Ensaios de Geografia Crítica

Transcrição

Ensaios de Geografia Crítica
Ensaios de
Geografia Crítica
José William Vesentini
Ensaios de Geografia Crítica
História, epistemologia e (geo)política
EP
Editora Plêiade
São Paulo
2009
Copyright © 2009, José William Vesentini
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autorização expressa do autor e do editor.
Capa: Débora Gomes Déscio.
Revisado pelo autor.
Ficha de Catalogação
V575e
Vesentini, José William
Ensaios de geografia crítica: história, epistemologia e
(geo)política / José William Vesentini. - São Paulo: Plêiade, 2009.
220 p.
ISBN: 978-85-7651-111-3
1. Geografia – História 2. Geografia - Filosofia I. Título
CDU 91
(Bibliotecária responsável: Elenice Yamaguishi Madeira – CRB 8/5033)
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2009
Impresso no Brasil
SUMÁRIO
Apresentação ...........................................................................................7
Uma ciência periférica? Reflexões sobre a história e a
epistemologia da geografia ...................................................................11
Controvérsias geográficas: epistemologia e política .............................53
O que é crítica? Ou qual é a crítica da geografia crítica? ..................101
Geografia crítica no Brasil: uma interpretação depoente ....................127
A questão da natureza na geografia e no seu ensino ...........................158
A atualidade de Kropotkin, geógrafo e anarquista ..............................173
A crise da geopolítica brasileira tradicional:
existe hoje uma “nova geopolítica brasileira”? ...................................197
Golbery do Couto e Silva, o papel das forças armadas
e a defesa do Brasil .............................................................................211
APRESENTAÇÃO
Os escritos aqui reunidos foram elaborados em distintas ocasiões –
alguns em 2001 e outros mais recentemente – e abordam, sob diversos
prismas, a história, a epistemologia e a política da/na geografia, além
da geopolítica brasileira. Alguns são inéditos e outros foram publicados
anteriormente em revistas acadêmicas e/ou eletrônicas, mas, em geral,
foram lidos por poucos em função da fraca tiragem e da escassa
penetração desse tipo de periódico. A ordem em que se encontram foi
uma escolha subjetiva. De fato, cada um deles é autônomo e pode ser
lido independentemente dos demais.
Os dois primeiros textos desta coletânea tratam da história e da
epistemologia da geografia. O primeiro discute o que é cientificidade,
qual é a natureza epistemológica da geografia e em que sentido se pode
afirmar que as ciências humanas, como também a geografia, são
ciências periféricas. Esse ensaio na verdade procura evidenciar como o
projeto epistemológico da geografia, no século XIX – em especial com
Humboldt –, ficou à margem tanto da crescente especialização nas
ciências naturais, que abandonaram o ideal grego de um estudo
integrado da natureza, como também da noção historicista – o homem
como um produto do tempo histórico, e não mais das condições
naturais, que através de revoluções atinge a sua maioridade – que
estruturou as ciências humanas nesse período.
O segundo ensaio versa sobre aqueles que provavelmente foram os três
mais importantes debates ocorridos na história da geografia: a polêmica
sobre o determinismo, deflagrada por autores franceses a partir da
leitura de uma obra de Ratzel; a discussão a respeito do
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José William Vesentini
excepcionalismo da geografia ou sobre que tipo de ciência ela é,
ocorrido nos Estados Unidos nos anos 1950; por fim, o embate entre
Kropotkin e Mackinder, na Inglaterra vitoriana, sobre o que é ou o que
deveria ser a geografia. Procuramos demonstrar que essas três
polêmicas se entrecruzam e continuam atuais, ou seja, prosseguem
sendo questões epistemológicas e políticas cruciais da ciência
geográfica.
Os escritos quarto e cinco encetam uma discussão sobre o que é crítica,
como esta vem sendo entendida na geografia crítica e quando e como
esta se instalou no Brasil. Isso significa que também eles têm um
caráter histórico e epistemológico, além de sua evidente expressão
política. O quinto ensaio enfoca a questão da natureza na geografia e no
seu ensino. Também é uma contribuição para o que deve ser afinal uma
geografia crítica, ou melhor, sobre como ela deve incorporar a questão
da natureza, embora neste caso circunscrita à atividade educativa.
O sexto texto é um longo comentário sobre a obra do geógrafo e
anarquista Kropotkin, o grande marginalizado nos estudos relativos à
história do pensamento geográfico. Procuramos demonstrar a inegável
atualidade das ideias desse pensador avant-garde do final do século
XIX e inícios do XX. Apesar de a primeira versão desse artigo ter sido
redigida em 1986, como introdução a uma antologia de textos do
intelectual russo, reescrevemos e ampliamos o escrito para incluí-lo
nesta obra, o que significa que em grande parte ele é original.
Finalmente, os dois últimos ensaios desta antologia tratam da
geopolítica brasileira. Um deles discute o significado da escola
geopolítica brasileira e porque ela ingressou numa crise a partir dos
anos 1980. O outro aborda determinadas ideias de Golbery do Couto e
Silva, o mais célebre dessa plêiade de pensadores geopolíticos que
desde a década de 1920 procurou (re)pensar os rumos do Brasil.
Qual seria a unidade deste conjunto de ensaios? Eles representam
tentativas, em diversos assuntos – embora não tão afastados –, de
construir uma geografia crítica a partir do significado moderno e
kantiano desse adjetivo. Crítica que não se confunde meramente com
“falar mal” dos objetos enfocados, entendimento amiúde encontrável
entre alguns geógrafos autoproclamados radicais ou críticos. Por sinal,
8
Ensaios de geografia crítica
procuramos também mostrar as diferenças, mesmo que relativas, entre
uma atitude crítica e uma radical. Objetivamos construir uma geografia
crítica, antes de mais nada, democrática e pluralista no sentido
epistemológico apontado, por exemplo, por Habermas1. Pluralismo
epistemológico que dialoga com várias correntes do pensamento, que
aproveita elementos de cada uma, embora sempre procurando manter
uma coerência teórica e uma correspondência com os fatos. Pode-se,
ainda, recordar da leitura de Edgar Morin da complexidade
epistemológica2, na qual não se trata mais de ser positivista (embora
tenha algo aqui a ser resgatado), nem dialético (idem), tampouco
apenas fenomenológico, estruturalista ou historicista, mas aceitar a
complexidade do real e a validade, pelo menos parcial, de cada uma
dessas perspectivas em determinados itens ou aspectos.
Incoerência? Pontos de vista contraditórios e irreconciliáveis, como
diriam os dogmáticos? De maneira nenhuma. Até poderia ser um
discurso incoerente se não houvesse uma coesão teórica interna e,
principalmente, uma preocupação em se adequar aos fatos. Sem a
menor intenção de nos igualarmos e estes, cabe lembrar que, conforme
esclareceu Hannah Arendt3, todo grande pensador utiliza ideias
aparentemente contraditórias, fazendo uso, à sua maneira, de autores
clássicos variados e que construíram teorias por vezes tidas como
antinômicas.
Se esta obra suscitar a crítica e o debate estaremos plenamente
satisfeitos. Este é precisamente o seu objetivo: apresentar outros
olhares, outras falas sobre determinados temas onde vem imperando, no
Brasil, nos últimos anos, uma visão unilateral e hegemônica.
Acreditamos no espírito acadêmico e científico, isto é, de livre debate,
de crítica fundamentada, de crescimento a partir do diálogo com os
outros. A construção do conhecimento, inclusive nas ciências, é uma
atividade social alicerçada numa racionalidade comunicativa. Dessa
forma, quod scripsi, scripsi; e urbi et orbi. Que venham agora as
críticas, exceto – como ironizaram dois intelectuais alemães que viviam
1
2
3
HABERMAS, J. A ética da discussão e a questão da verdade. São Paulo, Martins Fontes, 2007.
MORIN, E. Introduction à La pensée complexe. Paris, Seuil, 2005.
ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 1979.
9
José William Vesentini
na Inglaterra vitoriana – aquelas roedoras dos ratos. Que venham enfim
os reclames, as correções, as discordâncias, os adendos, os acréscimos,
a complementação... Não existe um destino melhor para qualquer obra
intelectual do que ter sido útil para o avanço de algum tipo de
conhecimento.
São Paulo, abril de 2009.
10
Uma ciência periférica?
Reflexões sobre a história e a epistemologia da geografia
A ciência, as ciências. Se dizemos ‘a ciência’, acabamos
fazendo um discurso completamente abstrato que esquece
a diversidade entre as ciências [...] É ingênua a ideia que o
conhecimento científico é reflexo do real; ele é uma
atividade construída com todos os ingredientes da
atividade humana [...] A ideia de certeza teórica, enquanto
certeza absoluta, deve ser abandonada. Outra conclusão: a
ciência é impura. A ideia de encontrar uma demarcação
nítida e clara da ciência pura, de fazer uma demarcação
entre o científico e o não científico, é errônea. Também
dizemos que não existe uma fronteira nítida entre ciência e
filosofia [...] A ciência deve ser considerada como um
processo recursivo autoecoprodutor. Nada ilustra melhor
essa ideia que a ideia de objetividade: é o produto último
da atividade científica e esse produto se torna a causa
primeira e o fundamento de onde ela vai partir novamente
[...] O desenvolvimento das ciências da terra e da ecologia
revitalizam a geografia, ciência complexa por princípio,
uma vez que abrange a física terrestre, a biosfera e as
implantações humanas. Marginalizada pelas disciplinas
vitoriosas, privada do pensamento organizador [...] a
geografia reencontra suas perspectivas multidimensionais,
complexas e globalizantes. Desenvolve seus pseudópodes
geopolíticos e reassume sua vocação originária. (EDGAR
MORIN).
11
José William Vesentini
Não é fácil definir o que é ciência – ou ciências, no plural. Ela possui
certa unidade e, outrossim, uma grande diversidade. É diferente e, ao
mesmo tempo, tem similaridades e inúmeros pontos de contato com
outras modalidades do conhecimento humano: o senso comum, as
doutrinas religiosas, a filosofia, as expressões artísticas, os mitos, o
folclore e as tradições etc. Existe, praticamente, um consenso entre os
epistemólogos, os historiadores e os filósofos da ciência, sobre haver
uma diferença perceptível – uma ruptura e também, num certo sentido,
uma continuidade – entre a ciência moderna e os saberes clássicos, na
verdade filosóficos, que são vistos como a ciência tradicional. A
ciência moderna nasceu ou começou a ser construída no século XVII. É
certo, ela fez e continua a fazer uso de muitos elementos herdados
daqueles saberes clássicos, tais como certo rigor e espírito sistemático
(encontráveis, por exemplo, num Aristóteles), além da lógica e da
matemática existentes desde a antiguidade. Alguns chegam até mesmo
a afirmar que “a ciência nada mais é que o senso comum refinado e
disciplinado”1.
Provavelmente sim, especialmente nos seus albores, com a ciência
tradicional, e também nas inúmeras teorias e classificações científicas
mais simples existentes até os dias de hoje. Em todo o caso, a ciência
moderna é vista como algo diverso da tradicional, apesar de essa
diversidade ser objeto de polêmicas. A ciência moderna é mais
empírica, dizem alguns; ou tem como base a indução, afirmam outros;
ou é plena de experimentações, de testes que confirmam ou desmentem
hipóteses, com um permanente confronto das teorias com os fatos ou
com a realidade. Estabelecer essa diferença entre a ciência moderna e a
tradicional passa pelo entendimento do que é científico, do que é
cientificidade, enfim pela definição de ciência moderna.
Alguns – poderíamos dizer, os positivistas lato sensu (categoria na qual
se pode incluir boa parte dos marxistas) – argumentam que o que
caracteriza a ciência moderna é o método científico2. Sabemos que essa
1
G. Myrdal apud ALVES, R. Filosofia da Ciência. São Paulo, Loyola, 2000.
“Dentre as ideias maiores da filosofia positivista [encontra-se] a fé na unidade fundamental
do método da ciência. Na sua forma mais geral, trata-se da certeza de que os modos de
aquisição de um saber válido são fundamentalmente os mesmos em todos os campos da
2
12
Ensaios de geografia crítica
ênfase no método, o método da ciência, começou com René Descartes.
Esse filósofo e matemático do século XVII procurou teorizar, à sua
maneira, os procedimentos de Galileu Galilei, tido como o primeiro
cientista na acepção moderna do termo e, provavelmente, o introdutor
do empirismo e da experimentação na pesquisa científica3. Para
Descartes, o método consistia numa série de regras simples – a dúvida,
a decomposição em partes menores (análise), a hierarquia do simples
até o complexo e a sistematização4. Simples e ao mesmo tempo
inovadoras para a sua época porque tinham como pressuposto a razão
humana – amplamente escorada na lógica e na matemática – e não a
escolástica, a interpretação dos textos sagrados e inquestionáveis. É
evidente que esse método preconizado por Descartes nunca cobriu
plenamente – hoje menos ainda – os requisitos mínimos para se definir
a cientificidade de algum saber. Sequer entre aqueles que continuam
apregoando o “método científico” como a essência da ciência moderna
existe um mínimo consenso sobre o que exatamente seria esse suposto
método unitário. Um desses adeptos desse soi-disant método científico
como definidor da cientificidade afirma o seguinte:
Nem todos concordam com o que seja método científico. E
nem todos acreditam que ele possa estender seu braço
além do seu berço, a ciência da natureza. Seu pai, Galileu,
não se conforma com a observação pura e tampouco com a
conjectura arbitrária. Galileu propõe hipóteses e as
submete à prova experimental. Galileu engendra o método
científico moderno, mas não enuncia seus passos e nem
faz sua propaganda [...] A partir de Galileu introduziramse várias modificações no método científico. Uma delas é
o controle estatístico dos dados [...] Uma investigação
procede de acordo com o método científico se cumpre as
seguintes etapas: (1) Descobrimento do problema ou
experiência, como são igualmente idênticas as principais etapas da elaboração da experiência
através da reflexão teórica.” (KOLAKOWSKI, L. La filosofia positivista. Madrid, Catedra, 1966).
3
Cf. DESANTI, J. T. Galileu e a nova concepção de natureza, in CHÂTELET, F. História da
Filosofia, volume 3. Rio de Janeiro, Zahar, 1974, pp. 61-112; e BEYSSADE, J. M. Descartes, in
Idem, p. 81-114.
4
Cf. DESCARTES. Discurso do método. In: Os Pensadores – Descartes. São Paulo, Abril
Cultural, 1979, p. 29-71.
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José William Vesentini
lacuna num conjunto de conhecimentos. (2) Colocação
precisa do problema. (3) Procura de conhecimentos ou
instrumentos relevantes ao problema. (4) Tentativa de
solução do problema com auxílio dos meios identificados.
(5) Invenção de novas ideias. (6) Obtenção de uma
solução. (7) Investigação das consequências da solução
obtida. (8) Prova (comprovação) da solução. (9) Correção
das hipóteses5.
Percebe-se nessa fala de um epistemólogo reconhecido
internacionalmente que não existe, entre os especialistas, uma
concordância sobre no que exatamente consiste esse método e
tampouco se ele pode ser aplicado às ciências que não estudam a
natureza, isto é, as ciências sociais e as formais. Na verdade essas nove
etapas do “método científico” mencionadas pelo autor são de sua lavra,
como ele faz questão de afirmar inclusive como contraponto a uma
série de teóricos da ciência6. Por sinal, algumas páginas após ter
explicitado suas etapas do método científico, Bunge ameniza um pouco
a sua crença num método unitário e afirma: “O nome é ambíguo [...] a
expressão método científico é enganosa, pois pode induzir a crer que
consiste num conjunto de receitas exaustivas e infalíveis que qualquer
um pode manejar para inventar ideias e pô-las à prova [...] O que existe
é uma estratégia de investigação científica. Há também um sem
número de táticas ou métodos especiais característicos das diversas
ciências e tecnologias particulares. Nenhuma dessas táticas é infalível
[...] A pessoa de talento cria novos métodos e não o contrário”7.
Como se vê, um quiproquó. O recurso ao vocabulário militar (estratégia
e táticas) para tentar superar ou aperfeiçoar a ideia de um “método
científico” mais cria confusão do que esclarece e fica a impressão de
que o autor oscila entre a crença num método unificado e a aceitação da
pluralidade de métodos, inclusive com a valorização das
individualidades (do insight ou intuição deste ou daquele cientista etc.).
5
6
7
BUNGE, M. Epistemologia. São Paulo, Edusp, 1987.
Idem, p. 32-5.
Idem, p. 34, grifos do autor.
14
Ensaios de geografia crítica
Lendo outros especialistas na temática fica ainda mais evidente o
desentendimento sobre esse hipotético método unitário. Um
epistemólogo egrégio propõe que na verdade esse método seja o de
“conjecturas e refutações”. Em suas palavras:
Quando deve ser considerada científica uma teoria? A
resposta comumente aceita é que a ciência se distingue da
pseudociência pelo seu método empírico, que é
essencialmente indutivo, ou seja, parte da observação ou
da experimentação [...] Na realidade, a crença de que
podemos começar com observações puras, sem nada que
se pareça com uma teoria, é absurda. A observação sempre
é seletiva. Necessita um objeto elegido, uma tarefa
definida, um interesse, um ponto de vista ou um problema
[...] O problema ‘O que vem primeiro, a hipótese ou a
observação?’, é solúvel como o problema ‘Quem vem
primeiro, o ovo ou a galinha?’. A resposta à última
interrogação é ‘Um tipo primitivo de ovo’, e a resposta ao
primeiro é ‘Um tipo primitivo de hipótese’ [...] A ciência,
assim, deve começar com mitos e com a crítica de mitos;
não com o resultado de observações nem com a invenção
de experimentos, mas, sim, com a discussão crítica de
mitos e de técnicas e práticas mágicas [...] É possível
resumir tudo o que foi dito afirmando que o critério para
estabelecer o status científico de uma teoria é a sua
refutabilidade ou sua testabilidade. O que temos proposto,
então, é que não existe um procedimento mais racional do
que o método do ensaio e erro, de conjecturas e refutações:
de propor teorias intrepidamente; de fazer todo o possível
para provar que estão erradas; e de aceitá-las
provisoriamente, se nossos esforços críticos fracassam8.
Temos aí uma concepção de método científico bem diferente do
entendimento comum, que enxerga principalmente o empirismo, com a
indução e a experimentação. Esse entendimento comum, por sinal, é
coerente com o nascimento da ciência moderna com Galileu – e, por
8
POPPER, K. El desarrollo del conocimiento científico. Buenos Aires, Paidos, 1967, p. 59-65.
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José William Vesentini
outro lado, a indução e a experimentação continuam procedimentos
válidos e utilizáveis em vários tipos de pesquisa científica. Mas a
epistemologia de Popper tem como principal alicerce as teorias da
relatividade de Einstein, na qual, ao invés da experimentação e da
indução, como em Galileu, existe uma sofisticada dedução. (Einstein
falava numa “experimentação imaginária”, na qual ele literalmente
fantasiava eventos tais como o de uma pessoa dentro de um elevador
quebrado em aceleração para o chão, que não sentia o peso do seu
corpo, procurando com isso evidenciar uma insuficiência na explicação
newtoniana da força da gravidade “puxando” o elevador e a pessoa para
baixo). Uma dedução “pura” no sentido de encontrar falhas ou lacunas
nas explicações anteriores – neste caso, na física newtoniana – e
procurar, com o uso da razão, estabelecer outras, que necessariamente
teriam de ser testadas pela observação posterior. Se não fossem
submetidas a testes, a experimentos para verificar a validade de suas
proposições, pouca diferença teriam da ciência tradicional e
especulativa. Como se sabe, os astrônomos após a Primeira Guerra
Mundial procuraram fotografar eclipses do Sol para verificarem se
existiria um efeito previsto por Einstein, uma curvatura no espaço ao
redor desse astro que faria a luz das estrelas se afastarem ou sofrerem
certo dobramento. É lógico que nem toda teoria científica vai atender a
esse requisito – isto é, hipóteses ou teorias construídas para sanar
lacunas nas ideias científicas dominantes, que devem ser testáveis ou
verificáveis pela observação ou experimentação posterior –, inclusive
porque os objetos são completamente diferentes. Em todo o caso, tratase de uma concepção de ciência (de Popper, inspirada em Einstein) que
valoriza mais a dedução e notadamente processo de uma crítica
permanente, com as conjecturas (ensaios) e as refutações (erros).
Continuando com a nossa seleção de opiniões sobre o “método
científico”, por meio da qual se procura evidenciar que na verdade ele é
um mito – não no sentido de não haver qualquer método científico
(existem vários) e, sim, pela inexistência de um método único –,
apresentamos, agora, o posicionamento de um assumido “anarquista
metodológico”, um influente físico que dialoga com os teóricos da
ciência. Segundo o seu ponto de vista:
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Ensaios de geografia crítica
A ideia de que a ciência pode e deve ser elaborada com
obediência a regras fixas e universais é quimérica e
perniciosa [...] Torna a ciência menos plástica e mais
dogmática [...] Os cientistas não resolvem problemas por
possuírem uma varinha de condão – a metodologia ou uma
teoria da racionalidade – mas porque estudaram o
problema por longo tempo e conhecem bem a situação,
porque não são tolos (embora caiba duvidar disso hoje em
dia, quando quase qualquer pessoa pode tornar-se um
cientista) e porque os excessos de uma escola científica
são quase sempre contrabalançados pelos excessos de
alguma outra escola. Além disso, os cientistas só
raramente resolvem os problemas; eles cometem erros
numerosos e oferecem, frequentemente, soluções
impraticáveis [...] Se desejamos compreender a natureza,
devemos recorrer a todas as ideias, todos os métodos e
não apenas a um número reduzido deles. A asserção de
que não há conhecimento fora da ciência moderna nada
mais é que outro conto de fadas. As tribos primitivas
faziam classificações de animais e plantas mais minuciosas
que as da zoologia e da botânica de nosso tempo;
conheciam remédios cuja eficácia espanta os médicos (e a
indústria farmacêutica já aqui fareja uma nova fonte de
lucros); dispunham de meios de influir sobre os membros
do grupo que a ciência por longo tempo considerou
inexistentes; resolviam difíceis problemas por meios ainda
não perfeitamente entendidos (construção de pirâmides,
viagem dos polinésios)9.
Enfim, uma posição pluralista ou “pós-moderna”, na qual não existe
um método unitário e, sim, um grande número deles, que às vezes
podem até ser opostos ou alternativos, mas que funcionam (ou não)
neste ou naquele caso, na resolução (sempre provisória) deste ou
daquele problema, na constituição de teorias que parecem se ajustar aos
fatos ou pelo menos a uma série deles. Métodos nos quais pode-se
9
FEYRABEND, P. Contra o método. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977. Os grifos são do
autor.
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José William Vesentini
incluir a aceitação (total ou parcial, dependendo do caso) de saberes
tradicionais, do senso comum, da indução e contra-indução, da dedução
e de “experimentos imaginários”, do ensaio e erro, de regras
provisórias e de sua violação como condição para um novo avanço, da
filosofia e das artes (por exemplo, literatura, poesia, música), da
intuição e da criatividade. Como diz o autor, “A ciência é um
empreendimento essencialmente anárquico [...] O único princípio que
não inibe o progresso é: vale tudo”10. Um ponto de vista que, mesmo
sem negar a importância da ciência moderna, relativiza o seu status
como o “conhecimento mais nobre ou racional”, ou como o “único
saber que deve ser ensinado nas escolas”.
Não é, portanto, o método que define a ciência moderna. Sequer existe
um método científico unitário, como também, conforme reafirmou mais
um especialista na filosofia da ciência11, no fundo não existe “a”
ciência no singular – a não ser enquanto um conjunto de conhecimentos
objetivos e racionais diferenciados que buscam compreender o mundo
ou a realidade. De fato, existem ciências, no plural, com métodos
variados, que estudam objetos (que, por sinal, não são fixos e
invariáveis; eles variam no tempo, são entendidos de diversas maneiras
e muitas vezes deixam de existir ou se transformam completamente)
relativamente distintos, embora frequentemente sobrepostos, ou
ocupam-se de “regiões do saber” tidas como diferentes.
O que define, então, a ciência e a cientificidade?
O conhecimento científico é objetivo e racional. Esta é uma afirmação
axiomática, embora as ideias de racionalidade e de objetividade – como
quaisquer outras – sejam passíveis de discussões12. Como afirma com
pertinência Popper, a tarefa das ciências é encontrar explicações
causais e satisfatórias para qualquer coisa que tenha algum interesse13.
É evidente que causalidade não deve ser entendida como algo mecânico
10
Idem, grifos do autor.
Cf. GRANGER, G.G. A ciência e as ciências. São Paulo, Editora da Unesp, 1994.
12
Cf. CASTORIADIS, C. Reflexões sobre desenvolvimento e racionalidade. In: As
encruzilhadas do labirinto/2. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987; e POPPER, K. Conhecimento
objetivo. Belo Horizonte, Itatiaia, 1999.
13
POPPER, K. Conhecimento objetivo. Op. Cit., p. 182, grifo do autor.
11
18
Ensaios de geografia crítica
e unilateral, na forma de um raciocínio simplista do tipo “causa é causa
e consequência é consequência”. Na verdade, a causa, ou na maioria
das vezes as causas – que consistem amiúde num número
indeterminado de fatores –, pode ser algo probabilístico e não um
fenômeno específico e totalmente delimitado; e a(s) consequência(s)
pode(m) virar causa(s) e vice-versa14.
Ipso facto, é pura fantasia desprovida de qualquer conteúdo a crença na
existência de uma “lógica dialética” que teria superado o pensamento
racional alicerçado na lógica formal e na causalidade. Como afirmou
Edgar Morin, a palavra dialética tornou-se apenas uma panacéia
utilizada para não enfrentar ou obnubilar as dificuldades teóricas e
práticas15. Outrossim, o mais famoso antropólogo do século XX já
tinha arrasado a pretensão de um filósofo (Sartre) de teorizar uma
“razão dialética” apartada e superior à “razão analítica”, ao demonstrar
com inúmeros exemplos que esse mesmo filósofo – como também
Marx e Hegel (pelo menos nos trechos onde este não é propositalmente
obscuro e especulativo) –, para explicar suas ideias, tinha
constantemente feito uso da classificação, da distinção, da oposição e
da definição, considerados – dentre outros – atributos da “superada”
lógica formal16.
Mas explicações causais e satisfatórias, objetivas e racionais, não
significam definitivas. Não existem – e provavelmente nunca vão
existir – explicações finais, isto é, definitivas. As explicações
científicas sempre são aproximações que explicam melhor, mas nunca
integralmente ou exatamente, um aspecto da realidade. O essencialismo
– isto é, a crença numa “essência” dos fenômenos, que seria captada
por alguma teoria – é uma doutrina filosófica (de Platão, Hegel, Marx e
outros) e não científica17. Só que não é possível separar com exatidão,
demarcando fronteiras rígidas, os conhecimentos científicos dos
filosóficos, daqueles do senso comum, dos saberes de povos
14
Cf. MORIN, E. Introduction à La pensée complexe. Paris, Seuil, 2005.
MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003, p. 190.
16
Cf. LEVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. São Paulo, Cia Editora Nacional, 1976,
capítulo 9.
17
POPPER, K. Conhecimento Objetivo, Op.Cit.
15
19
José William Vesentini
tradicionais e de alguns aspectos das artes. Mesmo sendo relativamente
diferentes, todos esses conhecimentos ou saberes se imiscuem, se
influenciam mutuamente, são enfim parcialmente imbricados. Contudo,
isso não significa que a tarefa de definir o que é – e o que não é –
científico seja inútil18. Como também não significa que procurar
entender algo sem nunca encontrar uma explicação definitiva seja
estéril. Se o fosse, seria perda de tempo fazer ciência ou mesmo dar
qualquer explicação racional, pois esta sempre é contextualizada e
provisória, ao contrário dos dogmas que se apresentam como absolutos
e eternos. As explicações racionais e, em particular, as científicas são
extremamente úteis e amiúde eficazes, gerando resultados práticos, seja
pela sua aplicação (tecnologia ou ação mais eficiente sobre algo), seja
pelo convencimento, pela sua aceitação como verdade provisória, o que
é importante para as regras da sociedade.
Como sistematizou um filósofo da ciência, esta é, em primeiro lugar,
uma visão de uma realidade; é a busca de uma verdade (relativa), ou
seja, um empreendimento que procura descrever e explicar algo que
supostamente existe, que faz parte de um meta-conceito chamado
realidade; e também, assinala, é um conhecimento que constantemente
busca uma validação, isto é, um confronto permanente da teoria com os
fatos19.
Outro autor, num manual onde procura explicitar os cânones de uma
pesquisa científica, assinala que a ciência tem quatro requisitos: (1) é
um estudo sobre um objeto reconhecível e definido como tal pelos
outros; (2) é um estudo que diz algo novo sobre o objeto, algo que
ainda não foi dito ou uma nova perspectiva para o seu entendimento;
(3) o trabalho deve ser útil aos demais pesquisadores ou cientistas da
área; (4) deve fornecer elementos para a verificação ou comprovação
das hipóteses apresentadas, o que significa que ele pode ser continuado
18
Neste ponto discordamos de MORIN, E. Ciência com consciência, op.cit., que sugere ser
danosa a tentativa de separar, mesmo de forma relativa, a ciência da não ciência. Essa é a
principal crítica que ele faz a Popper, autor constantemente mencionado em seus trabalhos.
Se isso fosse verdade, nem teria sentido Morin escrever – como de fato escreveu – centenas
de páginas explicando o que é ciência, em que períodos ela atravessou “revoluções”, quais são
suas relações com a democracia, com a tecnologia etc.
19
GASTON-GRANGER, G. Op.Cit.
20
Ensaios de geografia crítica
de alguma maneira – refutado total ou parcialmente, prosseguido com
novas contribuições etc.20.
Em resumo, as ciências consistem num conjunto extremamente
heterogêneo. Elas não são iguais, sequer semelhantes em que pese o
fato de que, por princípio, todas buscam compreender racionalmente
algum aspecto do real, do mundo, de tudo o que existe afinal. Mas a
própria realidade é diversificada, heterogênea, multifacetada, passível
de ser perscrutada neste ou naquele aspecto com princípios ou lógicas
distintos. Basta atentarmos para a coexistência do determinismo com o
indeterminismo, do acaso com a necessidade, da ordem com o caos.
Podemos até especular se a unidade que conferimos ao real não é
apenas uma crença, um produto de nossas mentes. É lógico que não se
está advogando algum tipo de idealismo que denega a existência de
uma realidade exterior. Mas nada garante que esse real – ou realidades
– seja algo unívoco. Acreditamos que o construtivismo
epistemológico21 representa uma ultrapassagem da antiga querela entre
os realistas ou materialistas e os idealistas. Nem o mundo é produto de
nossas mentes e nem é uma realidade externa que se impõe a nós, como
se fosse algo que apenas observássemos de fora, num sobrevôo. Num
certo sentido, são as duas coisas concomitantemente, ou melhor, uma
síntese das duas. Na verdade, o mundo ou o real – que só apreendemos
pelas nossas teorias, nossas imagens, nosso conhecimento enfim – é
construído pelo intelecto humano, embora não no sentido de ser uma
fantasia, de não existir fora deste, mas, sim, pelo fato de só dispormos
de aproximações e nunca verdades exatas ou uma correspondência
perfeita entre as coisas e as nossas representações. Sei que muitos
argumentam que os cometas – ou o relevo de uma área, ou os gases na
atmosfera, ou outro fenômeno qualquer – existem objetivamente. Mas
são as nossas teorias que constituem a ciência, o conhecimento
científico, e não os pretensos “fatos” ou “coisas” que povoam o mundo
externo. Ademais, inúmeros aspectos da realidade ou do mundo são
objetos inventados por nós, pela sociedade, pelos pesquisadores, pelos
20
ECO. U. Como se faz uma tese. São Paulo, Perspectiva, 2000, 15ª reimpressão.
Cf. HABERMAS, J. A ética da discussão e questão da verdade. São Paulo, Martins Fontes,
2007.
21
21
José William Vesentini
vencedores de determinados embates (políticos ou intelectuais) etc. Por
exemplo: os juízos de justo ou de verdadeiro, de certo ou de errado; as
leis e as normas sociais; os fatos históricos (que na verdade são
selecionados e reinterpretados pelos investigadores e nunca algo cuja
objetividade e importância está além de qualquer discussão); as regiões
geográficas (idem); as instituições sociais; os números e os teoremas
matemáticos; as regras lógicas e por aí afora. Avaliando pelas teorias
científicas, que afinal de contas constituem em média a melhor
perscrutação que a humanidade dispõe para a explicação desse mundo
objetivo, dessa realidade, é forçoso constatar que muitas vezes elas são
contraditórias, não formando uma totalidade coerente e articulada.
Mesmo assim elas são operacionais ou eficazes, e dão conta, cada uma
à sua maneira, pelo menos durante algum tempo, do entendimento e até
da ação sobre os fenômenos aos quais se referem.
As ciências não vivem apenas no mundo das teorias. Elas se enraízam
na sociedade, da qual dependem e são parte integrante. De forma mais
específica, elas se materializam nas universidades e nos institutos de
pesquisas e de fomento à atividade científica – e, eventualmente, nos
setores governamentais ligados à defesa e ao militarismo.
Indubitavelmente, existe nesse mundo social e acadêmico uma clara
hierarquia com ciências “mais nobres”, ou supervalorizadas, ocupando
o topo de uma pirâmide, e as “plebéias” ou depreciadas, que ficam na
base dessa figura geométrica. Fazendo uma analogia com os Estados
nacionais, existem ciências centrais e periféricas, desenvolvidas e
subdesenvolvidas. Poucas delas servem de modelo para o que se
denomina cientificidade – a física, em primeiro lugar, seguida pela
astronomia, química e biologia; a matemática é tida como uma
linguagem da ciência. São as “ciências desenvolvidas” ou as
“verdadeiras ciências” no entendimento da parcela majoritária dos
epistemólogos. Em contrapartida, um número bem maior de disciplinas
– psicanálise, pedagogia, história, ciência do direito, ciências da
comunicação, criminologia, entre outras, além da geografia e mais
ainda da geopolítica – são taxadas de subdesenvolvidas ou periféricas
(isso na melhor das hipóteses), de embriões de ciência ou até, algumas
vezes, catalogadas como não ciências ou pseudociências.
22
Ensaios de geografia crítica
Exemplos dessa atitude são incontáveis. Aquele que provavelmente foi
o mais célebre epistemólogo do século XX, após definir cientificidade,
proclamou de forma taxativa que tanto a psicanálise como todas as
formas de saber das ciências humanas (sociologia, economia,
história...) que utilizam o materialismo histórico carecem desse
atributo, ou seja, não são científicas22. Um especialista em filosofia da
ciência assinalou que “É bastante claro, realmente, que os saberes
sociológicos ou psicológicos, econômicos ou linguísticos, não podem
pretender, em seu estado presente e passado, ter a solidez e a
fecundidade dos saberes físico-químicos, ou até biológicos.” Logo em
seguida ele se pergunta: “Em que sentido, porém, é lícito atribuir-lhes o
nome de ciências?” 23. Inclusive o autor de quem extraímos alguns
trechos como epígrafe deste ensaio admite que, quando fala em ciência,
se refere principalmente à física:
Privilegiei a física porque é evidente que ela é uma ciência
canônica, a primeira das ciências; ela que se considerou
uma ciência completa, que tratou ao mesmo tempo do real
e do universo, que executou um movimento extraordinário
porque, quando achava ter atingido a perfeição,
bruscamente perdeu seus fundamentos [...] Portanto, a
física é interessante porque põe no estado mais puro, mais
exemplar, todos os problemas da cientificidade24.
Até mesmo um ferrenho defensor da cientificidade nas ciências
humanas – embora sempre enfatizando que elas, pela peculiaridade de
seus objetos, não podem almejar o mesmo grau de objetividade e
sistematização das ciências da natureza – acredita piamente que nada
mais são do que “ciências novas”25. Um sociólogo francês de prestígio
assinalou que as disciplinas acadêmicas formam uma pirâmide do
ponto de vista do seu prestígio e status; segundo ele, a geografia ocupa
na hierarquia acadêmica uma posição bem abaixo da ocupada pela
22
23
24
25
POPPER, K. El desarrollo del conocimiento científico. Op. Cit.
GASTON-GRANGER, G. Op. Cit.
MORIN, E. Ciência com Consciência, p. 71.
JUPIASSU, H. Introdução às ciências humanas. São Paulo, CNPq/Letras & Letras, 1994.
23
José William Vesentini
economia26. E aquela que é de longe a mais conceituada premiação do
avanço científico no mundo, o prêmio Nobel, seleciona somente as
conquistas realizadas pela física, química e fisiologia ou medicina;
esses é que são os prêmios cobiçados e de maiores prestígios – o “hall
da fama”, como se diz. Os demais prêmios chamados de Nobel – da
paz, de literatura e de economia – são considerados secundários, com
menor prestígio e, no caso da economia, surgiram depois e à margem
da Fundação Nobel da Suécia.
Não é a premiação o que nos interessa. Tampouco o status social das
ciências ou mesmo das disciplinas acadêmicas. (Duas coisas distintas:
nem toda disciplina acadêmica é uma ciência; mas este não é um
assunto que valha a pena abordar aqui e agora). Afinal, qualquer
concessão de prêmios ou láureas, por melhor que seja o processo de
escolha, sempre é subjetiva e discriminante. E o status social de uma
ciência, de uma tecnologia ou mesmo de uma profissão depende
fundamentalmente do seu maior ou menor sucesso financeiro – e
também, de forma complementar, do seu poder no sentido de mando ou
tomada de decisões sobre a vida das pessoas ou sobre os recursos
econômicos –, o que pouco tem a ver com reais conquistas científicas.
O que importa aqui é discorrer sobre a periferização da geografia, uma
ciência que, nos albores da revolução científica, foi um saber de
vanguarda, ocupando junto com a astronomia e a física (bem mais que
a química, bem mais que a biologia) uma posição central no conjunto
das ciências. Prosseguindo com o nosso paralelo com o
desenvolvimento desigual das nações, não é absurdo afirmar que a
geografia, neste aspecto, tem semelhanças, digamos, com Portugal 27.
Esse pequeno país ibérico estava na vanguarda da expansão marítimocomercial européia do século XV – poderíamos mesmo dizer,
respaldados no historiador Paul Kennedy, que era uma grande potência
26
BORDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998.
Esta comparação é aleatória e tão somente metafórica. Ela não deve ser levada a sério em
demasia. Poderíamos tomar outros exemplos de países que conheceram um declínio relativo
no sistema internacional, mas o caso de Portugal nos parece interessante pelo seu intenso
brilho no início da expansão marítimo-comercial européia que resultou na criação de um
mundo unificado. Também a geografia conheceu o seu maior brilho, pelo menos até o
momento, no período de nascimento da ciência moderna.
27
24
Ensaios de geografia crítica
mundial28 – e que, nos séculos seguintes acabou se transformando num
Estado periférico ou atrasado. A geografia também esteve na vanguarda
das ciências. Nos séculos XVI e XVII – período da revolução
científica, moderna com Copérnico, Bruno, Kepler, Bacon e
principalmente Galileu –, a geografia integrava as matemáticas e
desempenhou um importante papel na constituição de um novo mundo
(com os descobrimentos, uma nova visão da superfície terrestre e uma
nova cartografia) e na formação da chamada Scienza Nuova29. Dois
estudiosos da história do pensamento geográfico assinalaram que:
A geografia teve um papel destacado na revolução
científica do século XVII, que assentou as bases da ciência
moderna. Alguns dos problemas importantes da época
tinham que ver com a estrutura, forma e magnitude da
Terra. Os tratados sobre a esfera terrestre se viram
afetados pela discussão e triunfo da concepção
copernicana, que exigiu a elaboração de uma nova
geografia que levasse em conta os movimentos da Terra e
seus efeitos nos diversos lugares do globo. As travessias
por grandes oceanos haviam colocado novos problemas
para a navegação [...]30.
O que ocorreu? Primeiro, temos que lembrar que é equivocada aquela
imagem de um Estado (ou um saber) como eternamente desenvolvido
ou, então, periférico – isto é, ele sempre o foi e sempre o será. A
história, de uma forma geral – tanto a política, a econômica, a militar
ou mesmo a cultural e a da tecnologia (nas quais se inclui, como um
capítulo especial, a história das ciências) –, é plena de reviravoltas e
surpresas. Tudo sofre mudanças, tudo se transforma, mesmo que, às
vezes, uma determinada situação perdure por séculos. Os Estados, por
exemplo, podem deixar de existir; ou novos deles, inclusive com traços
completamente diferentes, podem surgir. Não é incomum que eles
ganhem ou percam terras, parcelas do seu território. Isso também
ocorre com as ciências ou os saberes no sentido amplo do termo. A
28
29
30
KENNEDY, P. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro, Campus, 1989.
KOYRÉ, A. Do mundo fechado ao universo infinito. São Paulo, Edusp, 1979.
CAPEL, H. e URTEAGA, L. Las nuovas geografias. Barcelona, Salvat, 1988.
25
José William Vesentini
geografia perdeu grande parte do seu antigo território, ou melhor, do
seu campo de estudos. Boa parcela dos conteúdos – ou objetos – atuais
da astronomia, da geologia, da geofísica, da antropologia, da economia
e até da botânica, faziam parte das ciências geográficas durante séculos,
mais de dois mil anos, desde a Grécia antiga (quando surgiu a palavra
geografia, que sistematizou um ramo do saber, com Erastóstenes no
século III a.C.) até por volta do século XVIII. Esse processo, na
verdade, continua a ocorrer: como mostrou Bordieu31, a partir do
momento – iniciado nos anos 1930 – em que o planejamento regional
se tornou importante, gerando um enorme volume de recursos
financeiros, além de prestígio político e social, os economistas
passaram a se apropriar do objeto “região”, que antes era exclusivo da
geografia. (A tradição geográfica no estudo das regiões vem no mínimo
desde Estrabão, que viveu provavelmente no século I a.C. e criou a
expressão “geografia regional”). Mais recentemente, a nova e
promissora área das ciências geográficas, os Sistemas de Informações
Geográficas (os SIGs ou GIS, Geographic Information System), passou
a ser quase que totalmente controlada por engenheiros e físicos. Se
servir de consolo, pode-se lembrar que tal fato não ocorreu nem ocorre
apenas com a geografia. É algo relativamente comum com o avançar do
conhecimento, o qual, afinal de contas, não é um processo evolutivo e
linear, tal como a (falsa) imagem popular de uma escada com os
degraus que vão subindo por etapas, mas, sim, processos, no plural,
onde há rearranjos, recomposições, parecendo mais um caleidoscópio
do que um filme32.
As ciências não constituem, como pretendia Comte com o seu
positivismo clássico, estudos separáveis por fronteiras tangíveis, tendo
cada uma o seu “objeto de estudos” bem delimitado33. Mesmo com a
ocorrência de uma crescente especialização a partir do século XVII – e
mais ainda no século XIX –, as ciências continuam a ser imbricadas,
31
BORDIEU, P. Op. cit.
Cf. as brilhantes análises de FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro,
Forense/universitária, 1986; e também a interpretação do historiador Paul VAYNE. Foucault
revoluciona a História. Brasília, Editora da UNB, 1982.
33
Cf. VERDENAL, R. A filosofia positivista de Augusto Comte. In: CHÂTELET, História da
Filosofia, volume 5, p. 212-46.
32
26
Ensaios de geografia crítica
continuam pelo menos em parte a estudar os mesmos objetos sob
diversas perspectivas, com frequentes “invasões” do terreno da outra (o
que gera inegáveis avanços, para horror dos positivistas) e, muitas
vezes, até “roubando” parcelas deste. A filosofia, por exemplo, apesar
de hoje não se considerar nem ser considerada pela comunidade
acadêmica como uma ciência34, já foi tida como a “grande ciência”, a
“ciência mais nobre de todas” nas palavras de Platão. Isso antes do
advento da ciência moderna, que afirmou a necessidade de confrontar
as teorias com os fatos e engendrou uma crescente divisão no trabalho
intelectual e de pesquisas. A própria física, na época de Aristóteles, era
vista como um ramo da filosofia. Por sinal, durante muito tempo a
física – physiké, em grego, que significa natureza – era o estudo de toda
a natureza, orgânica ou inorgânica, abrangendo temas que hoje são
objetos da química e até da biologia. A lógica, que durante séculos foi
parte da filosofia, no transcorrer do século XX tornou-se cada vez mais
uma especialização da matemática. Também a pedagogia vem
enfrentando uma crescente apropriação de parte do seu campo de
estudos (e, principalmente, de atuação nos setores mais lucrativos ou de
maior prestígio, em especial a política educacional), com a recente
valorização do ensino como alicerce indispensável para o
desenvolvimento econômico e social. Cada vez mais, economistas e
outros profissionais que, como diria Bordieu, “ocupam posições
hierárquicas na academia e na sociedade superiores às da pedagogia”,
vem se apossando das decisões e dos cargos mais importantes na área
educacional. Isso ocorre em praticamente todos os países do mundo
(pelo menos naqueles que efetivamente possuem uma política
educacional) e até mesmo nas organizações internacionais como a
ONU, o Banco Mundial ou a UNESCO. Exemplos como esses
poderiam ser multiplicados. Mas o que interessa agora é refletir sobre o
caso da geografia. Essa reflexão, contudo, malgrado suas
especificidades, perpassa a questão da cientificidade nas ciências
humanas.
Longe de serem “ciências novas” – uma ideia baseada na descoberta de
Foucault de que o “homem” ou a “população” é um objeto de estudos
34
Cf. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é filosofia? São Paulo, Editora 34, 2000.
27
José William Vesentini
relativamente recente na história do Ocidente, pois foi construído nos
séculos XVIII e XIX –, as ciências humanas (ou pelo menos uma parte
delas: a história, a politicologia, a geografia35) têm uma longa e rica
tradição que remonta à Grécia antiga. Basta pegarmos algumas análises
ou escritos de Estrabão35b, que, sem dúvida, continuam relativamente
atuais. É evidente que os lugares ou os povos analisados mudaram
radicalmente, ou deixaram de existir. Mas boa parte da metodologia –
de conhecimento in loco, observações sistemáticas, entrevistas e
inquéritos com pessoas da região etc. – prossegue válida, assim como a
perspicácia nas observações. No caso da história, basta dar uma espiada
na História da guerra do Peloponeso, escrita no século V a.C, para
comprovarmos que muitas interrogações que perpassam a obra (sobre a
distinção entre fatos e interpretações, por exemplo) ainda são
pertinentes36. No tocante à análise da vida política, quando relemos o
livro Política, de Aristóteles, que viveu no século IV a.C., logo
percebemos que a distância até nós não é tão grande. Sentimos certa
estranheza com os conceitos aristotélicos de monarquia, aristocracia (e
seu contrário, oligarquia) e democracia, mas é perfeitamente possível
apreender o seu raciocínio arguto e até aceitar (mesmo que
parcialmente) o seu ponto de vista. Mais ainda quando ele se refere à
necessidade de uma boa distribuição da terra, principal riqueza da
época, para existir uma forma de governo equilibrada e justa, sem
grandes conflitos sociais37b.
Inclusive, é perfeitamente possível utilizar esses textos clássicos nos
cursos atuais – de graduação ou pós-graduação – em diversas áreas das
35
Estou colocando neste conjunto a geografia consciente dos problemas e polêmicas a esse
respeito. Sem dúvida que durante séculos a geografia era mais ligada às matemáticas (e à
astronomia) do que à história, apesar do fato de que alguns autores de obras ou reflexões
geográficas (Heródoto, Estrabão) foram ao mesmo tempo historiadores e até antropólogos.
Mas é certo que, no transcorrer do século XX, principalmente na sua segunda metade, a
geografia acabou se firmando cada vez mais como uma ciência humana e social (apesar dos
protestos de alguns poucos na área da geografia física).
35b
STRABO. The Geography of Strabo. Loeb Classical Library edition, 1917, disponível in
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Strabo/ (capturado em março de
2009).
36
. TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. Brasília, Editora da UNB, 2001.
37
ARISTÓTELES. Política. Brasília, UNB, 1985.
28
Ensaios de geografia crítica
ciências humanas. Não que eles sejam “manuais” no sentido de terem
os conceitos ou as teorias “corretos”. Isso não existe, pelo menos não
nas ciências humanas e na filosofia, sequer no livro mais recente do
mais conceituado especialista; sempre polemizamos qualquer obra e
relativizamos qualquer compêndio. Mas eles continuam a suscitar
reflexões e debates, apresentam problemas ainda relevantes. Em
contrapartida, praticamente ninguém vai utilizar um texto de Aristóteles
ou de qualquer outro clássico da antiguidade num curso de física,
química ou biologia. (A não ser que seja um curso de história da
ciência, mas este tipo de estudo não é uma ciência natural). Na
matemática isso seria possível, mas não nas ciências naturais. Nestas
seria extemporâneo ou mesmo burlesco. O próprio campo de estudos da
física, por exemplo – os seus objetos, o que inclui os conceitos e as
teorias –, daquela época praticamente nada tem em comum com o que
hoje é estudado. Os saberes são completamente diferentes: a física, a
química e a biologia foram, de fato, reinventadas ou reconstruídas a
partir dos séculos XVII e XVIII com a prática da experimentação (que
os antigos e os medievais desconheciam ou não aceitavam), com o
heliocentrismo e a teoria da gravitação universal e, posteriormente, nos
séculos XIX e XX, com a teoria da evolução e a genética, com a
relatividade especial e a geral, com a mecânica quântica etc. Daí se
falar em ciência moderna a partir do século XVII, em contraposição à
ciência (ou saberes) clássica ou tradicional.
Essa revolução científica não ocorreu – embora tenha exercido um forte
impacto – nas ciências humanas. Por esse motivo, até hoje é
extremamente difícil – embora não impossível, ao menos em termos
ideais, isto é, o que “deveria ser” um estudo filosófico em
contraposição a um científico sobre tal ou qual tema (democracia,
modernidade, globalização, crise ambiental etc.) – separar com precisão
a filosofia das ciências humanas. Em contrapartida, é bem menos
problemático diferenciar a filosofia das ciências naturais. Aqui, as
diferenças de abordagem em praticamente qualquer tema (por exemplo,
no que é o universo, a Terra, o espaço e o tempo, os quanta etc.) são
colossais, são perceptíveis à primeira vista até mesmo para um leigo.
Na verdade, foram principalmente as ciências naturais que se apartaram
de forma crescente e visível dos saberes tradicionais, da filosofia, a
29
José William Vesentini
partir do século XVII. Nas ciências humanas, em grande parte, isso
ainda não ocorreu, pelo menos não de forma inequívoca. E talvez –
quem sabe? – nunca vá ocorrer. Afinal, os objetos que estudam não
comportam a experimentação, a rígida formalização e tampouco
explicações causais unívocas38.
É certo que muitas “ciências novas” surgiram no século XIX, em sua
quase totalidade procurando se espelhar na metodologia, na
sistematização e em alguns conceitos e teorias das ciências da natureza.
Pode-se mencionar, entre outras, a sociologia (que, no início, com o seu
fundador, Auguste Comte, pretendia ser uma “física do social”), a
antropologia, a linguística, a ciência do direito, a criminologia, a
ciência política (que, na visão de muitos, foi fundada por Maquiavel no
século XVI39) e até a economia (a qual, na verdade, teria sido forjada,
na sua forma moderna, no século XVIII –, seja com os fisiocratas, seja
com Adam Smith). Mas, devido aos seus objetos – no fundo, o homem,
a humanidade em algum de seus atributos, em geral as suas obras e
atividades mais abstratas: economia, idiomas, regras e leis, cultura,
instituições –, elas nunca alcançaram o grau de formalização
(matematicidade, leis ou teorias que podem ser expressas em fórmulas
e, principalmente, que são testáveis) das ciências naturais. Ao contrário
do que imaginam alguns, os preconceituosos ou de visão estreita, isso
não decorre de uma incapacidade dos investigadores nas ciências
38
Foi exatamente por esse motivo que, há mais de cem anos, Wilhelm Dilthey e outros
propuseram diferenciar as ciências da natureza e as do espírito. Naquelas existiriam
explicações e nestas compreensão. As explicações estariam ligadas à experimentação, à ideia
de certezas (mesmo que relativas), a uma causalidade menos problemática. E a compreensão,
por sua vez, seria composta por leituras ou interpretações – daí a valorização da hermenêutica
– que nunca vão esgotar o objeto estudado.
39
FOUCAULT, M., nas suas aulas ministradas em 1978 no Collège de France (Segurança,
Território, População, São Paulo, Martins Fontes, 2008), questiona essa ideia mesmo sem
negar a importância da obra de Maquiavel e, principalmente, a sua enorme popularidade. A
tradição na qual se inscreve O Príncipe (ela não foi a primeira nem a última obra do período
com essa preocupação de ensinar ao governante como conquistar ou manter seu principado),
segundo Foucault, caracteriza uma relação de exterioridade entre o príncipe e a sociedade. A
análise política moderna e ainda atual, por outro lado, só teria sido iniciada a partir do final do
século XVIII com as novas ideias de população (que passa a ser o objetivo último do governo
no lugar do principado, que era mais identificado com o território) e de economia política,
com seus objetivos de bem-estar, crescimento da riqueza nacional etc.
30
Ensaios de geografia crítica
humanas, isto é, da falta de um “gênio” (um Einstein, um Newton ou
um Darwin) que as revolucionasse. Nada disso. Mesmo com a noção de
QI sendo questionada hoje, em especial a partir da descoberta das
“múltiplas inteligências”, não temos dúvidas de que existiram e existem
inúmeros cientistas sociais com elevadíssimo nível de inteligência
(tanto lógico-matemática como linguística, passando pela musical,
espacial, interpessoal, emocional etc., além de um grau de criatividade
e criticidade provavelmente superior ao encontrável entre os cientistas
da natureza40), que, mesmo assim, não conseguiram ou não puderam
engendrar novas e revolucionárias teorias tais como as dos genes, dos
quanta ou da relatividade. Principalmente teorias testáveis, que têm
aplicação prática e geram uma tecnologia avançada, como são essas
mencionadas teorias das ciências naturais. Inclusive, há o exemplo de
várias eminências indiscutíveis – até alguns prêmios Nobel – em suas
áreas (física, medicina, química ou matemática) que migraram para a
filosofia ou para as ciências humanas e, de forma aparentemente
inexplicável, nunca conseguiram reproduzir as suas descobertas ou
teorias indiscutivelmente inovadoras nestas últimas áreas do
conhecimento.
Albert Einstein mencionou em algumas entrevistas que, quando era
jovem, tinha o sonho de tornar-se geógrafo. Quando escolheu um curso
superior, com relutância optou pela física e não pela geografia –
segundo ele, porque esta seria “mais difícil” e exigiria muitas viagens
para conhecer os lugares, algo que demandaria tempo livre e recursos
financeiros41. Ao tomarem conhecimento deste fato, muitos estudantes
40
Digo isso não por algum tipo de preconceito ou de bazófia e, sim, pelo bom senso. Assim
como é provável que boa parcela das pessoas que possuem uma inteligência físico-cinestésica
mais desenvolvida procure se dedicar aos esportes (desde que as condições sociais e pessoais
o permitam, evidentemente), também os que têm uma maior inteligência musical tendem a
se dedicar às artes, e aqueles com maior espírito crítico, de uma forma geral (sempre há
exceções), se identificam mais com a filosofia e/ou com as ciências humanas.
41
Não se pode esquecer que, no final do século XIX, a imagem do geógrafo identificava-se
bastante com Alexander von Humboldt, tido como o grande nome da ciência na primeira
metade desse século – na segunda metade, Darwin, que na juventude havia sido um
admirador de Humboldt, ocupou o lugar de modelo exemplar de cientista, ou melhor, de
naturalista. Humboldt, oriundo de uma família prussiana aristocrática e abastada, foi um
incansável viajante e nunca trabalhou no sentido moderno do termo, ou seja, nunca exerceu
31
José William Vesentini
ingênuos lamentam ter sido a geografia privada de um gênio que iria
produzir neste campo do saber algo semelhante às duas teorias da
relatividade. Um juízo no fundo popular, todavia singelo, que não
atenta para o fato de que as inovações não dependem tanto das pessoas
como do contexto ou das oportunidades. Não que pairem dúvidas sobre
a genialidade desse cientista, isto é, a sua imensa criatividade e o seu
altíssimo grau de inteligência lógico-matemática. De mais a mais, ele
se dedicava quase integralmente aos estudos, e gostava disso, fatos que
são importantíssimos – às vezes mais até que os níveis de inteligências
ou de criatividade. Talvez, como geógrafo, ele contribuísse bastante
para este ramo do conhecimento, mas, sem dúvida, que aqui ele não
poderia dar origem a uma revolução semelhante à que operou na física.
Sabemos serem, em grande parte, as circunstâncias que fazem o
personagem, inclusive os gênios42. A física estava amadurecida, isto é,
pronta para ser revolucionada no final do século XIX e inícios do XX.
Mas a geografia não. Uma época da profunda reformulação na
geografia já tinha ocorrido dos séculos XV ao XVII, outra menos
espetacular no século XIX – esta última, na verdade, foi mais uma
redução e redefinição do campo de estudos com uma nova
sistematização. Felizmente para ele e talvez para toda a humanidade,
Einstein optou pela física, pois quase certamente na geografia (como
também na história, na sociologia etc.) não poderia gerar tamanho
impacto como o que produziu na concepção e metodologia da ciência
física, na descoberta da energia contida na massa, no entendimento do
sistema espaço-tempo e do universo; muito menos algo como abrir
caminho para a energia nuclear e para os armamentos atômicos.
Convém recordar que o espaço geográfico não é o espaço-tempo da
qualquer atividade remunerada. Ele viajava e pesquisava, escrevia livros e, eventualmente,
dava alguma palestra somente pelo prazer de expor suas ideias. Quando seu irmão mais
velho, Wilhelm, fundou a Universidade de Berlim e, depois de algum tempo, o convidou para
formar um departamento de geografia, o primeiro no mundo, Humboldt declinou da tarefa e
indicou o nome de Karl Ritter.
42
HEIDEGGER, M. (Ser e Tempo. Petrópolis, Vozes, 1989, Parte II) afirmou que um gênio
surge quando uma sociedade necessita, “em tempos de grande perigo”. Em geral, isso é válido
para toda a história do conhecimento, pois quando as circunstâncias estão favorecendo (o que
inclui as demandas sociais, o impasse das velhas teorias, que já não explicam aspectos da
realidade, as condições materiais e institucionais favoráveis para o avanço do saber etc.) é que
surgem – ou pelo menos são aceitas e incorporadas – as ideias novas e revolucionárias.
