Abolição e pós-emancipação nos Institutos - PPGHC

Transcrição

Abolição e pós-emancipação nos Institutos - PPGHC
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA
LÍVIA DE LAURO ANTUNES
POR UMA MEMÓRIA DA NAÇÃO:
Abolição e pós-emancipação nos Institutos Históricos
(uma abordagem comparada).
Rio de Janeiro
2014
LÍVIA DE LAURO ANTUNES
POR UMA MEMÓRIA DA NAÇÃO:
Abolição e pós-emancipação nos Institutos Históricos
(uma abordagem comparada).
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em História Comparada
(PPGHC), Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em História Comparada.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Prof. Dr. Flávio dos Santos Gomes (Orientador)
(PPGHC/ UFRJ)
__________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Mac Cord
(Departamento de Pedagogia/ UFF)
___________________________________________________
Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese
(PPGHC/ UFRJ)
SUPLENTES
___________________________________________________
Prof.Dr. Carlos Eduardo de Araújo Moreira (UNIABEU)
____________________________________________________
Prof.Dr.Victor Andrade de Melo (UFRJ)
Rio de Janeiro,
2014
A636p
Antunes, Lívia de Lauro
Por uma memória da Nação: abolição e pós-emancipação nos Institutos
Históricos (uma abordagem comparada) / Lívia de Lauro Antunes – 2014.
xxx f.
(Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Instituto de História. IH. Rio de Janeiro, 2014.
Orientador: Flávio dos Santos Gomes
1. Escravidão - Brasil – História 2. Brasil – História – Séc. XIX. 3.
Abolição 4. República 5. Memória Social I. Gomes, Flávio dos Santos
(orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III. Título
CDD 981.04
IV
Ao meu pai
João Francisco de Oliveira Antunes
V
Agradecimentos
Primeiramente agradeço a Deus. Não explicarei meus motivos, nossas conversas são
particulares.
Não vou estabelecer ordem de importância nos meus agradecimentos. No entanto, faço
questão de registrar minha família em primeiro lugar. Agradeço, portanto aos meus pais, pelo
apoio de uma vida inteira, moral, intelectual, financeiro e, principalmente, pelo amor
incondicional. Às minhas irmãs, Gabriela de Lauro Antunes e Cecília de Lauro Antunes por
dividirem comigo a responsabilidade de amarmos umas as outras sem que as possíveis
desavenças do caminho nos afastem.
Faço um agradecimento especial ao meu eterno companheiro, Vitor Luiz Silva de
Almeida, por quatro anos de amor e carinho sem iguais, não fosse por você eu não terminaria
essa dissertação.
Marcelo de Oliveira Sales, também merece ser destacado, não apenas por ter corrigido
todo meu trabalho, apesar de ser um biólogo, mas por guardar o amor mais sincero que eu
carrego no coração.
Agradeço a Tais Prôa, pela amizade mais bonita e verdadeira que alguém poderia ter.
Agradeço a Jeffrei Hunter Brandão Rangel pelos momentos de carinho, atenção e
companheirismo. Por todas as lições aprendidas, não fossem elas eu, provavelmente, não
estaria concluindo esse trabalho.
Agradeço ao meu orientador, Flávio dos Santos Gomes pela ajuda profissional dos
dois últimos anos, palpites, sugestões, livros, dissertações. Muito obrigada.
Agradeço aos meus amigos, todos eles. Desde os que não sabem o que isso significa,
até aqueles que abrirão a dissertação e logo procurarão por essa página. Tentarei, portanto, me
expressar em nomes. Em primeiro lugar, agradeço aos meus amigos do Colégio Santa
Mônica, pela amizade eterna. Agradeço as melhores amigas que a UFF me deu: Ana Paula
Leite Vieira e Mariana Franco Lopes, pelo ombro, pelas risadas, pelas inseguranças
profissionais, pela amizade verdadeira.
Agradeço aos companheiros do IHGB pelos dias de trabalho e, particularmente, pelas
horas de diversão. Jéssica, Felipe, Lucas, Victor, Douglas, Marcos e Stefânia. Agradeço,
especialmente a Professora Regina Wanderley por tudo, pelos ensinamentos, pelas broncas,
pelo carinho e pelas lições de vida. Agradeço ao meu grande amigo Rafael Cupello, sem o
qual a minha conta de telefone não precisaria ser da TIM para falarmos de graça. Obrigada
pelo engrandecimento acadêmico e pessoal, pelas lições de História e pelas atitudes de vida.
VI
Agradeço especialmente, também a Nayara Emerick, sem dúvida a maior responsável pela
continuidade da minha vida acadêmica, pelo apoio, pelas broncas e pelo carinho de sempre.
Agradeço, também, ao meu amigo Felipe Aguiar Damasceno (de quem nesse exato
momento estou copiando o modelo da dissertação) pelo companheirismo nesses anos de
mestrado, tua amizade me valeu muito. Agradeço, da mesma forma, a Érika Melek, amiga dos
fins da faculdade.
Agradeço a minha família TECO, principalmente a Fabio Afonso, por coisas que
seriam impossíveis de descrever. Deixo apenas registrado o meu, muito obrigada por ter te
reencontrado nessa nova vida.
Agradeço aos meus primos Hugo Seixas Antunes e Isadora Bustamante Simões por
todo o amor e pelos meus poucos momentos de diversão nos últimos tempos, vocês são meu
porto seguro.
Agradeço a outra família que eu ganhei nessa vida. Obrigada por tudo, tia Márcia, tio
Jorge, Júlia Nara, Laura Helena, Ana Rita e, especialmente, Analua, amo vocês.
VII
Liberdade é pouco. O que eu
desejo ainda não tem nome
Clarice Lispector
VIII
Resumo:
O presente trabalho tem por objetivo analisar a memória social da abolição e da
instauração da República, bem como as transformações historiográficas do final do século
XIX, recuperando os debates em torno do pós-emancipação e dos novos caminhos para se
compreender a construção do passado histórico brasileiro e do lugar reservado ao negro nas
discussões surgidas na nova conjuntura política e social. Através de um conjunto de artigos
publicados pelas revistas de quatro diferentes Institutos Históricos – Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro; Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano; Instituto
Histórico Geográfico e Antropológico do Ceará; Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo;– procuraremos entender as transformações dos paradigmas historiográficos e do
pensamento social, em meio a disputas pela memória. Procuraremos compreender como os
diferentes contextos regionais perceberam os processos do fim da escravidão e do surgimento
do sistema político republicano e, a partir deles, propuseram a construção de uma história do
Brasil. Especificamente, nos interessa perceber como os Institutos Históricos, inseridos em
uma tradição historiográfica imperial, utilizaram a figura do negro, cativo ou liberto, na
elaboração da narrativa histórica da nação.
Palavras-chave: Escravidão, Abolição, República e Institutos Históricos
IX
Abstract
This study aims to analyze social memory of abolition and the establishment of the republic,
as well as the historiographical transformations of the late nineteenth century , recovering the
debates surrounding the post- emancipation and new ways to understand the construction of
the Brazilian historical past and the place reserved to the black people in discussions emerged
with the new Republican reality. Through a series of articles published in the journals of four
different Historical Institutes - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; Instituto
Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano; Instituto Histórico Geográfico e
Antropológico do Ceará; Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo; - we will seek to
understand the transformations of historiographical paradigms and social thought, amid
disputes over memory. We will seek to understand how the different regional contexts
perceived processes of the end of slavery and the rise of republican political system and, from
them, proposed to build a history of Brazil. Specifically, we are interested in understand how
the Historical Institutes, entered into an imperial historiographical tradition, used the figure of
the black people, captive or released, in the preparation of the historical narrative of the
nation.
Keywords: Slavery: Abolition, Republic and Historical Institutes
X
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................p. 11
CAPÍTULO I: Tradições e invenções: os Institutos Históricos e a narrativa
historiográfica......................................................................................................................p. 21
1.1 A formação de uma identidade narrativa da nação.........................................................p. 22
1.2 O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.................................................................p. 24
1.3. A expansão do modelo institucional e o projeto de história local: O Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano........................................................ p. 34
1.4 Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará.............................................p. 41
1.5 O Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo............................................................p. 46
1.6 Possibilidades de leituras................................................................................................p. 51
CAPÍTULO 2: Instituindo as Histórias e abolindo as Memórias.......................................p.54
2.1 A abolição da escravidão no Brasil: um rápido panorama...............................................p.55
2.2 Escravidão e Abolição representadas pelos institutos históricos.....................................p.63
CAPÍTULO 3: Construindo memórias. Uma nova História da nação republicana
................................................................................................................................................p.94
3.1 A Chegada da República..................................................................................................p.95
3.2 Uma nova Forma de escrever a História Nacional: diálogos e rupturas entre a Monarquia e
a República...........................................................................................................................p.102
3.2 A busca de uma tradição nacional republicana em meio a disputas regionais...............p.109
CAPÍTULO 4: Lembranças, esquecimentos e silêncios: As retóricas sobre a raça e a
escravidão............................................................................................................................p.130
4.1 As teorias raciais: um breve panorama .........................................................................p.133
4.2 Idéias no lugar................................................................................................................p.135
4.3 A solução da mestiçagem entre propostas e embates....................................................p.139
4.4 Pensando uma nacionalidade á brasileira.......................................................................p.161
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................p.167
BIBLIOGRAFIA E FONTES……………………………………………………........…..p.171
XI
INTRODUÇÃO
Pensamento social, história intelectual e história das idéias: modelos e métodos de
comparação
“Depois ninguém saberia de que
negras raízes se alimenta a
liberdade de um homem.”1
Clarice Lispector
Por certo que Clarice Lispector ao escrever essa frase não pensava sobre as relações
raciais no Brasil. Seu conto trata dos aspectos familiares, mas especificamente das relações
entre mães e filhos. Como não poderia deixar de ser é de uma sensibilidade imensa e nos
deixa entrever nas palavras os sentimentos do cotidiano. Não faz muito tempo li essa frase.
No entanto, minha leitura se deu deslocada de contexto, através de um desses aplicativos de
aparelhos celulares que atualizam automaticamente e nos fornecem uma surpresa agradável
em momentos aleatórios. Quase automaticamente transformei o sentido da frase, em uma
atitude deliberada de desrespeito a famosa poetiza. Em minha mente, logo a pergunta se
modificou: “ninguém saberia dizer de que negras raízes se alimenta a liberdade no Brasil”.
O termo negro para mim não possuía somente um sentido metafórico associado à escuridão
ou ao desconhecido, era simples como se lê. A população negra, arrancada da África e feita
escrava nas América durante mais de trezentos anos, alimenta a História do Brasil, e a história
desses homens e mulheres na luta diária pela liberdade formam as “negras raízes” da nossa
própria História. Alienarmo-nos das experiências desses indivíduos, suas lutas, conquistas,
derrotas, negociações é o mesmo que nos alienarmos de nós próprios. É não compreender os
alicerces das relações sociais atuais, desconhecendo suas dinâmicas de interação, seus
preconceitos e suas “heranças”. Descortinar as “negras raízes da liberdade no Brasil” é
percorrer caminhos que buscam uma igualdade social e racial, é um compromisso de
cidadania.
1
LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998. p. 94.
11
Uma revisão historiográfica que teve seu início na década de 1980 trouxe novas
temáticas e novas evidências que a história não suspeitava utilizar. A inovação da
historiografia brasileira, que veio à luz nos centenários da abolição e da República, passou a
vislumbrar formas inéditas de se pensar as relações de dominação na sociedade. A partir
dessas perspectivas, as narrativas historiográficas sobre a temática da escravidão e do negro
no Brasil, passaram a centrar-se nas experiências dos próprios escravizados, livres e libertos.
Caminhos foram abertos para se tentar compreender as mudanças políticas, culturais e
demográficas do mundo escravista, a partir de um novo olhar sobre o escravo, enquanto
agente e provedor de suas próprias histórias e visões de mundo, a despeito das relações de
poder. Analisando desta forma, as fronteiras tornaram-se mais flexíveis quando procuraram
investigar as experiências de domínio e opressão, de configuração e reconfiguração de
práticas culturais coloniais e pós-coloniais nas Américas. Os efeitos de tal revisão ainda estão
ocorrendo, pois profundos, remodelam as dinâmicas políticas existentes nas relações entre
dominantes e dominados, politizando uma sucessão de acontecimentos e embutindo novos
atores como participantes da política. Dessa forma, transforma os sentidos de comportamentos
individuais e coletivos2.
Os novos estudos sobre escravidão que emergiram nesse contexto promoveram o
entendimento do comportamento cotidiano que perpassava a relação senhor/escravo. Nesse
sentido, surgiram diferentes formas de se compreender as vicissitudes do povo negro em
direção a seus aspectos culturais, sociais, religiosos e históricos. Os escravos e libertos
passaram então a ser interpretados enquanto agentes sociais, nas suas relações entre si e com
outrem. O revisionismo acadêmico também entrecruzou as temáticas da escravidão com as
das relações étnicas, percebendo-as para além do campo da violência e analisando a formação
identitária de africanos e afrodescendentes. Esses indivíduos inventaram formas de
sobrevivência solidárias que os permitiram agir e reagir aos jogos de interesse da sociedade
escravista.
É necessário destacar a contribuição de dois importantes autores para essa renovação
da historiografia brasileira, Sidney Mintz e Richard Price3. Ambos os autores renovaram a
discussão sobre criação de culturas e identidades no mundo da escravidão, investigando as
complexidades que envolveram os processos de formação das culturas “africano-americanas”,
2
GOMES, Ângela de Castro. História, historiografia e culturas políticas no Brasil: algumas reflexões. In
SOIHET, Rachel, BICALHO, M.F.B. & GOUVÊA, M. F. S. (orgs.). Culturas Políticas – ensaios de História
Cultural, História Política e Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad/ FAPERJ, 2005.p.21-44. P. 21
3
MINTZ, Sidney & PRICE, Richard. O nascimento da cultura Afro-americana. Uma perspectiva antropológica,
Rio de Janeiro, Pallas-Universidade Candido Mendes, 2003.
12
ultrapassando as fronteiras que buscavam entender a cultura escrava como uma extensão de
uma cultura africana. Para tanto, formularam a idéia de “criação cultural”, o que significa
dizer que as identidades escravas eram, antes de tudo, frutos de novas formas de
sociabilidade, comunicação, linguagens e experiências, que uma vez entradas em contato se
transformavam em distintas configurações identitárias.
Pioneiro em introduzir tais discussões no ambiente acadêmico brasileiro, Robert
Slenes, em um trabalho minucioso de idas e vindas entre Áfricas e Américas, preocupou-se,
também, em entender a formação das identidades africanas no Novo Mundo. Para Slenes, o
surgimento de uma solidariedade lingüística de origem bantu havia permitido o nascimento de
identificações mais profundas no território brasileiro, que se desencadearam em tipos diversos
de resistência escrava. Robert Slenes foi, ainda, pioneiro nos estudos sobre “família escrava”
que deslancharam nessa época, a partir desses novos critérios de identificação.
Podemos citar ainda, importantes nomes que fizeram parte dessa renovação
historiográfica: Mariza de Carvalho Soares4, Hebe Mattos5, Sidney Chalhoub6, Flávio dos
Santos Gomes7, entre outros. Tais autores ao aprofundarem-se nos estudos da escravidão
africana e do tráfico negreiro, expandiram as noções de espaço e tempo e passaram a
investigar as relações entre Áfricas, Américas e Europas. Essas contribuições historiográficas
tem se desdobrado em novos caminhos que buscam investigar as diferentes visões do mundo
atlântico, ampliando suas margens e entendendo os processos de trocas, invenções e
transformações culturais dos diferentes povos envolvidos nesses contatos.
Somente após a década de 1990, a renovação da historiografia sobre a escravidão se
refletiu nos estudos sobre abolição e pós-emacipação que passaram a focar nas experiências e
expectativas da vida em liberdade do negro e seus descendentes. Nesse contexto, surgiram
trabalhos que investigaram o movimento de redefinição de identidades e as lutas por direitos
de cidadania no território brasileiro, ainda que informais. Inserido nesse processo, o presente
trabalho propõe uma análise dos Institutos Históricos Brasileiros, no período imediatamente
após a abolição da escravidão, com o objetivo de averiguar as formas de inserção do negro na
narrativa histórica da nação.
4
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro,
século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000
5
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista: Brasil
século XIX. 2ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
6
CHALHOUB Sidney. Visões da liberdade: Uma história das ultimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo: Companhia de bolso, 2011.
7
GOMES, Flávio dos Santos Gomes. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos
no Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Editora UNESP, 2007.
13
Portanto, o tema de nossa pesquisa é a analise da memória social da abolição e da
instauração da república, bem como as transformações historiográficas, do final do século
XIX, recuperando os debates em torno do pós-emancipação e dos novos caminhos para se
compreender a construção do passado histórico brasileiro e do lugar reservado ao negro nas
discussões surgidas com as novas conjunturas históricas. Através de um conjunto de artigos
publicados pelas revistas de quatro diferentes Institutos Históricos – Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro; Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano; Instituto
Histórico Geográfico e Antropológico do Ceará; Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo;– procuramos entender as transformações dos paradigmas historiográficos e do
pensamento social, em meio a disputas pela memória nacional. Sendo assim, buscamos
entender como os diferentes contextos regionais perceberam os processos do fim da
escravidão e do surgimento do sistema político republicano e, a partir deles, propuseram a
construção de uma história do Brasil. Abordaremos ainda, as discussões sobre raça e
mestiçagem presentes nas referidas instituições, tendo em vista que as mudanças
sociopolíticas nacionais trouxeram a tona questionamentos acerca da formação étnica
brasileira. Com a emancipação total dos escravos e com a instauração da república, a história,
ainda sob o desígnio de formar e formalizar a idéia de nação, com a proposta de criar e recriar
identidades, necessitava de nova configuração. Essa reconfiguração histórica pressupunha um
novo olhar, pautado nas experiências e expectativas inauguradas pelo novo contexto político e
social brasileiro.
Sabemos que o período entre final do século XIX e início do século XX está imerso no
debate sobre a construção de uma identidade nacional mestiça, composta de elementos
peculiares do homem brasileiro, em conjunto com componentes europeus. A influência
européia consolidou-se na noção de modernidade, essencial na forma de orientar e narrar o
pensamento intelectual brasileiro. Todavia, esse modelo de modernidade foi incapaz de
reproduzir-se sem levar em consideração as peculiaridades internas. Era necessário interpretar
o Brasil a partir de um novo olhar. A abolição da escravidão e em seguida o estabelecimento
da República, além de inaugurarem um novo tipo de organização política e social,
introduziram a obrigação de avaliação do Brasil como um espaço original, fornecendo as
bases para uma nova interpretação da nação.
14
Na segunda metade do século XIX, de acordo com Antônio Edmilson8, graças à crise
do sistema escravista e do regime monárquico, as preocupações se voltaram para a dimensão
da vida cotidiana e afastaram-se da esfera estatal. As novas noções de modernidade advinham
desse processo de crescimento da esfera pública, que proporcionava a autoconsciência do
povo, capaz de refletir sobre si mesmo. As questões sobre a abolição e República inseriram-se
nesse movimento de compreender a nação como algo moderno e introduziram o país no
projeto de civilização. Colocar em prática esse projeto demandava uma reconstrução da
história da nação, atribuindo-lhe novos sentidos e significados. Nesse momento, a história,
distanciada da ficção, se constituiu em disciplina científica e elaborou narrativas que
buscaram aglutinar os elementos formadores do Brasil e de seu povo. Portanto, podemos
afirmar que a definição de uma identidade nacional brasileira, aconteceu junto à consolidação
da disciplina História e que a abolição da escravidão e a instauração da República foram
acontecimentos fundamentais nesse processo de construção da nacionalidade.
Válido lembrar, que juntamente à História, a Literatura desempenhou grande
importância nesse processo de diagnóstico nacional para a formação de um sentimento de
identificação, sendo a Literatura, muitas vezes confundida com a narrativa historiográfica,
graças às tênues fronteiras que as delimitavam. A geração de intelectuais de 1870, por
exemplo, apontou para a importante função da literatura nas discussões a respeito da
construção da nação, tendo em vista as críticas elaboradas por esses letrados à tradição
historiográfica imperial e sua incapacidade de discutir demandas reais da sociedade. De todo
modo, era imprescindível que uma sociedade evoluída possuísse uma História e uma
Literatura que narrassem os cenários nacionais e pudessem mostrar as singularidades do
Brasil estabelecendo os elementos constitutivos da nacionalidade.
As idéias produzidas eram resultados das experiências da vida social e o crescimento
populacional das cidades, com destaque para o Rio de Janeiro, fez surgir novos padrões de
sociabilidade e contatos culturais. A cidade tornou-se o laboratório da modernidade. Nela,
vimos surgir o aparecimento da rua como um novo espaço público e político que concentrava
diferentes tipos sociais. Era, o que Maria Tereza Chaves de Mello9 chamou de processo de
democratização da rua, verificado no final do século XIX. O crescimento e amadurecimento
8
RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins. “Cultura política na passagem brasileira do século XIX ao século
XX”. In: LESSA, Mônica Leite e Fonseca, Silvia C. P. de Brito. Entre a Monarquia e a república: imprensa,
pensamento político e historiografia (1822-1889). Rio de Janeiro: EDUREJ, 2008
9
MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida: cultura democrática e científica do final do
Império. Rio de Janeiro: Editora FGV; Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2007
15
da imprensa e do jornalismo popularizaram movimentos políticos, com destaque para a
campanha abolicionista e para o republicanismo.
Como vimos, na segunda metade do século XIX, as notícias e as ideias se alargaram e
variaram passando a abranger um público socialmente menos erudito, que passava a perceber
os noticiários não mais restritos ao domínio privado, mas como pertencentes ao domínio
público. Aos poucos a ideia de opinião pública ganhava novas conotações e transformava-se
em uma força política e em uma instância crítica. De acordo com Lúcia Bastos10, foi,
sobretudo, a campanha abolicionista o que contribuiu decisivamente para que esse conceito de
opinião pública de consolidasse.
Concordamos com Robert Darnton11, que o jornalismo se constituiu em um elemento
central da esfera pública nos fornecendo uma fonte de indicação de disseminação das ideias
para além da intelectualidade. Identificando o público como ativo participante da cultura,
Darnton assinala a existência de um iluminismo menos erudito e mais variado. Seguindo a
mesma linha de pensamento, Maria Lúcia Pallares-Burk12 afirma que o advento da imprensa
contribuiu de forma significativa para o estudo das relações entre o mundo social e a palavra
escrita. Sendo assim, a análise de periódicos vem sendo consagrada como uma das principais
vias de acesso ao pensamento coletivo de uma época por desempenhar um importante
demonstrativo da intensidade das trocas de ideias e informações. É nesse sentido, que o
trabalho proposto busca ter acesso às práticas sociais através dos elementos recolhidos nos
periódicos dos Institutos Históricos e investigar as discussões intelectuais sempre permeadas
pela retórica.
Em todo o século XIX, a intelectualidade brasileira esteve interessada na definição de
uma identidade nacional percebida e construída, paradoxalmente e ao mesmo tempo, como
especificidade brasileira e como derivação da civilização européia. Questões como a extensão
da cidadania entraram na agenda política como desdobramento das lutas abolicionistas. Tal
pesquisa se aloca em meio aos muitos trabalhos que buscam compreender o lugar da abolição
no processo histórico de formação da nação brasileira. Especificamente, nos interessa
perceber como os Institutos Históricos, inseridos em uma tradição historiográfica imperial,
utilizaram a figura do negro, cativo ou liberto, na elaboração de uma identidade narrativa para
a nação.
10
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. "Opinião Pública." In: FERES, João (org.). Léxico da História dos
Conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, pp.181-202.
11
DARNTON, Robert. O iluminismo como negócio: História da publicação da ‘Enciclopédia’ 1775-1800. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
12
PALLARES-BURK, Maria Lúcia Garcia. The Spectator, o teatro das luzes: diálogos e imprensa no século
XVIII. São Paulo: Editora HUCITEC, 1995.
16
O método da historiografia tem uma orientação essencial que é a comparativa, sendo
assim, para que não utilizemos o método comparativo de maneira aleatória, escapando assim
da finalidade da configuração da História Comparada como um fazer historiográfico singular,
algumas questões a respeito do modo como este será empregado no trabalho se faz necessária.
Para tanto, me basearei nas propostas de José D’Assunção Barros13 para comparar sociedades
contiguas no espaço e no tempo, propondo que realidades literárias, virtuais ou imaginarias,
as mentalidades e os circuitos de representações, podem também ser objetos da História
Comparada. Dessa forma, concordamos com Barros quando este afirma ser possível
empreender um caminho pela História Comparada que atua sob uma mesma realidade
nacional, levando em consideração que, neste caso, o historiador deve estar apto a identificar,
não apenas as semelhanças como também as diferenças de seu múltiplo recorte. A perspectiva
de História Comparada proposta por Barros expande os espaços de inteligibilidade, abrindo
caminho para novas reflexões. Pensamos ser este o objetivo principal da História Comparada
enquanto possibilidade de modelo historiográfico.
Da mesma forma, esse trabalho, por se tratar de análises comparativas de artigos,
investigando o meio intelectual e a historiografia brasileira do final do século XIX, faz uso,
metodologicamente, das afirmações de Barros a respeito do surgimento de novos gêneros de
Historia Comparada, que criam ou reeditam domínios históricos. Sendo assim, torna-se
legítimo, falar em uma Historiografia Comparada, como um subgênero da História
Comparada. Criando uma base de comparação e experimentação entre narrativas
historiográficas distintas, analisando-as de forma inter-relacional, teremos como resultado um
iluminação recíproca das fontes em questão para analisarmos as expectativas dos sujeitos
responsáveis pela elaboração da História do Brasil e do papel do negro nessa narrativa.
Levando em conta a heterogeneidade do processo abolicionista procuraremos apontar
como experiências sociais díspares produziram projetos e partilharam questionamentos em
torno de uma mesma questão. É nesse sentido, que utilizaremos o método comparativo a
partir de um múltiplo campo de observação, e expandiremos a noção de História Comparada
para falarmos também em História Conectada, como apontou Jürgen Kocka14. Trata-se de
analisar como os processos que desencadearam o fim da escravidão no Brasil foram vividos
por diferentes sujeitos históricos que apesar das divergências, inclusive geográficas, formaram
teias de solidariedades que uniram a intelectualidade que pensava a nacionalidade brasileira.
13
BARROS, José D’Assunção. História Comparada: um novo modo de ver e fazer a história. Revista de
História Comparada, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.1-30, jun. 2007
14
KOCKA, Jürgen. Comparison and beyond. History and Theory. Fev. 2003. p. 39-44.
17
Nesse ponto, torna-se importante que expliquemos os motivos que nos levaram a
seleção do recorte das instituições. A opção pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
justifica-se em função da importância da agremiação como precursora e perpetuadora de uma
tradição historiográfica imperial. Criado em 1838, o IHGB possuía a função de escrever a
história da nação a partir de um projeto centralizador e homogeneizador do Estado
monárquico. A escolha do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano
advém da sua importância enquanto instituição regional. Primeira agremiação fundada aos
moldes do IHGB, o Instituto de Pernambuco cumpriu o papel de escrever uma história
nacional que glorificasse os feitos locais de maneira a destacar a região nordeste na narrativa
histórica do país. A preferência pelo Instituto Histórico Geográfico e Antropológico do Ceará
pode ser explicada pelas intenções da pesquisa: examinar os artigos monográficos
interpretando a forma como a intelectualidade narrou a inserção do negro na História do
Brasil, atravessando o processo de abolição da escravidão e instauração da República.
Portanto, a província do Ceará, a primeira a acabar com a escravidão no território brasileiro,
em 1884, selecionou esse evento para legitimar a importância da região no contexto histórico
brasileiro de luta pela liberdade. Por fim, a seleção do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo, fundado em 1894, justifica-se pela conjuntura de desenvolvimento econômico que
acarretou em maior centralização política para aquela localidade, em detrimento do Rio de
Janeiro. O IHGSP, fundado no regime político republicano, tinha em seu quadro de sócios
intelectuais preocupados em criticar o modelo imperial de governo e, nesse sentido,
contrapunha algumas perspectivas disseminadas pelas demais instituições.
O primeiro capítulo discorre sobre o processo de formação de uma identidade narrativa
da nação, bem como o processo de construção da memória disciplinar da História, retomando
a tradição historiográfica imperial que vinha se formando aproximadamente desde a década
de 1830. Os questionamentos acerca do que constituiria a nação tornavam-se, para muitos
intelectuais, um programa historiográfico que tinha como finalidade delimitar os atributos
próprios de cada nação. Dessa maneira, descrevemos os contextos históricos e sociais do
surgimento do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro relacionando-os ao processo de
consolidação do Estado Nacional. Da mesma forma, apresentamos os contextos de formação
dos demais institutos regionais e suas relações com um projeto maior de uma história
nacional integrada territorialmente. Portanto, apontamos a importância da construção de
institutos históricos por todo o país, como parte de um contexto mais amplo de formação
identitária brasileira, sem, é claro, esquecer as disputas regionais por memórias. Destacamos
ainda, a importância do cientificismo como base para a formação e desenvolvimento
disciplinar da história alicerçada sobre os moldes de civilização e progresso que imperavam
no mundo ocidental e que influenciaram os argumentos históricos dos intelectuais brasileiros.
18
Para tanto, recorremos aos modelos de pensamento positivista, iluminista e romântico,
reconhecendo serem as principais correntes filosóficas refletidas, tanto nos discursos
proferidos nos Institutos Históricos, como nos artigos das revistas analisados.
O segundo capítulo tem como pano de fundo a reflexão do que estava sendo publicado
nas revistas dos diferentes Institutos Históricos sobre o tema da escravidão e da abolição da
escravatura no Brasil. Inicialmente, fornecemos um panorama do contexto nacional surgido
com as propostas gradativas de acabar com a instituição escravista no Brasil, ao mesmo tempo
em que verificamos a maneira conciliatória que, até a primeira metade do século XIX, o
liberalismo conviveu com o mundo da escravidão, para posteriormente romper com essa
“solidariedade”. Procuramos, em seguida, esclarecer algumas questões referentes ao modo
como a parcela letrada brasileira recebeu a instauração da lei que extinguia o sistema
escravista no país, a partir dos artigos publicados nas revistas dos Institutos Históricos. O
objetivo foi entender de que maneira os intelectuais que escreviam sobre tal transformação
histórica localizavam o negro, o ex-escravo e o passado escravista brasileiro como parte
integrante da história nacional almejada, seguindo os modelos de civilização e progresso do
mundo ocidental. O silenciamento do sistema escravista como modo de produção imperante
por três séculos no país foi investigado como uma forma de inserir o Brasil no modelo
evolutivo internacional. O estudo comparado das diferentes realidades regionais do país
expandiu esse entendimento e demonstrou como um mesmo acontecimento gerou
continuidades e disputas nos discursos dos atores históricos responsáveis por narrar e criar a
memória desse evento para a nação.
No terceiro capítulo, desenvolvemos uma análise dos artigos dos Institutos Históricos
que abarcavam o tema da formação e consolidação da ordem republicana no Brasil. As
transformações inauguradas, primeiramente, pela emancipação escrava e logo depois pela
instauração da República no país afastaram, relativamente, o tipo de historiografia até então
elaborada no império, o que implicava um novo perfil do historiador, do enredo da narrativa
histórica e do destinatário privilegiado dos discursos. Nesse sentido, o objetivo deste capítulo
foi investigar as disputas e (re)negociações das narrativas históricas preocupadas em legitimar
o regime político recém instaurado, galgando no passado do país um “espírito republicano” e
libertador. Observamos, todavia, uma tentativa conciliatória na narrativa, entre um passado
monárquico e um presente republicano, de maneira que a característica teleológica se manteve
presente nas agremiações. Neste capítulo, verificamos como o resgate ou invenção de uma
tradição republicana foi a maneira encontrada, principalmente pelos institutos regionais de
Pernambuco e São Paulo, para afirmarem seus papeis na construção da história nacional.
19
Nesse sentido, cabe ressaltar a importância da investigação e comparação dos diferentes
institutos que disputavam entre si memórias regionais de um passado de lutas pela liberdade
republicana, reconstruindo, cada um a sua maneira, as histórias dos respectivos estados, com o
objetivo de contribuir para a formação da história do Brasil.
Finalmente, o quarto capítulo abordou, especialmente, as discussões sobre raça e
mestiçagem presentes nos artigos das revistas dos Institutos Históricos brasileiros.
Inicialmente, fornecemos um panorama acerca das teorias raciais que se desenvolviam no
mundo ocidental, trazendo suas conseqüências para o contexto brasileiro, que necessitava
lidar com as mudanças sócio-políticas que inauguravam uma série de questões a respeito da
formação étnica de seu povo. Na tentativa de buscar uma definição autêntica da nacionalidade
brasileira, muitos intelectuais modificaram, adequando à realidade nacional, as teorias raciais
que chegavam da Europa. Essas idéias, quando migradas para o Brasil necessitavam se
adequar a experiência de uma sociedade multirracial. Sendo assim, o objetivo deste capítulo
foi investigar alguns pressupostos raciais desenvolvidos nos Institutos Históricos que, ao
mesmo tempo em que procuravam resolver o problema de inserir a nação em meio aos
debates sobre superioridades biológicas e raciais, também acabavam por agregar um aspecto
único e favorável da sociedade brasileira, a miscigenação, garantindo um futuro otimista para
a nação. Nesse capítulo procuraremos perceber a posição relegada à população negra na
história nacional como parte integrante desse povo brasileiro multirracial que se formava.
Igualmente, investigaremos o lugar, se é que havia, para além da mestiçagem, desse negro na
narrativa histórica da nação.
20
Capítulo I
Tradições e invenções: os Institutos Históricos e a narrativa
historiográfica
21
1.1 A formação de uma identidade narrativa da nação
A História, enquanto disciplina, vem apontando para a importância de se compreender
os modos como diferentes setores da sociedade legitimam suas ações mediante um apelo ao
passado. Tal fato traz embutida a noção de que apenas o entendimento histórico leva à
compreensão de determinada realidade social. No entanto, é necessário pensarmos os meios
como a própria História assumiu uma consciência e uma identidade discursiva que a dotou de
uma capacidade de agência na construção do passado. Afirmar que a História, como conceito
moderno, surge como um processo resultante das ações de homens significa dizer que ela é
consequência, efeito das experiências presentes que, ao invés de parecerem limitadas pelo
passado são, na realidade, constituintes dele. Essa percepção do homem como agente do
processo histórico aparece apenas durante o século XIX e possui, de acordo com Rodrigo
Turin15, como ponto de inflexão a noção de progresso, atrelada à noção de aceleração do
tempo. A sensação de aceleração invade todas as esferas da vida, influindo na concepção de
história. Essa idéia de progresso afastava a realidade presente de um passado cada vez mais
distante e atrasado, ao mesmo tempo em que inaugurava uma série de expectativas e
possibilidades futuras. Para Koselleck16, nesse momento houve um afastamento entre
temporalidades (espaços de experiência e horizontes de expectativa) e o futuro começou a se
constituir na principal referência de ordenação temporal. Era ele quem esclarecia as
experiências passadas, uma vez que estas somente ganhavam inteligibilidade nesse tempo
ainda por vir. O desconhecido, porém almejado, fornecia sentido ao passado transformando-o
de acordo com as experiências presentes.
Inserido nesse processo, a nação passou a ser um conceito de extrema importância e
envolto por inúmeras discussões, pois aparecia carregado de possibilidades e expectativas
futuras. Logo, a História, enquanto noção moderna aderiu como uma de suas faces a questão
nacional. Como apontado por Rodrigo Turin17, essa disciplina, como praticada no oitocentos,
longe de privilegiar o pensamento crítico marcado por rupturas, era uma história-memória que
acentuava a importância da lembrança. Cabia, portanto, à História organizar e transformar as
lembranças que forneceriam sentido ao passado nacional. A escrita dos fatos passava por um
processo de seleção semelhante ao funcionamento da memória, implicando em uma série de
15
TURIN, Rodrigo. Narrar o passado, projetar o futuro: Sílvio Romero e a experiência historiográfica
oitocentista. Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, 2005
16
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto Editora; Editora PUC Rio, 2006
17
TURIN, Rodrigo. Op. cit.
22
escolhas e silêncios. Cada evento ou personagem necessitava de merecimento para adentrar na
narrativa histórica da nacionalidade. A relevância de cada fato para a formação da nação
demarcava o lugar que este possuiria na construção da História.
A nação se constituiu, durante o século XIX, em tema sagrado de reflexão política em
todo mundo ocidental. Nesse período, a nação se estabeleceu como entidade histórica
inquestionável e tornou-se um novo sistema de reconhecimento e formação de identidades
coletivas, configurando-se, para a intelectualidade, em programa historiográfico. Um contínuo
debate foi travado dando forma ao conceito de nação e delimitando um conjunto de
referenciais que lhe seriam comuns. A nação aparecia assim, como um resultado da história,
como uma formação temporal. Descobrir a razão histórica formadora da nação através do
mapeamento das alternativas temporais era a tarefa principal da História enquanto ciência.
Nesse sentido, ter glórias comuns no passado, orientadas por anseios do presente, definia a
idéia de nação. Cabe destacar, todavia, que tal conceito estava sujeito a uma dispersão que era
preciso superar. Inúmeras foram as tentativas de ultrapassar as problemáticas impostas pela
idéia de nação e podemos destacar as importantes funções exercidas por instituições do
Estado que visaram esse fim.
Por uma via de mão dupla, a formação política específica do Estado-nação investiu na
produção do conhecimento histórico que, por sua vez, participou da construção identitária dos
estados modernos. Um projeto nacional necessitava obviamente de passados equivalentes e,
nesse sentido, a História era a disciplina encarregada de fundar no passado a origem da nação,
o que demonstra a importância do discurso histórico na formação das identidades modernas.
No entanto, se o próprio conceito de nação foi definido pelo saber científico da História, ele
também constituiu as bases da nova disciplina científica, pois era a partir de determinada
perspectiva de futuro nacional que o passado tornava-se inteligível.
Portanto, o conceito de nação ainda estava sendo cunhado no início do século XIX e
remetia a idéia de pertencimento a uma comunidade de nascimento. Como destacado por
Hobsbawn18 três elementos principais constituíam as identidades nacionais: território, língua e
etnia. No caso brasileiro, desde os séculos XVI e XVII, o termo “nação” já era utilizado para
designar determinados grupos sociais como os escravos provenientes de diferentes regiões do
continente africano, indígenas ou judeus. Ilmar de Mattos19 nos mostra que o vocábulo
“brasileiro” também já possuía significado na realidade social nacional e que, a partir da
18
HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. São Paulo: Paz e Terra, 2013; HOBSBAWN, Eric;
RANGER, Terence. A Invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2012
19
MATTOS, Ilmar. O tempo Saquarema. São Paulo: Editora HUCITEC, 2004.
23
independência do Brasil, em 1822, essa expressão passou a possuir um sentido político e
identitário associado à noção de Brasil e à formação da nacionalidade. Como destacado pelo
mesmo autor, ambos os termos, “nação” e “brasileiro”, fizeram parte de um projeto político
centralizador característico do Estado Imperial. Em torno desse projeto nacional esteve
envolvida grande parcela da elite brasileira, como intelectuais, políticos e militares,
preocupados em definir a especificidade histórica do Brasil e do seu povo20. Por isso, o
conceito de nação esteve atrelado ao fortalecimento do Império através da narrativa de fatos
que marcassem e exaltassem o modelo monárquico de governo21.
Assim como na Europa, internamente a consolidação disciplinar da história e a
formatação do conceito de nação estiveram interligadas. A criação do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro ilustra o surgimento de uma preocupação narrativa para os feitos da
nação, que ainda estava sendo forjada, ao estabelecer um papel singular para a disciplina
História na sua formação. Juntamente demonstra a preocupação do Estado Imperial em
fundamentar as bases do projeto nacional.
1.2 O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
A sociedade que se formou no final do século XVII e ao longo do século XVIII na
Europa inaugurou novas formas de sociabilidade, de sensibilidade e de mentalidade. As
atitudes do homem diante do mundo se modificaram, as preocupações se voltaram cada vez
mais para a vida terrena e suas formas de organização, amparadas em uma moralidade
baseada na razão. O homem não precisava somente de uma força embasada na crença
religiosa que tutelasse o mundo, o conhecimento também levava à virtude e à felicidade. As
luzes do século XVIII formaram os fundamentos da modernidade. A consolidação desse
processo de “esclarecimento” no Brasil foi representada por uma série de renovações
estruturais realizadas desde a chegada da família real, mais fortemente sentidas a partir da
década de 1830. Dentre as inúmeras instituições surgidas destaca-se o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB). Erigido no século XIX, o IHGB teve como objetivo
empreender uma leitura e uma escrita da história na nação a partir de um projeto de Estado
iluminado, esclarecido e civilizador 22.
20
Idem.
TURIN, Rodrigo. Op. cit.
22
GUIMARÃES, Manoel Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.1, p. 5-27, 1988.
21
24
O Instituto Brasileiro se vinculou a uma tradição iluminista principalmente pelo
caráter de sua concepção historiográfica. Para aqueles que faziam parte do IHGB, a história
era vista como um processo linear marcado pela noção de progresso. O historiador, enquanto
um indivíduo esclarecido, deveria indicar o caminho das luzes, o caminho da verdade,
marcado pela relação entre Estado, Nação e Coroa, tendo ainda a Igreja Católica como
instituição estruturante. Além disso, a instrumentalização da história como “mestra da vida”,
capaz de superar os erros do passado, também apontava para a presença de uma tradição
historiográfica iluminista. A história aparecia assim, como marcha progressiva que articulava
diferentes temporalidades, passado, presente e futuro.
A tarefa de disciplinarização da história, no caso brasileiro, seguiu fielmente o modelo
europeu articulando-se com a questão nacional. No entanto, como demonstrado por Manoel
Salgado23, deste lado do Atlântico o espaço da produção historiográfica foi diferente. Não se
tratou de ambientes universitários, mas sim de academias do tipo ilustrado de acesso restrito a
escolhidos e eleitos. Dessa forma, o lugar de produção historiográfica no Brasil se manteve,
até fins do século XIX, caracterizado por uma profunda marca elitista, o que foi crucial para a
construção de determinada historiografia e das visões que ela produziu a respeito do caráter
nacional brasileiro. Processo próprio ao Brasil foi, também, a construção de uma identidade e
história nacionais nas quais a edificação da idéia de nação não se forjou a partir de uma
oposição à metrópole portuguesa, mas antes por uma relação de continuidade. Para a narrativa
histórica proposta pelos homens de letras do IHGB era imperativa a manutenção de certa
solidariedade entre as diferentes temporalidades presentes na história nacional, de maneira
que as contiguidades cronológicas fossem exaltadas no lugar de transformações estruturais.
Nação, Estado e Coroa apareciam, assim, unidos no interior da discussão historiográfica 24.
A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro esteve relacionada a um
projeto político imperial mais específico que buscava a afirmação da centralidade e autoridade
do poder monárquico. Com os acontecimentos que anunciavam o fim do período regencial no
Brasil, houve a necessidade de uma reformulação do projeto de Estado e com ele a criação de
instituições que buscavam apoiá-lo. Sendo assim, foram criados estabelecimentos
responsáveis pelo desenvolvimento do trabalho intelectual de construção da nação. O Arquivo
Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Colégio Pedro II, todos fundados
na década de 1830, foram expressões desse projeto de Estado.
23
24
Idem.
Idem. p. 8
25
A partir de uma proposição encaminhada ao Conselho Administrativo da Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN), por Raimundo José da Cunha Mattos, na ocasião
primeiro-secretário da SAIN, e pelo cônego Januário da Cunha Barbosa, foi criado o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, em 21 de outubro de 1838. Inspirado no modelo do
Instituto Histórico de Paris, o IHGB possuía a finalidade de ser uma associação científica e de
caráter privado, dedicada aos estudos históricos e geográficos. Foi, portanto, no desenrolar do
processo de constituição e consolidação do Estado Nacional que se definiu o desenho de uma
instituição que tinha por finalidade a sistematização de um projeto de história nacional25.
Estabelecendo uma relação com a memória, desejando afirmar uma identidade nacional e um
passado histórico para o país em formação, o IHGB fez parte de um universo simbólico que
buscava construir e reconstruir uma revisão da história do país na luta pela formação de uma
identidade para a nação.
Cabe ressaltar, como afirmou Lúcia Guimarães26, que o Instituto Histórico cumpriu o
papel de construção de uma memória nacional a serviço de um projeto político específico que
visava à consolidação do Estado imperial. Era a busca de uma determinada nacionalidade
brasileira a preocupação maior da tradição historiográfica presente no Segundo Reinado. As
diferentes enunciações acerca da nação traziam diferentes posicionamentos políticoideológicos. Por isso, ao falar desses intelectuais, enquanto atores políticos e produtores de
bens simbólicos, não podemos deixar de pensar nas fronteiras fluidas entre as suas produções
e seus ideais políticos e pragmáticos, pois suas obras eram um meio de orientar e efetivar
ações. Para Von Martius, por exemplo, o historiador do Brasil deveria escrever como um
autor monárquico constitucional, somente assim, estaria servindo à pátria. Esse aspecto
caracterizou o fazer historiográfico dos sócios do instituto durante todo o século XIX,
transformando-se apenas com a instauração da República, que abalou significativamente a
estrutura ideológica e política representada pelo IHGB.
O desvendamento do processo de gênese da nação esteve na base dos projetos dos
intelectuais do Instituto Histórico, cujo principal objetivo era dar conta da especificidade
identitária do “povo brasileiro” e do papel que cabia ao Brasil frente ao exterior. Vale afirmar
que a ideia de nação retratada pelo IHGB surgiu como desdobramento da civilização branca e
europeia nos trópicos. Tarefa bastante difícil, tendo em vista a realidade social brasileira. A
presença do indígena e do negro, este vivendo ainda sob um regime escravista, trouxe à tona a
25
GUIMARÃES, Lucia Paschoal. Debaixo da imediata proteção de sua Majestade Imperial: o Instituto
Histórico e geográfico Brasileiro (1838-1889). Revista do IHGB, Rio de Janeiro, n. 388, pp. 437-506, 1995.
26
GUIMARÃES, Lucia Paschoal. Da escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e geográfico Brasileiro
(1889-1938). Museu da República, Rio de Janeiro, 2006. P. 11
26
enorme dificuldade de gestação de uma História Nacional. A tentativa encontrada por esses
indivíduos frente a essa problemática foi o reforço de uma visão homogeneizadora do que
seria o Brasil. Cabia, portanto, às ações desses homens de letras definirem a extensão do
conceito de nacionalidade, delimitando externa e internamente os excluídos desse processo.
Como demonstraremos ao longo desse trabalho, coube ao negro o papel de estrangeiro nessa
contenda, afastado do processo de gestação da nação e excluído da formação do “povo
brasileiro”.
Para além das características da produção historiográfica, o IHGB também se vinculou
a uma tradição iluminista em termos da forma específica de sociabilidade que ele representou
cara as sociedades estamentais. O recrutamento dos sócios se dava segundo normas e
injunções que escapavam o mundo acadêmico, cujo critério apoiava-se no domínio de um
saber específico. Seus sócios eram eleitos, fundamentalmente, por procedimentos que
passavam pela teia das relações sociais e pessoais. As normas de admissão dos sócios eram
rígidas, mas não constavam critérios acadêmicos propriamente ditos, pelo menos até 1851,
quando foi criado um comitê responsável pela admissão de sócios, passando a exigir
comprovação de produtividade intelectual. Podemos dizer que os novos estatutos
promulgados em 1851 marcaram a consolidação, a expansão e a profissionalização do IHGB.
No entanto, o recrutamento desses indivíduos, mesmo após a criação do novo comitê, ainda se
dava, essencialmente, baseado em determinantes sociais. Dessa maneira, os padrões
científicos eram deixados de lado e as formas de arregimentação eram amparadas por critérios
de sociabilização, que marcaram o papel do Estado nacional como eixo central nesse
processo27. Podemos concluir, como ratificado por Lilian Schwarcz, que a associação em
torno do Instituto Histórico de fato significou, para alguns, um espaço de projeção intelectual,
mas para a maioria dos indivíduos envolvidos, o IHGB representou, em primeiro lugar, um
caminho de projeção pessoal28.
A Composição interna do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ilustrava o
caráter que a instituição assumiu durante toda a sua existência: o de criação de um saber
ligado à exaltação da pátria, uma história da nação que recriava um passado buscando mitos
de fundação, glória e dignidade para o Brasil. Ao se analisar o perfil das 27 personalidades
que se uniram para formar o instituto, percebemos que a sua grande maioria (22 homens)
desempenhava funções no aparelho do Estado. De acordo com Lilia Schwarcz, dez desses
27
GUIMARÃES, Manoel Salgado. Op. Cit. p.10
SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São
Paulo:Companhia das letras, 1993. p. 105
28
27
homens eram conselheiros de Estado, sendo seis destes, senadores29. Manuel Salgado aponta
para o grande número de funcionários públicos exercendo a carreira de magistratura, bem
como militares e burocratas. Arno Wehling observa ainda, serem alguns dos membros
fundadores do IHGB vinculados ao Partido Liberal Moderado, além de indivíduos que
conformavam grupos cafeeiros do Rio de Janeiro30. Sendo assim, o IHGB em seu processo de
formação reunia ilustres indivíduos ligados à política imperial, parte destes, nascidos em
Portugal, defensores da monarquia e da casa de Bragança.
Investigando a diversidade da origem socioeconômica desses homens, percebemos que
eram majoritariamente, de procedência urbana, descendentes de militares e de funcionários
públicos, por vezes articulados ao comércio. Os sócios que integravam o Instituto eram
também representantes de uma elite local, fossem eles políticos ou proprietários de terras,
literatos ou famosos pesquisadores. Indivíduos que fizeram a independência e elegeram a
monarquia como a forma de governo por excelência 31.
A heterogeneidade funcional era compensada pela unidade ideológica (...)
Repetem-se no caso do IHGB, as características gerais da elite política
imperial definidas por José Murilo de Carvalho: defesa da unidade nacional,
consolidação do governo civil, redução do conflito a nível nacional, limitação
da mobilidade social e da mobilização política(...) 32
Quanto à hierarquia interna do IHGB, seus estatutos definiam a existência de 50
membros efetivos, sendo 25 na sessão de História e 25 na sessão de Geografia. Os sócios
efetivos deveriam residir na Corte e necessitavam apresentar trabalhos de comprovação
acadêmica. A divisão dos membros contava ainda com os sócios correspondentes que
possuíam vagas ilimitadas e podiam residir no Brasil ou no exterior. Tanto estes associados
como os efetivos necessitavam contribuir com o pagamento da jóia de entrada e da taxa
semestral. Havia também, os sócios considerados de honra, cuja taxa de pagamento acima
referida era isenta. Esse tipo de sociedade era conferido às pessoas de idades mais avançadas
e consideradas de distinto saber. Os sócios efetivos que por seus importantes serviços ou por
doação de grande quantia, merecessem distinção, tornavam-se beneméritos. Por fim, havia os
29
Idem.
WEHLING, Arno. As origens do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Revista do IHGB, Brasília-Rio de
Janeiro, 338:7-6, 1983.
31
GUIMARÃES, Lucia Paschoal. Op. Cit. p. 480
32
WEHLING, Arno. Op. Cit. p. 10
30
28
presidentes honorários, que só poderiam ser chefes de nações, incluindo o chefe do Estado
brasileiro33.
As contribuições financeiras do Estado imperial foram decisivas para a existência
material do Instituto Histórico. Logo após a criação do grêmio carioca, o IHGB colocava-se
sob a proteção do Imperador e não mais sob a proteção da Sociedade Auxiliadora Nacional.
Tal atitude se vinculava a uma contribuição financeira por parte do Estado imperial que se
verificou cada vez maior com o passar dos anos, chegando a representar 75% do orçamento
do Instituto. A partir de 1849/1850 a inter-relação entre Estado e produção historiográfica
tornou-se mais acentuada, tendo em vista a maior estabilidade do projeto político do poder
monárquico. O aprofundamento das relações da instituição com o Estado Imperial pode ser
vislumbrado a partir da inauguração de suas novas instalações no Paço da Cidade, a 15 de
dezembro de 1849. A partir dessa data, o imperador passou a ter uma presença mais assídua
nas reuniões do IHGB, contribuindo para a expansão da agremiação. Tal atitude possuiu um
poderoso sentido simbólico de fundação, o que pode ser verificado ao analisarmos que a data
de 15 de dezembro passou a ser comemorada como o aniversário do IHGB, ao invés da data
de 21 de outubro de 1838, original da sua construção.
