dealey matança olhar zona plaza atirador
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“Gloria al bravo pueblo!” A GUERRA MIDIÁTICA NA VENEZUELA MARIO DRUMOND MDEditor Copyright©2007 Mario Drumond Advertência Este é um original preparado pelo autor para futura edição, comercial ou fora-de-comércio, e não o projeto gráfico de um livro. As fotos de capa e última capa foram obtidas na internet (sem créditos aos fotógrafos) e só poderão ser utilizadas numa eventual edição comercial se forem localizados os autores para as devidas autorizações. A foto do autor é de Leo Drumond. Instruções para impressão em papel (autorizada pelo autor para uso exclusivo do leitor e sem fins comerciais): Formato: A4 Papel: alta alvura 75 g/m2 (papel comum de copiadoras) Impressão: P&B - frente e verso Capa Papel: 180 g/m2 (branco) Impressão: a cores ou P&B (opcional) - frente Última capa Papel: 180 g/m2 (branco) Impressão: a cores ou P&B (opcional) - frente e verso (texto das orelhas no verso) Encadernação: espiral transparente ou colada à quente (opcional) Proteção externa (capa e última capa): acetato transparente Esta página não precisa ser impressa. Se o for, será o verso da capa. “Gloria al bravo pueblo!” A Guerra Midiática na Venezuela e outros escritos bolivarianos “¡Gloria al bravo pueblo!” La Guerra de los medios de comunicación en Venezuela Libro-reportaje echo totalmente por los recursos de navegación en la Internet. El autor, Mario Drumond*, acompañó los hechos que ocurrieron entre los meses de diciembre de 2006 a julio de 2007, durante los cuales se ha trabado una verdadera batalia de los medios de comunicación motivada por la decisión del gobierno Hugo Chávez de no renovar la concesión publica de canal abierto para la RCTV (Radio Caracas Televisión), emisora privada mas antigua y hasta entonces líder de audiencia televisiva eu Venezuela. Por ser una guerra de los medios de comunicación y haber sido acompañada por los señales en vivo, páginas y videos disponibles en los sitios de los principales vehículos implicados, el reportaje reivindica su validad y autoridad, mismo que el periodista no estuviese presente, en persona, en aquellos acontecimientos que calentaron las calles y el pueblo venezolanos. *Mario Drumond es escritor, periodista, artista gráfico e editor. Actua en la resistencia cultural desde el inicio de los años 70. En 1974, fundó la Editora Cordel (libros y periódicos) y, en 1980, la Oficina Goeldi (grabados y ediciones de arte), prolíficas casas editoras que dirigió hasta 1990. Por su acción multidisciplinar, recibió el Premio Candango (Mejor Película del Festival de Cinema de Brasília, 1981) e el Premio Jabuti (Mejor Libro de Arte, Câmara Brasileña del Libro/SP, 1984). Es autor de obras literarias de ficción, ensaística, planes de películas y de espectáculos, algunos de ellos premiados e distinguidos en nivel nacional y en el exterior. Desde 2002, colabora con la revista Caros Amigos (San Pablo, Brasil). Mario Drumond Belo Horizonte – Brasil 2007 1 2 Sumário Prefácio Uma grande reportagem com os olhos livres Gilberto Felisberto Vasconcellos 5 Introdução Oswald de Andrade e José Carlos Mariátegui 7 A Guerra Midiática na Venezuela 9 Apêndice Neoliberalismo à brasileira 89 Escritos Bolivarianos O Audiovisual do Novo Mundo 95 O Pacto do Novo Mundo 99 A TeleSur 123 Festa Latinoamericana 131 Orelhas Olhar de condor José Sette 3 Do autor (obras mais recentes): Dans L'Air - A via Santos-Dumont (MDEditor, Rio de Janeiro, 1996) Alô Alô Rogério Sganzerla (MDEditor, Belo Horizonte, 2004) Tudo é Brasil - Fragmentos da Obra Literária de Rogério Sganzerla (Letrad'agua, Florianópolis, 2005) Tudo é Brasil - Frammenti dell'opera letteraria di Rogério Sganzerla (Museo Nazzionale del Cinema, Torino, Itália, 2006) O autodesenvolvimento de Marcello Guimarães (2007, em fase de finalização) Contos anti imperialistas (2008, em preparo) 4 Uma grande reportagem com os olhos livres Gilberto Felisberto Vasconcellos Tipógrafo, internauta, escritor, jornalista, Mario Drumond consegue a proeza de, arranchado em Belo Horizonte diante de um computador, lucidamente inteirar-se do que está acontecendo na Venezuela de Hugo Chávez, talvez até com mais argúcia e profundidade de que quem está lá envolvido no processo revolucionário. Enquanto por estas bandas, nestes Brasis, a pasmaceira generalizada é reacionária, sem dúvida reflexo de um governo multinacionalizado, comandado por interesses estrangeiros, a Venezuela de Hugo Chávez coloca em cena o que pareceria ter sumido do mundo: o sujeito histórico ou a idéia de vanguarda. Isso significa negar na prática a ideologia da impotência inoculada pelas metrópoles imperialistas nas colônias ou nos países semicoloniais. Esse é o traço mais relevante - essa gana de viver e de mudar as condições materiais da vida - que sobressai hoje na Venezuela, a lembrar a heróica Palestina. O grande mérito de Mario Drumond como pesquisador livre e independente é mostrar quão determinante, para o destino de um povo, é o surgimento de um autêntico líder. Isso para nós, brasileiros, é um alento, porque tivemos as cabeças cortadas desde 1964. Não por acaso na prosa oswaldiana de Mario Drumond ressurge volta e meia o vulto de Leonel Brizola, o último líder brasileiro nacionalista que denunciou a essência do nosso processo civilizatório: o saqueio das riquezas, o roubo imperialista do trabalho do povo, enfim, as "perdas internacionais" da economia. Outro dado fundamental que se depreende dessa reportagem política de Mario Drumond, que traz à baila o cinema de Glauber Rocha, é ter mostrado a conexão entre as Forças Armadas nacionalistas de Hugo Chávez e a massa subproletária e marginalizada da Venezuela. Ainda outro elemento que merece observação é a análise feita por Mario Drumond do estágio videofinanceiro do imperialismo neste século XXI, em que a mídia - os meios de comunicação de massa - aparece como um dos principais agentes da reação histórica, no caso da Venezuela como dispositivo golpista para derrubar o líder popular Hugo Chávez, mas o comandante bolivariano está edificando um sistema de comunicação do povo, que ineludivelmente acabará por derruir o aparato midiático oligárquico e imperialista. Não se trata absolutamente de afirmar que a televisão é o motor da história neste século XXI, mas sim que a luta de classes no capitalismo videofinanceiro está necessariamente determinada pelo aparelho televisivo, aquilo que o inesquecível marxista venezuelano Ludovico Silva conceituou como sendo "a mais-valia ideológica". A única iniciativa de que carece ainda o governo Hugo Chávez é implantar um sistema de microdestilarias de álcool em pequenas propriedades, valendo-se dos recursos auferidos do hidrocarboneto (inclusive produzindo e exportando adubo nitrogenado petrolífero para a agricultura dos países frios e temperados) com o objetivo de fazer a travessia energética rumo à biomassa vegetal do trópico equatoriano. Sob esse ângulo, é um primor um outro livro do autor, que está em adiantado preparo, sobre o invento tecnológico de Marcelo Guimarães, um dos ilustres cientistas das escola da biomassa, cujo pensamento oriundo e haurido dos trópicos é imprescindível à edificação do socialismo do século XXI, que será necessariamente do ponto de vista energético o socialismo da fotossíntese. Equívoco político, além de atropelo à ciência, é considerar o álcool-combustível um produto do 5 latifúndio e incompatível com a agricultura alimentar, como se houvesse antítese entre energia da biomassa (álcool e óleos vegetais) e produção de comida. Esse raciocínio abstrato, que identifica álcool combustível com plantation latifundiária multinacional, demoniza a cana-de-açúcar, descuidando da possibilidade (sobretudo com o inevitável ocaso do petróleo) desta milagrosa gramínea vir a ser a planta fornecedora de energia à construção do socialismo. A cana-de-açúcar é determinada pelo regime social e de propriedade, e não o inverso. Dialético, Mario Drumond, neste livro ousado, focalizando o presente como história, sintonizou a revolução bolivariana às microdestilarias de álcool, porque a Venezuela equatorial de Hugo Chávez detém as condições políticas e econômicas de combinar a energia do passado (o petróleo) com a energia do futuro: a biomassa. Munida da idéia diretriz anti-imperialista, sem a qual a Pátria Grande latino-americana não se torna realidade, a Venezuela poderá vir a ser, neste limiar do século XXI, o "lugar da aceleração evolutiva", como dizia Darcy Ribeiro acerca do processo civilizatório no mundo. 6 Oswald de Andrade e José Carlos Mariátegui Revendo, reencontrando e redescobrindo a obra de Mariátegui, muito por influência de Hugo Chávez, que se esmera em citá-lo sempre que surge a oportunidade, encontrei uma curiosa novidade (pelo menos para mim): uma sintonia de espírito, uma irmandade de pensamento e uma incrível afinidade de idéias entre ele e Oswald de Andrade. Estou certo de que Mariátegui não conheceu a obra de Oswald, e sei, também, que Oswald não conheceu a de Mariátegui. É possível até que, sem se dar conta um do outro, tenham se encontrado pessoalmente em Paris ou na Itália, numa roda de conhecidos, num café ou nas noites boêmias, já que andaram pelos mesmos caminhos das primeiras décadas do século 20 na Europa revolucionária, conheceram muitas mesmas pessoas, e, pelo menos em uma oportunidade, coincidiram suas estadias em Paris. Aliás, são muitas as coincidências que podem ser anotadas nas biografias e obras dos dois gêmeos de gênio latino-americanos, até 1930, quando prematuramente faleceu Mariátegui. Oswald viveu até 1954; eis por que, além de conhecer bem a obra que nos legou, sei que ele não teve acesso a de seu irmão em gênio, pois só nos anos 60 as jovens gerações de revolucionários brasileiros começaram a se interessar pela América Latina e deram com a obra do mestre peruano. É possível que Darcy Ribeiro tenha algo a ver com isso. Oswald e Mariátegui foram duas grandes expressões de uma mesma geração: a geração modernista dos anos 20. Oswald nasceu em 1890, Mariátegui em 1894. Exatamente entre os anos 1911 e 1919, ambos exerceram, com ousadia e criatividade, um prolífico jornalismo crítico, literário e político. E jornalistas permaneceram - independentes! - até o último dia de suas existências. Ambos descortinaram as origens culturais e a realidade de suas terras natais em viagens à Europa, e ambos foram pioneiros em deduzir, nas civilizações do índio americano e na importância da cultura européia, a modernidade latinoamericana e a revolução socialista que dela seria resultante histórica e lógica. Ambos romperam decididamente com a cultura colonizada, de importação, e abriram as mentes da geração a que pertenciam para a modernidade universalista e revolucionária dos trópicos, para a cultura miscigenada de criação antropofágica e de exportação da grandeza libertária de homens e mulheres índios, negros, brancos e morenos ao romper os grilhões da exploração imperialista sobre nossas terras, nossos povos. Em Oswald, "a revolução caraíba". Em Mariátegui, "o socialismo indo-americano". Ambos fundamentaram-se filosoficamente, desde Nietszche e a vanguarda do pensamento crítico europeu, em amálgama às nossas raízes primitivas, indígenas e próprias. Ambos declararam e publicaram suas predileções por escritores vanguardistas como James Joyce e Fedor Gladkov, cujas obras Ulisses e Energia, respectivamente, deveriam, segundo Mariátegui, "ser livro de cabeceira dos revolucionários", e que Oswald (que às mesmas duas obras acrescentava Montanha Mágica, de Thomas Mann) considerava como "marcos antinormativos", os "romances da construção socialista". E ambos eram "contra a cópia" e "pela invenção e a surpresa" (as aspas remetem-nos aos dois autores, simultaneamente) e expressaram tais pensamentos criadores nas línguas irmãs quase como se um fosse tradução do outro, porém, são espíritos gêmeos! 7 Em 1923, quando Mariátegui retorna da Europa e dá conferências em Lima, Oswald está em Paris, dando conferências na Sorbonne. Falam de arte, da crise da economia burguesa, da revolução cultural e do novo mundo. Entre 1926 e 1930, Mariátegui edita a Revista Amauta. Em 1928 e 1929, Oswald edita a Revista de Antropofagia. Ambas recuperando a cultura indígena e a pré-história americana para a revolução socialista na "América do Sol". Fico apenas nestes poucos contatos de superfície que já dão uma idéia da congenialidade dos dois, e deles com outros contemporâneos como Fernando Pessoa, Mario Sá Carneiro, Mayakowski e Garcia Lorca, só para não sair da esfera da poesia que no espírito de todos predominou de maneira determinante, na posição mais elevada que possa alcançar o pensamento criador: a de "coordenador de toda a ação humana", como Oswald definia o papel do poeta, quase exatamente como Mariátegui: "tudo o que é humano é nosso". Faço essa introdução porque foi pensando neles e na irmandade que cultivaram sem nunca se terem conhecido, nem por suas obras (pensavam a mesma revolução em dois idiomas irmãos), que escrevi o registro deste que considero um dos nossos mais importantes fatos históricos, no raiar do novo século. Se a paciência do leitor permitir que vá até o final, verá que devo a ambos as conclusões que fecham este trabalho. Sem eles, faróis de primeira grandeza, e outros como eles, que iluminam as estradas da história, do pensamento e da literatura de Nuestra América, eu não teria como chegar até lá. São as estradas do conhecimento e da conciência nacional que todos os revolucionários temos de trilhar, desde o obscuro recolhimento deste autor no labor de suas linhas até a fulgurância da estrela histórica e decisiva de um Hugo Chávez, no comando da vitoriosa Revolução Bolivariana na Venezuela. O autor 8 A Guerra Midiática na Venezuela Mario Drumond Belo Horizonte - Brasil abril/maio/junho/2007 9 10 A Guerra Midiática na Venezuela "Fica de pé, fulgurante, a tese de Marx de que nas colônias o único meio que os exploradores encontram para o seu rápido progresso econômico é a escravidão. Aqui tivemos: a escravidão índia - finalidade heróica do bandeirismo inicial; a escravidão africana - que Las Casas, o apóstolo da liberdade do índio, admitia; a escravidão do colono - com a comédia da imigração. É lógico e justo que um dia os descendentes dos índios, dos pretos e dos colonos tirem a forra." (Oswald de Andrade, Enciclopédia do Povo Brasileiro, 1932) Sexta-feira, 13 (de abril de 2007). "A alegria é a prova dos nove". São 16h em Caracas, e a avenida está coberta por milhões de pessoas vestidas de vermelho e alguns milhares, de verde, todos dançando um merengue arretado, muito bem tirado, ao vivo, por um conjunto instrumental e cantores populares. É festa do povo, folia na rua. É o Dia Nacional da Resistência, e os de verde são recrutas do (novo) exército popular de resistência e cadetes do exército regular do país. O país chama-se Venezuela, e a festa comemora cinco anos de um acontecimento inédito no continente sul-americano: o povo e as Forças Armadas, em organização conjunta e espontânea, reverteram um golpe de estado comandado diretamente pelos poderes imperiais. Em menos de 48 horas depuseram o ditador fascista e a camarilha golpista, libertaram o presidente legítimo (que fora sequestrado, estava preso e condenado à morte), colocaram nas mãos dele o poder que lhe fora usurpado e puseram para correr os agentes do império, os locais e os estrangeiros. Depois, bateram no peito e desafiaram o império: - "Aqui, não!" Missão cumprida, presidente bem guardado no Palácio, voltaram a seus lares e quartéis para dar continuidade à Revolução Bolivariana, sob a liderança do reempossado Comandante Hugo Rafael Chávez Frías. Em 11 de abril de 2002, os agentes do império deram o golpe e tomaram o Palácio. Em 13 de abril, foram postos no olho da rua. "Todo 11 tiene su 13", foi o título desafiador da festa comemorativa do primeiro lustro daquele evento histórico. A câmera de viVe TV procura alguém no meio da multidão. Afinal, o encontra, é ele, "el Comandante", colecionador de várias tentativas de magnicídio e permanentemente ameaçado de morte pela maior e mais poderosa quadrilha de gangsteres do mundo. Lá estava ele, à vontade, abraçando, beijando e sendo beijado, no miolo tumultuado e alegre da fuzarca. Uma boa meia-hora se passa até que, afinal, ele suba ao palanque e ocupe o pódium de orador. Mas, antes de falar, ele leva aos olhos um poderoso binóculo ("há que usar binóculos") a perscrutar a multidão, até que a mira alcance o fim distante da imensa avenida - superlotada! Em seguida, tira o binóculo e exibe às câmeras um semblante sereno e solene de chefe de Estado (latino-americano). Um silêncio respeitoso toma conta da avenida: o "Homem do Equador" vai falar. A Guerra dos Frames Mas, ao invés de falar, Chávez canta: "Gloria al bravo pueblo...". Com voz afinada e bem colocada, ele puxa o Hino Nacional venezuelano e é acompanhado pela multidão. A récita sai tão boa que, pelos novos canais de TV criados pela Revolução Bolivariana, a Venezuela inteira, de norte a sul, de leste a oeste, canta em coro seu belo hino. Por outro lado, as TVs comerciais, as mainstreams do neoliberalismo globalizante, fingem ignorar o evento e exibem programações de entretenimento. Talvez seja a Venezuela o primeiro país em que se disputa, ferozmente, este novo tipo de guerra: a Guerra dos Frames. 11 Referindo-nos a outras revoluções, vemos que a Revolução Bolivariana adotou uma estratégia diferente (e mais eficaz, em nossa opinião) de consolidação do poder: a do confronto democrático e, dentro do possível, pacífico, entre o ancien règime e o novo regime, em todas as instâncias em que ambos se manifestam. No que diz respeito às mídias de comunicação, optou por criar novos veículos com propostas revolucionárias de linguagem, afinados ideologicamente com a Revolução Bolivariana. Não houve fechamento, censura, perseguições a jornalistas nem tentativa de cooptação ($$$) de veículos, empresas e profissionais do velho statu quo. A situação destes é que se inverteu agora são "oposição". E é aí que mora o grande lance dessa estratégia: nunca foram oposição, só conheceram, sempre, uma única situação: a "situação", o poder. Sem a mamata de que gozavam na "situação", a solução de sobrevivência foi pedir socorro a Washington, porque a conversa fiada que jorra no atual chororô da derrota, de que são "independentes" e se viabilizavam por suas próprias capacidades e eficiências empresariais, gerenciais e administrativas e outros blá-blá-blas, só se sustenta em cabeças ingênuas ou de quem não quer saber nada de comunicação nem de política. Porém, sabe-se o quanto é mesquinho e avaro o tal Tio Sam. Acostumado a repartir com os cucarachas locais só a menor parte dos gordos saques a países "amigos" com governos "amigos" contra os próprios povos explorados, Tio Sam, quando muito, põe a mão no bolso para dar uma ou outra esmola ou gorjeta demagógica. Acontece que uma mídia nacional de um país como a Venezuela não se sustenta com pouca grana. Então, acabou a mamata, pois com Tio Sam não tem mamata pra cucaracha. E a nova mídia revolucionária vai passando por cima deles como um rolo compressor. Já os leva ao desespero e ao ridículo. Desde que assumiu o governo, a estratégia midiática de Chávez começou a se estruturar pela reformulação de linguagem do próprio canal do governo, que existia há mais de trinta anos na usual condição de apêndice do poder (cabide de emprego), subalterno aos interesses midiáticos coordenados por Washington. E, claro, desprezível enquanto veículo de comunicação. A antiga CVTV (Cadena Venezolana de Televisión) foi transformada na VTV - Venezolana de Televisión - "el canal de todos los venezolanos", e a equipe de Chávez reestruturou-a radicalmente para livrá-la do ranço oficialista e dotá-la de perfil dinâmico, ousado, vanguardista, influente e competente, a fim de torná-la um braço eficaz do poder revolucionário. Isto foi conseguido: um momento de grande importância para a vitória do contragolpe foi a retomada, pelo povo e as Forças Armadas, em 12 de abril de 2002, dos estúdios da VTV que tinham sido fechados e desativados pelos golpistas. A reentrada no ar daquele canal (Canal 8) permitiu a divulgação, em âmbito nacional, da carta de negação da renúncia escrita por Chávez e dos acontecimentos contragolpistas que tomavam as ruas de Caracas e das demais grandes cidades, paralizando completamente o país. Fatos que eram sistematicamente omitidos pela mídia hegemônica. Hoje a VTV é uma das emissoras de maior audiência no país, com grade de programação variada envolvendo documentários educativos, infanto-juvenis, muitos programas de opinião, de entretenimento, e seus noticiários são os mais acreditados e de maior audiência. O segundo passo foi a adoção de uma política exemplar de fomento à criação de TVs Comunitárias, a partir da iniciativa independente e pioneira da Catia TV, emissora independente que teve origens no movimento cineclubista dos anos 70 (Cine Clube Manicomio) e que exerceu um papel importante nos eventos de 11 a 13 de abril de 2002, quando, até a religação do Canal 8 (VTV), fez-se o único veículo a informar sobre os reais acontecimentos de então, ainda que sua veiculação se restringisse aos bairros pobres de Caracas. O governo Chávez criou instrumentos legais para facilitar a multiplicação dessas 12 mídias em sinal aberto, e ajudou a transformar a Catia TV numa Fundação incubadora de TVs Comunitárias, sem perda de sua natureza independente, nem das novas emissoras, as quais funcionam por seus próprios meios e sem ter de dar satisfações ao governo. Hoje, estão em processo de formação centenas dessas pequenas emissoras (o CONATEL Consejo Nacional de Telecomunicaciones já registra 28 delas em pleno funcionamento como veículos influentes e de reconhecido valor midiático), por sua vez muito atuantes e geradoras de material audiovisual nos quatro cantos do país. São pequenas equipes, porém bem aparelhadas e bem treinadas pela Fundación Catia TV, sobrevivendo com a veiculação da chamada "propaganda ética", que consiste na propaganda paga de pequenos negócios e instituições locais ou regionais, e de vinhetas, anúncios e programas institucionais de formato educativo e social, produzidos por órgãos governamentais e empresas estatais. O passo seguinte da política midiática da Revolução Bolivariana de Chávez foi gigantesco, além de tão ambicioso quanto audacioso e pioneiro: a criação da TeleSur. Formatada como empresa transnacional-governamental exclusiva para os países da América Latina e Caribe, ela tem 51% do seu capital de propriedade do governo venezuelano e o restante aberto aos governos dos países que desejarem participar. Já conta com as adesões, ratificadas em ingressos de capitais, dos governos de Cuba, Colombia, Bolívia, Argentina, Paraguai, Uruguai, Equador e Nicarágua. O estado venezuelano bancou a implantação da empresa com o que há de melhor, mais avançado, mais radical e mais revolucionário em matéria de tecnologia e profissionalismo midiático, além de dotá-la de uma linguagem audiovisual vanguardista e sofisticada em todos os níveis, para produzir uma grade de programação jornalística, política, cultural e esportiva, 24 horas por dia, voltada prioritariamente para a realidade latino-americana e, em âmbito mundial, para os países de Terceiro Mundo e para as lutas anti-imperialistas. No primeiro estágio, a emissora foi capacitada para a veiculação nas três Américas, no segundo, na Europa (já em andamento), e, no terceiro, mundial, com distribuição gratuita do sinal e autorização para reprodução e reveiculação de seus programas, bastando respeitar os contextos autorais e conteudísticos, e citar a fonte. Tal é o sucesso do empreendimento que, há menos de dois anos de inaugurada e vivendo seu primeiro estágio estratégico, a TeleSur já conquistou audiência reconhecida superior a 100 milhões de espectadores nos países das três Américas, índice que não pára de crescer e se expandir. Essa expansão tem causado pesadas dores de cabeça nos altos escalões dos veículos mainstream em todo o mundo, alguns dos quais, como a Globo brasileira, estão exercendo fortes pressões sobre seus governos para reduzir e, se possível, bloquear o crescimento extraordinário da TeleSur, em especial a penetração dela nas faixas de público que consideram seus próprios "terreiros" ou em territórios geográficos nos quais se pretendem detentores de domínio quase exclusivo do sinal aberto ou a cabo. Além do mais, já iniciaram projetos de veículos novos em novos formatos para competirem com TeleSur. Tal esforço é respaldado por setores do Congresso dos EUA que estão reunindo fundos para "lançar um sinal que possa contrarrestar o sinal terrorista da TeleSur". Em paralelo à TeleSur, o governo bolivariano da Venezuela criou a viVe TV, uma emissora com finalidades mais ou menos semelhantes às das nossas TVs Educativas, porém, apresentando um avanço de linguagem e de programação que a coloca anos-luz à frente de tudo o que conheçemos a respeito. A viVe TV é, sem dúvida, uma experiência de televisão posicionada radicalmente na ponta de lança da linguagem audiovisual televisiva. Declaradamente inspirada nas lições imortais de Dziga Vertov (Cine-Olho e CinemaVerdade), ela se liga estrategicamente à rede de TVs Comunitárias da Venezuela e aproveita a grande capilaridade do material nelas produzido, em geral, como de interesse local e regional, para filtrá-lo e reeditá-lo em matérias de veiculação nacional, num novo e surpreendente formato de jornalismo televisivo - um jornalismo sem jornalistas (em vídeo), 13 100% editado com conteúdos audiovisuais das mais diversas origens. Possui uma linha de produção e co-produção de programas infantis muito criativa e original, com belas animações, teatro de bonecos e novos recursos de alta tecnologia, para ocupação dos horários pertinentes, inclusive um inovador e muito bem realizado noticiário infantil todo feito em animação. Além disso, e muito mais que as outras TVs bolivarianas, viVe TV fomenta e difunde produções cinematográficas independentes de todas as metragens, documentais e ficcionais, dando preferência às experiências de vanguarda, aportando recursos técnicos e financeiros para produção e co-produção de novas obras e veiculação das já realizadas. ViVe TV produz também cursos interativos de aprimoramento e capacitação de artistas e técnicos do audiovisual, e realiza programas, em estúdio e em locações externas, de debates e análises dos problemas nacionais e internacionais. "En viVe, los protagonistas son los miembros de la comunidad, el ciudadano común, los millones de venezolanos y latino-americanos invisibles para el imperialismo y sus medios de dominación cultural. En su programación es posible conocer la realidad, vida y lucha de nuestros afrodescendientes, indígenas, campesinos, obreros, mujeres, hombres, jóvenes y niños." - informa o seu site (www.vive.gob.ve). Seu lema é: "Não veja TV, faça-a!" Recentemente, um novo e importantíssimo passo nessa guerra de frames foi dado pela Revolução Bolivariana de Venezuela: a Revolución de la Conciencia, comandada pelo ministério da Cultura através de várias Plataformas revolucionárias, entre elas, La Plataforma Cine y Audiovisual, que consiste na implantação de uma superestrutura de criação, realização, produção, distribuição e exibição de cinema e audiovisual, com a conclusão e inauguração, quase simultâneas, de quatro empreendimentos gigantescos: a reestruturação da Fundación Cinemateca Nacional e do Centro Nacional Autónomo de Cinematografía (CNAC), a criação da Fundación Distribuidora Nacional de Cine Amazonia Films e a criação e construção da Fundación Villa del Cine. Tais chancelas não remontam a órgãos de burocracia, como sói acontecer na maioria dos países da América Latina e respectivos ministérios de cultura. Muito ao contrário, elas compõem um furacão revolucionário destinado a encarar qualquer indústria cinematográfica de Primeiro Mundo, inclusive Hollywood, como afirmou o próprio Chávez, em maio de 2006, no evento de inauguração da distribuidora Amazonia Films e da Villa del Cine, onde se situam as bases criativas e físicas da Plataforma: um megaestúdio de projeto e produção de cinema e telefilmes, ricamente equipado com tecnologia e infra-estrutura para qualquer tipo de realização cinematográfica e audiovisual de grande, médio e pequeno porte, para, em paralelo, propiciar suporte técnico, de equipamentos, de infra-estrutura e até financeiro a realizações independentes, além de promover cursos e oficinas nos vários níveis de formação e aprimoramento de artistas, técnicos e outros profissionais do audiovisual. No topo da Plataforma, encontra-se a Cinemateca Nacional, agora remodelada, bem equipada e estruturada para conservar, restaurar, digitalizar, exibir e difundir todo o acervo fílmico do país, atual e pregresso. Com tal acervo e servido de uma super distribuidora como a Amazonia Films, o ministério da Cultura já deu início a um ambicioso projeto de implantação de salas comunitárias de cinema com tecnologia digital, em todo o país, de forma que, já em 2008, nenhuma cidade ou bairro, por mais longínquo que seja, deixará de ter sua sala de cinema devidamente equipada e ocupada por uma programação diária de filmes nacionais e latino-americanos. E a inusitada "corrida armamentista" não pára aí. Poucos meses atrás, a Assembléia Nacional de Venezuela inaugurou a AN-TV, um novo canal que se propõe a atuar no front de uma pauta essencialmente política e legislativa, e cujos primeiros frames já demonstram, em avanço de linguagem e programação, a infinita distância das oficialescas TVs Senado e TVs Câmara da vida. A TeleSur anuncia a criação de um canal exclusivamente dedicado ao 14 esporte, e se prepara para lançar sua emissora local na Venezuela com sinal aberto em VHF. A ALBA TV, mais uma das idéias geniais de Chávez e Fidel Castro, mal começou a dar os primeiros passos e, neste mesmo mês de maio, terá seu lançamento na Venezuela. A ALBA TV, que tem por base a experiência da viVe TV e através dela fará as emissões iniciais, se conectará às TVs Comunitárias e aos movimentos sociais de toda a América Latina, numa proposta de amplificação da viVe TV na plataforma continental das três Américas (incluindo EUA e Canadá). Em 2008, a China colocará em órbita o satélite Simon Bolívar, desenvolvido e fabricado com transferência de tecnologia para a Venezuela, para servir às comunicações na América Latina e Caribe, em especial, ao "sistema bolivariano de rádio, televisão e comunicações". Em paralelo, está sendo implantada em toda a Venezuela uma rede de troncos de fibra ótica com 20.000 km de extensão (8.000 já em operação), acrescida de uma conexão, por cabo submarino, com Cuba e outros países do Caribe, e uma série de "teleportos" e demais recursos de infra-estrutura comunicacional de última geração (o Brasil possui cerca de 1.600 km de troncos de fibra ótica quase restritos ao eixo Rio-São Paulo). É importante registrarmos que o pensamento conceitual que dá suporte a todo esse megacomplexo audiovisual, construído e em construção, tem por postulado a separação de poderes, estrutural e estratégica, entre meio e mensagem. Isto é, essas superestruturas são criadas para se fazerem meios audiovisuais e não realizadores das mensagens. Estas são realizadas de forma independente para a ocupação de, no mínimo, 70% das grades operacionais e de programação dos órgãos e veículos do audiovisual da Revolução Bolivariana. Por sua vez, as decisões de escolha dos conteúdos para ocupar as grades são feitas num terceiro poder, ou o maior dos poderes no conceito bolivariano de poder, ou seja, o Poder Popular. Para o audiovisual, um amplo conjunto de instituições e organizações socialistas direta ou indiretamente interessadas, tais como os Consejos Comunales, a Cinemateca Nacional, o CNAC, comissões de concursos, festivais e certames, sindicatos, cooperativas, grêmios e direções de escolas e universidades e associações de produtores independentes, já se fazem atuantes. Essa postulação - além de oposta à da mídia hegemônica, a qual persegue monopolizar tanto o meio como a mensagem rigorosamente encerrados nos limites de poder de suas corporations - visa objetivos igualmente opostos: o de libertar o processo criativo e gerador das mensagens das amarras dos meios. E quebrar a espinha dorsal do poder hegemônico que escraviza as mensagens aos meios, rompendo os grilhões de manipulação do público pelos interesses corporativos ou governamentais. Eis por que, diante do mar de meios audiovisuais que as novas tecnologias vêm possibilitando, à direita e à esquerda do espectro de poder, a estratégia midiática da Revolução Bolivariana é completamente única e de fato revolucionária, se direcionando com clareza na busca do socialismo do século 21, que deve ser, antes de tudo, verdadeiramente democrático. Quanto às posturas institucionais, também elas se fazem opostas em suas pretensões e formulações estratégicas: a mídia revolucionária não segue a pauta mainstream dos noticiários da mídia hegemônica e não pretende ter um espectador o tempo todo ocioso, diante das telas de suas TVs, e nem que estas fiquem competindo entre si, em disputa de audiência. Ela não se importa com índices de sucesso e audiência e elabora grades de programação moduladas para que seus programas sejam repostos ou repetidos em dias e horários diversos, de tal forma que o espectador dedique apenas uma pequena parte de seu tempo para assistir aos programas que deseja. Além do mais, a programação é dirigida para assuntos e temas de fato relevantes e informativos para os adultos, e originais e educativos para as crianças e adolescentes, não se propondo ao espectador como mero entretenimento, e até estimulando-o para que se entretenha fora de casa, na vida real, cultural, social e 15 desportiva de sua comunidade, e sugerindo que o entretenimento se faça de modo elevado, tanto no plano espiritual como no existencial. Por outro lado, esse complexo midiático audiovisual coloca seus microfones e lentes direcionados para um filão de conteúdo praticamente inexplorado pela mídia hegemônica e que oferece uma riqueza indescritível: a América Latina e o Caribe. "América - Tierra Nuestra". Se destas terras o imperialismo histórico e atual vem sugando e saqueando riquezas materiais incalculáveis, ocorre que as riquezas humanas e culturais que elas oferecem, e que são muito mais elevadas, diversas e profusas, escaparam completamente à sensibilidade de aço da maioria dos colonizadores, principalmente os atuais. Pelo contrário, fomos os colonizados que capturamos e sincretizamos valores culturais dos colonizadores, num processo que Oswald de Andrade denominou "antropofagia cultural". O compositor Villa-Lobos disse certa feita que os portugueses levaram o ouro do Brasil mas nos deixaram as modinhas. "- Foi um bom negócio" - concluiu. Assim, o que se pode chamar de "sistema bolivariano de comunicação" tem pela frente um campo infinito para explorar e extrair riquezas culturais inolvidáveis, enquanto a mídia hegemônica está cada vez mais restrita aos desgastados cenários e conteúdos vazios, retrógrados, desumanos, estressantes, estandardizados, repetitivos e cansativos de um limitado universo consumista europeunorte-americano, que se esgota no pensamento único (ou não pensamento) imperialcapitalista, de que mais adiante vamos tratar. A Venezuela vive neste momento a grande batalha midiática, a maior de que se tem notícia desde o golpe de Estado frustrado de 2002. No final de 2006, logo depois de mais uma vitória eleitoral, Chávez anunciou a não renovação da concessão da RCTV, o canal mais antigo e mais poderoso em operação no país, correspondente, no Brasil, à Rede Globo de Televisão. Em substituição a “este canal fascista", como o denominou Chávez, propõe-se uma televisão social de serviços, a Televisora Venezolana Social - TVes, com uma programação revolucionária e essencialmente produzida no país, América Latina e Caribe. A "não renovação da concessão" da RCTV, que deixará de ocupar o espectro radioelétrico em sua faixa VHF mais nobre (Canal 2), e será substituída, em 28 de maio próximo, pela TVes, já provocou um combate feroz da mídia hegemônica, e todas as forças a ela aliadas em máximo poder de fogo contra a Revolução, chegando ao ponto de desafiar a soberania do governo bolivariano, para, se possível, derrubá-lo. Tal combate, que a cada dia recrudece e se propaga mundo afora, é o objeto principal do presente trabalho. Vimos acompanhando, passo a passo, dia a dia, os eventos que se sucederam ao anúncio de Chávez, graças à possibilidade de acesso audiovisual pela internet às emissoras TeleSur, VTV (Venezolana de Televisión) e viVe TV, preciosas fontes de informação televisiva, (com certeza, as melhores que conheçemos), às páginas destas mesmas emissoras, às de sites como Rebelión, Aporrea, Resistir, RedVoltaire, entre outros, e às de periódicos impressos como Ultimas Noticias, Venezoela Adentro, Diario Vea. Vez ou outra consultamos as páginas de emissoras e veículos impressos e eletrônicos da mídia privada na Venezuela, porém afora as demonstrações de despreparo, desespero e até histeria de que são acometidas pela situação em que vivem, encurraladas como estão pelo povo venezuelano e pelo elevado gráu de conciência política e existencial por ele conquistado nos sucessivos governos Chávez, não passam de meros clones das mídias congêneres de qualquer lugar do mundo e nada acrescentam como informação de interesse histórico. Para nós, o interesse por esses meios é só pelo poder que ainda representam nesta fase final de suas existências moribundas, ou pelo poder que está por detrás deles (igualmente moribundo), por força do qual são capazes, ainda que em completo desatino, de sustentar o combate. 16 Faltará aqui, é claro, já que não pudemos ir pessoalmente até lá, o sabor local, o sentimento e a vibração do momento histórico onde ele ocorre, e outras virtudes e qualidades que um testemunho in loco poderia acrescentar a este estudo. Também alguns erros ocorrerão, já que é impossível filtrar todas as certezas de tantas informações provenientes de tão variadas origens. Mas o leitor há de convir que estamos observando uma guerra midiática (o que, de certo modo, é força de expressão), e as fontes a que tivemos acesso foram justamente os veículos midiáticos envolvidos, portanto, válidos como matéria de substância para os propósitos deste trabalho, que não são, é preciso sublinhar, acadêmicos. Este autor preferiu seguir o caminho do registro de suas conclusões escritas durante e depois do desenrolar dos fatos, sempre na qualidade de telespectador, internauta e observador de mensagens e fatos históricos que testemunhou diante de seu computador, sem se preocupar com anotações preciosistas de detalhes, nomes próprios, referências, datações de precisão, anotações e demais chateações acessórias exigidas em trabalhos acadêmicos. Por outro lado, este trabalho tem também por objetivo trazer aos brasileiros e à Lingua Portuguesa uma leitura mais real e compreensível do que vem ocorrendo na Venezuela nos últimos anos, uma vez que a informação que aqui nos chega, pela via única da mídia hegemônica, é falsa, parcial, desinformativa e distorcida, além de produzida para afastar o povo brasileiro do projeto de integração latino-americano, evitando que tome conhecimento das enormes conquistas históricas e populares que na Venezuela se concretizam e evoluem através da Revolução Bolivariana. Tais conquistas podem e devem ser nossas também. Somos, eles e nós, física e culturalmente de tal forma semelhantes e irmãos que não há razões substantivas que nos impeçam de alcançá-las. E a Venezuela, vanguarda indiscutível do processo libertário continental, já tem tantas lições vitoriosas que não temos o direito de negligenciá-las. Eis porque consideramos o conhecimento sobre o que lá se está passando de vital importância para todos os brasileiros. Também queremos fazer a nossa Revolução. Antecedentes Já é consenso entre historiadores que o marco inicial do processo revolucionário venezuelano (e latino-americano no sentido de uma revolução anti-neoliberal) finca-se na rebelião popular que ficou conhecida como Caracazo, em 27 de fevereiro de 1989. Apesar do nome, o Caracazo não ocorreu apenas em Caracas, mas em todas as grandes cidades da Venezuela. O nome pelo qual ficou conhecido o fenômeno se deu porque a mídia hegemônica procurou abafá-lo e reduzi-lo a manifestações isoladas na capital do país. A verdade, porém, transbordou sobre as limitações impostas pelos meios de comunicação e até hoje se propaga pelas veias abertas da América Latina. Mesmo que os poderes públicos da época tenham impedido o registro e a divulgação de cifras oficiais, e tentado reduzí-las a algumas dezenas de vítimas, levantamentos de estudiosos e pesquisadores exibidos em recentes programas da TeleSur dedicados ao tema avaliam que, somente em Caracas, a polícia e as Forças Armadas assassinaram cerca de 1.400 manifestantes desarmados. No total, há quem estime em 3.000 ou mais mártires em todo o país, num só dia, todos de origens humildes e populares. A revolta se deu espontaneamente, logo após a publicação do pacote neoliberal do então recém-eleito e empossado presidente Carlos Andrés Perez, em afronta a todas as promessas de campanha. As primeiras medidas foram os aumentos dos preços de transportes e tarifas públicas. É evidente que a revolta não era esperada na dimensão em que ocorreu, e nunca se identificou uma organização, coordenação nem articulação centralizada ou localizada que 17 pudesse ser responsabilizada pela rebelião. O fato é que, em protesto contra a vil traição do presidente eleito, e simultaneamente em todas as regiões do país, rios de pessoas surgiam dos bairros pobres e periféricos ocupando as principais ruas, praças e avenidas centrais das grandes cidades, fechando o comércio, paralisando o trânsito, os transportes coletivos, os serviços públicos e tudo mais. Os movimentos estudantis também saíram em apoio aos populares. A atuação repressiva, coordenada a partir de Caracas, em emergência nacional, só piorou a situação: o povo a recebeu com barricadas, invasões, depredações de espaços públicos, saques a lojas e supermercados, queimas de ônibus e automóveis e confrontos violentos com policiais. Incapazes de conter os protestos, as Forças Armadas e a polícia receberam, de um comando desastroso e incompetente, tanto quanto fascista, a infeliz ordem de atirar para matar, inclusive nos que a desobedecessem. E deu-se a carnificina. Passados quase vinte anos daqueles trágicos eventos, o que nos impressiona - exceto por alguns fotógrafos independentes que colheram instantâneos bons e significativos - é a precariedade dos registros remanescentes, em especial os audiovisuais. Estes eram exclusividade dos veículos da mídia hegemônica, à qual não faltavam condições para obter bons registros da tragédia. Porém, se o fizerem, trataram de escondê-los ou destrui-los, e o que deixaram sobrar são sequências banais de arruaças e enfrentamentos de populares com policiais, com doses bem suavizadas de violência. Nenhuma morte foi registrada, nem mesmo comunicada ou reconhecida pelos tais "meios de comunicação". Mas, independente deles, o Caracazo não morreu com seus mortos. Já na madrugada do dia seguinte, enquanto nas vias públicas soldados recolhiam corpos empilhando-os em carrocerias de carretas e caminhões do Exército para enterrá-los às escondidas em valas comuns (muitas já descobertas e reabertas pelo governo revolucionário para devolver os restos mortais das vítimas às famílias e entes queridos, dar-lhes sepultamento digno e uma justa indenização em dinheiro), um racha irreparável se abria entre oficiais e efetivos das Forças Armadas, a maioria insatisfeita com a crueldade e a incompetência do comando central e do Estado Maior. Com o tempo, a insatisfação foi crescendo, e para isso diversos fatores contribuíram, a maioria já anotados por historiadores. A eles pode se somar, sem dúvida, a desconfortável situação dos fardados perante o próprio povo, refletindo até nas relações pessoais e familiares. As fardas, que já não eram bem vistas pela população, passaram a ficar inviáveis, pelo menos socialmente. Atraíam vergonha, escárnio, vaias e repúdio, onde quer que fossem vistas. Um outro dado importante, apesar de pouco observado por historiadores, é que a insatisfação dos militares era canalizada por uma organização revolucionária infiltrada nas Forças Armadas, numa estratégia bem sucedida da guerrilha venezuelana dos anos 60, dirigida pelo bravo Douglas Bravo, amigo de Che Guevara, que introduziu vários de seus quadros no serviço militar. Estes conseguiram a adesão de outros militares, entre eles Hugo Chávez e muitos dos atuais líderes do movimento bolivariano hoje no poder. A rebelião militar estalou em 4 de fevereiro de 1992, coordenada pelos insurretos para acontecer nos principais quartéis do país e, na capital, tomar o Palácio Miraflores e depor o presidente Carlos Andrés Perez. Estamos nos antecedentes da atual guerra midiática e, no centro dela, a Guerra dos Frames, que tem por palco a nação venezuelana. Foi o bloqueio da mídia hegemônica um dos fatores mais importantes para o fracasso da insurreição. Apesar de bem organizada do ponto de vista militar, teve traidores e recuos de última hora, e, o que é principal, faltou-lhe a necessária adesão popular, não porque esta lhe fora recusada, mas porque não chegou às 18 massas a informação que as mobilizasse no momento certo. O erro tático dos rebeldes foi contar com a difusão de seus atos pela mídia, o que, em seus cálculos, provocaria mobilização popular semelhante ao Caracazo, só que desta vez tendo as Forças Armadas ao lado do povo. Miraflores chegou a ser tomado, mas o presidente, avisado por traidores ao movimento, tinha abandonado o Palácio e estava escondido e bem protegido nos estúdios de Venevisión, a segunda maior rede de televisão da Venezuela. E a reação cercou o Palácio e prendeu os rebeldes, que eram comandados por Hugo Chávez. Porém, e nos parece que isto ainda não foi observado com a devida atenção, nos dois episódios, o Caracazo e o 4 de Febrero, a mídia hegemônica cometeu dois graves erros pelos quais agora paga caro. No primeiro, o "abafa" sistemático e odioso provocou, em curto prazo, a queda de credibilidade de seus veículos perante as massas. Os homens e as mulheres do povo não viram seus mortos nas telas de TV, e muito menos os relatos de heroísmos e martírios a que se submeteram. Pelo contrário, viram uma revolta que tanto lhes custara e na qual participaram massivamente, com espírito de justiça e patriotismo, ser transformada, por grosseira manipulação dos fatos, em mais uma arruaça irresponsável e inconsequente. No segundo episódio, no afã de conseguir a rendição rápida dos insurretos no interior do país, que já começavam a conquistar adesões populares, as TVs expuseram nacionalmente a figura do comandante Hugo Chávez, preso e expulso do Exército, a fim de humilhá-lo e dissuadir os companheiros. Apesar da situação desvantajosa, Chávez não perdeu a oportunidade que se abria à sua voz e fez o primeiro discurso histórico de repercussão nacional. Nesse discurso, que o tirou do anonimato e o projetou internacionalmente, além de isentar os companheiros de responsabilidade nos eventos, pediu-lhes que baixassem as armas (“por ahora”) para evitar derramamento de sangue. E assumiu sozinho toda a responsabilidade pelos acontecimentos, o que lhe custou dois anos de prisão. Em 1994, ao ser libertado, conquistou o povo venezuelano com duas entrevistas numa emissora de televisão (TV Oriente), hoje extinta, num fenômeno muito semelhante ao de Brizola, no Brasil, em 1980, quando retornou do exílio (de que nos recordamos bem). Naquelas duas entrevistas, Chávez expôs com clareza cristalina o projeto revolucionário socialista que vem até hoje realizando, linha por linha, sempre a aprimorá-lo e a radicalizálo, passo a passo. Quatro anos depois, em 1998, Chávez seria eleito presidente da Venezuela enfrentando o poderio da mídia hegemônica e das oligarquias do país, as quais, cientes do erro cometido anos antes, procuravam recuperar-se e promoveram contra ele intensa e desonesta campanha difamatória. Num programa recente da viVe TV sobre os acontecimentos daquele 4 de Fevereiro, vimos uma entrevista atual com um popular, um homem de cerca de 60 anos, forte, grisalho e bem vestido. Com firmeza e em bom espanhol, ele assim respondeu à pergunta que lhe fora feita, de sopetão, em plena rua: "Quando vi na televisão aquele homem, diante do país inteiro, dizer serenamente que assumia sozinho a responsabilidade por toda aquela confusão, pensei na mesma hora: eu nunca tinha visto ninguém neste país assumir responsabilidade por coisa alguma! A partir dali, não mais me esqueci disso e nem deixei de dar a ele o meu voto. Já votei nele umas oito ou nove vezes, e votarei nele em quantas eleições se candidatar, pois nunca me arrependi!" 19 Apesar do mau trocadilho, não há como recusar a Chávez o papel-chave na deflagaração da guerra midiática na Venezuela, ainda em curso. Desde aquele primeiro discurso, ele percebeu que era bom comunicador, ou melhor, um comunicador nato. E, de fato, o é, e vem demonstrando isso a cada dia que passa. Além do mais, é um grande estrategista militar e político, possui inteligência, intuição e memória brilhantes, é estudioso e cultiva, em profundidade, a arte e a literatura. É ao mesmo tempo um político, um militar e um artista. Foi valente agitador político, sem deixar de ser bom soldado e bom oficial nos quartéis do Exército. Escreveu peças de teatro e em uma delas foi bem sucedido (O Gênio e o Centauro, peça premiada pelo Teatro Histórico Nacional de Venezuela). Tem ouvido musical, canta e declama bem, com voz boa e bem colocada. Na campanha de 98, revelouse excelente político, de invejável carisma. Da Oratória, tornou-se virtuose (os acadêmicos discordarão, mas... que fazer?). Ideologicamente, é de uma firmeza invulgar. Suas convicções socialistas e nacionalistas são, comprovadamente, em todos os testes por que passou em sua fulgurante trajetória existencial e política, inquebrantáveis (os "esquerdistas" discordarão, mas... que fazer?). Tudo isso vem temperado com ótimo humor. Chávez chega a ser engraçado em certos momentos. E é sempre simpático e gentil, dizem as mulheres. Sabe esconder seus defeitos, e como mantê-los a salvo da perseguição implacável de poderosos inimigos, que ainda não puderam encontrar ou exibir algum que o desabonasse ou o denegrisse de forma convincente (os oposicionistas discordarão, mas... é a História!). Há nele, entre outras mais, duas virtudes que não podem ser deixadas sem registro aqui: capacidade (impressionante) de trabalho; e de escolha dos quadros que o cercam, tanto pela competência na execução de seus comandos, como pela lealdade com que os exercem, lealdade que, pelo menos em muitos casos notórios, é mantida mesmo depois de substituídos ou recolocados. Além de grande estrategista, Chávez tornou-se grande estadista. Ao assumir o poder presidencial em 1998, apesar de fazê-lo pela primeira vez em qualquer das instâncias do poder político, o fez como se tivesse longa experiência de vários mandatos e fosse profundo conhecedor dos melhores ensinamentos de Maquiavel. De imediato, cortou vínculos e amarras que poderiam afetar seu poder de mando, inclusive rompendo com aliados estratégicos como Teodoro Petkoff, que desviou-se à direita (na qual atua hoje como raivoso opositor), e Douglas Bravo (que lhe faz oposição construtiva em posição ainda mais à esquerda). Soube escolher ministros e assessores próximos, supervisioná-los, dirigi-los e aglutiná-los em sólida e unida equipe de governo. Durante seus mandatos, demonstrou saber o momento de alterar composições de cúpula sem deixar que vazassem crises, cisões e fragmentações negativas. Enfim, recolheu para si as rédeas do poder e as mantém firmes em suas mãos. E, desde o primeiro dia em que assumiu a Presidência, tendo apenas a funda de Davi como arma e sem abrir mão de uma vírgula de seu projeto original, entrou em guerra sem trégua contra o Golias midiático. A guerra midiática O conceito estratégico-militar atualmente definido como "guerra assimétrica" deve ser, na verdade, tão antigo quanto a legendária luta entre o pequeno Davi e o gigante Golias. Um comandante bem preparado como Hugo Chávez sem dúvida o domina bem, tal é a maneira como o aplica no combate que corajosamente propôs ao povo venezuelano enfrentar e, de resto, aos povos do mundo inteiro, e no qual colocou-se a si mesmo na posição de ponta de lança. 20 Contudo, não precisamos ser estrategistas para aprender, na lição antiga de Davi e Golias, que a desvantagem assimétrica do pequeno em relação ao gigante vem a ser compensada pelo poder da verdade ou da razão que move o primeiro à luta, e pela habilidade dele em valer-se das próprias virtudes e das fraquezas do inimigo durante o combate. Ora, o núcleo de toda comunicação é o pensamento de quem a comunica que se quer transmitir a quem a recebe. Primitivamente, este pensamento é criador pois tem de ser transformado em palavra ou texto (mensagem) que sai da boca do comunicador (emissor) para o ouvido do receptor. A comunicação é, portanto, uma linguagem essencialmente dialética, na medida que pressupõe o retorno crítico ou analítico em relação à mensagem, por parte do receptor. Não é à toa que os antigos gregos advertiam para os cuidados com o que se deixa passar pela "barreira dos dentes". A advertência é válida nos dois sentidos. Os gregos entenderam que, tal como na alimentação, sem os cuidados necessários, já no mais primitivo meio de comunicação haverá sério risco de a mensagem corromper o pensamento que a originou, podendo produzir até efeitos opostos a seus propósitos. Com o advento da escrita, um outro perigo se somaria ao anterior: o da manipulação da mensagem por terceiros. Sendo a escrita a mais antiga tecnologia aplicada como meio de comunicação, as demais que a sucederam até os atuais frames, se ampliaram a capacidade de difundir a mensagem, ampliaram também, e muito, o perigo de manipulação dela. E quanto mais se desenvolveram as sucessivas tecnologias, mais restrito se tornou o poder sobre elas e mais vulnerável ficou a comunicação de ser corrompida ou manipulada pelos proprietários dessas tecnologias (meios). Até meados do século 20, ainda se observava certa postura ética, mais ou menos rigorosa, de preservação ou um mínimo de corrupção do núcleo da comunicação. Travava-se, então, nos meios de comunicação, um combate dialético entre os pensamentos de esquerda e de direita, numa época em que até a direita possuía um pensamento. Não havia ali uma guerra midiática mas, sim, uma disputa interna nos próprios meios de comunicação, pelo poder de dominá-los. Nos fins dos anos 1950, derrotado o pensamento de direita, enquanto tal - com óbito atestado por Simone de Beauvoir (O Pensamente de direita, hoje - 1955), - o capitalismo, amedrontado, optou por deixar de ter pensamento e abandonar os pudores éticos em relação ao núcleo da comunicação, a fim de conquistar os meios a qualquer custo. Como tática de jogo sujo, naquela década e posteriores passou a utilizar a força de seus poderes imperiais para criar a mídia hegemônica e estabelecer o "pensamento único" ou o "não-pensamento", uma vez que, por sua natureza essencialmente humana e dialética, o pensamento, qualquer que seja, é sempre criador, crítico e analítico, sendo, portanto, plural, jamais "único". Tal termo só teria emprego (discutível) na definição de comandos automáticos ou robóticos, ou do instinto animal, o que, de qualquer modo, se aprendemos as lições geniais de Álvaro Vieira Pinto, o torna sinônimo de "não pensamento". Neste trabalho, usaremos os termos "pensamento único" ou "não pensamento" como sinônimos e definidores de uma das ferramentas de manipulação de que se vale o que chamamos pattern (padrão) midiático. Veículos de comunicação que contestaram ou não aderiram a essa ditadura midiática foram destruídos e eliminados, e a regência global de todos os que integraram a "nova ordem" passou a ser ditada diretamente do Pentágono (código mainstream). Já pelos anos 1980, percebendo que a história não lhe era favorável, a direita, em mais uma cartada suja e desesperada, tenta decretar o "fim da história", e, num processo perverso que rotulou de "globalização", tentou afastar em definitivo a linguagem de comunicação de sua essência dialética, ao fazer com que os meios se confundam com as mensagens. 