32
Ensaios de geografia crítica
física relativística. Estamos falando, aqui, do espaço de uma cidade ou
meio rural, do território de um Estado, do lugar de vivência de uma
comunidade. É evidente que existem certas relações ou possíveis
similaridades entre esses espaços. Por exemplo, a tridimensionalidade
da localização absoluta no espaço geográfico, algo banal e conhecido
há séculos, pode ser enriquecida pela proposição do tempo como uma
“quarta dimensão”. Mas isso, no fundo, não é nenhuma novidade, pois
os estudos clássicos já mostravam as mudanças na paisagem ou num
determinado lugar com o transcorrer do tempo, assim como as marcas
desta ou daquela época nos aspectos material e cultural dessa paisagem.
Tempo que na física é uma coisa – Einstein gostava de afirmar que, no
fundo, “o tempo é uma ilusão”43; e na história, na geografia ou na
psicologia, ou mesmo na medicina, é outra coisa diferente. Na física
relativística, o tempo é uma mera dimensão – um aspecto ou uma
“medida” – do espaço. (Por exemplo: a idade o universo depende da
sua extensão; e viajando no espaço, que é curvo, a uma velocidade
superior à da luz é possível retornar ou avançar no tempo). Mas nas
ciências humanas, em geral, o tempo é existência (individual ou
coletiva), é a nossa vida com seus acontecimentos e obras; é, no fundo,
irreversível, único e irrepetível.
A fortiori, relações ou possíveis similaridades não significam uma
identificação total, ou seja, uma subsunção do espaço geográfico no
espaço-tempo da física; tampouco a subsunção do tempo histórico ao
tempo reversível da física relativística44. Apesar de os geógrafos, em
geral, terem uma clara e injustificada ojeriza pela concepção de
dualidade (como se isso fosse apenas um mal-entendido ou uma
incapacidade de integrar duas coisas), na física mais avançada se
admite a existência de uma dualidade na mecânica quântica entre onda
43
Frase repetida com concordância por HAWKING, S. Uma nova história do tempo. Rio de
Janeiro, Ediouro, 2005. Também lembrada por PRIGOGINE, I. O fim das certezas. São Paulo,
Editora da Unesp, 1996, embora neste caso o autor procure relativizá-la (não denegar
totalmente e, sim, limitar o seu alcance) com a afirmação de que também existem eventos
irreversíveis.
44
Desde pelo menos Heiddeger, os fenomenológicos e existencialistas em geral, além de
outros filósofos e cientistas sociais, afirmam que o tempo humano não é o tempo da física
inaugurada por Einstein. Não que um esteja certo e o outro errado. Nada disso: cada um deles
é adequado ao entendimento da realidade à qual se refere.
33
José William Vesentini
e partícula. Nas noções sobre o espaço, ou espaços, existe não apenas
dicotomia, mas no mínimo tricotomia: o espaço na física é diferente do
da geografia, que é diferente do da psicologia etc. A bem da verdade, a
palavra espaço é ambígua e possui significados variados, algo que
muitas vezes gera confusão – tal como na escrita de alguns autores, que
apregoam estarem levando em conta um “espaço relativístico”45
quando, na verdade, estão praticando um mero jogo de palavras que
acarreta pouco ou nenhum avanço no conhecimento da realidade.
Esse tipo de retórica vazia, onde pretensamente se utiliza no
conhecimento do social os conceitos ou proposições da física
relativística, da mecânica quântica, do teorema de Gödel ou da teoria
do caos, é frequente em alguns – poucos, embora normalmente
famosíssimos – autores da filosofia e das ciências humanas em geral,
conforme demonstraram com inúmeros exemplos dois físicos de
renome46. Não se trata de denegar o valor das análises desses autores,
algumas vezes ricas e originais. (Embora, em geral, predominem os
discursos prolixos e sofísticos). O importante é não confundir o leitor,
sugerindo que se está aplicando conceitos avançados da física ou da
matemática quando, na verdade, se escreve a respeito de uma realidade
completamente diferente. Seria possível fazer analogias entre as
diversas realidades, isso sim, mas não sugerir que o mesmo conceito ou
teoria é utilizável no mundo social e histórico. Como assinalaram os
dois mencionados físicos, esses conceitos ou teorias da matemática e da
física não se referem de forma alguma à sociedade e, quando eles são
empregados na sua análise, inevitavelmente incorre-se numa distorção,
num uso errôneo e inadequado47.
Na geografia mesmo tornou-se comum, pelo menos no Brasil, tanto em
artigos e livros como em teses acadêmicas, repetir a definição segundo
a qual “espaço é uma acumulação desigual de tempos” como se fosse
alguma novidade e um grande avanço frente ao “espaço
45
46
47
Cf. HARVEY, D. Explanation in Geography. Londres, Edward Arnold, 1969.
SOKAL, A. e BRICMONT, J. Imposturas intelectuais. Rio de Janeiro, Record, 2006.
SOKAL, A. e BRICMONT, J. Op. cit.
34
Ensaios de geografia crítica
(tridimensional) newtoniano”48. Ora, em primeiro lugar essa definição
tão somente reproduz, com outras palavras, uma das concepções de
Kant a respeito do espaço: para esse filósofo, adepto manifesto da física
newtoniana, o espaço mostraria, em suas marcas, em seus objetos, a
ação do tempo nos seus diversos momentos49. Em segundo lugar, a
referência a Einstein e à sua concepção de espaço-tempo encontra-se
completamente deslocada ou “fora de lugar” nessa caracterização do
espaço geográfico com os seus lugares e paisagens enquanto vivência
e/ou como trabalho e relação interpessoal e com a natureza. Isso fica
mais patente ainda quando recordamos que, para Einstein, o tempo se
define a partir do espaço (e não o inverso, tal como nas grandes
filosofias do século XIX: hegelianismo, marxismo e positivismo
clássico), ao passo que, nessa definição, o espaço subordina-se ao
tempo, passa a ser uma expressão material – uma “instância” – deste.
Enfim, não estamos preocupados se o espaço-tempo relativístico foi ou
não bem entendido e aplicado; isso seria praticamente um novo tipo de
escolástica. Queremos apenas realçar que são realidades variadas e
nada se ganha – a não ser em prolixidade e, para os tolos, uma sensação
de estar acompanhando uma teoria avançada da física – com essa
identificação do espaço geográfico (ou o tempo histórico) com o
espaço-tempo de Einstein.
De fato, o mundo histórico e social é diferente do físico, e mesmo na
física existem alteridades nos objetos estudados pela microfísica – as
partículas subatômicas – e a realidade maior do universo. A crença
metafísica numa só realidade, com uma única lógica para todos os seus
aspectos ou todo o universo, infelizmente fortíssima nas ciências
humanas (e mais ainda na geografia), muitas vezes gera uma espécie de
mimetismo, uma patética tentativa de imitar conceitos da física
avançada que mais atrapalha do que ajuda no entendimento da
48
Cf. SANTOS, M. Por uma geografia nova. São Paulo, Hucitec, 1979. O autor introduz essa
definição após a seguinte afirmação: “A concepção de um espaço relativo [...] em oposição à
de espaço continente (container) supõe, em primeiro lugar, que se abandone a ideia de um
espaço tridimensional, herdeira da filosofia de Newton, e que se passe a trabalhar com a ideia
de um espaço quadrimensional, tarefa possível desde que Einstein introduziu um novo
pensamento na física e na filosofia.”
49
Cf. KANT, I. Geografia Fisica. Bergamo, Leading Edizione, 2004.
35
José William Vesentini
realidade. Nesse sentido, concordamos com a seguinte observação de
um importante filósofo greco-francês:
Como escreveu Norbert Wiener, ‘o sucesso da física
matemática tornou o homem das ciências sociais ciumento
da sua potência, sem que ele compreenda verdadeiramente
as atitudes intelectuais que contribuíram para isso.
Exatamente como tribos primitivas adotam modas
ocidentais de roupa cosmopolita e de parlamentarismo a
partir de um vago sentimento de que essas vestimentas
ridículas e esses ritos mágicos os levarão diretamente ao
nível da cultura e da técnica modernas, assim também os
cientistas sociais forjaram-se o hábito de vestir de modo
ridículo as suas ideias, a bem dizer imprecisas, da
linguagem do cálculo infinitesimal’. A razão desse
fracasso é clara: são escassos os aspectos dos fenômenos
sociais que satisfazem às condições da teoria matemática50.
Ipso facto, o caráter irreversível, original e único dos fenômenos
histórico e sociais – e também dos lugares na geografia – talvez seja o
elemento essencial para entendermos a especificidade das ciências
humanas, suas diferenças qualitativas frente às ciências da natureza e as
dificuldades que elas possuem para formalizar, para tratar tudo ou
quase tudo como números e fórmulas. Por isso, a economia, entre todas
as ciências do homem, é a que mais se aproxima, embora com enormes
diferenças, do modelo da física. Os fenômenos econômicos – produção
de bens e serviços, que podem ser medidos em termos monetários,
dinheiro, mercadoria, trocas comerciais etc. – se prestam mais ao
agrupamento, à generalização e à quantificação do que os
acontecimentos históricos ou os lugares geográficos. Mas falamos em
diferenças qualitativas, que, sem dúvida, decorrem dos objetos
estudados, e não “atraso” ou mesmo em “juventude”, como apregoam
alguns.
Convém recordar que também existe – algo importantíssimo – a
originalidade do ser humano, em especial o seu livre arbítrio e sua
50
CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto/1. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
36
Ensaios de geografia crítica
racionalidade. Racionalidade definida, de forma simplificada, como
capacidade de avaliar e julgar as coisas, de ponderar suas causas e
consequências. E o livre arbítrio, de forma complementar e inseparável
da racionalidade, enquanto autonomia ou capacidade de decidir
“livremente”. (É óbvio que as condições sempre exercem a sua
influência, às vezes decisiva. Portanto, “livremente” deve ser entendido
não como liberdade total e absoluta, que não existe para nada ou para
ninguém, e, sim, como não condicionamento puro e simples pelo meio
e/ou pela natureza biológica, na medida em que existe algo chamado de
consciência racional junto com certa margem de opções). A
racionalidade e o livre-arbítrio do ser humano produzem esta
capacidade de reelaborar as coisas, inclusive a própria sociedade e o
próprio comportamento, o que implica em transformar radical e
constantemente o seu meio (cultural ou ambiental), algo que, lato
sensu, é conhecido como história. Isso resulta numa diferença
qualitativa fundamental das ciências do homem frente às ciências
naturais, pois naquelas o sujeito é ao mesmo tempo objeto e nunca uma
coisa que pode ser vista como externa, que pode ser manipulada em
laboratório ou testada com certa margem de exatidão em experimentos
controlados.
Dessa forma, outra distinção fundamental entre as ciências da natureza
e as da humanidade é a possibilidade da experimentação, sem dúvida o
fator essencial na eclosão da revolução científica moderna. A
experimentação reproduz fenômenos na física, na química e na
biologia, fazendo com que eles possam ser conhecidos e medidos com
precisão, algo que possibilita uma formalização e até mesmo certa
previsibilidade. Sem dúvida que há diversidades entre, por exemplo, a
física do universo, na qual se faz previsões praticamente exatas sobre a
trajetória dos cometas, em comparação com a biologia, que
normalmente convive com o acaso. Contudo, deixando de lado suas
inúmeras variedades, podemos dizer que essas ciências formam um
conjunto no qual, bem ou mal, existe uma grande margem de
formalização e previsibilidade. Nas ciências humanas em geral – salvo
exceções como determinados objetos na demografia ou na psicologia,
ciências do homem que são em parte biológicas –, isso não é possível.
Como reproduzir em laboratório, num experimento com as condições
37
José William Vesentini
controladas, uma revolução, uma crise mundial ou um lugar geográfico
específico? Não é possível porque eles são únicos, originais e em parte
imprevisíveis, além de possuírem uma abrangência gigantesca – com
milhares ou milhões de atores envolvidos, cujas ações se entrecruzam.
Isso sem contar com as questões éticas e jurídicas contidas nos
experimentos que envolvem seres humanos. Mesmo fatos
aparentemente semelhantes – tais como as revoluções denominadas
“socialistas”: a russa de 1917, a chinesa de 1949 ou a cubana de 1959;
ou então a crise econômica mundial de 1929, que segundo alguns teria
se repetido no final de 2008 –, na verdade, possuem diferenças
significativas. Cada situação é específica e até mesmo as generalizações
que fazemos – por exemplo, falar em revoluções “burguesas” e
“socialistas”, ou em crises econômicas, ou mesmo em região no sentido
geográfico do termo – sempre são questionáveis: em qualquer caso será
possível demonstrar que a situação X é alter, é completamente
diferente das situações Y ou Z, também classificadas no mesmo grupo
ou conceito. Via de regra, nem mesmo é possível examinar com
minúcias os fenômenos estudados pelas ciências humanas num
microscópio ou num telescópio, pois, além de sua abrangência, eles são
singulares e não repetíveis, com comportamentos que variam muito no
tempo e no espaço, bem diferentes daqueles dos cometas, dos ventos,
das bactérias e de outros objetos materiais não humanos.
Evidentemente que as generalizações são possíveis, assim como os
conceitos que abrangem um número indefinido de casos ou situações.
Sem isso, seria até mesmo duvidoso falar em ciências humanas ou
sociais. Mas cada situação social e histórica, ou lugar geográfico, é
específico e estudar as suas peculiaridades é algo que faz parte das
ciências do homem.
As ciências sociais, de uma forma geral, são tidas como periféricas
frente às da natureza. É lógico que, assim como no mundo
subdesenvolvido existem Estados mais periféricos e outros nem tanto,
além daqueles casos difíceis de serem classificados, também existe um
amplo espectro de situações variadas na hierarquia das ciências. A
economia, por exemplo, está mais bem posicionada do que a
pedagogia, a sociologia ou a geografia. Não que ela seja vista como
uma ciência indiscutível e modelar, tal como a física, e, sim, que
38
Ensaios de geografia crítica
desfruta um maior conceito na sociedade e na academia por vários
motivos. Primeiro, a importância do seu campo de estudos, a riqueza
material, na sociedade capitalista. Segundo, a prosperidade de seus
membros: os economistas, em média, ganham mais dinheiro, logo
possuem maior status social do que os historiadores, geógrafos,
sociólogos ou pedagogos. Por fim, em função do fato de que os
temas/conceitos da ciência econômica se prestam mais à formalização
do que a quase totalidade dos objetos das demais ciências humanas. Em
contrapartida, a geografia quase sempre é vista com reticências, seja
principalmente nas ciências naturais (onde alguns, ligados à geografia
física, pretendem que seja o seu lugar) ou até mesmo nas ciências
humanas. Entramos, aqui, no terreno da especificidade epistemológica
da geografia.
As análises epistemológicas sobre a geografia, de uma forma geral, são
incipientes e débeis. Os grandes nomes da teoria do conhecimento, a
partir do final do século XIX, praticamente nunca mencionam esta
ciência. É como se ela não existisse enquanto disciplina científica.
Algumas vezes, eles – isto é, autores como Popper, Carnap, Ayer,
Bunge, Whitehead, Reichenbach, Lakatos ou Feyrabend – mencionam
a sociologia ou a economia, raras vezes a história como disciplina
científica (embora frequentemente façam referências às mudanças
históricas), mas nunca a geografia. Também os filósofos importantes
que refletem sobre as ciências, vistas de regra ignoram a geografia. Um
recente e volumoso manual universitário norte-americano de filosofia,
por exemplo, dedica dezenas de páginas para a filosofia da história, o
mesmo tanto para a filosofia da matemática, para a do direito, da
linguagem e até das ciências sociais, mas não se refere à geografia
sequer neste último tópico51. Salvo engano, somente uma única obra
relevante em termos internacionais editada nas últimas décadas sobre a
filosofia das ciências destinou um capítulo à geografia. Trata-se da
coletânea História da Filosofia, organizada por François Châtelet que,
no seu volume 7, inclui um artigo sobre essa temática52. Fica patente,
51
BUNNIN, N. e TSUI-JAMES, E. P. (Org.). Compêndio de Filosofia. São Paulo, Loyola, 2003.
LACOSTE, Yves. “A Geografia”, in CHÂTELET, F. (Org.). A filosofia das ciências sociais.
Volume 7 da coleção História da filosofia. Rio de Janeiro, Zahar, 1974, p. 221-74.
52
39
José William Vesentini
todavia, que foi uma exceção motivada por amizade de dois professores
universitários franceses, o filósofo organizador da coleção e o geógrafo
convidado para escrever o artigo. Como se trata praticamente de um
resumo ou uma espécie de rascunho do livro que o geógrafo editaria
logo em seguida53, não é descabido supor que ele tenha comentado
sobre essa obra em andamento advindo daí o convite para compor essa
coletânea. Uma exceção que praticamente confirma a regra: a quase
total omissão da geografia nas reflexões epistemológicas e filosóficas
sobre as ciências desde, pelo menos, o final do século XIX.
Entretanto, até meados do século XIX isso não ocorria. Basta recordar
dos escritos de Montesquieu, no século XVIII, que, na verdade,
construiu uma filosofia (política) a partir da geografia. Ou do maior
filósofo do conhecimento desde a revolução científica moderna até pelo
menos os primórdios do século XX, Kant, que lecionou uma disciplina
chamada “geografia física” durante 48 semestres na universidade de
Königsberg, entre 1756 a 1796, e incluiu a geografia na sua teoria das
ciências. Inclusive, pode-se afirmar que o principal alicerce teóricoepistemológico desta disciplina prossegue sendo a filosofia kantiana
com a asserção de que o campo de estudos da geografia é o espaço dos
seres humanos. Essa ideia é mais aceita hoje do que a concepção de
Humboldt e Ritter, os quais, influenciados pelo romantismo54, insistiam
na “harmonia” entre a humanidade e a natureza. (São duas coisas
relativamente diferentes que, por vezes, os geógrafos confundem.
Estudar a “harmonia” ou mesmo as relações entre a humanidade e
natureza não é o mesmo que estudar o espaço da sociedade humana.
Boa parte dos geógrafos que adota esta última postura nos dias de hoje
ignora completamente a natureza em si e considera tão somente o
espaço social). Inclusive, esses dois geógrafos germânicos do século
XIX leram e absorveram, em parte reproduziram, inúmeras ideias de
Kant, embora no entendimento do campo de estudos da geografia eles
53
LACOSTE, Y. La géographie, ça sert, d’abord, à faire la guerre. Paris, François Maspero,
1976. Neste livro, o autor praticamente reproduz, com ligeiras alterações e acréscimos, o
conteúdo daquele ensaio citado na nota anterior.
54
Sobre a influência do romantismo em Ritter e particularmente em Humboldt, veja-se os
dois primeiros capítulos de CAPEL, H. Filosofía y ciência en la geografía contemporánea.
Barcelona, Barcanova, 1981.
40
Ensaios de geografia crítica
tenham sofrido uma forte influência do espírito científico moderno –
isto é, da necessidade de confrontar a teoria com os fatos, de perscrutar
o mundo empírico – e do romantismo alemão da sua época. Essa
sensível presença de Kant até os dias atuais não é nenhum demérito
para a geografia. Inúmeros grandes nomes da teoria do conhecimento
no século XX foram ou são neokantianos: Cassirer, Gadamer, Dawkins,
Piaget e vários outros. As ideias de Kant influenciaram enormemente a
sociologia de Max Weber, a antropologia de Franz Boas, a
fenomenologia de Husserl e de Heidegger e até mesmo a epistemologia
de Karl Popper. Para Kant, a história seria o estudo da humanidade no
tempo, e a geografia seria esse estudo no espaço. Seriam duas ciências
“especiais” e complementares, ambas sinópticas ou sintéticas (ao
fazerem uso de elementos de várias outras ciências) e, em grande parte,
idiográficas, embora a história sob um ponto de vista cronológico ou
temporal e a geografia numa perspectiva corológica ou espacial. Elas
seriam diferentes das ciências sistemáticas, as quais, em tese, estudam
algum fenômeno específico sem grandes preocupações com o tempo e
o espaço, tal como a física, a química, a biologia, a pedagogia etc.
Essa interpretação foi reproduzida pelos dois grandes nomes da
epistemologia geográfica no século XX: Alfred Hettner e Richard
Hartshorne. E continua atual, sendo implicitamente admitida até pelos
que dizem ter superado o espaço newtoniano através da incorporação
do espaço quadrimensional (alguns falam até numa “quinta dimensão”,
que seria o cotidiano!) da física relativística. Tanto os neopositivistas
como os marxistas, os fenomenológicos e os pós-modernos, todos eles
pensam o tempo e o espaço de forma newtoniana e kantiana, isto é,
separadamente, a partir do que a geografia estudaria a humanidade sob
um prisma espacial. Mas há variedades. Os neopositivistas, por
exemplo, exorcizam a noção de ciência idiográfica. Afirmando que
toda e qualquer ciência tem que ser nomotética, eles procuram construir
“leis” ou teorias gerais que dêem conta da espacialidade de alguma
atividade humana. Um labor digno de Sísifo, pois esbarra na referida
originalidade, no caráter único e irrepetível dos fatos históricos e
geográficos. A teoria dos sistemas foi o instrumental metodológico que
mais fez avançar esse tipo de abordagem na ciência geográfica;
contudo, ela é muito mais eficaz e deu seus melhores frutos na
41
José William Vesentini
geografia física e não na humana. Já os marxistas enfatizam a noção de
produção do espaço. Como estão utilizando uma filosofia que denega o
espaço em função do tempo, da história, assumem a árdua e talvez
infrutífera tarefa de complementar o materialismo histórico com a
inclusão do espaço geográfico, advindo daí um insosso “materialismo
histórico e geográfico”. Os fenomenológicos procuram perscrutar como
os seres humanos percebem ou se identificam com o espaço, ou melhor,
com os lugares. No fundo, eles não conseguem ir além do relativismo.
Os pós-modernos são pluralistas e utilizam, em maior ou menor grau,
elementos de todas as três correntes do pensamento anteriores, além de
incorporarem ideias ou preocupações do anarquismo, do feminismo, de
Nietzsche, de Foucault etc. Mas, de fato, nenhum deles logrou superar
completamente a herança kantiana. Não por algum tipo de incapacidade
intelectual e, sim, porque o nosso tempo ainda não o permite.
Continuamos a vivenciar, nas ciências humanas e mesmo em nosso
cotidiano, o espaço e o tempo separados, apesar de que todo momento
só tenha concretitude no espaço e todo lugar seja marcado por uma
temporalidade. Tempo e espaço são interligados, inclusive inseparáveis
na prática, na existência dos fenômenos históricos ou geográficos. Mas
são distintos e entendidos de forma separada e até oposta nos estudos,
nas pesquisas, nas ciências humanas enfim.
Um impasse dessa epistemologia kantiana, que em grande parte ainda
norteia a legitimação científica da geografia, é certa idealização da
realidade e, portanto, das ciências que a estudam por diferentes vieses.
Só se pode admitir a existência de “ciências sistemáticas” no mundo
físico e, em parte apenas, no biológico. Sem dúvida, a física e a
química, em suas teorias e conceitos fundamentais, não precisam da
referência ao tempo e ao espaço: o hidrogênio ou os átomos, as reações
químicas ou as forças físicas (gravitacional, eletromagnética, nuclear
fraca e forte), todos esses fenômenos são semelhantes hoje ou a 4
bilhões de anos, tanto aqui na Terra como numa galáxia situada a
bilhões de anos-luz de distância. Não é necessário determinar temporal
e espacialmente esses fenômenos para explicá-los. Mas, nas ciências
humanas (as ciências biológicas ficam numa posição intermediária),
não existem, de fato, conceitos e teorias sistemáticas, isto é, atemporais
e independentes do lugar, de uma sociedade ou uma cultura específica.
42
Ensaios de geografia crítica
É por isso que todas as ciências sociais são, ao mesmo tempo,
históricas e geográficas. Históricas, pelo fato de terem que levar em
conta, necessariamente, a historicidade ou temporalidade dos
fenômenos; e geográficas, na medida em que todos os objetos que
estudam variam enormemente no espaço, ou seja, são diferentes em
função do lugar onde se situam – diferenças que, no fundo, decorrem
de sociedades e culturas distintas, sem esquecer, evidentemente, que
determinados traços de uma cultura possuem íntimas relações com o
meio físico no qual ela se desenvolveu.
Destarte, não é possível pensar um conceito abstrato de classe social,
ou de sistema escolar, de produção econômica, de Estado ou mesmo de
poder político, sem estabelecer profundas diferenças entre o que
significam esses conceitos nesta e naquela sociedade, neste ou naquele
momento da história. Diferenças por vezes incomensuráveis. Tanto que
inúmeros autores afirmam que, no fundo, não é possível haver um
conceito único de Estado, ou de política, de status social, de educação
etc. Foucault, por exemplo, mostrou cabalmente que o que se entendia
na antiguidade grega por medicina, por sexualidade ou por educação
(poderíamos acrescentar: por geografia) são coisas bem diferentes do
nosso entendimento atual. Por vezes, malgrado o nome em comum,
trata-se de objetos completamente distintos. Tais diferenças,
fatalmente, devem ser levadas em conta pelas ciências humanas.
Normalmente, elas são maiores no tempo do que no espaço, ou pelo
menos são percebidas dessa forma pela filosofia e pelas humanidades.
Daí uma maior valorização da história pelas ciências sociais, isto é,
uma ênfase muito maior nas diferenças suscitadas pelo tempo histórico.
Na verdade, as ciências sociais proclamam abertamente a sua
historicidade: são disciplinas que amiúde e explicitamente dizem
ponderar sobre o tempo histórico com as suas transformações. Mas,
dificilmente elas apregoam a sua geograficidade: isso parece ser visto
como algo inferior ou sem importância.
Foucault foi provavelmente o primeiro autor a escrever sobre essa
depreciação do espaço em prol de uma temporalidade supervalorizada.
Segundo ele, essa ênfase na dimensão temporal, na história,
concomitante com uma desvalorização do espaço, teria se dado no
43
José William Vesentini
século XIX a partir da ideia de revolução social55. Uma noção – ou um
projeto – de revolução social que se tornou dominante a partir da
Revolução Francesa.
Creio que se pode acrescentar, de forma complementar, que também o
mito do progresso contribuiu para essa ênfase no tempo, nas mudanças
temporais, em detrimento das diferenças espaciais. Esse mito do
progresso pressupunha um continuum infinito na história humana
percebida como realizações sucessivas que vão tornando superadas as
condições do passado. É o “mais e mais” ilógico e antiecológico a que
se refere Castoriadis num brilhante ensaio sobre o tema: o mito de um
progresso material que sempre utiliza mais recursos naturais, mais
água, mais solos agriculturáveis, maiores conquistas sobre a natureza
enfim56. Nesse mito, o espaço é algo inerte, identificado mais com o
universo infinito do que com o nosso espaço geográfico finito; o tempo,
por outro lado, é o locus privilegiado das mudanças. Poderíamos,
talvez, acrescentar que também a teoria da evolução contribuiu, mesmo
sem pretender (pelo menos essa nunca foi uma intenção de Darwin),
para essa percepção do tempo – ou melhor, da história – como o lugar
por excelência das mudanças e das transformações sociais e até
naturais. Todos se recordam da ideia simplista de Marx – por sinal, um
obstinado adepto do progresso e com a declarada pretensão de produzir
“no reino do social” o mesmo impacto obtido por Darwin “no reino da
natureza” – segundo a qual “Só existe uma ciência, a ciência da
história”, que poderia ser dividida em história da sociedade e história
da natureza57.
Essa percepção, reiteramos, foi tributária da Revolução Francesa e de
uma de suas sequelas: toda uma série de interpretações ou teorias da
história autodefinidas como revolucionárias – anarquistas, positivista,
marxista, socialistas utópicas – que se seguiram a esse evento. Como
não podia deixar de ser, também essa revolução, em grande parte,
decorreu – ou pelo menos contou com a inspiração – de toda uma série
55
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 212.
CASTORIADIS, C. Reflexões sobre desenvolvimento e racionalidade. Op. Cit.
57
MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo, Livraria e Editora Ciências Humanas,
1979.
56
44
Ensaios de geografia crítica
de proposições igualitárias ou “comunistas” (palavra que deriva das
“comunas” tão comuns na Idade Média), que se multiplicavam desde o
século XVI a partir de autores como Thomas Morus ou Jean-Jacques
Rousseau, além de outros58. No transcorrer dessa revolução, ou depois
dela, surgiram as doutrinas anarquistas e socialistas – a palavra
“socialismo” foi inventada por Pierre Lerroux em 1832. Na verdade,
foram continuações, com nuanças, das ideias utópicas de Platão e
Thomas Morus, e também dos juízos de Rousseau e outros, segundo os
quais “a propriedade privada é a origem dos males sociais”, “os
indivíduos nascem bons e a sociedade os corrompe” etc. Esses ideais
são igualitários e louváveis. Bem ou mal, eles serviram de inspiração
para grandes mudanças sociais que construíram a democracia moderna.
Entretanto, eles possuem um viés autoritário na medida em que
encerram propostas de implantação de um novo modelo, apriorístico,
de governo ou de sociedade. Neste, os indivíduos terão que se ajustar a
regras que não foram por eles escolhidas, as quais não podem mudar,
pois seriam teoricamente “universais”, encerrando o “modelo ideal de
sociedade”, o qual é fruto da mente de algum pensador, mesmo que
este afirme que “deduziu objetivamente” esse esquema da análise do
mundo ou da história.
Essas ideias se tornaram hegemônicas nas ciências humanas.
Inquestionavelmente, elas representaram um inegável avanço no
conhecimento do social. Contudo, via de regra, elas ignoram o espaço,
as diferenças territoriais entre os povos ou lugares, os quais, no fundo,
quase sempre são diferenças culturais e sociais. Mas especificidades
culturais e sociais, repetimos, também forjadas a partir da interação do
social com o natural, com o seu espaço ou território, tendo-se em vista
sua localização relativa, seus recursos naturais e como eles foram
aproveitados etc. Imaginam apenas, ou principalmente, mudanças
derivadas basicamente do tempo, da história. É como se a humanidade
– e, no fundo, também a natureza – fosse basicamente uma só, com
uma trajetória em comum. Como se as sociedades, em todos os lugares,
com pequenas variações, tivessem que passar por “etapas” ou
58
Cf. MOSCA, G. e BOUTHOUL, G. História das doutrinas políticas. Rio de Janeiro, Zahar,
1967.
45
José William Vesentini
“estágios” semelhantes. Como se tivessem um futuro pré-determinado e
unívoco. Com isso, o espaço fica anulado, torna-se um simples palco
inerte para os acontecimentos. Em outras palavras, ele passa a ser um
mero quadro físico, negligenciável em face de sua pouca relevância,
sem de fato implicar em diferenças significativas tanto na natureza
quanto, principalmente, nas sociedades; as mudanças ocorreriam
essencialmente na história, esta, sim, vista como um campo de lutas e
alternativas59. Como afirmam até mesmo alguns geógrafos, o espaço
seria o “corpo” do tempo ou da história, numa leitura organicista na
qual o que importa no indivíduo é a consciência, o seu livre arbítrio e,
principalmente, as suas ações, sendo secundários os traços corporais.
As diferenças espaciais seriam apenas um detalhe, um mero atraso
relativo de alguns lugares frente a outros, em suma, algo que a
dinâmica essencialmente temporal tenderia a desmanchar ou a
homogeneizar. Como ironizou Foucault, o tempo seria “dialético”, rico
e fecundo, enquanto o espaço seria “conservador”, antirrevolucionário e
identificado com o status quo60.
Um extraordinário problema epistemológico da geografia é que as
ciências sociais foram construídas ou reconstruídas, a partir do século
XIX, com essa perspectiva essencialmente histórica. E o projeto
unitário da geografia foi pensado a partir de uma filosofia kantiana – e
também, como já mencionamos, romântica – anterior e/ou
relativamente isenta dessa desvalorização do espaço. Um projeto que
consiste num conhecimento científico, inspirado no parâmetro
empirista da ciência moderna, que se propõe a unir o estudo da
59
Esse viés já se encontra em HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la filosofia de la historia
universal. Madrid, Alianza Editorial, 1982. Nesse ambicioso livro publicado postumamente em
meados do século XIX, há uma primeira parte intitulada “os fundamentos geográficos da
história universal”, na qual o autor comenta sobre a influência do espaço na história. Mesmo
tendo sido em parte influenciado pela leitura de Montesquieu, e também de Kant, Humboldt
e Ritter, Hegel desvaloriza o espaço, a geografia, em prol de uma dialética essencialmente
temporal e inter-humana, sendo que as condições geográficas representam apenas obstáculos
ou possibilidades que o espírito humano pode – e deve – superar. Existe aí uma percepção
espacial mística: da mesma forma que o Sol nasce no Oriente e se põe no Ocidente, seria
neste lugar – na Europa, mais especificamente – que o espírito tomaria consciência de si,
enfim, que a história iria se realizar ou completar.
60
FOUCAULT, M. Op. Cit.
46
Ensaios de geografia crítica
humanidade (geografia humana) com o estudo da natureza-para-oHomem (geografia física) sob um prisma espacial ou territorial, isto é,
do meio ambiente (natural e cultural) ou das paisagens formadas pela
interação entre a humanidade e a natureza. Um projeto que logo se
chocou tanto com o desenvolvimento das ciências da natureza quanto
também com essa visão essencialmente histórica das ciências sociais.
Com as ciências naturais, porque estas logo abandonaram a ideia de
elaborar um estudo integrado do meio físico (justamente este era o
principal objetivo de Humboldt, que pretendeu fundar uma “geografia
física”, na verdade, um estudo sintético ou integrado do clima com o
relevo, com os solos, com a vegetação, com as águas etc)61.
Era o antigo ideal grego para a física, entendida como a “ciência da
natureza”, abandonado ou deixado de lado a partir da mecânica de
Galileu – prosseguida com Newton, Einstein etc. –, que passou a
estudar somente o mundo físico visto como apartado da química, da
biologia, da hidrologia, da oceanografia e de outras ciências da
natureza. Humboldt pretendeu, num certo sentido, retomar esse projeto
– embora pensando mais na natureza-para-o-Homem, nas paisagens
enfim, nas quais haveria uma harmonia no conjunto formado pelos
elementos naturais e com as quais as comunidades humanas viveriam
adaptadas ou em simetria. Mas retomar esse projeto foi uma ideia
utópica numa época, em pleno século XIX, em que as ciências da
natureza já haviam se compartimentado e se expandiam cada vez mais
de forma autônoma, com as novas teorias na biologia, específicas e
separáveis da física, com novas proposições na química, na geologia
etc. Um projeto ambicioso e holístico para uma época analítica, na qual
61
“A realização mais importante de um estudo racional da natureza é apreender a unidade e
harmonia que existe nessa imensa acumulação de forças [...] A tentativa de decompor em seus
diversos elementos a magia do mundo físico é plena de riscos porque o caráter fundamental
de qualquer paisagem e de qualquer lugar imponente da natureza deriva da simultaneidade
de ideias e de sentimentos que suscita no observador. A Física do Mundo que procuro expor
[...] é uma Geografia Física unida à descrição dos espaços celestes [...] é um ensaio sobre o
Cosmos fundado sobre um empirismo equilibrado, ou seja, sobre um conjunto de fatos
registrados pela ciência e submetidos à ação de um entendimento que compara e combina.”
(HUMBOLDT, A. Cosmos. Ensayo de una descripcion física del mundo. In: MENDOZA, J. G.,
JIMÉNEZ, J. M. e CANTERO, N. O. El pensamiento geográfico. Madrid, Alianza, 1982, p. 15967).
47
José William Vesentini
separar e analisar as partes em minúcias tornou-se a essência da
pesquisa e do conhecimento em praticamente todas as ciências. Um
projeto no fundo destinado ao fracasso ou, de forma mais amena, a ser
negligenciado e até menosprezado nas ciências naturais. Um projeto
visto com desconfiança nas ciências humanas porque incorporava as
influências do meio físico, algo considerado reacionário numa época
em que predominava o ideal de revolução social feita exclusivamente a
partir do intelecto humano (mesmo que apoiado no desenvolvimento
das forças produtivas, processo no qual a natureza só entra enquanto
recurso inerte).
Como a geografia, com esse projeto holístico e, ao mesmo tempo,
utópico e romântico, no fundo extemporâneo, conseguiu sobreviver –
mesmo que às duras penas? Acredito que, primeiro, porque já era um
saber clássico, de longa tradição – na verdade milhares de anos – e há
tempos ensinado pelos preceptores ou pelas raras escolas que existiam
até o século XIX (as civis e as militares, devido à importância
estratégica dos conhecimentos geográficos). Recordemos, novamente,
que um dos maiores pensadores do século XVIII, Kant, durante várias
décadas foi professor de uma disciplina intitulada “geografia física”,
sendo que as anotações de suas aulas foram editadas em seis livros e
serviram como material de apoio até para Humboldt, apesar da visível
falta de trabalho de campo e de dados empíricos originais ou às vezes
sequer confiáveis62.
Depois, e principalmente, porque ela se tornou uma disciplina escolar
numa época em que ocorreu uma enorme expansão – na verdade, uma
construção ou invenção – dos sistemas nacionais de ensino. A partir do
século XIX, os Estados nacionais europeus – e, em seguida, o resto do
mundo – precisavam formar um número cada vez maior de professores
de geografia, e, com isso, houve também a sobrevivência desta ciência
62
KANT. Geografia Fisica. Bergamo, Leading Edizione, 2004. Utilizamos esta edição italiana,
a única que encontramos após uma demorada pesquisa em bibliotecas e em livrarias on-line,
em três volumosos tomos (cada um com 600 páginas), mas a edição original, em alemão, é de
1807-11. Humboldt cita muito esta obra de Kant, embora, como bom naturalista e alguém
antenado com o espírito indutivo da ciência do seu tempo, ele buscou separar a especulação
(muito comum no filósofo germânico) dos dados empíricos que coletou em suas viagens e
observações in loco.
48
Ensaios de geografia crítica
na academia, apesar de mal tolerada pelas ciências naturais e até
mesmo pelas humanidades63. Mesmo que isso horrorize grande parte
dos geógrafos, notadamente os que teorizam a história do pensamento
geográfico (que quase sempre se inspiram no modelo idealizado da
evolução da matemática ou da física64), temos que reafirmar este fato
elementar: que a partir do final do século XIX, e durante todo o século
XX, a geografia sobreviveu nas universidades principalmente porque
havia se tornado uma disciplina obrigatória no sistema escolar. É tão
somente uma constatação e não uma depreciação. Cabe, ainda, deixar
claro que esse fato não diminui o valor da geografia para a sociedade e
tampouco invalida sua cientificidade, pois já vimos que esta não
consiste num padrão unívoco e, sim, numa pluralidade de
conhecimentos racionais, obtidos a partir de métodos variados, sobre
aspectos do real ou do mundo.
Retornando novamente à nossa analogia das ciências tidas como
secundárias com os países periféricos, temos que lembrar que, entre
outras coisas, estes sofrem uma carência de capitais, de investimentos
produtivos. Isso também ocorre com as referidas ciências, que sempre
dispõem de poucas verbas em comparação àquelas vistas como
centrais. Alguns falam até em big sciences (as pesquisas que são vistas
como estratégicas ou potencialmente lucrativas, que recebem
investimentos milionários) em contraponto às small sciences (as
63
Cabe recordar que a mais prestigiosa universidade do mundo, Harvard, fechou o seu
departamento de geografia após a Segunda Guerra Mundial, período em que ocorreu uma
grande retração desta disciplina acadêmica, com fechamento de cursos ou redução de vagas,
nas principais universidades do país. Só recentemente, a partir dos anos 1990, com a volta da
disciplina escolar geografia no ensino básico, em primeiro lugar (e também, secundariamente,
com a crescente aceitação de um princípio holístico que busca derrubar as barreiras entre as
diversas ciências), é que algumas universidades norte-americanas voltaram a abrir ou ampliar
seus cursos de geografia.
64
É um modelo que, no fundo, não corresponde totalmente à realidade nem na matemática
e muito menos na física, embora elas sirvam de inspiração, no qual as teorias científicas vêm
primeiro e determinam a “prática”, isto é, a tecnologia, as aplicações e inclusive o seu ensino.
Esse viés unilateral não vê que muitas vezes é no ensino, ou em qualquer outro tipo de
“prática”, que as teorias são forjadas. E também não percebe que o ensino não se resume à
transmissão dos rudimentos das ciências, mas tem outros objetivos como desenvolver no
educando a sociabilidade e a criatividade, o espírito crítico, a capacidade de pensar por conta
própria etc.
49
José William Vesentini
ciências ou modalidades de pesquisas tidas como de pouca relevância,
que recebem minguadas verbas)65. Nessa classificação, sem dúvida que
a geografia – como também a história, a sociologia, a antropologia etc.
– são incluídas entre as small sciences. Os gastos aqui, mesmo nos
países mais ricos, são contados em no máximo milhares de dólares,
enquanto, nas big sciences, eles atingem a casa dos milhões ou até dos
bilhões de dólares. Na pesquisa física, por exemplo, foi construído
recentemente, na Europa, um super-acelerador de partículas, o LHC
(Large Hadron Collider), com um custo estimado de 9 bilhões de
dólares. Essa é uma quantia dezenas de vezes maior que o total de
todos os investimentos dedicados às ciências humanas desde meados do
século XIX até os dias de hoje! E é apenas um experimento físico –
obviamente com prováveis aplicações tecnológicas. Embora seja um
mega-projeto, quase uma exceção, existem ainda vários outros com
gastos bastante dispendiosos: só o telescópio Hubble, já considerado
obsoleto, custou U$ 2,5 bilhões na sua construção, sem contar os
volumosos gastos com a sua manutenção; o projeto Apollo,
implementado durante 13 anos, custou cerca de U$ 23 bilhões; e várias
outras pesquisas nas ciências naturais – desde o projeto genoma até um
acelerador de partículas construído em 1999 no Texas – demandaram
orçamentos na casa dos bilhões de dólares. É evidente que esses
investimentos em pesquisas das big sciences sempre encerram
perspectivas de ganhos (econômicos ou militares) com aquisição de
tecnologia. Afinal de contas, são dispêndios compreensíveis, que bem
ou mal ampliam o conhecimento humano. Não são gastos absurdos
apesar de alguns duvidarem de sua eficácia em comparação com um
número bem maior de investimentos na pesquisa de base66. Não se
questiona aqui esse enorme volume de recursos em determinadas
pesquisas ou explorações físicas, químicas e biológicas, mesmo que
eventualmente elas possam resultar em armamentos mais letais. O que
se evidencia é a descompassada diferença de tratamento entre as
ciências, com algumas delas – a geografia, a história, a sociologia, a
65
LINTON, J.D. Why big science has trouble finding big money and small science has
difficulties finding small money. In: Technovation, vol.28, issue 12, december 2008, p. 799801.
66
BROAD, W.J. Big Science: is it worth the price? In: The New York Times, 27/05/1990.
50
Ensaios de geografia crítica
antropologia e até a pedagogia – recebendo somente algumas migalhas.
Nesse sentido, elas de fato são ciências periféricas. E vão continuar a
ser por um bom tempo, pois o desenvolvimento de um ramo do
conhecimento depende bastante – embora não apenas, pois afinal de
contas existem inegavelmente determinadas temáticas (inclusive alguns
“falsos problemas”) nas quais despender milhões ou bilhões de dólares
seria pura perda de tempo e de preciosos recursos – do volume de
investimentos empregado nas suas pesquisas.
Como o mundo moderno continua – e provavelmente vai continuar
ainda por um longo período – a ser o mesmo, isto é, o mundo dos
Estados-nações com as suas rivalidades, do desenvolvimento material
como escopo básico, da recriação das desigualdades internacionais,
sociais, regionais e até científicas (no sentido já apontado de disciplinas
privilegiadas, ao lado de outras menosprezadas), nada indica que a
periferização da geografia seja algo cujo final esteja próximo. Oxalá o
otimismo dos adeptos do “paradigma da complexidade”, como Edgar
Morin, torne-se realidade e, com isso, as ciências de pretensão
holística, como a geografia, sejam de fato revalorizadas. Talvez isso
seja apenas um sonho, uma utopia irrealizável. Ou talvez acabe por
ganhar concretitude com a crise da modernidade, com o esgotamento
de um modelo de desenvolvimento antiecológico e gerador de
exclusões, com a crise, enfim, de um padrão de pensamento que
desvaloriza o espaço em prol do tempo, que se recusa a ver as obras
humanas – cultura, economia, instituições sociais – como parte
indissociável da evolução da mãe-Terra.
51
José William Vesentini
52
Controvérsias geográficas: epistemologia e política*
O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele
à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar
que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que
escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as
mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a
conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado
entre as gerações precedentes e a nossa [...] Articular
historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como
ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma
reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um
perigo. A história é objeto de uma construção cujo lugar
não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado
de “agoras”. (WALTER BENJAMIN).
A história das ciências é plena de conflitos, polêmicas, alternativas que
se contrapuseram num determinado momento. Talvez, esse seja
exatamente o âmago do desenrolar de um saber: os contextos de
indeterminação, de caminhos ou alternativas plurais que se enfrentam e
suscitam um andar, menos ou mais acelerado, neste ou naquele sentido.
O avanço do conhecimento, em especial o científico, não se faz tão
somente com a descoberta de novos aspectos da realidade, de novos
fenômenos ou de encadeamentos entre os mesmos, enfim, de novos
achados sobre o(s) objeto(s) estudado(s) – ou mesmo da (re)construção
dos objetos ou da invenção de novos. Ele também ocorre em oposição a
*
Texto elaborado em 2005 e disponibilizado na revista eletrônica Confins:
http://confins.revues.org/personne1322.html?type=auteur
53
José William Vesentini
modelos ou esquemas de pensamento dominantes e/ou tradicionais, no
confronto com as ideias estabelecidas e constantemente reproduzidas.
Esse processo é recorrente no desenvolvimento das ciências e existe
desde os primórdios da chamada revolução científica.
Basta lembrarmos que os primeiros cientistas na moderna acepção do
termo – Copérnico, Leonardo da Vinci, Giordano Bruno e,
principalmente, Galileu Galilei – travaram uma dura batalha contra os
procedimentos cognitivos tidos como legítimos na sua época,
procurando afirmar a racionalidade – a observação e a análise dos
fenômenos, a indução e a dedução, as inferências com base no
raciocínio lógico – contra a autoridade das escritas consideradas
sagradas ou inquestionáveis. Um eminente físico chegou inclusive a
afirmar que: “Na história da ciência, descobertas e ideias novas sempre
suscitaram debates na comunidade científica, com publicações
polêmicas a criticar as novas ideias, mas tais críticas frequentemente
servem de ajuda ao desenvolvimento do novo pensamento”1.
Em contrapartida, a história da geografia é demasiado indigente em
controvérsias, afirma-se com frequência. Um conhecido geógrafo
francês asseverou que existe uma quase total ausência de discussões
teóricas na ou sobre a geografia, que seriam substituídas pelas intrigas
de caráter pessoal:
O sistema universitário não impediu as polêmicas em
outras disciplinas. Em geografia, conflitos entre pessoas,
sim, mas nada de problemas (ou quase nada...). A
indolência dos geógrafos com relação aos problemas
teóricos, indolência que se estabeleceu entre certas pessoas
com alergia às vezes brutal, é acompanhada por uma
preocupação em evitar toda e qualquer polêmica que possa
desembocar num problema teórico2.
Apesar disso, ocorreram, sim, algumas importantes polêmicas teóricas
na geografia, embora em geral elas sejam reiteradamente omitidas ou
1
HEISENBERG, Werner. Física & Filosofia. Brasília, Editora da UNB, 1995, p.15.
LACOSTE, Yves. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas,
Papirus, 1988, p. 106.
2
54
Ensaios de geografia crítica
denegadas – ou então distorcidas –, inclusive nas melhores obras sobre
a história do pensamento geográfico. Nestas, via de regra, se despende
um enorme esforço na ênfase à filiação teórico-metodológica de tal ou
qual autor ou escola de pensamento – se positivista, historicista,
fenomenológico, dialético etc. –, construindo, assim, uma totalidade
homogênea – e, com isso, os conflitos e as tensões que poderiam
implodir essa imagem de processos aparentemente unívocos são
excluídos ou ignorados. Reconhecemos a importância desse tipo de
análise, que valoriza o contexto e as grandes “correntes de
pensamento”, procurando nelas encaixar a produção geográfica deste
ou daquele autor. Mas só isso não basta, principalmente porque esse
tipo de enfoque, mesmo que eventualmente de forma não intencional,
denega o que há de mais importante no avanço do conhecimento
científico: o pluralismo e o diálogo entre correntes de pensamento
diferenciadas. Falta o “agora” a que se refere Walter Benjamim, isto é,
o momento do relampejar no qual várias alternativas eram possíveis e
uma delas acabou predominando.
Iremos aqui retomar e reavaliar três controvérsias significativas na
história da geografia, sendo que uma delas, justamente a de maior
divulgação, foi na realidade um quiproquó, um falso debate, no qual
somente um dos dois lados divulgou a sua versão e estereotipou o
(pseudo-) opositor: a querela entre o determinismo alemão e o
possibilismo francês. As outras duas foram de fato discussões entre
oponentes que se reconheceram como tal, na qual cada um dos lados
assumiu e defendeu o seu ponto de vista: a contenda de Mackinder
versus Kropotkin a respeito do que é (ou deveria ser) a geografia; e o
célebre debate entre os neopositivistas e os neokantianos sobre o
“excepcionalismo” ou a especificidade da geografia enquanto saber
científico: se ela está voltada, no essencial, para a construção de teorias
gerais ou leis nomotéticas, ou, pelo contrário, se ela se ocupa no
fundamental em realizar estudos monográficos, numa compreensão
idiográfica sobre cada lugar ou região particular da superfície terrestre.
Essas três querelas, como procuraremos demonstrar, não são águas
passadas, isto é, problemas já resolvidos ou superados. Num certo
sentido, os tópicos que elas abordam se entrecruzam e permanecem
55
José William Vesentini
atuais; mais ainda, são temas fundamentais e que por diversas
perspectivas continuam a fazer parte das grandes questões
epistemológicas e políticas da geografia.
A distinção entre determinismo e possibilismo, cabe recordar, foi
iniciada a partir de um reproche francês à obra do iniciador – ou
melhor, sistematizador – da geografia política moderna, Friedrich
Ratzel. Essa distinção – ou melhor, essa construção teórica – avançou
a partir do advento e da expansão da geopolítica e das suas pretensas
vinculações com a geografia política ratzeliana. O escrito do geógrafo
alemão que provocou essa reação francesa foi o livro Politische
Geographie, editado em 1897. Nesse trabalho, Ratzel, num certo
sentido, redefiniu ou reestruturou o estudo geográfico da política.
Mesmo não tendo sido pioneiro no uso do rótulo “geografia política”,
Ratzel sistematizou uma certa leitura da política – que muito deve ao
realismo de Maquiavel – na sua dimensão espacial ou territorial e, ao
mesmo tempo, reformulou a maneira pela qual a ciência geográfica
abordava o fenômeno político. Como observou com propriedade um
geógrafo suíço, Ratzel propôs um estudo nomotético da geografia
política3, algo bem diferente dos escritos monográficos e idiográficos
de Vidal de La Blache e discípulos sobre as regiões francesas; e nessa
empreitada ele procurou estabelecer nexos causais entre o poder
político e o espaço, ou melhor, o território. Essa obra de Ratzel suscitou
uma forte reação francesa, que pouco a pouco construiu um inimigo
teórico, a “escola geográfica determinista germânica”, que teria em
Ratzel o seu mentor.
Tanto o sociólogo Émile Durkheim4 quanto o historiador-geógrafo Paul
Vidal de la Blache5, entre 1898 e 1899 – isto é, imediatamente após a
publicação do referido livro de Ratzel e também de uma tradução para
o francês de uma espécie de resumo deste6 –, teceram ácidas críticas às
3
RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo, Ática, 1993, p. 12.
DURKHEIM, Émile. Morphologie sociale. I. Les migrations humaines. In: L’Année
sociologique, 1898-9, p. 550-58.
5
VIDAL DE LA BLACHE, Paul. La Géographie Politique d’après les écrits de M. Fr. Ratzel. In :
Annales de géographie, ano VII, n.32, 1898, p. 97-111.
6
RATZEL, F. Le Sol, la Societé et l’État. In : L’Année Sociologique n.III, 1898, p. 1-14. Existe uma
tradução para o português publicada na Revista do Departamento de Geografia n. 2, FFLCH4
56
Ensaios de geografia crítica
ideias ratzelianas da vinculação necessária entre o “solo” (espaço
físico, ou melhor, território) e o Estado, em especial a dependência
deste em relação àquele e o crescimento estatal sendo identificado com
a expansão territorial. Eles assinalaram um exagero e um dogmatismo
nas vinculações lógicas operadas por Ratzel, enxergando nelas um
determinismo estreito. Mas foi o historiador Lucien Febvre – um exaluno e amigo de Vidal –, na sua monumental obra La Terre et
l’evolution humaine, editada em 1922, quem criou de forma mais
acabada e sistematizada a ideia da existência de duas escolas
geográficas alternativas, uma “determinista” e simbolizada por Ratzel,
e a outra “possibilista” e capitaneada por La Blache.
No ano da edição desse livro de Febvre os dois principais protagonistas
dessa trama já tinham deixado o mundo dos vivos: Ratzel viveu de
1844 a 1904 e Vidal de La Blache de 1845 a 1918. Ratzel, portanto,
nunca chegou a responder – talvez nem mesmo a ler – as críticas
francesas a respeito de sua obra. Febvre, é bom esclarecer, tinha como
escopo principal o relançamento das bases de uma “introdução
geográfica à história” (este é o subtítulo do seu livro, algo que lembra
muito a célebre introdução especial de Hegel7), numa perspectiva na
qual a geografia – o espaço, a “terra” – seria uma espécie de précondição, embora simples e em geral, salvo raras exceções, sem grande
importância, a partir das quais vão se desenrolar os processos
históricos, estes, sim, ricos e complexos. Taxando a geografia humana
como uma “ciência nova” [sic!] e “auxiliar da história”, Febvre elabora
USP, 1988. Este sucinto texto de Ratzel é uma espécie de resumo da sua obra Politische
Geographie, de 1897. Lógico que uma síntese empobrecida na medida em que inúmeros
temas do livro – fronteiras, política territorial, grandes potências mundiais e outros – ficaram
de fora. Como observou en passant Jean BERVEGIN (Déterminisme et Géographie. Les Presses
de l'université Lavai, 1992, p. 4-5), parece que todas as citações de Durkheim e de Vidal
coincidem com esta tradução, mesmo quando eles citam a edição original, em alemão,
daquela obra seminal de Ratzel.
7
HEGEL, G.W.F. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Madrid, Alianza Editorial,
1982, especialmente o capítulo “La conexion de la natureza o los fundamentos geográficos de
la historia universal”, pp.161-99. É interessante que Febvre em momento nenhum cita Hegel,
apesar dos inúmeros pontos de contato entre a sua obra e a do filósofo alemão. Será que isso
se deveu a uma certa ojeriza pela tradição germânica, em especial a que engrandece o Estado,
ou pelo fato de Hegel desprezar os historiadores e a sua história, preferindo uma filosofia da
História com H maiúsculo, algo transcendental e teleológico?
57
José William Vesentini
o seu trabalho com vistas a equacionar ou estabelecer três desígnios:
prescrever a geografia como uma disciplina modesta (e subordinada à
história); defendê-la das então recentes críticas de vários sociólogos
franceses (especialmente Durkheim e o grupo ao seu redor, cuja grande
expressão era o periódico L’Année sociologique), que encaravam a
geografia humana como “imperialista” por invadir o campo de estudos
da sociologia e pretender explicar tudo pelas condições geográficas8; e,
por fim, retomar a antiga discussão – que pode ser encontrada em
inúmeros pensadores clássicos, desde Hipócrates até Hegel, passando
por Montesquieu – a respeito da influência das condições geográficas
(especialmente o clima) sobre a história da humanidade. Neste último
item, Febvre assume uma postura ambiciosa, semelhante à de Hegel,
com a diferença que este valorizava a filosofia (só o filósofo capta a
lógica da História, apenas ele poderia teorizar com propriedade; o
historiador seria exclusivamente um cronista que relata os fatos);
logicamente que Febvre enaltece a história e os historiadores (eles é
que poderiam teorizar de forma científica sobre as relações entre os
processos histórico-sociais e o meio ambiente; o geógrafo seria tão
somente um descrevedor de paisagens, um auxiliar que realiza estudos
monográficos sem nenhuma pretensão de teorizar ou “invadir o terreno
da história”).
Frente a isso, fica evidente a preferência de Febvre pelo tipo de
geografia humana praticada por Vidal – os estudos monográficos, nos
quais há pouca ou quase nenhuma teorização de natureza geral –, assim
como a sua clara aversão pela tentativa ratzeliana de construir teorias e
“leis” gerais a respeito das inter-relações entre o Estado, a sociedade e
o espaço geográfico. A propósito do primeiro, Febvre reproduziu com
concordância a seguinte afirmativa: “Vidal de La Blache disse que a
defesa contra o espírito de generalização prematura é realizar estudos
analíticos, monografias nas quais as relações entre as condições
geográficas e os fatos sociais sejam considerados in loco, em um
8
Entre os sociólogos mencionados por Febvre que criticaram veementemente a geografia
humana – e não apenas a de Ratzel, o alvo principal, mas também obras de Jean Brunhes,
Camille Vallaux, Albert Demangeon e outros –, encontram-se principalmente F. Simiand, M.
Mauss e M. Halbwachs, além do próprio Durkheim. Cf. FEBVRE, L. La Tierra y la evolución
humana. Introducción geográfica a la historia. Barcelona, Editorial Cervantes, 1925, p. 25-35.
58
Ensaios de geografia crítica
campo bem escolhido e delimitado”9. Mas, em relação ao geógrafo
alemão, ele é impiedoso: “Ratzel, dominado pelo seu parti pris de
antropogeógrafo e por suas preocupações de origem mais política do
que científica, que em certos momentos fazem a sua mais recente e
menos fecunda obra, Politische Geographie, parecer uma espécie de
manual do imperialismo alemão”10. E no último capítulo do livro ele
esclarece que:
Que não nos pergunte, pois, por que contraditoriamente
defendemos a geografia humana contra as críticas da
morfologia social [a sociologia de Durkheim e discípulos],
ou, mais exatamente, reivindicamos para ela o direito de
uma existência livre e independente [...] e agora dedicamos
todo um esforço na sua crítica. Nossas críticas se dirigem
não contra a geografia humana em geral e, sim, contra uma
concepção viciada e pueril de seu papel e de seus meios.