Se a História era vista como um saber que tinha por finalidade instruir e induzir
sentimentos
nacionalistas,
ela
necessariamente
deveria
possuir
um
caráter
pedagógico/pragmático. O surgimento da esfera pública, e mais ainda, a preocupação em
alcançá-la, inaugurada com o desenrolar das luzes, era também uma preocupação do IHGB.
Com o florescimento e o crescimento de um público leitor, ainda que restrito, cresceu a
importância do livro como projeto ilustrado de transformação das mentalidades34. Por isso, o
projeto historiográfico empreendido pelo IHGB foi amparado e incorporado através de sua
revista, publicada com regularidade desde sua fundação. A resolução de se publicar uma
Revista de História e Geografia, cujos objetivos seriam a admissão de trabalhos referentes a
essas duas áreas, especificamente voltados para o estudo do espaço territorial brasileiro e suas
atribuições históricas, foi tomada logo nos primeiros estatutos. O primeiro volume da Revista
do IHGB (RIHGB) data de 1839. Desde então, o periódico foi publicado regularmente, sendo
sua última edição a do ano de 2009. Até o ano de 1863, a Revista era composta em volume
33
Quadro formado a partir das informações contidas em: GUIMARÃES, Lucia Paschoal. Op. cit. p. 483/484 e
SCHWARCZ, Lilia. Op. cit. p. 105
34
Para uma interpretação sobre um iluminismo menos erudito e mais diversificado, bem como o surgimento da
força da opinião pública e da imprensa Cf. BADINTER, E. As paixões intelectuais: desejo e glória (1735-1751).
Rio de Janeiro, RJ. Civilização brasileira. V.1, 2007; DARNTON, R. O iluminismo como negócio: história da
publicação da ‘Enciclopédia’ 1775-1800. Companhia das Letras
29
único e distribuída em formato anual. A partir do ano seguinte (1864) ela passou a ser
dividida em duas partes distintas, publicadas em separado35.
A criação do IHGB veio suprir a demanda por uma história nacional. A busca pela
historicidade do Brasil implicava, necessariamente, a delimitação de técnicas fundamentais
para essa tarefa. Nesse sentido, o IHGB visava fundamentar e formalizar um programa de
pesquisa histórica, ao coligir, publicar e arquivar as fontes indispensáveis para se erigir um
índice da realidade passada. A partir da coleta de documentos e de suas publicações, as
experiências passadas seriam resgatadas e se faria possível a escrita de uma história
“verdadeira”. Tendo em vista esse objetivo arquivístico, o IHGB dedicou parte da sua Revista
à publicação de fontes variadas.
A Revista do IHGB ilustrou a preocupação das narrativas historiográficas em
desvendar, defender e legitimar o país em formação. Ela passou a ser o veículo principal de
difusão do material, das ideias, dos eventos e dos debates ocorridos no Instituto. Em suas
páginas encontravam-se registradas as diversas atividades da instituição através de relatórios,
bem como cerimônias e atos comemorativos, publicações de artigos e resenhas de obras, além
de transcrições de fontes primárias como forma de preservar a História do Brasil. Grande
parte do periódico era dedicada às biografias de brasileiros “distintos por letras e virtudes”,
onde percebemos a influência de uma história pensada e produzida sob a égide oitocentista,
calcada nas vidas e nos feitos dos grandes homens. Havia, ainda, uma parte do periódico
composta pelas atas das sessões quinzenais realizadas no Instituto Brasileiro. A partir do ano
de 1880, este passou a constar com a publicação dos nomes de todos os sócios vivos do
Instituto e com as datas das respectivas admissões.
Um segundo corpo temático amplamente tratado na Revista do IHGB diz respeito aos
artigos relativos às viagens e exploração do território brasileiro. Sabemos que o Instituto
Histórico procurou abrir diversas frentes de trabalhos referentes à coleta de documentos, tanto
no próprio território brasileiro como no exterior, inaugurando um tipo de pesquisa que
prezava por um rigor documental até então inusitado. O Instituto, amparado pelo poder
imperial, incumbiu indivíduos de percorrerem diferentes bibliotecas com o objetivo de
aumentar o acervo documental referente ao Brasil. O tratamento desse assunto pelo IHGB
privilegiou questões acerca de fronteiras e limites e ligou-se à formação de uma identidade
físico-geográfica para nação36. Juntamente, eram retratadas as riquezas naturais, ampliando as
possibilidades de exploração econômica das regiões distantes por parte do governo imperial.
35
36
FLEIUSS, Max, O Instituto Histórico através de sua revista. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1938
GUIMARÃES, Manoel Salgado. Op. cit
30
Temas relativos à história das diferentes províncias também se encontravam nas páginas da
Revista do IHGB. Essa tentativa de recolher informações na capital da monarquia de
conhecimentos relativos às demais regiões do país era mais uma expressão de um projeto
intelectual e político claramente centralizador37.
A elaboração de uma proposta de periodização que oferecesse uma ordenação para a
temporalidade nacional também se constituiu em tarefa dos homens de ciências e letras do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Para isso, foi necessário estabelecer uma
organização sucessiva dos acontecimentos, que obedecesse a uma lógica cronológica e
fornecesse um sentido histórico para a construção da nação. Vale lembrar que a concepção de
história presente no IHGB possuía profundas heranças iluministas marcadas por uma noção
processual da temporalidade. Esse sentido teleológico garantia ao intelectual responsável pela
escrita da história um considerável papel na definição dos rumos da narrativa. Mais uma vez,
apontamos para a função política dessa ordenação do tempo. Claramente, a montagem de uma
periodização histórica correspondia aos interesses de um projeto político que visava o
fortalecimento do Segundo Reinado.
A organização de uma estrutura cronológica nacional era, portanto, um dos principais
objetivos dos letrados dos IHGB. Variadas foram as propostas de definição de uma
temporalidade para a nação e, vale lembrar, estiveram envoltas por intensas disputas e debates
nos círculos intelectuais. O modelo de periodização aceito como o mais hábil fixou três
grandes marcos para a narrativa da história nacional: a) a natureza do indígena antes da
chegada do português; b) o descobrimento e a colonização do Brasil; c) o período da
independência. Esse padrão de periodização, caracterizado pela ideia de continuidade e
evolução, reforçava a noção de ordem/desordem, como destacado por Ilmar de Mattos. O
tempo passado, anterior à chegada do colonizador, era acentuado pela barbárie, em
contrapartida, o momento da colonização encerrava esse aspecto e inaugurava um tempo
ordenado e civilizado.
Para além de uma definição cronológica, era necessário delimitar os elementos que
seriam eleitos a integrarem a história do Brasil. O naturalista bávaro Von Martius, motivado
pelo concurso promovido pelo IHGB em 1844, foi um dos primeiros a especificar os aspectos
que concorreram para a formação do “povo brasileiro”. A pergunta, “como se deve escrever a
história do Brasil?” foi lançada pelo concurso e a resposta vencedora foi a do naturalista que
destacou a existência de três diferentes raças nesse processo. Segundo Von Martius, seriam as
37
GUIMARÃES, Manoel Salgado. Op. cit.
31
raças caucasiana, etíope e indígena as responsáveis pela constituição da nacionalidade
brasileira. Assim dizia Von Martius.
devia ser um ponto capital para o historiador reflexivo mostrar como no
desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condições
para o aperfeiçoamento de três raças humanas, que nesse país são colocadas
uma ao lado da outra, de uma maneira desconhecida na história antiga, só
agora principia o Brasil a sentir-se como um Todo Unido38
Sua proposta foi audaz por integrar, não apenas o índio, mas também o negro nesse
processo. Justamente pelo fato de o povo brasileiro se constituir da mistura inusitada de três
diferentes raças, surgia a singularidade da nação e, apenas uma história que acentuasse essa
particularidade poderia ser verdadeiramente científica. Importante advertir, que apesar de
endossar a idéia de miscigenação, sua proposta não se constituiu em uma teoria da
mestiçagem propriamente dita, posto que apenas argumenta-se sobre a coexistência de
diferentes raças e não sobre a forma como se deu essa mistura racial. Tal fato nos liga
diretamente ao objetivo desta pesquisa: perceber como os Institutos Históricos, inseridos em
uma tradição historiográfica imperial, utilizaram a figura do negro, cativo ou liberto, na
elaboração de uma identidade narrativa para a nação.
Desde a década de 1840 existiu no ceio da intelectualidade brasileira, a percepção da
presença do índio e do negro como parte essencial para edificação de uma história científica
do Brasil. Noção que se repetiu inúmeras vezes no interior dos artigos da Revista do IHGB e
dos demais Institutos. Ainda que Von Martius tenha se recusado a escrever a História do
Brasil, seu projeto historiográfico norteou os trabalhos de historiadores posteriores que,
todavia, continuaram a despender pouca atenção à parcela negra dessa amálgama racial. Os
indígenas, representando o estado de natureza, apareciam como o símbolo da nacionalidade
tropical e como alvo principal de um projeto civilizador encetado pelo homem branco, daí a
grande quantidade de trabalhos publicados sobre os índios brasileiros. Os portugueses,
representantes da civilização e do progresso, eram o elo principal dessa mescla racial e
demarcavam a ascendência européia da população brasileira. Já a componente africana
recebeu pouca atenção, perpetuando a idéia de que o negro seria um óbice ao avanço da
civilização. A participação do elemento negro se resumiu à constatação evidente da sua
presença na realidade social. Esse aspecto será mais bem analisado no capítulo IV dessa
38
MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Como se deve escrever a História do Brasil. In: Revista do IHGB. Rio
de Janeiro, 6(24): 384-401. Jan. 1845. Apud. GUIMARÃES, Luís Salgado. Op. Cit. p. 16-17.
32
dissertação, Lembranças, esquecimentos e silêncios: As retóricas sobre a raça e a escravidão,
que tratará das ideias de mistura racial presentes nas revistas dos Institutos Históricos.
A construção de um espaço de produção historiográfica elaborado pelo IHGB foi
permeada por conflitos, uma vez que diferentes enunciações acerca da nação traziam distintos
posicionamentos político-ideológicos. No entanto, o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro acabou por estabelecer algumas linhas centrais que formaram um conjunto
interpretativo coerente sobre a história do Brasil. O projeto historiográfico em torno desta
instituição delimitou os elementos que, aglutinados, conformaram uma identidade coletiva
que servia ao projeto político do Estado imperial. Essa tradição historiográfica esteve presente
no IHGB durante todo o século XIX, sendo relativamente rompida a partir da década de 1870
com o surgimento de uma nova geração de intelectuais, críticos do modelo de História
proposto pelo Instituto39. Contudo, nas páginas da sua Revista, as características de uma
História magistra vitae, vista como mestra do futuro e do presente, dotada de grande caráter
pedagógico, criadora de um saber que incitava o nacionalismo, esteve presente até o
surgimento dos debates acerca da abolição da escravidão e instauração da República,
momento em que a instituição necessitou passar por transformações, tanto do ponto de vista
estrutural e burocrático, como na sua prática historiográfica.
Para além dos objetivos centrais do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de
construir uma história da nação, recriando o passado em busca dos mitos de fundação, o
IHGB produziu falas marcadamente regionais. Apesar de sua pretensão totalizante, a
associação carioca priorizou temas sobre a região sul/sudeste do Brasil, limitando a história da
Nação à história da Corte. Em decorrência do lugar de fala dos associados do IHGB, seus
discursos adquiriram força política nacional. Essa narrativa homogeneizadora dos fatos e
centrada no eixo sul do país, não deixou de suscitar críticas das demais províncias do Império.
Dessa forma, na década de 1860, surgia o Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano
com a finalidade de narrar uma história local que corrigisse os equívocos daquela enunciada
pelo IHGB.
39 ALONSO, Ângela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra,
2002
33
1.3. A expansão do modelo institucional e o projeto de história local: O Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano
Dentre as diretrizes centrais expostas no discurso de Januário da Cunha Barbosa, então
primeiro-secretário do IHGB, no dia 25 de novembro de 1838, encontramos a preocupação
com a coleta e publicação de documentos relativos à história do Brasil, o incentivo ao ensino
de estudos relacionados à natureza histórica, bem como o incentivo à criação de outras
instituições similares nas províncias do Império, de forma que o IHGB, localizado na Corte,
canalizasse as informações sobre as diferentes regiões brasileiras. Como apontado por Manoel
Salgado40 “do Rio de Janeiro, as luzes deveriam expandir-se para as províncias integrando-as
ao projeto de centralização do Estado e criando os suportes necessários para a construção da
Nação brasileira”.
Diferentes projetos de Estado se encontravam presentes no interior da nação. Os
particularismos das elites locais, alijadas do poder centralizado na Corte, expunham a
fragilidade do Segundo Reinado. Superar esses localismos e acabar com as ideias separatistas
exigia a edificação de uma identidade coletiva, a partir da construção de um passado comum
que garantisse um sentimento de pertencimento e, consequentemente a unidade nacional. A
fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro esteve relacionada a esse projeto.
Contudo, era preciso erigir novas instituições, em diferentes localidades do Brasil, com
objetivos semelhantes de preservação e divulgação do conhecimento histórico, que
cooperassem para a formação de um sentimento de pertença que asseguraria o modelo de
estado imperial. Nesse sentido, foi criado, no ano de 1862, o Instituto Arqueológico e
Geográfico Pernambucano. Sua fundação caracteriza a definitiva integração da província na
ordem imperial.
A primeira metade do século XIX foi repleta de movimentos insurrecionais em
Pernambuco e outras áreas do Império. A Revolução Pernambucana (1817), a Confederação
do Equador (1824), a Guerra dos Cabanos (1834) e a Revolução Praieira (1848) ilustram a
agitação social e política em que se encontrava a província. Desde 1861, o editorial do Diário
de Pernabuco41 trazia à tona a inquietação da intelectualidade local referente à necessidade de
uma versão pernambucana dos fatos cruciais da história do Brasil. Era notável o desejo de
40
GUIMARÃES, Manoel Salgado. op. Cit. P. 8
No ano de 1861 o jornal Diário de Pernambuco, lançou a pergunta: “Teremos nós uma história propriamente
nossa, propriamente pernambucana? Cf. SOUZA, George Felix C. de; NEVES, Fernanda Ivo; LEÃO, Reinaldo
Carneiro; GALVÃO, Tácito Cordeiro. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano: breve
história ilustrada. Recife: IAHGP, 2010, p.27.
41
34
elaboração de uma história regional que preservasse e exaltasse o passado de Pernambuco,
legitimando a importância da província no contexto político imperial e que deslocasse a
concentração da produção de conhecimento do eixo centro-sul do país. Adelino Antonio de
Luna Freire, na sessão solene de 1898, expunha a finalidade de criação da associação.
(...) a instalação do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, que,
de conformidade com seus estatutos, tem por fim coligir, verificar e publicar
os documentos, monumentos e tradições, relativos à história das províncias
que formavam as antigas capitanias de Pernambuco e Itamaracá, desde a
época do seu descobrimento até nossos dias42.
Dois acontecimentos tiveram profundo impacto na decisão de se fundar uma sociedade
pernambucana que seguisse o modelo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A
passagem de D. Pedro II por Pernambuco (1859) e, dois anos após, a visita de Francisco
Adolfo Varnhagen à cidade de Olinda (1861) colocou em relevo o estado de abandono e de
ignorância em que se encontrava a província. Para a inteligência local era imperativa a criação
de uma narrativa dos fatos que corrigisse as deformações de uma perspectiva unitária vinda da
Corte. Não raro, eram formulados discursos que protestavam contra as formas como a história
do norte estava sendo narrada pelos homens de letras do IHGB, como no caso da História
geral do Brasil, escrita por Varnhagen, com destaque para as interpretações produzidas a
respeito da Revolução de 1817. Da mesma forma, encontramos asseverações sobre a não
participação de Pernambuco na formação da história nacional.
Em janeiro de 1862, surgiu a idéia de formação de uma sociedade de antiquários
destinada a promover o estudo da História de Pernambuco. No dia 7 do mesmo mês circulou
um convite para uma reunião na Biblioteca Provincial na qual se discutiria a respeito da
necessidade de uma instituição pernambucana aos moldes do IHGB43. Tal iniciativa foi
capitaneada por cinco homens que se tornaram os sócios fundadores do futuro IAGP: Joaquim
Pires Machado Portela, Antônio Rangel Torres Bandeira, Salvador Henrique de Albuquerque,
Antônio Vitrúvio Pinto Bandeira e Acioli de Vasconcelos e, José Soares de Azevedo. No dia
previsto para a reunião estiveram presentes, além dos cinco sócios fundadores, vinte e dois
convidados, que procederam à instalação da Sociedade Arqueológica Pernambucana, nome
dado ao Instituto Arqueológico Pernambucano em seus primeiros meses. Como presidente
42
43
Revista do IAHGP, Pernambuco, 1898. Exemplar nº 51, p.168/169
Revista do IHAGP. Pernambuco, n.2, jan-1864, pp. 58-60.
35
interino foi eleito Joaquim Pires Machado Portela, conhecido fazendeiro local44. Nas palavras
de João Baptista Regueira Costa, primeiro secretário do Instituto Arqueológico no final do
século XIX, aquela foi a “data em que cinco homens se reuniram para salvar do esquecimento
os documentos, monumentos e tradições de Pernambuco e das províncias que lhe ficam
vizinhas” 45.
O modelo de organização interna do Instituto Arqueológico seguia o exemplo do
IHGB. Ao analisarmos o perfil dos cinco sócios pioneiros percebemos que apesar de
possuírem origens e posições sociais distintas, todos exerciam funções no magistério, e em
sua maioria foram jornalistas e servidores públicos. Analisando os membros do IAGP de uma
maneira geral, percebemos que eram oriundos de uma elite rural tradicional, porém decadente
em face da situação da lavoura açucareira e da expansão da produção de café no sudeste. A
agremiação era basicamente composta por proprietários locais, junto a alguns homens da
Igreja e poucos profissionais liberais46. O recrutamento dos membros não gozava de critérios
intelectuais propriamente ditos, portanto, não era necessária a apresentação de nenhuma obra
dedicada aos estudos históricos para ser aceito como sócio, mas era imperativo possuir
prestígio social e político no contexto da província. O quadro de membros também seguia o
modelo de divisão do IHGB. Nesse sentido, o Instituto Arqueológico possuía sócios efetivos,
correspondentes, de honra, beneméritos, o presidente e o presidente honorário.
Ainda em agosto de 1862, no dia 16, foi aprovado o primeiro estatuto que transformou
o nome da Sociedade para Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, que continuou
a funcionar no mesmo local, no Convento do Carmo, junto a Biblioteca Provincial. O
vocábulo “arqueológico” foi utilizado por ser considerado designativo do conhecimento do
passado de forma mais abrangente. A palavra “pernambucano” foi escolhida com a intenção
de ressaltar a idéia de pertencimento da instituição junto a população local47. Em setembro
desse mesmo ano, o Monsenhor Francisco Muniz Tavarez, insurgente da Revolução de 1817,
tomou posse como presidente do IAGP.
Ao IAGP competia a responsabilidade de atuar na preservação do passado
pernambucano e na produção do conhecimento histórico à luz das modernas práticas
científicas. Com essa finalidade surgiu a Revista do Instituto Arqueológico (RIHGAP), que
começou a circular no ano de 1863. A RIAHGP experimentou algumas interrupções ao longo
44
A ata de fundação da Sociedade Arqueológica Pernambucana foi publicada no primeiro número da Revista do
Instituto Arqueológico, no ano de 1863.
45
Revista do IHAGP, Pernambuco, 1891. Exemplar nº 40, p. 172
46
SCHWARCZ, Lilia. p. 157
47
SOUZA, George Felix C. de; NEVES, Fernanda Ivo; LEÃO, Reinaldo Carneiro; GALVÃO, Tácito Cordeiro.
Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano: breve história ilustrada. Recife: IAHGP, 2010
36
de sua história, em decorrência das dificuldades financeiras enfrentadas pela instituição. Sua
publicação foi interrompida de maneira mais expressiva em duas ocasiões, entre os anos de
1870 e 1883 e uma segunda vez entre 1961 e 1975. Houve, também, hiatos menores ao longo
tempo. Nos anos iniciais a periodicidade da Revista era trimestral, seguindo o exemplo do
IHGB. A partir do número 79 (volume 15) da Revista, ela passou a ser publicada anualmente.
Inicialmente, o periódico se limitava a publicar as atas das sessões ordinárias e
extraordinárias, bem como as de aniversários ocorridas na agremiação. Com o passar do
tempo, surgiram trabalhos historiográficos que mantiveram os padrões ditados pelo Instituto
Brasileiro, ou seja, artigos que privilegiavam aspectos biográficos, políticos e temporalidades
mais distantes. A Revista do Arqueológico contou, prioritariamente, com artigos
monográficos sobre o passado de Pernambuco, em particular, e do Nordeste, em geral. Os
textos referentes à historia regional chegaram a constituir 67% do total dos artigos
publicados48. Entre os temas mais frequentemente tratados destacam-se aqueles ligados ao
período holandês junto as biografias dos heróis da restauração, a Confederação do Equador e
a Revolução de 1817, caracterizada enquanto prenuncio da “vanguarda pernambucana” no
que se refere à defesa da liberdade nacional49. Além desse tipo de publicação, a RIAHGP
disponibilizava a divulgação de fontes interpretadas como significativas para a construção do
passado histórico de Pernambuco.
As aspirações intelectuais dos sócios do Instituto Arqueológico necessitavam de
financiamento. Diferente do IHGB, até o ano de 1865, as despesas da instituição foram
custeadas pelos próprios membros. O imperador, D. Pedro II, apesar de ter aceitado o convite
enviado pela instituição, em 1863, para que assumisse a proteção do Instituto junto ao cargo
de Presidente Honorário, não se comprometeu com os gastos de funcionamento como fazia
com o Instituto Brasileiro. Ao longo de toda existência do IAGP a falta de recursos
financeiros se estabeleceu como um problema recorrente. No final de 1865, o Instituto
Arqueológico recebeu o valor de 1:620$000 provenientes de uma loteria provincial. Em 1866,
foi concedido um subsídio anual de 1:200$000 pela Assembléia Provincial, o que somado à
quantia oriunda das mensalidades e jóias dos sócios, bem como da venda das Revistas,
possibilitou a manutenção das atividades do Instituto Arqueológico50.
As dificuldades financeiras repercutiram no funcionamento da associação, inclusive no
que diz respeito às suas instalações físicas. A partir de sua fundação, a instituição funcionava
48
SCHWARCZ, Lilia. P. 154
Idem. 158
50
Idem
49
37
no Convento do Carmo, Recife, onde dividia um salão com a Biblioteca Pública Provincial.
Em 1875, o presidente da província de Pernambuco, Henrique Pereira de Lucena, enviou um
ofício ao IAGP comunicando que cedia o andar térreo do palacete situado no Campo das
Princesas para abrigar a agremiação. Entretanto, as dificuldades habitacionais permaneceram
até o ano de 1877, quando foi aprovada lei provincial que oficializou a doação do prédio
construído na Rua da Concórdia onde funcionava a antiga Escola Modelo que se encontrava
inativa, ao instituto. Nesse edifício o Arqueológico se instalou por cerca de três décadas,
sendo expulso em virtude das atribulações políticas que marcaram o início da República no
Brasil. Somente em 1920 os problemas referentes à instalação do IAGP foram sanados. Nesse
ano, foi inaugurado o edifício doado pelo governo do estado, localizado na atual Rua do
Hospício, número 130, lugar que continua abrigando o Instituto Arqueológico até hoje.
Apesar dos poucos recursos financeiros, a instituição conseguiu, ainda na década de
1860, alcançar reconhecimento social e intelectual que lhe concedeu legitimidade como lugar
de produção do conhecimento histórico e de preservação do patrimônio. Para a aglutinação da
memória pernambucana, os sócios do IAGP, reconheceram a necessidade de compilação de
um acervo documental composto de produções acadêmicas e de fontes primárias. Com essa
finalidade, o Instituto organizou comissões para realização de incursões a variadas localidades
onde houvesse a possibilidade de arregimentação de documentos, como paróquias, cartórios
ou irmandades. A instituição se responsabilizou, também, em catalogar vestígios de antigas
edificações e localizar os lugares de importância histórica para a província, honrando o termo
“arqueológico” concedido em sua fundação.
O recolhimento de materiais disponíveis do exterior também estava entre as propostas
do IAGP. A principal ação promovida nesse sentido ocorreu no ano de 1883 quando, em meio
a dissidências políticas que abalavam o quadro de sócios do Instituto Arqueológico, o
colegiado solicitou à Assembléia Provincial uma subvenção para financiar a viagem de José
Hygino Duarte Pereira à Holanda com o objetivo de examinar e extrair cópias de documentos
referentes às guerras holandesas no Brasil. A Assembléia disponibilizou uma quantia de
7:000$ para custear tal competência, que seria paga integralmente ao Instituto. Este teria a
função de repassar o dinheiro ao membro responsável pela viagem. A empreitada alcançou
grande êxito e formou o mais importante fundo arquivístico sobre o Brasil holandês. Vários
desses documentos foram traduzidos e publicados na Revista do IAGP.
Resgatar a História local e legitimar o papel de Pernambuco na construção da
identidade nacional era função da instituição. Tendo em vista essa finalidade, a elite
intelectual da província, demarcava a importância de Pernambuco como centro econômico e
38
político do norte do país, principalmente durante o período de colonização. Segundo Lília
Schwarcz, o IAGP respondia às aspirações da província de manter a hegemonia política e
cultural no interior do Brasil. Por isso, investia em maneiras de glorificar o passado
pernambucano, tornando-o fundamental no processo de construção e valorização da
nacionalidade. Já no final do Segundo Reinado, João José Pinto Júnior assim se colocava ao
exaltar a história de Pernambuco: “a família pernambucana foi sempre a primeira entre as
suas iguais, quer no que diz respeito ao desenvolvimento moral, quer no material!51”.
Como salientado anteriormente, o IAGP se opunha ao discurso histórico divulgado
pela Corte por considerá-lo injusto em relação aos feitos pernambucanos. Dessa forma,
podemos evidenciar a relevância conferida à região norte no interior do panorama nacional.
Ao mesmo tempo em que o instituto construía uma narrativa local, buscava recuperar a
história das províncias vizinhas, que outrora haviam integrado a área de influencia da antiga
capitania-geral de Pernambuco. Assim expunha a ata de fundação da agremiação.
Artigo 1º: O Instituto IAGP (...) dará atenção especial à história das
províncias que formavam as antigas capitanias de Pernambuco e Itamaracá
desde a época dos descobrimentos até agora (RIAHGP, 1863:23)
O Instituto Arqueológico promovia entre os próprios habitantes da região um
sentimento identitário responsável por inculcar uma consciência de grandeza ao passado
histórico de Pernambuco. Em discurso pronunciado pelo desembargador Adelino Antônio de
Luna Freire ,este afirma:
(...) nenhuma das províncias do antigo império achava-se em melhores
condições de ser dotada de tão útil instituição. Possuímos uma história toda
nossa, na qual figuram verdadeiros heróis e feitos de tamanha magnitude que
bem podem ser equiparados aos decantados na mais remota antiguidade52.
Essa valorização da cultura local expressa por Luna Freire já no final do século XIX,
se junta a uma noção de precocidade do “sentimento de liberdade” entre os pernambucanos.
Para grande parte dos intelectuais do Instituto Arqueológico, esse fato explica-se menos pelas
características físicas e geográficas da região, do que pelos acontecimentos da história local.
No caso pernambucano, a guerra batava foi interpretada como o primeiro evento da história
da província responsável por fazer surgir um espírito de liberdade característico do povo de
Pernambuco. Da experiência da ocupação holandesa derivava a singularidade histórica da
51
52
Revista do IAHGP, Pernambuco, 1890. Exemplar nº 37, p.6
Revista do IHAGP, Pernambuco, 1898. Exemplar nº 52. p. 168
39
região. Tanto que a fundação do Instituto Arqueológico foi escolhida para o dia 27 de janeiro,
data da capitulação do Taborda (tratado assinado entre holandeses e portugueses que
confirmava a rendição neerlandesa) e que até 1830 era celebrada anualmente nas ruas de
Pernambuco. Podemos perceber a importância do acontecimento a partir da quantidade de
artigos publicados na RIHAGP sobre o tema. Lília Schwarcz calcula que 51% das
publicações, entre os anos de 1863 e 1930, tratavam de assuntos referentes à invasão
holandesa.
Segundo Evaldo Cabral de Mello53, o nativismo inspirou a historiografia
pernambucana até o final do século XIX, sendo suplantado, a partir desse período, pela adesão
de novos métodos científicos inspirados no positivismo. O nativismo pernambucano
considerou-se o herdeiro da restauração, ou seja, as guerras holandesas foram a matriz
ideológica do nativismo pernambucano. Durante todo o século XIX encontramos um número
significativo de artigos publicados na Revista do IAGP descrevendo os acontecimentos da
guerra de restauração. Através desses artigos, apreendemos que as guerras holandesas foram
interpretadas por esses homens de letras como um marco da história, pelo qual o presente e o
futuro de Pernambuco se justificavam, constituindo-se em uma espécie de mito de formação
pernambucano. Se o modelo de elaboração discursiva da disciplina História impunha a
urgência de se voltar ao passado e selecionar os fatos que conformariam a narrativa dos feitos
provinciais, a restauração foi, sem duvida, o episódio histórico que realizou o papel de
legitimar o presente no passado e inculcar na população pernambucana um sentimento
identitário.
Acerca do resultado da experiência colonial holandesa, de acordo com Evaldo Cabral
de Mello, prevaleceu nos círculos intelectuais, até a primeira metade do século XIX, uma
visão do invasor como sendo imediatista, ganancioso e herege. Todavia, formou-se, através da
tradição oral, o imaginário popular de um tempo batavo mítico. Inserido num passado
longínquo, esse tempo era lembrado como um período rico e grandioso. Para o discurso
historiográfico da Corte, representado por Varnhagen, o que havia de positivo no período de
invasão era a própria batalha contra o holandês, que havia ocasionado a união do povo,
significando, em outra perspectiva, a manutenção do território do país e a própria unidade
nacional. Na realidade, elogiar o período holandês poderia significar um questionamento ao
Segundo Reinado, por isso, no interior do IAGP percebemos uma polarização dos discursos
sobre os resultados da experiência batava. Podemos apreender que uma segunda geração de
53
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. São Paulo: Alameda,
2008
40
intelectuais do Instituto Arqueológico começou a reinterpretar as críticas históricas do período
de dominação holandesa empreendendo discussões acerca da presença batava no Brasil que
ora encarava negativamente sua presença, ora demonstrava nítida simpatia pelo dominador
estrangeiro. Contudo, na maioria dos casos, manteve-se um discurso conciliador que garantia
o culto aos restauradores, perpetuando a exaltação do passado pernambucano, e o elogio ao
espírito ativo e empreendedor do conquistador holandês.
Interessante analisar que entre a intelectualidade da região perpetuou-se a noção de
que a guerra de restauração havia unido o povo contra o invasor a partir de uma identidade
supra-racial representada por Fernandes Vieira, Vidal de Negreiros, Henrique Dias e
Camarão, que juntos, formaram uma tetrarquia que simbolizava a contribuição de diferentes
etnias na luta contra os holandeses54. Surgia assim a percepção de uma “raça pernambucana”
oriunda do cruzamento racial e acionada para cumprir o dever de constituir a nova
nacionalidade brasileira, assunto que será explorado no quarto capítulo desse trabalho. A elite
pernambucana possuía uma visão ambígua em relação à mestiçagem, assim como os
intelectuais nacionais de uma maneira geral. O enlace racial, apesar de temido, correspondia a
uma saída compatível e controlada de representação do povo brasileiro. A idéia de que o
Brasil era uma nação composta pela singularidade da mistura racial entre o homem branco, o
índio e o negro já era explorada desde a década de 1840 por Von Martius. Nesse sentido, as
guerras batavas demonstravam a importância do povo pernambucano nesse processo de
amálgama racial. A História de Pernambuco não se constituía na “mais gloriosa de todas da
nação brasileira” 55, simplesmente pela sua singularidade. Ela era, acima de tudo, a precursora
de incontáveis processos político-sociais que apontavam para o progresso do país.
1.4 O Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará
A construção de uma brasilidade, função principal do IHGB, necessitava que o modelo
de história nacional fosse compartilhado pela intelectualidade em todo o território do império.
Decorre disso a criação dos Institutos regionais nas várias províncias do Brasil. O Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, como vimos, foi a primeira agremiação
a se formar seguindo esse modelo. Durante o final do Segundo Reinado, dois outros Institutos
foram edificados com os mesmos objetivos: o Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas
54
55
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: Op. Cit
Revista do IHAGP, Pernambuco, 1900. Exemplar nº, p. 83
41
(1869) e o Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará (1887). A opção pela
análise do Instituto cearense advém do pioneirismo da região no processo de abolição da
escravatura, realizada no ano de 1884. Essa escolha se justifica, tendo em vista que o foco
desse trabalho se propõe a examinar os artigos monográficos publicados nas Revistas dos
Institutos Históricos, interpretando a forma como estes indivíduos lideram com o processo de
abolição e a inserção do negro na construção de uma narrativa histórica nacional. Portanto, a
província do Ceará, reconhecidamente a primeira a acabar com a escravidão no território
brasileiro, teria motivos para selecionar esse evento como imprescindível para a história
cearense. Tal fato, precisamente, foi registrado nas páginas da Revista do Instituto do Ceará
como um aspecto ilustre e único de seu passado. Essa situação será mais bem analisada no
segundo capítulo desse trabalho, Instituindo as Histórias e abolindo as Memórias. Por hora,
nos cabe averiguar os contextos de fundação dessa instituição e suas principais contribuições
historiográficas.
Desde a década de 1870, diferentes expressões intelectuais se faziam presentes na
província do Ceará. Nesse período, percebemos a fundação de variados estabelecimentos que
reuniam a intelectualidade, tanto na capital, como no interior da província. Exemplos desse
processo foram as construções da Academia Francesa, do Gabinete de Leitura Português e do
Cosmos Científico. No ano de 1877 houve uma primeira tentativa de fundação do Instituto
Histórico do Ceará, atravancada por dissidências políticas. Naquela ocasião, a instituição não
conseguiu aprovação dos estatutos junto ao governo provincial. Somente dez anos depois,
teve lugar a criação do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará (IHGAC).
Ainda sob o intuito de construir uma história da nação, solidificando mitos de fundação e
recriando um passado homogêneo e glorioso com a finalidade de formar uma identidade
coletiva cearense, foi criado o IHGAC.
Na cidade de Fortaleza, no dia 4 de março de 1887, se reuniu um conjunto de
intelectuais locais, cujo objetivo era a formação de uma sociedade que seguisse o modelo
ideológico do IHGB. Com esse fim, doze homens deram início ao projeto: Paulino Nogueira
Borges da Fonseca; Barão de Studart; Joakim de Oliveira Catunda; João Augusto da Frota;
Juvenal Galeno da Costa e Silva; José Sombra; Virgílio Brígido; Virgílio Augusto de Moraes;
João Batista Perdigão de Oliveira; Antônio Augusto de Vasconcelos; Antônio Bezerra de
Menezes; e Júlio César da Fonseca Filho.
Se o IHGB servia como associação norteadora para os demais Institutos Históricos, no
tangente à região norte do país, o Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico
Pernambucano, assumia, igualmente, o lugar de “instituição modelo”. A proximidade
42
geográfica entre as Províncias do Ceará e de Pernambuco possibilitava a aproximação dos
intelectuais de ambas as localidades. Por exemplo, grande parte dos letrados cearenses havia
passado pela Escola de Direito de Recife, que cumpria o papel de educar a elite dirigente do
nordeste. Sem falar que a distância desses locais dos grandes centros, colocava Ceará e
Pernambuco em condições semelhantes quanto à possibilidade de representação política junto
ao governo imperial56.
A análise do quadro dos sócios da associação nos fornece dados que convergem com o
perfil dos intelectuais do IHGB e do IAGP. O Instituto cearense congregou diferentes
profissionais, professores, políticos, médicos, engenheiros, jornalistas, poetas ou religiosos.
Muitos desses indivíduos estiveram ligados à Escola de Direito de Recife e constituíam a
burguesia local emergente. Homens, identificados com as concepções de ciência e progresso,
que haviam se incumbido da tarefa de construir uma tradição no passado da província capaz
de legitimar e definir uma História do Ceará.
Com diferentes posturas acadêmicas, a intelectualidade presente no IHGAC tinha a
intenção de galgar um espaço para o Ceará na História do Brasil. Coube, portanto, a esses
homens definir a origem mítica da História cearense, ou seja, seus primeiros conquistadores e
heróis fundadores e, a partir deles edificar uma tradição para a província. Como apontado por
Hobsbawn
57
, “toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como
elemento legitimador e de coesão”, a missão do Instituto cearense, assim como dos demais
Institutos Históricos era, justamente, construir uma tradição, fonte de poder simbólico e
temporal, que propiciaria a narrativa da gênese da nação58. Importante destacar que, mesmo
sendo fundado num período de complicações e turbulências políticas em torno da abolição da
escravidão e da crise da monarquia, o IHGAC seguiu o mesmo modelo dos demais Institutos
Históricos.
Em trecho a seguir, Capistrano de Abreu nos informa sobre as intenções dos
intelectuais cearenses de mapearem o passado e construírem uma narrativa histórica para o
Ceará. Ao mesmo tempo, o autor aponta para dificuldades de tal empreitada, tendo em vista
os poucos feitos memoráveis ocorridos naquela região.
“O Ceará é dos estados do Norte, quiçá de todos da União, o que com mais
afinco se entrega ao estudo das suas coisas passadas. Talvez por não ter
56
MENESCAL, Ana Alice Miranda, A História trazia à luz: o instituto do Ceará e as análises acerca dos povos
indígenas. Campina Grande, Ano III, vol. 1, nº 4, 2012
57
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A Invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2012, p. 21.
58
OLIVEIRA, Almir Leal de. História, tradições e patriotismo: o significado das comemorações do
tricentenário do Ceará. Proj. História: São Paulo, abr. 2000
43
propriamente historia, isto é, faltarem-lhe fatos estrondosos que chamam e
fixam a atenção (...)59.
Tendo em vista a percepção científica a respeito da disciplina História, no Brasil do
século XIX, interpretada como sendo fruto de grandes feitos, elaborados por grandes homens,
entendemos a afirmação de Capistrano de Abreu. Se pararmos para lembrar que essa mesma
História nascia de intelectuais provenientes da Corte e que privilegiava acontecimentos
ocorridos no eixo sul do país, quando muito, de regiões mais afastadas como Pernambuco,
conseguimos compreender a fala do autor de que o Ceará não possuía, propriamente, uma
narrativa valiosa do passado. Em uma passagem simples, Capistrano de Abreu expõe os
principais anseios e a principal dificuldade dos homens de letra do IHGAC, ou seja, a
construção de símbolos e tradições que permitissem a formação e a legitimação de uma
narrativa histórica capaz de estabelecer uma sentimento de identidade entre a população e o
local. Era necessário, portanto, que os integrantes do Instituto Histórico do Ceará realizassem
um cansativo trabalho de produção de artigos monográficos, de descoberta e análise de fontes,
assim como a organização de cronologias, de maneira que o conhecimento histórico
produzido validasse uma visão do passado que agregasse valor à história do povo cearense.
A criação da Revista ocorreu no mesmo ano de criação do Instituto e, assim como nas
demais agremiações, se deteve em publicações de fontes primárias e em artigos monográficos
que priorizavam o período da colonização, além de pequenas biografias. Desde o primeiro
volume da Revista do Instituto Histórico do Ceará (RIHC) a temática indígena se fez
evidente. Para os intelectuais do IHGAC era imprescindível a elaboração de estudos acerca da
pré-história local, bem como a execução de pesquisas sobre os primórdios do povo cearense.
Mesmo antes da fundação do Instituto, essa preocupação já rondava a intelectualidade. Ainda
em 1850, Tristão de Alencar Araripe60, realizou um trabalho, no qual analisou a população
nativa e os desdobramentos da colonização portuguesa na região61.
Condizente com a postura da historiografia oitocentista, os homens de letras do
Instituto do Ceará logo trataram de realizar a coleta dos documentos necessários à fundação
da história primitiva das terras cearenses. Os principais documentos localizados datavam dos
séculos XVII e XVIII e, em grande medida, compunham relatos de viajantes estrangeiros.
Tais fontes traziam uma visão distorcida das populações nativas e seus costumes, o que foi
59
Revista do IHGAC, 1899. Tomo XIII. p. 22
ARARIPE, Tristão Alencar. História da Província do Ceará - desde os tempos primitivos até 1850. 2ª Edição,
Col. História e Cultura, do Instituto do Ceará, Fortaleza, 1958.
61
MENESCAL, Ana Alice Miranda, Op. Cit.
60
44
atribuído como verdade por grande parte dos círculos intelectuais que conformavam o
IHGAC. Esses homens acabaram por elaborar uma história, na qual o indígena era sinônimo
de barbárie e atraso. Se a memória está relacionada ao sentimento identitário e o objetivo do
instituto cearense era a criação do sentido de identificação da sociedade com o lugar, a
lembrança que cabia explorar era a que remetia à noção de civilização, ou seja, a chegada do
homem branco na imagem do colonizador. Detentor das luzes, o europeu apareceu, na
historiografia local, como uma forma de superação do Estado de Natureza em que viviam os
povos indígenas. Se os letrados não podiam escapar da memória do nativo como componente
central para a formação da população cearense, cabia a eles estipular que a esses indivíduos
competiu menor relevância no processo de interação. O povo do Ceará era, portanto, fruto do
processo civilizatório que teve origem com a colonização62.
Para os letrados que publicavam na Revista do IHGAC era preciso organizar uma
seleção dos feitos passados em busca da criação de memórias históricas para a população
cearense. O que interessava ao modelo historiográfico da época era a cristalização de
momentos que marcaram a chegada das luzes ao Ceará, da civilização trazida pelos
portugueses. Se as publicações do Instituto do Ceará traduziam os primeiros olhares sobre os
povos indígenas, habitantes originais do território, ainda que de forma pejorativa, elas não se
preocuparam tanto em identificar o estrangeiro africano na configuração identitária do povo
cearense. Grande parte da intelectualidade do Ceará assumiu o discurso de que a população
local havia se formado da mescla, quase que exclusiva, do nativo com o colonizador europeu,
exemplo desse tipo de interpretação pode ser visto na literatura de José de Alencar e sua obra
Iracema.
Inúmeros historiadores justificaram a falta da presença de negros no Ceará por razões
distintas – a inexistência de uma companhia cearense que importasse escravos diretamente da
África; a submissão administrativa do Ceará à província de Pernambuco até o ano de 1799, o
que lhe impedia de comprar escravos de outras regiões; ou ainda pelos altos preços da
escravaria. Em vista desses aspectos, o Ceará teria contado com uma parcela ínfima de negros
na sua configuração populacional. Ao se apagar a presença escrava no Ceará,
automaticamente torna-se inegável o processo de mestiçagem envolvendo somente o indígena
e o português, concedendo ao elemento negro um lugar secundário na formação étnico-racial
do cearense. Uma renovação historiográfica vem rompendo com a visão tradicional que
62
MENESCAL, Ana Alice Miranda, Comemorações, memórias e documentos: uma hermenêutica da ideologia
nacionalista na Revista do Instituto do Ceará do ano de 1903. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais,
vol. 4, nº7, 2012
45
associa a existência do negro puramente à manutenção da sociedade escravista e procurando
tematizar sobre as experiências de populações negras, dentro e fora dos espaços da
escravidão63.
Apesar de priorizarem a presença indígena, os historiadores do instituto cearense não
negligenciaram de todo a participação da população negra na formação da sociedade. Nos
registros das Revistas do Instituto a temática sobre os homens de cor, escravos ou livres,
aparece com alguma frequência nos artigos. No nono tomo da revista assim aparece
registrado:
De feito, mui poucos portugueses, quase exclusivamente de origem berbere,
e alguns crioulos que vinham de Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande,
pelo litoral, ou da Bahia e de Sergipe, pelo interior, associados aos
fragmentos da raça tupi, dentro em pouco, deviam fazer do ceará uma
colônia muito populosa64
Vários são os exemplos do interesse em torno da presença e da participação de negros
na sociedade pelos membros do IHGAC. Afirmativas como esta arruínam argumentos a favor
da não existência de homens de cor no Ceará e trazem à tona a problemática do convívio de
negros, brancos e indígenas na configuração da identidade do povo cearense. Contudo,
seguindo os preceitos inaugurados por Von Martius, na década de 1840, a parcela negra da
mistura racial foi preterida das análises historiográficas, como tentativa de apagar a herança
africana da formação do povo brasileiro. Bastava reconhecer a realidade nacional que
expunha, incontestavelmente, a africanidade da sociedade. Ou seja, os estudos estacionavam
no reconhecimento de que o elemento negro havia entrado na composição étnico-racial da
população, dedicar-se em análises para entender como se deu esse processo não fazia parte
das preocupações dos historiadores dos Institutos Históricos.
1.5 O Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
A fundação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) relacionou-se
ao momento histórico marcado pelo crescimento da região sudeste do Brasil impulsionado,
desde a primeira metade do século XIX, pela cafeicultura. Com o progresso do setor cafeeiro,
a cidade de São Paulo adquiriu importância no cenário político e passou a se configurar no
63
MATRIZ, Silvana Fernandes. Disputas discursivas ou alquimias identitárias? Identidades em trânsito no
Ceará pós-Durban. Cadernos do CEOM - Ano 24, n. 35 - Identidades
64
Revista do IHGAC. Fortaleza, 1900. Tomo IX, p. 242
46
principal centro econômico do país, local de moradia da mais próspera elite nacional.
Influenciados pelas idéias de progresso e civilização, expressas na crença pela ciência,
indústria e urbanização, os integrantes do Instituto paulista, em seus anos iniciais,
compactuaram de uma visão otimista acerca do processo de modernização imperante na
cidade. O primeiro estatuto, datado de 1884, assim definia as intenções da agremiação.
Promover o estudo e o desenvolvimento da história e geografia do Brasil, e
principalmente do Estado de S. Paulo e bem assim ocupar-se de questões e
assuntos literários, científicos, artísticos e industriais, que possam interessar
o país sob qualquer ponto de vista. (RIHGSP, 1895)
O IHGSP foi fundado após a instauração da República, em meio a um processo de
disputas políticas por parte da elite econômica paulista pelo predomínio no governo federal.
Nesse momento, teve início a necessidade de estabelecimento de uma cultura regional que
correspondesse às pretensões dos grupos dominantes locais. Assim como nos demais
Institutos Históricos, a intenção dos círculos intelectuais de São Paulo era construir uma
história para a região dotada de grandes feitos que pudessem exaltar a respeitável posição de
São Paulo na narrativa histórica nacional65.
A iniciativa de concepção de uma instituição responsável por construir uma história
nacional que exaltasse o exemplo paulista partiu de Domingos José Nogueira Jaguaribe Filho,
Antônio de Toledo Piza e Estevan Leão Borroul. Estes homens se encarregaram de convidar a
intelectualidade paulista para uma reunião realizada no dia 1º de novembro de 1894, no salão
nobre da Faculdade de Direito, cedido pelo então diretor, o Barão de Ramalho. O objetivo da
reunião era tratar da criação do Instituto Histórico e Geográfico Paulista. Cento e trinta e nove
pessoas atenderam ao convite e subscreveram a ata da fundação do instituto. No mesmo dia
da fundação, a assembléia elegeu Prudente de Morais presidente honorário do IHGSP, que
após duas semanas assumiu a presidência da República brasileira.
A agremiação paulista, ainda que tenha sido construída no período republicano,
manteve as características administrativas e historiográficas do modelo inaugurado pelo
IHGB, dando ênfase a um conhecimento cívico-patriótico da nação. Logo na primeira sessão
da instituição, que contou com a participação de 69 integrantes, foram estabelecidas as regras
que normatizariam as atividades do IHGSP. Os sócios deveriam se reunir quinzenalmente
para apresentação dos trabalhos e para decidirem os deveres institucionais, como atos
públicos, homenagens a historiadores, cunhagem de moedas ou emissões de selos. O IHGSP
65
Schwarcz, Lília. Op. Cit.
47
manteve o mesmo formato de hierarquia interna inaugurado pelo Instituto Brasileiro,
conservando as mesmas formas de associação que variaram em cinco tipos: presidente, sócios
de honra, sócios beneméritos, sócios efetivos ou sócios correspondentes.
Podemos verificar certa homogeneidade quanto ao aspecto sócio-econômico dos
associados do Instituto de São Paulo. Grande parte da elite intelectual paulista que compunha
o IHGSP já participava do MP e da Academia de Direito, e a maior parte dos seus membros
mantinha funções no aparelho de estado. Entre os sócios do IHGSP encontramos médicos,
juízes, advogados, diplomatas e engenheiros. Além de exercer cargos públicos, muitos dos
sócios eram integrantes das famílias tradicionais paulistas e formavam a elite política e
econômica nacional.
O Instituto Histórico de São Paulo era mantido por um estado poderoso, o que lhe
garantiu uma situação financeira estável. Além das jóias pagas pelos associados, a instituição
recebia uma ajuda financeira dos cofres públicos de cerca de 44% do total dos custos
necessários ao funcionamento do Instituto paulista66. Assim como as demais instituições
tratadas nesse trabalho, o IHGSP vivenciou dificuldade de fixação habitacional, funcionando
em várias localidades, até conseguir inaugurar sua sede própria no ano de 1909.
O IHGSP conservava o objetivo de produzir um periódico encarregado de colocar em
prática as atividades filosóficas de seus sócios, portanto, estipulou-se a criação da Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (RIHGSP). O primeiro estatuto da agremiação
demonstra as intenções da instituição: “Publicar uma revista, uma vez ao menos anualmente,
dando conta da vida da associação e onde fiquem arquivados os trabalhos que o Instituto
julgar úteis e interessantes.” (RIGHB, 1895). Assim como foi percebido para as outras
instituições, a agremiação paulista contou com um número grande de artigos sobre assuntos
locais. A intenção era apontar para um passado de liderança de São Paulo em relação aos
demais estados do Brasil, exaltando os feitos regionais, de maneira que sua história o tornasse
essencial para a nação.
Entre os membros do Instituto paulista, nem todos publicavam artigos nas revistas. Os
trabalhos apresentados para publicação necessitavam de aprovação do presidente e de uma
comissão avaliadora que realizava a aceitação em assembléia. Havia, internamente, interesses
e conflitos que levavam nomes mais conhecidos no IHGSP a aparecerem mais
frequentemente. Podemos destacar a participação constante, nos primeiros anos da Revista, de
66
Idem
48
Afonso A. de Freitas e Theodoro Sampaio67. O periódico era apresentado anualmente e, além
dos artigos monográficos, era composto pelas atas das reuniões. Antonio Celso Ferreira
dividiu as publicações da RIHGSP em grupos temáticos: Estudos Geográficos; Estudos
Biográficos; Estudos Históricos; Estudos Lingüísticos; Estudos Antropológicos; Estudos
Genealógicos; Narrativas e Relatos de Viagem pelo Brasil ou pelo mundo. Ao quantificar o
número de publicações relativas a cada um dos temas, o autor destacou a predominância de
estudos referentes à área de História, o que confirma as intenções do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo de selecionar os feitos paulistas, e designar à sua história um lugar
primordial para a constituição do Brasil.
Importante assinalar para um ponto de distinção essencial entre o Instituto paulista e o
grêmio carioca. O momento histórico de fundação do IHGB o ligava estritamente ao Estado
Imperial e seu projeto de centralização, enquanto que o IHGSP, fundado já no período
republicano, apoiou desde o início a nova configuração política do Brasil. Como destacado
por Lílian Schwarcz68, se o IHGB adotou como seu protetor o imperador D. Pedro II, o
Instituto de São Paulo contou com a participação de importantes presidentes do Brasil:
Campos Salles, Rodrigues Alves, Washington Luís, Prudente de Moraes. Por isso,
verificamos que desde a primeira publicação da Revista do Instituto Histórico de São Paulo
uma série de artigos destaca os valores republicanos, ao mesmo tempo em que critica o
passado monárquico e seus personagens.
