite espaços, por menores que sejam, ao pensamento crítico e criador, e, menos ainda, a
uma cultura comunicacional.
Todas as decisões de poder ou de valor histórico são tomadas a portas fechadas, nas
mutretas palacianas ou nas luxuosas administrações de bancos e transnacionais. Do que
falam nossos políticos e autoridades só podemos especular nas entrelinhas. Do que
noticiam os veículos midiáticos, nem isto. Toda a produção midiática é de camuflagem,
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tergiversação, desvio e encobrimento da informação, ou seja, toda informação é dada para
desinformar.
Aqui, praticamente sem resistência ou protesto:
- a Amazônia é entregue a preços de selo de cartório;
- florescem as transgênicas monoculturas (plantations) que massacram a terra e os
camponeses em extensões territoriais inacreditáveis;
- é o país do etanol, por determinação de Bush e, não, por nossa vocação agrícola;
- é o paraíso dos banqueiros e do capital especulador;
- é o spa de transnacionais e oligopólios, que gozam de incentivos e facilidades fiscais,
ganham em doações as mais tradicionais e lucrativas empresas públicas, recebem todos os
favores governamentais, com os agradecimentos subservientes de autoridades, a projetos
predatórios, de saque às riquezas naturais e exploração vil de nossa mão-de-obra;
- a polícia prende, espanca, tortura, e, não raro, assassina operários que ocupam fábricas e
indústrias fechadas pelas privatizações, e camponeses que ocupam terras abandonadas e
improdutivas de latifúndios;
- o trabalho escravo e a escravidão da criança é uma realidade inelutável;
- não há educação pública gratuita nem liberdade de expressão;
- é o santuário da mídia hegemônica.
Somos, desde 1964, o grande problema da América Latina revolucionária, um problema do
tamanho da metade de sua extensão territorial e populacional.
Hoje, a situação é ainda pior.
Entendemos quando Chávez e outros líderes e pensadores de nações progressitas incluem o
Brasil de Lula como aliado no elenco das nações latino-americanas "de esquerda". Isto os
fortalece, sem dúvida. O Brasil, seja qual for a situação em que viva ou que morra,
desequilibra a balança de poder. Mas nenhum desses líderes alimenta ilusões. Alguns
pensadores, talvez. Porém, não há como deixarmos de lado um raciocínio de precisão,
como este do músico e compositor brasileiro Guilherme Vaz:
"O governo Lula é o maior cavalo de tróia da história!"
Por mais dura que seja essa afirmação, temos de pensar nela, e estamos certos que o
Comandante Hugo Chávez a tem presente no pensamento estratégico que engendra para a
política externa de sua (nossa) Revolução. Sabe que os EUA de Bush contam com o Brasil
de Lula para o "golpe brando" contra a Revolução Bolivariana, pois aqui o golpe já é bem
sucedido (Lula é parte dele), e está em curso em toda a extensão continental do "quintal
d'América". Tudo aquilo que a Revolução Bolivariana repudia e estigmatiza o Brasil
facilita e promove a paradigma. E os paradigmas da Revolução são aqui estigmatizados e
demonizados.
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A prevalência de posturas ultradireitistas por parte do Senado brasileiro em relação aos
acontecimentos na Venezuela e à política externa de Chávez, em arremedo ao Senado
pinochetista do Chile, e sob o mais acintoso comando manipulador do Senado dos EUA e
do Pentágono, não deixam dúvidas de que o nosso poder executivo nada mais é que a
máscara de esquerda que disfarça a nossa realidade de direita neoliberal, para iludir nossos
vizinhos e esfriar a ebulição libertária em que vive a América Latina.
Assim é o neoliberalismo à brasileira: usa máscara de esquerda; mas a festa é da direita.
O Brasil de Lula não participa da Festa Latino-americana.
Pelo visto, só entrará nela quando tivermos por presidente um verdadeiro líder. E, se este
líder tiver de conhecer tão bem a obra de Oswald de Andrade como Hugo Chávez conhece
a de José Carlos Mariátegui, vamos ter de esperar... muito!
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Escritos bolivarianos
Publica-se aqui três textos que foram veiculados separadamente na internet através de
fóruns e sites jornalísticos mas que, no conjunto, podem dar uma idéia da evolução do autor
em sua iniciação internáutica na Revolução Bolivariana.
Seguem na ordem cronológica inversa, o primeiro deles em último lugar, não quebrando,
assim, a continuidade seqüencial com o mais recente e atual (A Guerra Midiática na
Venezuela), que dá título a esta coletânea.
Incluímos também um quarto e último texto escrito ao final dos trabalhos de escrita e
organização do presente volume, como para fechar um primeiro ciclo de pensamento e que
também justifica o título da proposta editorial que deverá abrigar nossas observações sobre
este novo mundo que emerge, revolucionário, ao raiar do século XXI.
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O audiovisual do Novo Mundo
(escrito em 7 de fevereiro de 2007)
Não vivemos uma época de mudanças; vivemos uma mudança de época.1
Dziga Vertov redivivo no século 21: kino-pravda: cinema-verdade. O set é a realidade. O
script é o momento-chave da revolução bolivariana na Venezuela: a work in progress de
um povo latino-americano em (inédita) aliança com as Forças Armadas. Um povo armado
de câmeras de vídeo: TVs e Rádios Comunitárias. Milhares de câmeras e microfones país
afora registrando tudo, sem censura: kino-glass: cine-olho. Alô, meus amigos Sylvio Lanna,
José Sette, Sérgio Santeiro, Elyseu Visconti, Fábio Carvalho. Alô, alô, Rogério Sganzerla,
no céu. Saudemos o novo jovem cineasta caraqueño Angel Palacios. E uma nova categoria
do audiovisual: o cine-documento.
Puente Llaguno - Claves de una Masacre, dirigido por Angel Palacios e produzido pela
Asociación Nacional de Medios Comunitarios Libres e Alternativos da Venezuela: este
longa, que colhi aos pedaços na internet, restaurei sua íntegra no meu computador e pirateei
cópias para DVD Player, revela não somente uma brilhante montagem audiovisual, mas,
muito mais que isso, uma revolução de linguagem.
Puente Llaguno é um cinema que não se propõe documentário; aquele que reúne, edita e
exibe documentos. É um cinema que se propõe ser, ele próprio, o documento. A
certificação, a demonstração e a prova do fato na contundência da linguagem audiovisual,
com o saber do cinema e o sabor da montagem cinematográfica. Não há, no atual estágio da
tecnologia, documento que possa ser mais poderoso. Sozinho, ele derruba toda a armação
midiática onipresente e põe a nu a verdade que, cuidadosamente, tentam encobrir.
Depois de Puente Llaguno, jornalistas, editores, altos funcionários e dirigentes das
televisões e demais mídias do poder imperial não podem mais se desculpar por estarem
apenas "cumprindo ordens", de serem meros empregadinhos que precisam da grana que
ganham para sobreviver. Palacios os desmascara2 como mentores e cúmplices imediatos,
ativos e conscientes, do pior e mais covarde dos crimes contra a Humanidade, ainda mais
cruel do que os exibidos em gangsters-thrillers roliudianos: o massacre premeditado e
meticulosamente planejado de pessoas que se manifestavam contra e a favor do governo
nas ruas de Caracas, incluindo, na matança de militantes bolivarianos, mulheres grávidas,
transeuntes sem participação nas manifestações e até partidários dos próprios assassinos.
Tudo para tomar de assalto, via golpe de Estado concertado a partir de causas forjadas pela
mídia, o poder constitucional e legítimo de um presidente eleito pelo povo. Parece que já
vimos este filme, aliás, já vimos muitos documentários e filmes de ficção sobre este e
outros golpes de Estado, mas, em verdade, nunca vimos este filme, porque só agora ele se
tornou possível como autêntica realização cinematográfica. O que é velho é o golpe de
1
Rafael Correa (discurso de posse da Presidência do Equador), em ato simbólico na localidade de Zumbahua,
província de Cotopaxi, em 14 de janeiro de 2007.
2
C O M P R O V A D A M E N T E: não se trata de "qualquer semelhança com a realidade é mera
coincidência", etc e tal, ou de documentário que possa ser contestado em sua veracidade pela possibilidade de
manipulação da montagem, mas, de documento, por si mesmo, da mais absoluta eficácia probatória.
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Estado no surrado receituário fascista-pentagônico-midiático, que, por sua essência, não
permite inovações criativas. Novo é o filme de Palacios, um filme que até agora só seria
possível em nossas imaginações; um filme que flagra o fato e demonstra a verdade com
qualidade de documento, de prova, e que é, antes de tudo, cinema.
Ele é bastante, como prova, inclusive em instâncias judiciais, para sustentar a cassação da
concessão pública das quatro maiores emissoras de televisão venezuelanas (RCTV,
Venevisión, Globovisión e Televen), que, juntas, atingem cerca de 90% da audiência
televisiva em todo o país; suspender a publicação de alguns dos principais jornais diários de
Caracas e levar a maioria de seus jornalistas, editores e dirigentes - diretamente envolvidos
numa só quadrilha acumpliciada à velha guarda de chefes militares direitistas - às barras
dos tribunais e das penitenciárias, imputando a eles os crimes mais hediondos que a lei
possa prever contra um povo, uma nação: genocídio e traição à Pátria.
Mas o poder midiático-imperial é de fato tão poderoso que vem superando até os poderes
executivo e militar, quanto mais os poderes judiciário e legislativo. Os crimes de Puente
Llaguno ocorreram em abril de 2002, e a maioria desses genocidas vive muito bem em
Miami, alguns até na própria Venezuela, como se nada tivesse ocorrido. Quanto aos
veículos de mídia que ainda insistem no mesmo papelão golpista, só agora, cinco anos
depois, a RCTV perderá a concessão de sinal radioelétrico ao encerrar o seu prazo legal,
uma vez que o governo venezuelano já confirmou que não o renovará. As outras emissoras
permanecem no ar e, ao fim do prazo de suas concessões, deverão receber o mesmo
tratamento. Porém, por mais que seja absolutamente legal e, no mínimo, complacente, a
decisão do governo venezuelano provocou uma enxurrada de histerias e protestos por parte
da mídia mundial e entidades com ela comprometidas, as quais, num cúmulo de hipocrisia,
agora se arrogam e se pretendem como legítimas defensoras da "liberdade de expressão".
"Gritem, sapateiem, façam qualquer coisa: acabou a concessão para este canal fascista" retrucou, numa linha de discurso, o presidente da Venezuela, Hugo Rafael Chávez Frías.
No Brasil, o sapateio e a histeria fazem coro. Alguns trechos extraídos de um artigo do
Estadão publicado em 15 de janeiro último resumem tudo: "Em vias de transformar-se num
símbolo da questão democrática na Venezuela de hoje, o detalhe da vida real é que a RCTV
é uma emissora com histórico respeitável e audiência fiel. (...) Não é campeã de audiência
em Caracas, mas, entre as emissoras de sinal aberto, nenhuma chega a tantas cidades do
interior. (...) A RCTV tem um histórico de jornalismo forte, agressivo até. Para quem chega
do Brasil, é como se Diogo Mainardi e Arnaldo Jabor apresentassem todos os telejornais,
fizessem todas as entrevistas e comentários, e depois só chamassem os amigos para dar
opinião. Os funcionários da TV dizem que essa é uma tradição da emissora, que ajudou a
construir um histórico profissional honroso de conflitos com diversos governos. Muitos
observadores dizem que isso até é verdade, mas a RCTV nunca foi tão crítica como agora e é por isso, conforme visão unânime em Caracas, que o governo Chávez decidiu tirá-la do
ar. (...) 'As pressões sobre os meios de comunicação sempre existiram, mas nunca foram tão
fortes', diz Ivan Ballesteros, titular de um programa da rádio da RCTV, que também está
condenada. 'As emissoras resistiam como podiam. A RCTV sempre foi mais pressionada,
porque era a mais independente, mas nunca tivemos um governo com empenho tão claro
contra a liberdade de imprensa'.(...)" (os grifos são meus)
O que o Estadão chama de "detalhe da vida real" e de "visão unânime de Caracas" é o
oposto daquilo que o cine-documento de Palacios nos demonstra num só filme que, de
resto, derruba também a insistida pomposidade dos "históricos honrosos e respeitáveis"
96
daquela emissora. Ademais, sou da opinião de que, se é verdade o que diz o Estadão
quando cita os dois maiores paspalhos da imprensa brasileira, a concessão da RCTV deveria
ser cassada só por este motivo, independente de qualquer outro, em benefício da saúde
(mental) pública. Mas o filme de Palacios, além de pôr a nocaute toda a farsa midiática,
acrescenta contribuições ainda mais importantes para a linguagem audiovisual.
Cerca de 70% do filme é feito a partir de farta documentação audiovisual obtida por TVs e
Rádios Comunitárias, cinegrafistas e fotógrafos independentes. Sem esse material, Puente
Llaguno - Claves de una Masacre não seria possível. Aliás, os momentos mais importantes
são tirados desses registros, pois todo o trabalho da mídia imperial, em uníssono, se voltou
para a deformação do fato, de acordo com o enredo por ela mesma traçado para que se
justificasse o golpe de Estado. Palacios não dirigiu as centenas de câmeras e microfones
que se espalhavam pelas ruas de Caracas graças ao boom de TVs e Rádios Comunitárias
que o governo Chávez afortunadamente promoveu; o que ele fez foi selecionar e editar o
material que, em linguagem cinematográfica criativa e contundente (suspense), restaurasse
a cronologia e a plena verdade dos fatos ocorridos naquela tragédia histórica.
Para mim, que, na década de 1980, junto com José Sette, trabalhei pioneiramente numa
proposta muito semelhante, a qual pretendíamos concretizar no longa Liberdade Ainda Que
Tardia (filme que ficou inacabado, e, só recentemente, José Sette restaurou a partir de
trechos que conseguimos preservar), o filme de Palacios surge como uma resposta
contemporânea às nossas visionárias intuições e estabelece-se como uma página
audiovisual da história que marca - com o rigor do historiador - a mudança de época em
que vivemos, preconizada por Rafael Correa, outro grande revolucionário bolivariano e
atual presidente do Equador.
Este artigo não tem por finalidade estudar, na complexidade de sua linguagem e fatura
audiovisual, esse filme que considero obra prima e maestra de uma nova era da informação
e da produção cinematográfica. Nossa proposição ao leitor é o visionamento dessa obra,
que se mantém submersa no oceano de desinformação em que vivemos no Brasil, e, por
conseguinte, promover o debate em torno das conquistas e vitórias pioneiras que nela se
obteve para a expressão audiovisual e para o processo revolucionário que emerge em toda a
América Latina.
Para quem dispõe de conexão internet em banda larga, é possível visionar Puente Llaguno Claves de una Masacre (disponível em 5 partes seqüenciadas) no seguinte endereço:
http://www.rebelion.org/noticia.php?id=44599
97
98
O Pacto do Novo Mundo
(escrito entre 25 de maio e 19 de junho de 2006)
Este pequeno ensaio foi escrito com uma certa angústia. Comecei-o em 25 de maio último
provocado pela entrevista coletiva de Hugo Chávez na noite do dia anterior, na qual ele
propôs a idéia genial do "Pacto del Nuevo Mundo". Ao dá-lo por terminado agora, em
19/6/2006, a angústia é maior. Que as elites latino-americanas submissas ao império
neoliberal (para mim, uma atualização do nazi-fascismo) desprezassem a idéia, tudo bem. É
só o que podemos esperar dessa espécie de hominídeos misantropos. Mas sempre me é
difícil, embora não surpreendente, constatar semelhante desprezo por parte das chamadas
esquerdas. Ao varrer as páginas da imprensa, a "grande", a alternativa, a de resistência, e
outras fontes interessadas, em nosso continente, na busca da repercussão sobre aquela
fantástica proposição do comandante Chávez, não só não encontrei repercussão nenhuma,
negativa ou positiva, como percebi o agravamento de um equívoco crônico: o preconceito
de certos jornalistas e autores que se auto consagram como procuradores do pensamento
engajado, rebelde e revolucionário. Na verdade, formam eles uma esquerda careta, burra,
bitolada, que é aceita como bem pensante pelas elites, e por isso é a que mais tem espaço de
publicação. No caso de Chávez, revelam-se no preconceito com o criollo, o índio, o chollo,
o mestiço, o homem do povo. É também o preconceito neurótico com a alegria, a
criatividade, a ousadia e a vanguarda. Para essses falsos monges da ideologia só é
revolução o que está estabelecido em cânones encartilhados nas interpretações mais
bizarras e simplórias dos "dez dias que abalaram o mundo". Números macroeconômicos,
cifras, decretos laborais, discursos doutrinários, palavras de ordem, informação censurada,
burocracia, repressão policial, ritos sumários e outros itens da tradicional receita são, para
eles, indispensáveis à caracterização de um processo revolucionário. Não se fazendo a
conquista libertária na rigidez ortodoxa e dogmática que preconizam (o que, aliás, a
tornaria impossível, ou não libertária), se juntam à mídia reacionária e tacham-na de
"populismo". E assim caminha a Humanidade. Já vi esse filme. Brizola e o "socialismo
moreno" também foram vítimas do mesmo desprezo, dos mesmos preconceitos. Quanto a
nós, os independentes, temos de lutar ao lado do verdadeiro revolucionário latinoamericano - o homem do Equador, o homem do povo - e procurar fortalecê-lo na
construção de sua obra, para evitar que ocorra com Chávez o que ocorreu com Brizola.