[...] Nunca cansaremos de repetir que a geografia não tem
por objeto investigar as ‘influências’ da Natureza sobre o
Homem, como se diz, ou do Solo sobre a História. Essas
palavras com maiúsculas não tem nada a ver com um
estudo sério. E ‘influência’ não é uma palavra científica e,
sim, astrológica. Que ela fique, pois, de uma vez para
sempre, com os astrólogos e outros charlatães11.
O contexto histórico da época é imprescindível para explicamos o
surgimento, a expansão e a popularização dessa construção teórica. Em
primeiro lugar, cabe lembrar da secular rivalidade franco-alemã (ou
prussiana) no crepúsculo do século XIX, com a derrota francesa em
1871, fato ainda dolorosamente nítido na consciência de Vidal e de
Durkheim, que o vivenciaram. Em segundo lugar, a Primeira Guerra
Mundial, que mais uma vez colocou a França e a Alemanha em lados
opostos. E, em seguida, a ascensão do nazismo e a criação e notável
difusão da “geopolítica alemã” dos anos 1920, 1930 e 1940, em
especial ao redor da Zeitschrift fur Geopolitik (Revista de Geopolítica),
9
FEBVRE, L. Op.Cit., p. 489.
Idem, p. 57.
11
Idem, p. 477-79.
10
59
José William Vesentini
editada pelo general Karl Haushofer, que contou com a colaboração de
inúmeros geógrafos (embora também historiadores, cientistas políticos,
militares, juristas etc), os quais, por diversas vezes e de diferentes
maneiras, reproduziram ou se apropriaram de determinadas ideias
ratzelianas, forneceram mais lenha para a fogueira das críticas à escola
determinista germânica e a sua natureza “mais político-ideológica do
que científica”.
O clima de rivalidade, de disputa de poder entre França e Alemanha,
além do fato de que os colaboradores daquele periódico frequentemente
repercutiam as ideias nazistas de uma “raça ariana superior” e do
“destino manifesto” da Alemanha em se tornar uma grande potência
mundial, foram elementos determinantes no desenrolar dessa
construção segundo a qual existiria uma escola geográfica determinista
e que ela teria gerado a geopolítica de Haushofer e seus colaboradores.
Até mesmo um importante geógrafo alemão da época, Leo Waibel, que
fugiu de seu país devido ao regime nazista e se exilou nos Estados
Unidos (embora tenha vivido alguns anos no Brasil), no afã de desancar
aquela geopolítica germânica bastante identificada com o totalitarismo,
acabou meio apressadamente rotulando-a como um “produto da escola
geográfica determinista” e bastante diferente de outra abordagem
geográfica mais aberta e liberal, que a seu ver não seria tanto
simbolizada por Vidal de La Blache e, sim, pelo seu mestre Alfred
Hettner12.
A partir daí, e em especial com o desfecho da Segunda Guerra
Mundial, essa identificação do determinismo com a geopolítica e desta
última com os regimes totalitários acabou por predominar durante
algumas décadas, sendo repetida, embora com algumas nuanças, por
importantes geógrafos como Jean Gottman, Camille Vallaux, Pierre
George e inúmeros outros autores, inclusive não geógrafos
(historiadores, cientistas políticos, sociólogos), tanto na França como
em outros países – principalmente latinos –, como o Brasil, a Espanha,
o México, a Argentina etc.
12
WAIBEL, L. Determinismo geográfico e geopolítica. In: Boletim Geográfico. Rio de Janeiro,
IBGE, 1961, n.164, p. 613-7.
60
Ensaios de geografia crítica
Sem dúvida que aquela geopolítica alemã dos anos 1920, 1930 e 1940,
de uma maneira geral, foi racista e dogmática, além de manifestar uma
clara simpatia pelo nazi-facismo. E também é inegável que podemos
encontrar facilmente nas obras de Ratzel, notadamente naquele
mencionado livro de 1897 e também na obra anterior
Antropogeografia, uma série de afirmações que exageram a
importância do tamanho do território para o poderio de um Estadonação, as quais, mesmo tendo um fundo de verdade, inflam demais o
peso do espaço físico para o advento e o desenvolvimento da
civilização e, em particular, do Estado moderno, visto por Ratzel como
o coroamento do processo civilizatório. Mas esse rótulo
“determinismo” seria de fato apropriado para Ratzel e, mais ainda, para
toda a tradição geográfica alemã do final do século XIX e da primeira
metade do século XX? Afinal de contas, o que significa determinismo
do ponto de vista epistemológico?
Claude Raffestin reproduz e concorda com a afirmativa de René
Thom, que prefaciou a célebre obra de Laplace – Ensaio filosófico
sobre a probabilidade –, segundo a qual “A ciência é determinista” na
medida em que busca uma ordem, uma regularidade, um encadeamento
entre os fenômenos, uma forma mesmo que complexa de causalidade,
sem a qual o conhecimento científico não seria possível13.
Quando lemos algum físico teórico importante – Einstein, Max Plank,
Hawding ou até mesmo Heisemberg – logo constatamos que eles
aceitam tranquilamente o que denominam “princípio do determinismo”,
segundo o qual as coisas e os fenômenos são encadeados ou se
influenciam mutuamente, que existem causas – mesmo que por vezes
probabilísticas – e efeitos, razões e consequências. É evidente que o
determinismo absoluto de Laplace, segundo o qual seria possível
conhecer tudo, inclusive o passado e o futuro, desde que se dispusesse
de todas as informações pertinentes, de toda a rede das forças e das
causas que agem no universo, é algo no mínimo duvidoso. Mas o
princípio do determinismo ou causalidade continua a ser aceito pelas
ciências naturais e, em grande parte, apesar de certas nuanças, até
13
RAFFESTIN, C. “Préface”. In: BERGEVIN, J. Déterminisme et Géographie. Les Presses de
l'université Lavai, 1992, p. I-XII.
61
José William Vesentini
mesmo pelas ciências humanas. Nas ciências naturais ele foi abalado
pelas relações de incerteza que existem na microfísica, ou o princípio
da indeterminação de Heisemberg, mas continua a ser uma espécie de
norte ou axioma básico14. Nas ciências humanas e sociais esse
princípio determinista sempre foi amenizado pela questão do livre
arbítrio humano, da natureza original dos seres humanos, que podem
criar coisas novas e decidir entre alternativas possíveis sem se
submeterem a leis férreas e inquebrantáveis. Mas amenizado não quer
dizer anulado e, mesmo no estudo do social-histórico, existe a
preocupação com a busca das “determinações” de um acontecimento ou
de um processo, ou seja, aquele conjunto de fatores que o originaram
e/ou que o explicam. Dessa forma, a discussão mais pertinente aqui não
é sobre o “princípio da determinação” em si, pois sem ele a ciência, tal
como a conhecemos hoje e desde Galileu Galilei, não seria possível,
mas, sim, sobre o caráter ou a substância dessas determinações ou
relações causais. Alguns cientistas e filósofos – os chamados “realistas”
– pensam que elas seriam inerentes ao real, ao mundo, às coisas e
fenômenos. Outros – os “idealistas” –, afirmam que, no final das
contas, elas, essas determinações, seriam um produto da nossa lógica
ou da nossa linguagem, mas que, mesmo assim, seriam imprescindíveis
para se conhecer e agir no mundo15.
O que se criticou muito em Ratzel – e também, ou principalmente, em
autores que se proclamavam como seus discípulos, como a geógrafa
norte-americana Ellen Semple – foi um determinismo exagerado e
estreito, que não buscava explicações complexas e, sim, uma causa
única e unilateral, que via apenas a importância do meio físico para a
sociedade e não valorizava a criação humana em si, a tecnologia e a
(re)produção da natureza. Mas a critica a esse determinismo estreito –
ou visão unilateral, como preferimos – considerou toda a busca de
determinações espaciais como equivocada, algo absurdo e sem sentido
14
Cf. HAWDING, S. W. Uma breve história do tempo. Rio de Janeiro, Rocco, 1988, p. 87. Cabe
ainda lembrar a famosa frase de Einstein: “Deus não joga dados”, pela qual o eminente físico
reafirmava a validade do determinismo, mesmo com a introdução do princípio de
indeterminação na física quântica.
15
Cf. BERVEGIN, op. cit., p. 15, que reproduz sobre isso uma frase de Ludwig Wittgenstein:
“O mundo é constituído de fatos no espaço lógico”.
62
Ensaios de geografia crítica
do ponto de vista científico. E a contraposição a isso, o chamado
possibilismo, pouco acrescentou a uma antiga discussão filosófica e
científica sobre a originalidade do ser humano, sobre o livre arbítrio e a
sua liberdade de criar e fazer coisas novas.
Desde no mínimo Maquiavel, o criador ou sistematizador da concepção
moderna de política (e da relativa autonomia do político em relação ao
divino, aos fenômenos físicos, à economia etc), por sinal um autor
importante para a obra de Ratzel, que essa questão a respeito do que o
ser humano cria e o que determina a sua ação já vinha avançando
bastante. “Julgo feliz aquele que sabe combinar as suas ações com o
sentido [ou ‘as determinações’] do seu tempo”, afirmou Maquiavel em
O Príncipe, acrescentando ainda que, em parte, os acontecimentos
(políticos) decorrem de circunstâncias externas e, em parte, do livre
arbítrio do(s) sujeito(s) que age(m)16.
Ora, seria justamente esta a questão que permitiria a Vidal de La
Blache ou a Lucien Febvre se contraporem ao raciocínio causalístico
unívoco que detectaram em Ratzel, complexizando as “causas” ou
motivos das ações ou dos processos políticos – tal como a “evolução
dos Estados”, um dos temas prediletos de Ratzel – e incluindo aí o
livre arbítrio dos seres humanos, a tensão entre a lógica (as
determinações) e a política ou o acaso (as indeterminações, a produção
do novo). Mas, ao invés de trilhar esse caminho – algo que exigiria um
maior esforço intelectual, além de uma aceitação parcial da abordagem
ratzeliana –, eles preferiram a cômoda atitude de rotular o geógrafo
germânico como “determinista”, ignorando a importância do princípio
do determinismo para a ciência moderna, e contrapor a isso uma
inopiosa perspectiva “possibilista”.
Tão somente repetir que as condições geográficas oferecem
“possibilidades”, e que o Homem as aproveita desta ou daquela
maneira, não produz nenhum avanço no conhecimento científico e
tampouco nessa clássica problemática filosófica sobre o maior ou
menor peso das determinações (que não são apenas naturais, diga-se de
passagem) frente à indeterminação ou o livre arbítrio do ser humano.
16
MAQUIAVEL. O Príncipe. São Paulo, Abril Cultural, 1979, col. Os Pensadores, p. 103.
63
José William Vesentini
Um geógrafo inglês, numa obra recente, chegou a afirmar que: “A
crítica exarcebada ao ‘determinismo geográfico’ obnubilou ou
obscureceu a análise das influências do ambiente sobre o social”17. E
um professor de história econômica na Universidade de Harvard, que
nos anos 1990 publicou um importante livro sobre as causas da riqueza
e da pobreza das nações, comentou que a geografia produziu um
escasso material sobre as possíveis influências da localização, do meio
físico etc, no desenvolvimento de determinados países (Inglaterra,
Estados Unidos, Alemanha) em contraponto ao pouco desenvolvimento
de outros (as nações africanas, por exemplo), provavelmente devido à
forte (auto) repressão que sofreu (ou se impôs) a partir dos exageros
“deterministas” de autores como Ellen Semple, que por sinal também
foi professora nessa mesma universidade norte-americana, que depois
dela – ou devido a ela – fechou o seu curso de geografia18.
Enfim, acreditamos que essa oposição entre uma geografia determinista
e outra possibilista é e sempre foi algo sem sentido do ponto de vista
epistemológico (embora, como já vimos, tenha tido um forte sentido
para os seus protagonistas sob o aspecto da ideologia nacionalista e até
mesmo da defesa de interesses corporativistas), que mais atrapalhou do
que ajudou no desenvolvimento da ciência geográfica. Mas a
problemática real que perpassa toda essa querela – aquela do livre
arbítrio humano versus as determinações ou o contexto (ambiental e
social) – ainda continua de pé; ela prossegue sem ter incorporado
grandes avanços. Num certo sentido, ela retornou ou reapareceu
naquela controvérsia ocorrida nos Estados Unidos nos anos 1950, na
qual Fred Shaefer se opôs a Richard Hartshorne e a grande questão em
debate era sobre que forma de conhecimento a geografia é, se
idiográfica ou nomotética.
Esse debate entre Shaefer e outros contra Hartshorne passou para a
história da geografia como a questão do “excepcionalismo”, numa clara
demonstração de que os vencedores deixam a sua marca ou o seu rótulo
na memória coletiva. Essa qualificação, na verdade, foi uma forma de
simplificar e estereotipar o pensamento de Hartshorne, o grande nome
17
18
UNWIN, Tim. The place of Geography. London, Longman Group, 1992, p. 262.
LANDES, P. Riqueza e a pobreza das nações. Rio de janeiro, Editora Campus, 1998, p. 1-16.
64
Ensaios de geografia crítica
da geografia norte-americana desde o final dos anos 1930 até inícios da
década de 1960, o qual nessa querela foi identificado com o status quo,
como um conservador que não admitia a renovação quantitativa e
cientificista na sua disciplina. Só que a questão é mais complexa e, no
fundo, ela envolve duas aporias: a natureza da geografia como ciência
(se idiográfica ou nomotética) e a utilidade da geografia, a
possibilidade de se construir um saber geográfico essencialmente
pragmático e preditivo.
Fred Shaefer iniciou essa controvérsia com o seu famoso artigo no qual
cognominou de “excepcionalismo” a abordagem corológica na
geografia, então defendida entre outros por Hartshorne (mas que, num
certo sentido, também era a de Vidal de La Blache e, sem dúvida
alguma, a de Hettner), pela qual o objetivo desta ciência seria não o de
estabelecer leis gerais e, sim, conhecer casos (regiões, lugares)
particulares. Retomemos um importante trecho desse autor:
O pai do excepcionalismo é Immanuel Kant. Mesmo sendo
considerado como um dos grandes filósofos do século
XVIII, Kant foi um geógrafo medíocre quando comparado
aos seus contemporâneos ou mesmo a Bernardo Varenius,
que morreu mais de um século e meio antes dele. Kant
produziu a sua asserção excepcionalista não somente para
a geografia, mas também para a história. Segundo ele, a
história e a geografia encontram-se numa posição
excepcional, diferente das chamadas ciências sistemáticas
[...] Ritter usou essas ideias, assim como Hettner e
finalmente Hartshorne. [...] O que os cientistas fazem é
[...] aplicar em cada situação concreta todas as leis que
envolvem as variáveis que eles consideram como
relevantes. As regras pelas quais essas leis são
combinadas, o que é livremente chamado interações das
variáveis, estão elas mesmas entre as regularidades que a
ciência tenta descobrir. Não há nenhum desafio, como
imagina Hartshorne, para o cientista social produzir uma
lei singular que poderia explicar a complexidade da
situação do porto de Nova Iorque. Uma descrição dessa
situação é única no óbvio senso que nunca haverá uma
região ou localidade exatamente como Nova Iorque com
65
José William Vesentini
todos os serviços que fornece para o seu entorno. Nunca
haverá uma lei para um caso assim. Pois, que importância
teria uma lei que levasse em conta somente um caso? Mas,
por outro lado, a geografia urbana atualmente conhece
alguns princípios sistemáticos, os quais, aplicados ao porto
de Nova Iorque, podem explicar, não tudo mas alguma
coisa, sobre a estrutura e as funções dessa realidade. Esse é
o ponto. Ou devemos desistir de explicar porque nós não
podemos explicar todas as coisas? Nesse ponto a geografia
encontra-se na mesma situação das outras ciências sociais.
Ou devemos rejeitar a sociologia porque a predição sobre
o resultado das eleições não é ainda tão confiável como
alguns gostariam, ou porque não podemos assegurar com
certeza se em cinco anos a Argentina terá uma ditadura ou
uma democracia? [...] Qualquer um que rejeite o método
científico em qualquer área da natureza, rejeita por
princípio a possibilidade de predição. Em outras palavras,
rejeita o que é normalmente conhecido como
determinismo científico. A atitude intelectual por trás
dessa atitude na maioria dos casos é alguma versão da
doutrina metafísica do livre arbítrio. [...] Se
determinismo é entendido como a existência generalizada
de leis na natureza, sem nenhuma ‘exceção’, então essa é a
base comum de toda a ciência moderna. [...] O que
podemos inferir disso tudo sobre o futuro da geografia?
Parece-me que, desde que os geógrafos cultivem os
aspectos sistemáticos da sua disciplina, a geografia é uma
ciência como outra qualquer. Todas as formas de leis que
distinguimos contêm fatores espaciais. [...] [Mas] eu não
sou otimista no caso da geografia rejeitar a busca de leis,
exaltando os aspectos regionais e graças a isso limitar-se a
uma mera descrição. Neste caso, os geógrafos sistemáticos
deverão se encaminhar para e finalmente até se integrar
nas ciências sistemáticas19.
O que salta à vista nesse texto, no qual se critica uma tradição
geográfica que vai de Kant até Hartshorne, passando por Hettner, Vidal
19
SHAEFER, F.K. “Exceptionalism in geography: a methodological examination”. In Annals of
the Association of American Geographers, n.43, 1953, p. 226-49. Os grifos são nossos.
66
Ensaios de geografia crítica
de La Blache, Leo Waibel e outros, é a defesa absoluta do princípio do
determinismo “sem nenhuma exceção”, chegando-se ao absurdo de
considerar o livre arbítrio humano como uma mera “doutrina
metafísica”. Existe aí uma influência explícita de Karl Popper20, o qual,
naquele momento (Popper sofisticou o seu ponto de vista mais tarde,
após os debates com a Escola de Frankfurt nos anos 196021), encarava a
física como o modelo por excelência a ser seguido por qualquer
disciplina que almejasse o status de ciência. Cabe esclarecer que
Popper pessoalmente não se envolveu nessa querela – e,
provavelmente, nem tomou conhecimento dela. Acreditamos inclusive
que ele teria certa afinidade teórica com o igualmente neokantiano
Hartshorne. Mas a epistemologia popperiana, na sua leitura por Shaefer
auxiliado por Bergmann, serviu como instrumento na luta contra as
ideias de Hartshorne. Não existiriam diversidades no real e, portanto,
tampouco nas ciências, nas quais deveria haver um “método” unitário,
um paradigma único de busca de leis ou princípios lógico-matemáticos,
de preferência construídos de forma dedutivista – a indução e a ênfase
no empírico em si eram menosprezados. Admitia-se que a ciência
nunca conheceria tudo ou a “essência” das coisas – tal como na
imagem kantiana do navegante que se orienta pela estrela Polar sem
nunca a alcançar –, mas acumularia gradativamente um rol de
conhecimentos (ou melhor, de leis e teorias) que permitiriam uma
previsão cada vez mais apurada dos fatos, advindo daí uma forte recusa
em analisar os casos particulares ou únicos, que só teriam algum
sentido se incorporados num esquema ou numa teoria classificatórios.
As teorias ou “leis” nomotéticas, destarte, deveriam necessariamente
desembocar numa forma de previsão e qualquer conhecimento que não
atendesse a esse requisito seria não-científico22.
20
O autor submeteu o texto, antes da publicação, à leitura e sugestões do filósofo (e seu
amigo) Gultav Bergmann, um discípulo (e ex-aluno) de Karl Popper.
21
Cf. ADORNO, T., POPPER, K. e Outros. La disputa del positivismo em la sociologia alemana.
México, Ediciones Grijalbo, 1973.
22
“Há um critério para se determinar o caráter ou status científico de uma teoria? [...]
Afirmo que o critério para se estabelecer o status científico de uma teoria é a sua
refutabilidade ou a sua testabilidade. Uma teoria que não é testável não é científica. Toda
‘boa’ teoria científica implica numa proibição: proibição de que ocorram certas coisas.”
(POPPER, K. El desarrollo del conocimiento cientifico. Buenos Aires, Paidos, 1967, p.43-7).
67
José William Vesentini
Todavia, fica aqui uma dúvida: e se alguma região ou aspecto do real
não atender a essa exigência, se em determinado campo do
conhecimento não for possível construir leis dedutivistas ou tentar
prever que tal fato poderá ou não ocorrer?
A resposta a isso é simples: quanto um conhecimento, tal como a
geografia tradicional, não corresponder a esse paradigma, não puder
construir leis dedutivistas ou preditivas, então ele não é científico, tal
como afirmou Shaefer. Por sinal, foi exatamente esse o “julgamento”
que Popper fez em relação à psicanálise e a todo estudo do inconsciente
humano, para mencionarmos apenas um exemplo23.
Também se encontra nesse texto uma desvirtuação dos “oponentes”,
começando por Kant e terminando com Hartshorne, sendo este o
principal alvo das críticas. Ignora-se, provavelmente de forma
deliberada, que esses autores jamais advogaram um “excepcionalismo”
puro e simples (isto é, um caráter único, completamente diferente de
todo o restante, como se esse restante – isto é, a ciência – fosse
homogêneo) para a geografia ou a história, mas, sim, uma ênfase na
complexidade e na diversidade do real e, portanto, das ciências. Basta
recordarmos aqui um texto de Hartshorne, no qual ele afirma que mais
útil do que inquirir “se a geografia é uma ciência” seria refletir sobre
“que tipo de ciência é a geografia”, numa evidente percepção de que a
realidade não é a mesma em todas as suas manifestações e, dessa
forma, existiriam ciências (no plural) e não “a” ciência24.
23
POPPER, K. Op. Cit., p.44-6.
“Podemos substituir a indagação ‘A geografia é uma ciência?’, pela pergunta muito mais
útil: ‘Que espécie de ciência é a geografia?’ A geografia é um campo cuja matéria inclui a
maior complexidade de fenômenos, e, ao mesmo tempo, preocupa-se, mais do que a maioria
das demais ciências, com o estudo de casos individuais – dos inumeráveis lugares do mundo e
do próprio caso ímpar do [nosso] mundo. Por essa razão, a geografia é menos capaz do que
muitas outras ciências de elaborar e empregar leis científicas. Mas, não obstante isso, a
exemplo de outros domínios científicos, ela preocupa-se em elaborar leis na medida do
possível.” (HARTSHORNE, Richard. Questões sobre a natureza da geografia. Rio de Janeiro,
IPGH, 1969, p. 228-9). Esta obra de Hartshorne, originalmente publicada em 1959, foi uma
resposta a determinadas críticas – principalmente as de Shaefer e seguidores – feitas ao seu
monumental trabalho de 1939, The Nature of Geography.
24
68
Ensaios de geografia crítica
O que na realidade Kant asseverou, por sinal de forma bastante
razoável, foi que existem diversas formas de conhecimento, do artístico
ao filosófico, do científico (que pode ser mais ou menos nomotético ou
idiográfico, e nunca exclusivamente uma coisa ou outra) ao senso
comum, etc, e eles não são estanques ou sequer hierarquizados. Nem
Kant e tampouco Hartshorne afiançaram que a geografia seria uma
saber totalmente idiográfico; eles apenas admitiram que a realidade
estudada pela geografia, e principalmente pela história, tem muito de
particular ou de irrepetível (não recorrente) e, dessa forma, cabe
utilizar, embora não de maneira única ou exclusiva, uma abordagem
idiográfica. Mas existe no texto de Schaefer uma aversão pela
monografia, por qualquer estudo aprofundado sobre uma realidade
específica nas suas determinações (e indeterminações) particulares: isso
é visto como uma mera “descrição” (e não uma explicação), numa total
desvalorização não apenas da geografia regional, mas também da
biologia, embora de forma inconsciente na medida em que o seu
inspirador, Popper, pelo menos até aquele momento, nunca havia
estudado seriamente outras ciências naturais além da física e em
particular as teorias de Einstein. De maneira até mesmo hilária, no final
do seu afamado texto, Shaefer ameaça abandonar à sua própria sorte a
geografia regional – ou a perspectiva geográfica que “exalta os aspectos
regionais” –, caso ela não mude radicalmente, e se juntar de vez ao time
dos cientistas sistemáticos (ele pensava em especial na economia, vista
pelos neopositivistas como a ciência social mais próxima do seu
arquétipo de cientificidade).
Uma questão essencial nesse debate é sobre a existência de uma ciência
no singular – com um “método” universal – ou de diversas ciências no
plural. Ou, sob um outro ponto de vista complementar, sobre a
existência de uma só realidade, com “leis” universais e invariáveis, ou
realidades que possuem especificidades com lógicas relativamente
diferentes. Na sua resposta ao texto de Schaefer, Hartshorne colocou
muito bem o problema:
O fato de a geografia constituir um dos campos do
conhecimento em que uma soma relativamente grande de
esforços é empregada no estudo de casos individuais, e
69
José William Vesentini
não na tentativa de elaborar leis científicas, tem
preocupado os críticos, em nosso meio, há mais de meio
século [...] Não há dúvida que todos nós podemos
concordar com Hettner, que a ciência não há de permitir
que o conceito do livre arbítrio a impeça de procurar
determinar as causas das ações humanas ao máximo de sua
capacidade como ciência [...] [Todavia] afirmar que a
ciência refutou a possibilidade de um certo grau de livre
arbítrio, ou que se pode esperar que ela venha refutar essa
possibilidade, seria pretender saber o que não podemos
conhecer. [Muitos] aferram-se ao determinismo científico
como um artigo de fé filosófica que deve ser defendido na
qualidade de alicerce do qual depende a estrutura da
ciência. Qualquer sugestão de dúvida, a menor presunção
de que existe a possibilidade do livre arbítrio, deveria, por
conseguinte, ser atacada com veemência e escárnio como
sendo anticientífica [...] A nossa conclusão é a seguinte:
quer pelo fato de que um certo grau de livre arbítrio é uma
realidade, quer pela circunstância de que jamais
poderemos conhecer de maneira completa os fatores e
processos que determinam as decisões humanas
individuais, sempre há de permanecer uma área oculta em
qualquer estudo no campo das ciências sociais, que não
poderá ser explicado por leis científicas. Em resumo, como
afirma Allix, ‘o único determinismo verdadeiro é o
estatístico’. Mas em muitos aspectos da ciência importa
conhecer determinados casos individuais. As mais
fidedignas estatísticas de mortalidade não serão capazes de
dar uma resposta à secular pergunta de quem indaga:
‘quanto tempo de vida eu ainda terei?’[...] Asseverar,
como fazem alguns, que a formulação de leis científicas
constitui o propósito final da ciência, é confundir os meios
com o fim. O propósito da ciência é compreender o
universo ou a realidade, com o maior grau de
fidedignidade possível. Embora os cientistas do século
XIX confiantemente esperassem que todo o conhecimento
da realidade seria em breve organizado segundo leis
gerais, nenhum domínio logrou reduzir todos os seus
resultados a esses termos, e não podemos hoje prever que
isso jamais seja possível [...] A geografia busca descrever
70
Ensaios de geografia crítica
e classificar fenômenos, estabelecer, sempre que possível,
princípios lógicos ou leis gerais, alcançar o máximo de
compreensão sobre as inter-relações entre esses fenômenos
e organizar esses resultados em sistemas ordenados25.
Apesar da visão, a nosso ver, limitada que Hartshorne tinha da
geografia – como uma ciência corológica, que estuda as diferentes
áreas ou regiões da superfície terrestre (perspectiva que também
encerra um elemento de verdade, embora não dê conta de toda a
produção geográfica passada, presente ou em devir) –, temos que
concordar com ele que a função primordial da ciência não é estabelecer
“leis” gerais e, sim, conhecer a realidade. Determinadas “leis” ou
princípios lógicos até podem ter – e têm efetivamente – o seu lugar,
dependendo da realidade estudada. Mas elas são instrumentos do
conhecimento, em contextos nos quais isso é possível, e não o seu
objetivo primordial. A realidade ou o “mundo” no sentido geral, enfim
tudo o que existe e/ou que pode ser conhecido, é complexo e
multifacetado e nada nos garante que um método adequado para uma
área do conhecimento também o seja para outra diferente.
Um dos principais dogmas do positivismo, em todas as suas vertentes
(inclusive em determinados meios “dialéticos” ou marxistas), é a
crença de que existe um único método válido para todos os aspectos da
realidade, para todo o conhecimento científico. A ciência atual caminha
numa direção oposta a essa, numa aceitação da pluralidade – de
métodos e de procedimentos, de formas de conhecimento ou de
explicações – do real, conforme atesta um importante filósofo:
Se o método, no sentido profundo do termo, pudesse ser
unificado por toda a parte, a diversidade de regiões [do
real, do conhecimento] se reduziria a uma diversidade
simplesmente aparente [...] Uma tal unificação mais ou
menos direta dos métodos parece fora de questão hoje,
talvez para sempre. Não é nem mesmo possível considerá-
25
HARTSHORNE, op. cit., p. 222-6.
71
José William Vesentini
la dentro do domínio antropológico [isto é, nas ciências
humanas]26.
Nessa mesma perspectiva, um conhecido especialista em filosofia da
ciência argumentou que existem ciências, no plural, e não apenas uma
ciência27.
No entanto, a despeito da flagrante debilidade do ponto de vista de
Schaefer e demais neopositivistas, que no fundo advogavam uma
geografia pragmática e voltada para o planejamento (não podemos
esquecer que vivíamos então na época áurea do capitalismo
keynesiano), o fato é que esse viés tornou-se vencedor naquele
momento e logrou uma profunda repercussão no desenrolar da
geografia, em especial na anglo-saxônica. A partir daí a abordagem
regional na geografia sofreu um enorme declínio, da mesma forma que
as tentativas de integrar o natural com o social. A geografia norteamericana, dos anos 1960 em diante, procurou imitar o exemplo das
ciências sociais e, em especial, o da economia, tornando-se numa
espécie de prima pobre da “economia espacial”. O discurso sobre o
espaço como categoria abstrata substituiu as análises dos fenômenos na
sua dimensão espacial.
Mencionando um exemplo bastante significativo, David Harvey,
provavelmente o nome mais conhecido da escola geográfica anglosaxônica desde os anos 1970, mesmo tendo nas suas palavras operado
um deslocamento de uma abordagem “liberal” até uma “marxista”28,
nunca deixou de lado uma percepção de ciência com uma forte
influência do artigo de Schaefer. A sua concepção de pesquisa,
inclusive após ter optado pelo marxismo, continua sendo a de aplicar
“o” método científico, no singular (só que agora usando menos a
matemática, como uma linguagem unificadora, e mais o materialismo
histórico, com a mesma função), sem nunca aprofundar as
determinações concretas de qualquer situação específica – isto é, sem
nunca encarar um processo, um lugar ou uma obra (um edifício, por
26
27
28
CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto/1. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 214.
GRANGER. G. G. A ciência e as ciências. São Paulo, Editora da Unesp, 1994.
HARVEY. D. A justiça social e a cidade. São Paulo, Hucitec, 1980, p. 7.
72
Ensaios de geografia crítica
exemplo) em sua singularidade mesmo que contextualizada – e sempre
tentando elaborar “leis” ou conceitos gerais que dêem conta de tudo
num mesmo esquema. O seu entendimento, expresso numa obra
clássica de 1969, com ligeiras alterações, continua a nortear a sua
produção em temas como a justiça social ou a condição pós-moderna:
Os geógrafos tiveram grandes dificuldades para libertar-se
dessa forma particular de explicação [o método
idiográfico] [...] A tese kantiana supõe também que o
espaço pode ser examinado, e os conceitos espaciais
desenvolvidos, independentemente do seu conteúdo. O que
é lamentável é que essa afirmação de um espaço absoluto
não tenha sido explicitamente discutida e reconhecida
como uma das proposições básicas da tese kantiana [...]
Podemos concluir que a geografia é escassa em teorias e
muito rica em fatos. Podemos afirmar que as leis
[científicas] podem ser estabelecidas tanto na geografia
física quanto na humana [...] O complicado e multivariado
sistema que os geógrafos tentam analisar (sem as
vantagens do método experimental) é difícil de manejar. A
teoria, em última instância, requer o uso da linguagem
matemática, pois somente se pode manejar a complexidade
de interações de forma consistente usando semelhante
linguagem. A análise dos dados requer um computador
rápido e métodos estatísticos adequados, e a verificação
das hipóteses também requer métodos. A incapacidade dos
geógrafos em desenvolver teorias reflete em parte um
lento crescimento dos métodos matemáticos apropriados
para tratar os problemas geográficos. Os deterministas
realizaram toscos intentos de explicação sistemática,
porém nos anos 1920 caíram em desgraça29.
29
HARVEY, D. Explanation in Geography. Londres, Edward Arnold, 1969, p. 64-8. Também
RAFFESTIN (Por uma geografia do poder. São Paulo, Ática, 1993, p.23-4) vai por um caminho
semelhante, afirmando que o grande problema de Ratzel na sua tentativa de superar a
abordagem idiográfica e estabeler “leis” era a fragilidade dos métodos estatísticos da sua
época.
73
José William Vesentini
Percebe-se nessa fala uma recusa em distinguir a realidade natural da
social e uma total desconsideração pela questão do livre arbítrio do ser
humano, além do fato – muito estranho para quem apregoa estar
considerando não mais o “espaço absoluto” de Newton e de Kant, mas,
sim, o “espaço relativo” de Einstein – de ignorar completamente a
problemática da indeterminação de certos processos (inclusive físicos,
tal como enuncia o “princípio da indeterminação” de Heisenberg30, que
mesmo a contragosto Einstein referendou).
Até mesmo nos seus trabalhos mais recentes, por sinal de excelente
qualidade, prevalece um esquematismo lógico-formal que denega as
contradições inerentes e as indeterminações do(s) objeto(s) estudado(s),
nos quais a “justiça social” é subsumida a uma problemática de
“produção e distribuição” (ignorando assim as contradições históricas
e, principalmente, as lutas sociais que determinam a sua realidade
específica em tal ou qual contexto), e a “dualidade” entre modernidade
e condição pós-moderna é vista como reflexos da produção fordista
(estandardizada, baseada na economia de escala, etc.) e da produção
flexível (economia de escopo, descentralização e diversidade, etc.)31.
Enfim, a tentativa de superação da abordagem idiográfica, a
exorcização do original ou do singular32, resultou, em grande medida,
30
“Na mecânica quântica as relações de incerteza impõem um limite máximo definido na
precisão com que posição e momento linear, ou tempo e energia, podem ser medidos
simultaneamente. Como uma separação infinitesimalmente estreita significa uma imprecisão
infinita com respeito às posições no espaço-tempo, os momentos lineares ou as energias ficam
completamente indeterminados.” (HEISENBERG, op. cit., p. 123).
31
Cf. HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo, Loyola, 1992. Nessa importante obra,
talvez o livro (acadêmico) de geografia com maior difusão internacional nos últimos 20 anos, o
autor consegue discorrer sobre temas variados – a renovação urbana de Baltimore, a
problemática da habitação popular em Los Angeles, o prédio da IBM em Nova Iorque ou o
filme Blade Runner – sem nunca mencionar os seus contextos específicos, as contradições e os
grupos ou projetos alternativos que se entrecruzaram etc., mas apenas catalogando-os como
“modernos” ou “pós-modernos”. Também não existe nenhum mapa, nenhuma localização no
espaço concreto desses fenômenos estudados, mas tão somente considerações abstratas
sobre “o significado de espaço e tempo” neste ou naquele filme, na pós-modernidade, etc.
32
Não desconhecemos que William BUNGE (Perspectivas de la geografía teorica, in:
MENDOZA, J.G., JIMÉNEZ, J.M. e CANTERO, N.O. El pensamiento geográfico. Madrid, Alianza,
1982, pp.521-30), seguindo a trilha de Schaefer, estabeleceu uma esdrúxula diferenciação
entre o único ou original e o singular, sendo que este último, a ser levado em consideração
pela ciência geográfica, seria tão somente um caso específico e sempre enquadrável numa
74
Ensaios de geografia crítica
numa análise depauperada, que generaliza em demasia e – malgrado a
sua prolixidade – perde completamente as especificidades de cada
situação ou processo.
Convém esclarecer que não se está, aqui, defendendo os méritos da
“abordagem idiográfica” contra os “nomotéticos” e muito menos
assumindo aquele discutível e limitado ponto de vista – que veio de
Kant, passou por Hettner e talvez tenha se encerrado com Hartshorne –
segundo o qual a geografia estuda as “diferenciações de áreas” na
superfície terrestre. O que se procura demonstrar é que a crítica –
necessária – da geografia como um saber essencialmente idiográfico,
no final das contas, foi superficial em demasia e perdeu algo importante
no seu percurso. Ela não consistiu, afinal, numa verdadeira crítica – na
qual deve existir uma superação com subsunção ou incorporação do
que foi criticado como parte de uma síntese superior – e, sim, numa
mera rejeição. Em função de um modismo – ou comodismo –
epistemológico, denegou-se a contradição inerente ao social-histórico, a
indeterminação do fenômeno social e político enquanto relação de
forças, o papel do contingente ou do acaso e a relação problemática
entre sujeito e objeto no estudo do social:
Impossível falar da História no singular [...] Devemos nos
interrogar sobre as formas da história: sobre a distinção
entre uma história regida por um princípio de conservação
ou de repetição e de uma história que por princípio abre
lugar para o novo [...] O que é, pois interrogar? Em um
sentido é fazer o enterro do seu saber. Em um outro
sentido, aprender graças a esse enterro. Ou ainda:
renunciar à ideia de que haveria nas coisas mesmas [...] um
sentido inteiramente positivo ou uma determinação em si
prometida ao conhecimento, como se isso que analisamos
não se tivesse já formado sob o efeito de um deciframento
de sentido, em resposta a um questionamento da história,
da sociedade [...] como se o ‘objeto’ não devesse nada a
teoria geral, ao passo que aquele primeiro seria algo desprezável pela ciência, um malentendido da geografia tradicional. Mas essa perspectiva nos parece facciosa e somente
aceitável pelo pressuposto de que existiria um só tipo de conhecimento, o nomotético.
75
José William Vesentini
nossa própria interrogação, o movimento do pensamento
que nos faz ir até ele e às condições sociais e históricas nos
quais se exerce33.
Retomar esse debate, afinal, significa repensar a coexistência
necessária, mesmo que problemática, entre as abordagens idiográfica e
nomotética na geografia. Mais ainda, significa colocar a relação de
complementaridade entre objeto e sujeito, a identificação e tensão, ao
mesmo tempo, entre o investigador e a realidade a ser estudada: as
inter-relações entre ambiente geográfico e o social-histórico, ou mais
especificamente, pensando-se em Ratzel, a política na sua dimensão
espacial. Enfim, deve-se examinar o fenômeno político, base do socialhistórico, como conflito e indeterminação, incorporando a questão da
coexistência entre a necessidade (lógica ou determinação) e a
contingência (abertura para o novo, singularidade ou originalidade). A
nosso ver, esses são os elementos basilares a serem incorporados na
análise geográfica, em especial a geográfico-política, mesmo sem
deixar de lado a superação do idiográfico puro e simples e a
necessidade de construir categorias, conceitos ou princípios lógicos,
que devem ser abertos e provisórios e nunca sobrepostos de forma
dedutiva a qualquer realidade estudada, que sempre encerra as suas
determinações específicas.
Cabe, ainda, recordar a dimensão política dessa controvérsia sobre o
“excepcionalismo”. Tratava-se não apenas de definir o estatuto
epistemológico da geografia como ciência, mas, fundamentalmente,
qual seria a sua utilidade prática. Foi fácil estereotipar Hartshorne como
conservador e adepto do tradicionalismo na geografia e na sociedade.
Como se sabe, ele foi oficial do exército norte-americano durante a
Segunda Guerra Mundial, trabalhou como estrategista no Pentágono,
ajudou a redefinir os limites da Alemanha e de Berlim redivididas no
pós-guerra e, durante a sua vida acadêmica e de pesquisas, elaborou
vários trabalhos de geografia política ou geopolítica (este rótulo,
evidentemente, não era usado) a respeito de fronteiras, territórios e o
papel estratégico dos Estados Unidos no mundo. Ademais, como
33
LEFORT, C. As formas da História. São Paulo, Brasiliense, 1979, p. 15-7.
76
Ensaios de geografia crítica
assinalaram vários de seus críticos34, ele era anticomunista e defensor
radical do sistema político e do way of life europeu-ocidental e
principalmente norte-americano. Schaefer, por outro lado, era
simpatizante do partido comunista (ele próprio afirmava, e vários
outros repetiram, que a CIA o vigiava ou perseguia, uma informação
nunca comprovada) e infelizmente morreu jovem, antes mesmo da
publicação do célebre artigo (por sinal, a sua única contribuição
conhecida para a geografia), fatos que provavelmente tiveram um
grande peso na forte identificação, no clima de simpatia que se criou
entre a sua figura e os então jovens geógrafos norte-americanos ou
britânicos “rebeldes”, que propugnavam uma completa renovação na
tradição geográfica. Contudo, paradoxalmente, o jovem geógrafo
marxista e socialista fazia uso das ideias do neopositivista Popper como
seus alicerces teóricos, propugnando um modelo da física (ou mais
modestamente da economia keynesiana) como o ideal para a renovação
geográfica, para a construção de uma geografia preditiva que fosse útil
nos planejamentos (urbanístico, regional, territorial enfim). Esse
entendimento shaeferiano, vitorioso no transcorrer das circunstâncias –
afinal, ele foi uma espécie de bandeira ou ícone para a chamada
“revolução quantitativa” dos anos 1960 e 1970 –, produziu, no final das
contas, uma ciência geográfica pragmática, voltada para a preparação
de “técnicos” e completamente apartada do ensino, da educação,
atividade que desde meados do século XIX sempre tinha sido a sua
principal raison d’être. Os cientistas sociais, a partir daí, tomaram
conta do ensino das humanidades – história, geografia e sociologia – no
sistema escolar norte-americano, tendo ocorrido uma multiplicação de
cursos superiores de ciências sociais e, de maneira complementar, uma
retração dos cursos de geografia, com fechamentos de vários
departamentos e cursos nas universidades35.
34
Cf. BUNGE, op. cit., onde há várias referências à “conhecida ideologia anticomunista de
Hartshorne”, por sinal um ex-professor de Bunge.
35
É evidente que essas mudanças no sistema escolar norte-americano não se explicam
apenas, nem principalmente, pela vitória da perspectiva neopositivista na geografia. Elas
também envolveram a disciplina história e têm outras determinações, que neste texto não
iremos explicitar. Em todo o caso, até inícios dos anos 1990, eram os departamentos
universitários de ciências sociais, e nunca os de geografia ou de história, que preparavam os
professores de história, sociologia e geografia, disciplinas que eram lecionadas juntas nos
77
José William Vesentini
Foram as circunstâncias, afinal – em especial o avançar do fordismo e
do seu modelo de escola técnica ou profissionalizante, dos
planejamentos que envolviam a reorganização do espaço e,
provavelmente, até mesmo a aspiração de grande parte dos novos
geógrafos em exercer atividades com melhor remuneração e maior
status social (pelo menos na época) que a de professor nas escolas
fundamentais e médias –, e não a maior ou menor veracidade ou
fundamentação das ideias deste ou daquele oponente, que decidiram a
perspectiva vitoriosa nessa contenda. Mas não deixa de ser irônico o
fato de que o lado tido como de “esquerda”, ou supostamente rebelde
frente ao status quo, era antipluralista (pois admitia apenas um único
método científico e, mais ainda, aceitava tão somente o modelo
dedutivista e preditivista de ciência) e acabou por gerar um instrumento
extremamente útil, pelo menos naquele momento, para o sistema
capitalista no seu centro principal, para a multiplicação dos
planejamentos típicos da economia keynesiana ou intervencionista da
época, que ocorreram especialmente nos Estados Unidos. Em
contraposição, o lado tido como conservador e direitista era defensor da
democracia e do pluralismo e, mesmo não recusando uma função
pragmática para a geografia, enfatizava o seu caráter humanístico. Sinal
dos tempos. Relendo os textos daquela controvérsia nos dias de hoje,
após a crise do marxismo e a derrocada do socialismo real, após uma
revalorização da democracia (que não é mais vista como burguesa) e
principalmente do pluralismo, temos a impressão de que os sinais
foram invertidos. Em todo o caso, não é esta a nossa preocupação
fundamental aqui e agora. Ademais, essa controvérsia sobre a função
social da geografia já havia sido iniciada anteriormente, num outro
contexto, no Reino Unido do final do século XIX.
ensinos fundamental e médio. Para se ter uma ideia dessas mudanças, principalmente com a
retomada da formação dos professores pelos cursos de geografia nos anos 1990, quando a
abordagem neopositivista está em crise (além de ter ocorrido uma revalorização da escola e
do ensino da geografia a partir da globalização e da terceira revolução industrial), com a
reabertura de alguns departamentos em universidade, veja-se o importante relato de
HARDWICK, S.W. e HOLTGRIEVE, D.G. Geography for Educators. Standards, themes and
concepts. New Jersey, Prentice Hall, 1996.
78
Ensaios de geografia crítica
O debate entre Mackinder e Kropotkin ocorreu nas seções da então
poderosíssima Royal Geographical Society (RGS) de Londres, na
penúltima década do século XIX. Ambos proferiram falas, em seções
dessa sociedade, a respeito do que é e do que deveria ser a geografia, e,
posteriormente, as publicaram em revistas especializadas36. Existe aí
uma discórdia, ou uma sensível diferença de perspectiva, que prossegue
talvez até com maior intensidade nos dias atuais: se a geografia deve
ser útil para o sistema, para o “comércio” como dizia Mackinder (isto é,
os interesses imperialistas britânicos da época), ou se ela deve servir
basicamente aos ideais humanísticos de combate aos preconceitos, de
crítica ao imperialismo, às injustiças e desigualdades, tal como
advogava Kropotkin.
Este último abriu o debate com os seus comentários sobre “o que a
geografia deve ser”, que na realidade constituíam uma proposta de
reforma profunda na educação geográfica, no ensino da geografia.
Levando em conta aquele período de colonização européia e
particularmente britânica na Ásia e na África, e o fato que a RGS
congregava não apenas geógrafos, mas principalmente uma boa parte
da elite econômica e social da época interessada nos negócios do
ultramar (negociantes, industriais, membros da família real,
diplomatas), kropotkin proferiu a seguinte fala:
Assistimos hoje o despertar de um interesse pela geografia
que lembra o que ocorreu com a geração anterior, durante
a primeira metade no nosso século [...] Não se deve
estranhar, portanto, que os livros de viagens e os de
descrição geográfica em geral estejam se tornando no tipo
mais popular de leitura. Era também natural que esse
renascimento do interesse pela geografia dirigisse a
atenção do público sobre a escola. Foram realizados
inquéritos e descobriu-se, com estupor, que conseguimos
fazer com que esta ciência – a mais atrativa e sugestiva
para pessoas de todas as idades – resultou nas escolas num
36
KROPOTKIN, P. “What Geography Ought to Be”. In: The Nineteenth Century, XXI, 1885,
pp.238-258; e MACKINDER, H.J. “On the scope and methods of Geography”. In: Proceedings of
the Royal Geographical Society, n.9, 1887, p. 141-60.
79
José William Vesentini
dos assuntos mais áridos e carentes de significado [...] A
discussão recentemente iniciada pela [Real] Sociedade
Geográfica, o Informe antes mencionado pela sua
Comissão Específica na sua exposição, foram em geral
acolhidos com simpatia por parte da imprensa. Nosso
século mercantilizado parece ter entendido melhor a
necessidade de uma reforma quando se colocou em
evidência os chamados interesses ‘práticos’ da colonização
e da guerra. [A geografia escolar] pode constituir um
poderoso instrumento tanto para o desenvolvimento geral
do pensamento como para familiarizar o estudante com o
verdadeiro método de raciocínio científico [...] A geografia
deve cumprir também um serviço muito mais importante.
Deve nos ensinar, desde a mais tenra infância, que todos
somos irmãos, qualquer que seja a nossa nacionalidade.
Nestes tempos de guerras, de ufanismos nacionais, de
ódios e rivalidades entre as nações, habilmente
alimentados por gente que persegue seus próprios e
egoísticos interesses, pessoais ou de classe, a geografia
deve ser – na medida em que a escola deve fazer alguma
coisa para contrabalançar as influências hostis – um meio
para anular esses ódios ou estereótipos e construir outros
sentimentos mais dignos e humanos. Deve mostrar que
cada nacionalidade contribui com sua própria e indispensável pedra para o desenvolvimento geral da humanidade, e
que somente pequenas frações de cada nação estão
interessadas em manter os ódios e rivalidades nacionais.
[...] Assim, o ensino da Geografia deve perseguir três
objetivos principais: despertar nas crianças a afeição pela
ciência natural em seu conjunto; ensinar-lhes que todos
os homens são irmãos, quaisquer que sejam as suas
nacionalidades; e deve ensinar-lhes a respeitar as
chamadas ‘raças inferiores’. Desde que se admita isso, a
reforma da educação geográfica é imensa: consiste nada
menos que na completa renovação da totalidade do sistema
de ensino de nossas escolas37.
37
KROPOTKIN, op. cit., p. 240-3.
80
Ensaios de geografia crítica
Sem dúvida que essa proposta de Kropotkin era inaceitável para o
status quo britânico, mais interessado não tanto no ensino e , sim, na
geografia enquanto conhecimento e mapeamento dos territórios – com
os seus recursos naturais e os seus povos, potenciais trabalhadores e/ou
mercado consumidor – a serem colonizados. Além disso, a sua
concepção de irmandade de toda a humanidade, a sua defesa das
chamadas “raças inferiores” (um conceito frequente na época, mas que
Kropotkin usava com reticências), era algo que se chocava contra a
principal justificativa do colonialismo: a civilização dessas “raças” ou
povos bárbaros, a missão civilizatória européia (isto é, o “fardo do
homem branco”), que deveria levar o progresso e a verdadeira cultura
até essas sociedades arcaicas, as quais, no fundo, se dizia estarem sendo
beneficiadas pelo domínio colonial. Kropotkin é irônico a esse respeito:
Quando um político francês proclamava recentemente que
a missão dos europeus é civilizar essas raças – ou seja,
com as baionetas e as matanças [genocídios] – não fazia
mais do que elevar à categoria de teoria esses mesmos
fatos que os europeus estão praticando diariamente. E não
poderia ser de outra maneira, pois desde a mais tenra
infância inculca-se o desprezo pelos “selvagens”, ensina-se
a considerar determinados hábitos e costumes dos
“pagãos”como se fossem verdadeiros crimes, a tratar as
“raças inferiores”, como são chamadas, como se fossem
um verdadeiro câncer que somente deve ser tolerado
enquanto o dinheiro ainda não penetrou. Até agora os
europeus têm ‘civilizado os selvagens’ com whisky,
tabaco e sequestros; os têm inoculado com seus vícios; os
têm escravizado. Porém, é chegado o momento em que nos
devemos considerar obrigados a oferecer-lhes algo melhor
– isto é, o conhecimento das forças da natureza, a ciência
moderna, a forma de utilizar o conhecimento científico
para construir um mundo melhor38.
Kropotkin, como se percebe, era um entusiasta da ciência moderna,
tanto que pensava que ela seria a melhor dádiva que o europeu poderia
38
KROPOTKIN, op. cit., p. 244.
81
José William Vesentini
fornecer aos africanos ou asiáticos em geral. Neste ponto, aliás, ele não
diferia muito da imensa maioria dos grandes pensadores do século XIX,
tais como, dentre outros, Humboldt, Darwin, Marx ou Comte. Só que
Kropotkin, ao contrário destes, inclusive os considerados de “esquerda”
ou extremamente críticos frente ao sistema, como por exemplo Karl
Marx, não aceitava a ideia de que o colonialismo europeu na África e
na Ásia seria “progressista” no sentido de acelerar a história – isto é, o
desenvolvimento das forças produtivas, do capitalismo e,
consequentemente, do posterior socialismo – nessas regiões do globo39.
Kropotkin viveu exilado em Londres durante cerca de 30 anos, pois
havia fugido de um presídio na Rússia; na RGS, ele provavelmente era
apenas tolerado, ou talvez visto com um misto de benevolência e
curiosidade: afinal ele era originário de uma aristocrática família russa
– a Casa Real de Rurik, que governara a Rússia antes dos Romanov –,
além de ter sido secretário da Imperial Sociedade Geográfica Russa
antes de sua prisão por incentivar e participar de revoltas camponesas.
O fato de ser um utopista, paradoxalmente, deve até ter contribuído
para com essa complacência, pois boa parte da elite econômica e social
também gosta de divagar sobre um mundo perfeito, sobre as
lamentáveis injustiças e desigualdades, principalmente quando a
temática é abstrata e não representa uma ameaça concreta aos seus
interesses materiais. Mas criticar o colonialismo, a “missão civilizatória
européia”, e propor aquele tipo de reforma no ensino – voltada para
combater os preconceitos, inclusive aqueles baseados na ideologia
nacionalista, enfatizar a cooperação e a irmandade entre todos os povos
e “raças” – também já era demais. Não era esse o caminho que a maior
parte dos membros dessa Sociedade Geográfica desejava, muito
embora fosse desagradável ou pouco refinado contestar esse ideário
diretamente, ou seja, sustentar a ideia de “raças superiores” e a
necessidade de brutalidade e matanças para “civilizar os povos
39
Cf. MARX, K. “O domínio britânico na Índia”. In: MARX, K. e ENGELS, F. Sobre o
colonialismo. Vol.I, Lisboa, Estampa, 1974, p. 47-8 e 103-4. Esse autor, neste e em outros
textos onde analisa o colonialismo britânico ou a tomada de terras “dos preguiçosos
mexicanos” pelos norte-americanos, chega a menosprezar as matanças e a brutalidade com o
argumento de que isso tudo seria secundário, seria tão somente o preço a pagar para se
acelerar o “sentido da História”.
82
Ensaios de geografia crítica
bárbaros”. Aqui entra a compreensão de Mackinder, que, segundo a
leitura de Short40, representou uma alternativa – que se tornou vitoriosa
– frente às propostas geográficas de Kropotkin.
Mackinder, ao contrário de Kropotkin, não era um adepto do ensino
universal, acessível a todos e igual para as diferentes classes sociais.
Ele via a educação geográfica como algo indispensável para as “classes
educadas”, para a elite; mas, por outro lado, ela seria dispensável e até
contraproducente para o treinamento da “classe proletária apenas meio
educada”41. No final da sua mencionada fala na Real Sociedade
Geográfica, ele conclui:
Acredito que com estas propostas que esbocei [isto é, a
concepção de geografia que ele havia apresentado], podese elaborar uma geografia que satisfaça tanto as demandas
práticas do homem de Estado e do comerciante como as
demandas teóricas do historiador e do cientista, além das
demandas do professor. Sua amplitude e complexidade
inerentes devem ser invocadas como o seu mérito principal
[...] Para o homem prático, tanto para se obter uma posição
no Estado como para acumular uma fortuna, ela pode
constituir uma fonte insubstituível de informações; para o
estudante, uma base estimuladora [...]; para o professor ela
pode constituir um instrumento para o desenvolvimento
dos poderes do intelecto, exceto sem dúvida para esta
velha classe de mestres que medem o valor disciplinar de
um tema pela repugnância que ele inspira nos alunos.
Tudo isso, afirmamos, em função da unidade do tema
[união do aspecto teórico com o prático na geografia]. A
alternativa seria dividir o científico e o prático. E resultado
dessa divisão seria a ruína de ambos42.
Apesar de a concepção de Sir Mackinder ter logrado uma indiscutível
vitória no transcorrer dos acontecimentos – ele se tornou, pouco a
40
SHORT, John R. New world, new geographies. New York, Syracuse University Press, 1988,
p. 97-8.
41
Apud SHORT, op. cit., p. 97.
42
MACKINDER, op. cit., p. 160.
83
José William Vesentini
pouco, no grande nome da geografia britânica no final do século XIX e
inícios do XX –, não se pode esquecer, como observou com
propriedade Kearns43, que existia um clima de diálogo e cordialidade
entre os dois protagonistas, que inúmeras vezes participaram juntos de
reuniões ou de comissões de estudos da RGS. Além disso, entre os
membros da RGS existia uma divisão – ou uma dúvida – quanto a
apoiar ou não o imperialismo (Mackinder era um defensor fervoroso do
império britânico; e Kropotkin um crítico de qualquer forma de
dominação internacional), sendo que essa sociedade geográfica tinha
fama de liberal devido a uma série de atitudes ousadas para a época,
tais como, por exemplo, solicitar insistentemente ao governo britânico
para que pressionasse a França com vistas à libertação do geógrafoanarquista Elisée Reclus, preso por ser uma das lideranças da Comuna
de Paris de 1871; e quando de sua soltura, a RGS o convidou para
proferir em Londres uma série de palestras sobre o valor do ensino da
geografia44.
Mackinder e Kropotkin concordavam, embora cada um à sua maneira,
num ponto que é fundamental para se entender os seus pontos de vista:
que a teoria da evolução de Darwin deveria suscitar um profundo
impacto na geografia45. Algo perfeitamente normal para a época, pois
Darwin foi tido como o grande “modelo” de cientista no século XIX
(após algumas décadas nas quais brilhou a figura de Humboldt, por
sinal a grande fonte de inspiração para o naturalista britânico), assim
como Newton o havia sido para o século XVIII. O próprio Marx, como
se sabe, apregoava com vanglória que a sua obra representaria, para o
domínio do social, o mesmo que a de Darwin para o domínio da
natureza.
Mas Kropotkin e Mackinder tinham leituras bem diferentes a respeito
da teoria da evolução, que naquele momento era identificada com
Darwin, sem dúvida, mas também com Lamarck e Huxley, autores
frequentemente mencionados (às vezes com concordância, às vezes
43
KEARNS, Gerry. “The political pivot of geography”. In: The Geographical Journal, vol.170,
n.4, December 2004, p. 340.
44
Idem, p. 339.
45
Idem, p. 341.
84
Ensaios de geografia crítica
com reproches) pelos dois geógrafos. Mackinder enfatizava a luta pela
sobrevivência, a competição entre as espécies e os indivíduos.