21 Tudo isso tem por única preocupação manter o modo de produção capitalista em vigor nos países hegemônicos e exacerbado ao máximo nas nações por eles dominadas, sob a tutela e em benefício exclusivo do império anglo-estadunidense e seus interesses, ainda que tal estratégia claramente negativadora dos mais essenciais valores humanos, como a diversidade plural de pensamento e a dialética da comunicação - ambos tão necessários à humanidade quanto a diversidade do ecossistema para a Natureza -, seja obviamente suicida, pondo em sério risco a própria existência humana no planeta Terra. Mas o capitalismo tem suas contradições, já identificadas por Marx e Engels, e, entre estas, é a de que traz no bojo de seu processo histórico um inevitável e forte vetor revolucionário. As sucessivas inovações tecnológicas dos meios de comunicação produzidas no sistema de competição autofágica que o capitalismo impõe a si mesmo e ao mundo na busca incessante dos favores do Deus Mercado acabou por gerar nova etapa de tecnologia - a era digital -, que, à revelia de seus objetivos originais, logrou democratizar, como nunca antes em toda a história, o acesso aos meios de comunicação a todos os que deles querem se valer, com um mínimo de recursos materiais ou financeiros. Se nas tecnologias antecendentes à era digital, hoje chamadas "analógicas", os meios de comunicação eram restritos a grupos capitalistas de alto poder econômico, nesta nova era ou etapa da tecnologia os profissionais de comunicação e autores que não serviam ou eram não alinhados aos interesses e ideologias neoliberais desses grupos, até então excluídos, marginalizados e impedidos de atuar pela ditadura midiática do processo de "globalização", passaram a ter acesso a meios alternativos. Estes meios, operados individualmente ou por micro ou pequenas organizações independentes, lhes possibilitaram ampla difusão de pensamentos (conteúdos - núcleos de comunicação). Deu-se, assim, início ao surgimento de uma nova mídia que a cada dia se projeta mais capaz de competir com a mídia hegemônica em qualidade de edição e capacidade de distribuição e difusão de mensagens, e que a cada dia mais vem se capacitando para disputar audiências em grandes amplitudes, inclusive das massas "invisíveis", até então cativas e exclusivas da mídia hegemônica. Essa nova mídia, que se pode chamar também de mídia alternativa, projeta-se nos espaços que vai abrindo nas formas de expressão impressa, radiofônica, audiovisual e eletrônica (internet), sem que se tenha descoberto até o momento, por parte da mídia hegemônica e seus manipuladores, um meio eficaz de contê-la ou controlá-la. Já se faz perceptível a penetração da nova mídia em ampla gama de atividades comerciais, culturais, institucionais políticas e sociais, de variadas colorações ideológicas, mas dentro dela se destaca, forte, uma mídia jornalística de opinião e cultura que se propõe a bater de frente com a mídia hegemônica, e derrogar em definitivo o caráter hegemônico e ditatorial de sua prevalência perante o grande público. Podemos chamá-la, desde já, de mídia de resistência. Seu crescimento e penetração tem se revelado um fenômeno de enorme importância. Ainda que tal fenômeno se verifique em escala mundial, na Venezuela ocorreu um fator histórico que a tornaria caso único, uma vez que não se registrou nada semelhante em nenhuma outra nação. Em 1998, Hugo Chávez assume a presidência e agrega à mídia de resistência os poderes de Estado. Em primeiro lugar, o poder institucional, criando instrumentos de legalização e direito de atuação dos diversos veículos de resistência, até então na ilegalidade, na clandestinidade ou semi-clandestinidade, e, de imediato, livrandoos da repressão fiscal e policial que lhes era impiedosa (e ainda o é na maioria dos países, 22 inclusive o Brasil). A seguir, o poder econômico, estabelecendo relações legítimas e legais entre o governo e a mídia de resistência a fim de fomentá-la e viabilizá-la, inclusive recrutando os melhores valores intelectuais e profissionais nela revelados para atuarem nos veículos de comunicação do Estado, tornando-os, desde logo, fortes aliados no combate contra a mídia hegemônica. E, enfim, o poder militar, recém ideologizado para a defesa nacional do socialismo bolivariano e, portanto, defensor e protetor dos veículos da mídia de resistência. Pela primeira vez na história, a mídia de resistência tem um Estado poderoso que a abrigue das intempéries do mundo capitalista e das perseguições de seus algozes. Tudo isso também agrega o que é mais importante para qualquer veículo midiático: o acesso à informação nos mais altos níveis de confiabilidade. Ou seja, a mídia de resistência - independente, não estatal, alternativa e anti-capitalista -, conquista, pela primeira vez, uma pátria. E esta pátria se chama Venezuela. Essa adesão dos poderes de Estado à mídia de resistência foi entendida pela mídia hegemônica como uma declaração de guerra. Guerra contra o Estado, contra seus chefes, próceres, políticos e militantes, contra seus eleitores e simpatizantes, contra suas instituições civis e militares, contra seus veículos de comunicação e contra os veículos de comunicação da mídia de resistência. Como tudo isso hoje representa naquele país uma maioria avassaladora, já demonstrada na sequência de nada menos que doze eleições e referendos vitoriosos em cerca de oito anos, pode-se dizer que a guerra midiática é também contra o povo e a democracia venezuelana. Os fatos que se sucederam ampliaram o cenário do conflito para o plano mundial e, assim, pode-se dizer, também, que, ao aliar seu governo à mídia de resistência, Hugo Chávez deflagaria o que, no futuro, os historiadores poderão chamar de Primeira Guerra Midiática Mundial. O inimigo Mais uma vez, Marx tinha razão: o capitalismo é a nossa pré-história. Somente com o socialismo a Humanidade inaugurará a fase histórica de nossa existência. Apesar de todo o conhecimento e tecnologia desenvolvidos ao longo dos últimos três mil anos, Molloch, que agora atende pelo nome de "Market" ou "Mercado", permanece devorando, em quantidades cada vez mais horripilantes, as vidas humanas que lhe são oferecidas em cruéis sacrifícios de adoração primitiva e desumana. Nas duas últimas décadas, esse deus primário, tenebroso e insaciável - ao qual a antiga Cartago às vezes oferecia centenas de jovens vidas em holocausto - recebeu-as e devorou-as aos milhões. Em princípio, nada mudou, exceto a quantidade de vítimas, a desproporção de desumanidade e a tecnologia de matança. Molloch/Market tem hoje um olho tecnológico - a mídia hegemônica. Orwell a batizou de Big Brother, o "grande irmão" todo-poderoso, onipresente, vigiando e hipnotizando a Humanidade e transformando-a em gado para abate no matadouro de Molloch. Este Golias tem muitas cabeças que saem de um só corpo que as alimenta (o pattern midiático). É, na verdade, uma Hidra, a Hidra Midiática, a princípio e aparentemente, invulnerável e imbatível. Mas, como veremos, nem sempre... Ao pisar pela primeira vez em Miraflores como presidente da República, Chávez já trazia consigo uma experiência pessoal do poder de fogo da mídia hegemônica, ainda que a meia carga ou carga de demonstração. Sua eleição não fora propriamente uma primeira batalha. A arrogância da mídia hegemônica por vezes permite-lhe deixar passar certos percalços, tais como a eleição, contra a vontade dela, de um líder que demonstra real popularidade. 23 Porém, com a certeza de cooptá-lo logo depois de eleito, como fizeram com Lula no Brasil. Daí porque moderar o fogo e dar só uma demonstração dele durante a campanha. Com Chávez, mais uma vez, erraram os estrategos da mídia hegemônica. Com a inteligência, a intuição e o talento de estrategista, Chávez não perderia aquela primeira oportunidade de conhecer de perto o inimigo e de sentir a força dele na prória pele. Na época, o monopólio da mídia hegemônica no país era absoluto e basicamente constituído por quatro grandes canais de televisão aberta em VHF (RCTV, Venevisión, Televen e Globovisión, pela ordem de importância e poder de fogo), dezenas de rádios AM e FM, os grandes veículos de mídia impressa periódica e publicitária, além de diversos canais de televisão por cabo, satélite e emissão aberta em UHF. Todos em uníssono comunicacional. De resto, com pequenas variações quantitativas ou qualitativas, era essa a realidade, com raras exceções, em todos os países das três Américas e em todo o mundo. Conhecer o inimigo em termos estratégicos, não precisamos ser especialistas para sabê-lo, significa encontrar seus pontos fracos. E, desde que Dalila cortou os cabelos de Sansão, sabemos que, em geral, os pontos fracos dos fortes estão nas origens de suas forças. Ora, onde estará a força (e, por boa probabilidade, a fraqueza) da mídia hegemônica? Como ferramenta manipuladora da comunicação, o pensamento único exige um emissor não pensante e também um receptor não pensante. Seu uso, enquanto tal, é restrito aos que manipulam estes dois atores fundamentais do ato comunicacional. Caberá ao ente emissor apenas emiti-lo, e deste não se necessita conciência nem participação na sua construção, desde que, por ser único ou inexistente, já exclui o pressuposto dialético da resposta por parte do ente receptor. Pois o que se pretende deste último é, além da adesão consciente ou não ao pattern manipulador, a obediência cega ao seu comando, onde, enfim, residirá a força e o poder da mídia hegemônica e, por conseguinte, de seus manipuladores. A questão a resolver é que, na comunicação midiática, somente o primeiro dos dois atores é de domínio exclusivo de seus manipuladores, e, com certa facilidade, se pode fabricar o boneco ou boneca midiática para o papel de ente emissor, apesar de que o atual estágio da tecnologia os obrigue a fabricá-los a partir de seres humanos, enquanto aguardam que a robótica possa enfim fabricá-los mais facilmente, além de mais baratos e mais funcionais o boneco midiático robótico ideal. Porém, o outro ator, o receptor, em princípio estaria fora de domínio, e nem sempre se poderia contar de antemão com adesão ou obediência dele, especialmente se o comando emitido vai contra a sua conciência ou seus interesses. Sendo assim, a mídia hegemônica visa, desde logo, o receptor mais incapaz de ter acesso à própria conciência e ao conhecimento dos próprios interesses, e, quanto maior for a quantidade de pessoas nessa condição, maiores serão a força e o poder da mídia hegemônica. Eis porque ela exerce e promove, desde a década de 1960, o combate (cuidadosamente camuflado) à educação pública e gratuita, ou seja, à principal via de acesso da maioria da "populaçãoalvo" à consciência e ao conhecimento de si mesmo por parte de cada um de seus indivíduos. Exemplos históricos são muitos. O mais notório foi o combate letal e bem sucedido promovido pela Rede Globo de Televisão brasileira contra a iniciativa dos CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública) de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro. Quando no governo do Estado do Rio de Janeiro, entre os anos de 1982 e 1985, o primeiro como governador do Estado e o segundo como secretário de Educação, ideólogo e mentor do projeto, ambos fizeram construir e implantar uma avançada e sofisticada rede de 500 novas escolas 24 públicas, projetadas e inauguradas nos moldes "bolivarianos" (escola em tempo integral, com três refeições ao dia, assistência médica e odontológica, transporte gratuito, esportes, cultura, remuneração justa do corpo docente, etc). Mesmo tendo conseguido realizar tal façanha, o combate contínuo da poderosa emissora, desqualificando o projeto e seus mentores, logrou impedir que Brizola elegesse Darcy Ribeiro para sucedê-lo, e o projeto caiu nas mãos de seus detratores de oposição. Eleito presidente da República em 1989, pela força da mesma Rede Globo, que inclusive promoveu e deu respaldo à fraude eleitoral contra Brizola para evitar que fosse seu principal adversário no segundo turno, Fernando Collor, uma vez no poder e em rebeldia contra os patrocinadores de sua eleição, decidiu retomar o projeto brizolista em nível nacional. Tão logo a decisão pareceu irreversível, Collor foi destituído por um impiedoso golpe de Estado midiático (1992/3), capitaneado pela própria rede de televisão que poucos anos antes o levara ao poder. E, desde então, nunca mais se construiu sequer uma única sala de aula de ensino público no Brasil. E não ficou nisso. As escolas públicas sobreviventes ao processo de destruição, a maioria construídas nas décadas de 1950/60, foram administrativa e fisicamente arruinadas desde os anos 1970/80, ao ponto de inviabilizarem seus edifícios, todos em estado de ruínas e cujos telhados despencam. Há ocorrências em que heróicos professores, ao persistirem na dedicação a tais escolas, procuram obter cessão gratuita de locais que não funcionam durante o dia (bares noturnos, boates, danceterias ou "inferninhos") para neles continuarem ministrando aulas. E a infância brasileira de origem humilde, se às vezes logra receber primeiras letras, não raro o faz nesses impróprios, quando não, tenebrosos ambientes. Um outro vetor importante de fortalecimento e poder da mídia hegemônica está justamente no habitat que cria para si mesma nas sociedades em que atua. Em verdade, para sobreviver e ter força, o pensamento único tem de ser realmente "único". E para ser assim, há de ser seu habitat um ambiente de opressão, de fraqueza das instituições democráticas, de fragmentação e destruição dos espaços libertários e de redutos de pensamento crítico, além da subordinação obediente por parte da população ao statu quo opressivo e opressor. Não é mera coincidência o fato de que a midia privada esteja por detrás (muitas vezes à frente) de todos os golpes de Estado fascistas que ocorreram na América Latina, desde os anos 1960. Convém-lhe, ou melhor, lhe é essencial o Estado fascista, entreguista e pseudoestabilizado à força de polícia e opressão militar. Um estado totalitário, submetido à sua arrogância manipuladora, e completamente sem liberdade de expressão, lhe é o habitat ideal, onde prospera, se fortalece e se torna poderoso o pattern comunicacional. Aliás, este nada mais é do que o próprio fascismo atualizado e disfarçado de "democracia" ou até mesmo, como difunde o próprio pattern, de "liberdade de expressão". Com o tempo, nos países de Terceiro Mundo submetidos à ditadura midiática, ocorre o inevitável esfacelamento das instituições políticas e a perda dos valores nacionais. E os meios de comunicação se tornam poderosos ao ponto de assumirem funções decisivas de Estado, substituindo inclusive as funções de partidos políticos e de diversas instituições públicas, e controlando os três poderes constituídos nas repúblicas atingidas. Muitos serão hoje os fatores de força e poder da mídia hegemônica, incluindo-se o poder econômico e imperial que a sustenta, mas, para este autor, serão nos dois mencionados logo acima - o pensamento único e a mídia privada - em que se concentrou Chávez, por encontrar neles os pontos fracos do inimigo contra os quais poderia atacar e destruir a hegemonia da mídia imperialista na Venezuela. 25 Os primeiros combates Desde a campanha eleitoral, ficou claro que a estratégia de Hugo Chávez para o confronto assimétrico com o statu quo tinha por doutrina uma revolução criativa e não violenta. Confirmam-no, com segurança, as duas entrevistas que deu em 1994, onde já expunha com clareza essa doutrina. Somente sob a proteção de boas leis e a ação efetiva e conjunta dos três poderes da República, por sua vez legal e institucionalmente bem instrumentados, haveria chances de sucesso nas batalhas que previa. Mas, como todo líder revolucionário, Chávez sabe muito bem que nada disso poderia funcionar sem a adesão maciça do povo. Claro, nenhum de seus planos poderia excluir o vetor principal de força e poder revolucionários. De imediato, aproveitando o impulso de sua popularidade, da vitória eleitoral e da força política que o levava ao poder, tão logo pisou em Miraflores tratou de convocar um referendo para consultar o povo sobre a redação de uma nova Constituição, aliás, um pleito de campanha. Propunha a transição da "democracia representativa", como se autointitulam os sistemas neoliberais, para a verdadeira democracia participativa. A resposta midiática, também de imediato, contestou a proposta e, manipulando os partidos derrotados de oposição, propugnou pelo "no". Com tal decisão, a oligarquia venezuelana, controladora da mídia hegemônica no país, não fazia mais que dar continuidade a uma inacreditável sequência de erros e derrotas em suas disputas com Chávez. A qualquer observador ou analista dos fatos históricos em nosso continente, impressiona a estupidez das elites e oligarquias latinoamericanas. Como são previsíveis, como são simplórias em seus raciocínios! Nelas impera, antes de tudo, um preconceito irracional e sem sentido. É bastante um "mulato" irreverente como Chávez pleitear o poder para lhes despertar a arrogância de pretensos "brancos" nobiliárquicos e fazer vazar um ódio histérico e agitado, incapaz de abrigar qualquer bom senso ou análise serena da situação. E não aprendem! É claro, foram mal acostumados. Sempre puderam se dar ao luxo de cometer todos os erros, até os mais grosseiros, os mais absurdos. Também nunca necessitaram fazer reflexões, autocríticas ou avaliações imparciais das próprias atitudes. Na hora H, derrotadas por todas as vias democráticas, políticas e legais, bastavalhes pedir socorro ao 7º de Cavalaria e tudo se resolvia. A bem da verdade, o general Custer poucas vezes visitou o quintal dos EUA onde habitamos. É-lhe suficiente mandar tocar a corneta para os cucarachas locais, que previamente leva à Escola das Américas onde os instrui e os arma para cair sobre seus próprios povos, e prontamente obedecerem. Mas não na Venezuela. E, muito menos, com o esperto e audaz Hugo Chávez no poder. Chávez ocupou a presidência de um Estado saqueado, aviltado, quase sem poder. Praticamente todas as boas fontes de mando e poder foram usurpadas e surrupiadas ao Estado venezuelano nas duas décadas anteriores, com anuência e participação de governos entreguistas e neoliberais. As grandes estatais e toda a infra-estrutura do país haviam sido privatizadas, incluindo os sistemas de educação, saúde, transportes e tudo o mais, quase doados a grupos locais e multinacionais, e a seus capangas das elites nativas. Ao Estado, com Chávez, restava o apoio popular legitimado pelo voto (56,2%, ainda com alto índice de abstenção) numa coligação de inúmeros pequenos partidos políticos, e o setor das Forças Armadas que lhe era fiel. Tudo mais, inclusive os grandes partidos políticos, estava nas mãos das elites nacionais e "sócios" estrangeiros. 26 A proposta do MVR (Movimento 5ª República), que elegeu Chávez e reunia mais de trinta pequenos partidos de esquerda e centro-esquerda, era mudar esse quadro de forma gradual e não violenta, negociando passo a passo, caso a caso, as necessidades mais urgentes de um povo cuja imensa maioria fora miserabilizada e praticamente ignorada pelo Estado. Para os meios de comunicação nacionais e internacionais, essa maioria era invisível, isto é, não existia. Mesmo assim, o raciocínio mais banal e sereno, para as elites, deveria ser o de ir à mesa de negociações com o novo poder legítimo e abrir mão de alguma coisa. Mas, o quê? Negociar com o "gorila", o "charlatão" e sua "gentinha"? Pois deu no que deu. No referendo (15 de dezembro de 1999), cujo resultado foi um massacrante 86% dos votos no "si", os até então "grandes" partidos políticos, que, manipulados pela mídia hegemônica, apoiaram o "no", foram reduzidos a pó. Na seqüência dessa primeira vitória, chamou-se para a votação nos deputados constituintes, e o MVR elegeu 66% deles. No decorrer dos trabalhos, o texto original proposto por Chávez, chegou a receber 90% de adesão e foi consagrado quase integralmente, linha por linha, como a Constituição da nova "República Bolivariana da Venezuela". Com todos os canhões da mídia hegemônica troando forte contra o processo constituinte, um novo chamado de referendo teve de ser feito para a aprovação do eleitorado ao texto votado. Uma poderosa campanha pelo "no" tomou conta de todos os espaços possíveis, até do ar que se respira. E o resultado? 72% "si"! Somente nesse curto processo constituinte, de menos de um ano, Chávez ganhou a possibilidade de se reeleger por mais seis anos nas eleições convocadas para o ano 2000, a possibilidade de releger-se depois por outros seis anos, de eleger uma nova Assembléia Nacional (num congresso unicamenral), de eleger novas autoridades dos poderes judiciário, fiscal e eleitoral, todos estes poderes, legislativos e judiciários, até então sob o controle total, direto ou indireto, das elites oligárquicas do ancien régime (4ª República). Não sabemos se Chávez conheceu Brizola, Darcy Ribeiro e os CIEPs do Rio de Janeiro. É provável que sim. Chávez demonstra bom conhecimento do trabalhismo brasileiro e tem revelado predileção especial pelo presidente João Goulart, entre os chefes de Estado históricos do Brasil. Se conheceu, com certeza deve ter extraído lições preciosas daquela história de um fracasso. Uma delas é que um processo de mudanças radicais, em enfrentamento com interesses hegemônicos e imperialistas, requer o estabelecimento prévio de novas leis que equipem o Estado de poderes suficientes para impô-las e ao mesmo tempo reter o assalto aos cofres públicos e às riquezas nacionais. Enfim, uma nova Constituição que se coloque bem distante do perfil neoliberal das Constituições que vigoravam em quase todos os países latino-americanos na década de 1990. Este foi um erro de Brizola: tentar mudanças radicais sem a força de novas leis, ainda que, no caso dele, em esfera estadual. De qualquer forma, foi um erro que Chávez não cometeu. Assim, com a democracia participativa implantada legalmente, à revelia das elites e das campanhas da mídia hegemônica, o governo Chávez tratou de fomentar o processo de educação em massa, além de incrementar a Saúde Pública. Para tanto, deu início ao aprofundamento das relações com a Revolução Cubana, que vivia dias difíceis pela queda da URSS e o bloqueio dos EUA. Essa relação não só seria salvadora para a Revolução Cubana como traria para a Revolução Bolivariana de Venezuela todo um conhecimento e uma vivência que lhe seria fundamental, em especial, nas áreas de Educação e Saúde. 27 Reeleito em 2000 com 59% dos votos (ainda com grande índice de abstenção), para seis anos de mandato (2001-2006), Chávez insistia nas tentativas de negociar com as elites. Teve por resposta o incremento da força oposicionista contra seu governo, desta vez assumida diretamente pelos canais midiáticos mais poderosos, em especial os televisivos, e diversas instituições como a FEDECÁMARAS (a maior federação empresarial do país) e a pelega CTV (Confederação Venezuelana de Trabalhadores), com o apoio declarado do governo dos EUA, apoio este que seria reforçado com a eleição de Bush II, o cowboy texano. Esse fenômeno deve ser sublinhado aqui, pois foi a primeira vez que a mídia hegemônica assumiu direta e nominalmente a sua condição de co-ator político, não legítimo, sem se esconder por detrás de partidos por ela manipulados. Porém, como já vimos, ao longo de todo o processo, desde 1992, a cada passo ou a cada erro, a mídia hegemônica perdia credibilidade perante o povo venezuelano, com reflexos em toda a América Latina. Por sua vez, Chávez incrementava seu próprio projeto midiático, fortalecendo a VTV e as rádios e televisões comunitárias, além de incentivar e ajudar a diversos jornais e revistas independentes, impressos e eletrônicos. Percebendo as sucessivas perdas, as elites e a mídia hegemônica, com apoio declarado de Washington, decidiram sair definitivamente dos trilhos da legalidade para tentar um golpe de Estado que derrubasse de uma vez por todas a "ditadura castro-comunista" de Hugo Chávez. A conspiração tinha a adesão assumida e declarada de parte importante da cúpula das Forças Armadas e toda a Polícia Metropolitana de Caracas, a FEDECÁMARAS, as grandes empresas estatais privatizadas (PDVSA, CANTV, Cias de Eletricidade, SIDOR, etc), a CTV, a Igreja Católica, todas as ONGs estabelecidas no país vinculadas a interesses imperialistas, a grande maioria dos pequenos e médios empresários, das classes médias e altas, dos políticos de oposição, de dissidentes do chavismo, e 95% da comunicação midiática de real influência e grande audiência no país. O processo conspiratório foi detonado ainda no início de 2001, com uma declaração-senha do ex-presidente Carlos Andrés Perez, pela televisão, logo seguida de uma série de atos isolados de boicotes, greves e sabotagens, ao longo de todo aquele ano, concatenados para desgastar o governo e fragmentar suas bases, sendo tudo coordenado, sob a supervisão da CIA e do Pentágono, pelos veículos da mídia hegemônica, então capitaneada por Venevisión, com apoio uníssono de todas as demais. Como vimos na introdução deste trabalho, o golpe foi desfechado em 11 de abril de 2002, tendo sido abortado menos de 48 horas depois, no dia 13 de abril. A Venezuela pagou 19 cidadãos assassinados por franco atiradores contratados pelos golpistas e por atiradores da polícia metropolitana, que tinham planos comprovados para o assassinato de centenas de cidadãos (cerca de 400). Desta vez, as equipes da VTV, TVs e rádios de resistência, jornais e fotógrafos independentes, não só atuaram bravamente junto a heróis resistentes armados que respondiam ao fogo policial para impedir o massacre, denunciando-o ao vivo, como também conseguiram registros preciosos de toda a tragédia. A partir desses registros, vários documentários foram realizados com sucesso, entre os quais, destacamos Puente Llaguno claves de uma masacre (dir. Angel Palácios, 2004), sobre o qual redigimos um artigo tão logo tivemos a oportunidade de visioná-lo, pelo ineditismo de linguagem de um registro histórico, pioneiro na história do cinema, que só se tornou possível graças à mídia de resistência equipada, fomentada e livre para existir e produzir em sua pátria venezuelana. Com o fracasso golpista, a Revolução Bolivariana de Chávez ganhou um fôlego inaudito e inesperado. Os militares e funcionários públicos envolvidos foram expulsos das Forças 28 Armadas, dos órgãos e entidades públicas em que se mantinham, e, junto aos demais conspiradores, tiveram de prestar contas à Justiça em processos que o Ministério Público desfecharia contra eles, inclusive por razões criminais. Os cargos militares e públicos liberados foram ocupados por funcionários leais ao governo. Os cabeças da conspiração tiveram de sair do país para fugir às penalidades que com certeza lhes seriam impostas por atos criminosos e de traição à Pátria. Muitos deles ainda são procurados pela polícia e encontram-se "exilados" em Miami ou em outros "paraísos" do Império. Os golpistas perderam as Forças Armadas, em suas três armas, e a Guarda Nacional, toda a Polícia Metropolitana de Caracas, muitas das polícias estaduais e municipais em todo o país, as principais lideranças da FEDECÁMARAS, da CTV (reduzida a nada), muitas cúpulas dirigentes das empresas estatais privatizadas e boa parte do apoio de boa fé que lhes fora dado pelas classes médias e altas e por pequenos e médios empresários. E a credibilidade da mídia hegemônica, que já não era lá essas coisas, foi para o espaço: sua audiência começou a despencar em favor do crescimento da estatal VTV. A partir daí, também a situação dos fardados mudou radicalmente. As fardas voltaram a trazer o orgulho, a simpatia e o respeito de todos. Militares eram aplaudidos quando entravam uniformizados em espetáculos, peças teatrais, cinemas e eventos sociais, ou quando chegavam a seus bairros e se viam cercados por crianças pedindo autógrafos. Chávez mandou colocar nos quartéis e instalações militares cartazes e faixas com uma frase famosa de Bolívar: "Maldito seja o soldado que ataca o próprio povo!" Além do mais, Chávez deu ali o início do incremento em alta escala de investimentos e reequipagem das Forças Armadas, sem precedentes e ainda em curso, envolvendo grandes obras de engenharia, montagens de indústrias bélicas, compras de equipamento e material bélico pesados, leves e estratégicos, de sistemas sofisticados de radares e de tecnologia de informação e inteligência, aumentos substanciais de soldos e benefícios, ingressos de novos contingentes (a UNEFA, academia de formação militar das Forças Armadas, tinha 600 alunos em 1998; hoje são 180.000, e os planos para 2010 pretendem capacitá-la para 1.000.000 de alunos), e inúmeras outras medidas, algumas delas em segredo de Estado. Mas, como dissemos, os golpistas não aprendem! Mesmo com o fracasso do golpe, não se deram conta das perdas que sofreram e nunca morria neles a esperança de o general Custer chegar triunfante em Caracas, ao som das conhecidas cornetas roliudianas. Por estar quase totalmente privatizada, a oligarquia e seus sócios transnacionais, mesmo depois da tentativa de golpe, mantinham em seu poder boa parte dos cargos de mando da PDVSA (Petróleos De Venezuela Sociedade Anônima), que era, de longe, o principal pilar da economia do país. Parece que na avaliação dos estrategos golpistas, como sempre provocados por Chávez, que ameaçava tomar-lhes a PDVSA, o governo bolivariano teria saído enfraquecido do combate em abril e não teria condições de suportar novo golpe. Talvez por isso, ao invés de baixarem o tom de ataques contra o governo, o aumentaram. Juntando todos os cacos que lhe sobraram da tentativa de golpe em abril, os golpistas, ao final do mesmo ano de 2002, decidiram promover um boicote petroleiro - o Paro Petrolero - com a paralisação de todas as atividades produtivas da PDVSA e da maioria das empresas do país (lock out). Assim, a partir de 6 de dezembro de 2002, semearam o caos no país. Durante 64 dias consecutivos, a mídia hegemônica naquele país mudou de formato, dedicando-se - em cadeia 24 horas por dia das quatro grandes emissoras privadas, que abriram mão até da grade de entretenimento e da publicidade comercial - a um processo declarado e aberto de derrubada do governo. A mídia hegemônica mundial, por sua parte, 29 deu cobertura integral a favor do novo golpe. Desta vez, o movimento cobrou três mortos em atos de violência, pelos quais a mídia hegemônica, sem provas e de imediato, responsabilizou o governo Chávez. Além disso, Venezuela perdeu 3.800 poços de petróleo sabotados e destruídos por funcionários golpistas de PDVSA, que destruíram também todos os sistemas informatizados da empresa. Nos 64 dias em que durou o movimento, foram veiculadas pela mídia hegemônica venezuelana mais de 17.000 mensagens publicitárias de insultos ao governo e ao presidente, ou com finalidade de emular o caos e a desordem, o que, no pensamento equivocado desses estrategistas, enfraqueceria o governo e colocaria o presidente de joelhos aos pés dos golpistas. Pois deu-se exatamente o contrário, como era de se esperar para quem tem um mínimo de bom senso. As sedes das quatro emissoras golpistas viram-se cercadas pelo povo de Caracas, e seus funcionários ficaram reféns do cerco, que os impedia de entrar e sair dos edifícios. De fora, os populares gritavam em coro aos de dentro: "- Digam a verdade! Digam a verdade!" O povo soube também suportar as adversidades inerentes ao desabastecimento e ao caos implantado no país. Aliás, o povo sabe suportar tais adversidades muito melhor que as classes médias e altas. Por sinal, foram estas últimas que, impacientes com a demora da queda do governo (a cada dia mais firme), começaram a melar o golpe. A audiência da VTV e das emissoras comunitárias, é óbvio, aumentava e começava a incomodar as poderosas emissoras da mídia hegemônica. Chávez, por sua vez, valendo-se de um dispositivo da nova Constituição que autoriza os poderes de Estado a convocar, a critério de suas autoridades máximas, uma cadeia nacional de rádio e televisão obrigatória a todos os veículos radioelétricos, fazia vários pronunciamentos demolidores por dia contra os traidores golpistas. Comentando sobre aqueles dias tenebrosos, Chávez disse certa feita que Fidel Castro, que, de Cuba, acompanhava cada minuto da confusão, o teria elogiado depois pela forma inusitada de combate, no qual Chávez era bombardeado e depois, usando os mesmos canhões do inimigo, os bombardeava. Os pequenos e médios empresários e comerciantes que se aliaram ao que restava da FEDECÁMARAS, promotora oficial do novo golpe, viram suas receitas natalinas irem para o espaço. Muitos fecharam as portas e milhares de trabalhadores ficaram nas ruas, com mais tempo, inclusive, para apoiar o governo. Faltava tudo, até gasolina. Pela primeira vez na história, a Venezuela teve de importar gasolina. Nas mesas fartas das classes médias e altas, faltava sobremesa, patê-de-fuá e uísque. Com o governo firme e o povo nas ruas aguardando seu sinal, Chávez, em comício histórico transmitido em cadeia nacional no dia 23 de janeiro de 2003, na avenida Bolívar abarrotada por seus eleitores, convocou a invasão da PDVSA, que, em 3 de fevereiro, foi tomada e ocupada sem resistência. Toda a direção da empresa e mais de 15 mil funcionários golpistas foram postos no olho da rua, e o governo decretou o início do processo de reestatização da empresa. E a oposição, acrescentando mais um erro monumental a todos os que já cometera, perdeu desta feita a PDVSA. Em contrapartida, o governo Chávez conquistava vitoriosamente o maior de seus triunfos. 30 Educação, liberdade de expressão e novas batalhas A conquista da PDVSA deu ao governo Chávez o que precisava para deslanchar a nova fase de sua estratégia, que soma dois vetores básicos: educação e liberdade de expressão. A arrecadação da PDVSA era agora de seu domínio, e a montanha de dinheiro que a empresa passou a faturar com os preços do petróleo supervalorizados por causa do novo golpe fracassado (Venezuela ficou 64 dias sem exportar uma gota de petróleo e 3.800 dos seus poços foram destruídos) abria-lhe condições magníficas de pôr em prática o seu plano original, além de poder radicalizá-lo ainda mais. Chávez deixou os golpistas aos cuidados dos poderes judiciário e policial, sem destes exigir muito, pois as complicações intrínsecas a tais poderes estavam longe de uma solução que satisfizesse a revolução. Não houve retaliações, perseguições, fechamento de empresas e instituições envolvidas nos dois golpes de Estado, nem dos meios de comunicação, que continuaram a funcionar como se nada tivesse acontecido. O estrategista Hugo Chávez tinha de conter o ímpeto retaliatório dos próprios partidários e os induzia a concentrar esforços no objetivo mais imediato da Revolução: o de eliminar o analfabetismo e implantar uma estrutura de Educação e Cultura no país jamais vista na América Latina. Urgia estreitar laços com Cuba, ajudar aquele país a sair de suas dificuldades e trazer a contribuição dos cubanos ao processo revolucionário venezuelano. Com o apoio dos cubanos, o governo bolivariano deu início ao programa das missões e da construção das escolas bolivarianas. São 8.200 escolas para todos os graus de educação, de berçários (simoncitos) a universidades; 14.400 "aldeias universitárias" (já entregues - é um conceito de municipalização do curso superior e de transição do nível médio ao superior, exclusivo da Missão Sucre), e 28 novas e grandes universidades, até o fim de 2010. As missões são forças-tarefas organizadas pelo governo com profissionais de Educação, Saúde, Assistência Social, Esporte e Cultura contratados pelo governo em Cuba e Venezuela, que, junto ao trabalho voluntário ou contratado com as populações de bairros, de pequenas cidades, prefeituras e governos de estados, resolvem uma série de problemas localizados e implantam uma conexão local com as políticas governamentais. Com esse dispositivo, o governo driblava as burocracias estatais ainda infestadas de ranços do passado neoliberal, incluindo o vírus da corrupção. A revolução já promovia mudanças profundas nessas estruturas mas, para a urgência que requeria, eram morosas, ineficazes e sem agilidade. Para as missões de Educação e Saúde, Cuba enviou à Venezuela exércitos de professores e médicos (cerca de 43.000 profissionais) para trabalharem em colaboração com profissionais venezuelanos, além de equipamentos, tecnologia e materais de consumo. Em contrapartida, a Venezuela resolveu para Cuba os problemas de suprimento de petróleo e ajudou a solucionar as dificuldades da ilha causadas pelo bloqueio dos EUA e pelo fim da URSS. Os objetivos das missões focaram primeiro a Educação (Missões Robinsón I, Robinsón II, Ribas, Sucre, Ciência e Cultura), que cobrem desde o pré-parto até a formação superior de jovens das classes pobres, Saúde (Missões Milagro, Barrio Adentro) e Assistência Social (Missões Negra Hipólita, Madres del Barrio). Várias outras missões foram depois criadas pelo governo para ajudar o povo na solução de problemas de habitação, urbanização, higiene e até no ingresso nas Forças Armadas e na preparação da resistência popular. Porém, temos de repetir, os golpistas não aprendem! 31 Os garis ainda limpavam as ruas imundas de Caracas, transtornadas pela balbúrdia golpista, e já eles queriam Chávez fora do governo, desta vez, por um referendo revogatório cujas regras deveriam ser ditadas por eles próprios. O referendo revogatório é um instrumento criado por Chávez na nova Constituição com o objetivo de dar ao eleitorado a oportunidade de rever os mandatos das autoridades eleitas, quando tais mandatos estivessem no meio de seus períodos legais. A Constituição prevê um regulamento para que se ponha em prática o instrumento, mas os golpistas insistiam em modificá-lo para novos critérios a eles mais favoráveis. Evidentemente, uma campanha midiática foi encomendada a Washington para apoiar o intento, o que abriria novo front de batalha midiática entre governo e golpistas. A Revolução Bolivariana tem por alicerce doutrinário o rigor da legalidade democrática. Para ela, a sociedade só será estável quando todos os setores, sem exceção, estiverem enquadrados e funcionando rigorosamente de acordo com os instrumentos constitucionais e legais a eles pertinentes, instrumentos estes que devem ser definidos e regulados pela vontade da maioria do povo, expressa em urnas isentas de fraudes e corrupção. Desta forma, o pleito oposicionista não tinha chances de ser aceito pelo governo revolucionário, que não abriria mão de uma vírgula do texto constitucional e dos regulamentos que impõe. Mas a oposição insistia em mudar as regras e, para tanto, movia novamente mecanismos golpistas cada vez mais desgastados e inúteis. A campanha midiática encomendada não adiantou nada. Agora, a mídia hegemônica não era tão hegemônica assim, pelo menos na Venezuela. Os espaços de audiência da VTV e TVs Comunitárias já se faziam significativos e importantes. Além disso, o próprio Chávez, com seus dotes inatos de comunicador, decidiu por entrar pessoalmente na batalha com o programa "Alô Presidente", que rapidamente alcançou a posição de maior audiência de rádio e TV em todo o País. O conceito de liberdade de expressão deixava de ser, naquele país, um conceito distorcido e exclusivo do pensamento único ou não-pensamento manipulador, e passava a ser um conceito verdadeiro de evolução e desenvolvimento do pensamento crítico, dialético e, em síntese, libertário. Em tais condições, a convivência dos dois conceitos, num mesmo tempo e espaço de comunicação midiática, se tornará, na sociedade socialista, impossível. E o pensamento único com o tempo desaparecerá, pois a natureza da comunicação, inserida no verdadeiro e socialista conceito de liberdade de expressão, é, antes de tudo, dialética. Isto já está acontecendo na Venezuela, e é o principal fator possibilitador da decisão tomada pelo governo de não renovação da concessão da RCTV, como veremos. A estratégia de Chávez não só é correta, como tem bases teóricas e científicas sólidas. Um dos maiores erros da URSS foi o de implantar uma comunicação socialista de pensamento único e manipulador, o que é, desde logo, em teoria, um absurdo, pois o socialismo é um sistema essencialmente dialético e libertário. O pensamento único só sobrevive numa sociedade arrestada pelo capitalismo com todas as suas formas de opressão. Eis porque a propaganda socialista da URSS foi fragorosamente derrotada pela propaganda capitalista dos EUA. Como conseqüência da nova realidade midiática venezuelana, ainda que em sua aurora primeira, a oposição não teve outra saída senão a de se submeter, pela primeira vez, às novas regras constitucionais. Valendo-se do poder de fogo de seus canhões midiáticos mais poderosos que os do governo e aliados, porém tendo de conviver com a existência destes, se bem que em fase experimental mas já eficazes e úteis -, conseguiram afinal, depois de várias tentativas de fraude aos regulamentos, todas repudiadas pela Justiça Eleitoral, levar Chávez a se submeter ao referendo revogatório de seu próprio mandato. 32 Mais uma vez a oposição, querendo o oposto, iria ajudar Chávez e a Revolução Bolivariana. Isto é, mais um erro da oposição a favor da Revolução. E o general Custer atolado nas areias movediças do Iraque, até o pescoço. O referendo deveria ocorrer em 2003, mas, dadas as condições do país pós golpeado e os estrategemas fraudulentos dos requerentes, acabou sendo adiado para o dia 15 de agosto de 2004. Foi este pleito o primeiro em que Chávez pôde aferir a dimensão, mais próxima da exata, de seu eleitorado. Na Venezuela, o voto não é obrigatório. O programa educacional e as missões, funcionando muito bem com ajuda cubana, iria diminuir as abstenções que, no referendo, caíram pela primeira vez a cerca de 30% (nas eleições anteriores, situava-se nos 60%). Além disso, nas eleições anteriores, o voto em Chávez poderia ser, antes, um voto contra o sistema neoliberal e não seguramente dele. Portanto, os 59% que obteve neste referendo, depois de quase cinco anos no governo, lhe consagrava a legitimidade (até então contestada por causa dos altos índices de abstenção) e a dimensão bem próxima e mais real de sua força pessoal no eleitorado - e esse é um dado valioso para qualquer governante em qualquer processo político, mais ainda na Revolução Bolivariana, em que a democracia é, ao mesmo tempo, doutrina e paradigma. Neste mesmo ano de 2004, a UNESCO declarou Venezuela "nação livre de analfabetismo". Cerca de 1.800.000 venezuelanos foram incorporados ao universo de leitores e escritores de mensagens (hoje totalizam cerca de 3.500.000). A primeira leitura a eles recomendada foi a Constituição da República Bolivariana da Venezuela. O governo fez gratuita a distribuição do livrinho a quem dele quisesse se valer para conhecer o texto que rege a sociedade republicana, a cidadania e os seus direitos dentro delas. Um depoimento de um dos alfabetizados que vimos num programa de viVe TV é-nos importante aqui: "Para mim" - disse à câmera da viVe TV aquele operário de obras, um senhor negro, desinibido, vestindo o uniforme de trabalho e sendo entrevistado numa obra em andamento - "só havia o rádio como meio de informação. A televisão ainda me exigia, em muitos momentos, a leitura de textos e legendas que eu não podia fazer. Quanto a jornais, revistas e computadores, eu nem passava perto. Hoje estou na Missão Robinsón II e já posso operar um computador, escrever mensagens e ler jornais na internet". Um outro depoimento no mesmo programa consideramos também importante. Foi dado por um jovem office-boy, de vinte e poucos anos, numa praça central de Caracas: "Antes" disse o garoto -, "esta praça era muito diferente para mim. Nada significavam as placas e anúncios que vemos aqui em toda parte. Agora tudo passou a ter sentido, e é como se eu tivesse nascido de novo, em um novo mundo que entendo melhor e que não mais me dá medo, porque agora sei o que ele está me dizendo". Estes dois depoimentos nos dão uma amostra significativa da importância do processo de alfabetização e educação para a verdadeira liberdade de expressão, em particular, num mundo cada vez mais equipado de instrumentos e meios de comunicação. Ambos eram antes receptores praticamente indefesos sob a manipulação do pensamento único, sem capacidade de análise crítica das mensagens que lhes eram endereçadas, inclusive com recursos subliminares de dominação e manipulação de seus pensamentos, idéias e desejos. Eram também restritos a pouquíssimos meios de acesso à informação, sendo estes completamente dominados pela mídia hegemônica. Agora, graças às estratégias de Educação e Comunicação do governo bolivariano - que não se reduz à alfabetização, e vai muito além dela, propiciando consciência e capacidade 33 crítica inclusive aos que já eram alfabetizados, e emulando o progresso e a evolução de seus processos individuais e coletivos de auto conhecimento e contato com a realidade tornaram-se receptores e potenciais emissores do pensamento crítico, incorporando-se como entes ativos e conscientes do processo dialético de comunicação, propugnado pelo Estado em direção a uma sociedade socialista justa, libertária e igualitária. É nesse sentido que, no início de 2005, o governo fez aprovar na Assembléia Nacional a chamada "Ley RESORTE", a Lei de Responsabilidade Social em Rádio e Televisão, que, entre inúmeros novos e revolucionários dispositivos, regulamenta o uso de veículos radioelétricos, estabelece mecanismos de proteção jurídica a telespectadores e ouvintes, promove e facilita o acesso da produção independente, exige a comunicação da informação noticiosa veraz e oportuna, etc. É este o ambiente em que a mídia hegemônica perde força e poder, sem que seja necessário reprimi-la por meios convencionais e ultrapassados, tais como censura, perseguição a jornalistas, fechamento de jornais e o mais das receitas fascistas e neoliberais . É bastante que uns poucos veículos de comunicação comecem a surgir com algum poder real na contravia da mídia hegemônica, mesmo em flagrante inferioridade de alcance e audiência, mas criando espaço de recepção do pensamento crítico, para que o pensamento único comece a desinflar como um balão furado. Eis que, então, dentro dos parâmetros estabelecidos pela Ley RESORTE, o governo funda a viVe TV, que, associada às TVs Comunitárias, fomentando-as e incubando novas, cria um novíssimo, poderoso e revolucionário espaço de comunicação dentro do velho e desgastado espaço midiático, justamente para absorver e dar espaço ao novo receptor/emissor que o sistema educacional introduz em massa no ambiente de real liberdade de expressão, o qual vem sendo até criticado por setores conscientes da sociedade, justamente pelo excesso de liberdade (permissividade) que tem sido admitida pelos poderes públicos. Reivindicam tais setores a aplicação da Ley RESORTE que lhes parece valer só para veículos do governo e da mídia de resistência, e são afrontados e desobedecidos com desafiante contumácia por todos os veículos da mídia privada, sem que os órgãos encarregados de fazer cumprir a Lei tomem providências. Também os tribunais estão abarrotados de demandas de ouvintes e telespectadores instrumentados pela nova Lei para fazer valer os direitos contra abusos dos veículos privados, e nada acontece, pois o Ministério Público e o Procurador Geral parecem não querer mover os instrumentos de direito que lhes são pertinentes. O governo pede calma. "Tudo tem o seu tempo", costuma dizer o estrategista Hugo Chávez No plano internacional, o governo revolucionário inaugura a TeleSur, a super emissora encarregada de cuidar das propostas revolucionárias na contra mão da mídia hegemônica mundial, com o objetivo de quebrar essa hegemonia. Mas, outra vez mais, teremos de repetir: as oligarquias latino-americanas não aprendem! A Revolução Bolivariana da Venezuela entrara no ano de 2005 com a retomada do desenvolvimento e do crescimento econômico, e mobilizada para as eleições legislativas previstas no calendário constitucional para o fim do ano. Pela primeira vez, o governo bolivariano alimentava a perspectiva de eleger um corpo legislativo mais bem configurado para com a Revolução, e fazer da Assembléia Nacional um vetor de fato ativo e relevante em seu papel legislador e aprimorador da democracia revolucionária. 