Só espero que a angústia que me ocupou durante esta redação - uma espécie de solidão por
não ter como citar ou contestar uma boa opinião publicada sobre o tema, acrescida pela
decepção de certas opiniões encontradas na pesquisa que não merecem citação ou
contestação - não tenha prejudicado a qualidade das idéias que procuro expor. Mas, por não
ser nunca um ensaio acadêmico e formal, duas "qualidades" que abomino em qualquer
escrito, confio na agilidade intelectual do leitor que se ocupará em percorrer estas linhas
para recompor minhas falhas e compreender-me no que nelas há de substância.
Brasil: o país da fantasia
Do ponto de vista político-continental, o Brasil é o país da fantasia. Já se vão mais de
quarenta anos que rompemos com a nossa própria nacionalidade e quase doze que
perdemos o traçado da História, erigindo um muro de preconceitos que nos separa de
nossos vizinhos latino-americanos. Entre todos os países sul-americanos que foram
assolados por regimes títeres de Washington, o Brasil resta entre os poucos que não
99
comemoraram o fim dessa ditadura.3 FHC, Lula e respectivos petucanos tomaram o bonde
errado e seguem inelutavelmente ao abismo em que termina os maus caminhos do
neoliberalismo. Lá, tal como seus pares ideológicos, serão sepultados na vala comum da
História - aquela que, nas portas do Inferno, Virgílio apontou a Dante como a que recolhe
as almas dos que "pelo mundo transitaram sem merecer louvor ou execração", e disse:
"deles não cogitemos: olha, e passa."
"Atrás enorme multidão surgia,
"tantos que eu não podia imaginar
"tivesse a morte aniquilado um dia."
(Inferno, III-55. Trad. Cristiano Martins)
As ações, as energias, os interesses e os pensamentos dos brasileiros se alienam do nosso
continente e passam o tempo irresponsavelmente delirando por festejos no Palácio de
Buckingham, por reconhecimento na Sorbonne e em Coimbra, pela dolce vita burguesaeuropéia ou pelo consumismo pequeno-burguês de Miami e NY. Nossa imprensa é
diligente em nos pôr a par de tudo que devemos saber. Daqui acompanhamos as eleições
municipais na Inglaterra e as legislativas na Itália, nos pormenores. As cotações das bolsas
de NY, Londres e Tóquio nos são fornecidas em rede nacional, de hora em hora, para que
se não corra o risco de sermos surpreendidos com uma repentina alta ou uma catastrófica
queda. Da mesma forma, nos mantemos rigorosamente a par das mínimas variações do
dólar, do euro e do yen. Nos fins de semana, acompanhamos Bush em seu helicóptero,
quando ele se dirige a Camp David, para agradecer-lhe pelo árduo trabalho que realiza em
prol da Humanidade e lhe desejar bom repouso e boas partidas de golfe junto a seus cães de
estimação. Nossos artistas buscam prêmios em Veneza e em Kassel. Nossos bailarinos
sonham com o Royal Ballet of London e com o Ballet Bolshoi de Moscou. Nossos músicos,
em ser editados por selos Deutsch, Sony, EMI-Odeon. Nossos sucessos literários se medem
por índices de venda nas livrarias de Paris. Nossos atletas envergam uniformes com slogans
em línguas estrangeiras. Nossos cineastas disputam, sôfregos, o almejado Oscar; não vemos
a hora de aplaudir o primeiro Prêmio Nobel brasileiro, ou de louvar o primeiro santo
nacional canonizado pelo Vaticano - mas mantemos sempre vivas e acesas as chamas
dessas três esperanças.
E de tudo exportamos, com o fervor e a generosidade mais pródiga que se possa conceber:
artistas, ferro, atletas, nióbio, eletricistas, manganês, pedreiros, água mineral, motoqueiros,
soja, crianças, urânio, maestros, camisetas, cientistas, assaí, putas, ouro, veados e infinitos
etcéteras. Tudo a "preço de cascalho": a banana encareceu e perdeu lugar no dito popular.
Por aqui ficamos com a miséria-a-zero, o analfabetismo irredutível, a mortalidade infantil e
juvenil em alta, a criminalidade ascendente, a corrupção recordista mundial, a Amazônia
entregue às transnacionais, às ONGs e aos pastores protestantes, e o programa de auditório
de imbatível audiência. E as novelas, não podemos nos esquecer das novelas! Estas, sim,
junto com o futebol em época de Copa, são hoje os nossos maiores orgulhos nacionais.
Pobre Pátria!
De bobeira, catatônica
Olhando para o mundo
3
No exato momento em que escrevo isto (25/5/2006), vejo pela TeleSur a Plaza de Mayo de Buenos Aires
lotada com mais de trezentas mil pessoas ouvindo a linda voz de Mercedes Soza, no evento em que se
comemora o terceiro ano do fim da ditadura militar e subsequentes governos neoliberais. Para os argentinos, o
fim do regime de exceção se deu com a posse de Nestor Kischner na Presidência da República Argentina.
100
De frente para o nada,
De costas para si mesma
O Renascimento de Simon Bolivar
Enquanto isso, o continente sul-americano estremece, se une, se fortalece, se mobiliza e se
empenha com vigor inédito para o renascer de um gigante histórico: Simon Bolívar.
É do conhecimento geral a saga desse gênio "Libertador das Américas", nascido em
Caracas e criado por uma escrava negra, e que empolgou os paises andinos e equatorianos
no início do século XIX, tendo ao lado os generais Sucre e Santa Cruz, e pondo em
polvorosa a coroa imperial espanhola. Libertou o Peru, o Equador, a Colômbia, a
Venezuela, criou a Bolívia e clamava pela união federativa sul-americana que se fizesse
capaz de enfrentar a união norte-americana, a qual era fundada com propósitos
imperialistas declarados.4
E porque não fora obtida aquela união, ao imperialismo espanhol suceder-se-ia o
imperialismo inglês, do qual seria derivado o norte-americano, que ainda hoje atormenta a
região e o mundo inteiro. Historiadores vão argumentar que, desde a morte de Bolívar, essa
união tem sido por diversas vezes tentada, sem sucesso. Pois eu ousaria dizer que só agora
tornou-se historicamente viável o renascimento do bolivarianismo como doutrina aplicável
ao planejamento estratégico continental.
Por quê?
A tríade latino-americana
Hoje, 26 de maio de 2006 - enquanto Lula e o presidente francês Jacques Chirac olhavam
para o céu assistindo às evoluções da nossa Esquadrilha da Fumaça, e a imprensa nacional
destacava as escaramuças na capital do longínquo Timor Leste -, na região cocalera de
Chapare, no interior da Bolívia, em meio aos aplausos de mais de 50.000 agricultores e
populares, Hugo Chávez, Evo Morales e Carlos Lage (vice-presidente de Cuba,
representando Fidel Castro), em reunião de cúpula tripartite, formalizaram o Tratado de
Comercio entre los Pueblos (TCP), como resposta ao TLC (Tratado de Livre Comércio com os EUA) e dentro dos propósitos da recém-criada ALBA (Alternativa Bolivariana para
as Américas), também uma resposta à malfadada ALCA (Área de Livre Comércio das
Américas), criada e imposta à América do Sul pelos EUA, mas que foi definitivamente
detonada por Hugo Chávez na reunião de cúpula de Mar Del Plata, no final do ano passado.
No seu discurso em Chapare, Hugo Chávez informou que o evento estava sendo
transmitido ao vivo, pela TeleSur, para todos os países das três Américas, do Canadá à
Terra do Fogo (não disse que a única exceção era o Brasil), pelas repetidoras da emissora.
Mas não se tratava aquele evento de apenas um ato político de mídia ou de promessas para
o futuro. Na verdade, o evento oficializava a inclusão da Bolívia num processo de
cooperação internacional que vem sendo posto em prática por Cuba e Venezuela, dentro da
doutrina da Revolução Bolivariana. Essa revolução é liderada e concebida ideologicamente
por Hugo Chávez e é aceita por Fidel Castro, numa demonstração de grandeza e sapiência
4
Doutrinas de Thomas Jefferson, George Washington e James Monroe ("a América para os americanos", ou
melhor, "a América para nós").
101
raras no mundo político, como sucessora e continuadora da revolução cubana. Um dos
característicos notáveis desse processo, tenho percebido, é: primeiro fazer; depois, falar.
Naquele ato, Carlos Lage anunciou a entrega, sob coordenação e supervisão de mestres e
técnicos cubanos, de 30.000 salas de aula distribuídas por todo o território boliviano,
prontas e equipadas com modernos recursos de tecnologia, incluindo computadores,
televisores, projetores audiovisuais e cartilhas impressas, como parte de uma infra-estrutura
de ensino básico e fundamental (Missão Robinson) que tornará a Bolívia "território livre de
analfabetismo" num prazo de 30 meses. Ressalte-se que o conceito de alfabetização exigido
pela Unesco não se restringe às meras capacitações de o alfabetizado assinar o nome e ler
avisos e pequenos letreiros, mas, sim, o de capacitá-lo para a composição e a interpretação
correta de textos corridos. Já a Revolução Bolivariana pretende, no caso dos indígenas e de
outras etnias, que a alfabetização se faça, além disso, bilíngüe, habilitando o alfabetizado a
ler e escrever na língua oficial do país e na sua língua materna, sem imposições culturais
nos conteúdos dos recursos didáticos, que devem ser produzidos em conformidade com as
culturas específicas a cada grupo étnico, sempre em atitude de respeito e elevação delas, e
com a participação de educadores nativos.
Lage anunciou também a entrega, sob coordenação e supervisão de médicos e doutores
cubanos, de 20 centros assistenciais de saúde completamente equipados para o atendimento
das necessidades da medicina moderna - preventiva, curativa e emergencial - em nove
departamentos da Bolívia, incluindo o concurso de 600 médicos cubanos para o
atendimento dos indígenas5, e de 4.777 bolsas concedidas a bolivianos que já estão
estudando medicina e outras disciplinas em universidades cubanas.
Esses dados refletem, em menor escala, a cooperação que já se desenvolve entre Cuba e
Venezuela, em que atuam mais de 20.000 médicos cubanos, e que teve (quem?), ano
passado, o reconhecimento da Unesco como "território livre de analfabetismo" (o segundo
da América Latina, depois de Cuba), o qual requer uma taxa de quase 100% de
alfabetização comprovada e registrada em toda a população do país.
O documentarista norte-americano John Pilger, que andou filmando na Venezuela nos
últimos anos, dá o seguinte depoimento: "Essa proeza deve-se a um programa nacional,
chamado Missão Robinson, destinado a adultos e adolescentes que foram privados de
educação escolar por causa da pobreza. A Missão Ribas vem dando a toda gente uma
escolaridade ao nível do secundário, chamada bacharelato (os nomes de Robinson e Ribas
referem-se a líderes da independência venezuelana do século XIX). Conhecidas, tal como
muitas outras coisas aqui, em memória do grande libertador Simon Bolivar, por
'bolivarianas' ou populares, apareceram universidades que divulgaram, como uma pessoa
me disse, 'tesouros do espírito, da história, da música e da arte que nem sabíamos que
existiam'. Com Hugo Chávez, a Venezuela é o primeiro grande produtor de petróleo que
utiliza as receitas do petróleo para libertar o povo."6
Por sua vez, poucas horas depois do evento de Chapare, em cerimônia no Palácio Quemado
em La Paz, repleto com a presença de todas as autoridades de primeiro e segundo escalão
dos dois países, e também transmitida ao vivo pela TeleSur, a Venezuela oficializou com a
Bolívia nada menos de 207 tratados de cooperação que abrangem quase todas as áreas da
5
Segundo a Econoticia Bolivia, em 90 dias de atuação em território boliviano os médicos cubanos já
atenderam mais de 450.000 pessoas, realizaram 7.300 cirurgias e salvaram a vida de 810 pacientes.
6
Pilger, John; Venezuela: a extraordinária ascenção de uma verdadeira democracia - trad. Margarida
Ferreira; www.resistir.info (23/5/06). Original encontra-se no The Guardian (http://pilger.carlton.com/print)
102
produção agrícola e industrial e da infra-estrutura estatal, em especial às de produção e
desenvolvimento de tecnologias energéticas e petrolíferas, todos eles já em execução desde
a posse de Evo Morales, em janeiro deste ano. Para levá-los a cabo, Caracas criou um
fundo de 100 milhões dólares, e os dois governantes assinaram outros cinco compromissos
de crédito e quatro de pesquisas conjuntas. A Venezuela investirá também um milhão de
dólares na construção de uma fábrica de farinha de coca e concederá 24 milhões de dólares
em créditos a pequenos produtores de coca, soja, café e leite, além de 5.000 bolsas a jovens
bolivianos que já estão estudando em universidades da Venezuela.
É admirável em Chávez a sua obsessão pela História da América Latina, e mais admiráveis
os conhecimentos que dela demonstra ter, sem sombra de jactância ou de afetação pseudointelectual. Os discursos de Chávez, sempre longos e despreocupados com a pressa ou com
as aflições dos estressados pelo relógio conta-tempo, são recheados de verdadeiras aulas de
história e geografia latinoamericanas, que as platéias sorvem embevecidas. Em Chapare, ele
foi à nossa pré-história e dissertou, com fluência e domínio da matéria, sobre os sistemas
políticos dos Incas e Aymaras, defendendo a tese de que eram sistemas socialistas
avançadíssimos. A impressão que ele nos passa, nessa relação intensiva e radical que
estabeleceu com a Bolívia para o reerguimento dela enquanto nação soberana, livre e
poderosa, é a de que, no seu pensamento estratégico-ideológico, a Revolução Bolivariana
só prosperará se o Estado criado e constituído por Simon Bolívar prosperar.
E que se não pense ser Evo Morales mero cupincha de Chávez, como quer dar a entender a
imprensa neoliberal, a brasileira inclusive. Muito pelo contrário, Morales demonstra uma
invulgar personalidade de estadista e uma autonomia surpreendente diante do gênio de
Chávez. Em nenhum momento dos dois grandes eventos de hoje, em Chapare e em La Paz,
que assistimos na íntegra (via internet) em quase seis horas de transmissão, só interrompida
pelo translado de um local para o outro, Morales pareceu-me menor que Chávez. E para
isso não foi preciso que Chávez se diminuísse ou se acanhasse. Aliás, a mesma impressão
tivemos de Carlos Lage, que não conhecíamos, e que nos fez despertar a noção de já estar
em andamento a sua sucessão a Fidel Castro. A evidente liderança de Chávez no processo
da Revolução Bolivariana existe nos planos doutrinário e ideológico, pois é ele sem dúvida
alguma o lançador da idéia neste momento histórico, o pioneiro em sua prática e o que mais
domina a sua teoria. Mas, no plano político, os três líderes se igualam em estatura e nada
ficam a dever uns para os outros, preservando-se em cada qual, evidentemente, suas
próprias características. Lage é mais objetivo e incisivo na sua formação revolucionária
cubana, marxista-leninista, e traduz em seu discurso uma competência estraordinária de
executivo realizador e empreendedor. Morales é um radical na acepção mais plena dessa
palavra, aliás, mencionada por Chávez, ao citar Eduardo Galeano em seu discurso: ser
radical é ser "de raiz". Morales não se posiciona como um intelectual, mas também não
poderá jamais ser considerado intuitivo, primitivo ou naif. É comandante inato e muito bem
preparado teórica e intelectualmente para o comando de Estado, para o qual demonstra
notável competência, muito mais expressa na ação política e executiva que na retórica.
Além disso, é secundado por Álvaro Garcia Limera, seu vice-presidente, que me pareceu
ser, além de intelectual engajado, um frequentador das mais altas esferas do saber. O que
fica claro e transparente na atuação pública dos três líderes e seus respectivos staffs é a
independência, a integridade e a honestidade deles. Sem rabos presos, mutretas e passados
duvidosos por encobrir ou disfarçar, desatam com a mesma potência e contundência, cada
um a seu modo mas em uníssona harmonia, um discurso convincente, anti-imperialista e
corajosamente posicionado para o confronto com quem quer que venha a tentar impedir a
ação revolucionária e libertária que comandam e desenvolvem junto aos seus próprios
povos, e em benefício de todos os povos latino-americanos.
103
Dois dias antes, em 24 de maio, acompanhamos, por quase quatro horas, uma entrevista
coletiva que Chávez concedeu em Caracas a jornalistas latino-americanos. Infelizmente,
não pudemos registrar a presença de nenhum brasileiro...