A intelectualidade paulista, assim como a pernambucana, buscava criticar a
centralidade intelectual do Rio de Janeiro representada pelo IHGB. Dessa forma, o IHGSP
atribuiu-se à tarefa de resgatar ou inventar símbolos locais que durante o Império haviam se
concentrado apenas na Corte. A ascensão das regiões paulistas produtoras de café, frente à
decadência das fazendas cariocas do vale do Paraíba, juntamente com o crescimento estrutural
das cidades de São Paulo, ocasionou uma mudança na configuração das disputas de poder no
Brasil. O eixo sul-sudeste continuava a concentrar a força política do país, no entanto, o Rio
de Janeiro, aos pouco, perdia espaço para o estado de São Paulo. As querelas políticas e
econômicas, oriundas da expansão cafeeira e da instauração do novo regime republicano, se
fizeram sentir na esfera intelectual e o Instituto Histórico Paulista reproduziu, internamente,
os dilemas vivenciados pelo país. De acordo com Lilia Schwarcz, essa marca pode ser
67
MAHL, Marcelo Lapuente. Teorias raciais e interpretação histórica: o Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo (1894-1940). Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade
Estadual Paulista. Assis, 2001.
68
SCHWARCZ, Lília. Op. Cit
49
percebida na absoluta falta de referências ao estabelecimento carioca por parte do Instituto de
paulista.
A distribuição temática dos artigos da Revista do Instituto Histórico de São Paulo era
semelhante às encontradas nas demais instituições, constando de trabalhos de história e
biografias que se assentavam no período colonial, além de problemáticas relacionadas aos
indígenas e à consolidação da ordem republicana. No entanto, o papel do IHGSP era exaltar a
participação dos feitos paulistas na construção da narrativa histórica da nação. Por isso, a
intelectualidade da região privilegiou os assuntos em torno da expansão e conquista
bandeirante, destacando os aspectos de selvageria da população nativa, bem como trabalhos
biográficos de indivíduos locais, como forma de consagrar personagens da história paulista.
O fenômeno do bandeirismo recebeu destaque especial dos membros do Instituto. O
bandeirante foi eleito o personagem representativo de uma identidade paulista, característico
da história local e digno de destaque em todo Brasil. A valorização e popularização da figura
do bandeirante encontra-se ainda presente em parte da historiográfica e nos livros didáticos
escolares, que chamam atenção para o espírito aventureiro e valente dos “primeiros
aventureiros do país”. A associação da grandeza de São Paulo ao seu passado bandeirante
garantiu a marca de originalidade e nobreza do estado paulista. O homem local, representado
pela figura do bandeirante, havia lutado contra as adversidades que a natureza impunha,
desenvolvendo características físicas especiais que permitiram a exploração do território
brasileiro. Ora as terras brasílicas eram apresentadas como perversas e selvagens, ora
apareciam como harmoniosas e belas, seguindo a tradição romântica do século XIX. Em
ambos os casos, a natureza havia proporcionado a formação do tipo racial paulista ilustrado na
imagem do bandeirante, seja através da tentativa de superação das adversidades impostas pelo
meio ambiente, seja exatamente pelo contrário, numa visão onde a natureza inspiradora
permitia o afloramento dos melhores sentidos e sentimentos humanos69. A importância da
origem bandeirante para a sociedade paulista pode ser percebida quando averiguamos que
parte da elite representada nos quadros associativos do Instituto de São Paulo procurava
vincular-se genealogicamente aos antigos exploradores das terras brasileiras.
Assim como em Pernambuco, o Instituto de São Paulo destacou a formação de um tipo
racial único através da miscigenação do homem branco, com o indígena e o negro. Essa
mistura entre raças seria a responsável por compor a raça paulista, constantemente associada
ao bandeirante. Segundo essa teoria, exposta frequentemente nas páginas da Revista do
69
MAHL, Marcelo Lapuente. Teorias raciais e interpretação histórica: o Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo (1894-1940). Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis (UNESP). Assis, 2001
50
Instituto, a qualidade inata do bandeirante era proveniente, em primeiro lugar, da sua
condição étnico-racial. Somente a miscigenação seria capaz de promover um tipo humano
desbravador e corajoso, responsável por promover a conquista do território que conformaria o
Brasil. Mais uma vez, notamos no Instituto paulista o mesmo ocorrido para as outras
agremiações, a desvalorização do elemento negro no processo de miscigenação. O indígena,
nativo natural, não raras vezes tornou-se o único indivíduo apresentado como participante da
mistura racial. Novamente, em São Paulo se perpetuava a noção de que o indígena era cabível
de redenção, mas o negro era, claramente, um impedimento à civilização e, dessa forma,
deveria ser silenciada a sua participação para a composição racial do povo brasileiro.
Todavia, não podemos procurar uma coerência teórica absoluta no IHGSP, o grêmio
paulista soube misturar evolucionismo com darwinismo social, poligenismo e monogenismo,
cientificismo e religião. Ao lado de ideias que afirmavam a superioridade da raça paulista
justamente por ser fruto da miscigenação, não raro encontramos perspectivas contrárias que
viam negativamente a mistura racial. Vale lembrar que essa mesma elite paulista assumiu o
compromisso de promover uma imigração européia que restringia a entrada de indivíduos
negros e asiáticos no país. Oliveira Vianna, por exemplo, acreditava que a população de São
Paulo seria intelectualmente superior às demais do país devido ao pouco enlace racial
ocorrido na região. Euclides da Cunha, figura de extrema importância para a história do
IHGSP, também condenou a miscigenação em seu livro Os Sertões, lido nas sessões do
instituto antes de sua publicação70. Portanto, a produção intelectual do IHGSP reflete os
debates ocorridos internacionalmente e entre os grupos de letrados brasileiros que se
baseavam nas teorias raciais européias.
1.6 Possibilidades de leituras
A criação dos Institutos Históricos nasceu da intenção de formalizar uma cronologia
própria para a nação, de maneira que a disciplina da história ajudasse a fundamentar as bases
do estado nacional. Tratava-se de uma perspectiva historiográfica baseada no cientificismo e
no positivismo, assentada nas ideias de progresso e civilização, através da qual a
intelectualidade forjava uma tradição que pudesse compor o processo de gênese do Estado
nacional. Através de uma seleção estrita dos eventos passados esse modelo historiográfico
construía memórias que alimentavam sentimentos identitários entre a sociedade e o país.
70
Idem.
51
Precursor desse processo, o IHGB foi o maior representante do projeto centralizador do
estado imperial nos círculos intelectuais e o responsável pela constituição de uma memória
nacional legitimadora do regime monárquico. Sua fidelidade à monarquia ditava os limites da
sua produção intelectual.
Todas as instituições que seguiram o modelo do IHGB necessitaram criar uma
linguagem historiográfica própria, na qual estivessem inseridos fatos e personagens essenciais
para a história do Brasil. Nesse tangente, as diferenças políticas e regionais se fizeram
presentes e podem ser vislumbradas nos periódicos de cada uma das agremiações. Nesse
sentido, o IAGP assumiu, para o caso da região norte do país, função semelhante ao IHGB. O
objetivo era ressaltar o papel de Pernambuco na narrativa histórica nacional, que então
privilegiava o eixo sul do país. O Instituto do Ceará, fundado nos anos finais do Império,
também possuía um enfoque regionalista, porém menos associado ao Segundo Reinado.
Procurava entender as origens do povo cearense, e construir um sentimento de identificação
da sociedade com a província. Diferente era a situação do IHGSP. Nascido no período
republicano, o Instituto paulista legou para si o status de representante original do novo
regime político e em seus discursos destacaram-se as particularidades locais principalmente
através da figura do bandeirante.
Para além das divergências regionais e políticas, os Institutos Históricos possuíam a
finalidade essencial de construir uma narrativa coerente para a nação que relacionasse
diferentes temporalidades, presente, passado e futuro. A urgência de determinados assuntos
contemporâneos impunha a escolha de temas e personagens. Se a nação se constituiu, durante
o século XIX, na principal temática de reflexão política no mundo ocidental, era imperante
entender a constituição do povo brasileiro para a consolidação, interna, da ideia de nação.
Para que esse objetivo se realizasse foi necessário um investimento na narrativa do passado,
selecionando e silenciando os fatos que deveriam ou não formar a história do Brasil.
Em todas as instituições analisadas, o período colonial assumiu uma posição
privilegiada nas pesquisas historiográficas, visto que a chegada do português era interpretada,
pela elite intelectual, como uma espécie de mito fundacional. Esse episódio datava o início de
uma história branca e européia para o Brasil. Cabia, portanto, assumir uma identidade que
estreitasse as relações entre Brasil e Portugal. Todavia, como verificamos para todas as
instituições, a questão da mestiçagem foi essencial para o entendimento do tipo racial
nacional. A história do Brasil consistia na descrição de três raças formadoras que viviam
harmoniosamente, a branca, a negra e a indígena. No caso do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, desde 1844, quando do concurso vencido por Von Martiuns, a proposta de
52
entender a formação étnico-racial da população através da miscigenação, já se encontrava em
voga. Para as demais associações o mesmo tipo de preocupação foi localizado. Por exemplo, o
mestiço foi descrito como um produto local, melhor adaptado ao meio, por parte dos
intelectuais de Pernambuco e São Paulo, quando das afirmativas sobre a composição de um
tipo racial único formador da identidade regional. As diferentes interpretações a respeito da
mistura racial geraram discursos conflituosos no interior de uma mesma instituição e, como
averiguamos, a parcela negra desse processo foi preterida em relação à branca e à indígena.
Após esse capítulo introdutório, nos compete ponderar sobre as formas pelas quais a elite
intelectual do Brasil, a partir de uma tradição historiográfica imperial, resgatou a figura do
negro, cativo ou liberto, na elaboração de uma identidade narrativa para a nação.
53
Capitulo II
Instituindo as Histórias e abolindo as Memórias.
54
“Patria, és feliz! Os teus exploradores
Vem-te surgir bella como uma aurora;
Dize aos escravos que não ha senhores,
E ao mundo inteiro que estás livre agora.
Já não carregas os teus duros ferros
Entre um coro de dores e gemidos.
Sobes da liberdade os altos cerros
Com as algêmas e os grilhões partidos.” 71.
2.1 A abolição da escravidão no Brasil: um rápido panorama
Ao contrário dos assuntos relacionados à escravidão na história brasileira, que tiveram
sua ascensão principalmente após a década de 1980, a temática da abolição e as experiências
de liberdade a ela relacionadas foram pouco discutidas pela historiografia72. O século XIX se
apresenta ao historiador como um período extremamente importante, pois esteve envolto por
questões acerca da definição de regras sociais, limites, e valores que constituíram a sociedade
brasileira. Identidades conflituosas erigiram, nesse momento, a partir de definições de
nacionalidade, de cidadania, de liberdade e de justiça, fronteiras de valores e tensões a
respeito da cor73. Uma nação, como comunidade imaginada de sentidos, construção simbólica
que permite o sentimento de identidade, se constituiu em torno de categorias que definiram e
delimitaram as noções entre nós e outros74. Durante o século XIX duas questões passam a
integrar de maneira significativa o imaginário social brasileiro, nação e cidadania, o que
impunha a necessidade de se repensar o delineamento das fronteiras entre os homens de cor,
negros, mulatos, pardos e suas condições de agentes detentores de direitos políticos. Nesse
contexto, passamos a analisar as publicações das revistas dos Institutos Históricos pensando o
que caracterizaria a escravidão como legítima ou ilegítima frente às idéias de igualdade
propostas por estes homens que vivenciavam o liberalismo. Da mesma forma, buscamos,
quando possível, estabelecer como se delineavam as fronteiras entre os homens de cor,
negros, mulatos, pardos e suas condições de cidadania.
71
MURAT, Luiz. Hinno da Redempção. 1888, IHGB, DL 417, 17.
GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pósemancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. 2007.
73
DUARTE, Regina Horta, “O século XIX no Brasil: identidades conflituosas”, in: CARVALHO, José Murilo
de e NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Repensando o Brasil do oitocentos: cidadania, política e
liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 563-570
74
ANDERSON, Benedict R, Comunidades imaginadas: reflexão sobre a origem e difusão do nacionalismo. São
Paulo, Companhia das Letras, 2008
72
55
A história do desenvolvimento do conceito de “cidadania” em sua totalidade, ou seja,
sua plena realização, com a ampliação dos direitos que incorporaria toda a sociedade adulta à
condição de igualdade política, vem sendo cada vez mais investigada nos trabalhos
historiográficos que envolvem o século XIX. No entanto, precisamos lembrar que a definição
da categoria cidadão era, nesse contexto, uma questão em aberto. Sendo assim, é necessário
percebermos que a utilização de tal conceituação não possuía, simplesmente, o intento de
definir quem pertencia ao status de cidadão ou quem a ele estava negado. Precisamos analisálo compreendendo que o próprio significado da categoria cidadão atravessava um processo de
constituição e reformulação 75.
Podemos, esquematicamente, verificar alguns processos decisivos que envolveram a
temática da escravidão e da abolição na sociedade brasileira. Em um primeiro momento, o
combate político do liberalismo brasileiro à instituição da escravidão se concentrou na luta
contra o comércio negreiro e na denuncia do tráfico africano, tendo como contrapartida mais
radical a pressão por parte de escravos crioulos pela alforria e direitos de cidadania baseados
na nacionalidade
76
. É necessário esclarecer que o suposto dilema entre liberalismo, com a
assertiva de igualdade e liberdade, e escravidão não foi um processo específico do Brasil, mas
de grande parte da América. Os novos países que se formavam, norteados pelas idéias de
cidadania, possuíam, de acordo com Hebe Mattos77, três premissas fundamentais. Em
primeiro lugar, a manutenção do sistema escravista baseado no direito de propriedade, próprio
do liberalismo. Em segundo lugar, a proibição do tráfico africano e, por último a emancipação
da escravidão de forma lenta e progressiva com a indenização senhorial78.
De fato, desde a Constituição imperial de 1824 foi reconhecido no Brasil os direitos
políticos de todos os cidadãos, teoricamente sem diferenciação de cor, excetuando-se os
escravos. Na realidade a constituição estabelecia uma “cidadania em níveis”, baseado num
critério censitário. O primeiro nível era exercido localmente nas eleições para vereador.
Poderiam ser eleitos ou eleitores aqueles que possuíssem renda mínima de 200 mil réis
anuais. Os graus de exigência monetária aumentavam, na medida em que o cargo político
crescia de importância, determinada quantia era exigida nas eleições para deputados
75
PALTI, Elias José. “O século XIX brasileiro, a nova história política e os esquemas teleológicos”, in:
CARVALHO, José Murilo de e NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Repensando o Brasil do oitocentos:
cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 581-597.
76
REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: A resistência negra no Brasil escravista. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003
77
MATTOS, Hebe. “Racialização e cidadania no Império do Brasil”, in: CARVALHO, José Murilo de e
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Repensando o Brasil do oitocentos: cidadania, política e liberdade.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 350-391.
78
Idem
56
provinciais, outra maior para senadores e assim por diante. Aos libertos era concedida
participação somente a nível mais elementar, nas eleições primárias, enquanto votantes ou
elegíveis a vereadores. Esses tipos de requisitos, também eram utilizados em relação aos
cargos públicos. Aos livres, independente da condição racial, eram computadas as mesmas
exigências políticas. Sendo assim, os descendentes de escravos livres poderiam, se
possuíssem renda necessária, exercer seus diretos políticos na monarquia. Os escravos
alforriados, entretanto, não entraram no subjetivo conceito de cidadão. A sociedade brasileira
que era, aparentemente, composta por escravos de um lado e cidadãos livres de outro, contava
com um terceiro e, emblemático elemento, o negro livre. Na medida em que crescia
demograficamente uma população livre de ascendência africana, as categorias de escravo ou
liberto (preto ou crioulo) já não davam conta do universo social que se apresentava. O
crescimento de uma população “livre de cor” fez com que surgissem necessariamente novas
nomenclaturas, como por exemplo “pardos livres”, que dessem conta da realidade. Tais
categorizações eram ao mesmo tempo uma forma de silenciar o estigma da escravidão
presente no passado desses indivíduos, sem, no entanto, apagá-lo.
Esse processo de organização política e social, que hoje chamaríamos de
discriminatório, se desdobrava em inúmeras formas de conquista por direitos políticos por
parte dessa população “livre de cor” e só pode ser entendido a partir da permanência de um
modelo escravista que não interferisse no mundo privado. Em outras palavras, a luta pela
igualdade dos cidadãos livres não implicou em qualquer desdobramento que vislumbrasse
críticas à escravidão. Pelo contrario, dependia da condição do “ser escravo” para que se
pudesse, em contrapartida, “ser cidadão”. Tal fato não deixou de parecer, porém, um risco a
uma elite política branca que percebia que as lutas pela igualdade poderiam,
consequentemente, levar à exigência da liberdade, num país que comportava uma das maiores
populações escravas das Américas e a maior população livre negra do continente. De maneira
geral, o respeito ao direito de propriedade, corolário do pensamento liberal, foi mantido e o
combate ao tráfico negreiro representou a baliza das lutas anti-escravistas na primeira metade
do século XIX.
No dia 7 de novembro de 1831, a primeira lei nacional que proibia o tráfico africano
de escravos foi promulgada. A partir de então pesadas penas eram impostas a quem
comprasse, vendesse, ou transportasse africanos no Brasil. A relação das pressões exercidas
pela Inglaterra para a assinatura da lei de 1831 vem sendo repensada em estudos mais
recentes, que apontam para o levantamento de questões políticas e sociais internas, sem,
contudo, escapar da força inglesa como decisiva para a promulgação do novo regulamento
57
anti-tráfico. Não se trata de caracterizá-lo como uma “lei para inglês ver”, mas sim de pensar
nas idiossincrasias internas, atreladas aos contextos externos que fizeram com que esta lei
fosse institucionalizada
79
.
Sabemos, no entanto, que a corrupção foi enormemente
disseminada entre os comerciantes de africanos que passaram a ser traficantes ilegais. Poucos
foram os casos de controle dessa prática, ainda que fossem denunciadas na imprensa ou na
Câmara e no Senado do Império 80. No entanto, muitos escravos importados ilegalmente para
o Brasil se utilizaram, em décadas posteriores, do artifício da inconstitucionalidade da sua
condição de mercadoria, obtendo inclusive o direito a liberdade. Acionando a Lei de 1831,
parte ínfima da população escrava conseguiu direito à liberdade, continuava, porém na
condição de estrangeiro africano e, portanto sem deter direitos políticos.
Para a maioria dos autores que tratam da temática da escravidão no Brasil foi em 1850
que as condições que permitiram o fim definitivo do tráfico africano de escravos para o país
se consolidaram81. A lei nº 581 do Império do Brasil, aprovada em quatro de setembro do
respectivo ano, conhecida como Lei Eusébio de Queiroz, foi a responsável por tal processo.
Durante o século XIX duas correntes de pensamento coexistiram a respeito do fim do tráfico.
A primeira delas afirmava a necessidade da mão de obra vinda da África para a continuidade
da escravidão no país e consequentemente para a acumulação de riquezas individuais e do
próprio Estado. Uma segunda opinião defendia que os africanos escravizados representavam a
barbárie e um perigo à civilização e a segurança nacional, afirmando os riscos da
africanização e da haitização no país. Sendo assim, era necessário que o governo limitasse a
entrada desses indivíduos no Brasil e incentivasse a chegada de imigrantes brancos. Tais
discussões fomentaram a Câmara e o Senado, bem como boa parte da população brasileira.
Claro, que formas inusitadas de perceber a presença do estrangeiro africano no Brasil foram
pensadas e revisitadas formulando opiniões únicas que podiam entrelaçar ambas as questões
colocadas.
79
Em relação a novos estudos sobre a lei anti-tráfico de 1831 cf. CUPELLO, Rafael. O poder e a lei: o jogo
politico no processo de elaboração da "lei para inglês ver" (1826-1831). Dissertação de Mestrado em Historia.
Niterói: UFF/PPGH, 2013; PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil (1826-1865). Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011; CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no
Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012; GRINBERG, Keila. Liberata – a lei da
ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1994.
80
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o
Brasil (1800-1850). Campinas-SP: Editora da UNICAMP/CECULT, 2000.
81
BETHELL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos: A Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do
comércio de escravos, 1807-1869. Brasília: Senado Federal, 2002.; CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros: O
tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
58
A partir da década de 1860 o país já assumia uma posição de isolamento no que tange
a questão da continuidade do sistema escravista como modo de produção nacional. Inglaterra,
França, Portugal, Holanda e Dinamarca já haviam libertado os escravos em suas colônias e a
Espanha preparava-se para o mesmo fim em Cuba e Porto Rico. Caminhando na mesma
direção, a derrota do Sul dos Estados Unidos na Guerra Civil Americana demarcava o lugar
ultrapassado da escravidão no mundo ocidental. Finalmente, a Guerra do Paraguai foi decisiva
para se repensar a validade do sistema escravista em diversos aspectos, não apenas por ter
recrutado um número significativo de escravos para lutar nas tropas brasileiras, concedendoos liberdade em troca, como também influenciava na visão estrangeira que as nações vizinhas
possuíam do Brasil por escravizar àqueles que lutavam pelo país82.
Na realidade, no próprio território nacional a instituição da escravidão caminhava para
um isolamento, na medida em que o atual sudeste passava a concentrar a grande maioria de
escravos, provenientes do tráfico interprovincial. Estes passaram a integrar a mão de obra das
grandes lavouras cafeeiras, oriundos, principalmente, das modernas regiões norte e nordeste,
que viviam uma diminuição da exportação do açúcar. Tal diferenciação fomentava
comentários de cisões entre norte e sul, dando origem a comparações entre Brasil e Estados
Unidos. Houve também uma diversificação do perfil de concentração da mão de obra escrava,
que passava a se agrupar nas mãos de poucos proprietários, uma vez que o aumento dos
preços tornou mais difícil sua aquisição por gente remediada.
Nos meios letrados, crescia a percepção de que era preciso interferir nas relações entre
senhores e escravos para promover a superação do sistema servil. A crise da escravidão teve
como marco decisivo a Lei do Ventre Livre de 28 de setembro 1871. Esta determinava que os
filhos de mulheres escravas nascidos após a data de promulgação da lei ficariam sob a
autoridade de suas mães. Os senhores teriam a obrigação de criá-los até a idade de oito anos.
Após completar essa idade ficava facultado aos proprietários das mães entregarem as crianças
ao Estado, mediante indenização de 600 mil-réis ou usufruírem do trabalho dos menores até
que eles completassem 21 anos. Pela primeira vez na história do Brasil uma proposta
submetia o poder privado dos senhores aos domínios da lei. A Profundidade e abrangência
desse processo foram analisadas por Sidney Chalhoub83 de forma excepcional. Segundo o
autor, a assinatura da lei de 1871 redefinia arenas de conflitos sociais ao computar ao escravo
determinados direitos. Esse processo, sentido pelos contemporâneos com profundos
82
CHALHOUB, Sidney. “População e sociedade”, in CARVALHO José Murilo de. A construção nacional
1830-1889. Volume 2. Rio de janeiro: Objetiva, 2012, p. 37-81.
83
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003
59
sentimentos de incertezas e expectativas em relação ao porvir, foi intensamente combatido por
aqueles que prezavam por não tocar no assunto da escravidão. Para esses indivíduos o sistema
servil acabaria gradualmente, já anunciado pela lei de 1850 que punha fim ao tráfico de
escravos.
Os calorosos debates que envolveram a assinatura da lei de 28 de setembro de 1871
apontavam para aspectos do projeto como sendo um desígnio da Coroa, uma arbitrariedade,
uma intervenção do poder público no mundo privado que agregava as relações entre senhores
e escravos. Vários dispositivos da respectiva lei foram acionados no sentido de apontar para
as interferências da esfera pública na vida particular. Para além da determinação de que os
filhos das escravas nascidos a partir daquela data seriam considerados livres, subtraindo dos
senhores a prerrogativa de autoridade sobre a vida dessas crianças, a lei atribuía, ainda,
responsabilidades aos proprietários, no que diz respeito à criação destes nascidos livres. Os
novos regulamentos criavam direitos aos quais os escravos poderiam recorrer, ao mesmo
tempo em que conferia ao poder público, à revelia das regulamentações do mundo privado,
prerrogativas de fiscalização e cumprimento desses direitos nas fazendas.
Outro exemplo que demonstrava a inserção do universo público nos privilégios da
vida privada foi a concessão do direito de pecúlio ao cativo, facultando ao escravo, possuidor
da renda necessária, o direito de sua liberdade. Provavelmente, grande parte dessas
disposições apenas formalizava caminhos que eram tidos como direitos costumeiros,
tradicionais na escravidão brasileira. No entanto, ao transformá-los em lei, os parlamentares
assumiam o compromisso de convertê-los em direitos formais. A vontade senhorial não podia
mais regular a iniciativa escrava, ou teoricamente, limitava-se enormemente.
Como dito anteriormente, na segunda metade do século XIX, a problemática central
era definir os direitos políticos dos descendentes de escravos. Após a lei de 1871, uma
mudança de tom começou a se operar. Havia o temor de que os filhos de escravas nascidos
livres, em virtude da lei, viessem a adquirir cidadania plena ao atingir a maioridade, tornandose agentes formais do mundo político. Sendo assim, uma das soluções encontradas foi elidir
critérios raciais de exclusão e passar a exigir a capacidade de ler e escrever para a qualificação
de eleitores. Em 1879, um projeto liberal, aprovado pelo Gabinete Sinimbu, previa a
exigência de eleitores formados no segundo grau e suspendia as eleições a nível primário.
Tratava-se de um claro mecanismo de restrição dos círculos eleitorais e de um movimento de
aristocratização da política. Em 1881, esse novo arranjo eleitoral, denominado Lei Saraiva,
estabeleceu um diminuto corpo de votantes considerados aptos à vida política. Com isso,
60
manteve-se o distanciamento de milhares de descendentes de escravos alijados da cidadania
formal nas décadas seguintes84.
Na década de 1880 as agitações dos grandes centros urbanos formaram o cenário
político do jogo de poder imperial, ilustrado pelo crescimento da rebelia negra, que deixava
entrever a impossibilidade de se alongar por mais tempo a escravidão no Brasil. Certo
incômodo pairava junto à população, frente às agitações políticas envolvendo homens de cor.
Era como se o legado de atrocidades deixado pelo sistema escravista impedisse o negro de ser
integrado à sociedade enquanto cidadão. Havia sentidos diversos e profundos nas hostilidades
dos negros aos seus ex-senhores e em suas ações políticas, cada vez mais presentes nos
centros urbanos. Ao longo de todo o século XIX, como aponta Sidney Chalhoub85,
movimentos de rua que englobavam escravos, libertos e pretos possuíam uma dinâmica
própria, enraizada em um modo de vida urbana coordenado silenciosamente por homens de
cor na luta subterrânea contra a escravidão.
A reivindicação de indenizações pela propriedade escrava aumentava na medida em
que o país se encaminhava para a emancipação total da escravidão. No final da década de
1880 a radicalização dos movimentos abolicionistas aumentava, escravos abandonavam em
massa as fazendas de café, indivíduos se reuniam para a aquisição da liberdade escrava,
incluindo nesses esquemas os próprios cativos. Clubes e associações foram se espalhando
pelo país. A abolição da província do Ceará, em março de 1884, aglutinou ainda mais forças
contra a escravidão no Brasil. O acontecimento ganhou progressivo apoio de diversos setores
da sociedade e foi comemorado na Corte com festejos que duraram cerca de três dias. Já se
tornava claro que o abolicionismo havia se transformado em um movimento popular,
capitaneado por intelectuais como Joaquim Nabuco e José do Patrocínio.
Em 1885, nova lei que intencionava procrastinar o fim definitivo da escravidão no
Brasil foi assinada libertando todos os cativos que possuíssem idade superior a 65 anos.
Finalmente, no dia 13 de maio de 1888 foi abolida a escravidão no Brasil sem indenização
senhorial.
Como apontado por Maria Tereza Chaves de Mello86, a abolição da escravidão só foi
possível graças à participação e a pressão da opinião pública, crescente em todo o território
nacional. Influenciada e insuflada pelos discursos parlamentares, por artigos em jornais e
84
Idem.
CHALHOUB, Sidney. Medo branco das almas negras: escravos, libertos e republicanos na cidade do Rio.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v.8, n. 16, p. 83-105, mar./ ago. 1988.
86
MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida: cultura democrática e científica do final do
Império. Rio de Janeiro: Editora FGV; Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2007
85
61
revistas, pelos comícios nas praças públicas, a campanha abolicionista atingiu patamares
nunca antes presenciados. Somente com a ampliação do palco político, encarnando a rua
como espaço público da razão, tal empreendimento pode ser realizado.
Os debates que eclodiram como consequência da emancipação tiveram como palco
principal as grandes propriedades cafeicultoras, uma vez que eram as regiões de maior
concentração escrava. O que poderia acontecer em seguida à abolição? O Brasil configuravase em uma nação livre, que comportava, no entanto, uma longa memória escravista, que a
partir do século XIX adotava tons de racialização e preconceitos que demarcavam os lugares
dos “homens de cor” na sociedade. O que se faria com os “cidadãos ex-escravos”? Algumas
possibilidades eram possíveis para esse liberto, seja a fuga em massa das fazendas para as
cidades ou a permanência nestas através de novos regimes de trabalho. No entanto, se como
afirmado anteriormente o “longo século XIX” representou um momento em que conceitos de
cidadania estavam sendo cunhados, ao chegar a sua última década tornava-se ainda mais
complicado delimitá-los.
Um novo cenário se formou nas ruas das cidades, principalmente da Corte, com fim da
escravidão. Ainda em 1888, a propaganda republicana avançava e os abolicionistas, antes
unidos por um mesmo objetivo, dividiam-se entre o apoio à causa republicana e a monarquia.
Nos jornais dos grandes centros urbanos as disputas políticas se tornaram cada vez mais
acirradas. O interior do país não escapou das conturbações. Grandes fazendeiros, vendo-se
prejudicados pelo fim da escravidão, aderiram à razão republicana com a esperança de
receberem indenização em decorrência da perda da mão de obra escrava. Muitos libertos, por
sua vez, fugiam das fazendas em busca de melhores condições de vida, recusando-se a
trabalharem para seus ex-senhores.
As novas conjunturas contavam agora com um personagem, juridicamente inédito, nos
debates políticos: o liberto. No decorrer do ano de 1888 esses debates exacerbaram-se,
gerando intensas discussões que escondiam nas entrelinhas uma querela mais profunda do que
a continuidade de um regime monarquista ou a passagem para uma república. Estavam em
jogo aspectos relativos à cidadania do liberto, seus diferentes significados e o crescimento do
racismo nos discursos políticos. De um lado, abolicionistas, divididos em republicanos e
monarquistas, juntamente com políticos e ex-senhores elaboravam projetos que englobavam
novas formas de trabalho, higienização e moradia para a população de cor livre. De outro,
uma população negra, nem tão invisível como gostaria a elite política, redefinia seus espaços
de liberdade. Com base em suas experiências no mundo da escravidão, esses homens lutaram
contra a dominação de diferentes maneiras que não se limitaram à retórica política dos
62
discursos jornalísticos. Nos centros urbanos, bem como no interior, cresciam os conflitos
armados, que tomavam, cada vez mais, tons de racismo87.
A pergunta que circunda trabalhos diversos sobre o momento do pós-abolição – o que
esperavam os negros da vida em liberdade88? – foi aqui reconfigurada, uma vez que tratamos
de estudar as narrativas históricas que intelectuais faziam do negro, da escravidão e da
abolição. Modificamos então a questão: O que esperavam dos negros na vida em liberdade?
A emancipação trazia para a ordem do dia inúmeros projetos de nação e de “povo brasileiro”.
Vejamos de que forma esse evento e suas consequências foram relatadas pelos intelectuais
dos institutos históricos aqui apresentados.
2.2 Escravidão e Abolição representadas pelos institutos históricos
A identidade nacional era o objeto, por excelência a ser construído, desvendado e
proposto pelos intelectuais responsáveis por uma escrita da história do Brasil num contexto de
afirmação dessa disciplina imersa nas discussões sobre ciência e cientificidade. Tais
intelectuais assumiram, de forma urgente, o desafio de modernizar a sociedade brasileira
recém-saída da escravidão, comumente interpretada como causadora do atraso em que se
encontrava a nação. Esses intelectuais moveram-se entre fronteiras fluídas de diversos campos
políticos e disciplinares e produziram uma série de bens simbólicos essenciais à legitimação
do país enquanto civilizado e em constante progresso. A interseção entre os campos
intelectual e político marcou profundamente o modo de se fazer história no final do século
XIX e início do século XX, o que pode ser atestado pelas posições políticas ocupadas por
diversos letrados na sociedade. Dessa maneira, percebemos na historiografia brasileira do
oitocentos uma relação íntima entre cultura e política, bem como entre história e memória89.
Era necessário, portanto, forjar, inventar ou resgatar uma tradição do Brasil onde as
idéias anti-escravistas estivessem sempre presentes no imaginário social. Podemos observar
como se deu essa trajetória, a partir de alguns artigos selecionados que narram aspectos da
instituição escravista, bem como sobre o processo da emancipação no país. Em primeiro
lugar, analisamos as publicações ocorridas imediatamente após o ato que aboliu a escravidão,
87
GOMES, Flávio e DOMINGUES, Petrônio. Experiências da emancipação: biografias, instituições e
movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980). São Paulo: Selo Negro, 2011.
88
CHALHOUB, Sidney. “População e sociedade”Op. Cit. p. 79
89
GOMES, Ângela Maria de Castro. A república, a história e o IHGB. Editora Argvmentvm, Belo Horizonte,
2009.
63
enfocando o evento da lei de 13 de maio. Posteriormente, consideramos os poucos artigos
publicados durante a última década do século XIX, demonstrando o silenciamento que pairava
acerca do tema, não tendo existido em nenhuma das agremiações que foram aqui analisadas
artigos monográficos, propriamente ditos, que homenageassem o primeiro ano sem escravidão
no Brasil ou mesmo 10 anos após o ato de libertação. Por fim, analisamos como o Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo, o único que foi criado em um regime republicano dentro
da seleção das instituições trabalhadas, se utilizou da temática da escravidão como forma de
criticar a política imperial.
Logo após a promulgação da lei que aboliu a escravidão do Brasil, o Instituto
Histórico Geográfico e Antropológico do Ceará se reuniu em sessão extraordinária no dia 17
de maio de 1888, sob presidência de Paulino Nogueira90 para consagrar felicitações pelo feito
da princesa regente Isabel91. Nas palavras do presidente que declarou aberta a sessão:
“Senhores. – Já todos vós sabeis à saciedade; mas, tratando-se de um grande feito, tenho por
bem repetir-vos, que a lei nº. 3353 de 13 deste mês extinguiu imediata e incondicionalmente a
escravidão no Brasil” 92.
Como apontado por Sidney Chalhoub93, a perspectiva da “caduquice” da escravidão,
bem como a especulação a respeito do isolamento do Brasil em comparação com o restante do
mundo ocidental civilizado, no que diz respeito à longa perduração da instituição escravista,
foi registrada nas páginas da revista do IHGAC.
Mas o maior elogio da Magna Lei não é somente ter extinguido a hedionda
instituição no imenso solo do império da Santa Cruz; Ella extinguiu-o também
e ao mesmo tempo no mundo inteiro: pois desgraçadamente era o Brasil o
único país do universo onde ainda existia a desumana mercadoria! 94
90
Paulino Nogueira Borges da Fonseca nasceu em Fortaleza, Ceará no dia 27 de fevereiro de 1841. Estudou do
Liceu Literário do Ceará, do qual depois foi professor de latim. Em 1865 bacharelou-se pela Faculdade de
Direito do Recife. No período imperial foi promotor público em Saboeiro, oficial maior e secretário do governo
da província de Natal, delegado geral do ensino e presidente interino da província do Ceará. Na república, foi
desembargador da Relação de Fortaleza e provedor da Santa Casa de Misericórdia. Foi sócio fundador do
Instituto do Ceará e seu primeiro presidente. Em 19 de outubro de 1887, foi eleito sócio correspondente do
IHGB. Faleceu em Fortaleza no dia 15 de junho de 1908.
91
Revista do IHAGC, Ceará, 1888, Tomo. II, p. 99-102
92
Idem, p. 99. Não podemos esquecer que esta publicação se trata de uma enunciação discursiva e, não de um
artigo monográfico. Dessa forma, contêm uma série de idiossincrasias, próprias desse tipo de narrativa. Cabe
ressaltar que apenas nos anos de 1888 e 1889 ficaram registradas as atas de sessões nas revistas do IHGAC.
Cada revista mantinha uma padronização dos modelos editoriais baseada na revista do IHGB, contudo, muitas
vezes por falta de rendas as sessões de outras instituições ficavam excluídas das publicações a favor dos artigos
propriamente ditos.
93
CHALHOUB, Sidney. “População e sociedade”. Op. cit.
94
Revista do IHAGC, Ceará, 1888, Tomo. II. Op. cit. p. 99
64
De maneira bastante incisiva e enfática, Paulino Nogueira aponta para o estado em que
se encontrava o Brasil até o momento da promulgação da lei Áurea. Em seu discurso, é
possível perceber, através dos artifícios retóricos utilizados como “universo” e “desumana
mercadoria”, o tom de profunda crítica, com o lugar sócio-político em que se encontrava o
Brasil em relação ao resto dos países que estiveram inseridos no processo escravagista. Essas
estratégias narrativas sensibilizam os leitores, ao mesmo tempo em que lhes exalta a atenção.
De forma crítica, Paulino observa que a ação abolicionista no Brasil representa não apenas
uma vitória, mas também uma vergonhosa memória, a de ser o Brasil o último país do mundo
“civilizado” a libertar seus cativos. Esta afirmação demonstra, simultaneamente, um aspecto
positivo da nação brasileira, que a partir de então se tornava livre e civilizada, e aponta para o
seu atraso, pois foi a última das nações a declarar extinta a escravidão em seu território. O
isolamento brasileiro que se fazia imperante através do seu modo de produção escravista, uma
vez promulgada a lei, não mais impediria de aproximar o país da modernidade, o Brasil
entraria, dessa forma, em um novo estágio evolutivo.
Outra proposição que observamos na narrativa de Paulino Nogueira diz respeito ao
fato de o autor encarar, que só após a emancipação total da escravidão, o Brasil se tornou, aos
moldes do liberalismo, uma nação livre e independente.
(…) Antes o éramos apenas nominalmente; porquanto, si não há direito onde
há violência, menos liberdade onde houver escravidão, e muito menos
independência onde não houver verdadeira liberdade (…).Agora, sim, o Brasil
pode dizer aos quatro ventos que é uma nação livre e independente, como
garantiu-nos em seu Pacto Fundamental, sem receio de ser envergonhado e
menos contestado95
O desejo de uma sociedade liberal estava presente, não raras vezes, nas interpretações
da intelectualidade brasileira e a conquista da independência, em conjunto com a abolição da
escravidão consumaria esse anseio nacional. Portanto, se até a primeira metade do século XIX
a relação entre escravidão e liberalismo era garantida e legitimada pelas noções de
manutenção da propriedade privada sem interferências do mundo público, a partir,
principalmente de 1871, tal postura começava a causar certo incômodo. Em 1888, como nos
revela esta narrativa, tal associação já não poderia ser utilizada, pelo contrário, na medida em
que a realidade social se transformava a escravidão passava a ser encarada como o oposto do
liberalismo. As noções de igualdade e liberdade do homem haviam se expandido, de maneira
que a escravidão já não podia conviver em um mundo liberal que preconizava direitos iguais
95
Idem, p. 100
65
para todos os indivíduos. Paulino Nogueira deixa claro na última frase o constrangimento da
nação brasileira que se declarava liberal e civilizada e, no entanto, mantenedora de uma
instituição já reconhecida como ultrapassada e bárbara. Tanto que, sua fala se constitui
também em uma resposta àqueles que contestavam a situação do Brasil, atestando que
finalmente estava garantida, juridicamente falando, a liberdade e com isso, a nação que se
almejava. Sua fala parece significar algo mais profundo, se a independência havia gerado o
Estado brasileiro, a abolição, por sua vez, integraria o povo, até então, excluído, em uma clara
relação de união entre a Monarquia e o povo.
Ainda imersos no discurso de Paulino Nogueira vislumbramos a importante relação
entre memória e história. Ao dissertar sobre a lei de 13 de maio, o autor nega a existência de
qualquer manifestação ou luta envolvida no processo emancipacionista, afastando da memória
nacional qualquer passado, ou mesmo menção, de revoltas que remetessem a população
escrava.
Bem dita a lei, que riscou de uma vez do mapa da nação a macula terrível,
sem o emprego de meios sanguinários! Bem dita a lei, que realizou, só com a
propaganda da palavra, da abnegação e da convicção heróica, o patriótico
preceito constitucional que nos declarou uma nação livre e independente! 96
Flávio dos Santos Gomes e Olivia Maria Gomes da Cunha apontaram para o perigoso
silenciamento das comemorações pelo fim da escravidão através das palavras de João China
em 1889, editor do semanário A Pátria, demonstrando que esta obliteração acabava por
apagar uma memória da própria participação da população escrava e de seus descendentes na
história da abolição97. Aqui apreendemos a forma como a narrativa histórica, ao destacar a
maneira pacífica do processo emancipacionista, também acabou por silenciar as lutas e
manifestações civis e escravas na conquista da liberdade. Esse discurso historiográfico foi
responsável pela perpetuação de uma memória, ainda presente no seio da sociedade, na qual a
luta pelo fim da escravidão partiu da vontade de uma aristocracia intelectual, sem intervenção
decisiva da massa da população. Mais importante, construiu uma memória que limita os
processos geradores de grandes transformações sociais à vontade de uma diminuta elite
intelectual, majoritariamente branca.
Mais adiante Paulino Nogueira subjetivamente aponta para a participação de todos os
estratos da população no processo que desencadeou a abolição da escravidão, recorrendo
96
Ibidem.
GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pósemancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. 2007
97
66
inclusive a distinções de cor que não deflagravam, no entanto, nenhum tipo de preconceito no
seio da sociedade brasileira.
Felizmente para um resultado tão grandioso todos concorreram, sem distinção
de classes, de cores, deposições e de partidos: uns impulsionaram
heroicamente o generoso movimento, e outros até resistindo-o; pois a
resistência em tais casos é como a pólvora que, quanto mais comprimida,
tanto mais apressa e aumenta a explosão 98.
Nesse trecho, o autor nos informa sobre a participação de toda a população nas ações
que culminaram com o fim da escravidão, reconhecendo a contribuição de todos os extratos
da sociedade. Nesse ponto de sua fala, conseguimos perceber que o palco das ações políticas
pela abolição não se limitou às penas de letrados ou políticos. Apesar disso, o próprio
processo que deu origem à emancipação total, suas lutas, vitórias e derrota, foi silenciado e
com ele a ideia mesma de que tenha existido alguma mobilização. Ainda que no âmbito
acadêmico os estudos apontem para a direção inversa, demonstrando que houve a participação
de escravos, negros, brancos, intelectuais, senhores, fazendeiros, entre outros, no longo
processo que culminou com a liberdade total da mão de obra escrava no Brasil, sabemos que
em grande parte do imaginário social a ausência se consagrou. Para citarmos um exemplo,
basta averiguarmos como grande parte da História, enquanto disciplina escolar perpetuou, em
seus livros didáticos, as ideias de não-participação da população negra, principalmente
escrava, no andamento da abolição, lidando com o cativo como um sujeito passivo e
coadjuvante da sua própria história. Essas narrativas contribuíram para a constituição de uma
poderosa cultura política brasileira, que nega a idéia de conflito e de participação da
população na esfera pública, limitando conjuntamente, as perspectivas e fronteiras da
condição de cidadão.
Na realidade Paulino Nogueira ia mais a fundo, propondo um verdadeiro
esquecimento de um passado escravista para a nação. Nas palavras do autor:
A glória dos heróis de hoje, liberal ou conservador, é que só tem de que se
desvanecerem; nada de que se queixarem. A luta homérica fê-los grandes,
mas o esquecimento dela ainda os fará maiores. 99
Nessa passagem, ainda que de maneira perspicaz Paulino Nogueira mencione a
existência de uma luta cujo objetivo era a abolição da escravidão, podemos captar a sua
98
99
Revista do IHAGC, Ceará, 1888, Tomo. II. Op. cit. p. 100
Idem, p.101
67
principal intenção, ou seja, o esquecimento das próprias manifestações a favor da liberdade e
por consequência o silenciamento de um passado escravista para o Brasil. Se esquecemos das
lutas pela emancipação e das pessoas nelas envolvidas, acabamos, consequentemente, por
perder a memória dos motivos que as impulsionaram. Sendo assim, a idéia de afastar qualquer
relação entre a nova nação aspirada e a escravidão recém abolida, pode ser percebida ainda
nas primeiras narrativas históricas sobre o assunto, abafando uma poderosa memória na
construção histórica do país.
Michel Pollak 100 nos informa a respeito dos processos de silenciamentos da memória.
De acordo com tal autor para cada lembrança perpetuada optamos, incoscientemente, por
esquecer ou abafar inúmeras outras. Portanto, existem, no processo de elaboração de uma
memória coletiva, componentes políticos decisivos que influenciam a seleção dos
acontecimentos que serão perpetuados, ao mesmo tempo em que grupos marginalizados lutam
para se fazerem ouvir nessa batalha por memórias101. Para o caso do Brasil, os combates por
memórias que produziram diferentes sentidos e significados para o 13 de maio, imersos em
realidades locais e regionais diversas, geraram expectativas e propostas de futuro de diferentes
segmentos sociais. Tendo em mente que o passado, é ativamente construído e a memória é
sempre politicamente marcada, uma vez que vive no campo das escolhas, dos valores e dos
significados, podemos dizer que no contexto dos movimentos de negros, escravos ou libertos,
nos anos que precederam a abolição e mesmo posteriormente, houve uma tentativa de apagar
das memórias coletivas as ações dos homens de cor enquanto agentes impulsionadores deste
processo.
Se para Paulino Nogueira era necessário o apagamento de um passado escravista, o exescravo, teoricamente, não poderia ser tratado na sociedade de forma segregacionista. Ele
seria, a seu ver, a partir da abolição, parte integrante dos cidadãos brasileiro sem nenhuma
diferença capaz de limitar seus direitos políticos.
Agora, sim, o escravo não é mais coisa, mas um ente racional, um cidadão
com pátria e direitos, que o habilitam aos cargos públicos, sem outra diferença
que não a dos seus talentos e virtudes 102.
100
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 2, nº 3, 1989,
p.3-15.
101
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Cultura política e lugares de memória. P. 447. In: AZEVEDO,
Cecília et al. Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009.
102
Revista do IHAGC, Ceará, 1888, Tomo. II. Op. cit. p. 100
68
Na realidade, nem o indivíduo mais inocente acreditava fielmente que uma vez liberto
o escravo passaria, automaticamente à condição de cidadão. Os aspectos sobre essa transição
receberam pouco destaque nas páginas das revistas dos Institutos Históricos, mas a
necessidade de proclamá-lo se fez constante.
Nessa mesma passagem, ao analisarmos a aplicação da palavra “escravo” podemos
perceber as profundas marcas deixadas pelo sistema escravista e o poder simbólico que elas
representavam. Ainda que juridicamente o país passasse a se constituir por cidadãos, a
alocução à condição de escravo permaneceu na narrativa. A verdadeira mudança incutida pela
Lei Áurea era o fim da condição de escravidão ao negro. Portanto, não era o escravo que
deixava de ser coisa em virtude da nova lei, como apontado equivocadamente por Paulino
Nogueira. O escravo simplesmente deixava de existir. Ao negro sim, cabia uma nova
qualidade política e social e não ao escravo. Mas o sistema escravista havia gerado uma
poderosa e sutil memória social, difícil de ser suplantada, que assimilava a condição de
escravidão ao negro.
Novamente, Paulino Nogueira não deixava escapar o uso de elementos narrativos,
como é o caso da idéia do escravo como “coisa”, já pouco utilizado no contexto do final do
século XIX, para enfatizar seu discurso e o tamanho da transformação pela qual atravessava o
Brasil. O cativo passava da qualidade de “coisa” para a de cidadão, da condição de irracional
para indivíduo possuidor de talentos e virtudes. A problematização de como se daria esse
emblemático percurso não foi levantada em momento algum. Todavia, era necessário escapar
do preconceito racial, neste momento bastante presente no pensamento social brasileiro.
Abafar as discussões em torno das categorias raciais ligadas a cor dos indivíduos não era
tarefa fácil, nem consensual na sociedade e na intelectualidade. A esse respeito nos informa
Paulino Nogueira com a seguinte frase: “Mas quem ousará negar que entre todos os partidos
houve apóstolos convencidos do Código Negro?”
103
Para este autor, não cabia neste local e
momento discutir a esse respeito, bastava afirmar a simples passagem do lugar social de
escravo para o de cidadão, fugindo ao preconceito racial. A possibilidade do
desencadeamento de conflitos raciais era matéria preocupante e os discursos que
inferiorizavam o negro, biológica e socialmente, impossibilitando-os de intervir nos seus
próprios interesses políticos, tinham cada vez mais legitimidade junto à população. Já há
algum tempo, os debates falavam da inferioridade do negro não apenas recorrendo ao seu
passado de escravidão, mas também à sua raça.
103
Ibidem, p. 101
69
É importante considerarmos a menção ao Código Negro utilizada, pois neste momento
não eram raras as comparações entre Brasil e EUA empregadas por muitos intelectuais. Se de
um lado, quase sempre elas pesavam positivamente para a condição de civilização e progresso
em que se encontrava a América do Norte, no tangente a contenda acerca dos preconceitos
raciais e suas conseqüências, o Brasil buscava galgar uma imagem mais “evoluída”,
demonstrado a inexistência de qualquer segregação no interior da nação. Essa “fórmula”
comprovava o rápido progresso de um país recém saído de um sistema escravista, que, no
entanto possuía um “povo” unificado, ainda que diversificado. Afinal, era necessário correr
atrás dos prejuízos que mais de três séculos de escravidão haviam galgado, seja através do
silenciamento e esquecimento da instituição escravista como parte inegável na construção da
nação, seja afirmando que tal sistema não gerou problemas para a composição de um “povo
brasileiro” unido em seus direitos políticos.
Finalizando a analise desta fonte, notamos a necessidade de Paulino Nogueira de
chamar atenção para a então província do Ceará como precursora do processo abolicionista no
Brasil. De fato, em 1884 o Ceará abolia a escravidão dos limites do seu território, mostrandose pioneiro, ao lado da província do Amazonas no processo da extinção da escravidão no país.
Nas palavras do autor:
Neste certame glorioso dizer-vos o papel brilhante, que coube à nossa
Província, fora interrogar o juízo da historia, que já se fez, por antecipação,
sua contemporânea. Si à Bahia, por ser a primeira das nossas irmãs avistada
pelo malta feliz, coube o significativo epíteto de Primogênita de Cabral; não
poderá deixar de caber o de Primogênita do Abolicionismo à pátria querida de
José de Alencar. Foi Ela primeira que, com o mais agigantado civismo
resolveu o dificílimo problema, mostrando às suas irmãs timoratas, como
resultado esmagador, a paz e a prosperidade104.
Cada um dos Institutos Históricos regionais procurava resgatar tradições que lhes
permitissem galgar um importante lugar na construção da história da nação. Nesse sentido,
percebemos em inúmeras fontes, disputas entre as agremiações. Tal fato não pode abafar,
contudo, as próprias querelas internas entre seus sócios. Logo após a abolição, ainda em 1888,
nesse discurso de Paulino Nogueira percebemos a tentativa de demarcar o importante e
imprescindível papel que teve o Ceará como pioneiro da liberdade nacional. Encontramos, por
exemplo, saudações a Francisco Nascimento, jangadeiro cearense que havia se recusado a
embarcar escravos.
104
Ibidem.
70
Importante advertir que o pioneirismo cearense foi ainda mais imperioso, na medida
em que foi acompanhado pela paz e pela prosperidade. Mais uma vez, o autor silencia
qualquer possibilidade de conflito na conquista da liberdade, afirmando que ao Ceará coube o
papel de resolver o “dificílimo problema” da libertação da mão de obra escrava, servindo de
exemplo às demais províncias, justamente porque o fez sem interferências a paz estabelecida.