34 Os fragmentos que restaram da oposição, os ex-grandes partidos, os ex-grandes líderes, os financiadores de Miami e a mídia privada (não mais hegemônica) se unem para reverter a tendência de maioria bolivariana na composição da Assembléia Nacional. Em relação à AN (Assembléia Nacional), a Revolução enfrentava sério problema. Para o povo, aquela casa sempre fora antro de políticos corruptos e sem credibilidade, que nada faziam e ao povo só se dirigiam com interesses clientelistas de comprar ou obter votos. Uma vez lá, se locupletavam com as facilidades, mordomias e vantagens da Casa, sempre usadas em benefício próprio e de seus apaniguados. Os enormes índices de abstenção em eleições legislativas (cerca de 75% nas de 2000) eram uma tendência histórica que não poderia ser ainda revertida pela Revolução; o processo de conscientização das massas apenas se iniciava e não chegara ao ponto de mostrar a importância do poder legislativo para a democracia e a Revolução. Para as massas, a palavra deputado era sinônima de salafrário, malandro, corrupto, de gente que quer se dar bem às custas do povo. Pelo histórico da casa, temos de convir em que a sensibilidade do povo captava boa parte da verdade, e o que há de exagero nela deve ser debitado à mídia privada e ao papel nefasto que exerce na opinião pública. Infelizmente, para a Revolução Bolivariana, as massas só reconheciam a existência e a importância do presidente Chávez e seu poder Executivo. Por outro lado, este seria um fator extremamente favorável à oposição, uma vez que seus eleitores vêm das classes médias e altas, que, bem mobilizadas, poderiam comparecer maciçamente e até conquistar, senão uma maioria, a manutenção da presença expressiva que já possuíam na Casa e lhes dava condições de ser a pedra no sapato do governo Chávez, além do poder de frear ou retardar o processo revolucionário. Até aquele momento, a oposição mantinha 79 das 165 cadeiras da AN, as quais não davam tréguas ao governo. Em boa parte, a presença significativa da oposição naquela casa tinha logrado travar mudanças necessárias à Revolução, como as do Poder Judiciário, o qual, apesar de tudo, ainda tinha o TSJ (Tribunal Supremo de Justiça) em mãos das oligarquias. E de uma forma tal que elas obtiveram do TSJ o maior absurdo jurídico da história do país: uma sentença declaratória de que "nunca houve golpe de Estado na Venezuela, em 11 de abril de 2002"! Com tal aberração, o TSJ legalizava a impunidade de quase todos os envolvidos naquele golpe. Muitos conspiradores puderam retornar ao país e voltar a conspirar. Houve até os que pretenderam a restituição de cargos. Quando chegou nisso, Chávez bateu o pé: "Terão de me derrubar para terem de volta esses cargos" - provocou. Eis que, então, as cúpulas oposicionistas chegam a uma brilhante idéia: boicotar, em bloco, as eleições legistativas, deslegitimar o pleito, dissolver a AN, deslegitimar o governo e, enfim, - oh, glória! - derrubar Chávez! Ou seja, um novo golpe de Estado!? Há que reconhecer, eles não aprendem... Com essa obcessão ocupando todos os espaços que deveriam estar dedicados aos raciocínios lógicos e estratégicos, as oposições deram início às conhecidas catimbas, fraudes, sabotagens e aos golpes midiáticos. E, na última hora, todos os seus candidatos retiraram as candidaturas, tornando-se, talvez, um caso inédito mundialmente de suicídio político coletivo. O governo, por sua vez percebendo as óbvias intenções golpistas, tratou de convocar observadores internacionais para acompanhar as eleições. "Os observadores internacionais que acompanharam o processo eleitoral afirmaram, no final da tarde de domingo, que tudo estava transcorrendo em um clima de normalidade. As eleições foram acompanhadas por 150 observadores da União Européia, 100 da OEA e por 35 um grupo de 180 personalidades, entre as quais os presidentes dos organismos eleitorais do continente. O chefe da missão de observadores da Organização dos Estados Americanos (OEA), Rubén Perina, disse que, nos lugares que visitou, o processo eleitoral na Venezuela 'foi normal e tranqüilo'. A organização venezuelana Ojo Electoral, a mais credenciada entre as nacionais dedicadas à observação, confirmou a normalidade do pleito em seu primeiro boletim do dia." (site altermidia.info, em 11/12/2005) Assim, sem a concorrência de candidatos da oposição, os partidos que apoiavam Chávez elegeram todas as 167 cadeiras da Assembléia Nacional. Depois, de nada adiantou o chororô oposicionista diante do leite derramado. Na mídia privada, caíram em si a Venevisión e a Televen. Ambas, depois de tantos e sucessivos fracassos golpistas, e desde o fracasso do golpe petroleiro, enfim perceberam o tamanho do abismo que estavam cavando entre suas empresas e os objetivos dos próprios contratos sociais que as constituem. Não é que tenham mudado de posição ideológica ou aberto mão da linha editorial de oposição a Chávez. Porém, abandonaram o golpismo e o desrespeito raivoso e preconceituoso contra o governo. Procuram agora fazer uma mídia mais imparcial e uma oposição mais responsável (com muitas recaídas), mas, enfim, começaram a se enquadrar nos propósitos dialéticos e democráticos da Revolução, que não dispensam, e até necessitam, opiniões contrárias e oposições construtivas. Em recente entrevista, o multimilionário Gustavo Cisneiros, presidente da Venevisión afirmou: "Depois dos acontecimentos de abril de 2002 e do referendo revogatório de 2004, fiquei convencido de que um canal de televisão não pode, nem deve tomar a posição de ser protagonista de um conflito político, por mais seja a favor ou contra o governo." E foi mais longe: "(as televisoras) não podem nem devem parcializar-se no no conflito nacional, e nem devem pretender substituir os partidos políticos, se não quiserem piorar o conflito. Isto é o que se está passando em Venezuela." Tempo de bonança A entrada do ano de 2006 foi bastante tranqüila para a Revolução. As mudanças no Poder Legislativo, e, conseqüentemente, no Judiciário, onde enfim o governo revolucionário pôde nomear novos ministros do TSJ, davam a ela o ambiente democrático equilibrado, com três poderes autônomos e independentes, em pleno exercício de suas prerrogativas constitucionais, saneados de muitos dos vícios e gangrenas neoliberais da 4ª República. A recuperação da PDVSA, capitaneada pela competente equipe do governo, com total apoio dos trabalhadores e funcionários revolucionários, fora sucesso absoluto e tornou a empresa ainda mais eficiente, produtiva e rentável que antes. Isto tendo ela sido sabotada em todos os seus sistemas informatizados e perdido, de forma irrecuperável, 3.800 poços produtivos. Em sua maior parte estrutural, a PDVSA fora renacionalizada, restando em mãos privadas as explorações na chamada "faixa do Orinoco", que ficaram para uma segunda fase, que ocorreu no início de 2007. Os índices macroeconômicos vinham cada dia mais favoráveis, com alto crescimento do PIB, baixa inflação, queda nas taxas de juros, etc. Os índices sociais, melhores ainda, com queda radical nos níveis de pobreza, queda nos índices de desemprego, aumento de benefícios sociais, salários, distribuição de renda e tudo mais. 36 Chávez não vacilou e pôs a máquina para funcionar a toda potência. Com vistas às eleições presidenciais previstas no calendário eleitoral para o final do ano, ele transformou a Venezuela num canteiro de obras em grande escala, com atividades em todas as áreas. Seria longo e fora do nosso assunto dar uma relação, mesmo resumida. O que se pode dizer é que todos os ministérios e missões tiveram pela frente um volume de realizações de tal ordem que era difícil acreditar que dessem conta. No entanto, com a competência e a capacidade de trabalho de Chávez e sua equipe, não só deram conta de tudo com sobras, mas deram-se ao luxo de aprimorar, e até avançaram projetos que poderiam ser postergados. No campo das comunicações, a revolução já contava com um "sistema bolivariano de comunicações" razoavelmente parrudo, desde a ABN - Agencia Bolivariana de Noticias, a RNV - Rádio Nacional de Venezuela, a VTV - Venezolana de Televisión, a viVe TV Educativa, a TeleSur, até as diversas e já estáveis Rádios e TVs Comunitárias, lideradas pela Catia TV. A Revolución de la Consciencia foi, durante este ano, alicerçada e erguida pelo ministério da Cultura, junto a outras macroiniciativas governamentais. Com tudo isso em andamento e evoluindo, Chávez partiu para uma grande ofensiva na política externa, com duas vertentes bem claras: a integração latinoamericana e caribenha e a aproximação da Venezuela com governos progressistas de todo o mundo, visando a construção de uma nova realidade multipolar de poder mundial. Confiante na competência e lealdade de suas equipes, Chávez deu início a uma série de giros internacionais pelos quatro cantos do mundo, levando, além de solidariedade e amizade, propostas irrecusáveis aos governantes dos os países que visitou na Europa, na Ásia, no Oriente Médio, na África, na América Latina e no Caribe. Ele tinha um grande trunfo. Com a recuperação da PDVSA, o governo revolucionário pôde enfim ter acesso ao inventário real de suas riquezas petrolíferas. E teve bela surpresa. As prospecções realizadas na "faixa do Orinoco", antes tida como área de baixa rentabilidade por causa do tipo de petróleo que reservava, mostravam uma realidade completamente oposta, até então mantida em segredo pelos grupos transnacionais que a exploravam, em conluio com os oligarcas criollos, como gosta de dizer Chávez. Na verdade, as prospecções confirmadas na região, algumas já registradas em nome de transnacionais que ali operavam, demonstram que a Venezuela é possuidora da maior reserva mundial de petróleo e de uma das maiores reservas de gás natural do planeta. Chávez, que de bobo não tem nada, sabia que os EUA tinham essa informação e estavam de olho no maná de petróleo, ali, bem no seu "quintal". Decidiu então decretar que aquelas reservas só poderiam ser exploradas por empresas mistas, com a participação obrigatória e majoritária do governo venezuelano em todas elas, e deu prazo até o início de 2007 para a reforma dos contratos em vigor, desde já avisando às empresas que estavam explorando e prospectando a região que teriam de se submeter ao novo decreto ou sair da Venezuela. O governo se comprometeu a estudar, caso a caso, os valores das indenizações às empresas que tivessem feito inversões como sócias majoritárias de algumas das reservas que estavam em fase de exploração e extração de petróleo (as reservas de gás estavam intocadas, assim como a grande maioria das de petróleo). Chávez foi então a todos aqueles países, governados por líderes progressistas e anti-EUA, levando propostas de convênios de toda espécie, econômicos, culturais, esportivos, o diabo, mas, entre elas, a de compor empresa mista com a Venezuela para a exploração de petróleo 37 na "faixa do Orinoco". Foi um sucesso! Inclusive empresas estadunidenses, francesas, inglesas, alemãs, chinesas, russas, além de empresas de petróleo da África, América do Sul, América Central e Caribe aceitaram convites para a formação de empresas mistas de exploração de petróleo e gás na Venezuela, sempre, é claro, com participação majoritária do governo venezuelano (51% ou mais, dependendo da capacidade de inversão em capitais e tecnologia de cada convidado). Douglas Bravo criticou Chávez por esta iniciativa que chamou de "socialismo fifty-fifty", alegando que o petróleo é 100% venezuelano, e o governo não precisa fazer sociedade com ninguém, muito menos com empresas transnacionais capitalistas. No nosso modesto entender, devemos discordar de Bravo. Na atual situação unipolar do poder mundial e, dentro dela, a crise de energia e, em particular, o fim da matriz energética petrolífera, o único país do mundo que pode dizer que é o dono exclusivo de 100% do petróleo encontrado em seu território é os EUA. Ora, o único poder que pode contrarrestar o poder estadunidense é o poder de todos os outros países do mundo juntos. O que Chávez está fazendo é colocar todos os países do mundo interessados no petróleo da Venezuela, inclusive transnacionais dos EUA, mas com preferência para países e potências não alinhadas com a política imperial, e ainda garantindo o mando e a soberania venezuelana nos pactos que fizer. Grandes inversões de capitais de potências como Rússia, China, Inglaterra, Alemanha, França, Holanda, além de potências de médio porte como Irã, Brasil, Argentina, Canadá, Malásia, Vietnam, e, ainda, inúmeros países, que vão desde a Gâmbia, na África, até a Nicarágua, na América Central, passando por Cuba, Bolívia, Equador, Bielorrússia e outros, já estão sendo feitas na Venezuela, dentro do sistema proposto por Chávez, sem desprezar os demais convênios, que envolvem todas as áreas da economia, indústria, comércio, infra-estrutura, agropecuária, armamentos, transportes de massa, refinarias, informática, cultura, esporte, cabos submarinos, gasodutos e o escambau. De forma que, a cada dia que passa, fica mais difícil o desembarque do general Custer e o seu 7ª de Cavalaria (e o cowboy texano, não podemos nos esquecer) tocando as cornetas de roliúde (ou as trombetas do Apocalipse). O que Douglas Bravo propôs a Chávez foi o que fez Saddam Husseim. E deu no que deu. Ainda que Custer tenha se atolado em definitivo nas areias movediças do Iraque, e que a vitória chegará um dia para o povo iraquiano, o que passou e o que passa aquele povo "hermano y amigo" não é de modo algum o que Chávez e todos nós desejamos para o povo da Venezuela. Chávez enfrentou as eleições de 2006, praticamente sem fazer campanha. O seu programa "Alô, Presidente" tornou-se grande sucesso, e ele o fazia na Bolívia, no interior do país, na inauguração de escolas e hospitais, nas savanas retomadas de latifundiários e entregues a camponeses, nas indústrias tomadas de patrões e entregues a operários, e por aí afora. A mídia privada (RCTV, Globovisión, rádios e jornais associados) estrilava, estrebuchava, esperneava, mentia, falsificava pesquisas, tentava de tudo, com as mesmas ladainhas, os mesmos insultos, o mesmo desprezo, o mesmo desrespeito, a mesma empáfia, a mesma traição aos valores nacionais, à cultura, à pátria, mas nem chegou a fazer cócegas. Chávez ganhou facilmente a eleição com 63,7% dos votos, quase dois terços do eleitorado, com um índice de abstenção, pela primeira vez na história do país, menor que 25% (no Brasil, onde o voto é obrigatório, os índices de abstenção giram em torno do mesmo percentual). 38 O comandante presidente Hugo Rafael Chávez Frías Por tudo o que vimos, ainda que resumidamente, acreditamos ser bastante para ficarem demonstradas algumas teses iniciais deste trabalho que afirmam ser Hugo Chávez não só grande estrategista mas, também, grande estadista. O maior de todos os erros das oposições na Venezuela foi não reconhecer esta verdade que o povo, com toda a sua humildade, pobreza e sabedoria, reconheceu ao primeiro olhar. E, entre todos os estadistas históricos e contemporâneos, o único a ter um papel chave numa guerra midiática de repercussão mundial. O segundo maior erro das oposições foi o de nunca perceber que Chávez é, por natureza, um guerreiro, e, como tal, se sente em casa nos campos de batalha. Sabe que a revolução precisa do conflito para ativar as forças e desenvolver os músculos que a fortalecem, e que, para ela, o maior inimigo é a paralisis, a falta de combate, de ameaça, de perigo. Um bom estrategista e bom guerreiro como Chávez, se não lhe vem o combate, ele o busca onde estiver. Para ele, a paz é um paradigma que só será alcançado quando as paralelas se encontrarem... no infinito. Isto não quer dizer que seja afoito, açodado. Muito pelo contrário, poucos sabem como ele que o bom guerreiro só luta depois que conhece bem o inimigo e quando são altas, senão quase certas, as chances de vitória. E que as maiores virtudes do bom guerreiro estarão na prudência e na infinita paciência. Saber esperar, esperar e esperar, mantendo-se pronto, preparado e alerta para lutar. E sempre surpreender, nunca ser surpreendido. Pois "tudo tem seu tempo". Por todos os fatos ocorridos e escaramuças lançadas contra Chávez e seu governo, em apenas uma vez, em 11 de abril de 2002, parece que correram perigo real. Contudo, mesmo ali, dada a esperteza e a inteligência de Chávez e seu Estado Maior, ainda não ficou provado que estiveram de fato em risco a sua vida e o seu governo, ou se foi uma tática bem urdida do grande estrategista para fortalecer-se, a si e ao governo. Analisando os fatos, por documentos de todo tipo disponíveis em diversas mídias, não vimos prova concreta de que a vida de Chávez e o governo estiveram por um fio naqueles dias. As versões de Chávez e Fidel Castro, por exemplo, que confirmam o perigo real, não nos parecem muito conformes com o comportamento que revelaram os dois líderes, quando nos falam dos momentos mais críticos que viveram no desenrolar da trama. Uma certa tranquilidade perpassa a história que contam, que, aliás, nos parece verdadeira, ainda que os fatos reais dela tivessem sido prévia e cuidadosamente bem calculados. O que temos de tudo o que nos chegou até o momento, é que houve, ou pode ter havido, a possibilidade de risco real de Chávez ser assassinado em Miraflores no dia em que as coisas ultrapassaram todos os limites em Puente Llaguno, e por isso resolveram (ele e o seu Estado Maior) tirá-lo de lá. É muito difícil acreditar que Chávez esteve por um segundo sequer nas mãos dos golpistas - eles o teriam fuzilado imediatamente e sem piedade, para depois vir com a velha estória do suicídio em nome da pátria, com fizeram com Allende, no Chile. A questão da renúncia não teria mais sentido com o presidente morto. E a retomada do poder foi, na verdade, uma barbada. Os golpistas nunca tiveram poder algum, apenas acreditaram, na cegueira estúpida que lhes é peculiar, que tiveram. Ou seja, mais uma vez caíram nas armadilhas geniais do grande estrategista e tático político-militar que se revelou no estadista Hugo Chávez. Aqueles golpistas só perceberam a armadilha 39 depois que não tinham como sair dela, e então tentaram passar a versão da renúncia, que não convenceu ninguém, nem a eles mesmos. Chávez com certeza não gostaria de ler esta interpretação dos fatos e até poderia dizer que estaríamos dando razão ao TSJ (que se fundamentou na tese do "vazio de poder"). Já dissemos que aquela decisão do TSJ foi absurdo jurídico. Houve golpe de Estado na Venezuela, e os golpistas chegaram a empossar o presidente de fato e oficializá-lo solenemente em Miraflores, para as câmeras da mídia mundial. Obtiveram, inclusive, o reconhecimento dos EUA, e nem disfarçaram que estavam coordenados por órgãos de Inteligência daquele país, o que, por si, constitui crime de traição à patria. Além do mais, se era ou não armadilha, isto nunca se poderá provar, e, mesmo que se pudesse, isso não anularia as intenções dos golpistas nem os atos criminosos e ilegais que cometeram. O que é seguro e firme em toda a história é que, ao final dela, Chávez e o seu governo saíram enormemente fortalecidos e livres de toda uma ala militar e mais um bando de gângsteres e oligarcas poderosos, em cuja convivência não era possível governar, e muito menos levar adiante o projeto revolucionário. Chávez também consolidou ali o carisma de grande líder e desde então tornou-se um daqueles líderes que a história só concede ao mundo cerca de uma dúzia em cada século, tal como Lenin, Mao Tsé Tung, Stalin, F. Roosevelt, Ho Chi Min e Fidel Castro, no século 20, líderes que, uma vez no poder, só o deixarão mortos ou se quiserem. Chávez tornou-se o primeiro grande fenômeno político do século 21. Na Venezuela, não há político de qualquer partido ou corrente ideológica que chegue a seus pés, e é falta de razão política, ou mesmo um contra-senso, pensar em substituí-lo por qualquer outro. Também para isso serviu o 11 de Abril: para demonstrar o ridículo de um Carmona substituindo Chávez, por algumas horas que se foram e jamais voltarão. As oposições, melhor dizendo, a direita nazi-fascista mundial, o querem morto tão logo possam matá-lo. Também querem o mesmo de Fidel Castro, já faz quase cinqüenta anos. Chávez não pára de alimentar essa fobia ultra direitista, porque sabe que ela os cega e os torna presas mais fáceis de seus ardis estratégicos magistrais. Mas o principal, o golpe de mestre, ainda está por ser relatado neste trabalho, pois acabou de acontecer. Um por um, caíram aos pés (ou nas mãos) de Chávez e do seu governo os principais redutos de poder que estavam em mãos das oposições. Resta-lhes agora quase que somente a Hidra Midiática, porém não mais hegemônica, mas com algumas de suas cabeças cuspindo fogo, estabanadas e agitadas pela histeria golpista. O Povo e o Poder Tão logo foram proclamados os resultados das eleições de 3 de dezembro de 2006, em que se consolidou o apoio maciço do eleitorado venezuelano ao Comandante Hugo Chávez, este, num de seus pronunciamentos públicos (uma inauguração, abertura de um evento, recepção a um visitante, ou qualquer outro, não nos recordamos), como gosta e prefere sempre fazer, solta, no meio de seus longos, fluentes e didáticos discursos, a seguinte mensagem à emissora RCTV: "- Gritem, sapateiem, façam qualquer coisa. Acabou a concessão para este canal fascista!" 40 É inacreditável que, num caso desses, os responsáveis por RCTV e os que estão por detrás dela nos projetos golpistas e desestabilizadores não parem para pensar e não se façam as seguintes perguntinhas básicas: - Por que Chávez faz uma declaração dessas em público? - Por que tal declaração é feita com seis meses de antecedência? - Por que o tom de provocação, ou de desafio? Bem, pelo que até o momento estudamos e pesquisamos, as respostas seriam, numa análise sensata das perguntas, mais ou menos as seguintes: A declaração foi feita em público porque Chávez pratica a comunicação dialética com o povo venezuelano e, em particular, com a maioria maciça que o apóia. Ao fazer uma comunicação importante pelos meios de comunicação, ele a usa como senha endereçada ao povo para informá-lo de que a decisão foi tomada nas instâncias do poder e que tudo está pronto, por parte das equipes do governo, para que seja efetivada. Só então (com tudo pronto) ele comunica publicamente qualquer decisão, para que o povo faça a sua parte, dando a ela o retorno crítico, o respaldo político e a participação popular, a fim de que se faça legal, democrática e bem sucedida a sua execução. A declaração foi feita com atecedência de seis meses para que o povo tivesse tempo suficiente para refletir sobre ela, conhecer seus fundamentos, opinar e dar seu apoio consciente à decisão, além de se preparar para enfrentar a reação que haveria de causar. A declaração foi feita em tom de provocação justamente para detonar a esperada e previsível reação desatinada e furibunda de seus opositores e dos que estão por detrás destes na conspiração internacional, exasperando-os, cegando-os, e fazendo com que revelem planos golpistas e desestabilizadores, colocando-os, desde já, em posição defensiva e enfraquecida. Claro que, antes de partir para o ataque, o governo tentou negociações com a RCTV e a Globovisión, como o fez com a Venevisión e a Televen. A prepotência das primeiras não permitiu diálogo; as últimas caíram na realidade e baixaram a bola. É verdade, também, que a Globovisión está de olho na herança publicitária da RCTV, nada menos de 400 milhões de dólares/ano. A aliança delas nada mais é que oportunismo da menor que quer o bolo da maior. Então, tudo o que Globovisión deseja é que "RCTVas" para sempre. Numa situação dessas, o empresário sensato e disposto a defender seus interesses e os de sua empresa procuraria imediatamente o governo para uma saída honrosa e com um mínimo de repercussão (que só favorece ao governo). Assim fizeram, em situações muito semelhantes, os empresários de transnacionais do petróleo, de metalurgia (SIDOR), de bancos, de companhias de eletricidade e telefonia, de transportes, indústria, comércio, agropecuária, etc. Sabiam contar com um governo em busca de paz com soberania, e disposto a negociar com generosidade e dinheiro com que pagar para não brigar. Sabiam também que, se fosse para brigar, a briga não seria boa para o lado deles. Suas empresas não são partidos políticos nem organizações ideológicas, e não tem legitimidade para se bater contra governos e instituições públicas, a não ser que lhes firam interesses e direitos legalmente constituídos. E não são otários para se baterem sem motivos contra um 41 governo forte e poderoso como o de Chávez. Para um empresário, um litígio com governos ou quaisquer outras partes, quando não resolvido por acordo, se extingue, com a maior discrição possível, na decisão final do Tribunal Supremo de Justiça. É aceitar a decisão, cumpri-la, e ponto final. Acontece que os donos da RCTV, com Sr. Marcel Granier à frente como sócio majoritário, e muitos de seus empregados, lacaios, bonecos e bonecas midiáticas, depois de tantas e sucessivas derrotas para Chávez, parece que começaram a padecer de um delírio midiático que os fizeram acreditar que a RCTV não mais era uma empresa, e tinha se transformado magicamente em partido de oposição, com legitimidade democrática e apoio da maioria do povo, ambos alicerçados em pesquisas de audiência por eles mesmos encomendadas, e nas próprias e delirantes concepções de direito, justiça e democracia. Em verdade, e isso um psiquiatra poderá explicar melhor, a situação política na Venezuela e a nova realidade revolucionária devem ter fomentado tais delírios até o ponto onde chegaram. A oposição legítima e democrática havia sido pulverizada por conta dos próprios erros e desastres cometidos ao longo das tentativas golpistas que se frustraram. Os setores da sociedade que em outras ocasiões porventura as apoiaram tinham abandonado o barco. Todos estão bem, satisfeitos e já enquadrando-se nas novas disposições e realidades revolucionárias, até porque todo mundo que trabalha, cria, produz, empreita, ensina, comercia, informa, realiza, pensa, vende, planta, compra, pesquisa, colhe, escreve, fabrica, transporta, estuda, presta serviço ou faz alguma coisa útil naquele país, não está com tempo para mais nada a não ser cuidar da própria vida e de seus interesses, trabalhos e negócios, uma vez que vão todos de vento em popa. Só não tem o que fazer quem cuida de roubar, mentir, sabotar, usurpar, fraudar, catimbar, desinformar, manipular e outros verbos tais praticados por veículos de comunicação da mídia privada no país e da mídia hegemônica mundial. Esta, valendo-se da ingenuidade delirante, furibunda e espumante dos proprietários da RCTV, resolveu declarar guerra à Venezuela, ao seu povo e ao seu governo legítimo. Isto é, também caíram nas provocações de Chávez e nas armadilhas que, há tempos, ele vem armando para a "grande batalha". Nem os cálculos mais otimistas do planejamento original do processo revolucionário poderiam conceber para período tão curto uma conquista tão grande. Na melhor das hipóteses, dever-se-ia imaginar que em 2007 renovariam as concessões por prazo mais curto, talvez cinco anos, como de fato assim foram renovadas agora as concessões da Venevisión e da VTV. Este autor não acreditava que viveria o suficiente para testemunhar tamanha conquista por parte de uma revolução latinoamericana. Reconhecemos que até o momento o nosso trabalho pode ser interpretado como desigual e injusto com a Revolução Bolivariana ao atribuir grande parte dos créditos e vitórias dela aos erros e equívocos das oposições e da mídia antes hegemônica. Nossa opinião, de certa forma, concorda com a de Chávez, a quem já ouvimos dizer: "Quanto mais nos atacam, mais nos fortalecem." Optamos por um enfoque assim porque as análises que temos visto em veículos de resistência procuram atacar as oposições na Venezuela pelo argumento ideológico, como se tentassem convencê-las de mudar suas convicçõe$. Consideramos isso uma perda de tempo. Em verdade, muitas de tais análises desmerecem ou desconsideram virtudes e conquistas importantes da Revolução Bolivariana que, em nossa opinião, deveriam motivar dissertações e avaliações bem aprofundadas e detalhadas para que fossem difundidas, debatidas e conhecidas ao máximo, além de servir de exemplo e orientação a movimentos sociais e revolucionários de outros países. 42 Mas um fato inusitado ficou revelado em nossas pesquisas para este trabalho. Também as esquerdas, por seus intelectuais e porta-vozes, parecem ter ficado chocadas (este é um termo provisório) com a não renovação da concessão daquele canal mainstream da mídia ex-hegemônica na Venezuela. Não é nova para nós a observação, que vem desde os anos 80, de que a grandes alas de militantes, políticos, intelectuais e artistas que se posicionam como "de esquerda" agradam muito as programações de entretenimento dos veículos de comunicação de direita. Não faltam os que dizem abertamente que elas atendem à perfeição ao que se poderia chamar de "cultura popular". É o ranço pequeno-burguês na formação deles que a mídia sabe detectar, usar e explorar muito bem. São muitos os exemplos, mas não precisamos deles aqui. Quanto à intelectualidade, mais erudita, mais estudiosa e também mais radical em seus textos e pronunciamentos ideológicos, notamos agora uma novidade: parece que também eles têm dificuldades com a liberdade de expressão, a verdadeira. São muito fluentes e produtivos em tempos e situações repressoras e opressoras, a que parecem estar mais acostumados e a que desafiam corajosamente em veículos alternativos e de resistência. Mas é bastante um espaço de comunicação livre como o da Venezuela para inibi-los e fazê-los deixar as penas de molho. Sobre aquele país onde todos se pronunciam, todos mesmo, operários, estudantes, artistas, empresários, donas de casa, políticos, camponeses, motoqueiros, jornaleiros, enfim, todos os setores da sociedade, independente de origem de classe, raça, credo, idade, profissão ou "perfil", podendo dizer o que bem entenderem (quase todos com bom discurso, na ponta da língua) e com espaço farto em televisão de alcance nacional (principalmente viVe TV, onde pudemos ver centenas, senão milhares deles), é notável e sem explicação a carência, nos veículos da mídia de resistência, de artigos e estudos detalhados sobre um processo histórico tão importante, o que está se dando na maioria das páginas publicadas (com a brilhante exceção de Aporrea.org, um dos mais abertos e combativos sites do pensamento crítico da internet). Podemos até denunciar um silêncio senão suspeito pelo menos estranho de proeminentes vozes da resistência em relação ao que hoje está ocorrendo na Venezuela, cujas ações se reduziram a um manifesto de apoio a Hugo Chávez, com assinaturas de muitos deles. Por enquanto não vamos dar nomes, preferimos alimentar a esperança de que estão, como nós, trabalhando e se alimentando de informações e pesquisas para devolver-nos matérias sólidas e consistentes. O site Rebelión parece que acordou. Vamos esperar... Eis por que nossas pesquisas lograram mais informações em tais veículos sobre o passado revolucionário e estas, no enfoque mencionado (o debate ideológico com a direita). Eis o motivo pelo qual ficamos sabendo mais dos erros das "oposições" do que dos acertos da Revolução. Mas, desde a reeleição de Chávez em 2006, vimos acompanhando os passos magistrais da Revolução Bolivariana, e o nosso trabalho foi enriquecido por excelente material produzido pelos veículos do governo-resistência daquele país e, agora sim, podemos sustentar posições nas virtudes vitoriosas daquele glorioso processo histórico. O povo venezuelano é talvez, depois do cubano, o povo mais bem preparado do mundo para a democracia participativa e revolucionária. Não fosse assim, seria sem chances uma atitude como a não renovação da concessão da RCTV. No Brasil, por exemplo, se um governo ousar tocar nas concessões da Rede Globo, o povo irá maciçamente às ruas para derrubar o governo e recolocar no ar o "seu" canal predileto. Isto demonstra que a educação revolucionária funcionou e está funcionando bem, lado a lado com a verdadeira liberdade de expressão, ambos em contínua expansão de qualidade e quantidade. É também um povo mobilizado, como nunca se viu. Todo venezuelano que quer se engajar no processo revolucionário (e é cada dia maior o número dos que querem) tem várias 43 entradas organizadas para recebê-lo. São Conselhos Comunais, Conselhos de Fábrica, Conselhos Campesinos, Conselhos de Estudantes, Mesas Técnicas, Comitês de Saúde e de Educação, Células Partidárias, Projetos de Bairro, de Cooperativas, de Comunidades Socialistas, Rádios e TVs Comunitárias e outros instrumentos criados pela Revolução com muita competência para introduzir a cidadania na militância política organizada. Para aferir tal realidade é bastante um dado incontestável. O Partido Socialista Unido de Venezuela - PSUV, proposto por Chávez logo depois de eleito em 2006, já recebeu, em menos de um mês, a inscrição de mais de 5.600.000 de eleitores aspirantes à sua militância, isto num país com cerca de 14.000.000 de eleitores registrados, e com uma população total de 27.000.000 de habitantes. Somente este dado já coloca o PSUV como o maior partido da América Latina e possivelmente o único a ser fundado e organizado desde as bases de sua militância, sendo esta proveniente de todos os estratos sociais. Assim, quando Chávez e sua equipe decidiram aproveitar o vencimento do prazo concessional para retirar do ar uma emissora de TV maligna e substituí-la por uma benigna (por favor, no sentido vetorial do crescimento da sociedade, e não num maniqueísmo banal), sabiam o que estavam fazendo, pois contavam com respaldo popular equivalente a uma muralha quanto à pretensão golpista que tentasse ameaçá-los. O recado de Chávez no pronunciamento que abre este tópico foi dirigido ao povo, mas visava também um alvo muito além da insignificância do Sr. Marcel Garnier et caterva. Sua flecha foi disparada com precisão na direção do coração do Império, mais precisamente da mesa principal do Salão Oval da Casa Branca. E acertou em cheio. Confirma-o o papelão da Sra. Condolezza Rice na reunião da OEA, há poucos dias. Seu pronunciamento presunçoso e arrogante contra o governo venezuelano por causa da RCTV, acionado pelo patrão Bush e à revelia de decisão tomada por unanimidade na OEA de que tal assunto não seria pauta da reunião, foi demolido pela resposta implacável do chanceler venezuelano, Nicolas Maduro, que não deixou pedra sobre pedra na pobreza leviana da argumentação daquela senhora. Isolada, e sem apoio de nenhum dos chanceleres presentes, que lá representavam os países das três Américas (menos Cuba), ela então se retirou da reunião com a insolência que lhe é costumeira, e não mais retornou. Mais recentemente, foi o próprio cowboy texano que, da Casa Branca, fez comentários vazios mas sempre agressivos à Venezuela. E foi seguido por alguns de seus assessores mais próximos e pelo Senado dos EUA. Chávez nem deu bola a nenhum desses arroubos que só atendiam a pressões midiáticas e a grupelhos de picaretagem e "inteligência" subvencionados com o dinheiro do contribuinte estadunidense. O estrategista Chávez descobrira o ponto fraco do Império. Está na origem de sua força e poder, e não são porta-aviões, bombas e foguetes - é a mídia hegemônica. Estudando-a e enfrentando-a durante a construção de sua Revolução, o governo Chávez percebeu onde ela é vulnerável, e que o seu poder é só um balão inflado, sem conteúdo. Uma vez furado, por menor seja o furo, se esvaziará rapidamente. E depois, caindo a Hidra Midiática, cairá o Império. É só uma questão de tempo, talvez pouco tempo. "Tudo tem seu tempo". A grande batalha Ao ser reeleito, Chávez com certeza tinha um plano detalhado de trabalho, com um complexo e recheado cronograma de ação em velocidade máxima, cuja primeira fase (curto 44 prazo) teria por data-marco a Copa América de Futebol, pela primeira vez na Venezuela, com abertura em 26 de junho e encerramento em 15 de julho de 2007. Dentro do cronograma, algumas datas-chave foram pré-estabelecidas como pontos de referência, tais como 4 de Fevereiro (Insurreição Militar), 27 de Fevereiro (Caracazo), 1113 de Abril, 1º de Maio e... claro, 28 de maio de 2007. Nesta última, alguns minutos depois de zero hora, seria colocada no ar a Televisora Venezolana Social - TVes, utilizando a faixa principal e mais nobre de emissão televisiva em VHF, o Canal 2, até então ocupado pela RCTV, desde 1954. A última renovação da concessão dos canais televisivos e radiofônicos fora feita, em bloco, por decreto presidencial de 27 de maio de 1987, com prazo de 20 anos. Portanto, em 27 de maio de 2007, às 23h59min, o prazo expirará para os veículos que nele tiveram as concessões renovadas (entre as atuais emissoras de TV, estão neste caso somente a RCTV, a Venevisión e a VTV). O anúncio de Chávez, tão logo reeleito, de que não renovaria a concessão da RCTV, causou um terromoto na mídia mundial e abriu um debate nacional sem precedentes. Como era esperado pela tática de provocação utilizada por Chávez, as "oposições" (vamos agora colocá-la entre aspas, mais à frente daremos o motivo) trataram de mostrar logo seus planos golpistas e exibir suas garras macabras, sedentas de sangue. Quanto ao governo, foi desfechada uma ação organizada e bem planejada de trabalho, em todos os setores, cujo início se deu em 14 de janeiro de 2007. Neste dia, no Teatro Tereza Carreño, o maior e mais majestoso centro cultural de Caracas, Chávez apresentou ao povo venezuelano, em cadeia nacional de rádio e TV, seus novos 27 ministros. Para quem fora eleito há pouco mais de um mês, pode-se considerar um tempo recorde (Lula, por exemplo, eleito em outubro de 2006, não tinha um novo ministério completo em abril de 2007). O novo ministério de Chávez surpreendeu por várias alterações inesperadas. Porém, analisando seus governos anteriores, observamos que os ministros são parte de uma equipe muito maior e mais transcendente que atua organizadamente, com disciplina revolucionária, em todos os setores da vida nacional. Os membros de ministérios anteriores são sempre realocados em funções estratégicas em outros pontos da ação governamental, institucional e da iniciativa privada, em certos casos, até no exterior. Um exemplo é o de José Vicente Rangel, o vice de Chávez no governo anterior (na Venezuela, o presidente eleito escolhe seu vice, que atua como um super-ministro, em funções coordenadoras de todos os outros), e que, nessa condição, prestou serviços relevantes à Revolução. Rangel, jornalista respeitadíssimo no país (foi dos primeiros a entrevistar Chávez, quando candidato maldito pela mídia, no programa que mantinha na Televen), de perfil moderado e idade avançada, foi substituído pelo combativo e radical Jorge Rodrigues, mais jovem, ágil e dinâmico, e que está exercendo papel importantíssimo no atual governo, atuando pessoalmente nos fronts mais críticos e mais arriscados da ofensiva socialista a que se propôs Chávez no novo mandato, papel que sem dúvida seria difícil para um homem como Rangel. Este nosso juízo tem respaldo no do General Alberto Muller Rojas, veterano militar, membro do Estado Maior das Forças Armadas e um dos mais importantes teóricos da estratégia revolucionária que assessoram Chávez. Tendo sido publicado bem depois que escrevemos a nossa análise, vamos inseri-lo aqui: "No tengo casi dudas que si José Vicente Rangel, con su experiencia y madurez, sin menospreciar su talento, fue el ejecutivo capaz de administrar el gobierno en la etapa de consolidación del régimen, Jorge Rodríguez es el hombre adecuado para la profundización de la política de transformación estructural de la sociedad venezolana adelantada dentro de la visión 45 socialista." (aporrea.org, 22/6/2007) Por sua vez, Rangel voltou ao seu programa na Televen, agora em novo e sofisticado formato (bancado, é claro, pelo governo) e exerce ali papel estratégico para o governo na atual batalha midiática. Outro exemplo é o de Aristóbolo Isturiz, ministro da Cultura no primeiro governo Chávez, depois ministro da Educação e dos Desportes, depois alocado no projeto de alfabetização em massa na Bolívia, e agora atuando em várias frentes de jornalismo televisivo nos canais do governo. Há mais exemplos. O desenrolar dos fatos nos vários fronts da atual ofensiva socialista do governo Chávez demonstrou que ele e seu Estado Maior escolheram a dedo cada uma das posições-chave, tanto no ministério como nas demais funções estratégicas revolucionárias. Naquele dia 14 de janeiro, Chávez anunciou também a ofensiva radical e acelerada "rumo ao socialismo do Século 21", cujo cronograma já estava desenhado até o ano de 2021. Para isso, ele ativava, naquele momento, o que havia anunciado dias antes e chamou de "Os cinco motores da Revolução Bolivariana", a saber, resumidamente: 1º motor: La Ley Habilitante - é um dispositivo constitucional, tradicional nas leis venezuelanas, que permite ao Presidente da República, devidamente autorizado pela Assembléia Nacional, a legislar por emergência ou por necessidade estratégica sobre determinados assuntos e por um tempo determinado. No caso, a solicitação foi por 18 meses consecutivos para uma série de assuntos e temas especificados no documento. Chávez necessita deste dispositivo para barrar com mais facilidade as tentativas golpistas que se valem de frestas legais, como lock outs e estocagem especulativa de produtos, e, por outro lado, apressar certas mudanças indispensáveis em alguns setores da administração. 2º motor: La reforma profunda de la Constitución Bolivariana - o que o governo revolucionário propõe neste motor é, basicamente, retirar cacos neoliberais, capitalistas e pseudo-representativos que acabaram incluídos na Constituição em 1999, por conta de negociações da época. O mais importante, porém, é dar ao cargo presidencial o direito de reeleição por número indefinido de mandatos consecutivos, o que significa dar a Chávez a possibilidade de continuar governando depois do atual mandato, e enquanto viver ou quiser, coisa que a Constituição ainda não permite. Deseja-se, também, a inclusão de avanços revolucionários por novas invenções e descobertas e abrir portas para futuras inovações (Revolução Criativa). 3º motor: La Jornada Nacional de Educación Popular "Moral y Luces" - Moral e Luzes, se traduzirmos ao pé da letra, é o dístico do pensamento educacional bolivariano, a partir de Simon Bolívar e Simon Rodrigues, ideólogos históricos da educação nacionalista no país, que Chávez pretende contrapor ao que seria o da educação capitalista, que é "vencer (destruindo concorrentes) e ganhar dinheiro (a qualquer custo)". Para Chávez, os problemas de corrupção e mal uso de bens públicos só se resolverá em definitivo pela educação socialista. É preciso clarear que em espanhol a acepção que prevalece para a palavra "moral" é a da ética, da auto-estima, da valorização do ser, e não a de um estatuto de princípios e velhas regras sizudas de comportamento (moral convencional) como em nosso idioma. Usamos, às vezes, a palavra tal como na língua espanhola quando dizemos, por exemplo: "Fulano está com a moral toda", isto é, está sendo valorizado, com a auto-estima em alta. Este motor tem sido considerado por analistas o mais importante para Chávez, que nomeou como "propulsor" ninguém menos que seu irmão, Adan Chávez, tido por ideologicamente mais radical e à esquerda de Hugo. Adan assume também o Ministério da Educação no atual mandato, e adotou por lema deste motor a frase: "Toda la patria una 46 escuela". O projeto, grandiosíssimo, quer assegurar educação socialista de nível superior e alta qualidade a todos, todos mesmo, os venezuelanos até o ano de 2021. 4º motor: La Nueva Geometría del Poder - a meta deste motor é a redução, ou a eliminação, se possível, do poder burocrático sobre o poder do trabalho produtivo e realizador. Envolve o conceito de "poder comunal", diretamente conectado ao "poder central", fazendo, em nossa interpretação, uma leitura criativa e latinoamericanizada do "centralismo democrático" de Lenin. Envolve também o redesenho geopolítico do país, estabelecendo novos critérios para o status de municípios, comunidades de bairros, comunidades campesinas e outras, além de áreas territoriais federais, que não deverão funcionar isolados ou independentes uns dos outros, mas sim como um "sistema direcionado para o socialismo do século 21". 5º motor - La Explosión del Poder Comunal - os chamados "Conselhos Comunais" são a grande aposta inovadora da Revolução Bolivariana e trazem conceitos que avançam e atualizam os conceitos leninistas de soviets, partindo de princípios teóricos semelhantes. Em nossa opinião, Chávez e sua equipe buscam lograr com eles uma conquista que se perdeu na URSS (sem Lenin). Isto é, que o poder seja distribuido de tal forma até que um dia se confunda com o próprio povo. A partir daquele dia, Chávez e sua equipe entraram na maratona de inaugurações e eventos políticos, sociais e culturais por todo o país, como nunca se vira antes. A impressão de quem acompanhava é de que aquelas pessoas não dormiam. Como dormir? Não havia tempo! Três ou quatro inaugurações de obras em grande escala, todos os dias, com multidões mobilizadas, recepção de visitas de delegações estrangeiras (retorno dos giros de Chávez no ano anterior), recepções de cúpulas internacionais, congressos de várias classes sociais e profissionais, além dos programas "Alô, Presidente" nos pontos mais distantes do país, e até no exterior, visitas a obras em andamento, lançamentos de novos projetos, anúncios de novas políticas, novos decretos, enfim, uma atividade frenética de tal ordem que era difícil até de acompanhar. No mesmo passo, seguia a política acelerada de alterações institucionais "rumo ao socialismo", e de reestatizações de tudo o que havia sido privatizado nos períodos neoliberais, além de novas estatizações revolucionárias. No tópico das alterações institucionais, uma delas causou alvoroço enorme na oligarquia local, com reflexos fortes nas oligarquias do império que, no entanto, não permitiram que fosse vazada pela mídia a seu cabresto. Chávez declarou o 4 de Fevereiro feriado nacional para celebração da Revolução Bolivariana, e realizou um desfile militar das Três Armas diante de milhões de pessoas, a aviação já exibindo seis dos 24 Sukoys russos adquiridos para ela. Durante o desfile, quando os regimentos passavam pelo palanque do presidente, no centro de uma grande arquibancada lotada, paravam, faziam continência ao presidente e ao povo, e, com o punho direito fechado sobre o peito, em reverência solene e tipicamente militar-revolucionária, bradavam em alto e bom som: "- Patria, socialismo o muerte!" Ao que o presidente respondia, também em voz alta: "- Venceremos!" A determinação, institucionalizada nas Três Armas e na Guarda Nacional, é de que a frase tem de ser usada sempre, seguida da resposta, dentro e fora dos quartéis, em determinadas circunstâncias de regulamento, sejam elas internas ou públicas. O lema pode ser usado também, a critério dos comandantes locais, em grandes cartazes gráficos colocados nas portas dos quartéis e instalações militares. Muitos já os exibem em suas fachadas. 47 Esta nova provocação de Chávez tem um outro sentido bem prático. Apesar de ter feito boa limpeza nas Forças Armadas, desde o fracassado golpe de 2002, era fora de dúvidas que nelas restavam ranços alienígenas ou anti-revolucionários por força da sedimentação viciosa que se produzira nos longos períodos de servilismos e lacaísmos a que se viram submetidas no processo histórico-reacionário do país. Ora, fazer um militar latinoamericano reverenciar o povo e o presidente, e ainda dar o brado revolucionário de Che Guevara, só mesmo na Venezuela (o que não é idéia tão nova assim, se lembrarmos que o brado independentista do Brasil, proferido por Pedro I, em 1822, era "Independência ou Morte", ou, no início do século 20, de um Emiliano Zapata: "É melhor estar morto numa pátria viva do que estar vivo numa pátria morta"). A imprensa esbravejante noticiou dissenções e baixas em larga escala que o governo desmentiu sem fornecer dados, alegando razões de estado. Durante a guerra midiática, veículos lançaram rumores de que os dissidentes se organizavam para "retomar o poder". Mas o expediente, se não sanou completamente o problema, deve tê-lo reduzido o suficiente, pois as Forças Armadas demonstraram absoluta lealdade no decorrer da batalha, em especial nos momentos mais críticos. Por seu lado, nas "oposições" verificava-se um fenômeno novo, talvez nunca visto. Começaram a surgir no painel da troca de farpas entre a mídia privada e o governo algumas estranhas "entidades de oposição", claramente se posicionando como partidos políticos. Afora as empresas midiáticas privadas, ao invés dos partidos de oposição (que ainda existem, porém insignificantes), faziam pronunciamentos, sempre publicados como "furos" de destaque na mídia privada e até ganhando manchetes garrafais em primeira página de grandes diários impressos (hoje não tão grandes assim), uma série de ONGs e instituições esquisitas, sem funções sociais definidas, ou, quando o eram, com práticas muito afastadas de seus objetivos. Em geral, tinham origens em outros países. Siglas, palavras e nomes nazistex, como ORVEX (de Miami), nazistor, OTPOR (Kosovo), ou nazislight, Freedom House (parece que é austríaca), RSF - Reporteros Sin Fronteras (França, ficou claro que só os bolsos e o caráter deles é que são "sem fronteiras"), fakes de "instituições acreditadas" de nomes pomposos como Albert Einstein Institut (pobre Einstein, revirando no túmulo), CIDH (Conselho Interamericano de Direitos Humanos, para confundir com as Comissões de D. H. da OEA e da ONU) e a mídia hegemônica dos EUA (CNN, Fox News), Espanha, Áustria, Bélgica e outros países europeus. A dos países latino-americanos como Brasil, Chile, México, Colômbia, Peru e outros intentaram uma adesão que murchou rápido porque foi denunciada, e devem ter achado melhor não mexer no assunto. Enfim, as "oposições" na Venezuela moravam em Miami, em Kosovo, em Madri, em Paris, em Belgrado, na Áustria, nos EUA e o diabo. Dentro do país, as "oposições" eram só RCTV e Globovisión, e seus afiliados nas mídias radiofônicas e impressas. Venevisión e Televen mantiveram-se relativamente neutras, mas com tendências viciosas apoiando as emissoras privadas (a mídia privada possuía então 75% dos veículos de mídia do país). Por isso, ao nos referimos às "oposições" na Venezuela, devemos fazê-lo entre aspas, pois são compostas por interesses e entidades ilegítimas, alienígenas, anti democráticas e golpistas por natureza. Como veremos, no desenrolar da "batalha" verificou-se que todas elas (inclusive as mídias privadas) não passam de cabides de empregos pendurados na CIA, no Pentágono e no Departamento de Estado dos EUA. Em geral, reúnem maltas de alijados de seus países por serem vendilhões de pátrias, participarem de torturas e matanças de compatriotas, ou por serem procurados por corrupção e crimes comuns, além de jornalistas e lacaios locais. Numa segunda vertente estão "projetos especiais" de órgãos de Inteligência dos EUA, disfarçados de ONGs, com a missão de desestabilizar nações não alinhadas às políticas 48 imperialistas. Tiveram algum sucesso discutível na Sérvia e na Ucrânia, e insucessos registrados em outros países como Bielorússia, Senegal e Irã. Na verdade, as duas vertentes não são mais que arranjos para levantar grana dos otários da "Inteligência" do governo Bush, que a liberam com facilidade por "serviços prestados" só com base em papelório comprovante e informações colhidas em veículos midiáticos (que também levam parte no trampo). No fundo, é meio de vida de criminosos proscritos de países latino-americanos, que migram para Miami, ex-funcionários de órgãos públicos dos EUA e jornalistas e picaretas locais tarifados. Criam siglas de picaretagem, com página na internet, fazem "projetos" fajutos mancomunados com as CNNs, Fox, RCTVs e Globos da vida, sempre prometendo valiosos serviços ao Império, pegam uma grana gorda, vão aos países-alvos, fazem as bagunças e os vandalismos possíveis pagando gorjetas ou usando de graça os otários locais (sempre estão lá), depois prestam relatórios com mais promessas mediante mais grana, e por aí vão vivendo suas existências indignas e medíocres. Faz tempo que caiu a máscara de competência infalível de CIA, FBI, Pentágono, etc, moldada em filmes de espionagem. Nos filmes, os estratagemas "geniais" funcionam, claro. Mas só nos filmes. Na realidade, casos de inadmissível incompetência têm sido registrados com freqüência, a maioria sem divulgação, porque seriam "segredos de Estado". Um caso famoso, que acabou divulgado, foi o de um biógrafo de John Lennon. Sabendo que CIA e FBI tinham arquivos secretos sobre o ex-Beatle, tratou de reivindicá-los para seu livro. Depois de uma batalha judicial que durou quase vinte anos, obteve os documentos. Ao vêlos, compreendeu por que aqueles órgãos lutaram tanto para mantê-los secretos. Não passavam de bobagens mal copiadas de revistas roqueiras de segunda, com informações equivocadas ou que qualquer um obteria em melhor qualidade. E os encarregados do serviço eram tidos por bambas entre agentes do FBI e da CIA. Na época, faziam em máquina de escrever os relatórios das "investigações". Hoje, basta copiar e colar de uma página de internet, e eis um catatau em forma de relatório que ninguém vai ler, mas alguém vai emitir a autorização de pagamento, e outro alguém vai emitir o cheque (ou providenciar a mala cheia de doláres, como nos filmes). Eis a "Inteligência" do Império. Precisamos agora introduzir o agente mais importante dessa batalha - o povo venezuelano. Mobilizado por Chávez desde o primeiro pronunciamento, rapidamente se formou em todas as instâncias da sociedade, organizadas ou não no processo bolivariano, uma rede de intensos e magníficos debates. Em pouco tempo não havia uma pessoa de qualquer classe social, idade, profissão, escolaridade, sexo e credo que não soubesse debater fluentemente sobre temas como "ondas hertzianas", "canais VHF", "UHF", "TV a cabo" e tudo o que pode ser dito de "concessão pública", "espectro radioelétrico", "grade de programação", TVs públicas e privadas, televisão de serviço público, etc. Pela primeira vez, a população toma conhecimento de que o tal "espectro radioelétrico" tem a faixa mais nobre em emissão VHF, a qual comporta somente seis ou sete canais de TV, sendo que justo o Canal 2 é o que mais tem alcance de sinal com qualidade de imagem e som. E este mais nobre sinal esteve nas mãos de uma empresa privada durante 53 anos e ninguém nunca fora informado disso! Agora, a Revolução Bolivariana precisa dele para prestar serviço social, e as elites, que o usurparam durante mais de meio século, resolvem que é propriedade delas. E propriedade hereditária, por certo!? Cedida originalmente a um barão do Império, com poder de tranferi-la aos descendentes, geração após geração. No Brasil, poderíamos comparar as concessões às Capitanias Hereditárias, dos tempos da colonização mais bárbara e genocida. Crescendo dia a dia, aceleradamente, o debate chegaria ao auge no mês de maio, quando não se falava de outra coisa na Venezuela. Mas ali, o povo já havia tomado posição: 49 "Estamos com el Comandante. RCTVas!". Como sabemos de tudo isso? Ora, o povo venezuelano dispõe de ótimos veículos midiáticos, superiores em qualidade de edição e programação aos veículos privados. Talvez seja esta a verdade que mais exaspera a mídia privada, pois está se refletindo em grave perda de sua audiência, e até no repúdio de vastos setores da sociedade, antes seus escravos, contra ela. Há que reconhecer o belíssimo trabalho da VTV, viVe TV, TeleSur, AN-TV e os canais de TVs Comunitárias. A pobre mídia privada e o pensamento único não têm mais paz nem sossego naquele país. Todos os truquezinhos manipuladores, que antes levavam multidões às ruas para derrubar governos, são agora denunciados e postos a nu, no ato ou com antecedência, pelas emissoras públicas e comunitárias. Não raro, ridicularizam a mídia privada, ao vivo e a cores, para a Venezuela inteira. Os bonecos e bonecas midiáticas são vistos lá como "bocones" (em português-brasileiro, bocós). Mal saem às ruas, pois são motivos de risos e chacotas. Além do mais, só o "sistema bolivariano de comunicação" abre espaços a todos os venezuelanos, inclusive os de "oposição". As grades dos canais públicos contemplam uma série de programas de opinião e debates de ótimo formato e muito atraentes, moderados por excelentes profissionais de comunicação e jornalismo, alguns merecedores de condecoração por serviços prestados à Venezuela e ao mundo. E há os programas protagonizados pelo próprio povo nas comunidades de bairro, de fábrica, de campesinato, de trabalho, de estudantes, recebendo também a participação de intelectuais, artistas, políticos e celebridades da Revolução. A TeleSur tem os ótimos Mesa Redonda Internacional (Rhandy Alonso - Cuba), Videoteca Contracorriente (também cubano, protagonizado por intelectuais convidados), Agenda del Sur (Mario Lopes), Em Vivo desde el Sur (Patricia Villegas), além de densos noticiários, únicos da mídia mundial a pautar com prioridade a América Latina, os países de terceiro mundo e os movimentos populares e sociais. A VTV dá shows de comunicação, jornalismo e opinião da melhor qualidade em vários programas de diversos formatos, a ressaltar La Hojilla (Mario Silva), Dando y Dando (Tania Diaz), Contra-Golpe (Vanessa Davies), Dialogo Abierto (Jorge Arreaza), Al Momento (Maria Tereza Gutierrez), Kiosco Veraz (Earle Herrera), En Confianza (Ernesto Villegas), Como usteds pueden ver (Roberto H. Montoya e Roberto Malader) entre outros. E noticiários, editoriais e avanços de notícia pautados na resistência anti-imperialista, anticonsumista e anti-manipuladora da informação. A grade da viVe TV, mais vanguardista, experimental e flexível, além de excelentes programas periódicos como Intercambio, Comunicando Medios Comunitarios, Real y Medios, Medio Mundo, Caras del Mensaje, já dedicados ao tema midiático, permite adaptações ao momento histórico-político-social e, no caso dessa batalha, destinou uma série de programas-debates que normalmente faz com membros das mais variadas comunidades venezuelanas, tais como, Construyendo Republica, Ecos de la Revolucion, La Hora de los Mangos, Cresciendo com el Pueblo, De Pueblo a Pueblo, ao tema da "no renovación de la concessión", fazendo, assim, incluir no rol dos protagonistas da mídia de resistência as vozes populares de todas as cores e matizes, o que ninguém imagina o quanto enriqueceu e fortaleceu o poder de fogo da mídia de resistência apoiada pelo governo venezuelano e seus veículos de comunicação. A ViVe TV contribui também com bons e criativos noticiários: Inf, Noticiero del Sur, Venezuela Adentro, Noticiero Indígena. 