O Pacto do Novo Mundo
Na entrevista, Chávez expôs didaticamente, com auxílio de mapas (mapa-múndi e da
América do Sul), a sua concepção de um sistema pluripolar de poder mundial. Nesse
sistema, ao invés de um ou dois pólos hegemônicos de poder, o mundo teria vários pólos de
poder não hegemônicos, entre os quais ele aponta como já configurados os do Japão, da
China, da Anglo-EUA, da Europa, da Rússia, e, em formação, os pólos da Ásia, da África,
do Oriente Médio, da Índia e da América Latina. Para Chávez, a sobrevivência do planeta
requer destes pólos que busquem ser complementares pela preservação das próprias
características - naturais, culturais, geográficas e históricas -, e não a hegemonia global,
com a imposição de um deles por sobre a destruição da identidade dos demais. É o que ele
chamou, em escala mundial, de Pacto del Nuevo Mundo, escrevendo-o como título do
mapa-múndi que exibia aos repórteres e às câmeras de TV, depois de envolver com círculos
as regiões que para ele são demarcadoras dos diversos pólos de poder.
Em nível regional, o Pacto corresponderia ao sonho de Bolívar, reunindo todas as nações
de línguas latinas do Caribe e das três Américas, a nossa América Latina, num processo
intenso de integração e colaboração internacional. Valendo-se da complementaridade de
recursos naturais, econômicos e culturais de seus diversos países, tal processo iria fortalecêlos, uni-los e criar um bloco continental capaz de se nivelar, em poder, a quaisquer outros
do planeta - e com eles negociar de igual para igual. Para obter essa integração continental
e cultural, Chávez empenha todo o seu carisma e poder conquistados no bem sucedido
governo da Venezuela, cuja presidência ocupa há sete anos consecutivos com um recorde
mundial de dez eleições vitoriosas.
Diga-se a favor de Chávez que todas elas foram vitórias democráticas plenas, irrefutáveis e
contra o poderio midiático imperial-neoliberal, entremeadas por tentativas de golpe
tramadas pela CIA e o Pentágono. Numa delas (11/4/2002), chegou a ser seqüestrado e
preso, com ordem para ser fuzilado acatada por mais de 100 oficiais das Forças Armadas
venezuelanas, entre eles quase todos os generais e almirantes da ativa, ordem que não
obteve a obediência de um só pelotão de soldados para executá-la. E os regimentos
comandados pelo atual ministro da Defesa, alm. Ramón Ferreira, e outros chefes militares
patriotas, acabaram prendendo os golpistas e restituindo o poder ao presidente
constitucional.7
O que Chávez tem feito na Venezuela é algo realmente extraordinário, em qualidade e
quantidade, que não cabe resumir neste ensaio.8
Mas, quanto à política externa - que é um dos focos deste ensaio a partir das mais recentes
manifestações de Chávez -, ele relacionou em sua entrevista coletiva, no rol de atitudes
7
Importante, extenso e detalhado estudo sobre o papel da mídia nas tentativas de golpe para derrubar Hugo
Chávez, intitulado Los Documentos del Golpe, foi publicado pela Fundación Defensoría del Pueblo, Caracas,
cuja versão digital pode ser baixada no Portal do Governo da Venezuela (www.gobiernoenlinea.ve).
8
Recomendo a leitura de Cházaro, Ernesto Fidel de; Venezuela: Buscando la Revolucion Bolivariana;
disponível no site www.rebelion.org.
104
imediatas, os encontros de Chapare e La Paz, dali a dois dias, que consolidariam o tríplice
acordo Cuba-Venezuela-Bolívia (em andamento desde a posse de Evo Morales e com
marco definitivo em 1º de maio, apoiando a nacionalização do petróleo e do gás boliviano),
o apoio à nacionalização semelhante no Equador (com a Venezuela oferecendo o refino
gratuito de petróleo do Equador, para que o país não fique sem os derivados que não
produz) e o apoio ao Exército Brasileiro a nor-noroeste da Amazônia brasileira, com o
fornecimento de combustíveis que viabilize operações conjuntas das forças venezuelanas e
brasileiras na região. Chávez acena também para o Peru (onde apóia declaradamente o
candidato Ollanta Umala, que parece querer seguir os passos de Morales)9, para a Colômbia
(de onde recebe sinais discretos de Uribe, agora reeleito), para a Argentina (onde tem sido
bem recebido por Kischner), para o Uruguai (onde obtém a mesma resposta de Vasquez),
para o Chile (que não se manifestou) e para o Brasil (onde Lula, enciumado com a
liderança de Chávez e enrolado com vários rabos presos, finge-se de morto).
Aos países andinos do norte da América do Sul, Chávez propõe a criação de uma
Confederação Bolivariana Andina para constituir um pólo de força continental que ele
chamou de "Arco Andino", desenhando-o no mapa, em substituição à Comunidade Andina
das Nações (CAN), segundo ele, inviabilizada pelos EUA e os TLCs firmados com Peru e
Colômbia, que levaram Chávez a retirar a Venezuela da Comunidade.
Nas relações com os países ao sul, ele comunicou o ingresso da Venezuela como sócio
pleno do MercoSul, ingresso este que foi oficializado naquele mesmo dia. Com os países
sócios Chávez pretende levar a cabo uma série de programas de cooperação internacional
nos próximos quatro anos, a fim de consolidar o que ele chamou de "Cruzeiro do Sul",
consistindo numa cruz, por ele desenhada no mapa, formada pelas linhas de união das
capitais Caracas-Buenos Aires (Norte-Sul) e La Paz-Brasília (Oeste-Leste).
Num plano mais amplo, à maneira da iniciativa genial da TeleSur, Chávez anunciou a
criação de um banco, se não já o criara, o BancoSur, que operará sem caráter monetarista,
com interesses sociais antes que os econômicos, e que tem por objetivo substituir e
dispensar o FMI em nosso continente. Anuncia também a construção de um gasoduto de
dimensões continentais, o Gasoduto Sur, ligando a Venezuela até a Argentina, passando
pela Colômbia, Brasil, Bolívia e Paraguai.
Neste extenso e fulminante leque de ação em política externa, que se intensifica e se realiza
sob a repulsa dos setores reacionários que se incrustam nos poderes e nas economias de
todos os países afetados e que provoca histeria midiática, Chávez apóia-se em dois fatores
históricos fundamentais, um interno e outro externo:
- a popularidade de que desfruta hoje em seu país, em quase todos os segmentos da
sociedade, graças ao sucesso dos empreendimentos e das políticas conquistados pela
Revolução Bolivariana na Venezuela, que cresce a 9,4% ao ano, quase sem inflação, e com
os índices sociais e econômicos levados a patamares invejáveis e melhorando a cada dia;
- o beco sem saída em que se encontra hoje a política externa dos EUA, que, por seu perfil
escancaradamente imperialista e belicista manifestado nos últimos anos, só conseguiu o
antagonismo com o mundo e o agravamento da crise, já por si delicada ao extremo, do
9
Antes de terminar a redação deste ensaio ocorreu o segundo turno das eleições no Peru, com a derrota de
Umala, apesar de ter ganho em 15 dos 24 departamentos do país. Umala foi derrotado pelo neoliberal Alan
Garcia, que foi apoiado pela grande mídia, pelo atual governo neoliberal de Álvaro Toledo e por todas as
forças reacionárias do Peru, incluindo as empresas transnacionais e os expatriados Fujimori e Montesinos.
105
comércio internacional de petróleo e energia - além de muita destruição, calamidades e
matanças.
O 7º Regimento de Cavalaria
As elites conservadoras e reacionárias de países latino-americanos sempre menosprezaram
as investidas progressistas e revolucionárias que, ao longo da história, vêm se produzindo
com frequência para tentar eliminar as iniquidades sociais, econômicas e políticas que
assolam os países do nosso continente linguístico. Isto porque sempre contaram com a ação
de Washington e, na pior das hipóteses, da sua bem treinada e bem equipada "máquina
mortífera" - que o cinema roliudiano iconizou, ao som da corneta do 7º Regimento de
Cavalaria, sob o comando do diligente general Custer, chegando na última hora, e acabando
com a ousadia dos indígenas que vivem insistindo na defesa de suas terras e nações contra
os "benefícios da democracia e do progresso".
Acostumaram-se elas de tal maneira a essa "estratégica" proteção, que conta também com
um apoio midiático muito bem amestrado e bem equipado, que não perceberam que o
general Custer e sua cavalaria já estão naquele sítio de onde não mais sairão. Mr. Bush, por
sua vez, vive a situação de quem caiu num poço de areia movediça: qualquer movimento
um pouco mais brusco que faça o afunda mais. E a areia já vai pelo pescoço.
Em fevereiro de 2003, a revista Caros Amigos publicou uma entrevista que fizemos com o
cientista Marcello Guimarães, uma das cabeças brasileiras mais bem informadas sobre
energia, em que ele diz que a invasão do Iraque iria acontecer e era inevitável, porque os
EUA precisavam manter os preços do petróleo em "25 dólares o barril por mais uns dez,
vinte anos".10 Sabendo-se que hoje, passados apenas pouco mais três anos da invasão, o
preço do barril de petróleo chega a tocar os 75 dólares, portanto o triplo do que se previa,
temos nestes números a dimensão exata e a prova mais contundente da derrota dos EUA no
Iraque. De modo que basta uma palavra mais topetuda de Mr. Bush que possa sugerir nova
aventura homicida contra países produtores de petróleo para o preço do barril oscilar e
colocar Ms. Jane e Mr. John Doe histéricos com o preço da gasolina e putos com o Tio
Sam, e eis porque já não querem ouvir ladainhas do tipo "países do mal" e "terroristas".
Aí reside o motivo pelo qual Chávez, sem que nada lhe aconteça, pode classificar Bush de
"un criminoso que necesita ser punido en tribunales internacionales", "un asesino", "un
genocida" e outros termos mais pesados, se é que são possíveis, tendo por cenário o Big
Ben de Londres, como vimos pela TeleSur alguns dias atrás, numa entrevista que ele
concedeu a jornalistas europeus, em plena cidade de Blair, e na qual foi várias vezes
aplaudido de pé, em especial quando se referia a Mr. Bush naqueles termos.
Chávez e o petucano
O que digo nesta seção não é novo e é com base em fatos divulgados e bem conhecidos.
FHC e Lula e respectivos séquitos petucanos (termo de concisão que devemos ao sociólogo
Gilberto Vasconcellos) convivem num mesmo espaço ideológico desde que foram criados
nos laboratórios neoliberais de Matrix. Suas diferenças se reduzem às origens de classe: os
10
Drumond, Mario. A salvação da lavoura (entrevista com Marcello Guimarães); in Caros Amigos, ano VII
nº 71; São Paulo : Casa Amarela; fev/2003; pags. 18-21.
106
tucanos, da burguesia e dos altos escalões do poder; os petistas, da pequena burguesia e dos
médios e baixos escalões do funcionalismo. Nesse espaço ideológico, jamais configurado
em qualquer doutrina que se possa levar a sério, o termo imperialismo ou não existe ou
exprime uma idéia de inevitabilidade intrínseca à realidade e às condições terceiro
mundistas, as quais não podem nem devem ser mudadas, nem sequer mencionadas. Assim,
o proselitismo petucano desconhece ou finge desconhecer o termo imperialismo e passa ao
largo de debates sobre suas conseqüências nefastas para os povos do mundo.
O que os dois partidos e o elenco de políticos e próceres que os habitam fizeram desde o
início de suas malfadadas existências, e o leitor pode contar nos dedos as raras e conhecidas
exceções, foi tão somente amarrar seus rabos nos "consensos" de Washington e retocar suas
duvidosas biografias com as maquiagens fáceis do marketing comercial e político. E a tal
ponto o fizeram, que nem se reconhecem mais diante do espelho. Fora isto, foi cuidar cada
um de seus próprios interesses e cair sobre a coisa pública, de braçadas, na disputa da
migalha que lhes é concedida depois de bem cumpridos os deveres para com os patrões
quanto àquilo que é substancial e de real interesse.
Sempre que estão em campanha eleitoral visitam seus chefes nos EUA e fecham acordos
que a mídia amestrada não divulga e suas propagandas enganosas omitem ou reservam a
espaços restritos de divulgação, como foi o caso da tal "Carta aos Brasileiros", de Lula. Se
eleitos, voltam aos EUA tão logo tomam posse, para submeter ao boss os nomes dos cargos
principais de poder, receber ordens de nomeações e as determinações de prioridades do
governo. Durante seus mandatos, obedecem disciplinados aos chamados e ordens de
Washington, sempre em conflito direto com as principais promessas de campanha e com os
interesses nacionais. A autonomia de seus governos reduz-se, portanto, a restritas ações
beneficentes paliativas e populistas, e mesmo estas sugerem o oportunismo da compra de
votos a prestações através de esmolas, dadas em espécie, camufladas de "projetos sociais",
"bolsas" ou ajudas emergenciais, em que se gasta muito mais em propaganda midiática que
nos proventos oferecidos. Nas esferas mais altas das decisões de governo apenas fingem
participação, mas é evidente que não detêm poder de decisão, como bem o demonstrou o
caso da Presidência do Banco Central do governo petista, hoje o cargo mais importante do
país, para a qual Washington nomeou um tucano e fiel funcionário do Bank of Boston, que
mal sabia falar Português.
Suas conquistas eleitorais são todas a poder de pesado marketing eleitoreiro e com o apoio
maciço dos meios de comunicação comprometidos com o neoliberalismo e a globalização,
e ainda se garantem por fraudes nas apurações pelo uso absurdo, único no mundo, da "urna
eletrônica", que não emite comprovação do voto e é operada em um inaudito sistema
informatizado por cuja segurança e idoneidade nenhum especialista põe a mão no fogo.
Por estas e outras, no Brasil faz doze anos que os sucessivos governos petucanos não
constroem uma só sala de aula para o ensino público, um ambulatório ou hospital razoável
(fazem uns "postos de saúde", em geral mesquinhos e ordinários, que só servem para
indignar a população), uma praça de esportes que seja. Nem se fala em estradas, ferrovias,
programas de energia, de transportes de massa ou outros projetos de grande escala, a não
ser como promessas a um futuro distante e sabidamente inviável, com claras intenções de
enganação midiática. Pelo contrário, trataram de desmantelar e privatizar (doar) toda a
infra-estrutura que a duras penas foi implantada no país desde os governos Vargas e que
sobrevivera à ditadura militar, junto às que restaram como únicas contribuições da ditadura
à nacionalidade. Quanto à economia, são declaradamente entreguistas e de tal maneira
107
colonizados que nem se vexam dos fracassos retumbantes que vêm acumulando nestes doze
anos, sob qualquer método de avaliação.
Neste mesmo momento, somos informados de que enquanto a imprensa diverte o público
com o festival da corrupção (ou o concurso de quem é o político mais corrupto), e depois o
entreterá com a Copa do Mundo, uma guinada ainda mais à direita na economia estará
sendo comandada pelo presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, o intocável, e com
certeza o mais confiável representante dos verdadeiros governantes do Brasil. A saída do
ministro da Fazenda, Antonio Pallocci, se deu porque ele já cumprira o papel de fachada,
agora desnecessário à execução do novo projeto. O sangue e o suor do povo brasileiro serão
sugados mais ainda, no centralismo dos bancos, nas remessas de lucros e dividendos, e na
traição à economia nacional e à segurança trabalhista e previdenciária dos brasileiros, para
pagar as contas astronômicas das aventuras homicidas de Mr. Bush.
Chávez sabe de tudo isso. Sabe que Lula é fraco e aprisionado a um passado que tem de ser
mantido em sigilo e sempre retocado pelo confuso e mal escrito romance de ficção torneiro
mecânico-sindicalista. Além disso, está preso a um presente e a um passado recente que
dependem do silêncio de muitos "companheiros", fato que enfraquece qualquer governante,
ao ponto da inanição. Mas Chávez se aproveita da ficção e da fraqueza que envolvem o
nosso pseudo presidente para colocar em xeque o verdadeiro poder que se esconde por
detrás da fachada populista de Lula, a fim de mantê-lo acuado e sem ação, e de conduzir,
sem entraves e sem problemas com o Brasil, o processo libertário da América Latina pela
Revolução Bolivariana. Ele nunca perde a oportunidade de incluir Lula em suas alianças e
propósitos revolucionários, e o faz de uma forma tal que Lula fica desconcertado por não
poder negar de público o envolvimento com as idéias de Chávez, e ao mesmo tempo ter de
negá-lo na prática e secretamente perante seus patrões.
O que talvez Chávez ainda não saiba é que o Brasil perdeu seu último líder "bolivariano" há
poucos anos: Leonel Brizola. Não deve saber também que os Cieps de Darcy Ribeiro e
Brizola, de 1982-85, superariam as missões Robinson e Ribas (sem diminui-las, em
hipótese alguma) em criatividade e eficácia libertadora. Se não tivessem sido sabotados
pelas políticas petucanas em todas as instâncias de poder, executivas, legislativas e
midiáticas, municipais, estaduais e federais, teriam demonstrado sua eficácia e dado início à
Revolução Bolivariana, com outro nome, antes de Chávez consolidá-la na Venezuela com a
superação do golpe que tentou derrubá-lo e matá-lo. Creio que se soubesse disso, Chávez
teria chamado Niemayer e os auxiliares de Darcy e Brizola que atuaram no projeto, e
incorporado os Cieps à sua revolução. Ainda há tempo, e tem tudo para fazê-lo.
