Abolição e pós-emancipação nos Institutos - PPGHC
Transcrição
Abolição e pós-emancipação nos Institutos - PPGHC
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA LÍVIA DE LAURO ANTUNES POR UMA MEMÓRIA DA NAÇÃO: Abolição e pós-emancipação nos Institutos Históricos (uma abordagem comparada). Rio de Janeiro 2014 LÍVIA DE LAURO ANTUNES POR UMA MEMÓRIA DA NAÇÃO: Abolição e pós-emancipação nos Institutos Históricos (uma abordagem comparada). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC), Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História Comparada. BANCA EXAMINADORA _________________________________________________ Prof. Dr. Flávio dos Santos Gomes (Orientador) (PPGHC/ UFRJ) __________________________________________________ Prof. Dr. Marcelo Mac Cord (Departamento de Pedagogia/ UFF) ___________________________________________________ Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese (PPGHC/ UFRJ) SUPLENTES ___________________________________________________ Prof.Dr. Carlos Eduardo de Araújo Moreira (UNIABEU) ____________________________________________________ Prof.Dr.Victor Andrade de Melo (UFRJ) Rio de Janeiro, 2014 A636p Antunes, Lívia de Lauro Por uma memória da Nação: abolição e pós-emancipação nos Institutos Históricos (uma abordagem comparada) / Lívia de Lauro Antunes – 2014. xxx f. (Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de História. IH. Rio de Janeiro, 2014. Orientador: Flávio dos Santos Gomes 1. Escravidão - Brasil – História 2. Brasil – História – Séc. XIX. 3. Abolição 4. República 5. Memória Social I. Gomes, Flávio dos Santos (orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III. Título CDD 981.04 IV Ao meu pai João Francisco de Oliveira Antunes V Agradecimentos Primeiramente agradeço a Deus. Não explicarei meus motivos, nossas conversas são particulares. Não vou estabelecer ordem de importância nos meus agradecimentos. No entanto, faço questão de registrar minha família em primeiro lugar. Agradeço, portanto aos meus pais, pelo apoio de uma vida inteira, moral, intelectual, financeiro e, principalmente, pelo amor incondicional. Às minhas irmãs, Gabriela de Lauro Antunes e Cecília de Lauro Antunes por dividirem comigo a responsabilidade de amarmos umas as outras sem que as possíveis desavenças do caminho nos afastem. Faço um agradecimento especial ao meu eterno companheiro, Vitor Luiz Silva de Almeida, por quatro anos de amor e carinho sem iguais, não fosse por você eu não terminaria essa dissertação. Marcelo de Oliveira Sales, também merece ser destacado, não apenas por ter corrigido todo meu trabalho, apesar de ser um biólogo, mas por guardar o amor mais sincero que eu carrego no coração. Agradeço a Tais Prôa, pela amizade mais bonita e verdadeira que alguém poderia ter. Agradeço a Jeffrei Hunter Brandão Rangel pelos momentos de carinho, atenção e companheirismo. Por todas as lições aprendidas, não fossem elas eu, provavelmente, não estaria concluindo esse trabalho. Agradeço ao meu orientador, Flávio dos Santos Gomes pela ajuda profissional dos dois últimos anos, palpites, sugestões, livros, dissertações. Muito obrigada. Agradeço aos meus amigos, todos eles. Desde os que não sabem o que isso significa, até aqueles que abrirão a dissertação e logo procurarão por essa página. Tentarei, portanto, me expressar em nomes. Em primeiro lugar, agradeço aos meus amigos do Colégio Santa Mônica, pela amizade eterna. Agradeço as melhores amigas que a UFF me deu: Ana Paula Leite Vieira e Mariana Franco Lopes, pelo ombro, pelas risadas, pelas inseguranças profissionais, pela amizade verdadeira. Agradeço aos companheiros do IHGB pelos dias de trabalho e, particularmente, pelas horas de diversão. Jéssica, Felipe, Lucas, Victor, Douglas, Marcos e Stefânia. Agradeço, especialmente a Professora Regina Wanderley por tudo, pelos ensinamentos, pelas broncas, pelo carinho e pelas lições de vida. Agradeço ao meu grande amigo Rafael Cupello, sem o qual a minha conta de telefone não precisaria ser da TIM para falarmos de graça. Obrigada pelo engrandecimento acadêmico e pessoal, pelas lições de História e pelas atitudes de vida. VI Agradeço especialmente, também a Nayara Emerick, sem dúvida a maior responsável pela continuidade da minha vida acadêmica, pelo apoio, pelas broncas e pelo carinho de sempre. Agradeço, também, ao meu amigo Felipe Aguiar Damasceno (de quem nesse exato momento estou copiando o modelo da dissertação) pelo companheirismo nesses anos de mestrado, tua amizade me valeu muito. Agradeço, da mesma forma, a Érika Melek, amiga dos fins da faculdade. Agradeço a minha família TECO, principalmente a Fabio Afonso, por coisas que seriam impossíveis de descrever. Deixo apenas registrado o meu, muito obrigada por ter te reencontrado nessa nova vida. Agradeço aos meus primos Hugo Seixas Antunes e Isadora Bustamante Simões por todo o amor e pelos meus poucos momentos de diversão nos últimos tempos, vocês são meu porto seguro. Agradeço a outra família que eu ganhei nessa vida. Obrigada por tudo, tia Márcia, tio Jorge, Júlia Nara, Laura Helena, Ana Rita e, especialmente, Analua, amo vocês. VII Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome Clarice Lispector VIII Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a memória social da abolição e da instauração da República, bem como as transformações historiográficas do final do século XIX, recuperando os debates em torno do pós-emancipação e dos novos caminhos para se compreender a construção do passado histórico brasileiro e do lugar reservado ao negro nas discussões surgidas na nova conjuntura política e social. Através de um conjunto de artigos publicados pelas revistas de quatro diferentes Institutos Históricos – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano; Instituto Histórico Geográfico e Antropológico do Ceará; Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo;– procuraremos entender as transformações dos paradigmas historiográficos e do pensamento social, em meio a disputas pela memória. Procuraremos compreender como os diferentes contextos regionais perceberam os processos do fim da escravidão e do surgimento do sistema político republicano e, a partir deles, propuseram a construção de uma história do Brasil. Especificamente, nos interessa perceber como os Institutos Históricos, inseridos em uma tradição historiográfica imperial, utilizaram a figura do negro, cativo ou liberto, na elaboração da narrativa histórica da nação. Palavras-chave: Escravidão, Abolição, República e Institutos Históricos IX Abstract This study aims to analyze social memory of abolition and the establishment of the republic, as well as the historiographical transformations of the late nineteenth century , recovering the debates surrounding the post- emancipation and new ways to understand the construction of the Brazilian historical past and the place reserved to the black people in discussions emerged with the new Republican reality. Through a series of articles published in the journals of four different Historical Institutes - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano; Instituto Histórico Geográfico e Antropológico do Ceará; Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo; - we will seek to understand the transformations of historiographical paradigms and social thought, amid disputes over memory. We will seek to understand how the different regional contexts perceived processes of the end of slavery and the rise of republican political system and, from them, proposed to build a history of Brazil. Specifically, we are interested in understand how the Historical Institutes, entered into an imperial historiographical tradition, used the figure of the black people, captive or released, in the preparation of the historical narrative of the nation. Keywords: Slavery: Abolition, Republic and Historical Institutes X SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................................p. 11 CAPÍTULO I: Tradições e invenções: os Institutos Históricos e a narrativa historiográfica......................................................................................................................p. 21 1.1 A formação de uma identidade narrativa da nação.........................................................p. 22 1.2 O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.................................................................p. 24 1.3. A expansão do modelo institucional e o projeto de história local: O Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano........................................................ p. 34 1.4 Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará.............................................p. 41 1.5 O Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo............................................................p. 46 1.6 Possibilidades de leituras................................................................................................p. 51 CAPÍTULO 2: Instituindo as Histórias e abolindo as Memórias.......................................p.54 2.1 A abolição da escravidão no Brasil: um rápido panorama...............................................p.55 2.2 Escravidão e Abolição representadas pelos institutos históricos.....................................p.63 CAPÍTULO 3: Construindo memórias. Uma nova História da nação republicana ................................................................................................................................................p.94 3.1 A Chegada da República..................................................................................................p.95 3.2 Uma nova Forma de escrever a História Nacional: diálogos e rupturas entre a Monarquia e a República...........................................................................................................................p.102 3.2 A busca de uma tradição nacional republicana em meio a disputas regionais...............p.109 CAPÍTULO 4: Lembranças, esquecimentos e silêncios: As retóricas sobre a raça e a escravidão............................................................................................................................p.130 4.1 As teorias raciais: um breve panorama .........................................................................p.133 4.2 Idéias no lugar................................................................................................................p.135 4.3 A solução da mestiçagem entre propostas e embates....................................................p.139 4.4 Pensando uma nacionalidade á brasileira.......................................................................p.161 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................p.167 BIBLIOGRAFIA E FONTES……………………………………………………........…..p.171 XI INTRODUÇÃO Pensamento social, história intelectual e história das idéias: modelos e métodos de comparação “Depois ninguém saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem.”1 Clarice Lispector Por certo que Clarice Lispector ao escrever essa frase não pensava sobre as relações raciais no Brasil. Seu conto trata dos aspectos familiares, mas especificamente das relações entre mães e filhos. Como não poderia deixar de ser é de uma sensibilidade imensa e nos deixa entrever nas palavras os sentimentos do cotidiano. Não faz muito tempo li essa frase. No entanto, minha leitura se deu deslocada de contexto, através de um desses aplicativos de aparelhos celulares que atualizam automaticamente e nos fornecem uma surpresa agradável em momentos aleatórios. Quase automaticamente transformei o sentido da frase, em uma atitude deliberada de desrespeito a famosa poetiza. Em minha mente, logo a pergunta se modificou: “ninguém saberia dizer de que negras raízes se alimenta a liberdade no Brasil”. O termo negro para mim não possuía somente um sentido metafórico associado à escuridão ou ao desconhecido, era simples como se lê. A população negra, arrancada da África e feita escrava nas América durante mais de trezentos anos, alimenta a História do Brasil, e a história desses homens e mulheres na luta diária pela liberdade formam as “negras raízes” da nossa própria História. Alienarmo-nos das experiências desses indivíduos, suas lutas, conquistas, derrotas, negociações é o mesmo que nos alienarmos de nós próprios. É não compreender os alicerces das relações sociais atuais, desconhecendo suas dinâmicas de interação, seus preconceitos e suas “heranças”. Descortinar as “negras raízes da liberdade no Brasil” é percorrer caminhos que buscam uma igualdade social e racial, é um compromisso de cidadania. 1 LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998. p. 94. 11 Uma revisão historiográfica que teve seu início na década de 1980 trouxe novas temáticas e novas evidências que a história não suspeitava utilizar. A inovação da historiografia brasileira, que veio à luz nos centenários da abolição e da República, passou a vislumbrar formas inéditas de se pensar as relações de dominação na sociedade. A partir dessas perspectivas, as narrativas historiográficas sobre a temática da escravidão e do negro no Brasil, passaram a centrar-se nas experiências dos próprios escravizados, livres e libertos. Caminhos foram abertos para se tentar compreender as mudanças políticas, culturais e demográficas do mundo escravista, a partir de um novo olhar sobre o escravo, enquanto agente e provedor de suas próprias histórias e visões de mundo, a despeito das relações de poder. Analisando desta forma, as fronteiras tornaram-se mais flexíveis quando procuraram investigar as experiências de domínio e opressão, de configuração e reconfiguração de práticas culturais coloniais e pós-coloniais nas Américas. Os efeitos de tal revisão ainda estão ocorrendo, pois profundos, remodelam as dinâmicas políticas existentes nas relações entre dominantes e dominados, politizando uma sucessão de acontecimentos e embutindo novos atores como participantes da política. Dessa forma, transforma os sentidos de comportamentos individuais e coletivos2. Os novos estudos sobre escravidão que emergiram nesse contexto promoveram o entendimento do comportamento cotidiano que perpassava a relação senhor/escravo. Nesse sentido, surgiram diferentes formas de se compreender as vicissitudes do povo negro em direção a seus aspectos culturais, sociais, religiosos e históricos. Os escravos e libertos passaram então a ser interpretados enquanto agentes sociais, nas suas relações entre si e com outrem. O revisionismo acadêmico também entrecruzou as temáticas da escravidão com as das relações étnicas, percebendo-as para além do campo da violência e analisando a formação identitária de africanos e afrodescendentes. Esses indivíduos inventaram formas de sobrevivência solidárias que os permitiram agir e reagir aos jogos de interesse da sociedade escravista. É necessário destacar a contribuição de dois importantes autores para essa renovação da historiografia brasileira, Sidney Mintz e Richard Price3. Ambos os autores renovaram a discussão sobre criação de culturas e identidades no mundo da escravidão, investigando as complexidades que envolveram os processos de formação das culturas “africano-americanas”, 2 GOMES, Ângela de Castro. História, historiografia e culturas políticas no Brasil: algumas reflexões. In SOIHET, Rachel, BICALHO, M.F.B. & GOUVÊA, M. F. S. (orgs.). Culturas Políticas – ensaios de História Cultural, História Política e Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad/ FAPERJ, 2005.p.21-44. P. 21 3 MINTZ, Sidney & PRICE, Richard. O nascimento da cultura Afro-americana. Uma perspectiva antropológica, Rio de Janeiro, Pallas-Universidade Candido Mendes, 2003. 12 ultrapassando as fronteiras que buscavam entender a cultura escrava como uma extensão de uma cultura africana. Para tanto, formularam a idéia de “criação cultural”, o que significa dizer que as identidades escravas eram, antes de tudo, frutos de novas formas de sociabilidade, comunicação, linguagens e experiências, que uma vez entradas em contato se transformavam em distintas configurações identitárias. Pioneiro em introduzir tais discussões no ambiente acadêmico brasileiro, Robert Slenes, em um trabalho minucioso de idas e vindas entre Áfricas e Américas, preocupou-se, também, em entender a formação das identidades africanas no Novo Mundo. Para Slenes, o surgimento de uma solidariedade lingüística de origem bantu havia permitido o nascimento de identificações mais profundas no território brasileiro, que se desencadearam em tipos diversos de resistência escrava. Robert Slenes foi, ainda, pioneiro nos estudos sobre “família escrava” que deslancharam nessa época, a partir desses novos critérios de identificação. Podemos citar ainda, importantes nomes que fizeram parte dessa renovação historiográfica: Mariza de Carvalho Soares4, Hebe Mattos5, Sidney Chalhoub6, Flávio dos Santos Gomes7, entre outros. Tais autores ao aprofundarem-se nos estudos da escravidão africana e do tráfico negreiro, expandiram as noções de espaço e tempo e passaram a investigar as relações entre Áfricas, Américas e Europas. Essas contribuições historiográficas tem se desdobrado em novos caminhos que buscam investigar as diferentes visões do mundo atlântico, ampliando suas margens e entendendo os processos de trocas, invenções e transformações culturais dos diferentes povos envolvidos nesses contatos. Somente após a década de 1990, a renovação da historiografia sobre a escravidão se refletiu nos estudos sobre abolição e pós-emacipação que passaram a focar nas experiências e expectativas da vida em liberdade do negro e seus descendentes. Nesse contexto, surgiram trabalhos que investigaram o movimento de redefinição de identidades e as lutas por direitos de cidadania no território brasileiro, ainda que informais. Inserido nesse processo, o presente trabalho propõe uma análise dos Institutos Históricos Brasileiros, no período imediatamente após a abolição da escravidão, com o objetivo de averiguar as formas de inserção do negro na narrativa histórica da nação. 4 SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000 5 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista: Brasil século XIX. 2ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 6 CHALHOUB Sidney. Visões da liberdade: Uma história das ultimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia de bolso, 2011. 7 GOMES, Flávio dos Santos Gomes. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Editora UNESP, 2007. 13 Portanto, o tema de nossa pesquisa é a analise da memória social da abolição e da instauração da república, bem como as transformações historiográficas, do final do século XIX, recuperando os debates em torno do pós-emancipação e dos novos caminhos para se compreender a construção do passado histórico brasileiro e do lugar reservado ao negro nas discussões surgidas com as novas conjunturas históricas. Através de um conjunto de artigos publicados pelas revistas de quatro diferentes Institutos Históricos – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano; Instituto Histórico Geográfico e Antropológico do Ceará; Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo;– procuramos entender as transformações dos paradigmas historiográficos e do pensamento social, em meio a disputas pela memória nacional. Sendo assim, buscamos entender como os diferentes contextos regionais perceberam os processos do fim da escravidão e do surgimento do sistema político republicano e, a partir deles, propuseram a construção de uma história do Brasil. Abordaremos ainda, as discussões sobre raça e mestiçagem presentes nas referidas instituições, tendo em vista que as mudanças sociopolíticas nacionais trouxeram a tona questionamentos acerca da formação étnica brasileira. Com a emancipação total dos escravos e com a instauração da república, a história, ainda sob o desígnio de formar e formalizar a idéia de nação, com a proposta de criar e recriar identidades, necessitava de nova configuração. Essa reconfiguração histórica pressupunha um novo olhar, pautado nas experiências e expectativas inauguradas pelo novo contexto político e social brasileiro. Sabemos que o período entre final do século XIX e início do século XX está imerso no debate sobre a construção de uma identidade nacional mestiça, composta de elementos peculiares do homem brasileiro, em conjunto com componentes europeus. A influência européia consolidou-se na noção de modernidade, essencial na forma de orientar e narrar o pensamento intelectual brasileiro. Todavia, esse modelo de modernidade foi incapaz de reproduzir-se sem levar em consideração as peculiaridades internas. Era necessário interpretar o Brasil a partir de um novo olhar. A abolição da escravidão e em seguida o estabelecimento da República, além de inaugurarem um novo tipo de organização política e social, introduziram a obrigação de avaliação do Brasil como um espaço original, fornecendo as bases para uma nova interpretação da nação. 14 Na segunda metade do século XIX, de acordo com Antônio Edmilson8, graças à crise do sistema escravista e do regime monárquico, as preocupações se voltaram para a dimensão da vida cotidiana e afastaram-se da esfera estatal. As novas noções de modernidade advinham desse processo de crescimento da esfera pública, que proporcionava a autoconsciência do povo, capaz de refletir sobre si mesmo. As questões sobre a abolição e República inseriram-se nesse movimento de compreender a nação como algo moderno e introduziram o país no projeto de civilização. Colocar em prática esse projeto demandava uma reconstrução da história da nação, atribuindo-lhe novos sentidos e significados. Nesse momento, a história, distanciada da ficção, se constituiu em disciplina científica e elaborou narrativas que buscaram aglutinar os elementos formadores do Brasil e de seu povo. Portanto, podemos afirmar que a definição de uma identidade nacional brasileira, aconteceu junto à consolidação da disciplina História e que a abolição da escravidão e a instauração da República foram acontecimentos fundamentais nesse processo de construção da nacionalidade. Válido lembrar, que juntamente à História, a Literatura desempenhou grande importância nesse processo de diagnóstico nacional para a formação de um sentimento de identificação, sendo a Literatura, muitas vezes confundida com a narrativa historiográfica, graças às tênues fronteiras que as delimitavam. A geração de intelectuais de 1870, por exemplo, apontou para a importante função da literatura nas discussões a respeito da construção da nação, tendo em vista as críticas elaboradas por esses letrados à tradição historiográfica imperial e sua incapacidade de discutir demandas reais da sociedade. De todo modo, era imprescindível que uma sociedade evoluída possuísse uma História e uma Literatura que narrassem os cenários nacionais e pudessem mostrar as singularidades do Brasil estabelecendo os elementos constitutivos da nacionalidade. As idéias produzidas eram resultados das experiências da vida social e o crescimento populacional das cidades, com destaque para o Rio de Janeiro, fez surgir novos padrões de sociabilidade e contatos culturais. A cidade tornou-se o laboratório da modernidade. Nela, vimos surgir o aparecimento da rua como um novo espaço público e político que concentrava diferentes tipos sociais. Era, o que Maria Tereza Chaves de Mello9 chamou de processo de democratização da rua, verificado no final do século XIX. O crescimento e amadurecimento 8 RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins. “Cultura política na passagem brasileira do século XIX ao século XX”. In: LESSA, Mônica Leite e Fonseca, Silvia C. P. de Brito. Entre a Monarquia e a república: imprensa, pensamento político e historiografia (1822-1889). Rio de Janeiro: EDUREJ, 2008 9 MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida: cultura democrática e científica do final do Império. Rio de Janeiro: Editora FGV; Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2007 15 da imprensa e do jornalismo popularizaram movimentos políticos, com destaque para a campanha abolicionista e para o republicanismo. Como vimos, na segunda metade do século XIX, as notícias e as ideias se alargaram e variaram passando a abranger um público socialmente menos erudito, que passava a perceber os noticiários não mais restritos ao domínio privado, mas como pertencentes ao domínio público. Aos poucos a ideia de opinião pública ganhava novas conotações e transformava-se em uma força política e em uma instância crítica. De acordo com Lúcia Bastos10, foi, sobretudo, a campanha abolicionista o que contribuiu decisivamente para que esse conceito de opinião pública de consolidasse. Concordamos com Robert Darnton11, que o jornalismo se constituiu em um elemento central da esfera pública nos fornecendo uma fonte de indicação de disseminação das ideias para além da intelectualidade. Identificando o público como ativo participante da cultura, Darnton assinala a existência de um iluminismo menos erudito e mais variado. Seguindo a mesma linha de pensamento, Maria Lúcia Pallares-Burk12 afirma que o advento da imprensa contribuiu de forma significativa para o estudo das relações entre o mundo social e a palavra escrita. Sendo assim, a análise de periódicos vem sendo consagrada como uma das principais vias de acesso ao pensamento coletivo de uma época por desempenhar um importante demonstrativo da intensidade das trocas de ideias e informações. É nesse sentido, que o trabalho proposto busca ter acesso às práticas sociais através dos elementos recolhidos nos periódicos dos Institutos Históricos e investigar as discussões intelectuais sempre permeadas pela retórica. Em todo o século XIX, a intelectualidade brasileira esteve interessada na definição de uma identidade nacional percebida e construída, paradoxalmente e ao mesmo tempo, como especificidade brasileira e como derivação da civilização européia. Questões como a extensão da cidadania entraram na agenda política como desdobramento das lutas abolicionistas. Tal pesquisa se aloca em meio aos muitos trabalhos que buscam compreender o lugar da abolição no processo histórico de formação da nação brasileira. Especificamente, nos interessa perceber como os Institutos Históricos, inseridos em uma tradição historiográfica imperial, utilizaram a figura do negro, cativo ou liberto, na elaboração de uma identidade narrativa para a nação. 10 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. "Opinião Pública." In: FERES, João (org.). Léxico da História dos Conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, pp.181-202. 11 DARNTON, Robert. O iluminismo como negócio: História da publicação da ‘Enciclopédia’ 1775-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 12 PALLARES-BURK, Maria Lúcia Garcia. The Spectator, o teatro das luzes: diálogos e imprensa no século XVIII. São Paulo: Editora HUCITEC, 1995. 16 O método da historiografia tem uma orientação essencial que é a comparativa, sendo assim, para que não utilizemos o método comparativo de maneira aleatória, escapando assim da finalidade da configuração da História Comparada como um fazer historiográfico singular, algumas questões a respeito do modo como este será empregado no trabalho se faz necessária. Para tanto, me basearei nas propostas de José D’Assunção Barros13 para comparar sociedades contiguas no espaço e no tempo, propondo que realidades literárias, virtuais ou imaginarias, as mentalidades e os circuitos de representações, podem também ser objetos da História Comparada. Dessa forma, concordamos com Barros quando este afirma ser possível empreender um caminho pela História Comparada que atua sob uma mesma realidade nacional, levando em consideração que, neste caso, o historiador deve estar apto a identificar, não apenas as semelhanças como também as diferenças de seu múltiplo recorte. A perspectiva de História Comparada proposta por Barros expande os espaços de inteligibilidade, abrindo caminho para novas reflexões. Pensamos ser este o objetivo principal da História Comparada enquanto possibilidade de modelo historiográfico. Da mesma forma, esse trabalho, por se tratar de análises comparativas de artigos, investigando o meio intelectual e a historiografia brasileira do final do século XIX, faz uso, metodologicamente, das afirmações de Barros a respeito do surgimento de novos gêneros de Historia Comparada, que criam ou reeditam domínios históricos. Sendo assim, torna-se legítimo, falar em uma Historiografia Comparada, como um subgênero da História Comparada. Criando uma base de comparação e experimentação entre narrativas historiográficas distintas, analisando-as de forma inter-relacional, teremos como resultado um iluminação recíproca das fontes em questão para analisarmos as expectativas dos sujeitos responsáveis pela elaboração da História do Brasil e do papel do negro nessa narrativa. Levando em conta a heterogeneidade do processo abolicionista procuraremos apontar como experiências sociais díspares produziram projetos e partilharam questionamentos em torno de uma mesma questão. É nesse sentido, que utilizaremos o método comparativo a partir de um múltiplo campo de observação, e expandiremos a noção de História Comparada para falarmos também em História Conectada, como apontou Jürgen Kocka14. Trata-se de analisar como os processos que desencadearam o fim da escravidão no Brasil foram vividos por diferentes sujeitos históricos que apesar das divergências, inclusive geográficas, formaram teias de solidariedades que uniram a intelectualidade que pensava a nacionalidade brasileira. 13 BARROS, José D’Assunção. História Comparada: um novo modo de ver e fazer a história. Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.1-30, jun. 2007 14 KOCKA, Jürgen. Comparison and beyond. History and Theory. Fev. 2003. p. 39-44. 17 Nesse ponto, torna-se importante que expliquemos os motivos que nos levaram a seleção do recorte das instituições. A opção pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro justifica-se em função da importância da agremiação como precursora e perpetuadora de uma tradição historiográfica imperial. Criado em 1838, o IHGB possuía a função de escrever a história da nação a partir de um projeto centralizador e homogeneizador do Estado monárquico. A escolha do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano advém da sua importância enquanto instituição regional. Primeira agremiação fundada aos moldes do IHGB, o Instituto de Pernambuco cumpriu o papel de escrever uma história nacional que glorificasse os feitos locais de maneira a destacar a região nordeste na narrativa histórica do país. A preferência pelo Instituto Histórico Geográfico e Antropológico do Ceará pode ser explicada pelas intenções da pesquisa: examinar os artigos monográficos interpretando a forma como a intelectualidade narrou a inserção do negro na História do Brasil, atravessando o processo de abolição da escravidão e instauração da República. Portanto, a província do Ceará, a primeira a acabar com a escravidão no território brasileiro, em 1884, selecionou esse evento para legitimar a importância da região no contexto histórico brasileiro de luta pela liberdade. Por fim, a seleção do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, fundado em 1894, justifica-se pela conjuntura de desenvolvimento econômico que acarretou em maior centralização política para aquela localidade, em detrimento do Rio de Janeiro. O IHGSP, fundado no regime político republicano, tinha em seu quadro de sócios intelectuais preocupados em criticar o modelo imperial de governo e, nesse sentido, contrapunha algumas perspectivas disseminadas pelas demais instituições. O primeiro capítulo discorre sobre o processo de formação de uma identidade narrativa da nação, bem como o processo de construção da memória disciplinar da História, retomando a tradição historiográfica imperial que vinha se formando aproximadamente desde a década de 1830. Os questionamentos acerca do que constituiria a nação tornavam-se, para muitos intelectuais, um programa historiográfico que tinha como finalidade delimitar os atributos próprios de cada nação. Dessa maneira, descrevemos os contextos históricos e sociais do surgimento do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro relacionando-os ao processo de consolidação do Estado Nacional. Da mesma forma, apresentamos os contextos de formação dos demais institutos regionais e suas relações com um projeto maior de uma história nacional integrada territorialmente. Portanto, apontamos a importância da construção de institutos históricos por todo o país, como parte de um contexto mais amplo de formação identitária brasileira, sem, é claro, esquecer as disputas regionais por memórias. Destacamos ainda, a importância do cientificismo como base para a formação e desenvolvimento disciplinar da história alicerçada sobre os moldes de civilização e progresso que imperavam no mundo ocidental e que influenciaram os argumentos históricos dos intelectuais brasileiros. 18 Para tanto, recorremos aos modelos de pensamento positivista, iluminista e romântico, reconhecendo serem as principais correntes filosóficas refletidas, tanto nos discursos proferidos nos Institutos Históricos, como nos artigos das revistas analisados. O segundo capítulo tem como pano de fundo a reflexão do que estava sendo publicado nas revistas dos diferentes Institutos Históricos sobre o tema da escravidão e da abolição da escravatura no Brasil. Inicialmente, fornecemos um panorama do contexto nacional surgido com as propostas gradativas de acabar com a instituição escravista no Brasil, ao mesmo tempo em que verificamos a maneira conciliatória que, até a primeira metade do século XIX, o liberalismo conviveu com o mundo da escravidão, para posteriormente romper com essa “solidariedade”. Procuramos, em seguida, esclarecer algumas questões referentes ao modo como a parcela letrada brasileira recebeu a instauração da lei que extinguia o sistema escravista no país, a partir dos artigos publicados nas revistas dos Institutos Históricos. O objetivo foi entender de que maneira os intelectuais que escreviam sobre tal transformação histórica localizavam o negro, o ex-escravo e o passado escravista brasileiro como parte integrante da história nacional almejada, seguindo os modelos de civilização e progresso do mundo ocidental. O silenciamento do sistema escravista como modo de produção imperante por três séculos no país foi investigado como uma forma de inserir o Brasil no modelo evolutivo internacional. O estudo comparado das diferentes realidades regionais do país expandiu esse entendimento e demonstrou como um mesmo acontecimento gerou continuidades e disputas nos discursos dos atores históricos responsáveis por narrar e criar a memória desse evento para a nação. No terceiro capítulo, desenvolvemos uma análise dos artigos dos Institutos Históricos que abarcavam o tema da formação e consolidação da ordem republicana no Brasil. As transformações inauguradas, primeiramente, pela emancipação escrava e logo depois pela instauração da República no país afastaram, relativamente, o tipo de historiografia até então elaborada no império, o que implicava um novo perfil do historiador, do enredo da narrativa histórica e do destinatário privilegiado dos discursos. Nesse sentido, o objetivo deste capítulo foi investigar as disputas e (re)negociações das narrativas históricas preocupadas em legitimar o regime político recém instaurado, galgando no passado do país um “espírito republicano” e libertador. Observamos, todavia, uma tentativa conciliatória na narrativa, entre um passado monárquico e um presente republicano, de maneira que a característica teleológica se manteve presente nas agremiações. Neste capítulo, verificamos como o resgate ou invenção de uma tradição republicana foi a maneira encontrada, principalmente pelos institutos regionais de Pernambuco e São Paulo, para afirmarem seus papeis na construção da história nacional. 19 Nesse sentido, cabe ressaltar a importância da investigação e comparação dos diferentes institutos que disputavam entre si memórias regionais de um passado de lutas pela liberdade republicana, reconstruindo, cada um a sua maneira, as histórias dos respectivos estados, com o objetivo de contribuir para a formação da história do Brasil. Finalmente, o quarto capítulo abordou, especialmente, as discussões sobre raça e mestiçagem presentes nos artigos das revistas dos Institutos Históricos brasileiros. Inicialmente, fornecemos um panorama acerca das teorias raciais que se desenvolviam no mundo ocidental, trazendo suas conseqüências para o contexto brasileiro, que necessitava lidar com as mudanças sócio-políticas que inauguravam uma série de questões a respeito da formação étnica de seu povo. Na tentativa de buscar uma definição autêntica da nacionalidade brasileira, muitos intelectuais modificaram, adequando à realidade nacional, as teorias raciais que chegavam da Europa. Essas idéias, quando migradas para o Brasil necessitavam se adequar a experiência de uma sociedade multirracial. Sendo assim, o objetivo deste capítulo foi investigar alguns pressupostos raciais desenvolvidos nos Institutos Históricos que, ao mesmo tempo em que procuravam resolver o problema de inserir a nação em meio aos debates sobre superioridades biológicas e raciais, também acabavam por agregar um aspecto único e favorável da sociedade brasileira, a miscigenação, garantindo um futuro otimista para a nação. Nesse capítulo procuraremos perceber a posição relegada à população negra na história nacional como parte integrante desse povo brasileiro multirracial que se formava. Igualmente, investigaremos o lugar, se é que havia, para além da mestiçagem, desse negro na narrativa histórica da nação. 20 Capítulo I Tradições e invenções: os Institutos Históricos e a narrativa historiográfica 21 1.1 A formação de uma identidade narrativa da nação A História, enquanto disciplina, vem apontando para a importância de se compreender os modos como diferentes setores da sociedade legitimam suas ações mediante um apelo ao passado. Tal fato traz embutida a noção de que apenas o entendimento histórico leva à compreensão de determinada realidade social. No entanto, é necessário pensarmos os meios como a própria História assumiu uma consciência e uma identidade discursiva que a dotou de uma capacidade de agência na construção do passado. Afirmar que a História, como conceito moderno, surge como um processo resultante das ações de homens significa dizer que ela é consequência, efeito das experiências presentes que, ao invés de parecerem limitadas pelo passado são, na realidade, constituintes dele. Essa percepção do homem como agente do processo histórico aparece apenas durante o século XIX e possui, de acordo com Rodrigo Turin15, como ponto de inflexão a noção de progresso, atrelada à noção de aceleração do tempo. A sensação de aceleração invade todas as esferas da vida, influindo na concepção de história. Essa idéia de progresso afastava a realidade presente de um passado cada vez mais distante e atrasado, ao mesmo tempo em que inaugurava uma série de expectativas e possibilidades futuras. Para Koselleck16, nesse momento houve um afastamento entre temporalidades (espaços de experiência e horizontes de expectativa) e o futuro começou a se constituir na principal referência de ordenação temporal. Era ele quem esclarecia as experiências passadas, uma vez que estas somente ganhavam inteligibilidade nesse tempo ainda por vir. O desconhecido, porém almejado, fornecia sentido ao passado transformando-o de acordo com as experiências presentes. Inserido nesse processo, a nação passou a ser um conceito de extrema importância e envolto por inúmeras discussões, pois aparecia carregado de possibilidades e expectativas futuras. Logo, a História, enquanto noção moderna aderiu como uma de suas faces a questão nacional. Como apontado por Rodrigo Turin17, essa disciplina, como praticada no oitocentos, longe de privilegiar o pensamento crítico marcado por rupturas, era uma história-memória que acentuava a importância da lembrança. Cabia, portanto, à História organizar e transformar as lembranças que forneceriam sentido ao passado nacional. A escrita dos fatos passava por um processo de seleção semelhante ao funcionamento da memória, implicando em uma série de 15 TURIN, Rodrigo. Narrar o passado, projetar o futuro: Sílvio Romero e a experiência historiográfica oitocentista. Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005 16 KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Editora; Editora PUC Rio, 2006 17 TURIN, Rodrigo. Op. cit. 22 escolhas e silêncios. Cada evento ou personagem necessitava de merecimento para adentrar na narrativa histórica da nacionalidade. A relevância de cada fato para a formação da nação demarcava o lugar que este possuiria na construção da História. A nação se constituiu, durante o século XIX, em tema sagrado de reflexão política em todo mundo ocidental. Nesse período, a nação se estabeleceu como entidade histórica inquestionável e tornou-se um novo sistema de reconhecimento e formação de identidades coletivas, configurando-se, para a intelectualidade, em programa historiográfico. Um contínuo debate foi travado dando forma ao conceito de nação e delimitando um conjunto de referenciais que lhe seriam comuns. A nação aparecia assim, como um resultado da história, como uma formação temporal. Descobrir a razão histórica formadora da nação através do mapeamento das alternativas temporais era a tarefa principal da História enquanto ciência. Nesse sentido, ter glórias comuns no passado, orientadas por anseios do presente, definia a idéia de nação. Cabe destacar, todavia, que tal conceito estava sujeito a uma dispersão que era preciso superar. Inúmeras foram as tentativas de ultrapassar as problemáticas impostas pela idéia de nação e podemos destacar as importantes funções exercidas por instituições do Estado que visaram esse fim. Por uma via de mão dupla, a formação política específica do Estado-nação investiu na produção do conhecimento histórico que, por sua vez, participou da construção identitária dos estados modernos. Um projeto nacional necessitava obviamente de passados equivalentes e, nesse sentido, a História era a disciplina encarregada de fundar no passado a origem da nação, o que demonstra a importância do discurso histórico na formação das identidades modernas. No entanto, se o próprio conceito de nação foi definido pelo saber científico da História, ele também constituiu as bases da nova disciplina científica, pois era a partir de determinada perspectiva de futuro nacional que o passado tornava-se inteligível. Portanto, o conceito de nação ainda estava sendo cunhado no início do século XIX e remetia a idéia de pertencimento a uma comunidade de nascimento. Como destacado por Hobsbawn18 três elementos principais constituíam as identidades nacionais: território, língua e etnia. No caso brasileiro, desde os séculos XVI e XVII, o termo “nação” já era utilizado para designar determinados grupos sociais como os escravos provenientes de diferentes regiões do continente africano, indígenas ou judeus. Ilmar de Mattos19 nos mostra que o vocábulo “brasileiro” também já possuía significado na realidade social nacional e que, a partir da 18 HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. São Paulo: Paz e Terra, 2013; HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A Invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2012 19 MATTOS, Ilmar. O tempo Saquarema. São Paulo: Editora HUCITEC, 2004. 23 independência do Brasil, em 1822, essa expressão passou a possuir um sentido político e identitário associado à noção de Brasil e à formação da nacionalidade. Como destacado pelo mesmo autor, ambos os termos, “nação” e “brasileiro”, fizeram parte de um projeto político centralizador característico do Estado Imperial. Em torno desse projeto nacional esteve envolvida grande parcela da elite brasileira, como intelectuais, políticos e militares, preocupados em definir a especificidade histórica do Brasil e do seu povo20. Por isso, o conceito de nação esteve atrelado ao fortalecimento do Império através da narrativa de fatos que marcassem e exaltassem o modelo monárquico de governo21. Assim como na Europa, internamente a consolidação disciplinar da história e a formatação do conceito de nação estiveram interligadas. A criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ilustra o surgimento de uma preocupação narrativa para os feitos da nação, que ainda estava sendo forjada, ao estabelecer um papel singular para a disciplina História na sua formação. Juntamente demonstra a preocupação do Estado Imperial em fundamentar as bases do projeto nacional. 1.2 O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro A sociedade que se formou no final do século XVII e ao longo do século XVIII na Europa inaugurou novas formas de sociabilidade, de sensibilidade e de mentalidade. As atitudes do homem diante do mundo se modificaram, as preocupações se voltaram cada vez mais para a vida terrena e suas formas de organização, amparadas em uma moralidade baseada na razão. O homem não precisava somente de uma força embasada na crença religiosa que tutelasse o mundo, o conhecimento também levava à virtude e à felicidade. As luzes do século XVIII formaram os fundamentos da modernidade. A consolidação desse processo de “esclarecimento” no Brasil foi representada por uma série de renovações estruturais realizadas desde a chegada da família real, mais fortemente sentidas a partir da década de 1830. Dentre as inúmeras instituições surgidas destaca-se o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Erigido no século XIX, o IHGB teve como objetivo empreender uma leitura e uma escrita da história na nação a partir de um projeto de Estado iluminado, esclarecido e civilizador 22. 20 Idem. TURIN, Rodrigo. Op. cit. 22 GUIMARÃES, Manoel Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.1, p. 5-27, 1988. 21 24 O Instituto Brasileiro se vinculou a uma tradição iluminista principalmente pelo caráter de sua concepção historiográfica. Para aqueles que faziam parte do IHGB, a história era vista como um processo linear marcado pela noção de progresso. O historiador, enquanto um indivíduo esclarecido, deveria indicar o caminho das luzes, o caminho da verdade, marcado pela relação entre Estado, Nação e Coroa, tendo ainda a Igreja Católica como instituição estruturante. Além disso, a instrumentalização da história como “mestra da vida”, capaz de superar os erros do passado, também apontava para a presença de uma tradição historiográfica iluminista. A história aparecia assim, como marcha progressiva que articulava diferentes temporalidades, passado, presente e futuro. A tarefa de disciplinarização da história, no caso brasileiro, seguiu fielmente o modelo europeu articulando-se com a questão nacional. No entanto, como demonstrado por Manoel Salgado23, deste lado do Atlântico o espaço da produção historiográfica foi diferente. Não se tratou de ambientes universitários, mas sim de academias do tipo ilustrado de acesso restrito a escolhidos e eleitos. Dessa forma, o lugar de produção historiográfica no Brasil se manteve, até fins do século XIX, caracterizado por uma profunda marca elitista, o que foi crucial para a construção de determinada historiografia e das visões que ela produziu a respeito do caráter nacional brasileiro. Processo próprio ao Brasil foi, também, a construção de uma identidade e história nacionais nas quais a edificação da idéia de nação não se forjou a partir de uma oposição à metrópole portuguesa, mas antes por uma relação de continuidade. Para a narrativa histórica proposta pelos homens de letras do IHGB era imperativa a manutenção de certa solidariedade entre as diferentes temporalidades presentes na história nacional, de maneira que as contiguidades cronológicas fossem exaltadas no lugar de transformações estruturais. Nação, Estado e Coroa apareciam, assim, unidos no interior da discussão historiográfica 24. A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro esteve relacionada a um projeto político imperial mais específico que buscava a afirmação da centralidade e autoridade do poder monárquico. Com os acontecimentos que anunciavam o fim do período regencial no Brasil, houve a necessidade de uma reformulação do projeto de Estado e com ele a criação de instituições que buscavam apoiá-lo. Sendo assim, foram criados estabelecimentos responsáveis pelo desenvolvimento do trabalho intelectual de construção da nação. O Arquivo Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Colégio Pedro II, todos fundados na década de 1830, foram expressões desse projeto de Estado. 