Kropotkin, por outro lado, valorizava muito mais a ajuda mútua, o
cooperativismo entre espécies e indivíduos. É evidente que o “reino
animal” era visto mais como uma espécie de metáfora, ou melhor, fonte
de inspiração ou de “legitimação” do social. O que cada autor visava,
no final das contas, era o entendimento da ordem do mundo, do espaço
geográfico mundial, com vistas a pensar não apenas o presente, mas
principalmente o futuro. Mackinder, como um pensador político
realista, entendia a ordem internacional como uma espécie de “lei da
selva”, na qual o poderio militar e as guerras seriam não apenas
inevitáveis, como até mesmo uma condição indispensável para a
existência de um sistema internacional com o exercício da hegemonia
por uma grande potência mundial. A sua leitura direcionava-se para a
manutenção e o fortalecimento do império britânico e acabou lhe
conduzindo às teorias da heartland e da world island, enfim às
condições geográficas que permitiriam a hegemonia no espaço
mundial. Kropotkin, em contrapartida, sendo um utopista e, portanto,
idealista, apesar de reconhecer a importância histórica das lutas e das
guerras, advogava que a cooperação e a ajuda mútua – entre os
indivíduos, os povos, as nações, as culturas – seria um vetor tão ou
mais importante que o conflito. Seu objetivo não era o de pensar as
determinações espaciais para o exercício da hegemonia mundial por
parte de um Estado, mas, sim, as condições para a paz permanente com
a cooperação entre todos os povos e nações.
Dessa forma, Mackinder entendia a evolução – tanto natural como
histórica – como o resultado de conflitos, de lutas e guerras,
principalmente entre os Estados, o sujeito que privilegiava. Já
Kropotkin encarava a evolução – também natural e histórica – como
uma progressiva cooperação ou ajuda mútua entre os sujeitos, mas não
tanto o Estado, instituição que exorcizava, mas, sim, os indivíduos,
classes, povos e culturas46. Não há qualquer dúvida que, grosso modo, a
46
MACKINDER. H.J. “The geographical pivot of history”. In: The Geographical Journal,
London, 1904, n.23, pp.421-37; e KROPOTKIN, P. Mutual Aid, a factor of evolution. London,
Freedom Press, 1902.
85
José William Vesentini
história deu razão a Mackinder, pois os acontecimentos subsequentes –
as duas guerras mundiais, a perda de hegemonia mundial por parte do
império britânico e a notável ascensão dos nacionalismos, que
atropelaram até mesmo a chamada “luta de classes” – estiveram muito
mais próximos do seu ponto de vista. Embora não totalmente, pois
sabemos que, em parte, os esquemas mackinderianos foram
desmentidos pelos fatos47. Mesmo que estes, como sói acontecer,
tenham adequado-se muito mais à visão realista que com a perspectiva
utópica. Mas isso não significa que as ideias kropotkinianas tiveram
pouca ou nenhuma valia. O geógrafo russo representou uma alternativa
idealista, algo do tipo “um outro mundo é possível”, pelo menos em
tese, só que ele se encontra bastante distante da realidade com as suas
determinações essenciais. As suas ideias, entretanto, de início solitárias,
se expandiram enormemente no transcorrer do século XX com a
crescente consciência de que o colonialismo é inaceitável, que a
democracia e os direitos humanos são valores universais, que não
existem “raças superiores e inferiores”, que o ensino deve ser universal
e acessível a todos, além de não admitir qualquer diferenciação de
qualidade da educação de acordo com a classe social dos indivíduos.
Pensando agora no significado conjunto de todas as três polêmicas
analisadas, acreditamos que sejam pertinentes as seguintes
interrogações. Elas produziram algum avanço – seja epistemológico,
seja político ou mesmo gnosiológico – na ciência geográfica? Essas
temáticas estão já superadas ou continuam vivas? Se elas continuam
vivas, sob que formas se manifestam atualmente e qual é a sua
importância?
A nosso ver, as principais questões que perpassaram essas três
controvérsias são: as inter-relações entre o social e o seu meio
ambiente; a natureza idiográfica ou nomotética da geografia; e o papel
social desta disciplina, o para que ela serve ou deveria servir. Não há a
menor dúvida de que estas questões continuam vivas e atuais. Em
variadas e diferentes circunstâncias, sob diversas formas ou roupagens,
elas continuam sendo frequentemente retomadas ou rediscutidas. Elas
47
Cf. ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília, Editora da UNB, 1986, pp.
264-71.
86
Ensaios de geografia crítica
ainda fazem parte dos grandes dilemas epistemológicos e/ou políticos
da ciência geográfica, sendo, ao mesmo tempo, heranças do passado e
desafios para o futuro.
Examinemos, sucintamente, a velha polêmica sobre as relações ou
influências recíprocas entre o social e o natural. A rigor, é melhor se
falar não tanto em natural e, sim, em ambiental ou mais propriamente
em espacial. Quando Ratzel se referia à importância do “solo” para o
Estado, ele não apontava somente para os aspectos naturais do
território, tal como entenderam os seus críticos. O próprio conceito de
território, assim como a sua conquista e/ou formação – como Ratzel
sabia muito bem –, já é uma realidade histórico-social e nunca uma
obra da natureza. O geógrafo germânico, ao realçar a importância do
“solo” ou do território como uma pré-condição básica para a existência
do Estado, não se referia tanto à natureza original – o clima, o relevo,
as riquezas minerais, a disponibilidade de água ou a fertilidade natural
dos solos –, mas, principalmente, aos elementos que são – e,
reiteramos, ele tinha pleno conhecimento disso – eminentemente
históricos: a localização (não apenas absoluta e, sim, relativa), o
formato, o tamanho e as fronteiras do território. Tudo isso sem se
esquecer do poderio econômico (Ratzel enfatizava principalmente o
“comercial”) e militar. Ora, esses mencionados elementos somente são
inteligíveis ou plenamente dimensionáveis se analisados de uma forma
relacional, o que significa dizer que eles só têm algum significado em
termos de poder quanto contrapostos a esses mesmos elementos nos
demais Estados, algo que varia muito de acordo com o lugar e o
momento, com a tecnologia disponível – principalmente para as
relações comerciais e a guerra, pensando-se, como Ratzel o fazia, em
termos de relações de força –, como partes, afinal, de um contexto
histórico e espacial bem maior, internacional ou até mesmo planetário.
Vejamos um exemplo. Num trecho do seu livro onde examina as
“potências mundiais”, Ratzel esclarece:
Depende do espaço dado em cada época para se saber o
quanto os Estados devem crescer a fim de se tornarem
“potências mundiais”, ou seja, terem como associados todo
o mundo conhecido e nele exercerem a sua influência [...]
87
José William Vesentini
Uma potência assim grande e assim extensa no sentido de
estar diretamente presente em todos os países e em todos
os mares, atualmente, só pode ser o império britânico.
Uma imensa massa territorial como a da Rússia por si só
não faz uma potência mundial, algo que necessitaria
também de uma extensão suplementar sobre o Atlântico e
sobre o Pacífico, pois que somente os oceanos lhe abririam
a rota e lhe permitiriam estender o seu poder sobre os
Estados do hemisfério ocidental e do hemisfério austral.
Daí portanto que a Rússia somente poderá ser uma
potência mundial na medida em que abrir uma rota até o
oceano Índico, o que lhe permitiria um contato direto até o
Atlântico e sobre o Pacífico48.
A questão, assim, é a importância ou o significado do espacial para o
político (ou o social) e não a influência da “natureza”, algo difícil de ser
identificado com precisão quando pensamos no território de um Estado,
quando consideramos uma sociedade na sua dimensão espacial ou
geográfica, pois praticamente todos os elementos que, com frequência,
são tidos como naturais – a localização e os traços físicos do território:
as riquezas minerais, as águas, as formas de relevo ou os solos –, em
geral, são reapropriados ou, muitas vezes, reconstruídos pela ação
humana e, no fundo, só têm algum sentido quando vistos de forma
histórica e relacional. Mesmo se quisermos pensar apenas na “natureza
em si”, o elemento fundamental, nos dias de hoje, para se entender o
comportamento humano, pelo menos em parte, não seria mais o clima,
tal como especulavam os teóricos do século XVIII e de grande parte do
século XIX, mas, principalmente, a herança genética. Mas este já é um
tema que pouco tem a ver com a pesquisa e a reflexão geográficas.
É certo que Ratzel, em diversos momentos, exagerou a importância do
tamanho do território – e também de certos traços naturais favoráveis
(principalmente o clima e a localização absoluta) desse “solo” – para o
poderio estatal. Mas acreditamos que isso é absolutamente natural em
qualquer autor, de qualquer área do saber, que procura construir ou
desenvolver um objeto – no caso de Ratzel, a importância da geografia
48
RATZEL, F. Géographie Politique. Paris, Editions Régionales Européennes, 1988, p. 279.
88
Ensaios de geografia crítica
ou do espaço geográfico para a vida política. Normalmente, existe uma
tendência de supervalorização do objeto que se estuda ou da
perspectiva que se adota para analisar esse objeto. Não é exatamente
isso que fazem praticamente todos os estudos biográficos? Não é isso
que faz, hoje, a chamada sociobiologia? Não é isso que fazem os físicos
teóricos e os astrônomos em geral, quando falam sobre tempo e espaço
como se fossem tão somente realidades físicas do universo?49 Não foi
exatamente isso que fez Freud quando tentou entender a guerra apenas
pelo viés do milenar comportamento agressivo dos seres humanos?
Esse exagero na importância do seu tema de estudos não é o que
observamos, hoje, em alguns geneticistas, que afirmam que todo o
comportamento dos indivíduos é pré-determinado pelo seu genoma?
Qualquer reducionismo deve ser criticado – e a crítica, cabe insistir, é
um dos instrumentos fundamentais para o avanço do conhecimento
científico. Nenhum autor, nenhum cientista, seja do passado, do
presente ou do futuro, está acima das críticas, isto é, possui uma obra
absolutamente irreprochável. Mas criticar não significa desqualificar o
oponente, tal como fez Lucien Febvre em relação a Ratzel. Significa
contribuir para o avanço do saber, corrigindo determinados aspectos de
um discurso, ajudando a lapidar uma determinada temática. A crítica
científica em geral não invalida o trabalho criticado; ela mostra os seus
limites, apontando fatos ou processos que ele não leva em consideração
ou não consegue explicar. Dessa forma, se, por um lado, as
generalizações ratzelianas foram em parte simplistas, exagerando a
importância do “solo” para o Estado, por outro lado, ele teve a coragem
de inaugurar – ou de se aventurar em – um campo do saber que é
importante e que pouco avançou; que talvez tenha ficado relativamente
estagnado exatamente porque os críticos em geral se limitaram a
denegar essa tentativa, numa atitude proibitiva ou repressora, ao invés
de procurarem expandir as pesquisas e as reflexões sobre a temática. Já
mencionamos que o resultado disso foi catastrófico para a geografia,
que se viu impossibilitada de – ou se recusou a – pensar inúmeros
49
Estamos pensando, aqui, nas observações de Husserl, Heidegger e de vários outros
existencialistas ou fenomenológicos, segundo as quais o tempo e o espaço cotidianos do ser
humano não são aqueles da física, seja ela newtoniana ou relativística.
89
José William Vesentini
temas fundamentais para se entender a diversidade sócio-econômica no
espaço mundial (ou às vezes até regional ou nacional).
Quanto à natureza idiográfica ou nomotética da ciência geográfica,
pensamos que é melhor abandonar a separação dicotômica entre esses
dois tipos de saberes, como se eles fossem opostos e completamente
diferentes entre si; ou como se apenas as “leis” ou teorias nomotéticas
merecessem o adjetivo científico. Acreditamos que todo ou quase todo
conhecimento científico – ou toda “região” ou aspecto do real, que a
ciência busca compreender – possui elementos originais ou únicos e, ao
mesmo tempo, a possibilidade de se construir “leis” ou teorias de
validade universal. É lógico que, dependendo do campo de estudos,
existe uma maior preeminência de uma dessas duas vertentes. Usando
uma imagem gráfica, podemos visualizar uma linha, um continuum que
vai da ciência mais nomotética até a mais idiográfica. Deixando-se de
lado as lógicas e as matemáticas, isto é, as ciências formais, e
pensando-se apenas nas ciências empíricas, ou melhor, que estudam o
mundo empírico, teríamos próxima daquele primeiro pólo a física,
considerada como a ciência que melhor simboliza o modelo de um
saber nomotético. No pólo oposto ou do outro lado dessa linha – não
exatamente no pólo e, sim, nas suas vizinhanças – teríamos a história, a
ciência mais próxima do modelo idiográfico. Mas nem a física, nem a
história estariam exatamente nos dois pólos, ou seja, nenhuma delas é
totalmente nomotética e tampouco cem por cento idiográfica. Em
posições intermediárias teríamos as demais ciências: apenas para
mencionar alguns exemplos, a química estaria bem próxima da física,
praticamente colada, a geologia e a biologia aproximadamente no meio
dessa linha ou continuum; e a geografia um pouco além delas, mais
para o lado da história, porém, um pouco mais distante que esta do pólo
idiográfico. É um modelo simples e trivial, sem dúvida, mas que nos
ajuda a compreender a complexidade e variedade das ciências que
buscam perscrutar a realidade (ou realidades?) em todos os seus
aspectos.
Não há, portanto, nenhuma a necessidade de dogmas apriorísticos e
imutáveis, tais como a ideia de um único “método científico”, seja ele
positivo ou dialético, ou a crença na cientificidade como atributo tão
90
Ensaios de geografia crítica
somente do saber nomotético. Se determinados aspectos do real são
únicos e irrepetíveis (por exemplo: um acontecimento ou processo
histórico, uma região geográfica, uma espécie biológica ou mesmo um
indivíduo), por que não conhecê-los cientificamente? A bem da
verdade existe, sim, a presença – e uma presença marcante,
extremamente importante para a compreensão dos objetos de estudos –
do único e irrepetível na geografia, principalmente (embora não só) na
geografia regional e na humana, com especial destaque para a geografia
política. Exemplificando: a conceituação e a classificação das fronteiras
é algo necessário numa perspectiva científica e é um tema
eminentemente geográfico-político. Mas nenhum conceito ou teoria vai
dar conta das especificidades, da concretitude – no sentido de concreto
como “síntese de múltiplas determinações” – de uma fronteira
específica (por exemplo, entre o Brasil e a Argentina). Logo, o
idiográfico (os casos particulares, únicos e irrepetíveis) e o nomotético
(as leis ou teorias de validade geral) se complementam e, ao contrário
da física ou da química, a geografia não pode deixar de lado a
especificidade dos casos que estuda, pois se ficasse apenas nas
fórmulas, nas classificações ou nas teorias gerais, produziria estudos
medíocres que pouco explicariam sobre os objetos concretos com as
suas determinações (o contexto espaço-temporal, em suma) e
indeterminações (a criação ou produção do novo, a presença de um
vivido específico ou original) particulares ou específicas.
Não precisamos lembrar com detalhes o fracasso da geografia
quantitativa (e, mais ainda, da história quantitativa), que nunca
conseguiu produzir nada de novo do ponto de vista de explicações
sobre realidade, sobre o espaço geográfico ou o tempo histórico. Os
próprios expoentes dessa tradição na geografia – tais como David
Harvey, William Bunge e vários outros –, já no final dos anos 1960
denunciavam esse fato e propunham um novo paradigma mais
qualitativo e crítico. Isso não significa que se aboliu o uso da
matemática, dos computadores e da estatística na geografia. Longe
disso. Apenas que a realidade estudada pela geografia (ou, mais ainda,
pela história) não se presta a fórmulas simples, tais como as da física,
91
José William Vesentini
por exemplo (falamos aqui em simples e não em simplistas50, pois é
fora de dúvida que elas funcionam muito bem na compreensão e até na
previsão dos fenômenos físicos). Essa realidade geográfico-política,
feliz ou infelizmente, sempre demanda explicações longas e complexas,
e que nunca esgotam completamente o tema estudado.
Como é amplamente conhecido, a geografia política é a modalidade da
ciência geográfica mais próxima da história, é um dos flancos
privilegiados onde elas se imbricam ou se sobrepõem parcialmente.
Logo, a problemática do irrepetível, dos processos únicos e originais,
da tensão entre necessidade (determinação) e contingência
(indeterminação) é algo essencial na reflexão geográfico-política. Isso
não quer dizer que ela seja uma forma de conhecimento essencialmente
idiográfica, mas, sim, que esta abordagem também tem um lugar,
mesmo sem desconsiderar a elaboração de teorias ou conceitos gerais.
E não se deve confundir, como fizeram Schaefer e vários outros, o
idiográfico com o descritivo, pois nem todo estudo de um caso único é
descritivo e, em contrapartida, também pode existir a descrição do
objeto estudado numa teoria nomotética. Sem dúvida que a geografia
política anterior a Ratzel era idiográfica e descritiva, mas não é
necessário que esses dois atributos coexistam; ademais, cabe lembrar
que a descrição continua a desempenhar um papel importante em
determinadas áreas do conhecimento científico, inclusive em algumas
ciências naturais, hoje consideradas como paradigmáticas ou avançadas
(em vários campos da biologia, por exemplo).
A geografia política, assim sendo, deve levar em conta e refinar
constantemente os conceitos nomotéticos: de fronteiras, território e
territorialidade, poder ou poderes, Estado (e as suas diversas formas
históricas e geográficas), cidade-capital, média ou grande potência
mundial, ordem internacional etc. Só que nunca podemos ignorar o
estudo específico, que nunca consiste somente na “aplicação” de
50
Lembramos aqui que “simples” não deve ser entendido como o oposto de “complexo”,
como é usual no senso comum. Epistemologicamente, o contrário de complexo é simplista e o
oposto de simples é complicado. Por sinal, inúmeras explicações complexas – como as teorias
da relatividade, de Einstein – no fundo são extremamente claras e simples. Veja-se, a esse
respeito, as observações de ARDOINO, Jacques, in MORIN, E. (Org.). A religação dos saberes.
Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002, p. 548-58.
92
Ensaios de geografia crítica
conceitos ou teorias gerais (apenas os trabalhos medíocres fazem isso),
de tal Estado concreto na sua formação territorial, desta ou daquela
fronteira ou cidade-capital, de tal ou qual ordem geopolítica
internacional etc., com todas as suas determinações (e indeterminações)
características. Enfim, esperamos ter deixado claro o nosso ponto de
vista, no qual a geografia – em especial, a geografia política – é
simultaneamente um saber nomotético e idiográfico (sem
necessariamente ser descritivo) e onde os estudos de caso contribuem
para enriquecer os conceitos que nunca são ou estão completamente
acabados.
Por fim, permanece a questão da finalidade prática da geografia, da sua
utilidade para a sociedade. Que os conhecimentos geográficos têm
serventia para o Estado, para a guerra, para organizar um território, para
mapear e utilizar os recursos naturais (ou até controlar a população e as
atividades econômicas), isso tudo é algo sabido e propalado desde, no
mínimo, o grego Erastóstenes, que afinal foi quem engendrou a palavra
geografia. Sabemos que o geógrafo romano Estrabão, que viveu no
século I a.C., já detalhava a importância da geografia para um caçador,
para um general, para um agricultor. Qualquer conhecimento sobre a
realidade, no final das contas, é um instrumento de poder, isto é, pode
servir para se agir sobre essa realidade. Mas o problema que surgiu nos
debates entre Kropotkin e Mackinder, e que continua a ser reproduzido
em inúmeros congressos ou encontros de geógrafos e em várias
publicações51, é o para que e para quem serve ou deveriam servir os
conhecimentos geográficos. Se eles servem apenas para o exercício do
poder ou se também poderiam ser usados como contra-poder, se são
úteis apenas para o Estado ou para o sistema, ou se, pelo contrário, são
aproveitáveis para as rebeliões, para as classes populares no sentido de
contribuírem para uma maior justiça social e menores desigualdades
econômicas.
51
Basta lembrarmos da revista Antipode, cujo primeiro número tem um editorial que afirma
que os geógrafos deveriam construir uma “geografia radical” para estudar e denunciar as
injustiças e as desigualdades. Ou ainda de Yves Lacoste e a sua revista Hérodote, que afirmam
que existem “outras geopolíticas” (além daquela do Estado, de Haushofer e Mackinder) e no
fundo propõem a elaboração de uma “geopolítica dos dominados”.
93
José William Vesentini
No fundamental, esta é uma questão – ou um dilema – que oscila entre
a necessidade e a ética, ou, numa perspectiva individualista, é a
tentativa de conciliar o imperativo de sobrevivência lato sensu numa
sociedade específica com os princípios ou valores morais nos quais se
acredita. Esta questão acompanha os intelectuais e os cientistas em
geral – e não apenas os geógrafos – desde o advento do pensamento
racional na antiguidade (as críticas de Platão aos sofistas já
demonstram isso), ou talvez até antes disso. Provavelmente, o caso
mais exemplar a esse respeito, pelo menos no século XX, tenha sido o
dilema dos cientistas, especialmente físicos, com a construção da
primeira bomba atômica no laboratório de Los Alamos, Novo México52.
Eles se engajaram nessa dura tarefa porque acreditavam estar ajudando
a derrotar o totalitarismo, mas, ao mesmo tempo, tinham consciência de
que abriam uma caixa de Pandora, um poderoso instrumento de
destruição de obras e vidas humanas. Um outro exemplo célebre é o do
filósofo Martin Heidegger, que, ao contrário de inúmeros
contemporâneos (como a sua discípula Hannah Arendt, o geógrafo Leo
Waibel ou o mais famoso de todos os que abandonaram a Alemanha
devido ao nazismo, Albert Einstein), ficou na Alemanha no transcorrer
dos anos 1930, foi nomeado reitor da universidade de Freiburg e, de
acordo com inúmeras evidências, teria aderido entusiasticamente ao
regime nacional-socialista53. Este último exemplo é meridiano: o
nazismo representa praticamente tudo o que há de antiético, de
distorção dos princípios humanistas, democráticos e até mesmo
religiosos. Fica fácil, dessa forma, condenar aqueles pensadores que
trabalharam em prol desse regime e, em contrapartida, elogiar os que se
recusaram a fazê-lo. Mas essa facilidade é apenas aparente, ela se
aplica somente a determinados atos políticos do filósofo alemão e não
às suas ideias, às suas contribuições teóricas, as quais, no final das
contas, são tidas como a grande obra do existencialismo e da
fenomenologia do século XX e, de forma explícita e incontestável,
52
A peça teatral O caso Oppenheimer, de Heinar Kipphaardt, evidencia muito bem as
dúvidas e os dilemas dos cientistas participantes do Projeto Manhattan, de 1945, do qual
resultou a primeira bomba atômica da história.
53
Cf. FARIAS, Victor. Heidegger e o nazismo. São Paulo, Paz e Terra, 1988.
94
Ensaios de geografia crítica
influenciaram importantes autores liberais (como Hannah Arendt) e até
mesmo radicais (como Jean-Paul Sartre).
Qualquer teoria que, de fato, procure explicar (ou construir) algum
objeto segundo os cânones científicos (algo que não tem nada a ver
com um “método” único e excludente), qualquer pesquisa científica
realizada de forma séria e honesta, sempre tem um valor que independe
da opção ideológica do investigador. É por isso que os dois grandes
nomes das ciências sociais da segunda metade do século XIX até
meados do século XX foram Marx e Weber, dois personagens com
opções éticas e ideologias bastante distintas54, mas que produziram
importantes obras que já foram utilizadas – por autores com diferentes
concepções – na economia, na sociologia, na ciência política, na
história e mesmo na geografia. A própria Escola de Frankfurt, ou teoria
crítica, que segundo alguns seria fundamental para alicerçar a geografia
crítica55, fez amplo uso de ideias de Marx, de Weber, de Freud e até de
Heidegger. Essa natureza perscrutadora das ideias científicas – que
nada mais são que tentativas de explicar ou compreender algum aspecto
do real – permite que elas sejam utilizadas de diferentes maneiras e por
diversos sujeitos, independentemente de seus princípios éticos ou de
seus posicionamentos políticos.
É por isso que tanto Kropotkin quanto Mackinder, apesar de suas
sensíveis diferenças no tocante a princípios e posicionamentos sobre o
colonialismo europeu e as desigualdades sociais e internacionais, ou
sobre o papel da geografia na sociedade, produziram ambos obras
clássicas e de alta relevância científica. As ideias pedagógicas de
Kropotkin parecem ter sido escritas hoje, tal a sua atualidade: quase
que todas as reformas educacionais do final do século XX e desta
primeira década do século XXI, normalmente com base num
importante documento produzido sub o patrocínio da UNESCO56,
54
É amplamente conhecido o fato de que Weber concebia uma “ética da responsabilidade”,
baseada principalmente em Maquiavel, ao passo que Marx convencionalmente é visto como
um adepto da “ética da convicção” ou de “princípios”. Cf. WEBER, Max. A política como
vocação. In: Ciência e Política, duas vocações. São Paulo, Cultrix, 1998, p. 55-124.
55
UNWIN, op. cit., p. 262.
56
Cf. DELORS, J. (Org.). Educação, um tesouro a descobrir. Brasília, MEC/Unesco/Cortez,
1996.
95
José William Vesentini
reafirmam que o principal objetivo da atividade educativa é combater
todas as formas de preconceitos ou estereótipos, aprendendo a conviver
ou viver junto com os outros. Mas também Mackinder não é um
“cachorro morto”; suas teorias geopolíticas, segundo alguns, ainda
continuam válidas e imprescindíveis para uma boa compreensão do
mundo pós-guerra fria57.
Entretanto, a imensa maioria dos intelectuais e cientistas em geral,
geógrafos incluídos, não produz teorias ou ideias novas, mas tão
somente reproduz desta ou daquela forma as que existem. O problema
da utilidade do conhecimento, neste caso, não se refere tanto à natureza
das ideias ou das teorias científicas e, sim, às atividades que cada um
exerce. A realidade cotidiana desses profissionais da ciência é prosaica,
com opções bem menos evidentes que aquelas de Oppenheimer ou de
Heidegger, que, no fundo, são casos extremos ou exemplos
paradigmáticos. Quase ninguém dispõe de uma escolha tão cristalina
como a de ajudar ou não a fabricação de uma bomba atômica, de
trabalhar ou não em proveito do regime nazista ou então de poder optar
por exercer a sua profissão de forma a estar, de forma inequívoca,
contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e
igualitária. A quase totalidade dos intelectuais e cientistas – sejam
filósofos, matemáticos, físicos, sociólogos, historiadores ou geógrafos –,
a bem da verdade, possui limitadas opções de escolha sobre o que
fazer, que tipo de atividade exercer levando-se em conta os seus
princípios éticos. O que predomina é a necessidade material aliada às
oportunidades, e estas dependem das circunstâncias. Existem diversas
atividades comumente exercidas por esses profissionais: a educação
elementar e média, a universidade, as consultorias, as pesquisas de
opinião e de mercado, os planejamentos, as análises ambientais,
eventualmente alguma assessoria para ONGs ou movimentos sociais
etc. Mas ninguém pode asseverar, a priori, qual dessas atividades ou
ramos de atuação seria melhor do ponto de vista dos princípios de não
reproduzir o sistema e contribuir para minimizar as injustiças e as
desigualdades sociais. Todos podem meramente reproduzir o status
57
Cf. MELLO, Leonel I. A. A geopolítica do poder terrestre revisitada. Lua Nova. São Paulo,
Cedec, 1994, n.34, p. 55-69.
96
Ensaios de geografia crítica
quo, como também podem contribuir para alterá-lo; e essa alteração
tanto pode ser boa como ruim, tanto pode reduzir como ampliar as
injustiças e desigualdades.
Existe um juízo bastante popular segundo o qual o trabalho num
movimento social ou numa ONG seria uma garantia do uso
“politicamente correto” do conhecimento científico. A nosso ver, isso é
um equívoco. Apesar de importantíssimas para a vida democrática, as
ONGs, em geral, são norteadas pela promoção ou defesa de uma causa,
que defendem com unhas e dentes (mesmo que pesquisas científicas
mostrem sua inadequação ou inoperância; ou que pesquisas de opinião
pública mostrem que são antidemocráticas). Isso sem falar que, nas
últimas décadas, a criação de ONGs virou um bom negócio e uma boa
parte delas está preocupada tão somente com a sua expansão a qualquer
custo, com as verbas que pleiteiam junto aos governos ou às
instituições internacionais, com as contribuições dos simpatizantes e,
em geral, a sua principal atuação é na mídia, com vistas a se
promoverem, a ficarem em evidência, o que lhes permite conseguir
mais verbas ou mais contribuições voluntárias. Nesses termos, via de
regra – malgrado existirem exceções –, elas apenas manipulam o
conhecimento científico com vistas aos seus objetivos. Quanto aos
movimentos sociais, apesar de, em média, serem indiscutivelmente
mais sérios ou legítimos que as ONGs, também podem, eventualmente,
batalhar por causas corporativistas que se chocam com os interesses
maiores da sociedade; como também podem ser – algo, infelizmente,
não muito raro no Brasil – instrumentalizados por lideranças que visam
a interesses (ou valores) pessoais, com frequência espúrios, ora
dogmáticos, ora meramente arrivistas (ou ambos). Ademais, nada
garante que um intelectual que trabalhe numa ONG séria ou num
movimento social legítimo (essas seriedade e legitimidade, é bom
deixar claro, nunca são eternas ou constantes e sempre variam de
acordo com as circunstâncias) vá de fato produzir algo de relevância ou
de valor científico. Não é incomum que ele apenas reproduza, com
outras palavras, com uma roupagem mais ou menos acadêmica, o
discurso das lideranças – ou de certas lideranças –, nem sempre
correspondendo aos anseios dos participantes comuns (e muito menos
aos da sociedade em geral). Esse viés, normalmente, é resultado de um
97
José William Vesentini
excesso de engajamento com uma correlata ausência de distanciamento
crítico, ou melhor, uma forte e ingênua identificação desse
empreendimento com determinados sonhos ou desejos pessoais, fato
que gera uma recusa inconsciente de enxergar as suas tensões e
contradições. É o deslumbramento estorvando o rigor da análise.
Isso explica porque raramente encontramos uma produção científica de
qualidade, a respeito de processos vistos como inovadores ou
revolucionários, por parte de intelectuais que estavam neles engajados.
Quase toda contribuição teórica importante de autores coetâneos a esses
processos, que de fato compreenderam os seus diferentes aspectos e,
muitas vezes, até anteciparam o seu devir, foi produzida por pessoas
que estavam à margem deles, ou que, mesmo participando, lograram
manter sua autonomia intelectual. Basta lembrar que as duas mais
importantes análises coevas da revolução russa de 1917 não foram
engendradas por simpatizantes que vivenciaram e participaram
ativamente dos acontecimentos, mas, sim, por dois pensadores críticos
e que não deixaram o redemoinho das paixões anular o seu
discernimento: Kropotkin e Rosa Luxemburgo58. Ambos eram
entusiastas defensores de uma futura sociedade socialista e igualitária,
ambos viam com regozijo os sovietes ou movimentos espontâneos de
camponeses, operários e soldados. Mas nenhum deles permitiu que seus
desejos – tampouco a amizade com alguns protagonistas –
obscurecessem a sua percepção e consciência crítica. Eles acertaram em
cheio nas suas apreciações sobre o significado essencial dos
acontecimentos, enxergando com clareza que, ao contrário do discurso
de personagens mitificados (como Lênin ou Trotsky), a realidade nua e
crua é que se iniciava em outubro de 1917 a implantação de um regime
burocratizado e repressor das mais elementares liberdades
democráticas, em suma, a emergência da primeira experiência
totalitária do século XX.
Fica a lição: nenhum tipo de atividade, por si só, garante o uso
“politicamente correto” dos conhecimentos científicos e/ou
58
LUXEMBURG, R. A Revolução Russa. Lisboa, Ulmeiro, 1975 (original de 1918); e
KROPOTKIN, P. “Cartas a Lênin (1920)”. In: ZEMLIAK, M. (Org.) Kropotkin – Obras. Barcelona:
Editorial Anagrama, 1977, p. 270-294.
98
Ensaios de geografia crítica
geográficos. Tudo depende do contexto e da forma específica de
atuação. E o engajamento, por princípio algo louvável, não deve nunca
obstaculizar o imprescindível distanciamento crítico, pois, sem ele, não
há uma produção de conhecimento científico de qualidade a respeito do
social-histórico. Esse debate ou desafio a respeito do por que e para que
serve ou deveria servir a geografia, enfim, continua atual e não
resolvido, porquanto não é um problema apenas teórico e, sim, práxico
no sentido de ação humana com suas determinações e indeterminações.
Ou seja, essa não é uma problemática que pode ser teorizada de uma
forma nomotética ou universal. É uma questão que se repõe
constantemente, ontem, hoje e sempre, embora com diferentes
roupagens. Ela envolve circunstâncias, formas de luta e estratégias,
além de princípios, que não são eternos e imutáveis, mas que, pelo
contrário, conhecem nuanças ou, às vezes, se metamorfoseiam, na
medida em que o discurso científico é uma forma de poder e as relações
de poder são complexas, dinâmicas e instáveis, são relações sociais e
históricas plenas de tensões e conflitos.
99
José William Vesentini
100
O que é crítica?
Ou qual é a crítica da geografia crítica?*
Geografia ou geografias críticas. A bibliografia da/sobre essa vertente
geográfica já é bastante significativa. Entretanto, uma dúvida se impõe:
o que é crítica? Em que sentido esse verbete vem sendo empregado
na(s) geografia(s) crítica(s)? Qual é, afinal, o significado do adjetivo
crítico, frequentemente utilizado, algumas vezes com diferentes
sentidos, em várias áreas do conhecimento? (Basta lembrarmos das
ideias de reflexão crítica, atitude crítica, teoria crítica, pensamento
crítico, ensino crítico, pedagogia crítica, racionalismo crítico e
inúmeras outras).
Esta preocupação, longe de ser diletante ou superficial, é algo que se
impõe fortemente com as mudanças na realidade social, em especial
com a crise terminal do antigo mundo socialista e com a relativização
das noções políticas de esquerda e direita, as quais, para muitos, não
têm mais sentido na realidade atual. Como iremos esquadrinhar logo
adiante, a noção de crítica (especialmente a de crítica social), a partir da
Revolução Francesa e principalmente no transcorrer do século XIX,
viu-se associada à ideia política de uma esquerda, isto é, àqueles que
propugnavam uma mudança radical na sociedade com vistas a uma
maior igualdade e liberdade. Por isso, tornou-se muito comum a
identificação das noções de crítica e de radical, algo que também
iremos problematizar.
*
Texto elaborado em 2009 para a revista Geousp, São Paulo, Depto. de Geografia da FFLCHUSP, no prelo.
101
José William Vesentini
Para início de conversa, a verdade é que ninguém mais sabe ao certo o
que é esquerda e direita hoje. Isso por várias razões. Pelo fracasso de
todas as experiências autodenominadas socialistas, fundamentadas bem
ou mal no marxismo e tendo se apresentado como “críticas” ao
capitalismo e alternativas “radicais” a ele. Pela crescente
complexização da sociedade moderna, em especial com o declínio das
lutas trabalhistas que tanto marcaram o século XIX e a primeira metade
do XX, lutas essas sempre identificadas com a esquerda e com todas as
vertentes libertárias ou socialistas. Pelo advento de novos sujeitos e
frentes de lutas no plural – feministas, ecológicas, étnicas, de
orientação sexual, de moradia, de imigrantes de regiões pobres em
áreas mais desenvolvidas etc. –, por vezes até antagônicos. Pela
expansão e o enorme poderio da mídia, a qual, juntamente com as
pesquisas de opinião, faz com que praticamente todos os partidos
políticos reformulem os seus discursos em função do que o público
quer neste ou naquele momento, independentemente de sua posição
ideológica (se é que isso ainda existe). Por tudo isso, reiteramos, as
noções de esquerda e direita tornaram-se problemáticas para definir
todo um espectro de posições políticas no mundo atual. Existe ainda
uma perda de referências. A grande bandeira de luta da velha e heróica
esquerda, aquela do século XIX e da primeira metade do século XX, a
de uma sociedade utópica1 que garantisse concomitante o máximo de
liberdade e de igualdade, foi completamente destroçada por inúmeros
acontecimentos e estudos científicos: pela soturna realidade de todos os
socialismos reais, em primeiro lugar, e também por pesquisas e
reflexões lógico-matemáticas, tais como, por exemplo, aquelas do
prêmio Nobel de economia Amartya Sen, nas quais se demonstra
1
Na verdade, estamos generalizando de forma proposital para evitar uma digressão sobre as
controvérsias a respeito da utopia no pensamento crítico (que nunca foi nem é apenas
marxista), no qual há autores que a exorcizam e outros que a assumem. Por exemplo: Marx e
Engels, em primeiro lugar, além de grande parte dos marxistas do início do século XX (Lênin,
Trotsky, Rosa Luxemburgo, Kautsky e outros) nunca foram adeptos da utopia e, pelo contrário,
desancaram os socialistas utópicos, acreditando firmemente que o socialismo não era uma
ideia utópica e, sim, “científica”, um resultado de “leis” inexoráveis da História (assim mesmo,
com H maiúsculo). A respeito da aversão do pensamento marxiano pela utopia remeto às
análises de FAUSTO, Ruy: A esquerda difícil. São Paulo, Perspectiva, 2007, p. 31-50. Em todo o
caso, não há dúvida de que, durante o transcorrer do século XX, o projeto socialista passou a
ser visto como utópico e essa defasagem entre ciência e utopia se estreitou sensivelmente.
102
Ensaios de geografia crítica
cabalmente que é impossível existir um máximo de igualdade sem
sacrificar a liberdade e vice-versa2.
Nesses termos, alguns autores que se consideram progressistas e
apregoam um mundo melhor, com maior justiça – entendida como
garantias para as liberdades democráticas, que não são algo eterno e
acabado e, sim, partes de um processo de constante criação e
reinvenção de direitos – e igualdade (embora nunca total), falam em ir
“além da esquerda e da direita”3, enquanto alguns poucos outros
despendem os maiores esforços no sentido de conservar, embora
redefinindo, essas categorias políticas4.
A manutenção desses rótulos – algo que no Brasil e na América Latina
em geral é um esforço quase exclusivo da autodenominada “esquerda”,
sendo que, nos Estados Unidos, ao inverso, é mais identificado com os
conservadores – não deixa de pagar um elevado preço teórico. De fato,
trata-se mais de um apego a uma identidade vista como “positiva”
(esquerda na América Latina e direita nos Estados Unidos), que, no
fundo, faz parte da autodefinição de certas pessoas e grupos, uma
tentativa de se manter fiel a um certo passado (ou a determinadas
tradições) e, no extremo – no caso de alguns partidos –, é algo que visa
angariar simpatias e votos.
Sem dúvida que existem teóricos sérios e bem-intencionados
procurando manter esses rótulos políticos. Não estamos nos referindo a
autores panfletários com visíveis insuficiências teóricas, que não
conseguem ir além do marxismo-leninismo, do tipo Ignácio Rangel,
Emir Sader, Robert Kurz e outros, que escrevem como se ainda
vivêssemos no século XIX, se recusando a analisar seriamente – e
aprender com – a experiência dos totalitarismos (nazismo e
comunismo), que menosprezam as conquistas democráticas. Pensamos
em teóricos do calibre de Norberto Bobbio e Ruy Fausto 5, dentre
2
SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro, Record, 2001.
Cf. LEFORT, Claude. A invenção democrática. São Paulo, Brasiliense, 1983; e GIDDENS, A.
Para além da Esquerda e da Direita. São Paulo, Unesp, 1995.
4
BOBBIO, N. Esquerda e Direita. São Paulo, Editora Unesp, 1995; e FAUSTO, R. A esquerda
difícil, op. cit.
5
Idem, idem.
3
103
José William Vesentini
poucos outros. Bobbio, por exemplo, acredita que a esquerda, hoje,
define-se fundamentalmente pela busca de uma maior igualdade social,
enquanto a defesa da liberdade seria mais um atributo da direita. E
Fausto pensa que uma esquerda nos dias atuais deve ser defensora
intransigente da democracia – por sinal, Bobbio também advoga essa
posição, embora identificando democracia com o liberalismo, algo que
Fausto repudia – e ir além do marxismo (posição também defendida
pelo liberal Bobbio), deixando de lado a ideia de uma “ditadura do
proletariado” (ou de qualquer outro tipo de ditadura) e mesmo a de uma
economia planificada sem a propriedade privada nos moldes
genericamente apontados por Marx, recuperando o ideal anarquista e
socialista utópico de autogestão, de cooperativas de pequenos
produtores ou trabalhadores etc.
Essas proposições, contudo, embora sejam as mais palatáveis (sem
dúvida que as mais democráticas) entre os que se autointitulam
esquerda, nos parecem, em certa medida, frágeis. Primeiro, no caso de
Bobbio, significaria deixar de lado os reclames por liberdades (contra
as prisões arbitrárias e a tortura, contra a violação dos direitos
humanos, pela ampliação dos direitos das mulheres, dos homossexuais,
das etnias minoritárias, dos idosos etc.) para a direita, algo
evidentemente absurdo e oposto a toda tradição progressista da
esquerda. É certo que Bobbio assinalou que a liberdade mais defendida
pela direita é a do mercado, mas, mesmo assim, insistiu em que a
bandeira de luta da esquerda é basicamente a igualdade e não as
liberdades. Entretanto, mesmo a liberdade do mercado – algo que nos
dias atuais inclui a proteção dos consumidores, o combate aos cartéis e
monopólios, inclusive àqueles estatais etc. – é fundamental para
qualquer democracia moderna, na medida em que ainda não foi
encontrado um substituto aceitável. Durante algum tempo pensou-se
que a estatização e a planificação da economia fossem melhor que o
mercado, mas isso já foi completamente descartado ao ponto de alguns
autores da new left, inclusive economistas que participaram de planos
quinquenais na Hungria e na China na época em que vigorava a
economia planificada, terem afirmado que, se houver um novo
104
Ensaios de geografia crítica
socialismo no século XXI, sem dúvida que ele terá por base a economia
de mercado6.
Depois, existe o fato óbvio de que somente a vigência da democracia,
logo, das liberdades e da participação, é que se pode garantir um
mínimo de igualdade – mas nunca total, pois isso é um sonho utópico
no sentido literal da palavra (isto é, “que não existe em lugar algum”),
tal como a ilha imaginada por Thomas Morus. Na prática, a própria
vigência das liberdades conduz a certa desigualdade na medida em que
as pessoas e os grupos são desiguais nas suas potencialidades, nas suas
necessidades, no seu valor de barganha para a sociedade, na
criatividade ou nas formas de luta etc. E tentar impor uma igualdade
total através da única forma possível, qual seja, pela força através de
um regime não democrático – um partido único no poder (ou um líder
carismático) que diz representar os trabalhadores ou o povo –, como foi
demonstrado exaustivamente, é algo que sempre resulta em privilégios
abusivos para alguns, que mandam e desmandam de forma arbitrária,
que usam em seu proveito pessoal os bens tidos como públicos.
Quanto à posição de Fausto, acredito que de fato seja interessante
investir esforços na busca de alternativas libertárias do tipo economia
com base em cooperativas, autogestão em empresas e outras
instituições etc. O problema é que, muitas vezes, essas experiências
cooperativas ou autogestionárias resultam na ditadura de uma pessoa ou
um grupo; ou então na promoção de interesses corporativos – ou de
grupelhos específicos – que são opostos aos interesses maiores da
sociedade. Não podemos continuar a ser ingênuos hoje, depois de
tantas experiências de manipulação de assembléias – basta lembrar,
sem a menor pretensão em denegar, de inúmeras instrumentalizações
da “vontade popular” em alguns orçamentos participativos –, a respeito
do assembleísmo. Vistas de regra existem partidos ou grupelhos
organizados que conseguem impor os seus pontos de vista apriorísticos
nas resoluções, seja pelo cansaço da maioria, seja pela manipulação dos
votos. E, ao contrário de Bobbio, Fausto não enfrenta o dilema da
igualdade versus a liberdade; ele continua – tal como no século XIX – a
escrever como se essa antinomia não existisse. Parodiando o título do
6
Cf. NOVE, Alec. A economia do socialismo possível. São Paulo, Ática, 1989.
105
José William Vesentini
seu livro, podemos dizer que, de fato, é difícil ser (inequivocamente) de
esquerda – como também de direita – no século XXI.
Essa polêmica evidentemente já chegou até a geografia crítica. Desde a
última década do século XX, logo depois da debacle do socialismo real
no Leste europeu e na ex-União Soviética, surgiram várias listas de
discussão – ou fóruns, como se denominam – na Internet a respeito do
que seria uma geografia crítica hoje7. Dando uma rápida espiada em
algumas dessas mensagens – pois é praticamente impossível ler todas
(são milhares), algo que provavelmente nem mesmo o mediador de
cada um desses grupos consegue fazer –, logo se percebe que não existe
sequer um mínimo consenso entre os participantes a respeito do que é
ou deveria ser uma geografia crítica: para alguns, é sinônimo (ou no
mínimo complementar) ao adjetivo radical, e/ou do adjetivo socialista
(embora nunca fique claro que tipo de socialismo); para outros,
simplesmente de denúncia de grupos neonazistas, de alguma forma de
desigualdades ou injustiças, ou de agressões à natureza em qualquer
parte do mundo, e assim por diante.
Também em livros e artigos acadêmicos esse debate se encontra em
andamento. Dois geógrafos britânicos, apesar de admitirem haver
“inúmeras desavenças sobre o que seria esquerda”, concluíram o seu
artigo de forma extremamente otimista, afirmando que ela, hoje,
“representa o futuro”8. Esse texto suscitou um enorme debate. Tanto
que é já é considerado o ensaio mais citado entre todos os que já foram
publicados nessa revista – Antipode –, que em 1969 inaugurou a
“geografia radical” anglo-saxônica. Nesse mesmo número da revista
existe um diálogo com esse texto, por parte de um autor marxista que
censura a ênfase no pluralismo em Thrift e Amin e os chama – de
forma depreciativa, pois acredita por um motivo obscuro qualquer (não
explicitado) que há semelhanças entre o pluralismo científico e a
“conversão ao neoliberalismo” da esquerda trabalhista britânica (Tony
7
Por exemplo, http://www.jiscmail.ac.uk/lists/crit-geog-forum.html, fórum de geografia
crítica existente desde março de 1996.
8
THRIFT, Nigel e AMIN, Ash. What is Left ? Just the Future. In : Antipode. A Radical Journal of
Geography. Vol.37, Issue 5, November 2005, p. 220-238.
106
Ensaios de geografia crítica
Blair e outros) – de neocríticos9. Logo no ano seguinte, veio uma
intervenção de uma geógrafa norte-americana, que estranhou tanto
otimismo – ou tanta ingenuidade – por parte daqueles dois autores num
momento em que inegavelmente a esquerda se encontra em crise10.
Outro autor norte-americano, nesse mesmo ano, assinalou – para horror
de autores como Smith – que, a partir do final dos anos 1980 nos
Estados Unidos, por influência do pensamento pós-moderno em
ascensão, que gradativamente passou a substituir o neomarxismo como
referência teórica nos círculos engajados da geografia acadêmica,
pouco a pouco a bandeira de uma “geografia radical” foi sendo
substituída pela de “geografia crítica”11.
Considero pertinente este último ponto de vista, pois na verdade a
proposta de uma geografia crítica surgiu primeiramente na França, em
1976, com Yves Lacoste e outros participantes da revista Hérodote, que
desde o início se mostraram reticentes em relação ao marxismo e
incorporaram ideias de pensadores anarquistas (Réclus) e,
principalmente, pós-modernos (Foucault). Esse geógrafo francês
chegou mesmo a assinalar, de forma foucaultiana, que o marxismo
negligenciou o espaço em prol de uma supervalorização do tempo12.
É bem verdade que com a expansão da geografia crítica para a Itália,
Espanha, Brasil e outros países da América Latina, um certo marxismoleninismo com fortes influências de Althusser e discípulos passou a
ocupar o lugar do pensamento pós-moderno, pelo menos em grande
parte, conforme já havíamos assinalado em dois textos dos anos 8013.
9
SMITH, Neil. What is left? Neo-critical Geography, or the flat pluralist world of business
class. In: Antipode. A Radical Journal of Geography. Vol.37, Issue 5, november 2005, p. 887889.
10
WILLS, Jane. What’s left? The left, its crisis and rehabilitation. In: Antipode. A Radical
Journal of Geography. Vol.38, Issue 5, November 2006, p. 907-15.
11
BLOMLEY, Nicholas. Uncritical critical Geography? In : Progress in Human Geography.
Vol.30, n.1, 2006, p. 87-94.
12
LACOSTE, Y. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas,
Papirus, 1988, p. 139-51.
13
VESENTINI, J. W. Percalços da geografia crítica: entre a crise do marxismo e o mito do
conhecimento científico. In: Anais do 4º. Congresso Brasileiro de Geógrafos. São Paulo, AGB,
1984, Livro 2, Vol.2, p. 423-32 e Geografia e discurso crítico (da epistemologia à crítica do
conhecimento). In: Revista do Departamento de Geografia 4. São Paulo, USP, 1985, p. 7-13.
107
José William Vesentini
Basta lembrar, para exemplificar, do livro extremamente dogmático do
geógrafo italiano Massimo Quaini14, que conseguiu enxergar nos
escritos de Marx e de Engels toda uma análise e até mesmo a “solução”
para os problemas ambientais e territoriais hodiernos! Em todo o caso,
mesmo continuando a existir uma forte presença de marxistas
ortodoxos nesta geografia – aqueles que têm por base teórica e
filosófica os escritos de Lênin, Althusser e discípulos como Martha
Harnecker (com a sua leitura estruturalista e empobrecida da obra de
Marx), o velho Lúckas ou Trotsky –, não há dúvidas de que ela
avançou no sentido de incorporar autores marxistas heterodoxos ou
neomarxistas (como Léfebvre), intelectuais pós-marxistas (como
Habermas) e até mesmo pós-modernos (como Foucault, Guattari,
Giddens e outros).
Prosseguindo com o seu pensamento, o mencionado geógrafo norteamericano questiona sobre o que seria de fato uma atitude crítica e
coloca a seguinte dúvida: será que todos nós, que dizemos praticar uma
geografia crítica, somos realmente críticos?15. Ele ainda se pergunta,
com base num questionamento de um colega seu da universidade (cujo
nome não mencionou), se o adjetivo crítico, na verdade, não se tornou
redundante; e afirma que a tradição crítica nas ciências sociais teria
começado com Marx, que num trecho célebre decretou: “Entretanto os
filósofos somente têm interpretado, de várias maneiras, o mundo. A
questão principal é transformá-lo”16. A meu ver, o autor acertou em
cheio ao questionar o significado de crítica (ou mesmo de radical, num
outro plano) nos dias de hoje. Mas errou completamente ao identificar
o conceito de crítica com esse chamado ao engajamento que Marx
proclamou em 1845 nas suas Teses contra Feuerbach. Como iremos
mostrar a seguir, esse é um tremendo desacerto, típico da geografia
anglo-saxônica em geral que, via de regra, não conseguiu discernir os
significados (diferentes) de crítica e de radical, nem tampouco
esquadrinhar o longo percurso, que começou muito antes de Marx, da
crítica na vida social e política.
14
15
16
QUAINI, M. Marxismo e Geografia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
BLOMLEY, 2006, op. cit., p. 87.
MARX, K., apud BLOMLEY, op. cit.
108
Ensaios de geografia crítica
Ipso facto, este nosso ensaio constitui uma modesta tentativa de
contribuição, por meio de uma releitura dos significados de crítica em
primeiro lugar, e também dos adjetivos radical e esquerda. Uma
releitura que vai até as origens e procura mostrar as mudanças que a
noção de crítica sofreu em alguns momentos históricos cruciais.
Tentaremos, principalmente, polemizar o que significa uma atitude
crítica hoje e se essa adjetivação ainda é necessária na geografia do
século XXI.
Vamos iniciar pela semântica. No senso comum, a palavra crítica
normalmente é vista sob um viés negativo, enquanto uma censura ou
condenação, como um julgamento sempre desfavorável. Criticar, no
entendimento comum, amiúde encontrável na mídia, em filmes, em
discursos políticos e mesmo em assembléias populares ou trabalhistas,
significa basicamente “falar mal” de alguma pessoa, ideia ou teoria, de
algum projeto ou de alguma proposição17. Entretanto, essa não é a
acepção filosófica e científica do conceito. Na filosofia, na
epistemologia e nas ciências humanas em geral, o significado de crítica
é o de um procedimento que implica em discernimento, critério,
apreciação minuciosa e julgamento que não precisa ser,
necessariamente, negativo. Mais ainda: é um procedimento tido como
necessário e até mesmo imprescindível para o aprimoramento e o
avanço do conhecimento18.
Etimologicamente, a palavra crítica vem do grego kritikòs, que
significa o ato de examinar ou julgar alguma coisa. Essa palavra é um
derivativo do vocábulo grego krinò, que pode ser entendido como a
17
Até mesmo alguns poucos cientistas sociais incorporaram esse viés equivocado. Um autor
brasileiro bastante citado e tido como especialista em metodologia científica, por exemplo,
asseverou que: “Do ponto de vista metodológico, critica é sempre negativa. Crítica ‘positiva’ é
outra coisa, quer dizer, é elogio.” (DEMO, Pedro. Mitologias da avaliação. São Paulo, Cortez,
2002, p. 30).
18
“A postura crítica torna-se, assim, um instrumento de pesquisa: a crítica é um instrumento
de progresso [científico]; é a crítica que distingue a postura científica da experiência précientífica, onde se fazem erros e se espera até que se esteja arruinado com eles [...] Quando se
tem postura crítica, explora-se os erros de forma positivamente crítica, aprendendo-se
conscientemente a partir deles.” (POPPER, Karl. O racionalismo crítico na política. Brasília,
Editora da UNB, 1994, p. 51).
109
José William Vesentini
capacidade de distinguir, de estabelecer uma distinção19. Com os
gregos da antiguidade, portanto, os criadores do vocábulo, a crítica
implicava numa reflexão, num ato reflexivo no qual se avaliava ou
examinava alguma coisa: uma ideia, uma teoria, um comportamento,
uma peça de teatro, uma obra literária etc. Uma avaliação tanto dos
aspectos positivos como negativos, um julgamento, digamos assim, da
“qualidade” dessa coisa, de sua validade ou veracidade (total ou
parcial) e de seus erros ou equívocos (idem).
Michel Foucault procurou datar o momento em que a crítica passa a ter
um significado político. Numa conferência pronunciada em 1978 na
Sociedade Francesa de Filosofia, ele afirmou que, no Ocidente, com o
advento da modernidade, especialmente entre os séculos XV e XVI, a
palavra crítica começa a denotar um tipo de posição política, uma
oposição ao ato de governar, que, convém recordar, naquele momento
se identificava com a nascente monarquia absolutista. Na interpretação
desse autor:
Eu proporia então, como uma primeira definição da crítica,
esta caracterização geral: a arte de não ser de tal forma
governado. Não querer ser governado assim, não é não
mais querer aceitar essas leis porque elas são injustas,
porque, sob sua antiguidade ou sob o seu brilho mais ou
menos ameaçador que lhes dá a soberania de hoje, elas
escondem uma ilegitimidade essencial. A crítica é então,
desse ponto de vista, em face do governo e à obediência
que ele exige, opor direitos universais e imprescritíveis,
aos quais todo governo, qual seja ele, que se trate do
monarca, do magistrado, do educador, do pai de família,
deverá se submeter. À questão “como não ser
governado?”, responde-se dizendo: “quais são os limites
do direito de governar”?20.
19
Cf. SIERRA, Pelayo Garcia. Diccionario Filosófico. Biblioteca Filosofía en Español, Oviedo,
1999 ; e também
CARROLL, Robert. The Skeptic’s Dictionary, disponível in
http://www.skepdic.com/, consultado em julho de 2007.
20
FOUCAULT, M. Qu'est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. In : Bulletin de la Société
Française de Philosophie, Vol. 82, nº 2, avr/juin 1990, p. 35-63.
110
Ensaios de geografia crítica
Mas foi com Kant, no século XVIII, que a crítica assumiu o seu
significado moderno, praticamente o mesmo posteriormente retomado
por Hegel, por Marx e por tantos outros filósofos ou cientistas sociais
que se utilizaram desse conceito para definir alguma teoria ou corrente
de pensamento: Adorno e Horkheimer com a sua teoria crítica, Karl
Popper com o seu racionalismo crítico, Paulo Freire e Giroux, dentre
outros, com a proposta de uma pedagogia crítica etc. Tanto que a
filosofia kantiana também é conhecida pelo nome de criticismo21. Sua
monumental obra, Crítica da Razão Pura, é uma tentativa de examinar
minuciosamente as propriedades da razão pura, aquela desligada da
experiência, estabelecendo os seus limites. Não se trata, porém, de uma
radical negação da razão e, sim, uma autocrítica desta, uma espécie de
continuação do projeto iluminista de, utilizando a razão com base na
ciência moderna, combater todas as formas de escuridão (ignorância
por crenças e superstições, dogmatismo religioso, autoritarismo no
conhecimento e na vida política). Nas suas palavras:
O objetivo desta Crítica da razão pura especulativa reside
na tentativa de mudar o procedimento tradicional da
Metafísica e promover assim uma completa revolução nela
segundo o exemplo dos geômetras e investigadores da
natureza [...] Com base num lance superficial de olhos
sobre esta obra, poder-se-ia pensar que a sua utilidade seja
somente negativa, ou seja, de não ousarmos jamais elevarnos com a razão especulativa acima dos limites da
experiência [...] Ela se tornará, porém, imediatamente
positiva quando nos dermos conta de que os princípios,
com cujo apoio a razão especulativa ultrapassa os seus
limites, na verdade têm como resultado inevitável, se os
observarmos mais de perto, não uma ampliação mas uma
restrição do uso da nossa razão [...] Contestar a utilidade
positiva deste serviço prestado pela Crítica equivaleria a
dizer que a polícia não possui nenhuma utilidade positiva
por ser a sua principal ocupação fechar a porta à
violência22.
21
22
LEGRAND, Gerard. Dicionário de Filosofia. Lisboa, Edições 70, 1986, p. 103-4.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. São Paulo, Abril Cultura, Col. Os Pensadores, 1974, p.14-5.