Chávez é hoje para o seu país e a América do Sul o que Brizola poderia ter sido para o
Brasil e o continente. Por ter negado a liderança a Brizola e por ter embarcado na canoa
furada do neoliberalismo, o Brasil acabou perdendo a condição de liderança política do
continente sul-americano, que sempre fora aceita como natural e nem seria contestada.
A foice e o martelo
Pode parecer estranho, mas é a História que nos assegura: são da militância ortodoxa de
esquerda - em particular quando quadros tidos por mais engajados e preparados alcançam
espaços de poder real - os mais graves erros e entraves interpostos aos caminhos libertários
dos povos do mundo.
108
São muito conhecidos alguns dos principais equívocos dos quadros stalinistas, desde a
morte de Lenin, em 1924, até a derrocada da União Soviética, nos anos 1980. Mas o maior
deles é mantido nas sombras da história: o da traição, pelos soviéticos, ao Pacto de Teerã,
firmado publicamente em 1942 e com ampla repercussão mundial, entre Stalin, Roosevelt e
Churchil. Se o leitor nunca ouviu falar desse episódio importantíssimo da história política
universal, ou se dele sabe apenas que foi o que deu a aliança entre Rússia, EUA, Inglaterra,
países aliados e resistências de países invadidos pela Alemanha, é porque a memória mais
importante e fundamental daquele Pacto nunca interessou a nenhum dos dois lados do pósguerra (guerra fria) - os comunistas soviéticos e os capitalistas do eixo Londres-Washington
- e menos ainda interessaria ao capitalismo neoliberal, que hoje se pretende global, e às
pseudo esquerdas que fingem combatê-lo.
No Brasil, foi o escritor e filósofo Oswald de Andrade quem melhor identificou e discutiu a
questão, e foi talvez o único intelectual brasileiro a enfrentá-la ao combater o equívoco das
esquerdas em polêmicas colunas de jornais. Foi essa traição a razão de seu desligamento do
PCB, em 1945, ao constatar que os principais quadros do partido seguiriam o oportunismo
dos dirigentes comunistas em Moscou. Alguns daqueles textos de Oswald publicados em
edições recentes de sua obra são praticamente as únicas fontes que ora possuímos, já que
não nos é possível o acesso a todos os que com certeza escreveu sobre o assunto. A crédito
de Oswald, pelo que sei, temos que foi ele o primeiro pensador de esquerda que previu a
derrocada "espetacular" da URSS. Num ensaio de 1949, entre outras análises precisas que a
história vem a todas consagrando, Oswald sentenciou que ela "errou na sua trilha
revolucionária e pagará espetacularmente os seus desvios." E mais:
"(...) a URSS, levada pela mística da ação, perdeu o impulso dialético de seu movimento,
enquistando-o numa dogmática obreirista que lembra, em síntese, a Reforma e a ContraReforma."11
Em resumo, o que Oswald e os melhores pensadores e analistas políticos coevos
enxergaram no Pacto de Teerã foi a janela histórica em que se daria a almejada vitória
socialista, em escala universal, sobre o obsoleto capitalismo liberal, no momento em que
seus dois maiores representantes, Roosevelt e Churchil, baixavam a guarda e reconheciam
como inevitável a vitória da Rússia soviética sobre a Alemanha nazista. O pragmatismo dos
dois chefes capitalistas recomendava o pacto com Stalin, uma vez que o alto investimento
que fizerem no nazismo alemão de Hitler para eliminar do mapa a ameaça comunista via-se
fadado ao fracasso. Eis porque era melhor negociar uma aliança com Stalin enquanto havia
tempo e condições de fazê-la. Propiciava-se, pois, em Teerã, o momento de síntese da
equação social que levaria o mundo ao almejado socialismo, visto assim por Oswald:
"Com essa aliança, podia inaugurar-se a síntese marxista. Era preciso, porém, que fosse
dada aos fatos a seguinte interpretação política: a tese capitalismo e a antítese comunismo
estariam presentes na síntese. E era preciso, sobretudo, que os políticos dirigentes das três
grandes potências seguissem à risca essa interpretação capaz de liquidar a luta de classes."12
Em Teerã, os capitalistas aceitavam a nova realidade na qual as nações aderentes ao Pacto por cuja aliança a derrota nazista seria apenas questão de tempo - se governariam em
11
Andrade, Oswald de; A Crise da Filosofia Messiânica - São Paulo; 1949, in Do Pau Brasil à Antropofagia
e às Utopias; Rio de Janeiro : Civilização Brasileira; 1978, pag. 128.
12
Andrade, Oswald de; Os Caminhos de Teerã : Rio de Janeiro : Correio da Manhã : 26/3/1946, in
Telefonema : São Paulo: Globo; 1996, pag. 147.
109
regimes socialistas democráticos, com Estados fortalecidos e voltados para o desarmamento
e a paz mundial, tão logo se desse o fim do conflito. Na mesma ocasião, os comunistas
reconheceriam o encerramento das finalidades da III Internacional Comunista (de 1917,
com a implantação da Ditadura do Proletariado pela Revolução Russa) e, conforme previsto
por Marx, Engels, Lenin e a própria III Internacional, dissolveriam os Partidos Comunistas
a ela vinculados em todo o mundo, dando como cumpridas as suas missões históricas. Seus
quadros se integrariam então a Partidos da nova ordem socialista e democrática. No plano
internacional, a transição seria regida pelas lideranças comunistas, representadas por Stalin,
e pelas lideranças burguesas progressistas, representadas por Roosevelt e Churchil. Nos
planos nacionais, ela se daria pelo diálogo entre os dirigentes dos PCs e representantes da
burguesia progressista de cada país.
Entre os mais importantes articuladores do Pacto de Teerã estava Earl Browder, durante
quinze anos secretário-geral do Partido Comunista dos EUA, na época um partido forte e
com grande simpatia popular pela adesão a seus propósitos libertários e anti nazistas, de
forças sindicais expressivas e de vários artistas e intelectuais então célebres por suas obras
cinematográficas produzidas em Hollywood. Browder, além de articulador, foi o autor do
principal texto de doutrina da transição discutida e pactuada em Teerã, publicada no seu
livro Teerã. No Brasil, Oswald foi escalado como quadro de contato entre o PCB e
representantes da burguesia progressista nacional, da qual fora membro célebre e com a
qual tivera convivência muito próxima antes de se engajar na luta comunista.
"Browder adquiriu uma posição ideológica de primeira grandeza com o seu livro Teerã, em
que anunciava o "fato novo" do acordo entre o país socialista e as democracias
progressistas e do qual havia de derivar a consequência lógica de serem dissolvidos os
Partidos Comunistas ligados à III Internacional. Ele mesmo dissolveu o Partido Comunista
Americano."13
As gestões de transição começaram em diversos países aliados logo após a reunião de
Teerã, mas fazia-se notar a inoperância de Moscou em viabilizá-las. Ao fim da guerra,
ficou patente que o Pacto fora traído quando Browder foi expulso do PC dos EUA
justamente por ter extinguido o Partido, conforme pactuado. O próprio Stalin, que se
declarava entusiasta do acordo, teve de ceder às pressões de seus altos burocratas, a maioria
temerosos de perder privilégios e enfrentar eleições democráticas em que se veriam
derrotados, pois o povo não se esqueceria de seus desmandos. Do lado capitalista, a notícia
não poderia ser melhor para os inimigos do Pacto, que não eram poucos nem fracos, mas
até então se viam contidos pela força política de Roosevelt e Churchil e pelo poder recém
ampliado da URSS de Stalin. Com a morte de Roosevelt, ainda em 1945, a menos de um
mês do fim da Guerra, a ultra-direita assumiu definitivamente o poder nos EUA e o Pacto
foi para o espaço.
"Como as democracias ganharam a guerra, poderia ter vencido a paz."14
Assim, a História deu uma guinada de 180º, e a janela que se abriria para a perspectiva de
um mundo em desarmamento, paz e prosperidade socialista e democrática no pós-guerra se
fechou e encarcerou o mundo na guerra fria, na corrida armamentista, nos muros divisores
de Estados e ideologias, nas caças às bruxas, nas perseguições desenfreadas, nos neo
13
Andrade, Oswald de; A expulsão de Browder : Rio de Janeiro : Correio da Manhã : 19/2/1946, in
Telefonema : São Paulo: Globo; 1996, pag. 137.
14
Andrade, Oswald de; Monólogo sobre Prestes, Tito e Browder : Rio de Janeiro : Correio da Manhã :
3/7/1948, in Telefonema : São Paulo: Globo; 1996, pag. 275.
110
colonialismos, nos golpes de Estado e nos genocídios. E até hoje o planeta e os povos do
mundo pagam caro a traição dos comunistas ao Pacto de Teerã.
"Para guia (direção ideológica dos PCs), só existe a posição internacionalista de Trotski,
que é evidentemente a seguida por Prestes e pelos poucos adeptos sinceros que lhe vão
restar, no Brasil. Sendo esta a da "revolução permanente" que nega Marx, ela só pode
conduzir à guerra atômica."15
A burocracia stalinista (e seus proselitismos ortodoxos e dogmáticos) dominou a prática dos
PCs a tal ponto que estes rumaram na direção oposta aos princípios que os regiam e
chegaram à traição ou ao olvidamento do próprio símbolo que suas bandeiras ostentavam.
Por falta de uso, a foice e o martelo acabaram se enferrujando.
Em verdade, tais ortodoxias e dogmas nada mais são que clichês vazios e desgastados,
utilizados apenas para mascarar o oportunismo configurado na defesa de interesses pessoais
e particulares dos que ocupam espaços de poder e privilégios num statu quo qualquer, dito
revolucionário.
Afinal, de que valeu à URSS e aos PCs a traição ao Pacto de Teerã? Hoje, o que são eles?
A toda-poderosa e gigantesca URSS do pós-guerra nada mais é do que um escombro
histórico que pode ser visitado por turistas numa rua de Berlim. A maioria dos PCs
tornaram-se siglas indigentes e sem votos em países do Terceiro Mundo ou uns poucos
museus no Primeiro Mundo freqüentados por certos anciãos históricos, alguns dos quais
importantes intelectuais, e cerrarão as portas no dia em que o último deles falecer.
Mas essa história entra neste ensaio não só para ilustrar o perigo que as ortodoxias e os
dogmas "de esquerda" representam ao processo libertário dos povos do mundo. Ela
introduz aqui o pensamento de Oswald de Andrade, o qual, entre os que conhecemos e
reconhecemos como fundamentais à nossa luta libertária, é sem dúvida aquele que mais
bem alicerça a questão latino-americana e o que melhor explica o momento em que nela
estamos vivendo, com o advento da Revolução Bolivariana de Hugo Chávez.
"Tupy or not tupy: that's the question"16
É uma pena que Oswald de Andrade (1890-1954) e sua obra não tenham sido ainda
compreendidos na devida importância e magnitude. Augusto de Campos sugere que se
Oswald tivesse nascido em país de Primeiro Mundo, ele estaria hoje posicionado e aceito
entre os maiores pensadores do século 20. Pensamos que, infelizmente, para reconhecer a
obra de Oswald de Andrade, o Brasil e a América Latina vão perder um tempo semelhante
ao que a Inglaterra e os países de língua inglesa perderam com a obra de Shakespeare: cerca
de duzentos anos depois de falecido o autor. Sim, leitor, estamos comparando o valor da
obra de Oswald para a América Latina e para o mundo com a de Shakespeare para os países
de cultura inglesa e para o mundo. Só não podemos agora dizer por que acreditamos nisso;
Oswald e sua obra são assunto de outro trabalho a que nos dedicamos, muito mais extenso,
e a presença de ambos aqui se deve à última fase de sua vida/obra, quando o autor
mergulhou com quase exclusividade e em profundidade no pensamento político e
15
Andrade, Oswald de; Os Caminhos de Teerã : Rio de Janeiro : Correio da Manhã : 26/3/1946, in
Telefonema : São Paulo: Globo; 1996, pag. 147.
16
Do Manifesto Antropófago, in Revista de Antropofagia nº 1, São Paulo, maio/1928.
111
filosófico, em perspectiva mundial, sul-americana e brasileira. E o fez em coerência com
toda a sua obra de poeta, romancista, dramaturgo, orador, ensaísta e jornalista.
Desde o começo de sua obra, Oswald ocupou-se das questões culturais e filosóficas ligadas
ao índio americano, em particular o amazônico (era filho de uma paraense) e à
miscigenação de raças em nosso continente ("o índio é que era são; o índio é que é o nosso
modelo"17). Como latino-americano, ele foi, na juventude, simultâneo e irmão, em sintonia
de pensamento, em força literária e rebeldia revolucionária, a José Carlos Mariátequi ("el
socialismo indo-americano"18). Na cultura universal,tal sintonia se deu com Maiakowsk.
Mesmo quando, em 1930, Oswald vestiu "a casaca de ferro da revolução proletária", ao
ingressar no Partido Comunista Brasileiro (PCB), numa militância que se estendeu, como já
dissemos, até 1945, sua obra não perdeu a natureza e nem a força "antropofágica" de
criação, e jamais caiu no engodo cartilhesco e nos proselitismos comuns aos escritores da
época, fato que inclusive o estigmatizou entre os quadros do Partido. Convenhamos: para
quem havia escrito que "a alegria é a prova dos nove" e que fora, sobretudo, do primeiro ao
último dia de sua existência artística e literária, um criador independente, não deve ter sido
nada fácil. Mas, para um intelectual como Oswald, a militância comunista fora a única
saída possível num momento histórico em que o mundo se havia dividido em só duas
opções ideológicas: "a de Capone e a de Lenin". Ao fim dessa penitência, ele pode dedicarse, sem patrulhamentos, aos estudos e escritos filosóficos da última fase de sua obra, cujos
legados Rogério Sganzerla considerava "maravilhosamente bem escritos".19
Tudo isto torna-o, senão o único, uma raridade na extração do pensamento filosófico do
século passado. Em seus estudos filosóficos, Oswald amplifica a dialética marxista e
identifica na pré-história da Humanidade o matriarcado como sistema de direito do homem
natural ou primitivo, que reconhecia o filho de direito materno e em que não havia o
conceito de propriedade da terra, nem dos bens comunitários, nem de classes sociais, sendo
portanto idealmente comunista ("já tínhamos o comunismo; a idade de ouro"20).
"E tudo se prende à existência de dois hemisférios culturais que dividiram a história em
Matriarcado e Patriarcado. Aquele é o mundo do homem primitivo. Este o do civilizado.
Aquele produziu uma cultura antropofágica, este uma cultura messiânica. (...) No mundo do
homem primitivo que foi o Matriarcado, a sociedade não se dividia ainda em classes. O
Matriarcado assentava sobre uma tríplice base: o filho de direito materno, a propriedade
comum do solo, o Estado sem classes, ou seja, a ausência de Estado. Quando se instaurou o
Estado de classes, como consequência da revolução patriarcal, uma classe se apoderara do
poder e dirigia as outras. Passava então a ser legal o direito que defendia os interesses dessa
classe, criando-se uma oposição entre esse Direito, o Direito Positivo, e o Direito Natural.
Sendo aquele um direito legislado, exigia obediência. Estabeleceu-se então a organização
coercitiva que é o Estado, personificação do legal."21
Em seus textos filosóficos, que são muitos (e aqui nos detemos apenas em alguns trechos),
Oswald observa que o matriarcado fora extinto primeiro nas latitudes mais frias do globo e,
posteriormente, dizimado em todo ele, exceto na América Latina, onde o longo isolamento,
a densidade e a enormidade das florestas, e os relevos íngremes e complexos dos Andes,
17
Ibid, ibdem.
Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana; in Revista Labor, Lima, 1928; ed. consultada: Casa
de las Americas, Havana; 1963.
19
Drumond, Mario (org.); Alô Alô Rogério Sganzerla - Belo Horizonte : MDEditor; 2005, pag. 170.
20
Do Manifesto Antropófago, in Revista de Antropofagia nº 1, São Paulo, maio/1928.
21
Andrade, Oswald de; A Crise da Filosofia Messiânica - São Paulo; 1949, in Do Pau Brasil à Antropofagia
e às Utopias; Rio de Janeiro : Civilização Brasileira; 1978, pags. 78 e 80.