50 A internet ainda não nos oferece acesso direto ao sinal da Catia TV e demais TVs Comunitárias (hoje em número de 28, que subirá para 71 ano que vem), mas muitas de suas imagens vimos na viVe TV e em diversos programas da VTV. Destaca-se nesse grupo Ávila TV, uma experiência fascinante de cultura comunicacional a partir de uma rapaziada da pesada e que tem rendido matérias audiovisuais que, pelas poucas a que assistimos, são avanços reais na ponta de lança dos Godard, Glauber, Pasolini, Antonioni, etc. E das oficinas cinematográficas da Villa del Cine começam a sair as produções revolucionárias, com destaque para Bolivar Eterno, primeira super-produção de longametragem do estúdio; e a nova safra de longas (só em 2007, já produziram 19 longas), inúmeros documentários realizados e em produção, minisséries para televisão e filmes infantis, que estão emplacando inegável sucesso de público e crítica. Há poucos dias, na comemoração do primeiro ano do estúdio, o ministro Francisco Sesto (Cultura) revelou que o sucesso da iniciativa foi tal que o governo já liberou recursos para a construção de outros seis estúdios similares em diferentes pontos do país. Da parte do governo revolucionário, não houve necessidade de entrega à batalha com todas as forças. Firmemente estruturado no pilar principal da vontade popular maciçamente expressada por maioria crescente em nada menos de 12 eleições seguidas, consolidado no vigor nunca antes registrado das forças institucionais (poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, as Forças Armadas e policiais), econômicas, culturais e de justiça social, e solidamente apoiado por quase todos os setores da sociedade venezuelana, o governo Chávez hoje é um governo absolutamente estável e impossível de ser derrubado por qualquer força política, econômica, militar ou midiática, interna ou externa. O maior interesse do governo nessa "batalha" é pelo debate e ampliação da consciência popular sobre a ação midiática e os direitos do cidadão dentro dela. Assim, destacou para a linha de frente do combate apenas três de seus 27 ministros para cumprirem funções específicas nos momentos certos. A saber, entraram em cena, por ordem, o ministro Jesse Chacon (Informática), o ministro Pedro Carreño (Segurança) e o ministro William Lara (Comunicações). Chávez, em momentos importantes, também fez intervenções. Mas as "oposições" insistiam em peitar o governo e derrubá-lo. O Sr. Marcel Granier, desde o pronunciamento de Chávez sobre a não renovação de sua concessão televisiva, decidiu por travestir-se em estadista e candidato à presidência da República pós-chavista, que, com base em seus delírios e nas pesquisas de audiência que encomendara, seria declarada ainda em maio deste ano. Imaginando-se, desde ali, um Berlusconi dos trópicos, saiu por um giro internacional em busca de apoio externo. Não conseguiu a almejada audiência com o "presidente Bush", nem com presidente nenhum de país nenhum, nem com ministros e autoridades importantes de países importantes ou não importantes, nem com celebridades internacionais, nem com ninguém de real interesse. Seu "giro internacional" se reduziu a uma viagem a Miami e à Europa em visita a obscuros setores de ultra direita neofascistas e neonazistas, cujos nomes tinham de ser cuidadosamente soletrados para que fossem publicados em seus próprios jornais e veículos midiáticos. Gastando regiamente o próprio dinheiro, proveniente de vasta fortuna herdada e acumulada desde que a família de sua esposa ganhou de presente a concessão da RCTV, andou por Espanha, Parlamento Europeu, França e Itália com um bando de assessores, picaretas pagos pela CIA (e por ele também) e políticos desacreditados de ex-partidos falidos, alguns dos quais dando vexames em diversas ocasiões. Mas o Sr. Marcel Granier só obteve o apoio que já teria de qualquer modo, mesmo que nada fizesse, isto é, o apoio da mídia hegemônica mundial, que se via ameaçada pelo governo revolucionário da Venezuela, ao qual decidiu dar combate por todos os meios que possui, independente de o Sr. Marcel Granier pedir ou não tal combate, 51 e usando-o também como bucha de canhão, já que ele mesmo se dispôs a ser usado como vítima e mártir da "ditadura castro-comunista" de Hugo Chávez. No capítulo dos vexames que fizeram o mundo e a Venezuela rirem às gargalhadas, entre os vários casos registrados, dois merecem destaque como anedotas já integrantes do folclore político venezuelano. Como toda anedota, há diferentes versões para um mesmo caso. Damos aqui uma só das que nos chegaram de cada caso. A primeira foi a tentativa de um ex-deputado de oposição de penetrar em sessão do Parlamento Europeu com carteira falsificada da Assembléia Nacional da Venezuela. Denunciado pelo embaixador do país junto ao Parlamento, o penetra foi delicadamente convidado a se retirar. Ao que recusou-se com arrogância, talvez esquecendo-se de que não estava na América Latina, e acabou sendo retirado por força policial e preso por invasão ao Parlamento e desrespeito à autoridade. O segundo caso, protagonizou-o um ex-senador da 4ª República, também integrante da comitiva do pretenso estadista. Numa entrevista coletiva que Marcel Granier contratou a jornais e veículos da mídia de Paris, o ex-senador, depois de vociferar sobre as desgraças e agruras de seu país sob a "ditadura castro-chavista" foi questionado por um repórter desavisado sobre se ele estava em Paris pedindo asilo político (??). Um "branco" geral se instalou no salão onde se dava a entrevista, seguido das gargalhadas dos jornalistas que, mesmo bem pagos pelos entrevistados, não conseguiram contê-las. E a entrevista gorou. E assim se passaram os meses de fevereiro e março, até chegarmos no 11-13 de Abril, quando iniciamos este trabalho. O governo cumprindo a super-agenda, recebendo presidentes de vários países do mundo e da América Latina para inaugurar poços de petróleo na "faixa do Orinoco", firmando contratos de empresas mistas, assinando convênios e fazendo pronunciamentos, estatizando as empresas de eletricidade para o Plano Energético Nacional (a correr no segundo semestre de 2007), inaugurando, em blocos, escolas, universidades, hospitais, fábricas e comunidades agrícolas de produção socialista, desapropriando terras de latifúndio para a Reforma Agrária, inaugurando grandes obras viárias e de infra-estrutura, pontes, viadutos, novas linhas de trens e de metrôs, fazendo anúncios de novas leis e decretos distributivos de renda, como a redução de impostos e tarifas, a reintegração de pensões a aposentados de empresas privatizadas que as haviam perdido com a privatização, o tabelamento de alimentos e produtos de primeira necessidade a "preços socialistas", recebendo cúpulas de governos continentais (UNASUR, na Ilha de Margarida, e ALBA, em Barquisimeto), anunciando novas instituições integracionistas (BancoSur e Banco Alba) e novas metas de governo, inaugurando os super-estádios da Copa América (nove, ao todo; o último será inaugurado às vésperas da Copa), anunciando seus sucessos econômicos, políticos e sociais, enfim, esses felizardos, que são hoje todos os que habitam um país chamado Venezuela, não passam um dia sequer sem receber duas, três, às vezes, quatro, cinco ou mais boas e ótimas notícias do governo. E as "oposições" no seu baticum de sempre, mentindo, fraudando, manipulando, catimbando, sabotando, ameaçando, chantageando, negando, omitindo, tudo na espera vã do som das cornetas do 7º de Cavalaria. Só que não mais sem revide por parte das mídias de resistência, as populares e as do governo. Revide à altura e contundente. A presepada midiática que se produziu nos veículos privados nesse período é caso a se estudar em círculos especializados de psiquiatria, psicologia e psicopatologia criminal. Ao sentir a perda e o desprezo de suas sagradas audiências, o desespero, a insânia, a histeria e outros sintomas colaterais iam tomando conta daqueles estúdios de "criação" midiática, e se projetando, sem qualquer tipo de censura (ou auto censura), diante da população atônita e cada vez mais escandalizada com a impertinência e a falta de respeito de que eram vítimas 52 os telespectadores e ouvintes. Chegaram ao ponto de usar adolescentes de doze, treze anos, em cenas de sexo explícito e pornografia, colocar atrizes "provocadoras" desnudas nas ruas de Caracas para capturar "flagrantes" de "chavistas tarados", montar longas e intermináveis sequências de baixezas indescritíveis em novelas de horários nobres, valorizar crimes hediondos e violência gratuita, abusar de mediocridades, hipocrisias, bobagens e futilidades ao ponto de torná-las agressivas e ofensivas à inteligência e à sensibilidade do espectador ou do ouvinte, o mesmo valendo-se para mentiras em série, falsificações e montagens grosseiras de notícias que a realidade desmentia sem que o espectador ou o ouvinte precisasse sair de casa, enfim, todo o tipo de apelação, de jogo sujo, de baixeza, de impropriedade, de irresponsabilidade, de ausência de espírito de cidadania, de desprezo pelos valores éticos, profissionais, sociais, humanos e nacionais, foi urdido sem piedade por aquelas mentes sórdidas que habitam a caverna macabra de Molloch/Market. Era a Hidra Midiática, desatinada e furibunda, revelando-se e exibindo-se, sem nenhum pudor autocrítico por sua horripilante feiura e monstruosidade, perante a população boquiaberta mas não mais assustada nem amedrontada. Muito pelo contrário, os caraqueños, com seus espíritos abertos e chegados ao deboche e ao bom humor (são parecidos com os nossos cariocas), começaram a chamar a RCTV da RCTVas!, e a Globovisión, de Globoterror. O 11-13 de Abril marca o início da reta final até o 28 de maio. Na avenida superlotada fala "o homem do Equador", em cadeia nacional, dando contas ao povo das mudanças que nos levarão ao novo mundo de poder pluripolar. Entre os tantos projetos realizados e a realizar, ele aponta a "não-renovação da concessão" do Canal 2 e a criação de uma nova televisão para este novo mundo. Pede a anuência do povo, que a dá, de imediato, num só brado, que, de tão forte e uníssono, deve estar ecoando até hoje naquela avenida. A super-agenda do governo continua, no dia a dia, construindo a República e o Novo Mundo. No marco de 1º de Maio, a "faixa do Orinoco" amanhece ocupada por operários da PDVSA que, sob o comando do governo e do ministro Rafael Ramirez (Energia e Petróleo), tomaram as ex-empresas privadas que exploravam o petróleo da região e foram nacionalizadas pelo Governo Revolucionário. Cantaram o hino e içaram a bandeira nacional em cada uma das instalações retomadas. Chávez os cumprimenta pessoalmente em comício grandioso na região, transmitido em cadeia nacional, e aproveita para anunciar o aumento de 20% no salário mínimo em todo o país, muito acima da inflação, o que torna o novo salário mínimo (quase US$ 300,) o maior entre todos os países latino-americanos. Poucos dias depois é a vez da CANTV - Companhia Anônima Nacional de Telefonia de Venezuela, que havia sido privatizada em 1991. Chávez ocupa a empresa, tendo ao lado o ministro Jesse Chacón e equipe, fala com os trabalhadores locais e, em cadeia nacional, com os das muitas filiais espalhadas pelo país. Ele anuncia a redução de 20% nas tarifas de telefones celulares, além de outras reduções e aprimoramentos tarifários para a telefonia. Nenhuma (nenhuma, mesmo!) dessas notícias foi notícia para a mídia privada na Venezuela. Ela parecia ser mídia de outro país. Isto se deu até nas seções esportivas. Quando houve a reunião da ALBA, houve também os Jogos Olímpicos da ALBA, um super evento esportivo com os maiores atletas de toda a América Latina, que durou cerca de vinte dias, nas principais praças esportivas do país. A mídia privada não publicou sequer uma nota a respeito, enquanto cobria jogos sem importância de ligas menores dos EUA. Nem a Copa América, com seus nove novos grandes estádios sendo inaugurados em todo o país, 53 são notícia na mídia privada. Chegou ao ponto em que os envolvidos nela (emissores e receptores) passaram a ser chamados de "disociados" (de la realidad). Na medida em que se ia aproximando o "Dia D", ou seja, o 27 de maio (para a mídia privada, este era o "dia D", o dia em que vencia a concessão da RCTV), ela aumentava o tom de ameaças, prevendo sempre para a próxima semana a queda de Chávez. Afirmava que 80% da população estava com a RCTV, e a popularidade de Chávez, sempre segundo pesquisas de opinião, caíra para menos de 40%. Quanto aos EUA, já que não era possível a vinda de Custer (falecido no Iraque), haviam posto em marcha o chamado "golpe brando", ardil que se mostrara vitorioso na Sérvia e na Ucrânia, na derrocada dos "comunistas" daqueles países. A cada dia, as manchetes da mídia privada anunciavam novos apoios internacionais, novas siglas e nomes esquisitos inundavam as primeiras páginas bradando contra o absurdo e a ilegalidade que se estava cometendo contra o "povo venezuelano" (passaram a falar muito desse "povo" que nunca havia freqüentado aqueles espaços antes), aviltado em seus "direitos humanos" pela ditadura "castro-comunista" que se abatera na "hoje sombria Venezuela querida". Houve jornalistas que afirmaram preferir o comando de um general dos EUA do que permanecer sob o governo do "gorila" fardado. Era por aí. Mas a mídia de resistência contra-atacava, cada vez com maior resposta de audiência. Lá pelas tantas, surge em suas telas Eva Golinger, advogada e escritora dos EUA, amiga da Venezuela e apaixonada pela Revolução Bolivariana. Eva já batalhava judicialmente nos EUA, há anos, pela desclassificação de documentos do Departamento de Estado daquele país, em que se informavam as despesas que eram feitas na Venezuela com o dinheiro do contribuinte dos EUA. Por sorte, a última e definitiva das marteladas dos juízes de lá ocorreu em maio de 2007, e os documentos foram enfim liberados. Foi mais um grande vexame da mídia privada nativa. Todos, todos os seus jornalistas estavam nominalmente listados, naqueles documentos, como "empregados do Departamento de Estado dos EUA". Nestes termos! Maior vexame era a mixaria que recebiam para se submeterem a tão vil e vergonhosa condição: em média seis a oito mil dólares por ano! A partir dessa revelação, toda vez que um canal da mídia privada dava um "furo" sensacionalista de ameaça à Revolução, sua audiência caía imediatamente. Eram os telespectadores mudando para os canais do governo para saber o que realmente estava acontecendo. A mídia privada na Venezuela estava em sinuca de bico! Os índices da VTV subiram tanto que em certos momentos de La Hojilla (A Lâmina), do jornalista Mario Silva, um programa de combate e polêmica permanente com a mídia privada (e que não perdoa nada), deu-se a esgrima verbal, diretamente e ao vivo, com a RCTV e a Globovisión, abrindo-se janelas nas telas das três emissoras para o bate-boca entre seus jornalistas. Já não podiam fingir ignorar a audiência da VTV. Isto sim, é liberdade expressão! Mario Silva demoliu os outros jornalistas com facilidade. Os bonecos e bonecas midiáticas não sabem o que fazer sem o teleprompter. Ficam perdidos, desorientados. A fleugma pré-ensaiada, as mãozinhas educadas e os sorrisos estudados vão pras cucuias. Perdem a compostura e partem para a apelação, revelando logo quem de fato são. Outros programas como Dando y Dando, da jornalista Tania Diaz, e Contra-Golpe, da jornalista Vanessa Davies, ganhavam enorme audiência desfazendo no dia seguinte, com seus convidados, tudo o que a mídia privada, assessorada por empresas de comunicação e publicidade que contrataram a peso de ouro nos EUA, tinha urdido no dia anterior. Nesses dias, ia ficando mais difícil conectar pela internet os sinais ao vivo da VTV e da viVe TV, tal fora o aumento de suas audiências também em níveis mundiais. O mesmo se deu com a TeleSur quando entrou com mais força no combate. E, uma vez conseguido o sinal, o 54 delay (retardo) de sintonia, normalmente entre três a cinco minutos, chegava, às vezes, a 15 minutos! Por meados de maio, o ministro Jesse Chacon deu entrevista coletiva para explicar como seria a saída do ar da RCTV e a entrada da nova TV, a TVes. Poucos dias antes, o governo nacional tinha publicado no Diário Oficial a constituição e o estatuto da Fundación Televisora Venezolana Social, e a concessão dada a esta fundação para explorar o Canal 2 do espectro radioelétrico em VHF. Chacon teve de agüentar com muita diplomacia as tão irritantes quanto impertinentes intervenções dos jornalistas da RCTV e da Globovisión. Pareciam querer dar a impressão de que fazer televisão era coisa exclusiva da competência dessas duas empresas, e nenhum governo, muito menos o de um "gorila", tinha a menor condição de operar um mistér tão sofisticado e exigindo capacidades profissionais e especializadas necessariamente tão extraordinárias que só eram encontráveis nos quadros das duas emissoras. Chacon pôs abaixo tal argumentação presunçosa com surpreendente (pelo menos para nós, que não o conhecíamos) conhecimento sobre a matéria, e só não humilhou aqueles(as) jornalistas por não ser próprio à gentileza e elegância com que deve conduzir uma entrevista coletiva a autoridade e a nobreza de um Ministro del Poder Popular para las Telecomuniciones y la Informatica. Nessa entrevista, foi discutida a capacidade da nova TVes para abranger o território nacional, e Chacon reconheceu que isto se daria dentro de seis meses e que, no início, o sinal só seria recebido em grandes cidades como Caracas e Maracaibo. Disse também que o governo tentaria negociações com a empresa RCTV, proprietária das antenas atuais de transmissão, para adquiri-las. Foi bastante saírem as duas últimas declarações para que a mídia privada estampasse, com alvoroço, manchetes sobre a "gravíssima" situação em que ficaria a maioria do "povo venezuelano", privado de seu direito (Direitos Humanos! Direitos Humanos!) de captar o sinal do Canal 2 por "incompetência absoluta" das autoridades governamentais. Marcel Granier, por sua vez, apressou-se em declarar que de modo algum venderia suas antenas ao governo do "tenente-coronel" (era esse o tratamento que a RCTV dava ao presidente), até porque ele nunca precisaria delas, pois estava prestes a cair (eles, de fato, não aprendem e caem em todas as armadilhas). Alguns outros tratamentos dados ao presidente da República Bolivariana de Venezuela pela mídia privada do país, durante o período: el paracaidista de Sabaneta, Totalitario, Mico mandante, Mono, Gorila rojo, Loco, el perturbado peligroso, Autoritario, Zambo, Loco de Carretera, Caudillo, Dictador, Matonista, Estrafalario, Populista, Comunista, Castrocomunista, Tirano, Asesino, Taliban, Hitler, Mussolini, Terrorista, Tipejo, el dictadorzuelo sudamericano, Demagogo, cuasidictador, el arbitrario, el injerto comunista, clono de Castro, amigo de Khadafi, narcoguerrillero, agresivo, el autoritario colectivista, caudillista unipersonal, desestabilizador, el provocador continental, el autoritario a ultranza, pobre diablo, demente, esquizofrénico, etc. Na seqüência, Chávez mandou publicar a nomeação para a diretoria da nova Fundação Televisora. Para a presidência da nova TVes, ninguém menos que Lil Rodriguez! Essa nomeação calou a boca de muita gente. Lil Rodriguez, além de jornalista veterana da mídia de resistência, é escritora e pesquisadora de música e dança e é, reconhecidamente, uma das maiores autoridades em cultura latinoamericana. Recentemente, havia recebido da Prefeitura de Caracas o título de "Patrimônio Cultural Vivente de Caracas". É uma mulher extraordinária, atuante, vanguardista e, entre seus muitos trabalhos em várias linguagens da arte e do jornalismo, é a roteirista, diretora e produtora de Sones y Pasiones, programa de grande sucesso da TeleSur. Sua nomeação a incorpora ao staff de mulheres atuantes no primeiro time da Revolução, ao lado de outras personalidades femininas cuja importância 55 neste processo de conquistas mereceria um trabalho específico. Além do mais, com a nomeação dela, Chávez deu a linha de televisão que quer para a Revolução - uma televisão de linguagem avançada e que tenha por linha mestra a cultura e a arte latinoamericana. A entrevista coletiva de Lil Rodriguez, apresentando os demais membros da diretoria da TVes, ocorreu em 18 de maio, portanto a dez dias do "Dia D". Ela advertiu que dois outros diretores seriam depois nomeados, um pela ANMCLA (Associação Nacional de Meios Comunitários Livres e Alternativos) e outro pela Associação de Produtores Independentes, cuja sigla não recordamos. Estavam presentes representantes de várias entidades culturais, além de artistas, intelectuais e produtores independentes. A nomeação de Lil teve também essa importância para a batalha: ela trouxe para o centro do front os realizadores culturais, de todas as tendências e formações, que antes se mantinham numa participação bastante discreta. Lil mostrou a todos uma pasta com vários DVDs, contendo já 340 horas de programação da nova TV, e, sob aplausos, proclamou: "Eis a TVes!" E projetou numa tela alguns flashes da programação, todos muito aplaudidos. Em 19 e 20 de maio, a TeleSur promoveu a I Jornadas Internacionales de Comunicación, coordenada por seu presidente, Andrés Izarra, e com a presença de jornalistas e editores da mídia de resistência e de governos progressistas, convidados para debater o tema "O direito de informar e ser informado". Claro que o tema da "não renovação da concessão" da RCTV não faltou nos debates. Célebres autores, jornalistas e profissionais da mídia de resistência em todo o mundo vieram à Venezuela para o evento, realizado no Teatro Tereza Carreño, onde foram recebidos pelo próprio Chávez, que os homenageou, em cadeia nacional, com um discurso de mais de três horas. Com este evento, a Venezuela, confirmando uma de nossas teses aqui expostas, afirma-se solenemente como pátria da mídia de resistência Naquela ocasião, a mídia privada não estava mais preocupada em só fazer mau jornalismo, ou, como resumiria Gilberto Felisberto Vasconcellos numa só palavra, ou "palavrão" - o pornovideofasciofinanceiropolicial. O que ela fazia era terrorismo midiático da pior espécie, em forma de ameaças de catástrofes inventadas diariamente. "Washington havia marcado a data da queda de Chávez". "O país estava a um passo da ingovernabilidade". "Exércitos de paramilitares colombianos atravessavam a fronteira e movimentavam-se em direção a Caracas". Vários integrantes do alto comando militar de Chávez eram citados nominalmente como dissidentes e coordenadores de uma fulminante reação paramilitar. Foi o momento em que entrou em cena o Ministro del Poder Popular del Interior y Justicia, Pedro Carreño. A figura atarracada do Ministro nos dá, em primeira impressão, a sensação de que estamos diante de um homem tosco e simplório. No entanto, quando fala, revela-se homem de pensamento sofisticado e seguro de sua competência profissional e política. Cada fala do ministro Pedro Carreño, quase afogado por microfones de todos os veículos de comunicação, era um balde de água fria nas fogueiras virtuais da mídia privada. Sua firmeza, sua segurança, sua competência, sua capacidade de argumentação e contraargumentação, além da serenidade de suas respostas bem informadas e objetivas, vazavam diretamente para os telespectadores e ouvintes, tranqüilizando-os e desmontado todo o arsenal terrorista implantado por força de invencionices e mentiras descaradas. Em paralelo, como se quisesse disputar em importância com os ministros, o Sr. Marcel Granier convocou uma coletiva para anunciar que havia entrado com pedido cautelar junto ao TSJ a fim de obrigar o governo a renovar-lhe a concessão. E ameaçava o TSJ, caso não lhe concedesse a liminar, ao mesmo tempo que apelava para o "patriotismo" e o "bom 56 senso" dos ministros do TSJ para julgarem no sentido de "evitar o caos", do que "é melhor para o país" e do que atendesse "a vontade da maioria do povo" (sempre o "povo"). Mas, na quarta-feira, 23 de maio, o TSJ bateu o martelo e, numa sentença sucinta e bem escrita, negou a liminar. O que gerou imediatamente a seguinte manchete nos jornais vespertinos e nos noticiários noturnos das TVs e rádios privadas: "Esgotou-se a via legal"! Em verdade, ainda faltava o consentimento da Assembléia Nacional, previsto em lei, mas este já era dado como certo. No entanto, a AN havia convocado para o dia seguinte, 24, uma sessão ordinária numa praça central de Caracas, aberta a todos os que desejassem se manifestar, para depois votar a decisão. Compareceram artistas, escritores, produtores independentes, jornalistas, homens e mulheres do povo, todos apoiando a decisão do governo. Nenhum orador se inscreveu para contrariá-la. E a AN votou pela "não renovação da concessão" da RCTV por unanimidade. Nesse ínterím, a RCTV e a Globovisión se tornaram praticamente uma só emissora. Faziam shows de atores e atrizes de novelas chorando para o público, implorando, de joelhos, que o povo não permitisse "tamanha maldade". Promoviam atos públicos e marchas, que não reuniam nem dez mil pessoas, e as publicavam como se fossem "milhões". Faziam montagens de notícias com celebridades que apoiavam o governo, dizendo o contrário do que realmente tinham dito, duas das quais vimos, uma delas mostrando Eva Golinger desmentindo as farsas midiáticas de que tinham sido vítimas e exigindo o direito de reposição da verdade, que ambas as emissoras nunca concediam. A tais alturas, as ações judiciais que se acumulavam nos tribunais contra as duas emissoras, inclusive por parte do Ministério Público, eram incontáveis (só a RCTV tem contra si mais de 2.000 ações judiciais que justificam a perda legal da concessão). Mas, em uma das transgressões, o governo interveio. Durante todo o mês de maio, a mídia privada difundiu rumores de magnicídio. "A vida de Chávez estava por um fio". Aliás, os serviços de Inteligência do governo lograram capturar vários atiradores profissionais com os quais foram apreendidos armamentos equipados com sofisticadas miras telescópicas, metralhadoras e armas de grosso calibre. Entre os homicidas capturados havia até um mafioso italiano. O governo exibiu as armas apreendidas e os prisioneiros encapuzados, dando inclusive os nomes de cada um deles, geralmente colombianos e cucarachas de Miami. Eis que, neste clima de ameaças contra a vida de Chávez, no intervalo de um programa de entrevistas da Globovisión, no qual o entrevistado era o Sr. Marcel Granier, foi exibido um clip musical em que a letra da música dizia: "Tenha fé, isto não vai ficar assim...". As imagens montadas ao som da música eram as da tentativa de assassinato do Papa João Paulo II, em 1983, várias vezes repetidas, em câmera lenta, justo no momento em que tomava o tiro e caía! Foi a vez de surgir em cena o Ministro del Poder Popular para las Comunicaciones, William Lara. Lara é desses jornalistas da velha guarda da mídia de resistência, cuja reputação é inquestionável, e que não teme ninguém. Ele convocou entrevista coletiva para desancar a mídia privada, a nacional e a internacional, e avisar que a paciência do governo tinha limites. Exibiu o clip do Papa e também umas montagens fajutas da CNN, onde, num noticiário, imagens de uma passeata ocorrida no México pela ocasião do assassinato de um jornalista de lá eram mostradas como se fossem em Caracas. Passou uma descompustura nos jornalistas da mídia privada que estavam presentes e avisou que o seu ministério estava apresentando denúncia ao MP (Ministério Público) contra a Globovisión, baseada no laudo de dois semiólogos que interpretaram o clip como clara instigação ao magnicídio. Lara 57 aproveitou a oportunidade para convidar a todos os caraquenhos para a festa de celebração do novo sinal televisivo, que seria dada pela TVes, no domingo à noite, ao longo de toda a avenida Universidad (centro de Caracas). Na manhã do dia 25 de maio, que o governo decretara que passaria a ser o dia do Hino Nacional, Chávez surge em cadeia nacional de rádio e TV, com todo o comando das Forças Armadas em um palanque, para condecorar a primeira turma de pilotos e pessoal de terra formados para a base dos oito Sukoy já entregues pelos fabricantes russos à Força Aérea. Após a exibição dos belos vôos dos Sukoy, pilotos e formandos se dirigiram marchando em formação até o palanque e, lá chegando, fizeram alto e se dirigiram ao presidente (de uniforme militar e boina vermelha) e ao Estado Maior da FAN (Fuerza Armada Nacional), com a mão no peito e a frase "Pátria, Socialismo o Muerte!" Em seu longo discurso, diante dos condecorados e do Estado Maior, Chávez mencionou os rumores de divisão e dissidência, plantados em veículos da mídia privada, em que muitos dos nomes citados estavam ali presentes, a seu lado. Ao final do discurso, cantaram juntos o Hino Nacional, como sempre puxado pela voz afinada de Chávez. Nesse mesmo dia, à tarde, o TSJ surpreendeu a mídia privada com uma decisão favorável a um pedido de liminar da Associación de Usuários y Usuárias de Rádio e Televisión, instituição criada nos parâmetros da Ley RESORTE, que advogava a necessidade de as antenas da RCTV serem confiscadas pelo governo para que telespectadores de todo o país tivessem o direito de acessar o Canal 2 e desfrutar da programação da nova emissora. O TSJ concedeu ao governo o poder de um confisco temporário dos equipamentos, até que fossem obtidos novos, dentro de um determinado prazo. Imediatamente, todas as antenas da RCTV, espalhadas pelo país, foram ocupadas pela Guarda Nacional. O sinal de TVes estava, assim, garantido em todo o território nacional! A decisão, inapelável, foi contestada pela mídia privada como nova agressão à propriedade privada cometida pela ditadura "castro-comunista" de Hugo Chávez, o qual mantinha "sob férreo controle ditatorial todas as instâncias do Poder Judiciário, inclusive o TSJ". No sábado, 26, a mídia privada convocou novo ato público em frente à sede da RCTV ao qual compareceram cerca de cinco mil pessoas que vociferaram insultos contra Chávez e o governo, e depois entraram no chororô midiático, com atrizes, atores, bonecos e bonecas midiáticas dando declarações em prantos convulsivos. Uma das bonecas, quase uma criança, dizia que vinha de um bairro pobre e, "graças à bondade do Sr. Marcel Granier", tinha se tornado o que era. Devia tudo à RCTV. E, no final, fazendo um beicinho choroso, perguntava: "Quem é esse homem para achar que pode agora 'cerrar my television'?” Outros atores, atrizes, jornalistas e profissionais que tinham passado pela RCTV não tinham a mesma opinião sobre o Sr. Marcel Granier. Muitos vieram a público, durante os meses de batalha, para dizer o que passaram lá e como eram tratados pelo patrão. Alguns nem eram chavistas ou bolivarianos, mas desancavam publicamente as pilantragens, os jogos sujos, as chantagens, as perseguições e as censuras que sofreram sob a arrogância, o autoritarismo e a prepotência do Sr. Marcel Granier, o que, aliás, era notório nos meios profissionais de comunicação. Só que tinham de ser engolidos em seco por força do poder patronal que ele até então possuía. Uma palavra dele, e o profissional amaldiçoado entrava numa lista negra que o impedia de trabalhar não só na Venezuela, mas em vários países latino-americanos onde o ex-biguebós mantinha poder econômico, influência e compadres poderosos. 58 Na noite daquele sábado, Chávez fez mais um pronunciamento em cadeia de rádio e TV (ele teve ter feito isto umas dez ou doze vezes na semana de 20 a 26 de maio), recebendo estudantes universitários no Teatro Tereza Carreño. Com a moçada lotando aquele teatro, Chávez puxou uma grande vaia para o Senado dos EUA (que votara moção contra ele no dia anterior, chamando-o de ditador) e para as mídias privadas nacionais e internacionais, as quais esculhambou. Depois, em mais uma provocação a certos setores que ele queria que pusessem logo as garras de fora, anunciou, sob os aplausos entusiásticos da estudantada, a criação de mais 28 universidades públicas, até 2010, o aumento imediato de 30% no valor pago às bolsas de estudo, de 37% nos salários dos professores de escolas e universidades públicas, a entrega de 200 ônibus diretamente ao movimento estudantil para o transporte até as universidades, uma nova rede de "bandejões", e muitas outras ótimas notícias, daquelas que todo movimento estudantil aplaudiria com o maior entusiasmo e alegria. E a noite de sábado em Caracas (e em todo o país) transcorreu dividida em duas informações midiáticas opostas. A mídia privada (desacreditada) aterrorizando com o caos a começar daquela mesma noite, e a mídia de resistência e governamental convocando para a festa do dia seguinte. Foi uma noite tranqüila e normal em todo o País. O domingo, 27 de maio, amanheceu em toda a Venezuela como um domingo qualquer. As feiras do MERCAL (uma iniciativa do governo para a venda de alimentos nas ruas das cidades venezuelanas, por sinal, feiras muito populares e concorridas) transcorrendo tranqüilas e cheias como sempre. Os postos para inscrições de aspirantes a militantes do PSUV, muito movimentados, trabalhando a todo vapor. As classes médias nas praças, fazendo exercícios e caminhadas, outros fazendo compras, pessoas passeando pelas ruas, povo sereno, tocando e ouvindo música nos bairros periféricos, curtindo a domingueira. A Polícia de Pedro Carreño, em alerta, registrava um ou outro foco, em pontos diversos de Caracas, onde pequenos grupos queimavam pneus, faziam piquetes e tentavam perturbar a paz. É nossa opinião que o fato mais importante do dia não foi o fim do prazo da concessão da RCTV, que eram favas contadas, mas a apresentação ao mundo de uma nova polícia: a Polícia Metropolitana de Caracas, que, no Governo Bolivariano, foi completamente reformulada em sua filosofia de trabalho, em suas táticas de segurança pública e em seus objetivos enquanto instituição de serviço público. Atualmente, o governo Chávez dá os últimos retoques a uma Ley Habilitante que, ainda este ano, transformará as polícias estaduais e municipais em Polícia Nacional e criará a Polícia Comunitária, esta vinculada aos Conselhos Comunais. Logo vamos relatar os fatos que nos motivaram a tal opinião. No início da tarde, flashes da VTV e da viVe TV já exibiam uma avenida Universidad bastante ocupada por chavistas e bolivarianos que aderiram ao convite de William Lara, quase todos vestindo a tradicional camisa vermelha. A avenida fora coberta de quiosques para serviços de lanches e bebidas, ao lado de palcos onde se dariam eventos culturais e musicais, todos equipados com grandes telões nos quais se projetariam as primeiras imagens da TVes, nos primeiros minutos da madrugada do dia seguinte, 28 de maio. Ao fim da tarde, a equipe da VTV cobria a maior manifestação das "oposições" daquele dia, em ruas perto do CONATEL. As "oposições" tinham de mostrar alguma coisa na mídia e nos relatórios a seus patrões nos EUA. Tinham, por primeiro objetivo, um morto (de preferência, um jovem ou uma jovem), um cadáver que pudesse ser exibido mundialmente como vítima e mártir da ditadura "castro-comunista" de Hugo Chávez, um cadáver que fizesse as populações dos países "livres e democráticos" clamarem por justiça e vingança, 59 um cadáver que despertasse o general Custer de seu túmulo e trouxesse para Venezuela o glorioso 7º de Cavalaria ao som das cornetas vibrantes e salvadoras. Um agrupamento de cerca de mil pessoas, a maioria piqueteiros e arruaceiros profissionais, pretendia invadir a sede do CONATEL para impedir a interrupção do sinal da RCTV do Canal 2 de transmissão VHF. Vamos assistir agora à primeira apresentação mundial da nova Polícia de Caracas. Os "oposicionistas" vinham em bloco coeso e articulado, gritando "palavras-de-ordem" e insultos ao governo e a Chávez, quando deram com a barreira bem formada da Polícia de Caracas. Uma polícia... desarmada! Uma polícia sem instrumentos de agressão de espécie alguma, nem cassetetes, e sem qualquer outro aparato para confrontos, a não ser os escudos que portavam, e os capacetes e coletes à prova de balas que vestiam seus policiais. E, na linha de frente do confronto, somente mulheres policiais! O bloqueio policial parou com firmeza os manifestantes a uns 50 metros da porta do CONATEL, e o agrupamento foi se comprimindo com os piqueteiros ficando irados e raivosos, tentando forçar e furar o bloqueio. A barreira policial não arredou um passo sequer (quando há ameaça de violência, as mulheres são substituídas por homens na linha de frente). Foi então que as câmeras da VTV começaram a registrar uma chuva de pedras, garrafas e outros projéteis atirados pelos "manifestantes" contra os policiais. Estes protegiam-se com escudos e não recuavam um milímetro. A coisa chegou a ficar preta quando caíram os primeiros policiais atingidos por pedras de quase dois quilos. Veio, por detrás do bloqueio, o "rinoceronte", um caminhão de polícia que atirou jatos d'água sobre o agrupamento, espalhando-o. Era a direita, pela primeira vez, enfrentando a polícia, só que uma polícia desarmada e treinada para não matar, não ferir, não machucar. De repente, ouviram-se disparos de armas de fogo. Prontamente, a barreira policial avançou e, por estar bem treinada e bem ensaiada, dissolveu rapidamente a manifestação, usando bombas de gás lacrimogêneo lançadas do "rinoceronte". Resultado do "conflito": 11 policiais feridos, quatro deles levados ao hospital; nenhum "manifestante" sequer arranhado. Na cidade de Mérida, mercenários infiltrados em manifestações "pacíficas" de estudantes de direita, tentaram "fazer" o cadáver que lhes fora encomendado, e disparam contra os próprios manifestantes e contra os policiais desarmados. Balearam quatro policiais (um deles corre risco de ficar tetraplégico) e quatro estudantes. Todos foram hospitalizados, mas sem risco de morte. A polícia prendeu os homicidas, que aguardam julgamento. E nisto, além de umas poucas "guarimbas" sem conseqüências, ocorridas em Caracas e grandes cidades, ficou a "resistência" das "oposições", que iria "levar o caos ao país". Em seus estúdios, a RCTV fazia o show do próprio funeral. Um falso funeral, pois na verdade a emissora vai continuar a sair por cabo, só que seus geniais eestrategistas conceberam o plano de fingir que ela estava sendo fechada, para que "multidões" saíssem às ruas exigindo seu retorno. Os boatos diziam que a RCTV ficaria um mês sem emitir, ou até o governo Chávez cair. Lá estavam todos, os bonecos e bonecas midiáticos, lacaios e patrões, em prantos "dramáticos", abraçando-se, dando adeus aos telespectadores. Às 11h59, se puseram de joelhos, baixaram as cabeças e, em postura de devoção a Molloch, esperaram o corte do sinal da emissora. Que dramalhão! Na avenida Universidad, lotada de gente dançando, bebendo, tocando e feliz, a noite já ia alta, e a festa também. Deu meia-noite, e o foguetório estourou. RCTVas! Para sempre... 60 Passados alguns segundos, os telões exibiram, junto a estonteante foguetório, o logotipo da TVes. Daí a 15 minutos, inicia-se a programação da nova televisão social de Venezuela. Com a espada de Bolívar e a força do povo, Chávez decepou a cabeça da Hidra. As outras cabeças, agitadas e furiosas, vão tentar retaliar. TVes Para quem conhece e trabalha com a linguagem audiovisual, os primeiros fotogramas ou frames de uma realização já trazem a dimensão, possível de ser avaliada, da qualidade e do valor da realização como um todo. Isto não é novidade e nem é exclusivo da linguagem audiovisual. Toda expressão de linguagem pode ser avaliada pelo detalhe. Dilthey já postulava, no início do século XIX, que "o detalhe pressupõe o todo". Ou, bem antes, Spinoza: "Se o que expressa é substância, o que é expressado é essência." Sendo assim, não poderíamos deixar de perder essa oportunidade, única na História, de conhecer, em tempo real, os primeiros frames de um novo e pioneiro canal revolucionário de televisão, sendo inaugurado na faixa mais nobre e mais importante do espectro radioelétrico de um país como a Venezuela. Acompanhamos através do sinal da VTV. Não nos referimos ao slide de logotipo nem ao vídeo de abertura, que já conhecíamos, pois foram amplamente divulgados com antecedência. Nem ao Hino Nacional, aliás, magnífica apresentação da célebre Orquestra e Coral da Juventude da Venezuela, com regência impecável do famoso maestro venezuelano Gustavo Dudamel, previamente gravado com excelente qualidade de som, imagem e edição, bem de acordo com a gala e a solenidade do grande evento. Até aí, tudo correto: belas imagens, belo texto, bela música, mas ainda uma seqüência protocolar e obrigatória ao momento histórico. O que estamos falando é do primeiro plano criador do discurso audiovisual próprio do novo veículo, do primeiro frame de transmissão de conteúdo, de preferência, ao vivo e em tempo real. E a TVes não decepcionou. Não poderia ser mais bela e significativa! Em plonge panorâmica, do alto de uma montanha, a imagem noturna, escultural, majestosa e belissimamente iluminada da arrojada e moderna arquitetura do edifício do Teatro Tereza Carreño, o principal símbolo da cultura venezuelana, no interior do qual se realizam as manifestações do que há de melhor na produção artística, popular e erudita, de extração nacional e internacional. A câmera e o objeto são estáticos, e o movimento fica por conta das luzes dos veículos que circulam nas imediações. Na banda sonora, o rumor suave da madrugada na cidade noturna, em baixo volume. Nestes primeiros frames já temos muitas informações importantes à analise e avaliação do que estamos por conhecer, pois tudo é informação para quem trabalha e estuda esta linguagem, desde as posições de câmera, a composição do quadro, a inflexão de linguagem (tempo, som, luz) e, o que é fundamental, o objeto-conteúdo e o propósito (intenção) da direção, que desde o primeiro frame se revelam ao espectador. Em linguagem audiovisual, a direção é tudo. Melhor, talvez, seria dizer: o resultado final do produto audiovisual é responsabilidade de quem o dirige. E o que nos informa a TVes em seu primeiro frame? O seu compromisso com a cultura, em primeiro lugar, e com o que há de melhor e mais importante em suas manifestações através 61 da arte e do talento criador. Na ousadia e na composição do plano, ela já nos informa da intenção vanguardista, própria e peculiar no uso da linguagem de comunicação, em contraposição ao uso estandardizado das emissoras privadas, em geral numa metralhadora de imagens carregadas de interesses comerciais, voltadas para a conquista (do bolso) e manipulação do consumidor. Sendo o Teatro Tereza Carreño também um símbolo de cidadania, a TVes se colocou, desde as primeiras declarações públicas de sua direção, como emissora voltada para o cidadão, e não para o consumidor. E o primeiro frame confirma a intenção diretora. Muitos outros signos e significados podem ser extraídos de um primeiro frame, mas não é nosso objetivo aqui produzir um tratado de semiologia, mas, sim, o registro do grande momento histórico que significou a entrada no ar, em Venezuela, do primeiro frame produzido, em transmissão ao vivo para todo o país, da TVes. Visto o primeiro frame, o próximo interesse analítico do audiovisual será o primeiro corte, onde começa a se realizar a montagem do discurso nesta linguagem. Não vamos dissertar sobre as teorias e técnicas de corte e montagem audiovisual, que não cabem neste trabalho. Mas, podemos dizer que, também aí, a TVes se saiu com muita felicidade, em corte seco para panorâmica do interior do teatro repleto, com Lil Rodrigues, no palco, já posicionada para o discurso inaugural. Em seguida, close no rosto de Lil. Está no ar...a TVes! E o que se seguiu foi uma bela e bem produzida seqüência de skets demonstrativos da grade de programação da TVes, levados ao vivo no palco do teatro e transmitidos para todo o país pelo Canal 2, abrangendo as artes populares e eruditas, e os demais assuntos a que se dedicará o novo veículo, que se propõe cultural até nos espaços desportivos e noticiosos. Parabéns, TVes! Viva a TVes! Viva o Governo Bolivariano da Venezuela! Algumas horas antes, pelas câmeras da VTV, viVe TV e TeleSur, tínhamos visitado o interior do belo teatro, quando já se encontrava cheio e recebendo mais pessoas, inclusive de outros países, para presenciar o grande momento. Vimos aquele bochicho de artistas, intelectuais, jornalistas e profissionais do audiovisual se encontrando, se congratulando, se abraçando, formando grupos de falatório e bate-papos. Gente de todas as idades e perfis, velhos e jovens, as cabeças brancas, os enfants terribles, as mulheres artistas, os malucos de todas as artes. Pareceu-nos um daqueles encontros de que participávamos nos finais dos anos 60 e início dos 70, nas vésperas ou nas esperas de eventos e espetáculos que sabíamos importantes e históricos. Vivíamos uma aura de grandeza, de sintonia espiritual com o momento e a realidade, e a sensação de estarmos realizando, criando, contribuindo e participando de um processo libertário, num clima de consideração e respeito. A diferença é que naqueles idos tínhamos contra nós as ditaturas militares cuja implacável repressão destruiu nossas esperanças e anseios, mas não a semente que ali plantamos em todas as partes do planeta. Agora, ao ver tudo aquilo retornar com o apoio firme e corajoso do governo de um grande país como a Venezuela, é como se víssemos a continuidade audiovisual de planos tomados 30, 40 anos atrás, montados em sequência com os atuais momentos gloriosos por que passaram os realizadores audiovisuais em Venezuela no Teatro Tereza Carreño, à espera do sinal da nova e revolucionária emissora, desta vez nossa e verdadeira, que ocupará a faixa mais nobre do espectro radioelétrico do país. E que sinaliza também uma nova época, como bem advertiu o novo presidente do Equador, Rafael Correa. Uma época em que o horror fascista e neoliberal será deixado no lixo da história e em que o mundo retomará o afluxo libertário e renovador dos anos 60 e 70. São muitos os pensadores que antenaram este grande momento, desde Hegel até um atual Fritjof Capra, por exemplo, passando por José Carlos Mariátegui e Oswald de Andrade. E 62 quantos não foram os libertadores da América cujos espíritos também estavam lá, desde Tiradentes e Simon Bolívar a Ernesto "Che" Guevara? A TVes tem pela frente um grande desafio que, temos certeza, vencerá. Pela primeira vez, vamos poder saber quanto tempo será necessário para a readaptação de vastos setores da população a uma realidade midiática não manipuladora. A TVes haverá de nos dizer, será a primeira a fazê-lo como emissora audiovisual atuando em igualdade de condições com as emissoras da mídia privada em termos de acessibilidade e sintonização. Sim, porque a manipulação midiática pelo pensamento único, propagada pelas emissoras da mídia privada na Venezuela e hegemônica na maior parte do mundo, se faz a partir de dois comandos básicos: o pattern comunicacional (que os manipuladores chamam "padrão de qualidade") e o código de adesão (obediência do receptor). Temos mencionado esse pattern anteriormente e cremos que chegou o momento de definilo, segundo os conceitos que vimos desenvolvendo. O que, para nós, é o pattern comunicacional manipulador? Atribuem a Goebbels sua criação, e é verdade que o fascismo e o nazismo o adotaram em sua primeira versão onipresente e, digamos, científica. Mas, sem dúvida, sua origem remonta à indústria de produção em série e ao subseqüente comércio consumista. É o conceito de propaganda que eleva a sucesso de vendas um refresco sem sabor, sem valor nutritivo, de cor repugnante. É a estandardização viabilizadora do produto "barato", um Ford, por exemplo, invertendo o conceito anterior de utilidade ao usuário, uma vez que é o consumidor que passa a ter de se adequar ao produto, e não este ao usuário. Nossas observações, dividem o pattern comunicacional em três subpadrões básicos: o padrão de discurso (inflexão de linguagem); o padrão de comunicação não dialética (não pensamento ou pensamento único); e o padrão estético (forma-embalagem). Estes padrões estão implantados em todos os veículos da mídia hegemônica mundial com poucas adaptações a certas realidades locais. De qualquer modo, a uniformidade é chocante. A partir deles, é possível produzir a "matriz de opinião", que é, na verdade, o código de adesão, automática ou quase automática (há casos em que se necessita recursos extras de persuasão) por parte do receptor, o qual deverá aceitar como verdade indiscutível toda e qualquer comunicação vinda de um emissor inserido naquele pattern, e, também, a recusar como inverídica ou desqualificada qualquer comunicação vinda de fora dele. No código inclui-se o mecanismo de obediência cega do receptor a uma voz de comando que eventualmente os manipuladores queiram inserir. A batalha midiática que se trava na Venezuela provocou a exarcebação desses padrões e comandos que, em tempos de "paz", são usados com sutilezas e camuflagens, e promoveu demonstrações preciosas de seus efeitos, poderes e fraquezas, que, a nosso ver, devem ser estudados em profundidade pelos os que se interessam e possam colaborar na construção da comunicação midiática revolucionária. Mais à frente veremos alguns exemplos. Do código de adesão, a revolução bolivariana já livrou boa parte da população venezuelana e uma parte pequena mas importante da América de língua espanhola, e isto é fundamental, tanto quanto obrigatório, como primeiro passo. Mas o mesmo ainda não ocorreu com o 63 pattern comunicacional, o que explica os níveis significativos de audiência que são mantidos pela mídia privada, apesar do histórico golpista, traiçoeiro e reacionário que a caracteriza, e de forma cada vez mais escancarada, em todo o processo revolucionário que se instalou na Venezuela, desde 1999. O código, por ser primário (adere/não adere; obedece/não obedece), pode ser derrubado com mais rapidez, como o fez a revolução venezuelana, e para tanto foi importante a liderança de Hugo Chávez. Entre o comando codificado pela mídia privada "não ficar com Chávez" e o apelo da realidade objetiva que envolve o receptor a "ficar com Chávez", o receptor, percebendo as reais mudanças sociais que lhe são claramente favoráreis, superou a força subliminar e inconsciente do comando codificado (mas já desgastado e desacreditado, como temos visto) e optou por desobedecê-lo. Isto, porém, não o libertou do pattern, a que vem sendo submetido ao longo de várias décadas. O primeiro padrão do pattern comunicacional, sempre segundo nossas observações, o padrão de discurso, impõe a forma exclusiva e pré-determinada de "dizer a verdade" através do boneco ou boneca midiática (emissor) e da montagem gráfica-sonora-audiovisual. Este padrão impõe a montagem linear do discurso gráfico ou narrativa sonora/audiovisual e o texto óbvio ou banal, feito para ser "compreendido" em sua mensagem primária, sem necessidade de raciocínios complexos, deduções críticas, comparações ou avaliações subjetivas de conteúdo. No jornalismo, determina a interposição obrigatória, entre a mensagem e o receptor, do ente emissor (boneco ou boneca midiática). Este, por sua vez, sem direito a existência própria nem participação na elaboração da mensagem, a não ser que seja aprioristicamente aderente à "verdade" manipulada que transmite, tem só a função de representar o veículo midiático. Há estudos que concluíram ser este padrão desenvolvido para manter ou retardar o receptor numa idade mental situada em torno dos 12 anos, faixa onde o pattern almeja medianizar todos os receptores, pela docilidade e ingenuidade que os caracteriza, tendo já adquiridas as capacidades plenas de leitura e escrita básicas. O que os tornaria, nos padrões perseguidos pelos manipuladores, o "receptor-consumidor ideal". O segundo padrão, a comunicação não dialética, estabelece a direção unívoca, obrigatória, do emissor ao receptor, mesmo que às vezes faça camuflagens simuladoras de que permita a direção contrária da comunicação (resposta) e, quando o faz, permite apenas o retorno não crítico, não dialético e sob controle dos manipuladores. É a essência do pensamento único manipulador. Por este padrão, a mensagem também se torna um meio, ou se confunde com ele, isto é, não é o conteúdo da mensagem o objetivo da comunicação, mas o que através dela se quer obter do receptor, por manipulação. Daí a necessidade de os meios hegemônicos serem também produtores de mensagens, seja produzindo-as nos próprios veículos midiáticos ou em produtoras deles dependentes. O terceiro e último, o padrão estético, é o que reveste os dois anteriores em linguagem gráfica, fonográfica e audiovisual, sob o aspecto estético e formal, devendo neles enquadrar-se e ao mesmo tempo torná-los atraentes ao receptor. Seu objetivo é reduzir o gosto estético do receptor, ou impedir que se desenvolva, a sinais sonoros e visuais fáceis, de rápido reconhecimento e impacto imediato. Cores vulgares, materiais brilhantes, sons estridentes, composições plásticas bizarras, trilhas sonoras cacofônicas, luzes chapadas, pieguices e banalidades predominam no limitado repertório de recursos estéticos a que se permite embalar o pattern comunicacional manipulador. Envolve também o "perfil" estético dos entes emissores (bonecos e bonecas midiáticas), estabelecendo padrões de "beleza", raça, ideologia e comportamento, de acordo com as determinações diretivas, as 64 quais devem eles representar e simbolizar também visualmente e em consonância com as marcas e padrões gráficos-visuais de identidade corporativa dos veículos a que servem. A tudo isso vêm sendo submetidas as populações de quase todos os países do mundo, inclusive a Venezuela, ao longo de décadas, como critérios de "padrão de qualidade". Tal padrão exclui toda e qualquer manifestação cultural com validade artística ou estética real, em que não pode haver padrões nem critérios absolutos. Também a manifestação cultural e artística estabelece um processo comunicacional, mas tal processo só pode ser dialético, e não se estabelecerá nunca univocamente com um receptor passivo, mas, biunivocamente, com um fruidor crítico. Portanto, jamais se poderá submetê-lo a um pattern, qualquer que seja ele, nem a nenhum dos três padrões nele contidos, mas, sim, produzir o que chamamos de uma cultura comunicacional. E é neste caminho, ou contra corrente, que se lança, pioneira, nacional e mundialmente, a TVes. Por outro lado, a TVes se estabelece no contexto de um processo revolucionário que vem sendo amadurecido com rapidez graças ao gênio do estadista Hugo Chávez e a competência de sua equipe e, pelo que vamos ver, somente na Venezuela poderia se realizar uma conquista popular, democrática e revolucionária de tamanho vulto. Segundo Lil Rodrigues, em sessenta dias terá se instalado o site na internet, e disponível o sinal ao vivo de TVes. Teremos grande prazer em visioná-la. O gosto musical de Lil nos garante que a música da TVes é muito boa, e isto, em nossos critérios, é fundamental na qualidade de tudo o que é composto em linguagens sonoras e audiovisuais. Aliás, a música da Revolução Bolivariana é toda muito boa, uma delícia de ouvir. Estamos certos de que Lil Rodrigues tem muito a ver com ela (e o ouvido musical de Chávez também). Day after... e alguns dias depois O saudoso deputado Sette de Barros contava que, na ocasião do golpe de 1964, em que se derrubou o Presidente do Brasil, João Goulart, ele estava em sua terra, Ponte Nova, Minas Gerais, quando um amigo o procurou aflito em busca de notícias, pois os veículos do Estado estavam todos sob controle dos golpistas. Sette possuía um bom equipamento de radioamador e conseguiu sintonizar uma rádio de Porto Alegre, a mesma em que Brizola fazia pronunciamentos de resistência, a qual dava notícias alvissareiras de uma resistência prestes a reverter o golpe. Em determinado momento, o locutor anunciou: “Agora vamos ouvir... o presidente do Sindicato dos Sapateiros de Pelotas!”