111
José William Vesentini
A crítica, nesses termos, não é somente negativa – o “falar mal” de algo
ou mesmo somente apontar lacunas, problemas, insuficiências,
contradições –, mas também positiva na medida em que auxilia no
avanço ou no aprimoramento do objeto criticado, promove, enfim, uma
revolução no sentido de propor novas alternativas ou perspectivas. Mas
o criticismo kantiano vai mais além. Prosseguindo com a interpretação
de Foucault, temos que a crítica kantiana vincula-se à de
esclarecimento, isto é, da conquista da maioridade pelo ser humano:
A definição que Kant dava de crítica não é distante de
como ele entendia a Aufklärung [esclarecimento,
ilustração]. É característico, com efeito, que, em seu texto
de 1784 sobre o que é a Aufklärung, ele a definiu em
relação a um certo estado de menoridade no qual estaria
mantida, e mantida autoritariamente, a humanidade. Em
segundo lugar, ele caracterizou essa menoridade por uma
certa incapacidade na qual a humanidade estaria retida,
incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem
alguma coisa que fosse justamente a direção de um outro
[...] Em terceiro lugar, creio que é característico que Kant
tenha definido essa incapacidade por uma certa correlação
entre uma autoridade que se exerce e que mantém a
humanidade nesse estado de menoridade, correlação entre
este excesso de autoridade e, de outra parte, algo que ele
considera, que ele chama uma falta de decisão e de
coragem. [...] Enfim, é característico que, nesse texto Kant
dá como exemplos de retenção da menoridade da
humanidade, e por consequência, como exemplos, pontos
sobre os quais a Aufklärung deve erguer esse estado de
menoridade e maioridade em, certo tipo, os homens,
precisamente a religião, o direito e o conhecimento. O que
Kant descrevia como a Aufklärung, é o que eu tentei até
agora descrever como a crítica, como essa atitude crítica
que se vê aparecer como atitude específica no Ocidente a
partir, creio, do que foi historicamente o grande processo
de governamentalização da sociedade. Com relação a essa
Aufklärung (cujo emblema, vocês bem o sabem e Kant
lembra, é ‘sapere aude’ [atreva a conhecer, a pensar por
112
Ensaios de geografia crítica
conta própria], praticamente um contraponto a uma outra
voz, aquela de Frederico II, que dizia ‘que eles raciocinem
tanto quanto querem contanto que obedeçam’). Como
Kant vai definir a crítica? Eu diria que a crítica será aos
olhos de Kant o que ele dirá ao saber: você sabe bem até
onde pode saber? Raciocina tanto quanto queira, mas você
sabe bem até onde pode raciocinar sem perigo? A crítica
dirá, em suma, que está menos no que nós empreendemos,
com mais ou menos coragem, do que na ideia que nós
fazemos do nosso conhecimento e dos seus limites, que aí
vai a nossa liberdade, e que, por consequência, ao invés de
deixar dizer por um outro “obedeça”, é nesse momento,
quando se terá feito do seu próprio conhecimento uma
ideia justa, que se poderá descobrir o princípio da
autonomia e que não se terá mais que escutar o obedeça;
ou antes que o obedeça estará fundado sobre a autonomia
mesma23.
Nesses termos, a crítica para Kant implica um projeto de autonomia, de
libertação da razão das amarras do autoritarismo, do tradicionalismo e
das crendices. É uma contribuição para a revolução democrática no
sentido de maior autonomia da humanidade e dos indivíduos ou
cidadãos, isto é, de ousar pensar o impensável, de raciocinarmos por
conta própria independentemente dos dogmas e das proibições. Ou seja,
um convite a “mudar o mundo” no sentido de construir uma sociedade
com maior justiça e igualdade, com maior progresso científico, com
esclarecimento enfim. Não podemos negligenciar que, em grande parte,
a obra de Kant representa certa continuação do iluminismo e, ao
mesmo tempo, reflete uma admiração pela Revolução Francesa.
Hegel retomou essa concepção de crítica, mesmo procurando à sua
maneira superar o criticismo kantiano. Sabemos que ele valorizou a
História – com H maiúsculo, vista como a realização paulatina da razão
através de etapas ou avatares, num processo teleológico com um final
pré-definido. A dialética, para ele, não é apenas um procedimento –
visto como algo sem grande importância – de oposição (tese e antítese)
23
FOUCAULT, M. Op. cit., p. 40.
113
José William Vesentini
que gera uma síntese, como em Kant. Para Hegel, a dialética é
supervalorizada e tem uma dimensão ontológica: ela se dá ou surge no
mundo sob a forma dos processos históricos. A dialética hegeliana não
pretende ser apenas uma forma de lógica, mas também uma ontologia.
De forma extremamente pretensiosa, ela se apresenta como a “verdade”
– o que capta a “essência” – ou o movimento da História.
Marx prosseguiu com esse viés hegeliano da dialética como a
realização da História, sendo esta uma dinâmica complexa que
atravessaria várias fases e, afinal, desembocaria na completa libertação
do ser humano. Afirmando ter colocado Hegel em posição invertida,
com os pés no chão, ele substituiu a razão ou o espírito pelas condições
materiais e a luta de classes, que também num processo teleológico, por
etapas, conduziriam ao socialismo e, após um período de transição, ao
comunismo, a História enfim realizada ou acabada. Sua principal obra,
O Capital, tem como subtítulo Crítica da Economia Política, numa
inegável inspiração kantiana na qual a crítica é uma superação com
subsunção e, mais ainda, é um procedimento revolucionário que aponta
para uma libertação do ser humano, para uma completa autonomia no
futuro. Procurando estabelecer os limites da economia política clássica
(de Adam Smith, David Ricardo e outros) – que seria, antes de tudo,
uma economia burguesa ou justificadora do sistema capitalista –, Marx
acreditou ter encontrado a sua superação com a análise das contradições
do capitalismo, o qual inexoravelmente cederia lugar a um novo modo
de produção sem a propriedade privada dos meios de produção.
Ao contrário do que pensam alguns, a crítica de Marx ao capitalismo e
à economia política não significou uma “crítica negativa” no sentido de
apenas apontar erros, problemas, mistificações ou contradições. Como
mostrou com propriedade Berman24, é na obra de Marx – muito mais
do que na de Ricardo, de Smith, de Keynes ou de qualquer outro autor
tido como ideólogo da economia de mercado – que vamos encontrar os
mais rasgados elogios ao capitalismo, em especial ao imenso
“progresso” que ele promoveu, à sua “missão civilizadora”, à criação
de um mercado mundial integrado. O sentido que Marx dava ao termo
24
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São
Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 85-125.
114
Ensaios de geografia crítica
crítica, convém repetir, era o de um procedimento kantiano de entender
profundamente algo, inclusive nos seus aspectos positivos, assinalando
a sua importância histórica e, ao mesmo tempo, apontando os seus
limites ou as suas insuficiências (ou as suas “contradições”, nos termos
da dialética hegeliana).
Sabemos que, a partir do final do século XIX – e até o final do século
XX –, a noção de crítica esteve identificada basicamente com o
marxismo, como se fosse um atributo somente da “esquerda” (vista
como os adeptos do socialismo) e tendo o capitalismo como objeto
privilegiado, o alvo por excelência das críticas. No entanto, ao contrário
do procedimento crítico adotado por Marx, o marxismo posterior, com
raras exceções, somente viu aspectos “negativos” e inaceitáveis no
capitalismo (e mesmo na democracia!), como se este fosse um sistema
que de forma inelutável amplia as desigualdades e entrava o
“progresso”, isto é, o desenvolvimento das forças produtivas. É
evidente que, hoje, essa leitura precisa ser reexaminada e superada.
Precisa ser criticada enfim. Não é mais possível levar a sério a
concepção de dialética como portadora do segredo da história, ou como
o “método científico” por excelência; muito menos, a existência de um
sujeito qualquer (o proletariado, os trabalhadores, o espírito, as massas,
a multidão, os movimentos sociais, as ONGs ou qualquer outro agente)
que seria o redentor da humanidade. Não apenas o capitalismo, mas
também o socialismo real, assim como qualquer outro projeto de
sociedade que repudie o mercado e a democracia (por exemplo, aqueles
alicerçados em valores religiosos; ou o populismo autoritário “de
esquerda” da América Latina), deve igualmente ser objeto de profundas
críticas.
Malgrado os equívocos e as insuficiências de Marx e de Hegel – em
especial a tentativa de teleologizar a história e a pretensão de identificar
um agente portador do futuro e do segredo da história (a razão ou o
proletariado) –, não se pode perder de vista o que há de comum entre
eles e Kant. Ou, em outras palavras, o entendimento da crítica não
como falar mal ou desancar um pensamento, mas, sim, como
compreensão minuciosa dos seus fundamentos e limites, como
superação na qual se incorpora o que foi superado como parte de uma
115
José William Vesentini
síntese ou teoria superior. Ao mesmo tempo, crítica como um projeto
de autonomia da humanidade, de crescimento do ser humano no sentido
de libertação das amarras do tradicionalismo, das crendices, da
exploração social e do autoritarismo.
Acreditamos que esta deva ser a concepção reproduzida pela geografia
crítica – ou pelo menos por grande parte dela, que afinal é plural.
Crítica como superação com subsunção e, ao mesmo tempo, como um
engajamento em algum projeto de libertação que amplie o espaço da
democracia, que combata todas as formas de dogmatismo e de
autoritarismo. Todavia, existe hoje um grande dilema: a ideia de
projeto de libertação tornou-se extremamente problemática, embora de
maneira alguma dispensável. Mas a profunda compreensão desse fato
requer algumas explicações.
Em primeiro lugar, ao contrário do que pensam alguns, não se trata de
denegar completamente a geografia clássica ou tradicional,
substituindo-a pelo materialismo histórico com os seus conceitos
fundamentais (modo de produção, formação econômico-social, classes
sociais alicerçadas na produção, a teoria marxista do valor, o
socialismo como etapa que substituirá o capitalismo etc.). Com tal
procedimento, mesmo quando existe a tentativa de enriquecer ou
completar o marxismo com a incorporação do espaço geográfico – a
formação econômico-social transforma-se em formação sócio-espacial,
a luta de classes passa a abarcar os conflitos ambientais e territoriais, o
materialismo histórico passa a ser chamado de materialismo históricogeográfico etc.25 –, não existe uma verdadeira crítica da tradição
geográfica. Não há uma superação com subsunção e tampouco um
projeto de libertação realista e coerente com a nossa época. O que
existe nesse procedimento é apenas a substituição da tradição
geográfica por uma teoria do século XIX (mesmo que esta seja lida a
partir de algum autor posterior: Luckács, Althusser ou até Lèfebvre)
que imaginou ter superado o capitalismo pela análise de suas
contradições e limites, os quais pretensamente conduziriam ao
socialismo. Sem dúvida, naquele momento de ascensão dos
25
HARVEY, D. Spaces of Capital. Towards a Critical Geography. New York, Routledge, 2001,
passim.
116
Ensaios de geografia crítica
movimentos operários, essa construção teórica era crítica. Mas, nos
dias de hoje, ela se encontra envelhecida, até mesmo caduca, além de
completamente deslocada dos verdadeiros projetos de libertação, que
não se identificam mais com esse agente idealizado por Marx, o
proletariado, o qual, sejamos francos, sequer existe no mundo
empírico26. Insistir nessa via sem levar em conta a experiência dos
totalitarismos do século XX – que em boa parte nela se alicerçaram – e
as mudanças na vida social e econômica, com o advento de novos
sujeitos e campos de luta, nada mais é que, consciente ou
inconscientemente, partilhar um projeto de ascensão ao poder por uma
camada de burocratas que fala em nome dos trabalhadores, dos
excluídos ou da História27.
Destarte, a história do século XX – e em especial a crise do mundo
socialista, a emersão de novos sujeitos e formas de luta social, a par das
profundas mudanças ocorridas no capitalismo, que não pode mais ser
entendido pelas análises marxistas clássicas –, evidencia que a crítica
da economia política também deve ser criticada, que ela também possui
os seus limites e insuficiências, cada vez mais evidentes. Assumir o
materialismo histórico como “a” teoria na qual a geografia deve ser
diluída é um procedimento acrítico, que não realiza, sequer
minimamente, uma análise crítica da geografia, tal como aquela de
Kant frente à razão pura, ou mesmo a de Marx frente ao capitalismo.
Apenas se incorpora, de forma mecânica e sem grande criatividade,
determinados conceitos ou preocupações espaciais a um corpo teórico
já constituído, este, sim, nascido de uma tradição crítica, embora datada
e integrada a outros tempos, outras circunstâncias. Pouco se avança no
26
Claude LEFORT (As formas da História. São Paulo, Brasiliense, 1979, p. 249) foi um dos
primeiros a perceber isso, tendo sugerido que o proletariado foi mais uma invenção da “fértil
imaginação de Marx”.
27
Como já havia assinalado muito bem CASTORIADIS, C. (A instituição imaginária da
sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 82-5), o marxismo no século XX pouco a pouco
degenerou numa ideologia da burocracia, num discurso legitimador de um partido ou um
grupo de burocratas que pretende alcançar o poder e/ou que já o exerce de forma totalitária,
isto é, sempre reprimindo violentamente as criticas e oposições, que são taxadas de
“burguesas” e antirrevolucionárias, e sempre falando em nome de uma pretensa comunidade
dos trabalhadores, do povo ou do proletariado.
117
José William Vesentini
conhecimento da realidade; em geral tão somente velhos chavões ou
estereótipos são regurgitados.
Devemos, então, indagar sobre o que seria um procedimento crítico nos
dias de hoje. Nesta época de pós-modernidade, com múltiplos sujeitos e
verdades, com visões de mundo alternativas e igualmente aceitáveis,
cada uma dentro de seu ponto de vista, continuar propagando a ideia de
crítica como a realização do sentido da história é algo completamente
extemporâneo. Ninguém mais tem o direito de falar em nome da
história e nenhum sujeito ou agente social é o detentor da verdade
entendida como algo unívoco. Outro problema é que não temos mais
aquele otimismo dos séculos XVIII e XIX a respeito da unicidade da
humanidade. Poucos acreditam hoje num projeto de libertação que
inclua todas as culturas e civilizações, todos os povos num único
modelo societário para o futuro. Cada vez mais se valorizam as
diferenças e as alteridades, a questão dos Outros, com suas diferentes
concepções a respeito do ideal de uma sociedade no futuro.
Isso posto, cabe uma interrogação: qualquer discurso que critique
outro(s) no sentido de incorporá-lo(s) numa nova síntese, e que
contenha um projeto qualquer de autonomia, pode ser considerado
crítico? Exemplificando: se pensarmos numa perspectiva cristã
fundamentalista, adepta do criacionismo, crítica seria uma compreensão
dos fundamentos e limites da ciência – neste caso, do neodarwinismo –
procurando superá-la com o ato de a incorporar como parte de uma
teoria que mantivesse os dogmas da religião e ao mesmo tempo
admitisse certas mudanças temporais na natureza e no advento dos
seres vivos? (E também existiria um projeto de autonomia ou libertação
nesse caso, mesmo que em outra vida). O mesmo valeria para os
fundamentalistas islâmicos, para os hinduístas, para os adeptos da
supremacia branca etc?
Cairíamos então num relativismo segundo o qual todos os pontos de
vista se equivalem e, assim sendo, qualquer discurso que procurasse
compreender uma teoria e incorporá-la num projeto qualquer de
“libertação” seria considerado crítico? É evidente que não. Então, como
sair desse impasse?
118
Ensaios de geografia crítica
Em primeiro lugar, temos que lembrar que, para Kant, existe um
vínculo indissociável entre crítica e democracia, sendo que esta
consiste num processo que implica na crescente libertação da
humanidade em relação às crendices, ao autoritarismo, às tradições que
reproduziam ou reproduzem uma sociedade rigidamente estratificada e
com privilégios para alguns. Crítica, nessa concepção kantiana e
moderna, deve ser algo que contribui para a liberdade e a igualdade dos
seres humanos, e nunca algo que justifique ou legitime qualquer tipo de
ditadura, de autoritarismo ou de totalitarismo, de privilégios, de
racismo ou de preconceitos. Não vivemos mais uma batalha entre
direita e esquerda, tampouco entre capitalismo e socialismo. Um
intelectual que enxergou muito bem um dos principais conflitos neste
novo século foi o escritor Francis Wheen, que afirmou:
A nova batalha será entre o melhor do legado do
Iluminismo (racionalismo, empirismo científico, separação
da Igreja e do Estado) por um lado e, do outro, várias
formas de obscurantismo e relativismo destituído de
valores, frequentemente mascarado como ‘antiimperialismo’ ou ‘antiuniversalismo’ - para dar um verniz
atraente radical a atitudes profundamente reacionárias28.
Assim sendo, não tem sentido adotar aquela posição comodista que
considera críticas determinadas ideias que servem de propaganda para
fundamentalismos ou dogmatismos, mesmo que elas sejam
extremamente ácidas em relação ao capitalismo, que é exorcizado como
o demônio do nosso tempo. Críticas essas, por sinal, que estão mais
para o “falar mal” de algo e nunca para a análise de seus fundamentos e
limites; que, no fundo, constituem tão somente impropérios a respeito
do capitalismo, da globalização e até mesmo da democracia.
Em segundo lugar, temos que levar em conta que a geografia é ou
pretende ser uma ciência. O que Kant almejava com a sua crítica como
prolongamento do iluminismo era exatamente libertar a humanidade
28
WHEEN, F. Answer to the question: Left and right defined the 20th century. What's next?,
in Prospect, march 2007, http://www.prospect-magazine.co.uk/article_details.php?id=8342,
capturado em março de 2007.
119
José William Vesentini
das amarras dos dogmatismos e dos autoritarismos, da escuridão enfim.
Essa iluminação através da razão seria comandada pela ciência
moderna. O escopo da ciência – ou melhor, das ciências, no plural, para
evitarmos o mito de um método único para todos os aspectos do real –
é desenvolver ou dilatar o conhecimento humano sobre a realidade em
todas as suas dimensões. Um conhecimento que, não raro, serve para
ampliar nosso controle sobre a natureza, tanto a interna (nosso corpo e
mente) como a externa (através da redução das distâncias, da ampliação
da oferta de alimentos, ou mesmo de novas substâncias, da produção de
máquinas e até de armamentos etc.).
Sem dúvida, esse controle hoje, ao contrário dos séculos XVIII e XIX,
é tido como problemático. Sabemos que muitas vezes ele gera
consequências nocivas para determinados ecossistemas e grupos
humanos ou, em alguns casos, até mesmo para a biosfera e para a
humanidade como um todo. Contudo, bem ou mal, ele sempre foi e
continua sendo o motor que impulsiona o chamado desenvolvimento,
inclusive nas suas possíveis formas sustentáveis. Mesmo que
critiquemos o conhecimento científico – algo que, como vimos, faz
parte do seu próprio modo de ser, no qual a crítica é necessária para
suas correções e rearranjos. Mesmo que deneguemos essa excrescência
da ciência moderna, o cientificismo, que advoga uma absurda atitude
arrogante e imperialista frente às demais formas de conhecimento –
desde o artístico ao filosófico, passando pelos diversos sensos comuns,
pela experiência de vida das comunidades tradicionais e dos povos
ditos selvagens etc. Mesmo assim, os cânones do conhecimento
científico continuam sendo a melhor maneira de superar o relativismo
puro e simples e avançar nessa problemática do que é uma atitude
crítica hoje.
Um dos grandes méritos da ciência ou das ciências é admitir que suas
verdades, embora frequentemente úteis e eficazes, sempre são
provisórias e sujeitas a correções ou superações. O conhecimento
científico não procura nem aceita o Absoluto. Ele relativiza os
conceitos e teorias, embora não no sentido do relativismo ingênuo, ou
puro e simples, na qual tudo é igual e, portanto, não existe qualquer
hierarquia e tampouco nenhuma forma de aprimoramento ou avanço
120
Ensaios de geografia crítica
gradativo do conhecimento. A ciência relativiza os conceitos e teorias –
e até mesmo os objetos – ao considerá-los como verdades provisórias e
sempre sujeitas a testes, a confrontos com a realidade e com outras
explicações, mas cujo sentido, mesmo havendo encontros e
desencontros, avanços e possíveis recuos, sem dúvida que tem um
norte, que é um crescente acúmulo de informações cada vez mais
eficazes no sentido de compreender (e agir sobre) o mundo, o real em
todos os seus aspectos.
É justamente aqui que encontramos a via que nos permitirá reconhecer
a criticidade numa teoria, num discurso: a sua relatividade em termos
de contextualização e significado para o universo do qual faz parte.
Não existem ideias ou teorias críticas em si. Elas só o são em função
do papel que desempenham no seu contexto, razão pela qual podem ser
críticas numa época, num momento e num lugar determinados – por
exemplo, o marxismo na Europa Ocidental do século XIX –, e também
podem ser completamente acríticas em outra época ou lugar, tal como
ocorre, como já mencionamos, com o marxismo em praticamente todo
o mundo nos dias de hoje.
Voltando, agora, para a seara da geografia, podemos seguir com a
inquietação de Blomley. Sem dúvida que existe certa verdade na
afirmação que há diferentes vertentes autodenominadas críticas na
geografia (como na ciência social e na filosofia em geral) e que talvez o
melhor seja deixar de lado esse adjetivo, pois, afinal de contas, já não
teria ele cumprido o seu papel? (Que foi o de servir de bandeira de luta
contra a geografia tradicional, que praticamente não existe mais ou,
pelo menos, já não conta com teóricos que a defendam).
Mas, por outro lado, cabe uma indagação. Como os geógrafos ditos
críticos vêm enfrentando esse problema da crítica? Uma parte deles,
felizmente minoritária (talvez não na América Latina), continua a agir e
escrever como se nada de importante tivesse ocorrido nos últimos anos
e décadas, como se vivêssemos ainda uma luta entre “esquerda” (os
adeptos do socialismo e críticos do capitalismo) e “direita” (os adeptos
do capitalismo, que seriam por definição conservadores e inimigos do
pensamento crítico). Crítica aqui é entendida como “falar mal” dos
demônios do nosso tempo: o capitalismo, naturalmente, junto com a
121
José William Vesentini
globalização vista como neoliberal, a democracia “burguesa” e a
imprensa livre (principalmente quando esta desanca regimes
autoritários e populistas “de esquerda”, quando denuncia os abusos dos
direitos humanos em Cuba etc.). São produzidos panfletos – ou estudos
pouco fundamentados, onde o objeto criticado sequer é compreendido
de fato –, nos quais, via de regra, existe uma interpretação paranóica ou
conspiracionista da história: foi a CIA quem promoveu os atentados de
11 de setembro de 2001, com vistas a obter apoio para as invasões do
Afeganistão e do Iraque; as cobranças de organizações internacionais,
especialmente o Banco Mundial, com a qualidade do sistema escolar, é
apenas parte de um projeto neoliberal com vistas a privatizar o nosso
ensino público; as preocupações com os desmatamentos na Amazônia
são meramente uma faceta do imperialismo que objetiva
internacionalizar aquela região (o que significaria deixá-la aos cuidados
dos países ricos, principalmente dos Estados Unidos); as denúncias de
presos políticos em Cuba ou da pobreza e do autoritarismo na Coréia
do Norte ou na Venezuela, no fundo, fazem o jogo do imperialismo
norte-americano, que almeja derrubar aqueles regimes revolucionários
etc. Para essa vertente, o pluralismo é um mal, o marxismo (entendido
como se fosse algo unívoco) é o único “método” científico válido, as
citações de algum autor (seja do próprio Marx ou, mais
frequentemente, de algum marxista posterior) substituem as análises ou
até mesmo o raciocínio, não existiria nenhum aspecto positivo na
globalização e nas novas tecnologias, mas tão somente uma constante
ampliação das desigualdades sociais e espaciais, e por aí afora.
Contudo, sem dúvida que existem sérias tentativas de renovar dentro
das geografias críticas, que não são meramente panfletárias e
comodistas, que procuram enfrentar os desafios de uma nova realidade,
inclusive aquele da crise do marxismo e da absoluta incapacidade de
grande parte das geografias críticas, e principalmente das radicais, em
incorporar essa questão até os primórdios dos anos 1990. Nem todos os
geógrafos ditos críticos são dogmáticos e meramente reproduzem
estereótipos. Existe uma vertente crítica na boa acepção do termo, que
procura realizar uma análise crítica tanto do capitalismo como também
– ou talvez mais ainda – do socialismo real, que buscou e busca
subsídios não apenas no marxismo (embora também criticado pelo
122
Ensaios de geografia crítica
reducionismo econômico e, principalmente, pela valorização do tempo
em detrimento do espaço), mas notadamente nos anarquismos
(especialmente de Réclus e Kropotkin), em Foucault e na pósmodernidade. Mencionando apenas um exemplo entre muitos, uma
expressiva parte dos geógrafos autointitulados críticos, ao constatar as
radicais mudanças no capitalismo e o final do socialismo real, vem
procurando, nos últimos anos, renovar as suas teorias, com o uso de
conceitos ou ideias da teoria crítica, isto é, da Escola de Frankfurt, em
especial as de Habermas. Um dos expoentes dessa vertente, ao procurar
superar a “geografia radical” e construir uma “geografia crítica”, assim
se expressou:
As correntes radicais da geografia, em todas as suas
variantes, não apenas procuraram elaborar uma crítica do
positivismo lógico, como também efetuar mudanças
sociais e políticas. Em face do visível êxito do capitalismo
nos anos 1980 e da queda dos regimes comunistas da
Europa durante os anos 90, a geografia radical fracassou
retumbantemente nos seus objetivos práticos. No exame
das razões desse fracasso, devemos reexaminar as cinco
características chaves da teoria crítica de Habermas: as
relações entre teoria e prática, a teoria dos interesses
cognoscitivos, a teoria da competência comunicativa, o
interesse pela emancipação e a prática da autorreflexão [...]
O trabalho da geografia crítica consiste em exprimir as
desigualdades e convencer as pessoas do poder sobre suas
prováveis repercussões, além de participar ativamente na
criação de novas formas de organização social e
econômicas. Em poucas palavras, devemos reconhecer o
mal-estar de nossa sociedade, adotar uma postura
autorreflexiva frente a ela e atuar como psicanalistas da
situação da qual fazemos parte29.
Notamos um grande avanço nessa proposta que, como havia assinalado
Blomley, significa a passagem de uma geografia radical para uma
geografia crítica, pois crítica não se identifica com – embora
29
UNWIN, Tim. The place of Geography. London, Longman Group, 1992, p. 250-3.
123
José William Vesentini
pressuponha – um mero engajamento. O engajamento com os
problemas sociais e territoriais, inclusive os ambientais, foi a grande
bandeira de luta dos radicais anglo-saxônicos contra a geografia que
predominava na sua realidade até o final dos anos 1960: a geografia
pragmática ou quantitativa, voltada para planejamentos e
aparentemente “técnica” ou “neutra”. Ele teve o seu papel positivo.
Mas o mundo mudou, os problemas se modificaram – alguns se
ampliaram, outros se contraíram, outros novos surgiram e outros ainda
adquiriram distintas facetas – e o simples engajamento, embora
necessário, se tornou problemático (engajamento, por sinal, que de
forma visível hoje pode denotar uma atitude intransigente,
antidemocrática ou até terrorista, principalmente quando tido como
“radical”30).
Não existe engajamento apenas por um “outro mundo” ou um “mundo
melhor”. Afinal de contas, o que quer dizer “melhor”? Sem dúvida, é
algo que pode ser defendido com convicção até mesmo por neonazistas,
maoístas, bolivaristas e vários outros tipos político-ideológicos com
viés autoritário. Assim, os termos radical e crítica não se identificam
completamente. Eles podem se sobrepor em algumas ocasiões, mas, em
geral, apontam para atitudes diferentes. Voltando à proposta de Unwin,
observamos que, nela, o papel do geógrafo crítico não é o de
meramente ser um terrorista intelectual ou um incendiário – isto é, um
engajado de forma radical – e, sim, um “psicanalista” que detecta
problemas e, ao mesmo tempo, potenciais. Como se sabe, o psicanalista
30
O termo radical, ao contrário de crítica, não possui uma rica tradição filosófica e
epistemológica. Na verdade, ele veio do latim (radic = raiz) e, deixando de lado o seu uso na
matemática, na química, na linguística etc., ele tem dois significados principais. Primeiro,
denota uma atitude intransigente, inflexível, sem um verdadeiro diálogo com os outros.
Segundo, e de acordo com a sua origem etimológica, significa ir às origens ou à raiz das coisas.
É amplamente conhecida a frase tautológica de Marx segundo a qual “a raiz do Homem é o
próprio Homem”, ou melhor, as suas relações no mundo do trabalho. O problema é que os
dois significados frequentemente se misturam – inclusive em Marx, famoso pela sua
arrogante intransigência frente a qualquer ideia que não as suas (inclusive dos socialistas
utópicos, anarquistas etc.) – e, ademais, a “raiz” das coisas, exceto das árvores, é algo
extremamente problemático: para os geneticistas a raiz de um indivíduo está na sua herança
genética; para determinados antropólogos e também num outro plano, para os psicanalistas,
a raiz de uma sociedade está nos seus mitos e valores; para os ecologistas, está nas relações
com a natureza; e assim por diante.
124
Ensaios de geografia crítica
não destrói a personalidade que analisa e, sim, a reconstrói, a ajuda no
seu encontro, na superação dos seus problemas e fobias. A esse
respeito, alguns diriam, citando Gramsci, que para o novo nascer o
velho tem que morrer. Talvez sim, mas somente num sentido
metafórico. Pois o novo sempre significa certo prolongamento, com
determinadas nuanças, do velho. Não se trata do nascimento de um
indivíduo que vai – depois de várias décadas – substituir outro que
envelhece e morre. Essa visão organicista é equivocada na medida em
que é a mesma sociedade, embora transformada, que perdura. Ela pode
mudar sua estrutura produtiva, revolucionar seus valores, melhorar
substancialmente a qualidade de vida de seus membros. Mas sempre
haverá certa continuidade, uma herança que permanece. O velho,
portanto, nunca morre totalmente. É por isso que ainda hoje somos
herdeiros dos egípcios, dos gregos e dos romanos da antiguidade31, dos
iluministas do século XVIII ou dos socialistas, no plural, do século
XIX.
Quanto a Unwin, a filiação desse geógrafo à teoria crítica na sua versão
habermaniana pressupõe uma aversão ao tradicional dogmatismo do
marxismo-leninismo e, principalmente, uma aceitação da democracia,
que, ao invés de ser combatida, deve ser preservada e inclusive
expandida. Mesmo sem concordarmos inteiramente com a posição de
Unwin (deixando de lado, por ora, o porque disso), cabe elogiar o
avanço teórico e político contido na sua proposta (como também na de
Blomley e outros) de uma transição da geografia radical para uma
geografia crítica pós-marxista aberta e plural.
31
FREUD, S. (Moisés e o monoteísmo. São Paulo, Imago, 1997), por exemplo, analisou com
argúcia como o egípcio Moisés propagou uma religião monoteísta cujos mitos até hoje
influenciam uma grande parte do mundo. Quanto à importância da filosofia – e das artes –
grega ou do direito romano para a nossa vida atual, creio que é desnecessário insistir nesse
item.
125
José William Vesentini
126
Geografia crítica no Brasil:
uma interpretação depoente*
O advento e a expansão da geocrítica no Brasil
Existe um mito que, neste ensaio, procuramos questionar, o de que a
geografia crítica no Brasil se iniciou com o Encontro da AGB
(Associação dos Geógrafos Brasileiros) realizado em 1978 em
Fortaleza. A nosso ver, existe aí uma supervalorização dessa associação
e uma completa desconsideração dos professores de geografia que,
muito antes desse evento e à revelia da AGB, combatiam a ditadura
militar e implementavam um ensino crítico da disciplina. Este texto tem
o caráter de um depoimento pessoal na medida em que foi elaborado a
partir da memória de quem viveu esse período e tem uma visão
diferente daquela que, pelo menos nos meios acadêmicos, se tornou
hegemônica.
Em primeiro lugar, surge uma dúvida: do que estamos falando de fato?
O que é uma geografia crítica? Assim, para discorrermos sobre o
itinerário da geografia crítica no Brasil, temos obrigatoriamente que
definir do que estamos falando e quando esse fenômeno se iniciou.
Alguns identificam geocrítica tão somente com um discurso geográfico
não mnemônico que procura explicar ao invés de descrever. Já li uma
dissertação de mestrado, por sinal premiada, que reproduz esse viés
superficial e equivocado. Ora, se isso fosse verdade, existiria uma
geografia crítica no país desde os anos 1910 (com as obras de Delgado
*
Texto elaborado em outubro de 2001 para integrar nosso site na net:
www.geocrítica.com.br. Fizemos ligeiras alterações na redação para o incluir nesta coletânea.
127
José William Vesentini
de Carvalho) ou, pelo menos, a partir da década de 1950 (com os
estudos de Pierre Monbeig). Mas essa é uma visão ingênua, que
estereotipa a geografia tradicional, não vê as suas diversas nuances e os
seus trabalhos mais ricos e profícuos. E também não compreende a
verdadeira reviravolta operada pelas geografias críticas, no plural, que
não apenas procuram explicar as relações sociedade/natureza (não
confundir com a “adaptação do Homem ao meio”, algo que a geografia
tradicional algumas vezes fazia muito bem) e as relações de poder no
espaço, como, principalmente, buscam atuar no mundo, desenvolver o
espírito crítico do educando, engajar-se nas questões e lutas sociais (das
mulheres, dos moradores, dos ambientalistas, enfim dos que pleiteiam
uma sociedade democrática e tolerante, dos que contribuem para
engendrar uma realidade mais justa).
Não se pode dissociar o advento das geografias críticas da reação ou do
posicionamento crítico dos geógrafos frente a dois processos ou marcos
fundamentais para a história do pensamento geográfico na segunda
metade do século XX: os movimentos sociais contestatórios dos anos
1960 e 1970 (contracultura, lutas pelos direitos civis e sociais, reação à
guerra do Vietnã, movimento feminista, maio de 1968 etc.) e a falácia
da razão instrumental ou, mais especificamente – em nossa disciplina –,
da geografia pragmática e voltada para o planejamento. A geografia
crítica, no final das contas, foi aquela – ou, mais propriamente, aquelas,
no plural – que não apenas procurou superar tanto a geografia
tradicional quanto a quantitativa, como principalmente procurou se
envolver com novos sujeitos, buscou se identificar com a sociedade
civil, tentou se dissociar do Estado (esse sujeito privilegiado naquelas
duas modalidades anteriores de geografia, a tradicional e a pragmática)
e se engajar enquanto saber crítico – isto é, aquele que analisa,
compreende, aponta as contradições e os limites, busca contribuir par
um projeto de autonomia – nas reivindicações dos oprimidos, das
mulheres, dos indígenas, dos afro-descendentes e de todas as demais
etnias subjugadas, dos excluídos, dos dominados, dos que ensejam criar
algo novo, dos cidadãos em geral, na invenção de novos direitos.
Os primórdios da geografia crítica no Brasil, a nosso ver, enraizaram-se
em dois elementos principais. Primeiro, a influência e os subsídios
128
Ensaios de geografia crítica
oriundos do Primeiro Mundo e, em especial, da França – o nosso
grande farol até inícios dos anos 1980. Segundo, e principalmente, a
luta contra a ditadura militar e, ao mesmo tempo, contra o projeto de
capitalismo dependente e associado, contra a ideologia da guerra fria e
os seus tristes reflexos na repressão policial, nas torturas, no
cerceamento do pensamento crítico etc.
Ao contrário do que se pensa (se é que quem crê nisso pensa!), a
geografia crítica no Brasil – como também na França, segundo o
depoimento de Yves Lacoste1 – não se iniciou nem se desenvolveu
inicialmente nos estudos ou teses universitários. Tampouco no IBGE e
muito menos nas análises ambientais ou nas de planejamento. Ela se
desenvolveu, a partir em especial nos anos 1970, nas escolas de nível
fundamental (de 5a à 8a séries) e principalmente no ensino médio, o
antigo colegial ou 2o grau. E também, cabe reconhecer, em alguns
pouquíssimos cursinhos pré-vestibulares que, até inícios dos anos 1970,
tinham um perfil bem diferente daquele que é praticamente exclusivo
hoje. Ao invés de serem fábricas que apenas massificam os alunos e
visam lucros, eram, em alguns poucos casos, redutos de leituras e
discussões de obras críticas. Eram espaços de contestação e livre
discussão – inclusive de filmes por vezes censurados, venda de jornais
alternativos, peças teatrais que alguns grupos apresentavam
especialmente para os professores e alunos etc. Eu mesmo tive o
privilégio de discutir em seminários num cursinho, em 1969, obras
como Geografia do Subdesenvolvimento (de Yves Lacoste), Panorama
do mundo atual (Pierre George), Capitalismo e subdesenvolvimento na
América Latina (Gunder Frank), Formação do Brasil contemporâneo
(Caio Prado Jr.), Formação econômica do Brasil (Celso Furtado),
Manifesto do Partido Comunista (Marx e Engels) e outras.
A geocrítica no Brasil, portanto, se iniciou como um esforço, por parte
de alguns docentes, em superar (o que não significa abandonar
totalmente) a sua tradição, a sua formação universitária, aquilo que as
universidades diziam que “deveria ser ensinado”. Esses professores de
geografia procuravam suscitar nos seus alunos a compreensão do
1
Cf. o texto desse autor – “O ensino da geografia” –, disponível na rede in:
http://www.geocritica.hpg.com.br/geocritica04.htm
129
José William Vesentini
subdesenvolvimento (a importância, nos anos 1970, do livro Geografia
do subdesenvolvimento de Yves Lacoste foi enorme, embora esse tema
incorporasse também outros autores e obras significativos da época:
Paul Baran e Paul Sweezy, Harry Magdoff, Teotônio dos Santos, Rui
Mauro Marini, André Gunder Frank etc.), ligando esse tema com o
sistema capitalista mundial e as suas áreas centrais e periféricas. Eles
procuraram também enfatizar a questão agrária do Brasil, a questão da
distribuição social da renda (um tema recorrente no nosso pensamento
crítico desde os anos 1970), a questão da pobreza e da violência
policial. Eles – esse pequeno grupo de professores do ensino médio,
principalmente, os verdadeiros introdutores da geografia crítica no
Brasil – estavam fazendo tudo isso enquanto os “setores avançados” da
universidade – é evidente que estamos nos referindo aos cursos
superiores de geografia, inclusive na USP – enfatizavam obras/temas
como A organização do espaço, de Jean Labasse, os Pólos de
desenvolvimento, de François Perroux, ou, no máximo, o livro
Geografia ativa, de Pierre George e outros, em suma, temáticas
distantes de qualquer posicionamento crítico e claramente
comprometidas com o planejamento estatal.
Em grande parte, pode-se mesmo afirmar que a introdução da geografia
crítica na academia deveu-se ao “encontro” ou diálogo desses
professores de nível médio (ou de alguns cursinhos pré-vestibulares)
mais engajados e críticos com alguns raros docentes universitários que
também estavam descontentes com toda aquela situação de controle,
repressão e censura que existia na segunda metade dos anos 1960 e nos
anos 70 no Brasil. Só para mencionar um exemplo significativo,
podemos lembrar que, nesse período, sequer se podia falar em
geografia política e muito menos em geografia do subdesenvolvimento
nas universidades. Na própria USP, no Departamento de Geografia
(considerado, com razão, como o “mais avançado” do país nessa época,
o único que não foi subjugado nem pelos cursos de curta duração –
estudos sociais – e muito menos pelo pragmatismo de inspiração norteamericana que rebaixava, ou melhor, travestia, a nossa disciplina de
uma ciência humana e social para uma geociência), havia uma
disciplina chamada “geografia do mundo tropical”, que ocupava o lugar
do estudo do subdesenvolvimento e procurava “analisar” a realidade da
130
Ensaios de geografia crítica
América Latina, da África e de grande parte da Ásia sob esse parâmetro
alicerçado na “Terra”, isto é, o tropicalismo!
Alguns poucos docentes universitários “abriram as portas” da academia
para esses professores críticos e, com uma boa dose de coragem,
aceitaram orientar (ou melhor, conceder a sua assinatura ou aval, pois
em geral eles dominavam esses novos temas menos que certos
orientandos) a elaboração de dissertações de mestrado ou teses de
doutorado sobre assuntos/objetos que até então eram oficialmente
interditados à pesquisa e ao saber geográficos: a autoajuda dos
moradores de bairros populares, os problemas do desenvolvimento
capitalista no campo, análises críticas da geopolítica brasileira e de seus
projetos, a escola e o ensino da geografia como aparatos ideológicos, a
industrialização e a produção do espaço em alguma região específica, o
espaço geográfico como locus (e instrumento) de lutas sociais, as
desigualdades (e a natureza classista) das formas de apropriação social
do espaço etc. A nosso ver, foi a partir desta confluência – entre uma
meia dúzia (se tanto) de docentes universitários com doutorado e um
punhado de (ex-)professores do ensino médio que já estavam
revolucionando há anos esse saber nas salas de aula – que surgiu
oficialmente, enquanto legitimação pela academia, a geografia crítica
no Brasil.
A geografia acadêmica e a AGB
A influência de Gramsci, direta ou indireta, foi notável nessa referida
confluência que oficializou, via academia, a geocrítica no Brasil. O
conceito gramsciano de hegemonia com base cultural foi o leitmotiv
que conduziu esses professores críticos até a pós-graduação, até as
pesquisas e a carreira universitária. É lógico que não foram todos os
professores críticos de geografia que caminharam até a universidade
nos anos 1970 ou inícios dos anos 80. Alguns desses professores foram
presos, torturados e até assassinados nos porões da ditadura. Outros se
engajaram em movimentos de “guerrilha” urbana ou rural. Outros,
ainda, “sumiram” dos grandes centros urbanos, como São Paulo, onde a
repressão policial era mais acirrada e constante, indo trabalhar em
131
José William Vesentini
regiões distantes de onde eram conhecidos, muitas vezes em pequenos
centros urbanos do interior (ou do litoral), temerosos e, ao mesmo
tempo, relativamente desiludidos pelo desmantelamento dos grupelhos
autointitulados revolucionários. Mas uma parcela deles fez esse
referido percurso, procurando gramscianamente “tomar a
universidade”, local a partir do qual teriam uma maior influência
cultural e, consequentemente, política. Foram eles que produziram as
primeiras obras – as primeiras teses ou dissertações, as primeiras
pesquisas acadêmicas –, aquelas que ficaram, em muitos casos sendo
publicadas total ou parcialmente, as quais estão disponíveis em certos
arquivos e bibliotecas e, dessa forma, servem de marco como os albores
(pelo menos no sentido documental) da geocrítica no Brasil. Essa foi a
primeira geração dos geógrafos críticos no Brasil. Convém reiterar,
para evitar mal-entendidos, que estamos nos referindo à geocrítica no
sentido dado a partir dos anos 1970 por Yves Lacoste e outros, na qual
evidentemente existem altos e baixos, trabalhos de excelente nível e
outros nem tanto. Não devemos ser maniqueístas. Não existem apenas
boas pesquisas e ótimos textos nesta nova modalidade de geografia;
pelo contrário, alguns são dogmáticos e até panfletários! Por outro lado,
malgrado a predominância do mnemônico e dos assuntos tratados de
forma compartimentada, existiram excelentes trabalhos na chamada
geografia tradicional, por exemplo os de Pierre Monbeig.
Foi a geração que produziu trabalhos pioneiros de pesquisas e/ou
reflexões críticas acadêmicas nos anos 1970 (principalmente no final
dessa década) e nos anos 1980. Depois dela, veio a segunda geração,
aquela dos anos 1990 e desta primeira década do século XXI, a qual,
em grande parte, é constituída por ex-alunos ou orientandos dessa
primeira geração (com a qual convive). Talvez a principal diferença
entre elas seja que a primeira geração era, pelo menos até o final dos
anos 80, essencialmente gramsciana no sentido de acreditar que estava
promovendo uma revolução (anticapitalista e igualitária) na geografia e
na universidade. A segunda geração, por sua vez (é lógico que toda
regra admite exceções e que existem interpenetrações ou
sobreposições), preocupa-se muito mais com o método, com novos
enfoques para analisar o “espaço”, com o prestígio científico ou social.
Mas essas diferenças são, antes de mais nada, relativas e, desde o
132
Ensaios de geografia crítica
início, já havia determinadas ambiguidades ou aporias nas geografias
críticas tanto no Brasil como no exterior2.
Afirma-se, comumente, que o Encontro de 1978 da AGB teria sido o
marco fundamental da introdução da geocrítica no Brasil. Sem
nenhuma intenção de desmerecer esse importante Encontro, que
ocorreu em Fortaleza e teve inúmeros méritos, acreditamos que essa
interpretação é exagerada e mitificadora. É uma espécie de “discurso
dos vencedores”, isto é, propagado por um punhado de geógrafos, na
época estudantes (de graduação ou de pós-graduação) ou professores
universitários sem grande prestígio (mas com potencial) e
dominados/subordinados institucionalmente pelos medalhões, que
contestaram a supremacia destes e democratizaram a AGB. Este foi,
afinal, o grande significado desse encontro: uma democratização,
mesmo que relativa (como toda democratização afinal, pois a
democracia não é uma forma acabada e permanente e, sim, um
processo de (re)invenção de direitos e que se expande continuamente),
da AGB no nível nacional. A partir daí, deixaram de existir duas
categorias de sócios na AGB nacional: os plenos, os professores
universitários, que podiam ser membros da diretoria; e os demais, que
pagavam suas anuidades mas não podiam concorrer aos cargos
decisórios. A partir desse evento, todos, pelo menos em tese, podiam
votar e ser votados, se inscrevendo na época apropriada – a cada dois
anos – para concorrer aos cargos diretivos dessa associação.
É lógico que esse punhado de “contestadores” (como foram chamados
na ocasião) acabou por dominar a AGB nacional – e talvez até eles
tenham se tornado nos “novos mandarins” – daí a expressão que
empregamos, “discurso dos vencedores”. Mas também o tema
engajamento social, a favor dos explorados/dominados, foi apregoado,
pela primeira vez num Encontro nacional da AGB, tendo como base
(ou como uma espécie de “aval”, pois era uma obra oriunda da França)
o livrete de Yves Lacoste, A Geografia – isso serve, em primeiro lugar,
2
Cf. VESENTINI, J. W. Percalços da geografia crítica: entre a crise do marxismo e o mito do
o
conhecimento científico, publicado nos Anais do 5 Congresso Brasileiro de Geógrafos (São
Paulo, julho de 1984, v. 2, p. 423-33).
133
José William Vesentini
para fazer a guerra3. Mas, a partir dessa democratização da AGB
nacional (pois a AGB-SP, a seção regional de São Paulo da associação,
já havia sido democratizada dois anos antes, desde 1976, e inclusive foi
dela que surgiu a “edição pirata” dessa obra de Lacoste), não se pode
falar em “introdução da geografia crítica no Brasil”, como muitos
fazem. Isso consiste numa espécie de história institucional, algo que
lembra muito os historiadores tradicionais, que denegam as lutas
populares e só promovem as mudanças nas instituições oficiais, além
de desqualificar toda uma ação anterior de centenas de professores de
geografia, alguns dos quais pagaram caro por essa ousadia de
revolucionar o conteúdo geográfico (e a prática pedagógica) nas salas
de aula.
Por outro lado, não se pode exagerar a importância – que todavia existe
– ou a difusão da AGB. Provavelmente, no mínimo 80% do
professorado de geografia do país, a imensa maioria dos geógrafos
portanto (pois o ensino sempre foi e ainda é o grande mercado de
trabalho para os formados em geografia), até hoje nunca sequer ouviu
falar dessa associação4. (Imagine-se, então, em 1978, quando a AGB
era bem mais elitizada!). Apesar de uma louvável (e relativa)
democratização a partir de 1976-78, a AGB ainda prossegue como um
reduto de alguns professores universitários, principalmente dos mais
3
A primeira edição dessa obra, em francês, deu-se em 1976 (e logo surgiu uma tradução
portuguesa, que foi xerocada em São Paulo e originou uma “edição pirata” brasileira, com
milhares de exemplares que, em grande parte, foram vendidos em Fortaleza durante o
Encontro de 1978). Uma edição mais recente, traduzida de uma nova versão ampliada escrita
pelo autor, foi publicada em 1988 pela editora Papirus, de Campinas. Nesta, existe uma
introdução de nossa autoria que realiza uma espécie de “balanço” a respeito do significado
dessa obra na geografia brasileira.
4
Utilizo esse número (e esse raciocínio) com base em pesquisas feitas em 1995-6 por alunos
do meu curso, Geografia crítica e Ensino, nas antigas Delegacias Regionais de Ensino da
Grande São Paulo, quando constatamos que 54% dos professores de geografia na rede pública
a
a
(de 5 a 8 séries e no ensino médio) não são formados nesta disciplina, sendo estudantes
(principalmente de história, ciências sociais ou geografia) ou engenheiros, advogados,
teólogos ou seminaristas, historiadores ou sociólogos etc. A única referência que grande parte
desse pessoal possui, sobre as mudanças na geografia, é a que está contida nos (poucos) bons
livros didáticos, que algumas vezes eles usam para preparar suas aulas (mas não como livrotexto dos alunos, que no máximo possuem um caderno). Se essa é a realidade da Grande São
Paulo, o centro dinâmico da economia nacional, imagine-se então a situação mediana no
restante do país!
134
Ensaios de geografia crítica
jovens (doutores) e não mais apenas dos “figurões” (catedráticos) como
era anteriormente, e pouco tem a ver com a realidade da geografia que
predomina no Brasil e no mundo (e que contém o futuro desta
disciplina), que é a geografia escolar no ensino fundamental e médio.
Não se trata de uma apreciação destrutiva e, sim, de uma mera
constatação, ou, se preferirem, uma autocrítica construtiva no sentido
de se identificar com essa associação e se preocupar com suas
insuficiências. Para sermos sinceros (e autocríticos), temos que aceitar
que a AGB tem uma escassa representatividade entre os próprios
geógrafos – cabe lembrar que o professor de geografia também é um
geógrafo, apesar de sofrer preconceitos por parte dos “técnicos”.
Ademais, apesar de ela ter se tornado mais aberta a partir dos anos
1980, continua não sendo uma instituição de fato democrática. Creio
ser desnecessário lembrar que em seus encontros e congressos –
principalmente na escala nacional, pois existe muito mais abertura em
algumas AGBs locais –, via de regra, existe um verdadeiro
“pensamento único”, com mesas-redondas nas quais, praticamente,
todos têm a mesma ideologia (só existem briguinhas por motivos
pessoais), com os mesmíssimos convidados a cada novo evento para
exporem suas surradas ideias, com uma completa ausência de “outras
falas” em palestras ou mesas-redondas que abordam temas
considerados “quentes”, tais como a reforma agrária e as
transformações no campo, as novas tendências da geografia (aqui
somente os marxistas-leninistas dogmáticos são convidados),
geopolítica, globalização etc. Alguns dizem, sem pejo, que isso é
absolutamente “normal”, pois os “revolucionários” chegaram ao poder
na AGB, o que, com isso, está impedindo que os “reacionários” tenham
voz. Afora a absoluta ausência de um espírito democrático e mesmo
crítico nesse posicionamento (no sentido de crítica como troca de
opiniões, como crescimento mútuo a partir de várias alternativas), não
são apenas os “reacionários” ou os tradicionalistas que são reprimidos.
Até mesmo os pontos de vista libertários são desestimulados a
participar. Toda instituição democrática – vide, por exemplo, os
Encontros da ANPOCS, nas quais sempre há diferentes pontos de vista
sobre temas considerados “quentes” ou controversos –, principalmente
as culturais e acadêmicas, deve ser pluralista e aberta às diferentes
135
José William Vesentini
interpretações. Rosa Luxemburgo, criticando os bolchevistas em 1918,
afirmou com propriedade que “a liberdade de quem pensa igual não é
liberdade. A verdadeira liberdade é para os que pensam de forma
diferente”. Existe, assim, um bolchevismo hegemônico na AGB, pelo
menos em grande parte de sua direção nacional.
É lógico que existem inúmeras razões que justificam (embora não
legitimem) essa elitização da AGB. Estamos falando agora da
elitização, de sua pouca representatividade, pois nada justifica o
bolchevismo em pleno século XXI. Primeiro, existe a necessidade de
suporte das universidades para que as AGBs locais – que, afinal, são a
base da nacional – possam existir: elas, em geral, inclusive a de São
Paulo, na qual a nacional está ancorada, mal conseguem pagar sozinhas
a conta do telefone ou do provedor da internet (imagine-se, então, o
aluguel de alguma sala); e tanto os diretores quanto os funcionários são
professores ou estudantes que realizam voluntaria e gratuitamente essas
tarefas. Temos, aliás, que elogiar o trabalho voluntário e gratuito de
todos os que contribuem para manter essa associação, que sem eles
deixaria de existir. Mas não há porque esconder que a maioria dos
estudantes que colabora acaba sendo manipulada, é apenas mão-deobra barata para que alguns poucos professores universitários
prossigam com sua doutrinação marxista-leninista. Depois, há o
excesso de trabalho e os baixíssimos salários percebidos pelos
professores do ensino fundamental e médio no Brasil, os quais, por esse
motivo, não têm tempo nem o mínimo de recursos financeiros
necessários para pagar as anuidades e frequentar assiduamente as
assembléias e os encontros da AGB. Mas esses fatores atenuantes, se
em parte justificam o elitismo (isto é a AGB como reduto de alguns
poucos professores universitários e, no fundo, uma instituição
desconhecida pela imensa maioria dos geógrafos), de maneira alguma
justificam o bolchevismo, principalmente após a crise do marxismo e
do socialismo real, após a constatação da total ausência de democracia
– ou mesmo de qualquer eficácia econômica sob o ponto de vista do
bem-estar da imensa maioria da população – nesses países que
seguiram os ensinamentos do marxismo-leninismo. Ademais, confundir
a AGB com a geografia do Brasil, como fazem aqueles que divulgam a
ideia de que o Encontro de Fortaleza teria sido o “deflagrador” da
136
Ensaios de geografia crítica
geografia crítica no país, é não enxergar a realidade, é confundir o todo
com uma pequena parte.
A geografia educativa
Já vimos que foi a partir da atividade educativa que a geocrítica se
iniciou e se desenvolveu no Brasil. Daí, ela se expandiu até a atividade
de pesquisas nas universidades, em especial na pós-graduação. Muitos
cometem o equívoco de identificar a geografia escolar com o conteúdo
dos livros didáticos, o que é um viés unilateral e, portanto, deformador.
Nessa ótica, surgiram determinados trabalhos, principalmente algumas
dissertações de mestrado defendidas nos anos 1990, que afirmaram que
a geografia escolar crítica no Brasil teria nascido ou com o livro
Estudos de Geografia, de Melhem Adas, cuja primeira edição saiu no
final de 1972, introduzindo nos compêndios da disciplina uma vertente
geográfica inspirada em Pierre George, ou com a nossa obra Sociedade
e espaço, originalmente editada em julho de 1982. A nosso ver,
nenhuma dessas opções é a rigor verídica, embora a segunda seria mais
correta se estivéssemos falando tão somente dos manuais escolares e
não da geografia escolar crítica como um todo. O livro didático é
apenas uma parte da geografia escolar; inclusive, nem é a mais
relevante. Ele é mais ou menos importante de acordo com o lugar e a
conjuntura: será fundamental no caso de professores/escolas que o têm
como base única e inquestionável, como uma “muleta” afinal. Mas ele
será pouco importante no caso, mais comum do que se pensa, em que
os professores/escolas os utilizam como ele deve ser utilizado: como
um complemento, como um material didático de apoio ao professor e
não como o definidor de toda a atividade educativa5.
Para mencionar a minha experiência pessoal, pois lecionei geografia
nas escolas fundamentais e médias desde que ingressei no primeiro ano
da graduação, no início de 1970 (a falta de docentes desta disciplina era
e ainda é imensa aqui em São Paulo), portanto, muito antes de publicar
o meu primeiro livro didático, já elaborava textos ou traduzia/adaptava
5
Cf. MOLINA, O. Quem engana quem? Professor versus livro didático. Campinas, Papirus,
1987.
137
José William Vesentini
outros, de autores variados e que em sua maioria sequer eram
mencionados nos departamentos de geografia das universidades:
Lacoste, Kropotkin, Brunhes, Gunder Frank, Magdoff, Sartre, Simone
de Beauvoir, Baran e outros, a respeito do capitalismo e do “socialismo
real”, do sistema capitalista mundial, do movimento feminista e as
conquistas das mulheres no mundo e no Brasil, dos movimentos sociais
urbanos, da geopolítica mundial etc.
Lembro, em especial, de duas experiências marcantes na minha carreira
docente no ensino médio: o COE (Centro de Orientação Educacional,
uma escola particular no bairro da Lapa, São Paulo, que virou uma
cooperativa dirigida pelos próprios professores) e o curso supletivo do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema.
Lecionei naquele primeiro colégio, de 1973 até 1977 (tendo como
grande parceiro Gumercindo Milhomem), e no sindicato, de 1974 até
1976 (tendo como grande companheiro “Toninho” Pavanello). No
COE, em primeiro lugar, nós redefinimos todo o conteúdo da geografia
escolar – inicialmente, em 1973, tentamos usar livros didáticos,
especialmente aquele primeiro de Melhem Adas recém-lançado na
época, mas depois concluímos que eles eram inadequados para a nossa
“proposta gramsciana” e passamos a só trabalhar com textos
especialmente elaborados em função da realidade dos alunos e dos
novos temas que abordávamos. Em segundo lugar, também mudamos a
relação professor/aluno e a própria organização espacial da sala de aula.