18
112
impediram o extermínio, eis que, seria justamente aqui onde remanescia em escala
substancial e possível de ser observado, ainda que decadente por circunstâncias diversas e
já históricas. Oswald vê na carta Mundus Novus, de Vespúcio, o documento que registra, do
ponto de vista humanista, o primeiro contato do patriarcado messiânico com o matriarcado
antropofágico, ambos em suas plenitudes. Em suma, a dialética de Oswald demonstra com
irrefutáveis argumentos e sustentada em ampla documentação histórica e erudita que, tendo
por tese o matriarcado (natural e comunista) e por antítese o patriarcado (civilizado e
capitalista), o mundo tende a ingressar numa era em que se produz a síntese dos dois
sistemas num terceiro e novo sistema, que ele chamou de "Novo Matriarcado", ou
"Matriarcado Social", onde viverá o filho de direito social na nação (socialista) que
responderá como "mãe" do "homem natural tecnizado". Indo mais longe, Oswald prevê o
retorno à ausência de Estado e leva a sua extrapolação até o fim dos tempos:
"No mundo supertecnizado que se anuncia, quando caírem as barreiras finais do
Patriarcado, o homem poderá cevar a sua preguiça inata, mãe da fantasia, da invenção e do
amor. E restituir a si mesmo, no fim do seu longo estado de negatividade, na síntese, enfim,
da técnica que é civilização e da vida natural que é cultura, o seu institnto lúdico. Sobre o
Faber, o Viator e o Sapiens, prevalecerá então o Homo Ludens. À espera serena da
devoração do planeta pelo imperativo do seu destino cósmico."22
Para este ensaio, é importante relevar que no pensamento de Oswald essa revolução deverá
se dar primeiramente num contexto sul-americano, única plataforma continental onde estão
ainda presentes os elementos que nos conduzirão à síntese dialética entre o matriarcado e o
patriarcado, o que, de certa forma, explica também a frustração do Pacto de Teerã. Eis por
que ele nos fala do "homem do Equador" ou "o antropófago", em que sintetiza a figura do
homem do povo, mestiço, criollo, moreno, chollo e miscigenado da América Latina, filhos
legítimos do matriarcado natural vivendo a contradição do patriarcado capitalista e
realizando a síntese revolucionária que levará a humanidade a um novo e definitivo estágio
no qual, através do uso benéfico e social da tecnologia, será capaz de desenvolver-se numa
sociedade socialista justa, equânime e provedora integral de suas necessidades.
Por suas características, algumas já mencionadas neste estudo, a Revolução Boliviariana
encontra amparo sólido nos argumentos antropológicos e filosóficos bem fundamentados de
Oswald e ocorre no momento histórico e na localização geográfica por ele previstos como
propiciadoras de seu sucesso. Além disso, Chávez a concebe ideologicamente e a conduz
em acordo com as especulações do filósofo mesmo sem conhecê-lo, no que, aliás, se coloca
a par de vários pensadores e ideólogos contemporâneos, como veremos mais à frente.
Para nós, o filósofo é ao mesmo tempo um pensador e um artista de raro talento que se
posiciona como agudo observador do presente tendo por base um profundo conhecimento
do passado. Por isso ele é capaz de realizar projeções certeiras para o futuro e assim
contribuir para que nos prepararemos para ele.
O novo mundo
Mundus Novus foi o título dado por Américo Vespúcio à carta que escreveu ao seu patrão
banqueiro, na Itália, em 1501, relatando a viagem que, a serviço da coroa portuguesa, tinha
por missão contornar a Ilha de Santa Cruz, recém descoberta por Cabral, e mapeá-la.23
22
23
ibid, ibidem, pag. 83.
Em viagem anterior, pela coroa espanhola, Vespúcio tentara contornar a "ilha" a noroste, tendo costeado o
113
Nessa carta, Vespúcio, que Oswald de Andrade reputa como o primeiro escritor humanista,
noticia o encontro não de uma ilha, mas de um continente muito vasto, pois a tentativa de
contorná-lo (a partir de onde hoje é o Rio Grande do Norte, no Brasil) se tornou impossível
e levara a nau até "os frios polares do sul" (Patagônia, na Argentina). Esse documento
acabou sendo impresso em letra de forma e tornou-se, em 1503, o primeiro best-seller da
história da imprensa, em vários idiomas, tal foi o interesse que despertou nas populações de
todos os países cultos da época, até por ter sido de fato o primeiro relato bem escrito sobre
as novas descobertas e a respeito do "novo mundo". Os relatos anteriores eram registros de
navegação, em geral mal escritos, ou formalidades, cheias de menções religiosas, comuns a
atos oficiais de coroas imperiais daquele período histórico, como a "Carta de Caminha".
Seguir-se-iam novas cartas de Vespúcio que sacudiriam a Europa. Por tal repercussão, os
cartógrafos de então decidiram batizar o "novo continente" de "América", em homenagem a
seu "célebre descobridor", e, em 1507, o desenharam no mapa-mundi com este nome, logo
ao sul do Equador, na forma ainda tosca que o assemelhava a uma nova e enorme Austrália.
Nestes mapas, as terras que Colombo visitara regularmente, entre 1492 e 1500, levando
cartas da Rainha de Espanha ao Kublai-Khan, eram as "Índias Ocidentais" e, se estivessem
certos, Miami não seria hoje muito longe de Xangai. Pelas informações de Colombo, Cuba
era uma ilha próxima ao Havai, e havia um mar inexistente onde está a América Central.
Colombo morreu sem saber que havia descoberto a América; acreditava piamente que
encontrara o caminho das costas da China e um conjunto de ilhas, então chamadas de
"Índias Ocidentais". E por muito tempo aquelas terras das Américas Central e do Norte
foram assim denominadas, e seus habitantes eram os "índios". Quanto à América do Sul,
ainda simplesmente "América", seus habitantes eram os "americanos".
Somos, pois, a primeira América e os primeiros americanos.24
Só em 1538, Mercartor, de posse de novos e incontestáveis dados, desenhou a primeira
carta-múndi com a forma completa do novo continente perto da que conhecemos e, por não
haver nele qualquer separação por mar e estar comprovado o equívoco de Colombo, decidiu
por estender a designação "América" até as terras do Norte, assim batizando-as todas com
este nome, cujas letras são compostas em sua carta, separadamente, do norte do Canadá (na
época, "Terras de Labrador") até o extremo Cone-Sul ("Tierras del Fuego").
Mas, como disse bem Oswald: "(...) se foi Machiavel quem degolou a Medusa das idéias
políticas que reumatizavam o Medievo, foi Vespúcio quem ofereceu à tarda Europa
ptolomaica, um panorama diferente da espécie humana. Ele descobriu e anunciou o homem
natural. A sua importância talvez tenha decorrido mais disso do que qualquer outra façanha.
(...) O êxito das cartas de Vespúcio não foi unicamente um êxito de divulgação. Foram
essas pequenas imagens do mundo novo que desencadearam um movimento intelectual de
primeira ordem."25 Tal movimento, Oswald denominou "Ciclo das Utopias":
"Pode-se chamar de Ciclo das Utopias esse que se inicia nos primeiros anos do século XVI,
com a divulgação das cartas de Vespúcio, e se encerra com o Manifesto Comunista de Karl
continente a partir de onde hoje está o Ceará e indo até a Venezuela, retornando à Europa pelo Caribe.
24
É preciso ficar a atento a certos "estudos" patrocinados por interesses imperialistas que pretendem mudar a
história desqualificando Vespúcio. Nisto são reincidentes e já foram desmoralizados em diversas ocasiões.
25
Andrade Oswald de; O Achado de Vespúcio; São Paulo : O Estado de São Paulo; 1953; in Do Pau Brasil à
Antropofagia e às Utopias; Rio de Janeiro : Civilização Brasileira; 1978, pags. 210 e 213.
114
Marx e Friedrich Engels, em 1848, documento esse que liquida o chamado Socialismo
Utópico, aberto com a obra de Morus e que, superado, chega, no entanto, até o século XIX,
quando o francês Cabet publica a sua Viagem à Icária, último país onde o puro sonho
igualizante encontrou guarida e afago. (...) Com o Manifesto de Marx e Engels anuncia-se o
novo ciclo - o do chamado Socialismo Científico."26
No intervalo histórico mencionado, podemos relacionar como conseqüências mais
importantes da descoberta do "novo mundo" (América do Sul) e do homem natural de
cultura tropical a Renascença, o Humanismo, as obras transformadoras de Montaigne,
Rosseau e abade Raynal, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Da Revolução Francesa e
as guerras napoleônicas surge o Manifesto de Marx e Engels, e o Socialismo Científico.
Nas fronteiras entre os dois ciclos, estão Hegel e Dilthey, no campo do pensamento
filosófico europeu, e Bolívar, no do pensamento político americano. E somando-se a
Bolívar não seria ilícito relacionar, na América do Sul, muitos de seus libertadores, de
Tiradentes a José Marti.
Se dermos um salto até nossos dias, vamos verificar que a cultura tropical se estende a
todos os países de língua latina, conformando-se no que chamamos América Latina, que se
extende do Cone-Sul ao México e às ilhas do Caribe. Isto é o que caracteriza, sob todos os
aspectos - históricos, geográficos, culturais e linguísticos - o que ainda se pode chamar de
"América" como expressão tipificadora de uma realidade continental e de fato "nova" no
globo terrestre, isto é, "nova" também no sentido oswaldiano, antropofágico - o homem do
Equador, tropical, miscigenado e realizador da síntese entre os dois grandes hemisférios da
história; o matriarcado comunista e o patriarcado capitalista.
Os EUA e o Canadá só podem se considerar americanos pela localização geográfica de seus
países, que recebeu a designação de América, mesmo assim pela falta de imaginação de um
cartógrafo. Por sinal, foram justamente os EUA e o Canadá os únicos países que destruíram
em si tudo o que havia de americano neles antes da colonização, pois o que disso restou é
uma "remanescência" tão exígua que por pouco não chega ao estado de reminiscência.
Quanto à América Latina, tornou-se a campeã da preservação de riquezas naturais,
culturais, pré-históricas e civilizadoras, ainda que sistematicamente saqueada e explorada
por todos os meios, desde 1492, pela ganância de uma colonização cristã-capitalista
essencialmente predadora. É, sem dúvida, na América Latina que ainda se mantêm as
grandes reservas da natureza que são capazes de dar equilíbrio econômico e sustentação
física à Humanidade nos próximos séculos, se esta encontrar-se, enfim (e o mais breve
possível), com a síntese de sua perspectiva histórica: o socialismo democrático e pacífico e
a complementariedade pluripolar proposta por Chávez em seu Pacto do Novo Mundo.
Tal síntese, ou transição, ou mutação, ou seja lá o nome que queiram dar ao fenômeno (nós
ainda prefirimos o termo da dialética usado por Oswald), que já ocorre bem claramente
diante de nós em todo o planeta, tem ocupado pensadores dos diversos quadrantes. Entre
eles, destaca-se o físico-filósofo Fritjof Capra, que em seu livro O Ponto de Mutação (1982)
desenvolve raciocínios e alcança conclusões de espantosa semelhança aos de Oswald,
inclusive quanto aos hemisférios matriarcado-patriarcado. Em uma entrevista que fizemos
26
Andrade Oswald de; A Marcha das Utopias; São Paulo : O Estado de São Paulo; 1953; in Do Pau Brasil à
Antropofagia e às Utopias; Rio de Janeiro : Civilização Brasileira; 1978, pag. 147.
115
com Capra, ele confessou que nunca ouvira falar de Oswald de Andrade - e a pergunta
fizemos por fazer, pois a resposta era óbvia; Oswald mal é conhecido no Brasil!27
Dela ocupam-se também, no mesmo nível de competência, os cientistas do Instituto do Sol,
entre eles José Bautista Vidal e Marcello Guimarães, ambos com foco nas questões da
energia; Adriano Benayon, nas questões econômicas; e Gilberto Felisberto Vasconcellos,
com sólida base oswaldiana, nas questões políticas, sociais e filosóficas.
Segundo Bautista Vidal e Marcello Guimarães, a sustentação do sistema capitalista desde a
revolução industrial, há cerca de 200 anos, tem um dos principais pilares no duo petróleocarvão mineral como matrizes energéticas. Isto porque o espaço geofísico do poço-mina se
reduz a um ponto facilmente dominável, possível de ser protegido a baixo custo e capaz de
realizar grande produção com o concurso de poucos operários e engenheiros. Ou seja, é
tudo que o capitalismo precisa para o atual modelo concentrador de poder e riqueza. Para os
dois cientistas, a saída da era do petróleo haverá de ser pelas matrizes energéticas de fontes
renováveis, em particular, as da biomassa dos trópicos, que só se viabilizam na América do
Sul. Os países tropicais de outros continentes, apesar de receberem insolação igual, não
possuem áreas cultiváveis suficientes. Além disso, como diz Marcello, a biomassa é
"espalhada", isto é, gera grandes produções a partir de muitas pequenas áreas cultivadas por
enormes contingentes de trabalhadores. Ela é, portanto, anti capitalista e é socialista, por
excelência. A revolução venezuelana parece adotar in totum este mesmo pensamento ao
utilizar as receitas do petróleo no projeto socialista da Revolução, inclusive pela pesquisa e
viabilização de novas fontes de energia a partir da biomassa tropical.
Por sua vez, as posturas de regência da economia e das políticas comerciais e industriais da
Venezuela me parecem como se estivessem sendo coordenadas por Adriano Benayon. Em
seu livro Globalização versus Desenvolvimento, Adriano defende diversas teses que são
adotadas na administração chavista, entre elas, o desinteresse por capitais estrangeiros na
política de desenvolvimento nacional, a qual deve ser conduzida, de preferência, com 100%
de capitais nacionais.28
Já o sociológo Gilberto Vasconcellos, em vários de seus livros, levanta a bandeira
trabalhista do "vargojangobrizolismo" cujo projeto político de poder não deixa de ser uma
versão sulista-brasileira das "missões" dos governos revolucionários da Venezuela. Ligado
na Revolução Bolivariana, em alguns seus textos Gilberto disserta historicamente, até Hugo
Chávez, a partir de um artigo "estupendo" de Darcy Ribeiro, escrito em 1973, a respeito de
questões históricas, econômicas e políticas da Venezuela: Venutopias.
Todo esse conhecimento já se encontra à disposição da Revolução Bolivariana. Há poucos
dias, Bautista Vidal dava entrevista na TeleSur. Livros dele e de seus colegas do Instituto
do Sol estão sendo vertidos para o espanhol e editados na Venezuela. É evidente que a
Venezuela dispõe de mestres e cabeças independentes, de igual valor, em plena ação na
Revolução Bolivariana. Pela TeleSur pudemos conhecer alguns, como o engenheiro
agrônomo Roosevelt Franquiz, do Instituto de Terras da Venezuela, que me pareceu irmão
em pensamento de Marcello Guimarães, e ora aprofundamos pesquisas na direção desses
venezuelanos, os históricos e os que atuam na vanguarda do processo revolucionário que
27
Drumond, Mario. O brasileiro Fritjof (entrevista com Fritjof Capra); in Caros Amigos, ano VIII nº 93; São
Paulo : Casa Amarela; dez/2004; pags. 26-28.
28
Benayon, Adriano. Globalização versus Desenvolvimento; São Paulo : Escrituras; 2005.
116
mais tem chances de vitória em nosso continente e é, em nossos dias, o que se situa na
posição ponta de lança da síntese revolucionária prevista por Oswald.
No panorama mundial, destaca-se o acelerado crescimento do papel da mulher na
sociedade, sublinhados os últimos trinta anos, como indício semiológico forte de que o
"novo matriarcado" vem aí. A Constituição da República Bolivariana da Venezuela já
distingue e iguala em importância (e é a primeira a fazê-lo) os termos masculinos e
femininos designativos de cargos de poder, até hoje escritos só no masculino, tanto nas
Constituições como nas leis, decretos e outros textos legais de todos os Estados constituídos
no mundo. Assim, na Venezuela a nova e atual constituição prevê "o presidente ou a
presidenta", "o governador ou a governadora", "o deputado ou a deputada", etc.29
Quanto a questões de energia e tecnologia do modelo capitalista centralizador, as superestruturas do poder hegemônico mundial revelam-se próximas do pânico por causa do
"peak oil", ponto de uma curva desenhada em 1956 pelo geólogo norte-americano King
Hubbert, em que a demanda mundial de petróleo superaria enfim a oferta possível. Sendo o
petróleo uma fonte de energia não renovável, este pico ocorreria logicamente algum dia.
Porém, Hubbert o previu para um período entre os anos de 2008 e 2012, e as previsões
contidas naquela curva para os anos 1970/80/90 se confirmaram!
Enfim, não há outra saída para a Humanidade a não ser a de caminhar o mais rapidamente
possível em direção ao socialismo democrático, justo e pacífico, e o que chamaríamos hoje
de caminho revolucionário é exatamente o que Chávez, com surpreendente sabedoria, está
percorrendo na Venezuela, inclusive como modelo de exportação a outros países. A sua
proposta de um Pacto mundial a partir da idéia de um "novo mundo", tendo por modelo a
América Latina (Mundus Novus), é, sem dúvida, de uma encantadora genialidade sob todos
os aspectos; o primeiro deles seria sua promissora e oportuna viabilidade. E a principal
estratégia de Chávez para conquistar os objetivos revolucionários bolivarianos, inclusive o
"Pacto del Nuevo Mundo", está, por mais uma coincidência notável, na essência das teses
filosóficas de Oswald de Andrade. Tal estratégia tem por ponto de partida
"A FALA DO HOMEM DO EQUADOR"30
O voto, a voz e a vez do homem do Equador
Uma das maiores virtudes da Revolução Bolivariana de Chávez é justamente a ausência de
ortodoxias e dogmas "científicos", ideológicos, místicos ou de qualquer outra natureza, em
suas bases e fundamentos. Ela vale-se dos referenciais históricos bolivarianos de forma
didática e sensata como exemplos de conduta, de ideais libertários, de espírito de luta, mas
não como verdades absolutas ou dogmas de fé.