É interessante perceber como o resgate dessa memória pareceu pouco explorado entre os
intelectuais do IHGAC. Na realidade, diferentemente dos Institutos de Pernambuco ou de São
Paulo, a agremiação cearense não produziu sobremaneira, artigos que destacassem a história
do Ceará como de decisiva importância nas lutas pela liberdade nacional. De maneira geral, a
produção intelectual manteve-se tratando de questões internas referente a clima, população,
modos de trabalho. Apenas em mais um artigo publicado no ano de 1898, que narra as
efemérides do Ceará republicano, aparece uma tentativa de resgatar uma tradição cearense na
importância dos rumos civilizacionais do país105. Nessa publicação, na realidade formada por
trechos de diferentes discursos pronunciados no ano de 1891, José Clarindo de Queiróz106
assim se colocava:
Ausente, eu acompanhava com particular interesse o progredir do Ceará,
sempre na dianteira de todos os cometimentos notáveis. (...) notava com
desvanecimento sua rápida marcha na trajetória da civilização brasileira107
Em nenhum momento, no entanto, José de Queiroz argumenta o porquê dessa
dianteira cearense para o progresso da nação. Seria pela iniciativa regional que inaugurou a
liberdade no Brasil? O texto pronunciado em 1891 poderia estar relatando sobre a importância
do Ceará no processo de consolidação da república no país, uma vez que nesse momento
começava sua configuração como modelo político e a formulação de uma nova Constituição.
Com certa margem de segurança, podemos afirmar que não passou despercebido ao autor a
abolição da escravidão no Ceará como um dos acontecimentos dignos de alocar o estado na
história do progresso do país. No entanto, cabia ao leitor, ou ao ouvinte de seu discurso, dar
formas mais objetivas dos fatos cearenses de grande notabilidade.
105
Revista do IHAGC, Ceará, 1898, Tomo XII, p. 65-74.
José Clarindo de Queiroz nasceu no dia 22 de janeiro de 1841 em Fortaleza. Assentou praça aos quinze anos
de idade , partindo para a campanha do Paraguai em 1865. Retornando voltou para o Rio de Janeiro com o posto
de Tenente Coronel. Em 1880 foi promovido a coronel e em 1890 a General de divisão. Na monarquia foi
presidente do Amazonas (1879). A 7 de maio de 1891 foi governador do estado do Ceará, até ser deposto em 16
de fevereiro do ano seguinte felás forças federais do marechal Deodoro da Fonseca. Voltando para o Rio de
Janeiro o vice-presidente Floriano Peixoto o desterrou para Cucuy. Veio a falecer a 28 de dezembro de 1893 no
Rio de Janeiro. STUART, Barão de. Diccionario Bio-bibliográfico Cearense.
107
Revista do IHAGC, Ceará, 1898, Tomo XII, Op. cit. p. 66.
106
71
A partir das passagens selecionadas relativas ao Instituto cearense, podemos
demonstrar dos modos como a escravidão e o evento da abolição foram narrados por história
nacional. Sabemos que esses assuntos eram evitados por parte dos intelectuais responsáveis
pela escrita da história, como uma forma de apagar do passado a mácula da escravidão e
galgar um status de país civilizado e em crescente progresso para o Brasil. Contudo, tendo em
vista as conturbações que se faziam sentir no contexto abolicionista, a intelectualidade
brasileira não pôde escapar de registrar em suas falas as expectativas de um novo porvir. O
fim da escravidão, ao inaugurar um nova condição de povo brasileiro, introduziu também
novas maneiras de lidar com o negro nas narrativas da história do país.
No Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano encontramos de
maneira mais veemente a necessidade de buscar uma tradição em seu passado que tornasse
Pernambuco parte imprescindível para a construção da história nacional. De todas as
instituições aqui analisadas foi, sem dúvidas, a que mais produziu artigos e discursos a esse
respeito. As tradições e memórias atravessaram o período colonial e o império, sempre
trazendo para o presente a importância pernambucana no encaminhamento da liberdade e
independência nacional. Desde a expulsão dos holandeses, assunto que aparece em maior
número de publicações, a agremiação procurou inventar ou resgatar tradições que lograssem a
antiga província e ao atual nordeste como um todo, o lugar de primogênita em todos os
processos engrandecedores da nação.
Sendo assim, uma vez abolida a escravidão no Brasil, o Instituto Histórico
Pernambucano, também tratou de comemorar e, procurou da mesma maneira que o cearense,
assumir créditos exclusivos no desenrolar da abolição da escravidão no país. A instituição
participou de diversos cortejos públicos para celebrar a emancipação e foi saldada por várias
associações abolicionistas. Além de inúmeros estandartes, foi doado ao Arqueológico o Livro
de Ouro da celebração do fim da escravidão no Ceará. Sob a representação do orador
Maximiliano Lopes Machado, na sessão do dia 16 de maio de 1888, o Instituto informava a
aprovação do envio de telegrama, no qual congratulava a princesa Regente Isabel pelo
grandioso feito que libertou os escravos no país. Em relatório apresentado no início do ano de
1889, João Batista Regueira da Costa108, primeiro secretário do IAGP, assim se colocou a esse
respeito109:
108
João Batista Regueira Costa nasceu em junho de 1845. Atuou como Secretário –Perpétuo e foi presidente de
Honra do Instituto Arqueológico pernambucano. Bacharel em Direito, dedicou-se em toda sua vida às atividades
docentes. Exerceu ainda, o cargo de Instrutor da Inspeção Pública, Reitor do Curso Comecial do Instituto
Benjamin Constant, entre outros. Foi senador entre os anos de 1895 e 1897. Além de poesia, escreveu e publicou
varias obras sobre pedagogia. Foi amigo próximo de Castro Alves. Ingressou os quadros da Academia
72
Na sessão de 16 de maio, resolveu esta associação que, mediante subscrição
promovida entre seus membros, se mandasse cunhar medalhas de prata e
bronze, para comemorar o grandioso facto da abolição da escravidão no
Brasil, e na de 30 daquele mês que as medalhas contivessem, alem da menção
do dia 13 de maio e da declaração de que a respectiva lei fora promulgada na
regência da princesa imperial, as gloriosas datas de 1817, 1824 e 1830 110.
Neste trecho apreendemos a importância da comemoração da Lei Áurea, através das
moedas cunhadas que possuíam gravadas a datação do ato libertador dos escravos, o dia 13 de
maio. Aos olhos do Primeiro Secretário do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico
Pernambucano as datas referentes a 1817, 1824 e 1830 compunham fatos de tamanha
importância para o processo libertador que mereciam e deveriam estar assinaladas junto
àquela que concretamente os libertou. Era preciso registrar em medalhas não apenas a ação
libertadora, como também os atos pernambucanos que possuíam substancial importância para
a liberdade nacional. Nesse sentido, o primeiro secretário continua:
Muito acertada, portanto, foi a resolução do Instituto de perpetuar na prata e
no bronze a memória d’esse grandioso acontecimento, que veio produzir uma
verdadeira revolução na ordem moral e econômica do pais; e ainda mais a de
associar à comemoração da lei, que extinguiu a escravidão no Brasil, as
gloriosas datas de 1817, 1824 e 1830, datas estas que recordarão no futuro os
esforços dos pernambucanos a bem da liberdade dos escravos e serão como
brilhantíssimos raios a convergir para esse grande foco de luz, que se chama
13 de maio! 111
Em outro relatório apresentado um ano depois pelo mesmo secretário, João Batista
Regueira da Costa, na sessão magna de aniversário do Instituto pernambucano de 1890 112 ele
nos oferece um quadro mais amplo do porque destas datas serem primordiais no andamento
do processo abolicionista em Pernambuco:
1817 – para comemorar a proclamação do Governo Provisório, anunciando os
desejos de uma emancipação, que não permitisse lavrar mais o cancro da
escravidão, embora lenta e gradual;
Pernambucana de Letras, da Sociedade Propagadora de Instrução Pública, da Sociedade de Geografia de Lisboa,
entre outras. A partir de 1856, colaborou com freqüência em quase todos os jornais do Recife. Faleceu em 2 de
junho de 1915. Cf. SOUZA, George Felix C. de; NEVES, Fernanda Ivo; LEÃO, Reinaldo Carneiro; GALVÃO,
Tácito Cordeiro. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano: breve história ilustrada. Recife:
IAHGP, 2010, p. 53-54.
109
Revista do IHAGP, Pernambuco, 1890, Exemplar nº 36, p. 42-46. Cabe ressaltar que a edição de 1888 da
revista foi publicada em abril, ou seja, antes da lei que libertou os escravos no Brasil. O referido discurso foi
publicado apenas na edição de 1890, quando foram impressas duas revistas. Em 1889 não saiu nenhuma
publicação da revista do Instituto Pernambucano.
110
Revista do IHAGP, Pernambuco, 1890, Exemplar nº 36, p. 42
111
Idem, p. 43
112
Revista do IHAGP, Pernambuco, 1890, Exemplar nº 37, p. 9-29
73
1824 – para relembrar o edital de 3 de julho do presidente da republica do
Equador, suspendendo o tráfico de escravos para Pernambuco;
1830 – para consignar a deliberação do Conselho da Província de 15 de abril,
sobre a liberdade dos escravos, por meio de uma indenização razoável 113.
Cabe observar que estas idéias estavam presentes em praticamente todos os artigos que
tratavam do assunto sempre com as mesmas justificativas. João Batista Regueira da Costa foi
um dos sócios que mais produziu em nome do Instituto pernambucano. Em seus artigos ou
discursos sempre valorizou o passado regional como forma de criar um passado de tradição
para Pernambuco. Resumidamente, todas as enunciações referentes ao fim da escravidão
relacionavam a “Revolução Pernambucana” ao processo abolicionista por ter instituído uma
república que tinha como uma das suas prerrogativas a emancipação lenta e gradual da
escravidão. Da mesma forma, a “Confederação do Equador” por ter assinado o ato de
proibição do tráfico de escravos africanos para Pernambuco e por fim, em 1830, pela proposta
do Conselho provincial de uma emancipação gradual, com direito ao pecúlio e com
indenização ao senhor.
João Batista Regueira da Costa buscava glórias pernambucanas, também, junto ao
processo que deu origem a assinatura da lei de 1871, que libertou o ventre das mulheres
escravas, comprovando que esta lei havia sido assinada por um ministro de Pernambuco.
(…) esta associação, que já era depositaria da Penna, com que s.a. a princesa
imperial regente assinou a lei de 18 de Setembro, essa lei, que foi referendada
por um ministro pernambucano, e que, na frase de um grande orador
parlamentar, acabou com a pirataria, exercida em torno dos berços, nas águas
de jurisdição divina114
Nos dois discursos de João Batista Regueira Costa, como em vários outros que tratam da
guerra da restauração holandesa, percebemos a tentativa de resgatar uma memória envolvendo
uma tradição guerreira do povo pernambucano em relação à expulsão dos holandeses no
Brasil feita “a ferro e fogo”, que exaltava sua população e seu espírito indomável. No entanto,
a luta pela liberdade escrava sempre se manteve no território pacífico “das penas”, ou seja,
restrita à intelectualidade. João Batista Pereira Costa, falando em nome do Instituto
Arqueológico Geográfico e Histórico Pernambucano se limita a congratular a princesa regente
Isabel e a discursar sobre as providencias tomadas pela agremiação em relação a lei de 13 de
113
114
Idem, p. 13
Ibidem, p. 55 e 56
74
maio. Do mais, procura galgar um espaço para Pernambuco nessa história, sem, contudo,
tocar nos aspectos cruciais da escravidão ou mesmo do processo de libertação.
Sem dúvida, para Pernambuco era imprescindível resgatar um papel que lhe fornecesse
privilégios em relação às outras províncias e posteriores estados, de maneira que a sua história
se mantivesse sempre presente e fosse continuamente lembrada pelas gerações futuras como
de inigualável importância para a nação. Chamar a atenção para a atual região nordeste era
imprescindível nesse momento, para além de todas as querelas decorrentes do ato de abolição
e da instauração da República, uma vez que o sudeste, cada vez mais, conquistava o lugar
central e prioritário na economia e cultura brasileira. Tal fato pode ser comprovado na fala de
Francisco Augusto Pereira da Costa115, presente no exemplar número 42 da revista da IAHGP,
publicado em 1891116.
(…) o nome da nossa heróica e legendaria província tem sido esquecida, posto
a margem, absoluta ou relativamente. (…). É tempo de reivindicar a partilha
que lhe cabe em tão generoso cometimento. (…) Assinalando e exaltando
esses cometimentos em prol da liberdade dos escravos, que foram iniciados
em nossa heróica província, reivindicando desta arte glórias
incontestavelmente suas, é licito ufanarmo-nos do nome pernambucano (…)
117
.
Nesta publicação o autor nos oferece um panorama de como a escravidão foi implantada
nas Américas, desde a chegada de Colombo, incluíndo a escravização dos indígenas, passando
pelo tráfico africano, e finalmente narrando os acontecimentos que fizeram da então província
de Pernambuco o foco privilegiado das ações em direção a abolição da escravidão. Pela
primeira vez nos artigos analisados um autor procurou compreender a instituição escravista
desde os seus primórdios, focalizando em seus aspectos negativos e cruéis sem amenizar ou
torná-la mais branda no contexto brasileiro. Francisco Augusto Pereira da Costa, talvez por
estar em meio a um discurso ocorrido um ano antes do ato da abolição, foi mais enfático e
menos polido em sua fala quanto aos horrores da escravidão. Provavelmente por isso,
organizou uma critica que envolveu desde a retirada dos africanos de seu “país”, passando
pela cruel travessia do Atlântico, até a forma como os escravos haviam sido tratados em terras
115
Francisco Augusto Pereira da Costa nasceu no Recife, Pernambuco. Dedicado aos estudos históricos, foi
incumbido pelo governo da província de Pernambuco de coligir documentos de interesse para a exposição a ser
realizada na Biblioteca Nacional. Foi também um estudioso do folclore brasileiro. Pertenceu ao IAHGP e a
Sociedade Deográfica de Lisboa. Em primeiro de dezembro de 1886 foi eleito sócio correspondente do IHGB.
Faleceu no Recife em 21 de novembro de 1923.
116
Revista do IHAGP, Pernambuco, 1891, Exemplar nº 42, p. 247-272. Esta assertiva foi exposta em uma
conferência intitulada A idéia abolicionista em Pernambuco116. Tal exposição realizou-se no Teatro de
Variedades, na Nova Hamburgo, no dia 15 de agosto de 1887.
117
Idem, p. 268
75
brasileiras, sem tentar abafar de nenhuma maneira um presente escravista. Podemos visualizar
tais aspectos ainda no início de seu texto:
Estava por conseguinte introduzida a escravidão no Brasil, não só entre os
índios, como ainda pela monstruosa importação dos miserandos africanos,
arrancados à força, ou induzidos pela sua ingenuidade, a atravessarem o
Oceano, e deixar a liberdade em seu país, pela escravidão em outro, com
todos os horrores, com toda a sorte das mais cruéis barbaridades 118. (p. 249)
Não se tratava nesta conferência apenas de resgatar ou inventar uma tradição que
perpetuasse a importância de Pernambuco para a história nacional, assim como faziam os
artigos e discursos elaborados objetivamente para as revistas dos Institutos Históricos. Como
conferência realizada em 1887, ou seja, anterior ao ato da abolição da escravidão, a fala de
Francisco Augusto Pereira da Costa sustentava, na realidade, um manifesto político.
Declaração pública, ao mesmo tempo, contra a escravidão e a favor da história pernambucana.
Logicamente, quanto mais ênfase fosse dada à sua alocução, mais poder enquanto artifício
político ela possuiria. Logo, se em outros textos, posteriores a libertação dos escravos,
percebemos certo constrangimento nas narrativas sobre a história da escravidão, silenciando
seus horrores e mesmo sua existência, aqui verificamos o contrário. O sistema escravista é
descrito em toda sua crueldade.
Senhores, a história da escravidão é um poema de lagrimas e de sangue.
Arrancado os africanos de seu país, de seus lares, do seio de seus parentes e
compatriotas, do meio daquela vida selvagem, mil vezes para eles mais
agradável que a vida entre gente civilizada sem a sua liberdade, atirados ao
porão de um navio imundo, de capacidade inferior à carga que conduzia, a
longa travessia da África para o Brasil era um martírio, uma via dolorosa, um
quadro de infâmia e de miséria119.
Sendo assim, a memória da escravidão, ainda neste contexto de luta pela abolição,
necessitava ser resgatada e relatada em todos os seus aspectos abomináveis, inclusive os
internos, rompendo com diversas exposições do assunto que traziam o tema da escravidão a
partir de pontos de vistas civilizatórios, evangelizadores e benevolente. Tal afirmação pode
ser encontrada na declaração de que uma vida na África, mesmo que incivilizada, era melhor
do que a privação da liberdade, rompendo dessa maneira com qualquer discurso que
legitimasse a escravidão a partir de modelos evolucionistas e civilizacionais.
118
119
Ibidem, 249
Ibidem, 249-250
76
Mais uma vez, nesse momento, averiguamos o rompimento entre as idéias liberais e a
manutenção da escravidão. A liberdade individual não poderia mais estar sujeita a vontade
privada do senhor na sociedade que se compunha. Por isso, relatar os maus tratos dos
senhores em relação aos escravos também eram formas de legitimar a interferência do estado
nas relações cotidianas, uma vez que colocavam em voga as maneiras desumanas e imorais
que os cativos eram tratados. Francisco Augusto Pereira da Costa não se incomoda ao relatar
tais situações.
Atirados à senzala do engenho, à cabana mal construída dos estabelecimentos
rurais, ou aos aposentos úmidos e imundos das casas urbanas, maltratados,
açoitados, mortos as vezes ao tronco, ou atados ao carro do engenho,
convertidos à triste condição de besta de carga, eram forçados a sofrer com
humildade todos os tratos, e se alguns procuravam fugir a semelhantes
martírios abandonando a casa do desalmado senhor, redobrava seu martírio, e
recebiam sobre as espáduas a marca infante de um F em brasa, a primeira vez,
e tinham uma orelha cortada, a segunda, isso sem processo algum 120 .
Neste trecho o autor descreve de maneira generalizante a forma cruel como eram tratados
os escravos, uma vez aportados no Brasil, sejam aqueles que tinham como futuro uma vida
nas senzalas das fazendas ou os escravos destinados às cidades. Em nenhum dos casos se
escapava do sofrimento e da penúria imposta pela escravidão. Sabemos que este não foi o fim
de todos os escravos aportados no país, todavia para o autor que realizava a conferência era
necessário sensibilizar seu interlocutor, chamar sua atenção para a desumanização dos
indivíduos, do contrário, o discurso não alcançaria seu objetivo, ampliar e agitar o processo
abolicionista no Brasil.
Como apontado por Sidney Chalhoub121 havia duas maneiras principais de elaborar
críticas ao sistema escravista na segunda metade do século XIX. Uma primeira priorizava a
narrativa das misérias e dos sofrimentos dos escravos, atestando a desumanidade dos senhores
e a urgente necessidade de por fim a um ato de tamanha crueldade. A segunda forma
demonstrava os vícios que o sistema escravista produzia no cativo, confirmando os defeitos
morais que tal atividade poderia ter sobre o homem e os perigos de uma sociedade amparada
por esse modelo de trabalho. Nesse caso, em que a escravidão praticamente destituía o cativo
de humanidade, tornava-se difícil imaginar que o negro, uma vez liberto poderia se integrar
como cidadão a comunidade. Ambos os caminhos, apesar de partirem de perspectivas
políticas distintas, acabaram por concluir que o Estado deveria levar a cabo a emancipação,
120
121
Ibidem, 251
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. Op. Cit.
77
enfrentando a resistência senhorial. Francisco Augusto Pereira da Costa optou combater o
sistema escravista a partir de narrativas que apontassem para as atrocidades e desmandos
desse tipo desumano de atividade de trabalho.
Francisco Augusto Pereira da Costa continua seu discurso relatando os acontecimentos
que germinaram o ideal abolicionista em Pernambuco, provando, também, a importância da
província para o andamento do fim da escravidão no Brasil. Desde o século XVII até o XIX, o
autor faz relações entre eventos regionais e a emancipação da escravidão. Para tanto,
inicialmente nos informa acerca da expulsão dos holandeses no Brasil, valorizando a
participação da população escrava no processo de luta contra os batavos em Pernambuco,
homenageando Henrique Dias, líder do regimento negro que participou da guerra da
restauração. Interessante destacar que para este autor, a invasão holandesa acarretou na
formação de Palmares, cabendo, portanto a Pernambuco, ainda no século XVII o primeiro
protesto levantado pelos próprios escravos em prol de sua liberdade. A respeito de Palmares,
Pereira da Costa assim se colocou: “esse protesto o mais belo e o mais heróico, na frase de um
historiador, essa Tróia negra, cuja história é uma Ilíada” 122.
Dando continuidade aos acontecimentos pernambucanos que possuíssem relações com a
liberdade escrava, Francisco Augusto Pereira da Costa resgata um acontecimento ocorrido no
século XVIII, como corolário da idéia emancipadora: a Guerra dos Mascates, quando “os
pernambucanos protestaram com as armas nas mãos contra o domínio português”123. Nesse
contexto, Bernardo Vieira de Mello, um dos líderes da revolta, segundo o autor, toma parte no
Congresso e propõem que os pernambucanos instaurem um modelo político republicano. Em
um primeiro momento, Pereira da Costa explica que este fato isoladamente parece não ter
ligação alguma com o desenrolar do processo abolicionista em Pernambuco, mas logo após
afirma: “o que exprimiria a idéia de república sem o consorcio imediato da idéia de
emancipação?”.
Partindo para o século XIX, Pereira da Costa atesta que desde o início deste século teve
origem em Pernambuco um movimento emancipador, o qual tinha como líder Francisco de
Paula Cavalcanti de Albuquerque, conhecido como Coronel Suassuna que havia também
procurado transformar Pernambuco em uma República. Sem adentrar profundamente em tal
proposta, o autor parte para o ano de 1817. Para ele, no ano da “Revolução Pernambucana”
aparece a proposta mais positiva da emancipação dos escravos. Assim como na opinião do
sócio João Batista Pereira Costa acima relatada, essa data merecia destaque pelas propostas de
122
123
Revista do IHAGP, Pernambuco, 1891, Exemplar nº 42,. Op. Cit. p. 254
Idem, 255
78
libertação gradual da escravidão seguida de uma indenização aos senhores, respeitando assim
os princípios liberais de propriedade, juntamente com os de liberdade. Apesar de derrotada a
“Revolução Pernambucana”, sua idéia teria permanecido e, em pouco tempo, sido
reorganizada, quando em dois de julho de 1824, Manoel Carvalho Paes de Andrade
proclamou a Confederação do Equador. Mais uma vez a Republica foi institucionalizada e o
primeiro ato lavrado foi a suspensão do tráfico de escravos para a província de Pernambuco.
Anos mais tarde, em sessão do Conselho de três de abril de 1830, Bernardo Luiz Ferreira
apresentou uma proposta que possuía por finalidade tratar de assuntos ligados a abolição.
Cabe ressaltar que tais idéias sempre estivem vinculada a integridade dos senhores sem
ameaçar a destruição ou diminuição de seus patrimônios. Em seguida o autor informa as datas
de instalação de diversas associações emancipacionistas como uma forma de demonstrar o
espírito libertador do homem pernambucano.
Com a opinião de que em Pernambuco havia nascido o ato que deu origem a lei de
libertação do ventre escravo, Francisco Augusto Pereira da Costa assinala: “(…) iniciou-se em
Pernambuco a idéia da libertação do ventre, mais tarde em 1871, traduzida em facto pela Lei
de 28 de Setembro, conhecida pela consagração popular pelo nome de Lei áurea”
124
. Como
maneira de comprovar sua assertiva, o autor afirma que o projeto de lei apresentado pelo
governo em 1871 havia sido assinado pelo pernambucano Theodoro Silva e por ele
referendado quando sancionado. Da mesma forma, o parecer da comissão nomeada pela
Câmara dos Deputados havia tido como relator o Monsenhor Pinto de Campos, também
natural da província de Pernambuco. E teria ainda, o regulamento que baixou a execução da
lei de 28 de setembro, sido elaborado e referendado por mais um pernambucano o
Conselheiro Barros Barreto. Por fim, encerrando sua conferência Francisco Augusto Pereira
da Costa narra um ato ocorrido no mesmo ano em que estava dissertando, ou seja, 1887,
referindo-se a pastoral de 25 de março publicada pelo bispo José Pereira da Silva Barros, na
qual pediu ao clero de sua diocese que libertasse todos os seus escravos.
Encerrando sua alocução, Francisco Augusto Pereira da Costa, faz um último apelo a seu
público rogando-lhes que atestem para a fundamental participação da província de
Pernambuco no desenrolar do processo abolicionista. A partir de tudo o que foi exposto, o
autor concluiu que foi ali onde nasceu e condensaram-se as idéias de liberdade.
Senhores. – Deste ligeiro escorço que acabo de fazer sobre a idéia
abolicionista em Pernambuco, evidencia-se, demonstra-se, e prova-se em fim,
124
Ibidem, 264
79
que foi nesta província em que ela se iniciou, em que lançaram-se os seus
primeiros fundamentos, e de cujos fatos partiram essa propaganda generosa
em prol da emancipação dos escravos 125.
Indo além do discurso de seu companheiro João Batista Regueira da Costa que buscou,
dois anos depois, uma tradição pernambucana que resgatasse a presença do novo estado nas
lutas pela abolição a partir de três datas referenciais 1817, 1824 e 1830, Francisco Augusto
Pereira da Costa foi galgando desde o século XVII, com a guerra da restauração, uma tradição
libertadora para Pernambuco. Interessante destacar que o autor, se utilizou de um discurso,
então silenciado à época, no qual cita Palmares como exemplo de luta pela abolição. Ao tratar
do século XVIII cita a Guerra dos Mascates e, finalmente, no século XIX, aborda igualmente
as três diferentes datas acima referendadas. Dessa forma, verificamos continuidades nos
discursos dos sócios do IAHGP em relação à preocupação de inserir Pernambuco nas
contendas sobre abolição, resgatando ou forjando tradições e consequentemente um lugar
essencial na história nacional desta região que perdia status na medida em que o eixo sulsudeste se engrandecia.
Todavia, o relato de Francisco Augusto Pereira da Costa, possuía singularidades próprias,
pois se tratava de uma conferência pública realizada um ano antes da abolição da escravidão
no país. Por isso, poderia ser interpretado como um manifesto político, uma vez que as
fronteiras que separavam a atividade intelectual da política eram fluídas e flexíveis, quando
não invisíveis. A escravidão foi por ele encarada e combatida de forma intensa, trazendo para
a discussão, um aspecto até então inovador, a lembrança de um passado (presente) de horrores
em que vivia o Brasil arraigado em um mundo escravista, incivilizado e cruel. Nesse sentido,
por motivos próprios, esta assertiva se coloca diferente de todas aqui relatas que aclamam o
ato da abolição sem traçar quaisquer paralelos mais profundos com o mundo da escravidão,
como uma forma de apagar da memória nacional a existência dessa instituição durante mais
três séculos no Brasil.
Passemos agora para a análise dos artigos publicados na revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Antes de adentrarmos nas discussões propostas por cada autor, é
necessário atentar para o fato de que IHGB possuía características próprias, diferentes dos
demais institutos aqui trabalhados. Se as outras agremiações procuravam trazer aspectos
regionais para a construção da história, o IHGB era como que o responsável por realizar um
tipo de amalgama, a fim de narrar a história do Brasil como um todo. Tal processo pode ser
vislumbrado uma vez que a maioria dos artigos publicados nas revistas traz informações sobre
125
Ibidem, p. 267-268
80
outras regiões, incluindo cópias de publicações de outras instituições. Ao mesmo tempo,
percebemos que diferentemente dos institutos regionais que dialogam principalmente com o
“povo” cearense, pernambucano ou paulista, o IHGB expande as fronteiras de seus
interlocutores referindo-se quase sempre ao “povo brasileiro”. No entanto, não podemos
deixar escapar que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro se alocava no Rio de Janeiro e
dessa maneira dialogava principalmente, pelo menos até o ano 1889 com a corte brasileira.
Tal aspecto não passou despercebido nas análises aqui realizadas, uma vez que a Princesa
Regente Isabel assim como D. Pedro II foram os principais interlocutores dos discursos
realizados pelo IHGB. Com a abolição, seguida instauração da república uma mudança de
tom começou a se operar e conseguimos vislumbrar a participação de um “povo”, subjetivo,
como personagem nos artigos. No entanto, a maioria das publicações aqui apresentadas
sustenta ainda um diálogo com a corte, podendo ser vislumbrada de maneira rarefeita a
intensificação de uma fala direcionada a um “povo brasileiro”.
O primeiro artigo do IHGB escolhido para análise foi publicado ainda no ano de 1888 em
31 de maio, sob o título A extinção da escravidão no país.O jubileu do Instituto Histórico126,
de autoria de João Franklin da Silveira Távora127. Abaixo, segue um resumo de sua exposição,
assim como um exame de seu conteúdo.
O artigo inicia-se com uma dissertação acerca de dois acontecimentos que mereceram
destaque nas páginas da revista do IHGB. O primeiro deles se refere à extinção da escravidão
no Brasil e o segundo aludi as festas de comemoração de aniversário dos cinqüenta anos de
existência da Instituição. Ao abordar o primeiro evento, o autor retoma partes da lei que
extinguiu a escravidão no Brasil, erigida pela Princesa Isabel, demonstrando como a
Secretaria do IHGB congratulava-a, bem como ao Imperador D. Pedro II pelo ato
emancipatório. Nas palavras de Franklin da Távora D. Pedro II era considerado “um dos mais
126
TÁVORA, João Franklin da Silveira. IHGB Tomo LI 1º folheto, 1888, Rio de Janeiro, p. 13-23
João Franklin da Silveira Távora nasceu em 13 de janeiro de 1842, em Baturité, no Estado do Ceará, e faleceu
no Rio de Janeiro em 18 de agosto 1888, aos 46 anos. Freqüentou a escola por apenas um ano,
aproximadamente, ingressando na Faculdade de Direito do Recife em 1859 e bacharelando-se em 1863.
Escreveu seu primeiro livro com apenas 19 anos: A Trindade Maldita, 1861. Trabalhou no “Jornal de Recife”,
onde foi nomeado Diretor da Instrução Primária de Pernambuco, além de ter sido eleito Deputado provincial em
Pernambuco (1868/1869) e Curador Geral dos Órfãos. Partiu para o Rio de Janeiro, onde foi empregado na
Secretaria do Império, chegando a exercer o cargo de Chefe de Gabinete. Foi autor de romances e contos
regionalistas. Otto Maria Carpeaux, crítico literário do século XX, classificou-o como pertencente ao
127
movimento “realista”, além de precursor imediato do naturalismo. Para ele, “Franklin Távora é o
sucessor imediato de Alencar e é contemporâneo da 1ª fase (a romântica) de Machado de Assis.”
Pertenceu ao Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, à Sociedade de Geografia de
Lisboa, e ao IHGB, como sócio correspondente, posteriormente passando a efetivo, sendo eleito orador e 2º
Secretário. Foi também patrono da ABL (cadeira nº 14). Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores,
geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993. p. 169
81
resolutos e denodados batalhadores da escravidão” 128. A Secretaria do Instituto argumentava
também, sobre a necessidade de se erigir, nas salas de sessões, os bustos referentes ao
Visconde do Rio Branco e ao Agostinho Marques Perdição Malheiros, em função de suas
iniciativas para o fim do cativeiro no país. Como forma de ostentar seus agradecimentos a
corte imperial, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro endereçava também, louvores às
Casas do Parlamento, ao Ministério, ao Senado, à Câmara dos Deputados e ao Governo. Era,
portanto, comprometimento do IHGB,
Lançar na ata um voto de louvor à imprensa do Império, e a todos aqueles
que de qualquer modo concorreram no comércio, no foro, nas assembléias
legislativas das províncias, nas câmaras municipais, e até no lar doméstico,
para o triunfo incruento da causa da abolição129
No contexto do processo abolicionista, em relação às ações de Dom Pedro II e sua
filha Isabel, conseguimos inferir, a partir dos escritos de Franklin da Távora, que estes foram
tomados, em termos gerais, como os provedores da liberdade, os redentores dos malefícios
causados pela escravidão. De acordo com Lília Schwarcz, acerca desta visão que
gradualmente tomava lugar, dois mitos foram se construindo em paralelo no Brasil: o da
Princesa Isabel como “a Redentora” e o de D. Pedro II como “o grande pai de todos”. Essa
imagem do monarca arquitetava-se de maneira paradoxal, uma vez que conforme se
enfraquecia a Monarquia e o Império, a figura do imperador ressurgia como um símbolo
popular – “o bom pai” – sempre associado à emancipação dos escravos. Sem dúvida, esta é
uma forma de perceber o processo emancipatório como uma “dádiva” e o ato da abolição
como mérito de um único empreendedor e não a implicação de um processo coletivo de lutas
e conquistas 130. Assim se dirigiu Franklin da Távora à Princesa Isabel:
A Vossa alteza coube a inefável alegria e imorredoura glória de dar solução
definitiva ao temeroso problema, que tanto entenebreceu a magnânima alma
de Vosso ilustre pai, Sua Majestade o Senhor D. Pedro II, consternou anos o
espírito nacional e empeceu o progresso do Brasil, quer na ordem moral,
quer na material.131
128
TÁVORA, João Franklin da Silveira, Op. cit. p. 15
Idem, p. 17
130
SCHWARCZ, Lília. Dos males da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira. In
GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação
no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. 2007. p. 25
131
TÁVORA, João Franklin da Silveira. Op. Cit. p. 20
129
82
Assim, é possível verificar que sua palavra final é dirigida à Isabel e ao Imperador.
Contudo, podemos averiguar que o autor parabenizou a todos aqueles que, “até no lar
doméstico”, de alguma forma, contribuíram para o triunfo da causa da abolição. Chegando a
utilizar a expressão “povo brasileiro” para se referir a participação popular no movimento
abolicionista, assim como nas confraternizações e comemorações concernentes à
concretização da lei de 13 de maio.
(...) e a Câmara dos Srs. Deputados, colaborando com os demais poderes
constitucionais, e, antes destes, com as aspirações do povo brasileiro
naquele singelo e ao mesmo tempo imortal monumento, tornou-se
merecedora das homenagens que lhe estão rendendo em uma sucessão de
festas sem igual em nosso passado132
Nessas passagens percebemos que ao mesmo tempo em que a abolição era vista como
um ato consagrado pelo Império, representado pela princesa Isabel e por D. Pedro II, era
juntamente conseqüência da mobilização de grande parte da população. Ainda que Franklin
da Távora não exponha os personagens que fizeram parte dos movimentos a favor da
liberdade escrava, não deixa de mencioná-los, bem como aos festejos e homenagens
realizadas, “nunca antes vistas na história do país”. A descrição dessas comemorações em
nenhum momento aparece em seus escritos, na realidade quase passa despercebida, menos
ainda as camadas da população que fizeram parte de tais iniciativas. No entanto, ao analisar o
artigo publicado por João Franklin da Silveira Távora podemos perceber como a abolição da
escravidão, instaurou novas idéias do que seria a história do Brasil e de como fazê-la.
Com a extinção do estado servil o gênio da História Nacional ganhou novo
critério. Ele está agora completo com a parte de liberdade que lhe faltava para
ser digno de uma nação que rende culto nas aras da civilização. O nosso
Historiador terá de agora em diante homens para submeter à sua análise físiopsicológica, terá um povo verdadeiramente livre para estudar e julgar nos
sentimentos e na sua evolução 133.
Sua fala faz referência a uma transformação essencial, por que passaria a atividade do
historiador. O surgimento de uma “nação livre” havia permitido ao Brasil, tornar-se um país
civilizado e evoluído, admitindo assim, um estudo de seus indivíduos e, portanto a construção
de uma história verdadeiramente nacional. Em sua declaração, ainda que apenas
retoricamente, torna-se explicito que a história teria de lidar com a parcela da população que
132
133
Idem, p. 20
Ibidem, p. 16
83
havia sido libertada, uma vez que ela compunha o povo brasileiro, que até então era como se
não existisse. De que forma isso iria ocorrer não entrou na pauta de suas preocupações. Coube
a Franklin Távora, somente perpetuar as idéias de que a escravidão impedia a civilização e o
progresso do país, indicando o novo o caminho evolutivo que a partir do fim do cativeiro a
nação poderia aspirar.
A partir da exposição de Franklin Távora, podemos perceber algumas questões
referentes ao modo como a parcela letrada do Brasil recebeu a instauração da lei que
extinguiu a escravidão no país. Inserindo seu discurso no contexto temporal e espacial em que
este foi produzido, notamos uma pretensão em construir um novo sentido para a realidade
histórica da nação que acabava de conhecer mudanças com o fim do regime escravocrata. A
nova conjuntura social tornava imperante o apagamento do passado escravista da memória
coletiva. Apreendemos, mais uma vez, o surgimento de rupturas com as representações do
passado histórico brasileiro, denotando um desejo de incluir a escravidão no quadro de
realidades obliteradas, já gastas pela ação do tempo e que em nada poderiam ser comparáveis
à nova imagem do país.
Vencido hoje está o tremendo empecilho e como que atirada aos fundos
abismos do esquecimento essa imensa rocha, que obstruía o caminho, pelo
qual deve a Pátria chegar aos mais altos destinos da evolução 134.
Tal trecho mostra a tentativa de transformar a abolição da escravidão, um ato recente,
em um tema “morto”. Era necessário apagar da história a vergonhosa lembrança do cativeiro.
Resgatar a imagem do escravo e da escravidão era o mesmo que afirmar o atraso da nação.
Uma vez vencido esse “empecilho” era preciso esquecê-lo. Como afirmou Lília Schwarcz às
temporalidades se confundiam “o que era ontem virava mito e o tempo breve parecia distante,
como lembrança de relíquia velha” 135.
Cabe observar que uma nova história, cada vez mais elaborada pelo povo e para o
povo brasileiro estava agora se formando, “com a parte de liberdade que lhe faltava”, a partir
de uma nova perspectiva que, necessariamente, lidava com a libertação do homem negro,
advindo da necessidade de dar lugar a essa população que agora ganhava as ruas com status
de homem livre. O Imperador ainda era um importante interlocutor das exposições escritas no
Instituto, mas talvez não o principal. Aos poucos ia dando lugar a esse novo elemento o “povo
134
135
Ibidem, p.19
SCHWARCZ, Lília. Dos males da dádiva. Op. cit. 52
84
brasileiro”, ainda subjetivo, muito mais utilizado em sua dimensão retórica, mas já presente
nos diálogos historiográficos.
O próximo artigo a ser analisado trata-se de um esclarecimento de Manoel Francisco
Correia136 a respeito do que foi declarado sobre a sua pessoa na leitura da recente obra
Memória do meu tempo, do sócio honorário João Manoel Pereira da Silva. Este em seus
escritos afirmou que Manoel Correia, então Ministro dos Negócios Estrangeiros havia votado,
na sessão de 1870, contra projetos a favor do elemento servil e que havia, da mesma maneira,
apoiado o gabinete que os rejeitava. Através deste artigo percebemos as querelas internas que
ocorriam no interior de um mesmo instituto. Para além dos embates regionais, sabemos que
opiniões divergentes estavam inseridas em cada uma das agremiações. Assim, neste caso, em
meio às questões positivas sobre a abolição da escravidão, Manoel Correia havia sido acusado
de se colocar contra diferentes propostas acerca da libertação escrava no período imperial.
Um interessante diálogo se faz nesse artigo, pôs trata-se de uma defesa pessoal. Diferente de
algumas décadas anteriores, ser acusado de escravista nesse contexto representava um insulto
diante das correntes liberais que se impunham. Logo, Manoel Correia trata de elaborar uma
defesa para ser publicada na revista do IHGB, então principal veículo informativo sobre a
história nacional, como o objetivo de demonstrar suas atitudes perante as leis que envolviam a
escravidão e a emancipação.
Manoel Correia não nega a denúncia de que haveria apoiado o ministério conservador
presidido pelo Visconde de Itaboraí, “seu amigo de infância”. Contudo, defende-se,
assegurando que jamais foi contrário a projetos relativos à questão da escravidão no Brasil.
Corroborando seus argumentos, declara que foi autor de empreendimentos que mandavam
proceder a matrículas de escravos e que proibiam a venda de cativos em leilão. Afirma que
sempre esteve a favor da abolição da escravidão, contudo, esta necessitava de medidas
preparatórias para impedir conturbações precipitadas. Em suas palavras:
É certo que apoiei o ministério presidido pelo muito honrado Visconde de
Itaboraí, cujo acrisolado patriotismo foi sempre por mim devidamente
136
Manoel Francisco Correia nasceu em Paranaguá, atualmente Paraná, no dia primeiro de novembro de 1831 e
faleceu no Rio de Janeiro em 11 de maio de 1905 aos 74 anos. Fez os estudos secundários em Nova Friburgo, no
colégio Freese, completando-os no Colégio Pedro II. Foi Bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo em
1854. Iniciou sua vida pública como 2º oficial da Secretaria da Fazenda e seus cargos públicos durante o império
foram abundantes, portanto, não cabe aqui especificar todos eles. Contudo, uma vez proclamada à República foi
convidado por Serzedelo Correia para presidir o Tribunal de Contas, o que aceitou em 1884, apesar de
monarquista convicto e amigo de Pedro II. Foi eleito também diretor do Loyd Brasileiro. Promoveu
conferências e ajudou a fundar instituições culturais, escolas e bibliotecas. Foi eleito sócio correspondente do
IHGB em 1886, passando à honorário em 1890 e à benemérito em 1898. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de
historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993 p. 49
85
apreciado, apoio mais que justificado pelos eminentes serviços prestados ao
Brasil por esse ministério; mas não fui jamais contrário a projetos
particulares relativos à questão do elemento servil.137
Na fala do monarquista Manoel Correia, apreendemos diversas noções que estes
homens de letras e ciências possuíam a respeito do fim da escravidão no Brasil. Ao se
defender do que foi declarado por João Manoel Pereira da Silva a seu respeito,
paradoxalmente, Manoel Correia afirma ter apoiado o Ministério do Visconde de Itaboraí
contra as leis que diziam respeito ao elemento servil. O motivo de tal atitude em nada tinha
haver com o fato de ser contrário as propostas emancipacionistas, mas antes, pela sua lealdade
a um amigo de infância que estudou com ele no Colégio Pedro II. No entanto, logo após se
justifica declarando que aprovou e apoiou diversas leis a favor dos cativos, inclusive sendo
firme em seu voto pelo fim da escravidão.
O meu juízo a esse respeito [abolição da escravidão] estava formado desde
muito. Entrando para o parlamento, apressei-me em propor medidas
preparatórias. O que por motivos de relevância de ordem política, não
desejava, era que se procedesse de forma com precipitação. 138
Ao declarar as necessidades de medidas preparatórias que culminassem com o fim da
escravidão, alcançamos uns dos pontos de vista mais defendidos pelos homens do século
XIX, o intuito de gradualmente abolir o sistema escravista, como uma forma de amenizar as
conturbações que poderiam decorrer para a economia do país. Essas idéias eram sustentadas
por muitos indivíduos que ainda procuravam manter as relações entre senhores e escravos
estritas ao âmbito privado, mantendo o Estado afastado de tal questão, deixando aos
particulares e ao tempo a condução da abolição no Brasil. Manoel Correia nos oferece, nesse
sentido a visão de grande parte da sociedade, principalmente dos senhores rurais e de políticos
conservadores que pretendiam alongar o sistema escravista no Brasil por tempo
aparentemente indeterminado, deixando o jogo político o mais afastado possível das decisões
empreendidas pelo fim da escravidão total no país.
Sua fala reproduz parte das prerrogativas que comumente combinavam uma
condenação retórica da instituição da escravidão com a defesa dos interesses dos
proprietários. O resultado dessa tensão entre tendências políticas emancipacionistas e
convicções escravocratas, foi concordar com argumentos que apontavam para o fim gradual
da escravidão, sustentando que a esse respeito nenhuma atitude radical deveria ser tomada.
137
138
CORREIA, Manoel Francisco. IHGB, Rio de Janeiro, 1897, Tomo LX Parte II. p.104
Idem. p. 105
86
Em resumo, Manoel Correia jamais aceitaria a condição de escravocrata que lhe foi incutida
pelo seu crítico, pelo contrário destacou como havia defendido a abolição. Seu plano, no
entanto era aprovar medidas preparatórias, de modo que o Estado não interferisse,
decisivamente, no curso natural da história. Como escreveu Sidney Chalhoub: “Em meados
do século XIX (...) o Brasil imperial oferecia ao mundo o curioso espetáculo de um país no
qual todos condenavam a escravidão, mas quase ninguém queria dar um passo para viver sem
ela” 139.
Em seguida analisamos o artigo A abolição no Brasil140 de autoria de Franklin
Américo de Meneses Dória (barão de Loreto141, publicado no ano de 1900. Em seu texto o
autor narra o andamento do processo abolicionista brasileiro dividindo-o em três fases ou
etapas. A primeira dela diziz respeito ao processo de proibição do tráfico de escravos
africanos para o Brasil desde a lei de 1831, até ser finalmente concretizado em 1850 com a lei
Eusébio de Queiroz. A emancipação lenta e gradual distingue o segundo período da história
da abolição. A idéia da emancipação progressiva era, de acordo com o barão de Loreto,
refletida na imprensa, através de projetos legislativos, de associações filantrópicas, e da
caridade individual que multiplicou as manumissões. Em nenhum momento o autor destaca
nenhuma manifestação escrava como de qualquer importância para o andamento da abolição
nessa segunda etapa por ele delineada. O auge dessa segunda fase do andamento libertador
dos escravos no Brasil foi a promulgação da lei de 28 de Setembro de 1871. Nesse caso,
podemos perceber pontos de vistas parecidos entre o barão de Loreto e Franklin Távora, pois
ambos ao tratarem do processo da abolição da escravidão no Brasil atentaram para o fato de
que apesar da participação retórica de uma população sem delimitação, foram Isabel e de D.
Pedro II que com seus bons corações e virtudes emanciparam os escravos brasileiros. Acerca
da lei de 28 de setembro que libertava o ventre escravo escreveu o barão de Loreto:
A Princesa Imperial, sancionando como Regente, na ausência do Imperador,
a lei de 28 de setembro, interpretou fielmente a vontade paterna, e ao
mesmo tempo obedeceu aos sentimentos de seu grande coração (...). A
Princesa Regente, pois, deu vida à lei que assegurou a liberdade dos futuros
filhos das escravas, à lei que, demais, promoveu o resgate do cativo, e lhe
139
Sidney Chalhoub. Machado de Assis historiador. Op. Cit. p. 141
DÓRIA, Franklin Américo de Menezes, IHGB, Rio de Janeiro, 1900, Tomo LXIII, Parte II. p. 187-192
141
Nasceu na Ilha dos Frades na Bahia em 12 de julho de 1836, falecendo no Rio de Janeiro em 28 de outubro de
1906. Formou-se Bacharel pela Faculdade de Direito do Recife em 1859. Foi professor do Instituto Nacional de
Instrução secundária, promotor em cachoeira, Bahia, elevado a Juiz de Direito. Dentre inúmeros outros cargos
que obteve no império foi membro do Conselho do Imperador. Pertenceu à Sociedade de Geografia do Rio de
Janeiro. Foi membro fundador da ABL (cadeira 25). Em 1895 foi eleito sócio efetivo do IHGB. Cf. IHGB,
Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993.
p.59
140
87
reconheceu a dignidade de homem, concedendo-lhe direitos e favores
preciosos 142.
Se a Lei de 28 de setembro de 1871 entrou para a história com o epíteto de áurea e
consagrou a intervenção do Estado nas relações pessoais entre senhores e escravos ao
conceder direitos a indivíduos que até então viviam a margem das leis, na fala de Meneses
Dória observamos que essa mesma lei, além de direitos, concedeu “favores preciosos” aos
cativos. A sociedade paternalista apenas mudava o sujeito do favor, do senhor transformavase no Estado, deixando entrever a noção de que cabia aos escravos agradecer por “favores”
que na realidade eram seus direitos.
O terceiro período da história da abolição, narrado pelo autor, iniciou-se na década de
1880 quando ocorreu uma radicalização das atitudes da sociedade visando acabar com a
escravidão no Brasil “o mais depressa possível”. Nesse sentido, o barão de Loreto afirma que
partiu do Rio de Janeiro os princípios da extinção da escravidão imediata – “(...) no Rio de
Janeiro, irrompeu a aspiração as abolição imediata (...) 143”. Observamos aqui, uma referência
regional no interior do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, para o autor, todas as
outras províncias vinham lidando com a questão da emancipação gradual de maneira
razoavelmente conciliadora, cabendo ao Rio de janeiro, ou a corte brasileira dar início ao
processo de radicalização. Em meio a tal processo enunciavam-se a imprensa, erguiam-se
vozes do seio de todas as classes e até entre muito proprietários agrícolas. Interessante notar
que mesmo indiretamente, o barão de Loreto retratou as mudanças e a intensificação da
participação popular na campanha abolicionista. A partir da década de 1880 a rua,
transformando-se em espaço público e político da razão passou a ser o palco das agitações em
massa e não pode deixar de ser registrada pela historiografia.
Neste artigo, destaca-se a importância conferida a manumissão dos senhores no
andamento da abolição definitiva da escravidão. Para o barão de Loreto, os proprietários já
vinham libertando seus escravos antes mesmo de qualquer colocação por parte do governo e
tiveram importância decisiva para a emancipação.
Tamanha redução (de escravos matriculados) operava-se menos por efeito
da morte e da emancipação retribuída, do que em conseqüência das
manumissões expressa ou tacitamente concedidas pela filantropia
particular.144
142
DÓRIA, Franklin Américo de Menezes, IHGB, Rio de Janeiro, 1900, Tomo LXIII, Parte II. p. 187
Idem, p. 189
144
Ibidem.
143
88
Mais uma vez, neste trabalho percebemos a idéia da emancipação como “dádiva”
doada pela Princesa Isabel, por D. Pedro II e mesmo pelos senhores de escravos, claramente
visível neste artigo. Aos cativos, restava-lhes a submissão e a lealdade. Igualmente,
percebemos o afastamento de quaisquer ações que remetessem a noções de conflito e
violência, bem como de qualquer participação da população escrava no processo de abolição.
O fato de que havia tido comemorações e festins nas cidades sequer foi citado, criando uma
memória que alienava o escravo e o negro das lutas pela abolição. O mito de “Isabel a
Redentora” é continuado e confirmado como se a abolição fosse um ato de apenas um
indivíduo.
Assim a Princesa, que antes, sancionando outra lei famosa, proclamara
livres as gerações futuras, revocou à liberdade centenas de milhares de
cativos, e completou a obra da abolição da sua pátria, a qual, reconhecida,
lhe deu o título glorioso de “Isabel a Redentora”.145
Partiremos agora para analise dos artigos publicados na revista do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo. A opção de deixá-lo para o final deste capítulo se justifica pelo fato
de ser a única agremiação aqui trabalhada fundada já no período republicano, no ano de 1894.
Logo, as formas de narrar a história da monarquia para os sócios de do IHGSP se colocavam
de maneiras diferenciadas, uma vez que este regime político nunca foi o motivo privilegiado
das suas assertivas históricas e muito menos seu principal mantenedor como era o caso do
IHGB. Nesse sentido, a maneira como o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo lidava
com a história monárquica e consequentemente escravista não era de todo semelhante às
outras instituições. Críticas veementes a monarquia se sustentavam na manutenção da
escravidão, como poderemos conferir. A tradição escravista nesse sentido foi resgatada como
uma forma de deslegitimar o regime político monárquico e exaltar o republicano. Sem dúvida
essa foi a forma mais explorada pelos sócios deste instituto quando abordaram o tema da
escravidão e abolição no Brasil.
No primeiro volume da revista do IHGSP, Domingos José Nogueira Jaguaribe146,
deixa caro a relação viciosa entre a escravidão e o regime monárquico. Em sua publicação,
145
Ibidem, p.190
José Nogueira Domingos Jaguaribe Filho. Nasceu em Fortaleza, Ceará no ano de 1847. Formou-se pela
faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Foi deputado geral, no império pelo Ceará e deputado provincial em
São Paulo. Pertenceu a Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional. Possui uma lista extensa de publicações.
Foi eleito sócio benfeitor do IHGB em 1883, benemérito em 1891 e honorário em 1914. Faleceu em São Paulo
no dia 14 de novembro de 1926.