Abolimos as aulas expositivas e só trabalhávamos com leituras de
textos (alguns com mapas e gráficos, que deviam ser interpretados),
debates, dinâmica de grupos e estudos do meio. Chegamos levar todos
os alunos para uma praia em Cananéia, no litoral de São Paulo, ficando
lá uma semana inteira realizando um estudo de campo interdisciplinar
que envolvia as marés, os recursos naturais e os problemas ambientais
locais, a economia e a população (valores, cultura, demografia) de uma
comunidade de pescadores, além da história oral e documental do
lugar. Orientamos os alunos nos levantamentos sobre mendigos e
população de rua no bairro da Lapa, sobre os problemas ambientais e
de moradia nesse bairro etc. Por sinal, tudo isso incomodava alguns,
que denunciaram o colégio como “subversivo”, e o antigo DOPS, a
polícia política da época, dirigida em São Paulo pelo delegado138
Ensaios de geografia crítica
torturador Fleury, duas vezes invadiu o colégio e prendeu para
interrogatório alguns professores (aqueles que, por azar, estavam lá
naquele momento), além de ter roubado equipamentos da nossa gráfica
(nossa aparelhagem para imprimir textos e apostilas, inclusive com
cores). Por iniciativa minha, reorganizamos o espaço das salas de aula:
abolimos o quadro-negro, a mesa do professor e as carteiras individuais
dos alunos e no seu lugar colocamos algumas mesas redondas, para os
alunos ficarem permanentemente em grupos – cada um olhando para os
outros ao invés de todos olharem para o professor ou para o quadronegro – e, com frequência, abríamos uma imensa mesa-redonda na sala
para realizar algum debate. Quanto ao Sindicato dos Metalúrgicos,
onde lecionei em cursos supletivos durante cerca de 3 anos para alunos
trabalhadores, também introduzimos textos críticos e novos temas
(inclusive o direito de greve e a luta de classes), mas não mudamos a
organização espacial da sala de aula e nem mesmo a relação
professor/aluno, pois cada classe tinha centenas de estudantes e as aulas
expositivas eram uma imposição. No entanto, fomos advertidos várias
vezes pela direção do sindicato (na época pelega) que deveríamos
“maneirar” nas aulas, pois o pessoal do DOPS havia entrado em
contado com o sindicato, dizendo que receberam algumas denúncias e
poderiam até fechar o curso supletivo. Inclusive, foi esse o motivo da
nossa demissão (minha e do outro colega da área, o Pavanello, que há
alguns anos morreu num acidente de carro) pela diretoria pelega do
sindicato; afinal, não ensinávamos “o que deveria” (isto é, nomes de
rios ou de planaltos) e, sim, outros temas “sociais” que não eram
geográficos! Enfim, concluindo esta “digressão” de natureza pessoal
(recordando que este texto tem um caráter depoente), gostaria de deixar
claro que essas experiências – em especial, os textos que elaborei nesse
período (coloco na primeira pessoa do singular porque tanto o
Gumercindo quanto o Pavanello, dois importantes companheiros nessas
jornadas, não gostavam de redigir textos e, sim, de lecionar; os textos,
principalmente aqueles com os novos temas, eram de minha exclusiva
responsabilidade) – foram a base para a edição posterior dos meus
primeiros livros didáticos, Sociedade e espaço (de 1982) e Brasil,
sociedade e espaço (de 1984), que, não por acaso, são direcionados
para o ensino médio.
139
José William Vesentini
O parágrafo anterior, quase que biográfico, só tem sentido porque
acredito que isso foi o que ocorreu, mutatis mutandis, com dezenas,
talvez centenas de outros professores de geografia pelo Brasil afora,
alguns anteriormente, desde o final dos anos 1960. Ouvi falar sobre
experiências similares, talvez até mais férteis, aqui em São Paulo
(inclusive em alguns raríssimos cursinhos pré-vestibulares), em Santo
André, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em outras cidades. Não
posso escrever a respeito delas por falta de material de apoio. Mas
acredito que foram experiências desse tipo que, no final das contas,
deram início à geografia crítica no Brasil. Mesmo porque, quando
examinamos a história de vida de muitos dos que produziram no final
dos anos 1970 e nos anos 1980 as obras pioneiras da geocrítica
brasileira, logo percebemos que, via de regra, eles começaram como
professores no ensino médio (ou em cursinhos) e, antes mesmo de
ingressarem na pós-graduação ou na carreira universitária, já
elaboravam textos e abordavam em suas aulas determinados temas que
eram considerados “não-geográficos”.
Quanto aos compêndios escolares, reitero o que já afirmei: que eles não
têm tanta importância assim (inclusive é no seu uso pelos professores
na sala de aula que eles adquirem tal ou qual característica) e que a
incorporação por alguns deles, nos anos 1970, das ideias georgeanas
(isto é, de Pierre George e a sua “geografia ativa”) não significou de
maneira nenhuma uma reviravolta crítica. Foi somente uma renovação
dentro do tradicional, na qual houve a abertura para alguns poucos
novos temas – o planejamento, a conservação dos recursos naturais e o
subdesenvolvimento entendido enquanto um rol de “características” –,
mas que eram assuntos e abordagens ainda não críticos e
comprometidos com o Estado enquanto sujeito, além de reproduzirem
uma visão idílica de sociedade – uma comunidade nacional sem
contradições – típica da geografia chauvinista. Algo, portanto, muito
distante daquilo que, desde o início, foi essencial na geocrítica, ou seja,
a crítica do capitalismo e do socialismo real, a compreensão do
subdesenvolvimento como parte periférica e integrante do sistema
capitalista mundial, a incorporação crítica da geopolítica, a questão
ambiental (e não meramente a “conservação dos recursos naturais”), o
distanciamento relativo frente ao Estado e, principalmente, uma
140
Ensaios de geografia crítica
abertura para as contradições e para os sujeitos sociais (desde o
proletariado até as mulheres, passando pelos moradores, consumidores,
etnias subjugadas etc.) e as suas lutas.
As publicações e a difusão na mídia
A expansão da geocrítica no Brasil também ocorreu no plano das
publicações (revistas acadêmicas e em especial livros) e, pelo menos
em parte, na difusão pela mídia – rádio, televisão, revistas para o
grande público e jornais. Houve um sensível aumento – embora ainda
insuficiente quando comparado à história ou às demais ciências sociais
– nas publicações geográficas não didáticas. No caso das obras
didáticas, ocorreu, a partir do final dos anos 1980, uma progressiva
mudança, com praticamente todos os autores tradicionais passando a
incorporar – algumas vezes de forma indevida e tão somente mecânica
ou imitativa – parte dos conteúdos críticos. Sem dúvida que houve
neste setor um avanço inegável. Mas, coincidentemente ou não, a
vendagem dessas obras no conjunto vem diminuindo bastante e
constantemente com o decorrer dos anos. Isso porque, no tocante às
escolas públicas, verificou-se uma perda de poder aquisitivo das
famílias de baixas rendas, o que implicou num sacrifício do compêndio
escolar – de todas as disciplinas e, em particular, das estereotipadas
como “menos importantes”. Por outro lado, no que se refere às escolas
particulares, tornou-se cada vez mais comum o uso de apostilas
padronizadas elaboradas por grandes redes que vendem as suas
franquias: Objetivo, Positivo, Anglo, Pitágoras etc., que são
essencialmente voltadas para o sucesso no vestibular e acabaram por
dominar cerca da metade das escolas particulares existentes no
território nacional.
Talvez pela primeira vez, pelo menos no Brasil, livros geográficos não
didáticos passaram a ser lidos e até citados por profissionais de áreas
diversas: urbanistas, sociólogos, filósofos, cientistas políticos,
economistas etc. Para mais uma vez mencionar um exemplo pessoal
(afinal esta é uma escrita de natureza depoente), o meu livro A capital
da geopolítica, de 1987 (mas baseado na minha tese de doutoramento,
de 1985, portanto uma obra acadêmica), conheceu sete edições e foi
141
José William Vesentini
lido não apenas por geógrafos, mas também – ou talvez até
principalmente – por urbanistas, cientistas políticos, militares,
historiadores e estudiosos de relações internacionais. Sei disso por
informações de livreiros e também pelos inúmeros convites para falar
sobre o assunto oriundos de departamentos de história ou de ciências
sociais, de seções do IAB, de associações de moradores etc. Mas sem
dúvida que o trabalho pioneiro nesse sentido foi aquele mencionado
livro-manifesto de Yves Lacoste, de 1976, que foi lido e citado por
centenas de profissionais de outras áreas e também por jornalistas
(lembro-me de uma resenha dessa época, assinada por Giles Lapouge,
no sisudo jornal O Estado de S. Paulo, que ocupou duas páginas
inteiras num domingo!). Por sinal, esse livrete de Lacoste, que nem de
longe é sua principal obra, foi provavelmente o trabalho geográfico
(deixando-se de lado publicações não acadêmicas tais como a revista
National Geographic) mais divulgado em todo o mundo desde pelo
menos os anos 1960, tendo sido traduzido e reeditado em dezenas de
idiomas: do inglês ao árabe, do japonês ao alemão, do sueco ao italiano
etc. Depois dele, só o livro A condição pós-moderna, de David Harvey
(de 1989), alcançou tamanha difusão internacional. E a geografia
brasileira passou a publicar muito mais que anteriormente, com o
revigoramento de alguns periódicos já existentes (como o Boletim
Paulista de Geografia) e o surgimento de novos outros (como a revista
Terra Livre e inúmeras outras de seções locais da AGB e/ou de
departamentos de geografia das universidades). Autores que
escreveram sucintos livros de divulgação da geocrítica, como
principalmente Rui Moreira (O que é geografia, de 1980) e Antonio
Carlos Robert de Moraes (Geografia: pequena história crítica, de
1981), alcançaram enormes vendagens e sucessivas reedições. Também
os livros dogmáticos Introdução à geografia – geografia e ideologia,
de Nelson Werneck Sodré (de 1976), e Marxismo e geografia, de
Massimo Quaini (editado no Brasil em 1979), tiveram uma grande
importância na propagação da geografia crítica para o grande público
brasileiro e para os estudantes universitários, pelo menos durante uma
fase inicial que ocorreu de meados dos anos 1970 até o final dos anos
1980. Para os professores de geografia em geral, que afinal são – pelo
menos em tese – os grandes consumidores dessas obras, na medida em
142
Ensaios de geografia crítica
que o grande mercado de trabalho no Brasil para os geógrafos sempre
foi o ensino, duas coletâneas de textos sobre a geografia escolar, de
autores variados (brasileiros e franceses), tiveram e ainda têm uma
grande importância: Para onde vai o ensino da geografia? (editora
Contexto, 1989, organização de Ariovaldo U. de Oliveira) e Geografia
e ensino: textos críticos (editora Papirus, 1989, por nós organizada).
São obras que passaram a ser recomendadas em quase todos os
concursos para professores, que conheceram várias reedições e que
incorporam pontos de vista diferenciados (e às vezes até alternativos) e
refletem bem a natureza pluralista da geocrítica no que se refere ao
entendimento do ensino da disciplina. Depois delas, nos anos 1990 e
nesta primeira década do século XXI, surgiram inúmeros outros livros
que podem ser classificados como geografia crítica, inclusive alguns
sobre as novas perspectivas para o ensino da geografia. Essas obras
mencionadas representam apenas os primeiros livros críticos no Brasil,
no final dos anos 1970 e nos anos 1980.
Um autor que merece um destaque à parte nessa trajetória da geocrítica
no Brasil é Milton Santos. Não tanto pela sua influência nas pesquisas
ou nos trabalhos científicos, muito menos pela sua influência no ensino
da disciplina, mas, sim, pela sua presença marcante na academia (como
um “novo mandarim”) e principalmente na mídia. Ele publicou, em
1978, a obra Por uma geografia nova. Da crítica da geografia a uma
geografia crítica, que, no fundo, pretendeu emular com o mencionado
livro-manifesto de Yves Lacoste e também propugnar uma “nova
geografia”, só que “científica” e “não ideológica” (com uma forte
clivagem entre ciência e ideologia, inspirada em Althusser, que Lacoste
considera sem importância) e que enfatizasse o espaço enquanto
“totalidade”. Mas essa proposta, a nosso ver, é problemática e
representa um atraso em relação à de Lacoste ou mesmo em relação ao
pensamento gramsciano dos professores que já lecionavam uma
geografia crítica anteriormente. Isso devido, em primeiro lugar, a um
ecletismo (não confundir com pluralismo), isto é, mistura ou
sobreposição sem coerência, sem trabalhar a interligação das
perspectivas, da análise sistêmica via ecossistemas com a concepção
kantiana do “espaço como acumulação desigual de tempos”, com a
ideia hegelo-marxista de totalidade (entendida pelo viés althusseriano,
143
José William Vesentini
que afinal de contas é stalinista), com certo cientificismo (separação
rígida entre ciência e ideologia, na pretensão de “fundar” uma geografia
científica ou uma espaciologia) e com visível flerte com determinadas
ideias terceiro-mundistas panfletárias. Em segundo lugar, devido à falta
de engajamento e de sujeitos sociais, além das ambiguidades na noção
de espaço, que se torna fetichizado. Se Lacoste escreveu a sua obra em
face do maio de 1968 na França e como uma análise/denúncia da
importância do raciocínio geográfico para a guerra do Vietnã, tendo
como interlocutores os cidadãos em geral, pensando em contribuir para
a expansão dos direitos democráticos (entre os quais ele incluiu o
“saber ler os mapas” e “conhecer o espaço geográfico para nele atuar
mais eficazmente”), Santos, por sua vez, não soube muito bem a quem
se dirigir e com um viés positivista propôs uma “nova ciência” –
inclusive sugeriu o termo espaciologia – que enfocasse o espaço
enquanto sujeito (sic) e como totalidade (ou melhor, como formação
sócio-espacial, inspirada na leitura althusseriana de formação sócioeconômica; Althusser afirma que essa formação tem instâncias – a
econômica, a política e a ideológica – e Santos nela acrescenta a
“instância espacial”).
É evidente que tal proposta teórico-metodológica não poderia ter
grande aplicabilidade nas análises de fato críticas, ou mesmo nas
pesquisas engajadas (que, em alguns casos, não são críticas), pois quem
estuda, por exemplo, as lutas pela terra no meio rural tem que
privilegiar os sujeitos sociais envolvidos nos conflitos e não uma
espaciologia abstrata; quem estuda a questão da moradia nas cidades
tem que privilegiar os movimentos sociais urbanos – ou então a política
estatal – em contraposição aos interesses imobiliários; e quem estuda as
fronteiras ou o território tem que buscar os atores e os seus
instrumentos (inclusive ideológicos) que (re)construíram esses objetos
e não ficar regurgitando a respeito do espaço enquanto totalidade. Por
isso, autores como Foucault (nas relações entre espaço e poder e no
entendimento deste como uma rede e não uma pirâmide, como algo
mais amplo que o Estado) e Lèfebvre (no entendimento do espaço
produzido pelo capitalismo e pelas lutas sociais), principalmente, além
de outros (Lipietz e Francisco de Oliveira, na questão regional, José de
Souza Martins, na análise dos sujeitos do meio rural brasileiro, Claude
144
Ensaios de geografia crítica
Raffestin, na redefinição de conceitos como território/territorialidade,
espaço/espacialidade etc.), foram e são muito mais importantes nos
trabalhos acadêmicos da geocrítica brasileira – em especial, nas
geografias política, social, regional, demográfica, urbana e agrária – do
que a espaciologia de Milton Santos. Este, no final das contas, só
acabou produzindo uma meia dúzia de discípulos bem comportados e
pouco criativos, que recolhem informações ou dados estatísticos sobre
temas “novos” (telecomunicações, aeroportos, hotéis, sistema bancário
etc.) e tão somente os reproduzem acompanhados de frases
estereotipadas extraídas do mestre (tais como “este espaço manda e
aquele obedece”, “isto é um fixo e aquilo é um fluxo” ou “o território é
desigualmente apropriado”), sendo incapazes de engendrar qualquer
tese ou mesmo qualquer ideia nova a respeito do assunto abordado.
Pode-se exemplificar isso com o último livro de Santos, uma
publicação praticamente póstuma, O Brasil, território e sociedade no
início do século XXI (editado em 2001 em co-autoria com Silveira,
além da ajuda de inúmeros estagiários, que receberam bolsas de
iniciação científica durante anos e fizeram levantamentos bibliográfico
e de dados, além de resenhas de livros e teses). É o mais ambicioso de
todos os trabalhos da espaciologia: os autores sugerem na introdução
que ele já nasceu como um clássico comparável às obras de Caio Prado
Júnior, Celso Furtado e Florestan Fernandes (sic). Essa obra representa,
com perfeição, a incapacidade da espaciologia em produzir qualquer
trabalho importante ou mesmo criativo. Existe nas 473 páginas dessa
obra um amontoado de dados estatísticos, cartogramas e informações
descritivas, que podem ser facilmente obtidos por qualquer pessoa em
almanaques ou anuários especializados (inclusive na internet) – sobre a
rede bancária no Brasil e sua localização no território, os aeroportos, as
redes de transportes, as refinarias de petróleo e os dutos, os shoppingcenters, os telefones e computadores etc. – e nenhuma tese ou ideia
nova a respeito do significado disso tudo, apenas a constante repetição,
em cada capítulo, de clichês ou frases estereotipadas do seguinte tipo:
“alguns espaços mandam” (o Sudeste, especialmente São Paulo) e
outros “obedecem”, “o território é desigualmente apropriado”, “o lugar
é continuamente extorquido” etc. Não existe nenhuma análise dos
sujeitos, das classes ou grupos sociais, e nem mesmo qualquer
145
José William Vesentini
referência às lutas e conflitos ou aos projetos que (re)constroem o
espaço ou o território. É uma obra que lembra muito aqueles longos
artigos tradicionais do IBGE, editados na revista brasileira de
geografia nos anos 1950, 1960 e parte dos anos 1970, sobre a atividade
industrial, as cidades grandes e médias, os estabelecimentos
agropecuários etc., nos quais nunca havia uma explicação geográficocientífica e, sim, um acúmulo de informações e dados estatísticos,
sempre acompanhados de cartogramas que mostravam a distribuição do
objeto estudado no território nacional. A única diferença é que este
livro procurou “sintetizar”, ou melhor, abordar na mesma obra todos
aqueles temas – e alguns outros – que as publicações do IBGE
enfocavam separadamente. Mas, no fundo, eles não estão integrados no
livro e, sim, divididos em capítulos distintos nos quais sempre é
repetida ad nauseam a retórica pseudo-crítica de que o “território é
apropriado desigualmente”, que a “guerra fiscal é uma guerra de
lugares” (e não de sujeitos sociais) e que existem “áreas que mandam”
(ou exploram) e outras que são “subordinadas”.
Antes que algum desinformado imagine que estamos negando que o
território é “desigualmente apropriado” ou que existem regiões mais e
outras menos desenvolvidas – pensando-se não somente em termos de
localização de indústrias ou de shopping-centers e, sim, de padrão de
vida dos habitantes (algo meio negligenciado no livro) –, gostaria de
lembrar que essa é uma velha discussão das ciências sociais (desde,
pelo menos, Marx e já abordada por geógrafos do passado como
Kropotkin e outros) e que o pensamento crítico, em todas as suas
vertentes, sempre reprochou essa interpretação conservadora de que
uma região (ou lugar, ou mesmo país) explora outras. Isso porque essa
ideia implica num fetiche do espaço, que passa a ser visto como um
“sujeito”. Ela omite as relações sociais de dominação e faz o jogo dos
dominantes ao espacializar ou reificar uma atividade inter-humana. O
próprio Marx, autor que teoricamente serve de alicerce para esse tipo de
raciocínio panfletário, citado várias vezes na obra (sempre com frases
descontextualizadas), já afirmava que a exploração é essencialmente
146
Ensaios de geografia crítica
social e nunca espacial6. É lógico que ela se manifesta ou se concretiza
no espaço, mas é produto de relações sociais. Não é por acaso que as
elites ou as oligarquias regionais dessas áreas consideradas atrasadas se
identificam plenamente com esse discurso pseudo-crítico – do tipo, por
exemplo, deste raciocínio simplista encontrável dezenas de vezes com
ligeiras alterações no livro: “Se São Paulo, que é apenas um estado,
possui 30 aeroportos – ou shopping-centers ou universidades –, por que
o Piauí, que também é um estado, só possui dois?”. Existe aí uma
entidade mitificada, o território dos estados, que acaba sendo mais
importante que os cidadãos. Em nenhum momento do livro se mostra
que São Paulo tem cerca de 25% da população nacional e o Piauí
apenas 1,5%, Roraima 0,2% e Tocantins 1,5%. Mas, a todo momento,
se repete que São Paulo tem 61 shopping-centers (em 1999), o Rio de
Janeiro 23 e, em contrapartida, nos estados nordestinos e nortistas os
shopping-centers são restritos a algumas capitais ou áreas
metropolitanas7. Ou que, na “região concentrada” (o Centro-sul),
existem 72% da rede bancária do país e uma agência bancária para cada
142,4 quilômetros quadrados, algo 126 vezes maior do que essa mesma
densidade na região Norte8. Uma bobageira, pois qualquer estudante de
ensino médio um pouco perspicaz irá recordar que o Centro-sul do
Brasil concentra mais de 65% da população nacional e que a região
Norte, com apenas 5% desse total possui uma extensão territorial
gigantesca, o que torna óbvia essa densidade bem menor de agências
bancárias por Km2.
Existem, sim, desigualdades regionais – por sinal, perceptíveis e
importantes – no Brasil, mas esse tipo de discurso que nivela todos os
Estados, que substitui a análise das desigualdades sociais por
comparações simplistas entre unidades da Federação, que fetichiza os
territórios estaduais e as regiões – as quais, no fundo, são uma ficção,
uma construção dos políticos ou do investigador – nada revela de novo
6
Para evitar uma enorme digressão, no final deste texto incluímos um adendo no qual se
discute com mais detalhes essa questão do sujeito nas relações de exploração e dominação –
se regiões ou classes/grupos sociais.
7
Cf. SANTOS, M. e SILVEIRA, M. L. O Brasil. Território e Sociedade no início do século XXI. Rio
de Janeiro, Record, 2001, p. 151-2.
8
Idem, p. 188.
147
José William Vesentini
(pelo contrário, esconde muita coisa) e nada tem de crítico. Esse
raciocínio ideológico acaba por encobrir a dominação social autoritária
(que
normalmente
acompanha
qualquer
situação
de
subdesenvolvimento), criando um “inimigo” a ser combatido por todos
(isto é, as “regiões mais desenvolvidas”), igualando dominantes e
dominados, as elites regionais e a imensa maioria da população. Não
por acaso, esse tipo de discurso conta com a total adesão das
oligarquias regionais na medida em que implica na reivindicação de
mais investimentos para a “região explorada”, mais verbas que no final
das contas, vão ser apropriadas por essa elite. Observe-se, ainda, que
existe um sujeito implícito nesse tipo de discurso – o Estado,
naturalmente –, que seria o ator encarregado de “corrigir (de cima para
baixo) os desequilíbrios territoriais” através de uma realocação dos seus
gastos (que, logicamente, originam-se nos impostos pagos em especial
pelos cidadãos das áreas mais ricas e populosas, os quais nunca são
consultados ou sequer auscultados nesse raciocínio autoritário).
Entretanto, é inegável a importância que Milton Santos teve na difusão,
através da mídia, da geocrítica brasileira. Que eu saiba, ele foi o único
geógrafo a sair nas páginas amarelas da revista Veja, a ser longamente
entrevistado em praticamente todos os programas importantes da
televisão e também por todos os principais jornais e revistas do país, a
escrever periodicamente colunas na página 3 do jornal Folha de S.
Paulo etc. Ao seu redor, criou-se um grupo com ramificações em todo
o território nacional (e até no exterior – por exemplo, na Argentina) que
constantemente o promovia. Foram realizados, na primeira metade dos
anos 1990, vários encontros ou seminários internacionais sobre a nova
ordem mundial ou sobre o novo mapa-mundi, com subsídios oriundos
do CNPq e de outros órgãos públicos de financiamento (nos quais
Santos e o seu grupo sempre tiveram um grande poder), sendo
convidados vários importantes geógrafos franceses e norte-americanos
e, indefectivelmente, ele era designado para ser o conferencista da
abertura, a grande estrela do evento. Esse entourage conseguiu até – e
essa foi a verdadeira “pedra de toque” de toda a estratégia de promoção
da sua figura e, por tabela, de todo o grupo – forjar uma imagem sua
148
Ensaios de geografia crítica
como “refugiado esquerdista” da ditadura militar9 e, principalmente,
convencer a mídia brasileira que o então recém-criado e desconhecido
prêmio Vautrin Lud, que Santos ganhou em 1993, era uma espécie de
“prêmio Nobel da geografia”. Enfim, a partir dos anos 1990, pouco a
pouco a figura de Santos e a geocrítica brasileira passaram a se
confundir na mídia. Isso nunca ocorreu no plano da realidade – isto é,
das pesquisas acadêmicas, das teses e das obras publicadas – e muito
menos na consciência da maior parte dos geógrafos, em especial do
professorado. Mas sem dúvida que ocorreu na mídia e, por conseguinte,
na compreensão de boa parte do público e até dos profissionais de
outras áreas. Eu mesmo há alguns anos ouvi uma pergunta-afirmação,
feita por um jornalista que fazia doutorado na USP e lecionava no
departamento de jornalismo de uma universidade federal num estado
sulino, se foi depois e devido a Milton Santos que a geografia deixou
de ser uma disciplina descritiva e voltada para a memorização de
nomes de capitais ou de rios... E, também há alguns anos, um professor
universitário de geografia de um país latino-americano me enviou um
e-mail solicitando ajuda no levantamento das obras de Santos (e apenas
dele) para que ele pudesse escrever um artigo sobre a “história da
geografia crítica no Brasil”...
Resta apenas avaliar se essa identificação da geocrítica brasileira com a
figura do Milton Santos, operada através da mídia, foi positiva ou
negativa. Talvez tenha sido positiva, na medida em que contribuiu para
ampliar, embora não muito, o espaço da geografia nos meios de
comunicação de massas. Mas talvez tenha sido negativa, na medida em
que obliterou outras falas, outros caminhos e alternativas diferenciadas,
sugerindo uma homogeneidade onde sempre houve pluralidade e uma
rica complexidade. Em todo o caso, devemos lamentar a sua morte
prematura em junho deste ano (2001), num momento em que ele estava
9
Uma imagem, a rigor, maquiada, pois, até o golpe militar de 1964, Santos foi muito ligado a
José Aparecido, uma das figuras-chave do governo populista e direitista de Jânio Quadros. Ele
se auto-exilou na França por conveniência e não devido a qualquer perseguição séria por
parte dos órgãos de repressão. Ademais, só podemos lamentar nossa cultura subdesenvolvida
que transforma em “heróis” aqueles que, no pós-64, saíram do país e viveram durante algum
tempo no Chile, em Cuba ou na França, pois quem de fato contribuiu na luta contra a ditadura
militar foram os que permaneceram e continuaram a atuar apesar de todos os riscos.
149
José William Vesentini
numa grande efervescência intelectual. Pois, bem ou mal, ele sempre
buscou incorporar novos temas ao discurso geográfico e,
indiscutivelmente, teve o mérito de acompanhar as mudanças que
ocorreram nos últimos anos e décadas no espaço mundial e no território
brasileiro. Que ele descanse em paz e que, mesmo sem sua importante
contribuição, as geografias críticas do/no Brasil prossigam neste seu
itinerário de revolucionar o ensino da disciplina, de abordar/incorporar
novos temas e de realizar novos – de preferência de forma inovadora e
original, além de comprometida socialmente – estudos e pesquisas.
ADENDO – A POLÊMICA SOBRE O ESPAÇO COMO SUJEITO
Os comentários que fizemos sobre a obra de Milton Santos – em
especial, sobre o livro póstumo – demandam uma discussão mais
detalhada sobre o que alguns geógrafos denominam fetiche do
espaço10. Ou seja, o espaço visto não apenas como condição e
expressão material das relações sociais, mas como um sujeito, um ator
nos processos históricos. Trata-se de uma interpretação oriunda do
marxismo-leninismo – acredito que a sua origem remonta ao livro de
Lênin, Imperialismo, etapa superior do capitalismo, de 1917, que já
analisamos num escrito anterior11. Cabe apenas recordar que esse livro
foi escrito basicamente como contraponto à social-democracia de
Kautsky e com o nítido propósito de legitimar a “tomada do poder” por
um partido supostamente marxista num país considerado atrasado, a
Rússia, o qual, para Marx, não era ainda, devido ao fraco
desenvolvimento de suas forças produtivas – e, consequentemente, à
reduzida proporção do proletariado na população total –, um candidato
a transitar do capitalismo ao socialismo. Nesse livro, Lênin, mesmo
sem o dizer ou talvez perceber, contrariou as ideias de Marx (alguns
10
Cf. VILLENEUVE, P. Y. Classes sociais, regiões e acumulação do capital. In: Seleção de
Textos n. 8, AGB-SP, 1981, p. 1-20.
11
Cf. VESENTINI, J. W. Nova Ordem, Imperialismo e Geopolítica Global. Campinas, Papirus,
2003.
150
Ensaios de geografia crítica
dogmáticos dizem que “superou” ou “enriqueceu”) sobre a exploração
social, e sugeriu que existiria uma exploração entre Estados nacionais,
ou seja, entre espaços nacionais diferenciados – os países
desenvolvidos ou exploradores (na época, potências coloniais) e os
países periféricos ou explorados. A ideia de nações oprimidas (e não
apenas classes exploradas) é forte nessa obra, bem como a crença –
já ultrapassada pelos fatos – na impossibilidade do capitalismo
prosseguir para além dessa fase, isto é, a fase do imperialismo. Num
trecho do livro, Lênin assinala:
Os monopólios, a oligarquia, a tendência à dominação
em detrimento da liberdade, a exploração de um
número cada vez maior de nações pequenas ou débeis
por um punhado de nações mais ricas ou mais fortes:
tudo isso deu origem a essas características distintivas
do imperialismo, o que nos obriga a qualificá-lo de
capitalismo parasitário ou em estado de decomposição 12.
Essa assertiva contraria frontalmente os escritos de Marx, que, afinal,
foi o forjador da noção de exploração social alicerçada no trabalho vivo
não pago, isto é, na mais-valia. Só existe exploração ou transferência de
mais-valia entre pessoas, entre o trabalho e o capital, afirmou com
clareza Marx, e nunca entre regiões ou entre países. Em suas palavras:
Já vimos que a taxa da mais-valia depende, em primeiro
lugar, do grau de exploração da força de trabalho [...]
Outro fator importante para a acumulação é o grau de
produtividade do trabalho social. [Assim] um fiandeiro
inglês e um chinês podem trabalhar o mesmo número de
horas com a mesma intensidade [...] Apesar dessa
igualdade, há uma enorme diferença entre o valor do
produto semanal do inglês, que trabalhou com uma
poderosa máquina automática, e o do chinês que trabalha
com uma roda de fiar. No mesmo espaço de tempo em que
12
LÊNIN. El Imperialismo, Etapa Superior del Capitalismo, Buenos Aires, Anteo, 1971, p. 153,
grifo nosso.
151
José William Vesentini
um chinês fia uma libra-peso de algodão, o inglês
consegue fiar várias centenas de libra-peso13.
Fica implícito nessa citação que a Inglaterra era mais desenvolvida do
que a China porque tinha uma tecnologia mais avançada – o que, para
Marx, significava maior quantidade de mais-valia relativa e, portanto,
uma maior exploração do trabalhador inglês em comparação com o
chinês – e não devido a uma transferência de riquezas da China para a
Inglaterra. Para Marx, a Inglaterra era mais rica porque produzia
internamente mais riquezas ou mais-valia – e isso mesmo com os
operários ingleses trabalhando a mesma quantidade de horas por
semana que os chineses, ou até mesmo com estes últimos trabalhando
bem mais; só que eles produziriam menos valor devido ao menor
desenvolvimento tecnológico. Assim, para Marx, a exploração do
trabalho é um processo inter-humano, uma relação social e nunca uma
relação inter-regional ou internacional. As pessoas, na verdade as
classes – e não os espaços –, é que são os sujeitos dos processos sociais
e das relações no mundo do trabalho. É exatamente por esse motivo que
a “revolução social”, para esse clássico, deveria necessariamente
ocorrer primeiro nas regiões mais desenvolvidas pela ótica capitalista.
Ou seja, pela ótica marxiana, regiões com maior acumulação de capital,
com tecnologia mais evoluída e, portanto, com maior exploração do
trabalho; não se deve confundir exploração do trabalho com pobreza.
Afinal, de onde Santos retirou esse juízo de que algumas regiões
“mandam” e outras “obedecem” ou que as primeiras exploram as
segundas? Indiretamente foi de Lênin, do marxismo-leninismo pela via
de autores posteriores ao líder bolchevique. Como se sabe, Santos
retornou ao Brasil no final dos anos 1970, após um exílio voluntário no
exterior, e trouxe com ele, através de inúmeras publicações e cursos ou
orientações de alunos, uma visão estruturalista influenciada pelo
marxismo althusseriano (ou seja, de Luis Althusser e discípulos, tão em
moda na Paris da primeira metade dos anos 1970). Sem dúvida que no
Brasil, nos círculos mais enfronhados com as discussões marxistas ou
pós-marxistas, já se havia superado essa leitura empobrecida do
13
MARX, K. O Capital. Livro 1, volume 2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, p. 696704, passim.
152
Ensaios de geografia crítica
marxismo. Alguns intelectuais brasileiros tinham escrito ácidas críticas
ao althusserianismo (Giannotti, por exemplo, que era tido nos meios
uspianos como o “mais proeminente marxista brasileiro”; hoje, ele
afirma ter superado essa sua fase da vida14); também o importante texto
do historiador inglês Thompson, que evidenciou o stalinismo insidioso
que existe na leitura althusseriana do marxismo, era amplamente
conhecido15. Mais ainda, nessa época já trabalhávamos com outros
autores, críticos embora não-marxistas, na geografia brasileira:
Foucault, principalmente, como também Lefort, Castoriadis e outros,
que Santos nunca admitiu no seu esquematismo teórico, provavelmente
porque isso implicaria numa “implosão” do seu edifício conceitual
fechado e alicerçado na ideia de totalidade. Do althusserianismo Santos
incorporou a ideia de totalidade enquanto formação sócio-espacial e o
espaço como uma “instância” dessa sociedade total. Outra grande
influência que sofreu e assimilou na sua obra foi da fase neomarxista de
Henri Lefèbvre, por sinal um crítico de Althusser e um dos poucos
marxistas (depois de Gramsci) que valorizou o espaço na análise do
capitalismo. Lefèbvre, nos seus trabalhos a partir do final dos anos
1960 (ocasião em que deixou de ser o principal teórico do Partido
Comunista Francês, sendo substituído pelo seu desafeto Althusser), não
mais admitia uma “totalidade fechada” e esquematizada, mas isso não
impediu que Santos pinçasse algumas ideias de suas obras para
construir uma espaciologia fundamentada na formação sócio-espacial e
na percepção do espaço como um sujeito. Enfim, Santos aproveitou
uma ou outra coisa desse autor – como a noção de “produção do
espaço” e principalmente a “luta de lugares”, de contradições “do
espaço” e não apenas “no espaço” –, mas sempre encaixando todas
essas noções no seu edifício estrutural, na sua leitura althusseriana de
“instâncias” e de “formação sócio-espacial”.
14
GIANNOTTI, J. A. Contra Althusser. In: Teoria e Prática n.3, São Paulo, 1968; e Certa
herança marxista, São Paulo, Companhia das Letras, 2000. No primeiro texto, o então filósofo
marxista reprocha Althusser por fazer uma leitura cientificista e anti-historicista de Marx
centrada na oposição (que seria estranha para o criador do materialismo histórico) entre
objeto de conhecimento e objeto real. Já no recente livro, o pensador pós-marxista e em tese
pluralista afirma que Marx é apenas um clássico como outro qualquer e que sua leitura do real
cometeu o equívoco de confundir contradição com contrariedade.
15
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
153
José William Vesentini
Uma leitura frágil e equivocada. Não porque denuncia as desigualdades
regionais ou territoriais, algo trivial e teorizado com mais propriedade
pelos filósofos e cientistas sociais desde pelo menos o século XIX (E
mesmo pelos economistas brasileiros que, desde no mínimo os anos
1950, já tinham feito diagnósticos das desigualdades regionais do país
muito mais ricos e operacionais que o amontoado de informações
díspares coletadas por Santos. Basta lembrar da obra de Celso Furtado
de 1959, A operação Nordeste); mas, sim, porque amiúde cai num
discurso meramente prolixo e vazio, inclusive panfletário. Nem tem a
sofisticação do marxismo, no qual supostamente se apóia, porque não
consegue teorizar a transferência interespacial de valor, base da
exploração. Fica apenas no que Marx denominava aparências: tantos
aeroportos, agências bancárias ou shopping-centers aqui nesta região,
outros tantos ali na outra região, um número menor que, dessa forma,
“comprova uma apropriação desigual do espaço”, logo uma exploração.
Simplista, não? Mas é isso mesmo.
Enfim, um quiproquó sobre a hipotética exploração de alguns lugares
sobre outros. Mas exploração é uma categoria social, inter-humana, que
não pode existir entre coisas, entre espaços. É por isso que grande parte
dos pensadores marxistas ou neomarxistas, desde as últimas décadas,
deixou de lado a ideia leninista de “nações exploradas” – ou mesmo de
classes exploradas para os casos dos desempregados, dos sem teto, dos
sem terra etc. Pois, para haver exploração, é necessário existir trabalho
não pago, ou seja, geração de mais-valia. Ninguém é explorado porque
não tem emprego, terra ou capital. Tampouco porque não tem na sua
localidade um aeroporto ou um shopping-center. Por isso a noção de
excluídos tornou-se mais usada para se referir a essa situação – social,
regional ou internacional – de pobreza ou de carência16.
16
Um importante intelectual brasileiro [que nada tem a ver com Santos, exceto por um
grupelho de sequazes em comum] encetou uma crítica à noção de exclusão, argumentando
que todo excluído de uma forma ou de outra é útil ao sistema ou, em outras palavras, a
exclusão seria “uma expressão da contradição do desenvolvimento capitalista” (MARTINS, J.
de S. Exclusão social e a nova desigualdade. S. Paulo, Paulus, 1997). Considero equivocado
esse ponto de vista – devedor da filosofia de Hegel e de seu maior discípulo, Marx – que
sempre parte de uma totalidade imaginada explicando tudo, como algo onipresente e com um
destino pré-fixado, o que implica em desconsiderar as anomalias, o contrapoder que não se
subsome à pretensa “luta de classes”, o contingente e o surgimento do novo. Ademais, esse
154
Ensaios de geografia crítica
A categoria exploração pressupõe trabalho, atividade produtiva,
extração de riquezas, mais-valia enfim, enquanto a noção de exclusão
significa apenas não estar incluído, estar à margem de alguma coisa –
seja do trabalho, do acesso à escola ou à saúde gratuitas e/ou de boa
qualidade, do acesso à moradia ou à terra etc. Essa percepção teórica
mais sofisticada é algo que falta a Santos. Mas, no fundo, ele nunca se
preocupou com isso, pois aparentemente o que objetivava era gerar
impacto, ser promovido na mídia e na academia, publicar dezenas de
livros em pouco tempo e ter uma trupe ao seu redor ajudando na sua
promoção. Um conto de Machado de Assis – um diálogo entre pai e
filho, com conselhos daquele para este – retrata bem o seu objetivo
plenamente alcançado:
O meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo
menos notável [...] Nenhum [ofício] me parece mais útil e
cabido que o de medalhão [...] Sentenças latinas, ditos
históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas,
é de bom-tom trazê-los consigo para os discursos de
sobremesa, de felicitação ou de agradecimento. Melhor
que tudo isso, porém, que não passa de mero adorno, são
as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas
consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual
e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar
os outros a um esforço inútil [...] Não te falei ainda dos
benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona
loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de
pequenos mimos [...] Que Dom Quixote solicite os favores
dela mediante ações heróicas ou custosas [mas] o
verdadeiro medalhão tem outra política. Quanto à matéria
do discurso, tens à escolha: ou os negócios miúdos ou a
metafísica. Mas se puderes adota a metafísica. Um
discurso de metafísica política apaixona naturalmente os
argumento apenas retoma as críticas feitas pela sociologia latino-americana dos anos 1970
contra a ideia de marginalidade, identificada sem mais com a exclusão como se esta última
fosse apenas uma nova roupagem daquela, como se não tivesse pressupostos diferentes.
Longe de ser “um estado, uma coisa fixa e irremediável”, como o autor interpreta, a exclusão
é uma noção ética – no sentido dado por Richard Rorty – que implica em ação afirmativa, em
demanda por novos direitos.
155
José William Vesentini
partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E
depois não obriga a pensar e descobrir. Neste ramo dos
conhecimentos humanos tudo está achado, formulado,
rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória.
Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma
invejável vulgaridade. Foge a tudo o que possa cheirar a
reflexão, originalidade etc17.
17
MACHADO DE ASSIS. Teoria do Medalhão, publicado originalmente in Gazeta de Notícias,
Rio de Janeiro, 1881.
156
Ensaios de geografia crítica
157
A questão da natureza na geografia e no seu ensino*
Uma grande verdade é uma verdade cujo oposto também é
verdadeiro. (NIELS BOHR).
O processo histórico da humanidade como um todo
consiste em uma gradual apropriação da natureza pelo
espírito, a qual encontra-se fora dele, mas também de certa
maneira dentro dele. (GEORG SIMMEL).
I
A natureza é histórica e, portanto, social. A natureza é uma realidade
objetiva independente do social-histórico. Essas duas afirmações
aparentemente contraditórias são verdadeiras, embora parciais se
entendidas isoladamente. Elas se complementam e podemos mesmo
dizer que formam um conjunto complexo, que costumava ser
denominado “dialético”, enfim, um processo contraditório de oposição
e, ao mesmo tempo, complementação. A natureza é histórica enquanto
discurso(s), enquanto percepção pelo conhecimento humano, que
logicamente varia no tempo e no espaço. É histórica também enquanto
*
Texto elaborado com vistas a ser apresentado numa reunião de professores de geografia de
colégios de aplicação de diversas partes do Brasil, a ser realizada em outubro de 1995 e que
acabou não ocorrendo por falta de verbas. O convite que os organizadores fizeram para que
realizássemos uma fala sobre esse tema acabou, portanto, sendo desfeito, mas o texto foi
redigido, após inúmeras leituras e reflexões, e acreditamos que mereça uma discussão por
parte dos geógrafos e, especialmente, dos professores de geografia.
158
Ensaios de geografia crítica
relação com a sociedade, na qual, mesmo influenciando alguns aspectos
do social, ela com frequência é modificada pela ação humana. Mas a
natureza é igualmente uma realidade objetiva, um encadeamento de
processos naturais (ou seja, físico-químicos e biológicos) que possui a
sua dinâmica própria e autônoma. Como realidade objetiva, a natureza
é um complexo que inclusive originou, num certo momento, a vida
humana, que continua a fazer parte dela enquanto organismo que nasce
e morre, que necessita de oxigênio, comida, repouso, que possui, enfim,
um ritmo biológico independente do social apesar de intimamente
interligado a ele.
Justamente o grande problema da ciência geográfica, e em particular do
seu ensino, é o entendimento desse processo contraditório, desse ser e
não ser concomitante da natureza. Para alguns – e isso desde os
clássicos do século XIX, que em sua maioria tinham uma visão
empirista e objetivista do real –, só existe o aspecto material e
autônomo da natureza. Ela seria apenas uma coisa em si, uma realidade
objetiva e à margem do social-histórico. Nesses termos, quer a natureza
seja vista como um palco (ou a “terra”) que o homem vai ocupar, ou
mesmo quer ela seja entendida como recurso para a sociedade moderna,
trata-se de algo pré-definido e cuja objetividade nunca é posta em
questão. Já outros, em contrapartida, vêem somente o subjetivo, o(s)
discurso(s) sobre a natureza, como se ela fosse essencialmente uma
ideologia no sentido mais vulgar dessa categoria. A primeira natureza,
ou natureza original e independente da ação humana, não mais existiria
e, no seu lugar, haveria tão somente uma segunda natureza ou natureza
humanizada, reelaborada pela sociedade moderna. O grande desafio,
aqui, seria o de estudar as contradições da sociedade, sendo a natureza
compreendida como um subproduto destas.
Na primeira interpretação, a empírico-objetivista, a realidade é uma só
(o universo enquanto categoria mais abrangente do ponto de vista das
coisas que existem), mas sem a preocupação com a conceituação de
totalidade ou de globalidade. Seria uma somatória de fenômenos na
qual o importante não é partir do todo e, sim, das partes, analisando ou
até descrevendo cada uma isoladamente e depois, se possível,
realizando sínteses provisórias. E, na segunda interpretação, a
159
José William Vesentini
ideológico-subjetivista, a realidade também é uma só (a sociedade
moderna ou capitalista, com suas ideias sobre universo, natureza,
formação sócio-espacial etc.) e existe uma grande preocupação com a
conceituação de sua unidade, ou melhor, de sua totalidade. O ideal aqui
é partir do todo para se chegar às partes, sendo que uma lógica prédeterminada de totalidade (as contradições do modo de produção
capitalista) é que determina a dinâmica de cada parte e mesmo a da
natureza, que afinal de contas nada mais seria que recurso(s)
instrumentalizado(s) pelo social.
Para superarmos esses dois vieses, temos que absorver o que há de
verdadeiro em cada um, procurando compatibilizá-los e tentando ir
além deles. É o que iremos encetar neste ensaio. Nossa intenção é
mostrar que a natureza é uma realidade objetiva, obviamente que
dinâmica e complexa, e ao mesmo tempo um (ou vários) discurso(s) ou
interpretação(ões). Indo mais além, procuraremos avaliar em que
medida a natureza é e não é social, o que, por um lado, dá certa razão
aos que advogam uma separação ou até oposição entre o natural e o
social-cultural e, por outro lado, também justifica a ideia de uma certa
unidade ou complementaridade entre a sociedade e a natureza. Por fim,
no tocante ao ensino da geografia, justamente o campo no qual essa
problemática se coloca de forma mais aguda, iremos demonstrar que o
ponto de partida não é a concepção de natureza – como normalmente se
pensa – e, sim, a realidade do educando, podendo-se, dessa forma,
enfocar a dinâmica natural desta ou daquela maneira, com ou sem
integração imediata com o social, tudo dependendo do conteúdo a ser
estudado e, principalmente, do nível de desenvolvimento intelectual e
da realidade existencial dos alunos.
II
Que a natureza seja uma realidade objetiva parece haver poucas
dúvidas. Uma realidade extremamente complexa e, provavelmente, até
contraditória em vários aspectos, é certo, mas com sua(s) própria(s)
dinâmica(s) que independe(m) do pensamento ou da ação humanos.
Imaginar o contrário, que a natureza é só discurso ou interpretação,
seria regredir até um idealismo já há muito superado pela história da
160
Ensaios de geografia crítica
filosofia e, em particular, pelos avanços das ciências naturais nestes
últimos dois ou três séculos. A história da ciência nesses séculos pode
ser vista como uma longa narrativa de lutas contra a religião e o
idealismo, como uma afirmação cada vez mais categórica da autonomia
dos fenômenos naturais frente aos ideais humanos. Sabemos dos
escândalos ocasionados pelo desmanche do sistema geocêntrico, pela
teoria da evolução biológica, pelas novas ideias sobre a origem do
universo e da Terra, pela genética com as suas aplicações...
Pode-se argumentar que a ideia de natureza é uma abstração e o que
conhecemos de fato são coisas ou fenômenos isolados, que os cientistas
fazem uso de paradigmas diferentes e até antinômicos de acordo com o
aspecto do real a ser estudado, que nossa interpretação sobre o mundo é
plena de reviravoltas. Tudo isso é correto, ao menos parcialmente. Só
que nada disso elimina o fato segundo o qual a categoria natureza é
essencial para a ciência moderna, que busca cada vez mais abordagens
integradoras – sejam interdisciplinares, transdisciplinares ou até
holísticas – e produz não só teorias e, sim, resultados concretos
incontestáveis.
Alguns afirmam que o estudo de um rio ou de um relevo com sua
estrutura geológica só tem sentido quando o relacionamos com a
dinâmica social, com o uso que o homem faz desses recursos – seja
poluindo o rio e/ou usando suas águas para abastecimento urbano, seja
construindo uma estrada ou um túnel nessa unidade de relevo, ou
explorando algum minério no subsolo. Creio que ninguém discorda que
esse uso é importantíssimo, notadamente no ensino elementar e médio.
No entanto, convém não esquecer que a humanidade só constrói
modernas estradas, túneis ou mecanismos de captação e filtragem de
águas fluviais porque existem estudos científicos sobre o rio em si e
enquanto parte das águas e da sua dinâmica no planeta, sobre os
minérios ou as unidades de relevo em si, como dinâmicas próprias e
autônomas frente à lógica social. O estudo da natureza em si, de
processos naturais em sua autonomia, é condição sine qua non para o
seu uso pela sociedade moderna. Mais ainda, é um pré-requisito
indispensável para se resolver os enormes problemas ambientais
colocados por esse uso de forma intensiva, um dos grandes desafios do
161
José William Vesentini
século XXI. Como afirmou com propriedade o filósofo e cientista
político italiano Norberto Bobbio, sempre é melhor uma análise sem
síntese do que uma síntese sem análise. Alguns geógrafos não
compreendem isso e pensam, de forma simplista, que pode existir uma
síntese sem análises prévias.
A visão de natureza que a geografia herdou e reproduziu no seu ensino
foi a cartesiano-newtoniana, na qual a física é a ciência chave para se
explicar o universo, categoria que nessa leitura se confunde com a de
natureza em seu nível mais abrangente. Daí o estudo geográfico da
natureza ter sido denominado “geografia física” e as escassas tentativas
de abordagens globalizantes – ou de criar sínteses – tinham por base
princípios da física clássica: causalidade simples, analogia, espaço
absoluto, natureza como fenômenos físicos em primeiro lugar, que não
têm vida consciente, mas, quando muito, vida vegetativa ou passiva,
isto é, determinada pelo meio abiótico. No fundo, nem poderia ter sido
diferente, pois a geografia moderna nasceu na época da Primeira
Revolução Industrial, no século XIX, destinada essencialmente, por um
lado, a mapear e descrever territórios para que o emergente Estadonação pudesse controlá-los de forma mais eficaz, e, por outro lado,
destinada a reproduzir uma ideologia nacionalista para as crianças e
adolescentes que cursavam o ensino de massas que se expandia na
época e passava a se tornar obrigatório.
Ocorre que o contexto histórico-social dos nossos dias – a nova ordem
mundial com uma revalorização da questão ambiental, a revolução
técnico-científica com as profundas mudanças que ocasiona na
sociedade moderna e nos seus valores dominantes – exige uma revisão
nessa concepção de natureza. Pouco a pouco, no discurso científico em
geral (e não somente na geografia em particular), a visão cartesianonewtoniana de natureza, na qual os fenômenos físicos constituem a
chave para a sua unidade e dinâmica, vai cedendo lugar a uma visão
mais ecológica, na qual a natureza-para-o-Homem passa a ser entendida
como a biosfera e os processos de vida começam a ganhar terreno nas
explicações da dinâmica e mesmo da unidade dessa natureza em nosso
planeta, que, afinal de contas, é a única que interessa ao estudo da
geografia.
162
Ensaios de geografia crítica
É interessante registrar, sem nenhuma pretensão de estabelecer nexos
de causalidade linear, que essa mudança ocorre paralelamente à
passagem da Segunda para a Terceira Revolução Industrial. De fato, na
Primeira e na Segunda Revolução Industrial os avanços da humanidade
sobre a natureza – a criação de uma segunda natureza, de acordo com
as formulações clássicas de Marx – tinham um forte conteúdo
mecânico: a máquina a vapor como símbolo dos primórdios da
industrialização original, as máquinas elétricas e o automóvel como
símbolos da segunda etapa desse processo industrial. Durante muito
tempo, os notáveis avanços da ciência e da tecnologia moderna, que no
fundo sempre permitiram ao homem libertar-se cada vez mais (embora
nunca totalmente) das amarras da natureza, estiveram bastante
identificados com as descobertas e aplicações da física (e, em segundo
lugar, da química, que alguns epistemólogos dizem ser praticamente
um segmento da física). Isso é válido para o desenvolvimento dos
meios de transportes e comunicações, para o aperfeiçoamento das
máquinas industriais, para as construções de edifícios e outras obras de
engenharia, para o aprimoramento dos armamentos etc. Quando
consultamos qualquer obra a respeito da história da ciência moderna
com ênfase em suas aplicações, com ênfase na tecnologia que gerou,
logo notamos que a maior parte das referências será para descobertas
físicas – da eletricidade à energia nuclear, do estudo da atmosfera e sua
dinâmica aos aviões e satélites artificiais, do estudo dos materiais às
construções ou às explicações sobre o centro da Terra. Desde Galileu
Galilei (e Descartes como o seu “complemento” em nível teórico) até
os “grandes nomes” da ciência do século XX (Einstein, Mach, Bohr,
Heisenberg e outros), o progresso técnico do capitalismo confunde-se,
em grande parte, com as aplicações das descobertas físicas. Não
pretendemos com essa constatação ideologizar a física, o que seria
ridículo frente aos inegáveis avanços que ela suscitou no conhecimento
humano, e, sim, mostrar a sua eficácia para a modernidade e, ao mesmo
tempo, o porquê de sua primazia na visão capitalista de natureza, visão
pragmática e mecânica que entende a natureza basicamente como
recurso(s) e objeto(s) sem vida.
O “novo paradigma” nos estudos sobre a natureza, a respeito do qual
tanto se especula desde as obras de Kuhn e de Capra, provavelmente
163
José William Vesentini
não vai derivar da relatividade ou da teoria dos quanta, como
geralmente se imagina, e, sim, da biotecnologia, em particular da
ecologia e da genética. Não devido a um pretenso equívoco daquelas
duas primeiras teorias – longe disso! – e, sim, em razão de uma maior
aplicabilidade, nos moldes da revolução técnico-científica em
andamento, da abordagem ecológica e da engenharia genética. Cada
vez mais a natureza (repito: natureza-para-o-Homem) deixa de ser vista
como o universo ou como um complexo sistema físico e passa a ser
entendida como um encadeamento de ecossistemas – o que leva até a
biosfera ou, segundo alguns, até Gaia –, como um imenso complexo
vivo no qual o homem pode intervir, não mais apenas fazendo
máquinas ou obras de engenharia, não mais desmatando e/ou
aplainando de forma acelerada e construindo cidades ou monoculturas,
e, sim, agindo de acordo com os princípios da ecologia (controlando
biologicamente as pragas, conservando certos ecossistemas ou
espécimes etc.) e/ou com os princípios da genética (mapeando e
manipulando genes, criando novos organismos e substâncias). Aliás, ao
contrário do que pensam certos militantes ambientalistas ingênuos,
ecologia e genética não se contradizem (sendo uma voltada para a
conservação dos seres vivos e a defesa dos alimentos naturais e a outra
apregoando a modificação dos seres vivos e criando alimentos
artificiais), mas, sim, se complementam no avançar da Terceira
Revolução
Industrial.
A
ecologia,
entendida
como
pesquisa/conservação de ecossistemas e seres vivos em sua máxima
diversidade, é condição básica para o avanço da genética, do estudo de
genomas dos seres vivos e da criação artificial de novos seres vivos ou
organismos geneticamente modificados. E, como veremos a seguir,
ambas são fundamentais para esta nova fase de expansão industrial (ou
pós-industrial, como advogam alguns), que é a revolução técnicocientífica.
A ação do homem na natureza, a partir do advento do capitalismo e da
sua visão pragmática sobre o mundo, sempre foi a de um conquistador
frente aos domínios que anexou. Dominar a natureza foi o lema
básico da modernidade desde no mínimo o século XVII. Neste final de
século e de milênio, começa a haver uma mudança significativa nessa
visão e também, embora de forma mais tímida, nessa ação. Os motivos
164
Ensaios de geografia crítica
para isso são vários: crescente consciência ecológica ou ambiental da
humanidade, que teve como marcos importantíssimos a Primeira
Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente (Estocolmo, 1972) e,
vinte anos depois, a Eco-92 no Rio de Janeiro; o acúmulo de problemas
ambientais (buraco na camada de ozônio, efeito-estufa com o acúmulo
de CO2 na atmosfera, acidentes nucleares e advento novas armas letais
produzidas em massa nos anos 1960 e 1970, intensos desmatamentos
nas poucas reservas florestais ainda originais, crescente carência de
água potável em diversas regiões do planeta, ampliação das áreas
desérticas ou semiáridas em inúmeros lugares etc.), juntamente com a
percepção de que eles não têm uma dimensão meramente local ou
regional, como se imaginava até o início dos anos 70, e, sim, planetária
ou global; e, por fim, a crise da bipolaridade e da Guerra Fria, entre
1989 a 1991, com o advento da nova ordem mundial, na qual a
preocupação dos países ricos com uma hipotética guerra mundial, em
grande parte, desloca-se para os problemas ambientais planetários.
É lógico que essa cada vez mais aguda preocupação dos países ricos
com a questão ambiental planetária não se fundamenta apenas nos
riscos de catástrofes, ou nas possibilidades de empobrecimento da
diversidade biológica e cultural para as futuras gerações, mas tem,
igualmente, um motivo bastante prático: a biodiversidade vem se
transformando num negócio lucrativo (e com um vastíssimo campo de
expansão), com o desenvolvimento da biotecnologia e com todos os
demais aspectos interligados, quais sejam: as indústrias de novos
materiais, as pesquisas biológicas de novas fontes de energia, os novos
remédios e tratamentos médicos com a engenharia genética, a nova
agropecuária com o melhoramento genético de animais e plantas,
inclusive com a futura produção in vitro numa escala gigantesca etc.
Se destruir a natureza foi um princípio essencial da modernidade
nestes últimos séculos, agora o imperativo de a conservar vem cada
vez mais ganhando terreno. Mas não conservar como guardar ou não
usar e, sim, como utilizar de outra forma, como banco de dados
genéticos, como ecoturismo, como reserva de expansão da
biotecnologia. De uma ação semelhante ao de um exército conquistador
que extermina grande parte da população dominada, que procura
165
José William Vesentini
arrasar o terreno e reconstruir tudo, a estratégia da sociedade moderna
frente à natureza passa atualmente por uma transição no sentido de
tornar-se semelhante ao do colonizador que conserva e utiliza as
populações nativas, que procura não eliminá-las e, sim, redirecioná-las
para seus valores e interesses (mesmo que, para isso, tenha também que
fazer transigências ou adaptações de seus próprios valores em função
da realidade do colonizado). É aí que a engenharia genética se encontra
com a ecologia: para manter essa nova expansão com a criação de
novos seres vivos, de novas substâncias resultantes da manipulação
genética, torna-se necessário dispor de organismos selvagens ou
originais, que constituem uma espécie de reserva ou de banco de dados
para as presentes ou futuras necessidades de correções ou
melhoramentos dos organismos já manipulados, os quais sempre
necessitam de proteção do homem, de constantes introduções de novos
genes em função de novas pragas ou agentes patogênicos que
inevitavelmente surgem. Exemplificando, podemos dizer que a
agropecuária avançada, que tem por base a engenharia genética e até
dispensa grandes extensões de solo ou de espaços naturais, que
prescinde mesmo das boas condições naturais, e que, por esse motivo,
representa um novo patamar no domínio do homem sobre a natureza
(no qual se chega até a criar novos seres vivos, algo que até a pouco
era tido como atributo apenas de Deus), na realidade precisa mais do
que nunca de reservas de natureza nativa ou selvagem, de grande
diversidade biológica enquanto condição mesmo de sobrevivência a
longo prazo. Esse fato deixa patente que nunca haverá somente a
segunda natureza, que sempre deve haver reservas de primeira natureza
como elemento indispensável para a sobrevivência da sociedade
moderna e da própria humanidade. No seu limite, como se percebe
hoje, a produção humana de uma segunda natureza necessita e até
depende da existência de reservas da primeira natureza, de ecossistemas
nativos. Daí ser completamente absurda aquela ideia marxista –
infelizmente reproduzida por alguns geógrafos que se dizem críticos –
sobre o final da primeira natureza, ou sua pouca importância na
sociedade moderna, enfim, sobre um pretenso domínio absoluto do
homem frente à natureza original.