"Não devemos ter pensamento único, mas pensamento crítico", disse Chávez ao lançar o
"Prêmio Libertador do Pensamento Crítico", que o governo venezuelano passou a conceder
ainda este ano, em nível mundial, ao escritor que se destacar na análise crítica da realidade
contemporânea. Segundo ele, o "Prêmio Libertador" se posiciona como uma alternativa ao
Prêmio Nobel, ou, como ele mesmo disse, "um Prêmio Nobel alternativo".
29
É claro que devemos defender essa dualidade como necessária apenas aos textos legais e jurídicos, que
precisam ser nítidos, inconfundíveis, e não podem dispensar a repetição nem o óbvio para se fazerem assim.
30
Andrade, Oswald. Informe sobre o modernismo. Texto escrito para conferência, datado de 15/10/1945. in
Estética e Política; São Paulo : Globo; 1991, pag. 105.
117
É, pois, a libertação dos povos latino-americanos o que busca a Revolução Bolivariana.
Porém, seus líderes sabem que só eles, os povos, é que poderão conquistá-la por si mesmos.
E as chances de vitória serão sempre muito maiores a partir de movimentos populares
substanciados pelas culturas, tradições e memórias dos povos, sempre libertárias, do que a
reboque de militantes partidários recheados de teorias importadas e mal assimiladas. Cabe
aos governos revolucionários propiciar as condições para que seus povos encontrem, em
suas próprias histórias e culturas, os caminhos e os instrumentos de poder que os libertarão.
Para nós, é essa a grande lição de Chávez aos governantes de países de Terceiro Mundo.
Chávez entende que os verdadeiros revolucionários são os que produzem e contribuem para
a riqueza humana e social de seus povos através do trabalho que realizam com consciência,
honestidade e independência. Para ele, muito mais eficazes que políticos, tecnocratas e
militantes de burocracias partidarias são os trabalhadores, os artistas, os intelectuais, os
artesãos, as lideranças populares de fato obreiras e campesinas - a maioria, intuitivos, sem
diplomas acadêmicos, e alguns até com "falhas" ideológicas notáveis em suas condutas e
discursos, mas cujas obras e práticas fomentam a consciência e a educação dos povos,
inclusive imortalizando os aspectos mais significativos de suas vidas, de suas culturas.
Eis por que esta seria talvez a primeira estratégia revolucionária que se vale da democracia
mais real e verdadeira que seja possível conseguir, como arma principal de conquista - seja
de seus objetivos, de defesa das conquistas feitas ou de obtenção de novas. Fala-se muito de
democracia, mas pouco se a pratica. Querem tanto a democracia? Pois então ei-la, mas,
legítima, verdadeira! O principal feito dessa revolução tem sido justamente o de derrubar a
farsa democrática dos países em que opera e pôr em prática a "democracia participativa",
como Chávez costuma nomeá-la, porque de fato exercida pelo povo. Este, então, faz a sua
parte através do voto (e, mais tarde, na defesa deste mesmo voto). Na seqüência, os
governos revolucionários defendem este voto com todas as suas forças, tendo por
argumento indiscutível a própria legitimidade democrática, e, com o apoio do povo eleitor,
fazem valer as decisões nele implicadas. Assim, vão consolidando-as. E o processo
caminha sempre pela chamada às urnas, seja para manter decisões que se vejam sob ameaça
de retrocesso, ou para o estabelecimento de novas decisões libertárias.
Nesse caminhar, Chávez e a sua revolução já ganharam dez vezes consecutivas, em
diversas eleições, plebiscitos, referendos e consultas populares, e se preparam para ganhar a
próxima - para um novo mandato presidencial de Chávez - encurralando a reação numa
"oposição" anti-popular que se sabe de antemão derrotada. Conseguiram isso, um recorde
mundial, porque o governo Chávez sacou que, para fazer valer o voto e defendê-lo com
eficácia, é preciso que ao povo seja dado não só o voto mas, também, a voz.
Os maiores inimigos da democracia, em particular na América Latina, são os chamados
meios de comunicação de massa, que são, em verdade, tentáculos de um só poder central e
ditatorial que explora e asfixia a vida dos nossos povos: o império anglo-norte-americano.
Suas mensagens, longe de conduzir a voz dos povos e dos interesses nacionais, reproduzem
a orientação imperialista forjada em matrizes midiáticas pré-orquestradas e direcionadas
para a exploração e a colonização de nossos países, nossos povos e nossas riquezas.
No Brasil, esse domínio é total, maciço, e inclui praticamente todos os veículos, jornalistas
e demais profissionais atuantes na chamada "grande imprensa". Como resultante, temos
118
uma realidade vergonhosa: "a pior imprensa do mundo", segundo Mino Carta, um dos
editores mais experientes do país. Um vexame mundial!
O que nos resta é a imprensa independente, que se reduz a heróicos jornalistas atuando em
veículos alternativos, sites na web ou até em colunas (cantos de página) de jornais de
grande circulação, que, à maneira de Oswald outrora, resistem solitários, remando contra a
maré. Trabalham desamparados, desprezados e até perseguidos pelos poderes públicos, eis
por que o alcance deles é mínimo em audiência, e nem faz coceira no poderio midiático.
Mas isto não os torna desprezíveis nem ineficazes. São estes jornalistas e os veículos
alternativos, além de profissionalmente mais competentes e melhores em qualidade de
informação, a nossa reserva de resistência. Em muitos casos logram resultados e conquistas
importantes, como nos exemplos de Pedro Porfírio e Jânio de Freitas, que atuam em
veículos de maior penetração, a revista Caros Amigos, o jornal Brasil De Fato, a rádio web
Alerta Total e outros veículos e sites cuja enumeração aqui seria por demais extensa, mas
ainda em número muito inferior ao que deveria ser.
É outra a realidade na Venezuela: em brilhante estratégia revolucionária, os governos
Chávez combateram a legião "de informação" da mídia imperial pelo fomento e o apoio
financeiro a veículos alternativos, a partir da reserva de resistência que lá também havia, à
semelhança da nossa, sem pedir compromissos com o governo, mas o compromisso de
informar com isenção e independência ideológica. Aliás, nem precisou pedir. Veículos
alternativos sérios só têm sentido a partir de tal independência.
Assim, desde 1999, a Venezuela viveu a ampliação do alcance de audiência e o surgimento
de inúmeras rádios, televisões, revistas e jornais impressos nos mais diversos formatos,
tendências e opiniões, que vão a cada dia conquistando mais espaços de público.
O primeiro grande enfrentamento com o poderio midiático imperial se deu durante a
tentativa de golpe, em abril de 2002, período em que o povo só obteve informação
confiável por parte dos veículos independentes, mas que foram suficientes para mobilizá-lo,
levá-lo às ruas e reverter o golpe.31
Hoje o embate continua, só que numa outra situação. Um dos jornais fomentados pela nova
realidade venezuelana, o Últimas Noticias, inicialmente editado em fundo de quintal,
tornou-se o jornal mais vendido no país e mantém linha independente e desvinculada de
compromissos extra jornalísticos. Outros periódicos impressos também consolidaram
posições em segmentos e níveis diversos da informação.
Em mídia eletrônica, a Revolução Bolivariana já conta com a TeleSur, a RadioSur e muitas
TVs e rádios alternativas e comunitárias que firmaram influência junto a públicos gerais e
específicos, todas, apesar de patrocinadas ou viabilizadas com recursos governamentais e
pela nova legislação bolivariana de imprensa, mantendo independência e desvinculação de
compromissos com o governo.
Chávez não perde a oportunidade de demonstrar essa transparência. Na entrevista coletiva
que mencionamos no início deste ensaio, estavam presentes jornalistas de veículos da
imprensa independente. Aliás, foi a primeira vez que vimos a presença de tais veículos em
31
No Brasil, a mídia neoliberal comemorou a "vitória" como "o fim do populismo na América Latina". Um
conhecido palhaço midiático "de esquerda" jogou bananas para o alto e chamou Chávez de “gorila” diante das
câmeras da TV Globo, a mais populista da América Latina (sim, porque populismo é o que ela e os governos
que apóia fazem).
119
entrevistas coletivas de presidentes de Estado. Na resposta a um deles, Chávez começou
por inverter as posições e fez uma pequena entrevista com o jornalista. Assinalou que o
jornalista atuava num jornal que fazia oposição de esquerda ao seu governo, em muitos
casos radical, mesmo recebendo dele apoio financeiro, e, em seguida, fez várias perguntas
ao jornalista: se ele ou o seu jornal eram admoestados por funcionários do governo ou se
algum militante forte no governo tentara se intrometer ou interferir na redação de matérias e
na linha editorial do jornal. Em todas o jornalista confirmou a absoluta independência dele
e do veículo a que prestava serviços e atestou a ausência de qualquer interferência por parte
do governo, seus funcionários e adeptos. Encerrando a pequena entrevista, Chávez pediu ao
jornalista, estendendo o pedido a todos os jornalistas independentes, que se algo dessa
natureza porventura ocorresse, que fosse denunciado e publicado, e comunicado
diretamente a ele, para que tomasse conhecimento o mais breve possível e desse
providências imediatas.
A revolução de Chávez conta ainda com canais de rádio e TV e jornais do próprio governo,
agora desfrutando de boa audiência e penetração nas massas devido à qualidade de
informação e de programação e aos serviços que prestam à população, além de terem
desenvolvido novas linguagens de comunicação que amenizam a natureza oficialista
intrínseca aos conteúdos de tais veículos.
Tudo isso começa a pesar na balança do poder midiático e a tal ponto fortaleceu a
Revolução que Chávez já fala em não renovar concessões de canais "rádioelétricos", como
ele os chama, ocupados por emissoras que difundem programação flagrantemente anti
nacional. Ele não conseguiu isso em 2002, mesmo com o revés da tentativa de golpe, mas
agora se sente forte o bastante para fazê-lo. Para se ter uma idéia de como isto soa absurdo
em nosso país, o que Chávez está fazendo lá seria como, no Brasil, o governo cancelar a
concessão da Rede Globo e de todas as TVs e rádios da nossa "grande imprensa".
Chávez vale-se também de seu próprio talento de comunicador e do carisma que cultiva em
sua ação política e administrativa vitoriosa, e tornou-se protagonista do programa televisivo
de maior audiência na Venezuela: o Alô Presidente, transmitido ao vivo de qualquer ponto
onde esteja ele, no país ou no mundo, sempre nos fins das tardes de domingo.
No último desses programas, que por acaso assistimos (4/6/2006), ocorreu a interpelação de
um lavrador de café cobrando do governo certas questões ligadas à sua região. O homem,
com cerca de 35 anos, impressionou pela qualidade e a fluência de discurso, o que levou
Chávez a lhe perguntar se havia participado de uma das missões Robinson de seu governo.
E teve como resposta um discurso surpreendente.
Disse o lavrador, vestido com roupa de domingo, que já estava na Missão Robinson 2 (pós
alfabetização, até o sexto grau do ensino fundamental) e que antes era analfabeto. Hoje,
percebia "que era como um um cego, pois não sabia nem as razões da minha pobreza e de
meus familiares". Afirmou que agora "sabia do imperialismo, de como fui escravizado por
ele, e da exploração do meu trabalho por intermediários, que não plantam, não colhem, não
fazem nada, mas tem caminhões, dinheiro e outras facilidades", razão pela qual pagavam
uma mixaria pelo seu café para depois vendê-lo a bom preço a merceeiros que, por sua vez,
vão vender mais caro ainda aos consumidores, todos ganhando em cima de suas "costas
suadas de tanto lavrar a terra". Eis o motivo por interpelar Chávez, pedindo que acabasse
com tal situação e introduzisse em sua região o Mercal (missão do governo que fornece
120
logística a pequenos produtores para que possam vender seus produtos diretamente aos
consumidores pela metade do preço de mercado), que lá ainda não chegara.
Chávez exultou com aquele diálogo imprevisto (e era mesmo, é fácil distinguir a cena
espontânea da ensaiada). Advertiu a todas as autoridades presentes, ministros, deputados,
prefeitos, etc, para que ouvissem bem aquele lavrador porque "a voz dele era a voz da
revolução". Esse episódio é importante pois demonstra que a Revolução Bolivariana não se
contenta só em dar voz ao povo, ela requer qualidade de expressão à sua voz. Esta vem a
ser conquistada pela qualidade do sistema educacional que Chávez deu à Venezuela com as
Missões Robinson, Ribas e Sucre, tal como Brizola pensava em nos dar aqui através dos
Cieps. Mas o que mais nos importa agora é que Chávez está logrando êxito.
E nós, daqui de Minas Gerais, ao começar a ouvir a voz possante da consciência de um
lavrador dos grotões do interior da Venezuela, não podíamos deixar de recordar Oswald de
Andrade e suas anotações filosóficas:
"- Pela primeira vez, o homem do Equador vai falar!"32
32
Andrade, Oswald. Informe sobre o modernismo. Texto escrito para conferência, datado de 15/10/1945. in
Estética e Política; São Paulo : Globo; 1991, pag. 105.
121
122
A TeleSur
(escrito em 16 de maio de 2006)
Estranha sensação... Algumas semanas atrás capturei por acaso, via internet, o sinal da
TeleSur (www.telesurtv.net), uma emissora de televisão venezuelana que tem como meta
integrar a América Latina por meio da linguagem audiovisual e jornalística. A sensação foi
estranha, porque logo nos primeiros minutos era como se eu estivesse vendo televisão pela
primeira vez em minha vida! E desde ali, também pela primeira vez, tornei-me assíduo
espectador de TV, ou melhor, da TeleSur.
Em verdade, desde 1964, quando eu tinha 14 anos de idade, a televisão sempre me pareceu
algo inteiramente inútil e dispensável. Recordo-me agora de uma só vez em que me senti
lucrando por estar diante de um aparelho de TV, que não fosse para assistir a alguma obra
cinematográfica do meu agrado. Foi durante alguns meses, ao final da década de 1970,
quando Glauber Rocha logrou colocar no ar um programa semanal de televisão de fato
televisível e inteligente: o Abertura. Para mim, foi esse o único programa periódico de TV
produzido pela mídia brasileira, desde 1964, que merece ser conservado - pelo menos em
minha memória.
Como aquela experiência foi de poucos meses e restrita a um único programa - e já se vão
quase trinta anos que me aconteceu - com o tempo tornei-me cético e passei a crer que seria
impossível fazer algo útil em audiovisual televisivo, não por questões relativas à linguagem
em si, mas pelo poder que agrega aos interesses oligopólicos e plutocráticos que o
dominam como instrumento de comunicação de massa, aos quais se tornara totalmente
submetido. Deste modo, no que me diz respeito, o aparelho de TV é um artefato útil tão
somente para assistir a obras produzidas para cinema, em sessões caseiras, apesar das
perdas inevitáveis da tela em miniatura e da qualidade sonora.
Porém, com a recente descoberta da TeleSur, aquela estranha sensação inicial provocou-me,
em poucas semanas, uma mudança radical nas minhas concepções de realizador e estudioso
do audiovisual. A TeleSur demonstrou que é possível, sim, fazer algo útil, aliás, muito útil
e, talvez, poderosamente útil, através daquilo que até hoje tem sido, para mim, um perverso
instrumento de alienação, desintegração e desinformação dos povos e das pessoas. E, para
que o leitor não pense que isto possa ser uma recaída no otimismo por parte de um cético,
devo dizer por que acredito na revolução que a TeleSur nos promete.
Linguagem
Por sorte minha, um dos primeiros programas que vi na TeleSur foi um excelente
documentário sobre o cineasta venezuelano Clemente de la Cerda (1935 - 1984), do qual
infelizmente nunca vi um filme e nem tinha ouvido falar - o que já dá uma dimensão da
ignorância em que me vinha mantendo sobre nossos vizinhos latino-americanos. Clemente
tinha uma postura de inquietação intelectual muito semelhante à de Glauber Rocha. Por
sinal, a semelhança entre os dois me pareceu até mesmo física. Mas, como cineasta, pelos
trechos que foram exibidos no documentário, achei-o mais próximo de Rogério Sganzerla.
Como Glauber e Rogério, Clemente morreu cedo, mas deixou-nos um legado de obras
definitivas para a cultura de seu país e para a cinematografia universal. Outra semelhança
dele com os dois cineastas brasileiros seus contemporâneos é que ele escrevia, e escrevia
123
muito bem. A diferença é que Clemente teve uma boa experiência em televisão nas décadas
de 1940-50, antes de se assumir como cineasta de vanguarda nos anos 1960-70. Este dado é
importante, porque possibilitou a ele uma vivência de dentro do processo de produção
televisiva - ainda enquanto ela nascia no território latino-americano - que a sua inteligência
privilegiada soube transformar em análises críticas de espantosa acuidade.