146
89
intitulada Origens republicanas do Brasil 147, o autor argumenta que desde o primeiro reinado
D. Pedro I havia mantido a escravidão como forma de alimentar seus interesses de declarar a
independência, sem, no entanto transformar o regime político do país mantendo-o em sob a
égide de uma Monarquia. De acordo com o autor:
O povo que não julga, senão pelo que vê, e a quem poucas vezes engana o
bom senso, compreendeu que Pedro I havia mantido a escravidão e os
interesses da sua dinastia e que ele fora logrado no apoio que dera para se
fazer a independência sem a republica 148.
Sendo assim, para Jaguaribe, a forma de manter o governo nas mãos do imperador D.
Pedro I, declarando a independência, sem, contudo, instaurar uma república que limitaria os
seus poderes foi à manutenção da escravidão. Essa mesma escravidão, paradoxalmente, havia
sido a instituição que posteriormente seria a responsável pela decadência do regime
monárquico. Logo, ao mesmo tempo em que ela garantiu a perpetuação de um modelo
imperial vigente no Brasil até o ano de 1889, seu término possibilitou que chegasse ao fim a
Monarquia Constitucionalista Brasileira, perdendo todos os seus apoios. A escravidão
possuiu, assim, uma dupla função, do mesmo modo que foi a chave de manutenção do poder
imperial, produziu sua derrota, unindo todos os indivíduos em uma luta maior pela liberdade
que culminaria com a instauração da República. Como apresentaremos no capítulo seguinte as
idéias de complementaridade entre a abolição e os idéias republicanos foram comumente
acionados como partes integrantes de uma mesma ação em busca da “verdadeira liberdade”.
(...) foi deste leito de misérias [a escravidão] que a monarquia viu levantar-se
o espectro que, sem demorar, a demoliu.(...).Grande lição, sem duvida, para
aqueles que julgam ser a liberdade do homem uma fonte de exploração, e
quando a exploram não sentem no gozo deste hediondo comercio, o veneno
que lhe prepara a ruína, quando não lhes atormenta a consciência 149.
Interessante notar que este mesmo autor aborda uma temática até então deixada de
lado por todos os intelectuais aqui analisados: a relação entre os partidos liberal e conservador
no que tange a questão escravista e a emancipação. Como não poderia deixar ser, o IHGSP
não possuindo nenhum tipo de vínculo com o regime monárquico criticou a maneira como os
dois partidos apontados como ideologicamente distintos, quando confrontados com o assunto
da abolição no Brasil possuíam visões semelhantes.
147
JAGUARIBE FILHO, José Nogueira Domingos, IHGSP, São Paulo, 1894, Volume I – Parte V, p. 67-82
Idem, p. 72
149
Ibidem, p. 68
148
90
E todavia foi evoluindo que o Brasil pôde chegar doas anos 1822 aos 1888,
em que fez cair a praguejada escravidão que o interesse dos proprietários
explorava, com o da monarquia que entreteve os partidos liberal e
conservador, fazendo os seus chefes Martinho de Campos e Cotegipe
mostrarem-se irreconciliáveis na política, mas íntimos no interesse da
escravidão 150.
Esse trecho evidencia tanto as críticas referentes à utilização da escravidão como
forma de sustentar a Monarquia, juntamente dos senhores, bem como recrimina criticamente
as aparentes incompatibilidades políticas entre liberais e conservadores que, no entanto, não
impediram que sustentassem visões parecidas, para não dizer iguais a respeito do elemento
servil no país. Nesse sentido, a escravidão e abolição serviram, ao mesmo tempo, para criticar
a monarquia e legitimar o regime republicano liberal e detentor da igualdade e liberdade entre
os homens. Nas palavras de Jaguaribe: “Uma das maiores vergonhas do império foi sempre
apoiar-se na escravidão dos infelizes negros. A república, porém, queria a liberdade
151
.A
nenhum outro instituto aqui trabalhado poderiam ter surgido censuras parecidas, até porque a
grande dificuldade de escrever a história nacional republicana nesta última década do século
XIX era justamente tentar conciliá-la a um passado imperial, sem nenhum tipo de rompimento
brusco que deslegitimasse a monarquia, principalmente para o IHGB e para o IAHGP. Nesse
sentido, diferentemente das outras instituições analisadas que procuravam silenciar um
passado de escravidão para a nação, não verificamos neste caso uma dificuldade iminente em
resgatar uma memória escravista brasileira, pois tal resgate servia a um determinado fim, o de
glorificar o regime republicano e, do mesmo modo, recriminar o monarquista.
Elaborando uma síntese geral do que foi exposto, podemos chegar a algumas
conclusões. A emancipação no Brasil desenvolveu-se durante um amplo período que
transborda o século XIX aqui abordado, possuindo suas raízes ainda no século XVIII152.
Tentamos chamar a atenção para as batalhas pelas memórias que produziram diferentes
sentidos e significados para o 13 de maio no Brasil, bem como para os debates em torno da
extinção do cativeiro imersos em realidades locais e regionais diversas que geraram
expectativas e propostas de futuro próprias para o país. Levando em conta a heterogeneidade
do processo abolicionista procuramos apontar como experiências sociais díspares produziram
projetos e partilharam questionamentos em torno de uma mesma questão. Em primeiro lugar,
ficou evidente que para grande parte dos sócios dos Institutos Históricos a escravidão se
150
JAGUARIBE, José Nogueira Domingos, IHGSP, São Paulo, 1894, Volume I – Parte VI, p. 88
JAGUARIBE, José Nogueira Domingos, IHGSP, São Paulo, 1894, Volume I – Parte VIII, p. 124
152
GOMES, Flávio e DOMINGUES, Petrônio. Experiências da emancipação: biografias, instituições e
movimentos sociais no pós-abolição (19890-1980). São Paulo: Selo Negro, 2011.
151
91
colocava como uma barreira para um mundo civilizado, nesse sentido o resgate de sua
tradição era, sempre que possível silenciado. Silenciadas também foram às implicações
sociais e políticas do ato jurídico que proclamou o fim da escravidão no país, bem como seus
festejos e comemorações. Entre silêncios e esquecimentos os homens e mulheres negros,
escravos ou livres, estiveram nas mentes dos intelectuais que narravam a história nacional de
um país projetado para o progresso e para a civilização. A história do pós-abolição não pode
ser fixada por datas153. Necessitamos ter em mente que os significados da liberdade foram e
são constantemente redefinidos, e nesse sentido, a história atual é da mesma forma, a história
do pós-emancipação. Ao levantar a discussão sobre direitos (sempre re-significados) e suas
formas de interpretação em torno do conceito de cidadania no final do século XIX,
percebemos que a noção de cidadania ultrapassa a condição jurídica, ela é constantemente
redefinida de acordo com a dinâmica das relações sociais. Dessa forma, o conceito de
cidadania se aproximaria daquele defendido por Darcísio Corrêa154, no qual é visto como a
construção da esfera pública. Sendo assim, a análise da idéia de cidadania como um status,
defendida por Marshall155, dividida em três ordens de direitos – civis, políticos e sociais –
perde espaço, pois deixa de ser vista como um conjunto de funções estabelecidos pelo Estado
aos indivíduos.
Contra tal idéia, se coloca também José Murilo de Carvalho156, ao visualizar o campo
das relações e práticas sociais como sendo formadoras da cidadania. Ricardo de Aguiar
Pacheco vai além e ratifica a noção de que o exercício da cidadania se liga mais ao sujeito
histórico, que em sua relação com o Estado, exige e cobra responsabilidades – formal ou
informalmente – e o reconhecimento de direitos exteriores àqueles regulamentados, mas que
acredita merecer. Dessa maneira, propõe “a existência de uma cidadania informal exterior às
formalidades das relações Estado-sociedade, que se manifestam em representações e práticas
sociais formadoras de uma identidade social”157.
Por fim podemos levantar duas propostas de escrita da história que se interligavam nos
Institutos Históricos. Os eventos distantes no tempo possuíam uma predominância nos artigos
das revistas, o que significava dizer que acontecimentos ocorridos contemporaneamente eram
fatos ainda em desenvolvimento, episódios que ainda estavam produzindo ecos e impactos na
153
GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Quase-cidadão. Op. cit.
CORRÊA, Darcísio. A construção da cidadania. Ijuí: Unijuí. 1999
155
MARSHALL, T. H.. Cidadania, classe social e Status. ZAHAR EDITORES, Rio de Janeiro, 1967.
156
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
157
PACHECO, R. A. P. O cidadão está nas ruas: representações e práticas acerca da cidadania republicana em
Porto Alegre (1889-1991). Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, 2001.p 23
154
92
sociedade. Daí resultava, certamente, a dificuldade de narrativas históricas em vistas das
multiplicidades de interpretações políticas ainda em movimentação158. No entanto, para
aqueles responsáveis pela construção identitária de um “passado comum” da nação era ao
mesmo tempo, necessário um investimento dos movimentos vivenciados no presente, na
medida em que a construção desse passado ganhava novos contornos e sentidos que
necessitavam urgentemente garantir a continuidade e a coesão desse mesmo passado. Dessa
forma, a existência de um novo tempo, inaugurado pelas transformações sociais, viria
interligada as novas concepções de futuro que proporiam novas narrativas historiográficas que
permitissem a manutenção de um sentimento identitário. Nesse sentido, a abolição e a
republica marcavam claramente uma transformação com desdobramentos e possibilidades de
se pensar o que deveria ser o Brasil159.
158
159
DA MATTA, Roberto. Relativizando – Uma introdução à antropologia social, Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
GOMES, Ângela de Castro. Op. cit. p. 30
93
Capitulo III.
Construindo memórias. Uma nova História da nação republicana.
94
3.1 A Chegada da República
Ao longo da década de 1880 a figura imperial de D. Pedro II foi perdendo visibilidade
e a monarquia, por consequência, se enfraqueceu. Nesse período os jornais se multiplicaram e
ampliaram seu público, os periódicos, com destaque para O País, Gazeta da Tarde e Gazeta
de Notícias, ilustravam em suas páginas as conturbações vivenciadas cotidianamente. Com a
progressiva intensidade da campanha abolicionista, a década de 1880 viu surgir o crescimento
da rua como espaço público. A população das cidades cresceu de maneira significativa na
segunda metade do século XIX, junto da urbanização e das melhorias em infra-estrutura,
aumentando as reivindicações nas praças públicas e na imprensa, estendendo o espaço de
atuação política, antes restrito ao Parlamento. A rua, interpretada pelo projeto Saquarema
como o lugar da desordem, foi ressignificada e adquiriu aspectos positivos, passando a ser
vista como um espaço de uso público da razão crítica160. Somam-se a isso um processo de
democratização da rua, que passou a ser frequentada pelos mais variados tipos sociais.
Percebemos nesse aspecto uma transformação na organização da sociedade, o mundo privado
representado pela “Casa” se via cada vez mais presente nesse novo espaço público e político
que a rua inaugurava. Tristão de Alencar Araripe161 não deixou de registrar esse poder
empossado pela massa da população nas últimas décadas do Império.
O povo se aproveitando do voto e da imprensa como de duas válvulas
possantes, e de duas forças irresistíveis para desabafar suas queixas e para
impor seu querer, participava assim do governo e assegurava
simultaneamente a eficácia de suas liberdades. 162
A sociedade brasileira de fins do oitocentos adquiriu uma complexidade não
presumida pelo governo imperial. A população do Rio de Janeiro, por exemplo, coração
político do Império, mudou radicalmente quanto a sua constituição demográfica, posto que
recebeu uma quantidade maciça de imigrantes europeus e migrantes do interior do país.
Contava ainda, com a problemática de lidar com o negro recém liberto da escravidão e com as
novas formas de trabalho assalariado. Os inchamentos das camadas médias letradas, que se
160
MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida: cultura democrática e científica do final do
Império. Rio de Janeiro: Editora FGV; Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2007.
161
Tristão de Alencar Araripe foi um dos mais renomados sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Nasceu em 1821, na então província do Ceará e faleceu no Rio de Janeiro em 1908. Possuiu importantes cargos
políticos tanto no período imperial, com no pouco tempo em que viveu na República. Foi eleito sócio
correspondente do IHGB em 1870, passando a honorário e, finalmente, a benemérito em 1898. Parte dessas
informações estarão contidas no quarto capítulo deste trabalho.
162
ARARIPE, Tristão de Alencar. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1897, Tomo LX, Parte II, p.7
95
sentiam insatisfeitas frente à posição marginalizada na sociedade e à falta de possibilidades de
integração junto ao aparelho de Estado, também contribuíam para o desagrado e frustração
com o regime político. As camadas populares, da mesma forma, se encontravam insatisfeitas.
Como demonstrado por Ronaldo P. de Jesus163, as visões da “gente comum” sobre a
Monarquia eram multifacetadas e contraditórias, chegando inclusive à indiferença. Portanto,
em sua opinião, não havia um apoio popular sólido à instituição monárquica. Mesmo após a
abolição da escravidão, quando percebemos a figura da Princesa Isabel ser alçada como
símbolo do governo imperial e um aumento da legitimidade monárquica diante da população
da Corte, Ronaldo de Jesus sugere que tal fato deve ter ocorrido somente nos anos seguintes,
frente às conturbações do governo republicano em seus primeiros anos. Ou seja, as
dificuldades econômicas e institucionais, a violência e a confusão política da década de 1890
teriam tornado possível o surgimento de uma nostalgia em relação ao período anterior e,
assim resgatado símbolos e memórias não tão centrais à sociedade da época.
Nos grandes centros urbanos aumentava o número de conferências abolicionistas e
republicanas que mobilizavam um número cada vez maior de indivíduos. Os jovens militares
também demonstravam simpatias aos debates que abalavam a estrutura nacional. As
instituições foram perdendo a sacralidade e transformavam-se em temas de debates que
inspiravam a intelectualidade. Nesse contexto a produção jornalística e literária aumentou e se
diversificou. Muitos livros comprometidos com a crítica e o entendimento das questões
nacionais surgiram nessa época, como por exemplo, O mulato, de Aluísio Azevedo ou
Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, ambos no ano de 1881. Era
interessante para essa geração descrever a sociedade com objetividade, sem idealizações, a
partir de um espírito crítico, em uma clara oposição ao romantismo. Obviamente a questão
racial começou a parecer mais constantemente no meio literário, como desdobramento desse
processo. Os temas, os objetos, a estética, tudo indicava para um tipo de escrita voltado para
um maior alcance social. As novas ideias adentravam as mais diversas mentalidades e o
abolicionismo e republicanismo surgiam como as principais críticas as instituições da
Monarquia.
As lutas pelo fim da escravidão penetraram profundamente nos meios intelectuais e
entre os positivistas, ganhando a adesão da causa republicana. Grande parte dos letrados
brasileiros acreditava no republicanismo como ideário político, com algumas exceções como
André Rebouças e Joaquim Nabuco. As noções de progresso advindas do continente europeu
163
JESUS, Ronaldo P. de, As visões da Monarquia: escravos, operários e abolicionismo na Corte. Belo
Horizonte: Editora Argumentum, 2009.
96
pregavam como bandeira o federalismo, a democracia e a instrução pública como
prerrogativas básicas para o desenvolvimento da sociedade. Além de terem sido canalizadas
na luta contra a escravidão no Brasil, essas noções foram resgatadas pelos adeptos do
republicanismo. Se até a década de 1870, o Partido Republicano se mostrava reticente em
relação à emancipação dos escravos, com o crescimento da campanha abolicionista
percebemos uma associação entre abolicionismo e republicanismo. Nesse momento, para
grande parte dos republicanos, abolição e Republica eram como que complementares,
compunham fases de um mesmo processo em direção à liberdade.
A partir da segunda metade do século XIX, uma renovação filosófica se fez presente
nos círculos intelectuais brasileiros. Apesar de percebermos uma forte tradição iluminista
entre os homens de letras que inauguraram o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
notamos que foi somente a partir da década de 1870 que o movimento de Ilustração teve uma
penetração mais intensa no meio letrado nacional. A partir de então, o anticlericalismo, o
racionalismo, o positivismo de Auguste Comte, o evolucionismo de Herbert Spencer, as
descobertas de Lamarck e Darwin compuseram o quadro de renovação mental que seguia o
compromisso de entender as questões nacionais. À medida que tais ideias, sempre
ressignificadas, adentravam no território brasileiro, cresciam as críticas ao modelo de trabalho
escravista e à instituição monárquica, vistas como responsáveis pela ignorância da população
e como impeditivos à chegada da modernidade no Brasil. Essa nova geração de intelectuais
que criticava o modelo historiográfico elaborado pelo IHGB, adotou, em grande medida, o
republicanismo como mote político.
Nos dois anos finais do Segundo Reinado o partido republicano ganhou mais adeptos
nos meios acadêmicos, entre artistas, literatos e nos círculos intelectuais de uma maneira
geral. Tornaram-se frequentes as conferências públicas e meetings políticos realizados, quase
sempre, em teatros e acompanhados por intensa repressão policial. Essa estratégia utilizada
para conter a subversão republicana, acabou por provocar incidentes e fortalecer a noção de
que o governo imperial era o responsável pelas agitações mais perigosas nas ruas, o que
contribuiu para que monarquia, aos poucos, perdesse legitimidade e força simbólica. Na
realidade, a versão saquarema de organização da sociedade brasileira estava sendo
desmontada, e o mundo do governo, o mundo do trabalho e o mundo da desordem
começavam a se confundir. Essa confusão trazia à tona uma desorientação social e uma
desorganização dos critérios de análise intelectual.
Um novo cenário se formou nas ruas das cidades, principalmente da Corte, com fim da
escravidão. Ainda em 1888, a propaganda republicana avançava e os abolicionistas, antes
97
unidos por um mesmo objetivo, dividiam-se entre o apoio à causa republicana e a Monarquia.
Importante lembrar que a emancipação, além dos republicanos, também atraiu monarquistas
para a opinião pública. Nos jornais dos grandes centros urbanos as disputas políticas se
tornaram cada vez mais acirradas. O interior do país não escapou das conturbações. Grandes
fazendeiros, vendo-se prejudicados pelo fim da escravidão, aderiram à razão republicana com
a esperança de receberem indenização, em decorrência da perda da mão-de-obra escrava,
eram os “republicanos de 14 de maio”. Muitos libertos, por sua vez, fugiam das fazendas em
busca de melhores condições de vida, recusando-se a trabalharem para seus ex-senhores.
Para além da questão em torno da abolição da escravidão, considerada como definitiva
para o fim da Monarquia no Brasil, podemos apontar ainda para a chamada “questão militar”
como de grande importância para a perda da legitimidade do Segundo Reinado. A partir de
1886, essa questão tornou-se objeto de disputas e debates nas páginas da imprensa brasileira.
De maneira insatisfatória, podemos afirmar que foi uma sucessão de acontecimentos,
ocorridos na década de 1880, que geraram embates entre oficiais de patentes mais baixas do
exército brasileiro e o governo imperial. Dentre os principais eventos destacamos as
conturbações geradas pela Guerra do Paraguai, a proibição dos militares de se manifestarem
na imprensa e uma sucessão de desentendimentos que envolveram o tenente-coronel Antônio
de Sena Madureira e o governo central.
Na realidade, a indisposição dos militares junto ao Império vinha do desejo de
possuírem uma posição de maior destaque na sociedade, uma vez que se viam como patriotas,
detentores de mérito para ascender socialmente. Estudantes da Academia Militar, onde
penetraram intensamente os ideais positivistas, a jovem oficialidade se via especialmente
iluminada para dar cabo ao desenvolvimento da civilização no país. Todavia, possuía a
desvantagem de exercerem uma profissão desprestigiada socialmente. Somava-se a isso um
descontentamento com a carreira devido à falta de oportunidade dentro do sistema de
patentes. O engajamento do Exército ao abolicionismo fomentou as discórdias com o governo
imperial. Os ideais científicos e democráticos característicos da jovem oficialidade levaram ao
engajamento desses homens ao republicanismo.
Os adeptos do republicanismo souberam valer-se dessa contenda para enfraquecer a
imagem da Monarquia, ao mesmo tempo em que perceberam a grande utilidade que os
militares poderiam oferecer na derrubada do governo imperial. Maria Tereza Chaves de
Mello164, sem entrar no mérito do peso da questão militar para a proclamação da República,
164
MELLO, Maria Tereza Chaves de, Op. Cit.
98
analisa o sentido simbólico da presença de militares junto ao republicanismo nas
manifestações das ruas e percebe a acolhida popular frente às tropas do exército. Os militares
encarnaram o mundo da ordem, posto que fossem representantes de um grupo culto e
intelectualizado, porém detentores do poder das armas. Esse importante segmento social, uma
vez que ganhou a adesão popular, empreendeu o golpe que culminou com a instauração da
República no Brasil, no dia 15 de novembro de 1889.
Com o estabelecimento do modelo republicano de governo, o Brasil abandonou as
rotinas institucionais fundamentais do Império. Em primeiro lugar, chegava ao fim o Poder
Moderador. Adotado constitucionalmente em 1824, o Poder Moderador, inviolável e privativo
do Imperador, possuía a função de supervisão dos demais poderes, era a chave da organização
política imperial, responsável pela sustentabilidade do sistema político do Segundo Reinado
165
.
Se o Poder Moderador, de certa forma, resolvia a questão em torno das relações entre
Legislativo e Executivo e a interação do poder central e os poderes regionais, com a chegada
da República a confusão política se fez iminente. A nova Constituição materializou o
princípio de autonomia gerando uma ordem política de incertezas.
Em 1889 se abandonou um modelo institucional que durava por décadas e que possuía
na figura do Imperador a chave de organização política, por um modelo institucional até então
desconhecido. Por isso, nos primeiros anos da República rondava uma imprevisibilidade em
relação a variados aspectos da vida política do país. Para tentar solucionar esse clima de
insegurança fez-se necessária a elaboração de uma Constituinte. A Constituição de 1891
estabeleceu eleições diretas para Presidente e defendeu o modelo do voto universal, restrito
aos indivíduos do sexo masculino, maiores de 21 anos e alfabetizados, ou seja, o eleitorado
não se modificou sobremaneira daquele visto nos tempos do Império. Contudo, a Primeira
República obrigou-os, em vista da própria Constituição de 1891, a considerar o modelo
representativo de governo mesmo de forma limitada, o que sempre esteve abafado pela figura
constitucional do Poder Moderador no Segundo Reinado.
Incontáveis eventos de agitação social e instabilidade política marcaram os primeiros
anos de governo republicano, que contaram com a presença dos militares. As tensões em
torno da reconfiguração dos poderes advinham das incertezas geradas pela quebra do modelo
da dinâmica imperial de governo. De acordo com Renato Lessa166, os atores participantes da
165
LESSA, Renato. A invenção republicana: Campos Sales, as Bases e a decadência da Primeira República
brasileira. Rio de Janeiro: Editora IUPERJ/ Vértice, 1988.
166
Idem.
99
nova vida política brasileira não dispunham de sentido exato para suas ações, bem como
controle dos resultados, por isso, nos primeiros dez anos de governo, a República constituiuse como um período caracterizado pela carência de institucionalidade e indefinição de
funções. As formas institucionais que haviam encontrado certa solução para o regime anterior,
já não existiam claramente, dando a impressão de ausência de regime político. Diferentemente
da centralidade característica do Império, os localismos começaram a aparecer, graças à pouca
estabilidade do jovem governo, uma vez que, como apontado por Renato Lessa167, na
transição do Império para a República ofuscaram-se as conexões macropolíticas que
interligavam o Imperador, o Poder Moderador, os Estados e os Partidos. O início do período
republicano no Brasil foi, portanto, caracterizado pela fragilidade e incerteza acerca das
relações entre as oligarquias locais e os governos estaduais e federal.
Diferentemente da suposta centralidade política imperial, a República brasileira
aparecia repleta de conturbações, o que trazia à tona um sentimento nostálgico em relação à
Monarquia. O governo de Deodoro da Fonseca, por exemplo, foi marcado pelo desmonte do
legislativo e, posteriormente, por tensões relativas à sucessão presidencial. A vigência de
Floriano Peixoto no poder, novamente trazia conflitos referentes à questão sucessória, além de
ter enfrentado dificuldades quanto à legitimidade de suas funções. Essas e outras questões
demonstravam um aparente fracasso da tentativa federalista e do ensaio institucional, além de
produzir expectativas de ruptura política.
Essa experiência de incertezas durou até o início do governo Campos Sales (18981902) quando começou a ser revertida a partir de fortes críticas ao modelo de República
inaugurado em 1891. Campo Sales conferia aos Estados e não ao povo a verdadeira fonte do
poder republicano. Avesso ao sistema partidário e aos instrumentos da democracia
representativa, o novo presidente, através do pacto oligárquico que envolvia os poderes
central e estatal, conferiu às oligarquias estaduais pleno controle sobre a população e o
eleitorado168. No seu modelo de governo, o presidente da República fornecia apoio aos
estados, em troca, os governadores, garantiam bancadas legislativas interessantes ao poder
central. Para além dessa dinâmica de reciprocidade, os coronéis desenvolveram um
importante papel nessa operação política, pois zelavam pelo resultado das eleições sempre de
acordo com as expectativas do governo estadual e federal e, assim, garantiam o fortalecimento
do poder local. Importante colocar que a estabilidade e a consolidação das bases do governo
167
168
Ibidem.
Ibidem.
100
republicano também dependeram de uma intensa batalha política e ideológica de símbolos e
alegorias, como brilhantemente nos informa José Murilo de Carvalho169.
A partir da análise dessa dinâmica de governabilidade, marcada pela falsificação dos
mecanismos representativos, muitos autores afirmaram que a República não provocou, em
termos eleitorais, um rompimento significativo com a realidade imperial. De acordo com
Cristina Buarque de Hollanda170, por exemplo, o tema da representação na Primeira
República, em grande medida, reeditou a realidade presenciada no Império, o que, em sua
perspectiva, supõem fortes continuidades com o passado ao invés de um ineditismo do objeto.
Ângela de Castro Gomes171, todavia, aponta para aspectos mais profundos da vida política na
Primeira República, sem negar ou minimizar as fraudes e violência que limitaram,
significativamente, as formas de representação política do período. Em sua opinião, o
processo eleitoral cumpriu papel chave para o sistema político republicano, uma vez que
introduziu um mínimo de competição, renovação e consciência política aos cidadãos,
possuindo uma função pedagógica, ainda que diminuta, de alimentar um aprendizado político.
Em vista do estado de desorganização política no princípio do governo republicano,
tornou-se notória a profunda desagregação social e, consequentemente, a indigência de definir
uma identidade para a população do país. Dessa forma, podemos afirmar que a instauração da
República aumentou a necessidade de identificação de uma unidade a que se pudesse
denominar de povo brasileiro, o que já vinha ocorrendo desde o final do século XIX, com a
progressiva emancipação dos escravos. A transição da qualidade de massa desordenada, à
qualidade de povo, era vista como um processo resultante da intervenção estatal. Mais uma
vez, a exclusão de grande parte da população da condição de cidadania formal foi a solução
encontrada pelos governos da primeira República. A problemática a respeito da representação
política das minorias, permaneceu em voga e suscitou discussões sobre voto limitado,
cumulativo e sistemas de terço e quinto. Tal como no Segundo Reinado o acesso à política
permanecia restrito a uma parcela diminuta da população, como forma de afastar o perigo das
mobilizações populares das esferas mais altas da política.
169
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
170
HOLLANDA, Cristina Buarque. Modos de representação política: o experimento da Primeira República
brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
171
GOMES, Ângela de Castro e ABREU, Martha. A nova “Velha” República um pouco de história e
historiografia. in: Tempo Nº 26 Vol. 13 - Jan. 2009
101
3.2 Uma nova Forma de escrever a História Nacional: diálogos e rupturas entre a
Monarquia e a República.
O período da Primeira República brasileira necessita de uma urgente revisão
historiográfica que assinale para a sua importância no tangente às experiências políticas e
sociais do país. Diferentes práticas participativas, que reuniram atores diversos, foram
minimizadas pela história e apagadas da memória coletiva, em grande medida pelo regime
político que o sucedeu. Paradoxalmente, a experiência política republicana mais duradoura da
História brasileira entrou para a narrativa da nação como exemplo de fracasso. Esse processo
de construção e seleção da memória foi capaz de esgotar todas as experiências políticas,
sociais e culturais da designada “República velha”, enfatizando as conturbações e fraudes do
processo eleitoral, transformando-a em um malogro institucional. Como consequência da
elaboração de uma cultura histórica que priorizou o rebaixamento de qualquer tipo de ação
política na Primeira República à idéia de fraude, principalmente em relação a representação
política, ainda desconhecemos uma rica movimentação de sujeitos que exigiam e construíam
espaços de cidadania, ainda que informais, nesse período172.
Interessante notar que grande parte das interpretações sobre o início da República no
Brasil considera que a intelectualidade do período teria falhado na tentativa de construir um
imaginário republicano e um sentimento cívico patriótico, da mesma forma não teria
conseguido valorizar um Brasil mestiço, formado pelo aporte racial negro, branco e indígena.
Para a pesquisa aqui realizada, que analisa o período da Primeira República sob uma nova
ótica, percebendo o impacto das lutas políticas e simbólicas como de decisiva importância
para se pensar a relação entre cultura e política no Brasil, tal época é vista como de suma
relevância para a formação do campo da historiografia brasileira, ainda preocupada com a
gênese da nação, bem como com as análises da composição racial de um pretenso povo
formador do Brasil173.
A abolição da escravidão e a ascensão do regime republicano afastaram, relativamente,
o tipo de historiografia até então elaborada no Império, o que implicou, segundo Ângela de
Castro Gomes, em uma “diferenciação no perfil do historiador, no enredo da narrativa que ele
devia construir e em seu destinatário privilegiado” 174. Com a emancipação total dos escravos,
as ideias do que seria a história nacional e de como fazê-la, estavam sendo (re) elaboradas de
172
Idem.
Ibidem.
174
GOMES, Ângela Maria de Castro. A república, a história e o IHGB. Editora Argumentum, Belo Horizonte,
2009, p. 156
173
102
acordo com as novas conjunturas políticas do regime republicano, que necessitava de
legitimação. Uma negociação entre um passado de exaltação monárquica e um presente de
instauração da república fez-se necessária. Um imaginário político republicano necessitava se
justificar, se apropriando ou criando tradições, uma história e uma memória, que ao mesmo
tempo em que exaltasse o novo regime não poderia deslegitimar a monarquia. Dessa maneira,
novos fatos e heróis foram introduzidos na história da nação brasileira ou “revisitados”,
produzindo um “passado repensado”, onde se pudesse vislumbrar um futuro para a nação175.
Ângela de Castro Gomes nos ajuda a compreender esse processo.
A abolição e a República impactaram profundamente o processo de
construção da identidade nacional brasileira, até porque apenas depois desses
eventos foi possível “imaginar” a existência de uma nação constituída por
um “povo”, ou seja, integrada juridicamente por homens livres. A própria
eclosão de debates políticos e de uma variada produção intelectual que
discutia a existência ou não de um “povo brasileiro”, bem como o que tal
presença ou ausência podia significar, aponta para um novo delineamento
das questões políticas e culturais trazidas pelo século XX, no que se refere
ao processo de construção, não mais apenas do Estado (state-building), mas
também da nação (nation-building). 176
Os Institutos Históricos, principalmente o IHGB devido a sua estreita relação com
imperador, viram-se desorientadas em relação ao devir do historiador, principalmente nos
primeiros anos da república, pois os compromissos teriam de se transformar. Se durante a
monarquia o objetivo das produções historiográficas dessas agremiações era legitimar o
próprio regime político em que se encontravam (centralizador, marcado por uma estreita
relação entre Estado e Igreja Católica, onde o imperador era, em última instância, o próprio
destinatário dos discursos) com a chegada da República, as transformações se faziam
necessárias. O projeto político passava a ser laico e federativo não mais fundado em uma
sociedade de privilégios. Exatamente por isso, o destinatário dos discursos mudava, passando
o interlocutor a ser o “povo brasileiro” que estava sendo construído em um processo adjacente
ao da formação de uma história e de uma memória do Brasil, onde ele próprio era o autor
principal e, ao mesmo tempo, o destinatário177. De acordo com Rodrigo Turin178:
175
176
177
Idem.
Ibidem, p. 24/25
Ibidem.
178
TURIN, Rodrigo. Uma nobre difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista em História da
historiografia, n. 2, 2009
103
Tal reconfiguração, inserida em um processo de reescrita da história, tem
como aspecto marcante a seleção do povo ao mesmo tempo como objeto e
instância legitimadora da enunciação historiográfica. Por motivos políticos e
epistemológicos, a população, entendida agora não mais apenas como as três
ordens da sociedade imperial, mas, principalmente, como um corpo
homogêneo cuja unidade deveria ser buscada em sua formação histórica,
torna-se objeto de um imenso investimento discursivo. Uma nova semântica
política, pautada na imanência do poder e na representação social, implicava
uma nova forma de saber. 179
Por essa situação de incertezas e disputas, produziram-se debates e novas versões
sobre o que era e o que deveria ser a história do Brasil, com desdobramentos importantes para
o campo intelectual e historiográfico. Ainda segundo Rodrigo Turin:
Não há aí nenhuma ruptura, é certo, mas antes uma reforma, remodelando a
figura autoral do historiador. O que acontece, em suma, no que se refere às
exigências do rito, é um deslocamento parcial. A narrativa histórica não vai
mais escrita em nome da instituição imperial e do imperador, dirigindo-se
agora a uma entidade mais abstrata: o povo180
A instauração da república não trouxe à tona os questionamentos sobre ciência e
história sem motivos aparentes. Os próprios acontecimentos e revisões européias do que
deveriam ser as ciências sociais foram decisivos para tais questionamentos. Contudo, para
além disso, uma questão importante imanava da própria sociedade brasileira: o sujeito que
produzia o discurso histórico na República, por estar inserido no processo de formação da
nação, que consistia também em seu objeto de estudo a ser narrado era, ao mesmo tempo, ator
histórico deste acontecimento. Isto o levava a qualificar seu objeto, a formação nacional, a
partir do seu ponto de vista de “cidadão-historiador”. Desta maneira, a formação identitária do
indivíduo e da nação se conectava181. Como então legitimar o que estava sendo produzido em
um momento de grandes discussões científicas e historiográficas? Como manter o tão
almejado relativismo histórico? As disputas e tensões das narrativas eram múltiplas e foram,
em grande medida, através dos métodos científicos que os autores buscaram legitimar suas
interpretações. Tais métodos estavam, igualmente, sendo repensados e aprimorados, e por
isso, utilizados como justificativas para as verdades históricas de cada autor.
Sendo assim, a temporalidade escolhida nesse trabalho requer uma investigação sobre
os Institutos Históricos em um período delicado de suas trajetórias, que atravessava a abolição
da escravatura e a proclamação da República, processos estes que impactaram de maneira
179
Idem, p.9
Idem, p.10
181
Ibidem, p.11.
180
104
significativa a construção da identidade nacional brasileira, posto que este necessitava (re)
pensar a conformação de uma História do Brasil, agora republicano.
Tendo em vista os estreitos vínculos dos Institutos Históricos Brasileiros com a
Monarquia, e principalmente com o Imperador, quando os debates acerca da Abolição e da
proclamação da República começam a se ampliar, aproximadamente a partir da década de
1870, uma mudança começou a ser operada na organização e elaboração da narrativa
historiográfica brasileira. Uma geração marcada profundamente pelo cientificismo e pelas
ideias ilustradas de progresso e evolução se inseriu no debate intelectual, do qual haviam sido
marginalizados. Nesse contexto, se operou uma revisão dos fundamentos da tradição imperial
na historiografia, fazendo surgir intensos debates nos círculos intelectuais 182. Se a geração de
1870 organizou críticas contundentes ao modelo de história representado, principalmente,
pelos Institutos Históricos, necessitamos levar em consideração que no interior destes, do
mesmo modo, essas inovações se fizeram sentir. Inúmeras são as análises que apontam para
os aspectos inovadores da intelectualidade consagrada como “geração de 1870”, no entanto,
poucos foram os esforços na tentativa de compreender que o próprio IHGB e demais
associações desse tipo, também modificaram seus padrões de narrativa e, influenciados não só
pelas noções positivistas e científicas estrangeiras, como pelos acontecimentos internos da
sociedade, se viram desorientados em relação ao devir do historiador.
Os trabalhos publicados nas Revistas dos Institutos Históricos revelam tensões e
intenções do campo científico e intelectual brasileiro que se transformava e se constituía. Por
essa situação de incerteza e disputas produziram-se debates que repercutiram em novas
versões sobre o que era e o que deveria ser a história, particularmente a brasileira,
remodelando o campo intelectual e historiográfico183. As fronteiras tênues entre produção
intelectual e política continuavam a existir, bem como as preocupações com a função
pragmática dessa produção. A relação com uma dimensão didática demonstrava a intenção de
uma práxis agora voltada para um projeto de nação moderno, democrático e civilizado.
Como dito anteriormente, o período da Primeira República foi estratégico para a
constituição de um perfil para a história e para seus historiadores no Brasil. A identidade da
disciplina foi construída através de um processo de disputas, que perpassava pelo o que
deveria ser narrado e pela forma de narrar, levando em consideração a própria adesão dos
intelectuais ao regime republicano, onde a busca da modernidade e cientificidade – ilustrada
182
TURIN, Rodrigo. Uma nobre difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista em História da
historiografia, nº 2. Op. Cit. p. 9
183
GOMES, Ângela de Castro. A república, a história e o IHGB. Op. Cit.
105
em novos procedimentos de pesquisas – assumiam o desafio de modernizar uma sociedade
marcada pela escravidão e pelo regime monárquico, considerados responsáveis pelo atraso da
nação. Foi este então um momento em que debates intelectuais e científicos estavam na
ordem do dia 184.
O século XIX era já considerado no início do século XX como de grande
importância intelectual tanto pelos avanços das ciências naturais como pelos
avanços das ciências sociais e da história. Essas últimas não mais poderiam
ignorar os conhecimentos estabelecidos pelas primeiras em suas análises,
nem se abster de trabalhar com os métodos da ‘observação e da comparação’
dos ‘acontecimentos humanos’ 185.
Ao surgir uma nova conjuntura nacional, graças ao fim da escravidão, seguido pelo
estabelecimento do regime republicano, narrativas do passado que envolviam diferentes
enfoques e procedimentos começavam a surgir em meio a transformações sociais. Dessa
forma, poder-se-ia supor que os sentidos das culturas políticas surgidas e operadas num
regime monárquico começavam a se abater em decorrência de novas circunstâncias históricas,
com o surgimento de outras problemáticas. Para tanto, utilizaremos a definição de culturas
políticas como complexos sistemas de representações, rivais entre si, constituintes das
identidades de grupos dentro da sociedade, que extrapolam, no entanto, a noção reducionista
de partido político186. Esses sistemas de representações permitem tornar mais inteligíveis os
comportamentos políticos dos atores sociais. Levando em consideração que culturas políticas
abarcam, necessariamente, referenciais históricos que emergem de problemas fundamentais
enfrentados pela sociedade no presente, podemos concluir que, culturas políticas nascem em
circunstâncias históricas precisas e transformam-se de acordo com o surgimento de novos
contextos e novas demandas sociais. Nesse sentindo, partindo do pressuposto de que culturas
políticas necessariamente incorporam determinadas leituras do passado, que ao serem
narradas conformam interpretações e proposições históricas, podemos articular o conceito de
cultura política ao de cultura histórica.
Entendemos por cultura histórica o modo como uma sociedade se relaciona com o seu
passado, “como se criam, se difundem e se transformam determinadas imagens do passado
184
Idem.
Idem. p. 35
186
Para definições do conceito de cultura política de Serge Bernstein cf. BERSTEIN, Serge. A cultura política.
IN: RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François. Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa,
1998 e BERSTEIN, Serge. Culturas Políticas e Historiografia. In: AZEVEDO, Cecília et al. Cultura política,
memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009.
185
106
reativamente coerentes e socialmente operativas, nas quais se objetiva e se articula a
consciência histórica de uma comunidade humana” 187.
É importante destacar que uma cultura histórica não se conforma através de um
processo inflexível de representação do passado, mas sim, por um procedimento dinâmico de
negociações e disputas. Culturas históricas abarcam múltiplas narrativas e enfoques que
tentam se impor socialmente.
É através da noção de que as nações, partidos e diferentes grupos sociais legitimam
suas ações, políticas ou não, mediante um apelo ao passado, que o trabalho aqui proposto
buscou pensar a cultura histórica como uma dimensão estratégica da cultura política188. A
utilização de ambos os conceitos para a elaboração deste estudo foi esclarecedor para
investigação das reconstruções do passado brasileiro pelos intelectuais dos institutos
históricos.
Os debates sociais sobre o passado são relevantes, porque neles não estão em jogo
apenas a necessidade desses indivíduos de trazer à tona uma história nacional, mas a
compreensão de si mesmos e da comunidade a que pertencem, bem como suas expectativas
para o futuro. Dessa maneira, os “arquitetos” da república brasileira adentraram o labirinto
das grandes mudanças estruturais das sociedades. Era necessário recriar todo um panorama
que ratificasse a implantação de uma república, sem escravos, colocando em franco conflito
um passado atrasado e uma perspectiva moderna de futuro, ao mesmo tempo em que as
substâncias essenciais da tradição não poderiam ser abandonadas de todo, pois a formação de
uma nacionalidade e espírito cívico deveriam estar sempre entrelaçados a estas tradições.
Com isso novos formatos de fabricação histórica do passado passaram a ser abordados,
denotando uma preocupação em promover um lugar ao “povo brasileiro” dentro de um
universo republicano. Este paradoxo entre passado histórico, presente de atuação e futuro
projetado, foi um dos principais combustíveis para as inovações nos métodos de narrar a
história nacional, buscando dar conta de corporificar a passagem da monarquia para a
república dentro de um encadeamento linear. Essa problemática denota o complexo quadro
em que se encontraram os homens de letras nas últimas décadas do XIX, mais precisamente,
os intelectuais que produziam trabalhos nos limites de Institutos Históricos Brasileiros.
Dentro desta perspectiva, é possível perceber que o conflito gerado pelo surgimento
de novos horizontes de expectativas “metamorfoseou”, de certa forma, o próprio presente
187
MARCOS, Fernando Sánchez, Cultura Histórica. Cultura Histórica, 2009, p. 2. disponível em:
http://www.culturahistorica.es/sanchez_marcos/historical%20_culture.pdf. Data de acesso: 06/2012
188
Cf. GOMES, Ângela de Castro. Cidadania e direitos do trabalho.Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2002.
107
imediato, espaço de experiência, que necessitava agora de uma nova narrativa passada que o
impusesse como o caminho evolutivo natural.
Reinhart Koselleck definiu este processo de produção historiográfica de forma
bastante acertada: “todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas
expectativas das pessoas que atuam ou que sofrem. Com isso, porém, ainda nada disseram
sobre uma história concreta – passada, presente ou futura”
189
. Falar em temporalidades
significa dizer que a partir das suas relações o discurso histórico pode ser construído.
Mudanças no espaço de experiência do presente estabeleceram novas formas de se narrar a
história da nação, integrando elementos, ainda que de forma incipiente, que antes do final do
século XIX foram geralmente silenciados pela historiografia. Nesse sentido, a “experiência”
nos termos de Koselleck, garante que a forma como se deve narrar, e o que deve ser narrado,
se reconstrua, da mesma maneira que o horizonte de expectativa se viu renovado após a
deposição do Império e da emancipação escrava. Para Koselleck, a experiência “é o passado
atual, aquele no qual os acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados”
190
,
enquanto a expectativa é “o futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não
experimentado, para o que apenas pode ser previsto” 191.
Portanto, torna-se perceptível que a práxis social do presente associa categorias
temporais distintas, produzindo formas inéditas de se perceber, compreender e produzir um
passado histórico. Onde antes havia o Imperador, agora há o cidadão republicano, o “povo” e
onde antes havia uma hierarquia social cristalizada, agora há tensão e lugares de fala antes
calados. Esses elementos influenciaram o discurso dos homens de letras, que agora
necessitavam redefinir as prioridades de suas “penas”, gerando novos métodos explicativos
para o presente através do passado e articulando categorias temporais ao tempo histórico
constituído, tendo como horizonte de expectativa a futura nação republicana que se almejava.
Analisar as culturas políticas na passagem do século XIX para o século XX significa
tratar das transformações sociais inauguradas pelo processo de abolição da escravidão e das
tensões que se relacionam ao crescimento do movimento republicano, uma vez que tais
acontecimentos modificaram o cenário político e introduziram novas formas de lidar com o
conceito de modernidade. Antônio Edmilson Martins Rodrigues192 nos chama a atenção para a
189
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto Editora; Editora PUC Rio, 2006, p.306.
190
Idem, p. 309
191
Ibidem, p. 310
192
RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins. “Cultura política na passagem brasileira do século XIX ao século
XX”. In: LESSA, Mônica Leite e Fonseca, Silvia C. P. de Brito. Entre a Monarquia e a república: imprensa,
pensamento político e historiografia (1822-1889). Rio de Janeiro: EDUREJ, 2008
108
necessidade de analisarmos a cultura política do final do século XIX como sendo cosmopolita
e que, de maneira geral, procurava compreender a formação de um povo brasileiro em meios
às noções de modernidade. Da mesma forma, aponta para o desenvolvimento das cidades e
para o crescimento de uma cultura política popular envolvida com o cotidiano das
experiências urbanas. Em suma, propõe um estudo de culturas políticas, que ultrapassa o
âmbito institucional e suas definições, a favor da observação das novas experiências civis que
culminaram com o surgimento de uma cultura política moderna e crítica.
3.3 A busca de uma tradição nacional republicana em meio a disputas regionais.
Como apontado anteriormente, os anos que se seguiram à proclamação da República
foram caracterizados por certa agitação e instabilidade política. Até o ano de 1891, Marechal
Deodoro ocupou o governo provisório, período em que a nova Constituição foi redigida,
estabelecendo a separação entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. A questão
acerca da centralização do poder permaneceu como de fundamental importância para o
equilíbrio político do país e a autonomia concedida aos Estados trouxe divergências
governamentais.
Os acontecimentos relativos à instauração da República no Brasil foram narrados
ainda na década de 1890 pela intelectualidade presente nos Institutos Históricos, contrapondo,
em certa medida, o modelo de escrita da história preponderante nessas instituições. No
entanto, cabe ressaltar que as discussões que envolviam tal fato apareceram, majoritariamente,
na forma de discursos declamados nas atas de sessões das agremiações e transcritos para as
Revistas. Ou seja, não compunham artigos monográficos propriamente ditos. Os eventos
acerca do 15 de novembro de 1889, assim como aqueles associados ao fim da escravidão,
eram de tamanha importância que não podiam escapar às penas dos letrados. Cabia a esses
homens incorporar os acontecimentos recentes nas suas retóricas intelectuais e transpô-los nas
narrativas historiográficas. Se um dos princípios norteadores dos Institutos Históricos era o
afastamento das tensões vividas contemporaneamente pela sociedade, de maneira que a
parcialidade nos embates políticos fosse evitada para não comprometer o fazer do historiador,
a Abolição e a República transformaram significativamente essas posturas.
Como pudemos ver no capítulo anterior, as temáticas relativas à questão servil já
vinham sendo relatadas pelos integrantes desse tipo de associação. Nesse momento,
perceberemos, igualmente, que a mudança do regime político foi intensamente debatida,
109
gerando expectativas, desilusões e críticas naqueles indivíduos, que necessitavam construir
uma tradição republicana para o Brasil.
Para
os
republicanos
recém-chegados
ao
poder,
os
Institutos
Históricos,
principalmente o Brasileiro, representavam um reduto perigoso de monarquistas, uma herança
do Antigo Regime. Houve inclusive tentativas políticas de extinguir o IHGB e o corte
progressivo de subsídios dados pelo governo ao Instituto foi uma delas. A condição financeira
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro era um dos seus principais problemas. Se no
período imperial este local desfrutava das regalias do Imperador, uma vez proclamada a
República e sob os olhares insatisfeitos de quem a governava, a instituição teve sua renda
reduzida e passou a funcionar, quase que exclusivamente, de auxílios advindos das anuidades
e das jóias pagas pelos sócios, além dos lucros provenientes da venda das revistas. Na
realidade, o governo inicialmente se comprometeu a manter a dotação anual, retirando,
contudo, as verbas suplementares. Posteriormente reduziu tal dotação à metade. Com o corte
de subsídios o fechamento do IHGB parecia ser apenas uma questão de tempo 193.
Diante de tal situação e buscando o restabelecimento financeiro do Instituto, a Mesa
Diretora aprovou a criação de uma nova categoria de associados: foi nesse momento que
surgiram os sócios beneméritos. Estes não necessitavam de comprovação acadêmica ou
literária pra sua inserção na agremiação. Tais indivíduos, em sua maioria, não eram homens
de letras e ciências, mas possuíam o capital que poderia reerguer o IHGB, uma vez que
doavam dois contos de réis apenas para serem admitidos como sócios.
Sem dúvida, as circunstâncias desfavoráveis refletiram nas publicações da Revista do
IHGB, passando a padecer de constantes atrasos. Em vista dos altos encargos, o periódico
deixou de ser impresso pela Imprensa Nacional, que desde a primeira edição da revista
cumpria com tal trabalho. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro passou a arcar com os
custos das publicações, contratando os serviços da Tipografia Laemmert, futura Companhia
Tipográfica do Brasil 194. Por isso atentava Joaquim Norberto de Souza Silva195:
193
GUIMARÃES, Lucia Paschoal. Da escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e geográfico Brasileiro
(1889-1938). Museu da República, Rio de Janeiro, 2006. p. 23
194
Idem. p. 24
195
Joaquim Norberto de Souza Silva nasceu no Rio de Janeiro no ano de 1820. Colaborou na Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, para a qual entrou em 1841, tendo chegado à presidente do órgão. Atuou
também, em vários periódicos, sua atividade literária foi intensa, dispersa na Revista do IHGB, na "Revista
Popular", na "Minerva Brasiliense", entre outras. Na crítica e na história literária que reside a sua melhor
contribuição através de estudos, memórias e edições anotadas de autores brasileiros. Foi também prosador,
dramaturgo, poeta, teatrólogo e tradutor, ao longo de mais de quarenta anos da vida cultural brasileira. Faleceu
em Niterói no ano de 1891. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos
brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993.
110
(...) é meu dever chamar atenção para as atuais circunstâncias de nossa
associação (...) não possuímos senão um exíguo patrimônio, não temos
senão uma casa emprestada, velha, arruinada. Não dispomos senão dos
escassos recursos de uma tênue subvenção (...) 196
Como reflexo desses problemas, também podemos observar, através do conteúdo das
publicações da Revista do IHGB, que a grande maioria das exposições, cada vez mais se
tratava de cópias de documentos, transcrições, traduções ou relatos de viagem. Como
afirmado por Lúcia Guimarães197, as contribuições historiográficas caminhavam a passos
largos para uma diminuição cada vez mais intensa.
De fato, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi, dentre as agremiações aqui
consideradas, a que mais sentiu, do ponto de vista ideológico e burocrático, a queda da
Monarquia. Nessa primeira década analisada vislumbramos, a partir do material proposto para
publicação, a maneira como os letrados do IHGB se relacionaram com a instauração da
República brasileira. Num aspecto geral, notamos que o novo regime político foi bem
acolhido entre os historiadores e não percebemos nenhum artigo que argumentasse em sentido
contrário. A República era como que inevitável e fazia parte do progressivo engrandecimento
da nação. Contudo, a perda da presença física do Imperador se fez sentir a todos, de modo que
sua ausência fosse comumente relembrada em muitas das sessões. Joaquim Norberto, na
primeira reunião do Instituto após o estabelecimento do modelo republicano de governo assim
declarava:
Senhores! Imperioso dever do meu cargo me força a anunciar-vou, que
jamais nessa cadeira se assentará aquele que durante quarenta anos
desempenhou verdadeiramente o título de protetor de nossa associação,
elevando-a a face das nações cultas a grande consideração, que goza
atualmente. Das atas das sessões de nossos trabalhos e das nossas sessões
magnas, (...) consta e constará sempre, o que foi o imperador D. Pedro II
para com o Instituto Histórico (...) 198
Logo em seguida, se pronunciava o sócio João Severiano da Fonseca199: “O advento
da República Brasileira trouxe-nos uma perda imensa e um imenso pesar: o afastamento do
196
GUIMARÃES, Lucia Paschoal. Da escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e geográfico Brasileiro
(1889-1938. Op. Cit. p. 24. apud Joaquim Norberto de Souza Silva.