23 24 Idem. Idem. p. 8 25 A partir de uma proposição encaminhada ao Conselho Administrativo da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN), por Raimundo José da Cunha Mattos, na ocasião primeiro-secretário da SAIN, e pelo cônego Januário da Cunha Barbosa, foi criado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 21 de outubro de 1838. Inspirado no modelo do Instituto Histórico de Paris, o IHGB possuía a finalidade de ser uma associação científica e de caráter privado, dedicada aos estudos históricos e geográficos. Foi, portanto, no desenrolar do processo de constituição e consolidação do Estado Nacional que se definiu o desenho de uma instituição que tinha por finalidade a sistematização de um projeto de história nacional25. Estabelecendo uma relação com a memória, desejando afirmar uma identidade nacional e um passado histórico para o país em formação, o IHGB fez parte de um universo simbólico que buscava construir e reconstruir uma revisão da história do país na luta pela formação de uma identidade para a nação. Cabe ressaltar, como afirmou Lúcia Guimarães26, que o Instituto Histórico cumpriu o papel de construção de uma memória nacional a serviço de um projeto político específico que visava à consolidação do Estado imperial. Era a busca de uma determinada nacionalidade brasileira a preocupação maior da tradição historiográfica presente no Segundo Reinado. As diferentes enunciações acerca da nação traziam diferentes posicionamentos políticoideológicos. Por isso, ao falar desses intelectuais, enquanto atores políticos e produtores de bens simbólicos, não podemos deixar de pensar nas fronteiras fluidas entre as suas produções e seus ideais políticos e pragmáticos, pois suas obras eram um meio de orientar e efetivar ações. Para Von Martius, por exemplo, o historiador do Brasil deveria escrever como um autor monárquico constitucional, somente assim, estaria servindo à pátria. Esse aspecto caracterizou o fazer historiográfico dos sócios do instituto durante todo o século XIX, transformando-se apenas com a instauração da República, que abalou significativamente a estrutura ideológica e política representada pelo IHGB. O desvendamento do processo de gênese da nação esteve na base dos projetos dos intelectuais do Instituto Histórico, cujo principal objetivo era dar conta da especificidade identitária do “povo brasileiro” e do papel que cabia ao Brasil frente ao exterior. Vale afirmar que a ideia de nação retratada pelo IHGB surgiu como desdobramento da civilização branca e europeia nos trópicos. Tarefa bastante difícil, tendo em vista a realidade social brasileira. A presença do indígena e do negro, este vivendo ainda sob um regime escravista, trouxe à tona a 25 GUIMARÃES, Lucia Paschoal. Debaixo da imediata proteção de sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e geográfico Brasileiro (1838-1889). Revista do IHGB, Rio de Janeiro, n. 388, pp. 437-506, 1995. 26 GUIMARÃES, Lucia Paschoal. Da escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e geográfico Brasileiro (1889-1938). Museu da República, Rio de Janeiro, 2006. P. 11 26 enorme dificuldade de gestação de uma História Nacional. A tentativa encontrada por esses indivíduos frente a essa problemática foi o reforço de uma visão homogeneizadora do que seria o Brasil. Cabia, portanto, às ações desses homens de letras definirem a extensão do conceito de nacionalidade, delimitando externa e internamente os excluídos desse processo. Como demonstraremos ao longo desse trabalho, coube ao negro o papel de estrangeiro nessa contenda, afastado do processo de gestação da nação e excluído da formação do “povo brasileiro”. Para além das características da produção historiográfica, o IHGB também se vinculou a uma tradição iluminista em termos da forma específica de sociabilidade que ele representou cara as sociedades estamentais. O recrutamento dos sócios se dava segundo normas e injunções que escapavam o mundo acadêmico, cujo critério apoiava-se no domínio de um saber específico. Seus sócios eram eleitos, fundamentalmente, por procedimentos que passavam pela teia das relações sociais e pessoais. As normas de admissão dos sócios eram rígidas, mas não constavam critérios acadêmicos propriamente ditos, pelo menos até 1851, quando foi criado um comitê responsável pela admissão de sócios, passando a exigir comprovação de produtividade intelectual. Podemos dizer que os novos estatutos promulgados em 1851 marcaram a consolidação, a expansão e a profissionalização do IHGB. No entanto, o recrutamento desses indivíduos, mesmo após a criação do novo comitê, ainda se dava, essencialmente, baseado em determinantes sociais. Dessa maneira, os padrões científicos eram deixados de lado e as formas de arregimentação eram amparadas por critérios de sociabilização, que marcaram o papel do Estado nacional como eixo central nesse processo27. Podemos concluir, como ratificado por Lilian Schwarcz, que a associação em torno do Instituto Histórico de fato significou, para alguns, um espaço de projeção intelectual, mas para a maioria dos indivíduos envolvidos, o IHGB representou, em primeiro lugar, um caminho de projeção pessoal28. A Composição interna do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ilustrava o caráter que a instituição assumiu durante toda a sua existência: o de criação de um saber ligado à exaltação da pátria, uma história da nação que recriava um passado buscando mitos de fundação, glória e dignidade para o Brasil. Ao se analisar o perfil das 27 personalidades que se uniram para formar o instituto, percebemos que a sua grande maioria (22 homens) desempenhava funções no aparelho do Estado. De acordo com Lilia Schwarcz, dez desses 27 GUIMARÃES, Manoel Salgado. Op. Cit. p.10 SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo:Companhia das letras, 1993. p. 105 28 27 homens eram conselheiros de Estado, sendo seis destes, senadores29. Manuel Salgado aponta para o grande número de funcionários públicos exercendo a carreira de magistratura, bem como militares e burocratas. Arno Wehling observa ainda, serem alguns dos membros fundadores do IHGB vinculados ao Partido Liberal Moderado, além de indivíduos que conformavam grupos cafeeiros do Rio de Janeiro30. Sendo assim, o IHGB em seu processo de formação reunia ilustres indivíduos ligados à política imperial, parte destes, nascidos em Portugal, defensores da monarquia e da casa de Bragança. Investigando a diversidade da origem socioeconômica desses homens, percebemos que eram majoritariamente, de procedência urbana, descendentes de militares e de funcionários públicos, por vezes articulados ao comércio. Os sócios que integravam o Instituto eram também representantes de uma elite local, fossem eles políticos ou proprietários de terras, literatos ou famosos pesquisadores. Indivíduos que fizeram a independência e elegeram a monarquia como a forma de governo por excelência 31. A heterogeneidade funcional era compensada pela unidade ideológica (...) Repetem-se no caso do IHGB, as características gerais da elite política imperial definidas por José Murilo de Carvalho: defesa da unidade nacional, consolidação do governo civil, redução do conflito a nível nacional, limitação da mobilidade social e da mobilização política(...) 32 Quanto à hierarquia interna do IHGB, seus estatutos definiam a existência de 50 membros efetivos, sendo 25 na sessão de História e 25 na sessão de Geografia. Os sócios efetivos deveriam residir na Corte e necessitavam apresentar trabalhos de comprovação acadêmica. A divisão dos membros contava ainda com os sócios correspondentes que possuíam vagas ilimitadas e podiam residir no Brasil ou no exterior. Tanto estes associados como os efetivos necessitavam contribuir com o pagamento da jóia de entrada e da taxa semestral. Havia também, os sócios considerados de honra, cuja taxa de pagamento acima referida era isenta. Esse tipo de sociedade era conferido às pessoas de idades mais avançadas e consideradas de distinto saber. Os sócios efetivos que por seus importantes serviços ou por doação de grande quantia, merecessem distinção, tornavam-se beneméritos. Por fim, havia os 29 Idem. WEHLING, Arno. As origens do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Revista do IHGB, Brasília-Rio de Janeiro, 338:7-6, 1983. 31 GUIMARÃES, Lucia Paschoal. Op. Cit. p. 480 32 WEHLING, Arno. Op. Cit. p. 10 30 28 presidentes honorários, que só poderiam ser chefes de nações, incluindo o chefe do Estado brasileiro33. As contribuições financeiras do Estado imperial foram decisivas para a existência material do Instituto Histórico. Logo após a criação do grêmio carioca, o IHGB colocava-se sob a proteção do Imperador e não mais sob a proteção da Sociedade Auxiliadora Nacional. Tal atitude se vinculava a uma contribuição financeira por parte do Estado imperial que se verificou cada vez maior com o passar dos anos, chegando a representar 75% do orçamento do Instituto. A partir de 1849/1850 a inter-relação entre Estado e produção historiográfica tornou-se mais acentuada, tendo em vista a maior estabilidade do projeto político do poder monárquico. O aprofundamento das relações da instituição com o Estado Imperial pode ser vislumbrado a partir da inauguração de suas novas instalações no Paço da Cidade, a 15 de dezembro de 1849. A partir dessa data, o imperador passou a ter uma presença mais assídua nas reuniões do IHGB, contribuindo para a expansão da agremiação. Tal atitude possuiu um poderoso sentido simbólico de fundação, o que pode ser verificado ao analisarmos que a data de 15 de dezembro passou a ser comemorada como o aniversário do IHGB, ao invés da data de 21 de outubro de 1838, original da sua construção. Se a História era vista como um saber que tinha por finalidade instruir e induzir sentimentos nacionalistas, ela necessariamente deveria possuir um caráter pedagógico/pragmático. O surgimento da esfera pública, e mais ainda, a preocupação em alcançá-la, inaugurada com o desenrolar das luzes, era também uma preocupação do IHGB. Com o florescimento e o crescimento de um público leitor, ainda que restrito, cresceu a importância do livro como projeto ilustrado de transformação das mentalidades34. Por isso, o projeto historiográfico empreendido pelo IHGB foi amparado e incorporado através de sua revista, publicada com regularidade desde sua fundação. A resolução de se publicar uma Revista de História e Geografia, cujos objetivos seriam a admissão de trabalhos referentes a essas duas áreas, especificamente voltados para o estudo do espaço territorial brasileiro e suas atribuições históricas, foi tomada logo nos primeiros estatutos. O primeiro volume da Revista do IHGB (RIHGB) data de 1839. Desde então, o periódico foi publicado regularmente, sendo sua última edição a do ano de 2009. Até o ano de 1863, a Revista era composta em volume 33 Quadro formado a partir das informações contidas em: GUIMARÃES, Lucia Paschoal. Op. cit. p. 483/484 e SCHWARCZ, Lilia. Op. cit. p. 105 34 Para uma interpretação sobre um iluminismo menos erudito e mais diversificado, bem como o surgimento da força da opinião pública e da imprensa Cf. BADINTER, E. As paixões intelectuais: desejo e glória (1735-1751). Rio de Janeiro, RJ. Civilização brasileira. V.1, 2007; DARNTON, R. O iluminismo como negócio: história da publicação da ‘Enciclopédia’ 1775-1800. Companhia das Letras 29 único e distribuída em formato anual. A partir do ano seguinte (1864) ela passou a ser dividida em duas partes distintas, publicadas em separado35. A criação do IHGB veio suprir a demanda por uma história nacional. A busca pela historicidade do Brasil implicava, necessariamente, a delimitação de técnicas fundamentais para essa tarefa. Nesse sentido, o IHGB visava fundamentar e formalizar um programa de pesquisa histórica, ao coligir, publicar e arquivar as fontes indispensáveis para se erigir um índice da realidade passada. A partir da coleta de documentos e de suas publicações, as experiências passadas seriam resgatadas e se faria possível a escrita de uma história “verdadeira”. Tendo em vista esse objetivo arquivístico, o IHGB dedicou parte da sua Revista à publicação de fontes variadas. A Revista do IHGB ilustrou a preocupação das narrativas historiográficas em desvendar, defender e legitimar o país em formação. Ela passou a ser o veículo principal de difusão do material, das ideias, dos eventos e dos debates ocorridos no Instituto. Em suas páginas encontravam-se registradas as diversas atividades da instituição através de relatórios, bem como cerimônias e atos comemorativos, publicações de artigos e resenhas de obras, além de transcrições de fontes primárias como forma de preservar a História do Brasil. Grande parte do periódico era dedicada às biografias de brasileiros “distintos por letras e virtudes”, onde percebemos a influência de uma história pensada e produzida sob a égide oitocentista, calcada nas vidas e nos feitos dos grandes homens. Havia, ainda, uma parte do periódico composta pelas atas das sessões quinzenais realizadas no Instituto Brasileiro. A partir do ano de 1880, este passou a constar com a publicação dos nomes de todos os sócios vivos do Instituto e com as datas das respectivas admissões. Um segundo corpo temático amplamente tratado na Revista do IHGB diz respeito aos artigos relativos às viagens e exploração do território brasileiro. Sabemos que o Instituto Histórico procurou abrir diversas frentes de trabalhos referentes à coleta de documentos, tanto no próprio território brasileiro como no exterior, inaugurando um tipo de pesquisa que prezava por um rigor documental até então inusitado. O Instituto, amparado pelo poder imperial, incumbiu indivíduos de percorrerem diferentes bibliotecas com o objetivo de aumentar o acervo documental referente ao Brasil. O tratamento desse assunto pelo IHGB privilegiou questões acerca de fronteiras e limites e ligou-se à formação de uma identidade físico-geográfica para nação36. Juntamente, eram retratadas as riquezas naturais, ampliando as possibilidades de exploração econômica das regiões distantes por parte do governo imperial. 35 36 FLEIUSS, Max, O Instituto Histórico através de sua revista. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1938 GUIMARÃES, Manoel Salgado. Op. cit 30 Temas relativos à história das diferentes províncias também se encontravam nas páginas da Revista do IHGB. Essa tentativa de recolher informações na capital da monarquia de conhecimentos relativos às demais regiões do país era mais uma expressão de um projeto intelectual e político claramente centralizador37. A elaboração de uma proposta de periodização que oferecesse uma ordenação para a temporalidade nacional também se constituiu em tarefa dos homens de ciências e letras do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Para isso, foi necessário estabelecer uma organização sucessiva dos acontecimentos, que obedecesse a uma lógica cronológica e fornecesse um sentido histórico para a construção da nação. Vale lembrar que a concepção de história presente no IHGB possuía profundas heranças iluministas marcadas por uma noção processual da temporalidade. Esse sentido teleológico garantia ao intelectual responsável pela escrita da história um considerável papel na definição dos rumos da narrativa. Mais uma vez, apontamos para a função política dessa ordenação do tempo. Claramente, a montagem de uma periodização histórica correspondia aos interesses de um projeto político que visava o fortalecimento do Segundo Reinado. A organização de uma estrutura cronológica nacional era, portanto, um dos principais objetivos dos letrados dos IHGB. Variadas foram as propostas de definição de uma temporalidade para a nação e, vale lembrar, estiveram envoltas por intensas disputas e debates nos círculos intelectuais. O modelo de periodização aceito como o mais hábil fixou três grandes marcos para a narrativa da história nacional: a) a natureza do indígena antes da chegada do português; b) o descobrimento e a colonização do Brasil; c) o período da independência. Esse padrão de periodização, caracterizado pela ideia de continuidade e evolução, reforçava a noção de ordem/desordem, como destacado por Ilmar de Mattos. O tempo passado, anterior à chegada do colonizador, era acentuado pela barbárie, em contrapartida, o momento da colonização encerrava esse aspecto e inaugurava um tempo ordenado e civilizado. Para além de uma definição cronológica, era necessário delimitar os elementos que seriam eleitos a integrarem a história do Brasil. O naturalista bávaro Von Martius, motivado pelo concurso promovido pelo IHGB em 1844, foi um dos primeiros a especificar os aspectos que concorreram para a formação do “povo brasileiro”. A pergunta, “como se deve escrever a história do Brasil?” foi lançada pelo concurso e a resposta vencedora foi a do naturalista que destacou a existência de três diferentes raças nesse processo. Segundo Von Martius, seriam as 37 GUIMARÃES, Manoel Salgado. Op. cit. 31 raças caucasiana, etíope e indígena as responsáveis pela constituição da nacionalidade brasileira. Assim dizia Von Martius. devia ser um ponto capital para o historiador reflexivo mostrar como no desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condições para o aperfeiçoamento de três raças humanas, que nesse país são colocadas uma ao lado da outra, de uma maneira desconhecida na história antiga, só agora principia o Brasil a sentir-se como um Todo Unido38 Sua proposta foi audaz por integrar, não apenas o índio, mas também o negro nesse processo. Justamente pelo fato de o povo brasileiro se constituir da mistura inusitada de três diferentes raças, surgia a singularidade da nação e, apenas uma história que acentuasse essa particularidade poderia ser verdadeiramente científica. Importante advertir, que apesar de endossar a idéia de miscigenação, sua proposta não se constituiu em uma teoria da mestiçagem propriamente dita, posto que apenas argumenta-se sobre a coexistência de diferentes raças e não sobre a forma como se deu essa mistura racial. Tal fato nos liga diretamente ao objetivo desta pesquisa: perceber como os Institutos Históricos, inseridos em uma tradição historiográfica imperial, utilizaram a figura do negro, cativo ou liberto, na elaboração de uma identidade narrativa para a nação. Desde a década de 1840 existiu no ceio da intelectualidade brasileira, a percepção da presença do índio e do negro como parte essencial para edificação de uma história científica do Brasil. Noção que se repetiu inúmeras vezes no interior dos artigos da Revista do IHGB e dos demais Institutos. Ainda que Von Martius tenha se recusado a escrever a História do Brasil, seu projeto historiográfico norteou os trabalhos de historiadores posteriores que, todavia, continuaram a despender pouca atenção à parcela negra dessa amálgama racial. Os indígenas, representando o estado de natureza, apareciam como o símbolo da nacionalidade tropical e como alvo principal de um projeto civilizador encetado pelo homem branco, daí a grande quantidade de trabalhos publicados sobre os índios brasileiros. Os portugueses, representantes da civilização e do progresso, eram o elo principal dessa mescla racial e demarcavam a ascendência européia da população brasileira. Já a componente africana recebeu pouca atenção, perpetuando a idéia de que o negro seria um óbice ao avanço da civilização. A participação do elemento negro se resumiu à constatação evidente da sua presença na realidade social. Esse aspecto será mais bem analisado no capítulo IV dessa 38 MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Como se deve escrever a História do Brasil. In: Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 6(24): 384-401. Jan. 1845. Apud. GUIMARÃES, Luís Salgado. Op. Cit. p. 16-17. 32 dissertação, Lembranças, esquecimentos e silêncios: As retóricas sobre a raça e a escravidão, que tratará das ideias de mistura racial presentes nas revistas dos Institutos Históricos. A construção de um espaço de produção historiográfica elaborado pelo IHGB foi permeada por conflitos, uma vez que diferentes enunciações acerca da nação traziam distintos posicionamentos político-ideológicos. No entanto, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro acabou por estabelecer algumas linhas centrais que formaram um conjunto interpretativo coerente sobre a história do Brasil. O projeto historiográfico em torno desta instituição delimitou os elementos que, aglutinados, conformaram uma identidade coletiva que servia ao projeto político do Estado imperial. Essa tradição historiográfica esteve presente no IHGB durante todo o século XIX, sendo relativamente rompida a partir da década de 1870 com o surgimento de uma nova geração de intelectuais, críticos do modelo de História proposto pelo Instituto39. Contudo, nas páginas da sua Revista, as características de uma História magistra vitae, vista como mestra do futuro e do presente, dotada de grande caráter pedagógico, criadora de um saber que incitava o nacionalismo, esteve presente até o surgimento dos debates acerca da abolição da escravidão e instauração da República, momento em que a instituição necessitou passar por transformações, tanto do ponto de vista estrutural e burocrático, como na sua prática historiográfica. Para além dos objetivos centrais do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de construir uma história da nação, recriando o passado em busca dos mitos de fundação, o IHGB produziu falas marcadamente regionais. Apesar de sua pretensão totalizante, a associação carioca priorizou temas sobre a região sul/sudeste do Brasil, limitando a história da Nação à história da Corte. Em decorrência do lugar de fala dos associados do IHGB, seus discursos adquiriram força política nacional. Essa narrativa homogeneizadora dos fatos e centrada no eixo sul do país, não deixou de suscitar críticas das demais províncias do Império. Dessa forma, na década de 1860, surgia o Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano com a finalidade de narrar uma história local que corrigisse os equívocos daquela enunciada pelo IHGB. 39 ALONSO, Ângela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002 33 1.3. A expansão do modelo institucional e o projeto de história local: O Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano Dentre as diretrizes centrais expostas no discurso de Januário da Cunha Barbosa, então primeiro-secretário do IHGB, no dia 25 de novembro de 1838, encontramos a preocupação com a coleta e publicação de documentos relativos à história do Brasil, o incentivo ao ensino de estudos relacionados à natureza histórica, bem como o incentivo à criação de outras instituições similares nas províncias do Império, de forma que o IHGB, localizado na Corte, canalizasse as informações sobre as diferentes regiões brasileiras. Como apontado por Manoel Salgado40 “do Rio de Janeiro, as luzes deveriam expandir-se para as províncias integrando-as ao projeto de centralização do Estado e criando os suportes necessários para a construção da Nação brasileira”. Diferentes projetos de Estado se encontravam presentes no interior da nação. Os particularismos das elites locais, alijadas do poder centralizado na Corte, expunham a fragilidade do Segundo Reinado. Superar esses localismos e acabar com as ideias separatistas exigia a edificação de uma identidade coletiva, a partir da construção de um passado comum que garantisse um sentimento de pertencimento e, consequentemente a unidade nacional. A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro esteve relacionada a esse projeto. Contudo, era preciso erigir novas instituições, em diferentes localidades do Brasil, com objetivos semelhantes de preservação e divulgação do conhecimento histórico, que cooperassem para a formação de um sentimento de pertença que asseguraria o modelo de estado imperial. Nesse sentido, foi criado, no ano de 1862, o Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano. Sua fundação caracteriza a definitiva integração da província na ordem imperial. A primeira metade do século XIX foi repleta de movimentos insurrecionais em Pernambuco e outras áreas do Império. A Revolução Pernambucana (1817), a Confederação do Equador (1824), a Guerra dos Cabanos (1834) e a Revolução Praieira (1848) ilustram a agitação social e política em que se encontrava a província. Desde 1861, o editorial do Diário de Pernabuco41 trazia à tona a inquietação da intelectualidade local referente à necessidade de uma versão pernambucana dos fatos cruciais da história do Brasil. Era notável o desejo de 40 GUIMARÃES, Manoel Salgado. op. Cit. P. 8 No ano de 1861 o jornal Diário de Pernambuco, lançou a pergunta: “Teremos nós uma história propriamente nossa, propriamente pernambucana? Cf. SOUZA, George Felix C. de; NEVES, Fernanda Ivo; LEÃO, Reinaldo Carneiro; GALVÃO, Tácito Cordeiro. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano: breve história ilustrada. Recife: IAHGP, 2010, p.27. 41 34 elaboração de uma história regional que preservasse e exaltasse o passado de Pernambuco, legitimando a importância da província no contexto político imperial e que deslocasse a concentração da produção de conhecimento do eixo centro-sul do país. Adelino Antonio de Luna Freire, na sessão solene de 1898, expunha a finalidade de criação da associação. (...) a instalação do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, que, de conformidade com seus estatutos, tem por fim coligir, verificar e publicar os documentos, monumentos e tradições, relativos à história das províncias que formavam as antigas capitanias de Pernambuco e Itamaracá, desde a época do seu descobrimento até nossos dias42. Dois acontecimentos tiveram profundo impacto na decisão de se fundar uma sociedade pernambucana que seguisse o modelo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A passagem de D. Pedro II por Pernambuco (1859) e, dois anos após, a visita de Francisco Adolfo Varnhagen à cidade de Olinda (1861) colocou em relevo o estado de abandono e de ignorância em que se encontrava a província. Para a inteligência local era imperativa a criação de uma narrativa dos fatos que corrigisse as deformações de uma perspectiva unitária vinda da Corte. Não raro, eram formulados discursos que protestavam contra as formas como a história do norte estava sendo narrada pelos homens de letras do IHGB, como no caso da História geral do Brasil, escrita por Varnhagen, com destaque para as interpretações produzidas a respeito da Revolução de 1817. Da mesma forma, encontramos asseverações sobre a não participação de Pernambuco na formação da história nacional. Em janeiro de 1862, surgiu a idéia de formação de uma sociedade de antiquários destinada a promover o estudo da História de Pernambuco. No dia 7 do mesmo mês circulou um convite para uma reunião na Biblioteca Provincial na qual se discutiria a respeito da necessidade de uma instituição pernambucana aos moldes do IHGB43. Tal iniciativa foi capitaneada por cinco homens que se tornaram os sócios fundadores do futuro IAGP: Joaquim Pires Machado Portela, Antônio Rangel Torres Bandeira, Salvador Henrique de Albuquerque, Antônio Vitrúvio Pinto Bandeira e Acioli de Vasconcelos e, José Soares de Azevedo. No dia previsto para a reunião estiveram presentes, além dos cinco sócios fundadores, vinte e dois convidados, que procederam à instalação da Sociedade Arqueológica Pernambucana, nome dado ao Instituto Arqueológico Pernambucano em seus primeiros meses. Como presidente 42 43 Revista do IAHGP, Pernambuco, 1898. Exemplar nº 51, p.168/169 Revista do IHAGP. Pernambuco, n.2, jan-1864, pp. 58-60. 35 interino foi eleito Joaquim Pires Machado Portela, conhecido fazendeiro local44. Nas palavras de João Baptista Regueira Costa, primeiro secretário do Instituto Arqueológico no final do século XIX, aquela foi a “data em que cinco homens se reuniram para salvar do esquecimento os documentos, monumentos e tradições de Pernambuco e das províncias que lhe ficam vizinhas” 45. O modelo de organização interna do Instituto Arqueológico seguia o exemplo do IHGB. Ao analisarmos o perfil dos cinco sócios pioneiros percebemos que apesar de possuírem origens e posições sociais distintas, todos exerciam funções no magistério, e em sua maioria foram jornalistas e servidores públicos. Analisando os membros do IAGP de uma maneira geral, percebemos que eram oriundos de uma elite rural tradicional, porém decadente em face da situação da lavoura açucareira e da expansão da produção de café no sudeste. A agremiação era basicamente composta por proprietários locais, junto a alguns homens da Igreja e poucos profissionais liberais46. O recrutamento dos membros não gozava de critérios intelectuais propriamente ditos, portanto, não era necessária a apresentação de nenhuma obra dedicada aos estudos históricos para ser aceito como sócio, mas era imperativo possuir prestígio social e político no contexto da província. O quadro de membros também seguia o modelo de divisão do IHGB. Nesse sentido, o Instituto Arqueológico possuía sócios efetivos, correspondentes, de honra, beneméritos, o presidente e o presidente honorário. Ainda em agosto de 1862, no dia 16, foi aprovado o primeiro estatuto que transformou o nome da Sociedade para Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, que continuou a funcionar no mesmo local, no Convento do Carmo, junto a Biblioteca Provincial. O vocábulo “arqueológico” foi utilizado por ser considerado designativo do conhecimento do passado de forma mais abrangente. A palavra “pernambucano” foi escolhida com a intenção de ressaltar a idéia de pertencimento da instituição junto a população local47. Em setembro desse mesmo ano, o Monsenhor Francisco Muniz Tavarez, insurgente da Revolução de 1817, tomou posse como presidente do IAGP. Ao IAGP competia a responsabilidade de atuar na preservação do passado pernambucano e na produção do conhecimento histórico à luz das modernas práticas científicas. Com essa finalidade surgiu a Revista do Instituto Arqueológico (RIHGAP), que começou a circular no ano de 1863. A RIAHGP experimentou algumas interrupções ao longo 44 A ata de fundação da Sociedade Arqueológica Pernambucana foi publicada no primeiro número da Revista do Instituto Arqueológico, no ano de 1863. 45 Revista do IHAGP, Pernambuco, 1891. Exemplar nº 40, p. 172 46 SCHWARCZ, Lilia. p. 157 47 SOUZA, George Felix C. de; NEVES, Fernanda Ivo; LEÃO, Reinaldo Carneiro; GALVÃO, Tácito Cordeiro. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano: breve história ilustrada. Recife: IAHGP, 2010 36 de sua história, em decorrência das dificuldades financeiras enfrentadas pela instituição. Sua publicação foi interrompida de maneira mais expressiva em duas ocasiões, entre os anos de 1870 e 1883 e uma segunda vez entre 1961 e 1975. Houve, também, hiatos menores ao longo tempo. Nos anos iniciais a periodicidade da Revista era trimestral, seguindo o exemplo do IHGB. A partir do número 79 (volume 15) da Revista, ela passou a ser publicada anualmente. Inicialmente, o periódico se limitava a publicar as atas das sessões ordinárias e extraordinárias, bem como as de aniversários ocorridas na agremiação. Com o passar do tempo, surgiram trabalhos historiográficos que mantiveram os padrões ditados pelo Instituto Brasileiro, ou seja, artigos que privilegiavam aspectos biográficos, políticos e temporalidades mais distantes. A Revista do Arqueológico contou, prioritariamente, com artigos monográficos sobre o passado de Pernambuco, em particular, e do Nordeste, em geral. Os textos referentes à historia regional chegaram a constituir 67% do total dos artigos publicados48. Entre os temas mais frequentemente tratados destacam-se aqueles ligados ao período holandês junto as biografias dos heróis da restauração, a Confederação do Equador e a Revolução de 1817, caracterizada enquanto prenuncio da “vanguarda pernambucana” no que se refere à defesa da liberdade nacional49. Além desse tipo de publicação, a RIAHGP disponibilizava a divulgação de fontes interpretadas como significativas para a construção do passado histórico de Pernambuco. As aspirações intelectuais dos sócios do Instituto Arqueológico necessitavam de financiamento. Diferente do IHGB, até o ano de 1865, as despesas da instituição foram custeadas pelos próprios membros. O imperador, D. Pedro II, apesar de ter aceitado o convite enviado pela instituição, em 1863, para que assumisse a proteção do Instituto junto ao cargo de Presidente Honorário, não se comprometeu com os gastos de funcionamento como fazia com o Instituto Brasileiro. Ao longo de toda existência do IAGP a falta de recursos financeiros se estabeleceu como um problema recorrente. No final de 1865, o Instituto Arqueológico recebeu o valor de 1:620$000 provenientes de uma loteria provincial. Em 1866, foi concedido um subsídio anual de 1:200$000 pela Assembléia Provincial, o que somado à quantia oriunda das mensalidades e jóias dos sócios, bem como da venda das Revistas, possibilitou a manutenção das atividades do Instituto Arqueológico50. As dificuldades financeiras repercutiram no funcionamento da associação, inclusive no que diz respeito às suas instalações físicas. A partir de sua fundação, a instituição funcionava 48 SCHWARCZ, Lilia. P. 154 Idem. 158 50 Idem 49 37 no Convento do Carmo, Recife, onde dividia um salão com a Biblioteca Pública Provincial. Em 1875, o presidente da província de Pernambuco, Henrique Pereira de Lucena, enviou um ofício ao IAGP comunicando que cedia o andar térreo do palacete situado no Campo das Princesas para abrigar a agremiação. Entretanto, as dificuldades habitacionais permaneceram até o ano de 1877, quando foi aprovada lei provincial que oficializou a doação do prédio construído na Rua da Concórdia onde funcionava a antiga Escola Modelo que se encontrava inativa, ao instituto. Nesse edifício o Arqueológico se instalou por cerca de três décadas, sendo expulso em virtude das atribulações políticas que marcaram o início da República no Brasil. Somente em 1920 os problemas referentes à instalação do IAGP foram sanados. Nesse ano, foi inaugurado o edifício doado pelo governo do estado, localizado na atual Rua do Hospício, número 130, lugar que continua abrigando o Instituto Arqueológico até hoje. Apesar dos poucos recursos financeiros, a instituição conseguiu, ainda na década de 1860, alcançar reconhecimento social e intelectual que lhe concedeu legitimidade como lugar de produção do conhecimento histórico e de preservação do patrimônio. Para a aglutinação da memória pernambucana, os sócios do IAGP, reconheceram a necessidade de compilação de um acervo documental composto de produções acadêmicas e de fontes primárias. Com essa finalidade, o Instituto organizou comissões para realização de incursões a variadas localidades onde houvesse a possibilidade de arregimentação de documentos, como paróquias, cartórios ou irmandades. A instituição se responsabilizou, também, em catalogar vestígios de antigas edificações e localizar os lugares de importância histórica para a província, honrando o termo “arqueológico” concedido em sua fundação. O recolhimento de materiais disponíveis do exterior também estava entre as propostas do IAGP. A principal ação promovida nesse sentido ocorreu no ano de 1883 quando, em meio a dissidências políticas que abalavam o quadro de sócios do Instituto Arqueológico, o colegiado solicitou à Assembléia Provincial uma subvenção para financiar a viagem de José Hygino Duarte Pereira à Holanda com o objetivo de examinar e extrair cópias de documentos referentes às guerras holandesas no Brasil. A Assembléia disponibilizou uma quantia de 7:000$ para custear tal competência, que seria paga integralmente ao Instituto. Este teria a função de repassar o dinheiro ao membro responsável pela viagem. A empreitada alcançou grande êxito e formou o mais importante fundo arquivístico sobre o Brasil holandês. Vários desses documentos foram traduzidos e publicados na Revista do IAGP. Resgatar a História local e legitimar o papel de Pernambuco na construção da identidade nacional era função da instituição. Tendo em vista essa finalidade, a elite intelectual da província, demarcava a importância de Pernambuco como centro econômico e 38 político do norte do país, principalmente durante o período de colonização. Segundo Lília Schwarcz, o IAGP respondia às aspirações da província de manter a hegemonia política e cultural no interior do Brasil. Por isso, investia em maneiras de glorificar o passado pernambucano, tornando-o fundamental no processo de construção e valorização da nacionalidade. Já no final do Segundo Reinado, João José Pinto Júnior assim se colocava ao exaltar a história de Pernambuco: “a família pernambucana foi sempre a primeira entre as suas iguais, quer no que diz respeito ao desenvolvimento moral, quer no material!51”. Como salientado anteriormente, o IAGP se opunha ao discurso histórico divulgado pela Corte por considerá-lo injusto em relação aos feitos pernambucanos. Dessa forma, podemos evidenciar a relevância conferida à região norte no interior do panorama nacional. Ao mesmo tempo em que o instituto construía uma narrativa local, buscava recuperar a história das províncias vizinhas, que outrora haviam integrado a área de influencia da antiga capitania-geral de Pernambuco. Assim expunha a ata de fundação da agremiação. Artigo 1º: O Instituto IAGP (...) dará atenção especial à história das províncias que formavam as antigas capitanias de Pernambuco e Itamaracá desde a época dos descobrimentos até agora (RIAHGP, 1863:23) O Instituto Arqueológico promovia entre os próprios habitantes da região um sentimento identitário responsável por inculcar uma consciência de grandeza ao passado histórico de Pernambuco. Em discurso pronunciado pelo desembargador Adelino Antônio de Luna Freire ,este afirma: (...) nenhuma das províncias do antigo império achava-se em melhores condições de ser dotada de tão útil instituição. Possuímos uma história toda nossa, na qual figuram verdadeiros heróis e feitos de tamanha magnitude que bem podem ser equiparados aos decantados na mais remota antiguidade52. Essa valorização da cultura local expressa por Luna Freire já no final do século XIX, se junta a uma noção de precocidade do “sentimento de liberdade” entre os pernambucanos. Para grande parte dos intelectuais do Instituto Arqueológico, esse fato explica-se menos pelas características físicas e geográficas da região, do que pelos acontecimentos da história local. No caso pernambucano, a guerra batava foi interpretada como o primeiro evento da história da província responsável por fazer surgir um espírito de liberdade característico do povo de Pernambuco. Da experiência da ocupação holandesa derivava a singularidade histórica da 51 52 Revista do IAHGP, Pernambuco, 1890. Exemplar nº 37, p.6 Revista do IHAGP, Pernambuco, 1898. Exemplar nº 52. p. 168 39 região. Tanto que a fundação do Instituto Arqueológico foi escolhida para o dia 27 de janeiro, data da capitulação do Taborda (tratado assinado entre holandeses e portugueses que confirmava a rendição neerlandesa) e que até 1830 era celebrada anualmente nas ruas de Pernambuco. Podemos perceber a importância do acontecimento a partir da quantidade de artigos publicados na RIHAGP sobre o tema. Lília Schwarcz calcula que 51% das publicações, entre os anos de 1863 e 1930, tratavam de assuntos referentes à invasão holandesa. Segundo Evaldo Cabral de Mello53, o nativismo inspirou a historiografia pernambucana até o final do século XIX, sendo suplantado, a partir desse período, pela adesão de novos métodos científicos inspirados no positivismo. O nativismo pernambucano considerou-se o herdeiro da restauração, ou seja, as guerras holandesas foram a matriz ideológica do nativismo pernambucano. Durante todo o século XIX encontramos um número significativo de artigos publicados na Revista do IAGP descrevendo os acontecimentos da guerra de restauração. Através desses artigos, apreendemos que as guerras holandesas foram interpretadas por esses homens de letras como um marco da história, pelo qual o presente e o futuro de Pernambuco se justificavam, constituindo-se em uma espécie de mito de formação pernambucano. Se o modelo de elaboração discursiva da disciplina História impunha a urgência de se voltar ao passado e selecionar os fatos que conformariam a narrativa dos feitos provinciais, a restauração foi, sem duvida, o episódio histórico que realizou o papel de legitimar o presente no passado e inculcar na população pernambucana um sentimento identitário. Acerca do resultado da experiência colonial holandesa, de acordo com Evaldo Cabral de Mello, prevaleceu nos círculos intelectuais, até a primeira metade do século XIX, uma visão do invasor como sendo imediatista, ganancioso e herege. Todavia, formou-se, através da tradição oral, o imaginário popular de um tempo batavo mítico. Inserido num passado longínquo, esse tempo era lembrado como um período rico e grandioso. Para o discurso historiográfico da Corte, representado por Varnhagen, o que havia de positivo no período de invasão era a própria batalha contra o holandês, que havia ocasionado a união do povo, significando, em outra perspectiva, a manutenção do território do país e a própria unidade nacional. Na realidade, elogiar o período holandês poderia significar um questionamento ao Segundo Reinado, por isso, no interior do IAGP percebemos uma polarização dos discursos sobre os resultados da experiência batava. Podemos apreender que uma segunda geração de 53 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008 40 intelectuais do Instituto Arqueológico começou a reinterpretar as críticas históricas do período de dominação holandesa empreendendo discussões acerca da presença batava no Brasil que ora encarava negativamente sua presença, ora demonstrava nítida simpatia pelo dominador estrangeiro. Contudo, na maioria dos casos, manteve-se um discurso conciliador que garantia o culto aos restauradores, perpetuando a exaltação do passado pernambucano, e o elogio ao espírito ativo e empreendedor do conquistador holandês. Interessante analisar que entre a intelectualidade da região perpetuou-se a noção de que a guerra de restauração havia unido o povo contra o invasor a partir de uma identidade supra-racial representada por Fernandes Vieira, Vidal de Negreiros, Henrique Dias e Camarão, que juntos, formaram uma tetrarquia que simbolizava a contribuição de diferentes etnias na luta contra os holandeses54. Surgia assim a percepção de uma “raça pernambucana” oriunda do cruzamento racial e acionada para cumprir o dever de constituir a nova nacionalidade brasileira, assunto que será explorado no quarto capítulo desse trabalho. A elite pernambucana possuía uma visão ambígua em relação à mestiçagem, assim como os intelectuais nacionais de uma maneira geral. O enlace racial, apesar de temido, correspondia a uma saída compatível e controlada de representação do povo brasileiro. A idéia de que o Brasil era uma nação composta pela singularidade da mistura racial entre o homem branco, o índio e o negro já era explorada desde a década de 1840 por Von Martius. Nesse sentido, as guerras batavas demonstravam a importância do povo pernambucano nesse processo de amálgama racial. A História de Pernambuco não se constituía na “mais gloriosa de todas da nação brasileira” 55, simplesmente pela sua singularidade. Ela era, acima de tudo, a precursora de incontáveis processos político-sociais que apontavam para o progresso do país. 1.4 O Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará A construção de uma brasilidade, função principal do IHGB, necessitava que o modelo de história nacional fosse compartilhado pela intelectualidade em todo o território do império. Decorre disso a criação dos Institutos regionais nas várias províncias do Brasil. O Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, como vimos, foi a primeira agremiação a se formar seguindo esse modelo. Durante o final do Segundo Reinado, dois outros Institutos foram edificados com os mesmos objetivos: o Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas 54 55 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: Op. Cit Revista do IHAGP, Pernambuco, 1900. Exemplar nº, p. 83 41 (1869) e o Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará (1887). A opção pela análise do Instituto cearense advém do pioneirismo da região no processo de abolição da escravatura, realizada no ano de 1884. Essa escolha se justifica, tendo em vista que o foco desse trabalho se propõe a examinar os artigos monográficos publicados nas Revistas dos Institutos Históricos, interpretando a forma como estes indivíduos lideram com o processo de abolição e a inserção do negro na construção de uma narrativa histórica nacional. Portanto, a província do Ceará, reconhecidamente a primeira a acabar com a escravidão no território brasileiro, teria motivos para selecionar esse evento como imprescindível para a história cearense. Tal fato, precisamente, foi registrado nas páginas da Revista do Instituto do Ceará como um aspecto ilustre e único de seu passado. Essa situação será mais bem analisada no segundo capítulo desse trabalho, Instituindo as Histórias e abolindo as Memórias. Por hora, nos cabe averiguar os contextos de fundação dessa instituição e suas principais contribuições historiográficas. Desde a década de 1870, diferentes expressões intelectuais se faziam presentes na província do Ceará. Nesse período, percebemos a fundação de variados estabelecimentos que reuniam a intelectualidade, tanto na capital, como no interior da província. Exemplos desse processo foram as construções da Academia Francesa, do Gabinete de Leitura Português e do Cosmos Científico. No ano de 1877 houve uma primeira tentativa de fundação do Instituto Histórico do Ceará, atravancada por dissidências políticas. Naquela ocasião, a instituição não conseguiu aprovação dos estatutos junto ao governo provincial. Somente dez anos depois, teve lugar a criação do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará (IHGAC). Ainda sob o intuito de construir uma história da nação, solidificando mitos de fundação e recriando um passado homogêneo e glorioso com a finalidade de formar uma identidade coletiva cearense, foi criado o IHGAC. Na cidade de Fortaleza, no dia 4 de março de 1887, se reuniu um conjunto de intelectuais locais, cujo objetivo era a formação de uma sociedade que seguisse o modelo ideológico do IHGB. Com esse fim, doze homens deram início ao projeto: Paulino Nogueira Borges da Fonseca; Barão de Studart; Joakim de Oliveira Catunda; João Augusto da Frota; Juvenal Galeno da Costa e Silva; José Sombra; Virgílio Brígido; Virgílio Augusto de Moraes; João Batista Perdigão de Oliveira; Antônio Augusto de Vasconcelos; Antônio Bezerra de Menezes; e Júlio César da Fonseca Filho. Se o IHGB servia como associação norteadora para os demais Institutos Históricos, no tangente à região norte do país, o Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano, assumia, igualmente, o lugar de “instituição modelo”. A proximidade 42 geográfica entre as Províncias do Ceará e de Pernambuco possibilitava a aproximação dos intelectuais de ambas as localidades. Por exemplo, grande parte dos letrados cearenses havia passado pela Escola de Direito de Recife, que cumpria o papel de educar a elite dirigente do nordeste. Sem falar que a distância desses locais dos grandes centros, colocava Ceará e Pernambuco em condições semelhantes quanto à possibilidade de representação política junto ao governo imperial56. A análise do quadro dos sócios da associação nos fornece dados que convergem com o perfil dos intelectuais do IHGB e do IAGP. O Instituto cearense congregou diferentes profissionais, professores, políticos, médicos, engenheiros, jornalistas, poetas ou religiosos. Muitos desses indivíduos estiveram ligados à Escola de Direito de Recife e constituíam a burguesia local emergente. Homens, identificados com as concepções de ciência e progresso, que haviam se incumbido da tarefa de construir uma tradição no passado da província capaz de legitimar e definir uma História do Ceará. Com diferentes posturas acadêmicas, a intelectualidade presente no IHGAC tinha a intenção de galgar um espaço para o Ceará na História do Brasil. Coube, portanto, a esses homens definir a origem mítica da História cearense, ou seja, seus primeiros conquistadores e heróis fundadores e, a partir deles edificar uma tradição para a província. Como apontado por Hobsbawn 57 , “toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como elemento legitimador e de coesão”, a missão do Instituto cearense, assim como dos demais Institutos Históricos era, justamente, construir uma tradição, fonte de poder simbólico e temporal, que propiciaria a narrativa da gênese da nação58. Importante destacar que, mesmo sendo fundado num período de complicações e turbulências políticas em torno da abolição da escravidão e da crise da monarquia, o IHGAC seguiu o mesmo modelo dos demais Institutos Históricos. Em trecho a seguir, Capistrano de Abreu nos informa sobre as intenções dos intelectuais cearenses de mapearem o passado e construírem uma narrativa histórica para o Ceará. Ao mesmo tempo, o autor aponta para dificuldades de tal empreitada, tendo em vista os poucos feitos memoráveis ocorridos naquela região. “O Ceará é dos estados do Norte, quiçá de todos da União, o que com mais afinco se entrega ao estudo das suas coisas passadas. Talvez por não ter 56 MENESCAL, Ana Alice Miranda, A História trazia à luz: o instituto do Ceará e as análises acerca dos povos indígenas. Campina Grande, Ano III, vol. 1, nº 4, 2012 57 HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A Invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2012, p. 21. 