O documentário exibe uma página de um de seus livros, a qual podia ser lida em vídeo pelo
espectador e foi também lida quase toda em áudio (locução em off) - num plano muitíssimo
ousado para televisão; um contundente grifo de mensagem. Nesse fragmento de texto, o
cineasta denuncia a gradativa usurpação, pelo veículo televisivo, dos papéis subjetivos da
narrativa audiovisual e da câmera pela interposição do narrador (ou repórter) e do veículo
(instituição) entre o conteúdo da mensagem e a inteligência do espectador. Não tenho as
palavras exatas de Clemente, não encontrei seus livros em lugar algum, mas, pelo que
entendi, a conclusão de seu texto é a de que, nessa usurpação de linguagem, o veículo
subtrai aos protagonistas a função de transmitir a informação para se apresentar ele próprio,
e ilegitimamente, como o portador da "verdade", a qual manipula a seu critério.
Não é à toa que a direção do documentário editou o inusitado plano-texto numa produção
para a TeleSur. Não será preciso mais de cinco minutos diante dela para perceber que seus
diretores são discípulos das idéias de Clemente, em especial quanto a essa sacada genial do
cineasta. Nessa questão importantíssima, a TeleSur resgata integralmente para a linguagem
televisiva - e com uma qualidade fantástica - justamente os papéis subjetivos da câmera e
da narrativa audiovisual, colocando de volta no (ou em) primeiro plano os protagonistas da
informação - e portanto a verdade integral dela - diretamente em contato com o espectador.
E com uma competência extraordinária em todos os níveis de edição.
Por tal postulação de linguagem, na TeleSur todos os elementos componentes e
construtores do audiovisual estão coordenados sob um rigor de direção e de produção que
eu jamais observara em qualquer outro canal de televisão, e não me refiro apenas aos
brasileiros e latino-americanos. E isto é só o começo.33
33
A TeleSur exibiu novamente o especial sobre o cineasta Clemente de la Cerda, cujo título só agora pude
saber que é Los Olvidados de Clemente, pois tinha visto apenas os seus dois últimos segmentos. Por um
problema de transmissão via internet (pela qual tenho acompanhado a genial TeleSur), daquela primeira vez
que vi o documentário dei como de Clemente de la Cerda um texto que não era dele.
O sinal digital de banda larga no Brasil oscila muito e às vezes trava a imagem ou pula trechos do audiovisual,
em certos casos até de forma imperceptível, eis porque agora percebi que perdera o final do plano-texto que
tanto destaquei no meu artigo, texto este que é assinado por Paolo ... (perdi o sobrenome do autor pois a
imagem pulou, e desta vez o visionamento do documentário foi muito mais prejudicado do que da outra vez,
talvez por causa do horário), o qual passa a ser o credor dos elogios e da admiração que vão expressos em
meu artigo pela qualidade daquela escritura,.
Em verdade, o texto comenta uma obra importante de Clemente (Soy delinquente) mas, em essência, professa
a tese dos papéis subjetivos da câmera e da narrativa nos contextos da linguagem audiovisual, que foram
observados pelo autor no filme comentado e que foram objetos da minha argumentação, a qual, aliás,
mantenho quanto à relação que estabeleci da mesma tese (agora em essência e extra-contextualmente) com a
postulação de linguagem da TeleSur. Como já disse, mantenho igualmente a opinião sobre a qualidade da
escritura, apesar de a autoria não ser do cineasta, pelo que, nem posso dizer se ele escrevia, muito menos se
"escrevia muito bem", como também não posso dizer, a partir disso, que os diretores da TeleSur sejam
"discípulos do cineasta". É provável que sejam, pois Clemente foi sem dúvida um grande mestre do
audiovisual (e não somente do cinema venezuelano) que seus compatriotas vanguardistas que fazem hoje esse
belíssimo trabalho televisivo jamais deixariam de levar em conta. Quanto aos demais comentários sobre o
cineasta e o documentário mantenho-os e até os reforço agora que pude vê-lo (quase) todo.
124
Qualidade de edição
Nenhuma emissora de TV que eu tenha visto, inclusive algumas que se auto-proclamam "a
melhor do mundo", chega aos pés da TeleSur em qualidade de edição audiovisual "24 horas
por dia". A começar pela câmera, cujos posicionamentos e movimentos são dirigidos
cuidadosamente para o melhor enquadramento fotográfico do ponto de vista artístico e, não,
comercial. Prioriza-se a assimetria da composição, as tensões visuais inquietantes, os
plongés, os movimentos perturbadores e provocadores da inteligência do espectador, em
lugar dos convencionais enquadramentos centralizados, dos planos médios banais e dos
movimentos óbvios e hipnóticos que se tornaram quase obrigatórios às câmeras de TVs do
mundo inteiro. No estúdio, nota-se a preocupação da TeleSur com a qualidade cenográfica
e de iluminação, sempre discretas, de bom gosto e artisticamente bem compostas, em
oposição aos exageros cenográfico-luminosos que extertoram em extremos de delírios
bregas as TVs conhecidas. O mesmo se pode dizer em relação à escolha dos profissionais
em cena e aos cuidados de vestuário, maquiagem e cabelos. Ainda no visual, há a se
destacar a qualidade gráfica e tipográfica das titulagens, legendas e gráficos da TeleSur,
sempre claros, bem compostos, legíveis e respeitando as boas regras de proporção e
composição gráfica na relação imagem-textos do quadro exibido, e no uso de cores nobres
e bem combinadas. Tudo isto vem associado a um excelente trabalho de computação
gráfica, animações e efeitos visuais utilizados com parcimônia, adequação e elaboração
criativa, em muitos casos, primorosa. A direção de arte da TeleSur sabe muito bem o que
fazer e como fazer. Consegue uma sofisticação e um requinte de imagem, a par de um
invulgar despojamento e limpeza de acabamento que resultam numa qualidade de
apresentação visual de alto nível profissional e alcança o patamar das mais bem cuidadas
realizações cinematográficas.
Iguais cuidados são tidos com o áudio. A trilha sonora da TeleSur é brilhante em qualidade
e harmonia, das vinhetas aos conteúdos editados. Dispondo dos mais variados recursos
acústicos e eletrônicos, a direção musical da TeleSur vale-se de originais temas melódicos,
populares e eruditos, e do uso criativo e adequado de efeitos sonoros a fim de sustentar e
enriquecer as imagens, sublinhando e enfatizando as locuções e narrações de maneira ao
mesmo tempo suave e marcante. Descartam-se, na TeleSur, os estardalhaços cacofônicos e
autistas verificados na poluição sonora da maioria das grandes redes de televisão. A
locução jornalística dos âncoras, moderadores e repórteres da TeleSur é direta e firme,
quase neutra, mas sem perda da sensibilidade dramática, e completamente desvencilhada
das afetações vulgares e maneirismos imbecilizantes hoje verificados com cada vez mais
irritante frequência no jornalismo televisivo das grandes redes.
Esse domínio das duas pistas da linguagem (áudio e vídeo) não será menor, evidentemente,
na etapa final e mais importante da edição, que é a montagem. Nela, sente-se que a TeleSur
se cuida para não avançar demais em relação às outras mídias televisivas que estragaram o
gosto do público e viciaram o espectador na chatice do discurso linear e na obviedade
sequencial. Ela então se cuida para ser aceita como boa. Só que é boa mesmo! Ainda assim,
De qualquer maneira me sinto no dever de confessar este meu juízo apressado sobre aquela informação e o
erro em transmiti-la equivocadamente em seus créditos e em seu contexto, o que, aliás, reafirma e reforça a
minha já confessa ignorância sobre a produção cultural de país vizinho tão importante quanto a Venezuela.
Deficiência essa que começo a resolver como espectador TeleSur (e não apenas quanto à Venezuela).
Rogo, pois, pela paciência e a clemência dos leitores. (nota incluída em 24/5/2006)
125
a montagem da TeleSur - que prima pela simplicidade e pelo despojamento - é rica em
ritmos e timbres audiovisuais e vai aos poucos introduzindo elementos novos e avançados
de linguagem, como nas seqüências de planos e contraplanos jornalísticos, de entrevistas e
mesas-redondas, montando-os muito mais dialéticos e criativos do que nas outras TVs. Eu
não diria que a TeleSur faz uma montagem vanguardista como resultado final, se
comparada à liberdade de edição cinematográfica, mas que ela pratica uma montagem com
diversidade e movimentação muito acima da média e para além, em ousadia, de qualquer
outra edição televisiva que conheço.
As grandes redes de televisão buscam moldar seus públicos num perfil de espectador
alienado, egoísta, gregário e globalizado. Algumas chegam mesmo a querê-lo estúpido e até
boçal. Em geral, tratam o espectador como um idiota ou um débil mental, e se acham no
direito de se intrometer na vida dele de maneira arrogante e grosseira.
Muito ao contrário, a TeleSur se quer moldada pelo espectador consciente, preocupado com
as questões sociais, independente e, antes de tudo, latino-americano. A TeleSur não só
respeita a inteligência do espectador: ela o trata bem, muito bem, com distinção,
consideração e gentileza.
E que não se pense ser, a TeleSur, elitista. Ela é uma emissora de TV muito popular. Só as
elites ignorantes acreditam que o povão gosta de lixo; quem gosta de lixo são elas, as elites.
Na verdade, a televisão que fazem é para elas mesmas - e a empurram goela abaixo dos
povos do mundo à força de métodos (anestésicos) audiovisuais que vêm sendo
desenvolvidos desde os sórdidos primórdios da propaganda comercial e nazista.
"A massa ainda há de comer o biscoito fino que eu fabrico", dizia o escritor Oswald de
Andrade. A TeleSur é a realização mais ampla e mais concreta que conheço desse
prognóstico oswaldiano.
Conteúdo
Tudo o que acima vem exposto é colocado a serviço de um conteúdo pautado em critérios,
agora sim, da maior vanguarda editorial de comunicação de massa que já se viu, seja em
mídia impressa ou eletrônica. A TeleSur tem por cenário a América Latina toda, do México
e Caribe ao extremo Cone Sul, e tem por protagonista principal o povo latino-americano.
Assim, ela se coloca a serviço de suas nações e não de seus estados e governantes.
Sua grade é desenhada a serviço da auto-estima, do engradecimento e da independência do
seu principal protagonista e do cenário em que vive. Nela tem voz o operário, o camponês,
o indígena, os explorados, as reivindicações e as lutas populares, suas desditas, suas
conquistas. Dela participam os melhores artistas e pensadores de todas as expressões,
eruditas e populares, desde a vanguarda contemporânea aos grandes mestres do passado.
Freqüentam-na, igualmente, as mais expressivas e progressistas lideranças políticas e
populares da atualidade e da História. Nessa grade não há espaço nem tempo para baixarias
de mau jornalismo, nem para o banditismo e a divulgação desnecessária de seus crimes,
nem para os oportunismos popularescos de auditórios, nem para enganações de pseudoentretenimentos de má qualidade e origem duvidosa, nem para perversidades audiovisuais
de qualquer gênero - e muito menos para as porcariadas alienígenas enlatadas. Além disso oh!, glória! -, não há publicidade comercial.
126
Política, cultura, riquezas naturais, tradições, folclore, comida, energia, trabalho, artes,
educação, lazer, esportes e outros temas de interesses nacionais e continentais se distribuem
bem equilibrados naquela grade, suportados por camadas sólidas do melhor, mais bem
preparado e mais bem equipado jornalismo televisivo que conheço.
"Vamos a conocernos" - diz um de seus belos slogans.
Documentos geniais em séries como Caminantes, Nahui - El Rostro del Ecuador,
Memorias del Fuego, Destino Latino-America, Estacion Submarina, se permeiam a
produções de documentários culturais e periodísticos (Cultural Doc e Periodístico Doc) e a
edições especiais jornalísticas como Agenda del Sur - La Revista, Mesa Redonda,
Realidades e Sintesis en Latino-America, além de outros programas que ainda não tive a
oportunidade de conhecer, e compõem, junto aos grandes "Noticieros", uma movimentada
grade televisiva que tem como único defeito o de tornar cada vez mais difícil o ato, para o
meu caso absolutamente necessário, de desligar o aparelho (ou "desconectar" do site).
Pela primeira vez vi, em sinal de TV no Brasil, imagens tomadas em palácios de governo,
casas legislativas, ruas, centros urbanos, regiões rurais, campos, desertos e florestas de
países como Venezuela, Colombia, Bolívia, Equador, Peru, Paraguai, Cuba, México,
Nicarágua, Haiti, para citar apenas os que foram matérias nas semanas passadas. Até então
só chegaram aos meus olhos umas poucas imagens do tipo vindas do Uruguai, Argentina e
Chile, mesmo assim em momentos que se já vão longe e me doem recordar.
Nos noticiários da TeleSur é assídua a presença de políticos como Fidel Castro, Hugo
Chávez, Evo Morales, Tabaré Vasques, Nestor Kirchner, Álvaro Uribe, Alejandro Toledo,
e até, de vez em quando, Lula (infelizmente, parece que o Brasil é o único país latinoamericano que se mantém distante da TeleSur)34. Também estão lá os líderes políticos,
ministros e autoridades de todos os países latino-americanos. Atuais líderes revolucionários
como Daniel Ortega, Raul Reyes (Farcs), Ollanta Umalla, Subcomandante Marcos, entre
outras lideranças sindicais, estudantis e políticas de diversas origens de classe e matizes
ideológicos progressitas e revolucionários também freqüentam os noticiários e especiais da
TeleSur, ao lado de grandes líderes do passado como Che Guevara e Raul Sendic. Além
disso, a TeleSur conecta-se com o resto do mundo, em coberturas exclusivas ou filtrando o
suco de interesse das agências de notícias internacionais, sempre dando preferência às
frentes de resistência ao imperialismo, onde estiverem, seja no Nepal, na Nigéria, em
Bagdá, na Coréia do Sul, na Europa, em Teerã, ou nos próprios EUA.
Mas, como já disse, o protagonista mais importante de todos é o povão: camponeses,
operários, indígenas e caboclos de todas regiões da América Latina, inclusive as mais
longínquas e olvidadas, estão lá, nos ensinando as coisas de suas terras, de suas tradições,
de suas culturas, de seus labores. E como são belos e falam bem, os latino-americanos! E
como são belas as regiões em que vivem! Não falo de uma pseudo beleza formal,
estereotipada e cenografada pela enganação midiática. Eu me refiro à beleza verdadeira,
autóctone, às vezes rude e até áspera, dos ricos rincões de humanidade que nos vêm sendo
revelados pelas câmeras e microfones da TeleSur. E, como postulava Clemente de la Cerda,
34
Pelas informações a que tive acesso (na própria TeleSur), apenas o governador Roberto Requião, do estado
do Paraná, firmou convênio para repetir o sinal da TeleSur em seu estado, incluindo um canal de áudio em
português. Vi também, por acaso, alguns programas da TeleSur, se bem que alterados, reeditados e muito
prejudicados na qualidade, numa tal TV Brasil, que eu desconhecia. Informa-se nela que essa programação se
restringe a horários, entre 1h e 7h da manhã, nos quais nem as grandes redes TVs conseguem sequer traço de
audiência.
127
sem a impertinência afetada de reporterezinhos medíocres se colocando, em nome de seus
"veículos", entre nós, espectadores, e os protagonistas da mensagem audiovisual, quase
sempre insultando a nossa inteligência.
Cabe aqui o elogio a toda a equipe da TeleSur, pela garra com que encaram o trabalho que
fazem e a consciência que demonstram ter da importância dele, o que nos é perfeitamente
visível, seja em cena, nos bastidores ou nas instâncias administrativas e de produção.
Só para fazer o leitor que nunca viu a TeleSur ficar babando de inveja, vou relacionar, ao
final deste texto, alguns dos programas a que tive o privilégio de assistir nas poucas
semanas em que me tornei espectador TeleSur.35
35
Além do já citado documentário sobre Clemente de la Cerda, eis alguns programas que destaco entre os que
tive o privilégio de assistir pela TeleSur (quase três semanas, com cerca de duas horas de audiência por dia):
- Na série Caminantes, conheci a genial escritora e filósofa Rigoberta Menchú Tum, a índia maya-quiché
nicaraguense que foi Prêmio Nobel da Paz, em 1992. O discurso dessa mulher é algo de extraordinário e nos
conduz ao melhor pensamento revolucionário e humanista que tive o privilégio de conhecer. A produção
(mexicana) do documentário é impecável, assim como a direção, a fotografia e, acima de tudo, a extrema
sensibilidade na captação de um maravilhoso depoimento dado em entrevista que a edição montou, talvez na
íntegra, pontuado de forma enxuta e severa por iconografias audiovisuais pertinentes, ao ponto de excluir
totalmente a participação do entrevistador, tanto na imagem como no texto publicados.
- Da série Nahui - El Rostro del Ecuador, vi três belos filmes de documentário-ficção: Mulucu Auaca, Awa e
Huaorani - Los hijos del Sol. Todos são produções equatorianas do final da década de 1990 e reproduzem as
lendas e mitos da criação das respectivas tribos, narradas e protagonizadas pelos próprios indígenas em suas
línguas originais (legendas em castelhano) e filmadas no habitat natural onde ainda vivem. Belíssimas
sequências, dignas de um mestre como Kurosawa, explorando a plasticidade da floresta úmida equatoriana, os
silêncios e sons da natureza e a beleza rústica dos indígenas, suas culturas e suas sábias crenças. Só vendo.