. Ouvindo isso, o amigo disse ao deputado: “Compadre, é melhor acharmos um jeito de sumir logo daqui!”. É de se imaginar uma situação muito parecida, apesar de inversa, dos antros golpistas ao sintonizarem as TVs e rádios naquela manhã de 28 de maio. Durante a semana anterior seus veículos bombardearam a população com cenários catastróficos de greves gerais, transportes parados, comércio fechado, apagões, caos nas ruas, violência e tudo mais, tão logo "o povo" se desse conta da saída do ar da "querida RCTV". Nós mesmos, curiosos, tratamos de conectar a página da golpista Globovisión. Depois de montar planos fechados com cenas de pequenos piquetes de meia dúzia de arruaceiros profissionais em algumas esquinas de Caracas, dizendo que a Venezuela inteira vivia o caos, e Chávez estava para cair a qualquer momento, um boneco midiático apontou o microfone para um sujeito branco e bem nutrido, com cara de gringo, e disse: “Agora vamos ouvir... John Goicochea, do Centro de Estudantes da Universidade Católica Andrés Bello!”. Imediatamente, nos lembrou a anedota do velho Sette de Barros. Só rindo!... 65 A Venezuela amanheceu no 28 de maio com todas as atividades absolutamente normais, não parou uma kombi! As "oposições" tinham, nas ruas, só o protesto dos estudantes... das universidades e escolas particulares! Mesmo assim, ficou depois provado à exaustão, era tudo coordenado pelas ORVEX, OTPOR, Freedoms Houses e Albert Einstein Insituts da vida, com dinheiro do Sr. Marcel Granier. Foi a tentativa de golpe de Estado mais inusitada que já se viu. Mas a resposta bolivariana, o contra-golpe, foi genial! Ela trouxe como resultado a comprovação empírica do que ainda estava em teoria em nossos estudos: a dissolução do pensamento único quando em convivência com o pensamento crítico, num espaço de tempo socialista de liberdade de expressão (mesmo levando-se em conta que a Venezuela está num estágio "rumo ao socialismo"). Necessitamos aqui de um pequeno histórico para melhor compreensão do fenômeno que vamos descrever. As universidades tradicionais e privadas restaram como o único espaço de poder (público/privado) em mãos das oligarquias. Isto ficou mais que comprovado agora, quando não houve adesão de nenhum outro setor aos planos golpistas abertamente acalentados durante seis meses consecutivos, por iniciativa da mídia privada. Se há um espaço de poder em que a revolução não tocou, até por ser de importância estratégica não prioritária aos primeiros momentos revolucionários, foi justo neste segmento. Com a reeleição de Chávez e a ativação dos "5 Motores", ficou claro, já na redação do título do 3º Motor, que o governo revolucionário estava de olho nele. De cara, Chávez criou o Ministerio del Poder Popular para la Educación Superior, nomeando para o cargo Luis Acuña, que, para se preservar, manteve-se discreto no desenrolar dos fatos, dando apenas alguns depoimentos em programas de rádio e TV. Lembramos que, no dia 26 de maio, Chávez recebeu os estudantes no Teatro Tereza Carreño onde fez as conhecidas e bem sucedidas provocações, desta vez contra os interesses oligárquicos neste setor, que já vinha aborrecido com o governo por causa das "aldeias universitárias" e do sucesso que representaram. A "aldeia universitária" tem por meta a municipalização do ensino superior, com o intuito de evitar que os melhores cérebros das cidades interioranas abandonem suas terras natais para cursar universidades nas grandes cidades, e não mais voltarem. O governo revolucionário então decidiu levar as universidades até as pequenas cidades do interior, implantando excelentes módulos de ensino universitário, de acordo com o tamanho dos municípios, e que funcionam como campus avançado de universidades públicas. Isto significou grave queda de receita das universidades particulares. Agora Chávez volta à carga e anuncia a criação de 28 novas universidades públicas até o ano de 2010, o que representará nova e brutal queda de receita das particulares e quase total perda de influência das tradicionais (que são públicas mas mantidas em mãos elitistas). Chávez não parou aí. Declarou que, em 2008, será posta em prática a reforma total dos ensinos público e privado, que deverão se dedicar à educação socialista (Moral y Luces), e anunciou ter decretado a extinção dos exames vestibulares das universidades públicas e privadas. Tal decreto impõe também, para o fim deste ano, o fechamento da lucrativa indústria de "cursinhos prévestibulares" e tudo o que gira em torno deles e dos exames vestibulares. Essa "indústria", claro, é controlada e explorada por reitores e professores das universidades tradicionais e privadas, e diretores e professores das escolas privadas de 2º grau. Esses senhores e senhoras, provenientes da "nata" das elites criollas, se uniram com as "oposições" e a mídia privada para, sob o pretexto da "não renovação da concessão" à RCTV , tentar derrubar o governo! E botaram seus muchachos y muchachas nas ruas... Ocorre que esses muchachos y muchachas nunca em suas vidas fizeram manifestação ou protesto de qualquer espécie. Porém, constituem boa parte do que restou da população venezuelana ainda codificada com adesão e obediência ao comando do pattern 66 comunicacional. De fato, precisavam de "orientação". Esta fora encomendada ao must da "Inteligência" manipuladora a serviço do império, o Albert Einstein Institut, trazido à Venezuela para aplicar o (já) famoso e fajuto plano de "golpe brando". Foi ridículo!... Resume-o a manchete do Diario Vea, de domingo, 10 de junho, depois de duas semanas de marchas tontas e sem sentido: "Niños ricos quieren tumbar el Gobierno"! Mas, já no day after, surgiu no cenário político da Venezuela (e do mundo) um tipo de manifestante e de manifestações de "protesto" jamais imaginados. Apresentaram-se primeiro, aos grupelhos, em ingênuos piquetinhos, em nome de "todos os estudantes da Venezuela, contra o fechamento da RCTV". Por serem poucos (até crianças de sete a doze anos foram "recrutadas"), foram instruídos a organizarem-se em pequenos grupos distribuídos em diversos pontos estratégicos, para os quais era fornecido logística (lanches, refrigerantes, pneus para queimar, coquetéis molotov, sprays para pintar vidros de carros, etc), transportes em carros, ônibus e caminhões alugados, faixas, panfletos e roteiros com slogans de protesto e palavras-de-ordem "criados" em agências de publicidade e, claro, ampla cobertura da mídia hegemônica nacional e mundial. O primeiro problema deles é que a Revolução Bolivariana tem câmeras e microfones espalhados por todo lado, as TVs e Rádios Comunitárias, e, por mais sigilosos fossem os pontos escolhidos, os veículos midiáticos que deveriam estar lá buscando informações privilegiadas nunca estavam sozinhos como desejavam. De pronto, os veículos da mídia de resistência e do governo exibiam imagens que desmentiam as manipulações da mídia privada e davam voz aos verdadeiros líderes estudantis, todos bolivarianos, que informaram ter a Venezuela 13 milhões de estudantes, que havia lideranças legítimas para representá-los, que os muchachos y muchachas não eram lideranças estudantis, que o movimento estudantil jamais se mobilizaria em defesa de empresas capitalistas, muito menos pela RCTV, que os golpistas nem pensassem em usar os estudantes contra a Revolução Bolivariana, e convidavam os "colegas" para o debate aberto e democrático, onde e quando quisessem. Os manipuladores não estavam interessados em debates, e muito menos seus manipulados teriam condições de debater coisa nenhuma. Como dissemos antes, a meta deles era clara: um cadáver (um muchacho ou uma muchacha, de preferência) para as garras sedentas da mídia hegemônica, e tinham pressa. Mas a nova polícia da Revolução não o concederia. No dia seguinte, 29 de maio, os manipuladores tentaram manter a estratégia a que chamavam "protestos pacíficos", mas logo viram que não dava certo dividi-los em grupelhos. Assim, cerca de três mil muchachos y muchachas se concentraram à tarde numa praça de Caracas para "pacificamente" protestar e, se possível, provocar repressão policial, coisa que de novo não deu certo. Desta vez, falavam em nome de "todos os estudantes universitários de Caracas", e os protestos não eram mais pela RCTV, mas por "liberdade de expressão". E faziam cena. Em conformidade com o manual do "golpe brando" do Albert Eintein Institut, os muchachos se ajoelhavam diante dos policiais com as mãos para o alto, como que pedindo clemência de quem nem pensava em agredi-los. Posavam para fotos de correspondentes internacionais. Só que as fotos tiveram de receber tratamento de imagem para escurecer o rosto dos policiais, pois eram mulheres e riam muito, não havia como não achar engraçado aqueles niños ridículos. A melhor foto, publicada nos principais jornais do mundo, foi a de um muchacho na posição ensaiada diante de um "rinoceronte". Foi até comparada com a do muchacho chinês diante do tanque de guerra na Praça da Paz Celestial, em Pequim (lembram-se?). Para os microfones que tentavam conseguir alguma coisa dos niños não saía nada. Só repetiam sem cessar: "Queremos liberdade de 67 expressão!". Avisados por um repórter que já tinham liberdade de expressão, contestavam, com arrogância, que "sem a RCTV não há liberdade de expressão!". Mas o repórter insistia: “a RCTV não está no cabo porque não quer, ninguém fechou a RCTV, apenas não lhe renovou a concessão do Canal 2”. A resposta eram novos berros repetindo: "Queremos liberdade de expressão!". Vendo que aquilo não ia sair do lugar, os manipuladores nomearam John Goicochea e Stalin (que ironia!) Gonzalez os líderes oficiais dos muchachos y muchachas e os instruíram a convocar uma marcha para o dia seguinte. Esqueceram-se, porém, que a Constituição Bolivariana estabelece regras e regulamentos claros para tais marchas, e o governo não abre mão de uma vírgula dela. Tinham de dizer de onde saíria a marcha, a que horas, para onde iria, a que horas previam chegar, fazer o pedido por escrito, com antecedência mínima de 24 horas. E se tivessem duas marchas pretendendo o mesmo percurso, a que pedira primeiro o teria. Enfim, sem a licença da Prefeitura da cidade e das autoridades policiais, que exigiam o cumprimento rigoroso dos regulamentos e regras, não tem marcha. Para onde iria a marcha, Sr. Goicochea, Sr. Stalin? - perguntavam os repórteres. Eles não sabiam, tinham de consultar "as bases". À noite, declararam que a marcha, agora em nome "da maioria dos estudantes universitários" e em protesto pelos "direitos civis", seria marcada para o dia seguinte pela manhã, saindo da Universidade Católica para a Assembléia Legislativa. O pedido fora encaminhado já desrespeitando o regulamento legal, que pedia 24 horas de antecedência. A reitoria resolveu também liberar os estudantes de todas as aulas por tempo indeterminado. Porém, a marcha não pôde ser autorizada, porque os estudantes bolivarianos, liderados por Hector Rodriguez (UCV - pública) e Robert Serra (Católica), indignados com o papelão de seus colegas universitários, já haviam solicitado, com a antecedência legal, uma marcha no mesmo horário e local de chegada (Assembléia Legislativa), para o desagravo dos estudantes revolucionários. Aqui devemos abrir espaço para um breve comentário sobre o que na Venezuela parece-nos ser o conceito de democracia participativa. De início, não se reconhece a autoridade de pseudo lideranças forjadas em conchavos de cúpulas sindicais ou de categorias profissionais, de valor meramente cartorial e sem respaldo nas coletividades que dizem representar, muito comuns e recorrentes à assim chamada democracia representativa. Na Venezuela, a legitimação de uma liderança passa necessariamente por instâncias de bases (Conselhos Comunais), têm de ser bem demonstradas e comprovadas, e não se reduzem a meros registros cartoriais. Devem também ser realizadas dentro de parâmetros legais muito exigentes quanto à participação de cada cidadão em seu direito de ser informado, de pleitear, de reivindicar, de propor, de influir e exercer a opinião com liberdade, sem temer pressões e retaliações. E as minorias derrotadas não ficam impedidas de se manifestarem, dispondo, para isso, de vários instrumentos legais. Eis porque as minorias estudantis manipuladas puderam se manifestar com tanta liberdade, e com o estado obrigando-se a protegê-las e a dar condições para que exerçam este direito. A única exigência, repetimos, é que tudo seja feito conforme as leis e os regulamentos. Mas os filhos de oligarcas de última geração são como os pais e os avós: não aprendem! Depois de viver séculos como donos do País, ainda não perceberam que agora são minoria e não mandam mais. Por isso, a qualquer interposição impeditiva ao que eles chamam "meus direitos", que quer dizer "meus desejos", se põem logo a se destemperar numa arrogância prepotente e raivosa acusando a tudo e a todos de "ditador", de "repressor" e o mais que lhes vier à cabeça. E resolveram fazer a marcha sem autorização. Mas não saíram 68 do lugar! A polícia cercou a universidade e os impediu de sair. Tentaram forçar a situação para obter o almejado cadáver, em vão. Para a mídia hegemônica, tudo isto nada mais era que "repressão" e "intolerância" da ditadura "castro-comunista" de Hugo Chávez. Vendo que não iam conseguir nada, os manipuladores dos muchachos y muchachas orientaram os "líderes" para convocar outra marcha para o dia seguinte, desta vez registrada a tempo e sem impedimentos, para ir até o TSJ. Enquanto isso, a imensa marcha dos estudantes bolivarianos, como de costume preenchendo as enormes avenidas de Caracas com a alegria, a chama e a energia da juventude revolucionária, mostrava a toda a Venezuela quem de fato representava os estudantes no país. Para a mídia hegemônica e a mídia privada, esta marcha nunca existiu. Mas as mídias de resistência e do governo não perderam tempo. Abriram a grade para programas de debates, mesas redondas e entrevistas, convidando também estudantes "oposicionistas" para participarem, e mostravam coberturas detalhadas dos eventos de ambos os lados. Muitas vezes dividiam as telas para mostrar as diferenças entre as duas manifestações. As bolivarianas, cheias de colorido, repletas de estudantes, plenas de alegria e entusiasmo revolucionário, e as das "oposições", quase vazias, sem densidade, cinzentas, carrancudas e mal humoradas. Fizeram especiais e programas documentários com a memória do heróico movimento estudantil dos anos 60 a 90, na Venezuela e no mundo. De novo, a audiência delas subiu vertiginosamente, mas os estudantes "oposicionistas" recusaram os convites para debates e "exigiam" espaços próprios e exclusivos para se pronunciarem. Obtiveram-nos. Só que, no lugar deles, compareceram reitores e professores de universidades golpistas. Que eram recebidos. Nesse mesmo dia, depois da marcha dos estudantes bolivarianos até a porta da AN, onde foram recebidos pelo vice-presidente Jorge Rodriguez (que é filho de um estudante assassinado pela polícia na década de 70), pela presidente da AN, Cília Flores, e os demais deputados e deputadas, Chávez, que tinha sumido do cenário, reaparece em cadeia nacional, num evento dedicado ao "Adulto Mayor", em que ele anunciava a concessão de pensões vitalícias, no valor de 60% do salário mínimo, a venezuelanos maiores de 65 anos. Chávez retomava a série de cadeias nacionais, que transtornam as grades de programação dos veículos de comunicação, em especial os privados, causando ataques de ira e histeria nos seus departamentos comerciais (vendo o faturamento despencar) e editoriais (vendo seus próprios canhões serem usados contra eles mesmos). Em sua velha tática de provocação, sempre vitoriosa, Chávez faz questão de estender a ocupação desses espaços ao máximo, com duração média de três ou quatro horas, em que faz longas e pacientes digressões sobre o socialismo, com detalhadas dissertações sobre a história e a geografia do país, destacando os heróis bolivarianos revolucionários, o papel reacionário das oligarquias, exibindo às câmeras livros e obras do pensamento crítico, que recomenda, lendo citações e trechos, às vezes, longos, de alguns deles, mostrando mapas, desenhando croquis e esquemas. Faz também pregações ideológicas, com lições minuciosas sobre as idéias de Bolívar, Marx, Engels, Trotsky, Gramsci, José Marti, Mariátegui, Che Guevara e tantos outros titãs do pensamento revolucionário nas Américas e no mundo. Desta vez, a mídia hegemônica retrucou com uma bomba mundial, publicada em todas as páginas na internet, primeiras páginas impressas e jornais televisivos vespertinos de seus maiores veículos: o primeiro cadáver! Uma jovem universitária tinha sido barbaramente assassinada por "capangas do ditador"! Mas o tiro saiu pela culatra e, como sempre, o 69 ministro Pedro Carreño, afogado em microfones, desmontava a trama. A polícia agiu rápido. No mesmo dia prendeu a dupla de assassinos, um casal que confessou ter sido contratado por uma madame golpista, co-proprietária de um jornal fascista (Diario 2001), que lhes pagou US$ 10.000 para eliminar a rival em negócios e herança familiar. Era um crime passional em que o oportunismo da mandante aproveitava o momento para "ajudar" aliados golpistas. Na quarta-feira, 30 de maio, a concentração "oposicionista" demonstrava um reforço substancial, que elevava em mais de dez vezes o número de manifestantes em relação às primeiras concentrações. As mídias de resistência e do governo chegaram a demonstrar certa apreensão com o fenômeno, mas isto porque passaram batido nas suas causas. Não perceberam (ou até perceberam, mas não lograram explicar) que aos "oposicionistas" começaram a aderir todos os codificados ainda submissos aos comandos manipuladores do pattern comunicacional - os "disociados". Nesta situação, como na dependência química de drogas, o receptor codificado, na falta da dose diária do pattern de sua predileção, no caso a RCTV, se desespera e faz qualquer coisa. Gente que nunca na vida pensara em participar de uma manifestação de protesto, vendo na Globovisión os manifestantes que reivindicavam a mesma droga de que eram dependentes, decidiram participar, fazer alguma coisa. Eram donas de casa, solteironas, dondocas de society, burocratas, solitários mal-amados e outros servos do pensamento único ou não pensamento que, carentes da droga que "o governo lhes confiscara", segundo o mesmo pattern a que dão crédito, partiram para engrossar as fileiras dos muchachos y muchachas manipulados. Ficou "chic" marchar em Caracas. As colunas sociais de jornais reacionários passaram a publicar, com destaque, fotos de peruas conhecidas em plena marcha, "misturando-se ao povo", com as caras pintadas, carregando cartazes e faixas, "em apoio aos estudantes", vestindo-se com a bandeira invertida e a berrar pelas ruas por "la libertad de expressión", com notas e legendas elogiosas "à coragem e à rebeldia das beldades". Num congresso de escritores na Itália, Eduardo Galeano arrancou gargalhadas da platéia ao comentar o caso da Venezuela. Disse ele: "Lá, você liga a televisão e vê um senhor dizendo acá no hay libertad de expressión; você liga o rádio e ouve uma voz dizendo acá no hay libertad de expressión; você pega o jornal e vê estampado, em letras garrafais, na primeira página, acá no hay libertad de expressión!" O TSJ, por sua presidenta Luisa Stella Lamuño, já havia se manifestado dispondo-se a receber os estudantes "oposicionistas". A marcha, a maior registrada por eles (cerca de 30 mil pessoas), correu normalmente, pacificamente, etc, com a participação de reitores e professores, que se faziam porta-vozes das "reivindicações", que desta feita eram pelos "direitos civis", e não reivindicavam representação de estudantes; eram agora "seres sociais, mas não socialistas", reivindicando o "direito sagrado de protestar". O Albert Einstein Institut havia introduzido uma novidade: a bandeira de Venezuela era conduzida pelos manifestantes de cabeça para baixo, "em sinal de protesto". Tal gesto, que na simbologia significa rendição e reconhecimento de pátria derrotada, só viria aumentar a revolta e a indignação popular contra os fedelhos. Se tem uma coisa que a revolução bolivariana elevou até a grandeza máxima possível foram os símbolos pátrios nacionais, que o povo aprendeu a respeitar e a reverenciar quase à idolatria. Chegando lá, alguns muchachos y muchachas escolhidos entraram em comitiva na sede do TSJ pela primeira vez em suas vidas; foram recebidos pela presidenta e todos os ministros, agradeceram muito e, sem mais nada, se retiraram. Na porta do TSJ, a imprensa toda os 70 aguardava, e alguns dos estudantes, com discursos nitidamente decorados a partir de clichês típicos, vomitaram nos microfones um destampatório gaguejado, quase incompreensível pela desarticulação oratória e pelo ódio incontido que deles vazava, com "exigências" e ataques à Assembléia Nacional que, segundo eles, se recusara a recebê-los para receber os estudantes bolivarianos, em "mais uma demonstração da falta de democracia que impera na atual ditadura”, etc e tal. De nada adiantou reitores e professores tentarem explicar, porque ninguém entendeu nada, nem as mídias hegemônicas e privadas. Neste mesmo dia, Chávez, aproveitando um evento qualquer (não nos lembra qual), abriu nova cadeia nacional para convocar uma marcha partindo dos quatro pontos cardeais de Caracas, para um comício monstro na Av. Bolívar, no sábado próximo, 2 de junho. Ainda neste dia, os estrategistas da manipulação golpista, desconfiando que dos estudantes pouco iam obter, decidiram por plantar na mídia uma série de boatos de paralisações de transportes, hospitais e indústrias. Arrependeram-se amargamente e nunca mais ousaram repetir a traquinagem. Todos os representantes dos setores trabalhistas envolvidos nos "rumores" compareceram em bloco no Ministério do Interior e Justiça e, em coletiva de imprensa, junto ao ministro Pedro Carreño, afirmaram que os trabalhadores de todos os setores apoiavam sem restrições a democratização do espaço radioelétrico em curso pelo governo do presidente Chávez, e mais: declaravam que, se houvesse qualquer tentativa de greve patronal (lock out), os trabalhadores ocupariam e tomariam as empresas (a legislação bolivariana prevê, para tais casos, que empresas abandonadas pelos donos podem ser tomadas pelos trabalhadores e convertidas em cooperativas ou empresas socialistas). E cada uma das lideranças trabalhistas ali presentes fez questão de fazer o próprio e contundente discurso de apoio incondicional ao "presidente Chávez e ao seu governo". No dia 31, pela manhã, os estudantes "opocionistas" realizaram marcha igual, só que pela "autonomia das universidades" (que já são autônomas por determinação da própria Constituição) até a Procuradoria Geral da República. Foram recebidos pelo procuradorgeral, agradeceram muito, e, sem nada a dizer, se retiraram, com suas bandeiras de cabeça para baixo. Desta vez, não houve destampatórios nem discursos decorados para a imprensa. Porém, à tarde, a Assembléia Nacional convocou uma entrevista coletiva bombástica onde as deputadas Desirée Santos e Cília Flores, entre outros deputados e deputadas, exibiram gravações obtidas pela Inteligência das Forças Armadas nas quais ficava comprovada a manipulação dos estudantes "oposicionistas" por pessoas ligadas à RCTV, Globovisión e membros de entidades e ONGs estrangeiras declaradamente envolvidas na tentativa de golpe de estado na Venezuela, coordenadas pelo Departamento de Estado dos EUA. As gravações demonstravam que os estudantes eram usados como "carne de cañon" em propósitos golpistas de manipuladores, que deixavam entrever a necessidade de um morto entre eles. As deputadas fizeram apelo às mães dos estudantes para evitarem a manipulação dos filhos, pois a vida deles estava sendo colocada na mira de assassinos profissionais. Lembravam os mortos de 2002 e apelavam também ao governo, que impedisse a repetição daqueles acontecimentos. Foi um contragolpe desmoralizador do "movimento estudantil oposicionista", o qual, por sua vez, fez ouvidos de mercador e não se manifestou. Mas a contra ofensiva do pensamento crítico se manifestou. As lideranças do movimento estudantil bolivariano, tendo por porta-voz Hector Rodriguez, declararam distinguir entre os "oposicionistas", os manipuladores, os que eram conscientemente manipulados e os que estavam se manifestando de boa fé, por convicções próprias, ainda que equivocadas. Com os últimos, pediram um debate franco e aberto. 71 Fazendo eco, o Ministro Pedro Carreño deu declarações em que insinuava o possível envolvimento de reitores, professores e funcionários de universidades públicas e privadas na manipulação dos estudantes e que gestões para a aplicação de ferramentas legais da Justiça estavam em andamento pelo Ministério Público. A estratégia de Chávez funcionava com precisão, a partir dos erros de seus opositores. Paira agora, sobre as reacionárias administrações universitárias, a balança da Justiça Bolivariana. Eis que as "lideranças" dos estudantes "oposicionistas", sem considerar nada disso, desferem ataques violentos à Assembléia Nacional e reivindicam "direito de réplica" em forma de debate, na própria AN. E ainda "exigiam" que o debate fosse transmitido "por todos os canais da mídia pública e privada". Em resposta, Cília Flores manifestou a concordância com o debate, que seria promovido pela Assembléia com até dez estudantes "oposicionistas" e dez bolivarianos, cujos participantes ficariam à escolha de ambas as correntes. Depois de várias negociações, o debate ficou marcado para o dia 7 de junho. À noite, o programa "La Hojilla", de Mario Silva, mostrou novas gravações. Uma delas era uma ligação do filho do Sr. Marcel Granier para sua "mami". Queixava-se do cansaço dos últimos quatro dias, por "incendiar as ruas com os estudantes", e confessava-se "exausto", querendo ir para Miami. A "mami" retrucou estar preocupada com a asma do filhote (pelos 40 anos de idade) por enfrentar bombas lacrimogêneas, e o aconselhou a usar máscaras contra gases, inclusive oferecendo uma que tinha em casa, pedindo a ele que fosse buscá-la no dia seguinte. O diálogo não só expunha mãe e filho ao ridículo como comprovava o envolvimento do Sr. Marcel Granier e família na manipulação dos estudantes. O dia primeiro de junho transcorreu sem marchas estudantis, com o povo mobilizando-se para o comício convocado por Chávez para o dia seguinte. Os veículos da mídia de resistência e do governo divulgavam apoios internacionais de intelectuais, das Mães da Praça de Maio, de entidades culturais e humanistas européias e latinoamericanas e entidades governamentais de vários países. A mídia privada e a hegemônica, na rotina desinformativa de sempre. E o "movimento estudantil oposicionista", que, segundo Mario Silva, era "movimento estudantil burguês", murchando, ao invés de marchando. Chegamos, então, ao glorioso 2 de junho em Caracas. Pela manhã, os quatro pontos escolhidos para a concentração a leste, a oeste, a norte e a sul da cidade estavam cobertos pelos diversos veículos da mídia governamental e de resistência (comunitários e outros), que mostravam as grandes aglomerações se formando, se compactando. Até camponeses montados a cavalo comparecem. Para os veículos da mídia hegemônica, nada do que estava acontecendo e do que aconteceria naquele dia existiu, a não ser quando obrigados a transmitir em cadeia nacional. As massas compactas de chavistas começaram a se mover pelas artérias da cidade, preenchendo-as de vermelho, bandeiras nacionais, faixas e cartazes. Foi notável! Os planos aéreos de helicópteros eram contundentes: quatro correntes vermelhas caminhavam em direção ao centro de Caracas, onde a avenida Bolívar se encontrava pronta e equipada para recebê-las. Vinham dançando, cantando, exibindo a alegria e a euforia da vitória. Quase já se tornara rotina para eles esses eventos, mas, a cada novo episódio, o prévio combate com as mídias inimigas contribuíam para torná-los mais picantes, saborosos e prazerosos. Na avenida superlotada, a câmera da VTV procura alguém na multidão. Num palco lateral, a orquestra Dimensión Latinoamericana tira uma salsa arretada, daquelas sob que ninguém fica sem dançar. Todos dançam e cantam. Eis que, num plano destinado a mostrar os 72 músicos da orquestra, a câmera descobre alguém tocando um instrumentinho de percussão, ao lado do vocalista. É ele, el comandante! Ele ginga, dança e batuca a varetinha em seu babilaque metálico, no ritmo frenético da salsa. E faz um dueto vocal com o cantor, repicando juntos, no mesmo microfone, o refrão salsense. O povo delira! Corte para o "homem do Equador" no podium do palanque. Estamos em mais uma cadeia nacional de rádio e TV. Vamos com Chávez cantar o Hino Nacional: Gloria al bravo pueblo... Terminada a récita, a explosão do poder popular. Chávez começa o discurso, bravo, em tom de desafio: “Se vierem com um novo 11 de abril, eu mesmo vou comandar o 13, mas, desta vez, antes do 11!”. Depois de longa preleção didática sobre as idéias e teorias gramscianas, lá pelas tantas, já falando do espectro radioelétrico, o povo, que superlota a larga e extensa avenida, o interrompe (isto muito raramente acontece), e brada em coro, por uns dois minutos, a mesma e repetida frase: - Agora é a vez da Globovisión! Agora é a vez da Globovisión! É a força do povo querendo a outra cabeça da Hidra. A espada de Bolívar ele já possui. Quando chegar a hora, Chávez poderá decepá-la também. Se fôssemos proprietários da Globovisión, já teríamos procurado as autoridades do governo para negociar uma saída honrosa. Será que eles não aprendem mesmo? Liberdade de Expressão "Ser jovem e não ser revolucionário é uma contradição." (Salvador Allende) Na semana que se seguiu, já o assunto RCTV era coisa do passado. Tudo parece ocorrer na Venezuela de acordo com a estratégia de Hugo Chávez. Agora, o povo queria saber sobre aqueles fedelhos que ousavam afrontar o seu Governo Bolivariano. Quem eram? O que faziam pelo povo? Por que nunca apareceram nos bairros, nas vilas, nas zonas rurais, nas missões? E essas universidades? Quanto gastava o governo com elas? Por que estavam contra o governo? A grade da viVe TV era quase toda preenchida por reuniões de bairros, conselhos comunais, mesas técnicas e populares fazendo essas perguntas. Ficou assentado que o debate na Assembléia Nacional seria bastante esclarecedor. Enfim, conheceríamos alguma coisa sobre o que têm a dizer os universitários venezuelanos, de um e outro lado. Assim correu a semana até quinta-feira, 7 de junho, com grande expectativa nacional pelo debate, apesar de, estranhamente, a mídia privada não o mencionar, agindo como se o estivesse boicotando. Chegado o dia, os arredores da Assembléia Nacional ficaram repletos de populares bolivarianos curiosos, querendo acompanhar de perto a peleja. Foi preciso instalar telões em locais estratégicos. Os estudantes bolivarianos chegaram sob os aplausos dos populares e ingressaram no interior da Assembléia, também repleta, com todos os deputados e deputadas presentes e as galerias lotadas. Mas, os estudantes das "oposições" não davam as caras. Procurados, descobriu-se, segundo Mario Silva, que estavam reunidos na sede da Globovisión, de onde pediram garantias para chegar ao local do debate, no que foram prontamente atendidos pelo comando geral da Polícia de Caracas. Finalmente, com mais de uma hora de atraso, entraram na Assembléia os dez estudantes das "oposições" vestidos com camisas vermelhas como se fossem bolivarianos, para perplexidade geral. 73 Tudo pronto, Cilia Flores convocou cadeia nacional de rádio e TV, e deu a palavra ao primeiro dos "oposicionistas", de nome Douglas Barrios, que subiu ao podium trazendo um texto. Vamos, enfim, saber o que dizem esses enigmáticos jovens que fazem marchas tontas e carrancudas por toda Caracas, sem nada dizer do que realmente querem com elas. O garoto, duro como um tarugo de pau, gaguejou, nervosíssimo, a leitura do texto, de cabo a rabo, quase sem tirar os olhos do papel. Que estudantes esquisitos, esses! Jovens sem brilho nos olhos que parecem querer esconder, que não citam um poeta, que não têm heróis, que lêem um texto mal escrito por alguém com a idade mental de um velho, um texto de baboseiras quase sem nexo e que abusa de termos nobres como "liberdade de expressão", "luta estudantil" e "direitos humanos" como se fossem lugares comuns ou palavras banais a serviço de qualquer contexto. Ao final daquele xarope, diante do pasmo geral e o silêncio sepulcral dos presentes, os garotos tiraram as camisas vermelhas, disseram que não estavam ali para debater nada e que já iam cair fora. Mas os estudantes bolivarianos intervieram, questionaram os colegas, alegando que faziam o mesmo que Condolezza Rice no plenário da OEA e acabaram convencendo-os a ficar. Subiu então ao podium a estudante bolivariana Andreina Tarazon, uma moreninha de uns vinte anos de idade, traços angelicais e olhos tão brilhantes quanto o discurso que, de improviso, proferiu e com que arrebatou o país. Sua voz macia e cálida ecoava pela Assembléia levando palavras de uma consciência bem formada e bem cultivada nos mais nobres valores humanos e revolucionários. Seus argumentos eram cristalinos, objetivos, sinceros e apoiados em raciocínios às vezes complexos, mas que ela lograva tranformar em mensagens claras e acessíveis a todos os que a ouviam. Firme, segura, fluente e persuasiva, ela foi um encanto, uma surpresa e uma porrada, tudo ao mesmo tempo. Sob aplausos entusiásticos dos presentes, várias vezes, de pé, ela pôs abaixo toda a farsa que mascarava a presepada golpista que quer macular a história de lutas do movimento estudantil, e reivindicou a urgente reforma do ensino superior proposta pelo governo. Na seqüência, Cilia Flores chamou John Goicochea. Ele subiu ao podium só para repetir, como um papagaio, que não vieram ali para debater. Em seguida, desceu, juntou-se aos outros "oposicionistas", e saíram com o rabo entre as pernas, vergados ao escárnio da nação inteira. Chocada com aquela atitude, Cilia Flores fez um breve discurso para dizer que aquilo só confirmava a manipulação vergonhosa a que se submetiam aqueles estudantes e que, de resto, todo o país tinha conhecimento. Disse também que prosseguiria a sessão, dando a palavra aos que nela ficaram, e se os que saíram retornassem a tempo, a teriam de volta. Falaram, consecutivamente, os estudantes bolivarianos Robert Serra, Mayerling Arias, Eder Dugarte, Osly Hernandez, Cesar Trompiz, Yahir Muñoz, Libertad Velasco, Manuel Dum e Hector Rodriguez. Todos com discursos de improviso, espontâneos e perfeitamente articulados, citando seus poetas, seus heróis, lembrando e homenageando os mártires e os líderes de movimentos estudantis do passado, trazendo ao presente as lições da história, propondo ousadias revolucionárias e mudanças radicais no ensino superior, manifestando a inquietação política da juventude e o espírito revolucionário que os embala e os motiva, ao lado do povo, a encarar todos os desafios. A seqüência oratória foi de tal magnitude que os deputados mais velhos, veteranos curtidos nas muitas lidas revolucionárias, choravam, vendo naqueles jovens as lideranças que os 74 sucederiam, e os mais novos preocupavam-se, pela evidente possibilidade de tê-los como concorrentes em eleições futuras. Em muitos momentos de todas as locuções, o plenário e as galerias levantaram-se em entusiasmados aplausos, o que não é fácil de se conseguir naquela casa onde os melhores oradores do país, filtrados no crivo das urnas de um processo democrático e dialético, freqüentam rotineiramente. Muito nos alongaríamos se tratássemos de cada uma das intervenções. Porém, merece destaque a de Mayerling Arias, porque falou na condição de estudante e de mãe de recémnascido. Apontou o filho e, por extensão, os recém nascidos na Venezuela, como maiores beneficiários da vitória da Revolução, que para eles reivindicou, pois já na infância terão TVes e não RCTV por entretenimento, o que já os torna mais livres, e não serão obrigados a suportar a "basura" (lixo) midiática de que ela mesma fora vítima indefesa durante toda a infância, adolescência e juventude Hector Rodrigues, que foi o último orador, trouxe uma folha de papel que fora esquecida na tribuna pelo estudante "oposicionista" Douglas Barrios, e que Andreina Tarazon recolhera. Hector leu-a toda, para estupefação da platéia e do país. Era a página final do texto lido por Douglas, um texto que era também o roteiro do comportamento deles durante a fala, dando até o momento em que deviam tirar as camisas vermelhas, antes de pronunciar o último parágrafo. E o pior, era uma folha timbrada da agência de publicidade ARS Propaganda, empresa de capital estadunidense filiada ao grupo Globovisión. À noite, Chávez recebeu os dez estudantes bolivarianos no Palácio Miraflores, que foram acompanhados por comitivas de todas as universidades, inclusive professores e reitores de muitas delas, em apoio ao governo e à política de reformas. Chávez abriu nova cadeia nacional para sentar a pua na covardia dos golpistas e homenagear os "dez heróis e heroínas" (em certos casos, a etiqueta bolivariana não aceita o tratamento no masculino como abrangente de conjuntos em que coabitam os dois gêneros; é preciso citar a ambos). A derrota dos estudantes das "oposições", ou "disociados", foi, assim, completa e desmascaradora. Em seu programa, Mario Silva concluiu que a luta dos muchachos y muchachas era pela "liberdade de inexpressão". Qualquer tentativa de desculpas pelo vexame só pioraria a situação deles. Pois tentaram! No mesmo dia, os "lideres" do "movimento" deram entrevista coletiva alegando que foram traídos pela Assembléia, que não pediram debate, mas réplica, que não pediram cadeia nacional, e outras desculpas esfarrapadas. E anunciaram nova marcha para o dia seguinte, a fim de ocuparem todas as principais praças do centro de Caracas. Só que a marcha não obteve autorização. As praças que queriam haviam sido reservadas pelos "Adultos Mayores" para comemorar as pensões recebidas e apoiar o governo "no processo em curso de democratização do espaço radioelétrico". E, na sexta-feira, dia 8, os avôs e avós venezuelanos tocaram, dançaram e cantaram nas praças de Caracas, deram entrevistas (muitos foram líderes de movimentos estudantis no passado) em apoio à revolução e repudiaram aqueles jovens "reacionários" que queriam desestabilizar o país. Vejam só onde as coisas chegaram! A partir daí, os estudantes "oposicionistas" exibiram as diferenças internas identificadas por Hector Rodriguez em declarações anteriores. Dividiram-se em “manipulados” e “de boa fé”. Os primeiros são os que foram à Assembléia. Os outros, injuriados e desapontados com a covardia dos colegas, se dispuseram a ir a debates promovidos por veículos de resistência e do governo, à revelia da orientação do "movimento", que, agora sabiam (ou ao menos 75 desconfiavam), era manipulada. Vieram os debates na VTV, na viVeTV e na TeleSur, com presenças dos dois lados, cuja audiência deve ter sido significativa, pois atraiu o interesse da Venevisión e da Televen, que se dobraram à verdadeira liberdade de expressão, apesar da relutância e das reservas de sempre. Só a Globovisión não os programou. Era o pensamento único recuando frente ao pensamento criador e crítico num espaço de tempo socialista com liberdade de expressão, comprovando assim, na prática, uma de nossas teses. Ressaltamos que não foi necessário reprimi-lo ou censurá-lo, e, se isto fosse feito, a vitória seria do pensamento único ou não pensamento. Alguns dias depois, a Globovisión, pela primeira vez, permitiu a entrada de um chavista em seus estúdios: Hector Rodriguez, em debate com John Goicochea. Infelizmente, perdemos este momento, que obviamente deu no resultado esperado, e não podia ser de outra forma. O problema do momento inicial de penetração da liberdade de expressão nos redutos do pensamento único é que seus "defensores" não têm pensamento nem preparo dialético para enfrentar um debate, e são inevitável e fragorosamente derrotados. Há, então, o obrigatório recuo daqueles redutos a fim de se preservarem, como de fato houve, na Globovisión, que não programou outros debates. Mas é assim que se vai afirmando o processo dialético, por ondas de fluxo e refluxo, e, aos poucos, os espaços vão sendo conquistados, um a um. "Tudo tem o seu tempo". A realidade midiática na Venezuela hoje está à frente da de todas as nações onde podemos fazer observações, e por isso há que estudá-la em profundidade. A mídia privada e o pensamento único foram derrotados no que diz respeito ao código de adesão e, agora, o problema se encaminha para o descolamento da audiência do pattern comunicacional e de suas matrizes de opinião manipuladoras e pré-fabricadas. Neste sentido, é a viVe TV, por força e influência das TVs Comunitárias, entre todas as experiências midiáticas de Venezuela, a que nos parece estar em posição ponta de lança. Na TeleSur e na VTV ainda há a necessidade de um pattern, mesmo que livre do segundo de seus padrões (pensamento único), e que se procure diferenciá-lo do da mídia privada no primeiro (inflexão do discurso) e no terceiro (estética), e que não se proponha como um pattern manipulador. Mas ainda é um pattern comunicacional de que necessitam para que a audiência, por longas décadas submetida ao pattern manipulador, as considere como "boa" televisão (que diz a "verdade"), apesar de que são boas mesmo (dizem, sim, a verdade). Mas note-se que o "La Hojilla", de Mario Silva, um dos programas de maior audiência no país, já se livrou completamente do pattern e desenvolve uma cultura comunicacional própria, sob a direção do jornalista e a participação de artistas que o cercam. Hugo Chávez é outro que contribui, enquanto comunicador e artista da oratória, para a criação de uma cultura comunicacional de pronunciamentos políticos e exercício do poder. Não raro ele interfere, por telefone, nos programas de opinião de Vanessa Davies, Tania Diaz e Mario Silva, só para citar os que vimos, estabelecendo uma comunicação dialética com a mídia de resistência e levando a público informações em primeira mão, anúncios de novas medidas de governo, e diálogo com os telespectadores e os jornalistas. Além do mais, os programas "Alô, Presidente" e as "cadeias nacionais" fogem completamente ao pattern comunicacional e estabelecem uma cultura própria de relacionamento povo/poder através dos meios de comunicação, cuja eficiência comunicacional é indiscutível. 76 Mas, entre os veículos da Revolução, é a viVe TV - que não tem compromisso com nenhum tipo de audiência manipulada e se volta para a comunicação com os excluídos, no sentido até de alfabetizá-los também na linguagem audiovisual - que já se conduz livremente sem pattern comunicacional, e está se dando muito bem. Mesmo na atual e primária fase - e toda experiência de vanguarda tem de passar por ela - a viVe TV alcança uma performance comunicacional surpreendente e segue na direção da verdadeira cultura comunicacional, popular, que, numa segunda fase que nos parece estar bem próxima, abrigará a contribuição de artistas de todas as expressões, formações e extrações de classe na construção de seu discurso socialista e com liberdade de expressão, a mais total e absoluta. É uma TV que tem por missão estar sempre no front de vanguarda, entendendo vanguarda como a pesquisa, a que segue na frente abrindo caminhos. Para tanto, ela tem tudo o que precisa, ou seja, as TVs Comunitárias, com a liberdade intrínseca que nelas há e a produção diversificada que nelas é gerada, seja para dentro do País ou para o exterior, como requer a sua atual missão propulsora da ALBA TV. O futuro da mídia audiovisual socialista com liberdade de expressão não contempla a existência de um pattern comunicacional, mas de uma cultura comunicacional, a ser desenvolvida, como toda cultura, no sentido da elevação da conciência e do conhecimento (Foucalt, Sartre, Barthes) e por verdadeiros artistas, no caso, por criadores e cineastas capazes de, como propunha Eisenstein, montar sequências de "atrações" audiovisuais cujo resultado é subjetivo e se realiza no pensamento crítico/dialético do fruidor/expectador e não na linearidade formal e objetiva das pistas de imagem e som. Nestes termos, a Venezuela já está preparando um exército de criadores revolucionários do audiovisual - é a Revolución de la Consciencia, do ministério da Cultura, sobre a qual nos referimos no início deste trabalho. A nosso ver, o Ministerio del Poder Popular para la Cultura, atualmente conduzido pelo ministro Francisco Sesto, deverá ser o ministério mais importante da Revolução na nova etapa que se aproxima de consolidação de uma cultura comunicacional endógena e verdadeiramente popular. É neste caminho que vemos com grandes esperanças o progresso e o crescimento da TVes, atuando numa faixa de público muito mais ampla e mais eclética do que a viVe TV, e administrando um elenco de possibilidades e recursos muito mais poderosos, não podendo se dar aos riscos de avanços radicais em experiências vanguardistas, as quais nem sempre darão os resultados esperados nos curtos prazos de resposta exigidos a esse tipo de veículo. É preciso prestar atenção neste ponto, pois é essa necessidade de resposta que acaba induzindo à solução fácil pela adoção de um pattern comunicacional, podendo isto ocorrer tanto em sociedades capitalistas como socialistas, como foi o caso da URSS. É nessa encruzilhada que estão vivendo hoje TeleSur e VTV, mas ambas, assim como a TVes, terão na viVe TV e as relações dela com as TVs Comunitárias, dentro e fora da Venezuela, o maior e mais prolífico laboratório de experimentações de vanguarda que se posssa conceber, de cujas experiências e resultados todas poderão se valer na construção de suas próprias e particulares culturas comunicacionais. Acreditamos que tudo isso está sendo pensado na Venezuela com mais profundidade do que onde pudemos chegar em nossas ainda superficiais especulações, mas infelizmente não tivemos o privilégio de acessar ou conhecer os trabalhos teóricos e analíticos que devem ter sido produzidos a respeito. Pois não poderia ser mera coincidência o desenvolvimento de tão diferentes e tão bem delineadas emissoras de frames, voltadas, desde que fundadas, para 77 o enfrentamento da guerra midiática com os mais poderosos veículos do pensamento único e do pattern comunicacional manipulador, e que, afinal, estão dando conta do recado. Lil Rodrigues já adiantou definições importantes ao posicionar a TVes como veiculadora de realizações audiovisuais independentes, e, neste caso, tal palavra só poderia ser usada por alguém como Lil no sentido revolucionário, e não no formal. Realização independente, em linguagem audiovisual, como nos ensina o cineasta Sérgio Santeiro, é, antes de tudo, uma postura ideológica. Por uma ideologia socialista e libertária, por certo. Os açodados já se manifestam, em especial os "de esquerda". Nem completou o primeiro mês de vida, e TVes se vê alvo de críticas ásperas e nervosas por "excesso de musicais e material histórico em P&B", exigindo o "padrão de qualidade" das TVs privadas "para não desapontar a audiência" e "mostrar que a Revolução também sabe fazer televisão", como se o caminho comunicacional da Revolução pudesse ser o do pattern manipulador. São os mesmos críticos da VTV, que acham-na insuportável e péssima televisão. E ficam cobrando índices de audiência (rating) como se este paradigma capitalista-consumista se prestasse a objetivos comunicacionais socialistas. Postulam-se ideologicamente como "esquerda" mas não se descolam da velha droga ( pattern) que, no fundo, é a que acolhem no conformismo codificado a que deixam submetidas suas mentes acomodadas e espíritos pouco cultivados. Falta-nos a abordagem da questão da publicidade comercial, que é a maior interessada e fomentadora do pattern comunicacional, criado pelos grandes grupos transnacionais capitalistas para conduzir o receptor codificado inconsciente e diretamente a seus caixas e balcões de créditos (manipulação primária). Dela, os veículos do governo e de resistência na Venezuela já se viram livres, uma vez que não a veiculam, o que os coloca mais perto da realidade socialista de comunicação, com liberdade de expressão. Como a Revolução Bolivariana não propõe a socialização de todos os meios de produção e riqueza, mas apenas os estratégicos e os que são deveres de Estado por razões humanitárias, de segurança e soberania, sempre restará a questão da veiculação de publicidade dos negócios restantes em mãos privadas, que dela necessitem. Neste caso, os veículos independentes, como as rádios e TVs Comunitárias, além dos veículos impressos, começaram a equacioná-la pelo conceito de "propaganda ética". Esta também deverá criar uma cultura comunicacional, como a proposta pela TVes, de uma comunicação voltada para o cidadão e não para o consumidor, que deverá ser aplicada também à publicidade ética. E sempre haverá a questão da propaganda governamental e política que na Venezuela já se faz sem a adoção do pattern comunicacional, pelo menos quanto ao segundo (pensamento único) e terceiro (estética) padrões, o que significa que existe nos comunicadores do governo a consciência de ambos. Porém, ainda não enxergamos nas peças publicadas a que tivemos acesso um processo em andamento no sentido de adotar uma cultura comunicacional que faça abolir também o primeiro padrão (inflexão de discurso) que nelas permanece, talvez porque não foram objetos de estudos mais profundos, com a participação de artistas cênicos e do audiovisual (cineastas, músicos, bailarinos, atores), da gráfica (artistas plásticos e gráficos) e do texto (poetas e escritores). Bem, temos tempo; "tudo tem seu tempo". Mas é bom lembrar que o sucesso de comunicação com as massas dos primeiros momentos da Revolução Russa ocorreu, sem sombra de dúvidas, graças à contribuição de artistas plásticos, artistas cênicos, poetas, escritores, cineastas e pensadores de vanguarda, que por Lenin foram estimulados a empregar seus talentos na solução do problema, ao que responderam com a criação da cultura comunicacional que foi adotada nos primeiros sete anos da Revolução de 1917, até o presente, jamais igualada em qualidade artística e em poder comunicacional, em todos os níveis e sob todos os aspectos. 78 O aprofundamento neste fato histórico não cabe aqui, não porque o assunto não pertença ao objeto de nossas pesquisas, mas porque alongaria por demais este estudo e o desviaria de seu foco, que é a Revolução Bolivariana na Venezuela e a guerra midiática que lá está em curso, com fortes reflexos e influência em todo o planeta. Assim, voltando aos estudantes da Venezuela, o certo é que, mesmo com o previsível tumulto provocado pelos fatos que vimos relatando, a paz e a estabilidade do país sequer foram tocadas, muito menos afetadas ou ameaçadas. Ambas estão mantidas e alavancam forte atividade produtiva dentro de um bem planejado crescimento econômico e social, e do projeto socialista bolivariano que o governo do país persegue e desenvolve com muita habilidade e competência. Como queria seu maior estrategista, Hugo Chávez, toda a nação se dedica hoje ao debate sobre a questão estudantil, em todos os níveis, que tem por meta reativar e propulsionar o movimento dos estudantes bolivarianos e organizá-lo em definitivo nos espaços de real poder, a serem conquistados no quadro político, como requer a atuação de tão importante segmento da sociedade. Uma minoria insignificante de estudantes manipulados ou equivocados, mas superexpostos pela mídia golpista, procura a todo custo impedir este processo que, por ironia, eles mesmos detonaram, e do qual agora não têm como sair ou escapar (as já nossas conhecidas armadilhas do mestre estrategista). Se até maio a Venezuela debateu espectro radiolétrico, ondas hertzianas, concessão pública, etc, e sobre tudo isso ampla maioria da população conquistou invejável consciência e conhecimento, ambos fundamentais para que apoiasse, como apoiou, a não renovação da concessão do Canal 2 e a consequente democratização deste bem público, a partir de junho o povo venezuelano tem por pauta o debate sobre as universidades, as escolas privadas, os estudantes, os professores e os administradores escolares na construção do socialismo do século 21. Entraram em cena, por iniciativa de setores golpistas dentro e fora do país, mas sem controle deles e ao revés de suas deletérias intenções, os assuntos ligados a educação e a universidades públicas e privadas, sobre os quais a consciência bem formada e o amplo conhecimento pelas bases populares se tornarão núcleos estratégicos da Revolução Bolivariana para realizar as reformas e as mudanças radicais que planeja. Já estão em cena novas e poderosas lideranças formadas no processo revolucionário e agora reveladas, que não se reduzem aos "10 heróis e heroínas" de 7 de junho. Vimos dezenas, talvez centenas de jovens estudantes, professores, profissionais da educação e integrantes de missões educativas manifestando-se nos diversos canais da mídia de resistência, tão capazes e tão bem preparados, e que revelam a erupção de um verdadeiro vulcão no velho e arcaico modelo de educação vigente nas escolas públicas e privadas do ancien régime. Já está em andamento a mobilização nacional desses jovens, incluindo os agora famosos "10 heróis e heroínas", preparatória para a detonação propulsora do 3º Motor (Moral y Luces), logo no início de 2008. Como disse Chávez, há poucos dias, "ninguém é capaz de segurar essa juventude, ninguém!" E só agora as "oposições" começaram a perceber o tamanho da caixa de maribondos onde, ingenuamente, meteram a mão. Acreditamos que, por todos os fatos aqui descritos, fica bem fundamentada e comprovada a nossa tese, entre outras que propusemos neste trabalho, de que a liberdade de expressão e a estratégia de revolução não violenta, sem repressões, censuras, perseguições e sectarismos tem boa parte dos créditos de tantas e superlativas conquistas revolucionárias, as quais, dez anos atrás, eram inimagináveis e podiam até ser classificadas como meras utopias. 