58 OLIVEIRA, Almir Leal de. História, tradições e patriotismo: o significado das comemorações do tricentenário do Ceará. Proj. História: São Paulo, abr. 2000 43 propriamente historia, isto é, faltarem-lhe fatos estrondosos que chamam e fixam a atenção (...)59. Tendo em vista a percepção científica a respeito da disciplina História, no Brasil do século XIX, interpretada como sendo fruto de grandes feitos, elaborados por grandes homens, entendemos a afirmação de Capistrano de Abreu. Se pararmos para lembrar que essa mesma História nascia de intelectuais provenientes da Corte e que privilegiava acontecimentos ocorridos no eixo sul do país, quando muito, de regiões mais afastadas como Pernambuco, conseguimos compreender a fala do autor de que o Ceará não possuía, propriamente, uma narrativa valiosa do passado. Em uma passagem simples, Capistrano de Abreu expõe os principais anseios e a principal dificuldade dos homens de letra do IHGAC, ou seja, a construção de símbolos e tradições que permitissem a formação e a legitimação de uma narrativa histórica capaz de estabelecer uma sentimento de identidade entre a população e o local. Era necessário, portanto, que os integrantes do Instituto Histórico do Ceará realizassem um cansativo trabalho de produção de artigos monográficos, de descoberta e análise de fontes, assim como a organização de cronologias, de maneira que o conhecimento histórico produzido validasse uma visão do passado que agregasse valor à história do povo cearense. A criação da Revista ocorreu no mesmo ano de criação do Instituto e, assim como nas demais agremiações, se deteve em publicações de fontes primárias e em artigos monográficos que priorizavam o período da colonização, além de pequenas biografias. Desde o primeiro volume da Revista do Instituto Histórico do Ceará (RIHC) a temática indígena se fez evidente. Para os intelectuais do IHGAC era imprescindível a elaboração de estudos acerca da pré-história local, bem como a execução de pesquisas sobre os primórdios do povo cearense. Mesmo antes da fundação do Instituto, essa preocupação já rondava a intelectualidade. Ainda em 1850, Tristão de Alencar Araripe60, realizou um trabalho, no qual analisou a população nativa e os desdobramentos da colonização portuguesa na região61. Condizente com a postura da historiografia oitocentista, os homens de letras do Instituto do Ceará logo trataram de realizar a coleta dos documentos necessários à fundação da história primitiva das terras cearenses. Os principais documentos localizados datavam dos séculos XVII e XVIII e, em grande medida, compunham relatos de viajantes estrangeiros. Tais fontes traziam uma visão distorcida das populações nativas e seus costumes, o que foi 59 Revista do IHGAC, 1899. Tomo XIII. p. 22 ARARIPE, Tristão Alencar. História da Província do Ceará - desde os tempos primitivos até 1850. 2ª Edição, Col. História e Cultura, do Instituto do Ceará, Fortaleza, 1958. 61 MENESCAL, Ana Alice Miranda, Op. Cit. 60 44 atribuído como verdade por grande parte dos círculos intelectuais que conformavam o IHGAC. Esses homens acabaram por elaborar uma história, na qual o indígena era sinônimo de barbárie e atraso. Se a memória está relacionada ao sentimento identitário e o objetivo do instituto cearense era a criação do sentido de identificação da sociedade com o lugar, a lembrança que cabia explorar era a que remetia à noção de civilização, ou seja, a chegada do homem branco na imagem do colonizador. Detentor das luzes, o europeu apareceu, na historiografia local, como uma forma de superação do Estado de Natureza em que viviam os povos indígenas. Se os letrados não podiam escapar da memória do nativo como componente central para a formação da população cearense, cabia a eles estipular que a esses indivíduos competiu menor relevância no processo de interação. O povo do Ceará era, portanto, fruto do processo civilizatório que teve origem com a colonização62. Para os letrados que publicavam na Revista do IHGAC era preciso organizar uma seleção dos feitos passados em busca da criação de memórias históricas para a população cearense. O que interessava ao modelo historiográfico da época era a cristalização de momentos que marcaram a chegada das luzes ao Ceará, da civilização trazida pelos portugueses. Se as publicações do Instituto do Ceará traduziam os primeiros olhares sobre os povos indígenas, habitantes originais do território, ainda que de forma pejorativa, elas não se preocuparam tanto em identificar o estrangeiro africano na configuração identitária do povo cearense. Grande parte da intelectualidade do Ceará assumiu o discurso de que a população local havia se formado da mescla, quase que exclusiva, do nativo com o colonizador europeu, exemplo desse tipo de interpretação pode ser visto na literatura de José de Alencar e sua obra Iracema. Inúmeros historiadores justificaram a falta da presença de negros no Ceará por razões distintas – a inexistência de uma companhia cearense que importasse escravos diretamente da África; a submissão administrativa do Ceará à província de Pernambuco até o ano de 1799, o que lhe impedia de comprar escravos de outras regiões; ou ainda pelos altos preços da escravaria. Em vista desses aspectos, o Ceará teria contado com uma parcela ínfima de negros na sua configuração populacional. Ao se apagar a presença escrava no Ceará, automaticamente torna-se inegável o processo de mestiçagem envolvendo somente o indígena e o português, concedendo ao elemento negro um lugar secundário na formação étnico-racial do cearense. Uma renovação historiográfica vem rompendo com a visão tradicional que 62 MENESCAL, Ana Alice Miranda, Comemorações, memórias e documentos: uma hermenêutica da ideologia nacionalista na Revista do Instituto do Ceará do ano de 1903. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, vol. 4, nº7, 2012 45 associa a existência do negro puramente à manutenção da sociedade escravista e procurando tematizar sobre as experiências de populações negras, dentro e fora dos espaços da escravidão63. Apesar de priorizarem a presença indígena, os historiadores do instituto cearense não negligenciaram de todo a participação da população negra na formação da sociedade. Nos registros das Revistas do Instituto a temática sobre os homens de cor, escravos ou livres, aparece com alguma frequência nos artigos. No nono tomo da revista assim aparece registrado: De feito, mui poucos portugueses, quase exclusivamente de origem berbere, e alguns crioulos que vinham de Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande, pelo litoral, ou da Bahia e de Sergipe, pelo interior, associados aos fragmentos da raça tupi, dentro em pouco, deviam fazer do ceará uma colônia muito populosa64 Vários são os exemplos do interesse em torno da presença e da participação de negros na sociedade pelos membros do IHGAC. Afirmativas como esta arruínam argumentos a favor da não existência de homens de cor no Ceará e trazem à tona a problemática do convívio de negros, brancos e indígenas na configuração da identidade do povo cearense. Contudo, seguindo os preceitos inaugurados por Von Martius, na década de 1840, a parcela negra da mistura racial foi preterida das análises historiográficas, como tentativa de apagar a herança africana da formação do povo brasileiro. Bastava reconhecer a realidade nacional que expunha, incontestavelmente, a africanidade da sociedade. Ou seja, os estudos estacionavam no reconhecimento de que o elemento negro havia entrado na composição étnico-racial da população, dedicar-se em análises para entender como se deu esse processo não fazia parte das preocupações dos historiadores dos Institutos Históricos. 1.5 O Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo A fundação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) relacionou-se ao momento histórico marcado pelo crescimento da região sudeste do Brasil impulsionado, desde a primeira metade do século XIX, pela cafeicultura. Com o progresso do setor cafeeiro, a cidade de São Paulo adquiriu importância no cenário político e passou a se configurar no 63 MATRIZ, Silvana Fernandes. Disputas discursivas ou alquimias identitárias? Identidades em trânsito no Ceará pós-Durban. Cadernos do CEOM - Ano 24, n. 35 - Identidades 64 Revista do IHGAC. Fortaleza, 1900. Tomo IX, p. 242 46 principal centro econômico do país, local de moradia da mais próspera elite nacional. Influenciados pelas idéias de progresso e civilização, expressas na crença pela ciência, indústria e urbanização, os integrantes do Instituto paulista, em seus anos iniciais, compactuaram de uma visão otimista acerca do processo de modernização imperante na cidade. O primeiro estatuto, datado de 1884, assim definia as intenções da agremiação. Promover o estudo e o desenvolvimento da história e geografia do Brasil, e principalmente do Estado de S. Paulo e bem assim ocupar-se de questões e assuntos literários, científicos, artísticos e industriais, que possam interessar o país sob qualquer ponto de vista. (RIHGSP, 1895) O IHGSP foi fundado após a instauração da República, em meio a um processo de disputas políticas por parte da elite econômica paulista pelo predomínio no governo federal. Nesse momento, teve início a necessidade de estabelecimento de uma cultura regional que correspondesse às pretensões dos grupos dominantes locais. Assim como nos demais Institutos Históricos, a intenção dos círculos intelectuais de São Paulo era construir uma história para a região dotada de grandes feitos que pudessem exaltar a respeitável posição de São Paulo na narrativa histórica nacional65. A iniciativa de concepção de uma instituição responsável por construir uma história nacional que exaltasse o exemplo paulista partiu de Domingos José Nogueira Jaguaribe Filho, Antônio de Toledo Piza e Estevan Leão Borroul. Estes homens se encarregaram de convidar a intelectualidade paulista para uma reunião realizada no dia 1º de novembro de 1894, no salão nobre da Faculdade de Direito, cedido pelo então diretor, o Barão de Ramalho. O objetivo da reunião era tratar da criação do Instituto Histórico e Geográfico Paulista. Cento e trinta e nove pessoas atenderam ao convite e subscreveram a ata da fundação do instituto. No mesmo dia da fundação, a assembléia elegeu Prudente de Morais presidente honorário do IHGSP, que após duas semanas assumiu a presidência da República brasileira. A agremiação paulista, ainda que tenha sido construída no período republicano, manteve as características administrativas e historiográficas do modelo inaugurado pelo IHGB, dando ênfase a um conhecimento cívico-patriótico da nação. Logo na primeira sessão da instituição, que contou com a participação de 69 integrantes, foram estabelecidas as regras que normatizariam as atividades do IHGSP. Os sócios deveriam se reunir quinzenalmente para apresentação dos trabalhos e para decidirem os deveres institucionais, como atos públicos, homenagens a historiadores, cunhagem de moedas ou emissões de selos. O IHGSP 65 Schwarcz, Lília. Op. Cit. 47 manteve o mesmo formato de hierarquia interna inaugurado pelo Instituto Brasileiro, conservando as mesmas formas de associação que variaram em cinco tipos: presidente, sócios de honra, sócios beneméritos, sócios efetivos ou sócios correspondentes. Podemos verificar certa homogeneidade quanto ao aspecto sócio-econômico dos associados do Instituto de São Paulo. Grande parte da elite intelectual paulista que compunha o IHGSP já participava do MP e da Academia de Direito, e a maior parte dos seus membros mantinha funções no aparelho de estado. Entre os sócios do IHGSP encontramos médicos, juízes, advogados, diplomatas e engenheiros. Além de exercer cargos públicos, muitos dos sócios eram integrantes das famílias tradicionais paulistas e formavam a elite política e econômica nacional. O Instituto Histórico de São Paulo era mantido por um estado poderoso, o que lhe garantiu uma situação financeira estável. Além das jóias pagas pelos associados, a instituição recebia uma ajuda financeira dos cofres públicos de cerca de 44% do total dos custos necessários ao funcionamento do Instituto paulista66. Assim como as demais instituições tratadas nesse trabalho, o IHGSP vivenciou dificuldade de fixação habitacional, funcionando em várias localidades, até conseguir inaugurar sua sede própria no ano de 1909. O IHGSP conservava o objetivo de produzir um periódico encarregado de colocar em prática as atividades filosóficas de seus sócios, portanto, estipulou-se a criação da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (RIHGSP). O primeiro estatuto da agremiação demonstra as intenções da instituição: “Publicar uma revista, uma vez ao menos anualmente, dando conta da vida da associação e onde fiquem arquivados os trabalhos que o Instituto julgar úteis e interessantes.” (RIGHB, 1895). Assim como foi percebido para as outras instituições, a agremiação paulista contou com um número grande de artigos sobre assuntos locais. A intenção era apontar para um passado de liderança de São Paulo em relação aos demais estados do Brasil, exaltando os feitos regionais, de maneira que sua história o tornasse essencial para a nação. Entre os membros do Instituto paulista, nem todos publicavam artigos nas revistas. Os trabalhos apresentados para publicação necessitavam de aprovação do presidente e de uma comissão avaliadora que realizava a aceitação em assembléia. Havia, internamente, interesses e conflitos que levavam nomes mais conhecidos no IHGSP a aparecerem mais frequentemente. Podemos destacar a participação constante, nos primeiros anos da Revista, de 66 Idem 48 Afonso A. de Freitas e Theodoro Sampaio67. O periódico era apresentado anualmente e, além dos artigos monográficos, era composto pelas atas das reuniões. Antonio Celso Ferreira dividiu as publicações da RIHGSP em grupos temáticos: Estudos Geográficos; Estudos Biográficos; Estudos Históricos; Estudos Lingüísticos; Estudos Antropológicos; Estudos Genealógicos; Narrativas e Relatos de Viagem pelo Brasil ou pelo mundo. Ao quantificar o número de publicações relativas a cada um dos temas, o autor destacou a predominância de estudos referentes à área de História, o que confirma as intenções do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo de selecionar os feitos paulistas, e designar à sua história um lugar primordial para a constituição do Brasil. Importante assinalar para um ponto de distinção essencial entre o Instituto paulista e o grêmio carioca. O momento histórico de fundação do IHGB o ligava estritamente ao Estado Imperial e seu projeto de centralização, enquanto que o IHGSP, fundado já no período republicano, apoiou desde o início a nova configuração política do Brasil. Como destacado por Lílian Schwarcz68, se o IHGB adotou como seu protetor o imperador D. Pedro II, o Instituto de São Paulo contou com a participação de importantes presidentes do Brasil: Campos Salles, Rodrigues Alves, Washington Luís, Prudente de Moraes. Por isso, verificamos que desde a primeira publicação da Revista do Instituto Histórico de São Paulo uma série de artigos destaca os valores republicanos, ao mesmo tempo em que critica o passado monárquico e seus personagens. A intelectualidade paulista, assim como a pernambucana, buscava criticar a centralidade intelectual do Rio de Janeiro representada pelo IHGB. Dessa forma, o IHGSP atribuiu-se à tarefa de resgatar ou inventar símbolos locais que durante o Império haviam se concentrado apenas na Corte. A ascensão das regiões paulistas produtoras de café, frente à decadência das fazendas cariocas do vale do Paraíba, juntamente com o crescimento estrutural das cidades de São Paulo, ocasionou uma mudança na configuração das disputas de poder no Brasil. O eixo sul-sudeste continuava a concentrar a força política do país, no entanto, o Rio de Janeiro, aos pouco, perdia espaço para o estado de São Paulo. As querelas políticas e econômicas, oriundas da expansão cafeeira e da instauração do novo regime republicano, se fizeram sentir na esfera intelectual e o Instituto Histórico Paulista reproduziu, internamente, os dilemas vivenciados pelo país. De acordo com Lilia Schwarcz, essa marca pode ser 67 MAHL, Marcelo Lapuente. Teorias raciais e interpretação histórica: o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (1894-1940). Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista. Assis, 2001. 68 SCHWARCZ, Lília. Op. Cit 49 percebida na absoluta falta de referências ao estabelecimento carioca por parte do Instituto de paulista. A distribuição temática dos artigos da Revista do Instituto Histórico de São Paulo era semelhante às encontradas nas demais instituições, constando de trabalhos de história e biografias que se assentavam no período colonial, além de problemáticas relacionadas aos indígenas e à consolidação da ordem republicana. No entanto, o papel do IHGSP era exaltar a participação dos feitos paulistas na construção da narrativa histórica da nação. Por isso, a intelectualidade da região privilegiou os assuntos em torno da expansão e conquista bandeirante, destacando os aspectos de selvageria da população nativa, bem como trabalhos biográficos de indivíduos locais, como forma de consagrar personagens da história paulista. O fenômeno do bandeirismo recebeu destaque especial dos membros do Instituto. O bandeirante foi eleito o personagem representativo de uma identidade paulista, característico da história local e digno de destaque em todo Brasil. A valorização e popularização da figura do bandeirante encontra-se ainda presente em parte da historiográfica e nos livros didáticos escolares, que chamam atenção para o espírito aventureiro e valente dos “primeiros aventureiros do país”. A associação da grandeza de São Paulo ao seu passado bandeirante garantiu a marca de originalidade e nobreza do estado paulista. O homem local, representado pela figura do bandeirante, havia lutado contra as adversidades que a natureza impunha, desenvolvendo características físicas especiais que permitiram a exploração do território brasileiro. Ora as terras brasílicas eram apresentadas como perversas e selvagens, ora apareciam como harmoniosas e belas, seguindo a tradição romântica do século XIX. Em ambos os casos, a natureza havia proporcionado a formação do tipo racial paulista ilustrado na imagem do bandeirante, seja através da tentativa de superação das adversidades impostas pelo meio ambiente, seja exatamente pelo contrário, numa visão onde a natureza inspiradora permitia o afloramento dos melhores sentidos e sentimentos humanos69. A importância da origem bandeirante para a sociedade paulista pode ser percebida quando averiguamos que parte da elite representada nos quadros associativos do Instituto de São Paulo procurava vincular-se genealogicamente aos antigos exploradores das terras brasileiras. Assim como em Pernambuco, o Instituto de São Paulo destacou a formação de um tipo racial único através da miscigenação do homem branco, com o indígena e o negro. Essa mistura entre raças seria a responsável por compor a raça paulista, constantemente associada ao bandeirante. Segundo essa teoria, exposta frequentemente nas páginas da Revista do 69 MAHL, Marcelo Lapuente. Teorias raciais e interpretação histórica: o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (1894-1940). Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis (UNESP). Assis, 2001 50 Instituto, a qualidade inata do bandeirante era proveniente, em primeiro lugar, da sua condição étnico-racial. Somente a miscigenação seria capaz de promover um tipo humano desbravador e corajoso, responsável por promover a conquista do território que conformaria o Brasil. Mais uma vez, notamos no Instituto paulista o mesmo ocorrido para as outras agremiações, a desvalorização do elemento negro no processo de miscigenação. O indígena, nativo natural, não raras vezes tornou-se o único indivíduo apresentado como participante da mistura racial. Novamente, em São Paulo se perpetuava a noção de que o indígena era cabível de redenção, mas o negro era, claramente, um impedimento à civilização e, dessa forma, deveria ser silenciada a sua participação para a composição racial do povo brasileiro. Todavia, não podemos procurar uma coerência teórica absoluta no IHGSP, o grêmio paulista soube misturar evolucionismo com darwinismo social, poligenismo e monogenismo, cientificismo e religião. Ao lado de ideias que afirmavam a superioridade da raça paulista justamente por ser fruto da miscigenação, não raro encontramos perspectivas contrárias que viam negativamente a mistura racial. Vale lembrar que essa mesma elite paulista assumiu o compromisso de promover uma imigração européia que restringia a entrada de indivíduos negros e asiáticos no país. Oliveira Vianna, por exemplo, acreditava que a população de São Paulo seria intelectualmente superior às demais do país devido ao pouco enlace racial ocorrido na região. Euclides da Cunha, figura de extrema importância para a história do IHGSP, também condenou a miscigenação em seu livro Os Sertões, lido nas sessões do instituto antes de sua publicação70. Portanto, a produção intelectual do IHGSP reflete os debates ocorridos internacionalmente e entre os grupos de letrados brasileiros que se baseavam nas teorias raciais européias. 1.6 Possibilidades de leituras A criação dos Institutos Históricos nasceu da intenção de formalizar uma cronologia própria para a nação, de maneira que a disciplina da história ajudasse a fundamentar as bases do estado nacional. Tratava-se de uma perspectiva historiográfica baseada no cientificismo e no positivismo, assentada nas ideias de progresso e civilização, através da qual a intelectualidade forjava uma tradição que pudesse compor o processo de gênese do Estado nacional. Através de uma seleção estrita dos eventos passados esse modelo historiográfico construía memórias que alimentavam sentimentos identitários entre a sociedade e o país. 70 Idem. 51 Precursor desse processo, o IHGB foi o maior representante do projeto centralizador do estado imperial nos círculos intelectuais e o responsável pela constituição de uma memória nacional legitimadora do regime monárquico. Sua fidelidade à monarquia ditava os limites da sua produção intelectual. Todas as instituições que seguiram o modelo do IHGB necessitaram criar uma linguagem historiográfica própria, na qual estivessem inseridos fatos e personagens essenciais para a história do Brasil. Nesse tangente, as diferenças políticas e regionais se fizeram presentes e podem ser vislumbradas nos periódicos de cada uma das agremiações. Nesse sentido, o IAGP assumiu, para o caso da região norte do país, função semelhante ao IHGB. O objetivo era ressaltar o papel de Pernambuco na narrativa histórica nacional, que então privilegiava o eixo sul do país. O Instituto do Ceará, fundado nos anos finais do Império, também possuía um enfoque regionalista, porém menos associado ao Segundo Reinado. Procurava entender as origens do povo cearense, e construir um sentimento de identificação da sociedade com a província. Diferente era a situação do IHGSP. Nascido no período republicano, o Instituto paulista legou para si o status de representante original do novo regime político e em seus discursos destacaram-se as particularidades locais principalmente através da figura do bandeirante. Para além das divergências regionais e políticas, os Institutos Históricos possuíam a finalidade essencial de construir uma narrativa coerente para a nação que relacionasse diferentes temporalidades, presente, passado e futuro. A urgência de determinados assuntos contemporâneos impunha a escolha de temas e personagens. Se a nação se constituiu, durante o século XIX, na principal temática de reflexão política no mundo ocidental, era imperante entender a constituição do povo brasileiro para a consolidação, interna, da ideia de nação. Para que esse objetivo se realizasse foi necessário um investimento na narrativa do passado, selecionando e silenciando os fatos que deveriam ou não formar a história do Brasil. Em todas as instituições analisadas, o período colonial assumiu uma posição privilegiada nas pesquisas historiográficas, visto que a chegada do português era interpretada, pela elite intelectual, como uma espécie de mito fundacional. Esse episódio datava o início de uma história branca e européia para o Brasil. Cabia, portanto, assumir uma identidade que estreitasse as relações entre Brasil e Portugal. Todavia, como verificamos para todas as instituições, a questão da mestiçagem foi essencial para o entendimento do tipo racial nacional. A história do Brasil consistia na descrição de três raças formadoras que viviam harmoniosamente, a branca, a negra e a indígena. No caso do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, desde 1844, quando do concurso vencido por Von Martiuns, a proposta de 52 entender a formação étnico-racial da população através da miscigenação, já se encontrava em voga. Para as demais associações o mesmo tipo de preocupação foi localizado. Por exemplo, o mestiço foi descrito como um produto local, melhor adaptado ao meio, por parte dos intelectuais de Pernambuco e São Paulo, quando das afirmativas sobre a composição de um tipo racial único formador da identidade regional. As diferentes interpretações a respeito da mistura racial geraram discursos conflituosos no interior de uma mesma instituição e, como averiguamos, a parcela negra desse processo foi preterida em relação à branca e à indígena. Após esse capítulo introdutório, nos compete ponderar sobre as formas pelas quais a elite intelectual do Brasil, a partir de uma tradição historiográfica imperial, resgatou a figura do negro, cativo ou liberto, na elaboração de uma identidade narrativa para a nação. 53 Capitulo II Instituindo as Histórias e abolindo as Memórias. 54 “Patria, és feliz! Os teus exploradores Vem-te surgir bella como uma aurora; Dize aos escravos que não ha senhores, E ao mundo inteiro que estás livre agora. Já não carregas os teus duros ferros Entre um coro de dores e gemidos. Sobes da liberdade os altos cerros Com as algêmas e os grilhões partidos.” 71. 2.1 A abolição da escravidão no Brasil: um rápido panorama Ao contrário dos assuntos relacionados à escravidão na história brasileira, que tiveram sua ascensão principalmente após a década de 1980, a temática da abolição e as experiências de liberdade a ela relacionadas foram pouco discutidas pela historiografia72. O século XIX se apresenta ao historiador como um período extremamente importante, pois esteve envolto por questões acerca da definição de regras sociais, limites, e valores que constituíram a sociedade brasileira. Identidades conflituosas erigiram, nesse momento, a partir de definições de nacionalidade, de cidadania, de liberdade e de justiça, fronteiras de valores e tensões a respeito da cor73. Uma nação, como comunidade imaginada de sentidos, construção simbólica que permite o sentimento de identidade, se constituiu em torno de categorias que definiram e delimitaram as noções entre nós e outros74. Durante o século XIX duas questões passam a integrar de maneira significativa o imaginário social brasileiro, nação e cidadania, o que impunha a necessidade de se repensar o delineamento das fronteiras entre os homens de cor, negros, mulatos, pardos e suas condições de agentes detentores de direitos políticos. Nesse contexto, passamos a analisar as publicações das revistas dos Institutos Históricos pensando o que caracterizaria a escravidão como legítima ou ilegítima frente às idéias de igualdade propostas por estes homens que vivenciavam o liberalismo. Da mesma forma, buscamos, quando possível, estabelecer como se delineavam as fronteiras entre os homens de cor, negros, mulatos, pardos e suas condições de cidadania. 71 MURAT, Luiz. Hinno da Redempção. 1888, IHGB, DL 417, 17. GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pósemancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. 2007. 73 DUARTE, Regina Horta, “O século XIX no Brasil: identidades conflituosas”, in: CARVALHO, José Murilo de e NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Repensando o Brasil do oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 563-570 74 ANDERSON, Benedict R, Comunidades imaginadas: reflexão sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2008 72 55 A história do desenvolvimento do conceito de “cidadania” em sua totalidade, ou seja, sua plena realização, com a ampliação dos direitos que incorporaria toda a sociedade adulta à condição de igualdade política, vem sendo cada vez mais investigada nos trabalhos historiográficos que envolvem o século XIX. No entanto, precisamos lembrar que a definição da categoria cidadão era, nesse contexto, uma questão em aberto. Sendo assim, é necessário percebermos que a utilização de tal conceituação não possuía, simplesmente, o intento de definir quem pertencia ao status de cidadão ou quem a ele estava negado. Precisamos analisálo compreendendo que o próprio significado da categoria cidadão atravessava um processo de constituição e reformulação 75. Podemos, esquematicamente, verificar alguns processos decisivos que envolveram a temática da escravidão e da abolição na sociedade brasileira. Em um primeiro momento, o combate político do liberalismo brasileiro à instituição da escravidão se concentrou na luta contra o comércio negreiro e na denuncia do tráfico africano, tendo como contrapartida mais radical a pressão por parte de escravos crioulos pela alforria e direitos de cidadania baseados na nacionalidade 76 . É necessário esclarecer que o suposto dilema entre liberalismo, com a assertiva de igualdade e liberdade, e escravidão não foi um processo específico do Brasil, mas de grande parte da América. Os novos países que se formavam, norteados pelas idéias de cidadania, possuíam, de acordo com Hebe Mattos77, três premissas fundamentais. Em primeiro lugar, a manutenção do sistema escravista baseado no direito de propriedade, próprio do liberalismo. Em segundo lugar, a proibição do tráfico africano e, por último a emancipação da escravidão de forma lenta e progressiva com a indenização senhorial78. De fato, desde a Constituição imperial de 1824 foi reconhecido no Brasil os direitos políticos de todos os cidadãos, teoricamente sem diferenciação de cor, excetuando-se os escravos. Na realidade a constituição estabelecia uma “cidadania em níveis”, baseado num critério censitário. O primeiro nível era exercido localmente nas eleições para vereador. Poderiam ser eleitos ou eleitores aqueles que possuíssem renda mínima de 200 mil réis anuais. Os graus de exigência monetária aumentavam, na medida em que o cargo político crescia de importância, determinada quantia era exigida nas eleições para deputados 75 PALTI, Elias José. “O século XIX brasileiro, a nova história política e os esquemas teleológicos”, in: CARVALHO, José Murilo de e NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Repensando o Brasil do oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 581-597. 76 REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: A resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 77 MATTOS, Hebe. “Racialização e cidadania no Império do Brasil”, in: CARVALHO, José Murilo de e NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Repensando o Brasil do oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 350-391. 78 Idem 56 provinciais, outra maior para senadores e assim por diante. Aos libertos era concedida participação somente a nível mais elementar, nas eleições primárias, enquanto votantes ou elegíveis a vereadores. Esses tipos de requisitos, também eram utilizados em relação aos cargos públicos. Aos livres, independente da condição racial, eram computadas as mesmas exigências políticas. Sendo assim, os descendentes de escravos livres poderiam, se possuíssem renda necessária, exercer seus diretos políticos na monarquia. Os escravos alforriados, entretanto, não entraram no subjetivo conceito de cidadão. A sociedade brasileira que era, aparentemente, composta por escravos de um lado e cidadãos livres de outro, contava com um terceiro e, emblemático elemento, o negro livre. Na medida em que crescia demograficamente uma população livre de ascendência africana, as categorias de escravo ou liberto (preto ou crioulo) já não davam conta do universo social que se apresentava. O crescimento de uma população “livre de cor” fez com que surgissem necessariamente novas nomenclaturas, como por exemplo “pardos livres”, que dessem conta da realidade. Tais categorizações eram ao mesmo tempo uma forma de silenciar o estigma da escravidão presente no passado desses indivíduos, sem, no entanto, apagá-lo. Esse processo de organização política e social, que hoje chamaríamos de discriminatório, se desdobrava em inúmeras formas de conquista por direitos políticos por parte dessa população “livre de cor” e só pode ser entendido a partir da permanência de um modelo escravista que não interferisse no mundo privado. Em outras palavras, a luta pela igualdade dos cidadãos livres não implicou em qualquer desdobramento que vislumbrasse críticas à escravidão. Pelo contrario, dependia da condição do “ser escravo” para que se pudesse, em contrapartida, “ser cidadão”. Tal fato não deixou de parecer, porém, um risco a uma elite política branca que percebia que as lutas pela igualdade poderiam, consequentemente, levar à exigência da liberdade, num país que comportava uma das maiores populações escravas das Américas e a maior população livre negra do continente. De maneira geral, o respeito ao direito de propriedade, corolário do pensamento liberal, foi mantido e o combate ao tráfico negreiro representou a baliza das lutas anti-escravistas na primeira metade do século XIX. No dia 7 de novembro de 1831, a primeira lei nacional que proibia o tráfico africano de escravos foi promulgada. A partir de então pesadas penas eram impostas a quem comprasse, vendesse, ou transportasse africanos no Brasil. A relação das pressões exercidas pela Inglaterra para a assinatura da lei de 1831 vem sendo repensada em estudos mais recentes, que apontam para o levantamento de questões políticas e sociais internas, sem, contudo, escapar da força inglesa como decisiva para a promulgação do novo regulamento 57 anti-tráfico. Não se trata de caracterizá-lo como uma “lei para inglês ver”, mas sim de pensar nas idiossincrasias internas, atreladas aos contextos externos que fizeram com que esta lei fosse institucionalizada 79 . Sabemos, no entanto, que a corrupção foi enormemente disseminada entre os comerciantes de africanos que passaram a ser traficantes ilegais. Poucos foram os casos de controle dessa prática, ainda que fossem denunciadas na imprensa ou na Câmara e no Senado do Império 80. No entanto, muitos escravos importados ilegalmente para o Brasil se utilizaram, em décadas posteriores, do artifício da inconstitucionalidade da sua condição de mercadoria, obtendo inclusive o direito a liberdade. Acionando a Lei de 1831, parte ínfima da população escrava conseguiu direito à liberdade, continuava, porém na condição de estrangeiro africano e, portanto sem deter direitos políticos. Para a maioria dos autores que tratam da temática da escravidão no Brasil foi em 1850 que as condições que permitiram o fim definitivo do tráfico africano de escravos para o país se consolidaram81. A lei nº 581 do Império do Brasil, aprovada em quatro de setembro do respectivo ano, conhecida como Lei Eusébio de Queiroz, foi a responsável por tal processo. Durante o século XIX duas correntes de pensamento coexistiram a respeito do fim do tráfico. A primeira delas afirmava a necessidade da mão de obra vinda da África para a continuidade da escravidão no país e consequentemente para a acumulação de riquezas individuais e do próprio Estado. Uma segunda opinião defendia que os africanos escravizados representavam a barbárie e um perigo à civilização e a segurança nacional, afirmando os riscos da africanização e da haitização no país. Sendo assim, era necessário que o governo limitasse a entrada desses indivíduos no Brasil e incentivasse a chegada de imigrantes brancos. Tais discussões fomentaram a Câmara e o Senado, bem como boa parte da população brasileira. Claro, que formas inusitadas de perceber a presença do estrangeiro africano no Brasil foram pensadas e revisitadas formulando opiniões únicas que podiam entrelaçar ambas as questões colocadas. 79 Em relação a novos estudos sobre a lei anti-tráfico de 1831 cf. CUPELLO, Rafael. O poder e a lei: o jogo politico no processo de elaboração da "lei para inglês ver" (1826-1831). Dissertação de Mestrado em Historia. Niterói: UFF/PPGH, 2013; PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil (1826-1865). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011; CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012; GRINBERG, Keila. Liberata – a lei da ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. 80 RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas-SP: Editora da UNICAMP/CECULT, 2000. 81 BETHELL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos: A Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do comércio de escravos, 1807-1869. Brasília: Senado Federal, 2002.; CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros: O tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. 58 A partir da década de 1860 o país já assumia uma posição de isolamento no que tange a questão da continuidade do sistema escravista como modo de produção nacional. Inglaterra, França, Portugal, Holanda e Dinamarca já haviam libertado os escravos em suas colônias e a Espanha preparava-se para o mesmo fim em Cuba e Porto Rico. Caminhando na mesma direção, a derrota do Sul dos Estados Unidos na Guerra Civil Americana demarcava o lugar ultrapassado da escravidão no mundo ocidental. Finalmente, a Guerra do Paraguai foi decisiva para se repensar a validade do sistema escravista em diversos aspectos, não apenas por ter recrutado um número significativo de escravos para lutar nas tropas brasileiras, concedendoos liberdade em troca, como também influenciava na visão estrangeira que as nações vizinhas possuíam do Brasil por escravizar àqueles que lutavam pelo país82. Na realidade, no próprio território nacional a instituição da escravidão caminhava para um isolamento, na medida em que o atual sudeste passava a concentrar a grande maioria de escravos, provenientes do tráfico interprovincial. Estes passaram a integrar a mão de obra das grandes lavouras cafeeiras, oriundos, principalmente, das modernas regiões norte e nordeste, que viviam uma diminuição da exportação do açúcar. Tal diferenciação fomentava comentários de cisões entre norte e sul, dando origem a comparações entre Brasil e Estados Unidos. Houve também uma diversificação do perfil de concentração da mão de obra escrava, que passava a se agrupar nas mãos de poucos proprietários, uma vez que o aumento dos preços tornou mais difícil sua aquisição por gente remediada. Nos meios letrados, crescia a percepção de que era preciso interferir nas relações entre senhores e escravos para promover a superação do sistema servil. A crise da escravidão teve como marco decisivo a Lei do Ventre Livre de 28 de setembro 1871. Esta determinava que os filhos de mulheres escravas nascidos após a data de promulgação da lei ficariam sob a autoridade de suas mães. Os senhores teriam a obrigação de criá-los até a idade de oito anos. Após completar essa idade ficava facultado aos proprietários das mães entregarem as crianças ao Estado, mediante indenização de 600 mil-réis ou usufruírem do trabalho dos menores até que eles completassem 21 anos. Pela primeira vez na história do Brasil uma proposta submetia o poder privado dos senhores aos domínios da lei. A Profundidade e abrangência desse processo foram analisadas por Sidney Chalhoub83 de forma excepcional. Segundo o autor, a assinatura da lei de 1871 redefinia arenas de conflitos sociais ao computar ao escravo determinados direitos. Esse processo, sentido pelos contemporâneos com profundos 82 CHALHOUB, Sidney. “População e sociedade”, in CARVALHO José Murilo de. A construção nacional 1830-1889. Volume 2. Rio de janeiro: Objetiva, 2012, p. 37-81. 83 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 59 sentimentos de incertezas e expectativas em relação ao porvir, foi intensamente combatido por aqueles que prezavam por não tocar no assunto da escravidão. Para esses indivíduos o sistema servil acabaria gradualmente, já anunciado pela lei de 1850 que punha fim ao tráfico de escravos. Os calorosos debates que envolveram a assinatura da lei de 28 de setembro de 1871 apontavam para aspectos do projeto como sendo um desígnio da Coroa, uma arbitrariedade, uma intervenção do poder público no mundo privado que agregava as relações entre senhores e escravos. Vários dispositivos da respectiva lei foram acionados no sentido de apontar para as interferências da esfera pública na vida particular. Para além da determinação de que os filhos das escravas nascidos a partir daquela data seriam considerados livres, subtraindo dos senhores a prerrogativa de autoridade sobre a vida dessas crianças, a lei atribuía, ainda, responsabilidades aos proprietários, no que diz respeito à criação destes nascidos livres. Os novos regulamentos criavam direitos aos quais os escravos poderiam recorrer, ao mesmo tempo em que conferia ao poder público, à revelia das regulamentações do mundo privado, prerrogativas de fiscalização e cumprimento desses direitos nas fazendas. Outro exemplo que demonstrava a inserção do universo público nos privilégios da vida privada foi a concessão do direito de pecúlio ao cativo, facultando ao escravo, possuidor da renda necessária, o direito de sua liberdade. Provavelmente, grande parte dessas disposições apenas formalizava caminhos que eram tidos como direitos costumeiros, tradicionais na escravidão brasileira. No entanto, ao transformá-los em lei, os parlamentares assumiam o compromisso de convertê-los em direitos formais. A vontade senhorial não podia mais regular a iniciativa escrava, ou teoricamente, limitava-se enormemente. Como dito anteriormente, na segunda metade do século XIX, a problemática central era definir os direitos políticos dos descendentes de escravos. Após a lei de 1871, uma mudança de tom começou a se operar. Havia o temor de que os filhos de escravas nascidos livres, em virtude da lei, viessem a adquirir cidadania plena ao atingir a maioridade, tornandose agentes formais do mundo político. Sendo assim, uma das soluções encontradas foi elidir critérios raciais de exclusão e passar a exigir a capacidade de ler e escrever para a qualificação de eleitores. Em 1879, um projeto liberal, aprovado pelo Gabinete Sinimbu, previa a exigência de eleitores formados no segundo grau e suspendia as eleições a nível primário. Tratava-se de um claro mecanismo de restrição dos círculos eleitorais e de um movimento de aristocratização da política. Em 1881, esse novo arranjo eleitoral, denominado Lei Saraiva, estabeleceu um diminuto corpo de votantes considerados aptos à vida política. Com isso, 60 manteve-se o distanciamento de milhares de descendentes de escravos alijados da cidadania formal nas décadas seguintes84. Na década de 1880 as agitações dos grandes centros urbanos formaram o cenário político do jogo de poder imperial, ilustrado pelo crescimento da rebelia negra, que deixava entrever a impossibilidade de se alongar por mais tempo a escravidão no Brasil. Certo incômodo pairava junto à população, frente às agitações políticas envolvendo homens de cor. Era como se o legado de atrocidades deixado pelo sistema escravista impedisse o negro de ser integrado à sociedade enquanto cidadão. Havia sentidos diversos e profundos nas hostilidades dos negros aos seus ex-senhores e em suas ações políticas, cada vez mais presentes nos centros urbanos. Ao longo de todo o século XIX, como aponta Sidney Chalhoub85, movimentos de rua que englobavam escravos, libertos e pretos possuíam uma dinâmica própria, enraizada em um modo de vida urbana coordenado silenciosamente por homens de cor na luta subterrânea contra a escravidão. A reivindicação de indenizações pela propriedade escrava aumentava na medida em que o país se encaminhava para a emancipação total da escravidão. No final da década de 1880 a radicalização dos movimentos abolicionistas aumentava, escravos abandonavam em massa as fazendas de café, indivíduos se reuniam para a aquisição da liberdade escrava, incluindo nesses esquemas os próprios cativos. Clubes e associações foram se espalhando pelo país. A abolição da província do Ceará, em março de 1884, aglutinou ainda mais forças contra a escravidão no Brasil. O acontecimento ganhou progressivo apoio de diversos setores da sociedade e foi comemorado na Corte com festejos que duraram cerca de três dias. Já se tornava claro que o abolicionismo havia se transformado em um movimento popular, capitaneado por intelectuais como Joaquim Nabuco e José do Patrocínio. Em 1885, nova lei que intencionava procrastinar o fim definitivo da escravidão no Brasil foi assinada libertando todos os cativos que possuíssem idade superior a 65 anos. Finalmente, no dia 13 de maio de 1888 foi abolida a escravidão no Brasil sem indenização senhorial. Como apontado por Maria Tereza Chaves de Mello86, a abolição da escravidão só foi possível graças à participação e a pressão da opinião pública, crescente em todo o território nacional. Influenciada e insuflada pelos discursos parlamentares, por artigos em jornais e 84 Idem. CHALHOUB, Sidney. Medo branco das almas negras: escravos, libertos e republicanos na cidade do Rio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.8, n. 16, p. 83-105, mar./ ago. 1988. 86 MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida: cultura democrática e científica do final do Império. Rio de Janeiro: Editora FGV; Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2007 85 61 revistas, pelos comícios nas praças públicas, a campanha abolicionista atingiu patamares nunca antes presenciados. Somente com a ampliação do palco político, encarnando a rua como espaço público da razão, tal empreendimento pode ser realizado. Os debates que eclodiram como consequência da emancipação tiveram como palco principal as grandes propriedades cafeicultoras, uma vez que eram as regiões de maior concentração escrava. O que poderia acontecer em seguida à abolição? O Brasil configuravase em uma nação livre, que comportava, no entanto, uma longa memória escravista, que a partir do século XIX adotava tons de racialização e preconceitos que demarcavam os lugares dos “homens de cor” na sociedade. O que se faria com os “cidadãos ex-escravos”? Algumas possibilidades eram possíveis para esse liberto, seja a fuga em massa das fazendas para as cidades ou a permanência nestas através de novos regimes de trabalho. No entanto, se como afirmado anteriormente o “longo século XIX” representou um momento em que conceitos de cidadania estavam sendo cunhados, ao chegar a sua última década tornava-se ainda mais complicado delimitá-los. Um novo cenário se formou nas ruas das cidades, principalmente da Corte, com fim da escravidão. Ainda em 1888, a propaganda republicana avançava e os abolicionistas, antes unidos por um mesmo objetivo, dividiam-se entre o apoio à causa republicana e a monarquia. Nos jornais dos grandes centros urbanos as disputas políticas se tornaram cada vez mais acirradas. O interior do país não escapou das conturbações. Grandes fazendeiros, vendo-se prejudicados pelo fim da escravidão, aderiram à razão republicana com a esperança de receberem indenização em decorrência da perda da mão de obra escrava. Muitos libertos, por sua vez, fugiam das fazendas em busca de melhores condições de vida, recusando-se a trabalharem para seus ex-senhores. As novas conjunturas contavam agora com um personagem, juridicamente inédito, nos debates políticos: o liberto. No decorrer do ano de 1888 esses debates exacerbaram-se, gerando intensas discussões que escondiam nas entrelinhas uma querela mais profunda do que a continuidade de um regime monarquista ou a passagem para uma república. Estavam em jogo aspectos relativos à cidadania do liberto, seus diferentes significados e o crescimento do racismo nos discursos políticos. De um lado, abolicionistas, divididos em republicanos e monarquistas, juntamente com políticos e ex-senhores elaboravam projetos que englobavam novas formas de trabalho, higienização e moradia para a população de cor livre. De outro, uma população negra, nem tão invisível como gostaria a elite política, redefinia seus espaços de liberdade. Com base em suas experiências no mundo da escravidão, esses homens lutaram contra a dominação de diferentes maneiras que não se limitaram à retórica política dos 62 discursos jornalísticos. Nos centros urbanos, bem como no interior, cresciam os conflitos armados, que tomavam, cada vez mais, tons de racismo87. A pergunta que circunda trabalhos diversos sobre o momento do pós-abolição – o que esperavam os negros da vida em liberdade88? – foi aqui reconfigurada, uma vez que tratamos de estudar as narrativas históricas que intelectuais faziam do negro, da escravidão e da abolição. Modificamos então a questão: O que esperavam dos negros na vida em liberdade? A emancipação trazia para a ordem do dia inúmeros projetos de nação e de “povo brasileiro”. Vejamos de que forma esse evento e suas consequências foram relatadas pelos intelectuais dos institutos históricos aqui apresentados. 2.2 Escravidão e Abolição representadas pelos institutos históricos A identidade nacional era o objeto, por excelência a ser construído, desvendado e proposto pelos intelectuais responsáveis por uma escrita da história do Brasil num contexto de afirmação dessa disciplina imersa nas discussões sobre ciência e cientificidade. Tais intelectuais assumiram, de forma urgente, o desafio de modernizar a sociedade brasileira recém-saída da escravidão, comumente interpretada como causadora do atraso em que se encontrava a nação. Esses intelectuais moveram-se entre fronteiras fluídas de diversos campos políticos e disciplinares e produziram uma série de bens simbólicos essenciais à legitimação do país enquanto civilizado e em constante progresso. A interseção entre os campos intelectual e político marcou profundamente o modo de se fazer história no final do século XIX e início do século XX, o que pode ser atestado pelas posições políticas ocupadas por diversos letrados na sociedade. Dessa maneira, percebemos na historiografia brasileira do oitocentos uma relação íntima entre cultura e política, bem como entre história e memória89. Era necessário, portanto, forjar, inventar ou resgatar uma tradição do Brasil onde as idéias anti-escravistas estivessem sempre presentes no imaginário social. Podemos observar como se deu essa trajetória, a partir de alguns artigos selecionados que narram aspectos da instituição escravista, bem como sobre o processo da emancipação no país. Em primeiro lugar, analisamos as publicações ocorridas imediatamente após o ato que aboliu a escravidão, 87 GOMES, Flávio e DOMINGUES, Petrônio. Experiências da emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980). São Paulo: Selo Negro, 2011. 