197
Idem.
198
SOUZA SILVA, Joaquim Norberto de. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1889, Tomo LII. Parte II, p. 534
199
Nasceu em Alagoas no ano de 1835. Irmão do Marechal Deodoro da Fonseca, formou-se na faculdade de
medicina do Rio de Janeiro em 1858. Ingressou no corpo de saúde do Exército e em ocasião da Guerra do
Paraguai participou no teatro de operações. Após a instauração da República, foi eleito Senador pelo Distrito
Federal, mas renunciou ao mandato após os acontecimentos de 23 de novembro de 1891. Foi ainda, professor de
Ciências Físicas e Naturais do Colégio Pedro II e no Colégio Militar. Ingressou no IHGB como sócio
correspondente, passando a efetivo (1882) e honorário (1889). Faleceu no Rio de janeiro em 7 de novembro de
111
nosso augusto e venerado imperador”
200
. Pedro II realmente era uma figura detentora de
enorme poder simbólico para os sócios do IHGB. Para além de ser considerado um prodigioso
intelectual, sua presença conferia as sessões da instituição legitimidade, enquanto o mais
importante recinto científico da nação brasileira.
Tais letrados, todavia, em momento algum desmereceram ou recriminaram o advento
da República no Brasil, pelo contrário sagraram-na como importante passo no andamento da
liberdade e adiantamento da nação. Mais uma vez, Joaquim Norberto declarava suas
expectativas em relação à República, sem esquecer-se de retomar ao período monárquico.
(...) sem que a queiramos antepor de modo algum a ordem das novas coisas
estabelecidas e a que nos curvamos, certos de que o governo do povo pelo
povo será uma realidade para a terra à qual Deus outorgou por símbolo a
cruz da sua redenção, e a quem imploramos, que a república seja tão livre
como foi o Império de Pedro II 201.
Como analisado por Ângela de Castro Gomes, com a instauração do novo regime
político a escrita da história se modificava. Além do destinatário principal, que deixava de ser,
em última instância o imperador, passando a constituir-se de um “povo brasileiro”, era preciso
que se (re)organizassem os eventos que entrariam na composição da narrativa historiográfica,
bem como a forma como seriam enunciados. Um equilíbrio entre o passado monárquico e um
presente republicano se tornava imperante. “Porque não aproximaremos as glórias do Império
às da República, estabelecendo o respeito ao passado sem ofender o presente?” 202 A postura
dos homens de letras dos Institutos Históricos frente ao movimento que deu origem à
República mostra essa perspectiva, de certa forma, conciliadora sobre as transformações
históricas. Do republicanismo no Brasil esperava-se que fosse tão grandioso quanto o
Império. A enunciação de Joaquim Norberto segue essa linha interpretativa, rompida em raras
ocasiões por sócios do Instituto paulista. Suas expectativas em relação à República eram
compostas por um sentimento de complementaridade com o período imperial.
É bem verdade que houve críticas contundentes à instituição monárquica,
principalmente nas páginas da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
Como sabemos, a data da fundação do IHGSP ocorreu no ano de 1896, portanto a instituição
já nasceu sob uma orientação republicana de governo. Nesse sentido, desde sua edificação
1897. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de
Janeiro: 1993. p. 70-71.
200
FONSECA, João Severiano da. Revista do IHGB, Rio de janeiro,1889. Tomo LII, Parte II. p. 537
201
SOUZA SILVA, Joaquim Norberto de. Op. Cit. p. 534
202
BRAGA, Erasmo. Revista do IHGSP. São Paulo, 1899, volume IV, p. 424
112
buscou se afirmar como a verdadeira representante do pensamento republicano no Brasil,
argumentando uma posição privilegiada no papel de elaboração da história da República no
país. Nesse sentido, se mostrou o mais crítico em elação à durabilidade da instituição
monárquica no Brasil. Na realidade, os intelectuais de tal agremiação comumente
reproduziam a noção de que todas as províncias, quando da época da independência nacional,
possuíam tendências republicanas, violentamente caladas pela tirania e pela violência.
Domingos José Nogueira Jaguaribe Filho, por exemplo, assim declarava: “pode-se dizer que
desde que se formou a sociedade brasileira Ela não se submeteu jamais ao regime da
monarquia, senão pela força” 203.
No entanto, para a maioria da intelectualidade dos Institutos Históricos, proclamou-se
a noção de que a República havia chegado sem atraso, de maneira quase que consensual pela
sociedade, mas não sem aviso. Dessa forma, tratou-se de organizar uma narrativa da história
republicana no Brasil, amarrando o presente a um passado republicano em tradição. Dentre
todos os trechos analisados, o que melhor sugere a perspectiva teleológica dos acontecimentos
que culminaram com a proclamação da República se encontra em artigo publicado pela
Revista do IHGB de autoria de Tristão de Alencar Araripe.
Primeiro, a monarquia absoluta, que pesou sobre os estados, qual pavoroso
castigo do céu. No rei se resumia a nação. (...) A monarquia constitucional
então teve seu tempo, que prolonga-se até hoje, mercê do preconceito que
avassala a opinião na Europa antiquada. A civilização, no entanto, foi
progredindo em sua gloriosa jornada, e dentro em pouco as celebrações mais
felizes reconheciam, e proclamavam que a monarquia (...) já não era capaz
de satisfazer as exigência da época, nem de suportar as novas fulgurações do
direito. (...) Daí nasceu a idéia do governo republicano moderno, isto é,
daquele em que todos os poderes procedem do povo. 204
Nesse trabalho Araripe analisa todas as raízes do republicanismo no país, destacando o
período entre 1822 e 1848, como de decisiva importância na luta pela liberdade. Seu artigo,
ainda que assinale as intensas batalhas contra a Monarquia, reproduz uma visão de que o
tempo trouxe o amadurecimento do pensamento político que pode se desdobrar em uma
transformação sem conturbação. A República no Brasil surgia, assim, como resultado de um
processo pacífico e linear.
Se os acontecimentos históricos foram resgatados por Araripe, este também tratou de
oferecer as devidas homenagens aos personagens, que em sua opinião, haviam sido os
203
204
JAGUARIBE FILHO, Domingos José Nogueira. Revista do IHGS, São Paulo, 1896, Volume I, p. 23
ARARIPE, Tristão de Alencar. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1897. Tomo LX, parte II p. 6-8
113
maiores responsáveis pela chegada da República no Brasil205. Estes homens eram: Marechal
Deodoro da Fonseca, Benjamin Constant Botelho de Magalhães e Marechal Floriano Peixoto.
Por conta da participação e da liderança destes indivíduos no movimento republicano, Araripe
propôs que fossem erigidas estátuas em bronze e em mármore para que se perpetuassem suas
imagens às gerações futuras. Em suas palavras: “O povo brasileiro começa a tributar o devido
preito à memória de três dos mais eminentes varões, que contribuíram de modo eficaz e
decisivo para o estabelecimento das instituições republicanas no Brasil” 206.
Para Tristão de Alencar Araripe, Marechal Deodoro havia sido a força, que no
momento da crise monárquica forneceu o necessário para a consumação do ato de instauração
da República, representando o Exército Nacional. Benjamin Constant foi o doutrinador, que
incutiu nos indivíduos os princípios democráticos. E Floriano Peixoto foi “o gênio da firmeza
e do valor” que soube manter a nova configuração de governo quando ameaçada pela
restauração monárquica. Resumindo, Araripe declara, de maneira geral, que Manoel Deodoro
proclamou a república, Benjamin Constant a doutrinou; Floriano Peixoto a consolidou. Sendo,
portanto, inverossímil a crença de que a República havia sido o resultado de um sobressalto
proveniente de um caso imprevisto e rápido, gerador de espanto para população e de violência
para a nação.
Necessário explicar que a Proclamação da República era, comumente, vista como o
caminho da democratização do país. A noção de democracia também garantia os princípios de
liberdade e muitas vezes essa expressão era consagrada como o oposto à Monarquia. O
elemento democrático se contrapunha à autoridade do Estado Imperial e nesse sentido a
liberdade foi muitas vezes entendida como democracia. Diferentemente da Monarquia, que
podia ser associada à noção de liberdade, uma vez que foi responsável pela emancipação dos
escravos,
a palavra democracia ganhava nova conotação social relacionada ao
republicanismo. Tal termo, inclusive, funcionou como sinônimo de República e representava
o caminho a ser trilhado pela história. Importante lembrar que parte da intelectualidade
nacional aderiu à proposta de uma “Monarquia democrática”, com a ampliação das liberdades
individuais, em uma clara expansão das idéias liberais. No entanto, a democracia não mais se
confundia e se restringia ao liberalismo, esta passava a possuir uma conotação social,
representante do regime de igualdade. Segundo Maria Tereza Chaves de Mello207, pelo
princípio democrático, “a noção de igualdade se sustenta sobre o direito de liberdade, que
205
ARARIPE, Tristão de Alencar. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1897. Tomo LX. Parte I.
Idem. p. 383
207
MELLO, Maria Tereza Chaves de. Op. Cit.
206
114
nivela os homens. Talvez seja essa a premissa que embasa o termo democracia associado à
Abolição”.
Dentre as quatro instituições aqui analisadas, O Instituto Arqueológico e Geográfico
Pernambucano foi o que retratou mais intensamente, em sua Revista, os temas a respeito do
republicanismo no Brasil. As tensões políticas presentes na capital federal caracterizavam, do
mesmo modo, a condição dos demais Estados brasileiros. Pernambuco, por exemplo, desde o
fim da escravidão até a data da instauração da República foi administrado por seis diferentes
governadores. Irrelevante afirmar que as agitações continuaram nos primeiros anos do novo
regime. Sabemos que com o fim da Monarquia uma remodelação do fazer historiográfico se
tornava imperante. Sabemos também que os Institutos Históricos, pelo seu passado de ligação
e dependência junto ao governo imperial, abalaram-se não somente do ponto de vista
ideológico, como ainda, burocrático. Portanto, O IAGP trouxe para suas publicações as
turbulências vividas pela política brasileira e a necessidade de transformar o novo Estado em
ponto de referência de um passado republicano. Em discurso proferido pelo Major José
Domingues Codeceira208 em 10 de novembro de 1890, podemos perceber essas intenções.
E quando a nação, como Lázaro, despindo a mortalha, ergueu-se do sepulcro
cheio de vida e vigor, para despertar os adormecidos no torpor da
indiferença, foi o Instituto o primeiro que procurou reivindicar para
Pernambuco a honra das suas memórias, a iniciativa que é desta nobilíssima
cidade, iniciativa de liberdade política e a veneração que se deve ao prestigio
dos que souberam morrer pelo engrandecimento da pátria209.
No Instituto Arqueológico podemos observar a grande euforia intelectual que a
instauração da república provocou. Para a maioria desses homens o dia 15 de novembro de
1889 assinalava “uma época de regeneração para a nossa pátria”
210
. Ao regime político
republicano se ligavam as idéias avançadas, de ciência e democracia. A implementação do
novo modelo de governo ratificava a definitiva chegada da civilização e do progresso no
Brasil. Se a abolição da escravidão havia dado início a esse processo, apenas a República
208
Major Domingues Codeceira, nasceu em 8 de março de 1820 na cidade de Recife. Atuou brevemente no
comércio, sendo nomeado, em 1845, capitão da Guarda Nacional. Foi admitido como sócio do Instituto
Arqueológico pernambucano sem possuir nenhuma publicação. Foi um autodidata, concluiu apenas o estudo
primário e o latim, diferente da maioria dos integrantes desse tipo de agremiação. Sua nomeação esteve
relacionada à amizade com Muniz Tavares. Debateu-se intensamente na visão de promover o pioneirismo de
Bernardo Vieira da Melo na luta pela liberdade nacional. Ao longo de sua vida, foi nomeado sócio dos Instituto
Histórico Brasileiro, de Alagoas, do Ceará e do Rio Grande do Norte. Faleceu em 10 de janeiro de 1904. Cf.
SOUZA, George Felix C. de; NEVES, Fernanda Ivo; LEÃO, Reinaldo Carneiro; GALVÃO, Tácito Cordeiro.
Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano: breve história ilustrada. Recife: IAHGP, 2010, p.
54-55.
209
CODECEIRA, José Domingues. Revista do IAHGP, Pernambuco, 1891. Exemplar nº 42, p. 313/314
210
COSTA, João Batista Regueira. Revista do IHAGP, Pernambuco, 1890. Exemplar nº 37, p. 14.
115
traria a definitiva modernidade. Para grande parte dos meios intelectuais, a emancipação da
escravidão não havia encerrada a luta pela liberdade. A estrada da libertação só chegaria ao
fim quando a República fosse instaurada e o homem fosse libertado do despotismo
monárquico. Portanto, era relativamente comum aos letrados imaginar o fim da escravidão e a
chegada do regime republicano a partir de uma linha evolutiva complementar, na qual ambos
os eventos comporiam um mesmo processo de caminho para a liberdade.
No mesmo ano de 1890 o discurso do orador, Maximiliano Lopes211 assinalava para a
“semente de esperança” que os novos tempos republicanos poderiam trazer a Pernambuco.
Após relatar uma série de arbitrariedades e desmandos por que passava os pernambucanos nos
tempos do Império, este afirma:
Acabe a república com a origem de todos esses males, conhecidos e
remediáveis, procure extirpá-los pela raiz, auxiliando a atividade individual;
procure lançar suas vistas patrióticas para o norte, e principalmente para esta
terra de legendário heroísmo e regular os seus destinos pelas lições da
historia212
Nesse trecho, conseguimos apreender não só as expectativas que o novo modelo de
organização política gerou enquanto solucionador de problemas oriundos do período imperial,
como ainda a ideia de que era necessário o incentivo a atividade individual. Como afirmou
Maria Tereza Chaves de Mello213, a instauração do regime republicano, ao trazer o fim da
sociedade de privilégios, deu início à concorrência por mérito, coroando o regime do talento.
Uma vez extirpada a escravidão do território nacional e proclamada a República, nas mentes
desses homens de letras, o Brasil se encontrava unificado enquanto povo e, por isso, do ponto
de vista jurídico, em condições de igualdade entre seus indivíduos. Tal fato apenas se fazia
verdadeiro na retórica intelectual, que o valorizou, não inocentemente, em constantes
declarações. Esse aspecto se torna claro, ao percebermos o aumento do número de
publicações que faziam uso de apelos aos “cidadãos brasileiros” ou aos “senhores da união
211
Maximiano Lopes Machado é considerado o autor da primeira obra de história da Paraíba, além de ser um dos
mais representativos e influentes historiadores do estado. Nasceu na capital da Província da Paraíba do Norte, em
7 de agosto de 1821, e faleceu em 11 de fevereiro de 1895, no Recife. Foi diplomado bacharel em Ciências
Jurídicas e Sociais, em 1844, na Faculdade de Direito de Olinda, além de ter ocupado diversos cargos como:
promotor público de Olinda, juiz municipal de Areia e deputado provincial na Paraíba, em várias legislaturas.
Foi sócio do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico
de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993
212
MACHADO, Maximiliano Lopes. Revista do IAHGP. Pernambuco, 1890. Exemplar nº 37, p.36
213
MELLO, Maria Tereza Chaves de. Op. Cit.
116
cívica” – “Srs. da União Cívica, ainda uma vez vos lembro o martírio dos nossos avós; o que
sofreram eles para legar uma pátria livre”214.
A partir do discurso de Maximiliano Lopes, notamos ainda a preocupação de chamar
atenção para a região norte do Brasil. A República, nesse sentido, daria o merecimento que
Pernambuco deveria ter recebido no Segundo Reinado, tanto do ponto de vista sócioeconômico, quanto do ponto de vista cultural. O novo regime político corrigiria os equívocos
do Império e demonstraria a importância histórica pernambucana para o desenvolvimento da
nacionalidade brasileira. A evidência desse argumento pode ser atestada na fala de outro sócio
do IAGP. Esmeraldino O. de T Bandeira215, assim demandava aos indivíduos responsáveis
pela escrita da História do Brasil.
E se alguma coisa pudéssemos hoje pedir aos nossos consócios do Instituto
seria que revissem a História Pátria em todos os pontos em que os
monarquistas ocuparam-se dos republicanos e da república: escrevessem a
verdadeira história republicana216.
Portanto, os monarquistas haviam falhado na elaboração da narrativa da nação,
principalmente no que diz respeito às origens da idéia de liberdade. Cabia a Pernambuco o
lugar de precursor do sentimento de libertação que culminou com o republicanismo no Brasil.
Afinal, segundo o Major Domingues Codeceira, toda a população sem distinção racial havia
contribuído na luta pela liberdade nacional: “Todas as classes da sociedade pernambucanas
sofreram o martírio, pela sua dedicação e patriotismo; os pardos e pretos foram surrados na
grande cadeia expostos em espetáculo público!” 217.
Domingues Codeceira foi o sócio que, sem dúvida, mais produziu a respeito da
prioridade de Pernambuco na construção de uma tradição republicana para a nação. Inúmeros
foram os trabalhos que demonstravam, detalhadamente, as condições históricas dessa
primazia pernambucana. A respeito desse cometimento, visualizamos o resgate das raízes do
republicanismo nas lutas liberais no século XIX, com especial destaque para a Revolução de
1817. No entanto, foi a guerra contra os batavos no século XVII que fez surgir a primeira
214
CODECEIRA, José Domingues. Revista do IAHGP, Pernambuco,1893. Exemplar nº 42. p. 277
Esmeraldino Olímpio Torres Bandeira nasceu em Recife no dia 27 de fevereiro de 1865. Estudou na
Faculdade de Direito do Recife onde em 1889 recebeu o grau de bacharel em ciências jurídicas e sociais.
Republicano histórico, logo ao formar-se foi oficial maior da Secretaria do Governo do Estado de Pernambuco.
Foi também deputado estadual de 1893 a 1895, prefeito do Recife de 1898 a 1902, procurador-geral da
República no governo de Prudente de Morais e ministro da Justiça do governo Nilo Peçanha. Além de professor
de direito criminal da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Faleceu no Rio de Janeiro em 1928. Cf. IHGB,
Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993
216
BANDEIRA, Esmeraldino O. de T. Revista do IAHGP, Pernambuco, 1893. Exemplar nº44, p. 150
217
CODECEIRA, José Domingues, Revista do IAHGP, Pernambuco, 1893. Exemplar nº 42. p. 278
215
117
esperança de liberdade no solo brasileiro. A partir dessa data, todos os eventos
pernambucanos convergiam para o mesmo objetivo de libertação nacional.
Para a intelectualidade local, era imprescindível galgar uma posição de destaque na
construção da História do Brasil, de maneira a engrandecer as grandes personalidades
pernambucanas. Dessa forma, tornou-se comum o resgate da heroicidade dos movimentos
locais no período da independência e aqueles relativos ao período regencial e suas revoltas. O
Instituto Arqueológico buscava, como já pudemos averiguar, inventar uma tradição que
lançava raízes nas lutas liberais, como símbolos da conquista da liberdade nacional. A
intenção era compor uma história pernambucana para republicanismo no Brasil. Quatro “datas
gloriosas” foram, nesse sentido, resgatadas por Domingues Codeceira218: 27 de janeiro de
1654, 10 de novembro de 1710, 6 de março de 1817, e finalmente o dia 24 de julho de 1824.
A primeira data referia-se à luta pela expulsão dos holandeses. Se a princípio tal
episódio nada remontava à noção de república, a construção da narrativa apontou para a
importância de tal empreendimento na manutenção da integridade do território nacional, sem
o qual não teria sido possível a realização da independência do Brasil, bem como para o
espírito de liberdade imperante no povo pernambucano, que unido expulsou o invasor. A data
de 10 de janeiro de 1710, quando da revolta dos mascates, demonstrava o pioneirismo
pernambucano em plantar a independência e a liberdade no Brasil a partir das ações contra o
governo autoritário e despótico de Sebastião de Castro e Caldas. Sob a liderança de Bernardo
Vieira de Mello, Pernambuco havia sido a primeira província, ainda no século XVIII a tentar
proclamar a República.
Já se vê, que ao pernambucano Bernardo Vieira de Mello, cabe a glória de
ter sido o primeiro que no solo americano e em Pernambuco, tentou por em
prática a independência nacional e com ela o governo republicano, pagando
com a vida na cadeia do Limoeiro os seus impulsos patrióticos 219.
O que se havia tentado no ano de 1710, foi consumado em 1817, posto que dessa vez,
de acordo com Codeceira, a “revolução foi completa”, diferentemente da Inconfidência
Mineira que “não passou de um sonho dourado de seus autores220. Na ocasião da dita
Revolução Pernambucana, a independência foi proclamada, assim como uma tentativa de
organização republicana de governo. Finalmente, a alusão à Confederação do Equador (1824)
218
Importante considerar que esse trabalho de Domingues Codeceira foi publicado na Revista do IHGB, no ano
de 1890, Tomo LIII, parte I.
219
CODECEIRA, José Domingues, Revista do IAHGP, Pernambuco, 1890. Exemplar nº 37, p. 58
220
Idem. p. 61
118
encerrava a narrativa dos fatos escolhidos pelo sócio do Instituto, na tentativa de consagrar a
Pernambuco uma posição de destaque no processo de libertação nacional. Após um criterioso
trabalho argumentativo, o autor conclui: “por onde se vê que foi Pernambuco a primeira
província que iniciou no solo brasileiro, a ideia de independência e liberdade; a primeira que
plantou essa soberba arvore no vasto continente americano, desde o século XVII” 221.
Na realidade, grande parte dos artigos e discursos de Domingues Codeceira tinha por
finalidade criticar a escolha de Tiradentes como representante nacional da liberdade, o que
por consequência situava o estado de Minas Gerais em lugar de maior destaque histórico. Nas
palavras de José Domingues Codeceira. No ano de 1893, tal sócio elabora um artigo
transcorrendo a respeito.
Se Tiradentes foi um mártir da liberdade, não foi por certo o primeiro (...).
Essa glória cabe somente aos pernambucanos, nossos avós (...). O pobre
Tiradentes a não ser no gênero de morte que lhe deram, não teria sido um
mártir, apenas passaria na história por uma vítima inocente da sua prudência
e loquacidade; visto que a Inconfidência Mineira nunca passou de uma
conjuração de poetas (...). É que aquele faltava à firmeza e têmpera de aço
dos filhos do norte222.
Tiradentes entrou para o panteão cívico como herói nacional e serviu de imagem e
modelo aos brasileiros, como analisou magistralmente José Murilo de Carvalho223. As
referências a Tiradentes por parte da historiografia foram recorrentes ainda no século XIX, e
elevavam o brasileiro à condição de mártir. Mártires eram, também, os republicanos, pois
herdeiros da condição de Tiradentes lutavam pelo fim do autoritarismo monárquico. Em vista
dessa exaltação e por ocasião do decreto que anunciava feriado nacional para o dia 21 de
abril, o Instituto Arqueológico de Pernambuco demonstrou a sua insatisfação na escolha do
personagem.
Como pernambucano e um dos mais obscuros membros deste Instituto,
levanto-me desta cadeira dando um brado de solene protesto para que esta
glória seja reivindicada a Pernambuco, quem de direito pertence, por ter sido
a primeira província que em seu solo plantou a soberba arvore da
independência brasileira, regando-a com o precioso e generoso sangue de
seus filhos224.
221
Ibidem. p. 68
CODECEIRA, José Domingues, Revista do IAHGP, Pernambuco, 1893. Exemplar nº 43, p. 275/276
223
CARVALHO, José Murilo de. Op. Cit
224
CODECEIRA, José Domingues, Revista do IAHGP, Pernambuco, 1890. Exemplar nº 37, p. 53
222
119
Cabia, segundo Codeceira, a Bernardo Vieira de Mello a condição de mártir da
liberdade em território nacional e a Pernambuco a posição de destaque na História do Brasil.
Tiradentes teria sido apenas um indivíduo comum e a Inconfidência mineira uma tentativa
falha de insurreição.
Logo na primeira edição da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
notamos diálogos entre os sócios paulistas e pernambucanos, no que concerne à definição dos
heróis para a montagem de uma tradição historiográfica na luta pela liberdade nacional. O
primeiro volume da Revista do IHGSP é composto de apenas um trabalho monográfico
extenso escrito por Domingos José Nogueira Jaguaribe Filho, dividido em nove partes e
intitulado As origens republicanas do Brasil. Trata-se de um mapeamento de todos os
movimentos, desde os tempos coloniais, responsáveis pelo amadurecimento das noções de
liberdade que frutificaram com a instauração da República no Brasil. Nele, o autor argumenta
que as ideias republicanas nocionais, nascidas em 1710 em Pernambuco sob a liderança de
Bernardo Vieira de Mello, retornaram mais fulgurantes em 1789 com a Inconfidência
Mineira, seguida da Confederação do Equador e da República do Piratinim. Nesse ponto,
critica os trabalhos do sócio do Instituto Pernambucano, Major Domingues Codeceira, por
desmerecer a figura de Tiradentes.
O escritor Major Codeceira, em seu trabalho publicado para reivindicar a
prioridade da idéia republicana no Brasil aos heróis que pagaram com a vida
a ousadia de pensar em ter uma pátria livre, é injusto para com Joaquim José
da Silva Xavier – o Tiradentes. 225
Do ponto de vista de Jaguaribe, os outros movimentos que haviam lutado pela
liberdade nacional possuíam causas menos nobres para fazê-lo, e tendo sido Tiradentes
esquartejado, merece o papel de mártir, pois ao receber a condenação de morte, soube encarála, assegurando a força das suas idéias republicanas. Nesse sentido, somente a Tiradentes
cabia a denominação de primeiro herói nacional na luta pela liberdade.
A profecia dos conjurados (...) realizou-se 97 anos depois; mas eles,
pagaram bem caro a sua tentativa, e, um deles, o mais audacioso e intrépido,
aquele que teve a honra, o valor, o heroísmo e a coragem de confessar que
era um dos conjurados e que o fim da conjuração era banir do solo da pátria
o predomínio da monarquia; aquele que não temeu e nem vacilou diante da
sentença de morte, era o Alferes Joaquim José da Silva Xavier; era o grande
e Glorioso herói da conjuração mineira.226
225
226
Revista do IHGSP, 1894, FILHO, Domingos José Nogueira Jaguaribe, p. 55
Idem. p. 43
120
A partir da leitura de ambos os textos verificamos as disputas de interesses que
permearam a montagem da história nacional. Sabemos que a figura de Tiradentes entrou para
a cultura histórica da nação como símbolo de sacrifício e liberdade. Analisar o
desenvolvimento desse processo nos ajuda a compreender os diferentes percursos trilhados
pelos homens que se incutiram da missão de criar uma História do Brasil. Por trás de uma
pretensa unidade do discurso histórico, existiram conflitos que dividiram a intelectualidade
brasileira na criação de um passado em tradição para os acontecimentos presentes no país.
Como bem afirmou José Murilo, “por ser parte ideal, parte construído, por ser fruto de um
processo de elaboração coletiva, o heroi nos diz menos sobre si mesmo, do que sobre a
sociedade que o produz”227.
As expectativas geradas pela nova organização política do Brasil permearam o
imaginário da intelectualidade nacional. Todavia, sabemos que os primeiros anos de governo,
centrados nas mãos dos militares, foram de muitas conturbações. O abandono da estrutura de
governo imperial, que perdurava há décadas, trazia um clima de insegurança institucional.
Essas turbulências e ansiedades foram, também, registradas nos círculos intelectuais
brasileiros. Antônio Adelino de Luna Freire228 assim se coloca diante dessa questão.
Por fim, senhores, em novembro de 1889 deu-se a mudança definitiva de
nossa forma de governo, sendo a monarquia, a que estávamos sujeitos desde
1500, substituída pela república federativa. Essa transição não podia deixar
de trazer consigo ingentes dificuldades e dolorosíssimas decepções. (...)
Façamos os mais ardentes e sinceros votos para que, passada esta fase de
agitação, muito natural nas reformas radicais, entre o país no período de paz
e de prosperidade, a que por suas felizes condições te direito incontestável
229
.
Mais além, no mesmo discurso, o autor nos remete a certa esperança política para o
Brasil.
“Agrupam-se todos os verdadeiros patriotas ao redor do lábaro, cujo lema
seja – eleição livre; o povo saberá escolher homens dignos e capazes de
227
CARVALHO, José Murilo de. Op. Cit. p. 67
Antônio Adelino de Luna Freire nasceu em Pernambuco no dia 21 de março de 1829. Formou-se em Bacharel
em ciências jurídicas e sociais pela antiga Faculdade de Olinda, dedicando-se à magistratura como juiz
municipal e dos Órfãos do Termo de Iguaçú, passando, em 1886 a desembargador da Relação do Ceará. Foi
também oficial maior da Secretaria da Assembléia Provincial de Pernambuco, presidente da província do Piauí,
chefe da polícia de Alagoas e por três vezes, entre 1878 e 1880, interinamente, presidente da província de Natal.
Aposentou-se como desembargador em 1890e, já na república, representou Pernambuco no Senado Federal.
Sócio benemérito e, por muitos anos, presidente do IAHGP, foi também eleito, em 1898, sócio correspondente
do IHGB. Faleceu em Recife, em primeiro de março de 1913. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de
historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993 p. 98.
229
FREIRE, Antônio Adelino de Luna. Revista do IAHGP, Pernambuco, 1893. Exemplar nº 52, p. 118.
228
121
dirigir o país; (...) o sistema representativo deixará de pertencer ao mundo
das ficções e a República Brasileira será salva 230
Nessa passagem percebemos as expectativas geradas pelo sistema representativo de
governo. O voto universal, ainda que restrito ao sexo masculino e aos indivíduos maiores de
21 anos e alfabetizados, fazia surgir novas esperanças. O povo, sem distinção de cor ou classe
social, passava a ter o poder de decisão na política. Sabemos que as contendas em relação aos
direitos de votos e ao próprio sistema eleitoral na Primeira República foram intensas. Do
mesmo modo, temos ciência de que foram criados inúmeros mecanismos com a finalidade de
alijar a população dos seus direitos políticos de cidadania, desde fins do Império quando da
crise do sistema servil. Essa “esperança no voto popular” era profundamente seletiva,
capacitando somente os bem instruídos. Nem o mais ingênuo dos homens acreditava nessa
total inclusão. Na prática, era necessário restringir o voto a uma elite política,
majoritariamente branca. No entanto, na retórica intelectual, o universalismo eleitoral
inaugurava uma nova realidade para o Brasil inserindo-o no padrão de modernidade do
mundo europeu. A exigência desse tipo de representação política era fundamental para a
chegada da civilização no país, ainda que na prática tal fato estivesse distante de ocorrer.
A proclamação da República significava, portanto, um salto civilizacional capaz de
integrar o Brasil ao restante do mundo moderno. Tal processo, assim como a abolição da
escravidão, era comumente narrado de forma a destacar a maneira pacífica como este havia
ocorrido. Na revista da agremiação cearense, publicada no ano de 1898, verificamos dois
artigos que tratam das efemérides do Ceará republicano231. O Instituto Histórico cearense,
uma vez que havia sido criado nos anos finais do Segundo Reinado, não possuía vínculos tão
estreitos com a Monarquia e, principalmente, com o imperador, quando comparado com a
associação pernambucana ou com o Instituto Brasileiro. Seus escritos, em perspectiva geral,
mantiveram-se voltados para a História do Ceará sem, no entanto, transformarem-se em
verdadeiras teses sobre a importância da tradição republicana na antiga província.
Em meio aos eventos que marcaram a vida política local após o estabelecimento da
República, notamos a renúncia dos vereadores da Câmara Municipal da cidade de Fortaleza,
no dia 4 de janeiro de 1890, em vista da mudança do regime político. Nas palavras de Luiz
Antônio Ferraz:
Os abaixo assinados vereadores da Câmara Municipal dessa capital,
considerando, depois de séria e detida reflexão, que os poderes, aliás
230
231
Idem. p. 192-193
Ambos os artigos não possuem assinatura, portanto, não foi possível localizarmos o autor
122
legítimos, que lhes foram conferidos pelo eleitorado, não tem mais razão de
existência por se acharem invalidados pela nova ordem de coisas, criada e
mantida sob o influxo pacífico e fecundo do pensar 232.
Em sua declaração, Luiz Antônio Ferraz nos mostra que a passagem do regime
político monárquico para o republicano se fez sem mais conturbações ou conflitos, atestando
a tranquilidade desse processo. Na realidade, em inúmeras passagens de artigos nas Revistas
dos Institutos Históricos verificamos esse tipo de pensamento. Na primeira publicação do
periódico do IHGSP, datada de 1896, Domingos José Nogueira Jaguaribe Filho assim se
colocava em relação às tentativas do governo imperial de abafar as vontades republicanas:
(...) não admira que o sentimento do mal produzisse a liberdade que pouco a
pouco ganhou todos os espíritos e fez com que (...) mais tarde a República
aparecesse, quase sem esforço, como um fruto maduro caindo da árvore 233.
Ao lado de visões otimistas sobre republicanismo percebemos algumas decepções, ora
mais contundentes, ora mais brandas, acompanhadas de um sentimento de esperança. Adelino
de Luna Freire, já no ano de 1898, não sem se remeter às conturbações vivenciadas na
passagem da Monarquia à República, ainda alimentava expectativas positivas em relação ao
porvir dos tempos republicanos.
Não sou otimista, senhores, bem conheço que o Brasil passa atualmente por
uma situação aflitiva, dolorosa, dificílima, inseparável das grandes transições
(...). Pois bem, senhores, conservemo-nos fortes na defesa da pátria e por
titulo algum abonemos a esperança de que um melhor futuro nos aguarda 234
O período inicial da instauração da República no Brasil deveria ser sucedido por um
tempo de estabilidade e melhoramento político. O processo turbulento por que passava o país
era visto como inescapável, comum às demais localidades que haviam vivenciado tamanha
transformação. Assim como nos países “mais desenvolvidos”, o Brasil também superaria esse
momento turbulento da História para adentrar no equilíbrio institucional.
Sabemos que as dificuldades vivenciadas nas primeiras décadas do novo regime,
principalmente a década de 1890, contribuíram para o surgimento de certa nostalgia em
relação à Monarquia235. Contudo, não visualizamos, para a primeira década da República, nos
espaços restritos dos Institutos Históricos, esse tipo de registro na narrativa historiográfica,
232
Revista do IHGAC, 1898. Tomo XII, p. 240
JAGUARIBE FILHO, Domingos José Nogueira. Revista do IHGS, São Paulo, 1896, Volume I, p.85
234
Ibidem. p. 192
235
Cf. JESUS, Ronaldo P. de, As visões da Monarquia: escravos, operários e abolicionismo na Corte. Belo
Horizonte: Editora Argumentum, 2009 e SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial: escravidão e formação da
identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. Rio de Janeiro. Editora Ponteio, 2013.
233
123
nem através de artigos monográficos, nem em enunciações discursivas. Críticas mais incisivas
foram, no entanto, constatadas. Mais uma vez, Domingues Codeceira, ao relatar os motivos
geradores da revolta de 1824 em Pernambuco, remonta à dissolução da Assembléia
Constituinte por parte do Imperador. Segundo o autor, essa ação teria aflorado os ânimos e
ocasionado a sublevação. Em uma clara comparação com a atuação da política imperial,
Codeceira, em princípios de 1892, aponta para as arbitrariedades cometidas pelo então
Presidente da República, Marechal Deodoro da Fonseca.
Hoje que são decorridos mais de 67 anos, Pernambuco manda felicitar ao
Presidente da República pelo fato escandaloso de se ter aclamado ditador,
dissolvido o Congresso Constituinte, criado uma comissão militar, imposto o
silêncio a imprensa, declarado em estado de sítio a duas cidades e finalmente
ordenado a prisão de cidadãos distintos e beneméritos236.
Tal passagem, claramente, se remete aos eventos ocorridos nas eleições de 1891,
quando Deodoro da Fonseca, eleito presidente pelo Congresso Nacional de forma indireta, em
vista da crise econômica e política e da perda de legitimidade no governo, decretou a
dissolução do Congresso237. A passagem aponta ainda para os abusos militares cometidos
contra os opositores e contra a imprensa que ficou sob intensa censura, com a decretação do
Estado de Sítio. Não podendo escapar das tensões do presente, Codeceira argumenta uma
crítica às ações políticas brasileiras por não darem o devido valor aos heróis nacionais. A
“união civil” ao invés de glorificar aqueles que lutaram pela liberdade, como Frei Caneca e os
pernambucanos haviam feito na Confederação do Equador, aplaude atos de desmandos de um
homem que, por mérito, não deveria estar ocupando o cargo de presidente da República. Mais
uma vez, percebemos a noção de que o “povo do Norte”, com destaque para Pernambuco,
merecia toda a espécie de glorificação nacional. Tal argumentativa não escapou de uma crítica
profunda às ações governamentais recentemente vivenciadas no Brasil.
No Instituto Histórico Geográfico e Antropológico do Ceara percebemos as mesmas
decepções em relação ao andamento da vida política nacional após o estabelecimento da
República. Em artigo desenvolvido por Raimundo de Farias Brito238, publicado no ano de
236
CODECEIRA, José Domingues, Revista do IAHGP, Pernambuco, 1893. Exemplar nº 42, p. 277
Não analisarei nesse trabalho as questões que envolveram Deodoro da Fonseca e a proclamação da República
brasileira, suas verdadeiras e intenções e disposições. Nesse contexto, caberia inclusive criticar a própria idéia de
“proclamação”. Para tanto conferir: Cf. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da
república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
238
Raimundo de Farias Brito nasceu em São Benedito no dia 24 de julho de 1862. É considerado um dos maiores
nomes do pensamento filosófico brasileiro e autor de uma das mais completas obras filosóficas produzidas no
país. Suas obras são voltadas à metafísica tradicional, de caráter espiritualista e são compostas por duas trilogias:
Finalidade do mundo e Ensaios sobre a Filosofia do Espírito. Faleceu no Rio de Janeiro em 16 de janeiro de
237
124
1892, em meio a uma discussão filosófica sobre as leis de associação das idéias de Herbert
Spencer, o autor assim se colocava.
“(...) estava no Rio, pensando em matricular-me na Escola Politécnica,
quando foi Proclama a república. Esse facto produziu sobre meu espírito
impressão tão profunda que cheguei a desistir de uma resolução, que
supunha inabalável. (...)
Vi que ia entrar o pais numa era de grandes
reformas e edificantes reconstruções. Acreditei que iam ser realizadas todas
as promessas sonhadas pelos propagandistas da república. Considerei tão
solene o momento que cheguei a apaixonar-me por Ela, pensando que
nenhum cidadão devia conservar-se estranho às agitações, que deviam
manifestar-se. (...) Tudo o que eu sonhava de bom vi transformado em
anarquia e desordem, perturbação e injustição. Compreendi que o
patriotismo é uma palavra sem sentidos e perdi minha fé no direito239.
Diferente da euforia e entusiasmo iniciais que a campanha republicana havia inculcado
no espírito de Farias Brito, este se deparou com um profundo desapontamento. De maneira
mais intensa que os demais autores, Farias Brito se viu desacreditado de qualquer forma de
organização política de governo e chegou a descrever seus sentimentos como uma perda de
patriotismo. A decepção o assolou de maneira tão radical, que o obrigou a afastar-se da
política. Tal ocorrido, ainda que forçosamente, foi interpretado pelo autor de maneira positiva,
posto que deslocado das tensões que assolavam o país, pode concentrar todas as suas
atividades “na sua verdadeira e natural predileção” à área do conhecimento filosófico.
Notamos, dessa forma, um afastamento entre a atividade intelectual e a política, tão
imbricadas na tradição do pensamento no século XIX.
Esse tipo de atitude, ao que parece, foi comum entre a intelectualidade que se
encontrava “ultra-engajada” na política nacional desde a década de 1880 com a campanha
abolicionista. A decepção causada pela instabilidade e desorganização dos primeiros anos da
República proporcionou um afastamento desses homens da vida pública. Tal postura, todavia,
foi fortemente criticada por indivíduos ainda esperançosos da República no Brasil. João
Monteiro240 se colocou incisivamente a esse respeito:
1917. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de
Janeiro: 1993.
239
BRITO, Farias. Revista do IHGAC, 1892, Ceará. Tomo VI, p. 1/2
240
João Pereira Monteiro nasceu no Rio de Janeiro em 16 de maio de 1845. Após estudar no Colégio Pedro II
ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo onde se bacharelou em 1872. Durante sua vida ocupou diversos
cargos, como: curador geral dos órfãos da primeira vara do Rio de Janeiro, promotor público da comarca da
capital de São Paulo, e diretor da mesma faculdade onde se formou. Publicou nas revistas de seu tempo diversos
trabalhos jurídicos. Faleceu em 18 de novembro de 1904. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores,
geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993
125
A república deve ser a suprema expressão do amor e da liberdade nacional.
Venham todos, brasileiros ou não, colaborar na magnífica empresa do
engrandecimento dessa maravilhosa terra Brasil. (...) Venham todos e,
principalmente aqueles que vão se deixando mumificar na estúpida algidez
da abstenção política 241.
Apesar de não termos encontrado artigos historiográficos ou enunciações discursivas
que demonstrassem um sentimento de nostalgia em relação à Monarquia, por parte da
intelectualidade dos Institutos Históricos, percebemos que tal atitude estava sendo registrada
por esses homens quando analisavam a sociedade. Tanto críticas à abstenção política como
censuras a esse tipo de postura que valorizava o passado monárquico foram registradas. No
mesmo discurso, novamente João Monteiro despertava a sociedade.
Trazei-os para a luta, que talvez assim se convertam outros não menos
perigosos inimigos – os desanimados – aqueles que lamurientamente vivem
a comparar o presente com o passado só pelo imbecil prazer de exaltar este
para amesquinhamento daquele 242.
E, mais uma vez, em declaração posterior: “Esta república, que nasceu aplaudida pelas
adesões de quase todos e, é hoje lapidada por muitos a quem ela acolheu e afortunou”
243
.
João Monteiro era partidário da ideia de que as responsabilidades pelos descaminhos políticos
eram, em primeiro lugar, oriundas dos próprios homens que ainda não haviam compreendido
o verdadeiro significado da liberdade. Era preciso tempo para aprender a lidar com tamanha
inovação e os brasileiros não deveriam assustar-se diante dessa característica comum a todos
os processos de transformação social.
Ainda no dia 16 de novembro de 1889, em ato realizado pelo coronel Luiz A. Ferraz,
tornava-se pública a adesão do Ceará à forma republicana de governo, sendo o mesmo coronel
nomeado chefe provisório do poder. O Instituto Histórico cearense, uma vez que havia sido
criado nos anos finais do Segundo Reinado, não possuía vínculos tão estreitos com a
Monarquia e, principalmente, com o imperador, quando comparado com a associação
pernambucana ou com o Instituto Brasileiro. Seus escritos, em perspectiva geral, mantiveramse voltados para a História do Ceará sem, no entanto, transformarem-se em verdadeiras teses
sobre a importância da tradição republicana na antiga província.
Aos letrados do Instituto do Ceará não competiu o resgate de personagens ou
acontecimentos decisivos que inculcassem a região uma posição de destaque nas lutas pela
liberdade nacional. Coube, portanto, a intelectualidade cearense transcrever nas páginas de
241
MONTEIRO, João Pereira. Revista do IHGSP, São Paulo, 1898. Volume II, p. 419
Idem.
243
Ibidem. 486/487
242
126
sua revista, alguns eventos locais que demonstrassem a sua participação nas questões políticas
que primavam pela liberdade. Foi assim, que no ano de 1900, o Instituto cearense publicou a
ata de criação de um clube republicano na cidade de Aracati, realizada no dia 10 de abril de
1870. Tal associação, ainda que não tenha chegado a existir, dando lugar a outra, organizada
em outubro de 1872, nos mostra algumas das idéias norteadoras dos partidários do
republicanismo no Brasil. Nas palavras de um dos fundadores, Júlio César da Fonseca Filho,
notamos os anseios desses indivíduos frente às noções de liberdade.
Quero a república para a minha pátria, quero-a em nome do cristianismo, em
nome do gênio da América, em nome do progresso e da civilização, em
nome da verdade e da consciência, em nome do direito e da justiça. Quero a
república sem intolerância, sem ódio, sem prejuízos, sem exclusivismos e
sem espoliações. Quero uma república cidadã e sã, pura, imaculada, virgemmãe da redenção da pátria.244
Não nos aprofundaremos nas questões relativas à aproximação intelectual e a
religiosidade. Basta lembrarmos que uma das características da tradição historiográfica
imperial era, pelo menos até a década de 1870, a sua ligação com os preceitos católicos. No
Instituto cearense, em particular, essa relação aparece em demasia nas publicações das
revistas, quando comparada às demais agremiações.
No trecho acima, Júlio César da Fonseca Filho deixa evidente a ideia de que a
República era o único modelo político condizente com as formas de pensamentos do mundo
evoluído. O progresso apontava esse caminho, era preciso trilhar a estrada que colocava fim
aos privilégios e desmandos de um poder despótico monárquico. Era preciso “desaparecer de
uma vez o único trono da América, que só tem servido até hoje de túmulo para o povo”
245
.
Competia ao Brasil seguir os passos dos países do continente americano. Os republicanos
brasileiros fizeram do contexto internacional, principalmente chileno e argentino, as bandeiras
de comparação entre a República e o regime monárquico, focando nos Estados Unidos como
exemplo a ser seguido. Ainda segundo Júlio César da Fonseca Filho: “para a nossa vitória
total, completa e definitiva se faz preciso uma espada, mas não a espada de Cesar, sempre
fatal, mas a espada de Washington que tem por missão levantar mundos” 246.
Nas páginas do Instituto Histórico de São Paulo observamos conduta parecida. No dia
4 de julho de 1895, foi organizada uma sessão cujo um dos objetivos era a elaboração de uma
homenagem ao aniversário de independência dos Estados Unidos, declamada por João
244
Coleção Barão de Studart. Revista do IHGAC, Ceará, 1900. Tomo IVX, p. 281/282
Idem. p. 281
246
Idem. p. 282
245
127
Monteiro. Em sua descrição o autor deixa clara a percepção de que o Brasil deveria seguir o
modelo de progresso despontado pelos americanos do norte, sendo eles o auge da civilização.
(...) que diríamos nós dos norte-americanos, si houvera azo para vos falar da
inteira história daquele povo, que, com quarenta e dois milhões de
habitantes, concretiza toda a escada da evolução humana em sua mais
expansiva atividade?247
Entre os círculos intelectuais se perpetuava a noção de que a tradição americana de
liberdade, iniciada no Brasil em 1822 com a independência, apenas se tornaria completa com
a chegada da República. Para grande parte desses homens, influenciados pelos pensamentos
estrangeiros sobre a modernidade, a continuidade da instituição monárquica apenas apontava
para a desarmonia do Brasil frente aos países americanos. Essa associação entre América e
liberdade aparecia não poucas vezes demonstrando a força simbólica representada pelos
Estados Unidos como sendo a terra, por excelência, do livre-arbítrio e das instituições
democráticas de governo.
Nesse contexto, percebemos um relativo afastamento entre o Brasil e o modelo
europeu de organização política. A Europa, mais afastada da realidade social e histórica
americana, ia deixando de servir de referencia de civilização e progresso, para dar lugar ao
“nosso irmão do norte”, os Estados Unidos. Se a região norte da América já vinha crescendo
em importância para a intelectualidade brasileira como detentora de distinto saber, com a
chegada da República no país, ela se transformou em referencial definitivo a ser seguido.
Ainda segundo João Monteiro
E quando na Europa a quase totalidade das nações que a povoam, aspira
ainda apropriar-se desse progresso, que (...) aqui na América ele domina
incontestado e só como tipo da igualdade cívica, e lábaro da fraternidade e
da paz. 248
Nessa enunciação também apreendemos a noção de que o continente americano
anunciava o futuro da humanidade. Se o passado de atraso marcou a história do Brasil, não
mais assinalaria sua condição. A América, saindo atrasada na corrida pela evolução, havia
alcançado e mesmo ultrapassado a Europa graças ao progresso anunciado pela chegada da
República que prometia um grandioso porvir. Uma identidade americana ia sendo forjada,
guiada pela presença dos Estados Unidos e envolta pelos princípios de liberdade. Nesse
247
248
MONTEIRO, João Pereira. Revista do IHGSP, São Paulo, 1896. Volume I, p. 140
Idem. p. 140
128
aspecto, sendo o enunciador um sócio do Instituto paulista, cabe lembrar que o modelo de
república ideal dos grandes proprietários de terra era, justamente o norte-americano, que
encarnava a definição individualista do pacto social249.
Como analisado por José Murilo de Carvalho250 havia no Brasil, pelo menos, três
correntes ideológicas que disputavam a definição da natureza do novo regime político: a) o
liberalismo americano; b) o jacobinismo francês; e c) o positivismo. Percebemos nos
Institutos Históricos ecos desses três modelos. No primeiro caso, notamos a idealização de
uma sociedade composta por indivíduos autônomos, ou seja, a liberdade americana era
centrada no predomínio dos interesses individuais. Para o jacobinismo, percebemos a utopia
da democracia direta com a participação de todos os cidadãos, sem exceção. Por fim,
verificamos as influências positivistas a partir de noções mitificadas da sociedade republicana
representante da verdadeira evolução. No caso da República brasileira, segundo José Murilo,
o modelo liberal dos Estados Unidos saiu vencedor nas batalhas políticas e ideológicas.
Nesse capítulo empreendemos um trabalho que teve por finalidade analisar de que
forma a narrativa historiográfica recebeu a notícia da instauração da República brasileira e a
partir dela desenvolveu mitos de origem de uma suposta nacionalidade republicana. Dessa
forma, os discursos historiográficos procuraram estabelecer versões para os fatos fornecendo
sentido e legitimidade a nova realidade brasileira. Vale destacar que os mitos, por serem
abertamente distorcidos, adquiriram as dimensões desejadas pelos sujeitos responsáveis pela
sua elaboração.
Em todos os trabalhos analisados a linha de argumentação dos intelectuais dos
Institutos Históricos se fez a mesma: a República era um fato inescapável da evolução da
história da humanidade. Baseado nas premissas cientificistas, a sociedade de privilégios,
invariavelmente, deveria dar lugar à democracia republicana, como um processo natural e
pacífico, fruto de um amadurecimento do pensamento da sociedade. Nada de narrativas sobre
tensões políticas e sociais nas ruas, principalmente nas grandes capitais. Na realidade não
existiram intensos debates políticos entre possíveis defensores da monarquia e republicanos.
Era como se, a partir de 1889, toda a intelectualidade dos Institutos Históricos sempre tivesse
apoiado à República como forma de governo, mostrando que “os brasileiros, patriotas e
republicanos estavam decididos a continuar a marcha evolutiva” 251.
249
CARVALHO, José Murilo de. Op. Cit. p. 22
Idem. p.22
251
Idem. 70-71.
250
129
Capítulo IV
Lembranças, esquecimentos e silêncios: As retóricas sobre a raça e
a escravidão
130
As chamadas taxonomias sociais foram sempre utilizadas em inúmeras categorias que
pretendiam definir as formas de organização do homem de acordo com o seu tempo e
expectativas envolventes. As taxonomias sobre raça foram configurações muito utilizadas ao
longo dos séculos XIX e XX, que nas últimas décadas têm sido enormemente criticadas.
Como destacou Ira Berlin252, a expressão raça, apesar de ser uma construção social, possui
características particulares, posto ser um produto da história e, portanto, não existir fora de
determinada temporalidade e lugar. Contudo, até o presente imediato não sabemos agir frente
à problemática imposta pela compreensão do que entendemos por raça e, embora, mudemos
seus significados e perspectivas, estamos sempre “atravancados” por algum tipo de
classificação social que responda nossas limitações ao lidar com o fenômeno conhecido como
humanidade. Na realidade, a raça é constante e continuamente definida e redefinida no seio da
sociedade, por homens e mulheres que vivem essas experiências. A história herdou o termo
raça, como este era instrumentalizado no século XIX, porém não importa qual a área de
estudos em que se deseja trabalhar, as classificações utilizadas continuarão a ser inexatas, pois
não refletem um objeto inflexível, mas antes um processo em constante transformação, graças
à complexidade da formação de sociedades e etnias humanas.