79 Quanto à liberdade de expressão, ao não renovar a concessão daquele canal de televisão, o governo livrou o pais do pattern comunicacional mais nefasto e corrosivo que se possa conceber. No caso RCTV e similares mundo afora, o pattern comunicacional não se restringe ao uso corruptor da linguagem audiovisual como codificadora do não pensamento no receptor-consumidor, e a conseqüente e quase completa alienação deste, de si mesmo e da realidade. Seus manipuladores o utilizam como armas sujas de chantagem, de terrorismo, de intimidação, da mesma maneira que gângsteres se valem de metralhadoras. Não é à toa que aquela empresa televisiva não obteve solidariedade de setores empresariais e comerciais capitalistas. Todos eles, pequenos, médios e grandes, ficaram aliviados com a derrubada do poder daquele canal. Tal como as metralhadoras, o pattern comunicacional nada pode construir, mas pode destruir muito. Destrói reputações de indivíduos e famílias, aniquila empreendimentos comerciais, industriais e governamentais, e até promove e justifica matanças, como no Iraque e Afeganistão. Não faz uns dois dias e a mídia hegemônica veio com outra de suas bombas: "A ditadura de Hugo Chávez prendeu um jornalista!". Mais uma "demonstração" de que não há liberdade de expressão para o pobre povo venezuelano. De novo estava o ministro Pedro Carreño afogado nos microfones para explicar o caso. Era a denúncia de um empresário que estava sendo chantageado por um jornal de economia da capital. Ele iria entregar um jabá para o jornalista que ameaçava melar seus negócios através do jornaleco. A polícia deu o flagrante no jornalista pegando cinco mil dólares do empresário, e transportando outros quatrocentos mil dólares que pretendia levar a Miami (sempre Miami) para depositar em um banco de lá. Ora, esse já é um reflexo positivo da negação da concessão da RCTV. Porque, se ela estivesse no ar, esse empresário jamais teria coragem para a atitude que tomou, pois sabia que quem acabaria preso seria ele. Se um jornalistinha de um jornaleco pode fazer isso, imagine-se o que não poderia fazer um Marcel Granier? Mas nem por estar fortalecida e poderosa, e os golpistas várias vezes derrotados e enfraquecidos, a Revolução abre a guarda ou negligencia o estado de alerta permanente. Chávez tem investido na Inteligência revolucionária, inclusive criando a "Inteligência social", da qual participam as bases revolucionárias, e mantém a estratégia ofensiva permanente, seja por provocações verbais, por atitudes radicais de pressão revolucionária (incluindo cadeias nacionais de rádio e TV) ou pelas inegáveis realizações bem sucedidas de seu governo, a fim de encurralar os setores golpistas em minorias reacionárias e seus aliados externos em posições de defesa, portanto, mais fáceis de serem identificados, monitorados e vigiados. E tem logrado êxito. Em breve, será a hora do "contra-ataque" prometido por Chávez durante a batalha. O inimigo, como sempre, facilita-lhe a estratégia ao colecionar, no período, uma numerosa série de transgressões, infrações e desrespeitos à legislação que o governo haverá de cobrar por via judicial aos veículos envolvidos, punindo-os de acordo com aqueles estatutos, até que, enfim, aprendam a ler os contratos sociais que constituem as próprias empresas "de comunicação" e passem a entender que elas não são partidos políticos, que a função delas não é a de escolher ou derrubar ministros nem interferir ou ter poder de mando em políticas públicas, e que, como todas as demais empresas privadas do país, devem obediência às leis e regulamentos estabelecidos por governos legitimados na democracia participativa que rege a nação bolivariana da Venezuela. A Revolução tem pressa em suas reformas, pois, como vimos afirmando neste trabalho, a liberdade de expressão do pensamento criador e crítico só eliminará o pensamento único 80 em uma realidade de fato socialista. E o pensamento único, além de só ter força e poder em uma realidade capitalista, é, de longe, a maior ameaça ao processo revolucionário e sua vitoriosa estratégia de não violência e conscientização das massas. Assim, enquanto houver redutos capitalistas expressivos no país, mesmo que em desespero e em decadência, a Revolução não pode descansar nem baixar a guarda em relação às ameaças internas. Quanto às ameaças externas, a Revolução joga na pluripolarização do poder mundial, que inegavelmente tem evoluído com as recentes posturas da Rússia, China e Índia, na política externa de aproximação com os novos pólos de poder e nos países não-alinhados, além dos fracassos econômicos e militares dos EUA e o crescente descrédito das massas em relação à mídia hegemônica, para o qual muito tem contribuído. Não ficam aí os problemas da Revolução, que são muitos. E, muito mais que aos logros dela, não falta quem a eles se dedique, à direita e à esquerda, em todos os espaços possíveis, dentro e fora do país. Em geral passam longe do objeto deste trabalho, nem precisamos tratá-los aqui. A Venezuela vive agora o debate entre estudantes em todos os locais, nas ruas, nos espaços públicos e privados e nas universidades. Gradativamente o debate vai se circunscrevendo aos espaços universitários, que são os espaços onde deve acontecer e permanecer, sem interrupção. Os estudantes golpistas continuarão fazendo marchas cada vez mais murchas, que já voltaram ao quórum inicial de três mil manifestantes ou menos, até que o cansaço, o desânimo, a falta de estímulo (e de grana) façam dissipá-las em definitivo. Por sua vez, os manipuladores e a mídia privada, sem o almejado cadáver e desencantados com o insucesso dos muchachos y muchachas, já ameaçam sabotar a Copa América. Bem, temos de reconhecer, eles não vão aprender nunca! Mas é fato, também, que este é o meio de vida deles. Precisam enviar relatórios a Washington e justificar novos pedidos de grana para novos planos golpistas. Chávez, no melhor estilo Sun Tzu, aproveita a força e o dinheiro do inimigo, e dialeticamente os aplica no incremento da consciência popular, aceleradora do processo revolucionário. Pelo lado do governo, o segundo semestre, pós Copa América, não fica só na reforma do ensino superior, que é preliminar ao grande plano nacional para a educação socialista (Moral y Luces), a ser instalado no país ano que vem. Será também o da nova e principal fase da Revolución de la Energia, com a criação da Corporación Eletrica Nacional, que engloba todas as empresas de energia elétrica do país, a maioria reestatizadas no início deste ano, e do Plan de los 100 dias, prazo com data de início já definida, no qual o governo pretende reformar, ampliar, modernizar e atualizar toda a estrutura de geração e distribuição de energia elétrica, automotiva e alternativa produzida no país. Isto foi o que Chávez anunciou, mais uma vez, em cadeia nacional, ao inaugurar a Usina Termoelétrica de Zúlia, com tecnologia de ponta aplicada ao reaproveitamento de gases, numa nova e numerosa série de inaugurações e reestatizações, envolvendo um sistema de trolebus em Mérida, o viaduto Caracas-La Guaira (com quase 1 km de extensão e construído num tempo recorde de um ano e três meses, o que significou grande vitória da engenharia nacional), a ocupação da La Eletricidad Caracas, pelo vice-presidente Jorge Rodriguez e os operários da ex-empresa privada, Centros de Produção e Genética Pecuária, além dos novos estádios de futebol que iam ficando prontos. E o Ministro William Lara comunicou à imprensa que a TVes fora escolhida a emissora oficial da Copa América. No domingo, 24 de junho, em comemoração ao Dia do Exército, Chávez reuniu na Academia Militar todo o elenco de cúpula dos três poderes e das Forças Armadas num 81 enorme palanque titulado pelo lema "Patria, socialismo o muerte!", diante do qual se exibia o moderno equipamento do novo Exército Bolivariano, com tanques, veículos de guerrilha, helicópteros e outros equipos militares de todos os portes, e a presença imponente e bem formada de vários regimentos e batalhões em uniformes de gala, numa clara exibição de força. O Comandante, em trajes militares (no caso dele, mais para uniforme de guerrilha), fez ali, outra vez em cadeia nacional, um de seus mais contudentes e virulentos discursos. Depois de anunciar o imediato aumento geral dos soldos em 30%, e ordenar ao ministro da Defesa, general Raul Baduel, que desse início ao processo de completa profissionalização das Forças Armadas até o ano 2010, fustigou o império norte-americano por ter declarado guerra permanente ao mundo e avisou que a Venezuela estava em plena batalha de defesa nacional. Falou da doutrina de guerra assimétrica, das estratégias que o Estado Maior da FAN desenvolvera para enfrentar o "golpe brando", a guerra eletrônica e a guerra midiática, de como seus vários ataques têm sido neutralizados, mostrou os fuzis Kalashnikov comprados na Rússia, "a melhor arma do soldado de infantaria", e anunciou para o próximo ano que a Venezuela já os estaria fabricando até que tivesse em seus arsenais um fuzil para cada patriota disposto a enfrentar uma invasão militar, "caso o império decidisse cometer a loucura de invadir o país". Atacou violentamente a política de Bush de tentar interferir na soberania de seu país e chamou as "oposições" e a mídia privada de "cachorros do Império". E desfechou, com ira solene, sob os aplausos de todos os presentes: "Qué no se equivoque el imperio norteamericano, porque esta es la tierra de Guaicaipuro, de José Leonardo Chirinos, de Josefa Camejo, de Bolívar, de Sucre, y llevamos su misma sangre antiimperialista. Qué no se equivoque, como ya se equivocó una vez, en abril de 2002, y salieron corriendo de aquí con el rabo entre las piernas, entonces no teníamos la preparación que hoy tenemos." Hoje, 26 de junho, é dia de festa na Venezuela. São 20h em ponto, e é inaugurada a Copa América, com o jogo entre as seleções de Bolívia e Venezuela. O belo e novíssimo estádio de San Cristóbal, capital do futebol venezuelano, estado Táchira, está repleto. No centro do campo, o convidado especial Maradona, entre os presidentes Evo Morales e Hugo Chávez, dará o pontapé inicial da partida. Em meio aos foguetórios e à alegria do povo, elegemos a bola no centro do campo o ponto final deste trabalho. Graças ao editor digital, ele pode vir em qualquer parte, sendo ponto final por ser o último a ser posto e não por ser o fim do trabalho, como neste caso, pelo que pedimos um pouco mais da paciência do leitor. Festa latino-americana "Certamente, não queremos que o socialismo na América Latina seja cópia e decalque. Deve ser uma criação heróica. Temos de dar vida, com nossa própria realidade, em nossa própria linguagem, ao socialismo indo-americano. Eis aqui uma missão digna de uma geração nova." (José Carlos Mariátegui, revista Amauta, 1928) As primeiras conseqüências já se fazem notar. Comecemos pela Organização dos Estados Americanos, a OEA, de histórico penoso, desde que foi fundada, na década de 1940. Até poucos meses atrás, Chávez a intitulava, com razão, o "Ministério para as Colônias dos Estados Unidos". São mais de 50 anos de subserviência humilhante às determinações dos amos de Washington. Mas as recentes ondas libertárias levantadas na América Latina a partir de Venezuela começaram a mudar o quadro. As pressões reacionárias sobre os países 82 membros da OEA para manifestarem-se contra a Venezuela no caso RCTV devem ter levado as cúpulas dos governos latino-americanos e caribenhos, de um extremo a outro do espectro ideológico, a meditar o seguinte: "Ora, se são empresas de comunicações que mandam em nossos países, então elas que nos governem, somos desnecessários!". E um fato inédito ocorreu. A moção dos EUA pela intervenção na Venezuela, apresentada com arrogância por Condolezza Rice a mando de seu boss, o cowboy texano, foi rechaçada por 34 dos 35 países membros. Só os EUA votaram em si mesmos. Até o Canadá rechaçou a moção. Agora, a Venezuela contra-ataca e propõe o reingresso de Cuba na OEA, fato que praticamente refundará a entidade, desde que, nos anos 60, por votos pelos EUA comprados de pequenos países como o Haiti (cujo ditador vendeu o voto decisivo de seu país em troca de um aeroporto, e acabou levando calote do Tio Sam), Cuba foi expulsa sem motivos, porque Washington assim o exigira. Se agora Cuba retorna à OEA, é possível que a entidade se torne um vetor de real poder e importância para a integração e a aliança entre os países membros, e abra nova época de independência e soberania para todos eles. Da OEA vamos à ALBA - Alternativa Bolivariana para as Américas, idéia proposta por Hugo Chávez, que recebeu imediata adesão de Fidel Castro, e já reúne Venezuela, Cuba, Bolívia e Nicarágua, sendo quase certa, nos próximos meses, a adesão do Equador. Neste círculo intercontinental de colaboração entre nações se debatem, entre questões econômicas, políticas e culturais, a dos meios de comunicação e o paradigma inaugurado na Venezuela dos canais de serviços públicos. Todos deram apoio irrestrito ao governo venezuelano pela atitude de não renovar a concessão da RCTV e, exceto por Cuba, que tem já o problema em parte resolvido por sua revolução (lá, o problema é outro), manifestaram a intenção de pôr em prática políticas bem semelhantes em seus países. Vamos agora ao México, onde governa de forma ilegítima o ultradireitista Felipe Calderon, beneficiado nas últimas eleições por fraude, coordenada pela CIA, contra André Manuel Lopez Obrador, da coligação das esquerdas naquele país. Na gestão anterior, do também ultradireitista e lacaio do império Vicente Fox, foi aprovada a "Lei Televisa-Asteca", os nomes das duas maiores redes de televisão privadas que operam no México. A lei, nitidamente inspirada no caso RCTV, obrigava o Estado a renovar automaticamente as concessões de canais do espectro radioelétrico, e foi votada por fácil maioria no Congresso. Depois de efetivada na Venezuela a não-renovação da concessão da RCTV, mesmo com um governo de continuidade ultradireitista no poder, o TSJ mexicano revogou-a, por considerála inconstitucional. A decisão ficou conhecida como "efeito RCTV". No outro extremo ideológico, vamos ao Equador, onde governa Rafael Correa, um líder revolucionário sintonizado com Chávez e a revolução bolivariana. Correa, depois da não renovação da concessão da RCTV, já se posicionou pela reavaliação das concessões do espectro radioelétrico equatoriano, tão logo comece os trabalhos da Assembléia Constituinte recentemente convocada por referendo popular naquele país. Assim caminham quase todos os países latino-americanos de língua espanhola, com maior ou menor avanço, dependendo das posições ideológicas de cada governo ou das transições políticas em que se encontrem, na direção de uma completa remodelação dos regulamentos e políticas comunicacionais, um processo que para eles se tornou inevitável desde que na Venezuela foi inaugurado com a Revolução Bolivariana. E que agora atravessa o marco das atitudes concretas e definitivas com a atitude pioneira e corajosa do governo Chávez em não renovar a concessão do Canal 2 do espectro radioelétrico, até então em mãos privadas. 83 Porém, são dois entre os maiores países latino-americanos em número de habitantes os que se encontram mais distantes e à margem de tudo isso. O Brasil, o maior deles, a que dedicamos um apêndice ao final deste trabalho, por razões que lá estão expostas, e os EUA, o terceiro maior país latino-americano (depois do México), onde residem hoje 45 milhões de nossos irmãos, o que significa cerca de 15% da população estadunidense. É nos EUA, sem dúvida, que os latino-americanos vivem a situação de contradição extrema, sob todos os aspectos, que até têm sido temas de estudos e análises; porém, poucas ou quase nenhuma informação logramos obter que nos respaldasse em dissertação útil ou enriquecedora neste trabalho. Pelo que vimos, a questão midiática latino-americana nos EUA é tema que merece pesquisas e estudos, que teríamos muito interesse em conhecer, mas não em proceder. A região geográfica que nos atrai é a que abriga a América Latina e o Caribe - Nuestra América -, ou seja, os continentes das Américas do Sul, Central e do Norte, até a fronteira do México com os EUA. É nesse espaço que sobrevive e prolifera a cultura riquíssima e multimilenar indo-afro-americana, até hoje invisível para a mídia hegemônica - e talvez tenhamos de dar graças a Deus por isso. A realização do presente trabalho foi, antes de tudo, muito prazerosa, pois, através das câmeras do "sistema bolivariano de comunicações", temos viajado bem ciceroneados nesse belíssimo espaço geográfico, desde a Natureza, que preservou, até os povos que abriga e as culturas que fertiliza, mantém e faz evoluir. A música e a dança se destacam, de imediato. São povos que trazem em si, cada um deles, uma beleza peculiar, não contida só nos traços físicos e nas cores da pele de sua gente, mas, também, nos espíritos musicais, nos gestos graciosos de dançarinos e nas sabedorias pré-históricas, transcendentais e filosóficas de suas culturas. São eles os maiores artistas contemporâneos que conhecemos - os povos da América Latina e do Caribe (estamos nos incluindo, os brasileiros). É verdade que para nós a grande novidade tem sido os povos dos países de língua espanhola, pois só agora, com os recursos de internet e as mídias bolivarianas, tivemos a oportunidade de observá-los mais de perto e com acesso a informações valiosas, uma vez que poucas foram as oportunidades que tivemos de visitar alguns de seus países (só tivemos o privilégio de conhecer o Peru e a Argentina, em tempos que já vão distantes e de não tão boas memórias). Eis que constatamos uma bela verdade. Há, poderoso e vibrante, o inter-relacionamento entre a Revolução Criativa "Bonita y Hermosa" capitaneada por Hugo Chávez na Venezuela e a alma sensível de todos os povos. Conscientes ou não, o fato é que nossas antenas captaram o sinal que nos impregnou do charme deste processo revolucionário, relevando a mais rica de nossas virtudes: a liberdade de expressão. Sim, porque a liberdade de expressão é, antes, algo que possuímos dentro de cada um de nós, ou não possuímos. E é preciso tê-la interiormente para conquistá-la exteriormente (precisamos ter e saber o que fazer passar pela "barreira dos dentes", como sugere a antiga sabedoria). Ao ver os garotos esquisitos, perdidos, fazendo marchas tontas em Caracas, pedindo "liberdade de expressão", percebemos logo que eram manipulados, mas havia também o ato falho no pedido. De fato, eles não possuem liberdade de expressão, não porque esta lhes é negada, mas, sim, porque não a possuem dentro de si mesmos. De tal forma se deixaram codificar, que chegaram ao ponto de perderem a expressão dos próprios espíritos, das próprias almas, do próprio saber, para só responderem, obedientes, aos comandos do pattern comunicacional. Eis porque a manifestação deles só ocorre depois que sai do ar o pattern a que obedeciam. Dependentes dele, sem ele, ficaram perdidos... e saíram, tontos, marchando sob o comando de outro canal emissor do mesmo pattern manipulador, a outra 84 cabeça ainda não decepada da Hidra que tentava retaliar usando, como "carne de cañon", os niños ricos, os muchachos y muchachas que a tiveram por babá e professora. Mas, por outro lado, vimos também as massas bolivarianas se manifestando com a liberdade de expressão que dentro de cada um deles há, e com aquela que conquistaram no processo rumo ao socialismo do século 21. Cantavam e dançavam com espontaneidade e alegria, e, quando era para falar aos microfones das mídias revolucionárias, inclusive em cadeia nacional, falavam muito bem. E com eles cantamos e dançamos; e quando pudermos também falar como eles podem falar, vamos dizer: "Somos todos irmãos, camaradas!". Tudo isso constatado, nos vemos agora na necessidade de parodiar Franklin Delano Roosevelt, quando disse que "A guerra é importante demais para deixá-la nas mãos dos militares". Temos a dizer o seguinte: a comunicação social é importante demais para deixála nas mãos dos comunicadores. Pelo menos, em uma sociedade socialista. E concluímos: na Rússia de 1917, foram Malevich, Maiakowsky, Kandinsky, Dziga Vertov, Stanislavsky, Eisenstein, Rodchenko, Tatlin, Gladkov, Eisenin, Isadora Duncan, John Reed e outros mestres das vanguardas estéticas e filosóficas, incluindo Lenin e Trotsky, saídas de dentro ou vindas de fora da grande nação revolucionária, que criaram a cultura comunicacional vitoriosa e catalizadora do apoio e da participação popular naqueles pioneiros e verdadeiros momentos de tranformação socialista, acontecendo e mudando a realidade mundial. Pois são os artistas e pensadores de vanguarda os que devem ser responsáveis pela criação de uma cultura comunicacional para a sociedade socialista. São eles que historicamente sempre fizeram este trabalho, e todo o legado comunicacional das gerações passadas é produção exclusiva deles. São eles os que têm, na liberdade de expressão, a essência do que são e do que fazem. E são eles que derrubarão o pattern comunicacional manipulador e criarão a cultura comunicacional libertária e revolucionária do século 21. Já o estão fazendo na Venezuela. Convém participarmos, os que não estamos na Venezuela. Desde os primeiros frames que logramos capturar da TeleSur, percebemos as vinhetas criativas e originais de artistas e pensadores da música, da dança, das artes plásticas, da literatura, do teatro, do cinema, da filosofia e da ideologia, enfim, do pensamento criador, crítico e dialético. Muito já fazem, também, a VTV e a viVe TV. A TVes não deixará por menos. Aliás, sobre o pensamento criador, de que, em essência, pouco temos tratado, uma vez que este trabalho é mais voltado ao pensamento crítico (como consequência do pensamento criador, claro), a Revolução não negligencia. O Ministério da Cultura, Revolución de la Consciencia, tem se esmerado no apoio e fomento ao pensamento criador, pela mídia que lhe é a mais própria e adequada: o livro. Chávez também faz sua parte na política do livro. Não há um só de seus discursos em que deixe de apresentar duas ou três obras de que está desfrutando ou estudando, recomendando a leitura e o aproveitamento dos conhecimentos que abrigam, ou propondo reedições e novas impressões de obras históricas ou que sabe esgotadas. Tornou-se célebre o discurso de Chávez na ONU, quando apresentou um livro de Chomsky recomendando-o aos leitores dos EUA, e o livro passou no mesmo dia à condição de best seller, saindo de posições insignificantes para o 1º lugar em vendas naquele país. 85 A política do livro na Venezuela, pela plataforma Libro y La Lectura, é tão ou talvez mais ambiciosa que a do audiovisual. Só para se ter uma noção, o Ministério da Cultura implantou super gráficas nas capitais de cada estado (são 23 estados e o Distrito Federal), todas com alta tecnologia e capazes de produções de livros em grandes tiragens. Essas gráficas têm, por "conselho editorial", os Conselhos Comunais formados nos respectivos estados (o país já tem 19.000 Conselhos Comunais registrados, esperando chegar, até 2010, a um total de 52.000). Em Caracas está para ser inaugurada, nos próximos dias, a Imprenta de la Cultura, uma super gráfica de quase 10.000 m2, com equipamentos de última geração, totalmente informatizada e capaz de rodar 20 milhões de exemplares de livros por ano. Seus primeiros trabalhos serão a publicação de100 títulos históricos da literatura nacional para 50.000 bibliotecas básicas comunitárias, e o lançamento do semanário La Tarea (A Tarefa). Uma rede de livrarias (livros gratuitos ou a preços popularíssimos) e bibliotecas abrangendo todas as pequenas cidades e bairros, por mais distantes que se situem, já está em formação com as produções dessas gráficas, das editoras do Ministério da Cultura e do governo, e dos círculos independentes de resistência, que, com os apoios que recebem do governo revolucionário, são cada dia mais prolíficos e produtivos. Na Venezuela, o movimento editorial multiplicou-se de tal maneira que já se equipara aos de Cuba e Espanha, os dois maiores centros editores de livros em língua espanhola. Incrementando este apoio, a República Bolivariana da Venezuela, por seu Ministério da Cultura, instituiu o "Prêmio Libertador", outorgado anualmente a obras do pensamento crítico publicadas em língua espanhola. Ainda em sua segunda edição, o prêmio já se impõe entre os mais prestigiosos e disputados certames do livro nas três Américas. E, como vimos dizendo, eis-nos em Nuestra América, situação geográfica onde os povos se tornaram - por suas expressões libertárias, espontâneas, de ressonância e consonância à Revolução Bolivariana da Venenzuela - grandes artistas contemporâneos. Pois reúnem, em si mesmos e nas coletividades que os agrupam, a mais prolífica, a mais antiga e a mais original de todas as culturas. Que hoje se libertam - e como! E, se foram inexploradas nas comunicações capitalistas, receberão agora o mais nobre dos espaços nas comunicações do socialismo indo-americano, que virá com a vitória da Revolução Caraíba. Festa Latino-americana! Aos venezuelanos e venezuelanas Peço agora permissão para dirigir-me a vocês na primeira pessoa, porque saem do coração mais que da mente, as palavras com que encerro este trabalho. Em primeiro lugar, o prazer que tive em fazê-lo, eu o devo integralmente a vocês. E, advirto: não se sintam responsáveis pelas fraquezas e defeitos que inevitavelmente este trabalho apresenta em sua construção apressada. Assumo, sozinho, a responsabilidade. Mas, quero dizer a vocês que, daqui, eu vi vocês: 86 Eu vi indígenas reconquistando tradições e terras que lhes são sagradas. Eu vi afrodescententes altivos e livres falando coisas que devem ser ouvidas. Eu vi eurodescendentes serenos e livres ouvindo coisas que devem ser ouvidas. Eu vi coisas que devem ser vistas e ouvi coisas que devem ser ouvidas. Eu vi vocês pensando, escrevendo, lendo, trabalhando e lutando. Luchando por América - Tierra Nuestra Eu vi vocês mulatos, mulatas, mestiços, mestiças, dançando, cantando e falando. Hablando por América - Tierra Nuestra Eu vi vocês as mais belas, os mais belos - de alma, de espírito, de corpo e alegria. Alegria de Nuestra América Eu vi a revolução de vocês, e ela é, de fato, bonita y hermosa. Não tenho palavras para agradecer por tudo e por tanto que de vocês recebi. E penso que tudo o que escrevi se pode resumir em uma só palavra, três vezes exclamada: - Vitória! Vitória! Vitória! Ou na frase de uma canção que vocês conhecem e sabem muito bem amar e cantar: - "Gloria al bravo pueblo!" Mario Drumond Belo Horizonte, Brasil, abril/maio/junho/2007 87 88 Apêndice Neoliberalismo à brasileira Começamos por justificar o apêndice: não poderíamos incluí-lo no texto principal, porque não é possível, no Brasil e sobre o Brasil, escrevê-lo com as mesmas espécies de fontes, meios de comunicação e acesso às diversas linguagens de informação, via internet, de que nos valemos lá - em língua espanhola, por certo. Resultaria em hibridez de composição, em prejuízo dela e do conteúdo informativo que buscamos trazer ao leitor em língua portuguesa, não por mera tradução de conteúdos, mas pelo garimpo que temos feito na proposta e no fazer deste trabalho. Em suma, não podemos, vivendo no Brasil, escrever sobre o Brasil o que, vivendo no Brasil, escrevemos sobre a Venezuela. Porque aqui a mídia hegemônica e os poderes de Estado a seu reboque cerceiam, censuram, policiam e proíbem a liberdade de expressão. Infelizmente, a mídia hegemônica no Brasil será talvez a mais hegemônica, oligopólica e onipresente de todas as que assolam as nações deste mundo. Aqui não temos como acessar nem obter informações confiáveis, dignas de crédito, de valor histórico ou de substância conteudística que possam alicerçar o pensamento criador, crítico e dialético. Dos veículos da mídia hegemônica, claro, nunca esperamos obtê-las. Dos veículos de resistência que por aqui sobrevivem, alguns heróicos e combativos, pouco podemos exigir ou esperar. Ou trabalham em condições de indigência financeira, sem a mínima estrutura e na base do voluntarismo - sem falar da insignificância de audiência - ou são perseguidos e ameaçados, tendo sobre si uma polícia feroz que, ao comando da mídia hegemônica, fecha rádios comunitárias e empastela jornais alternativos, inclusive com a perseguição e prisão de editores e jornalistas; se sobrevivem, têm de ceder a pressões do poder hegemônico que, a qualquer tempo, pode esmagá-los. Nenhum desses veículos tem acesso a fontes importantes de informação em níveis confiáveis. Assim, a onipresença do pattern comunicacional manipulador é avassaladora. E é tal a codificação do pensamento único na acachapante maioria da população, em todos os extratos de classe e em todas as colorações políticas e ideológicas, que nem se pode por agora imaginar, internamente, um poder que possa enfrentá-lo e, muito menos, ameaçá-lo. No Brasil não há guerra midiática, somos um país ocupado e completamente sob domínio de poderes estrangeiros que sustentam a mídia privada e suas ramificações em todos os meios possíveis de expressão. Aqui lograram instalar a paralisis, a fragmentação da resistência e o enfraquecimento da inteligência e da opinião, que, pode-se dizer, não permite espaços, por menores que sejam, ao pensamento crítico e criador, e, menos ainda, a uma cultura comunicacional. Todas as decisões de poder ou de valor histórico são tomadas a portas fechadas, nas mutretas palacianas ou nas luxuosas administrações de bancos e transnacionais. Do que falam nossos políticos e autoridades só podemos especular nas entrelinhas. Do que noticiam os veículos midiáticos, nem isto. Toda a produção midiática é de camuflagem, 89 tergiversação, desvio e encobrimento da informação, ou seja, toda informação é dada para desinformar. Aqui, praticamente sem resistência ou protesto: - a Amazônia é entregue a preços de selo de cartório; - florescem as transgênicas monoculturas (plantations) que massacram a terra e os camponeses em extensões territoriais inacreditáveis; - é o país do etanol, por determinação de Bush e, não, por nossa vocação agrícola; - é o paraíso dos banqueiros e do capital especulador; - é o spa de transnacionais e oligopólios, que gozam de incentivos e facilidades fiscais, ganham em doações as mais tradicionais e lucrativas empresas públicas, recebem todos os favores governamentais, com os agradecimentos subservientes de autoridades, a projetos predatórios, de saque às riquezas naturais e exploração vil de nossa mão-de-obra; - a polícia prende, espanca, tortura, e, não raro, assassina operários que ocupam fábricas e indústrias fechadas pelas privatizações, e camponeses que ocupam terras abandonadas e improdutivas de latifúndios; - o trabalho escravo e a escravidão da criança é uma realidade inelutável; - não há educação pública gratuita nem liberdade de expressão; - é o santuário da mídia hegemônica. Somos, desde 1964, o grande problema da América Latina revolucionária, um problema do tamanho da metade de sua extensão territorial e populacional. Hoje, a situação é ainda pior. Entendemos quando Chávez e outros líderes e pensadores de nações progressitas incluem o Brasil de Lula como aliado no elenco das nações latino-americanas "de esquerda". Isto os fortalece, sem dúvida. O Brasil, seja qual for a situação em que viva ou que morra, desequilibra a balança de poder. Mas nenhum desses líderes alimenta ilusões. Alguns pensadores, talvez. Porém, não há como deixarmos de lado um raciocínio de precisão, como este do músico e compositor brasileiro Guilherme Vaz: "O governo Lula é o maior cavalo de tróia da história!" Por mais dura que seja essa afirmação, temos de pensar nela, e estamos certos que o Comandante Hugo Chávez a tem presente no pensamento estratégico que engendra para a política externa de sua (nossa) Revolução. Sabe que os EUA de Bush contam com o Brasil de Lula para o "golpe brando" contra a Revolução Bolivariana, pois aqui o golpe já é bem sucedido (Lula é parte dele), e está em curso em toda a extensão continental do "quintal d'América". Tudo aquilo que a Revolução Bolivariana repudia e estigmatiza o Brasil facilita e promove a paradigma. E os paradigmas da Revolução são aqui estigmatizados e demonizados. 90 A prevalência de posturas ultradireitistas por parte do Senado brasileiro em relação aos acontecimentos na Venezuela e à política externa de Chávez, em arremedo ao Senado pinochetista do Chile, e sob o mais acintoso comando manipulador do Senado dos EUA e do Pentágono, não deixam dúvidas de que o nosso poder executivo nada mais é que a máscara de esquerda que disfarça a nossa realidade de direita neoliberal, para iludir nossos vizinhos e esfriar a ebulição libertária em que vive a América Latina. Assim é o neoliberalismo à brasileira: usa máscara de esquerda; mas a festa é da direita. O Brasil de Lula não participa da Festa Latino-americana. Pelo visto, só entrará nela quando tivermos por presidente um verdadeiro líder. E, se este líder tiver de conhecer tão bem a obra de Oswald de Andrade como Hugo Chávez conhece a de José Carlos Mariátegui, vamos ter de esperar... muito! 91 92 Escritos bolivarianos Publica-se aqui três textos que foram veiculados separadamente na internet através de fóruns e sites jornalísticos mas que, no conjunto, podem dar uma idéia da evolução do autor em sua iniciação internáutica na Revolução Bolivariana. Seguem na ordem cronológica inversa, o primeiro deles em último lugar, não quebrando, assim, a continuidade seqüencial com o mais recente e atual (A Guerra Midiática na Venezuela), que dá título a esta coletânea. Incluímos também um quarto e último texto escrito ao final dos trabalhos de escrita e organização do presente volume, como para fechar um primeiro ciclo de pensamento e que também justifica o título da proposta editorial que deverá abrigar nossas observações sobre este novo mundo que emerge, revolucionário, ao raiar do século XXI. 93 94 O audiovisual do Novo Mundo (escrito em 7 de fevereiro de 2007) Não vivemos uma época de mudanças; vivemos uma mudança de época.1 Dziga Vertov redivivo no século 21: kino-pravda: cinema-verdade. O set é a realidade. O script é o momento-chave da revolução bolivariana na Venezuela: a work in progress de um povo latino-americano em (inédita) aliança com as Forças Armadas. Um povo armado de câmeras de vídeo: TVs e Rádios Comunitárias. Milhares de câmeras e microfones país afora registrando tudo, sem censura: kino-glass: cine-olho. Alô, meus amigos Sylvio Lanna, José Sette, Sérgio Santeiro, Elyseu Visconti, Fábio Carvalho. Alô, alô, Rogério Sganzerla, no céu. Saudemos o novo jovem cineasta caraqueño Angel Palacios. E uma nova categoria do audiovisual: o cine-documento. Puente Llaguno - Claves de una Masacre, dirigido por Angel Palacios e produzido pela Asociación Nacional de Medios Comunitarios Libres e Alternativos da Venezuela: este longa, que colhi aos pedaços na internet, restaurei sua íntegra no meu computador e pirateei cópias para DVD Player, revela não somente uma brilhante montagem audiovisual, mas, muito mais que isso, uma revolução de linguagem. Puente Llaguno é um cinema que não se propõe documentário; aquele que reúne, edita e exibe documentos. É um cinema que se propõe ser, ele próprio, o documento. A certificação, a demonstração e a prova do fato na contundência da linguagem audiovisual, com o saber do cinema e o sabor da montagem cinematográfica. Não há, no atual estágio da tecnologia, documento que possa ser mais poderoso. Sozinho, ele derruba toda a armação midiática onipresente e põe a nu a verdade que, cuidadosamente, tentam encobrir. Depois de Puente Llaguno, jornalistas, editores, altos funcionários e dirigentes das televisões e demais mídias do poder imperial não podem mais se desculpar por estarem apenas "cumprindo ordens", de serem meros empregadinhos que precisam da grana que ganham para sobreviver. Palacios os desmascara2 como mentores e cúmplices imediatos, ativos e conscientes, do pior e mais covarde dos crimes contra a Humanidade, ainda mais cruel do que os exibidos em gangsters-thrillers roliudianos: o massacre premeditado e meticulosamente planejado de pessoas que se manifestavam contra e a favor do governo nas ruas de Caracas, incluindo, na matança de militantes bolivarianos, mulheres grávidas, transeuntes sem participação nas manifestações e até partidários dos próprios assassinos. Tudo para tomar de assalto, via golpe de Estado concertado a partir de causas forjadas pela mídia, o poder constitucional e legítimo de um presidente eleito pelo povo. Parece que já vimos este filme, aliás, já vimos muitos documentários e filmes de ficção sobre este e outros golpes de Estado, mas, em verdade, nunca vimos este filme, porque só agora ele se tornou possível como autêntica realização cinematográfica. O que é velho é o golpe de 1 Rafael Correa (discurso de posse da Presidência do Equador), em ato simbólico na localidade de Zumbahua, província de Cotopaxi, em 14 de janeiro de 2007. 2 C O M P R O V A D A M E N T E: não se trata de "qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência", etc e tal, ou de documentário que possa ser contestado em sua veracidade pela possibilidade de manipulação da montagem, mas, de documento, por si mesmo, da mais absoluta eficácia probatória. 95 Estado no surrado receituário fascista-pentagônico-midiático, que, por sua essência, não permite inovações criativas. Novo é o filme de Palacios, um filme que até agora só seria possível em nossas imaginações; um filme que flagra o fato e demonstra a verdade com qualidade de documento, de prova, e que é, antes de tudo, cinema. Ele é bastante, como prova, inclusive em instâncias judiciais, para sustentar a cassação da concessão pública das quatro maiores emissoras de televisão venezuelanas (RCTV, Venevisión, Globovisión e Televen), que, juntas, atingem cerca de 90% da audiência televisiva em todo o país; suspender a publicação de alguns dos principais jornais diários de Caracas e levar a maioria de seus jornalistas, editores e dirigentes - diretamente envolvidos numa só quadrilha acumpliciada à velha guarda de chefes militares direitistas - às barras dos tribunais e das penitenciárias, imputando a eles os crimes mais hediondos que a lei possa prever contra um povo, uma nação: genocídio e traição à Pátria. Mas o poder midiático-imperial é de fato tão poderoso que vem superando até os poderes executivo e militar, quanto mais os poderes judiciário e legislativo. Os crimes de Puente Llaguno ocorreram em abril de 2002, e a maioria desses genocidas vive muito bem em Miami, alguns até na própria Venezuela, como se nada tivesse ocorrido. Quanto aos veículos de mídia que ainda insistem no mesmo papelão golpista, só agora, cinco anos depois, a RCTV perderá a concessão de sinal radioelétrico ao encerrar o seu prazo legal, uma vez que o governo venezuelano já confirmou que não o renovará. As outras emissoras permanecem no ar e, ao fim do prazo de suas concessões, deverão receber o mesmo tratamento. Porém, por mais que seja absolutamente legal e, no mínimo, complacente, a decisão do governo venezuelano provocou uma enxurrada de histerias e protestos por parte da mídia mundial e entidades com ela comprometidas, as quais, num cúmulo de hipocrisia, agora se arrogam e se pretendem como legítimas defensoras da "liberdade de expressão". "Gritem, sapateiem, façam qualquer coisa: acabou a concessão para este canal fascista" retrucou, numa linha de discurso, o presidente da Venezuela, Hugo Rafael Chávez Frías. No Brasil, o sapateio e a histeria fazem coro. Alguns trechos extraídos de um artigo do Estadão publicado em 15 de janeiro último resumem tudo: "Em vias de transformar-se num símbolo da questão democrática na Venezuela de hoje, o detalhe da vida real é que a RCTV é uma emissora com histórico respeitável e audiência fiel. (...) Não é campeã de audiência em Caracas, mas, entre as emissoras de sinal aberto, nenhuma chega a tantas cidades do interior. (...) A RCTV tem um histórico de jornalismo forte, agressivo até. Para quem chega do Brasil, é como se Diogo Mainardi e Arnaldo Jabor apresentassem todos os telejornais, fizessem todas as entrevistas e comentários, e depois só chamassem os amigos para dar opinião. Os funcionários da TV dizem que essa é uma tradição da emissora, que ajudou a construir um histórico profissional honroso de conflitos com diversos governos. Muitos observadores dizem que isso até é verdade, mas a RCTV nunca foi tão crítica como agora e é por isso, conforme visão unânime em Caracas, que o governo Chávez decidiu tirá-la do ar. (...) 'As pressões sobre os meios de comunicação sempre existiram, mas nunca foram tão fortes', diz Ivan Ballesteros, titular de um programa da rádio da RCTV, que também está condenada. 'As emissoras resistiam como podiam. A RCTV sempre foi mais pressionada, porque era a mais independente, mas nunca tivemos um governo com empenho tão claro contra a liberdade de imprensa'.(...)" (os grifos são meus) O que o Estadão chama de "detalhe da vida real" e de "visão unânime de Caracas" é o oposto daquilo que o cine-documento de Palacios nos demonstra num só filme que, de resto, derruba também a insistida pomposidade dos "históricos honrosos e respeitáveis" 96 daquela emissora. Ademais, sou da opinião de que, se é verdade o que diz o Estadão quando cita os dois maiores paspalhos da imprensa brasileira, a concessão da RCTV deveria ser cassada só por este motivo, independente de qualquer outro, em benefício da saúde (mental) pública. Mas o filme de Palacios, além de pôr a nocaute toda a farsa midiática, acrescenta contribuições ainda mais importantes para a linguagem audiovisual. Cerca de 70% do filme é feito a partir de farta documentação audiovisual obtida por TVs e Rádios Comunitárias, cinegrafistas e fotógrafos independentes. Sem esse material, Puente Llaguno - Claves de una Masacre não seria possível. Aliás, os momentos mais importantes são tirados desses registros, pois todo o trabalho da mídia imperial, em uníssono, se voltou para a deformação do fato, de acordo com o enredo por ela mesma traçado para que se justificasse o golpe de Estado. Palacios não dirigiu as centenas de câmeras e microfones que se espalhavam pelas ruas de Caracas graças ao boom de TVs e Rádios Comunitárias que o governo Chávez afortunadamente promoveu; o que ele fez foi selecionar e editar o material que, em linguagem cinematográfica criativa e contundente (suspense), restaurasse a cronologia e a plena verdade dos fatos ocorridos naquela tragédia histórica. Para mim, que, na década de 1980, junto com José Sette, trabalhei pioneiramente numa proposta muito semelhante, a qual pretendíamos concretizar no longa Liberdade Ainda Que Tardia (filme que ficou inacabado, e, só recentemente, José Sette restaurou a partir de trechos que conseguimos preservar), o filme de Palacios surge como uma resposta contemporânea às nossas visionárias intuições e estabelece-se como uma página audiovisual da história que marca - com o rigor do historiador - a mudança de época em que vivemos, preconizada por Rafael Correa, outro grande revolucionário bolivariano e atual presidente do Equador. Este artigo não tem por finalidade estudar, na complexidade de sua linguagem e fatura audiovisual, esse filme que considero obra prima e maestra de uma nova era da informação e da produção cinematográfica. Nossa proposição ao leitor é o visionamento dessa obra, que se mantém submersa no oceano de desinformação em que vivemos no Brasil, e, por conseguinte, promover o debate em torno das conquistas e vitórias pioneiras que nela se obteve para a expressão audiovisual e para o processo revolucionário que emerge em toda a América Latina. Para quem dispõe de conexão internet em banda larga, é possível visionar Puente Llaguno Claves de una Masacre (disponível em 5 partes seqüenciadas) no seguinte endereço: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=44599 97 98 O Pacto do Novo Mundo (escrito entre 25 de maio e 19 de junho de 2006) Este pequeno ensaio foi escrito com uma certa angústia. Comecei-o em 25 de maio último provocado pela entrevista coletiva de Hugo Chávez na noite do dia anterior, na qual ele propôs a idéia genial do "Pacto del Nuevo Mundo". Ao dá-lo por terminado agora, em 19/6/2006, a angústia é maior. Que as elites latino-americanas submissas ao império neoliberal (para mim, uma atualização do nazi-fascismo) desprezassem a idéia, tudo bem. É só o que podemos esperar dessa espécie de hominídeos misantropos. Mas sempre me é difícil, embora não surpreendente, constatar semelhante desprezo por parte das chamadas esquerdas. Ao varrer as páginas da imprensa, a "grande", a alternativa, a de resistência, e outras fontes interessadas, em nosso continente, na busca da repercussão sobre aquela fantástica proposição do comandante Chávez, não só não encontrei repercussão nenhuma, negativa ou positiva, como percebi o agravamento de um equívoco crônico: o preconceito de certos jornalistas e autores que se auto consagram como procuradores do pensamento engajado, rebelde e revolucionário. Na verdade, formam eles uma esquerda careta, burra, bitolada, que é aceita como bem pensante pelas elites, e por isso é a que mais tem espaço de publicação. No caso de Chávez, revelam-se no preconceito com o criollo, o índio, o chollo, o mestiço, o homem do povo. É também o preconceito neurótico com a alegria, a criatividade, a ousadia e a vanguarda. Para essses falsos monges da ideologia só é revolução o que está estabelecido em cânones encartilhados nas interpretações mais bizarras e simplórias dos "dez dias que abalaram o mundo". Números macroeconômicos, cifras, decretos laborais, discursos doutrinários, palavras de ordem, informação censurada, burocracia, repressão policial, ritos sumários e outros itens da tradicional receita são, para eles, indispensáveis à caracterização de um processo revolucionário. Não se fazendo a conquista libertária na rigidez ortodoxa e dogmática que preconizam (o que, aliás, a tornaria impossível, ou não libertária), se juntam à mídia reacionária e tacham-na de "populismo". E assim caminha a Humanidade. Já vi esse filme. Brizola e o "socialismo moreno" também foram vítimas do mesmo desprezo, dos mesmos preconceitos. Quanto a nós, os independentes, temos de lutar ao lado do verdadeiro revolucionário latinoamericano - o homem do Equador, o homem do povo - e procurar fortalecê-lo na construção de sua obra, para evitar que ocorra com Chávez o que ocorreu com Brizola. Só espero que a angústia que me ocupou durante esta redação - uma espécie de solidão por não ter como citar ou contestar uma boa opinião publicada sobre o tema, acrescida pela decepção de certas opiniões encontradas na pesquisa que não merecem citação ou contestação - não tenha prejudicado a qualidade das idéias que procuro expor. Mas, por não ser nunca um ensaio acadêmico e formal, duas "qualidades" que abomino em qualquer escrito, confio na agilidade intelectual do leitor que se ocupará em percorrer estas linhas para recompor minhas falhas e compreender-me no que nelas há de substância. Brasil: o país da fantasia Do ponto de vista político-continental, o Brasil é o país da fantasia. Já se vão mais de quarenta anos que rompemos com a nossa própria nacionalidade e quase doze que perdemos o traçado da História, erigindo um muro de preconceitos que nos separa de nossos vizinhos latino-americanos. Entre todos os países sul-americanos que foram assolados por regimes títeres de Washington, o Brasil resta entre os poucos que não 99 comemoraram o fim dessa ditadura.3 FHC, Lula e respectivos petucanos tomaram o bonde errado e seguem inelutavelmente ao abismo em que termina os maus caminhos do neoliberalismo. Lá, tal como seus pares ideológicos, serão sepultados na vala comum da História - aquela que, nas portas do Inferno, Virgílio apontou a Dante como a que recolhe as almas dos que "pelo mundo transitaram sem merecer louvor ou execração", e disse: "deles não cogitemos: olha, e passa." "Atrás enorme multidão surgia, "tantos que eu não podia imaginar "tivesse a morte aniquilado um dia." (Inferno, III-55. Trad. Cristiano Martins) As ações, as energias, os interesses e os pensamentos dos brasileiros se alienam do nosso continente e passam o tempo irresponsavelmente delirando por festejos no Palácio de Buckingham, por reconhecimento na Sorbonne e em Coimbra, pela dolce vita burguesaeuropéia ou pelo consumismo pequeno-burguês de Miami e NY. Nossa imprensa é diligente em nos pôr a par de tudo que devemos saber. Daqui acompanhamos as eleições municipais na Inglaterra e as legislativas na Itália, nos pormenores. As cotações das bolsas de NY, Londres e Tóquio nos são fornecidas em rede nacional, de hora em hora, para que se não corra o risco de sermos surpreendidos com uma repentina alta ou uma catastrófica queda. Da mesma forma, nos mantemos rigorosamente a par das mínimas variações do dólar, do euro e do yen. Nos fins de semana, acompanhamos Bush em seu helicóptero, quando ele se dirige a Camp David, para agradecer-lhe pelo árduo trabalho que realiza em prol da Humanidade e lhe desejar bom repouso e boas partidas de golfe junto a seus cães de estimação. Nossos artistas buscam prêmios em Veneza e em Kassel. Nossos bailarinos sonham com o Royal Ballet of London e com o Ballet Bolshoi de Moscou. Nossos músicos, em ser editados por selos Deutsch, Sony, EMI-Odeon. Nossos sucessos literários se medem por índices de venda nas livrarias de Paris. Nossos atletas envergam uniformes com slogans em línguas estrangeiras. Nossos cineastas disputam, sôfregos, o almejado Oscar; não vemos a hora de aplaudir o primeiro Prêmio Nobel brasileiro, ou de louvar o primeiro santo nacional canonizado pelo Vaticano - mas mantemos sempre vivas e acesas as chamas dessas três esperanças. E de tudo exportamos, com o fervor e a generosidade mais pródiga que se possa conceber: artistas, ferro, atletas, nióbio, eletricistas, manganês, pedreiros, água mineral, motoqueiros, soja, crianças, urânio, maestros, camisetas, cientistas, assaí, putas, ouro, veados e infinitos etcéteras. Tudo a "preço de cascalho": a banana encareceu e perdeu lugar no dito popular. Por aqui ficamos com a miséria-a-zero, o analfabetismo irredutível, a mortalidade infantil e juvenil em alta, a criminalidade ascendente, a corrupção recordista mundial, a Amazônia entregue às transnacionais, às ONGs e aos pastores protestantes, e o programa de auditório de imbatível audiência. E as novelas, não podemos nos esquecer das novelas! Estas, sim, junto com o futebol em época de Copa, são hoje os nossos maiores orgulhos nacionais. Pobre Pátria! De bobeira, catatônica Olhando para o mundo 3 No exato momento em que escrevo isto (25/5/2006), vejo pela TeleSur a Plaza de Mayo de Buenos Aires lotada com mais de trezentas mil pessoas ouvindo a linda voz de Mercedes Soza, no evento em que se comemora o terceiro ano do fim da ditadura militar e subsequentes governos neoliberais. Para os argentinos, o fim do regime de exceção se deu com a posse de Nestor Kischner na Presidência da República Argentina. 100 De frente para o nada, De costas para si mesma O Renascimento de Simon Bolivar Enquanto isso, o continente sul-americano estremece, se une, se fortalece, se mobiliza e se empenha com vigor inédito para o renascer de um gigante histórico: Simon Bolívar. É do conhecimento geral a saga desse gênio "Libertador das Américas", nascido em Caracas e criado por uma escrava negra, e que empolgou os paises andinos e equatorianos no início do século XIX, tendo ao lado os generais Sucre e Santa Cruz, e pondo em polvorosa a coroa imperial espanhola. Libertou o Peru, o Equador, a Colômbia, a Venezuela, criou a Bolívia e clamava pela união federativa sul-americana que se fizesse capaz de enfrentar a união norte-americana, a qual era fundada com propósitos imperialistas declarados.4 E porque não fora obtida aquela união, ao imperialismo espanhol suceder-se-ia o imperialismo inglês, do qual seria derivado o norte-americano, que ainda hoje atormenta a região e o mundo inteiro. Historiadores vão argumentar que, desde a morte de Bolívar, essa união tem sido por diversas vezes tentada, sem sucesso. Pois eu ousaria dizer que só agora tornou-se historicamente viável o renascimento do bolivarianismo como doutrina aplicável ao planejamento estratégico continental. Por quê? A tríade latino-americana Hoje, 26 de maio de 2006 - enquanto Lula e o presidente francês Jacques Chirac olhavam para o céu assistindo às evoluções da nossa Esquadrilha da Fumaça, e a imprensa nacional destacava as escaramuças na capital do longínquo Timor Leste -, na região cocalera de Chapare, no interior da Bolívia, em meio aos aplausos de mais de 50.000 agricultores e populares, Hugo Chávez, Evo Morales e Carlos Lage (vice-presidente de Cuba, representando Fidel Castro), em reunião de cúpula tripartite, formalizaram o Tratado de Comercio entre los Pueblos (TCP), como resposta ao TLC (Tratado de Livre Comércio com os EUA) e dentro dos propósitos da recém-criada ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas), também uma resposta à malfadada ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), criada e imposta à América do Sul pelos EUA, mas que foi definitivamente detonada por Hugo Chávez na reunião de cúpula de Mar Del Plata, no final do ano passado. No seu discurso em Chapare, Hugo Chávez informou que o evento estava sendo transmitido ao vivo, pela TeleSur, para todos os países das três Américas, do Canadá à Terra do Fogo (não disse que a única exceção era o Brasil), pelas repetidoras da emissora. Mas não se tratava aquele evento de apenas um ato político de mídia ou de promessas para o futuro. Na verdade, o evento oficializava a inclusão da Bolívia num processo de cooperação internacional que vem sendo posto em prática por Cuba e Venezuela, dentro da doutrina da Revolução Bolivariana. Essa revolução é liderada e concebida ideologicamente por Hugo Chávez e é aceita por Fidel Castro, numa demonstração de grandeza e sapiência 4 Doutrinas de Thomas Jefferson, George Washington e James Monroe ("a América para os americanos", ou melhor, "a América para nós"). 