88 CHALHOUB, Sidney. “População e sociedade”Op. Cit. p. 79 89 GOMES, Ângela Maria de Castro. A república, a história e o IHGB. Editora Argvmentvm, Belo Horizonte, 2009. 63 enfocando o evento da lei de 13 de maio. Posteriormente, consideramos os poucos artigos publicados durante a última década do século XIX, demonstrando o silenciamento que pairava acerca do tema, não tendo existido em nenhuma das agremiações que foram aqui analisadas artigos monográficos, propriamente ditos, que homenageassem o primeiro ano sem escravidão no Brasil ou mesmo 10 anos após o ato de libertação. Por fim, analisamos como o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, o único que foi criado em um regime republicano dentro da seleção das instituições trabalhadas, se utilizou da temática da escravidão como forma de criticar a política imperial. Logo após a promulgação da lei que aboliu a escravidão do Brasil, o Instituto Histórico Geográfico e Antropológico do Ceará se reuniu em sessão extraordinária no dia 17 de maio de 1888, sob presidência de Paulino Nogueira90 para consagrar felicitações pelo feito da princesa regente Isabel91. Nas palavras do presidente que declarou aberta a sessão: “Senhores. – Já todos vós sabeis à saciedade; mas, tratando-se de um grande feito, tenho por bem repetir-vos, que a lei nº. 3353 de 13 deste mês extinguiu imediata e incondicionalmente a escravidão no Brasil” 92. Como apontado por Sidney Chalhoub93, a perspectiva da “caduquice” da escravidão, bem como a especulação a respeito do isolamento do Brasil em comparação com o restante do mundo ocidental civilizado, no que diz respeito à longa perduração da instituição escravista, foi registrada nas páginas da revista do IHGAC. Mas o maior elogio da Magna Lei não é somente ter extinguido a hedionda instituição no imenso solo do império da Santa Cruz; Ella extinguiu-o também e ao mesmo tempo no mundo inteiro: pois desgraçadamente era o Brasil o único país do universo onde ainda existia a desumana mercadoria! 94 90 Paulino Nogueira Borges da Fonseca nasceu em Fortaleza, Ceará no dia 27 de fevereiro de 1841. Estudou do Liceu Literário do Ceará, do qual depois foi professor de latim. Em 1865 bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Recife. No período imperial foi promotor público em Saboeiro, oficial maior e secretário do governo da província de Natal, delegado geral do ensino e presidente interino da província do Ceará. Na república, foi desembargador da Relação de Fortaleza e provedor da Santa Casa de Misericórdia. Foi sócio fundador do Instituto do Ceará e seu primeiro presidente. Em 19 de outubro de 1887, foi eleito sócio correspondente do IHGB. Faleceu em Fortaleza no dia 15 de junho de 1908. 91 Revista do IHAGC, Ceará, 1888, Tomo. II, p. 99-102 92 Idem, p. 99. Não podemos esquecer que esta publicação se trata de uma enunciação discursiva e, não de um artigo monográfico. Dessa forma, contêm uma série de idiossincrasias, próprias desse tipo de narrativa. Cabe ressaltar que apenas nos anos de 1888 e 1889 ficaram registradas as atas de sessões nas revistas do IHGAC. Cada revista mantinha uma padronização dos modelos editoriais baseada na revista do IHGB, contudo, muitas vezes por falta de rendas as sessões de outras instituições ficavam excluídas das publicações a favor dos artigos propriamente ditos. 93 CHALHOUB, Sidney. “População e sociedade”. Op. cit. 94 Revista do IHAGC, Ceará, 1888, Tomo. II. Op. cit. p. 99 64 De maneira bastante incisiva e enfática, Paulino Nogueira aponta para o estado em que se encontrava o Brasil até o momento da promulgação da lei Áurea. Em seu discurso, é possível perceber, através dos artifícios retóricos utilizados como “universo” e “desumana mercadoria”, o tom de profunda crítica, com o lugar sócio-político em que se encontrava o Brasil em relação ao resto dos países que estiveram inseridos no processo escravagista. Essas estratégias narrativas sensibilizam os leitores, ao mesmo tempo em que lhes exalta a atenção. De forma crítica, Paulino observa que a ação abolicionista no Brasil representa não apenas uma vitória, mas também uma vergonhosa memória, a de ser o Brasil o último país do mundo “civilizado” a libertar seus cativos. Esta afirmação demonstra, simultaneamente, um aspecto positivo da nação brasileira, que a partir de então se tornava livre e civilizada, e aponta para o seu atraso, pois foi a última das nações a declarar extinta a escravidão em seu território. O isolamento brasileiro que se fazia imperante através do seu modo de produção escravista, uma vez promulgada a lei, não mais impediria de aproximar o país da modernidade, o Brasil entraria, dessa forma, em um novo estágio evolutivo. Outra proposição que observamos na narrativa de Paulino Nogueira diz respeito ao fato de o autor encarar, que só após a emancipação total da escravidão, o Brasil se tornou, aos moldes do liberalismo, uma nação livre e independente. (…) Antes o éramos apenas nominalmente; porquanto, si não há direito onde há violência, menos liberdade onde houver escravidão, e muito menos independência onde não houver verdadeira liberdade (…).Agora, sim, o Brasil pode dizer aos quatro ventos que é uma nação livre e independente, como garantiu-nos em seu Pacto Fundamental, sem receio de ser envergonhado e menos contestado95 O desejo de uma sociedade liberal estava presente, não raras vezes, nas interpretações da intelectualidade brasileira e a conquista da independência, em conjunto com a abolição da escravidão consumaria esse anseio nacional. Portanto, se até a primeira metade do século XIX a relação entre escravidão e liberalismo era garantida e legitimada pelas noções de manutenção da propriedade privada sem interferências do mundo público, a partir, principalmente de 1871, tal postura começava a causar certo incômodo. Em 1888, como nos revela esta narrativa, tal associação já não poderia ser utilizada, pelo contrário, na medida em que a realidade social se transformava a escravidão passava a ser encarada como o oposto do liberalismo. As noções de igualdade e liberdade do homem haviam se expandido, de maneira que a escravidão já não podia conviver em um mundo liberal que preconizava direitos iguais 95 Idem, p. 100 65 para todos os indivíduos. Paulino Nogueira deixa claro na última frase o constrangimento da nação brasileira que se declarava liberal e civilizada e, no entanto, mantenedora de uma instituição já reconhecida como ultrapassada e bárbara. Tanto que, sua fala se constitui também em uma resposta àqueles que contestavam a situação do Brasil, atestando que finalmente estava garantida, juridicamente falando, a liberdade e com isso, a nação que se almejava. Sua fala parece significar algo mais profundo, se a independência havia gerado o Estado brasileiro, a abolição, por sua vez, integraria o povo, até então, excluído, em uma clara relação de união entre a Monarquia e o povo. Ainda imersos no discurso de Paulino Nogueira vislumbramos a importante relação entre memória e história. Ao dissertar sobre a lei de 13 de maio, o autor nega a existência de qualquer manifestação ou luta envolvida no processo emancipacionista, afastando da memória nacional qualquer passado, ou mesmo menção, de revoltas que remetessem a população escrava. Bem dita a lei, que riscou de uma vez do mapa da nação a macula terrível, sem o emprego de meios sanguinários! Bem dita a lei, que realizou, só com a propaganda da palavra, da abnegação e da convicção heróica, o patriótico preceito constitucional que nos declarou uma nação livre e independente! 96 Flávio dos Santos Gomes e Olivia Maria Gomes da Cunha apontaram para o perigoso silenciamento das comemorações pelo fim da escravidão através das palavras de João China em 1889, editor do semanário A Pátria, demonstrando que esta obliteração acabava por apagar uma memória da própria participação da população escrava e de seus descendentes na história da abolição97. Aqui apreendemos a forma como a narrativa histórica, ao destacar a maneira pacífica do processo emancipacionista, também acabou por silenciar as lutas e manifestações civis e escravas na conquista da liberdade. Esse discurso historiográfico foi responsável pela perpetuação de uma memória, ainda presente no seio da sociedade, na qual a luta pelo fim da escravidão partiu da vontade de uma aristocracia intelectual, sem intervenção decisiva da massa da população. Mais importante, construiu uma memória que limita os processos geradores de grandes transformações sociais à vontade de uma diminuta elite intelectual, majoritariamente branca. Mais adiante Paulino Nogueira subjetivamente aponta para a participação de todos os estratos da população no processo que desencadeou a abolição da escravidão, recorrendo 96 Ibidem. GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pósemancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. 2007 97 66 inclusive a distinções de cor que não deflagravam, no entanto, nenhum tipo de preconceito no seio da sociedade brasileira. Felizmente para um resultado tão grandioso todos concorreram, sem distinção de classes, de cores, deposições e de partidos: uns impulsionaram heroicamente o generoso movimento, e outros até resistindo-o; pois a resistência em tais casos é como a pólvora que, quanto mais comprimida, tanto mais apressa e aumenta a explosão 98. Nesse trecho, o autor nos informa sobre a participação de toda a população nas ações que culminaram com o fim da escravidão, reconhecendo a contribuição de todos os extratos da sociedade. Nesse ponto de sua fala, conseguimos perceber que o palco das ações políticas pela abolição não se limitou às penas de letrados ou políticos. Apesar disso, o próprio processo que deu origem à emancipação total, suas lutas, vitórias e derrota, foi silenciado e com ele a ideia mesma de que tenha existido alguma mobilização. Ainda que no âmbito acadêmico os estudos apontem para a direção inversa, demonstrando que houve a participação de escravos, negros, brancos, intelectuais, senhores, fazendeiros, entre outros, no longo processo que culminou com a liberdade total da mão de obra escrava no Brasil, sabemos que em grande parte do imaginário social a ausência se consagrou. Para citarmos um exemplo, basta averiguarmos como grande parte da História, enquanto disciplina escolar perpetuou, em seus livros didáticos, as ideias de não-participação da população negra, principalmente escrava, no andamento da abolição, lidando com o cativo como um sujeito passivo e coadjuvante da sua própria história. Essas narrativas contribuíram para a constituição de uma poderosa cultura política brasileira, que nega a idéia de conflito e de participação da população na esfera pública, limitando conjuntamente, as perspectivas e fronteiras da condição de cidadão. Na realidade Paulino Nogueira ia mais a fundo, propondo um verdadeiro esquecimento de um passado escravista para a nação. Nas palavras do autor: A glória dos heróis de hoje, liberal ou conservador, é que só tem de que se desvanecerem; nada de que se queixarem. A luta homérica fê-los grandes, mas o esquecimento dela ainda os fará maiores. 99 Nessa passagem, ainda que de maneira perspicaz Paulino Nogueira mencione a existência de uma luta cujo objetivo era a abolição da escravidão, podemos captar a sua 98 99 Revista do IHAGC, Ceará, 1888, Tomo. II. Op. cit. p. 100 Idem, p.101 67 principal intenção, ou seja, o esquecimento das próprias manifestações a favor da liberdade e por consequência o silenciamento de um passado escravista para o Brasil. Se esquecemos das lutas pela emancipação e das pessoas nelas envolvidas, acabamos, consequentemente, por perder a memória dos motivos que as impulsionaram. Sendo assim, a idéia de afastar qualquer relação entre a nova nação aspirada e a escravidão recém abolida, pode ser percebida ainda nas primeiras narrativas históricas sobre o assunto, abafando uma poderosa memória na construção histórica do país. Michel Pollak 100 nos informa a respeito dos processos de silenciamentos da memória. De acordo com tal autor para cada lembrança perpetuada optamos, incoscientemente, por esquecer ou abafar inúmeras outras. Portanto, existem, no processo de elaboração de uma memória coletiva, componentes políticos decisivos que influenciam a seleção dos acontecimentos que serão perpetuados, ao mesmo tempo em que grupos marginalizados lutam para se fazerem ouvir nessa batalha por memórias101. Para o caso do Brasil, os combates por memórias que produziram diferentes sentidos e significados para o 13 de maio, imersos em realidades locais e regionais diversas, geraram expectativas e propostas de futuro de diferentes segmentos sociais. Tendo em mente que o passado, é ativamente construído e a memória é sempre politicamente marcada, uma vez que vive no campo das escolhas, dos valores e dos significados, podemos dizer que no contexto dos movimentos de negros, escravos ou libertos, nos anos que precederam a abolição e mesmo posteriormente, houve uma tentativa de apagar das memórias coletivas as ações dos homens de cor enquanto agentes impulsionadores deste processo. Se para Paulino Nogueira era necessário o apagamento de um passado escravista, o exescravo, teoricamente, não poderia ser tratado na sociedade de forma segregacionista. Ele seria, a seu ver, a partir da abolição, parte integrante dos cidadãos brasileiro sem nenhuma diferença capaz de limitar seus direitos políticos. Agora, sim, o escravo não é mais coisa, mas um ente racional, um cidadão com pátria e direitos, que o habilitam aos cargos públicos, sem outra diferença que não a dos seus talentos e virtudes 102. 100 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 2, nº 3, 1989, p.3-15. 101 MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Cultura política e lugares de memória. P. 447. In: AZEVEDO, Cecília et al. Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009. 102 Revista do IHAGC, Ceará, 1888, Tomo. II. Op. cit. p. 100 68 Na realidade, nem o indivíduo mais inocente acreditava fielmente que uma vez liberto o escravo passaria, automaticamente à condição de cidadão. Os aspectos sobre essa transição receberam pouco destaque nas páginas das revistas dos Institutos Históricos, mas a necessidade de proclamá-lo se fez constante. Nessa mesma passagem, ao analisarmos a aplicação da palavra “escravo” podemos perceber as profundas marcas deixadas pelo sistema escravista e o poder simbólico que elas representavam. Ainda que juridicamente o país passasse a se constituir por cidadãos, a alocução à condição de escravo permaneceu na narrativa. A verdadeira mudança incutida pela Lei Áurea era o fim da condição de escravidão ao negro. Portanto, não era o escravo que deixava de ser coisa em virtude da nova lei, como apontado equivocadamente por Paulino Nogueira. O escravo simplesmente deixava de existir. Ao negro sim, cabia uma nova qualidade política e social e não ao escravo. Mas o sistema escravista havia gerado uma poderosa e sutil memória social, difícil de ser suplantada, que assimilava a condição de escravidão ao negro. Novamente, Paulino Nogueira não deixava escapar o uso de elementos narrativos, como é o caso da idéia do escravo como “coisa”, já pouco utilizado no contexto do final do século XIX, para enfatizar seu discurso e o tamanho da transformação pela qual atravessava o Brasil. O cativo passava da qualidade de “coisa” para a de cidadão, da condição de irracional para indivíduo possuidor de talentos e virtudes. A problematização de como se daria esse emblemático percurso não foi levantada em momento algum. Todavia, era necessário escapar do preconceito racial, neste momento bastante presente no pensamento social brasileiro. Abafar as discussões em torno das categorias raciais ligadas a cor dos indivíduos não era tarefa fácil, nem consensual na sociedade e na intelectualidade. A esse respeito nos informa Paulino Nogueira com a seguinte frase: “Mas quem ousará negar que entre todos os partidos houve apóstolos convencidos do Código Negro?” 103 Para este autor, não cabia neste local e momento discutir a esse respeito, bastava afirmar a simples passagem do lugar social de escravo para o de cidadão, fugindo ao preconceito racial. A possibilidade do desencadeamento de conflitos raciais era matéria preocupante e os discursos que inferiorizavam o negro, biológica e socialmente, impossibilitando-os de intervir nos seus próprios interesses políticos, tinham cada vez mais legitimidade junto à população. Já há algum tempo, os debates falavam da inferioridade do negro não apenas recorrendo ao seu passado de escravidão, mas também à sua raça. 103 Ibidem, p. 101 69 É importante considerarmos a menção ao Código Negro utilizada, pois neste momento não eram raras as comparações entre Brasil e EUA empregadas por muitos intelectuais. Se de um lado, quase sempre elas pesavam positivamente para a condição de civilização e progresso em que se encontrava a América do Norte, no tangente a contenda acerca dos preconceitos raciais e suas conseqüências, o Brasil buscava galgar uma imagem mais “evoluída”, demonstrado a inexistência de qualquer segregação no interior da nação. Essa “fórmula” comprovava o rápido progresso de um país recém saído de um sistema escravista, que, no entanto possuía um “povo” unificado, ainda que diversificado. Afinal, era necessário correr atrás dos prejuízos que mais de três séculos de escravidão haviam galgado, seja através do silenciamento e esquecimento da instituição escravista como parte inegável na construção da nação, seja afirmando que tal sistema não gerou problemas para a composição de um “povo brasileiro” unido em seus direitos políticos. Finalizando a analise desta fonte, notamos a necessidade de Paulino Nogueira de chamar atenção para a então província do Ceará como precursora do processo abolicionista no Brasil. De fato, em 1884 o Ceará abolia a escravidão dos limites do seu território, mostrandose pioneiro, ao lado da província do Amazonas no processo da extinção da escravidão no país. Nas palavras do autor: Neste certame glorioso dizer-vos o papel brilhante, que coube à nossa Província, fora interrogar o juízo da historia, que já se fez, por antecipação, sua contemporânea. Si à Bahia, por ser a primeira das nossas irmãs avistada pelo malta feliz, coube o significativo epíteto de Primogênita de Cabral; não poderá deixar de caber o de Primogênita do Abolicionismo à pátria querida de José de Alencar. Foi Ela primeira que, com o mais agigantado civismo resolveu o dificílimo problema, mostrando às suas irmãs timoratas, como resultado esmagador, a paz e a prosperidade104. Cada um dos Institutos Históricos regionais procurava resgatar tradições que lhes permitissem galgar um importante lugar na construção da história da nação. Nesse sentido, percebemos em inúmeras fontes, disputas entre as agremiações. Tal fato não pode abafar, contudo, as próprias querelas internas entre seus sócios. Logo após a abolição, ainda em 1888, nesse discurso de Paulino Nogueira percebemos a tentativa de demarcar o importante e imprescindível papel que teve o Ceará como pioneiro da liberdade nacional. Encontramos, por exemplo, saudações a Francisco Nascimento, jangadeiro cearense que havia se recusado a embarcar escravos. 104 Ibidem. 70 Importante advertir que o pioneirismo cearense foi ainda mais imperioso, na medida em que foi acompanhado pela paz e pela prosperidade. Mais uma vez, o autor silencia qualquer possibilidade de conflito na conquista da liberdade, afirmando que ao Ceará coube o papel de resolver o “dificílimo problema” da libertação da mão de obra escrava, servindo de exemplo às demais províncias, justamente porque o fez sem interferências a paz estabelecida. É interessante perceber como o resgate dessa memória pareceu pouco explorado entre os intelectuais do IHGAC. Na realidade, diferentemente dos Institutos de Pernambuco ou de São Paulo, a agremiação cearense não produziu sobremaneira, artigos que destacassem a história do Ceará como de decisiva importância nas lutas pela liberdade nacional. De maneira geral, a produção intelectual manteve-se tratando de questões internas referente a clima, população, modos de trabalho. Apenas em mais um artigo publicado no ano de 1898, que narra as efemérides do Ceará republicano, aparece uma tentativa de resgatar uma tradição cearense na importância dos rumos civilizacionais do país105. Nessa publicação, na realidade formada por trechos de diferentes discursos pronunciados no ano de 1891, José Clarindo de Queiróz106 assim se colocava: Ausente, eu acompanhava com particular interesse o progredir do Ceará, sempre na dianteira de todos os cometimentos notáveis. (...) notava com desvanecimento sua rápida marcha na trajetória da civilização brasileira107 Em nenhum momento, no entanto, José de Queiroz argumenta o porquê dessa dianteira cearense para o progresso da nação. Seria pela iniciativa regional que inaugurou a liberdade no Brasil? O texto pronunciado em 1891 poderia estar relatando sobre a importância do Ceará no processo de consolidação da república no país, uma vez que nesse momento começava sua configuração como modelo político e a formulação de uma nova Constituição. Com certa margem de segurança, podemos afirmar que não passou despercebido ao autor a abolição da escravidão no Ceará como um dos acontecimentos dignos de alocar o estado na história do progresso do país. No entanto, cabia ao leitor, ou ao ouvinte de seu discurso, dar formas mais objetivas dos fatos cearenses de grande notabilidade. 105 Revista do IHAGC, Ceará, 1898, Tomo XII, p. 65-74. José Clarindo de Queiroz nasceu no dia 22 de janeiro de 1841 em Fortaleza. Assentou praça aos quinze anos de idade , partindo para a campanha do Paraguai em 1865. Retornando voltou para o Rio de Janeiro com o posto de Tenente Coronel. Em 1880 foi promovido a coronel e em 1890 a General de divisão. Na monarquia foi presidente do Amazonas (1879). A 7 de maio de 1891 foi governador do estado do Ceará, até ser deposto em 16 de fevereiro do ano seguinte felás forças federais do marechal Deodoro da Fonseca. Voltando para o Rio de Janeiro o vice-presidente Floriano Peixoto o desterrou para Cucuy. Veio a falecer a 28 de dezembro de 1893 no Rio de Janeiro. STUART, Barão de. Diccionario Bio-bibliográfico Cearense. 107 Revista do IHAGC, Ceará, 1898, Tomo XII, Op. cit. p. 66. 106 71 A partir das passagens selecionadas relativas ao Instituto cearense, podemos demonstrar dos modos como a escravidão e o evento da abolição foram narrados por história nacional. Sabemos que esses assuntos eram evitados por parte dos intelectuais responsáveis pela escrita da história, como uma forma de apagar do passado a mácula da escravidão e galgar um status de país civilizado e em crescente progresso para o Brasil. Contudo, tendo em vista as conturbações que se faziam sentir no contexto abolicionista, a intelectualidade brasileira não pôde escapar de registrar em suas falas as expectativas de um novo porvir. O fim da escravidão, ao inaugurar um nova condição de povo brasileiro, introduziu também novas maneiras de lidar com o negro nas narrativas da história do país. No Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano encontramos de maneira mais veemente a necessidade de buscar uma tradição em seu passado que tornasse Pernambuco parte imprescindível para a construção da história nacional. De todas as instituições aqui analisadas foi, sem dúvidas, a que mais produziu artigos e discursos a esse respeito. As tradições e memórias atravessaram o período colonial e o império, sempre trazendo para o presente a importância pernambucana no encaminhamento da liberdade e independência nacional. Desde a expulsão dos holandeses, assunto que aparece em maior número de publicações, a agremiação procurou inventar ou resgatar tradições que lograssem a antiga província e ao atual nordeste como um todo, o lugar de primogênita em todos os processos engrandecedores da nação. Sendo assim, uma vez abolida a escravidão no Brasil, o Instituto Histórico Pernambucano, também tratou de comemorar e, procurou da mesma maneira que o cearense, assumir créditos exclusivos no desenrolar da abolição da escravidão no país. A instituição participou de diversos cortejos públicos para celebrar a emancipação e foi saldada por várias associações abolicionistas. Além de inúmeros estandartes, foi doado ao Arqueológico o Livro de Ouro da celebração do fim da escravidão no Ceará. Sob a representação do orador Maximiliano Lopes Machado, na sessão do dia 16 de maio de 1888, o Instituto informava a aprovação do envio de telegrama, no qual congratulava a princesa Regente Isabel pelo grandioso feito que libertou os escravos no país. Em relatório apresentado no início do ano de 1889, João Batista Regueira da Costa108, primeiro secretário do IAGP, assim se colocou a esse respeito109: 108 João Batista Regueira Costa nasceu em junho de 1845. Atuou como Secretário –Perpétuo e foi presidente de Honra do Instituto Arqueológico pernambucano. Bacharel em Direito, dedicou-se em toda sua vida às atividades docentes. Exerceu ainda, o cargo de Instrutor da Inspeção Pública, Reitor do Curso Comecial do Instituto Benjamin Constant, entre outros. Foi senador entre os anos de 1895 e 1897. Além de poesia, escreveu e publicou varias obras sobre pedagogia. Foi amigo próximo de Castro Alves. Ingressou os quadros da Academia 72 Na sessão de 16 de maio, resolveu esta associação que, mediante subscrição promovida entre seus membros, se mandasse cunhar medalhas de prata e bronze, para comemorar o grandioso facto da abolição da escravidão no Brasil, e na de 30 daquele mês que as medalhas contivessem, alem da menção do dia 13 de maio e da declaração de que a respectiva lei fora promulgada na regência da princesa imperial, as gloriosas datas de 1817, 1824 e 1830 110. Neste trecho apreendemos a importância da comemoração da Lei Áurea, através das moedas cunhadas que possuíam gravadas a datação do ato libertador dos escravos, o dia 13 de maio. Aos olhos do Primeiro Secretário do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano as datas referentes a 1817, 1824 e 1830 compunham fatos de tamanha importância para o processo libertador que mereciam e deveriam estar assinaladas junto àquela que concretamente os libertou. Era preciso registrar em medalhas não apenas a ação libertadora, como também os atos pernambucanos que possuíam substancial importância para a liberdade nacional. Nesse sentido, o primeiro secretário continua: Muito acertada, portanto, foi a resolução do Instituto de perpetuar na prata e no bronze a memória d’esse grandioso acontecimento, que veio produzir uma verdadeira revolução na ordem moral e econômica do pais; e ainda mais a de associar à comemoração da lei, que extinguiu a escravidão no Brasil, as gloriosas datas de 1817, 1824 e 1830, datas estas que recordarão no futuro os esforços dos pernambucanos a bem da liberdade dos escravos e serão como brilhantíssimos raios a convergir para esse grande foco de luz, que se chama 13 de maio! 111 Em outro relatório apresentado um ano depois pelo mesmo secretário, João Batista Regueira da Costa, na sessão magna de aniversário do Instituto pernambucano de 1890 112 ele nos oferece um quadro mais amplo do porque destas datas serem primordiais no andamento do processo abolicionista em Pernambuco: 1817 – para comemorar a proclamação do Governo Provisório, anunciando os desejos de uma emancipação, que não permitisse lavrar mais o cancro da escravidão, embora lenta e gradual; Pernambucana de Letras, da Sociedade Propagadora de Instrução Pública, da Sociedade de Geografia de Lisboa, entre outras. A partir de 1856, colaborou com freqüência em quase todos os jornais do Recife. Faleceu em 2 de junho de 1915. Cf. SOUZA, George Felix C. de; NEVES, Fernanda Ivo; LEÃO, Reinaldo Carneiro; GALVÃO, Tácito Cordeiro. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano: breve história ilustrada. Recife: IAHGP, 2010, p. 53-54. 109 Revista do IHAGP, Pernambuco, 1890, Exemplar nº 36, p. 42-46. Cabe ressaltar que a edição de 1888 da revista foi publicada em abril, ou seja, antes da lei que libertou os escravos no Brasil. O referido discurso foi publicado apenas na edição de 1890, quando foram impressas duas revistas. Em 1889 não saiu nenhuma publicação da revista do Instituto Pernambucano. 110 Revista do IHAGP, Pernambuco, 1890, Exemplar nº 36, p. 42 111 Idem, p. 43 112 Revista do IHAGP, Pernambuco, 1890, Exemplar nº 37, p. 9-29 73 1824 – para relembrar o edital de 3 de julho do presidente da republica do Equador, suspendendo o tráfico de escravos para Pernambuco; 1830 – para consignar a deliberação do Conselho da Província de 15 de abril, sobre a liberdade dos escravos, por meio de uma indenização razoável 113. Cabe observar que estas idéias estavam presentes em praticamente todos os artigos que tratavam do assunto sempre com as mesmas justificativas. João Batista Regueira da Costa foi um dos sócios que mais produziu em nome do Instituto pernambucano. Em seus artigos ou discursos sempre valorizou o passado regional como forma de criar um passado de tradição para Pernambuco. Resumidamente, todas as enunciações referentes ao fim da escravidão relacionavam a “Revolução Pernambucana” ao processo abolicionista por ter instituído uma república que tinha como uma das suas prerrogativas a emancipação lenta e gradual da escravidão. Da mesma forma, a “Confederação do Equador” por ter assinado o ato de proibição do tráfico de escravos africanos para Pernambuco e por fim, em 1830, pela proposta do Conselho provincial de uma emancipação gradual, com direito ao pecúlio e com indenização ao senhor. João Batista Regueira da Costa buscava glórias pernambucanas, também, junto ao processo que deu origem a assinatura da lei de 1871, que libertou o ventre das mulheres escravas, comprovando que esta lei havia sido assinada por um ministro de Pernambuco. (…) esta associação, que já era depositaria da Penna, com que s.a. a princesa imperial regente assinou a lei de 18 de Setembro, essa lei, que foi referendada por um ministro pernambucano, e que, na frase de um grande orador parlamentar, acabou com a pirataria, exercida em torno dos berços, nas águas de jurisdição divina114 Nos dois discursos de João Batista Regueira Costa, como em vários outros que tratam da guerra da restauração holandesa, percebemos a tentativa de resgatar uma memória envolvendo uma tradição guerreira do povo pernambucano em relação à expulsão dos holandeses no Brasil feita “a ferro e fogo”, que exaltava sua população e seu espírito indomável. No entanto, a luta pela liberdade escrava sempre se manteve no território pacífico “das penas”, ou seja, restrita à intelectualidade. João Batista Pereira Costa, falando em nome do Instituto Arqueológico Geográfico e Histórico Pernambucano se limita a congratular a princesa regente Isabel e a discursar sobre as providencias tomadas pela agremiação em relação a lei de 13 de 113 114 Idem, p. 13 Ibidem, p. 55 e 56 74 maio. Do mais, procura galgar um espaço para Pernambuco nessa história, sem, contudo, tocar nos aspectos cruciais da escravidão ou mesmo do processo de libertação. Sem dúvida, para Pernambuco era imprescindível resgatar um papel que lhe fornecesse privilégios em relação às outras províncias e posteriores estados, de maneira que a sua história se mantivesse sempre presente e fosse continuamente lembrada pelas gerações futuras como de inigualável importância para a nação. Chamar a atenção para a atual região nordeste era imprescindível nesse momento, para além de todas as querelas decorrentes do ato de abolição e da instauração da República, uma vez que o sudeste, cada vez mais, conquistava o lugar central e prioritário na economia e cultura brasileira. Tal fato pode ser comprovado na fala de Francisco Augusto Pereira da Costa115, presente no exemplar número 42 da revista da IAHGP, publicado em 1891116. (…) o nome da nossa heróica e legendaria província tem sido esquecida, posto a margem, absoluta ou relativamente. (…). É tempo de reivindicar a partilha que lhe cabe em tão generoso cometimento. (…) Assinalando e exaltando esses cometimentos em prol da liberdade dos escravos, que foram iniciados em nossa heróica província, reivindicando desta arte glórias incontestavelmente suas, é licito ufanarmo-nos do nome pernambucano (…) 117 . Nesta publicação o autor nos oferece um panorama de como a escravidão foi implantada nas Américas, desde a chegada de Colombo, incluíndo a escravização dos indígenas, passando pelo tráfico africano, e finalmente narrando os acontecimentos que fizeram da então província de Pernambuco o foco privilegiado das ações em direção a abolição da escravidão. Pela primeira vez nos artigos analisados um autor procurou compreender a instituição escravista desde os seus primórdios, focalizando em seus aspectos negativos e cruéis sem amenizar ou torná-la mais branda no contexto brasileiro. Francisco Augusto Pereira da Costa, talvez por estar em meio a um discurso ocorrido um ano antes do ato da abolição, foi mais enfático e menos polido em sua fala quanto aos horrores da escravidão. Provavelmente por isso, organizou uma critica que envolveu desde a retirada dos africanos de seu “país”, passando pela cruel travessia do Atlântico, até a forma como os escravos haviam sido tratados em terras 115 Francisco Augusto Pereira da Costa nasceu no Recife, Pernambuco. Dedicado aos estudos históricos, foi incumbido pelo governo da província de Pernambuco de coligir documentos de interesse para a exposição a ser realizada na Biblioteca Nacional. Foi também um estudioso do folclore brasileiro. Pertenceu ao IAHGP e a Sociedade Deográfica de Lisboa. Em primeiro de dezembro de 1886 foi eleito sócio correspondente do IHGB. Faleceu no Recife em 21 de novembro de 1923. 116 Revista do IHAGP, Pernambuco, 1891, Exemplar nº 42, p. 247-272. Esta assertiva foi exposta em uma conferência intitulada A idéia abolicionista em Pernambuco116. Tal exposição realizou-se no Teatro de Variedades, na Nova Hamburgo, no dia 15 de agosto de 1887. 117 Idem, p. 268 75 brasileiras, sem tentar abafar de nenhuma maneira um presente escravista. Podemos visualizar tais aspectos ainda no início de seu texto: Estava por conseguinte introduzida a escravidão no Brasil, não só entre os índios, como ainda pela monstruosa importação dos miserandos africanos, arrancados à força, ou induzidos pela sua ingenuidade, a atravessarem o Oceano, e deixar a liberdade em seu país, pela escravidão em outro, com todos os horrores, com toda a sorte das mais cruéis barbaridades 118. (p. 249) Não se tratava nesta conferência apenas de resgatar ou inventar uma tradição que perpetuasse a importância de Pernambuco para a história nacional, assim como faziam os artigos e discursos elaborados objetivamente para as revistas dos Institutos Históricos. Como conferência realizada em 1887, ou seja, anterior ao ato da abolição da escravidão, a fala de Francisco Augusto Pereira da Costa sustentava, na realidade, um manifesto político. Declaração pública, ao mesmo tempo, contra a escravidão e a favor da história pernambucana. Logicamente, quanto mais ênfase fosse dada à sua alocução, mais poder enquanto artifício político ela possuiria. Logo, se em outros textos, posteriores a libertação dos escravos, percebemos certo constrangimento nas narrativas sobre a história da escravidão, silenciando seus horrores e mesmo sua existência, aqui verificamos o contrário. O sistema escravista é descrito em toda sua crueldade. Senhores, a história da escravidão é um poema de lagrimas e de sangue. Arrancado os africanos de seu país, de seus lares, do seio de seus parentes e compatriotas, do meio daquela vida selvagem, mil vezes para eles mais agradável que a vida entre gente civilizada sem a sua liberdade, atirados ao porão de um navio imundo, de capacidade inferior à carga que conduzia, a longa travessia da África para o Brasil era um martírio, uma via dolorosa, um quadro de infâmia e de miséria119. Sendo assim, a memória da escravidão, ainda neste contexto de luta pela abolição, necessitava ser resgatada e relatada em todos os seus aspectos abomináveis, inclusive os internos, rompendo com diversas exposições do assunto que traziam o tema da escravidão a partir de pontos de vistas civilizatórios, evangelizadores e benevolente. Tal afirmação pode ser encontrada na declaração de que uma vida na África, mesmo que incivilizada, era melhor do que a privação da liberdade, rompendo dessa maneira com qualquer discurso que legitimasse a escravidão a partir de modelos evolucionistas e civilizacionais. 118 119 Ibidem, 249 Ibidem, 249-250 76 Mais uma vez, nesse momento, averiguamos o rompimento entre as idéias liberais e a manutenção da escravidão. A liberdade individual não poderia mais estar sujeita a vontade privada do senhor na sociedade que se compunha. Por isso, relatar os maus tratos dos senhores em relação aos escravos também eram formas de legitimar a interferência do estado nas relações cotidianas, uma vez que colocavam em voga as maneiras desumanas e imorais que os cativos eram tratados. Francisco Augusto Pereira da Costa não se incomoda ao relatar tais situações. Atirados à senzala do engenho, à cabana mal construída dos estabelecimentos rurais, ou aos aposentos úmidos e imundos das casas urbanas, maltratados, açoitados, mortos as vezes ao tronco, ou atados ao carro do engenho, convertidos à triste condição de besta de carga, eram forçados a sofrer com humildade todos os tratos, e se alguns procuravam fugir a semelhantes martírios abandonando a casa do desalmado senhor, redobrava seu martírio, e recebiam sobre as espáduas a marca infante de um F em brasa, a primeira vez, e tinham uma orelha cortada, a segunda, isso sem processo algum 120 . Neste trecho o autor descreve de maneira generalizante a forma cruel como eram tratados os escravos, uma vez aportados no Brasil, sejam aqueles que tinham como futuro uma vida nas senzalas das fazendas ou os escravos destinados às cidades. Em nenhum dos casos se escapava do sofrimento e da penúria imposta pela escravidão. Sabemos que este não foi o fim de todos os escravos aportados no país, todavia para o autor que realizava a conferência era necessário sensibilizar seu interlocutor, chamar sua atenção para a desumanização dos indivíduos, do contrário, o discurso não alcançaria seu objetivo, ampliar e agitar o processo abolicionista no Brasil. Como apontado por Sidney Chalhoub121 havia duas maneiras principais de elaborar críticas ao sistema escravista na segunda metade do século XIX. Uma primeira priorizava a narrativa das misérias e dos sofrimentos dos escravos, atestando a desumanidade dos senhores e a urgente necessidade de por fim a um ato de tamanha crueldade. A segunda forma demonstrava os vícios que o sistema escravista produzia no cativo, confirmando os defeitos morais que tal atividade poderia ter sobre o homem e os perigos de uma sociedade amparada por esse modelo de trabalho. Nesse caso, em que a escravidão praticamente destituía o cativo de humanidade, tornava-se difícil imaginar que o negro, uma vez liberto poderia se integrar como cidadão a comunidade. Ambos os caminhos, apesar de partirem de perspectivas políticas distintas, acabaram por concluir que o Estado deveria levar a cabo a emancipação, 120 121 Ibidem, 251 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. Op. Cit. 77 enfrentando a resistência senhorial. Francisco Augusto Pereira da Costa optou combater o sistema escravista a partir de narrativas que apontassem para as atrocidades e desmandos desse tipo desumano de atividade de trabalho. Francisco Augusto Pereira da Costa continua seu discurso relatando os acontecimentos que germinaram o ideal abolicionista em Pernambuco, provando, também, a importância da província para o andamento do fim da escravidão no Brasil. Desde o século XVII até o XIX, o autor faz relações entre eventos regionais e a emancipação da escravidão. Para tanto, inicialmente nos informa acerca da expulsão dos holandeses no Brasil, valorizando a participação da população escrava no processo de luta contra os batavos em Pernambuco, homenageando Henrique Dias, líder do regimento negro que participou da guerra da restauração. Interessante destacar que para este autor, a invasão holandesa acarretou na formação de Palmares, cabendo, portanto a Pernambuco, ainda no século XVII o primeiro protesto levantado pelos próprios escravos em prol de sua liberdade. A respeito de Palmares, Pereira da Costa assim se colocou: “esse protesto o mais belo e o mais heróico, na frase de um historiador, essa Tróia negra, cuja história é uma Ilíada” 122. Dando continuidade aos acontecimentos pernambucanos que possuíssem relações com a liberdade escrava, Francisco Augusto Pereira da Costa resgata um acontecimento ocorrido no século XVIII, como corolário da idéia emancipadora: a Guerra dos Mascates, quando “os pernambucanos protestaram com as armas nas mãos contra o domínio português”123. Nesse contexto, Bernardo Vieira de Mello, um dos líderes da revolta, segundo o autor, toma parte no Congresso e propõem que os pernambucanos instaurem um modelo político republicano. Em um primeiro momento, Pereira da Costa explica que este fato isoladamente parece não ter ligação alguma com o desenrolar do processo abolicionista em Pernambuco, mas logo após afirma: “o que exprimiria a idéia de república sem o consorcio imediato da idéia de emancipação?”. Partindo para o século XIX, Pereira da Costa atesta que desde o início deste século teve origem em Pernambuco um movimento emancipador, o qual tinha como líder Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, conhecido como Coronel Suassuna que havia também procurado transformar Pernambuco em uma República. Sem adentrar profundamente em tal proposta, o autor parte para o ano de 1817. Para ele, no ano da “Revolução Pernambucana” aparece a proposta mais positiva da emancipação dos escravos. Assim como na opinião do sócio João Batista Pereira Costa acima relatada, essa data merecia destaque pelas propostas de 122 123 Revista do IHAGP, Pernambuco, 1891, Exemplar nº 42,. Op. Cit. p. 254 Idem, 255 78 libertação gradual da escravidão seguida de uma indenização aos senhores, respeitando assim os princípios liberais de propriedade, juntamente com os de liberdade. Apesar de derrotada a “Revolução Pernambucana”, sua idéia teria permanecido e, em pouco tempo, sido reorganizada, quando em dois de julho de 1824, Manoel Carvalho Paes de Andrade proclamou a Confederação do Equador. Mais uma vez a Republica foi institucionalizada e o primeiro ato lavrado foi a suspensão do tráfico de escravos para a província de Pernambuco. Anos mais tarde, em sessão do Conselho de três de abril de 1830, Bernardo Luiz Ferreira apresentou uma proposta que possuía por finalidade tratar de assuntos ligados a abolição. Cabe ressaltar que tais idéias sempre estivem vinculada a integridade dos senhores sem ameaçar a destruição ou diminuição de seus patrimônios. Em seguida o autor informa as datas de instalação de diversas associações emancipacionistas como uma forma de demonstrar o espírito libertador do homem pernambucano. Com a opinião de que em Pernambuco havia nascido o ato que deu origem a lei de libertação do ventre escravo, Francisco Augusto Pereira da Costa assinala: “(…) iniciou-se em Pernambuco a idéia da libertação do ventre, mais tarde em 1871, traduzida em facto pela Lei de 28 de Setembro, conhecida pela consagração popular pelo nome de Lei áurea” 124 . Como maneira de comprovar sua assertiva, o autor afirma que o projeto de lei apresentado pelo governo em 1871 havia sido assinado pelo pernambucano Theodoro Silva e por ele referendado quando sancionado. Da mesma forma, o parecer da comissão nomeada pela Câmara dos Deputados havia tido como relator o Monsenhor Pinto de Campos, também natural da província de Pernambuco. E teria ainda, o regulamento que baixou a execução da lei de 28 de setembro, sido elaborado e referendado por mais um pernambucano o Conselheiro Barros Barreto. Por fim, encerrando sua conferência Francisco Augusto Pereira da Costa narra um ato ocorrido no mesmo ano em que estava dissertando, ou seja, 1887, referindo-se a pastoral de 25 de março publicada pelo bispo José Pereira da Silva Barros, na qual pediu ao clero de sua diocese que libertasse todos os seus escravos. Encerrando sua alocução, Francisco Augusto Pereira da Costa, faz um último apelo a seu público rogando-lhes que atestem para a fundamental participação da província de Pernambuco no desenrolar do processo abolicionista. A partir de tudo o que foi exposto, o autor concluiu que foi ali onde nasceu e condensaram-se as idéias de liberdade. Senhores. – Deste ligeiro escorço que acabo de fazer sobre a idéia abolicionista em Pernambuco, evidencia-se, demonstra-se, e prova-se em fim, 124 Ibidem, 264 79 que foi nesta província em que ela se iniciou, em que lançaram-se os seus primeiros fundamentos, e de cujos fatos partiram essa propaganda generosa em prol da emancipação dos escravos 125. Indo além do discurso de seu companheiro João Batista Regueira da Costa que buscou, dois anos depois, uma tradição pernambucana que resgatasse a presença do novo estado nas lutas pela abolição a partir de três datas referenciais 1817, 1824 e 1830, Francisco Augusto Pereira da Costa foi galgando desde o século XVII, com a guerra da restauração, uma tradição libertadora para Pernambuco. Interessante destacar que o autor, se utilizou de um discurso, então silenciado à época, no qual cita Palmares como exemplo de luta pela abolição. Ao tratar do século XVIII cita a Guerra dos Mascates e, finalmente, no século XIX, aborda igualmente as três diferentes datas acima referendadas. Dessa forma, verificamos continuidades nos discursos dos sócios do IAHGP em relação à preocupação de inserir Pernambuco nas contendas sobre abolição, resgatando ou forjando tradições e consequentemente um lugar essencial na história nacional desta região que perdia status na medida em que o eixo sulsudeste se engrandecia. Todavia, o relato de Francisco Augusto Pereira da Costa, possuía singularidades próprias, pois se tratava de uma conferência pública realizada um ano antes da abolição da escravidão no país. Por isso, poderia ser interpretado como um manifesto político, uma vez que as fronteiras que separavam a atividade intelectual da política eram fluídas e flexíveis, quando não invisíveis. A escravidão foi por ele encarada e combatida de forma intensa, trazendo para a discussão, um aspecto até então inovador, a lembrança de um passado (presente) de horrores em que vivia o Brasil arraigado em um mundo escravista, incivilizado e cruel. Nesse sentido, por motivos próprios, esta assertiva se coloca diferente de todas aqui relatas que aclamam o ato da abolição sem traçar quaisquer paralelos mais profundos com o mundo da escravidão, como uma forma de apagar da memória nacional a existência dessa instituição durante mais três séculos no Brasil. Passemos agora para a análise dos artigos publicados na revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Antes de adentrarmos nas discussões propostas por cada autor, é necessário atentar para o fato de que IHGB possuía características próprias, diferentes dos demais institutos aqui trabalhados. Se as outras agremiações procuravam trazer aspectos regionais para a construção da história, o IHGB era como que o responsável por realizar um tipo de amalgama, a fim de narrar a história do Brasil como um todo. Tal processo pode ser vislumbrado uma vez que a maioria dos artigos publicados nas revistas traz informações sobre 125 Ibidem, p. 267-268 80 outras regiões, incluindo cópias de publicações de outras instituições. Ao mesmo tempo, percebemos que diferentemente dos institutos regionais que dialogam principalmente com o “povo” cearense, pernambucano ou paulista, o IHGB expande as fronteiras de seus interlocutores referindo-se quase sempre ao “povo brasileiro”. No entanto, não podemos deixar escapar que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro se alocava no Rio de Janeiro e dessa maneira dialogava principalmente, pelo menos até o ano 1889 com a corte brasileira. Tal aspecto não passou despercebido nas análises aqui realizadas, uma vez que a Princesa Regente Isabel assim como D. Pedro II foram os principais interlocutores dos discursos realizados pelo IHGB. Com a abolição, seguida instauração da república uma mudança de tom começou a se operar e conseguimos vislumbrar a participação de um “povo”, subjetivo, como personagem nos artigos. No entanto, a maioria das publicações aqui apresentadas sustenta ainda um diálogo com a corte, podendo ser vislumbrada de maneira rarefeita a intensificação de uma fala direcionada a um “povo brasileiro”. O primeiro artigo do IHGB escolhido para análise foi publicado ainda no ano de 1888 em 31 de maio, sob o título A extinção da escravidão no país.O jubileu do Instituto Histórico126, de autoria de João Franklin da Silveira Távora127. Abaixo, segue um resumo de sua exposição, assim como um exame de seu conteúdo. O artigo inicia-se com uma dissertação acerca de dois acontecimentos que mereceram destaque nas páginas da revista do IHGB. O primeiro deles se refere à extinção da escravidão no Brasil e o segundo aludi as festas de comemoração de aniversário dos cinqüenta anos de existência da Instituição. Ao abordar o primeiro evento, o autor retoma partes da lei que extinguiu a escravidão no Brasil, erigida pela Princesa Isabel, demonstrando como a Secretaria do IHGB congratulava-a, bem como ao Imperador D. Pedro II pelo ato emancipatório. Nas palavras de Franklin da Távora D. Pedro II era considerado “um dos mais 126 TÁVORA, João Franklin da Silveira. IHGB Tomo LI 1º folheto, 1888, Rio de Janeiro, p. 13-23 João Franklin da Silveira Távora nasceu em 13 de janeiro de 1842, em Baturité, no Estado do Ceará, e faleceu no Rio de Janeiro em 18 de agosto 1888, aos 46 anos. Freqüentou a escola por apenas um ano, aproximadamente, ingressando na Faculdade de Direito do Recife em 1859 e bacharelando-se em 1863. Escreveu seu primeiro livro com apenas 19 anos: A Trindade Maldita, 1861. Trabalhou no “Jornal de Recife”, onde foi nomeado Diretor da Instrução Primária de Pernambuco, além de ter sido eleito Deputado provincial em Pernambuco (1868/1869) e Curador Geral dos Órfãos. Partiu para o Rio de Janeiro, onde foi empregado na Secretaria do Império, chegando a exercer o cargo de Chefe de Gabinete. Foi autor de romances e contos regionalistas. Otto Maria Carpeaux, crítico literário do século XX, classificou-o como pertencente ao 127 movimento “realista”, além de precursor imediato do naturalismo. Para ele, “Franklin Távora é o sucessor imediato de Alencar e é contemporâneo da 1ª fase (a romântica) de Machado de Assis.” Pertenceu ao Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, à Sociedade de Geografia de Lisboa, e ao IHGB, como sócio correspondente, posteriormente passando a efetivo, sendo eleito orador e 2º Secretário. Foi também patrono da ABL (cadeira nº 14). Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993. p. 169 81 resolutos e denodados batalhadores da escravidão” 128. A Secretaria do Instituto argumentava também, sobre a necessidade de se erigir, nas salas de sessões, os bustos referentes ao Visconde do Rio Branco e ao Agostinho Marques Perdição Malheiros, em função de suas iniciativas para o fim do cativeiro no país. Como forma de ostentar seus agradecimentos a corte imperial, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro endereçava também, louvores às Casas do Parlamento, ao Ministério, ao Senado, à Câmara dos Deputados e ao Governo. Era, portanto, comprometimento do IHGB, Lançar na ata um voto de louvor à imprensa do Império, e a todos aqueles que de qualquer modo concorreram no comércio, no foro, nas assembléias legislativas das províncias, nas câmaras municipais, e até no lar doméstico, para o triunfo incruento da causa da abolição129 No contexto do processo abolicionista, em relação às ações de Dom Pedro II e sua filha Isabel, conseguimos inferir, a partir dos escritos de Franklin da Távora, que estes foram tomados, em termos gerais, como os provedores da liberdade, os redentores dos malefícios causados pela escravidão. De acordo com Lília Schwarcz, acerca desta visão que gradualmente tomava lugar, dois mitos foram se construindo em paralelo no Brasil: o da Princesa Isabel como “a Redentora” e o de D. Pedro II como “o grande pai de todos”. Essa imagem do monarca arquitetava-se de maneira paradoxal, uma vez que conforme se enfraquecia a Monarquia e o Império, a figura do imperador ressurgia como um símbolo popular – “o bom pai” – sempre associado à emancipação dos escravos. Sem dúvida, esta é uma forma de perceber o processo emancipatório como uma “dádiva” e o ato da abolição como mérito de um único empreendedor e não a implicação de um processo coletivo de lutas e conquistas 130. Assim se dirigiu Franklin da Távora à Princesa Isabel: A Vossa alteza coube a inefável alegria e imorredoura glória de dar solução definitiva ao temeroso problema, que tanto entenebreceu a magnânima alma de Vosso ilustre pai, Sua Majestade o Senhor D. Pedro II, consternou anos o espírito nacional e empeceu o progresso do Brasil, quer na ordem moral, quer na material.131 128 TÁVORA, João Franklin da Silveira, Op. cit. p. 15 Idem, p. 17 130 SCHWARCZ, Lília. Dos males da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira. In GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. 2007. p. 25 131 TÁVORA, João Franklin da Silveira. Op. Cit. p. 20 129 82 Assim, é possível verificar que sua palavra final é dirigida à Isabel e ao Imperador. Contudo, podemos averiguar que o autor parabenizou a todos aqueles que, “até no lar doméstico”, de alguma forma, contribuíram para o triunfo da causa da abolição. Chegando a utilizar a expressão “povo brasileiro” para se referir a participação popular no movimento abolicionista, assim como nas confraternizações e comemorações concernentes à concretização da lei de 13 de maio. (...) e a Câmara dos Srs. Deputados, colaborando com os demais poderes constitucionais, e, antes destes, com as aspirações do povo brasileiro naquele singelo e ao mesmo tempo imortal monumento, tornou-se merecedora das homenagens que lhe estão rendendo em uma sucessão de festas sem igual em nosso passado132 Nessas passagens percebemos que ao mesmo tempo em que a abolição era vista como um ato consagrado pelo Império, representado pela princesa Isabel e por D. Pedro II, era juntamente conseqüência da mobilização de grande parte da população. Ainda que Franklin da Távora não exponha os personagens que fizeram parte dos movimentos a favor da liberdade escrava, não deixa de mencioná-los, bem como aos festejos e homenagens realizadas, “nunca antes vistas na história do país”. A descrição dessas comemorações em nenhum momento aparece em seus escritos, na realidade quase passa despercebida, menos ainda as camadas da população que fizeram parte de tais iniciativas. No entanto, ao analisar o artigo publicado por João Franklin da Silveira Távora podemos perceber como a abolição da escravidão, instaurou novas idéias do que seria a história do Brasil e de como fazê-la. Com a extinção do estado servil o gênio da História Nacional ganhou novo critério. Ele está agora completo com a parte de liberdade que lhe faltava para ser digno de uma nação que rende culto nas aras da civilização. O nosso Historiador terá de agora em diante homens para submeter à sua análise físiopsicológica, terá um povo verdadeiramente livre para estudar e julgar nos sentimentos e na sua evolução 133. Sua fala faz referência a uma transformação essencial, por que passaria a atividade do historiador. O surgimento de uma “nação livre” havia permitido ao Brasil, tornar-se um país civilizado e evoluído, admitindo assim, um estudo de seus indivíduos e, portanto a construção de uma história verdadeiramente nacional. Em sua declaração, ainda que apenas retoricamente, torna-se explicito que a história teria de lidar com a parcela da população que 132 133 Idem, p. 20 Ibidem, p. 16 83 havia sido libertada, uma vez que ela compunha o povo brasileiro, que até então era como se não existisse. De que forma isso iria ocorrer não entrou na pauta de suas preocupações. Coube a Franklin Távora, somente perpetuar as idéias de que a escravidão impedia a civilização e o progresso do país, indicando o novo o caminho evolutivo que a partir do fim do cativeiro a nação poderia aspirar. A partir da exposição de Franklin Távora, podemos perceber algumas questões referentes ao modo como a parcela letrada do Brasil recebeu a instauração da lei que extinguiu a escravidão no país. Inserindo seu discurso no contexto temporal e espacial em que este foi produzido, notamos uma pretensão em construir um novo sentido para a realidade histórica da nação que acabava de conhecer mudanças com o fim do regime escravocrata. A nova conjuntura social tornava imperante o apagamento do passado escravista da memória coletiva. Apreendemos, mais uma vez, o surgimento de rupturas com as representações do passado histórico brasileiro, denotando um desejo de incluir a escravidão no quadro de realidades obliteradas, já gastas pela ação do tempo e que em nada poderiam ser comparáveis à nova imagem do país. Vencido hoje está o tremendo empecilho e como que atirada aos fundos abismos do esquecimento essa imensa rocha, que obstruía o caminho, pelo qual deve a Pátria chegar aos mais altos destinos da evolução 134. Tal trecho mostra a tentativa de transformar a abolição da escravidão, um ato recente, em um tema “morto”. Era necessário apagar da história a vergonhosa lembrança do cativeiro. Resgatar a imagem do escravo e da escravidão era o mesmo que afirmar o atraso da nação. Uma vez vencido esse “empecilho” era preciso esquecê-lo. Como afirmou Lília Schwarcz às temporalidades se confundiam “o que era ontem virava mito e o tempo breve parecia distante, como lembrança de relíquia velha” 135. Cabe observar que uma nova história, cada vez mais elaborada pelo povo e para o povo brasileiro estava agora se formando, “com a parte de liberdade que lhe faltava”, a partir de uma nova perspectiva que, necessariamente, lidava com a libertação do homem negro, advindo da necessidade de dar lugar a essa população que agora ganhava as ruas com status de homem livre. O Imperador ainda era um importante interlocutor das exposições escritas no Instituto, mas talvez não o principal. Aos poucos ia dando lugar a esse novo elemento o “povo 134 135 Ibidem, p.19 SCHWARCZ, Lília. Dos males da dádiva. Op. cit. 52 84 brasileiro”, ainda subjetivo, muito mais utilizado em sua dimensão retórica, mas já presente nos diálogos historiográficos. O próximo artigo a ser analisado trata-se de um esclarecimento de Manoel Francisco Correia136 a respeito do que foi declarado sobre a sua pessoa na leitura da recente obra Memória do meu tempo, do sócio honorário João Manoel Pereira da Silva. Este em seus escritos afirmou que Manoel Correia, então Ministro dos Negócios Estrangeiros havia votado, na sessão de 1870, contra projetos a favor do elemento servil e que havia, da mesma maneira, apoiado o gabinete que os rejeitava. Através deste artigo percebemos as querelas internas que ocorriam no interior de um mesmo instituto. Para além dos embates regionais, sabemos que opiniões divergentes estavam inseridas em cada uma das agremiações. Assim, neste caso, em meio às questões positivas sobre a abolição da escravidão, Manoel Correia havia sido acusado de se colocar contra diferentes propostas acerca da libertação escrava no período imperial. Um interessante diálogo se faz nesse artigo, pôs trata-se de uma defesa pessoal. Diferente de algumas décadas anteriores, ser acusado de escravista nesse contexto representava um insulto diante das correntes liberais que se impunham. Logo, Manoel Correia trata de elaborar uma defesa para ser publicada na revista do IHGB, então principal veículo informativo sobre a história nacional, como o objetivo de demonstrar suas atitudes perante as leis que envolviam a escravidão e a emancipação. Manoel Correia não nega a denúncia de que haveria apoiado o ministério conservador presidido pelo Visconde de Itaboraí, “seu amigo de infância”. Contudo, defende-se, assegurando que jamais foi contrário a projetos relativos à questão da escravidão no Brasil. Corroborando seus argumentos, declara que foi autor de empreendimentos que mandavam proceder a matrículas de escravos e que proibiam a venda de cativos em leilão. Afirma que sempre esteve a favor da abolição da escravidão, contudo, esta necessitava de medidas preparatórias para impedir conturbações precipitadas. Em suas palavras: É certo que apoiei o ministério presidido pelo muito honrado Visconde de Itaboraí, cujo acrisolado patriotismo foi sempre por mim devidamente 136 Manoel Francisco Correia nasceu em Paranaguá, atualmente Paraná, no dia primeiro de novembro de 1831 e faleceu no Rio de Janeiro em 11 de maio de 1905 aos 74 anos. Fez os estudos secundários em Nova Friburgo, no colégio Freese, completando-os no Colégio Pedro II. Foi Bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo em 1854. Iniciou sua vida pública como 2º oficial da Secretaria da Fazenda e seus cargos públicos durante o império foram abundantes, portanto, não cabe aqui especificar todos eles. Contudo, uma vez proclamada à República foi convidado por Serzedelo Correia para presidir o Tribunal de Contas, o que aceitou em 1884, apesar de monarquista convicto e amigo de Pedro II. Foi eleito também diretor do Loyd Brasileiro. Promoveu conferências e ajudou a fundar instituições culturais, escolas e bibliotecas. Foi eleito sócio correspondente do IHGB em 1886, passando à honorário em 1890 e à benemérito em 1898. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993 p. 49 85 apreciado, apoio mais que justificado pelos eminentes serviços prestados ao Brasil por esse ministério; mas não fui jamais contrário a projetos particulares relativos à questão do elemento servil.137 Na fala do monarquista Manoel Correia, apreendemos diversas noções que estes homens de letras e ciências possuíam a respeito do fim da escravidão no Brasil. Ao se defender do que foi declarado por João Manoel Pereira da Silva a seu respeito, paradoxalmente, Manoel Correia afirma ter apoiado o Ministério do Visconde de Itaboraí contra as leis que diziam respeito ao elemento servil. O motivo de tal atitude em nada tinha haver com o fato de ser contrário as propostas emancipacionistas, mas antes, pela sua lealdade a um amigo de infância que estudou com ele no Colégio Pedro II. No entanto, logo após se justifica declarando que aprovou e apoiou diversas leis a favor dos cativos, inclusive sendo firme em seu voto pelo fim da escravidão. O meu juízo a esse respeito [abolição da escravidão] estava formado desde muito. Entrando para o parlamento, apressei-me em propor medidas preparatórias. O que por motivos de relevância de ordem política, não desejava, era que se procedesse de forma com precipitação. 138 Ao declarar as necessidades de medidas preparatórias que culminassem com o fim da escravidão, alcançamos uns dos pontos de vista mais defendidos pelos homens do século XIX, o intuito de gradualmente abolir o sistema escravista, como uma forma de amenizar as conturbações que poderiam decorrer para a economia do país. Essas idéias eram sustentadas por muitos indivíduos que ainda procuravam manter as relações entre senhores e escravos estritas ao âmbito privado, mantendo o Estado afastado de tal questão, deixando aos particulares e ao tempo a condução da abolição no Brasil. Manoel Correia nos oferece, nesse sentido a visão de grande parte da sociedade, principalmente dos senhores rurais e de políticos conservadores que pretendiam alongar o sistema escravista no Brasil por tempo aparentemente indeterminado, deixando o jogo político o mais afastado possível das decisões empreendidas pelo fim da escravidão total no país. Sua fala reproduz parte das prerrogativas que comumente combinavam uma condenação retórica da instituição da escravidão com a defesa dos interesses dos proprietários. O resultado dessa tensão entre tendências políticas emancipacionistas e convicções escravocratas, foi concordar com argumentos que apontavam para o fim gradual da escravidão, sustentando que a esse respeito nenhuma atitude radical deveria ser tomada. 137 138 CORREIA, Manoel Francisco. IHGB, Rio de Janeiro, 1897, Tomo LX Parte II. p.104 Idem. p. 105 86 Em resumo, Manoel Correia jamais aceitaria a condição de escravocrata que lhe foi incutida pelo seu crítico, pelo contrário destacou como havia defendido a abolição. Seu plano, no entanto era aprovar medidas preparatórias, de modo que o Estado não interferisse, decisivamente, no curso natural da história. Como escreveu Sidney Chalhoub: “Em meados do século XIX (...) o Brasil imperial oferecia ao mundo o curioso espetáculo de um país no qual todos condenavam a escravidão, mas quase ninguém queria dar um passo para viver sem ela” 139. Em seguida analisamos o artigo A abolição no Brasil140 de autoria de Franklin Américo de Meneses Dória (barão de Loreto141, publicado no ano de 1900. Em seu texto o autor narra o andamento do processo abolicionista brasileiro dividindo-o em três fases ou etapas. A primeira dela diziz respeito ao processo de proibição do tráfico de escravos africanos para o Brasil desde a lei de 1831, até ser finalmente concretizado em 1850 com a lei Eusébio de Queiroz. A emancipação lenta e gradual distingue o segundo período da história da abolição. A idéia da emancipação progressiva era, de acordo com o barão de Loreto, refletida na imprensa, através de projetos legislativos, de associações filantrópicas, e da caridade individual que multiplicou as manumissões. Em nenhum momento o autor destaca nenhuma manifestação escrava como de qualquer importância para o andamento da abolição nessa segunda etapa por ele delineada. O auge dessa segunda fase do andamento libertador dos escravos no Brasil foi a promulgação da lei de 28 de Setembro de 1871. Nesse caso, podemos perceber pontos de vistas parecidos entre o barão de Loreto e Franklin Távora, pois ambos ao tratarem do processo da abolição da escravidão no Brasil atentaram para o fato de que apesar da participação retórica de uma população sem delimitação, foram Isabel e de D. Pedro II que com seus bons corações e virtudes emanciparam os escravos brasileiros. Acerca da lei de 28 de setembro que libertava o ventre escravo escreveu o barão de Loreto: A Princesa Imperial, sancionando como Regente, na ausência do Imperador, a lei de 28 de setembro, interpretou fielmente a vontade paterna, e ao mesmo tempo obedeceu aos sentimentos de seu grande coração (...). A Princesa Regente, pois, deu vida à lei que assegurou a liberdade dos futuros filhos das escravas, à lei que, demais, promoveu o resgate do cativo, e lhe 139 Sidney Chalhoub. Machado de Assis historiador. Op. Cit. p. 141 DÓRIA, Franklin Américo de Menezes, IHGB, Rio de Janeiro, 1900, Tomo LXIII, Parte II. p. 187-192 141 Nasceu na Ilha dos Frades na Bahia em 12 de julho de 1836, falecendo no Rio de Janeiro em 28 de outubro de 1906. Formou-se Bacharel pela Faculdade de Direito do Recife em 1859. Foi professor do Instituto Nacional de Instrução secundária, promotor em cachoeira, Bahia, elevado a Juiz de Direito. Dentre inúmeros outros cargos que obteve no império foi membro do Conselho do Imperador. Pertenceu à Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. Foi membro fundador da ABL (cadeira 25). Em 1895 foi eleito sócio efetivo do IHGB. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993. p.59 140 87 reconheceu a dignidade de homem, concedendo-lhe direitos e favores preciosos 142. Se a Lei de 28 de setembro de 1871 entrou para a história com o epíteto de áurea e consagrou a intervenção do Estado nas relações pessoais entre senhores e escravos ao conceder direitos a indivíduos que até então viviam a margem das leis, na fala de Meneses Dória observamos que essa mesma lei, além de direitos, concedeu “favores preciosos” aos cativos. A sociedade paternalista apenas mudava o sujeito do favor, do senhor transformavase no Estado, deixando entrever a noção de que cabia aos escravos agradecer por “favores” que na realidade eram seus direitos. O terceiro período da história da abolição, narrado pelo autor, iniciou-se na década de 1880 quando ocorreu uma radicalização das atitudes da sociedade visando acabar com a escravidão no Brasil “o mais depressa possível”. Nesse sentido, o barão de Loreto afirma que partiu do Rio de Janeiro os princípios da extinção da escravidão imediata – “(...) no Rio de Janeiro, irrompeu a aspiração as abolição imediata (...) 143”. Observamos aqui, uma referência regional no interior do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, para o autor, todas as outras províncias vinham lidando com a questão da emancipação gradual de maneira razoavelmente conciliadora, cabendo ao Rio de janeiro, ou a corte brasileira dar início ao processo de radicalização. Em meio a tal processo enunciavam-se a imprensa, erguiam-se vozes do seio de todas as classes e até entre muito proprietários agrícolas. Interessante notar que mesmo indiretamente, o barão de Loreto retratou as mudanças e a intensificação da participação popular na campanha abolicionista. A partir da década de 1880 a rua, transformando-se em espaço público e político da razão passou a ser o palco das agitações em massa e não pode deixar de ser registrada pela historiografia. Neste artigo, destaca-se a importância conferida a manumissão dos senhores no andamento da abolição definitiva da escravidão. Para o barão de Loreto, os proprietários já vinham libertando seus escravos antes mesmo de qualquer colocação por parte do governo e tiveram importância decisiva para a emancipação. Tamanha redução (de escravos matriculados) operava-se menos por efeito da morte e da emancipação retribuída, do que em conseqüência das manumissões expressa ou tacitamente concedidas pela filantropia particular.144 142 DÓRIA, Franklin Américo de Menezes, IHGB, Rio de Janeiro, 1900, Tomo LXIII, Parte II. p. 187 Idem, p. 189 144 Ibidem. 143 88 Mais uma vez, neste trabalho percebemos a idéia da emancipação como “dádiva” doada pela Princesa Isabel, por D. Pedro II e mesmo pelos senhores de escravos, claramente visível neste artigo. Aos cativos, restava-lhes a submissão e a lealdade. Igualmente, percebemos o afastamento de quaisquer ações que remetessem a noções de conflito e violência, bem como de qualquer participação da população escrava no processo de abolição. O fato de que havia tido comemorações e festins nas cidades sequer foi citado, criando uma memória que alienava o escravo e o negro das lutas pela abolição. O mito de “Isabel a Redentora” é continuado e confirmado como se a abolição fosse um ato de apenas um indivíduo. Assim a Princesa, que antes, sancionando outra lei famosa, proclamara livres as gerações futuras, revocou à liberdade centenas de milhares de cativos, e completou a obra da abolição da sua pátria, a qual, reconhecida, lhe deu o título glorioso de “Isabel a Redentora”.145 Partiremos agora para analise dos artigos publicados na revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. A opção de deixá-lo para o final deste capítulo se justifica pelo fato de ser a única agremiação aqui trabalhada fundada já no período republicano, no ano de 1894. Logo, as formas de narrar a história da monarquia para os sócios de do IHGSP se colocavam de maneiras diferenciadas, uma vez que este regime político nunca foi o motivo privilegiado das suas assertivas históricas e muito menos seu principal mantenedor como era o caso do IHGB. Nesse sentido, a maneira como o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo lidava com a história monárquica e consequentemente escravista não era de todo semelhante às outras instituições. Críticas veementes a monarquia se sustentavam na manutenção da escravidão, como poderemos conferir. A tradição escravista nesse sentido foi resgatada como uma forma de deslegitimar o regime político monárquico e exaltar o republicano. Sem dúvida essa foi a forma mais explorada pelos sócios deste instituto quando abordaram o tema da escravidão e abolição no Brasil. No primeiro volume da revista do IHGSP, Domingos José Nogueira Jaguaribe146, deixa caro a relação viciosa entre a escravidão e o regime monárquico. Em sua publicação, 145 Ibidem, p.190 José Nogueira Domingos Jaguaribe Filho. Nasceu em Fortaleza, Ceará no ano de 1847. Formou-se pela faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Foi deputado geral, no império pelo Ceará e deputado provincial em São Paulo. Pertenceu a Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional. Possui uma lista extensa de publicações. Foi eleito sócio benfeitor do IHGB em 1883, benemérito em 1891 e honorário em 1914. Faleceu em São Paulo no dia 14 de novembro de 1926. 146 89 intitulada Origens republicanas do Brasil 147, o autor argumenta que desde o primeiro reinado D. Pedro I havia mantido a escravidão como forma de alimentar seus interesses de declarar a independência, sem, no entanto transformar o regime político do país mantendo-o em sob a égide de uma Monarquia. De acordo com o autor: O povo que não julga, senão pelo que vê, e a quem poucas vezes engana o bom senso, compreendeu que Pedro I havia mantido a escravidão e os interesses da sua dinastia e que ele fora logrado no apoio que dera para se fazer a independência sem a republica 148. Sendo assim, para Jaguaribe, a forma de manter o governo nas mãos do imperador D. Pedro I, declarando a independência, sem, contudo, instaurar uma república que limitaria os seus poderes foi à manutenção da escravidão. Essa mesma escravidão, paradoxalmente, havia sido a instituição que posteriormente seria a responsável pela decadência do regime monárquico. Logo, ao mesmo tempo em que ela garantiu a perpetuação de um modelo imperial vigente no Brasil até o ano de 1889, seu término possibilitou que chegasse ao fim a Monarquia Constitucionalista Brasileira, perdendo todos os seus apoios. A escravidão possuiu, assim, uma dupla função, do mesmo modo que foi a chave de manutenção do poder imperial, produziu sua derrota, unindo todos os indivíduos em uma luta maior pela liberdade que culminaria com a instauração da República. Como apresentaremos no capítulo seguinte as idéias de complementaridade entre a abolição e os idéias republicanos foram comumente acionados como partes integrantes de uma mesma ação em busca da “verdadeira liberdade”. (...) foi deste leito de misérias [a escravidão] que a monarquia viu levantar-se o espectro que, sem demorar, a demoliu.(...).Grande lição, sem duvida, para aqueles que julgam ser a liberdade do homem uma fonte de exploração, e quando a exploram não sentem no gozo deste hediondo comercio, o veneno que lhe prepara a ruína, quando não lhes atormenta a consciência 149. Interessante notar que este mesmo autor aborda uma temática até então deixada de lado por todos os intelectuais aqui analisados: a relação entre os partidos liberal e conservador no que tange a questão escravista e a emancipação. Como não poderia deixar ser, o IHGSP não possuindo nenhum tipo de vínculo com o regime monárquico criticou a maneira como os dois partidos apontados como ideologicamente distintos, quando confrontados com o assunto da abolição no Brasil possuíam visões semelhantes. 147 JAGUARIBE FILHO, José Nogueira Domingos, IHGSP, São Paulo, 1894, Volume I – Parte V, p. 67-82 Idem, p. 72 149 Ibidem, p. 68 148 90 E todavia foi evoluindo que o Brasil pôde chegar doas anos 1822 aos 1888, em que fez cair a praguejada escravidão que o interesse dos proprietários explorava, com o da monarquia que entreteve os partidos liberal e conservador, fazendo os seus chefes Martinho de Campos e Cotegipe mostrarem-se irreconciliáveis na política, mas íntimos no interesse da escravidão 150. Esse trecho evidencia tanto as críticas referentes à utilização da escravidão como forma de sustentar a Monarquia, juntamente dos senhores, bem como recrimina criticamente as aparentes incompatibilidades políticas entre liberais e conservadores que, no entanto, não impediram que sustentassem visões parecidas, para não dizer iguais a respeito do elemento servil no país. Nesse sentido, a escravidão e abolição serviram, ao mesmo tempo, para criticar a monarquia e legitimar o regime republicano liberal e detentor da igualdade e liberdade entre os homens. Nas palavras de Jaguaribe: “Uma das maiores vergonhas do império foi sempre apoiar-se na escravidão dos infelizes negros. A república, porém, queria a liberdade 151 .A nenhum outro instituto aqui trabalhado poderiam ter surgido censuras parecidas, até porque a grande dificuldade de escrever a história nacional republicana nesta última década do século XIX era justamente tentar conciliá-la a um passado imperial, sem nenhum tipo de rompimento brusco que deslegitimasse a monarquia, principalmente para o IHGB e para o IAHGP. Nesse sentido, diferentemente das outras instituições analisadas que procuravam silenciar um passado de escravidão para a nação, não verificamos neste caso uma dificuldade iminente em resgatar uma memória escravista brasileira, pois tal resgate servia a um determinado fim, o de glorificar o regime republicano e, do mesmo modo, recriminar o monarquista. Elaborando uma síntese geral do que foi exposto, podemos chegar a algumas conclusões. A emancipação no Brasil desenvolveu-se durante um amplo período que transborda o século XIX aqui abordado, possuindo suas raízes ainda no século XVIII152. Tentamos chamar a atenção para as batalhas pelas memórias que produziram diferentes sentidos e significados para o 13 de maio no Brasil, bem como para os debates em torno da extinção do cativeiro imersos em realidades locais e regionais diversas que geraram expectativas e propostas de futuro próprias para o país. Levando em conta a heterogeneidade do processo abolicionista procuramos apontar como experiências sociais díspares produziram projetos e partilharam questionamentos em torno de uma mesma questão. Em primeiro lugar, ficou evidente que para grande parte dos sócios dos Institutos Históricos a escravidão se 150 JAGUARIBE, José Nogueira Domingos, IHGSP, São Paulo, 1894, Volume I – Parte VI, p. 88 JAGUARIBE, José Nogueira Domingos, IHGSP, São Paulo, 1894, Volume I – Parte VIII, p. 124 152 GOMES, Flávio e DOMINGUES, Petrônio. Experiências da emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (19890-1980). São Paulo: Selo Negro, 2011. 151 91 colocava como uma barreira para um mundo civilizado, nesse sentido o resgate de sua tradição era, sempre que possível silenciado. Silenciadas também foram às implicações sociais e políticas do ato jurídico que proclamou o fim da escravidão no país, bem como seus festejos e comemorações. Entre silêncios e esquecimentos os homens e mulheres negros, escravos ou livres, estiveram nas mentes dos intelectuais que narravam a história nacional de um país projetado para o progresso e para a civilização. A história do pós-abolição não pode ser fixada por datas153. Necessitamos ter em mente que os significados da liberdade foram e são constantemente redefinidos, e nesse sentido, a história atual é da mesma forma, a história do pós-emancipação. Ao levantar a discussão sobre direitos (sempre re-significados) e suas formas de interpretação em torno do conceito de cidadania no final do século XIX, percebemos que a noção de cidadania ultrapassa a condição jurídica, ela é constantemente redefinida de acordo com a dinâmica das relações sociais. Dessa forma, o conceito de cidadania se aproximaria daquele defendido por Darcísio Corrêa154, no qual é visto como a construção da esfera pública. Sendo assim, a análise da idéia de cidadania como um status, defendida por Marshall155, dividida em três ordens de direitos – civis, políticos e sociais – perde espaço, pois deixa de ser vista como um conjunto de funções estabelecidos pelo Estado aos indivíduos. Contra tal idéia, se coloca também José Murilo de Carvalho156, ao visualizar o campo das relações e práticas sociais como sendo formadoras da cidadania. Ricardo de Aguiar Pacheco vai além e ratifica a noção de que o exercício da cidadania se liga mais ao sujeito histórico, que em sua relação com o Estado, exige e cobra responsabilidades – formal ou informalmente – e o reconhecimento de direitos exteriores àqueles regulamentados, mas que acredita merecer. Dessa maneira, propõe “a existência de uma cidadania informal exterior às formalidades das relações Estado-sociedade, que se manifestam em representações e práticas sociais formadoras de uma identidade social”157. Por fim podemos levantar duas propostas de escrita da história que se interligavam nos Institutos Históricos. Os eventos distantes no tempo possuíam uma predominância nos artigos das revistas, o que significava dizer que acontecimentos ocorridos contemporaneamente eram fatos ainda em desenvolvimento, episódios que ainda estavam produzindo ecos e impactos na 153 GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Quase-cidadão. Op. cit. CORRÊA, Darcísio. A construção da cidadania. Ijuí: Unijuí. 1999 155 MARSHALL, T. H.. Cidadania, classe social e Status. ZAHAR EDITORES, Rio de Janeiro, 1967. 156 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 157 PACHECO, R. A. P. O cidadão está nas ruas: representações e práticas acerca da cidadania republicana em Porto Alegre (1889-1991). Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, 2001.p 23 154 92 sociedade. Daí resultava, certamente, a dificuldade de narrativas históricas em vistas das multiplicidades de interpretações políticas ainda em movimentação158. No entanto, para aqueles responsáveis pela construção identitária de um “passado comum” da nação era ao mesmo tempo, necessário um investimento dos movimentos vivenciados no presente, na medida em que a construção desse passado ganhava novos contornos e sentidos que necessitavam urgentemente garantir a continuidade e a coesão desse mesmo passado. Dessa forma, a existência de um novo tempo, inaugurado pelas transformações sociais, viria interligada as novas concepções de futuro que proporiam novas narrativas historiográficas que permitissem a manutenção de um sentimento identitário. Nesse sentido, a abolição e a republica marcavam claramente uma transformação com desdobramentos e possibilidades de se pensar o que deveria ser o Brasil159. 158 159 DA MATTA, Roberto. Relativizando – Uma introdução à antropologia social, Rio de Janeiro: Rocco, 2000. GOMES, Ângela de Castro. Op. cit. p. 30 93 Capitulo III. Construindo memórias. Uma nova História da nação republicana. 94 3.1 A Chegada da República Ao longo da década de 1880 a figura imperial de D. Pedro II foi perdendo visibilidade e a monarquia, por consequência, se enfraqueceu. Nesse período os jornais se multiplicaram e ampliaram seu público, os periódicos, com destaque para O País, Gazeta da Tarde e Gazeta de Notícias, ilustravam em suas páginas as conturbações vivenciadas cotidianamente. Com a progressiva intensidade da campanha abolicionista, a década de 1880 viu surgir o crescimento da rua como espaço público. A população das cidades cresceu de maneira significativa na segunda metade do século XIX, junto da urbanização e das melhorias em infra-estrutura, aumentando as reivindicações nas praças públicas e na imprensa, estendendo o espaço de atuação política, antes restrito ao Parlamento. A rua, interpretada pelo projeto Saquarema como o lugar da desordem, foi ressignificada e adquiriu aspectos positivos, passando a ser vista como um espaço de uso público da razão crítica160. Somam-se a isso um processo de democratização da rua, que passou a ser frequentada pelos mais variados tipos sociais. Percebemos nesse aspecto uma transformação na organização da sociedade, o mundo privado representado pela “Casa” se via cada vez mais presente nesse novo espaço público e político que a rua inaugurava. Tristão de Alencar Araripe161 não deixou de registrar esse poder empossado pela massa da população nas últimas décadas do Império. O povo se aproveitando do voto e da imprensa como de duas válvulas possantes, e de duas forças irresistíveis para desabafar suas queixas e para impor seu querer, participava assim do governo e assegurava simultaneamente a eficácia de suas liberdades. 162 A sociedade brasileira de fins do oitocentos adquiriu uma complexidade não presumida pelo governo imperial. A população do Rio de Janeiro, por exemplo, coração político do Império, mudou radicalmente quanto a sua constituição demográfica, posto que recebeu uma quantidade maciça de imigrantes europeus e migrantes do interior do país. Contava ainda, com a problemática de lidar com o negro recém liberto da escravidão e com as novas formas de trabalho assalariado. Os inchamentos das camadas médias letradas, que se 160 MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida: cultura democrática e científica do final do Império. Rio de Janeiro: Editora FGV; Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2007. 161 Tristão de Alencar Araripe foi um dos mais renomados sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Nasceu em 1821, na então província do Ceará e faleceu no Rio de Janeiro em 1908. Possuiu importantes cargos políticos tanto no período imperial, com no pouco tempo em que viveu na República. Foi eleito sócio correspondente do IHGB em 1870, passando a honorário e, finalmente, a benemérito em 1898. Parte dessas informações estarão contidas no quarto capítulo deste trabalho. 162 ARARIPE, Tristão de Alencar. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1897, Tomo LX, Parte II, p.7 95 sentiam insatisfeitas frente à posição marginalizada na sociedade e à falta de possibilidades de integração junto ao aparelho de Estado, também contribuíam para o desagrado e frustração com o regime político. As camadas populares, da mesma forma, se encontravam insatisfeitas. Como demonstrado por Ronaldo P. de Jesus163, as visões da “gente comum” sobre a Monarquia eram multifacetadas e contraditórias, chegando inclusive à indiferença. Portanto, em sua opinião, não havia um apoio popular sólido à instituição monárquica. Mesmo após a abolição da escravidão, quando percebemos a figura da Princesa Isabel ser alçada como símbolo do governo imperial e um aumento da legitimidade monárquica diante da população da Corte, Ronaldo de Jesus sugere que tal fato deve ter ocorrido somente nos anos seguintes, frente às conturbações do governo republicano em seus primeiros anos. Ou seja, as dificuldades econômicas e institucionais, a violência e a confusão política da década de 1890 teriam tornado possível o surgimento de uma nostalgia em relação ao período anterior e, assim resgatado símbolos e memórias não tão centrais à sociedade da época. Nos grandes centros urbanos aumentava o número de conferências abolicionistas e republicanas que mobilizavam um número cada vez maior de indivíduos. Os jovens militares também demonstravam simpatias aos debates que abalavam a estrutura nacional. As instituições foram perdendo a sacralidade e transformavam-se em temas de debates que inspiravam a intelectualidade. Nesse contexto a produção jornalística e literária aumentou e se diversificou. Muitos livros comprometidos com a crítica e o entendimento das questões nacionais surgiram nessa época, como por exemplo, O mulato, de Aluísio Azevedo ou Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, ambos no ano de 1881. Era interessante para essa geração descrever a sociedade com objetividade, sem idealizações, a partir de um espírito crítico, em uma clara oposição ao romantismo. Obviamente a questão racial começou a parecer mais constantemente no meio literário, como desdobramento desse processo. Os temas, os objetos, a estética, tudo indicava para um tipo de escrita voltado para um maior alcance social. As novas ideias adentravam as mais diversas mentalidades e o abolicionismo e republicanismo surgiam como as principais críticas as instituições da Monarquia. As lutas pelo fim da escravidão penetraram profundamente nos meios intelectuais e entre os positivistas, ganhando a adesão da causa republicana. Grande parte dos letrados brasileiros acreditava no republicanismo como ideário político, com algumas exceções como André Rebouças e Joaquim Nabuco. As noções de progresso advindas do continente europeu 163 JESUS, Ronaldo P. de, As visões da Monarquia: escravos, operários e abolicionismo na Corte. Belo Horizonte: Editora Argumentum, 2009. 96 pregavam como bandeira o federalismo, a democracia e a instrução pública como prerrogativas básicas para o desenvolvimento da sociedade. Além de terem sido canalizadas na luta contra a escravidão no Brasil, essas noções foram resgatadas pelos adeptos do republicanismo. Se até a década de 1870, o Partido Republicano se mostrava reticente em relação à emancipação dos escravos, com o crescimento da campanha abolicionista percebemos uma associação entre abolicionismo e republicanismo. Nesse momento, para grande parte dos republicanos, abolição e Republica eram como que complementares, compunham fases de um mesmo processo em direção à liberdade. A partir da segunda metade do século XIX, uma renovação filosófica se fez presente nos círculos intelectuais brasileiros. Apesar de percebermos uma forte tradição iluminista entre os homens de letras que inauguraram o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, notamos que foi somente a partir da década de 1870 que o movimento de Ilustração teve uma penetração mais intensa no meio letrado nacional. A partir de então, o anticlericalismo, o racionalismo, o positivismo de Auguste Comte, o evolucionismo de Herbert Spencer, as descobertas de Lamarck e Darwin compuseram o quadro de renovação mental que seguia o compromisso de entender as questões nacionais. À medida que tais ideias, sempre ressignificadas, adentravam no território brasileiro, cresciam as críticas ao modelo de trabalho escravista e à instituição monárquica, vistas como responsáveis pela ignorância da população e como impeditivos à chegada da modernidade no Brasil. Essa nova geração de intelectuais que criticava o modelo historiográfico elaborado pelo IHGB, adotou, em grande medida, o republicanismo como mote político. Nos dois anos finais do Segundo Reinado o partido republicano ganhou mais adeptos nos meios acadêmicos, entre artistas, literatos e nos círculos intelectuais de uma maneira geral. Tornaram-se frequentes as conferências públicas e meetings políticos realizados, quase sempre, em teatros e acompanhados por intensa repressão policial. Essa estratégia utilizada para conter a subversão republicana, acabou por provocar incidentes e fortalecer a noção de que o governo imperial era o responsável pelas agitações mais perigosas nas ruas, o que contribuiu para que monarquia, aos poucos, perdesse legitimidade e força simbólica. Na realidade, a versão saquarema de organização da sociedade brasileira estava sendo desmontada, e o mundo do governo, o mundo do trabalho e o mundo da desordem começavam a se confundir. Essa confusão trazia à tona uma desorientação social e uma desorganização dos critérios de análise intelectual. Um novo cenário se formou nas ruas das cidades, principalmente da Corte, com fim da escravidão. Ainda em 1888, a propaganda republicana avançava e os abolicionistas, antes 97 unidos por um mesmo objetivo, dividiam-se entre o apoio à causa republicana e a Monarquia. Importante lembrar que a emancipação, além dos republicanos, também atraiu monarquistas para a opinião pública. Nos jornais dos grandes centros urbanos as disputas políticas se tornaram cada vez mais acirradas. O interior do país não escapou das conturbações. Grandes fazendeiros, vendo-se prejudicados pelo fim da escravidão, aderiram à razão republicana com a esperança de receberem indenização, em decorrência da perda da mão-de-obra escrava, eram os “republicanos de 14 de maio”. Muitos libertos, por sua vez, fugiam das fazendas em busca de melhores condições de vida, recusando-se a trabalharem para seus ex-senhores. Para além da questão em torno da abolição da escravidão, considerada como definitiva para o fim da Monarquia no Brasil, podemos apontar ainda para a chamada “questão militar” como de grande importância para a perda da legitimidade do Segundo Reinado. A partir de 1886, essa questão tornou-se objeto de disputas e debates nas páginas da imprensa brasileira. De maneira insatisfatória, podemos afirmar que foi uma sucessão de acontecimentos, ocorridos na década de 1880, que geraram embates entre oficiais de patentes mais baixas do exército brasileiro e o governo imperial. Dentre os principais eventos destacamos as conturbações geradas pela Guerra do Paraguai, a proibição dos militares de se manifestarem na imprensa e uma sucessão de desentendimentos que envolveram o tenente-coronel Antônio de Sena Madureira e o governo central. Na realidade, a indisposição dos militares junto ao Império vinha do desejo de possuírem uma posição de maior destaque na sociedade, uma vez que se viam como patriotas, detentores de mérito para ascender socialmente. Estudantes da Academia Militar, onde penetraram intensamente os ideais positivistas, a jovem oficialidade se via especialmente iluminada para dar cabo ao desenvolvimento da civilização no país. Todavia, possuía a desvantagem de exercerem uma profissão desprestigiada socialmente. Somava-se a isso um descontentamento com a carreira devido à falta de oportunidade dentro do sistema de patentes. O engajamento do Exército ao abolicionismo fomentou as discórdias com o governo imperial. Os ideais científicos e democráticos característicos da jovem oficialidade levaram ao engajamento desses homens ao republicanismo. Os adeptos do republicanismo souberam valer-se dessa contenda para enfraquecer a imagem da Monarquia, ao mesmo tempo em que perceberam a grande utilidade que os militares poderiam oferecer na derrubada do governo imperial. Maria Tereza Chaves de Mello164, sem entrar no mérito do peso da questão militar para a proclamação da República, 164 MELLO, Maria Tereza Chaves de, Op. Cit. 98 analisa o sentido simbólico da presença de militares junto ao republicanismo nas manifestações das ruas e percebe a acolhida popular frente às tropas do exército. Os militares encarnaram o mundo da ordem, posto que fossem representantes de um grupo culto e intelectualizado, porém detentores do poder das armas. Esse importante segmento social, uma vez que ganhou a adesão popular, empreendeu o golpe que culminou com a instauração da República no Brasil, no dia 15 de novembro de 1889. Com o estabelecimento do modelo republicano de governo, o Brasil abandonou as rotinas institucionais fundamentais do Império. Em primeiro lugar, chegava ao fim o Poder Moderador. Adotado constitucionalmente em 1824, o Poder Moderador, inviolável e privativo do Imperador, possuía a função de supervisão dos demais poderes, era a chave da organização política imperial, responsável pela sustentabilidade do sistema político do Segundo Reinado 165 . Se o Poder Moderador, de certa forma, resolvia a questão em torno das relações entre Legislativo e Executivo e a interação do poder central e os poderes regionais, com a chegada da República a confusão política se fez iminente. A nova Constituição materializou o princípio de autonomia gerando uma ordem política de incertezas. Em 1889 se abandonou um modelo institucional que durava por décadas e que possuía na figura do Imperador a chave de organização política, por um modelo institucional até então desconhecido. Por isso, nos primeiros anos da República rondava uma imprevisibilidade em relação a variados aspectos da vida política do país. Para tentar solucionar esse clima de insegurança fez-se necessária a elaboração de uma Constituinte. A Constituição de 1891 estabeleceu eleições diretas para Presidente e defendeu o modelo do voto universal, restrito aos indivíduos do sexo masculino, maiores de 21 anos e alfabetizados, ou seja, o eleitorado não se modificou sobremaneira daquele visto nos tempos do Império. Contudo, a Primeira República obrigou-os, em vista da própria Constituição de 1891, a considerar o modelo representativo de governo mesmo de forma limitada, o que sempre esteve abafado pela figura constitucional do Poder Moderador no Segundo Reinado. Incontáveis eventos de agitação social e instabilidade política marcaram os primeiros anos de governo republicano, que contaram com a presença dos militares. As tensões em torno da reconfiguração dos poderes advinham das incertezas geradas pela quebra do modelo da dinâmica imperial de governo. De acordo com Renato Lessa166, os atores participantes da 165 LESSA, Renato. A invenção republicana: Campos Sales, as Bases e a decadência da Primeira República brasileira. Rio de Janeiro: Editora IUPERJ/ Vértice, 1988. 166 Idem. 99 nova vida política brasileira não dispunham de sentido exato para suas ações, bem como controle dos resultados, por isso, nos primeiros dez anos de governo, a República constituiuse como um período caracterizado pela carência de institucionalidade e indefinição de funções. As formas institucionais que haviam encontrado certa solução para o regime anterior, já não existiam claramente, dando a impressão de ausência de regime político. Diferentemente da centralidade característica do Império, os localismos começaram a aparecer, graças à pouca estabilidade do jovem governo, uma vez que, como apontado por Renato Lessa167, na transição do Império para a República ofuscaram-se as conexões macropolíticas que interligavam o Imperador, o Poder Moderador, os Estados e os Partidos. O início do período republicano no Brasil foi, portanto, caracterizado pela fragilidade e incerteza acerca das relações entre as oligarquias locais e os governos estaduais e federal. Diferentemente da suposta centralidade política imperial, a República brasileira aparecia repleta de conturbações, o que trazia à tona um sentimento nostálgico em relação à Monarquia. O governo de Deodoro da Fonseca, por exemplo, foi marcado pelo desmonte do legislativo e, posteriormente, por tensões relativas à sucessão presidencial. A vigência de Floriano Peixoto no poder, novamente trazia conflitos referentes à questão sucessória, além de ter enfrentado dificuldades quanto à legitimidade de suas funções. Essas e outras questões demonstravam um aparente fracasso da tentativa federalista e do ensaio institucional, além de produzir expectativas de ruptura política. Essa experiência de incertezas durou até o início do governo Campos Sales (18981902) quando começou a ser revertida a partir de fortes críticas ao modelo de República inaugurado em 1891. Campo Sales conferia aos Estados e não ao povo a verdadeira fonte do poder republicano. Avesso ao sistema partidário e aos instrumentos da democracia representativa, o novo presidente, através do pacto oligárquico que envolvia os poderes central e estatal, conferiu às oligarquias estaduais pleno controle sobre a população e o eleitorado168. No seu modelo de governo, o presidente da República fornecia apoio aos estados, em troca, os governadores, garantiam bancadas legislativas interessantes ao poder central. Para além dessa dinâmica de reciprocidade, os coronéis desenvolveram um importante papel nessa operação política, pois zelavam pelo resultado das eleições sempre de acordo com as expectativas do governo estadual e federal e, assim, garantiam o fortalecimento do poder local. Importante colocar que a estabilidade e a consolidação das bases do governo 167 168 Ibidem. Ibidem. 