As menções a respeito da cor como signo de representação e distinção social têm gerado
intensos debates no seio da sociedade brasileira. Todavia, durante muito tempo, a temática
sobre a racialização das relações sociais no Brasil foi negada ou silenciada, a partir de teorias
que afirmavam a existência de uma democracia entre as raças. No entanto, um preconceito
velado e internalizado pode ser ainda mais cruel para os agentes envolvidos. No Brasil, em
decorrência das circunstâncias sociais e políticas que desencadearam a abolição da
escravidão, a questão racial permaneceu, durante longo período, embaixo do tapete, entre os
assuntos sobre os quais era melhor não tratar. Nesse sentido, todo estudo que busque
descortinar contendas referentes ao racismo, à construção da cor como elemento determinante
da desigualdade, trazendo à tona as dimensões políticas desse tema, necessita ser resgatado. É
com esta intenção que o trabalho proposto busca nas ambiguidades do processo de
desarticulação do sistema escravista e nos conflitos de interesses nele envolvido, contribuir
com as temáticas que envolvem as relações raciais no Brasil. Podemos admitir que o conceito
de raça advindo das ciências biológicas e transplantado para a vida social, ainda que perverso,
adquiriu utilidade política, não apenas para uma elite branca, mas para todos os sujeitos
envolvidos nessa dinâmica, incluindo os negros escravizados e libertos, que construíram a
252
BERLIN, Ira. De crioulo a africano: as origens atlânticas da sociedade afro-americana na América Norte
Continental. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 26, nº 2, 2004, pp. 241-256
131
partir da ideia de raça suas próprias identidades. Homens de cor, enquanto agentes de sua
própria história ressignificaram o processo de racialização. Tal afirmação, antes de legitimar a
utilização do conceito de raça, busca investigar as múltiplas formas de negociação inventadas
pelo lado escravo ou ex-escravos diante dos critérios raciais sobre os variados sentidos de
cidadania.
Nas últimas décadas do século XIX, de maneira relativamente velada, práticas
embasadas nos ideais de raça se tornaram candentes nos debates jurídicos, nas decisões
políticas, nas concepções de cidadania e nas memórias e símbolos da escravidão. Diversos
sentidos de liberdade foram construídos pelos negros levando-os a transitar na tênue fronteira
entre escravidão e a vida fora do cativeiro. Dessa forma, intencionamos apontar para a
importância da articulação da questão racial e o fim do sistema escravista no Brasil. Como
sabemos, a partir, principalmente da década de 1980, a historiografia brasileira vêm
remodelando os critérios investigativos a respeito da história da escravidão no país. Num
primeiro momento, os estudos centraram-se nas vicissitudes do escravismo enquanto sistema
e, posteriormente na figura do escravo enquanto agente histórico. Todavia, assuntos
relacionados ao processo abolicionista entrelaçado ao crescimento das desigualdades raciais
ainda necessitam de maiores investigações. Ao liberto e suas realidades de vida no pósabolição coube um papel secundário nos trabalhos historiográficos, talvez, como resultado do
embaraço de se fazer emergir questionamentos sobre o racismo e os limites da cidadania do
negro no Brasil. Dessa forma, se o Brasil se apresenta como pioneiro internacional de
pesquisas relacionadas ao período escravista e seus reveses, o percurso que envolve a história
da abolição, articulando a polissemia das questões embasadas nas ideias de raça e nas
fronteiras da liberdade, necessitam de maiores esquadrinhamentos. Dianteiros nesse aspecto
revelam-se os trabalhos norte americanos, a exemplo do historiador Eric Foner253 para o caso
dos EUA e Rebecca Scott254 para regiões açucareiras nas Américas.
Sem deixar de lado essa discussão, procuraremos compreender o que significava raça
na segunda metade do século XIX para a nação brasileira recém-formada e para aqueles que
escreviam a sua história, em meio a um contexto de ascensão de determinismos racistas
advindos do mundo ocidental. A raça e, a partir dela, a evolução humana, da maneira que era
colocada e interpretada pelos pensadores europeus ou norte-americanos, não correspondia às
expectativas de um país liberto da escravidão há pouquíssimo tempo e, de fato, miscigenado,
253
FONER, Eric. Nada Além da Liberdade: A emancipação e seu Legado. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília,
CNPQ, 1988
254
SCOTT, Rebecca, COOPER, Frederick. e HOLT, Thomas. C. Além da escravidão: investigações sobre raça,
trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
132
ansioso por encaixar-se nos moldes do progresso e da civilização. Vejamos as principais
teorias estrangeiras que chegaram com maior força no território nacional e quais eram seus
pontos de vistas fundamentais.
4.1 As teorias raciais: um breve panorama
Ao longo do século XIX as práticas científicas e seus resultados ganharam maior
destaque na conjuntura ocidental. As ciências naturais, em especial a Biologia, atravessavam
um momento de forte valorização, sobretudo a partir da teoria da evolução de Charles
Darwin. O interesse pelas Ciências Sociais também aumentou, a sociologia, enquanto
disciplina se estabeleceu e Durkheim foi seu maior representante. Tais ideias partiam
principalmente dos centros europeus e dos Estados Unidos. Com a consolidação dos métodos
explicativos das Ciências Naturais e com a divisão e classificação do homem a partir de
critérios biológicos, verificamos a introdução da problemática racial para lidar com as
semelhanças e diferenças entre os indivíduos. O termo raça foi utilizado pela primeira vez,
nos círculos acadêmicos, pelo naturalista francês, Georges Cuvier, inaugurando uma
discussão a respeito da origem das diferenças físicas entre os homens que ainda permanece
em voga no século XXI, mesmo que ressignificada. Nesse contexto, teorias de diferenças
raciais inatas que afirmavam a inferioridade do “não-branco” foram sistematizadas, de modo
que o racismo se constituiu como uma imposição teórica de difícil escapatória. Dentre as
principais escolas de teorização racial, podemos destacar pelo menos três que tiveram ecos
significativos no Brasil255.
A primeira delas, desenvolvida nos Estados Unidos entre as décadas de 1840 e 1850
denominava-se escola etnológica-biológica e partia do princípio denominado Poligenia. De
forma simplificada, tal teoria assumia que as raças humanas teriam diferenças físicas
intrínsecas porque na realidade eram constituídas por diferentes espécies. Estas espécies
dependiam das formas e do meio como haviam sido criadas e desenvolvidas. Assim como
animais pertenciam a diferentes espécies de acordo com as imposições geográficas e
climáticas, também ao Homo sapiens poderiam ser atribuídas singularidades de acordo com as
regiões as quais pertenciam. Tal escola se utilizou, para comprovação científica da
inferioridade das raças negra ou indígena, dos pressupostos e instrumentos da antropologia
física, com suas medições craneométricas que tinham por finalidade demonstrar que
255
SKIDMORE, Thomas. E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930). São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.
133
diferenças físicas congregavam diferenças intelectuais e mentais. Dessa forma, podiam
conferir preceitos científicos aos preconceitos raciais pré-existentes. Louis Agassiz foi o
maior representante dessas idéias nas América e no Brasil, onde era citado em trabalhos
nacionais no seio da intelectualidade256, demonstrando a inferioridade de negros e mulatos.
A segunda corrente de pensamento que permeou o século XIX nasceu na Europa e nos
Estados Unidos e era conhecida como “escola histórica”. Tendo como um dos seus maiores
representantes Gobineau, seus pensadores atribuíam aos processos e evidências históricas a
superioridade e diferenciação das raças. Através das diferenças físicas já comprovadas por
etnólogos e antropólogos, a escola histórica ratificava a superioridade da raça branca contando
seus feitos históricos e civilizatórios. Tal entendimento foi utilizado para justificar a
superioridade da raça anglo-saxão demonstrando sua dominação econômica, social e cultural
por todo mundo ocidental.
Por fim, temos o darwinismo social, como outra escola de preceitos racistas que
influenciou de maneira significativa o pensamento social brasileiro. A Tese de Darwin, A
origem das espécies de 1859, descartava a hipótese poligenista, uma vez que partia da noção
de que uma única espécie, através de um processo evolutivo e de mutação se perpetuava em
detrimento de outras (Monogenia). Mais uma vez, tal teoria, que provinha das ciências
naturais, foi utilizada nas ciências do homem para comprovar a superioridade da raça branca.
O darwinismo social foi empregado pelos seus partidários, que se utilizavam da antropologia
física, da frenologia, da etnografia e da fisiologia, para afirmar a evolução do homem branco
através da sua maior aptidão ao meio, seguindo o pressuposto da tese da seleção natural.
Sendo assim, os negros, bem como índios ou mestiços eram espécies incipientes que tinham
como destino acertado o gradativo desaparecimento257. Dentre os vários pensadores
darwinistas sociais devemos lembrar os nomes do inglês Hebert Spencer e do alemão Ernest
Haeckel. O Darwinismo Social deu um impulso enorme às teorias raciais, contribuindo para o
surgimento de uma variante de tal pensamento: a eugenia. Os eugenistas acreditavam no
aperfeiçoamento das raças humanas e procuravam relacionar as características físicas do
homem com o seu comportamento. Para os adeptos dessa corrente de pensamento era
imprescindível que a miscigenação fosse evitada.
Praticamente todos os pensadores brasileiros se viram confrontados por essas teorias,
bem como toda a América Latina. Tais doutrinas eram, na realidade, uma forma de inserção
256
Para o conceito de intelectual aqui utilizado. Cf. GOMES, Ângela Maria de Castro. A República, a História e
o IHGB. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2009.
257
SKIDMORE, Thomas. Op. cit
134
em um mundo civilizado e em constante progresso. Como poderia o Brasil, após 1888 sendo
uma nação juridicamente composta por “cidadãos” livres, seguindo os ares de civilização e
progresso, escapar a tais pressupostos? Fugir das idéias vindas da Europa e dos Estados
Unidos era o mesmo que navegar contra a correnteza do avanço social e moral da civilização.
Nas Revistas dos Institutos analisadas nesse trabalho podemos notar a presença relativamente
assídua de pensadores como Spencer e sua “sociologia evolutiva”, seja em artigos inteiros
dedicados a sua filosofia ou em passagens que afirmam a adoção de suas doutrinas.
A nação que se formava necessitava pensar seriamente sobre a questão racial. As
teorias racistas do exterior não respondiam a necessidade de legitimação de um “povo
brasileiro”. Novas idéias eram indispensáveis, sem, contudo escapar as máximas racistas
originadas no norte, através das quais se aplicariam as teorias evolutivas das raças num
contexto de um país multirracial. Vejamos agora como estas teorias foram transformadas,
uma vez aplicadas à realidade nacional de uma maneira geral, para posteriormente
analisarmos o que estava sendo escrito nos Institutos Históricos e, dessa forma,
compreendermos que lugar destinava a História aos não-brancos e como a questão do futuro
da Nação era encarada.
4.2 Idéias no lugar
Os anos de 1870 representam, de um lado, o marco da desmontagem do sistema
escravista brasileiro, através da Lei do Ventre Livre e, de outro, um momento de entrada de
novos ideários positivistas e evolucionistas através dos quais os modelos raciais de análise
possuíram um papel fundamental. Esse foi um momento de relativa modificação dos modelos
de narrativas históricas até então apresentados, que aos poucos iam se separando da
monarquia e do imperador 258. Nesse contexto verificamos o aparecimento e amadurecimento
de instituições de ensino como os Museus etnográficos, as faculdades de direito e medicina e
os Institutos Históricos259.
A imagem que o Brasil possuía na segunda metade do século XIX era a de um país
miscigenado. Nas visões de estrangeiros que vinham ao país era a figura do mestiço a que se
perpetuava. A hibridização racial adjetivava o Brasil como atrasado no exterior, o que
258
ALONSO, Ângela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz &
Terra, 2002.
259
SCHWARCZ, Lília. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930.
Companhia das letras, 1993.
135
claramente acarretava em um tumulto interno para aqueles homens que procuravam inserir a
nova nação no eixo orientado pelas máximas ocidentais de civilização e progresso.
Contudo, o Brasil não podia alienar-se em sua própria realidade histórica, a
miscigenação já havia ocorrido no país como conseqüência do sistema escravista. Os
intelectuais brasileiros não tinham a opção de encarar a mistura racial como uma questão sem
relevância para a sociedade. Nesse sentido, a atenção daqueles que tratavam de tal assunto
voltou-se para o mulato e, ao contrário das teorias européias de degeneração, era preciso
flexibilizar os enlaces raciais brasileiros, afim de que se pudesse dar conta de uma definição
de seu povo e, portanto, de uma história nacional. O ambiente intelectual, a partir da década
de 1870, se encontrava inundado de um otimismo evolucionista que apontava para o
andamento da barbárie à civilização como percurso inexorável. Essa positividade, junto a
confiança iluminista no progresso, caracterizou as teorias que levavam em consideração as
amalgamas raciais como aspecto singular da nacionalidade brasileira. A mestiçagem,
portanto, deixava de ser descrita apenas em seus aspectos negativos, e se tornava,
positivamente, característica fundamental da identidade nacional.
Evidentemente, surgiram teorias raciais, cientificamente respaldadas, que apontavam
para a negatividade das oportunidades previstas para as nações compostas por “raças
inferiores”. A sociedade ilustrada brasileira, não se sentia, no entanto, atrasada ou bárbara. A
eles, justamente, cabia a função de modificar tal situação, tendo em vista as luzes que
possuíam, num projeto claramente didático-pedagógico, próprio da ilustração. Descrever a
realidade social e agir para elevar a Brasil a um novo estágio de modernidade eram funções
desses homens de letras, responsáveis ainda por desenhar e compreender os aspectos
formadores da identidade nacional.
O primeiro estudioso brasileiro da etnografia que inseriu o negro e o mulato em seus
compêndios, foi o professor de medicina da faculdade da Bahia, Nina Rodrigues, responsável
por lançar os alicerces da etnologia e da medicina legal no Brasil260. Dentre seus maiores
feitos destaca-se a catalogação das origens de africanos vindos para o Brasil pelo tráfico de
escravos, procurando identificar seus grupos lingüísticos. Como fonte para o historiador, Nina
Rodrigues também reuniu fotografias e pinturas de africanos e objetos que possuíam
identificação com a África. As teorias raciais de Nina Rodrigues, assimilavam inferioridade
racial aos seus trabalhos de medicina legal. Eram, no entanto, contrarias a idéia de aceitação
do tipo mestiço como um intermediário que tenderia ao embranquecimento e, portanto ao
260
CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança
Paulista, Editora da Universidade São Francisco, 2001.
136
melhoramento intelectual. Resumidamente e de maneira simplória, Nina Rodrigues, se
inspirando em Agassiz, acreditava na noção de degeneração do tipo mestiço, na superioridade
da raça branca e que a influência da população negra era um dos motivos do atraso brasileiro.
Tais pressupostos podem ser observados ao analisarmos apenas os títulos de algumas de suas
obras,
“Antropologia
patológica”,
“Miscigenação,
degenerescência
“Degenerescências física e mental entre os mestiços nas terras quentes”.
e
crime”
e
Assim afirmava
Nina Rodrigues:
A raça negra no Brasil, por maiores que a tenham sidos os seus
incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificados que
sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão
(...) ha de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade
como povo (...)261
Também figura de destaque nesse contexto foi Silvio Romero, um dos primeiros
homens de ciência que no final do século XIX encarou a questão da mestiçagem no Brasil,
reconhecendo a sociedade como multirracial. Silvio Romero utilizou os modelos norte
americanos e europeus, adaptando-os a realidade nacional, sem, contudo descartar a
superioridade da raça branca. Expoente da geração de 1870, Silvio Romero, em diálogos
constantes com escritores românticos, criticou a falta de objetividade e de compatibilidade
entre a narrativa e o real. Sendo um dos principais autores que buscou analisar o tipo
brasileiro, Silvio Romero incluiu o negro como figura de destaque nesse processo. Tal autor
tratava, porém, de maneira diferente de Nina Rodrigues, o tema da inserção do mulato na
sociedade brasileira. Sua obra, por ser extensa, possuiu diferentes e ambíguos significados,
principalmente, no que diz respeito a sua posição teórica em relação aos mestiços. Sem
admitir a total degeneração destes, chegando em alguns momentos a demonstrar certo
otimismo em relação ao futuro do mulato, deixava explícita sua aceitação da superioridade
branca européia. Tanto que, uma de suas propostas para o embranquecimento da população
brasileira foi o incentivo a imigração, principalmente de alemães, proposta esta, não rara nos
círculos intelectuais e políticos que necessitavam lidar com a crescente questão dos “nãobrancos” na sociedade. Segundo Maria Tereza Chaves de Mello262, Silvio Romero não
entendia o mestiço a partir de uma soma de três diferentes raças, mas sim como um novo tipo
racial que compunha a raça brasileira, síntese da originalidade nacional e a base através da
qual se daria o embranquecimento. Tal visão aparece nas fontes aqui analisadas,
261
RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Cia. Editor Nacional, 1932. p. 17
MELLO, Maria Teresa Chaves de. A República Consentida: cultura democrática e científica do final do
Império.
262
137
principalmente na Revista do Instituto Pernambucano e na Revista do Instituto Paulista.
Ambas as agremiações possuem publicações que apontam para um tipo racial regional,
original tanto do ponto de vista local como nacional, demarcando, assim, a importância da
região na história nacional.
A adaptação brasileira das teses internacionais sobre raça, para além de condenar a
mistura racial, em alguns casos perpetuou a argumentação segundo a qual a miscigenação não
era um processo degenerativo do ser humano. Para grande parte dos intelectuais que lidavam
com esta temática, inclusive nos institutos históricos, o tipo mestiço era único e natural da
América, principalmente do Brasil. Admitia-se a mistura, sem, contudo, descartar a
superioridade racial do branco e a inferioridade do índio e do negro. O mestiço aparecia,
portanto, como categoria intermediária do processo evolutivo, não se constituindo em
impeditivo ao avanço civilizacional. Nesse sentido, a mestiçagem serviu como legitimação
para demonstrar que o Brasil possuía um futuro otimista em direção ao progresso racial e,
consequentemente, cultural frente aos países do norte. Essas propostas se baseavam em alguns
pressupostos que necessitam ser rapidamente aludidos. Em primeiro lugar, acreditava-se que o
cruzamento entre duas “espécies” de cores diferentes gerava naturalmente uma população
mais clara, uma vez que os genes brancos eram supostamente superiores e mais fortes. Em
segundo lugar, acreditava-se que a população negra diminuía por uma relação entre as taxas
de natalidade (supostamente menores entre os negros) e expectativa de vida. Por fim, partiam
do princípio de que era necessário incentivar a imigração, principalmente européia para o
Brasil. O objetivo, claramente, girava em torno de aumentar a porcentagem de “brancos
puros” em relação aos negros e mestiços.
Longe de serem formulações teóricas simples, essas idéias foram pensadas e
repensadas. Carregavam o peso de enquadrar o Brasil nos moldes da civilização européia,
encarando de maneira realista a questão do grande número de uma população mulata. Esses
pensadores assumiram o compromisso de transformar ou adaptar as teses racistas estrangeiras
à realidade nacional multirracial, a qual não podia mais ser descartada com o fim da
escravidão. Por isso, muitos desses homens fizeram do mestiço o distintivo da peculiaridade
nacional. A nação necessitava delimitar e entender um suposto “povo brasileiro” que contava
agora com indivíduos que, pelo menos até a década de 1870, eram encarados como
responsabilidade do mundo privado, ou seja, escravos e seus descendentes. Todas as
classificações utilizadas para diferenciar a população negra e mulata, já não respondiam a
urgência de delimitar um povo juridicamente livre e, nesse sentido, homogêneo.
138
4.3 A solução da mestiçagem entre propostas e embates
No interior do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ainda na primeira metade do
século XIX, surgiu a primeira tentativa de elaborar uma história do Brasil e de seu povo,
levando em consideração a mestiçagem racial. Tratou-se de uma proposta de organização
elaborada pelo estrangeiro bávaro Von Martius. No ano de 1840, Januário da Cunha Barbosa,
um dos fundadores do IHGB, definiu um prêmio para aquele que melhor elaborasse um plano
para se escrever a História do Brasil. O texto vencedor foi elaborado por von Martius e
publicado na Revista do IHGB em 1844. Em linhas gerais, seu trabalho propunha a
elaboração de uma historia capaz de garantir uma identidade para nação. Essa identidade
estava alicerçada na ideia da mistura racial entre brancos, negros e índios. Ainda que von
Martius valorizasse a atuação do homem branco no processo civilizador, curiosamente,
destacou em sua proposta a importância dos estudos relativos aos indígenas, com a
perspectiva de integrar à história da nação os conhecimentos por eles veiculados para a
formação de mitos de nacionalidade. O negro, todavia, obtém pouca atenção de von Martius,
o que solidifica a visão de que o negro era fator secundário no processo de amálgama racial
responsável pela formação do “tipo brasileiro”, além de servir de impedimento ao processo
civilizador.
A premiação outorgada a Martius expressa à concordância do IHGB com o projeto de
História do Brasil por ele elaborado. Apesar de vencer o concurso empreendido pelo Instituto
Histórico, Von Martius recusou a tarefa de elaborar o projeto historiográfico proposto por ele
mesmo. Em linhas gerais, no entanto, Francisco Adolfo Varnhagen corporificou as intenções
do naturalista bávaro com a publicação de História nacional.
Importante destacar que a proposta de Martius foi seletivamente aceita pela
intelectualidade brasileira representada pelos Institutos Históricos. Já em História Geral do
Brasil de Varnhagen, vislumbramos que o interesse passou a se ater na temática indígena da
divisão racial, tanto que esta ocupava um espaço considerável nas publicações das Revistas
dos Institutos. O papel do português recebeu ainda maior destaque, posto que responsáveis
pela colonização e extensão territorial do Brasil. Ao destacar a figura do indígena como
símbolo da nacionalidade tropical e a ascendência européia portuguesa na formação do “povo
brasileiro” mantinha-se o compromisso com a proposta da mistura racial. A não tematização
do elemento negro se fazia evidente. Cabia a narrativa histórica silenciar o componente
139
perturbador da ordem social civilizada, o negro e a escravidão ainda imperante no Império do
Brasil.
Na tentativa de buscar uma definição autêntica da nacionalidade brasileira, muitos
intelectuais modificaram, adequando à realidade nacional, as teorias raciais que chegavam da
Europa. Essas idéias, quando migradas para o Brasil necessitavam de uma adaptação com
relação à experiência de uma sociedade multirracial. Na revista do IHGSP comprovamos tal
afirmação “(...) as lendas e tradições que do ocidente europeu passaram para nós, sofreram a
influencia do mestiçamento indo-luso-africano”
263
. Foi assim, que a imagem do tipo mestiço
como degradado, deixou de ser um dos pressupostos deterministas utilizados por intelectuais
nacionais, como forma de solucionar um dos fatos mais claros da sociedade brasileira, a
existência de um grande número de mulatos. Em consonância, teorias que afirmavam a
superioridade do tipo branco sem, contudo, descartar os benefícios da miscigenação,
começaram a ser articuladas no território nacional. Cada vez mais, surgiam idéias sobre o
embranquecimento que afirmavam um futuro otimista para a questão da raça no Brasil,
declarando que a fusão entre o tipo branco, o negro e o índio geraria sempre um indivíduo
mais claro, mais robusto e mais apto intelectualmente.
Os Institutos Históricos obviamente não escaparam a tais discussões e nas páginas de
suas revistas encontramos fontes que nos revelam a preocupação desses homens de ciências e
letras de interpretar a questão racial no Brasil. Dentre os artigos analisados, podemos perceber
formas diversificadas da utilização do termo raça. Este era, obviamente, utilizado como uma
forma de categorização humana, contudo, a maneira como essa categorização foi empregada
se diferenciava. Com o intuito de delimitar o pertencimento e reconhecimento de um povo, a
noção de raça era dirigida ao se falar de indivíduos de determinado país ou de determinada
localidade, além disso, para o caso de Pernambuco e São Paulo a raça representava a própria
região de identificação. Notamos ainda que, não raras vezes, a expressão raça vinha
entrelaçada a noções de cor.
Voltemos-nos agora para a análise, propriamente dita, dos artigos em que achamos
relevantes contribuições para o tema racial no Brasil. Dentro do recorte temporal desta
pesquisa, que abrange a última década do século XIX, momento delicado para as instituições
aqui retratadas e para a (re)escrita da história nacional, encontramos percepções acerca do
conceito de raça e de mestiçagem que ratificam as discussões levantadas anteriormente. Seja a
partir dos pressupostos fornecidos pelos teóricos estrangeiros, aprovando a degeneração da
263
Cf. VAMPRÉ, João. Revista do IHGSP, São Paulo, 1900-1901, Volume VI, p. 84-97
140
raça mestiça, seja nos desdobramentos dessas ideias quando empregadas no panorama
brasileiro, a miscigenação não escapou das tensões e discussões entre a intelectualidade.
Neste ínterim, apreendemos disputas regionais entre os institutos aqui analisados,
principalmente entre Pernambuco e São Paulo, que argumentavam para si noções de raça que
legitimassem a participação de ambas as regiões na formação da nacionalidade e, portanto, na
história do país. As propostas apresentavam certa uniformidade, uma vez que se tratava de
compreender o “povo brasileiro” de maneira geral e uniformizadora. Dentre os artigos
analisados, concordamos que o que mais se destaca é aquele escrito por Tristão de Alencar
Araripe na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Movimento colonial da
América264, por tratar da questão da mistura de raças de maneira, ao mesmo tempo, inovadora
sem, no entanto, escapar do pensamento reinante que propunha o predomínio da raça branca.
Tal artigo demonstra como as idéias estrangeiras circulavam no território nacional, mas
necessitavam ser adaptadas, na medida em que era imperativo lidar com a nova configuração
de uma sociedade livre e multirracial.
Se não encontramos tantos artigos que analisam as noções de raça, quando
comparamos com o total de páginas aferidas no restante das revistas de cada instituição, isso
apenas sustenta o modo como à história era produzida nos Institutos Históricos, ainda de
posse da herança legada pelo período imperial. Este processo historiográfico era caracterizado
por um viés teleológico, pontuado pela preocupação constante em inserir fatos que marcassem
a inevitável “evolução dos processos históricos”, era uma história detentora de forte cunho
nacionalista e patriótico. É possível afirmar, que a grande maioria dos artigos ainda procurava
resgatar elementos de um passado colonial, tema que claramente predominava nas páginas
dessas instituições, bem como a independência nacional. A noção cristalizada de que cabia
aos futuros historiadores narrarem os acontecimentos presentes, como a abolição ou a
república, ainda era bastante presente. Contudo, o fato de encontrarmos importantes
contribuições, ou convicções, sobre a experiência racial brasileira em cada uma das revistas,
aponta para uma mudança de tom em relação ao modelo, até então preponderante, do dever do
historiador. Este, cada vez mais, passava a interpretar o Brasil e a si mesmo, a partir de novos
olhares. As experiências da abolição seguida da República traziam a tona diferentes
perspectivas de futuro para o país e, portanto, a necessidade de reformulação de um passado,
que visava a formação identitária do indivíduo e a construção da nação de maneira
264
ARARIPE, Tristão de Alencar. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1893, Tomo LVI, Parte II. 92-115.
141
conectada265. Sem mais demora, partamos para o que as fontes nos apontam a respeito dessa
contenda.
O Instituto Histórico Geográfico e Antropológico do Ceará não possui nos artigos
considerados muitas discussões a respeito da temática racial do “povo brasileiro”. Como
relatado no primeiro capítulo, a maior parte dos artigos desenvolvidos pelos sócios do IHGAC
limitaram-se a analisar aspectos da gênese do povo local, característica comum de todas as
agremiações regionais. Os narradores da história focaram seus olhares, principalmente, sobre
os povos indígenas, considerados os habitantes naturais do Ceará. As publicações resgatavam,
também, os laços identitários colonialistas como forma de demarcar a ascendência portuguesa
da população. Encontramos, todavia, uma aparente exclusão da população negra por parte do
projeto de edificação e identificação do povo cearense. A percepção de que o negro havia
desempenhado um papel secundário na composição étnico-racial do povo do Ceará, acabou
por criar dois mitos simultâneos: o de que praticamente não haviam existido escravos nessa
localidade; e um segundo que seria resultado do primeiro, o Ceará possuiria uma população
tipicamente “cabocla”, praticamente não contanto com a parcela negra da mistura racial.
Apesar da suposta negligência dos intelectuais do Instituto cearense para com os “homens de
cor” existiram registros da presença negra nas publicações de sua revista. No ano de 1889 a
RIHGAC transcreveu o trabalho do naturalista João da Silva Feijó266 que apresentava dados
demográficos da capitania no século XVIII. Em seu estudo, percebemos, claramente, quais
eram os habitantes que a compunham:
Sendo porem esta Capitania tão vasta, é de admirar a sua diminuta e
desfalecida população, que apenas montará a 150 mil habitantes de
todas as classes, e estes pela maior parte de péssima qualidade; porque
uns são índios originais do país, entes de si mesmo ineptos para se
felicitarem ou para fazerem a felicidade dos outros ou seja por
natureza e sua constituição física, ou por falta de educação ou por
algum capricho particular etc., outros são provenientes destes com os
265
KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto Editora; Editora PUC Rio, 2006.
266
João da Silva Feijó nasceu no Rio de Janeiro, por vota de 1760. Quando jovem saiu do Brasil para ingressar
na Universidade de Coimbra, onde cursou Filosofia e, posteriormente, Matemática. Chamava-se João da Silva
Barbosa, passando a adotar o sobrenome Feijó provavelmente em homenagem ao filósofo espanhol Benito
Jerônimo Feijoo. Em junho de 1783 chegou a Cabo Verde a mando de uma missão exploratória do Império
português, aí acumulou algumas funções burocráticas como o cargo de Secretário do Governo da Capitania de
Cabo Verde e de Escrivão da Matrícula da Gente da Guerra. Foi também Juiz de Órfãos e Sargento-mor da Praça
de Ribeira Grande. No ano de 1799, Feijó foi nomeado Sargento-mor das milícias da Capitania do Ceará,
acumulando também a função de naturalista. Nessa região organizou estudos sobre a fauna e a flora, bem como
os habitantes locais. Em 1822, retornou ao Rio de Janeiro, onde atuou como professor da Academia Militar.
Faleceu em 1824 nessa mesma cidade. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e
antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993
142
negros, cuja raça indígena constitui o maior numero dela, conhecido
com a vil denominação de – cabras (...)267
Em seguida continua a narração, destacando ainda a presença branca de origem
portuguesa na região. De certo modo, João da Silva Feijó descreveu a constituição do povo
cearense, categorizando-o em quatro grandes grupos étnicos, branco, indígena, negro e
mulato. Portanto, averiguamos que a ideologia da mestiçagem foi, também, valorizada pelo
Instituto Cearense para explicar as interações que deram origem ao tipo local.
No Tomo XIII da Revista do IHGAC, publicado no ano de 1899, o artigo, Sobre uma
História do Ceará268, de Capistrano de Abreu269 também destacou os tipos raciais que
compuseram a população cearense. Neste trabalho, o autor tratou rapidamente de alguns
aspectos que constituíram a história da província do Ceará recorrendo ao trabalho de outro
sócio do Instituto, João Pereira Caldas. Sua análise perpassa pelos primeiros anos de
colonização portuguesa, pela ocupação do Amazonas, pela expulsão dos franceses no
Maranhão e pela incorporação do Ceará à província de Pernambuco. A parte que nos interessa
dedica-se a povoação do território cearense. Em sua opinião as províncias da Bahia, do
Maranhão e de São Paulo, a partir do movimento bandeirante, seriam os maiores responsáveis
por tal feito. Na visão de Capistrano de Abreu, o fato de o Ceará ter se tornado uma província
pastoril trouxe uma série de conseqüências para o futuro desta localidade. Citando o trabalho
de João Pereira Caldas, afirma que este nos dá a filosofia do gado e do vaqueiro, concordando
que a “criação do gado influi sobre o modo por que se forma a população”
270
. Fazendo
referência ao trabalho relatado acima Capistrano cita-o:
“Nos sertões da Bahia, Pernambuco e Ceará, diz ele, principalmente pelas
vizinhanças do rio de S. Francisco, abundam mulatos, mestiços e pretos
forros (devia acrescentar índios mais ou menos mansos). Esta gente
267
RIHGAC, 1889, Tomo III, João da Silva Feijó, p. 22
ABREU, João Capistrano. Revista do IHAGC, Ceará, 1899. Tomo XIII, p. 22-33. Artigo anteriormente
publicado na Revista Brasileira.
269
João Capistrano de Abreu nasceu no sítio Colominjuba, em Maranguape, Ceará no dia 23 de outubro de 1853.
Completou seus primeiros estudos em Fortaleza, no Colégio de Educandos, posteriormente estudou no Ateneu
Cearense e no Seminário Episcopal do Ceará. Seu primeiro trabalho publicado foi um estudo crítico sobre
Casimiro de Abreu e Junqueira Freire no semanário “Maranguape”. Em 1875 mudou-se para o Rio de Janeiro e
seu primeiro emprego foi o de caixeiro da livraria Garnier. Lecionou paralelamente português e francês no
Externato Aquino e, em 1879 ingressou como redator na “gazeta de Notícias”. Foi nesse mesmo ano que
Capistrano de Abreu através de concurso foi admitido na Biblioteca Nacional. Por organizar a repartição que
compôs a I Exposição da história do Brasil e do respectivo catálogo (1881), recebeu o grau de cavaleiro da
Ordem da Rosa. Em 1833 Capistrano tomou posse da Cátedra de história do Brasil no Colégio Pedro II,
apresentando como tese O descobrimento do Brasil e seu desenvolvimento no século XVI. Exerceu o cargo até
1899, quando se negou a lecionar a disciplina História Universal. Foi eleito sócio efetivo do IHGB em 19 de
outubro de 1887. Faleceu no Rio de Janeiro no dia 13 de agosto de 1927. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de
historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 3, Rio de Janeiro: 1993. p. 13.
270
ABREU, João Capistrano. Revista do IHAGC, Ceará, 1899. Tomo, XIII. Op. cit. p. 29
268
143
perversa, ociosa e inútil pela aversão que tem ao trabalho da agricultura, é
muito diferente empregada nas fazendas de gado. Tem a este exercício uma
tal inclinação que procura com empenho ser nele ocupada, constituindo toda
a sua maior felicidade em merecer algum dia o nome de vaqueiro271.
Novamente averiguamos o resgate da presença do negro na região do Ceará. Tanto
nesse trecho, quanto no anterior, a invocação ao elemento negro entra de maneira pejorativa
na narrativa. Se ao homem de cor era concedido algum espaço, esse aparecia sempre do lado
negativo, corroborando as visões das teorias racistas que consideravam o tipo mestiço, negro
ou indígena como degenerado. Contudo, percebemos que, mesmo de maneira inferiorizada,
foi oferecido um lugar a esses homens na montagem da província cearense. Havia sido essa
população, negra, indígena, mulata e mestiça, “ociosa e inútil”, que ao realizar bons serviços
no trabalho com o gado, ajudou a delinear o Ceará enquanto sociedade pastoril. As noções
relativas à composição étnica do povo cearense estiveram no seio das problemáticas
desenvolvidas pelo IHGAC e a presença do negro, ainda que inferiorizado estive computada
nos artigos publicados.
Este artigo, portanto, nos conduz a conclusão de que mesmo
preocupado com os pormenores internos do Ceará, o autor exibiu uma necessidade palpável
de explicar a formação da população cearense, engendrando nessa busca noções relativas à
miscigenação, raça e diversidade étnica.
No Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano apuramos uma
preocupação bem mais latente em tentar recuperar a “verdadeira” composição étnica da
população. Praticamente em todas as sessões pronunciadas percebemos a retomada da
expulsão dos holandeses servindo sempre como tradição resgatada ou inventada para
legitimar e enfatizar a importância de Pernambuco na história nacional em prol da
independência e liberdade do Brasil. Como analisado por Evaldo Cabral de Melo272 a
narrativa popular e a narrativa histórica forjaram o mito de que a restauração pernambucana
havia unido o povo contra o estrangeiro holandês a partir de uma ação conjunta de indivíduos
de raças distintas, o que simbolizava a contribuição de diferentes etnias na luta contra os
invasores. O objetivo era construir uma identificação supra-racial representada por Fernandes
Vieira, Vidal de Negreiros, Henrique Dias e Camarão. Essa tetrarquia seria, portanto, a
especificidade racial necessária que conformaria a raça pernambucana.
271
Idem, p. 30.
MELLO, Evaldo Cabral de, Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. São Paulo: Alameda,
2008
272
144
No discurso pronunciado pelo desembargador Adelino Antonio de Luna Freire, na
sessão solene de 27 de Janeiro de 1898273 notamos a perpetuação desse tipo de narrativa. Em
sua fala Luna Freire afirma ser o povo pernambucano formado pela mestiçagem, o único
responsável pela derrota batava, lançando, dessa forma, a primeiro brado de liberdade no país.
Nós, portanto, os pernambucanos, que já não éramos portugueses e
espanhóis, africanos ou índios, porém o resultado do cruzamento de todas
essas raças; no qual predominava o elemento europeu, constituindo uma
nova nacionalidade, cumpríamos um dever sagrado, expelindo do território
que já era exclusivamente nosso, os batavos cruéis que durante vinte e quatro
anos nos privaram de nossos bens e de nossa liberdade; (...) 274.
Nesta passagem, Luna Freire nos aponta para a formação do povo pernambucano
utilizando critérios relativos à raça e a miscigenação. Em sua interpretação a mistura racial
possibilitou a constituição de uma “nova nacionalidade”, baseada na presença do negro, do
branco e do indígena. Somente um povo, fruto desse processo de miscigenação poderia,
exclusivamente, lidar com a invasão e expulsão dos holandeses do território nacional. Essa
referência ao tipo racial pernambucano, responsável por compor uma raça local única e
melhorada apareceu constantemente nos artigos e discursos do IAHGP. A idéia em torno da
raça pernambucana caracterizava a população positivamente na medida em que se
miscigenava. Sendo assim, podemos afirmar que a unicidade do povo local era garantida pela
raça.
Mais uma vez, percebemos a utilização das teorias de mistura racial inseridas nas
preocupações dos pensadores nacionais que procuravam aplicá-las à realidade brasileira.
Contudo, neste trecho, visualizamos mais claramente esta adaptação. A miscigenação não
levava automaticamente a degeneração social, ocorria o contrário. Se levarmos em
consideração a Teoria das espécies na forma em que era aplicada pelos darwinistas sociais,
assim como o foi posteriormente pela escola etnológica-biologica, notamos uma mudança de
tom essencial, a sociedade pernambucana, única capaz de vencer os holandeses se mostrava
assim, de acordo com tais teorias, a mais adaptada pelos critérios de competição e seleção do
mais forte, justamente por ser mestiça. Essa é uma inovação/transformação que só poderia ser
aplicada, na medida em que estes homens de ciências e letras demonstravam uma
preocupação com o futuro da nação e ao olharem para o presente, visualizavam claramente
uma sociedade multirracial e dessa maneira, tentavam buscar no passado uma legitimação
para esse povo que compunha a sua população.
273
274
FREIRE, Antonio Adelino de Luna. Revista do IHAGP, Pernambuco, 1898, Exemplar nº 52, p. 168-193
Idem, p. 191
145
Não podemos deixar que passe despercebido o trecho em que Luna Freire afirma a
predominância do elemento europeu no processo miscigenatório. Como afirmado
anteriormente, essas idéias estrangeiras não podiam ser de todo ignoradas, afinal a população
branca era, aos olhos dos intelectuais brasileiros, o modelo de civilização e progresso a ser
alcançado e por isso a parte privilegiada no processo de amálgama entre as raças. Legitimar a
miscigenação para tentar adaptar ao Brasil as teorias raciais, de modo que o país escapasse da
absoluta condenação do seu povo, pressupunha também que o tipo branco estivesse sempre
representado como o modelo a ser atingido. Nesse sentido, a miscigenação era uma maneira,
aparentemente paradoxal, para se buscar o embranquecimento, sendo ao mesmo tempo a
salvação e a condenação do tipo racial brasileiro.
Ainda nas páginas da Revista do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico
Pernambucano, encontramos uma visão absolutamente diversa da proposta anterior. Na Ata
da Sessão Solene do vigésimo oitavo aniversário do IAHGP
1890, apuramos o discurso do orador José Hygino
275
, datada de 27 de janeiro de
276
Cresceriam, pois as raças cruzadas minguariam a branca; a dissolução dos
costumes seria extrema, o nível da mentalidade e da moralidade desceria
consideravelmente; e ao tempo em que o sul do Brasil, como colônia
portuguesa, poderia operar a sua emancipação política e tomar lugar entre as
nações civilizadas, o norte do Brasil ofereceria o espetáculo de um povo
semibárbaro, incapaz de dirigir os seus próprios destinos··.
Ao relatar mais uma vez a expulsão batava da província de Pernambuco, José Hygino
admitiu que a presença holandesa no norte do país, por conseqüência da intensificação do
tráfico de escravos africanos para o Brasil, acabou por gerar uma mistura racial entre os
indivíduos que não tardaria em ocasionar a degeneração do “povo do norte”. Em sua opinião,
como a invasão batava havia durado aproximadamente 40 anos, os pernambucanos puderam
conter, razoavelmente, a mistura até ser realizada a retirada holandesa dos territórios
275
PEREIRA, José Hygino Duarte. Revista do IHAGP, Pernambuco, 1899, Exemplar nº 37, p. 43-45. Publicado
anteriormente no jornal O País, do Rio de Janeiro de 1888
276
José Hygino Duarte Pereira, nasceu em Recife, Pernambuco, no dia 22 de janeiro de 1857. Bacharelou-se pela
Faculdade de Direito do recife, onde, futuramente, lecionou. Durante o Império foi juiz municipal em várias
comarcas, deputado provincial e juiz substituto no Recife. Na república, foi ministro do Interior e ministro do
Supremo Tribunal Federal, sendo de sua autoria o parecer de anistia aos militares envolvidos em movimentos
revolucionários até 31 de março de 1896. Representou o Brasil como ministro plenipotenciário na II Conferência
Internacional Americana, realizada no México, onde veio a falecer pouco tempo depois no dia 10 de dezembro
de 1901. Foi um grande estudioso da história sobre o período de domínio holandês no Brasil, estando na Holanda
reunindo documentos inéditos sobre esse período, os quais, traduziu e publicou na revista do IAHGP. Sócio do
Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico, foi também, no ano de 1886, eleito sócio correspondente do
IHGB, passando a efetivo em 1884. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e
antropólogos brasileiros. Op. Cit. p. 60
146
nacionais. Nas palavras de José Hygino, caso o povo de Pernambuco não assumisse a
responsabilidade da expulsão holandesa do norte do país, a mistura racial teria sido decisiva
para inserir tal região no modelo de não civilização.
José Hygino levou em consideração principalmente o “cruzamento” das raças branca e
negra, uma vez que assegurou ser o holandês possuidor de um espírito escravista mais
desenvolvido, quando comparado com o português, trazendo para o Brasil um número
substancialmente maior de escravos. O medo em torno do aumento do aporte de negros para o
país era constante no pensamento intelectual, principalmente quando dos debates sobre a lei
contra o tráfico de escravos de 1850. Tal passagem, além de ilustrar esse tipo de pensamento,
demonstra que a percepção da barbárie africana trazida via navio negreiro era uma das
maiores preocupações em torno do elemento negro do produto racial brasileiro.
O holandês foi ainda mais escravista do que o português. A cansada frase de
que o Brasil não pode existir sem negros, foi pela primeira vez formulada
por Mauricio de Nassau em um relatório que dirigira em 1639 à Assembléia
dos Dezenove 277.
O povo pernambucano foi, portanto, o responsável por evitar que a mestiçagem do
norte do país, principalmente entre brancos e negros, se perpetuasse. José Hygino não nos
forneceu nenhuma pista de quem eram esses pernambucanos ou se eram compostos por algum
tipo de processo miscigenatório. O fato, foi que coube a esta população impedir a
degeneração de toda uma região e essa decomposição do tipo humano era oriunda,
exatamente, do enlace de diferentes tipos raciais. Aos moldes das teorias européias e norte
americanas, José Higyno resgatou termos como bárbaro e imoralidade para caracterizar o
mestiço como sinônimo de inferioridade racial, social e cultural. Diferente da percepção de
Luna Freire, de que coube a mestiçagem gerar um povo pernambucano mais apto porque
multirracial, José Hygino argumentava praticamente o contrário. Ao comparar essas duas
publicações, podemos apreender que as divergências e embates de opiniões não ocorriam
somente entre os diferentes Institutos Históricos, mas também no interior de uma mesma
agremiação. Para além das disputas regionais, a aparente homogeneidade de opiniões em cada
instituto é rompida, apesar da tentativa de silenciá-la, revelando intenções e tensões na arena
do campo intelectual.
Assim como em Pernambuco, a intelectualidade paulista procurou investigar as
origens raciais da população local, com o objetivo de encontrar uma característica única capaz
277
PEREIRA, José Hygino Duarte. Revista do IHAGP, Pernambuco. Op. cit. p. 45
147
de conceder um papel de destaque para a região no processo de formação do povo brasileiro.
No Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo ao analisarmos o discurso da sessão magna
comemorativa do quarto centenário do descobrimento do Brasil278, proferido pelo orador
Theodoro Sampaio279 encontramos uma proposta interessante de definição de um “povo
brasileiro”. Na realidade, seu trabalho seguia a perspectiva desenvolvida ainda na década de
1840 por Von Martius. Para Theodoro Sampaio, a história do Brasil e, por conseqüência, de
sua população, dependia da avaliação da sua composição étnica. Um estudo que contemplasse
a presença do negro, do branco e do indígena, num processo de interação era, portanto
imprescindível. Pela primeira vez, tratava-se de um artigo destinado a avaliar a nação como
um todo. Para além de narrar os fatos mais importantes ocorridos desde 1500, quando da
chegada portuguesa no Brasil, o autor nos apresenta uma visão sobre a elaboração da
nacionalidade brasileira a partir de critérios raciais. Logo em seu primeiro parágrafo afirmava
Theodoro Sampaio:
Estamos, pois, meus senhores, no quarto centenário de um povo que
etnicamente, ainda não se constituiu (...). Um olhar retrospectivo por esse
período de quatrocentos anos, um balanço geral do que foi o nosso viver
como colônia e como nação independente, um exame íntimo do que fomos e
do que podemos aspirar no futuro, tal como o passado e o presente nos[sic]
deixam pressentir, só nos trazem ao espírito a convicção de que somos um
povo ainda em elaboração, e que esta se vem efetuado lenta e continua pelo
concurso de três raças que se amalgamam, mas que se não fundiram ainda
num tipo único, representativo do nosso gênio, do nosso caráter e, portanto
capaz de uma orientação definida 280.
Theodoro Sampaio nos mostra claramente sua perspectiva de que não podíamos
aspirar sermos um povo unificado, possuidor de uma cultura e características sociais próprias,
uma vez que ainda nos encontrávamos em um processo de formação. Assim como na opinião
do naturalista bávaro Von Martius, comumente refletida nos círculos intelectuais, Sampaio
278
SAMPAIO, Theodoro. Revista do IHGSP, São Paulo, 1900. Volume VI, p. 98-109
Theodoro Sampaio nasceu em Santo Amaro, Bahia, no dia 7 de janeiro de 1855. Filho da escrava da Fazenda
Canabrava, Domingas da Paixão com o senhor de engenho e fidalgo cavaleiro da Casa Imperial, Francisco
Antônio Costa Pinto. Foi levado aos 9 anos de idade para São Paulo e logo depois matriculado no Colégio S.
Salvador , no Rio de Janeiro, onde ao terminar o curso, foi aproveitado como professor. Posteriormente fez o
curso da escola Politécnica, porém, era também interessado por história, literatura e filosofia. No ano de 1877,
diplomou-se e tornou-se sócio do Instituto Politécnico Brasileiro. No mesmo ano voltou a Bahia para comprar a
liberdade de sua mãe escrava. Em São Paulo iniciou sua carreira profissional, porém em 1904 retornou à Bahia
onde realizou obras de engenharia, entre elas a reconstrução da Faculdade de Medicina. Foi eleito deputado
Federal e além de membro do IHGSP, era membro do IGHBA e do IHGB do qual foi orador e presidente.
Faleceu no ano de 1937. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos
brasileiros. Vol. 3, Rio de Janeiro: 1993. p. 143
280
SAMPAIO, Theodoro. Revista do IHGSP, São Paulo. Op. cit. p. 98
279
148
considerava o tipo mestiço como uma nova categoria racial. A mestiçagem surgia, mais uma
vez, como solução para o entendimento do povo brasileiro e, portanto, da nacionalidade. A
realidade brasileira, tanto do ponto de vista físico como cultural era interpretada como
mestiça, o que garantia sua unicidade. Nesse ponto, suas afirmativas se aproximavam das
interpretações de Silvio Romero que, igualmente, percebia a nação brasileira como ainda não
constituída. Para o caso deste autor, declarava tal aspecto destacando tanto a miscigenação
como proposta de entendimento para a realidade nacional, como a partir de uma crítica sobre
a influência estrangeira nas tendências intelectuais locais.
O modo de Theodoro Sampaio perceber a formação da nacionalidade brasileira
apontava para uma perspectiva contemporânea de necessidade e urgência de garantir tal
empreendimento. Esse era o grande desafio dos intelectuais-historiadores, que após a abolição
da escravidão e a instauração do regime republicano escreviam a história da nação. Sabemos
que tais mudanças transformaram a historiografia e seu modelo imperial e que os diálogos
entre o historiador e o povo estiveram cada vez mais presentes nas revistas dos Institutos
Históricos. Porém de que povo se tratava? Com qual povo se dialogava? Essas e outras
inúmeras questões estavam presentes nas mentes desses homens que se viam na missão de
escrever uma história que, pela primeira vez, necessitava englobar os feitos de todos os
indivíduos, sem exceção. A abolição da escravidão inaugurou mais dúvidas do que supomos
imaginar, mesmo entre os intelectuais que viveram o mundo escravista e monárquico. A
tradição imperial mudara, e com ela o passado da nação. Foi através das teorias raciais que
esses intelectuais propuseram uma releitura da história dos povos.
Ainda neste mesmo discurso, Theodoro Sampaio se aproximava das proposições de
Luna Freire, que acolhia a miscigenação como fator importante para a formação do povo
pernambucano, ao falar da participação do bandeirante no descobrimento do Brasil. Theodoro
Sampaio admitia que o tipo bandeirante, por ser fruto de uma mistura racial havia permitido a
exploração e descobrimento do interior do país. A qualquer outra raça, não caberia essa
missão e seria impossível cumpri-la, somente a mistura entre o índio, o negro e o português,
formaria uma população mestiça capaz de desbravar e interiorizar as conquistas portuguesas.
Desse tipo de narrativa se originou e se fundamentou o mito bandeirante. A
historiografia paulista resgatou a imagem do “bom selvagem” rousseauneano para compor
uma das principais tradições locais, a que associava a origem do povo paulista aos primeiros
exploradores e desbravadores do solo brasileiro. Desse mito de origem nasceu à percepção de
uma raça paulista responsável por conquistar, através da força e da coragem, a natureza.
149
Fruto da miscigenação, essa tradição nos ajuda a entender como os intelectuais do Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo lidavam com a questão racial de maneira conflitante.
Só dessasenhoriado, o português seria impotente para assenhorear-se do país
onde os rigores do clima o anularam. Foi-lhe preciso o concurso lento dos
anos, para a adaptação da raça, para atrair o selvagem ao cristianismo, para
introduzir o africano cujo braço lhe desbravou o solo virgem e inculto, para a
formação de uma população mestiça, apta para enfrentar as agruras do
deserto, para que então a colônia tivesse seus limites dilatados e
desentranhadas as riquezas dos seus ignotos sertões 281.
Mais uma vez percebemos um lugar social demarcado para o mestiço na história de
São Paulo e, portanto, da nação. Um lugar, de certa maneira, bem definido, como o
desbravador. É interessante pensarmos que, ao mesmo tempo em que Sampaio lança a
assertiva de que o “povo brasileiro” ainda não se encontrava etnicamente constituído, admitia
a miscigenação desde os tempos coloniais.
(...) o homem vermelho tisnado, esbelto, musculoso de aço, ágil, sóbrio,
inteligente e corajoso, poeta rústico de uma originalidade estranha, o
jagunço, enfim como se chamou, tipo adaptado por uma mestiçagem de
quatro séculos, um habitat como mão não há outro no Brasil282.