101 raras no mundo político, como sucessora e continuadora da revolução cubana. Um dos característicos notáveis desse processo, tenho percebido, é: primeiro fazer; depois, falar. Naquele ato, Carlos Lage anunciou a entrega, sob coordenação e supervisão de mestres e técnicos cubanos, de 30.000 salas de aula distribuídas por todo o território boliviano, prontas e equipadas com modernos recursos de tecnologia, incluindo computadores, televisores, projetores audiovisuais e cartilhas impressas, como parte de uma infra-estrutura de ensino básico e fundamental (Missão Robinson) que tornará a Bolívia "território livre de analfabetismo" num prazo de 30 meses. Ressalte-se que o conceito de alfabetização exigido pela Unesco não se restringe às meras capacitações de o alfabetizado assinar o nome e ler avisos e pequenos letreiros, mas, sim, o de capacitá-lo para a composição e a interpretação correta de textos corridos. Já a Revolução Bolivariana pretende, no caso dos indígenas e de outras etnias, que a alfabetização se faça, além disso, bilíngüe, habilitando o alfabetizado a ler e escrever na língua oficial do país e na sua língua materna, sem imposições culturais nos conteúdos dos recursos didáticos, que devem ser produzidos em conformidade com as culturas específicas a cada grupo étnico, sempre em atitude de respeito e elevação delas, e com a participação de educadores nativos. Lage anunciou também a entrega, sob coordenação e supervisão de médicos e doutores cubanos, de 20 centros assistenciais de saúde completamente equipados para o atendimento das necessidades da medicina moderna - preventiva, curativa e emergencial - em nove departamentos da Bolívia, incluindo o concurso de 600 médicos cubanos para o atendimento dos indígenas5, e de 4.777 bolsas concedidas a bolivianos que já estão estudando medicina e outras disciplinas em universidades cubanas. Esses dados refletem, em menor escala, a cooperação que já se desenvolve entre Cuba e Venezuela, em que atuam mais de 20.000 médicos cubanos, e que teve (quem?), ano passado, o reconhecimento da Unesco como "território livre de analfabetismo" (o segundo da América Latina, depois de Cuba), o qual requer uma taxa de quase 100% de alfabetização comprovada e registrada em toda a população do país. O documentarista norte-americano John Pilger, que andou filmando na Venezuela nos últimos anos, dá o seguinte depoimento: "Essa proeza deve-se a um programa nacional, chamado Missão Robinson, destinado a adultos e adolescentes que foram privados de educação escolar por causa da pobreza. A Missão Ribas vem dando a toda gente uma escolaridade ao nível do secundário, chamada bacharelato (os nomes de Robinson e Ribas referem-se a líderes da independência venezuelana do século XIX). Conhecidas, tal como muitas outras coisas aqui, em memória do grande libertador Simon Bolivar, por 'bolivarianas' ou populares, apareceram universidades que divulgaram, como uma pessoa me disse, 'tesouros do espírito, da história, da música e da arte que nem sabíamos que existiam'. Com Hugo Chávez, a Venezuela é o primeiro grande produtor de petróleo que utiliza as receitas do petróleo para libertar o povo."6 Por sua vez, poucas horas depois do evento de Chapare, em cerimônia no Palácio Quemado em La Paz, repleto com a presença de todas as autoridades de primeiro e segundo escalão dos dois países, e também transmitida ao vivo pela TeleSur, a Venezuela oficializou com a Bolívia nada menos de 207 tratados de cooperação que abrangem quase todas as áreas da 5 Segundo a Econoticia Bolivia, em 90 dias de atuação em território boliviano os médicos cubanos já atenderam mais de 450.000 pessoas, realizaram 7.300 cirurgias e salvaram a vida de 810 pacientes. 6 Pilger, John; Venezuela: a extraordinária ascenção de uma verdadeira democracia - trad. Margarida Ferreira; www.resistir.info (23/5/06). Original encontra-se no The Guardian (http://pilger.carlton.com/print) 102 produção agrícola e industrial e da infra-estrutura estatal, em especial às de produção e desenvolvimento de tecnologias energéticas e petrolíferas, todos eles já em execução desde a posse de Evo Morales, em janeiro deste ano. Para levá-los a cabo, Caracas criou um fundo de 100 milhões dólares, e os dois governantes assinaram outros cinco compromissos de crédito e quatro de pesquisas conjuntas. A Venezuela investirá também um milhão de dólares na construção de uma fábrica de farinha de coca e concederá 24 milhões de dólares em créditos a pequenos produtores de coca, soja, café e leite, além de 5.000 bolsas a jovens bolivianos que já estão estudando em universidades da Venezuela. É admirável em Chávez a sua obsessão pela História da América Latina, e mais admiráveis os conhecimentos que dela demonstra ter, sem sombra de jactância ou de afetação pseudointelectual. Os discursos de Chávez, sempre longos e despreocupados com a pressa ou com as aflições dos estressados pelo relógio conta-tempo, são recheados de verdadeiras aulas de história e geografia latinoamericanas, que as platéias sorvem embevecidas. Em Chapare, ele foi à nossa pré-história e dissertou, com fluência e domínio da matéria, sobre os sistemas políticos dos Incas e Aymaras, defendendo a tese de que eram sistemas socialistas avançadíssimos. A impressão que ele nos passa, nessa relação intensiva e radical que estabeleceu com a Bolívia para o reerguimento dela enquanto nação soberana, livre e poderosa, é a de que, no seu pensamento estratégico-ideológico, a Revolução Bolivariana só prosperará se o Estado criado e constituído por Simon Bolívar prosperar. E que se não pense ser Evo Morales mero cupincha de Chávez, como quer dar a entender a imprensa neoliberal, a brasileira inclusive. Muito pelo contrário, Morales demonstra uma invulgar personalidade de estadista e uma autonomia surpreendente diante do gênio de Chávez. Em nenhum momento dos dois grandes eventos de hoje, em Chapare e em La Paz, que assistimos na íntegra (via internet) em quase seis horas de transmissão, só interrompida pelo translado de um local para o outro, Morales pareceu-me menor que Chávez. E para isso não foi preciso que Chávez se diminuísse ou se acanhasse. Aliás, a mesma impressão tivemos de Carlos Lage, que não conhecíamos, e que nos fez despertar a noção de já estar em andamento a sua sucessão a Fidel Castro. A evidente liderança de Chávez no processo da Revolução Bolivariana existe nos planos doutrinário e ideológico, pois é ele sem dúvida alguma o lançador da idéia neste momento histórico, o pioneiro em sua prática e o que mais domina a sua teoria. Mas, no plano político, os três líderes se igualam em estatura e nada ficam a dever uns para os outros, preservando-se em cada qual, evidentemente, suas próprias características. Lage é mais objetivo e incisivo na sua formação revolucionária cubana, marxista-leninista, e traduz em seu discurso uma competência estraordinária de executivo realizador e empreendedor. Morales é um radical na acepção mais plena dessa palavra, aliás, mencionada por Chávez, ao citar Eduardo Galeano em seu discurso: ser radical é ser "de raiz". Morales não se posiciona como um intelectual, mas também não poderá jamais ser considerado intuitivo, primitivo ou naif. É comandante inato e muito bem preparado teórica e intelectualmente para o comando de Estado, para o qual demonstra notável competência, muito mais expressa na ação política e executiva que na retórica. Além disso, é secundado por Álvaro Garcia Limera, seu vice-presidente, que me pareceu ser, além de intelectual engajado, um frequentador das mais altas esferas do saber. O que fica claro e transparente na atuação pública dos três líderes e seus respectivos staffs é a independência, a integridade e a honestidade deles. Sem rabos presos, mutretas e passados duvidosos por encobrir ou disfarçar, desatam com a mesma potência e contundência, cada um a seu modo mas em uníssona harmonia, um discurso convincente, anti-imperialista e corajosamente posicionado para o confronto com quem quer que venha a tentar impedir a ação revolucionária e libertária que comandam e desenvolvem junto aos seus próprios povos, e em benefício de todos os povos latino-americanos. 103 Dois dias antes, em 24 de maio, acompanhamos, por quase quatro horas, uma entrevista coletiva que Chávez concedeu em Caracas a jornalistas latino-americanos. Infelizmente, não pudemos registrar a presença de nenhum brasileiro... O Pacto do Novo Mundo Na entrevista, Chávez expôs didaticamente, com auxílio de mapas (mapa-múndi e da América do Sul), a sua concepção de um sistema pluripolar de poder mundial. Nesse sistema, ao invés de um ou dois pólos hegemônicos de poder, o mundo teria vários pólos de poder não hegemônicos, entre os quais ele aponta como já configurados os do Japão, da China, da Anglo-EUA, da Europa, da Rússia, e, em formação, os pólos da Ásia, da África, do Oriente Médio, da Índia e da América Latina. Para Chávez, a sobrevivência do planeta requer destes pólos que busquem ser complementares pela preservação das próprias características - naturais, culturais, geográficas e históricas -, e não a hegemonia global, com a imposição de um deles por sobre a destruição da identidade dos demais. É o que ele chamou, em escala mundial, de Pacto del Nuevo Mundo, escrevendo-o como título do mapa-múndi que exibia aos repórteres e às câmeras de TV, depois de envolver com círculos as regiões que para ele são demarcadoras dos diversos pólos de poder. Em nível regional, o Pacto corresponderia ao sonho de Bolívar, reunindo todas as nações de línguas latinas do Caribe e das três Américas, a nossa América Latina, num processo intenso de integração e colaboração internacional. Valendo-se da complementaridade de recursos naturais, econômicos e culturais de seus diversos países, tal processo iria fortalecêlos, uni-los e criar um bloco continental capaz de se nivelar, em poder, a quaisquer outros do planeta - e com eles negociar de igual para igual. Para obter essa integração continental e cultural, Chávez empenha todo o seu carisma e poder conquistados no bem sucedido governo da Venezuela, cuja presidência ocupa há sete anos consecutivos com um recorde mundial de dez eleições vitoriosas. Diga-se a favor de Chávez que todas elas foram vitórias democráticas plenas, irrefutáveis e contra o poderio midiático imperial-neoliberal, entremeadas por tentativas de golpe tramadas pela CIA e o Pentágono. Numa delas (11/4/2002), chegou a ser seqüestrado e preso, com ordem para ser fuzilado acatada por mais de 100 oficiais das Forças Armadas venezuelanas, entre eles quase todos os generais e almirantes da ativa, ordem que não obteve a obediência de um só pelotão de soldados para executá-la. E os regimentos comandados pelo atual ministro da Defesa, alm. Ramón Ferreira, e outros chefes militares patriotas, acabaram prendendo os golpistas e restituindo o poder ao presidente constitucional.7 O que Chávez tem feito na Venezuela é algo realmente extraordinário, em qualidade e quantidade, que não cabe resumir neste ensaio.8 Mas, quanto à política externa - que é um dos focos deste ensaio a partir das mais recentes manifestações de Chávez -, ele relacionou em sua entrevista coletiva, no rol de atitudes 7 Importante, extenso e detalhado estudo sobre o papel da mídia nas tentativas de golpe para derrubar Hugo Chávez, intitulado Los Documentos del Golpe, foi publicado pela Fundación Defensoría del Pueblo, Caracas, cuja versão digital pode ser baixada no Portal do Governo da Venezuela (www.gobiernoenlinea.ve). 8 Recomendo a leitura de Cházaro, Ernesto Fidel de; Venezuela: Buscando la Revolucion Bolivariana; disponível no site www.rebelion.org. 104 imediatas, os encontros de Chapare e La Paz, dali a dois dias, que consolidariam o tríplice acordo Cuba-Venezuela-Bolívia (em andamento desde a posse de Evo Morales e com marco definitivo em 1º de maio, apoiando a nacionalização do petróleo e do gás boliviano), o apoio à nacionalização semelhante no Equador (com a Venezuela oferecendo o refino gratuito de petróleo do Equador, para que o país não fique sem os derivados que não produz) e o apoio ao Exército Brasileiro a nor-noroeste da Amazônia brasileira, com o fornecimento de combustíveis que viabilize operações conjuntas das forças venezuelanas e brasileiras na região. Chávez acena também para o Peru (onde apóia declaradamente o candidato Ollanta Umala, que parece querer seguir os passos de Morales)9, para a Colômbia (de onde recebe sinais discretos de Uribe, agora reeleito), para a Argentina (onde tem sido bem recebido por Kischner), para o Uruguai (onde obtém a mesma resposta de Vasquez), para o Chile (que não se manifestou) e para o Brasil (onde Lula, enciumado com a liderança de Chávez e enrolado com vários rabos presos, finge-se de morto). Aos países andinos do norte da América do Sul, Chávez propõe a criação de uma Confederação Bolivariana Andina para constituir um pólo de força continental que ele chamou de "Arco Andino", desenhando-o no mapa, em substituição à Comunidade Andina das Nações (CAN), segundo ele, inviabilizada pelos EUA e os TLCs firmados com Peru e Colômbia, que levaram Chávez a retirar a Venezuela da Comunidade. Nas relações com os países ao sul, ele comunicou o ingresso da Venezuela como sócio pleno do MercoSul, ingresso este que foi oficializado naquele mesmo dia. Com os países sócios Chávez pretende levar a cabo uma série de programas de cooperação internacional nos próximos quatro anos, a fim de consolidar o que ele chamou de "Cruzeiro do Sul", consistindo numa cruz, por ele desenhada no mapa, formada pelas linhas de união das capitais Caracas-Buenos Aires (Norte-Sul) e La Paz-Brasília (Oeste-Leste). Num plano mais amplo, à maneira da iniciativa genial da TeleSur, Chávez anunciou a criação de um banco, se não já o criara, o BancoSur, que operará sem caráter monetarista, com interesses sociais antes que os econômicos, e que tem por objetivo substituir e dispensar o FMI em nosso continente. Anuncia também a construção de um gasoduto de dimensões continentais, o Gasoduto Sur, ligando a Venezuela até a Argentina, passando pela Colômbia, Brasil, Bolívia e Paraguai. Neste extenso e fulminante leque de ação em política externa, que se intensifica e se realiza sob a repulsa dos setores reacionários que se incrustam nos poderes e nas economias de todos os países afetados e que provoca histeria midiática, Chávez apóia-se em dois fatores históricos fundamentais, um interno e outro externo: - a popularidade de que desfruta hoje em seu país, em quase todos os segmentos da sociedade, graças ao sucesso dos empreendimentos e das políticas conquistados pela Revolução Bolivariana na Venezuela, que cresce a 9,4% ao ano, quase sem inflação, e com os índices sociais e econômicos levados a patamares invejáveis e melhorando a cada dia; - o beco sem saída em que se encontra hoje a política externa dos EUA, que, por seu perfil escancaradamente imperialista e belicista manifestado nos últimos anos, só conseguiu o antagonismo com o mundo e o agravamento da crise, já por si delicada ao extremo, do 9 Antes de terminar a redação deste ensaio ocorreu o segundo turno das eleições no Peru, com a derrota de Umala, apesar de ter ganho em 15 dos 24 departamentos do país. Umala foi derrotado pelo neoliberal Alan Garcia, que foi apoiado pela grande mídia, pelo atual governo neoliberal de Álvaro Toledo e por todas as forças reacionárias do Peru, incluindo as empresas transnacionais e os expatriados Fujimori e Montesinos. 105 comércio internacional de petróleo e energia - além de muita destruição, calamidades e matanças. O 7º Regimento de Cavalaria As elites conservadoras e reacionárias de países latino-americanos sempre menosprezaram as investidas progressistas e revolucionárias que, ao longo da história, vêm se produzindo com frequência para tentar eliminar as iniquidades sociais, econômicas e políticas que assolam os países do nosso continente linguístico. Isto porque sempre contaram com a ação de Washington e, na pior das hipóteses, da sua bem treinada e bem equipada "máquina mortífera" - que o cinema roliudiano iconizou, ao som da corneta do 7º Regimento de Cavalaria, sob o comando do diligente general Custer, chegando na última hora, e acabando com a ousadia dos indígenas que vivem insistindo na defesa de suas terras e nações contra os "benefícios da democracia e do progresso". Acostumaram-se elas de tal maneira a essa "estratégica" proteção, que conta também com um apoio midiático muito bem amestrado e bem equipado, que não perceberam que o general Custer e sua cavalaria já estão naquele sítio de onde não mais sairão. Mr. Bush, por sua vez, vive a situação de quem caiu num poço de areia movediça: qualquer movimento um pouco mais brusco que faça o afunda mais. E a areia já vai pelo pescoço. Em fevereiro de 2003, a revista Caros Amigos publicou uma entrevista que fizemos com o cientista Marcello Guimarães, uma das cabeças brasileiras mais bem informadas sobre energia, em que ele diz que a invasão do Iraque iria acontecer e era inevitável, porque os EUA precisavam manter os preços do petróleo em "25 dólares o barril por mais uns dez, vinte anos".10 Sabendo-se que hoje, passados apenas pouco mais três anos da invasão, o preço do barril de petróleo chega a tocar os 75 dólares, portanto o triplo do que se previa, temos nestes números a dimensão exata e a prova mais contundente da derrota dos EUA no Iraque. De modo que basta uma palavra mais topetuda de Mr. Bush que possa sugerir nova aventura homicida contra países produtores de petróleo para o preço do barril oscilar e colocar Ms. Jane e Mr. John Doe histéricos com o preço da gasolina e putos com o Tio Sam, e eis porque já não querem ouvir ladainhas do tipo "países do mal" e "terroristas". Aí reside o motivo pelo qual Chávez, sem que nada lhe aconteça, pode classificar Bush de "un criminoso que necesita ser punido en tribunales internacionales", "un asesino", "un genocida" e outros termos mais pesados, se é que são possíveis, tendo por cenário o Big Ben de Londres, como vimos pela TeleSur alguns dias atrás, numa entrevista que ele concedeu a jornalistas europeus, em plena cidade de Blair, e na qual foi várias vezes aplaudido de pé, em especial quando se referia a Mr. Bush naqueles termos. Chávez e o petucano O que digo nesta seção não é novo e é com base em fatos divulgados e bem conhecidos. FHC e Lula e respectivos séquitos petucanos (termo de concisão que devemos ao sociólogo Gilberto Vasconcellos) convivem num mesmo espaço ideológico desde que foram criados nos laboratórios neoliberais de Matrix. Suas diferenças se reduzem às origens de classe: os 10 Drumond, Mario. A salvação da lavoura (entrevista com Marcello Guimarães); in Caros Amigos, ano VII nº 71; São Paulo : Casa Amarela; fev/2003; pags. 18-21. 106 tucanos, da burguesia e dos altos escalões do poder; os petistas, da pequena burguesia e dos médios e baixos escalões do funcionalismo. Nesse espaço ideológico, jamais configurado em qualquer doutrina que se possa levar a sério, o termo imperialismo ou não existe ou exprime uma idéia de inevitabilidade intrínseca à realidade e às condições terceiro mundistas, as quais não podem nem devem ser mudadas, nem sequer mencionadas. Assim, o proselitismo petucano desconhece ou finge desconhecer o termo imperialismo e passa ao largo de debates sobre suas conseqüências nefastas para os povos do mundo. O que os dois partidos e o elenco de políticos e próceres que os habitam fizeram desde o início de suas malfadadas existências, e o leitor pode contar nos dedos as raras e conhecidas exceções, foi tão somente amarrar seus rabos nos "consensos" de Washington e retocar suas duvidosas biografias com as maquiagens fáceis do marketing comercial e político. E a tal ponto o fizeram, que nem se reconhecem mais diante do espelho. Fora isto, foi cuidar cada um de seus próprios interesses e cair sobre a coisa pública, de braçadas, na disputa da migalha que lhes é concedida depois de bem cumpridos os deveres para com os patrões quanto àquilo que é substancial e de real interesse. Sempre que estão em campanha eleitoral visitam seus chefes nos EUA e fecham acordos que a mídia amestrada não divulga e suas propagandas enganosas omitem ou reservam a espaços restritos de divulgação, como foi o caso da tal "Carta aos Brasileiros", de Lula. Se eleitos, voltam aos EUA tão logo tomam posse, para submeter ao boss os nomes dos cargos principais de poder, receber ordens de nomeações e as determinações de prioridades do governo. Durante seus mandatos, obedecem disciplinados aos chamados e ordens de Washington, sempre em conflito direto com as principais promessas de campanha e com os interesses nacionais. A autonomia de seus governos reduz-se, portanto, a restritas ações beneficentes paliativas e populistas, e mesmo estas sugerem o oportunismo da compra de votos a prestações através de esmolas, dadas em espécie, camufladas de "projetos sociais", "bolsas" ou ajudas emergenciais, em que se gasta muito mais em propaganda midiática que nos proventos oferecidos. Nas esferas mais altas das decisões de governo apenas fingem participação, mas é evidente que não detêm poder de decisão, como bem o demonstrou o caso da Presidência do Banco Central do governo petista, hoje o cargo mais importante do país, para a qual Washington nomeou um tucano e fiel funcionário do Bank of Boston, que mal sabia falar Português. Suas conquistas eleitorais são todas a poder de pesado marketing eleitoreiro e com o apoio maciço dos meios de comunicação comprometidos com o neoliberalismo e a globalização, e ainda se garantem por fraudes nas apurações pelo uso absurdo, único no mundo, da "urna eletrônica", que não emite comprovação do voto e é operada em um inaudito sistema informatizado por cuja segurança e idoneidade nenhum especialista põe a mão no fogo. Por estas e outras, no Brasil faz doze anos que os sucessivos governos petucanos não constroem uma só sala de aula para o ensino público, um ambulatório ou hospital razoável (fazem uns "postos de saúde", em geral mesquinhos e ordinários, que só servem para indignar a população), uma praça de esportes que seja. Nem se fala em estradas, ferrovias, programas de energia, de transportes de massa ou outros projetos de grande escala, a não ser como promessas a um futuro distante e sabidamente inviável, com claras intenções de enganação midiática. Pelo contrário, trataram de desmantelar e privatizar (doar) toda a infra-estrutura que a duras penas foi implantada no país desde os governos Vargas e que sobrevivera à ditadura militar, junto às que restaram como únicas contribuições da ditadura à nacionalidade. Quanto à economia, são declaradamente entreguistas e de tal maneira 107 colonizados que nem se vexam dos fracassos retumbantes que vêm acumulando nestes doze anos, sob qualquer método de avaliação. Neste mesmo momento, somos informados de que enquanto a imprensa diverte o público com o festival da corrupção (ou o concurso de quem é o político mais corrupto), e depois o entreterá com a Copa do Mundo, uma guinada ainda mais à direita na economia estará sendo comandada pelo presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, o intocável, e com certeza o mais confiável representante dos verdadeiros governantes do Brasil. A saída do ministro da Fazenda, Antonio Pallocci, se deu porque ele já cumprira o papel de fachada, agora desnecessário à execução do novo projeto. O sangue e o suor do povo brasileiro serão sugados mais ainda, no centralismo dos bancos, nas remessas de lucros e dividendos, e na traição à economia nacional e à segurança trabalhista e previdenciária dos brasileiros, para pagar as contas astronômicas das aventuras homicidas de Mr. Bush. Chávez sabe de tudo isso. Sabe que Lula é fraco e aprisionado a um passado que tem de ser mantido em sigilo e sempre retocado pelo confuso e mal escrito romance de ficção torneiro mecânico-sindicalista. Além disso, está preso a um presente e a um passado recente que dependem do silêncio de muitos "companheiros", fato que enfraquece qualquer governante, ao ponto da inanição. Mas Chávez se aproveita da ficção e da fraqueza que envolvem o nosso pseudo presidente para colocar em xeque o verdadeiro poder que se esconde por detrás da fachada populista de Lula, a fim de mantê-lo acuado e sem ação, e de conduzir, sem entraves e sem problemas com o Brasil, o processo libertário da América Latina pela Revolução Bolivariana. Ele nunca perde a oportunidade de incluir Lula em suas alianças e propósitos revolucionários, e o faz de uma forma tal que Lula fica desconcertado por não poder negar de público o envolvimento com as idéias de Chávez, e ao mesmo tempo ter de negá-lo na prática e secretamente perante seus patrões. O que talvez Chávez ainda não saiba é que o Brasil perdeu seu último líder "bolivariano" há poucos anos: Leonel Brizola. Não deve saber também que os Cieps de Darcy Ribeiro e Brizola, de 1982-85, superariam as missões Robinson e Ribas (sem diminui-las, em hipótese alguma) em criatividade e eficácia libertadora. Se não tivessem sido sabotados pelas políticas petucanas em todas as instâncias de poder, executivas, legislativas e midiáticas, municipais, estaduais e federais, teriam demonstrado sua eficácia e dado início à Revolução Bolivariana, com outro nome, antes de Chávez consolidá-la na Venezuela com a superação do golpe que tentou derrubá-lo e matá-lo. Creio que se soubesse disso, Chávez teria chamado Niemayer e os auxiliares de Darcy e Brizola que atuaram no projeto, e incorporado os Cieps à sua revolução. Ainda há tempo, e tem tudo para fazê-lo. Chávez é hoje para o seu país e a América do Sul o que Brizola poderia ter sido para o Brasil e o continente. Por ter negado a liderança a Brizola e por ter embarcado na canoa furada do neoliberalismo, o Brasil acabou perdendo a condição de liderança política do continente sul-americano, que sempre fora aceita como natural e nem seria contestada. A foice e o martelo Pode parecer estranho, mas é a História que nos assegura: são da militância ortodoxa de esquerda - em particular quando quadros tidos por mais engajados e preparados alcançam espaços de poder real - os mais graves erros e entraves interpostos aos caminhos libertários dos povos do mundo. 108 São muito conhecidos alguns dos principais equívocos dos quadros stalinistas, desde a morte de Lenin, em 1924, até a derrocada da União Soviética, nos anos 1980. Mas o maior deles é mantido nas sombras da história: o da traição, pelos soviéticos, ao Pacto de Teerã, firmado publicamente em 1942 e com ampla repercussão mundial, entre Stalin, Roosevelt e Churchil. Se o leitor nunca ouviu falar desse episódio importantíssimo da história política universal, ou se dele sabe apenas que foi o que deu a aliança entre Rússia, EUA, Inglaterra, países aliados e resistências de países invadidos pela Alemanha, é porque a memória mais importante e fundamental daquele Pacto nunca interessou a nenhum dos dois lados do pósguerra (guerra fria) - os comunistas soviéticos e os capitalistas do eixo Londres-Washington - e menos ainda interessaria ao capitalismo neoliberal, que hoje se pretende global, e às pseudo esquerdas que fingem combatê-lo. No Brasil, foi o escritor e filósofo Oswald de Andrade quem melhor identificou e discutiu a questão, e foi talvez o único intelectual brasileiro a enfrentá-la ao combater o equívoco das esquerdas em polêmicas colunas de jornais. Foi essa traição a razão de seu desligamento do PCB, em 1945, ao constatar que os principais quadros do partido seguiriam o oportunismo dos dirigentes comunistas em Moscou. Alguns daqueles textos de Oswald publicados em edições recentes de sua obra são praticamente as únicas fontes que ora possuímos, já que não nos é possível o acesso a todos os que com certeza escreveu sobre o assunto. A crédito de Oswald, pelo que sei, temos que foi ele o primeiro pensador de esquerda que previu a derrocada "espetacular" da URSS. Num ensaio de 1949, entre outras análises precisas que a história vem a todas consagrando, Oswald sentenciou que ela "errou na sua trilha revolucionária e pagará espetacularmente os seus desvios." E mais: "(...) a URSS, levada pela mística da ação, perdeu o impulso dialético de seu movimento, enquistando-o numa dogmática obreirista que lembra, em síntese, a Reforma e a ContraReforma."11 Em resumo, o que Oswald e os melhores pensadores e analistas políticos coevos enxergaram no Pacto de Teerã foi a janela histórica em que se daria a almejada vitória socialista, em escala universal, sobre o obsoleto capitalismo liberal, no momento em que seus dois maiores representantes, Roosevelt e Churchil, baixavam a guarda e reconheciam como inevitável a vitória da Rússia soviética sobre a Alemanha nazista. O pragmatismo dos dois chefes capitalistas recomendava o pacto com Stalin, uma vez que o alto investimento que fizerem no nazismo alemão de Hitler para eliminar do mapa a ameaça comunista via-se fadado ao fracasso. Eis porque era melhor negociar uma aliança com Stalin enquanto havia tempo e condições de fazê-la. Propiciava-se, pois, em Teerã, o momento de síntese da equação social que levaria o mundo ao almejado socialismo, visto assim por Oswald: "Com essa aliança, podia inaugurar-se a síntese marxista. Era preciso, porém, que fosse dada aos fatos a seguinte interpretação política: a tese capitalismo e a antítese comunismo estariam presentes na síntese. E era preciso, sobretudo, que os políticos dirigentes das três grandes potências seguissem à risca essa interpretação capaz de liquidar a luta de classes."12 Em Teerã, os capitalistas aceitavam a nova realidade na qual as nações aderentes ao Pacto por cuja aliança a derrota nazista seria apenas questão de tempo - se governariam em 11 Andrade, Oswald de; A Crise da Filosofia Messiânica - São Paulo; 1949, in Do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias; Rio de Janeiro : Civilização Brasileira; 1978, pag. 128. 12 Andrade, Oswald de; Os Caminhos de Teerã : Rio de Janeiro : Correio da Manhã : 26/3/1946, in Telefonema : São Paulo: Globo; 1996, pag. 147. 109 regimes socialistas democráticos, com Estados fortalecidos e voltados para o desarmamento e a paz mundial, tão logo se desse o fim do conflito. Na mesma ocasião, os comunistas reconheceriam o encerramento das finalidades da III Internacional Comunista (de 1917, com a implantação da Ditadura do Proletariado pela Revolução Russa) e, conforme previsto por Marx, Engels, Lenin e a própria III Internacional, dissolveriam os Partidos Comunistas a ela vinculados em todo o mundo, dando como cumpridas as suas missões históricas. Seus quadros se integrariam então a Partidos da nova ordem socialista e democrática. No plano internacional, a transição seria regida pelas lideranças comunistas, representadas por Stalin, e pelas lideranças burguesas progressistas, representadas por Roosevelt e Churchil. Nos planos nacionais, ela se daria pelo diálogo entre os dirigentes dos PCs e representantes da burguesia progressista de cada país. Entre os mais importantes articuladores do Pacto de Teerã estava Earl Browder, durante quinze anos secretário-geral do Partido Comunista dos EUA, na época um partido forte e com grande simpatia popular pela adesão a seus propósitos libertários e anti nazistas, de forças sindicais expressivas e de vários artistas e intelectuais então célebres por suas obras cinematográficas produzidas em Hollywood. Browder, além de articulador, foi o autor do principal texto de doutrina da transição discutida e pactuada em Teerã, publicada no seu livro Teerã. No Brasil, Oswald foi escalado como quadro de contato entre o PCB e representantes da burguesia progressista nacional, da qual fora membro célebre e com a qual tivera convivência muito próxima antes de se engajar na luta comunista. "Browder adquiriu uma posição ideológica de primeira grandeza com o seu livro Teerã, em que anunciava o "fato novo" do acordo entre o país socialista e as democracias progressistas e do qual havia de derivar a consequência lógica de serem dissolvidos os Partidos Comunistas ligados à III Internacional. Ele mesmo dissolveu o Partido Comunista Americano."13 As gestões de transição começaram em diversos países aliados logo após a reunião de Teerã, mas fazia-se notar a inoperância de Moscou em viabilizá-las. Ao fim da guerra, ficou patente que o Pacto fora traído quando Browder foi expulso do PC dos EUA justamente por ter extinguido o Partido, conforme pactuado. O próprio Stalin, que se declarava entusiasta do acordo, teve de ceder às pressões de seus altos burocratas, a maioria temerosos de perder privilégios e enfrentar eleições democráticas em que se veriam derrotados, pois o povo não se esqueceria de seus desmandos. Do lado capitalista, a notícia não poderia ser melhor para os inimigos do Pacto, que não eram poucos nem fracos, mas até então se viam contidos pela força política de Roosevelt e Churchil e pelo poder recém ampliado da URSS de Stalin. Com a morte de Roosevelt, ainda em 1945, a menos de um mês do fim da Guerra, a ultra-direita assumiu definitivamente o poder nos EUA e o Pacto foi para o espaço. "Como as democracias ganharam a guerra, poderia ter vencido a paz."14 Assim, a História deu uma guinada de 180º, e a janela que se abriria para a perspectiva de um mundo em desarmamento, paz e prosperidade socialista e democrática no pós-guerra se fechou e encarcerou o mundo na guerra fria, na corrida armamentista, nos muros divisores de Estados e ideologias, nas caças às bruxas, nas perseguições desenfreadas, nos neo 13 Andrade, Oswald de; A expulsão de Browder : Rio de Janeiro : Correio da Manhã : 19/2/1946, in Telefonema : São Paulo: Globo; 1996, pag. 137. 14 Andrade, Oswald de; Monólogo sobre Prestes, Tito e Browder : Rio de Janeiro : Correio da Manhã : 3/7/1948, in Telefonema : São Paulo: Globo; 1996, pag. 275. 110 colonialismos, nos golpes de Estado e nos genocídios. E até hoje o planeta e os povos do mundo pagam caro a traição dos comunistas ao Pacto de Teerã. "Para guia (direção ideológica dos PCs), só existe a posição internacionalista de Trotski, que é evidentemente a seguida por Prestes e pelos poucos adeptos sinceros que lhe vão restar, no Brasil. Sendo esta a da "revolução permanente" que nega Marx, ela só pode conduzir à guerra atômica."15 A burocracia stalinista (e seus proselitismos ortodoxos e dogmáticos) dominou a prática dos PCs a tal ponto que estes rumaram na direção oposta aos princípios que os regiam e chegaram à traição ou ao olvidamento do próprio símbolo que suas bandeiras ostentavam. Por falta de uso, a foice e o martelo acabaram se enferrujando. Em verdade, tais ortodoxias e dogmas nada mais são que clichês vazios e desgastados, utilizados apenas para mascarar o oportunismo configurado na defesa de interesses pessoais e particulares dos que ocupam espaços de poder e privilégios num statu quo qualquer, dito revolucionário. Afinal, de que valeu à URSS e aos PCs a traição ao Pacto de Teerã? Hoje, o que são eles? A toda-poderosa e gigantesca URSS do pós-guerra nada mais é do que um escombro histórico que pode ser visitado por turistas numa rua de Berlim. A maioria dos PCs tornaram-se siglas indigentes e sem votos em países do Terceiro Mundo ou uns poucos museus no Primeiro Mundo freqüentados por certos anciãos históricos, alguns dos quais importantes intelectuais, e cerrarão as portas no dia em que o último deles falecer. Mas essa história entra neste ensaio não só para ilustrar o perigo que as ortodoxias e os dogmas "de esquerda" representam ao processo libertário dos povos do mundo. Ela introduz aqui o pensamento de Oswald de Andrade, o qual, entre os que conhecemos e reconhecemos como fundamentais à nossa luta libertária, é sem dúvida aquele que mais bem alicerça a questão latino-americana e o que melhor explica o momento em que nela estamos vivendo, com o advento da Revolução Bolivariana de Hugo Chávez. "Tupy or not tupy: that's the question"16 É uma pena que Oswald de Andrade (1890-1954) e sua obra não tenham sido ainda compreendidos na devida importância e magnitude. Augusto de Campos sugere que se Oswald tivesse nascido em país de Primeiro Mundo, ele estaria hoje posicionado e aceito entre os maiores pensadores do século 20. Pensamos que, infelizmente, para reconhecer a obra de Oswald de Andrade, o Brasil e a América Latina vão perder um tempo semelhante ao que a Inglaterra e os países de língua inglesa perderam com a obra de Shakespeare: cerca de duzentos anos depois de falecido o autor. Sim, leitor, estamos comparando o valor da obra de Oswald para a América Latina e para o mundo com a de Shakespeare para os países de cultura inglesa e para o mundo. Só não podemos agora dizer por que acreditamos nisso; Oswald e sua obra são assunto de outro trabalho a que nos dedicamos, muito mais extenso, e a presença de ambos aqui se deve à última fase de sua vida/obra, quando o autor mergulhou com quase exclusividade e em profundidade no pensamento político e 15 Andrade, Oswald de; Os Caminhos de Teerã : Rio de Janeiro : Correio da Manhã : 26/3/1946, in Telefonema : São Paulo: Globo; 1996, pag. 147. 16 Do Manifesto Antropófago, in Revista de Antropofagia nº 1, São Paulo, maio/1928. 111 filosófico, em perspectiva mundial, sul-americana e brasileira. E o fez em coerência com toda a sua obra de poeta, romancista, dramaturgo, orador, ensaísta e jornalista. Desde o começo de sua obra, Oswald ocupou-se das questões culturais e filosóficas ligadas ao índio americano, em particular o amazônico (era filho de uma paraense) e à miscigenação de raças em nosso continente ("o índio é que era são; o índio é que é o nosso modelo"17). Como latino-americano, ele foi, na juventude, simultâneo e irmão, em sintonia de pensamento, em força literária e rebeldia revolucionária, a José Carlos Mariátequi ("el socialismo indo-americano"18). Na cultura universal,tal sintonia se deu com Maiakowsk. Mesmo quando, em 1930, Oswald vestiu "a casaca de ferro da revolução proletária", ao ingressar no Partido Comunista Brasileiro (PCB), numa militância que se estendeu, como já dissemos, até 1945, sua obra não perdeu a natureza e nem a força "antropofágica" de criação, e jamais caiu no engodo cartilhesco e nos proselitismos comuns aos escritores da época, fato que inclusive o estigmatizou entre os quadros do Partido. Convenhamos: para quem havia escrito que "a alegria é a prova dos nove" e que fora, sobretudo, do primeiro ao último dia de sua existência artística e literária, um criador independente, não deve ter sido nada fácil. Mas, para um intelectual como Oswald, a militância comunista fora a única saída possível num momento histórico em que o mundo se havia dividido em só duas opções ideológicas: "a de Capone e a de Lenin". Ao fim dessa penitência, ele pode dedicarse, sem patrulhamentos, aos estudos e escritos filosóficos da última fase de sua obra, cujos legados Rogério Sganzerla considerava "maravilhosamente bem escritos".19 Tudo isto torna-o, senão o único, uma raridade na extração do pensamento filosófico do século passado. Em seus estudos filosóficos, Oswald amplifica a dialética marxista e identifica na pré-história da Humanidade o matriarcado como sistema de direito do homem natural ou primitivo, que reconhecia o filho de direito materno e em que não havia o conceito de propriedade da terra, nem dos bens comunitários, nem de classes sociais, sendo portanto idealmente comunista ("já tínhamos o comunismo; a idade de ouro"20). "E tudo se prende à existência de dois hemisférios culturais que dividiram a história em Matriarcado e Patriarcado. Aquele é o mundo do homem primitivo. Este o do civilizado. Aquele produziu uma cultura antropofágica, este uma cultura messiânica. (...) No mundo do homem primitivo que foi o Matriarcado, a sociedade não se dividia ainda em classes. O Matriarcado assentava sobre uma tríplice base: o filho de direito materno, a propriedade comum do solo, o Estado sem classes, ou seja, a ausência de Estado. Quando se instaurou o Estado de classes, como consequência da revolução patriarcal, uma classe se apoderara do poder e dirigia as outras. Passava então a ser legal o direito que defendia os interesses dessa classe, criando-se uma oposição entre esse Direito, o Direito Positivo, e o Direito Natural. Sendo aquele um direito legislado, exigia obediência. Estabeleceu-se então a organização coercitiva que é o Estado, personificação do legal."21 Em seus textos filosóficos, que são muitos (e aqui nos detemos apenas em alguns trechos), Oswald observa que o matriarcado fora extinto primeiro nas latitudes mais frias do globo e, posteriormente, dizimado em todo ele, exceto na América Latina, onde o longo isolamento, a densidade e a enormidade das florestas, e os relevos íngremes e complexos dos Andes, 17 Ibid, ibdem. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana; in Revista Labor, Lima, 1928; ed. consultada: Casa de las Americas, Havana; 1963. 19 Drumond, Mario (org.); Alô Alô Rogério Sganzerla - Belo Horizonte : MDEditor; 2005, pag. 170. 20 Do Manifesto Antropófago, in Revista de Antropofagia nº 1, São Paulo, maio/1928. 21 Andrade, Oswald de; A Crise da Filosofia Messiânica - São Paulo; 1949, in Do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias; Rio de Janeiro : Civilização Brasileira; 1978, pags. 78 e 80. 18 112 impediram o extermínio, eis que, seria justamente aqui onde remanescia em escala substancial e possível de ser observado, ainda que decadente por circunstâncias diversas e já históricas. Oswald vê na carta Mundus Novus, de Vespúcio, o documento que registra, do ponto de vista humanista, o primeiro contato do patriarcado messiânico com o matriarcado antropofágico, ambos em suas plenitudes. Em suma, a dialética de Oswald demonstra com irrefutáveis argumentos e sustentada em ampla documentação histórica e erudita que, tendo por tese o matriarcado (natural e comunista) e por antítese o patriarcado (civilizado e capitalista), o mundo tende a ingressar numa era em que se produz a síntese dos dois sistemas num terceiro e novo sistema, que ele chamou de "Novo Matriarcado", ou "Matriarcado Social", onde viverá o filho de direito social na nação (socialista) que responderá como "mãe" do "homem natural tecnizado". Indo mais longe, Oswald prevê o retorno à ausência de Estado e leva a sua extrapolação até o fim dos tempos: "No mundo supertecnizado que se anuncia, quando caírem as barreiras finais do Patriarcado, o homem poderá cevar a sua preguiça inata, mãe da fantasia, da invenção e do amor. E restituir a si mesmo, no fim do seu longo estado de negatividade, na síntese, enfim, da técnica que é civilização e da vida natural que é cultura, o seu institnto lúdico. Sobre o Faber, o Viator e o Sapiens, prevalecerá então o Homo Ludens. À espera serena da devoração do planeta pelo imperativo do seu destino cósmico."22 Para este ensaio, é importante relevar que no pensamento de Oswald essa revolução deverá se dar primeiramente num contexto sul-americano, única plataforma continental onde estão ainda presentes os elementos que nos conduzirão à síntese dialética entre o matriarcado e o patriarcado, o que, de certa forma, explica também a frustração do Pacto de Teerã. Eis por que ele nos fala do "homem do Equador" ou "o antropófago", em que sintetiza a figura do homem do povo, mestiço, criollo, moreno, chollo e miscigenado da América Latina, filhos legítimos do matriarcado natural vivendo a contradição do patriarcado capitalista e realizando a síntese revolucionária que levará a humanidade a um novo e definitivo estágio no qual, através do uso benéfico e social da tecnologia, será capaz de desenvolver-se numa sociedade socialista justa, equânime e provedora integral de suas necessidades. Por suas características, algumas já mencionadas neste estudo, a Revolução Boliviariana encontra amparo sólido nos argumentos antropológicos e filosóficos bem fundamentados de Oswald e ocorre no momento histórico e na localização geográfica por ele previstos como propiciadoras de seu sucesso. Além disso, Chávez a concebe ideologicamente e a conduz em acordo com as especulações do filósofo mesmo sem conhecê-lo, no que, aliás, se coloca a par de vários pensadores e ideólogos contemporâneos, como veremos mais à frente. Para nós, o filósofo é ao mesmo tempo um pensador e um artista de raro talento que se posiciona como agudo observador do presente tendo por base um profundo conhecimento do passado. Por isso ele é capaz de realizar projeções certeiras para o futuro e assim contribuir para que nos prepararemos para ele. O novo mundo Mundus Novus foi o título dado por Américo Vespúcio à carta que escreveu ao seu patrão banqueiro, na Itália, em 1501, relatando a viagem que, a serviço da coroa portuguesa, tinha por missão contornar a Ilha de Santa Cruz, recém descoberta por Cabral, e mapeá-la.23 22 23 ibid, ibidem, pag. 83. Em viagem anterior, pela coroa espanhola, Vespúcio tentara contornar a "ilha" a noroste, tendo costeado o 113 Nessa carta, Vespúcio, que Oswald de Andrade reputa como o primeiro escritor humanista, noticia o encontro não de uma ilha, mas de um continente muito vasto, pois a tentativa de contorná-lo (a partir de onde hoje é o Rio Grande do Norte, no Brasil) se tornou impossível e levara a nau até "os frios polares do sul" (Patagônia, na Argentina). Esse documento acabou sendo impresso em letra de forma e tornou-se, em 1503, o primeiro best-seller da história da imprensa, em vários idiomas, tal foi o interesse que despertou nas populações de todos os países cultos da época, até por ter sido de fato o primeiro relato bem escrito sobre as novas descobertas e a respeito do "novo mundo". Os relatos anteriores eram registros de navegação, em geral mal escritos, ou formalidades, cheias de menções religiosas, comuns a atos oficiais de coroas imperiais daquele período histórico, como a "Carta de Caminha". Seguir-se-iam novas cartas de Vespúcio que sacudiriam a Europa. Por tal repercussão, os cartógrafos de então decidiram batizar o "novo continente" de "América", em homenagem a seu "célebre descobridor", e, em 1507, o desenharam no mapa-mundi com este nome, logo ao sul do Equador, na forma ainda tosca que o assemelhava a uma nova e enorme Austrália. Nestes mapas, as terras que Colombo visitara regularmente, entre 1492 e 1500, levando cartas da Rainha de Espanha ao Kublai-Khan, eram as "Índias Ocidentais" e, se estivessem certos, Miami não seria hoje muito longe de Xangai. Pelas informações de Colombo, Cuba era uma ilha próxima ao Havai, e havia um mar inexistente onde está a América Central. Colombo morreu sem saber que havia descoberto a América; acreditava piamente que encontrara o caminho das costas da China e um conjunto de ilhas, então chamadas de "Índias Ocidentais". E por muito tempo aquelas terras das Américas Central e do Norte foram assim denominadas, e seus habitantes eram os "índios". Quanto à América do Sul, ainda simplesmente "América", seus habitantes eram os "americanos". Somos, pois, a primeira América e os primeiros americanos.24 Só em 1538, Mercartor, de posse de novos e incontestáveis dados, desenhou a primeira carta-múndi com a forma completa do novo continente perto da que conhecemos e, por não haver nele qualquer separação por mar e estar comprovado o equívoco de Colombo, decidiu por estender a designação "América" até as terras do Norte, assim batizando-as todas com este nome, cujas letras são compostas em sua carta, separadamente, do norte do Canadá (na época, "Terras de Labrador") até o extremo Cone-Sul ("Tierras del Fuego"). Mas, como disse bem Oswald: "(...) se foi Machiavel quem degolou a Medusa das idéias políticas que reumatizavam o Medievo, foi Vespúcio quem ofereceu à tarda Europa ptolomaica, um panorama diferente da espécie humana. Ele descobriu e anunciou o homem natural. A sua importância talvez tenha decorrido mais disso do que qualquer outra façanha. (...) O êxito das cartas de Vespúcio não foi unicamente um êxito de divulgação. Foram essas pequenas imagens do mundo novo que desencadearam um movimento intelectual de primeira ordem."25 Tal movimento, Oswald denominou "Ciclo das Utopias": "Pode-se chamar de Ciclo das Utopias esse que se inicia nos primeiros anos do século XVI, com a divulgação das cartas de Vespúcio, e se encerra com o Manifesto Comunista de Karl continente a partir de onde hoje está o Ceará e indo até a Venezuela, retornando à Europa pelo Caribe. 24 É preciso ficar a atento a certos "estudos" patrocinados por interesses imperialistas que pretendem mudar a história desqualificando Vespúcio. Nisto são reincidentes e já foram desmoralizados em diversas ocasiões. 25 Andrade Oswald de; O Achado de Vespúcio; São Paulo : O Estado de São Paulo; 1953; in Do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias; Rio de Janeiro : Civilização Brasileira; 1978, pags. 210 e 213. 114 Marx e Friedrich Engels, em 1848, documento esse que liquida o chamado Socialismo Utópico, aberto com a obra de Morus e que, superado, chega, no entanto, até o século XIX, quando o francês Cabet publica a sua Viagem à Icária, último país onde o puro sonho igualizante encontrou guarida e afago. (...) Com o Manifesto de Marx e Engels anuncia-se o novo ciclo - o do chamado Socialismo Científico."26 No intervalo histórico mencionado, podemos relacionar como conseqüências mais importantes da descoberta do "novo mundo" (América do Sul) e do homem natural de cultura tropical a Renascença, o Humanismo, as obras transformadoras de Montaigne, Rosseau e abade Raynal, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Da Revolução Francesa e as guerras napoleônicas surge o Manifesto de Marx e Engels, e o Socialismo Científico. Nas fronteiras entre os dois ciclos, estão Hegel e Dilthey, no campo do pensamento filosófico europeu, e Bolívar, no do pensamento político americano. E somando-se a Bolívar não seria ilícito relacionar, na América do Sul, muitos de seus libertadores, de Tiradentes a José Marti. Se dermos um salto até nossos dias, vamos verificar que a cultura tropical se estende a todos os países de língua latina, conformando-se no que chamamos América Latina, que se extende do Cone-Sul ao México e às ilhas do Caribe. Isto é o que caracteriza, sob todos os aspectos - históricos, geográficos, culturais e linguísticos - o que ainda se pode chamar de "América" como expressão tipificadora de uma realidade continental e de fato "nova" no globo terrestre, isto é, "nova" também no sentido oswaldiano, antropofágico - o homem do Equador, tropical, miscigenado e realizador da síntese entre os dois grandes hemisférios da história; o matriarcado comunista e o patriarcado capitalista. Os EUA e o Canadá só podem se considerar americanos pela localização geográfica de seus países, que recebeu a designação de América, mesmo assim pela falta de imaginação de um cartógrafo. Por sinal, foram justamente os EUA e o Canadá os únicos países que destruíram em si tudo o que havia de americano neles antes da colonização, pois o que disso restou é uma "remanescência" tão exígua que por pouco não chega ao estado de reminiscência. Quanto à América Latina, tornou-se a campeã da preservação de riquezas naturais, culturais, pré-históricas e civilizadoras, ainda que sistematicamente saqueada e explorada por todos os meios, desde 1492, pela ganância de uma colonização cristã-capitalista essencialmente predadora. É, sem dúvida, na América Latina que ainda se mantêm as grandes reservas da natureza que são capazes de dar equilíbrio econômico e sustentação física à Humanidade nos próximos séculos, se esta encontrar-se, enfim (e o mais breve possível), com a síntese de sua perspectiva histórica: o socialismo democrático e pacífico e a complementariedade pluripolar proposta por Chávez em seu Pacto do Novo Mundo. Tal síntese, ou transição, ou mutação, ou seja lá o nome que queiram dar ao fenômeno (nós ainda prefirimos o termo da dialética usado por Oswald), que já ocorre bem claramente diante de nós em todo o planeta, tem ocupado pensadores dos diversos quadrantes. Entre eles, destaca-se o físico-filósofo Fritjof Capra, que em seu livro O Ponto de Mutação (1982) desenvolve raciocínios e alcança conclusões de espantosa semelhança aos de Oswald, inclusive quanto aos hemisférios matriarcado-patriarcado. Em uma entrevista que fizemos 26 Andrade Oswald de; A Marcha das Utopias; São Paulo : O Estado de São Paulo; 1953; in Do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias; Rio de Janeiro : Civilização Brasileira; 1978, pag. 147. 115 com Capra, ele confessou que nunca ouvira falar de Oswald de Andrade - e a pergunta fizemos por fazer, pois a resposta era óbvia; Oswald mal é conhecido no Brasil!27 Dela ocupam-se também, no mesmo nível de competência, os cientistas do Instituto do Sol, entre eles José Bautista Vidal e Marcello Guimarães, ambos com foco nas questões da energia; Adriano Benayon, nas questões econômicas; e Gilberto Felisberto Vasconcellos, com sólida base oswaldiana, nas questões políticas, sociais e filosóficas. Segundo Bautista Vidal e Marcello Guimarães, a sustentação do sistema capitalista desde a revolução industrial, há cerca de 200 anos, tem um dos principais pilares no duo petróleocarvão mineral como matrizes energéticas. Isto porque o espaço geofísico do poço-mina se reduz a um ponto facilmente dominável, possível de ser protegido a baixo custo e capaz de realizar grande produção com o concurso de poucos operários e engenheiros. Ou seja, é tudo que o capitalismo precisa para o atual modelo concentrador de poder e riqueza. Para os dois cientistas, a saída da era do petróleo haverá de ser pelas matrizes energéticas de fontes renováveis, em particular, as da biomassa dos trópicos, que só se viabilizam na América do Sul. Os países tropicais de outros continentes, apesar de receberem insolação igual, não possuem áreas cultiváveis suficientes. Além disso, como diz Marcello, a biomassa é "espalhada", isto é, gera grandes produções a partir de muitas pequenas áreas cultivadas por enormes contingentes de trabalhadores. Ela é, portanto, anti capitalista e é socialista, por excelência. A revolução venezuelana parece adotar in totum este mesmo pensamento ao utilizar as receitas do petróleo no projeto socialista da Revolução, inclusive pela pesquisa e viabilização de novas fontes de energia a partir da biomassa tropical. Por sua vez, as posturas de regência da economia e das políticas comerciais e industriais da Venezuela me parecem como se estivessem sendo coordenadas por Adriano Benayon. Em seu livro Globalização versus Desenvolvimento, Adriano defende diversas teses que são adotadas na administração chavista, entre elas, o desinteresse por capitais estrangeiros na política de desenvolvimento nacional, a qual deve ser conduzida, de preferência, com 100% de capitais nacionais.28 Já o sociológo Gilberto Vasconcellos, em vários de seus livros, levanta a bandeira trabalhista do "vargojangobrizolismo" cujo projeto político de poder não deixa de ser uma versão sulista-brasileira das "missões" dos governos revolucionários da Venezuela. Ligado na Revolução Bolivariana, em alguns seus textos Gilberto disserta historicamente, até Hugo Chávez, a partir de um artigo "estupendo" de Darcy Ribeiro, escrito em 1973, a respeito de questões históricas, econômicas e políticas da Venezuela: Venutopias. Todo esse conhecimento já se encontra à disposição da Revolução Bolivariana. Há poucos dias, Bautista Vidal dava entrevista na TeleSur. Livros dele e de seus colegas do Instituto do Sol estão sendo vertidos para o espanhol e editados na Venezuela. É evidente que a Venezuela dispõe de mestres e cabeças independentes, de igual valor, em plena ação na Revolução Bolivariana. Pela TeleSur pudemos conhecer alguns, como o engenheiro agrônomo Roosevelt Franquiz, do Instituto de Terras da Venezuela, que me pareceu irmão em pensamento de Marcello Guimarães, e ora aprofundamos pesquisas na direção desses venezuelanos, os históricos e os que atuam na vanguarda do processo revolucionário que 27 Drumond, Mario. O brasileiro Fritjof (entrevista com Fritjof Capra); in Caros Amigos, ano VIII nº 93; São Paulo : Casa Amarela; dez/2004; pags. 26-28. 