100 republicano também dependeram de uma intensa batalha política e ideológica de símbolos e alegorias, como brilhantemente nos informa José Murilo de Carvalho169. A partir da análise dessa dinâmica de governabilidade, marcada pela falsificação dos mecanismos representativos, muitos autores afirmaram que a República não provocou, em termos eleitorais, um rompimento significativo com a realidade imperial. De acordo com Cristina Buarque de Hollanda170, por exemplo, o tema da representação na Primeira República, em grande medida, reeditou a realidade presenciada no Império, o que, em sua perspectiva, supõem fortes continuidades com o passado ao invés de um ineditismo do objeto. Ângela de Castro Gomes171, todavia, aponta para aspectos mais profundos da vida política na Primeira República, sem negar ou minimizar as fraudes e violência que limitaram, significativamente, as formas de representação política do período. Em sua opinião, o processo eleitoral cumpriu papel chave para o sistema político republicano, uma vez que introduziu um mínimo de competição, renovação e consciência política aos cidadãos, possuindo uma função pedagógica, ainda que diminuta, de alimentar um aprendizado político. Em vista do estado de desorganização política no princípio do governo republicano, tornou-se notória a profunda desagregação social e, consequentemente, a indigência de definir uma identidade para a população do país. Dessa forma, podemos afirmar que a instauração da República aumentou a necessidade de identificação de uma unidade a que se pudesse denominar de povo brasileiro, o que já vinha ocorrendo desde o final do século XIX, com a progressiva emancipação dos escravos. A transição da qualidade de massa desordenada, à qualidade de povo, era vista como um processo resultante da intervenção estatal. Mais uma vez, a exclusão de grande parte da população da condição de cidadania formal foi a solução encontrada pelos governos da primeira República. A problemática a respeito da representação política das minorias, permaneceu em voga e suscitou discussões sobre voto limitado, cumulativo e sistemas de terço e quinto. Tal como no Segundo Reinado o acesso à política permanecia restrito a uma parcela diminuta da população, como forma de afastar o perigo das mobilizações populares das esferas mais altas da política. 169 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 170 HOLLANDA, Cristina Buarque. Modos de representação política: o experimento da Primeira República brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. 171 GOMES, Ângela de Castro e ABREU, Martha. A nova “Velha” República um pouco de história e historiografia. in: Tempo Nº 26 Vol. 13 - Jan. 2009 101 3.2 Uma nova Forma de escrever a História Nacional: diálogos e rupturas entre a Monarquia e a República. O período da Primeira República brasileira necessita de uma urgente revisão historiográfica que assinale para a sua importância no tangente às experiências políticas e sociais do país. Diferentes práticas participativas, que reuniram atores diversos, foram minimizadas pela história e apagadas da memória coletiva, em grande medida pelo regime político que o sucedeu. Paradoxalmente, a experiência política republicana mais duradoura da História brasileira entrou para a narrativa da nação como exemplo de fracasso. Esse processo de construção e seleção da memória foi capaz de esgotar todas as experiências políticas, sociais e culturais da designada “República velha”, enfatizando as conturbações e fraudes do processo eleitoral, transformando-a em um malogro institucional. Como consequência da elaboração de uma cultura histórica que priorizou o rebaixamento de qualquer tipo de ação política na Primeira República à idéia de fraude, principalmente em relação a representação política, ainda desconhecemos uma rica movimentação de sujeitos que exigiam e construíam espaços de cidadania, ainda que informais, nesse período172. Interessante notar que grande parte das interpretações sobre o início da República no Brasil considera que a intelectualidade do período teria falhado na tentativa de construir um imaginário republicano e um sentimento cívico patriótico, da mesma forma não teria conseguido valorizar um Brasil mestiço, formado pelo aporte racial negro, branco e indígena. Para a pesquisa aqui realizada, que analisa o período da Primeira República sob uma nova ótica, percebendo o impacto das lutas políticas e simbólicas como de decisiva importância para se pensar a relação entre cultura e política no Brasil, tal época é vista como de suma relevância para a formação do campo da historiografia brasileira, ainda preocupada com a gênese da nação, bem como com as análises da composição racial de um pretenso povo formador do Brasil173. A abolição da escravidão e a ascensão do regime republicano afastaram, relativamente, o tipo de historiografia até então elaborada no Império, o que implicou, segundo Ângela de Castro Gomes, em uma “diferenciação no perfil do historiador, no enredo da narrativa que ele devia construir e em seu destinatário privilegiado” 174. Com a emancipação total dos escravos, as ideias do que seria a história nacional e de como fazê-la, estavam sendo (re) elaboradas de 172 Idem. Ibidem. 174 GOMES, Ângela Maria de Castro. A república, a história e o IHGB. Editora Argumentum, Belo Horizonte, 2009, p. 156 173 102 acordo com as novas conjunturas políticas do regime republicano, que necessitava de legitimação. Uma negociação entre um passado de exaltação monárquica e um presente de instauração da república fez-se necessária. Um imaginário político republicano necessitava se justificar, se apropriando ou criando tradições, uma história e uma memória, que ao mesmo tempo em que exaltasse o novo regime não poderia deslegitimar a monarquia. Dessa maneira, novos fatos e heróis foram introduzidos na história da nação brasileira ou “revisitados”, produzindo um “passado repensado”, onde se pudesse vislumbrar um futuro para a nação175. Ângela de Castro Gomes nos ajuda a compreender esse processo. A abolição e a República impactaram profundamente o processo de construção da identidade nacional brasileira, até porque apenas depois desses eventos foi possível “imaginar” a existência de uma nação constituída por um “povo”, ou seja, integrada juridicamente por homens livres. A própria eclosão de debates políticos e de uma variada produção intelectual que discutia a existência ou não de um “povo brasileiro”, bem como o que tal presença ou ausência podia significar, aponta para um novo delineamento das questões políticas e culturais trazidas pelo século XX, no que se refere ao processo de construção, não mais apenas do Estado (state-building), mas também da nação (nation-building). 176 Os Institutos Históricos, principalmente o IHGB devido a sua estreita relação com imperador, viram-se desorientadas em relação ao devir do historiador, principalmente nos primeiros anos da república, pois os compromissos teriam de se transformar. Se durante a monarquia o objetivo das produções historiográficas dessas agremiações era legitimar o próprio regime político em que se encontravam (centralizador, marcado por uma estreita relação entre Estado e Igreja Católica, onde o imperador era, em última instância, o próprio destinatário dos discursos) com a chegada da República, as transformações se faziam necessárias. O projeto político passava a ser laico e federativo não mais fundado em uma sociedade de privilégios. Exatamente por isso, o destinatário dos discursos mudava, passando o interlocutor a ser o “povo brasileiro” que estava sendo construído em um processo adjacente ao da formação de uma história e de uma memória do Brasil, onde ele próprio era o autor principal e, ao mesmo tempo, o destinatário177. De acordo com Rodrigo Turin178: 175 176 177 Idem. Ibidem, p. 24/25 Ibidem. 178 TURIN, Rodrigo. Uma nobre difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista em História da historiografia, n. 2, 2009 103 Tal reconfiguração, inserida em um processo de reescrita da história, tem como aspecto marcante a seleção do povo ao mesmo tempo como objeto e instância legitimadora da enunciação historiográfica. Por motivos políticos e epistemológicos, a população, entendida agora não mais apenas como as três ordens da sociedade imperial, mas, principalmente, como um corpo homogêneo cuja unidade deveria ser buscada em sua formação histórica, torna-se objeto de um imenso investimento discursivo. Uma nova semântica política, pautada na imanência do poder e na representação social, implicava uma nova forma de saber. 179 Por essa situação de incertezas e disputas, produziram-se debates e novas versões sobre o que era e o que deveria ser a história do Brasil, com desdobramentos importantes para o campo intelectual e historiográfico. Ainda segundo Rodrigo Turin: Não há aí nenhuma ruptura, é certo, mas antes uma reforma, remodelando a figura autoral do historiador. O que acontece, em suma, no que se refere às exigências do rito, é um deslocamento parcial. A narrativa histórica não vai mais escrita em nome da instituição imperial e do imperador, dirigindo-se agora a uma entidade mais abstrata: o povo180 A instauração da república não trouxe à tona os questionamentos sobre ciência e história sem motivos aparentes. Os próprios acontecimentos e revisões européias do que deveriam ser as ciências sociais foram decisivos para tais questionamentos. Contudo, para além disso, uma questão importante imanava da própria sociedade brasileira: o sujeito que produzia o discurso histórico na República, por estar inserido no processo de formação da nação, que consistia também em seu objeto de estudo a ser narrado era, ao mesmo tempo, ator histórico deste acontecimento. Isto o levava a qualificar seu objeto, a formação nacional, a partir do seu ponto de vista de “cidadão-historiador”. Desta maneira, a formação identitária do indivíduo e da nação se conectava181. Como então legitimar o que estava sendo produzido em um momento de grandes discussões científicas e historiográficas? Como manter o tão almejado relativismo histórico? As disputas e tensões das narrativas eram múltiplas e foram, em grande medida, através dos métodos científicos que os autores buscaram legitimar suas interpretações. Tais métodos estavam, igualmente, sendo repensados e aprimorados, e por isso, utilizados como justificativas para as verdades históricas de cada autor. Sendo assim, a temporalidade escolhida nesse trabalho requer uma investigação sobre os Institutos Históricos em um período delicado de suas trajetórias, que atravessava a abolição da escravatura e a proclamação da República, processos estes que impactaram de maneira 179 Idem, p.9 Idem, p.10 181 Ibidem, p.11. 180 104 significativa a construção da identidade nacional brasileira, posto que este necessitava (re) pensar a conformação de uma História do Brasil, agora republicano. Tendo em vista os estreitos vínculos dos Institutos Históricos Brasileiros com a Monarquia, e principalmente com o Imperador, quando os debates acerca da Abolição e da proclamação da República começam a se ampliar, aproximadamente a partir da década de 1870, uma mudança começou a ser operada na organização e elaboração da narrativa historiográfica brasileira. Uma geração marcada profundamente pelo cientificismo e pelas ideias ilustradas de progresso e evolução se inseriu no debate intelectual, do qual haviam sido marginalizados. Nesse contexto, se operou uma revisão dos fundamentos da tradição imperial na historiografia, fazendo surgir intensos debates nos círculos intelectuais 182. Se a geração de 1870 organizou críticas contundentes ao modelo de história representado, principalmente, pelos Institutos Históricos, necessitamos levar em consideração que no interior destes, do mesmo modo, essas inovações se fizeram sentir. Inúmeras são as análises que apontam para os aspectos inovadores da intelectualidade consagrada como “geração de 1870”, no entanto, poucos foram os esforços na tentativa de compreender que o próprio IHGB e demais associações desse tipo, também modificaram seus padrões de narrativa e, influenciados não só pelas noções positivistas e científicas estrangeiras, como pelos acontecimentos internos da sociedade, se viram desorientados em relação ao devir do historiador. Os trabalhos publicados nas Revistas dos Institutos Históricos revelam tensões e intenções do campo científico e intelectual brasileiro que se transformava e se constituía. Por essa situação de incerteza e disputas produziram-se debates que repercutiram em novas versões sobre o que era e o que deveria ser a história, particularmente a brasileira, remodelando o campo intelectual e historiográfico183. As fronteiras tênues entre produção intelectual e política continuavam a existir, bem como as preocupações com a função pragmática dessa produção. A relação com uma dimensão didática demonstrava a intenção de uma práxis agora voltada para um projeto de nação moderno, democrático e civilizado. Como dito anteriormente, o período da Primeira República foi estratégico para a constituição de um perfil para a história e para seus historiadores no Brasil. A identidade da disciplina foi construída através de um processo de disputas, que perpassava pelo o que deveria ser narrado e pela forma de narrar, levando em consideração a própria adesão dos intelectuais ao regime republicano, onde a busca da modernidade e cientificidade – ilustrada 182 TURIN, Rodrigo. Uma nobre difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista em História da historiografia, nº 2. Op. Cit. p. 9 183 GOMES, Ângela de Castro. A república, a história e o IHGB. Op. Cit. 105 em novos procedimentos de pesquisas – assumiam o desafio de modernizar uma sociedade marcada pela escravidão e pelo regime monárquico, considerados responsáveis pelo atraso da nação. Foi este então um momento em que debates intelectuais e científicos estavam na ordem do dia 184. O século XIX era já considerado no início do século XX como de grande importância intelectual tanto pelos avanços das ciências naturais como pelos avanços das ciências sociais e da história. Essas últimas não mais poderiam ignorar os conhecimentos estabelecidos pelas primeiras em suas análises, nem se abster de trabalhar com os métodos da ‘observação e da comparação’ dos ‘acontecimentos humanos’ 185. Ao surgir uma nova conjuntura nacional, graças ao fim da escravidão, seguido pelo estabelecimento do regime republicano, narrativas do passado que envolviam diferentes enfoques e procedimentos começavam a surgir em meio a transformações sociais. Dessa forma, poder-se-ia supor que os sentidos das culturas políticas surgidas e operadas num regime monárquico começavam a se abater em decorrência de novas circunstâncias históricas, com o surgimento de outras problemáticas. Para tanto, utilizaremos a definição de culturas políticas como complexos sistemas de representações, rivais entre si, constituintes das identidades de grupos dentro da sociedade, que extrapolam, no entanto, a noção reducionista de partido político186. Esses sistemas de representações permitem tornar mais inteligíveis os comportamentos políticos dos atores sociais. Levando em consideração que culturas políticas abarcam, necessariamente, referenciais históricos que emergem de problemas fundamentais enfrentados pela sociedade no presente, podemos concluir que, culturas políticas nascem em circunstâncias históricas precisas e transformam-se de acordo com o surgimento de novos contextos e novas demandas sociais. Nesse sentindo, partindo do pressuposto de que culturas políticas necessariamente incorporam determinadas leituras do passado, que ao serem narradas conformam interpretações e proposições históricas, podemos articular o conceito de cultura política ao de cultura histórica. Entendemos por cultura histórica o modo como uma sociedade se relaciona com o seu passado, “como se criam, se difundem e se transformam determinadas imagens do passado 184 Idem. Idem. p. 35 186 Para definições do conceito de cultura política de Serge Bernstein cf. BERSTEIN, Serge. A cultura política. IN: RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François. Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998 e BERSTEIN, Serge. Culturas Políticas e Historiografia. In: AZEVEDO, Cecília et al. Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009. 185 106 reativamente coerentes e socialmente operativas, nas quais se objetiva e se articula a consciência histórica de uma comunidade humana” 187. É importante destacar que uma cultura histórica não se conforma através de um processo inflexível de representação do passado, mas sim, por um procedimento dinâmico de negociações e disputas. Culturas históricas abarcam múltiplas narrativas e enfoques que tentam se impor socialmente. É através da noção de que as nações, partidos e diferentes grupos sociais legitimam suas ações, políticas ou não, mediante um apelo ao passado, que o trabalho aqui proposto buscou pensar a cultura histórica como uma dimensão estratégica da cultura política188. A utilização de ambos os conceitos para a elaboração deste estudo foi esclarecedor para investigação das reconstruções do passado brasileiro pelos intelectuais dos institutos históricos. Os debates sociais sobre o passado são relevantes, porque neles não estão em jogo apenas a necessidade desses indivíduos de trazer à tona uma história nacional, mas a compreensão de si mesmos e da comunidade a que pertencem, bem como suas expectativas para o futuro. Dessa maneira, os “arquitetos” da república brasileira adentraram o labirinto das grandes mudanças estruturais das sociedades. Era necessário recriar todo um panorama que ratificasse a implantação de uma república, sem escravos, colocando em franco conflito um passado atrasado e uma perspectiva moderna de futuro, ao mesmo tempo em que as substâncias essenciais da tradição não poderiam ser abandonadas de todo, pois a formação de uma nacionalidade e espírito cívico deveriam estar sempre entrelaçados a estas tradições. Com isso novos formatos de fabricação histórica do passado passaram a ser abordados, denotando uma preocupação em promover um lugar ao “povo brasileiro” dentro de um universo republicano. Este paradoxo entre passado histórico, presente de atuação e futuro projetado, foi um dos principais combustíveis para as inovações nos métodos de narrar a história nacional, buscando dar conta de corporificar a passagem da monarquia para a república dentro de um encadeamento linear. Essa problemática denota o complexo quadro em que se encontraram os homens de letras nas últimas décadas do XIX, mais precisamente, os intelectuais que produziam trabalhos nos limites de Institutos Históricos Brasileiros. Dentro desta perspectiva, é possível perceber que o conflito gerado pelo surgimento de novos horizontes de expectativas “metamorfoseou”, de certa forma, o próprio presente 187 MARCOS, Fernando Sánchez, Cultura Histórica. Cultura Histórica, 2009, p. 2. disponível em: http://www.culturahistorica.es/sanchez_marcos/historical%20_culture.pdf. Data de acesso: 06/2012 188 Cf. GOMES, Ângela de Castro. Cidadania e direitos do trabalho.Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2002. 107 imediato, espaço de experiência, que necessitava agora de uma nova narrativa passada que o impusesse como o caminho evolutivo natural. Reinhart Koselleck definiu este processo de produção historiográfica de forma bastante acertada: “todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas expectativas das pessoas que atuam ou que sofrem. Com isso, porém, ainda nada disseram sobre uma história concreta – passada, presente ou futura” 189 . Falar em temporalidades significa dizer que a partir das suas relações o discurso histórico pode ser construído. Mudanças no espaço de experiência do presente estabeleceram novas formas de se narrar a história da nação, integrando elementos, ainda que de forma incipiente, que antes do final do século XIX foram geralmente silenciados pela historiografia. Nesse sentido, a “experiência” nos termos de Koselleck, garante que a forma como se deve narrar, e o que deve ser narrado, se reconstrua, da mesma maneira que o horizonte de expectativa se viu renovado após a deposição do Império e da emancipação escrava. Para Koselleck, a experiência “é o passado atual, aquele no qual os acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados” 190 , enquanto a expectativa é “o futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto” 191. Portanto, torna-se perceptível que a práxis social do presente associa categorias temporais distintas, produzindo formas inéditas de se perceber, compreender e produzir um passado histórico. Onde antes havia o Imperador, agora há o cidadão republicano, o “povo” e onde antes havia uma hierarquia social cristalizada, agora há tensão e lugares de fala antes calados. Esses elementos influenciaram o discurso dos homens de letras, que agora necessitavam redefinir as prioridades de suas “penas”, gerando novos métodos explicativos para o presente através do passado e articulando categorias temporais ao tempo histórico constituído, tendo como horizonte de expectativa a futura nação republicana que se almejava. Analisar as culturas políticas na passagem do século XIX para o século XX significa tratar das transformações sociais inauguradas pelo processo de abolição da escravidão e das tensões que se relacionam ao crescimento do movimento republicano, uma vez que tais acontecimentos modificaram o cenário político e introduziram novas formas de lidar com o conceito de modernidade. Antônio Edmilson Martins Rodrigues192 nos chama a atenção para a 189 KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Editora; Editora PUC Rio, 2006, p.306. 190 Idem, p. 309 191 Ibidem, p. 310 192 RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins. “Cultura política na passagem brasileira do século XIX ao século XX”. In: LESSA, Mônica Leite e Fonseca, Silvia C. P. de Brito. Entre a Monarquia e a república: imprensa, pensamento político e historiografia (1822-1889). Rio de Janeiro: EDUREJ, 2008 108 necessidade de analisarmos a cultura política do final do século XIX como sendo cosmopolita e que, de maneira geral, procurava compreender a formação de um povo brasileiro em meios às noções de modernidade. Da mesma forma, aponta para o desenvolvimento das cidades e para o crescimento de uma cultura política popular envolvida com o cotidiano das experiências urbanas. Em suma, propõe um estudo de culturas políticas, que ultrapassa o âmbito institucional e suas definições, a favor da observação das novas experiências civis que culminaram com o surgimento de uma cultura política moderna e crítica. 3.3 A busca de uma tradição nacional republicana em meio a disputas regionais. Como apontado anteriormente, os anos que se seguiram à proclamação da República foram caracterizados por certa agitação e instabilidade política. Até o ano de 1891, Marechal Deodoro ocupou o governo provisório, período em que a nova Constituição foi redigida, estabelecendo a separação entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. A questão acerca da centralização do poder permaneceu como de fundamental importância para o equilíbrio político do país e a autonomia concedida aos Estados trouxe divergências governamentais. Os acontecimentos relativos à instauração da República no Brasil foram narrados ainda na década de 1890 pela intelectualidade presente nos Institutos Históricos, contrapondo, em certa medida, o modelo de escrita da história preponderante nessas instituições. No entanto, cabe ressaltar que as discussões que envolviam tal fato apareceram, majoritariamente, na forma de discursos declamados nas atas de sessões das agremiações e transcritos para as Revistas. Ou seja, não compunham artigos monográficos propriamente ditos. Os eventos acerca do 15 de novembro de 1889, assim como aqueles associados ao fim da escravidão, eram de tamanha importância que não podiam escapar às penas dos letrados. Cabia a esses homens incorporar os acontecimentos recentes nas suas retóricas intelectuais e transpô-los nas narrativas historiográficas. Se um dos princípios norteadores dos Institutos Históricos era o afastamento das tensões vividas contemporaneamente pela sociedade, de maneira que a parcialidade nos embates políticos fosse evitada para não comprometer o fazer do historiador, a Abolição e a República transformaram significativamente essas posturas. Como pudemos ver no capítulo anterior, as temáticas relativas à questão servil já vinham sendo relatadas pelos integrantes desse tipo de associação. Nesse momento, perceberemos, igualmente, que a mudança do regime político foi intensamente debatida, 109 gerando expectativas, desilusões e críticas naqueles indivíduos, que necessitavam construir uma tradição republicana para o Brasil. Para os republicanos recém-chegados ao poder, os Institutos Históricos, principalmente o Brasileiro, representavam um reduto perigoso de monarquistas, uma herança do Antigo Regime. Houve inclusive tentativas políticas de extinguir o IHGB e o corte progressivo de subsídios dados pelo governo ao Instituto foi uma delas. A condição financeira do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro era um dos seus principais problemas. Se no período imperial este local desfrutava das regalias do Imperador, uma vez proclamada a República e sob os olhares insatisfeitos de quem a governava, a instituição teve sua renda reduzida e passou a funcionar, quase que exclusivamente, de auxílios advindos das anuidades e das jóias pagas pelos sócios, além dos lucros provenientes da venda das revistas. Na realidade, o governo inicialmente se comprometeu a manter a dotação anual, retirando, contudo, as verbas suplementares. Posteriormente reduziu tal dotação à metade. Com o corte de subsídios o fechamento do IHGB parecia ser apenas uma questão de tempo 193. Diante de tal situação e buscando o restabelecimento financeiro do Instituto, a Mesa Diretora aprovou a criação de uma nova categoria de associados: foi nesse momento que surgiram os sócios beneméritos. Estes não necessitavam de comprovação acadêmica ou literária pra sua inserção na agremiação. Tais indivíduos, em sua maioria, não eram homens de letras e ciências, mas possuíam o capital que poderia reerguer o IHGB, uma vez que doavam dois contos de réis apenas para serem admitidos como sócios. Sem dúvida, as circunstâncias desfavoráveis refletiram nas publicações da Revista do IHGB, passando a padecer de constantes atrasos. Em vista dos altos encargos, o periódico deixou de ser impresso pela Imprensa Nacional, que desde a primeira edição da revista cumpria com tal trabalho. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro passou a arcar com os custos das publicações, contratando os serviços da Tipografia Laemmert, futura Companhia Tipográfica do Brasil 194. Por isso atentava Joaquim Norberto de Souza Silva195: 193 GUIMARÃES, Lucia Paschoal. Da escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e geográfico Brasileiro (1889-1938). Museu da República, Rio de Janeiro, 2006. p. 23 194 Idem. p. 24 195 Joaquim Norberto de Souza Silva nasceu no Rio de Janeiro no ano de 1820. Colaborou na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, para a qual entrou em 1841, tendo chegado à presidente do órgão. Atuou também, em vários periódicos, sua atividade literária foi intensa, dispersa na Revista do IHGB, na "Revista Popular", na "Minerva Brasiliense", entre outras. Na crítica e na história literária que reside a sua melhor contribuição através de estudos, memórias e edições anotadas de autores brasileiros. Foi também prosador, dramaturgo, poeta, teatrólogo e tradutor, ao longo de mais de quarenta anos da vida cultural brasileira. Faleceu em Niterói no ano de 1891. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993. 110 (...) é meu dever chamar atenção para as atuais circunstâncias de nossa associação (...) não possuímos senão um exíguo patrimônio, não temos senão uma casa emprestada, velha, arruinada. Não dispomos senão dos escassos recursos de uma tênue subvenção (...) 196 Como reflexo desses problemas, também podemos observar, através do conteúdo das publicações da Revista do IHGB, que a grande maioria das exposições, cada vez mais se tratava de cópias de documentos, transcrições, traduções ou relatos de viagem. Como afirmado por Lúcia Guimarães197, as contribuições historiográficas caminhavam a passos largos para uma diminuição cada vez mais intensa. De fato, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi, dentre as agremiações aqui consideradas, a que mais sentiu, do ponto de vista ideológico e burocrático, a queda da Monarquia. Nessa primeira década analisada vislumbramos, a partir do material proposto para publicação, a maneira como os letrados do IHGB se relacionaram com a instauração da República brasileira. Num aspecto geral, notamos que o novo regime político foi bem acolhido entre os historiadores e não percebemos nenhum artigo que argumentasse em sentido contrário. A República era como que inevitável e fazia parte do progressivo engrandecimento da nação. Contudo, a perda da presença física do Imperador se fez sentir a todos, de modo que sua ausência fosse comumente relembrada em muitas das sessões. Joaquim Norberto, na primeira reunião do Instituto após o estabelecimento do modelo republicano de governo assim declarava: Senhores! Imperioso dever do meu cargo me força a anunciar-vou, que jamais nessa cadeira se assentará aquele que durante quarenta anos desempenhou verdadeiramente o título de protetor de nossa associação, elevando-a a face das nações cultas a grande consideração, que goza atualmente. Das atas das sessões de nossos trabalhos e das nossas sessões magnas, (...) consta e constará sempre, o que foi o imperador D. Pedro II para com o Instituto Histórico (...) 198 Logo em seguida, se pronunciava o sócio João Severiano da Fonseca199: “O advento da República Brasileira trouxe-nos uma perda imensa e um imenso pesar: o afastamento do 196 GUIMARÃES, Lucia Paschoal. Da escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e geográfico Brasileiro (1889-1938. Op. Cit. p. 24. apud Joaquim Norberto de Souza Silva. 197 Idem. 198 SOUZA SILVA, Joaquim Norberto de. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1889, Tomo LII. Parte II, p. 534 199 Nasceu em Alagoas no ano de 1835. Irmão do Marechal Deodoro da Fonseca, formou-se na faculdade de medicina do Rio de Janeiro em 1858. Ingressou no corpo de saúde do Exército e em ocasião da Guerra do Paraguai participou no teatro de operações. Após a instauração da República, foi eleito Senador pelo Distrito Federal, mas renunciou ao mandato após os acontecimentos de 23 de novembro de 1891. Foi ainda, professor de Ciências Físicas e Naturais do Colégio Pedro II e no Colégio Militar. Ingressou no IHGB como sócio correspondente, passando a efetivo (1882) e honorário (1889). Faleceu no Rio de janeiro em 7 de novembro de 111 nosso augusto e venerado imperador” 200 . Pedro II realmente era uma figura detentora de enorme poder simbólico para os sócios do IHGB. Para além de ser considerado um prodigioso intelectual, sua presença conferia as sessões da instituição legitimidade, enquanto o mais importante recinto científico da nação brasileira. Tais letrados, todavia, em momento algum desmereceram ou recriminaram o advento da República no Brasil, pelo contrário sagraram-na como importante passo no andamento da liberdade e adiantamento da nação. Mais uma vez, Joaquim Norberto declarava suas expectativas em relação à República, sem esquecer-se de retomar ao período monárquico. (...) sem que a queiramos antepor de modo algum a ordem das novas coisas estabelecidas e a que nos curvamos, certos de que o governo do povo pelo povo será uma realidade para a terra à qual Deus outorgou por símbolo a cruz da sua redenção, e a quem imploramos, que a república seja tão livre como foi o Império de Pedro II 201. Como analisado por Ângela de Castro Gomes, com a instauração do novo regime político a escrita da história se modificava. Além do destinatário principal, que deixava de ser, em última instância o imperador, passando a constituir-se de um “povo brasileiro”, era preciso que se (re)organizassem os eventos que entrariam na composição da narrativa historiográfica, bem como a forma como seriam enunciados. Um equilíbrio entre o passado monárquico e um presente republicano se tornava imperante. “Porque não aproximaremos as glórias do Império às da República, estabelecendo o respeito ao passado sem ofender o presente?” 202 A postura dos homens de letras dos Institutos Históricos frente ao movimento que deu origem à República mostra essa perspectiva, de certa forma, conciliadora sobre as transformações históricas. Do republicanismo no Brasil esperava-se que fosse tão grandioso quanto o Império. A enunciação de Joaquim Norberto segue essa linha interpretativa, rompida em raras ocasiões por sócios do Instituto paulista. Suas expectativas em relação à República eram compostas por um sentimento de complementaridade com o período imperial. É bem verdade que houve críticas contundentes à instituição monárquica, principalmente nas páginas da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Como sabemos, a data da fundação do IHGSP ocorreu no ano de 1896, portanto a instituição já nasceu sob uma orientação republicana de governo. Nesse sentido, desde sua edificação 1897. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993. p. 70-71. 200 FONSECA, João Severiano da. Revista do IHGB, Rio de janeiro,1889. Tomo LII, Parte II. p. 537 201 SOUZA SILVA, Joaquim Norberto de. Op. Cit. p. 534 202 BRAGA, Erasmo. Revista do IHGSP. São Paulo, 1899, volume IV, p. 424 112 buscou se afirmar como a verdadeira representante do pensamento republicano no Brasil, argumentando uma posição privilegiada no papel de elaboração da história da República no país. Nesse sentido, se mostrou o mais crítico em elação à durabilidade da instituição monárquica no Brasil. Na realidade, os intelectuais de tal agremiação comumente reproduziam a noção de que todas as províncias, quando da época da independência nacional, possuíam tendências republicanas, violentamente caladas pela tirania e pela violência. Domingos José Nogueira Jaguaribe Filho, por exemplo, assim declarava: “pode-se dizer que desde que se formou a sociedade brasileira Ela não se submeteu jamais ao regime da monarquia, senão pela força” 203. No entanto, para a maioria da intelectualidade dos Institutos Históricos, proclamou-se a noção de que a República havia chegado sem atraso, de maneira quase que consensual pela sociedade, mas não sem aviso. Dessa forma, tratou-se de organizar uma narrativa da história republicana no Brasil, amarrando o presente a um passado republicano em tradição. Dentre todos os trechos analisados, o que melhor sugere a perspectiva teleológica dos acontecimentos que culminaram com a proclamação da República se encontra em artigo publicado pela Revista do IHGB de autoria de Tristão de Alencar Araripe. Primeiro, a monarquia absoluta, que pesou sobre os estados, qual pavoroso castigo do céu. No rei se resumia a nação. (...) A monarquia constitucional então teve seu tempo, que prolonga-se até hoje, mercê do preconceito que avassala a opinião na Europa antiquada. A civilização, no entanto, foi progredindo em sua gloriosa jornada, e dentro em pouco as celebrações mais felizes reconheciam, e proclamavam que a monarquia (...) já não era capaz de satisfazer as exigência da época, nem de suportar as novas fulgurações do direito. (...) Daí nasceu a idéia do governo republicano moderno, isto é, daquele em que todos os poderes procedem do povo. 204 Nesse trabalho Araripe analisa todas as raízes do republicanismo no país, destacando o período entre 1822 e 1848, como de decisiva importância na luta pela liberdade. Seu artigo, ainda que assinale as intensas batalhas contra a Monarquia, reproduz uma visão de que o tempo trouxe o amadurecimento do pensamento político que pode se desdobrar em uma transformação sem conturbação. A República no Brasil surgia, assim, como resultado de um processo pacífico e linear. Se os acontecimentos históricos foram resgatados por Araripe, este também tratou de oferecer as devidas homenagens aos personagens, que em sua opinião, haviam sido os 203 204 JAGUARIBE FILHO, Domingos José Nogueira. Revista do IHGS, São Paulo, 1896, Volume I, p. 23 ARARIPE, Tristão de Alencar. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1897. Tomo LX, parte II p. 6-8 113 maiores responsáveis pela chegada da República no Brasil205. Estes homens eram: Marechal Deodoro da Fonseca, Benjamin Constant Botelho de Magalhães e Marechal Floriano Peixoto. Por conta da participação e da liderança destes indivíduos no movimento republicano, Araripe propôs que fossem erigidas estátuas em bronze e em mármore para que se perpetuassem suas imagens às gerações futuras. Em suas palavras: “O povo brasileiro começa a tributar o devido preito à memória de três dos mais eminentes varões, que contribuíram de modo eficaz e decisivo para o estabelecimento das instituições republicanas no Brasil” 206. Para Tristão de Alencar Araripe, Marechal Deodoro havia sido a força, que no momento da crise monárquica forneceu o necessário para a consumação do ato de instauração da República, representando o Exército Nacional. Benjamin Constant foi o doutrinador, que incutiu nos indivíduos os princípios democráticos. E Floriano Peixoto foi “o gênio da firmeza e do valor” que soube manter a nova configuração de governo quando ameaçada pela restauração monárquica. Resumindo, Araripe declara, de maneira geral, que Manoel Deodoro proclamou a república, Benjamin Constant a doutrinou; Floriano Peixoto a consolidou. Sendo, portanto, inverossímil a crença de que a República havia sido o resultado de um sobressalto proveniente de um caso imprevisto e rápido, gerador de espanto para população e de violência para a nação. Necessário explicar que a Proclamação da República era, comumente, vista como o caminho da democratização do país. A noção de democracia também garantia os princípios de liberdade e muitas vezes essa expressão era consagrada como o oposto à Monarquia. O elemento democrático se contrapunha à autoridade do Estado Imperial e nesse sentido a liberdade foi muitas vezes entendida como democracia. Diferentemente da Monarquia, que podia ser associada à noção de liberdade, uma vez que foi responsável pela emancipação dos escravos, a palavra democracia ganhava nova conotação social relacionada ao republicanismo. Tal termo, inclusive, funcionou como sinônimo de República e representava o caminho a ser trilhado pela história. Importante lembrar que parte da intelectualidade nacional aderiu à proposta de uma “Monarquia democrática”, com a ampliação das liberdades individuais, em uma clara expansão das idéias liberais. No entanto, a democracia não mais se confundia e se restringia ao liberalismo, esta passava a possuir uma conotação social, representante do regime de igualdade. Segundo Maria Tereza Chaves de Mello207, pelo princípio democrático, “a noção de igualdade se sustenta sobre o direito de liberdade, que 205 ARARIPE, Tristão de Alencar. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1897. Tomo LX. Parte I. Idem. p. 383 207 MELLO, Maria Tereza Chaves de. Op. Cit. 206 114 nivela os homens. Talvez seja essa a premissa que embasa o termo democracia associado à Abolição”. Dentre as quatro instituições aqui analisadas, O Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano foi o que retratou mais intensamente, em sua Revista, os temas a respeito do republicanismo no Brasil. As tensões políticas presentes na capital federal caracterizavam, do mesmo modo, a condição dos demais Estados brasileiros. Pernambuco, por exemplo, desde o fim da escravidão até a data da instauração da República foi administrado por seis diferentes governadores. Irrelevante afirmar que as agitações continuaram nos primeiros anos do novo regime. Sabemos que com o fim da Monarquia uma remodelação do fazer historiográfico se tornava imperante. Sabemos também que os Institutos Históricos, pelo seu passado de ligação e dependência junto ao governo imperial, abalaram-se não somente do ponto de vista ideológico, como ainda, burocrático. Portanto, O IAGP trouxe para suas publicações as turbulências vividas pela política brasileira e a necessidade de transformar o novo Estado em ponto de referência de um passado republicano. Em discurso proferido pelo Major José Domingues Codeceira208 em 10 de novembro de 1890, podemos perceber essas intenções. E quando a nação, como Lázaro, despindo a mortalha, ergueu-se do sepulcro cheio de vida e vigor, para despertar os adormecidos no torpor da indiferença, foi o Instituto o primeiro que procurou reivindicar para Pernambuco a honra das suas memórias, a iniciativa que é desta nobilíssima cidade, iniciativa de liberdade política e a veneração que se deve ao prestigio dos que souberam morrer pelo engrandecimento da pátria209. No Instituto Arqueológico podemos observar a grande euforia intelectual que a instauração da república provocou. Para a maioria desses homens o dia 15 de novembro de 1889 assinalava “uma época de regeneração para a nossa pátria” 210 . Ao regime político republicano se ligavam as idéias avançadas, de ciência e democracia. A implementação do novo modelo de governo ratificava a definitiva chegada da civilização e do progresso no Brasil. Se a abolição da escravidão havia dado início a esse processo, apenas a República 208 Major Domingues Codeceira, nasceu em 8 de março de 1820 na cidade de Recife. Atuou brevemente no comércio, sendo nomeado, em 1845, capitão da Guarda Nacional. Foi admitido como sócio do Instituto Arqueológico pernambucano sem possuir nenhuma publicação. Foi um autodidata, concluiu apenas o estudo primário e o latim, diferente da maioria dos integrantes desse tipo de agremiação. Sua nomeação esteve relacionada à amizade com Muniz Tavares. Debateu-se intensamente na visão de promover o pioneirismo de Bernardo Vieira da Melo na luta pela liberdade nacional. Ao longo de sua vida, foi nomeado sócio dos Instituto Histórico Brasileiro, de Alagoas, do Ceará e do Rio Grande do Norte. Faleceu em 10 de janeiro de 1904. Cf. SOUZA, George Felix C. de; NEVES, Fernanda Ivo; LEÃO, Reinaldo Carneiro; GALVÃO, Tácito Cordeiro. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano: breve história ilustrada. Recife: IAHGP, 2010, p. 54-55. 209 CODECEIRA, José Domingues. Revista do IAHGP, Pernambuco, 1891. Exemplar nº 42, p. 313/314 210 COSTA, João Batista Regueira. Revista do IHAGP, Pernambuco, 1890. Exemplar nº 37, p. 14. 115 traria a definitiva modernidade. Para grande parte dos meios intelectuais, a emancipação da escravidão não havia encerrada a luta pela liberdade. A estrada da libertação só chegaria ao fim quando a República fosse instaurada e o homem fosse libertado do despotismo monárquico. Portanto, era relativamente comum aos letrados imaginar o fim da escravidão e a chegada do regime republicano a partir de uma linha evolutiva complementar, na qual ambos os eventos comporiam um mesmo processo de caminho para a liberdade. No mesmo ano de 1890 o discurso do orador, Maximiliano Lopes211 assinalava para a “semente de esperança” que os novos tempos republicanos poderiam trazer a Pernambuco. Após relatar uma série de arbitrariedades e desmandos por que passava os pernambucanos nos tempos do Império, este afirma: Acabe a república com a origem de todos esses males, conhecidos e remediáveis, procure extirpá-los pela raiz, auxiliando a atividade individual; procure lançar suas vistas patrióticas para o norte, e principalmente para esta terra de legendário heroísmo e regular os seus destinos pelas lições da historia212 Nesse trecho, conseguimos apreender não só as expectativas que o novo modelo de organização política gerou enquanto solucionador de problemas oriundos do período imperial, como ainda a ideia de que era necessário o incentivo a atividade individual. Como afirmou Maria Tereza Chaves de Mello213, a instauração do regime republicano, ao trazer o fim da sociedade de privilégios, deu início à concorrência por mérito, coroando o regime do talento. Uma vez extirpada a escravidão do território nacional e proclamada a República, nas mentes desses homens de letras, o Brasil se encontrava unificado enquanto povo e, por isso, do ponto de vista jurídico, em condições de igualdade entre seus indivíduos. Tal fato apenas se fazia verdadeiro na retórica intelectual, que o valorizou, não inocentemente, em constantes declarações. Esse aspecto se torna claro, ao percebermos o aumento do número de publicações que faziam uso de apelos aos “cidadãos brasileiros” ou aos “senhores da união 211 Maximiano Lopes Machado é considerado o autor da primeira obra de história da Paraíba, além de ser um dos mais representativos e influentes historiadores do estado. Nasceu na capital da Província da Paraíba do Norte, em 7 de agosto de 1821, e faleceu em 11 de fevereiro de 1895, no Recife. Foi diplomado bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, em 1844, na Faculdade de Direito de Olinda, além de ter ocupado diversos cargos como: promotor público de Olinda, juiz municipal de Areia e deputado provincial na Paraíba, em várias legislaturas. Foi sócio do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993 212 MACHADO, Maximiliano Lopes. Revista do IAHGP. Pernambuco, 1890. Exemplar nº 37, p.36 213 MELLO, Maria Tereza Chaves de. Op. Cit. 116 cívica” – “Srs. da União Cívica, ainda uma vez vos lembro o martírio dos nossos avós; o que sofreram eles para legar uma pátria livre”214. A partir do discurso de Maximiliano Lopes, notamos ainda a preocupação de chamar atenção para a região norte do Brasil. A República, nesse sentido, daria o merecimento que Pernambuco deveria ter recebido no Segundo Reinado, tanto do ponto de vista sócioeconômico, quanto do ponto de vista cultural. O novo regime político corrigiria os equívocos do Império e demonstraria a importância histórica pernambucana para o desenvolvimento da nacionalidade brasileira. A evidência desse argumento pode ser atestada na fala de outro sócio do IAGP. Esmeraldino O. de T Bandeira215, assim demandava aos indivíduos responsáveis pela escrita da História do Brasil. E se alguma coisa pudéssemos hoje pedir aos nossos consócios do Instituto seria que revissem a História Pátria em todos os pontos em que os monarquistas ocuparam-se dos republicanos e da república: escrevessem a verdadeira história republicana216. Portanto, os monarquistas haviam falhado na elaboração da narrativa da nação, principalmente no que diz respeito às origens da idéia de liberdade. Cabia a Pernambuco o lugar de precursor do sentimento de libertação que culminou com o republicanismo no Brasil. Afinal, segundo o Major Domingues Codeceira, toda a população sem distinção racial havia contribuído na luta pela liberdade nacional: “Todas as classes da sociedade pernambucanas sofreram o martírio, pela sua dedicação e patriotismo; os pardos e pretos foram surrados na grande cadeia expostos em espetáculo público!” 217. Domingues Codeceira foi o sócio que, sem dúvida, mais produziu a respeito da prioridade de Pernambuco na construção de uma tradição republicana para a nação. Inúmeros foram os trabalhos que demonstravam, detalhadamente, as condições históricas dessa primazia pernambucana. A respeito desse cometimento, visualizamos o resgate das raízes do republicanismo nas lutas liberais no século XIX, com especial destaque para a Revolução de 1817. No entanto, foi a guerra contra os batavos no século XVII que fez surgir a primeira 214 CODECEIRA, José Domingues. Revista do IAHGP, Pernambuco,1893. Exemplar nº 42. p. 277 Esmeraldino Olímpio Torres Bandeira nasceu em Recife no dia 27 de fevereiro de 1865. Estudou na Faculdade de Direito do Recife onde em 1889 recebeu o grau de bacharel em ciências jurídicas e sociais. Republicano histórico, logo ao formar-se foi oficial maior da Secretaria do Governo do Estado de Pernambuco. Foi também deputado estadual de 1893 a 1895, prefeito do Recife de 1898 a 1902, procurador-geral da República no governo de Prudente de Morais e ministro da Justiça do governo Nilo Peçanha. Além de professor de direito criminal da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Faleceu no Rio de Janeiro em 1928. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993 216 BANDEIRA, Esmeraldino O. de T. Revista do IAHGP, Pernambuco, 1893. Exemplar nº44, p. 150 217 CODECEIRA, José Domingues, Revista do IAHGP, Pernambuco, 1893. Exemplar nº 42. p. 278 215 117 esperança de liberdade no solo brasileiro. A partir dessa data, todos os eventos pernambucanos convergiam para o mesmo objetivo de libertação nacional. Para a intelectualidade local, era imprescindível galgar uma posição de destaque na construção da História do Brasil, de maneira a engrandecer as grandes personalidades pernambucanas. Dessa forma, tornou-se comum o resgate da heroicidade dos movimentos locais no período da independência e aqueles relativos ao período regencial e suas revoltas. O Instituto Arqueológico buscava, como já pudemos averiguar, inventar uma tradição que lançava raízes nas lutas liberais, como símbolos da conquista da liberdade nacional. A intenção era compor uma história pernambucana para republicanismo no Brasil. Quatro “datas gloriosas” foram, nesse sentido, resgatadas por Domingues Codeceira218: 27 de janeiro de 1654, 10 de novembro de 1710, 6 de março de 1817, e finalmente o dia 24 de julho de 1824. A primeira data referia-se à luta pela expulsão dos holandeses. Se a princípio tal episódio nada remontava à noção de república, a construção da narrativa apontou para a importância de tal empreendimento na manutenção da integridade do território nacional, sem o qual não teria sido possível a realização da independência do Brasil, bem como para o espírito de liberdade imperante no povo pernambucano, que unido expulsou o invasor. A data de 10 de janeiro de 1710, quando da revolta dos mascates, demonstrava o pioneirismo pernambucano em plantar a independência e a liberdade no Brasil a partir das ações contra o governo autoritário e despótico de Sebastião de Castro e Caldas. Sob a liderança de Bernardo Vieira de Mello, Pernambuco havia sido a primeira província, ainda no século XVIII a tentar proclamar a República. Já se vê, que ao pernambucano Bernardo Vieira de Mello, cabe a glória de ter sido o primeiro que no solo americano e em Pernambuco, tentou por em prática a independência nacional e com ela o governo republicano, pagando com a vida na cadeia do Limoeiro os seus impulsos patrióticos 219. O que se havia tentado no ano de 1710, foi consumado em 1817, posto que dessa vez, de acordo com Codeceira, a “revolução foi completa”, diferentemente da Inconfidência Mineira que “não passou de um sonho dourado de seus autores220. Na ocasião da dita Revolução Pernambucana, a independência foi proclamada, assim como uma tentativa de organização republicana de governo. Finalmente, a alusão à Confederação do Equador (1824) 218 Importante considerar que esse trabalho de Domingues Codeceira foi publicado na Revista do IHGB, no ano de 1890, Tomo LIII, parte I. 219 CODECEIRA, José Domingues, Revista do IAHGP, Pernambuco, 1890. Exemplar nº 37, p. 58 220 Idem. p. 61 118 encerrava a narrativa dos fatos escolhidos pelo sócio do Instituto, na tentativa de consagrar a Pernambuco uma posição de destaque no processo de libertação nacional. Após um criterioso trabalho argumentativo, o autor conclui: “por onde se vê que foi Pernambuco a primeira província que iniciou no solo brasileiro, a ideia de independência e liberdade; a primeira que plantou essa soberba arvore no vasto continente americano, desde o século XVII” 221. Na realidade, grande parte dos artigos e discursos de Domingues Codeceira tinha por finalidade criticar a escolha de Tiradentes como representante nacional da liberdade, o que por consequência situava o estado de Minas Gerais em lugar de maior destaque histórico. Nas palavras de José Domingues Codeceira. No ano de 1893, tal sócio elabora um artigo transcorrendo a respeito. Se Tiradentes foi um mártir da liberdade, não foi por certo o primeiro (...). Essa glória cabe somente aos pernambucanos, nossos avós (...). O pobre Tiradentes a não ser no gênero de morte que lhe deram, não teria sido um mártir, apenas passaria na história por uma vítima inocente da sua prudência e loquacidade; visto que a Inconfidência Mineira nunca passou de uma conjuração de poetas (...). É que aquele faltava à firmeza e têmpera de aço dos filhos do norte222. Tiradentes entrou para o panteão cívico como herói nacional e serviu de imagem e modelo aos brasileiros, como analisou magistralmente José Murilo de Carvalho223. As referências a Tiradentes por parte da historiografia foram recorrentes ainda no século XIX, e elevavam o brasileiro à condição de mártir. Mártires eram, também, os republicanos, pois herdeiros da condição de Tiradentes lutavam pelo fim do autoritarismo monárquico. Em vista dessa exaltação e por ocasião do decreto que anunciava feriado nacional para o dia 21 de abril, o Instituto Arqueológico de Pernambuco demonstrou a sua insatisfação na escolha do personagem. Como pernambucano e um dos mais obscuros membros deste Instituto, levanto-me desta cadeira dando um brado de solene protesto para que esta glória seja reivindicada a Pernambuco, quem de direito pertence, por ter sido a primeira província que em seu solo plantou a soberba arvore da independência brasileira, regando-a com o precioso e generoso sangue de seus filhos224. 221 Ibidem. p. 68 CODECEIRA, José Domingues, Revista do IAHGP, Pernambuco, 1893. Exemplar nº 43, p. 275/276 223 CARVALHO, José Murilo de. Op. Cit 224 CODECEIRA, José Domingues, Revista do IAHGP, Pernambuco, 1890. Exemplar nº 37, p. 53 222 119 Cabia, segundo Codeceira, a Bernardo Vieira de Mello a condição de mártir da liberdade em território nacional e a Pernambuco a posição de destaque na História do Brasil. Tiradentes teria sido apenas um indivíduo comum e a Inconfidência mineira uma tentativa falha de insurreição. Logo na primeira edição da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo notamos diálogos entre os sócios paulistas e pernambucanos, no que concerne à definição dos heróis para a montagem de uma tradição historiográfica na luta pela liberdade nacional. O primeiro volume da Revista do IHGSP é composto de apenas um trabalho monográfico extenso escrito por Domingos José Nogueira Jaguaribe Filho, dividido em nove partes e intitulado As origens republicanas do Brasil. Trata-se de um mapeamento de todos os movimentos, desde os tempos coloniais, responsáveis pelo amadurecimento das noções de liberdade que frutificaram com a instauração da República no Brasil. Nele, o autor argumenta que as ideias republicanas nocionais, nascidas em 1710 em Pernambuco sob a liderança de Bernardo Vieira de Mello, retornaram mais fulgurantes em 1789 com a Inconfidência Mineira, seguida da Confederação do Equador e da República do Piratinim. Nesse ponto, critica os trabalhos do sócio do Instituto Pernambucano, Major Domingues Codeceira, por desmerecer a figura de Tiradentes. O escritor Major Codeceira, em seu trabalho publicado para reivindicar a prioridade da idéia republicana no Brasil aos heróis que pagaram com a vida a ousadia de pensar em ter uma pátria livre, é injusto para com Joaquim José da Silva Xavier – o Tiradentes. 225 Do ponto de vista de Jaguaribe, os outros movimentos que haviam lutado pela liberdade nacional possuíam causas menos nobres para fazê-lo, e tendo sido Tiradentes esquartejado, merece o papel de mártir, pois ao receber a condenação de morte, soube encarála, assegurando a força das suas idéias republicanas. Nesse sentido, somente a Tiradentes cabia a denominação de primeiro herói nacional na luta pela liberdade. A profecia dos conjurados (...) realizou-se 97 anos depois; mas eles, pagaram bem caro a sua tentativa, e, um deles, o mais audacioso e intrépido, aquele que teve a honra, o valor, o heroísmo e a coragem de confessar que era um dos conjurados e que o fim da conjuração era banir do solo da pátria o predomínio da monarquia; aquele que não temeu e nem vacilou diante da sentença de morte, era o Alferes Joaquim José da Silva Xavier; era o grande e Glorioso herói da conjuração mineira.226 225 226 Revista do IHGSP, 1894, FILHO, Domingos José Nogueira Jaguaribe, p. 55 Idem. p. 43 120 A partir da leitura de ambos os textos verificamos as disputas de interesses que permearam a montagem da história nacional. Sabemos que a figura de Tiradentes entrou para a cultura histórica da nação como símbolo de sacrifício e liberdade. Analisar o desenvolvimento desse processo nos ajuda a compreender os diferentes percursos trilhados pelos homens que se incutiram da missão de criar uma História do Brasil. Por trás de uma pretensa unidade do discurso histórico, existiram conflitos que dividiram a intelectualidade brasileira na criação de um passado em tradição para os acontecimentos presentes no país. Como bem afirmou José Murilo, “por ser parte ideal, parte construído, por ser fruto de um processo de elaboração coletiva, o heroi nos diz menos sobre si mesmo, do que sobre a sociedade que o produz”227. As expectativas geradas pela nova organização política do Brasil permearam o imaginário da intelectualidade nacional. Todavia, sabemos que os primeiros anos de governo, centrados nas mãos dos militares, foram de muitas conturbações. O abandono da estrutura de governo imperial, que perdurava há décadas, trazia um clima de insegurança institucional. Essas turbulências e ansiedades foram, também, registradas nos círculos intelectuais brasileiros. Antônio Adelino de Luna Freire228 assim se coloca diante dessa questão. Por fim, senhores, em novembro de 1889 deu-se a mudança definitiva de nossa forma de governo, sendo a monarquia, a que estávamos sujeitos desde 1500, substituída pela república federativa. Essa transição não podia deixar de trazer consigo ingentes dificuldades e dolorosíssimas decepções. (...) Façamos os mais ardentes e sinceros votos para que, passada esta fase de agitação, muito natural nas reformas radicais, entre o país no período de paz e de prosperidade, a que por suas felizes condições te direito incontestável 229 . Mais além, no mesmo discurso, o autor nos remete a certa esperança política para o Brasil. “Agrupam-se todos os verdadeiros patriotas ao redor do lábaro, cujo lema seja – eleição livre; o povo saberá escolher homens dignos e capazes de 227 CARVALHO, José Murilo de. Op. Cit. p. 67 Antônio Adelino de Luna Freire nasceu em Pernambuco no dia 21 de março de 1829. Formou-se em Bacharel em ciências jurídicas e sociais pela antiga Faculdade de Olinda, dedicando-se à magistratura como juiz municipal e dos Órfãos do Termo de Iguaçú, passando, em 1886 a desembargador da Relação do Ceará. Foi também oficial maior da Secretaria da Assembléia Provincial de Pernambuco, presidente da província do Piauí, chefe da polícia de Alagoas e por três vezes, entre 1878 e 1880, interinamente, presidente da província de Natal. Aposentou-se como desembargador em 1890e, já na república, representou Pernambuco no Senado Federal. Sócio benemérito e, por muitos anos, presidente do IAHGP, foi também eleito, em 1898, sócio correspondente do IHGB. Faleceu em Recife, em primeiro de março de 1913. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993 p. 98. 229 FREIRE, Antônio Adelino de Luna. Revista do IAHGP, Pernambuco, 1893. Exemplar nº 52, p. 118. 228 121 dirigir o país; (...) o sistema representativo deixará de pertencer ao mundo das ficções e a República Brasileira será salva 230 Nessa passagem percebemos as expectativas geradas pelo sistema representativo de governo. O voto universal, ainda que restrito ao sexo masculino e aos indivíduos maiores de 21 anos e alfabetizados, fazia surgir novas esperanças. O povo, sem distinção de cor ou classe social, passava a ter o poder de decisão na política. Sabemos que as contendas em relação aos direitos de votos e ao próprio sistema eleitoral na Primeira República foram intensas. Do mesmo modo, temos ciência de que foram criados inúmeros mecanismos com a finalidade de alijar a população dos seus direitos políticos de cidadania, desde fins do Império quando da crise do sistema servil. Essa “esperança no voto popular” era profundamente seletiva, capacitando somente os bem instruídos. Nem o mais ingênuo dos homens acreditava nessa total inclusão. Na prática, era necessário restringir o voto a uma elite política, majoritariamente branca. No entanto, na retórica intelectual, o universalismo eleitoral inaugurava uma nova realidade para o Brasil inserindo-o no padrão de modernidade do mundo europeu. A exigência desse tipo de representação política era fundamental para a chegada da civilização no país, ainda que na prática tal fato estivesse distante de ocorrer. A proclamação da República significava, portanto, um salto civilizacional capaz de integrar o Brasil ao restante do mundo moderno. Tal processo, assim como a abolição da escravidão, era comumente narrado de forma a destacar a maneira pacífica como este havia ocorrido. Na revista da agremiação cearense, publicada no ano de 1898, verificamos dois artigos que tratam das efemérides do Ceará republicano231. O Instituto Histórico cearense, uma vez que havia sido criado nos anos finais do Segundo Reinado, não possuía vínculos tão estreitos com a Monarquia e, principalmente, com o imperador, quando comparado com a associação pernambucana ou com o Instituto Brasileiro. Seus escritos, em perspectiva geral, mantiveram-se voltados para a História do Ceará sem, no entanto, transformarem-se em verdadeiras teses sobre a importância da tradição republicana na antiga província. Em meio aos eventos que marcaram a vida política local após o estabelecimento da República, notamos a renúncia dos vereadores da Câmara Municipal da cidade de Fortaleza, no dia 4 de janeiro de 1890, em vista da mudança do regime político. Nas palavras de Luiz Antônio Ferraz: Os abaixo assinados vereadores da Câmara Municipal dessa capital, considerando, depois de séria e detida reflexão, que os poderes, aliás 230 231 Idem. p. 192-193 Ambos os artigos não possuem assinatura, portanto, não foi possível localizarmos o autor 122 legítimos, que lhes foram conferidos pelo eleitorado, não tem mais razão de existência por se acharem invalidados pela nova ordem de coisas, criada e mantida sob o influxo pacífico e fecundo do pensar 232. Em sua declaração, Luiz Antônio Ferraz nos mostra que a passagem do regime político monárquico para o republicano se fez sem mais conturbações ou conflitos, atestando a tranquilidade desse processo. Na realidade, em inúmeras passagens de artigos nas Revistas dos Institutos Históricos verificamos esse tipo de pensamento. Na primeira publicação do periódico do IHGSP, datada de 1896, Domingos José Nogueira Jaguaribe Filho assim se colocava em relação às tentativas do governo imperial de abafar as vontades republicanas: (...) não admira que o sentimento do mal produzisse a liberdade que pouco a pouco ganhou todos os espíritos e fez com que (...) mais tarde a República aparecesse, quase sem esforço, como um fruto maduro caindo da árvore 233. Ao lado de visões otimistas sobre republicanismo percebemos algumas decepções, ora mais contundentes, ora mais brandas, acompanhadas de um sentimento de esperança. Adelino de Luna Freire, já no ano de 1898, não sem se remeter às conturbações vivenciadas na passagem da Monarquia à República, ainda alimentava expectativas positivas em relação ao porvir dos tempos republicanos. Não sou otimista, senhores, bem conheço que o Brasil passa atualmente por uma situação aflitiva, dolorosa, dificílima, inseparável das grandes transições (...). Pois bem, senhores, conservemo-nos fortes na defesa da pátria e por titulo algum abonemos a esperança de que um melhor futuro nos aguarda 234 O período inicial da instauração da República no Brasil deveria ser sucedido por um tempo de estabilidade e melhoramento político. O processo turbulento por que passava o país era visto como inescapável, comum às demais localidades que haviam vivenciado tamanha transformação. Assim como nos países “mais desenvolvidos”, o Brasil também superaria esse momento turbulento da História para adentrar no equilíbrio institucional. Sabemos que as dificuldades vivenciadas nas primeiras décadas do novo regime, principalmente a década de 1890, contribuíram para o surgimento de certa nostalgia em relação à Monarquia235. Contudo, não visualizamos, para a primeira década da República, nos espaços restritos dos Institutos Históricos, esse tipo de registro na narrativa historiográfica, 232 Revista do IHGAC, 1898. Tomo XII, p. 240 JAGUARIBE FILHO, Domingos José Nogueira. Revista do IHGS, São Paulo, 1896, Volume I, p.85 234 Ibidem. p. 192 235 Cf. JESUS, Ronaldo P. de, As visões da Monarquia: escravos, operários e abolicionismo na Corte. Belo Horizonte: Editora Argumentum, 2009 e SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial: escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. Rio de Janeiro. Editora Ponteio, 2013. 233 123 nem através de artigos monográficos, nem em enunciações discursivas. Críticas mais incisivas foram, no entanto, constatadas. Mais uma vez, Domingues Codeceira, ao relatar os motivos geradores da revolta de 1824 em Pernambuco, remonta à dissolução da Assembléia Constituinte por parte do Imperador. Segundo o autor, essa ação teria aflorado os ânimos e ocasionado a sublevação. Em uma clara comparação com a atuação da política imperial, Codeceira, em princípios de 1892, aponta para as arbitrariedades cometidas pelo então Presidente da República, Marechal Deodoro da Fonseca. Hoje que são decorridos mais de 67 anos, Pernambuco manda felicitar ao Presidente da República pelo fato escandaloso de se ter aclamado ditador, dissolvido o Congresso Constituinte, criado uma comissão militar, imposto o silêncio a imprensa, declarado em estado de sítio a duas cidades e finalmente ordenado a prisão de cidadãos distintos e beneméritos236. Tal passagem, claramente, se remete aos eventos ocorridos nas eleições de 1891, quando Deodoro da Fonseca, eleito presidente pelo Congresso Nacional de forma indireta, em vista da crise econômica e política e da perda de legitimidade no governo, decretou a dissolução do Congresso237. A passagem aponta ainda para os abusos militares cometidos contra os opositores e contra a imprensa que ficou sob intensa censura, com a decretação do Estado de Sítio. Não podendo escapar das tensões do presente, Codeceira argumenta uma crítica às ações políticas brasileiras por não darem o devido valor aos heróis nacionais. A “união civil” ao invés de glorificar aqueles que lutaram pela liberdade, como Frei Caneca e os pernambucanos haviam feito na Confederação do Equador, aplaude atos de desmandos de um homem que, por mérito, não deveria estar ocupando o cargo de presidente da República. Mais uma vez, percebemos a noção de que o “povo do Norte”, com destaque para Pernambuco, merecia toda a espécie de glorificação nacional. Tal argumentativa não escapou de uma crítica profunda às ações governamentais recentemente vivenciadas no Brasil. No Instituto Histórico Geográfico e Antropológico do Ceara percebemos as mesmas decepções em relação ao andamento da vida política nacional após o estabelecimento da República. Em artigo desenvolvido por Raimundo de Farias Brito238, publicado no ano de 236 CODECEIRA, José Domingues, Revista do IAHGP, Pernambuco, 1893. Exemplar nº 42, p. 277 Não analisarei nesse trabalho as questões que envolveram Deodoro da Fonseca e a proclamação da República brasileira, suas verdadeiras e intenções e disposições. Nesse contexto, caberia inclusive criticar a própria idéia de “proclamação”. Para tanto conferir: Cf. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 238 Raimundo de Farias Brito nasceu em São Benedito no dia 24 de julho de 1862. É considerado um dos maiores nomes do pensamento filosófico brasileiro e autor de uma das mais completas obras filosóficas produzidas no país. Suas obras são voltadas à metafísica tradicional, de caráter espiritualista e são compostas por duas trilogias: Finalidade do mundo e Ensaios sobre a Filosofia do Espírito. Faleceu no Rio de Janeiro em 16 de janeiro de 237 124 1892, em meio a uma discussão filosófica sobre as leis de associação das idéias de Herbert Spencer, o autor assim se colocava. “(...) estava no Rio, pensando em matricular-me na Escola Politécnica, quando foi Proclama a república. Esse facto produziu sobre meu espírito impressão tão profunda que cheguei a desistir de uma resolução, que supunha inabalável. (...) Vi que ia entrar o pais numa era de grandes reformas e edificantes reconstruções. Acreditei que iam ser realizadas todas as promessas sonhadas pelos propagandistas da república. Considerei tão solene o momento que cheguei a apaixonar-me por Ela, pensando que nenhum cidadão devia conservar-se estranho às agitações, que deviam manifestar-se. (...) Tudo o que eu sonhava de bom vi transformado em anarquia e desordem, perturbação e injustição. Compreendi que o patriotismo é uma palavra sem sentidos e perdi minha fé no direito239. Diferente da euforia e entusiasmo iniciais que a campanha republicana havia inculcado no espírito de Farias Brito, este se deparou com um profundo desapontamento. De maneira mais intensa que os demais autores, Farias Brito se viu desacreditado de qualquer forma de organização política de governo e chegou a descrever seus sentimentos como uma perda de patriotismo. A decepção o assolou de maneira tão radical, que o obrigou a afastar-se da política. Tal ocorrido, ainda que forçosamente, foi interpretado pelo autor de maneira positiva, posto que deslocado das tensões que assolavam o país, pode concentrar todas as suas atividades “na sua verdadeira e natural predileção” à área do conhecimento filosófico. Notamos, dessa forma, um afastamento entre a atividade intelectual e a política, tão imbricadas na tradição do pensamento no século XIX. Esse tipo de atitude, ao que parece, foi comum entre a intelectualidade que se encontrava “ultra-engajada” na política nacional desde a década de 1880 com a campanha abolicionista. A decepção causada pela instabilidade e desorganização dos primeiros anos da República proporcionou um afastamento desses homens da vida pública. Tal postura, todavia, foi fortemente criticada por indivíduos ainda esperançosos da República no Brasil. João Monteiro240 se colocou incisivamente a esse respeito: 1917. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993. 239 BRITO, Farias. Revista do IHGAC, 1892, Ceará. Tomo VI, p. 1/2 240 João Pereira Monteiro nasceu no Rio de Janeiro em 16 de maio de 1845. Após estudar no Colégio Pedro II ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo onde se bacharelou em 1872. Durante sua vida ocupou diversos cargos, como: curador geral dos órfãos da primeira vara do Rio de Janeiro, promotor público da comarca da capital de São Paulo, e diretor da mesma faculdade onde se formou. Publicou nas revistas de seu tempo diversos trabalhos jurídicos. Faleceu em 18 de novembro de 1904. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993 125 A república deve ser a suprema expressão do amor e da liberdade nacional. Venham todos, brasileiros ou não, colaborar na magnífica empresa do engrandecimento dessa maravilhosa terra Brasil. (...) Venham todos e, principalmente aqueles que vão se deixando mumificar na estúpida algidez da abstenção política 241. Apesar de não termos encontrado artigos historiográficos ou enunciações discursivas que demonstrassem um sentimento de nostalgia em relação à Monarquia, por parte da intelectualidade dos Institutos Históricos, percebemos que tal atitude estava sendo registrada por esses homens quando analisavam a sociedade. Tanto críticas à abstenção política como censuras a esse tipo de postura que valorizava o passado monárquico foram registradas. No mesmo discurso, novamente João Monteiro despertava a sociedade. Trazei-os para a luta, que talvez assim se convertam outros não menos perigosos inimigos – os desanimados – aqueles que lamurientamente vivem a comparar o presente com o passado só pelo imbecil prazer de exaltar este para amesquinhamento daquele 242. E, mais uma vez, em declaração posterior: “Esta república, que nasceu aplaudida pelas adesões de quase todos e, é hoje lapidada por muitos a quem ela acolheu e afortunou” 243 . João Monteiro era partidário da ideia de que as responsabilidades pelos descaminhos políticos eram, em primeiro lugar, oriundas dos próprios homens que ainda não haviam compreendido o verdadeiro significado da liberdade. Era preciso tempo para aprender a lidar com tamanha inovação e os brasileiros não deveriam assustar-se diante dessa característica comum a todos os processos de transformação social. Ainda no dia 16 de novembro de 1889, em ato realizado pelo coronel Luiz A. Ferraz, tornava-se pública a adesão do Ceará à forma republicana de governo, sendo o mesmo coronel nomeado chefe provisório do poder. O Instituto Histórico cearense, uma vez que havia sido criado nos anos finais do Segundo Reinado, não possuía vínculos tão estreitos com a Monarquia e, principalmente, com o imperador, quando comparado com a associação pernambucana ou com o Instituto Brasileiro. Seus escritos, em perspectiva geral, mantiveramse voltados para a História do Ceará sem, no entanto, transformarem-se em verdadeiras teses sobre a importância da tradição republicana na antiga província. Aos letrados do Instituto do Ceará não competiu o resgate de personagens ou acontecimentos decisivos que inculcassem a região uma posição de destaque nas lutas pela liberdade nacional. Coube, portanto, a intelectualidade cearense transcrever nas páginas de 241 MONTEIRO, João Pereira. Revista do IHGSP, São Paulo, 1898. Volume II, p. 419 Idem. 243 Ibidem. 486/487 242 126 sua revista, alguns eventos locais que demonstrassem a sua participação nas questões políticas que primavam pela liberdade. Foi assim, que no ano de 1900, o Instituto cearense publicou a ata de criação de um clube republicano na cidade de Aracati, realizada no dia 10 de abril de 1870. Tal associação, ainda que não tenha chegado a existir, dando lugar a outra, organizada em outubro de 1872, nos mostra algumas das idéias norteadoras dos partidários do republicanismo no Brasil. Nas palavras de um dos fundadores, Júlio César da Fonseca Filho, notamos os anseios desses indivíduos frente às noções de liberdade. Quero a república para a minha pátria, quero-a em nome do cristianismo, em nome do gênio da América, em nome do progresso e da civilização, em nome da verdade e da consciência, em nome do direito e da justiça. Quero a república sem intolerância, sem ódio, sem prejuízos, sem exclusivismos e sem espoliações. Quero uma república cidadã e sã, pura, imaculada, virgemmãe da redenção da pátria.244 Não nos aprofundaremos nas questões relativas à aproximação intelectual e a religiosidade. Basta lembrarmos que uma das características da tradição historiográfica imperial era, pelo menos até a década de 1870, a sua ligação com os preceitos católicos. No Instituto cearense, em particular, essa relação aparece em demasia nas publicações das revistas, quando comparada às demais agremiações. No trecho acima, Júlio César da Fonseca Filho deixa evidente a ideia de que a República era o único modelo político condizente com as formas de pensamentos do mundo evoluído. O progresso apontava esse caminho, era preciso trilhar a estrada que colocava fim aos privilégios e desmandos de um poder despótico monárquico. Era preciso “desaparecer de uma vez o único trono da América, que só tem servido até hoje de túmulo para o povo” 245 . Competia ao Brasil seguir os passos dos países do continente americano. Os republicanos brasileiros fizeram do contexto internacional, principalmente chileno e argentino, as bandeiras de comparação entre a República e o regime monárquico, focando nos Estados Unidos como exemplo a ser seguido. Ainda segundo Júlio César da Fonseca Filho: “para a nossa vitória total, completa e definitiva se faz preciso uma espada, mas não a espada de Cesar, sempre fatal, mas a espada de Washington que tem por missão levantar mundos” 246. Nas páginas do Instituto Histórico de São Paulo observamos conduta parecida. No dia 4 de julho de 1895, foi organizada uma sessão cujo um dos objetivos era a elaboração de uma homenagem ao aniversário de independência dos Estados Unidos, declamada por João 244 Coleção Barão de Studart. Revista do IHGAC, Ceará, 1900. Tomo IVX, p. 281/282 Idem. p. 281 246 Idem. p. 282 245 127 Monteiro. Em sua descrição o autor deixa clara a percepção de que o Brasil deveria seguir o modelo de progresso despontado pelos americanos do norte, sendo eles o auge da civilização. (...) que diríamos nós dos norte-americanos, si houvera azo para vos falar da inteira história daquele povo, que, com quarenta e dois milhões de habitantes, concretiza toda a escada da evolução humana em sua mais expansiva atividade?247 Entre os círculos intelectuais se perpetuava a noção de que a tradição americana de liberdade, iniciada no Brasil em 1822 com a independência, apenas se tornaria completa com a chegada da República. Para grande parte desses homens, influenciados pelos pensamentos estrangeiros sobre a modernidade, a continuidade da instituição monárquica apenas apontava para a desarmonia do Brasil frente aos países americanos. Essa associação entre América e liberdade aparecia não poucas vezes demonstrando a força simbólica representada pelos Estados Unidos como sendo a terra, por excelência, do livre-arbítrio e das instituições democráticas de governo. Nesse contexto, percebemos um relativo afastamento entre o Brasil e o modelo europeu de organização política. A Europa, mais afastada da realidade social e histórica americana, ia deixando de servir de referencia de civilização e progresso, para dar lugar ao “nosso irmão do norte”, os Estados Unidos. Se a região norte da América já vinha crescendo em importância para a intelectualidade brasileira como detentora de distinto saber, com a chegada da República no país, ela se transformou em referencial definitivo a ser seguido. Ainda segundo João Monteiro E quando na Europa a quase totalidade das nações que a povoam, aspira ainda apropriar-se desse progresso, que (...) aqui na América ele domina incontestado e só como tipo da igualdade cívica, e lábaro da fraternidade e da paz. 248 Nessa enunciação também apreendemos a noção de que o continente americano anunciava o futuro da humanidade. Se o passado de atraso marcou a história do Brasil, não mais assinalaria sua condição. A América, saindo atrasada na corrida pela evolução, havia alcançado e mesmo ultrapassado a Europa graças ao progresso anunciado pela chegada da República que prometia um grandioso porvir. Uma identidade americana ia sendo forjada, guiada pela presença dos Estados Unidos e envolta pelos princípios de liberdade. Nesse 247 248 MONTEIRO, João Pereira. Revista do IHGSP, São Paulo, 1896. Volume I, p. 140 Idem. p. 140 128 aspecto, sendo o enunciador um sócio do Instituto paulista, cabe lembrar que o modelo de república ideal dos grandes proprietários de terra era, justamente o norte-americano, que encarnava a definição individualista do pacto social249. Como analisado por José Murilo de Carvalho250 havia no Brasil, pelo menos, três correntes ideológicas que disputavam a definição da natureza do novo regime político: a) o liberalismo americano; b) o jacobinismo francês; e c) o positivismo. Percebemos nos Institutos Históricos ecos desses três modelos. No primeiro caso, notamos a idealização de uma sociedade composta por indivíduos autônomos, ou seja, a liberdade americana era centrada no predomínio dos interesses individuais. Para o jacobinismo, percebemos a utopia da democracia direta com a participação de todos os cidadãos, sem exceção. Por fim, verificamos as influências positivistas a partir de noções mitificadas da sociedade republicana representante da verdadeira evolução. No caso da República brasileira, segundo José Murilo, o modelo liberal dos Estados Unidos saiu vencedor nas batalhas políticas e ideológicas. Nesse capítulo empreendemos um trabalho que teve por finalidade analisar de que forma a narrativa historiográfica recebeu a notícia da instauração da República brasileira e a partir dela desenvolveu mitos de origem de uma suposta nacionalidade republicana. Dessa forma, os discursos historiográficos procuraram estabelecer versões para os fatos fornecendo sentido e legitimidade a nova realidade brasileira. Vale destacar que os mitos, por serem abertamente distorcidos, adquiriram as dimensões desejadas pelos sujeitos responsáveis pela sua elaboração. Em todos os trabalhos analisados a linha de argumentação dos intelectuais dos Institutos Históricos se fez a mesma: a República era um fato inescapável da evolução da história da humanidade. Baseado nas premissas cientificistas, a sociedade de privilégios, invariavelmente, deveria dar lugar à democracia republicana, como um processo natural e pacífico, fruto de um amadurecimento do pensamento da sociedade. Nada de narrativas sobre tensões políticas e sociais nas ruas, principalmente nas grandes capitais. Na realidade não existiram intensos debates políticos entre possíveis defensores da monarquia e republicanos. Era como se, a partir de 1889, toda a intelectualidade dos Institutos Históricos sempre tivesse apoiado à República como forma de governo, mostrando que “os brasileiros, patriotas e republicanos estavam decididos a continuar a marcha evolutiva” 251. 249 CARVALHO, José Murilo de. Op. Cit. p. 22 Idem. p.22 251 Idem. 70-71. 250 129 Capítulo IV Lembranças, esquecimentos e silêncios: As retóricas sobre a raça e a escravidão 130 As chamadas taxonomias sociais foram sempre utilizadas em inúmeras categorias que pretendiam definir as formas de organização do homem de acordo com o seu tempo e expectativas envolventes. As taxonomias sobre raça foram configurações muito utilizadas ao longo dos séculos XIX e XX, que nas últimas décadas têm sido enormemente criticadas. Como destacou Ira Berlin252, a expressão raça, apesar de ser uma construção social, possui características particulares, posto ser um produto da história e, portanto, não existir fora de determinada temporalidade e lugar. Contudo, até o presente imediato não sabemos agir frente à problemática imposta pela compreensão do que entendemos por raça e, embora, mudemos seus significados e perspectivas, estamos sempre “atravancados” por algum tipo de classificação social que responda nossas limitações ao lidar com o fenômeno conhecido como humanidade. Na realidade, a raça é constante e continuamente definida e redefinida no seio da sociedade, por homens e mulheres que vivem essas experiências. A história herdou o termo raça, como este era instrumentalizado no século XIX, porém não importa qual a área de estudos em que se deseja trabalhar, as classificações utilizadas continuarão a ser inexatas, pois não refletem um objeto inflexível, mas antes um processo em constante transformação, graças à complexidade da formação de sociedades e etnias humanas. As menções a respeito da cor como signo de representação e distinção social têm gerado intensos debates no seio da sociedade brasileira. Todavia, durante muito tempo, a temática sobre a racialização das relações sociais no Brasil foi negada ou silenciada, a partir de teorias que afirmavam a existência de uma democracia entre as raças. No entanto, um preconceito velado e internalizado pode ser ainda mais cruel para os agentes envolvidos. No Brasil, em decorrência das circunstâncias sociais e políticas que desencadearam a abolição da escravidão, a questão racial permaneceu, durante longo período, embaixo do tapete, entre os assuntos sobre os quais era melhor não tratar. Nesse sentido, todo estudo que busque descortinar contendas referentes ao racismo, à construção da cor como elemento determinante da desigualdade, trazendo à tona as dimensões políticas desse tema, necessita ser resgatado. É com esta intenção que o trabalho proposto busca nas ambiguidades do processo de desarticulação do sistema escravista e nos conflitos de interesses nele envolvido, contribuir com as temáticas que envolvem as relações raciais no Brasil. Podemos admitir que o conceito de raça advindo das ciências biológicas e transplantado para a vida social, ainda que perverso, adquiriu utilidade política, não apenas para uma elite branca, mas para todos os sujeitos envolvidos nessa dinâmica, incluindo os negros escravizados e libertos, que construíram a 252 BERLIN, Ira. De crioulo a africano: as origens atlânticas da sociedade afro-americana na América Norte Continental. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 26, nº 2, 2004, pp. 241-256 131 partir da ideia de raça suas próprias identidades. Homens de cor, enquanto agentes de sua própria história ressignificaram o processo de racialização. Tal afirmação, antes de legitimar a utilização do conceito de raça, busca investigar as múltiplas formas de negociação inventadas pelo lado escravo ou ex-escravos diante dos critérios raciais sobre os variados sentidos de cidadania. Nas últimas décadas do século XIX, de maneira relativamente velada, práticas embasadas nos ideais de raça se tornaram candentes nos debates jurídicos, nas decisões políticas, nas concepções de cidadania e nas memórias e símbolos da escravidão. Diversos sentidos de liberdade foram construídos pelos negros levando-os a transitar na tênue fronteira entre escravidão e a vida fora do cativeiro. Dessa forma, intencionamos apontar para a importância da articulação da questão racial e o fim do sistema escravista no Brasil. Como sabemos, a partir, principalmente da década de 1980, a historiografia brasileira vêm remodelando os critérios investigativos a respeito da história da escravidão no país. Num primeiro momento, os estudos centraram-se nas vicissitudes do escravismo enquanto sistema e, posteriormente na figura do escravo enquanto agente histórico. Todavia, assuntos relacionados ao processo abolicionista entrelaçado ao crescimento das desigualdades raciais ainda necessitam de maiores investigações. Ao liberto e suas realidades de vida no pósabolição coube um papel secundário nos trabalhos historiográficos, talvez, como resultado do embaraço de se fazer emergir questionamentos sobre o racismo e os limites da cidadania do negro no Brasil. Dessa forma, se o Brasil se apresenta como pioneiro internacional de pesquisas relacionadas ao período escravista e seus reveses, o percurso que envolve a história da abolição, articulando a polissemia das questões embasadas nas ideias de raça e nas fronteiras da liberdade, necessitam de maiores esquadrinhamentos. Dianteiros nesse aspecto revelam-se os trabalhos norte americanos, a exemplo do historiador Eric Foner253 para o caso dos EUA e Rebecca Scott254 para regiões açucareiras nas Américas. Sem deixar de lado essa discussão, procuraremos compreender o que significava raça na segunda metade do século XIX para a nação brasileira recém-formada e para aqueles que escreviam a sua história, em meio a um contexto de ascensão de determinismos racistas advindos do mundo ocidental. A raça e, a partir dela, a evolução humana, da maneira que era colocada e interpretada pelos pensadores europeus ou norte-americanos, não correspondia às expectativas de um país liberto da escravidão há pouquíssimo tempo e, de fato, miscigenado, 253 FONER, Eric. Nada Além da Liberdade: A emancipação e seu Legado. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília, CNPQ, 1988 254 SCOTT, Rebecca, COOPER, Frederick. e HOLT, Thomas. C. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 132 ansioso por encaixar-se nos moldes do progresso e da civilização. Vejamos as principais teorias estrangeiras que chegaram com maior força no território nacional e quais eram seus pontos de vistas fundamentais. 4.1 As teorias raciais: um breve panorama Ao longo do século XIX as práticas científicas e seus resultados ganharam maior destaque na conjuntura ocidental. As ciências naturais, em especial a Biologia, atravessavam um momento de forte valorização, sobretudo a partir da teoria da evolução de Charles Darwin. O interesse pelas Ciências Sociais também aumentou, a sociologia, enquanto disciplina se estabeleceu e Durkheim foi seu maior representante. Tais ideias partiam principalmente dos centros europeus e dos Estados Unidos. Com a consolidação dos métodos explicativos das Ciências Naturais e com a divisão e classificação do homem a partir de critérios biológicos, verificamos a introdução da problemática racial para lidar com as semelhanças e diferenças entre os indivíduos. O termo raça foi utilizado pela primeira vez, nos círculos acadêmicos, pelo naturalista francês, Georges Cuvier, inaugurando uma discussão a respeito da origem das diferenças físicas entre os homens que ainda permanece em voga no século XXI, mesmo que ressignificada. Nesse contexto, teorias de diferenças raciais inatas que afirmavam a inferioridade do “não-branco” foram sistematizadas, de modo que o racismo se constituiu como uma imposição teórica de difícil escapatória. Dentre as principais escolas de teorização racial, podemos destacar pelo menos três que tiveram ecos significativos no Brasil255. A primeira delas, desenvolvida nos Estados Unidos entre as décadas de 1840 e 1850 denominava-se escola etnológica-biológica e partia do princípio denominado Poligenia. De forma simplificada, tal teoria assumia que as raças humanas teriam diferenças físicas intrínsecas porque na realidade eram constituídas por diferentes espécies. Estas espécies dependiam das formas e do meio como haviam sido criadas e desenvolvidas. Assim como animais pertenciam a diferentes espécies de acordo com as imposições geográficas e climáticas, também ao Homo sapiens poderiam ser atribuídas singularidades de acordo com as regiões as quais pertenciam. Tal escola se utilizou, para comprovação científica da inferioridade das raças negra ou indígena, dos pressupostos e instrumentos da antropologia física, com suas medições craneométricas que tinham por finalidade demonstrar que 255 SKIDMORE, Thomas. E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 133 diferenças físicas congregavam diferenças intelectuais e mentais. Dessa forma, podiam conferir preceitos científicos aos preconceitos raciais pré-existentes. Louis Agassiz foi o maior representante dessas idéias nas América e no Brasil, onde era citado em trabalhos nacionais no seio da intelectualidade256, demonstrando a inferioridade de negros e mulatos. A segunda corrente de pensamento que permeou o século XIX nasceu na Europa e nos Estados Unidos e era conhecida como “escola histórica”. Tendo como um dos seus maiores representantes Gobineau, seus pensadores atribuíam aos processos e evidências históricas a superioridade e diferenciação das raças. Através das diferenças físicas já comprovadas por etnólogos e antropólogos, a escola histórica ratificava a superioridade da raça branca contando seus feitos históricos e civilizatórios. Tal entendimento foi utilizado para justificar a superioridade da raça anglo-saxão demonstrando sua dominação econômica, social e cultural por todo mundo ocidental. Por fim, temos o darwinismo social, como outra escola de preceitos racistas que influenciou de maneira significativa o pensamento social brasileiro. A Tese de Darwin, A origem das espécies de 1859, descartava a hipótese poligenista, uma vez que partia da noção de que uma única espécie, através de um processo evolutivo e de mutação se perpetuava em detrimento de outras (Monogenia). Mais uma vez, tal teoria, que provinha das ciências naturais, foi utilizada nas ciências do homem para comprovar a superioridade da raça branca. O darwinismo social foi empregado pelos seus partidários, que se utilizavam da antropologia física, da frenologia, da etnografia e da fisiologia, para afirmar a evolução do homem branco através da sua maior aptidão ao meio, seguindo o pressuposto da tese da seleção natural. Sendo assim, os negros, bem como índios ou mestiços eram espécies incipientes que tinham como destino acertado o gradativo desaparecimento257. Dentre os vários pensadores darwinistas sociais devemos lembrar os nomes do inglês Hebert Spencer e do alemão Ernest Haeckel. O Darwinismo Social deu um impulso enorme às teorias raciais, contribuindo para o surgimento de uma variante de tal pensamento: a eugenia. Os eugenistas acreditavam no aperfeiçoamento das raças humanas e procuravam relacionar as características físicas do homem com o seu comportamento. Para os adeptos dessa corrente de pensamento era imprescindível que a miscigenação fosse evitada. Praticamente todos os pensadores brasileiros se viram confrontados por essas teorias, bem como toda a América Latina. Tais doutrinas eram, na realidade, uma forma de inserção 256 Para o conceito de intelectual aqui utilizado. Cf. GOMES, Ângela Maria de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2009. 257 SKIDMORE, Thomas. Op. cit 134 em um mundo civilizado e em constante progresso. Como poderia o Brasil, após 1888 sendo uma nação juridicamente composta por “cidadãos” livres, seguindo os ares de civilização e progresso, escapar a tais pressupostos? Fugir das idéias vindas da Europa e dos Estados Unidos era o mesmo que navegar contra a correnteza do avanço social e moral da civilização. Nas Revistas dos Institutos analisadas nesse trabalho podemos notar a presença relativamente assídua de pensadores como Spencer e sua “sociologia evolutiva”, seja em artigos inteiros dedicados a sua filosofia ou em passagens que afirmam a adoção de suas doutrinas. A nação que se formava necessitava pensar seriamente sobre a questão racial. As teorias racistas do exterior não respondiam a necessidade de legitimação de um “povo brasileiro”. Novas idéias eram indispensáveis, sem, contudo escapar as máximas racistas originadas no norte, através das quais se aplicariam as teorias evolutivas das raças num contexto de um país multirracial. Vejamos agora como estas teorias foram transformadas, uma vez aplicadas à realidade nacional de uma maneira geral, para posteriormente analisarmos o que estava sendo escrito nos Institutos Históricos e, dessa forma, compreendermos que lugar destinava a História aos não-brancos e como a questão do futuro da Nação era encarada. 4.2 Idéias no lugar Os anos de 1870 representam, de um lado, o marco da desmontagem do sistema escravista brasileiro, através da Lei do Ventre Livre e, de outro, um momento de entrada de novos ideários positivistas e evolucionistas através dos quais os modelos raciais de análise possuíram um papel fundamental. Esse foi um momento de relativa modificação dos modelos de narrativas históricas até então apresentados, que aos poucos iam se separando da monarquia e do imperador 258. Nesse contexto verificamos o aparecimento e amadurecimento de instituições de ensino como os Museus etnográficos, as faculdades de direito e medicina e os Institutos Históricos259. A imagem que o Brasil possuía na segunda metade do século XIX era a de um país miscigenado. Nas visões de estrangeiros que vinham ao país era a figura do mestiço a que se perpetuava. A hibridização racial adjetivava o Brasil como atrasado no exterior, o que 258 ALONSO, Ângela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz & Terra, 2002. 259 SCHWARCZ, Lília. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. Companhia das letras, 1993. 135 claramente acarretava em um tumulto interno para aqueles homens que procuravam inserir a nova nação no eixo orientado pelas máximas ocidentais de civilização e progresso. Contudo, o Brasil não podia alienar-se em sua própria realidade histórica, a miscigenação já havia ocorrido no país como conseqüência do sistema escravista. Os intelectuais brasileiros não tinham a opção de encarar a mistura racial como uma questão sem relevância para a sociedade. Nesse sentido, a atenção daqueles que tratavam de tal assunto voltou-se para o mulato e, ao contrário das teorias européias de degeneração, era preciso flexibilizar os enlaces raciais brasileiros, afim de que se pudesse dar conta de uma definição de seu povo e, portanto, de uma história nacional. O ambiente intelectual, a partir da década de 1870, se encontrava inundado de um otimismo evolucionista que apontava para o andamento da barbárie à civilização como percurso inexorável. Essa positividade, junto a confiança iluminista no progresso, caracterizou as teorias que levavam em consideração as amalgamas raciais como aspecto singular da nacionalidade brasileira. A mestiçagem, portanto, deixava de ser descrita apenas em seus aspectos negativos, e se tornava, positivamente, característica fundamental da identidade nacional. Evidentemente, surgiram teorias raciais, cientificamente respaldadas, que apontavam para a negatividade das oportunidades previstas para as nações compostas por “raças inferiores”. A sociedade ilustrada brasileira, não se sentia, no entanto, atrasada ou bárbara. A eles, justamente, cabia a função de modificar tal situação, tendo em vista as luzes que possuíam, num projeto claramente didático-pedagógico, próprio da ilustração. Descrever a realidade social e agir para elevar a Brasil a um novo estágio de modernidade eram funções desses homens de letras, responsáveis ainda por desenhar e compreender os aspectos formadores da identidade nacional. O primeiro estudioso brasileiro da etnografia que inseriu o negro e o mulato em seus compêndios, foi o professor de medicina da faculdade da Bahia, Nina Rodrigues, responsável por lançar os alicerces da etnologia e da medicina legal no Brasil260. Dentre seus maiores feitos destaca-se a catalogação das origens de africanos vindos para o Brasil pelo tráfico de escravos, procurando identificar seus grupos lingüísticos. Como fonte para o historiador, Nina Rodrigues também reuniu fotografias e pinturas de africanos e objetos que possuíam identificação com a África. As teorias raciais de Nina Rodrigues, assimilavam inferioridade racial aos seus trabalhos de medicina legal. Eram, no entanto, contrarias a idéia de aceitação do tipo mestiço como um intermediário que tenderia ao embranquecimento e, portanto ao 260 CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista, Editora da Universidade São Francisco, 2001. 