Vale destacar, que suas descrições do tipo mestiço e, portanto, do bandeirante eram
um tanto quanto ambíguas, carregavam os preconceitos raciais que o inferiorizavam, ao
mesmo tempo, em que exaltava suas qualidades. Paradoxalmente, a mestiçagem fornecia a
resposta necessária ao processo de adaptação dos brancos aos trópicos, do mesmo modo que
explicava o processo de branqueamento. Apenas a mistura racial e, posteriormente, o total
desaparecimento do tipo mestiço, em detrimento do branco, poderia oferecer ao Brasil a
chance de constituir-se em uma nação evoluída. A mestiçagem era, portanto a marca distintiva
do povo brasileiro e sua única opção de progresso e, no entanto, sinal do atraso nacional. Essa
característica, como observamos, esteve presente na maioria dos textos analisados e apenas
ratifica a confusão e a adaptação das idéias racistas quando utilizadas para a montagem da
história do país. Ao descrever o bandeirante Theodoro Sampaio afirma;
Este outro, um mestiço já nascido nas terras da America, alma inculta,
supersticiosa e por vezes cruel, manifestando-se por uma energia indômita, e
por uma audácia desconhecida, é um caçador. (...) O seu destino é marchar à
281
282
Ibidem, p 103
Ibidem, p 107
150
aventura, sem rumo certo através das solidões nunca dantes percorridas,
devassar, descobrir conquistar 283.
Nesse claro processo de valorização da miscigenação, que negava o caráter
completamente nefasto e pejorativo destacado pelos teóricos raciais europeus e norte
americanos, grande parte dos intelectuais do IHGSP puderam afirmar uma formação híbrida
da raça paulista. Contudo, ao mesmo tempo em que as teorias raciais fundamentavam a
existência de uma raça bandeirante, resultado da mistura racial, elas em muitos pontos
menosprezavam os negros e indígenas. Verdade também que a parcela indígena que
compunha o processo de miscigenação foi valorizada. Em contra partida, o elemento negro,
ora silenciado, ora depreciado, acabou por possuir importância secundária na composição
étnica do povo paulista.
O fim da escravidão trouxe esse desafio, o de incluir no passado do país uma história
do negro. A mestiçagem foi a saída escolhida (e encontrada) pela maioria dos historiadores
para lidar com essa questão. No entanto, o próprio mestiço não possuía um lugar exato onde
pudesse ser entrelaçado na história que, até então, se havia elaborado para o país. Resgatar um
lugar para o mestiço como construtor da nação brasileira foi a maneira mais recorrente, como
percebemos, nos textos até então analisados. Seja como bandeirante ou pernambucano, o
mestiço possuía um espaço ambíguo. Assim como era ambígua a própria idéia de mestiçagem.
Dessa forma, percebemos nos textos a exaltação da mistura racial e, ao mesmo tempo, um
ideal de branqueamento que assinalava a inferioridade, a selvageria e a falta de cultura do
mestiço. Em ambos os trechos acima, podemos apurar que o bandeirante era o homem hábil,
maravilhoso, corajoso e juntamente inculto e supersticioso. No entanto, paradoxalmente, este
indivíduo se enquadrava nas teorias evolutivas, uma vez que coube a ele, a partir de um
processo de adaptação e seleção, a capacidade de explorar as terras desconhecidas.
Interessante procurar descobrir como essa ambigüidade, e esses paradoxos, inseridos em uma
mesma alocução e, mais ainda, em discursos de instituições diferentes, apareciam e
reapareciam como uma maneira de encontrar uma solução para descortinar conceitos como
“cidadão” e “povo brasileiro”.
Inserido neste contexto, partimos agora para a análise do artigo que consideramos de
maior estima para o estudo sugerido, por se tratar da proposta mais complexa de um
intelectual que, na tentativa de explicar a formação e constituição do “povo brasileiro” expôs
a sua teoria sobre a mistura de raças na Revista do IHGB. Tristão de Alencar Araripe, em seu
283
Ibidem, p. 103
151
artigo Movimento colonial da América 284, buscou uma valorização do elemento nacional e do
continente americano, destacando a miscigenação como um fator positivo para a formação
dos povos colonizados, dando-os um caráter singular.
Tristão de Alencar Araripe nasceu em Iço, no estado do Ceará no dia 07 de outubro de
1821 e faleceu no Rio de Janeiro em 04 de julho de 1908, com oitenta e seis anos. Foi
Bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo em 1845, chefe de polícia do Espírito Santo
(1856) e Presidente do Rio Grande do Sul (1876) e do Pará (1885). Além disso, foi ministro
do Supremo Tribunal de Justiça e do Conselho do Imperador nos tempos da Monarquia. Na
República, foi Ministro da Fazenda, da Justiça e, dos negócios Interiores no governo do
Marechal Deodoro da Fonseca. Pertenceu à Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e foi
eleito sócio correspondente do IHGB em 21 de outubro de 1870, passando a honorário em
1888 e a benemérito em 1898285. A trajetória de vida de Araripe merecia, sem dúvidas, um
trabalho biográfico mais aprofundado. Por hora, basta sabermos que ele foi um intelectual que
viveu e glorificou a Monarquia, mas que instaurada a república assumiu novas posições que
dialogavam com as demandas políticas e sociais do contexto histórico em que estava inserido.
Resumidamente, o artigo de Araripe trata da formação das colônias na América
capitaneadas pelas metrópoles européias, e das suas lutas pela emancipação. O texto possui
um total de vinte e quatro páginas e se encontra dividido em onze partes:
1. Países povoados e povoadores;
2. Tendências coloniais;
3. Raças humanas;
4. Sentimento de independência;
5. Movimento patriótico de 1710 em Pernambuco;
6. Tentativa separatista no Peru;
7. Conjuração Mineira;
8. Insurreição das colônias espanholas;
9. Revolução de 1817 em Pernambuco;
10. Independência do Brasil;
11. Epílogo.
284
ARARIPE, Tristão de Alencar. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1893, Tomo LVI, Parte II. 92-115.
IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro:
1993. Op. cit. p.15
285
152
Não cabe na proposta de tal trabalho analisar cada um dos assuntos de que trata o
artigo. De uma maneira geral, Tristão de Alencar Araripe demonstra como as circunstâncias
dos contextos brasileiros sempre foram direcionadas para o caminho da emancipação política
e social, estabelecendo uma comparação entre as colônias espanholas e o Brasil. Seu objetivo
principal foi demonstrar como se formulou, cresceu e completou-se o pensamento autônomo
das colônias americanas. Para tanto, Araripe formula no decorrer do texto e, mais
especificamente na sessão reservadas às “raças humanas”, sua teoria acerca da “evolução
racial” da humanidade a partir de propostas que envolveram a idéia de miscigenação.
O pressuposto básico que norteia toda a teoria de Araripe é a idéia de que o caminho
da unificação racial provém de uma aspiração “divina”. Sendo assim, Deus criou diferentes
raças que possuem a finalidade de se misturar formando apenas uma. Essas raças, que por
ocasião ainda se encontravam separadas, possuíam iguais direitos e deveres frente ao divido e
eram consideradas moralmente equivalentes.
As raças hoje parecem-se; são semelhantes; mas não são idênticas, como no
futuro serão pela amalgamação de todas elas, que ora só no sentimento moral
não se diferenciam, sujeitas às mesmas leis do Supremo Criador, que lhes
marcou iguais direitos e deveres de uns para com outros indivíduos 286.
O primeiro ponto a ser abordado por Araripe, diz respeito às formulações acerca dos
fatores biológicos da formação do indivíduo americano, que através da miscigenação estaria
mais perto de um padrão evolutivo “ideal”. Por isto, ele postula uma “lei física” para explicar
o movimento migratório, desde a Pré-história até a expansão marítima européia e as
instalações de colônias na América. Segundo Araripe, por conta da compressão territorial, a
humanidade vem migrando, sempre do leste para o oeste a partir da Ásia, num ciclo
determinado que tem por seu fim último unir todas as raças do mundo e promover o
aparecimento de uma população mais evoluída.
Todo esse movimento tem sido, para assim dizer, um movimento de
ocupação, isto é, de apossamento de terras baldias; mas a humanidade tem
outro destino a preencher, qual é o da unificação das raças para
aperfeiçoamento da espécie 287.
286
287
ARARIPE, Tristão de Alencar. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, Op. cit. p. 92
Idem, p.96
153
Tal movimento de enlace racial, segundo o autor, era sempre contínuo, de maneira a
perpetuar a existência da humanidade. As raças, por sua vez, transformavam-se buscando o
aprimoramento até a total perfeição. De acordo com Araripe, não existia um tronco comum
que tenha dado origem ao homem, este havia se originado a partir de tipos variados para então
se converter em um exemplar homogêneo. Partindo desse pressuposto, proveniente das idéias
sobre Poligenia, Araripe entendia que os movimentos coloniais eram parte de uma circulação
determinada por leis naturais que previam, como que um destino, a unificação de quatro
raças: Caucasiana ou branca, preta ou Africana, vermelha ou Americana e amarela ou
Mongólica. Para Araripe, as raças não variavam devido às diferenças climáticas como muito
se propagou, mas sim pela providência divina. Cabia, portanto, à vontade do criador definir as
categorizações e hierarquizações raciais que ainda existiriam enquanto a união dos diversos
tipos não fosse concluída.
A própria legitimação do movimento colonial denotava uma hierarquização racial
dentro do processo miscigenatório. A raça branca, possuidora de uma maior inteligência e
capacidade empreendedora tinha em suas mãos a “missão” de expandir as fronteiras e levar a
unificação das raças a cabo. De acordo com Araripe, como a raça caucasiana era considerada
a mais inteligente e por isso dominadora, ela havia transformado a lei do fluxo populacional
de leste para oeste se expandindo em todas as direções. O homem branco era, portanto, o
instrumento da operação providencial de amálgama racial. Dessa forma, após o
descobrimento da América tal fusão de raças aprimorou-se e acelerou-se. No solo americano a
raça branca se misturou com a vermelha e a negra gerando novos tipos. Estes, no entanto,
tendim, segundo Araripe, ao embranquecimento e “melhoramento” da cor.
(...) a raça branca mesclou-se no solo americano com a raça vermelha,
autóctone, e com a raça preta trazida das terras d’África. D’esta mescla ou
mestiçagem vieram produtos diversos dos tipos primitivos, e a sucessão de
tal mestiçagem entre indivíduos que místicos vai produzindo sempre
espécimes novos, melhoram na cor e aptidão, aproximando-se cada vez mais
do tipo branco, quando o não embaraça o regresso ao tipo preto ou vermelho
originário, e vai predominando o sangue da raça caucasiana 288.
A partir de tal passagem percebemos que Araripe se baseava no pressuposto da
superioridade branca, ao mesmo tempo em que afirmava que a miscigenação não gerava tipos
“degenerados”, pelo contrário, forjava uma população saudável que se tornaria cada vez mais
clara. Nesse sentido, olhando para a experiência da sociedade brasileira, Araripe optava por
288
Ibidem.
154
perceber que ao se entrecruzar o tipo branco com o negro ou índio, a tendência genética ia em
direção ao clareamento, raramente “retrocedendo na cor”. Se a miscigenação estava
produzindo indivíduos mais brancos, segundo Araripe, isso era resultado, também, de uma
escolha de parceiros mais claros por parte da população negra ou indígena e repulsa das
mulheres brancas em relação ao homem negro. Tal aspecto ficava registrado em suas
palavras: “(...) notável a tendência da mulher preta, mulata ou mameluca para o homem
branco, quando, aliás, é patente a repulsa da mulher branca contra o homem de cor” 289.
A opção pela valorização da mestiçagem, sem descartar a superioridade da raça
branca, era uma forma, para muitos intelectuais, não apenas de se adaptar às teorias
deterministas biológicas, como também, de promover uma valorização e legitimação do Brasil
enquanto nação. Foi assim, que uma imagem do Brasil como um país onde não existiam
preconceitos de raça, acabou sendo, aos poucos, construída. Grande parte da intelectualidade
brasileira assumiu que o país escapara ao preconceito de cor, justamente pelo fato, inegável,
da mistura racial. Logo, as teorias desenvolvidas no Brasil, ao mesmo tempo em que
resolviam o problema de inserção da nação em meio aos debates sobre superioridades
biológicas e raciais, também acabavam por agregar um aspecto único e favorável da
sociedade brasileira, a mestiçagem, garantindo um futuro otimista para a nação.
Uma forma comum de assegurar ao Brasil a inexistência de preconceitos de cor era a
comparação entre a realidade nacional e os Estados Unidos. Ao trazer à tona a experiência
americana de segregação racial, letrados brasileiros galgavam um aspecto próprio e benéfico
da miscigenação que confirmava a possibilidade de convívio íntimo entre as diferentes raças,
admitindo ao Brasil um status de nação desprovida de preconceitos raciais. Dessa maneira,
Araripe atestava que as Américas de um modo geral e, especialmente o Brasil, por conta dos
fatores biológicos provenientes da colonização e dos fatores sócio-políticos de sua
organização, eram naquele momento exemplos evolutivos a serem seguidos pelo resto do
mundo.
No Brasil foi o país da América, aonde chegou a fundar-se uma monarquia;
e a razão foi que nele existia a escravidão da raça africana, e como esse
estado violento significava um privilégio em favor dos escravizadores, a
monarquia achou apoio, que, aliás, desapareceu apenas a filantropia dos
Brasileiros proclamou a lei da libertação geral, a que logo seguiu-se a
proclamação da república; podendo dizer-se com verdade, que o Brasil é
hoje nos princípios e na prática da igualdade social o primeiro país do
mundo. Nele, não dominam nem privilégios políticos nem privilégio de
raça290.
289
290
Ibidem, p. 97
Ibidem, p.114
155
Nesse ponto, apreendemos algumas discussões realizadas no capítulo três desse
trabalho que associavam a manutenção do regime político monárquico ao sistema escravista,
que uma vez abolido vez surgir a República. Após esse empreendimento o Brasil emergia
como o “primeiro país do mundo”, livre tanto na política como nas relações sociais isentas de
preconceito racial, graças a micigenação.
Vale ressaltar que as teorias que aspiravam ao embranquecimento da população eram
formuladas levando em consideração um fator de extrema importância para a sociedade
brasileira recém liberta da escravidão: a imigração. A chegada de imigrantes brancos ao Brasil
proporcionaria um clareamento mais rápido e eficaz do país. Dessa forma, o incentivo a
imigração, principalmente européia, se consolidou em políticas adotadas pelo Estado
Nacional. Contudo, a chegada de europeus não conseguia suprir as necessidades de produção
de maneira satisfatória. Foi assim, que desde a segunda metade do século XIX o incentivo à
adoção de mão de obra chinesa aflorou no país. Podemos perceber, intrinsecamente, como a
crença no branqueamento, se fazia presente na proposta de importação de trabalhadores
asiáticos
291
. Mas, tal sugestão foi juntamente aclamada e depreciada pela sociedade. Muitos
indivíduos viam nos chineses trabalhadores inteligentes e industriosos enquanto outros os
chamavam de ignorantes e rebeldes.
Tristão de Alencar Araripe em uma continuação do artigo anterior, na publicação
Movimento colonial da América. Embaixada e tratado292, retoma ao processo de emancipação
da escravidão no Brasil, compreendendo que esta drástica mudança na organização sóciopolítica do país trazia a necessidade de novos elementos para constituírem a realidade social
do trabalho, principalmente rural. Araripe, ao fazer referência às circunstâncias históricas da
Lei do Ventre Livre descreve a reunião de um congresso de agricultores brasileiros, junto ao
governo imperial, cujo objetivo era “preparar os ânimos para a aceitação de trabalhadores
chineses no país”
293
. Fazendo referência ao Congresso de agricultores, Araripe concordava
que, uma vez colocada em prática a lei do ventre livre, a opção pela imigração asiática era
uma das formas de suprir a lacuna deixada pela escravidão negra.
291
As tentativas de trazer trabalhadores chineses para o Brasil fracassaram no período imperial. Foi somente após
a proclamação da República, por lei sancionada em 5 de outubro de 1902 que foi permitida a introdução da mão
de obra chinesa no Brasil.
292
ARARIPE, Tristão de Alencar. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1893, Tomo LVI, Parte II. 123-124. Tal
artigo pode ser interpretado como sendo uma continuação do anterior ainda que publicado em separado da
Revista do IHGB.
293
Idem, p.123
156
(...) advertíamos da conveniência de procurarmos a substituição das forças
empregadas na nossa produção agrícola, que assim perderia milhares de
braços aplicados à cultura de nossas terras. Ocorreu então a idéia de
buscarmos na Ásia trabalhadores, que viessem ao nosso país desenvolver a
riqueza nacional, baseada principalmente na produção agrícola294.
Para Araripe, no entanto, a escolha pela população chinesa não era um mero fator do
acaso, e sim fruto de sua essência teórica que previa a miscigenação das raças como um sinal
de crescimento evolutivo. Enquanto no Brasil existia a presença forte tanto de indígenas,
caucasianos e negros, o último fator inexistente, que completaria seu quadro teórico das
“quatro raças”, seria o elemento asiático, que através da substituição da mão de obra escrava,
ingressaria de forma massiva no país. O Chinês era, nesse sentido, o quarto elemento que
faltava ao Brasil, para que este se tornasse o auge evolutivo da humanidade, cumprindo assim
a aspiração providencial que havia esclarecido em algumas páginas anteriores.
Em vias de conclusão, podemos afirmar que Tristão de Alencar Araripe possuía suas
próprias interpretações a respeito da nação que se formava no contexto inaugurado pela
abolição da escravidão e pela instauração da República. Sua tentativa de compreender e
procurar delimitar a existência de um povo brasileiro único vai além da simples narração de
fatos históricos que amalgamados constroem a imagem do Brasil. O que percebemos foi que
Araripe não estava apenas narrando os fatos históricos passados, mas antes, procurando
compreender e delimitar o sujeito para o qual a história passava a ser destinada, num
momento específico de constituição da nação, do “povo brasileiro” e da disciplina da História
no Brasil.
Podemos perceber na argumentação de todos os autores até então analisados uma das
construções míticas mais importantes do nosso imaginário político e social: o mito das três
raças, que por conseqüência sustenta a idéia da democracia racial brasileira. As construções
míticas surgem para interpretar determinados acontecimentos sociais. Não são, nem ficção e
nem realidade. No caso, o proposto por esses autores foi uma tentativa de vencer o obstáculo
de delimitar um “povo brasileiro” que pudesse ser compreendido, tanto no próprio país quanto
no exterior, afirmando, ou não, suas potencialidades. O que conseguimos apreender, no
entanto, foi que discussões sobre miscigenação, que visavam demarcar o lugar do Brasil no
mundo, vinham ocorrendo em conseqüência de uma mudança histórica nacional
contemporânea. O que significava afirmar, que para além das discussões estrangeiras sobre
294
Ibidem
157
raça e evolução, esses intelectuais necessitavam descortinar o que acontecia no interior da
nação, sem deixar de lado a busca pelo progresso e civilização aos moldes europeus.
Demoremos um pouco mais para ponderar a respeito de um artigo, onde podemos
verificar a presença de análises etnológicas vindas principalmente dos Estados Unidos, que
davam mais importância a questões relativas à cultura do que a princípios biológicos ou
raciais na análise das sociedades. Escrito por Antônio Ferreira Pitanga295, O selvagem perante
o direito. Aspecto americano da comemoração do centenário296, argumenta sobre a
importância dos trabalhos produzidos por outro pesquisador, já falecido, Couto de Magalhães.
Para Ferreira Pitanga, as contribuições deste estudioso para as pesquisas relacionadas aos
indígenas no Brasil são de suma importância, tanto no que diz respeito aos estudos
lingüísticos, quanto à sua produção etnográfica.
Em primeiro lugar, Ferreira Pitanga nos fala da importante relação entre etnografia e
história. De acordo com o autor, poucos sãos os produtores de conhecimento histórico que
consideram os trabalhos etnográficos como relevantes. Assim, chama atenção para o diálogo
rarefeito entre os etnógrafos e historiadores. Para explicar esse ponto, o autor exemplifica que
os historiadores, mais preocupados com relatos escritos de navegadores advindos de mãos
européias e de documentos da época colonial, apenas fazem uso da etnografia quando a
necessidade se impõe sobre seu trabalho, relegando a este campo, mais uma
instrumentalização para a produção histórica, do que uma esfera autônoma de conhecimento a
ser visitada por historiadores.
Os historiógrafos, a seu turno, tendo objetivo diverso do etnografista, apenas
acidentalmente derivam de sua trajetória normal para essa ramificação
científica, que lhe é conexa. (...) Observando de longe, fundando-se nas
memórias dos navegadores do período colonial, nas tradições e documentos
daquela época, perpassa, apenas pela etnografia quando a isso impelidos pela
necessidade histórica 297.
295
Antônio Ferreira de Sousa Pitanga nasceu na Bahia no dia 2 de março de 1850 e faleceu no Rio de Janeiro em
11 de novembro de 1918, aos 68 anos. Bacharel em Direito, foi sucessivamente promotor público em ilhéus
(1872-1878) e secretário do governo da província da Paraíba, dentre outros cargos assumidos durante o império.
Na República foi Juiz do Tribunal Civil e Criminal e Desembargador da Corte de Apelação, no Rio de Janeiro.
Preocupou-se permanentemente com a criação de escolas, gabinetes de leitura, e oficinas onde se preparassem
operários. Lutou contra a pena de açoites e o trato desumano nas cadeias das províncias. Membro do Congresso
Científico Latino Americano. Entrou para o IHGB no dia 03 de agosto de 1900, como sócio efetivo, chegando a
honorário em 1910. Foi 3º vice-presidente e orador do Instituto. Integrou a Comissão de Patrimônio e a
Comissão Diretora do Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil, editado pelo Instituto
Histórico. Cf. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Op. Cit.
Volume 4, p. 136.
296
PITANGA, Antonio Ferreira de Sousa. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1900, Tomo LXIII , Parte I, p. 1938
297
Idem, p. 20
158
Podemos perceber que Ferreira Pitanga, possui alguns objetivos diferentes dos autores
até antão retratados. Ao mesmo tempo em que se colocava a favor do resgate de memórias e
tradições enquanto historiador se preocupava com os acontecimentos presentes, enquanto
etnógrafo. Seu principal objetivo no artigo era discorrer a respeito dos povos e culturas
indígenas, desde o movimento colonial, considerado por ele como “escravizador”, até a
modernidade, afirmando que a opressão portuguesa ocasionou a diminuição demográfica das
populações autóctones levando-as à beira da extinção em fins do século XIX.
A admitir-se a decrescente progressão aritmética, no fim do século cujo
alvorecer vamos comemorar com este festival patriótico, a raça
genuinamente brasileira estará de todo extinta.298
Como grande parte da intelectualidade, Ferreira Pitanga interpretava o indígena como
sendo o tipo racial natural brasileiro. Ou seja, a raça verdadeiramente nacional era a indígena
e não um povo fruto da mestiçagem. Este texto não fala de miscigenação, mas sim da
condição dos índios americanos na sociedade brasileira, que aos poucos, com o advento da
modernidade, os exterminava. Tendo em vista essa objetivo, o autor organizou um apanhado a
respeito do estado em que se encontravam os índios do Brasil, desde a chegada dos
colonizadores, passando pela promulgação da liberdade indígena no século XVIII, e pelas
reformas pombalinas, interpretadas por ele como um benefício protetor do povo indígena. No
entanto, a opressão sofrida em terras brasileiras encaminhava as populações indígenas a um
triste fim. Para salientar estes fatos, o autor não mede críticas aos empreendimentos das
bandeiras e do catecismo fanatizador dos jesuítas, julgando ambos como elementos
catalisadores da miséria nativa
Ferreira Pitanga, preocupado com os acontecimentos presentes, passa para uma
explanação acerca das dificuldades sofridas pelos indígenas no que diz respeito à integração
dessa população à realidade nacional. Por isso, propõe soluções para esta problemática, como
uma legislação que protegesse os direitos ao território indígena e a utilização dos bens
provenientes destes, assim como escolas especializadas em ensino de línguas tradicionais.
Também chamava atenção para a importância dos nativos como conhecedores do ambiente
natural brasileiro, ratificando a importância desses indivíduos para a construção da nação
desde a chegada dos europeus.
É importante perceber que as problemáticas advindas da participação indígena em
projetos nacionais, na virada do século XIX para o XX, inserem-se na própria problemática
298
Ibidem, p. 21
159
abordada por este trabalho, relacionada a uma perspectiva de formação de um “povo
brasileiro”. Neste âmbito, Pitanga se contrapõe as idéias de que a colonização pode ser
considerada como algo positivo, demonstrando um crescente desprezo pelas ações opressivas
dos homens brancos. O mais instigante é que podemos perceber em seu artigo, uma não
conectividade com as pressuposições das teorias raciais, perceptíveis em todos os trabalhos
aqui analisados. Ao invés de legitimar as teorias provenientes da Europa e dos Estados
Unidos de superioridade das raças, que se utilizavam principalmente da antropologia física,
Ferreira Pitanga chamava atenção dos seus leitores para os perigos da utilização de “chavões”
concernentes à inferioridade étnica dos povos, se aproximando das propostas etnológicas.
Assim, advertia que essas pressuposições não passavam de hipóteses e postulava que nenhum
atributo era característica particular de qualquer raça, mas sim do meio e da cultura e que,
portanto, a inferioridade indígena ganharia os contornos de mito.
Objetar-nos-ão com o chavão de sua inferioridade étnica; esse, porém, é, até
hoje, cientificamente uma hipótese; as observações antropométricas não
tiveram ainda consagração científica para servir de base a uma classificação
rigorosa das superioridades etnológicas. A compleição mongólica não
impediu que os Japoneses estejam demonstrando em nosso século aos
ortodoxos da antropologia craneometrica que a superioridade intelectual não
é partilha exclusiva de qualquer raça, mas o resultado do meio e da
cultura.299
No interior dos Institutos Históricos se travou um acirrado debate historiográfico
relativo à temática indígena. Esses argumentavam sobre a viabilidade da nacionalidade
brasileira ser representada pelo índio americano. Ou seja, a reflexão em torno da “questão
indígena” compunha parte substancial da discussão sobre a questão nacional. Apreendemos
uma percepção contrária quando tratamos das questões referentes ao negro no Brasil.
Podemos apontar para a quase inexistência de publicações preocupadas com a integração do
negro liberto no momento do pós-abolição. O indígena, apesar de ser também considerado
bárbaro e atrasado pela intelectualidade foi retratado com maior intensidade pela
historiografia na narrativa da construção da nação. Além disso, através da exposição de
Ferreira Pitanga, verificamos uma preocupação não só do ponto de vista histórico como
também em relação ao presente do indígena e sua inclusão na sociedade brasileira. Todavia,
nenhuma proposta deste tipo foi formulada em relação aos negros nas páginas das revistas dos
institutos, denotando um silenciamento em relação aos destinos dos libertos pelo 13 de maio.
299
Ibidem, p. 33
160
Se a História tinha como objetivo incitar o sentimento de amor à pátria, ao mesmo
tempo em que influenciava o processo de instrumentalização do presente e servia como uma
mestra do futuro300, para aqueles responsáveis por escrever a história do Brasil, a abolição e a
república passavam a ser parte de um projeto de civilização e progresso natural, e infalível,
que permitia a compreensão da nação. Coerentemente, o novo “contrato” entre historiador e
povo, trouxe a tona questões acerca da formação étnica brasileira, embasadas em teorias
raciais301. Com a instituição escravista extinta, o que fazer com as novas classificações
sociais, que inseriram “não cidadãos” até então qualificados como escravos, ingênuos,
libertos, tutelados, desordeiros e vadios nesse novo universo302? Dessa forma, questões sobre
raça se tornaram candentes após a abolição e no início do período republicano. Foi assim, que
inúmeros pensadores brasileiros procuraram inserir o mestiço nas teorias deterministas
importadas do continente europeu.
4.4 Pensando uma nacionalidade á brasileira
Não seria exagero afirmar que as teorias raciais propuseram uma releitura da história
dos povos. No caso brasileiro, essas novas idéias adentraram mais firmemente em um
contexto de decomposição do sistema escravista e, posteriormente, da própria Monarquia.
Tais fatos confundiram ainda mais os indivíduos eleitos para escrever a história da nação,
pois, além de lidar com a realidade que se transformava, necessitavam enfrentar as
dificuldades e achar os expedientes necessários para o racismo advindo de tais teorias e de
seus próprios preconceitos. A atividade de construir uma história do país necessitou, portanto,
contar com a presença do mestiço e do negro na sociedade. O lugar resguardado a esses
indivíduos era ainda indefinido. Se já era difícil ao Brasil, em vista de mais de trezentos anos
de escravidão, ultrapassar algumas barreiras dos preconceitos cristalizados e legitimar a
existência de um povo mestiço que não fosse sinônimo de degenerado, com o fim do sistema
escravista, esse caso tornou-se ainda mais delicado, uma vez que a sociedade passou a ser
constituída por “cidadãos” juridicamente livres. Ao mesmo tempo, e enganosamente de
maneira paradoxal, apenas o fim da escravidão permitiu que tais discussões em torno da raça
300
TURIN, Rodrigo. Uma nobre difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista em História da
historiografia, n. 2, 2009
301
SCHWARCZ, Lília. Op. cit.
302
Sobre a conquista da cidadania de negros livres ou libertos cf. GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G.
(Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação
Getulio Vargas. 2007.
161
fossem trazidas e renovadas no Brasil, pois só após a emancipação total dos escravos, o país
tornava-se apto a adentrar nos modelos de civilização e progresso que lhe permitia um dialogo
com o mundo ocidental europeu e norte americano. No entanto, muitas das perguntas que
orientaram este trabalho ainda necessitam de respostas. Na verdade, contraditoriamente, nos
parece que as respostas encontradas suscitaram ainda mais perguntas.
Quem eram esses cidadãos fundadores de uma nova nação republicana para esses
intelectuais dos Institutos Históricos que estavam escrevendo a história da formação da nação
brasileira? E mais importante, onde se localizava o negro nesse quadro geral de formação da
nação nos inscritos dessas agremiações? A questão da abolição gerou alguns artigos nas
revistas dos institutos a respeito da própria instituição escravista, das leis de libertação e
posteriormente sobre a formação do “povo brasileiro”, porém em quais termos esses negros,
cativos ou libertos, foram resgatados por esses intelectuais que conformavam e delimitavam o
campo da História e da História do Brasil? O que era entendido por cidadania por aqueles
“cidadãos-intelectuais” que participavam e escreviam sobre tal assunto? Quem eram os
“eleitos” para se pensar a formação de um “povo brasileiro” pelos autores que nessas
associações escreviam?
Perceber uma ausência do negro enquanto cativo ou liberto nos artigos publicados nas
revistas dos Institutos Históricos não foi tarefa de todo dificultosa, bastou adentrar nas fontes
pra notar o imperioso silenciamento. Somente através da formulação das teorias raciais que
procuravam a legitimação do tipo mestiço encontramos os esboços sobre a forma como o
negro passou a ser representado, não ultrapassando a barreira da miscigenação. Era como
apontado por Lília Schwarcz303, como se a libertação já bastasse, já pontuasse a sua posição
jurídica de pertencimento à sociedade brasileira. Contudo, em nossa opinião, a empreitada
mais interessante, foi tentar compreender o porquê de tal silenciamento a partir do modelo de
história elaborado por esses homens de ciências e letras, resgatando a abolição e o processo de
instauração da República como de grande importância para essa compreensão.
Possuir uma tradição era absolutamente indispensável para se fazer a história da
nação. “Sem a tradição não se formam as nacionalidades nem se desenvolve o patriotismo”
304
. A tradição era, nas palavras de João Moraes305, sócio do Instituto Histórico e Geográfico
303
SCHWARCZ. Lilian Op. cit
MORAES, João Batista de. Revista do IHGSP, São Paulo, Op cit. p.27
305
João Batista de Moraes nasceu no Rio de janeiro no dia primeiro de novembro de 1847, formando-se em
Direito pela Faculdade de São Paulo em 1868. Ingressando na política, foi deputado provincial em três
legislaturas. Na república lavrou, como Secretário, a ata da Assembléia reunida do teatro S. José. Em 1891,
como deputado constituindo, tomou parte na elaboração das leis orgânicas de São Paulo. Afastou-se da política e
tornou-se fazendeiro em Mohi-Guaçú e Pirassununga. Retornou ao Rio de Janeiro onde ocupou o cargo de
304
162
de São Paulo, a “Memória da Humanidade, sem Ela não se poderá reproduzir os períodos
históricos, nem descrever o espírito e a vida moral e intelectual dos povos” 306. Na realidade, o
grande desafio desses intelectuais que escreviam nas páginas das revistas dos Institutos
Históricos era resgatar uma tradição em que o mestiço e mais especificamente o negro
estivesse presente, sem, no entanto retratar um passado escravista recente e, portanto,
incivilizado.
Desde a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, ficava claro
que a escrita de uma história nacional implicaria também a atribuição de um lugar aos
indígenas que então ocupavam o território brasileiro. A interrogação sobre sua origem e os
debates sobre sua catequização traduziam as preocupações dos sócios do IHGB, como visto
no artigo de Ferreira Pitanga, em atribuir aos indígenas tanto um passado quanto um futuro,
ou seja, uma tradição que lhes possibilitasse sua inclusão na história nacional307. A
investigação da história indígena, assim como a definição de sua historicidade demonstrava
que uma tradição do índio brasileiro poderia e deveria ser resgatada nas páginas das revistas
dos institutos históricos. Claro, que a maneira como essa historiografia problematizou as
questões relativas aos índios americanos e os retratou de forma pejorativa suscitou e ainda
provoca levantamentos historiográficos308. No entanto, de maneira geral, para além da
participação do índio como parte integrante e vantajosa no processo de miscigenação, lhe era
concedido outro espaço, que de fato resgatava a memória das populações nativas e suas
histórias, ao mesmo tempo em que eram reproduzidas preocupações com o estado presente
deste indivíduo e de sua população. Afinal o apreço pelo passado nacional era a demonstração
indiscutível da civilização de um país. Aos moldes dos intelectuais-historiadores do final do
século XIX, que aqui estamos tratando, só um povo que preza pelo seu passado, pela história
pátria, é um povo civilizado. E porque não afirmar que o nativo, original das terras
americanas era o principal representante da nação? Como vimos essa retórica foi utilizada no
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, bem como em outras agremiações, constatando
Massas Falidas. Pertenceu ao IHGSP, à Real Sociedade Geográfica de Lisboa e outras instituições culturais. Em
1909 ingressou, também, no IHGB como sócio correspondente. Colaborou no Jornal S. Paulo, no qual publicou
Reminiscências históricas sob o pseudônimo de Erasmo. Faleceu em 29 de janeiro de 1911. Cf. IHGB,
Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Op. Cit. Volume 4. p. 13
306
MORAES, João Batista de. Revista do IHGSP, São Paulo, Op. cit. p. 44
307
TURIN, Rodrigo, « Os antigos e a nação: algumas reflexões sobre os usos da antiguidade clássica no IHGB
(1840-1860) », L’Atelier du Centre de recherches historiques [En ligne], 07 | 2011, mis en ligne le 17 avril 2011,
consulté le 31 mars 2013. URL : http://acrh.revues.org/3748 ; DOI : 10.4000/acrh.3748.
308
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Comunidades indígenas e Estado nacional: histórias, memórias e
identidades em construção (Rio de Janeiro e México – séculos XVIII e XIX). In: ABREU, Marta; GONTIJO,
Rebeca; SOIHET, Rachel (orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
163
que cabia ao indígena, ainda que de maneira pejorativa, um lugar na tradição do país e,
portanto, na sua história.
“A guiarmo-nos pelos ensinamentos da História, o progresso da humanidade é uma
função da raça.” 309, afirmava Theodoro Sampaio nas páginas da revista do Instituto Histórico
e Geográfico de São Paulo. Como demonstrado na análise das fontes, apreender que raça era
essa para o caso brasileiro não era matéria simples. Várias identidades regionais partilharam
das mesmas ansiedades e questionamentos em torno das teorias raciais estrangeiras e das
formas como seriam empregadas no Brasil, repletas de preconceitos. Assim, surgiram
propostas de formação de um povo brasileiro multirracial, este sim, de certa forma, digno de
ser estudado. Como apreendido anteriormente, não foram raras as propostas e tentativas de
delimitar a nacionalidade brasileira a partir da miscigenação, trazendo para a ordem do dia o
mestiço enquanto tipo racial unicamente nacional. Propostas de resgate das tradições desse
mestiço no passado da nação, também puderam ser percebidas. O tipo miscigenado era, em
diversos escritos, o formador do povo, desde os seus primórdios, ainda que não fosse o ideal a
ser apresentado no exterior como exemplo de civilização e progresso. Logo, este tipo
miscigenado que tinha sua função na história da nação estava destinado ao
embranquecimento, garantindo um futuro otimista para as discussões sobre raça no Brasil.
No entanto, não conseguimos em nenhum momento perceber por parte destes homens
de ciências e letras a preocupação em inserir o negro, recém-liberto, nas discussões que
atravessavam a sociedade brasileira. Sem esgotar as possibilidades de respostas, propomos
que uma tradição do negro não poderia, naquele contexto, ser resgatada e, portanto sua
história estava impossibilitada de ser narrada. É claro, que o preconceito da origem racial
desses indivíduos era marcado por uma sutil e poderosa memória social impregnada do
imaginário, ainda patriarcal e escravista, o que correlacionava a imagem do negro a do
africano, bárbaro e incivilizado, trazido ao Brasil pelo tráfico atlântico. Essas discussões a
respeito da inserção da população africana no Brasil como causadora dos males nacionais e
responsável pelo não progresso da nação já ocorria desde as propostas pelo fim do tráfico de
escravos com o tratado de 1826 e a conseqüente lei de 1831. Tais contendas permaneceram na
sociedade brasileira que assimilava a imagem do negro à barbárie africana, o que tornava
improvável, um resgate da memória desses homens na construção da nação. Mas era somente
isso que legitimava o silenciamento do negro na escrita da história do Brasil?
309
SAMPAIO, Theodoro. Revista do IHGSP, São Paulo, Op. cit. p. 99
164
Nas páginas do Instituto Histórico de São Paulo, Eduardo Prado310, afirma que o Brasil
tem um “inconsciente desprendimento da tradição”
311
. Se apenas um povo que prezava por
sua história pátria era considerado civilizado e, se a história enquanto narrativa do passado
necessitava de uma tradição que desse conta da idéia desse povo brasileiro, como então
elaborar uma história nacional aos moldes de um país em crescente progresso e civilização
que inserisse o negro em suas narrativas? O negro não podia existir na tradição, ou melhor,
fora das fronteiras da miscigenação nas narrativas do passado e nas preocupações com o
presente e o futuro, justamente porque avivar uma memória desse negro significava aludir à
história recente do passado escravista brasileiro. Este passado escravista não podia ser
resgatado, uma vez que deixava de ser fonte de autoridade para o presente. Se o passado, por
excelência, dava autoridade para um país ser considerado civilizado, o que acontece quando
ocorre a perda da capacidade do passado em oferecer lições ao presente? Nesse contexto
apreendemos o axioma de afastar a escravidão da construção de uma memória viva para o
país em formação e, portanto afastar a história do negro no Brasil.
De maneira resumida, o que entendemos é que uma tradição do índio pôde ser
resgatada, portanto seu passado legitimava a introdução dos nativos na história nacional. O
mesmo vinha ocorrendo em relação ao mestiço, para o qual, cada vez mais se forjava uma
tradição na tentativa de compreender por quem era formado o povo brasileiro. Todavia, ao
negro era legado o “não lugar”
312
, pois não se podia resgatar uma tradição do negro que o
separasse do passado escravista que deveria ser lançado ao mais profundo esquecimento313.
Relembrar a recente escravidão era o mesmo que atestar que o país não poderia ascender aos
modelos de modernidade. Portanto, para além dos preconceitos raciais que silenciavam a
presença do negro nas narrativas históricas, outro aspecto, talvez tão importante quanto, seja
procurar entender de que maneira essa história era construída e pensada por esses homens de
310
Eduardo Paulo da Silva Prado nasceu em São Paulo no dia 27 de fevereiro de 1860, filho de tradicional
família paulista. Formou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo e desde os tempos de estudante praticava o
jornalismo, colaborando no “Correio Paulistano” com artigos de críticas literárias e política internacional. Foi
adido de legação em Londres, viajando por muitos lugares e relacionando-se com intelectuais consagrados. Em
Paris entrou em contato com o barão do Rio Branco, com quem colaborou na organização de Le Brésil en 1889,
obra preparada para exposição Internacional realizada em Paris. Na Revista de Portugal publicou uma série de
artigos, sob o pseudônimo de Frederigo de S. tais artigos integrariam mais tarde seu famoso livro, Fastos da
ditadura militar no Brasil. Foi um Monarquista e em seu livro A ilusão americana combatia a política externa
dos Estados Unidos. Seu livro foi confiscado pelo governo e Eduardo prado, perseguido pela polícia, acabou por
exilar-se. Além de sócio do IHGSP, foi fundador da ABL (Cadeira nº 40, cujo patrono é o visconde do Rio
Branco). Em 1889, foi eleito sócio correspondente do IHGB. Faleceu em São Paulo em 30 de julho de 1901.
311
PRADO, Eduardo Paulo da Silva. Revista do IHGSP, São Paulo, 1896, Volume III, p. 523-534. p. 527
312
SCHWARCZ, Lília. Dos males da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira. In
GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação
no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. 2007.
313
GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Op. Cit.
165
ciências e letras e como as noções de progresso e civilização os influenciavam e os
mantinham prisioneiros dos fatos selecionados para a montagem da história nacional. Ao
negro coube algum lugar nas teorias sobre mestiçagem e nada mais.
De todo modo, a elaboração de uma escrita moderna da história nacional não deixava
de coexistir e de confrontar-se, de diferentes formas e com sentidos diversos, porque ainda se
encontrava em um processo de construção314. Avivar a memória do povo, a partir de grandes
feitos individuais continuava nas pastas do fazer história de acordo com os Institutos
Históricos. Contudo, a abolição da escravidão e a República inauguraram novas formas não só
de elaboração das narrativas históricas, como da própria percepção de indivíduo,
nacionalidade, cidadania e povo brasileiro, sendo necessário ressaltar, que as próprias noções
de povo brasileiro e cidadania, encontravam-se muito mais no campo subjetivo, sem uma
delimitação mais concisa dos elementos que na realidade as constituíam. Nesse sentido, este
capítulo procurou mapear as formas como as teorias raciais foram empregadas no contexto
nacional e nele, não apenas reinterpretadas como transformadas. Mostrando a necessidade e a
urgência dos homens encarregados de resgatar o passado da nação e de escrever a história do
país, de lidar com uma sociedade multirracial.
314
TURIN, Rodrigo, Uma nobre difícil e útil empresa... Op. cit.
166
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A prática de construção e reconstrução da memória coletiva é sempre utilizada na
montagem de narrativas sobre a história e a identidade de um povo. Portanto, a memória atua
como fonte de manipulação do poder. No final do século XIX no Brasil uma elite intelectual,
majoritariamente branca, se responsabilizou em construir as narrativas históricas da nação
forjando um passado de tradição para o país. As idéias ilustradas que defendiam noções de
liberdade e igualdade, mas que comumente assumiam tons de racismo quando tratavam das
Américas, apresentaram para a intelectualidade o desafio de valorizar o espaço brasileiro e
suas origens. Ao recém formado Estado nacional cabia elaborar uma nova identidade que o
diferenciasse dos estados europeus, recriando ou inventando fatos no passado que permitisse o
delineamento de aspectos constitutivos de um pretenso povo. Era preciso ainda incorporar à
nova identidade os diferentes grupos étnicos que coexistiam no interior do território nacional.
Portanto, nosso objetivo se constituiu em investigar as práticas de construção e desconstrução
das memórias dos negros na elaboração dos discursos históricos, refletindo sobre o lugar
desses indivíduos na história nacional.
Em meio às tensões sobre a composição da identidade cultural brasileira, permeada
por conflitos, reais e simbólicos, o campo historiográfico constituiu-se em um importante
palco de batalhas no final do século XIX. As publicações variaram entre a condenação plena
aos tipos raciais não-brancos, dentre os quais o mulato, e a valorização do mestiçamento
como forma otimista de definir a identidade do povo brasileiro. Sabemos que os intelectuais
presentes nos Institutos Históricos expunham em suas atividades profissionais atitudes
visivelmente políticas. Ao selecionarem determinados aspectos narrativos e não outros
perpetuavam as marcas que eles consideravam interessantes para a composição da
nacionalidade, em um claro processo de construção da memória coletiva.
Se o pensamento intelectual brasileiro, de fato estava voltado para o mundo europeu e
norte americano, em vista do projeto civilizatório encetado por essas nações, sabemos
também que motivações internas guiaram o modo de ver desses homens. Ao lado das teorias
européias racistas existiram, no final do século XIX, divergências quanto à avaliação do
resultado da miscigenação, nem sempre tão condenada. Junto a essas perspectivas positivas de
interpretar o enlace racial, a própria noção de branqueamento, todavia, demonstrava a
perpetuação de uma visão preconceituosa. As múltiplas teorias que lidavam com a
mestiçagem enquanto realidade social, precisavam conviver com o paradoxo de almejar uma
167
população branca para o país, e do mesmo modo, garantir a especificidade nacional no tipo
misturado. Para além dessas contendas, fica claro que a intelectualidade começava a avaliar
tanto a presença indígena, quanto a presença negra na história do país, principalmente via
miscigenação.
Pretendemos demonstrar que a intelectualidade brasileira que escrevia, vias Institutos
Históricos, criou espaços narrativos que reconheciam a presença do negro no projeto de
nação. Ao lado das teorias estrangeiras, a intelectualidade nacional soube repensar os espaços
de experiências da sociedade brasileira, francamente miscigenada, e adaptar as informações
sobre miscigenação, resgatando aspectos positivos desse processo. Como constatado, a
miscigenação fornecia uma solução paradoxal para a sociedade, pois representava, de uma só
vez, a qualidade e os males do povo brasileiro.
Percebemos objetivos claros de alguns intelectuais em investir na complicada solução
de uma versão mestiça da nacionalidade brasileira. Os processos de abolição da escravidão e
de estabelecimento da República provocaram uma espécie de urgência em lidar com a
população negra e seus descendentes, pois era preciso incorporá-los a vida e a identidade
nacional. Nesse sentido, o único caminho viável era reconhecer socialmente o negro como
fator componente da nacionalidade brasileira, ao lado do branco e do indígena, ainda que
majoritariamente via mestiçamento, pelo cruzamento das três raças. É bem verdade, contudo,
que ao indígena coube maior espaço na historiografia, principalmente como possuidor dos
traços culturais originais do tipo brasileiro. O negro era, quase sempre, lembrado como
elemento secundário do enlace racial315.
A questão da mestiçagem cultural não deve ser encarada como um fenômeno
homogêneo, as possibilidades de combinações e escolhas sobre quem e o que valorizar eram
inúmeras. Ao trabalharmos com historiadores dos Institutos Históricos, na última década do
século XIX, encontramos versões otimistas da especificidade nacional interpretada como a
miscigenação, ao lado de percepções pejorativas a respeito da mistura racial. Em seus
registros, no entanto, não se localizam apontamentos sobre as condições sociais em que o
negro se encontrava. Da mesma forma, verificamos uma inexpressiva produção a respeito do
negro enquanto componente da nacionalidade fora do lugar da miscigenação. Obviamente os
tipos raciais não-brancos dificilmente tornar-se-iam símbolos nacionais, tendo em vista as
discriminações e as ameaças que esses homens significavam ao desenvolvimento da
315
ABREU, Marta; DANTAS, Carolina Vianna. “Música popular, folclore e nação no Brasil, 1890-1920. in:
CARVALHO, José Murilo de. Nação e cidadania no Império do Brasil: novos horizontes. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2004
168
modernidade no país. Os negros, e mesmo os indígenas, naturalmente não preenchiam os
requisitos necessários pela intelectualidade brasileira e estrangeira para compor uma
identidade coletiva centrada em suas imagens. Como, então, inserir indivíduos considerados
inferiores no discurso político e ideológico na narrativa histórica da nação? Nesse sentido,
mais uma vez a mestiçagem fornecia a alternativa pra inserir esses homens na história do país.
Portanto, a definição do nacional era, obviamente, mais mestiça do que negra ou indígena316.
Notamos publicações que acentuavam a formação de um tipo racial específico a partir
da miscigenação, como no caso do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e no
Arqueológico pernambucano. Nesses momentos, as três raças fundiam-se e harmonizavam-se,
fazendo desaparecer qualquer conflito. A partir dessas pressuposições, mostramos que o
recurso ao “mito das três raças” foi recorrente desde o final do século XIX entre os
intelectuais brasileiros. Essa construção simbólica poderosa acabou por perpetuar a noção de
inexistência de tensões raciais no Brasil. Esse tipo de pensamento foi reproduzido pelos
homens de letras dos Institutos Históricos em comparações entre o estado brasileiro de
igualdade social e o Norte Americano de segregação racial. Se o Brasil, antes da abolição da
escravatura se encontrava atrasado na corrida em direção a modernidade, após a emancipação
e a chegada da República, ele havia passado a frente dos demais, e a escravidão, antes mácula
da nação, entrou para o hall do esquecimento da historia nacional.
Não nos interessa apenas apontar que as discussões que associavam nação e
mestiçagem já vinham ocorrendo no Brasil antes da clássica obra de Gilberto Freire, nem
afirmar que esses autores do final do século XIX defendiam pontos relativamente iguais
aqueles que, décadas depois, estarão presentes em Casa Grande e Senzala. Nossa intenção foi
problematizar e historicizar um debate intelectual que consagrou a mestiçagem como chave
de leitura para o entendimento da nação. Os círculos intelectuais brasileiros ofereceram um
caminho ao debate sobre os negros, justamente em um momento decisivo de demarcação de
direitos políticos do novo regime republicano e, portanto, da própria definição dos critérios de
cidadania. Cabia a intelectualidade nacional redefinir os critérios avaliativos de seleção da
memória e demarcar um lugar para o negro na narrativa histórica do país. A abolição da
escravidão e a proclamação da República inauguraram novos espaços de experiências sociais
que contavam com a presença de indivíduos juridicamente iguais. A antiga demarcação entre
escravos e cidadão, já não respondia as exigências da sociedade, que desde a década de 1880
316
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Comunidades indígenas e Estado nacional: histórias, memórias e
identidades em construção (Rio de Janeiro e México – séculos XVIII e XIX). In: ABREU, Marta; GONTIJO,
Rebeca; SOIHET, Rachel (orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
169
vinha adquirindo nova complexidade. Ao raiar os primeiros anos do novo regime político era
imperativo que a delimitação do povo brasileiro se tornasse mais concisa e menos retórica. Os
Institutos Históricos possuíram papel fundamental nesse processo pelo menos até a década de
1930, quando foram perdendo espaço para novas instituições de saber, principalmente as
universidades.
Sabemos que o Estado Novo e seus ideólogos trouxeram para si os méritos de criação
de uma nacionalidade baseada no mestiçamento racial de índios, negros e brancos, unificando
noções políticas e culturais em torno da idéia de um povo mestiço. Nesse sentido, o governo
Vargas passou a representar um momento de ruptura com o passado cultural brasileiro através
da música, do carnaval ou das manifestações folclóricas. A Primeira República foi
menosprezada pelos historiadores que buscaram entender a formação da nacionalidade
brasileira e as tensões sociais e culturais que esse empreendimento representou. Sendo assim,
o trabalho proposto, buscou afirmar o contexto histórico dos primeiros anos republicanos no
Brasil como de intensa importância para se pensar a formação do povo brasileiro.
170
BIBLIOGRAFIA E FONTES
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Tomo LV Parte I (1º e 2º semestres) – 1892
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Tomo LIV Parte I (1º e 2º semestres) – 1891
Tomo LIV Parte II (3º e 4º semestres) – 1891
Tomo LIII Parte I (1º e 2º semestres) – 1890
Tomo LIII Parte II (3º e 4º semestres) – 1890
Tomo LII Parte I (1º e 2º semestres) – 1889
Tomo LII Parte II (3º e 4º semestres) – 1889
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Tomo LII Parte II (3º e 4º semestres) – 1888
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Revista do IHGAC
Tomo II (1888)
Tomo III (1889)
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