166
Ensaios de geografia crítica
Dessa forma, a nossa visão atual sobre a natureza passa por uma
transição no sentido de considerá-la não mais essencialmente como um
sistema físico sem vida e, sim, como um complexo (e um
encadeamento de processos) biológico, no qual logicamente também
entram os fenômenos abióticos ou físico-químicos, mas no qual o
fundamental passa a ser a diversidade orgânica como essência da
permanência e da dinâmica das coisas. De uma interpretação
cartesiano-newtoniana, fundada na causalidade e no espaço e tempo
absolutos, passamos a uma visão ecológica (um encadeamento de
ecossistemas ou paisagens naturais que sempre vivem um equilíbrio
instável) que valoriza bastante a probabilidade e até o acaso (o caos, a
indeterminação, o papel da contingência nas mudanças), que revaloriza
a vida em sua diversidade e onde o espaço e o tempo, categorias
indissociáveis, são normalmente relativizados. Do universo infinito
passamos à biosfera com seus limites tangíveis. Não que isso signifique
que a biosfera deixe de fazer parte do universo, cuja finitude é
constantemente demonstrada, mas com suas características próprias e
talvez até sem paralelo no cosmos, como a verdadeira natureza-para-oHomem enfim.
Isso tudo exige, não o final do estudo geográfico da natureza em si,
como apregoam aqueles que pretendem reduzir tudo ao econômico ou
ao “modo de produção”, e, sim, uma passagem da geografia física para
uma verdadeira geografia da natureza, algo que por sinal já vem
ocorrendo nos últimos anos ou décadas, como comprovam os
estudos/propostas sobre geossistemas, as análises integradoras do meio
ambiente ou de paisagens naturais, a renovada preocupação com a
dimensão temporal nos fenômenos naturais.
III
Isso posto, podemos agora voltar nossa atenção para o ensino da
geografia. Também, aqui, temos que considerar o atual contexto
histórico-social da nova ordem mundial, da globalização e da revolução
técnico-científica. Ensino de geografia para quê? Para formar cidadãos,
afirma-se comumente com certa razão. Mas cidadãos de um novo
mundo no século XXI, no qual o mais importante não é inculcar um
167
José William Vesentini
patriotismo exacerbado (o que a geografia tradicional fazia muito bem)
e, muito menos, fornecer informações (sobre unidades de relevo, rios,
cidades, cultivos etc.) para serem memorizadas ou “assimiladas”.
Tampouco “conscientizar” o aluno, naquela perspectiva de haver uma
consciência “verdadeira” ou “revolucionária” que o professor deveria
transmitir ou ensinar. Tudo isso são valores ou princípios já superados,
de outros momentos históricos ou de outros papéis sociais para a
escola. O mais importante hoje, na escola para a Terceira Revolução
Industrial – e, provavelmente, não haja outro caminho para a
modernidade neste final de século –, é ensinar o aluno a aprender, a
pesquisar, a ter autonomia, pois a reciclagem constante e um novo
papel mais valorizado do conhecimento, que sempre se renova, é uma
característica marcante da nova força de trabalho (e até do cidadão
pleno neste mundo cada vez mais globalizado) sob a revolução técnicocientífica.
O fundamental no ensino da geografia, que se revaloriza com a
globalização atual, é deixar o educando conhecer o mundo em que vive,
desde a escala local até a regional, a nacional e a planetária. Deixá-lo
conhecer o mundo em que vive não significa meramente transmitir
informações e, sim, orientar pesquisas, discussões, interpretação de
bons textos e mapas, elaborar e operacionalizar com frequência
trabalhos de campo (estudos do meio, excursões, visitas a fábricas,
museus, bairros específicos etc.). A grande preocupação do ensino da
geografia, em nível fundamental e médio, não é com a
unidade/dicotomia entre o social e o natural, como insistem alguns (que
no fundo estão apenas levando até as crianças ou adolescentes uma
velha e talvez já superada discussão da geografia acadêmica), e, sim,
com o desenvolvimento intelectual do educando, com o aprender a
aprender sendo mais importante que o conteúdo específico a ser
ensinado. A geografia escolar, cabe recordar, é um instrumento e não
um fim em si no processo de desenvolvimento intelectual dos alunos
do ensino fundamental e médio. Entender isso é básico para se
posicionar frente à questão da natureza no ensino da geografia.
Não existe uma fórmula ou um modelo único de estudo da natureza no
ensino da geografia. Tudo depende do conteúdo a ser ensinado e da
168
Ensaios de geografia crítica
realidade (econômica, social, cultural, psicogenética e até espacial, no
sentido de local onde residem) dos alunos com os quais se trabalha.
Caso estejamos lecionando uma realidade regional, por exemplo – seja
a Amazônia, o Nordeste ou o sul da Ásia –, então, é lógico que teremos
que integrar (e não embaralhar ou fundir) os conteúdos referentes ao
social e ao natural, sem a preocupação em um ter que vir
necessariamente antes do outro, ou que cada uma dessas partes tenha
exatamente 50% do espaço das aulas, o que seria ridículo e artificial na
medida em que o importante é motivar o educando e fazê-lo se
interessar pelo conhecimento dessas realidades e não ficar
reproduzindo no ensino fundamental ou médio as picuinhas dos
departamentos de geografia das universidades (nos quais, normalmente,
há constantes brigas por contratações de novos professores, por maior
ou menor carga horária das disciplinas de geografia física e humana,
que, no fundo, nada mais são que disputas por poder).
Não dá para se estudar o sul da Ásia sem fazer referências às monções e
às chuvas torrenciais, por exemplo, assim como não é possível lecionar
o Nordeste brasileiro sem discutir o clima semiárido e as secas (mesmo
que seja para desmistificá-las enquanto fator explicador para a pobreza
ou as migrações), e tampouco é possível um estudo adequado da
Amazônia sem uma especial atenção para o meio natural com ênfase na
floresta e sua diversidade. Só que esses elementos ou processos naturais
não devem ser necessariamente o ponto de partida desses estudos e,
muito menos, ocupar metade de todo o conteúdo a ser ensinado. Seria
muita ingenuidade ou falta de bom senso negar que os processos sociais
(a luta pela terra e os desmatamentos na Amazônia, os choques
culturais-religiosos e a herança da dominação colonial no sul da Ásia, a
concentração das riquezas no Nordeste e o poderio das oligarquias
tradicionais) são muito mais importantes para a compreensão de todas
essas realidades regionais mencionadas. Mas o estudo dos processos
naturais em si não deve ser omitido, pois ele também possui a sua
parcela de contribuição para o conhecimento dessas realidades.
Já, no caso de estarmos trabalhando com crianças de 5a ou 6a séries, o
ideal é partir do concreto para se chegar ao abstrato, a melhor forma
para deixá-las descobrir ou construir os conceitos básicos da geografia.
169
José William Vesentini
Nesse ensino não tem sentido pretender fundir a parte humana com a
física, pois os conceitos elementares – seja o de coordenadas
geográficas, de mapa, de densidade demográfica, de tipos de clima, de
espaço geográfico, de lugar, de região ou de Estado-nação – são muito
mais facilmente compreendidos quando estudados isoladamente, com
exemplos e, na medida do possível, com experiências ou trabalhos de
campo, e só depois é que podem ser interligados com os demais
aspectos do real. Não se pode fazer sínteses a todo momento, pois antes
delas devem existir análises. Não há nada de incorreto em se estudar a
natureza em si, o clima, por exemplo (com observações das nuvens, da
direção dos ventos, com visitas a estações meteorológicas etc.), ou a
vegetação (inclusive com excursões a bosques ou matas para examinar
as plantas, os solos, a hidrografia local etc.). O importante é, sempre
que possível, estabelecermos relações dos elementos naturais entre si
(numa visão globalizante da paisagem ou do ecossistema) e também
deles com a ocupação humana (real ou potencial); mas existem alguns
momentos em que o estudo ou explicação de um aspecto do real,
isoladamente, torna-se necessário.
A ideia de nunca separar o social do natural é fantasiosa, sem nexo do
ponto de vista científico. Existe o momento de separar e o de unir, o
momento de isolar um elemento para melhor estudá-lo e o de relacionálo com outros fatores, da mesma forma que tanto a análise quanto a
síntese são imprescindíveis ao avanço do conhecimento. E não adianta
ficar repetindo que a “lógica dialética” supera a lógica formal e a
ciência moderna (que a tem como alicerce), pois isso é apenas um
chavão que só foi levado a sério de fato na União Soviética dos anos
1930, na época áurea do stalinismo – e que, por sinal, ocasionou um
enorme atraso no desenvolvimento científico soviético. A dialética não
é nenhuma teoria ou lógica redentora ou messiânica, mas tão somente
uma questão filosófica bastante polemizada na segunda metade do
século XX. Não será a partir dela que iremos reavaliar o estudo da
natureza no ensino da geografia e, sim, em função dos objetivos da
geografia escolar, da realidade dos alunos e dos avanços do
conhecimento científico, o qual não deve ser meramente reproduzido
no ensino elementar e médio e, sim, adaptado, reelaborado em função
da necessidade do educando pesquisar e construir conceitos.
170
Ensaios de geografia crítica
171
José William Vesentini
172
A atualidade de Kropotkin, geógrafo e anarquista*
Piotr Ayexeyevich Kropotkin viveu entre 1842 e 1921. Foi um
moscovita de família rica e aristocrática que decidiu viver
modestamente de seu próprio trabalho – como geógrafo e secretário,
durante alguns anos, da Sociedade Geográfica Russa, como professor,
como jornalista e até como tipógrafo. Sua vasta obra, que procura
incorporar ou integrar determinadas ideias libertárias na geografia, bem
como sua peculiar concepção do que a geografia deveria ser, representa
seguramente um dos principais capítulos ainda não escritos de uma
história crítica do pensamento geográfico. Sem nenhuma dúvida, ele foi
o principal omitido em quase todas as obras que discorreram sobre esta
tradição discursiva. Sua fala e seus inúmeros escritos, via de regra,
foram solenemente ignorados e, assim, silenciados, e isso numa
proporção muito maior do que em relação a Élisée Réclus, seu grande
amigo. Mesmo a “geografia crítica” francesa, que em grande parte
nasceu ao redor da revista Hérodote, buscou recuperar certas ideias de
Réclus – principalmente por ele ter sido francês – e deixou Kropotkin
de lado. E a “geografia radical” norte-americana, que o homenageou
com um número especial da revista Antipode, em 1976, na realidade
incorporou muito pouco seus ideais e proposições, preferindo aquilo
que ele denominava “socialismo autoritário”, ou seja, as teorias
econômicas marxistas e o princípio da planificação no lugar da
autogestão.
*
Artigo originalmente escrito como introdução para uma coletânea de textos de Kropotkin
por nós organizada e publicada pela Associação dos Geógrafos Brasileiros, seção São Paulo
(AGB-SP): Seleção de Textos n.13, Piotr Kropotkin, março de 1986, 80 páginas. Fizemos várias
alterações e acréscimos nesta versão, mas boa parte do texto de 1986 foi mantida.
173
José William Vesentini
Por outro lado, no entanto, esse anarquista russo constitui
provavelmente o geógrafo que, desde Humboldt, recebeu o maior
número de citações – elogios, críticas ou referências – oriundas de nãogeógrafos: inúmeros biólogos, antropólogos, filósofos, cientistas
políticos, sociólogos, militantes políticos de esquerda, escritores etc., de
várias partes do globo, o mencionaram. Juntamente com Proudhon,
Bakunin, Godwin e Stirner, Kropotkin representa um dos cinco grandes
nomes do anarquismo. Ele é sempre exaustivamente analisado nos
trabalhos que abordam as ideias socialistas do século XIX e dos
primórdios do XX. Ao contrário de Réclus, que costuma ser lembrado
apenas de passagem – e nem sempre –, Kropotkin com frequência é
objeto de capítulos inteiros nas obras de autores que analisam o
anarquismo, tais como Daniel Guérin, George Woodcock, Ivan
Ivakumovic, Paul Avrich, I. L.Horowitz, James Joll e vários outros.
Também os estudiosos que trabalharam com as ideias urbanísticas –
como são os casos de Lewis Munford e de Françoise Choay –, que
tratam da metodologia das ciências – como Paul Feyerabend – ou que
abordam a evolução humana – como Ashley Montagu, dentre outros –,
costumam fazer longas referências a esse geógrafo e anarquista que
abordou de forma original essas questões, além de outras, em seus
estudos. Literatos eminentes escreveram sobre Kropotkin: desde Leon
Tolstoi (que influenciou Gandhi) até Noam Chomsky, passando por
autores tão diferentes como Bernard Shaw, Paul Goodman, Oscar
Wilde e Hebert Read, podemos encontrar em seus livros e artigos
considerações elogiosas sobre o “príncipe anarquista”. (Kropotkin
recebeu esse apelido, por parte de alguns biógrafos, devido ao fato de
descender da antiga Casa Real de Rurik, que governara a Rússia antes
dos Romanov; todavia, desde os 22 anos de idade que ele decide não
mais receber auxílio da família, passando a ser autossuficiente e
inclusive contrário às ideias aristocráticas, na medida em que opta por
ser um militante da luta contra as desigualdades sociais e a dominação
social). E as ideias de Kropotkin exerceram uma inegável influência em
vários movimentos populares com ênfase na autonomia, com especial
destaque para as experiências de autogestão na Espanha revolucionária
de 1936-7.
174
Ensaios de geografia crítica
Qual teria sido o motivo dessa exclusão de Kropotkin na geografia? Por
que esse geógrafo (e militante político), que chegou a receber uma
medalha de ouro na Sociedade Geográfica Russa pelas suas
investigações sobre aspectos da geografia física da Sibéria, que até o
fim de sua vida preocupou-se com (e escreveu sobre) o ensino da
geografia, com as relações sociedade/natureza e outros temas
congêneres, acabou sendo marginalizado pela geografia acadêmica em
praticamente todas as suas vertentes? Por que, até mesmo nos últimos
anos e décadas, as análises ditas críticas ou radicais relutam em
incorporar ou recuperar Kropotkin, preferindo normalmente a cômoda
(mas incorreta) atitude de identificá-lo com Réclus, passando então a
falar quase que exclusivamente deste último?
Provavelmente, isso tenha ocorrido porque Kropotkin é difícil de ser
enquadrado, classificado, delimitado nos moldes da epistemologia
tradicional da geografia, seja ela “positivista” ou “dialética” – como
muitos gostam de diferenciar, de forma maniqueísta e simplificadora.
Geografia e anarquismo (ou socialismo libertário), ciência e militância
a favor dos interesses populares (algo que não se confunde com o
ideário de qualquer partido ou burocracia), para Kropotkin, eram
elementos indissociáveis. Já em Élisée Réclus é possível, ou pelo
menos é menos difícil, separar o joio do trigo, isto é, a “ciência” da
“não-ciência”, a geografia do anarquismo. Suas obras libertárias, tais
como o relato sobre a Comuna de Paris de 1871 (da qual participou e
inclusive foi um dos líderes) ou a exposição dos princípios anarquistas,
não são apresentadas como geografia e, de fato, diferem bastante dos
trabalhos geográficos tais como L’Homme et la Terre ou a Nouvelle
Géographie Universelle1. Em Kropotkin, ao contrário, salvo em raras
1
É bem verdade que Réclus, especialmente na obra L’Homme et la Terre (cujo título, por si
só, já representa uma inversão do rótulo que simbolizava o paradigma da geografia
tradicional: a Terra e o Homem), aborda temas avançados para o discurso geográfico da sua
época, tais como a luta de classes, a educação e as ciências, as formas de propriedade, a
colonização e a dominação dos países desenvolvidos em relação aos demais. Todavia, apesar
de Réclus proclamar o seu ideal libertário na introdução e/ou na conclusão das suas obras
geográficas, predomina em L’Homme et la Terre, e principalmente nos 19 volumes da sua
Nouvelle Géographie Universelle, um discurso geográfico separável do anarquismo e na qual
os elementos físicos, em especial as bacias hidrográficas e as unidades de relevo que servem
como seus divisores, têm destaque como agentes definidores das regiões estudadas. Mas esse
175
José William Vesentini
exceções – como em trabalhos de juventude, em particular sobre
geomorfologia; ou na colaboração com Réclus na parte sobre a Rússia na
enciclopédia deste, na qual se procurou respeitar o espírito da obra –, os
aspectos geográficos e os libertários entrelaçam-se, são de fato
inseparáveis. Para ele, a filosofia anarquista, vista como um ser-emconstrução, caminha junto e enleada com a ciência moderna tanto na
perspectiva metodológica quanto na contribuição conjunta para a
libertação da humanidade do reino da necessidade e da opressão de
alguns sobre muitos2. Quando Kropotkin critica – no sentido moderno
da palavra crítica: percebendo sua originalidade e seu caráter inovador
na ciência e, ao mesmo tempo, apontando limitações – Darwin e
especialmente a leitura de Huxley sobre a evolução das espécies,
mostrando como a “ajuda mútua” (expressão que criou) é tão ou mais
importante que a luta pela sobrevivência no processo evolutivo3, ou
quando critica a divisão do trabalho e a hierarquização das tarefas,
propondo uma reordenação societária e espacial baseada em comunas
autogeridas e sem os poderes instituídos nos Estados nacionais 4, ele
logra ser ao mesmo tempo anarquista e geógrafo. Ou melhor,
Kropotkin – apesar de reconhecer as diferenças individuais e as
aptidões de cada um, que deveriam ser respeitadas e até estimuladas –
argumenta que a verdadeira liberdade pressupõe a supressão da
autor, longe de representar uma “geografia descritiva” que teria se tornado ultrapassada com
o surgimento da obra de Vidal de La Blache, como argumentaram alguns trabalhos sobre a
história do pensamento geográfico, na realidade aponta para caminhos negligenciados até
muito recentemente nesta disciplina, como demonstraram muito bem LACOSTE, Yves –
Géographicité et géopolitique: Élisée Reclus (in: revista Hérodote n.22, 1981), e GIBLIN,
Béatrice – Réclus: um écologiste avant l’heure? (in: revista Hérodote n. 22, 1981).
2
Cf. KROPOTKIN, P. La ciencia moderna y el anarquismo. In: HOROWITZ, I.L (org.). Los
Anarquistas. Madrid, Alianza, 1975, p. 181-202. (Trata-se de uma parte da obra de Kropotkin
publicada originalmente em francês no ano de 1913).
3
Cf. KROPOTKIN, P. El apoio mutuo, um factor de evolucion. Buenos Aires, Proyección, 1970.
(Original, em inglês, de 1902, com o título de mutual aid). Neste importante livro, Kropotkin
acrescenta algo à teoria da evolução, posteriormente reconhecido por Darwin – embora não
pelo agressivo Huxley, o “buldogue de Darwin”: a ajuda mútua entre os animais. Ao mesmo
tempo ele critica Marx por ser demasiado “darwinista” no mal sentido, isto é, alguém que só
vê a luta de classes e não a cooperação, a auto-ajuda intra e entre as classes, além das “nãoclasses” (mulheres, etnias ou “raças” subjugadas etc.).
4
Cf. KROPOTKIN, P. Campos, fabricas y talleres. Madris, Ediciones Júcar, 1978. (Original de
1898, em inglês).
176
Ensaios de geografia crítica
oposição entre o trabalho manual e o intelectual, assim como a
supressão de toda compartimentação rígida que a divisão capitalista do
trabalho engendra no conhecimento científico5.
Além disso, Kropotkin abominava o Estado-nação (assim como
qualquer forma de Estado), as fronteiras políticas, os chauvinismos e a
glorificação da pátria. Ao se referir aos objetivos do ensino da
geografia, Kropotkin assinalou:
É tarefa da geografia mostrar que a humanidade é uma só,
que as diferenças nacionais ou locais não devem servir
para ocultar a imensa semelhança que existe especialmente
entre as classes trabalhadoras de todo o mundo, que as
fronteiras políticas são relíquias de um passado bárbaro e
que os nacionalismos exarcebados, as guerras e os
preconceitos entre nações ou em relação às ‘raças
inferiores’ só servem para manter ou reforçar os interesses
de grupos ou classes dominantes6.
Como se percebe, alguns dos escopos que ele propunha à geografia
colidiam frontalmente com as determinações essenciais que originaram
a institucionalização da ciência geográfica. Essa institucionalização
acadêmica em meados do século XIX – ou, pela ótica oficial, o
“nascimento” da geografia moderna e científica –, esse lugar então
conseguido junto à divisão capitalista do trabalho intelectual,
fundamentalmente pela via dos patrocínios estatais, foi inseparável do
engendramento dos Estados-nações e da escolarização das sociedades.
Naquele contexto de rápida industrialização e urbanização, a
construção dos Estados tipicamente capitalistas, isto é, os Estados
nacionais, foi um processo no qual o papel desempenhado por
instituições que impunham uma unidade nacional – como a escola e o
exército – foi crucial. A consolidação de uma certa geografia no
sistema escolar em expansão, desde as universidades até o ensino
5
Cf. KROPOTKIN, P. Campos, fabricas y talleres, op.cit., especialmente capítulo VIII, p. 142-64.
KROPOTKIN, P. What geography ought to be. In: Antipode: a Radical Journal of Geography,
vol.10-11, n.1-3, 1976, p. 6-15. (Ensaio foi publicado originalmente in The Nineteenth Century,
Londres, dezembro de 1885).
6
177
José William Vesentini
elementar, ligou-se à “naturalização” do Estado nacional, à ênfase no
território em sua conceituação. O “país”, com o seu território e as suas
fronteiras, com a sua população e a sua economia, com a sua
organização político-administrativa “nacional” e as suas tradições (em
geral inventadas), passa a ser entendido como um ente telúrico, fruto de
um processo natural7.
Não é por acaso que inúmeros geógrafos ilustres, tidos como
fundadores de “escolas geográficas”, sempre foram bem relacionados
com importantes personagens ligados à unificação nacional via
expansão da escola enquanto instituição subordinada ao Estado que se
redefinia e fortalecia. Por exemplo, o linguista e educador Wilhem von
Humboldt, irmão mais velho de Alexander, o forjador ou
sistematizador da geografia moderna, foi o escolhido pelas autoridades
prussianas da época (1810) para construir um modelo de universidade –
cume de todo o sistema escolar – apropriado ao Estado-nação que se
unificava, ou melhor, que estava sendo construído. Vidal de La Blache,
tido como o “fundador da escola geográfica francesa”, elaborou um
modelo de geografia caracterizado pela sua eficácia no sistema escola
francês reformulado por Jules Ferry. Também sir Halford Mackinder, o
grande nome da geografia britânica no final do século XIX e inícios do
XX, foi um dos responsáveis pela introdução da disciplina escolar
geografia no sistema escolar do Reino Unido.
Kropotkin, em contraponto, trilhou um caminho inverso. Ele também
defendia a introdução e/ou expansão da geografia nos currículos
escolares, mas com outros objetivos completamente diferentes da
promoção do nacionalismo. Mesmo tendo origens nobres, tendo
cursado as melhores escolas de Moscou, onde sempre foi o aluno mais
brilhante, chegando até a receber elogios do Tzar Nicolau I, e com um
eventual futuro garantido como um dos mais jovens generais do
exército russo (atividade na época reservada à nobreza), Kropotkin,
para decepção da família, resolve tornar-se geógrafo e, posteriormente,
o que é ainda mais grave, anarquista, inimigo declarado de qualquer
forma de autoridade e, principalmente, do Estado. Sua opção de vida
7
Cf. HOBSBAWN, E. e RANGER. T. (org). A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1984; e também HOBSBAWN, E. A era do capital. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 101-116.
178
Ensaios de geografia crítica
acabou por levá-lo, em 1874, à prisão-fortaleza de Pedro-e-Paulo, por
incentivar e participar de algumas revoltas camponesas. Dois anos
depois ele consegue fugir desse cárcere, indo para alguns países da
Europa Ocidental (Suíça, França e finalmente Inglaterra, onde acaba se
estabelecendo), nos quais viveu durante cerca de 40 anos e onde
escreveu e publicou as suas obras mais importantes. Sua concepção
libertária fez com que ele acabasse sendo marginalizado pela geografia
acadêmica da sua época, já que ela era organicamente ligada ao
Estado8. E também quase todas as obras sobre a história do pensamento
geográfico omitiram a importância de Kropotkin, o que não é
surpreendente se atentarmos para o fato de que toda história linear ou
evolutiva, como nos ensina Walter Benjamin, é sempre um discurso
dos vencedores9.
Posto que os vencidos representam sempre alternativas possíveis mas
não efetivadas, o continuum da história, o procedimento historicista de
estabelecer conexões casuais (como se tal processo tivesse
necessariamente que resultar naquilo que ocorreu), subsume-se
indefectivelmente na memória construída pelos vencedores. É nesse
sentido que Walter Benjamin refere-se à cumplicidade dos vencedores
de todas as épocas. Por outro lado, não é possível uma história linear
“dos vencidos”, mas apenas críticas a momentos específicos nas quais
se recuperam fragmentos de alternativas que romperiam com esse
continuum. Dessa forma, apesar das diferenças teórico-metodológicas
entre os inúmeros autores que construíram esse objeto denominado
história do pensamento geográfico, todos eles reproduziram por
distintos vieses o discurso do poder na medida em que fixaram essa
história como um processo linear, como algo que possui um sentido
unívoco. Kropotkin não tem, assim, lugar nesse tipo de construção – a
não ser como curiosidade, ou então como caricatura, como “discípulo
de Réclus”, o qual, afinal, não teria dito coisas muito diferentes de seus
contemporâneos –, pois ele foi um dos que “combateram contra a
história”, para usar uma expressão de Nietzsche e, portanto, seria uma
8
Cf. VESENTINI, J. W. A capital da geopolítica. São Paulo, Ática, 1987, capítulo 1; e também
RAFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo, Ática, 1993.
9
Cf. BENJAMIN, W. Tesis de filosofia de la historia. In: Discursos interrumpidos I, Madris,
Taurus, 1972, p. 177-191.
179
José William Vesentini
fala que, ao ser registrada com fidelidade, implodiria essa imagem de
“evolução”, esse sentido histórico construído a partir de (pretensas)
necessidades inelutáveis.
Kropotkin representou, no interior do anarquismo, o principal teórico
de uma corrente denominada anarco-comunismo ou comunismo
libertário. Outros nomes representativos dessa tendência foram Enrico
Malatesta (o mais importante após Kropotkin), Carlo Cafiero, François
Dumartheray e os irmãos Elie e Élisée Reclus, entre outros. O
anarquismo, que como se sabe tem como característica básica uma
recusa radical do Estado (mesmo que “provisório” ou de transição) e de
qualquer forma de autoridade, sempre foi marcado pela pluralidade, por
tendências ou correntes bem diferenciadas, por posições extremas que
vão do individualismo mais arraigado até um coletivismo social, além,
evidentemente, da clássica oposição entre os que apregoam a violência,
os atos terroristas, os assassinatos de personagens ligados ao poder, e
aqueles que condenam esse tipo de violência e defendem um pacifismo,
uma rebelião não-violenta no estilo da “desobediência civil”.
Se o anarquismo foi individualista – e até simpático ao egoísmo – com
Max Stirner (que chegou a exercer certa influência em Nietzsche), por
outro lado, foi também coletivista ou mutualista com Proudhon,
passando por posições intermediárias que se manifestam de forma
especial no contraditório (mas sempre fértil intelectualmente)
Bakunin10. Dentro desse emaranhado de posições, Kropotkin ganhou
um lugar de destaque por dois motivos principais. Pelo seu pacifismo e
recusa de métodos violentos e individualistas, pela sua crença na
solidariedade humana e no progresso da ciência, ele contribuiu para que
o anarquismo deixasse de ser identificado como uma doutrina de
violência e destruição indiscriminadas para se consolidar como um
projeto de reordenação societária pela via da ação conjunta dos povos11.
E a sua inspiração baseada nas comunas, assembléias ou sovietes,
possui como finalidade a criação de uma sociedade comunista (esse
10
Cf. ARVON, H. El anarquismo. Buenos Aires, Paidos, 1971; e GUÉRIN, Daniel. Anarquismo.
Rio de Janeiro, Germinal, 1968.
11
Cf. WOODCOCK, George. Anarquismo – uma história das ideias e movimentos libertários.
Porto Alegre, L&PM, 1983, vol.I, p. 163-70.
180
Ensaios de geografia crítica
termo vem de comuna, tendo como grande exemplo a de Paris de 1871,
embora Kropotkin tenha feito algumas críticas a esta pelo fato de ter
aplicado, em alguns casos, o sistema representativo ao invés da
democracia direta12).
Kropotkin foi vítima de um grande mal teórico do século XIX: o
cientificismo. Bastante próximo ao marxismo neste ponto, ele
acreditava que a sociedade seria regida por “leis” – conceito inspirado
na metodologia das ciências naturais da época – e que esse mecanismo
oculto que determinaria o funcionamento e a evolução histórica do
social tenderia naturalmente para o comunismo, que seria uma
sociedade sem classes e sem Estado. Influência do iluminismo, sem
dúvida, com sua concepção de “progresso” inevitável da humanidade.
E também uma crença na “cientifização” progressiva da sociedade
humana e da sua ação sobre a natureza. Portanto, assim como Marx, ele
tinha uma concepção de “sentido” unívoco para a história, de
“progresso”.
Contudo, diferentemente do “socialismo autoritário” (é assim que ele
denominava o marxismo), o “socialismo libertário” que propunha não
fazia qualquer concessão ao Estado, nem conhecia nenhum período de
transição entre o capitalismo e o socialismo. Comunismo e socialismo,
dessa forma, para ele eram sinônimos. Nesses termos, o Estado não
deveria ser “tomado” ou instrumentalizado por qualquer “classe
revolucionária”, mas pura e simplesmente extinto. No seu lugar deveria
ser construída uma nova forma de gestão do social, que iria das
comunas autogeridas – isto é, com democracia direta, onde todos se
conhecessem e tivessem os mesmos direitos de falar, fazer as leis,
participar da administração etc. –, até uma federação mundial formada
por várias nações (mas não Estados-nações), que no fundo nada mais
seria do que a reunião das comunidades autônomas13.
Ele manifestou uma grande sensibilidade, e isso ainda no final do
século XIX, para a situação das mulheres. Inclusive essa é um das
12
Cf. KROPOTKIN, P. A Comuna de Paris, 1871. In: WOODCOCK, G. (org.). Os grandes escritos
anarquistas.
13
Cf. KROPOTKIN, P. La conquista del pan. In: ZEMLIAK, M. (org.). KROPOTKIN – Obras.
Barcelona, Anagrama, 1977, p. 80-126.
181
José William Vesentini
críticas que fez a Marx, que só enxergava o proletariado. De nada
adiantaria uma libertação do homem frente ao capital, afirmou, se as
mulheres continuassem subordinadas na sociedade e na família,
ocupando posições subalternas e fazendo os serviços domésticos. Ele
propunha que esses serviços fossem mecanizados e que fossem
realizados tanto pelas mulheres quanto pelos homens, e que aqueles
tivessem também uma participação igualitária no trabalho extralar e na
condução das questões políticas14.
Era radicalmente contrário a qualquer forma de hierarquia e diferenças
nos rendimentos, além de abominar o sistema de assalariamento. Uma
das mais ácidas críticas que fez a Marx refere-se à questão da
hierarquia dos rendimentos numa sociedade socialista: para Marx,
deveria existir, provisoriamente, uma diferenciação salarial entre o
trabalho manual e o intelectual, entre, por exemplo, um engenheiro
(que teria um “custo de produção” maior devido à sua formação) e um
faxineiro, que teria que ganhar menos. Kropotkin não aceitava essa
diferenciação nos rendimentos e muito mesmo essa divisão do trabalho
entre um indivíduo que fosse permanentemente faxineiro e outro que
apenas trabalhasse como engenheiro: para ele, as pessoas deveriam
realizar atividades tanto manuais quanto intelectuais e, se ocorressem
longas diferenciações de atividades, estas deveriam ser produzidas
“naturalmente” pelos gostos e aptidões de cada um e nunca de forma
premeditada, sendo que, dessa forma, não poderiam implicar em
diferenças em nível de rendimentos15.
Frente a Marx, Kropotkin adota uma posição crítica, mas de respeito à
obra intelectual desse autor, apesar de considerar o “pai do socialismo
científico” como um “revolucionário de gabinete”, que apenas propõe
autoritariamente os seus esquemas teóricos para a “classe proletária”
vista como revolucionária. A seu ver, em grande parte, Marx ainda
estaria ligado aos valores mentais do capitalismo (pela aceitação da
divisão do trabalho e pela atitude dúbia em relação ao poder político
instituído, ao Estado, entre outras coisas). Entretanto, o teórico do
socialismo libertário cita com frequência O capital em suas obras,
14
15
Cf. KROPOTKIN, P. La conquista del pan, op.cit., p. 119-126.
CF KROPOTKIN, P. Campos, fabricas y talleres, op.cit.
182
Ensaios de geografia crítica
algumas vezes de forma elogiosa, com um respeito que advêm do
reconhecimento do esforço intelectual de Marx, da dedicação deste aos
estudos da realidade social. Kropotkin também foi um investigador
infatigável – provavelmente, o maior dentro do anarquismo – e um
crítico da neutralidade do labor científico. Daí, então, essa sua simpatia
(ou identificação) para com o autor de O capital, mesmo possuindo
sérias divergências com este no tocante ao significado de socialismo e
de revolução. Sua obra de maior vigor teórico – Mutual aid: a factor of
evolution, trabalhada de 1888 até 190216 –, por exemplo, representa um
tour de force intelectual que dificilmente encontra paralelos. Nessa
obra, Kropotkin cita documentos e livros de cerca de uma dúzia de
idiomas diferentes, do russo ao francês, inglês, polonês, italiano e
alemão, passando pelo latim e por dialetos medievais (como certas
línguas eslavas ou latinas faladas no século XI em cidades que
interessavam a Kropotkin devido à organização comunitária que
adotavam), além de citar – e, em alguns casos, realizar – pesquisas
avançadas, na época, de biologia e antropologia. Mas Kropotkin não foi
apenas um teórico. Ele com frequência se disfarçava de camponês ou
de operário, adotando pseudônimos, trabalhando na lavoura ou na
indústria e participando, nessa condição, de revoltas e movimentos
populares. Quando foi preso, em 1874, ele estava usando a
identificação de “o camponês Borodin” para encobrir agitações que
promovia, junto com amigos anarquistas, em bairros operários e áreas
rurais vizinhas a São Petersburgo.
Frente ao marxismo posterior a Marx, principalmente frente ao
bolchevismo, Kropotkin assume uma posição de crítica radical, que
ficou patente no seu posicionamento por ocasião da Revolução russa de
1917. Para ele, a revolução de fato ocorreu em fevereiro, ocasião em
que houve uma multiplicação espontânea dos sovietes com o correlato
enfraquecimento do poder do Estado. O poder “à margem do Estado”,
criado pela expansão dos sovietes ou comunas de operários,
marinheiros, soldados ou moradores, além das cooperativas
espontâneas de camponeses, competia com a autoridade estatal e, em
muitos locais, até prescindia desta. Quando os bolcheviques chegaram
16
KROPOTKIN. El apoyo mutuo, un factor de evolucion, op. cit.
183
José William Vesentini
ao poder estatal em outubro, com o apoio de grande parte dos setores
populares e até mesmo da maioria dos anarquistas (devido à promessa
de acabar com a guerra e ao slogan oportunista de Lênin: “Todo poder
aos sovietes”), Kropotkin, ao saber da notícia por um amigo eufórico,
declarou, para decepção deste: “Isso enterra a revolução”17.
Tal posição é compreensível, tendo-se em vista a ideia kropotkiana de
revolução como uma ação popular contra (e nunca via) o Estado. A
própria noção de “governo revolucionário” era para ele um absurdo,
uma verdadeira contradição nos termos, uma vez que o objetivo de uma
revolução social seria o de abolir o governo e fundar uma nova forma
de gestão do social com base na democracia direta18. As palavras que
Kropotkin proferiu em 1919, relativas à atuação dos bolcheviques pelo
fortalecimento do Estado, foram exemplares:
A Rússia mostrou a maneira como o socialismo não dever
ser feito [...] A ideia de conselhos operários para controle
da vida política e econômica do país é, em si mesma, de
extraordinária importância [...] mas, enquanto o país
estiver dominado por uma ditadura de partido, os
conselhos de operários e camponeses perdem naturalmente
o significado. Estão degradados num papel passivo
idêntico ao que desempenhavam os representantes dos
estados na monarquia absolutista19.
Kropotkin, por sinal, já havia desenvolvido em 1905, num verbete
sobre “anarquismo” que escreveu para a Enciclopédia Britânica, um
conceito de capitalismo de Estado, que aplicou posteriormente à Rússia
sob o domínio dos bolcheviques:
Os anarquistas consideram, portanto, que entregar ao
Estado todas as fontes principais da vida econômica (a
terra, as minas, as ferrovias, os bancos, os seguros, etc.),
17
Citado por WOODCOCK, George. Anarquismo – uma história das ideias e movimentos
libertários, op.cit., p.193.
18
Cf. JOLL, James. Anarquistas e anarquismo. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1977, p.
177-80.
19
Citado por CHOMSKY, Noam. O poder americano e os novos mandarins. Lisboa, Portugália,
s/d, p. 33.
184
Ensaios de geografia crítica
assim como o controle de todos os principais ramos da
indústria, além de todas as funções que acumula já em suas
mãos (educação, defesa do território, etc.), significaria
criar um novo instrumento de domínio. O capitalismo de
Estado não faria mais que incrementar os poderes da
burocracia e o próprio capitalismo. O verdadeiro progresso
consiste na descentralização, tanto territorial quanto
funcional, em desenvolver o espírito local e de iniciativa
pessoal, e numa federação livre que esteja construída de
baixo para cima, ao invés da hierarquia atual que vai do
centro para a periferia20.
No início de 1919, Kropotkin enviou uma carta aberta aos
trabalhadores da Europa ocidental explicando a situação russa e
solicitando aos trabalhadores que pressionassem os seus governos no
sentido de evitar intervenções armadas na Rússia, pois esse “cerco”,
essas invasões e o apoio ocidental aos militares tzaristas revoltosos, a
seu ver, iria tão somente resultar no fortalecimento dos bolcheviques (e
do poder estatal), devido à união frente ao inimigo comum e ao
enaltecimento da ideologia nacionalista21. Percepção sem dúvida
alguma bastante perspicaz, pois o que ocorreu naquele momento foi de
fato um fortalecimento do Estado russo – e, portanto, dos bolcheviques
– e um correlato enfraquecimento dos sovietes e demais órgãos
populares de gestão da economia ou de microespaços. Esse
fortalecimento do Estado e da burocracia, junto com o atrelamento dos
sovietes, das cooperativas espontâneas e dos sindicatos, ao partido
único (os demais foram declarados ilegais), além da proibição de
qualquer forma de greve, das violentas restrições à liberdade de
imprensa, da implantação do taylorismo na indústria e do
fortalecimento do exército e da polícia (a Tcheca, precursora da KGB),
realmente muito se beneficiou da guerra civil e das invasões ocidentais
na Rússia. A “pátria em perigo” foi uma palavra de ordem e de
mobilização muito utilizada pelos bolchevistas para reforçar os
20
KROPOTKIN, P. Folletos revolucionarios II. Barcelona, Tusquets editor, 1977, p. 126, grifos
nossos.
21
KROPOTKIN, P. Carta a los trabajadores de la Europa occidental. In: Folletos
revolucionarios II, op.cit., p. 87-93.
185
José William Vesentini
aparatos estatais de repressão e o seu controle sobre esse poder
instituído que renascia após ter sido semidestruído pela revolução dos
sovietes. É por demais sabido que esse período de 1918 a 1921, com
um certo caos na economia e no abastecimento agrícola às cidades,
com a guerra civil e as invasões, significou uma quase total liquidação
do operariado russo mais avançado politicamente: a produção industrial
do país caiu para menos de 20% do seu total em 1916, o operariado
passa de cerca de 3 milhões, em 1917, para menos de 1,5 milhão em
1921. Nesse contexto, a preocupação de Kropotkin, em 1919,
demonstra uma acuidade espantosa, uma lucidez ímpar em relação ao
que estava acontecendo e ao provável futuro da Rússia. Salvo engano,
somente Rosa Luxemburgo teve na mesma época uma percepção tão
aguda do que ocorria na revolução russa. Para ela, a concepção
leninista de partido, se levada às últimas consequências, tenderia à
ditadura de uma minoria de burocratas sobre a massa. Sua percepção de
“ditadura do proletariado” implicava numa afirmação radical da
democracia: “A liberdade reservada apenas aos membros do partido,
por mais numerosos que eles sejam, não é liberdade. A liberdade é
sempre a liberdade de quem pensa diferentemente”22. Mas Kropotkin,
ao inverso de Rosa Luxemburgo, que escreveu essa sua obra sobre a
revolução russa em 1918, não raciocinava em termos de partido e de
“tomada do poder” (isto é, do governo e da máquina estatal). Ele
percebia claramente um antagonismo entre o projeto de revolução
alicerçado em partidos (e organização nacional via Estado) e o projeto
de revolução oriundo dos sovietes, das comunas, dos conselhos (com
organizações locais, regionais e até mundial, com base na destruição do
Estado e a estruturação de múltiplas formas de autogestão).
Enfim, encerrando esta sucinta apresentação sobre a obra de Kropotkin,
cabe deixar claro que, para ele, geografia e liberdade devem caminhar
juntas, são mesmo inseparáveis. Uma geografia libertária? Talvez,
embora esse rótulo nunca tenha sido usado por Kropotkin. Mas a sua
percepção de ciência expressa um engajamento do sujeito do
conhecimento na libertação dos homens frente aos imperativos da
natureza e, principalmente, frente à dominação de alguns sobre muitos.
22
LUXEMBURGO, R. A revolução russa. Lisboa, Ulmeiro, 1975, p. 65.
186
Ensaios de geografia crítica
Não se trata apenas do combate ao capital, da ingênua (mas
politicamente “realista”, num realismo burocrático) ideia de que a
socialização dos meios de produção vai trazer naturalmente a sociedade
sem classes e sem exploração. Trata-se, antes de mais nada, de dar
primazia às relações de dominação, de combater qualquer forma de
autoridade23 e, principalmente, o Estado. Até o final de sua vida,
Kropotkin foi coerente com a sua filosofia política: em fevereiro de
1917, Kerensky lhe ofereceu um cargo de ministro no seu governo,
oferta recusada; e, logo em seguida, em novembro desse ano, Lênin lhe
solicitou uma colaboração com o “governo revolucionário”, tendo
proposto uma edição em russo das principais obras de Kropotkin, que
ele recusou por não aceitar ajuda ou alianças com qualquer tipo de
governo. Apesar de já velho e debilitado na época, a grande
preocupação de Kropotkin na revolução russa foi contribuir para que os
sovietes e as cooperativas espontâneas se desenvolvessem livremente,
de baixo para cima, sem subordinação ao Estado e a qualquer partido
político.
Em que as ideias kropotkianas poderiam subsidiar uma geografia
crítica? Ora, neste momento em que a problemática de uma construção
da geografia crítica se coloca, surgem já certos percalços ou
descaminhos24. Um marxismo vulgar e mecanicista em muitos casos
substitui a criticidade ou tenta encobrir a ausência de uma adequada
reflexão filosófica, e um certo stalinismo – mesmo que “renovado” via
Althusser ou via o velho Luckács – algumas vezes serve apenas como
amparo para frágeis críticas à geografia tradicional que mal conseguem
esconder o desejo de dominação, de instrumentalização desse “nova
geografia” para fins burocrático-estatais. Uma recuperação crítica da
obra de Kropotkin – e também, é bom ressaltar, de outros autores
fecundos, críticos e não autoritários, tais como Foucault, Lefort,
23
No próprio enterro de Kropotkin em 1921, em Moscou, acompanhado por cerca de 100
mil pessoas (foi talvez o último movimento de massas tolerado ou não controlado pelos
bolcheviques), havia inúmeras faixas onde se lia uma das ideias mais veementemente
defendidas por ele: “Onde há autoridade não há liberdade”.
24
Cf. VESENTINI, J. W. Percalços da geografia crítica: entre a crise do marxismo e o mito do
o
conhecimento científico. In: Anais do 4 Congresso Brasileiro de Geógrafos. São Paulo, AGB,
1984, livro 2, v. 2, p. 423-432.
187
José William Vesentini
Habermas, Castoriadis25 etc. – bem que poderia contrabalançar esse
dogmatismo que se faz presente, essa crença soteriológica na unidade,
na uniformidade, na recusa das diferenças.
Kropotkin, apesar de um otimismo acrítico em relação ao
conhecimento científico e ao “progresso” da humanidade, manifestou,
já no sinal do século XIX, uma salutar sensibilidade frente às
diferenças e particularidades, assim como uma aguda compreensão do
fato de que a questão do poder transcende (e incorpora) o problema
econômico stricto sensu. Pode-se, ainda, mencionar que na vasta obra
kropotkiana existe muita novidade, em relação ao discurso geográfico
clássico ou tradicional, que poderia ser retomada ou recuperada. Por
exemplo, a sua preocupação com os jovens e com os conflitos de
gerações, a sua preocupação com o ensino e com a degradação
ambiental. Sua percepção de natureza já superava a querela sobre quem
domina quem, o homem ou a natureza. Para ele, era evidente que a
evolução tecnológica trazia um domínio da humanidade sobre a
natureza circundante; o problema que via nessa questão era que essa
instrumentalização da natureza pela sociedade moderna também
acarreta consequências negativas para o social e, o que considerava
crucial, agrava ou se soma às diferenças sociais.
ADENDO – KROPOTKIN E O ENSINO DA GEOGRAFIA
Uma das grandes preocupações de Kropotkin era o ensino, que para ele
deveria ser universal, gratuito e igual para todas as classes, para toda a
população. Esse posicionamento, hoje, pode parecer banal e
indiscutível, mas até os primórdios do século XX era comum a ideia
que deveria existir um ensino diferenciado para a elite, mais completo,
25
Por sinal, é visível a proximidade de inúmeros escritos de Castoriadis – principalmente
aqueles dos anos 1950 e inícios dos 60, publicados inicialmente na revista Socialisme ou
barbarie, sobre o conteúdo do socialismo, as críticas à burocracia e a necessidade de
autogestão – com as ideias de Kropotkin.
188
Ensaios de geografia crítica
ao lado de outro mais simples para a maioria da população, para os
trabalhadores manuais. Mackinder, por exemplo, advogava esse ponto
de vista elitista. Kropotkin arrolou as seguintes ideias, numa
conferência sobre o que a geografia (escolar) deveria ser:
A criança busca em todas as partes o homem, a atividade
humana, as lutas contra os obstáculos. Os minerais e as
plantas deixam-na fria; ela está atravessando uma etapa em
que prevalece a imaginação. Quer dramas humanos, o que
significa que a melhor maneira de suscitar-lhe o desejo de
estudar a natureza é pelos relatos de pescadores e
caçadores, de navegantes, de enfrentamentos com os
perigos, de costumes e hábitos, de tradições e migrações
[...] Esta é a tarefa da geografia na primeira infância:
tomando a humanidade como intermediária, desenvolver
nas crianças o interesse pelos grandes fenômenos da
natureza, despertar seu desejo de conhecê-los e explicálos. A Geografia deve cumprir, também, um serviço muito
mais importante. Ela deve nos ensinar, desde nossa mais
tenra
infância,
que
todos
somos
irmãos,
independentemente da nossa nacionalidade. Nestes tempos
de guerras, de ufanismos nacionais, de ódios e rivalidades
entre nações, que são habilmente alimentados por pessoas
que perseguem seus próprios e egoísticos interesses,
pessoais ou de classe, a geografia deve ser – na medida em
que a escola deve fazer alguma coisa para contrabalançar
as influências hostis – um meio para anular esses ódios ou
estereótipos e construir outros sentimentos mais dignos e
humanos. Deve mostrar que cada nacionalidade contribui
com sua própria e indispensável pedra para o
desenvolvimento geral da humanidade, e que somente
pequenas frações de cada nação estão interessadas em
manter os ódios e rivalidades nacionais [...] Existe uma
terceira, que talvez o seja ainda mais: a de combater os
preconceitos que nos foram inculcados em relação às
chamadas “raças inferiores” – e isto numa época que tudo
nos leva a crer que os contatos que vamos ter com elas vão
ser cada vez mais intensos. Quando um político francês
proclamava recentemente que a missão dos europeus é
189
José William Vesentini
civilizar essas raças – ou seja, com as baionetas e as
matanças [genocídios] – não fazia mais do que elevar à
categoria de teoria esses mesmos fatos que os europeus
estão praticando diariamente [notadamente na África e na
Ásia, no final do século XIX]. E não poderia ser de outra
maneira, pois desde a mais tenra infância inculca-se o
desprezo pelos ‘selvagens’, ensina-se a considerar como se
fossem verdadeiros crimes determinados hábitos e
costumes dos ‘pagãos’, a tratar as “raças inferiores”, como
são chamadas, como se fossem um verdadeiro câncer que
somente deve ser tolerado enquanto o dinheiro ainda não
penetrou. Até agora os europeus têm “civilizado os
selvagens” com whisky, tabaco e sequestros; os têm
inoculado com seus vícios; os têm escravizado. Porém, é
chegado o mo mento em que nos devemos considerar
obrigados a oferecer-lhes algo melhor – isto é, o
conhecimento das forças da natureza, a ciência moderna, a
forma de utilizar o conhecimento científico para construir
um mundo melhor. Assim, o ensino da Geografia deve
perseguir três objetivos principais: despertar nas crianças a
afeição pela ciência natural em seu conjunto; ensinar-lhes
que todos os homens são irmãos, quaisquer que sejam as
suas nacionalidades; e deve ensinar-lhes a respeitar as
chamadas ‘raças inferiores’ [...] Existe atualmente na
pedagogia uma tendência no sentido de cuidar
demasiadamente da mente infantil, até o ponto de frear o
raciocínio individual e de restringir a originalidade; e
existe também uma tendência dirigida no sentido de
facilitar em demasia a aprendizagem, até o ponto de
produzir uma criança desacostumada a realizar qualquer
esforço intelectual próprio [...] Concedamos a nossos
educandos mais liberdade para seu desenvolvimento
intelectual! Deixemos mais espaço para o seu trabalho
independente, sem mais ajuda do professor do que a
estritamente necessária26.
26
KROPOTKIN. What geography ought to be. Op. cit. Os grifos são do autor.
190
Ensaios de geografia crítica
Esse é um texto, a nosso ver, exemplar. Mesmo tendo sido elaborado
em 1885, ele continua sendo de uma grande atualidade e importância.
Para entendermos a sua originalidade e profundidade, temos que
lembrar o contexto que o cerca. Afinal, que tipo de escola existia – e
que tipo de geografia era ensinada – e o que Kropotkin propõe de
novo? Com quem ele dialogava?
Temos que recordar que o final do século XIX era um momento de
colonialismo, de partilha da Ásia e especialmente da África pelas
potências européias, que justificavam essa dominação – que implicava
até mesmo em genocídios, no uso do trabalho exaustivo e compulsório,
na tentativa de imposição aos colonizados dos idiomas, valores e
hábitos dos colonizadores – através da ideia de que os europeus tinham
a “nobre missão” de levar a verdadeira “civilização” para os demais
povos ou “raças”, termo bastante empregado naquele momento
histórico. Além disso, havia um clima de nacionalismos exarcebados,
de ferrenhas disputas entre as potências européias por terras e
mercados, algo que se refletia até mesmo no ensino. Basta lembrar dos
livros didáticos de geografia dessa época, que normalmente
estereotipavam os “outros”, os estrangeiros, e supervalorizavam a “sua”
nação, chegando até mesmo a arrolar o número de soldados ou de
navios de guerra que cada país “importante” tinha, sempre
subestimando o potencial dos “eternos adversários” (por exemplo: a
Alemanha e a Inglaterra, no caso da França, e vice-versa) e inflando os
dados sobre a “nossa pátria”. Inúmeros geógrafos, que em grande parte
eram mais viajantes ou exploradores a serviço do colonialismo,
participavam intensamente dessa aventura expansionista, seja
produzindo ideias pretensamente científicas sobre a superioridade do
modelo civilizatório europeu, seja pela compilação de dados sobre os
recursos naturais e humanos de uma dada região: mapeamentos e
estudos sobre minérios, rios e lagos, relevo e solos, climas, povoamento
e suas características etc. A Royal Geographical Society of London,
onde Kropotkin proferiu essa fala, tinha concorridas reuniões com a
presença de membros da família real, comerciantes, banqueiros,
industriais interessados no alargamento de seus negócios etc. A título
de parêntesis, poderíamos lembrar do filme Mountains of the Moon (As
montanhas da Lua, de Bob Rafelson, de 1989 e já amplamente
191
José William Vesentini
disponível em vídeo ou DVD nas locadoras), que mostra algumas
dessas reuniões dessa instituição com ênfase na polêmica entre dois
geógrafos (Richard F. Burton e John H. Speke) a respeito da nascente
do rio Nilo. Kropotkin participou em várias dessas reuniões da Royal
Geographical Society e este seu texto foi uma intervenção nessa
sociedade, depois publicada numa revista científica. Uma fala,
portanto, destinada não apenas aos geógrafos como também à elite
britânica da época, aquela que decidia os rumos da política externa e
educacional.
Como se deduz facilmente, Kropotkin era uma “voz vencida”, alguém
visto com um misto de benevolência e curiosidade – afinal ele era de
uma aristocrática família russa e, ao mesmo tempo, de forma paradoxal,
anarquista e, consequentemente, um utopista que apostava numa
humanidade sem guerras e sem as intensas desigualdades de classe, de
gênero, de etnias etc. Como um exilado russo que viveu em Londres
durante décadas, ele polemizou com os “grandes nomes” da geografia
britânica do período – a começar por sir Halford Mackinder. Mackinder
apregoava, de forma “realista”, que a geografia “deve servir aos
homens do Estado e aos comerciantes”, embora também deva satisfazer
“os reclames do sistema escolar”27. Kropotkin, ao contrário, exorcizava
qualquer tipo de serviço para o Estado e, principalmente, para os
“comerciantes” (ou seja, os interesses colonialistas) e tinha uma clara
aversão ao tipo de geografia descritiva e chauvinista que era ensinado
nas escolas fundamentais e médias. Ele acreditava no progresso como
algo inexorável – e na ciência moderna como o modelo por excelência
do conhecimento – e no princípio de que os seres humanos são iguais
por natureza e que as divisões em nações, classes, gêneros, grupos
étnicos ou religiosos etc, seriam apenas provisórias e tenderiam a se
anular com o desenrolar da história humana. Daí a sua ideia de que a
educação deveria combater qualquer forma de ufanismos nacionalistas,
de preconceitos ou estereótipos, qualquer tipo de racismo ou de
discriminação por etnias ou “raças”; e também a sua ideia de que, ao
invés de “civilizar” os asiáticos e africanos, a melhor coisa que a
27
Cf. MACKINDER, H. J. “On the Scope and Methods of Geography”. In: Proceedings of the
Royal Geographical Society, IX, 1887, p. 159-60.
192
Ensaios de geografia crítica
Europa poderia lhes fornecer seria a ciência moderna, o conhecimento
da dinâmica da natureza como uma forma da humanidade controlar
sem depredar o seu meio e construir uma sociedade mais rica e mais
justa. E como um bom seguidor das ideias de Pestalozzi e de Fröbel,
educadores de vanguarda na época, Kropotkin advogava um ensino que
não fosse meramente discursivo e, sim, alicerçado em trabalhos de
campo, em observações da realidade, em uma gradativa construção
pelos educandos de conceitos, valores e atitudes. Nota-se, no final
desse trecho, que reproduzimos um apelo aos professores para que
deixem os alunos descobrir as coisas, para não facilitarem em demasia
a aprendizagem, para que os educandos enfrentem desafios que
contribuam para desenvolver sua imaginação, sua inteligência, sua
criatividade.
Como avaliar a importância das ideias de Kropotkin para a sua época?
E qual seria a sua possível atualidade? Sem dúvida que Kropotkin deve
ser visto como uma das vozes daquele rico e diversificado grupo de
pensadores “de esquerda”, tal como eles se posicionavam a partir do
exemplo da Revolução Francesa: os “socialistas” em geral – os
anarquistas, socialistas utópicos, marxistas – da segunda metade do
século XIX e das primeiras décadas do século XX. Ele foi amigo de
Élisée Reclus, também geógrafo e anarquista e um dos líderes da
Comuna de Paris de 1871. Ele leu com atenção as principais obras
“socialistas” desse período, desde as de Marx até as de Phoudon e
Bakunin, passando pelos escritos de Owen, Fourier e outros. Mas esse
grupo, convém reiterar, era extremamente heterogêneo e possuía ideias
muitas vezes antinômicas. Por exemplo: Marx e também alguns outros
pensadores de “esquerda” da época, ao contrário de Kropotkin, não
criticavam o colonialismo europeu na África e na Ásia e até mesmo
chegaram a defender as brutalidades e as matanças com o argumento de
que, apesar dos pesares, isso seria “progressista” no sentido de acelerar
a história – isto é, o desenvolvimento do capitalismo e, posteriormente,
do socialismo – nessas regiões do globo28. E também o sistema escolar
era visto por alguns (Owen, Fourier, Kropotkin) como “progressista”
28
Cf. MARX, K. “O domínio britânico na Índia”. In: Sobre o colonialismo. Op. cit., p. 47-8 e
103-4.
193
José William Vesentini
no sentido de possibilitar uma maior igualdade entre as pessoas e a
inculcação de novos valores e atitudes mais igualitários, sendo que,
para outros (como Marx, por exemplo), a luta pela universalização e
democratização do ensino – por ele tido como “burguês” – era algo
superficial e até mesmo histriônico29.