- No excelente Agenda del Sur, destaco, entre outros, um que foi dedicado ao uso das plantas medicinais pelas
tradições indígenas sul-americanas e a atual exploração de seus conhecimentos por transnacionais ávidas de
registrar patentes farmacêuticas. Esse programa é sempre informação jornalística de primeira. Um outro que
vi foi dedicado à comida do povo latino-americano. É o primeiro que vejo sobre o assunto que não vem nos
falar de bobagens nutricionais como vitaminas, fibras, carbohidratos, dietas burguesas da moda e ecologia de
butique, e nos informa com segurança sobre as questões de produção, dos trangênicos, da biomassa vegetal e
das tentativas de exploração imperialista das nossas riquezas agrícolas. Nesse programa, registrei a presença
bem informada de Roosevelt Franquiz, engenheiro agrônomo e diretor do Instituto de Terras da Venezuela,
que muito me pareceu um Marcello Guimarães venezuelano.
- Ainda em Agenda del Sur, se não me engano, pude me deliciar com um recital de música de câmara
contemporânea com composições e execução do chileno Alejandro Lavaderos e um conjunto de sopros que
executa, em instrumentos tradicionais de bambu e em flautas transversas, um tão inovador quanto genial
repertório de música erudita que orgulharia a qualquer nacionalidade de qualquer parte do mundo.
Vi também chamadas para programas a serem levados sobre o poeta Mario Benedetti, a atriz Maria Rojo, o
pintor mexicano Siqueiros, e outros sobre cineastas, escritores e artistas cujos nomes não me recordo agora,
todos muito interessantes.
Entre as vinhetas, a minha predileta é a da bailarina, não só pelo tratamento plástico-visual mas,
principalmente, pela beleza da sua dança e da música que a acompanha. E pelo final surpreendente, que não
vou contar. Outras belas vinhetas são a do pianista Chuchito Sanoja, magistral, e a de uma trupe de atrizescantoras em performances de rua. É boa também (e arriscada, quanto ao áudio) a vinheta dos noticiários.
Aliás, as vinhetas da TeleSur são todas boas ou muito boas.
Excelentes, tanto quanto competentes, são também as criações de identidade visual da TeleSur, desde o
logotipo, suas animações, seus slogans, suas aplicações em tela, além das entradas e saídas dos programas da
grade.
"TeleSur: Nuestro Norte es el Sur".
128
Se estivesse vivo, Oswald de Andrade iria se deliciar com a TeleSur, porque ela é
exatamente "a voz (e a imagem) do homem do Equador" que o grande escritor previu em
seus textos filosóficos "maravilhosamente bem escritos" como aquele que, quando
conquistasse a sua vez de falar, iniciaria a grande revolução demarcadora do fim do velho e
obsoleto patriarcado capitalista e do início de uma nova era: a do novo e revolucionário
matriarcado socialista do homem natural-tecnicizado, no qual a sociedade, graças ao uso
social e benéfico da tecnologia, será a grande mãe dadivosa e provedora de todos os seus
filhos, ou seja, a era que a Revolução Bolivariana de Hugo Chávez inaugura para o mundo.
- Viva a Venezuela!
Hugo Chávez
Já que acima mencionei a inveja, devo agora confessar uma que me vem tomando o espírito
nestes últimos anos: invejarquem vive sob o manto solar da Revolução Bolivariana
capitaneada por Hugo Chávez, isto é, invejar quem vive numa pátria que tem por presidente
este genial revolucionário moderno.
Ter por presidente alguém que tenha lido Thomas Morus e Simon Bolivar e é capaz de citar
numa só frase, de improviso e com pertinência, Jean-Paul Sartre e Benedicto XVI (A
Revolução do Amor), como pude ver pela TeleSur na chegada de Chávez em Viena para
uma reunião de cúpula internacional; ter por presidente alguém compromissado com uma
história que conhece bem pelas melhores letras e que tem a coragem de liderar - com o
risco da própria vida e em franco desafio aos super poderosos países que nos ameaçam e
nos assolam - a realização de uma obra social e cultural do porte desta que a Venezuela está
realizando para si e para o mundo; ter por presidente alguém que faz o melhor investimento
até hoje jamais feito com o dinheiro da energia suja do petróleo; ter por presidente alguém
que está armando o povo de seu país (e dos países vizinhos) para enfrentar o invasor com
todas as armas - e não somente as armas bélicas, mas, também, as armas da educação, da
cultura e do saber, da igualdade social, da verdadeira democracia e da comunicação de
massa (TeleSur), esta última entre as mais eficazes nos tempos atuais - é o que, entre as
inúmeras virtudes da República Bolivariana da Venezuela e de seu grande líder Presidente
Hugo Rafael Chávez Frías, me faz confessar a inveja que nutro por todos os venezuelanos.
Que, com humildade, parabenizo.
Mas, já "nos estamos a conocer".
-o-o-o-oLeio em Gilberto Vasconcelos (Nacionalismo Trabalhista Brasileiro, inédito) que Hegel identificou um
conflito, naquela época em gestação, entre a América do Sul e a América do Norte. Para Hegel tal conflito
seria duradouro e ele inclinou-se a crer que a América do Sul sairia, ao final, vitoriosa. Sendo
contemporâneos, é provável que Hegel tivesse conhecido as idéias de Bolivar, e isto pode ter influenciado o
seu vaticínio, bastante arriscado já naqueles idos. Quando vejo na TeleSur Hugo Chávez se referir a Evo
Morales como a encarnação da profecia do aymara Tupac Katari, o qual, ao morrer esquartejado pelos
espanhóis por causa de sua liderança libertária, disse que ia voltar, penso em Chávez também como a
encarnação dos ideais de Bolivar - que retorna ao mundo para cumpri-los e consagrar mais uma vez a razão e
a lucidez profética de dois grandes filósofos: o alemão Hegel e o brasileiro Oswald de Andrade.
129
130
Festa Latino-americana
(escrito em julho de 2007)
Festa Latino-americana é o título de um disco de vinil que nos é muito caro. Desde os anos
1970, tem sido um suporte espiritual e musical de algumas de nossas realizações mais bem
sucedidas, onde nossa modesta contribuição é reconhecida, como os filmes 35mm Um
Sorriso Por Favor e Encantamento, ambos dirigidos por José Sette, e o bailado Dança
Brasileira, coreografado e protagonizado por Izabel Costa para o filme Encantamento. E
ainda hoje, mantendo a eterna atualidade que caracteriza as verdadeiras obras de arte, foi
um valioso e inspirador guia musical no percurso da realização destes escritos.
Organizado com muita felicidade e sensibilidade pelo maestro Leonard Bernstein, que rege
a fidelíssima interpretação da New York Philharmonic, com destaque creditado para a sua
seção de percussão, a audição dessa preciosidade em vinil nos leva ao percurso por dentro
da alma e do espírito da cultura latinoamericana nas mais espontâneas e expressivas
manifestações. Contempla obras dos compositores brasileiros Villa-Lobos, Camargo
Guarnieri e Lorenzo Fernandez, dos mexicanos Silvestre Revueltas e Carlos Chávez, e do
norte-americano Aaron Copland, mas o que é mais encantador na bem resolvida seleção das
partituras é a penetração nas essências profundas e indagadoras dos mistérios, ritmos e
danças que o nosso movimentado e prolífico continente cultiva e manifesta.
A assídua audição que temos lhe dedicado ao longo dos anos nos leva agora a escolher o
seu nome para o nosso selo editorial, que abrigará nossas observações sobre a América
Latina, e a uma nova indagação que parece ter ocorrido a muitos dos que se debruçaram
sobre a realidade de nossos povos e nossas lutas, mas, apesar de tocarem a questão por
várias outras vias, nunca demos com algum escrito antigo, moderno ou recente que a
explicitasse assim:
- Por que, fundamentalmente, lutamos?
Para nós, a resposta não seria tão óbvia como possa sugerir a pergunta, em sua aparente
simplidade. Sabemos por que lutam os capitalistas, e o fazem da mesma forma em qualquer
parte do mundo por privilégios materiais e poder às custas da exploração de povos e
nações, e pouco ou nada se pode acrescentar ao magistério definitivo de Marx em O
Capital. Mas quando perguntamos por que lutamos pelo socialismo, em particular, ao nos
referirmos à questão latino-americana, a resposta envolverá parâmetros nem sempre
enquadráveis em análises puramente científicas.
Oswald de Andrade e Mariátegui foram os primeiros a pensar o socialismo na América
Latina e levantar tais parâmetros. Perceberam que os ideais comunistas já se haviam
registrado em nosso continente nas civilizações assim chamadas "pré-colombianas", isto é,
a essência da ideologia socialista está indelevelmente impregnada nas populações
miscigenadas e nas culturas sincretizadas de todo o continente.
Na Europa, o socialismo é, em primeiro lugar, uma luta do povo contra a sua própria
cultura feudal, pela distribuição justa do pão de cada dia e um teto que o abrigue das
intempéries naturais àquelas regiões. É, pois, uma luta para "não sofrer".
131
Porém, tais contradições não seriam tão decisivas aqui, até por razões naturais e
geográficas, ainda que o capitalismo as tenha importado, e por isso, circunstancialmente
possam ocorrer. Em Oswald, temos: "Nunca fomos catequizados, fizemos foi carnaval".
Para ele, "nosso problema é gozar". Quer dizer, lutamos para gozar e, não, para não sofrer.
A nossa luta é, pois, muito diferente das lutas dos povos europeus.
De fato, no decorrer destes escritos, não fica difícil constatar que os propósitos da luta que
travamos, sem desprezo dos valores anti-imperialistas e igualitários propugnados pelo
socialismo científico, são fundamentalmente culturais - lutamos também, com firmeza e
decisão, por nossos dabacuris, candomblés, folias e carnavais, e deles não abrimos mão.
Passeando pela América Latina através das câmeras bolivarianas, não temos como negar
que vivemos num continente cultural em festa permanente, festa do povo, por certo. Festa
Latino-americana. É a música, a dança, a arte, a política, a filosofia e a ideologia em
permanente ebulição e congraçamento, nos sons, nos gestos e nas cores nobres expressadas
com exuberância sem igual em imortais manifestações populares e eruditas, que não abrem
mão de tradições e essências, as quais, apesar de tudo o que contra elas se promoveu e se
promove, preservamos - numa luta de resistência, ainda em curso, de mais de 500 anos!
Um pueblo que canta com versos de amor
Um pueblo que lucha abrindo camiños
Seguindo el camiño del Libertador
A nossa luta libertária pelo socialismo indo-americano está na essência da Festa Latinoamericana.
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Texto para a orelhas
Olhar de condor
José Sette
A Venezuela experimenta o mais revolucionário processo de transformação que já aconteceu em toda a
América Latina desde o descobrimento. O presidente Hugo Chaves, eleito pelo povo em um regime
democrático, conseguiu, depois de superar varias tentativas de golpe, de maneira única, criar um estado
político revolucionário e de vanguarda, com apoio das Forças Armadas, em seu país, que tem deixado, por sua
independência e sabedoria, o mudo todo boquiaberto.
A imprensa mundial, principalmente a dos nossos vizinhos, não tem dado a devida atenção aos
acontecimentos que dia a dia vem transformando a sociedade daquele país. O primeiro ato revolucionário do
governo foi tomar de volta a seu controle os meios de comunicação de massa que eram os responsáveis pela
brutal invasão cultural que se fazia naquele país banhado pelas águas caribenhas. O novo se colocava à
prova. Era preciso levar, a todos, o que durante anos tinha estado escondido.
O tesouro artístico venezuelano e latino-americano que estava esquecido voltou a aparecer, e renascem em
todos nós os sentimentos que estavam massacrados na sua identidade e na identificação dos valores coletivos
de uma nação soberana.
O importante no processo de transformação social e político de um país é a consciência dos seus governantes
da sua identidade cultural. Um país que abre suas fronteiras para o domínio cultural estrangeiro está sujeito a
perder toda a sua identidade, todos os seus valores maiores, das mais simples e populares manifestações
folclóricas aos mais complexos pensamentos analíticos, críticos e científicos de suas comunidades
universitárias e científicas. O primeiro ato de um governo revolucionário - que se quer libertário, de
vanguarda e socialista - tem que passar pela questão cultural. Só depois vem o processo da educação e de
todo o resto.
É preciso reformar o processo cultural e educacional, transformando os métodos de se ensinar,
experimentando, inventando, sublimando o velho para aprender o novo, o que ainda não foi mostrado, por
estar escondido na terra, na cultura, que é a gênese do processo civilizatório. Criar o novo retratando o que se
tenta esconder do passado é a raiz deste grande desafio por que passam, não só os países em
desenvolvimento, mas todo o mundo.
Mario Drumond em seu livro observa de binóculos os primeiros movimentos do que pode se tornar um marco
decisivo de uma nova fase entre as relações determinantes da sobrevivência cultural de uma nação, que
vinha sofrendo durante muitos anos o duro golpe do domínio de uma nação estrangeira, com seus valores
mais significativos e determinantes de uma nova etapa do conhecimento político-social do homem
contemporâneo. O nosso mundo precisa abrir os olhos para o conhecimento de uma experiência
revolucionária na forma de produzir imagens e sons, com total respeito à liberdade criativa, dentro de uma
nova estética de abordagem documental, criando reportagens que interessem às grandes massas dos
oprimidos que fazem das televisões o seu único meio de educação e cultura.
É investindo na proliferação dos meios de captação e difusão desses novos produtos de comunicação que o
audiovisual venezuelano, através de uma linguagem cinematográfica e de construção de uma arte libertária,
inova no que produz e no que é exibido hoje naquele país.
Mario Drumond, com sabedoria e olhar aguçado, nos traz, em primeira mão, a informação e a análise sobre o
que está sendo a guerra midiática na Venezuela, matéria que ele vem acompanhando e pesquisando desde o
começo. Um estudo minucioso do que anda acontecendo no país vizinho e que tanta estranheza vem
causando à Esquerda e à Direita brasileiras. Esse texto abrirá um novo caminho ao leitor interessado nas
transformações sociais e culturais por que passa o nosso país vizinho.
Tipógrafo, internauta, escritor, jornalista, Mario Drumond consegue a proeza de,
arranchado em Belo Horizonte diante de um computador, lucidamente inteirar-se
do que está acontecendo na Venezuela de Hugo Chávez, talvez até com mais
argúcia e profundidade de que quem está lá envolvido no processo revolucionário.
Enquanto por estas bandas, nestes Brasis, a pasmaceira generalizada é reacionária,
sem dúvida reflexo de um governo multinacionalizado, comandado por interesses
estrangeiros, a Venezuela de Hugo Chávez coloca em cena o que pareceria ter
sumido do mundo: o sujeito histórico ou a idéia de vanguarda. Isso significa negar
na prática a ideologia da impotência inoculada pelas metrópoles imperialistas nas
colônias ou nos países semicoloniais. Esse é o traço mais relevante - essa gana de
viver e de mudar as condições materiais da vida - que sobressai hoje na Venezuela,
a lembrar a heróica Palestina. (Gilberto Felisberto Vasconcellos - sociólogo, jornalista e escritor)
Mario Drumond em seu livro observa de binóculos os primeiros movimentos do que pode se tornar um
marco decisivo de uma nova fase entre as relações determinantes da sobrevivência cultural de uma nação,
que vinha sofrendo durante muitos anos o duro golpe do domínio de uma nação estrangeira, com seus
valores mais significativos e determinantes de uma nova etapa do conhecimento político social do homem
contemporâneo. (José Sette - cineasta)
“¡Gloria al bravo pueblo!”
La Guerra de los medios de comunicación en Venezuela
Libro-reportaje echo totalmente por los recursos de navegación en la Internet. El autor, Mario Drumond*,
acompañó los hechos que ocurrieron entre los meses de diciembre de 2006 a julio de 2007, durante los
cuales se ha trabado una verdadera batalia de los medios de comunicación motivada por la decisión del
gobierno Hugo Chávez de no renovar la concesión publica de canal abierto para la RCTV (Radio
Caracas Televisión), emisora privada mas antigua y hasta entonces líder de audiencia televisiva eu
Venezuela.
Por ser una guerra de los medios de comunicación y haber sido acompañada por los señales en vivo,
páginas y videos disponibles en los sitios de los principales vehículos implicados, el reportaje reivindica su
validad y autoridad, mismo que el periodista no estuviese presente, en persona, en aquellos
acontecimientos que calentaron las calles y el pueblo venezolanos.
*Mario Drumond es escritor, periodista, artista gráfico e editor. Actua en la resistencia cultural desde el inicio de los años
70. En 1974, fundó la Editora Cordel (libros y periódicos) y, en 1980, la Oficina Goeldi (grabados y ediciones de arte),
prolíficas casas editoras que dirigió hasta 1990. Por su acción multidisciplinar, recibió el Premio Candango (Mejor Película
del Festival de Cinema de Brasília, 1981) e el Premio Jabuti (Mejor Libro de Arte, Câmara Brasileña del Libro/SP, 1984). Es
autor de obras literarias de ficción, ensaística, planes de películas y de espectáculos, algunos de ellos premiados e
distinguidos en nivel nacional y en el exterior. Desde 2002, colabora con la revista Caros Amigos (San Pablo, Brasil).

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