28 Benayon, Adriano. Globalização versus Desenvolvimento; São Paulo : Escrituras; 2005. 116 mais tem chances de vitória em nosso continente e é, em nossos dias, o que se situa na posição ponta de lança da síntese revolucionária prevista por Oswald. No panorama mundial, destaca-se o acelerado crescimento do papel da mulher na sociedade, sublinhados os últimos trinta anos, como indício semiológico forte de que o "novo matriarcado" vem aí. A Constituição da República Bolivariana da Venezuela já distingue e iguala em importância (e é a primeira a fazê-lo) os termos masculinos e femininos designativos de cargos de poder, até hoje escritos só no masculino, tanto nas Constituições como nas leis, decretos e outros textos legais de todos os Estados constituídos no mundo. Assim, na Venezuela a nova e atual constituição prevê "o presidente ou a presidenta", "o governador ou a governadora", "o deputado ou a deputada", etc.29 Quanto a questões de energia e tecnologia do modelo capitalista centralizador, as superestruturas do poder hegemônico mundial revelam-se próximas do pânico por causa do "peak oil", ponto de uma curva desenhada em 1956 pelo geólogo norte-americano King Hubbert, em que a demanda mundial de petróleo superaria enfim a oferta possível. Sendo o petróleo uma fonte de energia não renovável, este pico ocorreria logicamente algum dia. Porém, Hubbert o previu para um período entre os anos de 2008 e 2012, e as previsões contidas naquela curva para os anos 1970/80/90 se confirmaram! Enfim, não há outra saída para a Humanidade a não ser a de caminhar o mais rapidamente possível em direção ao socialismo democrático, justo e pacífico, e o que chamaríamos hoje de caminho revolucionário é exatamente o que Chávez, com surpreendente sabedoria, está percorrendo na Venezuela, inclusive como modelo de exportação a outros países. A sua proposta de um Pacto mundial a partir da idéia de um "novo mundo", tendo por modelo a América Latina (Mundus Novus), é, sem dúvida, de uma encantadora genialidade sob todos os aspectos; o primeiro deles seria sua promissora e oportuna viabilidade. E a principal estratégia de Chávez para conquistar os objetivos revolucionários bolivarianos, inclusive o "Pacto del Nuevo Mundo", está, por mais uma coincidência notável, na essência das teses filosóficas de Oswald de Andrade. Tal estratégia tem por ponto de partida "A FALA DO HOMEM DO EQUADOR"30 O voto, a voz e a vez do homem do Equador Uma das maiores virtudes da Revolução Bolivariana de Chávez é justamente a ausência de ortodoxias e dogmas "científicos", ideológicos, místicos ou de qualquer outra natureza, em suas bases e fundamentos. Ela vale-se dos referenciais históricos bolivarianos de forma didática e sensata como exemplos de conduta, de ideais libertários, de espírito de luta, mas não como verdades absolutas ou dogmas de fé. "Não devemos ter pensamento único, mas pensamento crítico", disse Chávez ao lançar o "Prêmio Libertador do Pensamento Crítico", que o governo venezuelano passou a conceder ainda este ano, em nível mundial, ao escritor que se destacar na análise crítica da realidade contemporânea. Segundo ele, o "Prêmio Libertador" se posiciona como uma alternativa ao Prêmio Nobel, ou, como ele mesmo disse, "um Prêmio Nobel alternativo". 29 É claro que devemos defender essa dualidade como necessária apenas aos textos legais e jurídicos, que precisam ser nítidos, inconfundíveis, e não podem dispensar a repetição nem o óbvio para se fazerem assim. 30 Andrade, Oswald. Informe sobre o modernismo. Texto escrito para conferência, datado de 15/10/1945. in Estética e Política; São Paulo : Globo; 1991, pag. 105. 117 É, pois, a libertação dos povos latino-americanos o que busca a Revolução Bolivariana. Porém, seus líderes sabem que só eles, os povos, é que poderão conquistá-la por si mesmos. E as chances de vitória serão sempre muito maiores a partir de movimentos populares substanciados pelas culturas, tradições e memórias dos povos, sempre libertárias, do que a reboque de militantes partidários recheados de teorias importadas e mal assimiladas. Cabe aos governos revolucionários propiciar as condições para que seus povos encontrem, em suas próprias histórias e culturas, os caminhos e os instrumentos de poder que os libertarão. Para nós, é essa a grande lição de Chávez aos governantes de países de Terceiro Mundo. Chávez entende que os verdadeiros revolucionários são os que produzem e contribuem para a riqueza humana e social de seus povos através do trabalho que realizam com consciência, honestidade e independência. Para ele, muito mais eficazes que políticos, tecnocratas e militantes de burocracias partidarias são os trabalhadores, os artistas, os intelectuais, os artesãos, as lideranças populares de fato obreiras e campesinas - a maioria, intuitivos, sem diplomas acadêmicos, e alguns até com "falhas" ideológicas notáveis em suas condutas e discursos, mas cujas obras e práticas fomentam a consciência e a educação dos povos, inclusive imortalizando os aspectos mais significativos de suas vidas, de suas culturas. Eis por que esta seria talvez a primeira estratégia revolucionária que se vale da democracia mais real e verdadeira que seja possível conseguir, como arma principal de conquista - seja de seus objetivos, de defesa das conquistas feitas ou de obtenção de novas. Fala-se muito de democracia, mas pouco se a pratica. Querem tanto a democracia? Pois então ei-la, mas, legítima, verdadeira! O principal feito dessa revolução tem sido justamente o de derrubar a farsa democrática dos países em que opera e pôr em prática a "democracia participativa", como Chávez costuma nomeá-la, porque de fato exercida pelo povo. Este, então, faz a sua parte através do voto (e, mais tarde, na defesa deste mesmo voto). Na seqüência, os governos revolucionários defendem este voto com todas as suas forças, tendo por argumento indiscutível a própria legitimidade democrática, e, com o apoio do povo eleitor, fazem valer as decisões nele implicadas. Assim, vão consolidando-as. E o processo caminha sempre pela chamada às urnas, seja para manter decisões que se vejam sob ameaça de retrocesso, ou para o estabelecimento de novas decisões libertárias. Nesse caminhar, Chávez e a sua revolução já ganharam dez vezes consecutivas, em diversas eleições, plebiscitos, referendos e consultas populares, e se preparam para ganhar a próxima - para um novo mandato presidencial de Chávez - encurralando a reação numa "oposição" anti-popular que se sabe de antemão derrotada. Conseguiram isso, um recorde mundial, porque o governo Chávez sacou que, para fazer valer o voto e defendê-lo com eficácia, é preciso que ao povo seja dado não só o voto mas, também, a voz. Os maiores inimigos da democracia, em particular na América Latina, são os chamados meios de comunicação de massa, que são, em verdade, tentáculos de um só poder central e ditatorial que explora e asfixia a vida dos nossos povos: o império anglo-norte-americano. Suas mensagens, longe de conduzir a voz dos povos e dos interesses nacionais, reproduzem a orientação imperialista forjada em matrizes midiáticas pré-orquestradas e direcionadas para a exploração e a colonização de nossos países, nossos povos e nossas riquezas. No Brasil, esse domínio é total, maciço, e inclui praticamente todos os veículos, jornalistas e demais profissionais atuantes na chamada "grande imprensa". Como resultante, temos 118 uma realidade vergonhosa: "a pior imprensa do mundo", segundo Mino Carta, um dos editores mais experientes do país. Um vexame mundial! O que nos resta é a imprensa independente, que se reduz a heróicos jornalistas atuando em veículos alternativos, sites na web ou até em colunas (cantos de página) de jornais de grande circulação, que, à maneira de Oswald outrora, resistem solitários, remando contra a maré. Trabalham desamparados, desprezados e até perseguidos pelos poderes públicos, eis por que o alcance deles é mínimo em audiência, e nem faz coceira no poderio midiático. Mas isto não os torna desprezíveis nem ineficazes. São estes jornalistas e os veículos alternativos, além de profissionalmente mais competentes e melhores em qualidade de informação, a nossa reserva de resistência. Em muitos casos logram resultados e conquistas importantes, como nos exemplos de Pedro Porfírio e Jânio de Freitas, que atuam em veículos de maior penetração, a revista Caros Amigos, o jornal Brasil De Fato, a rádio web Alerta Total e outros veículos e sites cuja enumeração aqui seria por demais extensa, mas ainda em número muito inferior ao que deveria ser. É outra a realidade na Venezuela: em brilhante estratégia revolucionária, os governos Chávez combateram a legião "de informação" da mídia imperial pelo fomento e o apoio financeiro a veículos alternativos, a partir da reserva de resistência que lá também havia, à semelhança da nossa, sem pedir compromissos com o governo, mas o compromisso de informar com isenção e independência ideológica. Aliás, nem precisou pedir. Veículos alternativos sérios só têm sentido a partir de tal independência. Assim, desde 1999, a Venezuela viveu a ampliação do alcance de audiência e o surgimento de inúmeras rádios, televisões, revistas e jornais impressos nos mais diversos formatos, tendências e opiniões, que vão a cada dia conquistando mais espaços de público. O primeiro grande enfrentamento com o poderio midiático imperial se deu durante a tentativa de golpe, em abril de 2002, período em que o povo só obteve informação confiável por parte dos veículos independentes, mas que foram suficientes para mobilizá-lo, levá-lo às ruas e reverter o golpe.31 Hoje o embate continua, só que numa outra situação. Um dos jornais fomentados pela nova realidade venezuelana, o Últimas Noticias, inicialmente editado em fundo de quintal, tornou-se o jornal mais vendido no país e mantém linha independente e desvinculada de compromissos extra jornalísticos. Outros periódicos impressos também consolidaram posições em segmentos e níveis diversos da informação. Em mídia eletrônica, a Revolução Bolivariana já conta com a TeleSur, a RadioSur e muitas TVs e rádios alternativas e comunitárias que firmaram influência junto a públicos gerais e específicos, todas, apesar de patrocinadas ou viabilizadas com recursos governamentais e pela nova legislação bolivariana de imprensa, mantendo independência e desvinculação de compromissos com o governo. Chávez não perde a oportunidade de demonstrar essa transparência. Na entrevista coletiva que mencionamos no início deste ensaio, estavam presentes jornalistas de veículos da imprensa independente. Aliás, foi a primeira vez que vimos a presença de tais veículos em 31 No Brasil, a mídia neoliberal comemorou a "vitória" como "o fim do populismo na América Latina". Um conhecido palhaço midiático "de esquerda" jogou bananas para o alto e chamou Chávez de “gorila” diante das câmeras da TV Globo, a mais populista da América Latina (sim, porque populismo é o que ela e os governos que apóia fazem). 119 entrevistas coletivas de presidentes de Estado. Na resposta a um deles, Chávez começou por inverter as posições e fez uma pequena entrevista com o jornalista. Assinalou que o jornalista atuava num jornal que fazia oposição de esquerda ao seu governo, em muitos casos radical, mesmo recebendo dele apoio financeiro, e, em seguida, fez várias perguntas ao jornalista: se ele ou o seu jornal eram admoestados por funcionários do governo ou se algum militante forte no governo tentara se intrometer ou interferir na redação de matérias e na linha editorial do jornal. Em todas o jornalista confirmou a absoluta independência dele e do veículo a que prestava serviços e atestou a ausência de qualquer interferência por parte do governo, seus funcionários e adeptos. Encerrando a pequena entrevista, Chávez pediu ao jornalista, estendendo o pedido a todos os jornalistas independentes, que se algo dessa natureza porventura ocorresse, que fosse denunciado e publicado, e comunicado diretamente a ele, para que tomasse conhecimento o mais breve possível e desse providências imediatas. A revolução de Chávez conta ainda com canais de rádio e TV e jornais do próprio governo, agora desfrutando de boa audiência e penetração nas massas devido à qualidade de informação e de programação e aos serviços que prestam à população, além de terem desenvolvido novas linguagens de comunicação que amenizam a natureza oficialista intrínseca aos conteúdos de tais veículos. Tudo isso começa a pesar na balança do poder midiático e a tal ponto fortaleceu a Revolução que Chávez já fala em não renovar concessões de canais "rádioelétricos", como ele os chama, ocupados por emissoras que difundem programação flagrantemente anti nacional. Ele não conseguiu isso em 2002, mesmo com o revés da tentativa de golpe, mas agora se sente forte o bastante para fazê-lo. Para se ter uma idéia de como isto soa absurdo em nosso país, o que Chávez está fazendo lá seria como, no Brasil, o governo cancelar a concessão da Rede Globo e de todas as TVs e rádios da nossa "grande imprensa". Chávez vale-se também de seu próprio talento de comunicador e do carisma que cultiva em sua ação política e administrativa vitoriosa, e tornou-se protagonista do programa televisivo de maior audiência na Venezuela: o Alô Presidente, transmitido ao vivo de qualquer ponto onde esteja ele, no país ou no mundo, sempre nos fins das tardes de domingo. No último desses programas, que por acaso assistimos (4/6/2006), ocorreu a interpelação de um lavrador de café cobrando do governo certas questões ligadas à sua região. O homem, com cerca de 35 anos, impressionou pela qualidade e a fluência de discurso, o que levou Chávez a lhe perguntar se havia participado de uma das missões Robinson de seu governo. E teve como resposta um discurso surpreendente. Disse o lavrador, vestido com roupa de domingo, que já estava na Missão Robinson 2 (pós alfabetização, até o sexto grau do ensino fundamental) e que antes era analfabeto. Hoje, percebia "que era como um um cego, pois não sabia nem as razões da minha pobreza e de meus familiares". Afirmou que agora "sabia do imperialismo, de como fui escravizado por ele, e da exploração do meu trabalho por intermediários, que não plantam, não colhem, não fazem nada, mas tem caminhões, dinheiro e outras facilidades", razão pela qual pagavam uma mixaria pelo seu café para depois vendê-lo a bom preço a merceeiros que, por sua vez, vão vender mais caro ainda aos consumidores, todos ganhando em cima de suas "costas suadas de tanto lavrar a terra". Eis o motivo por interpelar Chávez, pedindo que acabasse com tal situação e introduzisse em sua região o Mercal (missão do governo que fornece 120 logística a pequenos produtores para que possam vender seus produtos diretamente aos consumidores pela metade do preço de mercado), que lá ainda não chegara. Chávez exultou com aquele diálogo imprevisto (e era mesmo, é fácil distinguir a cena espontânea da ensaiada). Advertiu a todas as autoridades presentes, ministros, deputados, prefeitos, etc, para que ouvissem bem aquele lavrador porque "a voz dele era a voz da revolução". Esse episódio é importante pois demonstra que a Revolução Bolivariana não se contenta só em dar voz ao povo, ela requer qualidade de expressão à sua voz. Esta vem a ser conquistada pela qualidade do sistema educacional que Chávez deu à Venezuela com as Missões Robinson, Ribas e Sucre, tal como Brizola pensava em nos dar aqui através dos Cieps. Mas o que mais nos importa agora é que Chávez está logrando êxito. E nós, daqui de Minas Gerais, ao começar a ouvir a voz possante da consciência de um lavrador dos grotões do interior da Venezuela, não podíamos deixar de recordar Oswald de Andrade e suas anotações filosóficas: "- Pela primeira vez, o homem do Equador vai falar!"32 32 Andrade, Oswald. Informe sobre o modernismo. Texto escrito para conferência, datado de 15/10/1945. in Estética e Política; São Paulo : Globo; 1991, pag. 105. 121 122 A TeleSur (escrito em 16 de maio de 2006) Estranha sensação... Algumas semanas atrás capturei por acaso, via internet, o sinal da TeleSur (www.telesurtv.net), uma emissora de televisão venezuelana que tem como meta integrar a América Latina por meio da linguagem audiovisual e jornalística. A sensação foi estranha, porque logo nos primeiros minutos era como se eu estivesse vendo televisão pela primeira vez em minha vida! E desde ali, também pela primeira vez, tornei-me assíduo espectador de TV, ou melhor, da TeleSur. Em verdade, desde 1964, quando eu tinha 14 anos de idade, a televisão sempre me pareceu algo inteiramente inútil e dispensável. Recordo-me agora de uma só vez em que me senti lucrando por estar diante de um aparelho de TV, que não fosse para assistir a alguma obra cinematográfica do meu agrado. Foi durante alguns meses, ao final da década de 1970, quando Glauber Rocha logrou colocar no ar um programa semanal de televisão de fato televisível e inteligente: o Abertura. Para mim, foi esse o único programa periódico de TV produzido pela mídia brasileira, desde 1964, que merece ser conservado - pelo menos em minha memória. Como aquela experiência foi de poucos meses e restrita a um único programa - e já se vão quase trinta anos que me aconteceu - com o tempo tornei-me cético e passei a crer que seria impossível fazer algo útil em audiovisual televisivo, não por questões relativas à linguagem em si, mas pelo poder que agrega aos interesses oligopólicos e plutocráticos que o dominam como instrumento de comunicação de massa, aos quais se tornara totalmente submetido. Deste modo, no que me diz respeito, o aparelho de TV é um artefato útil tão somente para assistir a obras produzidas para cinema, em sessões caseiras, apesar das perdas inevitáveis da tela em miniatura e da qualidade sonora. Porém, com a recente descoberta da TeleSur, aquela estranha sensação inicial provocou-me, em poucas semanas, uma mudança radical nas minhas concepções de realizador e estudioso do audiovisual. A TeleSur demonstrou que é possível, sim, fazer algo útil, aliás, muito útil e, talvez, poderosamente útil, através daquilo que até hoje tem sido, para mim, um perverso instrumento de alienação, desintegração e desinformação dos povos e das pessoas. E, para que o leitor não pense que isto possa ser uma recaída no otimismo por parte de um cético, devo dizer por que acredito na revolução que a TeleSur nos promete. Linguagem Por sorte minha, um dos primeiros programas que vi na TeleSur foi um excelente documentário sobre o cineasta venezuelano Clemente de la Cerda (1935 - 1984), do qual infelizmente nunca vi um filme e nem tinha ouvido falar - o que já dá uma dimensão da ignorância em que me vinha mantendo sobre nossos vizinhos latino-americanos. Clemente tinha uma postura de inquietação intelectual muito semelhante à de Glauber Rocha. Por sinal, a semelhança entre os dois me pareceu até mesmo física. Mas, como cineasta, pelos trechos que foram exibidos no documentário, achei-o mais próximo de Rogério Sganzerla. Como Glauber e Rogério, Clemente morreu cedo, mas deixou-nos um legado de obras definitivas para a cultura de seu país e para a cinematografia universal. Outra semelhança dele com os dois cineastas brasileiros seus contemporâneos é que ele escrevia, e escrevia 123 muito bem. A diferença é que Clemente teve uma boa experiência em televisão nas décadas de 1940-50, antes de se assumir como cineasta de vanguarda nos anos 1960-70. Este dado é importante, porque possibilitou a ele uma vivência de dentro do processo de produção televisiva - ainda enquanto ela nascia no território latino-americano - que a sua inteligência privilegiada soube transformar em análises críticas de espantosa acuidade. O documentário exibe uma página de um de seus livros, a qual podia ser lida em vídeo pelo espectador e foi também lida quase toda em áudio (locução em off) - num plano muitíssimo ousado para televisão; um contundente grifo de mensagem. Nesse fragmento de texto, o cineasta denuncia a gradativa usurpação, pelo veículo televisivo, dos papéis subjetivos da narrativa audiovisual e da câmera pela interposição do narrador (ou repórter) e do veículo (instituição) entre o conteúdo da mensagem e a inteligência do espectador. Não tenho as palavras exatas de Clemente, não encontrei seus livros em lugar algum, mas, pelo que entendi, a conclusão de seu texto é a de que, nessa usurpação de linguagem, o veículo subtrai aos protagonistas a função de transmitir a informação para se apresentar ele próprio, e ilegitimamente, como o portador da "verdade", a qual manipula a seu critério. Não é à toa que a direção do documentário editou o inusitado plano-texto numa produção para a TeleSur. Não será preciso mais de cinco minutos diante dela para perceber que seus diretores são discípulos das idéias de Clemente, em especial quanto a essa sacada genial do cineasta. Nessa questão importantíssima, a TeleSur resgata integralmente para a linguagem televisiva - e com uma qualidade fantástica - justamente os papéis subjetivos da câmera e da narrativa audiovisual, colocando de volta no (ou em) primeiro plano os protagonistas da informação - e portanto a verdade integral dela - diretamente em contato com o espectador. E com uma competência extraordinária em todos os níveis de edição. Por tal postulação de linguagem, na TeleSur todos os elementos componentes e construtores do audiovisual estão coordenados sob um rigor de direção e de produção que eu jamais observara em qualquer outro canal de televisão, e não me refiro apenas aos brasileiros e latino-americanos. E isto é só o começo.33 33 A TeleSur exibiu novamente o especial sobre o cineasta Clemente de la Cerda, cujo título só agora pude saber que é Los Olvidados de Clemente, pois tinha visto apenas os seus dois últimos segmentos. Por um problema de transmissão via internet (pela qual tenho acompanhado a genial TeleSur), daquela primeira vez que vi o documentário dei como de Clemente de la Cerda um texto que não era dele. O sinal digital de banda larga no Brasil oscila muito e às vezes trava a imagem ou pula trechos do audiovisual, em certos casos até de forma imperceptível, eis porque agora percebi que perdera o final do plano-texto que tanto destaquei no meu artigo, texto este que é assinado por Paolo ... (perdi o sobrenome do autor pois a imagem pulou, e desta vez o visionamento do documentário foi muito mais prejudicado do que da outra vez, talvez por causa do horário), o qual passa a ser o credor dos elogios e da admiração que vão expressos em meu artigo pela qualidade daquela escritura,. Em verdade, o texto comenta uma obra importante de Clemente (Soy delinquente) mas, em essência, professa a tese dos papéis subjetivos da câmera e da narrativa nos contextos da linguagem audiovisual, que foram observados pelo autor no filme comentado e que foram objetos da minha argumentação, a qual, aliás, mantenho quanto à relação que estabeleci da mesma tese (agora em essência e extra-contextualmente) com a postulação de linguagem da TeleSur. Como já disse, mantenho igualmente a opinião sobre a qualidade da escritura, apesar de a autoria não ser do cineasta, pelo que, nem posso dizer se ele escrevia, muito menos se "escrevia muito bem", como também não posso dizer, a partir disso, que os diretores da TeleSur sejam "discípulos do cineasta". É provável que sejam, pois Clemente foi sem dúvida um grande mestre do audiovisual (e não somente do cinema venezuelano) que seus compatriotas vanguardistas que fazem hoje esse belíssimo trabalho televisivo jamais deixariam de levar em conta. Quanto aos demais comentários sobre o cineasta e o documentário mantenho-os e até os reforço agora que pude vê-lo (quase) todo. 124 Qualidade de edição Nenhuma emissora de TV que eu tenha visto, inclusive algumas que se auto-proclamam "a melhor do mundo", chega aos pés da TeleSur em qualidade de edição audiovisual "24 horas por dia". A começar pela câmera, cujos posicionamentos e movimentos são dirigidos cuidadosamente para o melhor enquadramento fotográfico do ponto de vista artístico e, não, comercial. Prioriza-se a assimetria da composição, as tensões visuais inquietantes, os plongés, os movimentos perturbadores e provocadores da inteligência do espectador, em lugar dos convencionais enquadramentos centralizados, dos planos médios banais e dos movimentos óbvios e hipnóticos que se tornaram quase obrigatórios às câmeras de TVs do mundo inteiro. No estúdio, nota-se a preocupação da TeleSur com a qualidade cenográfica e de iluminação, sempre discretas, de bom gosto e artisticamente bem compostas, em oposição aos exageros cenográfico-luminosos que extertoram em extremos de delírios bregas as TVs conhecidas. O mesmo se pode dizer em relação à escolha dos profissionais em cena e aos cuidados de vestuário, maquiagem e cabelos. Ainda no visual, há a se destacar a qualidade gráfica e tipográfica das titulagens, legendas e gráficos da TeleSur, sempre claros, bem compostos, legíveis e respeitando as boas regras de proporção e composição gráfica na relação imagem-textos do quadro exibido, e no uso de cores nobres e bem combinadas. Tudo isto vem associado a um excelente trabalho de computação gráfica, animações e efeitos visuais utilizados com parcimônia, adequação e elaboração criativa, em muitos casos, primorosa. A direção de arte da TeleSur sabe muito bem o que fazer e como fazer. Consegue uma sofisticação e um requinte de imagem, a par de um invulgar despojamento e limpeza de acabamento que resultam numa qualidade de apresentação visual de alto nível profissional e alcança o patamar das mais bem cuidadas realizações cinematográficas. Iguais cuidados são tidos com o áudio. A trilha sonora da TeleSur é brilhante em qualidade e harmonia, das vinhetas aos conteúdos editados. Dispondo dos mais variados recursos acústicos e eletrônicos, a direção musical da TeleSur vale-se de originais temas melódicos, populares e eruditos, e do uso criativo e adequado de efeitos sonoros a fim de sustentar e enriquecer as imagens, sublinhando e enfatizando as locuções e narrações de maneira ao mesmo tempo suave e marcante. Descartam-se, na TeleSur, os estardalhaços cacofônicos e autistas verificados na poluição sonora da maioria das grandes redes de televisão. A locução jornalística dos âncoras, moderadores e repórteres da TeleSur é direta e firme, quase neutra, mas sem perda da sensibilidade dramática, e completamente desvencilhada das afetações vulgares e maneirismos imbecilizantes hoje verificados com cada vez mais irritante frequência no jornalismo televisivo das grandes redes. Esse domínio das duas pistas da linguagem (áudio e vídeo) não será menor, evidentemente, na etapa final e mais importante da edição, que é a montagem. Nela, sente-se que a TeleSur se cuida para não avançar demais em relação às outras mídias televisivas que estragaram o gosto do público e viciaram o espectador na chatice do discurso linear e na obviedade sequencial. Ela então se cuida para ser aceita como boa. Só que é boa mesmo! Ainda assim, De qualquer maneira me sinto no dever de confessar este meu juízo apressado sobre aquela informação e o erro em transmiti-la equivocadamente em seus créditos e em seu contexto, o que, aliás, reafirma e reforça a minha já confessa ignorância sobre a produção cultural de país vizinho tão importante quanto a Venezuela. Deficiência essa que começo a resolver como espectador TeleSur (e não apenas quanto à Venezuela). Rogo, pois, pela paciência e a clemência dos leitores. (nota incluída em 24/5/2006) 125 a montagem da TeleSur - que prima pela simplicidade e pelo despojamento - é rica em ritmos e timbres audiovisuais e vai aos poucos introduzindo elementos novos e avançados de linguagem, como nas seqüências de planos e contraplanos jornalísticos, de entrevistas e mesas-redondas, montando-os muito mais dialéticos e criativos do que nas outras TVs. Eu não diria que a TeleSur faz uma montagem vanguardista como resultado final, se comparada à liberdade de edição cinematográfica, mas que ela pratica uma montagem com diversidade e movimentação muito acima da média e para além, em ousadia, de qualquer outra edição televisiva que conheço. As grandes redes de televisão buscam moldar seus públicos num perfil de espectador alienado, egoísta, gregário e globalizado. Algumas chegam mesmo a querê-lo estúpido e até boçal. Em geral, tratam o espectador como um idiota ou um débil mental, e se acham no direito de se intrometer na vida dele de maneira arrogante e grosseira. Muito ao contrário, a TeleSur se quer moldada pelo espectador consciente, preocupado com as questões sociais, independente e, antes de tudo, latino-americano. A TeleSur não só respeita a inteligência do espectador: ela o trata bem, muito bem, com distinção, consideração e gentileza. E que não se pense ser, a TeleSur, elitista. Ela é uma emissora de TV muito popular. Só as elites ignorantes acreditam que o povão gosta de lixo; quem gosta de lixo são elas, as elites. Na verdade, a televisão que fazem é para elas mesmas - e a empurram goela abaixo dos povos do mundo à força de métodos (anestésicos) audiovisuais que vêm sendo desenvolvidos desde os sórdidos primórdios da propaganda comercial e nazista. "A massa ainda há de comer o biscoito fino que eu fabrico", dizia o escritor Oswald de Andrade. A TeleSur é a realização mais ampla e mais concreta que conheço desse prognóstico oswaldiano. Conteúdo Tudo o que acima vem exposto é colocado a serviço de um conteúdo pautado em critérios, agora sim, da maior vanguarda editorial de comunicação de massa que já se viu, seja em mídia impressa ou eletrônica. A TeleSur tem por cenário a América Latina toda, do México e Caribe ao extremo Cone Sul, e tem por protagonista principal o povo latino-americano. Assim, ela se coloca a serviço de suas nações e não de seus estados e governantes. Sua grade é desenhada a serviço da auto-estima, do engradecimento e da independência do seu principal protagonista e do cenário em que vive. Nela tem voz o operário, o camponês, o indígena, os explorados, as reivindicações e as lutas populares, suas desditas, suas conquistas. Dela participam os melhores artistas e pensadores de todas as expressões, eruditas e populares, desde a vanguarda contemporânea aos grandes mestres do passado. Freqüentam-na, igualmente, as mais expressivas e progressistas lideranças políticas e populares da atualidade e da História. Nessa grade não há espaço nem tempo para baixarias de mau jornalismo, nem para o banditismo e a divulgação desnecessária de seus crimes, nem para os oportunismos popularescos de auditórios, nem para enganações de pseudoentretenimentos de má qualidade e origem duvidosa, nem para perversidades audiovisuais de qualquer gênero - e muito menos para as porcariadas alienígenas enlatadas. Além disso oh!, glória! -, não há publicidade comercial. 126 Política, cultura, riquezas naturais, tradições, folclore, comida, energia, trabalho, artes, educação, lazer, esportes e outros temas de interesses nacionais e continentais se distribuem bem equilibrados naquela grade, suportados por camadas sólidas do melhor, mais bem preparado e mais bem equipado jornalismo televisivo que conheço. "Vamos a conocernos" - diz um de seus belos slogans. Documentos geniais em séries como Caminantes, Nahui - El Rostro del Ecuador, Memorias del Fuego, Destino Latino-America, Estacion Submarina, se permeiam a produções de documentários culturais e periodísticos (Cultural Doc e Periodístico Doc) e a edições especiais jornalísticas como Agenda del Sur - La Revista, Mesa Redonda, Realidades e Sintesis en Latino-America, além de outros programas que ainda não tive a oportunidade de conhecer, e compõem, junto aos grandes "Noticieros", uma movimentada grade televisiva que tem como único defeito o de tornar cada vez mais difícil o ato, para o meu caso absolutamente necessário, de desligar o aparelho (ou "desconectar" do site). Pela primeira vez vi, em sinal de TV no Brasil, imagens tomadas em palácios de governo, casas legislativas, ruas, centros urbanos, regiões rurais, campos, desertos e florestas de países como Venezuela, Colombia, Bolívia, Equador, Peru, Paraguai, Cuba, México, Nicarágua, Haiti, para citar apenas os que foram matérias nas semanas passadas. Até então só chegaram aos meus olhos umas poucas imagens do tipo vindas do Uruguai, Argentina e Chile, mesmo assim em momentos que se já vão longe e me doem recordar. Nos noticiários da TeleSur é assídua a presença de políticos como Fidel Castro, Hugo Chávez, Evo Morales, Tabaré Vasques, Nestor Kirchner, Álvaro Uribe, Alejandro Toledo, e até, de vez em quando, Lula (infelizmente, parece que o Brasil é o único país latinoamericano que se mantém distante da TeleSur)34. Também estão lá os líderes políticos, ministros e autoridades de todos os países latino-americanos. Atuais líderes revolucionários como Daniel Ortega, Raul Reyes (Farcs), Ollanta Umalla, Subcomandante Marcos, entre outras lideranças sindicais, estudantis e políticas de diversas origens de classe e matizes ideológicos progressitas e revolucionários também freqüentam os noticiários e especiais da TeleSur, ao lado de grandes líderes do passado como Che Guevara e Raul Sendic. Além disso, a TeleSur conecta-se com o resto do mundo, em coberturas exclusivas ou filtrando o suco de interesse das agências de notícias internacionais, sempre dando preferência às frentes de resistência ao imperialismo, onde estiverem, seja no Nepal, na Nigéria, em Bagdá, na Coréia do Sul, na Europa, em Teerã, ou nos próprios EUA. Mas, como já disse, o protagonista mais importante de todos é o povão: camponeses, operários, indígenas e caboclos de todas regiões da América Latina, inclusive as mais longínquas e olvidadas, estão lá, nos ensinando as coisas de suas terras, de suas tradições, de suas culturas, de seus labores. E como são belos e falam bem, os latino-americanos! E como são belas as regiões em que vivem! Não falo de uma pseudo beleza formal, estereotipada e cenografada pela enganação midiática. Eu me refiro à beleza verdadeira, autóctone, às vezes rude e até áspera, dos ricos rincões de humanidade que nos vêm sendo revelados pelas câmeras e microfones da TeleSur. E, como postulava Clemente de la Cerda, 34 Pelas informações a que tive acesso (na própria TeleSur), apenas o governador Roberto Requião, do estado do Paraná, firmou convênio para repetir o sinal da TeleSur em seu estado, incluindo um canal de áudio em português. Vi também, por acaso, alguns programas da TeleSur, se bem que alterados, reeditados e muito prejudicados na qualidade, numa tal TV Brasil, que eu desconhecia. Informa-se nela que essa programação se restringe a horários, entre 1h e 7h da manhã, nos quais nem as grandes redes TVs conseguem sequer traço de audiência. 127 sem a impertinência afetada de reporterezinhos medíocres se colocando, em nome de seus "veículos", entre nós, espectadores, e os protagonistas da mensagem audiovisual, quase sempre insultando a nossa inteligência. Cabe aqui o elogio a toda a equipe da TeleSur, pela garra com que encaram o trabalho que fazem e a consciência que demonstram ter da importância dele, o que nos é perfeitamente visível, seja em cena, nos bastidores ou nas instâncias administrativas e de produção. Só para fazer o leitor que nunca viu a TeleSur ficar babando de inveja, vou relacionar, ao final deste texto, alguns dos programas a que tive o privilégio de assistir nas poucas semanas em que me tornei espectador TeleSur.35 35 Além do já citado documentário sobre Clemente de la Cerda, eis alguns programas que destaco entre os que tive o privilégio de assistir pela TeleSur (quase três semanas, com cerca de duas horas de audiência por dia): - Na série Caminantes, conheci a genial escritora e filósofa Rigoberta Menchú Tum, a índia maya-quiché nicaraguense que foi Prêmio Nobel da Paz, em 1992. O discurso dessa mulher é algo de extraordinário e nos conduz ao melhor pensamento revolucionário e humanista que tive o privilégio de conhecer. A produção (mexicana) do documentário é impecável, assim como a direção, a fotografia e, acima de tudo, a extrema sensibilidade na captação de um maravilhoso depoimento dado em entrevista que a edição montou, talvez na íntegra, pontuado de forma enxuta e severa por iconografias audiovisuais pertinentes, ao ponto de excluir totalmente a participação do entrevistador, tanto na imagem como no texto publicados. - Da série Nahui - El Rostro del Ecuador, vi três belos filmes de documentário-ficção: Mulucu Auaca, Awa e Huaorani - Los hijos del Sol. Todos são produções equatorianas do final da década de 1990 e reproduzem as lendas e mitos da criação das respectivas tribos, narradas e protagonizadas pelos próprios indígenas em suas línguas originais (legendas em castelhano) e filmadas no habitat natural onde ainda vivem. Belíssimas sequências, dignas de um mestre como Kurosawa, explorando a plasticidade da floresta úmida equatoriana, os silêncios e sons da natureza e a beleza rústica dos indígenas, suas culturas e suas sábias crenças. Só vendo. - No excelente Agenda del Sur, destaco, entre outros, um que foi dedicado ao uso das plantas medicinais pelas tradições indígenas sul-americanas e a atual exploração de seus conhecimentos por transnacionais ávidas de registrar patentes farmacêuticas. Esse programa é sempre informação jornalística de primeira. Um outro que vi foi dedicado à comida do povo latino-americano. É o primeiro que vejo sobre o assunto que não vem nos falar de bobagens nutricionais como vitaminas, fibras, carbohidratos, dietas burguesas da moda e ecologia de butique, e nos informa com segurança sobre as questões de produção, dos trangênicos, da biomassa vegetal e das tentativas de exploração imperialista das nossas riquezas agrícolas. Nesse programa, registrei a presença bem informada de Roosevelt Franquiz, engenheiro agrônomo e diretor do Instituto de Terras da Venezuela, que muito me pareceu um Marcello Guimarães venezuelano. - Ainda em Agenda del Sur, se não me engano, pude me deliciar com um recital de música de câmara contemporânea com composições e execução do chileno Alejandro Lavaderos e um conjunto de sopros que executa, em instrumentos tradicionais de bambu e em flautas transversas, um tão inovador quanto genial repertório de música erudita que orgulharia a qualquer nacionalidade de qualquer parte do mundo. Vi também chamadas para programas a serem levados sobre o poeta Mario Benedetti, a atriz Maria Rojo, o pintor mexicano Siqueiros, e outros sobre cineastas, escritores e artistas cujos nomes não me recordo agora, todos muito interessantes. Entre as vinhetas, a minha predileta é a da bailarina, não só pelo tratamento plástico-visual mas, principalmente, pela beleza da sua dança e da música que a acompanha. E pelo final surpreendente, que não vou contar. Outras belas vinhetas são a do pianista Chuchito Sanoja, magistral, e a de uma trupe de atrizescantoras em performances de rua. É boa também (e arriscada, quanto ao áudio) a vinheta dos noticiários. Aliás, as vinhetas da TeleSur são todas boas ou muito boas. Excelentes, tanto quanto competentes, são também as criações de identidade visual da TeleSur, desde o logotipo, suas animações, seus slogans, suas aplicações em tela, além das entradas e saídas dos programas da grade. "TeleSur: Nuestro Norte es el Sur". 128 Se estivesse vivo, Oswald de Andrade iria se deliciar com a TeleSur, porque ela é exatamente "a voz (e a imagem) do homem do Equador" que o grande escritor previu em seus textos filosóficos "maravilhosamente bem escritos" como aquele que, quando conquistasse a sua vez de falar, iniciaria a grande revolução demarcadora do fim do velho e obsoleto patriarcado capitalista e do início de uma nova era: a do novo e revolucionário matriarcado socialista do homem natural-tecnicizado, no qual a sociedade, graças ao uso social e benéfico da tecnologia, será a grande mãe dadivosa e provedora de todos os seus filhos, ou seja, a era que a Revolução Bolivariana de Hugo Chávez inaugura para o mundo. - Viva a Venezuela! Hugo Chávez Já que acima mencionei a inveja, devo agora confessar uma que me vem tomando o espírito nestes últimos anos: invejarquem vive sob o manto solar da Revolução Bolivariana capitaneada por Hugo Chávez, isto é, invejar quem vive numa pátria que tem por presidente este genial revolucionário moderno. Ter por presidente alguém que tenha lido Thomas Morus e Simon Bolivar e é capaz de citar numa só frase, de improviso e com pertinência, Jean-Paul Sartre e Benedicto XVI (A Revolução do Amor), como pude ver pela TeleSur na chegada de Chávez em Viena para uma reunião de cúpula internacional; ter por presidente alguém compromissado com uma história que conhece bem pelas melhores letras e que tem a coragem de liderar - com o risco da própria vida e em franco desafio aos super poderosos países que nos ameaçam e nos assolam - a realização de uma obra social e cultural do porte desta que a Venezuela está realizando para si e para o mundo; ter por presidente alguém que faz o melhor investimento até hoje jamais feito com o dinheiro da energia suja do petróleo; ter por presidente alguém que está armando o povo de seu país (e dos países vizinhos) para enfrentar o invasor com todas as armas - e não somente as armas bélicas, mas, também, as armas da educação, da cultura e do saber, da igualdade social, da verdadeira democracia e da comunicação de massa (TeleSur), esta última entre as mais eficazes nos tempos atuais - é o que, entre as inúmeras virtudes da República Bolivariana da Venezuela e de seu grande líder Presidente Hugo Rafael Chávez Frías, me faz confessar a inveja que nutro por todos os venezuelanos. Que, com humildade, parabenizo. Mas, já "nos estamos a conocer". -o-o-o-oLeio em Gilberto Vasconcelos (Nacionalismo Trabalhista Brasileiro, inédito) que Hegel identificou um conflito, naquela época em gestação, entre a América do Sul e a América do Norte. Para Hegel tal conflito seria duradouro e ele inclinou-se a crer que a América do Sul sairia, ao final, vitoriosa. Sendo contemporâneos, é provável que Hegel tivesse conhecido as idéias de Bolivar, e isto pode ter influenciado o seu vaticínio, bastante arriscado já naqueles idos. Quando vejo na TeleSur Hugo Chávez se referir a Evo Morales como a encarnação da profecia do aymara Tupac Katari, o qual, ao morrer esquartejado pelos espanhóis por causa de sua liderança libertária, disse que ia voltar, penso em Chávez também como a encarnação dos ideais de Bolivar - que retorna ao mundo para cumpri-los e consagrar mais uma vez a razão e a lucidez profética de dois grandes filósofos: o alemão Hegel e o brasileiro Oswald de Andrade. 129 130 Festa Latino-americana (escrito em julho de 2007) Festa Latino-americana é o título de um disco de vinil que nos é muito caro. Desde os anos 1970, tem sido um suporte espiritual e musical de algumas de nossas realizações mais bem sucedidas, onde nossa modesta contribuição é reconhecida, como os filmes 35mm Um Sorriso Por Favor e Encantamento, ambos dirigidos por José Sette, e o bailado Dança Brasileira, coreografado e protagonizado por Izabel Costa para o filme Encantamento. E ainda hoje, mantendo a eterna atualidade que caracteriza as verdadeiras obras de arte, foi um valioso e inspirador guia musical no percurso da realização destes escritos. Organizado com muita felicidade e sensibilidade pelo maestro Leonard Bernstein, que rege a fidelíssima interpretação da New York Philharmonic, com destaque creditado para a sua seção de percussão, a audição dessa preciosidade em vinil nos leva ao percurso por dentro da alma e do espírito da cultura latinoamericana nas mais espontâneas e expressivas manifestações. Contempla obras dos compositores brasileiros Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e Lorenzo Fernandez, dos mexicanos Silvestre Revueltas e Carlos Chávez, e do norte-americano Aaron Copland, mas o que é mais encantador na bem resolvida seleção das partituras é a penetração nas essências profundas e indagadoras dos mistérios, ritmos e danças que o nosso movimentado e prolífico continente cultiva e manifesta. A assídua audição que temos lhe dedicado ao longo dos anos nos leva agora a escolher o seu nome para o nosso selo editorial, que abrigará nossas observações sobre a América Latina, e a uma nova indagação que parece ter ocorrido a muitos dos que se debruçaram sobre a realidade de nossos povos e nossas lutas, mas, apesar de tocarem a questão por várias outras vias, nunca demos com algum escrito antigo, moderno ou recente que a explicitasse assim: - Por que, fundamentalmente, lutamos? Para nós, a resposta não seria tão óbvia como possa sugerir a pergunta, em sua aparente simplidade. Sabemos por que lutam os capitalistas, e o fazem da mesma forma em qualquer parte do mundo por privilégios materiais e poder às custas da exploração de povos e nações, e pouco ou nada se pode acrescentar ao magistério definitivo de Marx em O Capital. Mas quando perguntamos por que lutamos pelo socialismo, em particular, ao nos referirmos à questão latino-americana, a resposta envolverá parâmetros nem sempre enquadráveis em análises puramente científicas. Oswald de Andrade e Mariátegui foram os primeiros a pensar o socialismo na América Latina e levantar tais parâmetros. Perceberam que os ideais comunistas já se haviam registrado em nosso continente nas civilizações assim chamadas "pré-colombianas", isto é, a essência da ideologia socialista está indelevelmente impregnada nas populações miscigenadas e nas culturas sincretizadas de todo o continente. Na Europa, o socialismo é, em primeiro lugar, uma luta do povo contra a sua própria cultura feudal, pela distribuição justa do pão de cada dia e um teto que o abrigue das intempéries naturais àquelas regiões. É, pois, uma luta para "não sofrer". 131 Porém, tais contradições não seriam tão decisivas aqui, até por razões naturais e geográficas, ainda que o capitalismo as tenha importado, e por isso, circunstancialmente possam ocorrer. Em Oswald, temos: "Nunca fomos catequizados, fizemos foi carnaval". Para ele, "nosso problema é gozar". Quer dizer, lutamos para gozar e, não, para não sofrer. A nossa luta é, pois, muito diferente das lutas dos povos europeus. De fato, no decorrer destes escritos, não fica difícil constatar que os propósitos da luta que travamos, sem desprezo dos valores anti-imperialistas e igualitários propugnados pelo socialismo científico, são fundamentalmente culturais - lutamos também, com firmeza e decisão, por nossos dabacuris, candomblés, folias e carnavais, e deles não abrimos mão. Passeando pela América Latina através das câmeras bolivarianas, não temos como negar que vivemos num continente cultural em festa permanente, festa do povo, por certo. Festa Latino-americana. É a música, a dança, a arte, a política, a filosofia e a ideologia em permanente ebulição e congraçamento, nos sons, nos gestos e nas cores nobres expressadas com exuberância sem igual em imortais manifestações populares e eruditas, que não abrem mão de tradições e essências, as quais, apesar de tudo o que contra elas se promoveu e se promove, preservamos - numa luta de resistência, ainda em curso, de mais de 500 anos! Um pueblo que canta com versos de amor Um pueblo que lucha abrindo camiños Seguindo el camiño del Libertador A nossa luta libertária pelo socialismo indo-americano está na essência da Festa Latinoamericana. 132 Texto para a orelhas Olhar de condor José Sette A Venezuela experimenta o mais revolucionário processo de transformação que já aconteceu em toda a América Latina desde o descobrimento. O presidente Hugo Chaves, eleito pelo povo em um regime democrático, conseguiu, depois de superar varias tentativas de golpe, de maneira única, criar um estado político revolucionário e de vanguarda, com apoio das Forças Armadas, em seu país, que tem deixado, por sua independência e sabedoria, o mudo todo boquiaberto. A imprensa mundial, principalmente a dos nossos vizinhos, não tem dado a devida atenção aos acontecimentos que dia a dia vem transformando a sociedade daquele país. O primeiro ato revolucionário do governo foi tomar de volta a seu controle os meios de comunicação de massa que eram os responsáveis pela brutal invasão cultural que se fazia naquele país banhado pelas águas caribenhas. O novo se colocava à prova. Era preciso levar, a todos, o que durante anos tinha estado escondido. O tesouro artístico venezuelano e latino-americano que estava esquecido voltou a aparecer, e renascem em todos nós os sentimentos que estavam massacrados na sua identidade e na identificação dos valores coletivos de uma nação soberana. O importante no processo de transformação social e político de um país é a consciência dos seus governantes da sua identidade cultural. Um país que abre suas fronteiras para o domínio cultural estrangeiro está sujeito a perder toda a sua identidade, todos os seus valores maiores, das mais simples e populares manifestações folclóricas aos mais complexos pensamentos analíticos, críticos e científicos de suas comunidades universitárias e científicas. O primeiro ato de um governo revolucionário - que se quer libertário, de vanguarda e socialista - tem que passar pela questão cultural. Só depois vem o processo da educação e de todo o resto. É preciso reformar o processo cultural e educacional, transformando os métodos de se ensinar, experimentando, inventando, sublimando o velho para aprender o novo, o que ainda não foi mostrado, por estar escondido na terra, na cultura, que é a gênese do processo civilizatório. Criar o novo retratando o que se tenta esconder do passado é a raiz deste grande desafio por que passam, não só os países em desenvolvimento, mas todo o mundo. Mario Drumond em seu livro observa de binóculos os primeiros movimentos do que pode se tornar um marco decisivo de uma nova fase entre as relações determinantes da sobrevivência cultural de uma nação, que vinha sofrendo durante muitos anos o duro golpe do domínio de uma nação estrangeira, com seus valores mais significativos e determinantes de uma nova etapa do conhecimento político-social do homem contemporâneo. O nosso mundo precisa abrir os olhos para o conhecimento de uma experiência revolucionária na forma de produzir imagens e sons, com total respeito à liberdade criativa, dentro de uma nova estética de abordagem documental, criando reportagens que interessem às grandes massas dos oprimidos que fazem das televisões o seu único meio de educação e cultura. É investindo na proliferação dos meios de captação e difusão desses novos produtos de comunicação que o audiovisual venezuelano, através de uma linguagem cinematográfica e de construção de uma arte libertária, inova no que produz e no que é exibido hoje naquele país. Mario Drumond, com sabedoria e olhar aguçado, nos traz, em primeira mão, a informação e a análise sobre o que está sendo a guerra midiática na Venezuela, matéria que ele vem acompanhando e pesquisando desde o começo. Um estudo minucioso do que anda acontecendo no país vizinho e que tanta estranheza vem causando à Esquerda e à Direita brasileiras. Esse texto abrirá um novo caminho ao leitor interessado nas transformações sociais e culturais por que passa o nosso país vizinho. Tipógrafo, internauta, escritor, jornalista, Mario Drumond consegue a proeza de, arranchado em Belo Horizonte diante de um computador, lucidamente inteirar-se do que está acontecendo na Venezuela de Hugo Chávez, talvez até com mais argúcia e profundidade de que quem está lá envolvido no processo revolucionário. Enquanto por estas bandas, nestes Brasis, a pasmaceira generalizada é reacionária, sem dúvida reflexo de um governo multinacionalizado, comandado por interesses estrangeiros, a Venezuela de Hugo Chávez coloca em cena o que pareceria ter sumido do mundo: o sujeito histórico ou a idéia de vanguarda. Isso significa negar na prática a ideologia da impotência inoculada pelas metrópoles imperialistas nas colônias ou nos países semicoloniais. Esse é o traço mais relevante - essa gana de viver e de mudar as condições materiais da vida - que sobressai hoje na Venezuela, a lembrar a heróica Palestina. (Gilberto Felisberto Vasconcellos - sociólogo, jornalista e escritor) Mario Drumond em seu livro observa de binóculos os primeiros movimentos do que pode se tornar um marco decisivo de uma nova fase entre as relações determinantes da sobrevivência cultural de uma nação, que vinha sofrendo durante muitos anos o duro golpe do domínio de uma nação estrangeira, com seus valores mais significativos e determinantes de uma nova etapa do conhecimento político social do homem contemporâneo. (José Sette - cineasta) “¡Gloria al bravo pueblo!” La Guerra de los medios de comunicación en Venezuela Libro-reportaje echo totalmente por los recursos de navegación en la Internet. El autor, Mario Drumond*, acompañó los hechos que ocurrieron entre los meses de diciembre de 2006 a julio de 2007, durante los cuales se ha trabado una verdadera batalia de los medios de comunicación motivada por la decisión del gobierno Hugo Chávez de no renovar la concesión publica de canal abierto para la RCTV (Radio Caracas Televisión), emisora privada mas antigua y hasta entonces líder de audiencia televisiva eu Venezuela. Por ser una guerra de los medios de comunicación y haber sido acompañada por los señales en vivo, páginas y videos disponibles en los sitios de los principales vehículos implicados, el reportaje reivindica su validad y autoridad, mismo que el periodista no estuviese presente, en persona, en aquellos acontecimientos que calentaron las calles y el pueblo venezolanos. *Mario Drumond es escritor, periodista, artista gráfico e editor. Actua en la resistencia cultural desde el inicio de los años 70. En 1974, fundó la Editora Cordel (libros y periódicos) y, en 1980, la Oficina Goeldi (grabados y ediciones de arte), prolíficas casas editoras que dirigió hasta 1990. Por su acción multidisciplinar, recibió el Premio Candango (Mejor Película del Festival de Cinema de Brasília, 1981) e el Premio Jabuti (Mejor Libro de Arte, Câmara Brasileña del Libro/SP, 1984). Es autor de obras literarias de ficción, ensaística, planes de películas y de espectáculos, algunos de ellos premiados e distinguidos en nivel nacional y en el exterior. Desde 2002, colabora con la revista Caros Amigos (San Pablo, Brasil).
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