Kropotkin jamais professou a crença numa “classe predestinada” a
fazer a revolução, o proletariado, mas, pelo contrário, sempre realçou
os inúmeros “sujeitos” ou campos de lutas que deveriam ser levados em
consideração com a mesma ênfase: a natureza com a sua dinâmica e o
seu equilíbrio, que deveria ser respeitado (e nunca aquele desprezo
absoluto pela “natureza em si” que existe em alguns socialistas desse
período), as classes trabalhadoras (no plural), as crianças e os jovens, as
mulheres, as etnias minoritárias e as “raças” tidas como inferiores, os
povos estrangeiros, em especial aqueles mais diferentes de “nós” e,
dessa forma, mais discriminados etc. Neste sentido, será que
poderíamos ver em Kropotkin um pensador mais próximo daquilo que,
a partir dos anos 1970, seria rotulado como pós-modernidade?
O pensamento de Kropotkin, inegavelmente, tem atualidade. Quando
consultamos algum bom texto sobre como deve ser a educação no
século XXI – por exemplo, o excelente trabalho de Edgar Morin30 ou,
então, o relatório de um grupo de pesquisadores/educadores realizado a
pedido da UNESCO31 – logo notamos que há uma ênfase na educação
não enquanto um mero ensinamento de conceitos, mas, sim, como
atividades direcionadas para o educando aprender a aprender, a ser, a
conviver (combatendo, assim, todas as formas de preconceitos) e a
fazer. Mais importante do que levar o aluno a assimilar um conceito ou
mesmo a aprender a escrever corretamente é fazê-lo perceber o absurdo
dos preconceitos e estereótipos, é contribuir para nele desenvolver
atitudes democráticas e o hábito do diálogo. E o sistema escolar nada
tem de burguês, mas, pelo contrário, deve, sim, ser visto como um
passaporte para a cidadania, que inclusive deveria ser global ou
29
Cf. MARX, K. Critica ao Programa de Ghota. Porto, Portucalense Editora, 1971, p. 32-3.
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo, Cortez/Unesco,
2000.
31
DELORS, J. (Org.). Educação, um tesouro a descobrir. Brasília, MEC/Unesco, 1998.
30
194
Ensaios de geografia crítica
planetária segundo Edgar Morin, ou então como a maior herança ou
tesouro da humanidade, como aparece naquele mencionado estudo da
UNESCO. Um importante filósofo francês, estudioso da democracia
moderna, já havia observado que Marx se enganou cabalmente quando
menosprezou tanto a democracia quanto o ensino como instrumentos de
mudança social no final do século XIX:
A democracia que conhecemos instituiu-se por vias
selvagens, sob o efeito de reivindicações que se mostraram
indomesticáveis. E todo aquele que tenha os olhos
voltados para a luta de classes, se deixasse os sendeiros
marxistas (é verdade que se finge, às vezes, não mais
segui-los, mas conserva-se a direção), deveria convir que
ela foi uma luta para a conquista de direitos [...] Seus
representantes mais ativos [da burguesia], na França,
tentaram de mil maneiras atravancar sua dinâmica [da
democracia em sua expansão] no século XIX. Viram no
sufrágio universal, no que era, para eles, a loucura do
número, um perigo não menor que o socialismo. Durante
muito tempo julgaram escandalosa a extensão do direito de
associação e escandaloso o direito de greve. Procuraram
circunscrever o direito à educação e, de modo geral,
fechar, longe do povo, o círculo das “luzes”, da
‘superioridade’ e das “riquezas”32.
As propostas de Kropotkin para o ensino da geografia têm uma grande
atualidade. Como ele já preconizava no final do século XIX, ensino
deve levar o aluno a adquirir uma paixão pela natureza e pela sua
conservação racional, e isso sem entrar num atrito cego ou mítico com
a ciência moderna. Deve ter como uma de suas preocupações essenciais
mostrar – ou melhor, como preconizada Kropotkin, deixar o aluno
descobrir oferecendo a ele desafios – que a humanidade é uma só
apesar das diferenças, que todos ou povos ou “culturas” (Kropotkin
falaria em “raças”, mas esse termo era absolutamente normal na sua
época) contribuem à sua maneira para a rica complexidade de toda a
humanidade.
32
LEFORT, C. A invenção democrática. São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 26.
195
José William Vesentini
196
A crise da geopolítica brasileira tradicional:
existe hoje uma “nova geopolítica brasileira”?*
Durante grande parte do século XX existiu no Brasil uma verdadeira
escola geopolítica com um peso significativo nos destinos do país. A
nosso ver, ela se encontra em crise desde os anos 1980. Será que existe
uma “nova geopolítica brasileira”? Se existir, mesmo que
potencialmente, quais seriam os seus pressupostos? Examinaremos essa
ideia nas linhas a seguir.
Há praticamente um consenso, entre os acadêmicos que estudam esta
temática, que existiu, no Brasil, uma importante (inclusive em termos
internacionais) escola geopolítica que incluiu nomes como o de
Golbery do Couto e Silva (o mais famoso de todos, devido à sua forte
presença nos governos militares), Mario Travassos, Everardo
Backeuser, Octávio Tosta, Lysia Rodrigues, Carlos de Meira Mattos,
Therezinha de Castro, José E. Martins, Juarez Távora e vários outros.
Existem inúmeras teses, livros, artigos de revistas acadêmicas e até
atlas geopolíticos e geoestratégicos que realçam a importância desta
escola de geopolítica, tais como – apenas para citar alguns – os de
Tambs, Chaliand e Rageau, Vesentini, Costa, Miyamoto, Mello e
Lorot1.
*
Texto publicado com o título La crisis de La geopolítica brasileña tradicional. Existe hoy uma
nueva geopolítica brasileña?, na revista Política y Estrategia, Santiago de Chile, n.108, outubro
de 2007.
1
TAMBS, L. A. “Latin American geopolitics: a basic bibliography”. In: Revista Brasileira de
Geografia, Rio de Janeiro, IBGE, n.73, 1970, p. 71-105; CHALIAND, G. e RAGEAU, J. P. Atlas
estratégico y geopolítico. Madrid, Alianza Editorial, 1983; VESENTINI, J. W. A capital da
geopolítica. São Paulo, Ática, 1987; COSTA, W. M. Geografia política e geopolítica. São Paulo,
197
José William Vesentini
Essa escola geopolítica brasileira produziu uma rica e vasta
bibliografia – sob a forma de livros, artigos e ensaios em revistas,
principalmente militares, planos e projetos a serem operacionalizados
pelo Estado etc. – desde a década de 1920 até os anos 1980, quando
ingressou numa fase de declínio. Nosso objetivo, aqui, é mostrar
sucintamente no que consistiu essa escola geopolítica brasileira, quais
foram suas preocupações e temas básicos, quando e porque entrou em
crise e, principalmente, como ficou o pensamento geopolítico brasileiro
a partir de então.
O emprego do termo escola geopolítica requer algumas explicações. É
comum, por parte de vários autores o uso desse vocábulo, mas sem
nenhuma preocupação justificatória. Um recente estudo voltou a
empregar essa palavra, mas em parte alguma surge alguma explicação
para o seu uso; existe nesse livro tão somente uma descrição – embora
bastante cuidadosa – dos temas e análises desenvolvidos por três
geopolíticos brasileiros daquele período que mencionamos (Castro,
Golbery e Meira Mattos), uma escolha, por sinal, subjetiva e
questionável2. O mesmo poderia ser dito em relação aos demais autores
que empregaram essa expressão, escola geopolítica brasileira, que na
verdade nunca foi muito bem explicitada. Apesar disso, a nosso ver
essa denominação tem a sua razão de ser. Acreditamos que é, de fato,
possível falar numa escola geopolítica brasileira devido às seguintes
razões. Em primeiro lugar, porque todos os autores representativos de
uma forma ou de outra dialogaram entre si, se complementaram,
mesmo que eventualmente tenham discordado em determinados itens –
tais como, por exemplo, na questão de como integrar o território
brasileiro, seja através de rodovias, para alguns, seja por ferrovias, para
outros, ou por hidrovias, para uns poucos; ou, então, na maior ou menor
ênfase na região platina ou na Amazônia; ou ainda, no período da
guerra fria, entre uma clara opção pelo campo ocidental e norteamericano ou uma tentativa de alcançar alguma liderança no mundo em
desenvolvimento, particularmente na América do Sul e nas nações
Edusp, 1988; MIYAMOTO, S. Geopolítica e poder no Brasil. Campinas, Papirus, 1995; MELLO, L.
I. A. A geopolítica do Brasil e a bacia do Prata. S.Paulo, Annablume, 1997; LAROT, P. Histoire
de la géopolitique. Paris, Econômica, 1995.
2
FREITAS, J. M. C. Escola geopolítica brasileira. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 2004.
198
Ensaios de geografia crítica
africanas onde se fala o português. Contudo, apesar das discordâncias
pontuais, existiu algo em comum a todos eles: a preocupação com as
fronteiras e com a integração nacional ou territorial, uma crítica ao
federalismo com uma correlata defesa de um Estado centralizado e,
principalmente, uma preocupação ou uma aspiração sobre o futuro do
país, consubstanciado na ideia de um “Brasil, grande potência”, seja ela
regional (na América do Sul ou, eventualmente, na América Latina e no
Atlântico Sul) ou mundial.
Indo um pouco além, e aqui talvez resida a principal razão para o uso
dessa expressão, acredito que existiu um projeto geopolítico para o
Brasil, ou melhor, um projeto de reestruturação político-territorial
pensado pelos geopolíticos brasileiros daquele período – dos anos 1920
aos anos 1980 – e que, se implementado, faria com que o país se
modernizasse caminhando rumo ao status de uma potência regional ou
até global. Destarte, aqueles geopolíticos formaram uma verdadeira
escola de pensamento porque tinham um projeto em comum, tinham os
seus autores clássicos ou inspiradores (Alberto Torres, Oliveira Viana
e, um pouco mais tarde, Mario Travassos), além de abordarem temas
comuns, que foram muito bem arrolados por Miyamoto3, quais sejam: a
geografia dos transportes e das fronteiras, a mudança da capital federal
para o interior e a redivisão territorial do país. Poderíamos, ainda,
acrescentar um tema central, a segurança nacional (entendida
essencialmente como segurança do Estado e não da sociedade), além da
integração nacional, da necessidade do país se tornar autossuficiente
em armamentos, da presença do Brasil no mundo e na América do Sul.
Sabemos que esse pensamento geopolítico brasileiro – ou melhor, esse
projeto para o país – não ficou só no papel. Da teoria ele se incorporou
à prática. A partir do Governo Getúlio Vargas, que chegou ao poder em
1930, o ideário geopolítico foi sendo cada vez mais implementado. Já
mostramos num estudo anterior que esse projeto geopolítico, por volta
de 1927-30, se encontrou e se amalgamou com os reclames do
empresariado industrial, basicamente paulista, que naquele momento
começava a tomar consciência dos seus interesses específicos e dos
3
MIYAMOTO, S. Geopolítica e poder no Brasil , op. cit.
199
José William Vesentini
rumos que gostaria que o Brasil trilhasse4. Também aos empresários
industriais desagradava o regime federativo da chamada República
Velha (de 1889 a 1930), principalmente os impostos que cada estado
cobrava para os produtos oriundos dos demais. Em resumo, o governo
Vargas foi o primeiro que colocou em prática, pelo menos em grande
parte, algumas ideias dessa escola geopolítica e do empresariado
paulista: a marcha para o oeste, a construção de estradas com vistas à
integração nacional (e não mais visando tão somente interligar alguma
área agropecuária ou mineradora a um porto de exportação), o final dos
impostos alfandegários entre os estados e, por fim, um notável
fortalecimento do governo federal – e também das forças armadas, que
passaram a ter o monopólio de certos armamentos que antes eram
utilizados também pelas milícias estaduais – que se sobrepôs aos
estados e municípios, os quais, durante a República Velha, tiveram
maior poder e autonomia.
Depois de Vargas, inúmeras propostas geopolíticas foram
operacionalizadas pelo governo de Juscelino Kubitscheck (1956-60),
principalmente a interiorização da capital federal (e também a
construção de inúmeras rodovias que permitiram a ocupação efetiva do
Brasil central e parte da Amazônia) e, sem a menor dúvida, pelo regime
militar que se instalou em 1964 e perdurou até 1985. Uma boa parte
dos dirigentes desse regime militar era de geopolíticos, inclusive alguns
presidentes da República e vários ministros. Cabe aqui, mais uma vez,
recordar que o nome mais famoso foi o do general Golbery do Couto e
Silva, que exerceu uma influência notória nos governos Castelo Branco
(1964-67), Ernesto Geisel (1974-79) e Figueiredo (1979-85). Durante o
regime militar, houve uma expansão da indústria bélica no Brasil, com
fortes subsídios estatais, a ponto de o país ter se tornado num grande
exportador mundial de armamentos. Não podemos esquecer que
quando do término da ditadura militar no Brasil, em 1985, foi
descoberto na Serra do Cachimbo, no sul do Pará, um fosso –
perfurações de 320 metros de profundidade revestidas de concreto –
destinado a ser o local de experiência da primeira bomba atômica do
país, uma informação a princípio desmentida pelas autoridades, mas
4
VESENTINI, J. W. A Capital da Geopolítica. Op. cit., p. 123-33.
200
Ensaios de geografia crítica
depois confirmada pelas análises de cientistas – inclusive pela
Sociedade Brasileira de Física – e até mesmo, passados vários anos, por
entrevistas de militares que participaram do programa. Também
durante o regime militar ocorreu uma maior ocupação da Amazônia
brasileira, com a construção de rodovias e com a criação da SUDAM
(superintendência para o desenvolvimento da Amazônia), além de ter
havido o término e a consolidação de Brasília como capital federal de
fato5.
Por que esse pensamento geopolítico, com o seu ideário, entrou em
crise nos anos 1980? Por que depois da morte de Golbery, em 1987,
praticamente não foram criadas novas ideias nessa escola geopolítica?
(Alguns poucos sobreviventes, mesmo que aposentados ou na reserva,
como o general Meira Mattos, falecido em 2007, continuaram a
propagar as ideias geopolíticas clássicas, mas, a meu ver, sem se
adequarem de fato ao novo mundo pós-guerra fria, às novas tecnologias
da terceira revolução industrial, que, conforme esmiuçamos em outro
trabalho6, mudaram inclusive os conceitos de guerra e de grande
potência).
Acreditamos que isso ocorreu devido a vários fatores, mas o principal
deles é que ficou evidente, a partir da década de 1980, que esse projeto
para o Brasil tinha pressupostos questionáveis, enfim, que ele deveria
ser radicalmente repensado. Sem dúvida que também a crise do
“modelo econômico” aplicado pelo regime militar contribuiu para isso.
O final dos fáceis empréstimos internacionais baseados nos eurodólares
e notadamente, a partir de meados dos anos 1970, nos petrodólares,
junto com a consciência na nova conjuntura internacional dos anos
1980 de que a enorme dívida externa do país deveria ser paga, a par do
progressivo declínio de determinados parâmetros da segunda revolução
industrial – produção em massa, sem controle de qualidade, o uso
massivo de uma força de trabalho não qualificada etc. – fizeram com
que o “modelo” de desenvolvimento do Brasil, que havia sido a
economia com maior crescimento em todo o mundo nos anos 1970,
entrasse em crise. Desde os anos 1980 que o Brasil conhece medíocres
5
6
Cf. VESENTINI, J. W. Op. cit., p.163-9.
VESENTINI, J. W. Novas geopolíticas. São Paulo, Contexto, 2000.
201
José William Vesentini
taxas anuais de crescimento da economia, em geral inferiores à média
mundial e até mesmo à média dos países latino-americanos. Também
nos anos 80 ficou evidente que o crescimento econômico não foi
acompanhado por melhorias sociais – ao contrário, a distribuição social
da renda se tornou cada vez mais concentrada a partir da década de
1960. E, nos anos 1980 – como também, infelizmente, malgrado ter
ocorrido algumas melhorias, nos dias de hoje –, o Brasil não estava
preparado para as novas demandas exigidas pela revolução técnicocientífica em andamento. Um sistema escolar com uma qualidade em
franca decadência desde o final dos anos 1960 – apesar de uma sensível
expansão quantitativa –, que resulta numa força de trabalho em geral
pouco qualificada e com baixíssimo nível de escolaridade em termos
internacionais, a par de um poder aquisitivo médio extremamente
reduzido para a imensa maioria da população, fez com que o país
perdesse inúmeras oportunidades no mundo globalizado.
Sem dúvida que isso tudo – e muitos outros processos, que não
caberiam neste ensaio – contribuiu para o final do regime militar. Mas a
crise da geopolítica não foi apenas um subproduto da crise desse
regime; ela foi também um resultado de sua própria aplicação.
Paradoxalmente, pode-se dizer que a geopolítica brasileira entrou em
crise porque, tendo sido operacionalizada em grande parte, em suma,
não produziu os resultados que prometia. Depois de várias décadas de
implementação do ideário geopolítico, o Brasil não se transformou num
país de fato moderno e desenvolvido, numa potência indiscutível na
América do Sul e no mundo. O Brasil quase chegou a possuir a bomba
atômica – algo que não teria alterado praticamente em nada seu status
na comunidade internacional e muito menos melhorado o padrão de
vida da população –, mas continua a ser um país problemático, com
uma sociedade carcomida, com desigualdades sociais bem maiores que
a imensa maioria das demais nações do globo, e ainda dependente de
investimentos e tecnologia estrangeiros.
De fato, o ideário geopolítico da escola brasileira era alicerçado numa
concepção ultrapassada de potência, de segurança, de modernização e
de desenvolvimento. Uma concepção geopolítica sem dúvida clássica,
que poderíamos chamar de napoleônica, coerente com as ideias dos
202
Ensaios de geografia crítica
“grandes nomes” da geopolítica clássica (Kjellén, Mackinder, Mahan
ou Haushofer), mas completamente equivocada por não valorizar
minimamente os chamados “recursos humanos”, o “poder cerebral” na
denominação de alguns economistas. Havia uma visão militarista de
potência, que levou em conta apenas a dimensão do território, com sua
localização e suas características, o tamanho da população e sua
distribuição no espaço, os recursos econômicos brutos e o poder
militar; mas que ignorou a importância da educação e da melhor
qualidade de vida e até mesmo do poder aquisitivo da maioria da
população – isso sem falar na expansão das liberdades, fundamental
para o desenvolvimento, segundo o premio Nobel Amartya Sen 7. Em
suma, uma concepção de potência mundial ou regional – e não de uma
sociedade democrática e com um desenvolvimento sustentável – que,
sem dúvida, a nosso ver, fracassou não porque tenha sido “desvirtuada”
ou aplicada de forma incorreta, como diriam alguns, e, sim, exatamente
porque foi operacionalizada e não deu – nem poderia dar, em face de
seus pressupostos – os resultados almejados.
A partir daí, será que existe uma “nova” geopolítica brasileira, com
novos pressupostos, com novas ideias, enfim, uma nova escola ou uma
nova safra de bons geopolíticos? Minha resposta é não. No mundo
político e governamental pode-se dizer que existe um momento de
perplexidade a esse respeito. As ideias geopolíticas foram durante
décadas criticadas de forma radical por praticamente todos os espectros
da esquerda, que agora está no poder (seja via PT ou PSDB) e que, na
verdade, nunca teve, e continua a não ter, nenhum projeto viável ou
realista para o futuro do país. Teve, sim, o sonho ou devaneio de que
combater o capitalismo seria suficiente para garantir a construção de
uma sociedade igualitária e não dependente, sempre pensando apenas
em termos de luta de classes e modos de produção, nunca em termos de
relações internacionais ou do papel do Brasil no mundo. Daí a
perplexidade e a falta de um projeto para o século XXI.
Quanto ao mundo acadêmico, nele ocorreu, a partir dos anos 1980, uma
multiplicação de estudos sobre geopolítica – ou de geografia política,
de relações internacionais, de ciência política com ênfase no espaço e
7
SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo, Cia das Letras, 2000.
203
José William Vesentini
no papel do Brasil no mundo etc. –, por sinal, com trabalhos de boa
qualidade. Mas não estudos de fato geopolíticos no sentido de pensar o
Brasil como potência regional ou mundial. Por sinal, uma boa parte
desses estudos é histórica, isto é, propõe-se a historiar ou analisar a
geopolítica brasileira, e não a recriá-la. Não existe mais nenhum projeto
coerente (a não ser propostas casuísticas e oportunistas de criação de
novos Estados) de reordenação político-espacial para o país. A escola
geopolítica brasileira virou uma fonte de pesquisas, só que ela não
existe mais. Talvez surja uma “nova escola geopolítica” (ou de
geoeconomia, como dizem alguns) que refaça um projeto para o Brasil,
mas, até o momento, desde os anos 1980 até esta primeira década do
século, o que existe são estudos em geral isolados, que pouco dialogam
entre si e, via de regra, de natureza histórica, que esmiúçam tal ou qual
ideia ou proposta de ação, que comparam este e aquele autor, mas sem
o caráter abrangente ou genérico, sem o pragmatismo da “velha”
geopolítica.
A geopolítica clássica sempre implicou numa forte identificação com o
Estado, que subsumia a nação e a sociedade, que as incorporava e
comandava. Sempre pensou o mundo como um palco de disputas e
guerras entre os Estados, esse ator privilegiado e quase exclusivo, uma
espécie de “selva” onde só os fortes sobrevivem. Muitos continuam a
pensar dessa maneira, às vezes até reproduzindo ainda hoje velhas
propostas (como a do Brasil desenvolver armas nucleares, voltar-se
mais para o “interior”, ou numa outra leitura para a América do Sul e o
mundo subdesenvolvido, deixando de lado o chamado Norte
geoeconômico), mas não creio na seriedade nem no alcance dessas
ideias. Dificilmente elas conseguirão lograr a influência que a escola
geopolítica brasileira teve, que praticamente chegou a ser um partido
político à margem da disputa eleitoral – mas disputando o poder do
Estado por outras vias – e que se tornou vitorioso em vários momentos
e circunstâncias.
A escola geopolítica brasileira alcançou tamanha repercussão e teve
tanta influência na vida política do país, em grande parte, devido ao
fato de ter sido produzida quase que exclusivamente por militares – os
poucos civis que colaboraram via de regra eram professores em
204
Ensaios de geografia crítica
colégios militares. Os militares no Brasil, pelo menos durante boa parte
do século XX formaram um grupo coeso e fortemente politizado, quase
um partido político no sentido de proporem mudanças, terem um
projeto, um ideário, e lutarem pela sua implementação pelo Estado 8.
Podemos, talvez, afirmar que a geopolítica representou uma espécie de
“porta de entrada” dos militares brasileiros na vida política, isto é, uma
forma de teorizarem – e pressionarem – sobre os destinos do país, ao
mesmo tempo em que aparentemente estavam apenas discutindo
questões militares ou geoestratégicas, pois a geopolítica tinha os
conflitos armados no seu âmago (o poder era sempre visto, antes de
tudo, como relações de força) e contava com inúmeros militares entre
seus autores clássicos (Haushofer, Mahan e vários outros). A partir de
1985, com a redemocratização do país, mesmo que indiscutivelmente
capenga ou relativa, os militares se retraíram, passaram a se ocupar
basicamente dos seus problemas corporativos – ou então das questões
específicas de estratégia militar – e, ao mesmo tempo, começa a
predominar uma percepção de que seriam os verdadeiros partidos
políticos que deveriam se encarregar dessa tarefa de produzir ideários
ou projetos para o futuro do país.
Mas, para encerrar, não poderíamos afirmar que algumas ideias da
escola geopolítica continuam a nortear a política do governo federal
brasileiro? Certos analistas parecem sugerir essa ideia, ao afirmarem
que no governo Lula a política econômica é neoliberal, uma
continuação do governo anterior, ao passo que a política externa seria
nova e ousada, uma espécie de atualização do terceiro-mundismo – ou
meridionalismo, como querem alguns. Existem, de fato, certas
evidências que poderiam corroborar essa ideia. Por exemplo: logo no
início do primeiro governo Lula, em 2003, o ministro da ciência e
tecnologia afirmou que o Brasil deveria buscar o conhecimento
necessário para a fabricação da bomba atômica. Ele durou pouco no
cargo. Mas a imprensa constantemente noticia que, nesse mesmo
governo, muitos estão apregoando a ideia de que o Brasil deve retomar
o intento – que existia como parte do “projeto nuclear paralelo
brasileiro”, cujo grande escopo era a bomba – de fazer um submarino
8
Cf. STEPAN, A. Os militares na política. São Paulo, Artenova, 1975.
205
José William Vesentini
movido a reatores nucleares. Isso, sem contar com as tentativas do
governo brasileiro de liderar a América do Sul e a América Latina
como um todo, que resultou em inúmeras concessões ao Peru, ao
Uruguai e até – nas rediscussões sobre tarifas do Mercosul – à
Argentina9. Mas esse assistencialismo internacional na América do Sul,
com vistas a alcançar uma “liderança natural” – nas palavras do
chanceler Celso Amorim –, logo foi atravancado pela política externa
do governo Hugo Chaves da Venezuela, que dispõe de fartos recursos
oriundos dos altos preços internacionais do petróleo. Mas há também os
esforços diplomáticos – consubstanciados com criação do G-4 – no
sentido do Brasil se tornar o país latino-americano que dispõe de uma
cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU numa possível
reestruturação desta. Ou ainda o envio de tropas brasileiras para ajudar
na pacificação do Haiti, em 2004. Ou uma pretensa ênfase no
fortalecimento do Mercosul, como uma tentativa de se contrapor à
influência norte-americana nesta parte do mundo. Ou ainda, segundo
alguns, uma “nova” política externa que procura mais e mais se
aproximar dos países do Sul – Índia, China, África do Sul e,
principalmente, países latino-americanos – ao mesmo tempo em que,
supostamente, amplia sua independência em relação a Washington.
No entanto, todas essas evidências – ou algumas outras no mesmo
sentido – não comprovam que a escola geopolítica brasileira continua
ativa e, muito menos, a existência de um novo ideário geopolítico. São,
de fato, ocorrências mais de política externa do que doméstica. Nesta
última, na política stricto sensu, predomina um populismo de caráter
assistencialista que, na substância, pouco difere dos antigos regimes
populistas de Vargas, Kubitschek ou Jango. Na política econômica
prossegue o modelo, construído no governo anterior (de Fernando
Henrique Cardoso), que alguns equivocadamente denominam
neoliberal: uma ênfase na busca de credibilidade perante o mercado
financeiro internacional, com juros altos para atrair capitais externos e,
ao mesmo tempo, conter a inflação, um notável esforço no sentido de
9
Cf. FERREIRA, O. S. “A política externa do governo Lula”. Palestra proferida em agosto de
2004 na PUC-SP e disponível in http://br.monografias.com/trabalhos/politaca-externagoverno/politaca-externa-governo.shtml.
206
Ensaios de geografia crítica
ampliar o volume das exportações, com vistas a acumular divisas,
determinadas políticas populistas e assistencialistas para a população
mais carente etc. Mas, na política externa, segundo a leitura de alguns,
existiria algo de novo e radicalmente diferente dos governos anteriores.
Essa leitura de natureza dualista, que enxerga uma política interna
ortodoxa e uma política externa nova ou até revolucionária, é
extremamente duvidosa. Primeiro, porque ambas as políticas se
imbricam, já que em grande parte a externa – por exemplo, a busca de
novos parceiros comerciais – depende da interna. Segundo, porque
esses “fatos novos” na política exterior – pelo menos uma boa parte
deles – podem ser vistos como atitudes ou orientações isoladas, muitas
vezes movidas pelas circunstâncias e não por um projeto de longo
prazo. Eles não constituem um verdadeiro projeto geopolítico para o
século XXI, tampouco um projeto de desenvolvimento, no sentido de
se forjar uma grande potência. A bem da verdade, a maior parte desses
procedimentos são já antigos – uma constante no Estado brasileiro,
independente deste ou daquele governo – tal como, por exemplo, o fato
de que, desde a criação da Liga das Nações, em 1919, o país já
pleiteava uma vaga como membro permanente do Conselho de
Segurança daquela organização. E o envio de tropas brasileiras para o
Haiti, no atual governo, foi precedido pelo envio de tropas para o
Timor Leste, no governo anterior. Também não se pode esquecer que o
Mercosul, visto por alguns como o símbolo de uma nova geopolítica
regional, foi criado em 1991 – ou seja, muito antes do atual governo –
e, por sinal, nos anos recentes anda meio estagnado e necessitando de
uma reformulação. Ademais, o Mercosul surgiu como uma decorrência
da reprodução de uma tendência mundial, a partir da globalização e do
sucesso da União Européia, de constituir mercados supranacionais em
várias partes do mundo. Embora importantíssimo, ele representou mais
um mimetismo do que uma nova e efetiva iniciativa local, ou seja, uma
geopolítica regional mais empurrada pelos ventos da globalização do
que por uma vontade própria e deliberada com vistas a unir o Cone Sul.
Quanto a uma maior aproximação com alguns países do Sul – se é que
a China pode continuar a ser incluída nesse grupo –, não se deve ver
nisso nenhuma nova geopolítica ou mesmo uma radicalmente nova
207
José William Vesentini
política externa, pois, por um lado, é consequência do notável
crescimento da China, a qual, a bem da verdade, estreita seus laços com
praticamente todos os países do mundo, inclusive e principalmente com
os Estados Unidos e a União Européia, e não apenas com os do Sul; por
outro lado, temos que lembrar que, apesar da impressão em contrário,
ou dos textos panfletários, em média as economias do Sul – desde que
se inclua neste grupo a Índia, a China, os “tigres asiáticos” etc. –
cresceram percentualmente bem mais que as do Norte nas últimas duas
ou três décadas. Com isso, várias dessas economias chamadas de
emergentes – inclusive a brasileira – se tornam cada vez mais
complexas e industrializadas, o que vem gerando uma nova divisão
internacional do trabalho na qual os intercâmbios Sul-Sul em geral – ou
seja, não apenas os do Brasil com outros países meridionais –
cresceram enormemente nesse período de tempo.
Por sinal, ao mesmo tempo em que amplia suas relações de troca com
outros países do Sul, o Brasil, de forma insistente e pragmática,
também procura – embora nem sempre consiga – encetar acordos
especiais de comércio e/ou de transferência de tecnologia com a
Europa, com o Japão e até com os Estados Unidos. Não existe – nem
deveria existir, pois seria puro idealismo desprovido de senso de
realidade – qualquer orientação no sentido de dar primazia aos países
do Sul, como sonham alguns. Existe, sim, uma notável mobilização,
desde pelo menos o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002),
com vistas à abertura do mercado, especialmente das exportações, algo
que tem sido particularmente bem-sucedido nos últimos anos. Bemsucedido, convém aclarar, não devido a um pretenso novo
direcionamento da política externa, mas basicamente em função da
crescente procura internacional por certas commodities – como a soja e
seus derivados, as carnes, os minérios e seus derivados etc. – que o
Brasil produz em grande quantidade e que, além do mais, conheceram
um sensível aumento nos seus preços nestes últimos anos (isto é, entre
2004 e meados de 2008).
Em resumo, não existe uma nova geopolítica para o Brasil no sentido
de um projeto coerente para os desafios do século XXI. Uma
geopolítica diferente da clássica, alicerçada em novos pressupostos: não
208
Ensaios de geografia crítica
mais o poderio militar e, sim, o econômico-social, que depende
fundamentalmente do softpower e dos chamados recursos humanos –
educação, tecnologia, poder aquisitivo para a população em geral,
influência cultural em outros países etc. – e também da expansão das
liberdades, de uma maior participação dos cidadãos nas decisões e no
controle dos gastos públicos, enfim, da implementação de uma
democracia entendida como processo permanente10. Será que algum
partido político engendrará um novo projeto com esses pressupostos?
Duvido muito, pois todos eles estão preocupados apenas com cargos e
vantagens – sejam legais ou ilegais –, com o uso da máquina pública
em benefício pessoal e de apadrinhados. Surgirá esse novo projeto na
academia? Talvez, mas é forçoso reconhecer que o mundo mudou tão
radicalmente desde o final do século passado e os intelectuais
acadêmicos, salvo raríssimas exceções, são demasiadamente lentos em
rever as suas ultrapassadas ideias. Uma boa parte deles, no Brasil, ainda
vive sob a ideologia da guerra fria, raciocinando em termos de
“derrubar o capitalismo”. (Com vagas propostas de um “socialismo
democrático”, que soam estranhas vindas de vozes que não admitem
contestações ou críticas, que não admitem outros caminhos que não os
seus, e que, de forma declarada ou disfarçada, continuam a ter como
norte o marxismo-leninismo). Ou, então, de se “vingar” da derrocada
do antigo mundo socialista, como se o mundo fosse um campeonato de
futebol no qual neste ano ganha o time X e no ano seguinte o Y. Uma
outra parte, a que se voltou para a geopolítica antes repudiada, recupera
– de forma entusiasta e não crítica – determinadas ideias de
geopolíticos militares como Mário Travassos, Meira Mattos ou Golbery
do Couto e Silva, como se não vivêssemos em uma nova realidade na
qual os pressupostos dessa geopolítica clássica já se tornaram
superados. Mas o mundo intelectual é rico e complexo, pleno de
aporias e controvérsias, e em alguns casos é aberto para o mundo, para
pensar as mudanças. Por isso mesmo constitui um campo no qual
podem surgir novas ideias ou um novo paradigma geopolítico.
10
Cf. LEFORT, C. A invenção democrática. S. Paulo, Brasiliense, 1983.
209
José William Vesentini
210
Golbery do Couto e Silva, o papel das forças armadas e
a defesa do Brasil*
Este ensaio procura analisar criticamente alguns aspectos do
pensamento geopolítico do general brasileiro Golbery do Couto e Silva
(1911-1987). Como é amplamente conhecido, Golbery foi um dos
principais nomes da chamada “escola geopolítica brasileira”. Não foi o
grande ideólogo dessa escola – posição normalmente atribuída a Mario
Travassos1 –, mas, sem dúvida, se tornou na sua figura mais conhecida
após ter participado, como uma espécie de “conselheiro do Príncipe”,
dos governos militares de Castelo Branco (de 1964 a 67), Geisel (de
1974 a 79) e Figueiredo (1980-81)2. Em face do seu desempenho como
uma espécie de intelectual orgânico desses referidos governos, ele
*
Texto elaborado em 2008 a pedido de uma revista militar chilena. Publicação no prelo.
TRAVASSOS, M. Projeção continental do Brasil. São Paulo, Brasiliana, 1935.
2
O governo do general Figueiredo prosseguiu até 1985, mas Golbery solicitou a sua demissão
como Chefe da Casa Civil em 1981, após a recusa do executivo em apurar com rigor o episódio
conhecido como Riocentro. Nesse pavilhão, o Riocentro, milhares de pessoas comemoraram o
Dia do Trabalho quando uma bomba explodiu no estacionamento. A explosão ocorreu no
carro de um militar, matando o seu ocupante, um capitão lotado nos chamados “órgãos de
inteligência”, na verdade um membro da “linha dura” dos órgãos de repressão da época. Ao
que tudo indica, ele pretendia detonar a bomba no meio da multidão para culpar os
“terroristas de esquerda”, fato que justificaria a continuidade – e maiores verbas e pessoal –
para a organização na qual trabalhava. Mas, por um acidente qualquer, o artefato explodiu no
seu carro e as tentativas de incriminar uma suposta rede terrorista de oposição ao regime
ficaram completamente desmoralizadas. Malgrado o receio de Figueiredo em apurar com
rigor o fato e punir os responsáveis, a “abertura lenta e controlada” imaginada por Golbery,
com o apoio de Geisel (foram eles que escolheram Figueiredo para ser o último presidente
militar), prosseguiu e, em 1985, a presidência da República no Brasil foi novamente ocupada
por um civil. Veja-se, sobre isso, as análises de STEPAN, Alfred. Os militares: da abertura à
Nova República. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p. 44-55.
1
211
José William Vesentini
recebeu os epítetos de “satânico Doutor Go”, “mago” ou “feiticeiro”,
além de outros.
O papel de conselheiro ou consultor de governo, exercido por Golbery,
muitas vezes foi exagerado pela mídia ou pelos comentaristas. É
sempre mais fácil e cômodo criar ou hipostasiar um personagem
maligno e onipotente, que manipula tudo, do que estudar os diversos
grupos em oposição e diálogo numa conjuntura, enfim, o entrechoque
de interesses que resulta numa ação muitas vezes diferente do
pretendido por qualquer grupo isoladamente. Existe ainda a carência de
fontes, ou a dificuldade de acesso a elas, inclusive hoje, passados mais
de vinte anos do final da ditadura militar no Brasil. Apesar disso, não
há dúvidas de que Golbery desempenhou um papel importante naqueles
três governos militares citados, embora tenha sido execrado e colocado
no ostracismo pelos outros dois, os governos mais “linha dura” dos
generais Costa e Silva (1967-69) e Médici (1969-74). Como assinalou
um influente jornalista brasileiro, no prefácio à reedição de textos
variados de Golbery: “Numa época em que o poder político esteve em
poucas mãos, as de Golbery estão entre as que mais poder tiveram”3.
Também um acadêmico, especialista em ciência política e relações
internacionais, lembrou com propriedade a importância das ideias de
Golbery para a chamada “abertura controlada” que ocorreu no Brasil no
início dos anos 1980, quando os militares, após uma fase transitória de
distensão ou afrouxamento – e negociação a respeito de anistia de
ambos os lados (governo militar e oposição) e a escolha de “pessoas
confiáveis” entre os civis –, entregaram novamente o poder para os
civis4. E, por fim, uma dissertação de mestrado assinalou o seguinte:
Golbery foi uma das principais personagens da história
brasileira, desde os anos 50. Unia perfeitamente as
qualidades de intelectual e homem prático – era um
intelectual orgânico da burguesia brasileira. Sua
3
GASPARI, Elio, Prefácio, in COUTO E SILVA, Golbery. Geopolítica e Poder. Rio de Janeiro,
Universidade, 2003, p. X.
4
MELLO, Leonel I. A. “Golbery Revisitado: da democracia tutelada à abertura controlada” in
MOISÉS e ALBUQUERQUE - Dilemas da Consolidação da Democracia. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1989.
212
Ensaios de geografia crítica
peculiaridade: agir nas sombras. Mas o fato de atuar quase
sempre nos bastidores não diminui sua, às vezes,
dramática importância para a história do Brasil5.
A nosso ver, pode-se afirmar que toda a obra de Golbery está norteada
por duas preocupações maiores: o futuro desejável do Brasil e o papel
dos militares na sua concretização. O futuro do país é entendido como
algo complexo, decorrente de uma quase fatalidade geopolítica –
localização, tamanho e características do território (e logicamente
também das fronteiras, vistas como a epiderme do território), população
com seus valores, especialmente o nacionalismo, sua distribuição
geográfica, sua coesão, suas lideranças – aliada a um planejamento
estratégico que procure explicitar e direcionar os recursos e os esforços
do país no sentido da sua “vocação geopolítica”. Justamente aqui entra
o papel dos militares, que seriam os guardiões da integridade territorial,
os responsáveis pela resolução dos inevitáveis conflitos externos e
também pela paz interna, além dos teóricos do planejamento
estratégico.
Logicamente, existe toda uma filosofia da história por trás desse
entendimento. O mundo todo é atomizado, compartimentado em
Estados, nos quais existem as nações (mas, hierarquicamente, aqueles
primeiros precederiam e dirigiriam estas últimas), numa anarquia
internacional onde reinam as disputas, os conflitos, as guerras por
expansão ou engrandecimento. Trata-se, fundamentalmente, de uma
concepção hobbesiana segundo a qual:
Francamente não entendemos [...] que alguém possa
acreditar hoje nos velhos sonhos de uma paz mundial
estável, fundada [...] na justiça internacional, na inatingível
liberdade das nações, reconhecida e respeitada por todos, e
nesse princípio tão lógico, tão moral, mas não menos
irreal, da autodeterminação e absoluta soberania dos
povos, o qual, nem por não se poder nele confiar de forma
alguma, importa que se deixe de usá-lo e defendê-lo a todo
5
ASSUNÇÃO, Vânia N. F. O satânico Doutor Go. A ideologia bonapartista de Golbery do Couto
e Silva. Dissertação de Mestrado. São Paulo, PUC, 1999.
213
José William Vesentini
custo com argumento único, que é, dos fracos contra os
fortes. O ideal da ‘renúncia à guerra como instrumento da
política’, proclamado ingenuamente [...], viu-se
inteiramente ultrapassado pela realidade indiscutível dos
fatos6.
Mas o avanço da história, dos direitos democráticos e dos tratados
internacionais, além da tecnologia moderna, não teria amenizado essa
luta de todos contra todos? Golbery acredita que não. Da mesma forma
que inúmeros pensadores gregos (por exemplo, Platão ou mesmo
Aristóteles), Golbery pensa que a própria democracia – em especial
com a demagogia já conhecida pelos gregos acrescida hoje pela
expansão de uma imprensa livre – encerraria os perigos do uso da
palavra para ludibriar as massas e chegar ao poder, desvirtuando os
verdadeiros objetivos nacionais permanentes. Ademais, a tecnologia
moderna na verdade coloca meios mais poderosos para conquistar ou
subjugar outros Estados. Em suas palavras:
Os progressos surpreendentes da técnica e da
industrialização acelerada rompem, pela continuidade do
ar e pela permeabilidade do éter, a escala de todas as
compartimentações espaciais em que se educara o espírito
moderno. Abre-se a era da história continental que Ratzel
predissera. Os países fortes tornam-se cada vez mais fortes
e os fracos dia a dia mais fracos; as pequenas nações se
vêem, da noite para o dia, reduzidas à condição humilde de
Estados pigmeus [...] E num mundo em que as distâncias
dia a dia mínguam, em que os continentes viram ilhas ou
penínsulas e os mares tornam-se apenas lagos [...] em que
todas as barreiras físicas vão perdendo sua histórica
significação de obstáculos intransponíveis, a vida de
relação dos Estados pela interdependência [...] sobrepõe-se
à sua vida própria7.
6
COUTO E SILVA, Golbery. Geopolítica do Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1967,
p. 21-2.
7
Idem, p. 22-3.
214
Ensaios de geografia crítica
O mundo, portanto, é uma espécie de “lei da selva” na qual os povos ou
nações, organizados sob a forma civilizada de Estado, devem procurar
sobreviver e se fortalecer. Existem ameaças tanto internas (a falta de
coesão e de nacionalismo, a luta de classes, a demagogia de certas
lideranças políticas) quanto principalmente externas (os outros Estados
com os seus propósitos, vistos como absolutamente naturais e até
inevitáveis, de expansão ou engrandecimento). Nesse sentido, deve-se
elaborar um planejamento estratégico para pensar o papel do país no
mundo, o seu futuro desejável. Esse futuro – ou “vocação” – deve
alicerçar-se na geopolítica, isto é, como esclarece o autor, “na política
feita em decorrência das condições geográficas”8.
O planejamento estratégico, tendo por base uma análise geopolítica,
deve indicar os Objetivos Nacionais Permanentes, deve avaliar com
critério a conjuntura (interna e internacional), deve medir os potenciais
e as ameaças, para, enfim, definir as diretrizes governamentais. Neste
ponto, o autor envereda por uma discussão teórico-geográfica sobre a
(pretensa) antinomia entre determinismo e possibilismo9, para em
seguida concluir que, malgrado não mais haver lugar para um
monocausalismo nas ciências sociais, não há dúvidas que o Estado é
uma espécie de organismo – e, como tal, deve crescer para se
desenvolver – profundamente interdependente com o seu meio
geográfico, que oferece ou permite determinadas potencialidades, as
quais o Estado deve despertar ou desenvolver:
A antiga luta entre deterministas e possibilistas transcende
os limites restritos da geografia para o âmbito da filosofia
política. Mais uma vez a força telúrica do meio físico é o
pomo de discórdia, segundo nela se queira enxergar a
verdadeira modeladora do homem, da sociedade e do
Estado [...] ou se entenda ao contrário apenas como um
condicionamento mais ou menos elástico que sempre
8
COUTO E SILVA, Golbery. Geopolítica e poder, op. cit., p. 537.
Já demonstramos anteriormente (ver o capítulo 2 deste livro) que essa querela entre
deterministas e possibilistas, na verdade, não existiu e foi inventada por pensadores franceses
(Durkheim, Vidal de La Blache e especialmente Lucien Febvre) no início do século XX. Em todo
o caso, muitas vezes ela é apenas um pretexto para retomar essa antiga discussão entre a
determinação das circunstâncias, inclusive o meio físico, versus o livre arbítrio humano.
9
215
José William Vesentini
faculte, com maior ou menor largueza, o direito de livre
escolha, a natureza como um ‘reservatório de energias’
que ao homem cabe despertar [...] De qualquer forma,
porém, avaliando a conjuntura internacional à luz de
objetivos nitidamente nacionais [...] os dois mestres da
geopolítica prática – um marinheiro [Mahan] e o outro
geógrafo e estadista [Mackinder] – o que realmente
fizeram foi estratégia, não apenas estratégia militar ou
naval, mas estratégia em sua mais elevada acepção. É por
isso que na obra de ambos encontramos de fato não só
formulados, mas debatidos e defendidos os verdadeiros
conceitos estratégicos que sugeriam aos respectivos
governos: Mahan [queria] afirmar a hegemonia norteamericana no continente ocidental e no Extremo Oriente,
visando no futuro suceder a Inglaterra na liderança do
mundo; e Mackinder [queria] conservar a supremacia
britânica, impedindo a emergência no continente de um
poder capaz de controlar o ‘coração do mundo’ [...]
impedir qualquer aliança entre a Alemanha e a Rússia,
estabelecendo entre as duas uma cintura de paísestampões, o célebre “cordão sanitário”10.
Assim, caberia ao estrategista pensar as diretrizes nacionais com base
numa análise das condições geográficas e da conjuntura, especialmente
a internacional. Esta é a tarefa à qual se dedica o autor. Seguindo a
trilha iniciada, ou pelo menos identificada, com o general Góis
Monteiro11 – uma figura mitológica nas forças armadas brasileiras,
ideólogo do papel político ativo dos militares, que foi a principal base
de apoio militar para a chamada revolução de 1930 (isto é, a deposição
pelas armas do governo de Washington Luis) e importante sustentáculo
da manutenção de Getúlio Vargas no presidência de 1930 até 45, assim
como da sua deposição nesta última data –, Golbery, desde que era
coronel, já vinha atuando como um intelectual militar preocupado com
os rumos da política. Ele escreveu o famoso Memorial dos Coronéis, de
10
Idem, p. 25-6.
GÓIS MONTEIRO. A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército. Rio de Janeiro,
Andersen, 1932.
11
216
Ensaios de geografia crítica
1954, assinado por 81 oficiais do exército que, por meio desse
manifesto, expressaram publicamente a sua insatisfação com a vida
política no Brasil, protestando contra determinadas medidas
legislativas, contra a inflação e a corrupção, contra o “clima de
negociatas” que envolve a vida política e contra o abandono de certos
quartéis, com escassez de soldados e de equipamentos, fatos que
colocariam em risco a segurança nacional12. Apesar de na ocasião ter
apenas a patente de tenente-coronel (portanto, inferior à de coronel),
nesse mesmo ano ele ainda redigiu o Manifesto dos Generais, assinado
por 30 generais, que pedia a renúncia do Presidente da República do
Brasil, que novamente era Getúlio Vargas13. Já despontava, assim, a
sua vocação como escriba e estrategista, como um intelectual dos
militares encarregado de elaborar e redigir manifestos, ideias e planos
para o país.
Por sinal, as principais preocupações de Golbery sempre foram a
Segurança Nacional, junto com os Objetivos Nacionais Permanentes,
que aparecem com destaque em todos os inúmeros textos, depois
reunidos em livros, que escreveu desde 1952 até inícios dos anos 1980.
Muito mais do que o Desenvolvimento (também um objetivo a
alcançar, mas sempre dentro da ordem ou da segurança) ou do que a
Democracia (também valorizada, embora não a “liberal” e, sim, a
“responsável”, isto é, que não coloque em risco a Segurança). Por sinal,
a democracia só é apregoada pelo autor na medida em que seria um
contrapeso ao arbítrio, ao totalitarismo que gera divisões e tensões e
produz uma espécie de panela de pressão que pode estourar a qualquer
momento. Não estaria aqui justamente a ideia na qual germinou a
“abertura lenta e controlada” da segunda metade dos anos 1970 e
primeira metade dos anos 1980 no Brasil? A concepção de democracia
do autor deixa claro que:
Na verdade, sem controle social não haveria sequer
sociedade [...] O método democrático caracteriza-se na
verdade por um jogo balanceado de sanções e de
estímulos, nunca interditando nem abafando, antes
12
13
COUTO E SILVA, G. Op. cit., p. 503-10.
Apud GASPARI, Elio. A Ditadura Derrotada. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 133.
217
José William Vesentini
revigorando, um pleno e salutar exercício da iniciativa
individual, tornando este tanto mais benéfico e útil para o
próprio cidadão quanto mais se enquadre nos objetivos
visados [...] Não sou, estou longe de ser, um esquerdista,
mas acho que as contradições são, até certo ponto, o ‘sal
da vida’, porque elas obrigam a buscar soluções aos
problemas [...] Eu também penso, como Huntington e
antes dele Toynbee, que as elites precisam ter desafios
pela frente para que sejam capazes de manter a
criatividade a condução dos negócios do país. Elite sem
contestação acaba perdendo inteiramente o poder criador14.
Qual seria o papel do Brasil no mundo, de acordo com Golbery? Um
papel importante em face de sua dimensão territorial (quase metade da
América do Sul), de sua localização (distante da arena conturbada da
Eurásia e controlando todo o Atlântico sul) e de seu efetivo
populacional (cerca de metade da América do Sul). Analisando a
conjuntura internacional no pós-1945, Golbery assinala que existem
dois campos em luta, o “Ocidente democrático e cristão”, liderado
pelos Estados Unidos, e o “Oriente comunista”, capitaneado pela
Rússia ou pela União Soviética (o autor usava essas duas denominações
como sinônimas). Sua opção é claramente por um alinhamento
brasileiro ao “mundo ocidental e cristão”, como um guardião na
América do Sul e também no Atlântico Sul (o que inclui boa parte da
África), dos ideais deste mundo. Ao contrário do entendimento da
imensa maioria dos pensadores que comentou essa opção de Golbery,
acreditamos que ele a assumiu não por uma questão de princípio – isto
é, uma ferrenha ideologia anticomunista e pró-capitalismo – e, sim, por
pragmatismo, por acreditar ser esse o melhor alinhamento para os
interesses nacionais do Brasil. A seu ver, os Estados Unidos
representavam um campo virtualmente ganhador – mais eficiente em
sua estratégia militar, com uma economia mais sólida e dinâmica –,
além de geograficamente mais próximo do Brasil. Especulando um
pouco, creio não ser incorreto afirmar que Golbery – como quase toda a
14
COUTO E SILVA, G. Planejamento estratégico, 2ª edição. Brasília, Editora da UNB, 1981
p.408 e p.509.
218
Ensaios de geografia crítica
sua geração de militares autoritários e preocupados com a “subversão”
social, com os distúrbios ou a “anarquia” que minariam a coesão da
nação – até mesmo preferia um regime político do tipo soviético à
democracia liberal (que detestava!), pois aquele primeiro exercia um
maior controle sobre a sociedade civil15. Mas a análise geopolítica,
junto com os interesses econômicos em comum (os investimentos
norte-americanos no Brasil), além de outros fatores – como a luta
conjunta contra o fascismo na Itália, a assunção da religiosidade cristã
(apesar das diferenças do catolicismo brasileiro frente ao
protestantismo norte-americano) em contraposição ao ateísmo
declarado do regime soviético, o treinamento de vários oficiais do
exército, inclusive Golbery, nos Estados Unidos no pós-guerra, ocasião
em que ficaram impressionados com a eficiência militar daquele país
etc. –, induziram o autor a apregoar um alinhamento com os Estados
Unidos ou com o “Ocidente”. Um alinhamento pragmático e
conjuntural, portanto, e não uma posição permanente norteada por
algum princípio inquebrantável.
Entretanto, não se tratava de um alinhamento passivo, de um liderado
que somente espera – e eventualmente acompanha – as iniciativas do
líder, e, sim, de um posicionamento ativo na defesa da América do Sul
e do Atlântico Sul, uma região do globo que estaria destinada a uma
hegemonia brasileira. Nas suas palavras:
Se a geografia atribuiu à costa brasileira e a seu
promontório nordestino um quase monopólio de domínio
do Atlântico Sul, esse monopólio é brasileiro e deve ser
exercido exclusivamente por nós, por mais que estejamos
sem tergiversações dispostos a utilizá-lo em benefício dos
15
Evidências disso são as constantes invectivas do autor contra a democracia vista como
liberal. Ademais, um colega seu – e companheiro de ministério em dois governos militares,
que ele recomendou para cargos nesse regime –, o coronel Jarbas Passarinho, que em 1984
chefiou a delegação brasileira nas cerimônias do funeral de Yuri Andropov, ficou encantado
com o que viu na União Soviética. A ordem aparente e sem contestações (greves proibidas,
sindicatos controlados, um partido único no poder, uma polícia política supostamente
eficiente e bem informada sobre tudo) encantou o coronel, que chegou a afirmar – algo
amplamente noticiado nos jornais na época – que “é exatamente isso que ele sempre sonhou
para o Brasil”.
219
José William Vesentini
nossos irmãos do norte, a quem nos ligam tantos e tão
tradicionais laços de amizade e de interesses, e em defesa
ao mesmo tempo da civilização cristã, que é a nossa,
contra o imperialismo comunista de origem exótica [...] E
se a velha Inglaterra soube reconhecer, desde cedo, o
destino norte-americano, facilitando-lhe uma política de
mãos livres no continente ocidental, à sombra protetora da
esquadra britânica [...] não parece demais que os EUA
reconheçam também aquilo que devemos defender, a todo
custo, como um direito inalienável, traçado pela própria
natureza no mapa do Atlântico Sul16.
Por sinal, o Brasil é visto como uma potência regional ao mesmo tempo
marítima (no Atlântico Sul) e continental (na América do Sul). Nesse
contraponto existiria inclusive um dilema brasileiro: “É que entre essas
duas se situa um grande dilema brasileiro, muito mais importante
amanhã do que mesmo hoje – o do antagonismo entre as forças
continentais e as atrações marítimas”17.
O Brasil deveria se preparar para agir – principalmente contra as
ameaças da expansão socialista – tanto na América Latina,
especialmente na América do Sul, como também na África, a começar
pelas então colônias de Portugal. Um apoio à luta maior, à guerra fria
liderada pelos Estados Unidos. Mas com cautela, sem ser subordinado
em demasia, pois não se admite qualquer ingerência estrangeira, nem
mesmo norte-americana, no Brasil e no seu entorno:
Mas, na hipótese acima figurada [expansão comunista na
América do Sul] não só não devemos contar com qualquer
apoio exterior, antes, tudo devemos fazer para que este
venha a ser inteiramente desnecessário, evidentemente
supérfluo e até mesmo injustificado, a fim de que a
ocupação estrangeira, sob pretextos quaisquer ou
quaisquer razões por muito ponderáveis que sejam, não se
torne a preço desmesurado de uma segurança que não
16
17
COUTO E SILVA, G. Geopolítica do Brasil, op. cit., p. 52, grifos nossos.
Idem, p. 61.
220
Ensaios de geografia crítica
tenhamos sabido manter como homens [...] E, além disso,
prepararmo-nos, na América Latina, para dar uma mão a
qualquer de nossos vizinhos na defesa de um inigualável
patrimônio comum, contra quaisquer investidas exóticas18.
Em síntese, a defesa do Brasil é pensada por Golbery no contexto do
mundo pós-1945 até inícios dos anos 1980, qual seja, o mundo da
guerra fria e da luta do capitalismo contra o pretenso expansionismo
soviético. Ele não prestou muita atenção à Amazônia, embora na
citação anterior ela fique implícita quando se refere à “defesa de um
inigualável patrimônio comum”. Ele também não se referiu à expansão
do crime organizado e em especial do narcotráfico, praticamente
inexistente ou pouco visível até a sua morte, em 1987. Tampouco fez
qualquer menção aos problemas territoriais e diplomáticos ocasionados
pelos milhares de brasileiros que adquiriram terras nas faixas de
fronteira no território do Paraguai, os “brasiguaios”, atualmente
ameaçados por invasões de movimentos sem terra e/ou por
desapropriações no país vizinho; assim como não viu ou preferiu se
calar sobre os milhares de brasileiros que, da mesma maneira,
adquiriram terras na região de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia.
Quanto à Argentina, tradicional rival ou adversário do Brasil na
América do Sul, em especial no Cone Sul, o autor também não dedica
nenhuma atenção especial. O contrário é que é verdadeiro, pois a obra
de Golbery repercutiu bastante nos geopolíticos do país vizinho19. Ele
considerava as fronteiras no sul e sudoeste do Brasil, com a Argentina,
Uruguai e Paraguai, como já consolidadas, oferecendo poucos riscos,
dando maior atenção para as fronteiras a oeste e ao norte, prescrevendo
novas etapas de ocupação demográfica e militar do território em
18
Idem, p. 194.
Um general argentino não esconde a sua contrariedade quando analisa a obra de Golbery:
“El autor brasileño se muestra como um pensador de imaginación y hábil expositor [...] Pero lo
que es grave desde un punto de vista geopolítico es que sua análisis, especialmente cuando se
refiere a la América del Sur o al África Suroccidental, es francamente tendencioso. Lo que
sucede es que Golbery trata de presentar al Brasil como el núcleo central de la América del Sur,
área este sobre cual debe ejercer um ‘destino manifesto’ que non choca con los intereses
norteamericanos.” (GUGLIALMELLI, J. E. Geopolítica Del Cono Sur. Buenos Aires, El Cid Editor,
1979, p. 212. Os grifos são do autor).
19
221
José William Vesentini
direção do centro-oeste e ao norte do país (a Amazônia). Mas o maior
risco no tocante à defesa do Brasil, a seu ver, era o expansionismo
soviético com a sua busca de possíveis aliados na América do Sul.
Acreditava piamente que a geografia reservou ao Brasil um destino
grandioso, de potência regional na América do Sul e de partes da África
por via do Atlântico Sul, cabendo apenas aos brasileiros – em especial
ao governo – não deixar escapar as oportunidades criadas pela sua
geopolítica.
222