136 melhoramento intelectual. Resumidamente e de maneira simplória, Nina Rodrigues, se inspirando em Agassiz, acreditava na noção de degeneração do tipo mestiço, na superioridade da raça branca e que a influência da população negra era um dos motivos do atraso brasileiro. Tais pressupostos podem ser observados ao analisarmos apenas os títulos de algumas de suas obras, “Antropologia patológica”, “Miscigenação, degenerescência “Degenerescências física e mental entre os mestiços nas terras quentes”. e crime” e Assim afirmava Nina Rodrigues: A raça negra no Brasil, por maiores que a tenham sidos os seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificados que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão (...) ha de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo (...)261 Também figura de destaque nesse contexto foi Silvio Romero, um dos primeiros homens de ciência que no final do século XIX encarou a questão da mestiçagem no Brasil, reconhecendo a sociedade como multirracial. Silvio Romero utilizou os modelos norte americanos e europeus, adaptando-os a realidade nacional, sem, contudo descartar a superioridade da raça branca. Expoente da geração de 1870, Silvio Romero, em diálogos constantes com escritores românticos, criticou a falta de objetividade e de compatibilidade entre a narrativa e o real. Sendo um dos principais autores que buscou analisar o tipo brasileiro, Silvio Romero incluiu o negro como figura de destaque nesse processo. Tal autor tratava, porém, de maneira diferente de Nina Rodrigues, o tema da inserção do mulato na sociedade brasileira. Sua obra, por ser extensa, possuiu diferentes e ambíguos significados, principalmente, no que diz respeito a sua posição teórica em relação aos mestiços. Sem admitir a total degeneração destes, chegando em alguns momentos a demonstrar certo otimismo em relação ao futuro do mulato, deixava explícita sua aceitação da superioridade branca européia. Tanto que, uma de suas propostas para o embranquecimento da população brasileira foi o incentivo a imigração, principalmente de alemães, proposta esta, não rara nos círculos intelectuais e políticos que necessitavam lidar com a crescente questão dos “nãobrancos” na sociedade. Segundo Maria Tereza Chaves de Mello262, Silvio Romero não entendia o mestiço a partir de uma soma de três diferentes raças, mas sim como um novo tipo racial que compunha a raça brasileira, síntese da originalidade nacional e a base através da qual se daria o embranquecimento. Tal visão aparece nas fontes aqui analisadas, 261 RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Cia. Editor Nacional, 1932. p. 17 MELLO, Maria Teresa Chaves de. A República Consentida: cultura democrática e científica do final do Império. 262 137 principalmente na Revista do Instituto Pernambucano e na Revista do Instituto Paulista. Ambas as agremiações possuem publicações que apontam para um tipo racial regional, original tanto do ponto de vista local como nacional, demarcando, assim, a importância da região na história nacional. A adaptação brasileira das teses internacionais sobre raça, para além de condenar a mistura racial, em alguns casos perpetuou a argumentação segundo a qual a miscigenação não era um processo degenerativo do ser humano. Para grande parte dos intelectuais que lidavam com esta temática, inclusive nos institutos históricos, o tipo mestiço era único e natural da América, principalmente do Brasil. Admitia-se a mistura, sem, contudo, descartar a superioridade racial do branco e a inferioridade do índio e do negro. O mestiço aparecia, portanto, como categoria intermediária do processo evolutivo, não se constituindo em impeditivo ao avanço civilizacional. Nesse sentido, a mestiçagem serviu como legitimação para demonstrar que o Brasil possuía um futuro otimista em direção ao progresso racial e, consequentemente, cultural frente aos países do norte. Essas propostas se baseavam em alguns pressupostos que necessitam ser rapidamente aludidos. Em primeiro lugar, acreditava-se que o cruzamento entre duas “espécies” de cores diferentes gerava naturalmente uma população mais clara, uma vez que os genes brancos eram supostamente superiores e mais fortes. Em segundo lugar, acreditava-se que a população negra diminuía por uma relação entre as taxas de natalidade (supostamente menores entre os negros) e expectativa de vida. Por fim, partiam do princípio de que era necessário incentivar a imigração, principalmente européia para o Brasil. O objetivo, claramente, girava em torno de aumentar a porcentagem de “brancos puros” em relação aos negros e mestiços. Longe de serem formulações teóricas simples, essas idéias foram pensadas e repensadas. Carregavam o peso de enquadrar o Brasil nos moldes da civilização européia, encarando de maneira realista a questão do grande número de uma população mulata. Esses pensadores assumiram o compromisso de transformar ou adaptar as teses racistas estrangeiras à realidade nacional multirracial, a qual não podia mais ser descartada com o fim da escravidão. Por isso, muitos desses homens fizeram do mestiço o distintivo da peculiaridade nacional. A nação necessitava delimitar e entender um suposto “povo brasileiro” que contava agora com indivíduos que, pelo menos até a década de 1870, eram encarados como responsabilidade do mundo privado, ou seja, escravos e seus descendentes. Todas as classificações utilizadas para diferenciar a população negra e mulata, já não respondiam a urgência de delimitar um povo juridicamente livre e, nesse sentido, homogêneo. 138 4.3 A solução da mestiçagem entre propostas e embates No interior do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ainda na primeira metade do século XIX, surgiu a primeira tentativa de elaborar uma história do Brasil e de seu povo, levando em consideração a mestiçagem racial. Tratou-se de uma proposta de organização elaborada pelo estrangeiro bávaro Von Martius. No ano de 1840, Januário da Cunha Barbosa, um dos fundadores do IHGB, definiu um prêmio para aquele que melhor elaborasse um plano para se escrever a História do Brasil. O texto vencedor foi elaborado por von Martius e publicado na Revista do IHGB em 1844. Em linhas gerais, seu trabalho propunha a elaboração de uma historia capaz de garantir uma identidade para nação. Essa identidade estava alicerçada na ideia da mistura racial entre brancos, negros e índios. Ainda que von Martius valorizasse a atuação do homem branco no processo civilizador, curiosamente, destacou em sua proposta a importância dos estudos relativos aos indígenas, com a perspectiva de integrar à história da nação os conhecimentos por eles veiculados para a formação de mitos de nacionalidade. O negro, todavia, obtém pouca atenção de von Martius, o que solidifica a visão de que o negro era fator secundário no processo de amálgama racial responsável pela formação do “tipo brasileiro”, além de servir de impedimento ao processo civilizador. A premiação outorgada a Martius expressa à concordância do IHGB com o projeto de História do Brasil por ele elaborado. Apesar de vencer o concurso empreendido pelo Instituto Histórico, Von Martius recusou a tarefa de elaborar o projeto historiográfico proposto por ele mesmo. Em linhas gerais, no entanto, Francisco Adolfo Varnhagen corporificou as intenções do naturalista bávaro com a publicação de História nacional. Importante destacar que a proposta de Martius foi seletivamente aceita pela intelectualidade brasileira representada pelos Institutos Históricos. Já em História Geral do Brasil de Varnhagen, vislumbramos que o interesse passou a se ater na temática indígena da divisão racial, tanto que esta ocupava um espaço considerável nas publicações das Revistas dos Institutos. O papel do português recebeu ainda maior destaque, posto que responsáveis pela colonização e extensão territorial do Brasil. Ao destacar a figura do indígena como símbolo da nacionalidade tropical e a ascendência européia portuguesa na formação do “povo brasileiro” mantinha-se o compromisso com a proposta da mistura racial. A não tematização do elemento negro se fazia evidente. Cabia a narrativa histórica silenciar o componente 139 perturbador da ordem social civilizada, o negro e a escravidão ainda imperante no Império do Brasil. Na tentativa de buscar uma definição autêntica da nacionalidade brasileira, muitos intelectuais modificaram, adequando à realidade nacional, as teorias raciais que chegavam da Europa. Essas idéias, quando migradas para o Brasil necessitavam de uma adaptação com relação à experiência de uma sociedade multirracial. Na revista do IHGSP comprovamos tal afirmação “(...) as lendas e tradições que do ocidente europeu passaram para nós, sofreram a influencia do mestiçamento indo-luso-africano” 263 . Foi assim, que a imagem do tipo mestiço como degradado, deixou de ser um dos pressupostos deterministas utilizados por intelectuais nacionais, como forma de solucionar um dos fatos mais claros da sociedade brasileira, a existência de um grande número de mulatos. Em consonância, teorias que afirmavam a superioridade do tipo branco sem, contudo, descartar os benefícios da miscigenação, começaram a ser articuladas no território nacional. Cada vez mais, surgiam idéias sobre o embranquecimento que afirmavam um futuro otimista para a questão da raça no Brasil, declarando que a fusão entre o tipo branco, o negro e o índio geraria sempre um indivíduo mais claro, mais robusto e mais apto intelectualmente. Os Institutos Históricos obviamente não escaparam a tais discussões e nas páginas de suas revistas encontramos fontes que nos revelam a preocupação desses homens de ciências e letras de interpretar a questão racial no Brasil. Dentre os artigos analisados, podemos perceber formas diversificadas da utilização do termo raça. Este era, obviamente, utilizado como uma forma de categorização humana, contudo, a maneira como essa categorização foi empregada se diferenciava. Com o intuito de delimitar o pertencimento e reconhecimento de um povo, a noção de raça era dirigida ao se falar de indivíduos de determinado país ou de determinada localidade, além disso, para o caso de Pernambuco e São Paulo a raça representava a própria região de identificação. Notamos ainda que, não raras vezes, a expressão raça vinha entrelaçada a noções de cor. Voltemos-nos agora para a análise, propriamente dita, dos artigos em que achamos relevantes contribuições para o tema racial no Brasil. Dentro do recorte temporal desta pesquisa, que abrange a última década do século XIX, momento delicado para as instituições aqui retratadas e para a (re)escrita da história nacional, encontramos percepções acerca do conceito de raça e de mestiçagem que ratificam as discussões levantadas anteriormente. Seja a partir dos pressupostos fornecidos pelos teóricos estrangeiros, aprovando a degeneração da 263 Cf. VAMPRÉ, João. Revista do IHGSP, São Paulo, 1900-1901, Volume VI, p. 84-97 140 raça mestiça, seja nos desdobramentos dessas ideias quando empregadas no panorama brasileiro, a miscigenação não escapou das tensões e discussões entre a intelectualidade. Neste ínterim, apreendemos disputas regionais entre os institutos aqui analisados, principalmente entre Pernambuco e São Paulo, que argumentavam para si noções de raça que legitimassem a participação de ambas as regiões na formação da nacionalidade e, portanto, na história do país. As propostas apresentavam certa uniformidade, uma vez que se tratava de compreender o “povo brasileiro” de maneira geral e uniformizadora. Dentre os artigos analisados, concordamos que o que mais se destaca é aquele escrito por Tristão de Alencar Araripe na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Movimento colonial da América264, por tratar da questão da mistura de raças de maneira, ao mesmo tempo, inovadora sem, no entanto, escapar do pensamento reinante que propunha o predomínio da raça branca. Tal artigo demonstra como as idéias estrangeiras circulavam no território nacional, mas necessitavam ser adaptadas, na medida em que era imperativo lidar com a nova configuração de uma sociedade livre e multirracial. Se não encontramos tantos artigos que analisam as noções de raça, quando comparamos com o total de páginas aferidas no restante das revistas de cada instituição, isso apenas sustenta o modo como à história era produzida nos Institutos Históricos, ainda de posse da herança legada pelo período imperial. Este processo historiográfico era caracterizado por um viés teleológico, pontuado pela preocupação constante em inserir fatos que marcassem a inevitável “evolução dos processos históricos”, era uma história detentora de forte cunho nacionalista e patriótico. É possível afirmar, que a grande maioria dos artigos ainda procurava resgatar elementos de um passado colonial, tema que claramente predominava nas páginas dessas instituições, bem como a independência nacional. A noção cristalizada de que cabia aos futuros historiadores narrarem os acontecimentos presentes, como a abolição ou a república, ainda era bastante presente. Contudo, o fato de encontrarmos importantes contribuições, ou convicções, sobre a experiência racial brasileira em cada uma das revistas, aponta para uma mudança de tom em relação ao modelo, até então preponderante, do dever do historiador. Este, cada vez mais, passava a interpretar o Brasil e a si mesmo, a partir de novos olhares. As experiências da abolição seguida da República traziam a tona diferentes perspectivas de futuro para o país e, portanto, a necessidade de reformulação de um passado, que visava a formação identitária do indivíduo e a construção da nação de maneira 264 ARARIPE, Tristão de Alencar. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1893, Tomo LVI, Parte II. 92-115. 141 conectada265. Sem mais demora, partamos para o que as fontes nos apontam a respeito dessa contenda. O Instituto Histórico Geográfico e Antropológico do Ceará não possui nos artigos considerados muitas discussões a respeito da temática racial do “povo brasileiro”. Como relatado no primeiro capítulo, a maior parte dos artigos desenvolvidos pelos sócios do IHGAC limitaram-se a analisar aspectos da gênese do povo local, característica comum de todas as agremiações regionais. Os narradores da história focaram seus olhares, principalmente, sobre os povos indígenas, considerados os habitantes naturais do Ceará. As publicações resgatavam, também, os laços identitários colonialistas como forma de demarcar a ascendência portuguesa da população. Encontramos, todavia, uma aparente exclusão da população negra por parte do projeto de edificação e identificação do povo cearense. A percepção de que o negro havia desempenhado um papel secundário na composição étnico-racial do povo do Ceará, acabou por criar dois mitos simultâneos: o de que praticamente não haviam existido escravos nessa localidade; e um segundo que seria resultado do primeiro, o Ceará possuiria uma população tipicamente “cabocla”, praticamente não contanto com a parcela negra da mistura racial. Apesar da suposta negligência dos intelectuais do Instituto cearense para com os “homens de cor” existiram registros da presença negra nas publicações de sua revista. No ano de 1889 a RIHGAC transcreveu o trabalho do naturalista João da Silva Feijó266 que apresentava dados demográficos da capitania no século XVIII. Em seu estudo, percebemos, claramente, quais eram os habitantes que a compunham: Sendo porem esta Capitania tão vasta, é de admirar a sua diminuta e desfalecida população, que apenas montará a 150 mil habitantes de todas as classes, e estes pela maior parte de péssima qualidade; porque uns são índios originais do país, entes de si mesmo ineptos para se felicitarem ou para fazerem a felicidade dos outros ou seja por natureza e sua constituição física, ou por falta de educação ou por algum capricho particular etc., outros são provenientes destes com os 265 KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Editora; Editora PUC Rio, 2006. 266 João da Silva Feijó nasceu no Rio de Janeiro, por vota de 1760. Quando jovem saiu do Brasil para ingressar na Universidade de Coimbra, onde cursou Filosofia e, posteriormente, Matemática. Chamava-se João da Silva Barbosa, passando a adotar o sobrenome Feijó provavelmente em homenagem ao filósofo espanhol Benito Jerônimo Feijoo. Em junho de 1783 chegou a Cabo Verde a mando de uma missão exploratória do Império português, aí acumulou algumas funções burocráticas como o cargo de Secretário do Governo da Capitania de Cabo Verde e de Escrivão da Matrícula da Gente da Guerra. Foi também Juiz de Órfãos e Sargento-mor da Praça de Ribeira Grande. No ano de 1799, Feijó foi nomeado Sargento-mor das milícias da Capitania do Ceará, acumulando também a função de naturalista. Nessa região organizou estudos sobre a fauna e a flora, bem como os habitantes locais. Em 1822, retornou ao Rio de Janeiro, onde atuou como professor da Academia Militar. Faleceu em 1824 nessa mesma cidade. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993 142 negros, cuja raça indígena constitui o maior numero dela, conhecido com a vil denominação de – cabras (...)267 Em seguida continua a narração, destacando ainda a presença branca de origem portuguesa na região. De certo modo, João da Silva Feijó descreveu a constituição do povo cearense, categorizando-o em quatro grandes grupos étnicos, branco, indígena, negro e mulato. Portanto, averiguamos que a ideologia da mestiçagem foi, também, valorizada pelo Instituto Cearense para explicar as interações que deram origem ao tipo local. No Tomo XIII da Revista do IHGAC, publicado no ano de 1899, o artigo, Sobre uma História do Ceará268, de Capistrano de Abreu269 também destacou os tipos raciais que compuseram a população cearense. Neste trabalho, o autor tratou rapidamente de alguns aspectos que constituíram a história da província do Ceará recorrendo ao trabalho de outro sócio do Instituto, João Pereira Caldas. Sua análise perpassa pelos primeiros anos de colonização portuguesa, pela ocupação do Amazonas, pela expulsão dos franceses no Maranhão e pela incorporação do Ceará à província de Pernambuco. A parte que nos interessa dedica-se a povoação do território cearense. Em sua opinião as províncias da Bahia, do Maranhão e de São Paulo, a partir do movimento bandeirante, seriam os maiores responsáveis por tal feito. Na visão de Capistrano de Abreu, o fato de o Ceará ter se tornado uma província pastoril trouxe uma série de conseqüências para o futuro desta localidade. Citando o trabalho de João Pereira Caldas, afirma que este nos dá a filosofia do gado e do vaqueiro, concordando que a “criação do gado influi sobre o modo por que se forma a população” 270 . Fazendo referência ao trabalho relatado acima Capistrano cita-o: “Nos sertões da Bahia, Pernambuco e Ceará, diz ele, principalmente pelas vizinhanças do rio de S. Francisco, abundam mulatos, mestiços e pretos forros (devia acrescentar índios mais ou menos mansos). Esta gente 267 RIHGAC, 1889, Tomo III, João da Silva Feijó, p. 22 ABREU, João Capistrano. Revista do IHAGC, Ceará, 1899. Tomo XIII, p. 22-33. Artigo anteriormente publicado na Revista Brasileira. 269 João Capistrano de Abreu nasceu no sítio Colominjuba, em Maranguape, Ceará no dia 23 de outubro de 1853. Completou seus primeiros estudos em Fortaleza, no Colégio de Educandos, posteriormente estudou no Ateneu Cearense e no Seminário Episcopal do Ceará. Seu primeiro trabalho publicado foi um estudo crítico sobre Casimiro de Abreu e Junqueira Freire no semanário “Maranguape”. Em 1875 mudou-se para o Rio de Janeiro e seu primeiro emprego foi o de caixeiro da livraria Garnier. Lecionou paralelamente português e francês no Externato Aquino e, em 1879 ingressou como redator na “gazeta de Notícias”. Foi nesse mesmo ano que Capistrano de Abreu através de concurso foi admitido na Biblioteca Nacional. Por organizar a repartição que compôs a I Exposição da história do Brasil e do respectivo catálogo (1881), recebeu o grau de cavaleiro da Ordem da Rosa. Em 1833 Capistrano tomou posse da Cátedra de história do Brasil no Colégio Pedro II, apresentando como tese O descobrimento do Brasil e seu desenvolvimento no século XVI. Exerceu o cargo até 1899, quando se negou a lecionar a disciplina História Universal. Foi eleito sócio efetivo do IHGB em 19 de outubro de 1887. Faleceu no Rio de Janeiro no dia 13 de agosto de 1927. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 3, Rio de Janeiro: 1993. p. 13. 270 ABREU, João Capistrano. Revista do IHAGC, Ceará, 1899. Tomo, XIII. Op. cit. p. 29 268 143 perversa, ociosa e inútil pela aversão que tem ao trabalho da agricultura, é muito diferente empregada nas fazendas de gado. Tem a este exercício uma tal inclinação que procura com empenho ser nele ocupada, constituindo toda a sua maior felicidade em merecer algum dia o nome de vaqueiro271. Novamente averiguamos o resgate da presença do negro na região do Ceará. Tanto nesse trecho, quanto no anterior, a invocação ao elemento negro entra de maneira pejorativa na narrativa. Se ao homem de cor era concedido algum espaço, esse aparecia sempre do lado negativo, corroborando as visões das teorias racistas que consideravam o tipo mestiço, negro ou indígena como degenerado. Contudo, percebemos que, mesmo de maneira inferiorizada, foi oferecido um lugar a esses homens na montagem da província cearense. Havia sido essa população, negra, indígena, mulata e mestiça, “ociosa e inútil”, que ao realizar bons serviços no trabalho com o gado, ajudou a delinear o Ceará enquanto sociedade pastoril. As noções relativas à composição étnica do povo cearense estiveram no seio das problemáticas desenvolvidas pelo IHGAC e a presença do negro, ainda que inferiorizado estive computada nos artigos publicados. Este artigo, portanto, nos conduz a conclusão de que mesmo preocupado com os pormenores internos do Ceará, o autor exibiu uma necessidade palpável de explicar a formação da população cearense, engendrando nessa busca noções relativas à miscigenação, raça e diversidade étnica. No Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano apuramos uma preocupação bem mais latente em tentar recuperar a “verdadeira” composição étnica da população. Praticamente em todas as sessões pronunciadas percebemos a retomada da expulsão dos holandeses servindo sempre como tradição resgatada ou inventada para legitimar e enfatizar a importância de Pernambuco na história nacional em prol da independência e liberdade do Brasil. Como analisado por Evaldo Cabral de Melo272 a narrativa popular e a narrativa histórica forjaram o mito de que a restauração pernambucana havia unido o povo contra o estrangeiro holandês a partir de uma ação conjunta de indivíduos de raças distintas, o que simbolizava a contribuição de diferentes etnias na luta contra os invasores. O objetivo era construir uma identificação supra-racial representada por Fernandes Vieira, Vidal de Negreiros, Henrique Dias e Camarão. Essa tetrarquia seria, portanto, a especificidade racial necessária que conformaria a raça pernambucana. 271 Idem, p. 30. MELLO, Evaldo Cabral de, Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008 272 144 No discurso pronunciado pelo desembargador Adelino Antonio de Luna Freire, na sessão solene de 27 de Janeiro de 1898273 notamos a perpetuação desse tipo de narrativa. Em sua fala Luna Freire afirma ser o povo pernambucano formado pela mestiçagem, o único responsável pela derrota batava, lançando, dessa forma, a primeiro brado de liberdade no país. Nós, portanto, os pernambucanos, que já não éramos portugueses e espanhóis, africanos ou índios, porém o resultado do cruzamento de todas essas raças; no qual predominava o elemento europeu, constituindo uma nova nacionalidade, cumpríamos um dever sagrado, expelindo do território que já era exclusivamente nosso, os batavos cruéis que durante vinte e quatro anos nos privaram de nossos bens e de nossa liberdade; (...) 274. Nesta passagem, Luna Freire nos aponta para a formação do povo pernambucano utilizando critérios relativos à raça e a miscigenação. Em sua interpretação a mistura racial possibilitou a constituição de uma “nova nacionalidade”, baseada na presença do negro, do branco e do indígena. Somente um povo, fruto desse processo de miscigenação poderia, exclusivamente, lidar com a invasão e expulsão dos holandeses do território nacional. Essa referência ao tipo racial pernambucano, responsável por compor uma raça local única e melhorada apareceu constantemente nos artigos e discursos do IAHGP. A idéia em torno da raça pernambucana caracterizava a população positivamente na medida em que se miscigenava. Sendo assim, podemos afirmar que a unicidade do povo local era garantida pela raça. Mais uma vez, percebemos a utilização das teorias de mistura racial inseridas nas preocupações dos pensadores nacionais que procuravam aplicá-las à realidade brasileira. Contudo, neste trecho, visualizamos mais claramente esta adaptação. A miscigenação não levava automaticamente a degeneração social, ocorria o contrário. Se levarmos em consideração a Teoria das espécies na forma em que era aplicada pelos darwinistas sociais, assim como o foi posteriormente pela escola etnológica-biologica, notamos uma mudança de tom essencial, a sociedade pernambucana, única capaz de vencer os holandeses se mostrava assim, de acordo com tais teorias, a mais adaptada pelos critérios de competição e seleção do mais forte, justamente por ser mestiça. Essa é uma inovação/transformação que só poderia ser aplicada, na medida em que estes homens de ciências e letras demonstravam uma preocupação com o futuro da nação e ao olharem para o presente, visualizavam claramente uma sociedade multirracial e dessa maneira, tentavam buscar no passado uma legitimação para esse povo que compunha a sua população. 273 274 FREIRE, Antonio Adelino de Luna. Revista do IHAGP, Pernambuco, 1898, Exemplar nº 52, p. 168-193 Idem, p. 191 145 Não podemos deixar que passe despercebido o trecho em que Luna Freire afirma a predominância do elemento europeu no processo miscigenatório. Como afirmado anteriormente, essas idéias estrangeiras não podiam ser de todo ignoradas, afinal a população branca era, aos olhos dos intelectuais brasileiros, o modelo de civilização e progresso a ser alcançado e por isso a parte privilegiada no processo de amálgama entre as raças. Legitimar a miscigenação para tentar adaptar ao Brasil as teorias raciais, de modo que o país escapasse da absoluta condenação do seu povo, pressupunha também que o tipo branco estivesse sempre representado como o modelo a ser atingido. Nesse sentido, a miscigenação era uma maneira, aparentemente paradoxal, para se buscar o embranquecimento, sendo ao mesmo tempo a salvação e a condenação do tipo racial brasileiro. Ainda nas páginas da Revista do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano, encontramos uma visão absolutamente diversa da proposta anterior. Na Ata da Sessão Solene do vigésimo oitavo aniversário do IAHGP 1890, apuramos o discurso do orador José Hygino 275 , datada de 27 de janeiro de 276 Cresceriam, pois as raças cruzadas minguariam a branca; a dissolução dos costumes seria extrema, o nível da mentalidade e da moralidade desceria consideravelmente; e ao tempo em que o sul do Brasil, como colônia portuguesa, poderia operar a sua emancipação política e tomar lugar entre as nações civilizadas, o norte do Brasil ofereceria o espetáculo de um povo semibárbaro, incapaz de dirigir os seus próprios destinos··. Ao relatar mais uma vez a expulsão batava da província de Pernambuco, José Hygino admitiu que a presença holandesa no norte do país, por conseqüência da intensificação do tráfico de escravos africanos para o Brasil, acabou por gerar uma mistura racial entre os indivíduos que não tardaria em ocasionar a degeneração do “povo do norte”. Em sua opinião, como a invasão batava havia durado aproximadamente 40 anos, os pernambucanos puderam conter, razoavelmente, a mistura até ser realizada a retirada holandesa dos territórios 275 PEREIRA, José Hygino Duarte. Revista do IHAGP, Pernambuco, 1899, Exemplar nº 37, p. 43-45. Publicado anteriormente no jornal O País, do Rio de Janeiro de 1888 276 José Hygino Duarte Pereira, nasceu em Recife, Pernambuco, no dia 22 de janeiro de 1857. Bacharelou-se pela Faculdade de Direito do recife, onde, futuramente, lecionou. Durante o Império foi juiz municipal em várias comarcas, deputado provincial e juiz substituto no Recife. Na república, foi ministro do Interior e ministro do Supremo Tribunal Federal, sendo de sua autoria o parecer de anistia aos militares envolvidos em movimentos revolucionários até 31 de março de 1896. Representou o Brasil como ministro plenipotenciário na II Conferência Internacional Americana, realizada no México, onde veio a falecer pouco tempo depois no dia 10 de dezembro de 1901. Foi um grande estudioso da história sobre o período de domínio holandês no Brasil, estando na Holanda reunindo documentos inéditos sobre esse período, os quais, traduziu e publicou na revista do IAHGP. Sócio do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico, foi também, no ano de 1886, eleito sócio correspondente do IHGB, passando a efetivo em 1884. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Op. Cit. p. 60 146 nacionais. Nas palavras de José Hygino, caso o povo de Pernambuco não assumisse a responsabilidade da expulsão holandesa do norte do país, a mistura racial teria sido decisiva para inserir tal região no modelo de não civilização. José Hygino levou em consideração principalmente o “cruzamento” das raças branca e negra, uma vez que assegurou ser o holandês possuidor de um espírito escravista mais desenvolvido, quando comparado com o português, trazendo para o Brasil um número substancialmente maior de escravos. O medo em torno do aumento do aporte de negros para o país era constante no pensamento intelectual, principalmente quando dos debates sobre a lei contra o tráfico de escravos de 1850. Tal passagem, além de ilustrar esse tipo de pensamento, demonstra que a percepção da barbárie africana trazida via navio negreiro era uma das maiores preocupações em torno do elemento negro do produto racial brasileiro. O holandês foi ainda mais escravista do que o português. A cansada frase de que o Brasil não pode existir sem negros, foi pela primeira vez formulada por Mauricio de Nassau em um relatório que dirigira em 1639 à Assembléia dos Dezenove 277. O povo pernambucano foi, portanto, o responsável por evitar que a mestiçagem do norte do país, principalmente entre brancos e negros, se perpetuasse. José Hygino não nos forneceu nenhuma pista de quem eram esses pernambucanos ou se eram compostos por algum tipo de processo miscigenatório. O fato, foi que coube a esta população impedir a degeneração de toda uma região e essa decomposição do tipo humano era oriunda, exatamente, do enlace de diferentes tipos raciais. Aos moldes das teorias européias e norte americanas, José Higyno resgatou termos como bárbaro e imoralidade para caracterizar o mestiço como sinônimo de inferioridade racial, social e cultural. Diferente da percepção de Luna Freire, de que coube a mestiçagem gerar um povo pernambucano mais apto porque multirracial, José Hygino argumentava praticamente o contrário. Ao comparar essas duas publicações, podemos apreender que as divergências e embates de opiniões não ocorriam somente entre os diferentes Institutos Históricos, mas também no interior de uma mesma agremiação. Para além das disputas regionais, a aparente homogeneidade de opiniões em cada instituto é rompida, apesar da tentativa de silenciá-la, revelando intenções e tensões na arena do campo intelectual. Assim como em Pernambuco, a intelectualidade paulista procurou investigar as origens raciais da população local, com o objetivo de encontrar uma característica única capaz 277 PEREIRA, José Hygino Duarte. Revista do IHAGP, Pernambuco. Op. cit. p. 45 147 de conceder um papel de destaque para a região no processo de formação do povo brasileiro. No Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo ao analisarmos o discurso da sessão magna comemorativa do quarto centenário do descobrimento do Brasil278, proferido pelo orador Theodoro Sampaio279 encontramos uma proposta interessante de definição de um “povo brasileiro”. Na realidade, seu trabalho seguia a perspectiva desenvolvida ainda na década de 1840 por Von Martius. Para Theodoro Sampaio, a história do Brasil e, por conseqüência, de sua população, dependia da avaliação da sua composição étnica. Um estudo que contemplasse a presença do negro, do branco e do indígena, num processo de interação era, portanto imprescindível. Pela primeira vez, tratava-se de um artigo destinado a avaliar a nação como um todo. Para além de narrar os fatos mais importantes ocorridos desde 1500, quando da chegada portuguesa no Brasil, o autor nos apresenta uma visão sobre a elaboração da nacionalidade brasileira a partir de critérios raciais. Logo em seu primeiro parágrafo afirmava Theodoro Sampaio: Estamos, pois, meus senhores, no quarto centenário de um povo que etnicamente, ainda não se constituiu (...). Um olhar retrospectivo por esse período de quatrocentos anos, um balanço geral do que foi o nosso viver como colônia e como nação independente, um exame íntimo do que fomos e do que podemos aspirar no futuro, tal como o passado e o presente nos[sic] deixam pressentir, só nos trazem ao espírito a convicção de que somos um povo ainda em elaboração, e que esta se vem efetuado lenta e continua pelo concurso de três raças que se amalgamam, mas que se não fundiram ainda num tipo único, representativo do nosso gênio, do nosso caráter e, portanto capaz de uma orientação definida 280. Theodoro Sampaio nos mostra claramente sua perspectiva de que não podíamos aspirar sermos um povo unificado, possuidor de uma cultura e características sociais próprias, uma vez que ainda nos encontrávamos em um processo de formação. Assim como na opinião do naturalista bávaro Von Martius, comumente refletida nos círculos intelectuais, Sampaio 278 SAMPAIO, Theodoro. Revista do IHGSP, São Paulo, 1900. Volume VI, p. 98-109 Theodoro Sampaio nasceu em Santo Amaro, Bahia, no dia 7 de janeiro de 1855. Filho da escrava da Fazenda Canabrava, Domingas da Paixão com o senhor de engenho e fidalgo cavaleiro da Casa Imperial, Francisco Antônio Costa Pinto. Foi levado aos 9 anos de idade para São Paulo e logo depois matriculado no Colégio S. Salvador , no Rio de Janeiro, onde ao terminar o curso, foi aproveitado como professor. Posteriormente fez o curso da escola Politécnica, porém, era também interessado por história, literatura e filosofia. No ano de 1877, diplomou-se e tornou-se sócio do Instituto Politécnico Brasileiro. No mesmo ano voltou a Bahia para comprar a liberdade de sua mãe escrava. Em São Paulo iniciou sua carreira profissional, porém em 1904 retornou à Bahia onde realizou obras de engenharia, entre elas a reconstrução da Faculdade de Medicina. Foi eleito deputado Federal e além de membro do IHGSP, era membro do IGHBA e do IHGB do qual foi orador e presidente. Faleceu no ano de 1937. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 3, Rio de Janeiro: 1993. p. 143 280 SAMPAIO, Theodoro. Revista do IHGSP, São Paulo. Op. cit. p. 98 279 148 considerava o tipo mestiço como uma nova categoria racial. A mestiçagem surgia, mais uma vez, como solução para o entendimento do povo brasileiro e, portanto, da nacionalidade. A realidade brasileira, tanto do ponto de vista físico como cultural era interpretada como mestiça, o que garantia sua unicidade. Nesse ponto, suas afirmativas se aproximavam das interpretações de Silvio Romero que, igualmente, percebia a nação brasileira como ainda não constituída. Para o caso deste autor, declarava tal aspecto destacando tanto a miscigenação como proposta de entendimento para a realidade nacional, como a partir de uma crítica sobre a influência estrangeira nas tendências intelectuais locais. O modo de Theodoro Sampaio perceber a formação da nacionalidade brasileira apontava para uma perspectiva contemporânea de necessidade e urgência de garantir tal empreendimento. Esse era o grande desafio dos intelectuais-historiadores, que após a abolição da escravidão e a instauração do regime republicano escreviam a história da nação. Sabemos que tais mudanças transformaram a historiografia e seu modelo imperial e que os diálogos entre o historiador e o povo estiveram cada vez mais presentes nas revistas dos Institutos Históricos. Porém de que povo se tratava? Com qual povo se dialogava? Essas e outras inúmeras questões estavam presentes nas mentes desses homens que se viam na missão de escrever uma história que, pela primeira vez, necessitava englobar os feitos de todos os indivíduos, sem exceção. A abolição da escravidão inaugurou mais dúvidas do que supomos imaginar, mesmo entre os intelectuais que viveram o mundo escravista e monárquico. A tradição imperial mudara, e com ela o passado da nação. Foi através das teorias raciais que esses intelectuais propuseram uma releitura da história dos povos. Ainda neste mesmo discurso, Theodoro Sampaio se aproximava das proposições de Luna Freire, que acolhia a miscigenação como fator importante para a formação do povo pernambucano, ao falar da participação do bandeirante no descobrimento do Brasil. Theodoro Sampaio admitia que o tipo bandeirante, por ser fruto de uma mistura racial havia permitido a exploração e descobrimento do interior do país. A qualquer outra raça, não caberia essa missão e seria impossível cumpri-la, somente a mistura entre o índio, o negro e o português, formaria uma população mestiça capaz de desbravar e interiorizar as conquistas portuguesas. Desse tipo de narrativa se originou e se fundamentou o mito bandeirante. A historiografia paulista resgatou a imagem do “bom selvagem” rousseauneano para compor uma das principais tradições locais, a que associava a origem do povo paulista aos primeiros exploradores e desbravadores do solo brasileiro. Desse mito de origem nasceu à percepção de uma raça paulista responsável por conquistar, através da força e da coragem, a natureza. 149 Fruto da miscigenação, essa tradição nos ajuda a entender como os intelectuais do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo lidavam com a questão racial de maneira conflitante. Só dessasenhoriado, o português seria impotente para assenhorear-se do país onde os rigores do clima o anularam. Foi-lhe preciso o concurso lento dos anos, para a adaptação da raça, para atrair o selvagem ao cristianismo, para introduzir o africano cujo braço lhe desbravou o solo virgem e inculto, para a formação de uma população mestiça, apta para enfrentar as agruras do deserto, para que então a colônia tivesse seus limites dilatados e desentranhadas as riquezas dos seus ignotos sertões 281. Mais uma vez percebemos um lugar social demarcado para o mestiço na história de São Paulo e, portanto, da nação. Um lugar, de certa maneira, bem definido, como o desbravador. É interessante pensarmos que, ao mesmo tempo em que Sampaio lança a assertiva de que o “povo brasileiro” ainda não se encontrava etnicamente constituído, admitia a miscigenação desde os tempos coloniais. (...) o homem vermelho tisnado, esbelto, musculoso de aço, ágil, sóbrio, inteligente e corajoso, poeta rústico de uma originalidade estranha, o jagunço, enfim como se chamou, tipo adaptado por uma mestiçagem de quatro séculos, um habitat como mão não há outro no Brasil282. Vale destacar, que suas descrições do tipo mestiço e, portanto, do bandeirante eram um tanto quanto ambíguas, carregavam os preconceitos raciais que o inferiorizavam, ao mesmo tempo, em que exaltava suas qualidades. Paradoxalmente, a mestiçagem fornecia a resposta necessária ao processo de adaptação dos brancos aos trópicos, do mesmo modo que explicava o processo de branqueamento. Apenas a mistura racial e, posteriormente, o total desaparecimento do tipo mestiço, em detrimento do branco, poderia oferecer ao Brasil a chance de constituir-se em uma nação evoluída. A mestiçagem era, portanto a marca distintiva do povo brasileiro e sua única opção de progresso e, no entanto, sinal do atraso nacional. Essa característica, como observamos, esteve presente na maioria dos textos analisados e apenas ratifica a confusão e a adaptação das idéias racistas quando utilizadas para a montagem da história do país. Ao descrever o bandeirante Theodoro Sampaio afirma; Este outro, um mestiço já nascido nas terras da America, alma inculta, supersticiosa e por vezes cruel, manifestando-se por uma energia indômita, e por uma audácia desconhecida, é um caçador. (...) O seu destino é marchar à 281 282 Ibidem, p 103 Ibidem, p 107 150 aventura, sem rumo certo através das solidões nunca dantes percorridas, devassar, descobrir conquistar 283. Nesse claro processo de valorização da miscigenação, que negava o caráter completamente nefasto e pejorativo destacado pelos teóricos raciais europeus e norte americanos, grande parte dos intelectuais do IHGSP puderam afirmar uma formação híbrida da raça paulista. Contudo, ao mesmo tempo em que as teorias raciais fundamentavam a existência de uma raça bandeirante, resultado da mistura racial, elas em muitos pontos menosprezavam os negros e indígenas. Verdade também que a parcela indígena que compunha o processo de miscigenação foi valorizada. Em contra partida, o elemento negro, ora silenciado, ora depreciado, acabou por possuir importância secundária na composição étnica do povo paulista. O fim da escravidão trouxe esse desafio, o de incluir no passado do país uma história do negro. A mestiçagem foi a saída escolhida (e encontrada) pela maioria dos historiadores para lidar com essa questão. No entanto, o próprio mestiço não possuía um lugar exato onde pudesse ser entrelaçado na história que, até então, se havia elaborado para o país. Resgatar um lugar para o mestiço como construtor da nação brasileira foi a maneira mais recorrente, como percebemos, nos textos até então analisados. Seja como bandeirante ou pernambucano, o mestiço possuía um espaço ambíguo. Assim como era ambígua a própria idéia de mestiçagem. Dessa forma, percebemos nos textos a exaltação da mistura racial e, ao mesmo tempo, um ideal de branqueamento que assinalava a inferioridade, a selvageria e a falta de cultura do mestiço. Em ambos os trechos acima, podemos apurar que o bandeirante era o homem hábil, maravilhoso, corajoso e juntamente inculto e supersticioso. No entanto, paradoxalmente, este indivíduo se enquadrava nas teorias evolutivas, uma vez que coube a ele, a partir de um processo de adaptação e seleção, a capacidade de explorar as terras desconhecidas. Interessante procurar descobrir como essa ambigüidade, e esses paradoxos, inseridos em uma mesma alocução e, mais ainda, em discursos de instituições diferentes, apareciam e reapareciam como uma maneira de encontrar uma solução para descortinar conceitos como “cidadão” e “povo brasileiro”. Inserido neste contexto, partimos agora para a análise do artigo que consideramos de maior estima para o estudo sugerido, por se tratar da proposta mais complexa de um intelectual que, na tentativa de explicar a formação e constituição do “povo brasileiro” expôs a sua teoria sobre a mistura de raças na Revista do IHGB. Tristão de Alencar Araripe, em seu 283 Ibidem, p. 103 151 artigo Movimento colonial da América 284, buscou uma valorização do elemento nacional e do continente americano, destacando a miscigenação como um fator positivo para a formação dos povos colonizados, dando-os um caráter singular. Tristão de Alencar Araripe nasceu em Iço, no estado do Ceará no dia 07 de outubro de 1821 e faleceu no Rio de Janeiro em 04 de julho de 1908, com oitenta e seis anos. Foi Bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo em 1845, chefe de polícia do Espírito Santo (1856) e Presidente do Rio Grande do Sul (1876) e do Pará (1885). Além disso, foi ministro do Supremo Tribunal de Justiça e do Conselho do Imperador nos tempos da Monarquia. Na República, foi Ministro da Fazenda, da Justiça e, dos negócios Interiores no governo do Marechal Deodoro da Fonseca. Pertenceu à Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e foi eleito sócio correspondente do IHGB em 21 de outubro de 1870, passando a honorário em 1888 e a benemérito em 1898285. A trajetória de vida de Araripe merecia, sem dúvidas, um trabalho biográfico mais aprofundado. Por hora, basta sabermos que ele foi um intelectual que viveu e glorificou a Monarquia, mas que instaurada a república assumiu novas posições que dialogavam com as demandas políticas e sociais do contexto histórico em que estava inserido. Resumidamente, o artigo de Araripe trata da formação das colônias na América capitaneadas pelas metrópoles européias, e das suas lutas pela emancipação. O texto possui um total de vinte e quatro páginas e se encontra dividido em onze partes: 1. Países povoados e povoadores; 2. Tendências coloniais; 3. Raças humanas; 4. Sentimento de independência; 5. Movimento patriótico de 1710 em Pernambuco; 6. Tentativa separatista no Peru; 7. Conjuração Mineira; 8. Insurreição das colônias espanholas; 9. Revolução de 1817 em Pernambuco; 10. Independência do Brasil; 11. Epílogo. 284 ARARIPE, Tristão de Alencar. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1893, Tomo LVI, Parte II. 92-115. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993. Op. cit. p.15 285 152 Não cabe na proposta de tal trabalho analisar cada um dos assuntos de que trata o artigo. De uma maneira geral, Tristão de Alencar Araripe demonstra como as circunstâncias dos contextos brasileiros sempre foram direcionadas para o caminho da emancipação política e social, estabelecendo uma comparação entre as colônias espanholas e o Brasil. Seu objetivo principal foi demonstrar como se formulou, cresceu e completou-se o pensamento autônomo das colônias americanas. Para tanto, Araripe formula no decorrer do texto e, mais especificamente na sessão reservadas às “raças humanas”, sua teoria acerca da “evolução racial” da humanidade a partir de propostas que envolveram a idéia de miscigenação. O pressuposto básico que norteia toda a teoria de Araripe é a idéia de que o caminho da unificação racial provém de uma aspiração “divina”. Sendo assim, Deus criou diferentes raças que possuem a finalidade de se misturar formando apenas uma. Essas raças, que por ocasião ainda se encontravam separadas, possuíam iguais direitos e deveres frente ao divido e eram consideradas moralmente equivalentes. As raças hoje parecem-se; são semelhantes; mas não são idênticas, como no futuro serão pela amalgamação de todas elas, que ora só no sentimento moral não se diferenciam, sujeitas às mesmas leis do Supremo Criador, que lhes marcou iguais direitos e deveres de uns para com outros indivíduos 286. O primeiro ponto a ser abordado por Araripe, diz respeito às formulações acerca dos fatores biológicos da formação do indivíduo americano, que através da miscigenação estaria mais perto de um padrão evolutivo “ideal”. Por isto, ele postula uma “lei física” para explicar o movimento migratório, desde a Pré-história até a expansão marítima européia e as instalações de colônias na América. Segundo Araripe, por conta da compressão territorial, a humanidade vem migrando, sempre do leste para o oeste a partir da Ásia, num ciclo determinado que tem por seu fim último unir todas as raças do mundo e promover o aparecimento de uma população mais evoluída. Todo esse movimento tem sido, para assim dizer, um movimento de ocupação, isto é, de apossamento de terras baldias; mas a humanidade tem outro destino a preencher, qual é o da unificação das raças para aperfeiçoamento da espécie 287. 286 287 ARARIPE, Tristão de Alencar. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, Op. cit. p. 92 Idem, p.96 153 Tal movimento de enlace racial, segundo o autor, era sempre contínuo, de maneira a perpetuar a existência da humanidade. As raças, por sua vez, transformavam-se buscando o aprimoramento até a total perfeição. De acordo com Araripe, não existia um tronco comum que tenha dado origem ao homem, este havia se originado a partir de tipos variados para então se converter em um exemplar homogêneo. Partindo desse pressuposto, proveniente das idéias sobre Poligenia, Araripe entendia que os movimentos coloniais eram parte de uma circulação determinada por leis naturais que previam, como que um destino, a unificação de quatro raças: Caucasiana ou branca, preta ou Africana, vermelha ou Americana e amarela ou Mongólica. Para Araripe, as raças não variavam devido às diferenças climáticas como muito se propagou, mas sim pela providência divina. Cabia, portanto, à vontade do criador definir as categorizações e hierarquizações raciais que ainda existiriam enquanto a união dos diversos tipos não fosse concluída. A própria legitimação do movimento colonial denotava uma hierarquização racial dentro do processo miscigenatório. A raça branca, possuidora de uma maior inteligência e capacidade empreendedora tinha em suas mãos a “missão” de expandir as fronteiras e levar a unificação das raças a cabo. De acordo com Araripe, como a raça caucasiana era considerada a mais inteligente e por isso dominadora, ela havia transformado a lei do fluxo populacional de leste para oeste se expandindo em todas as direções. O homem branco era, portanto, o instrumento da operação providencial de amálgama racial. Dessa forma, após o descobrimento da América tal fusão de raças aprimorou-se e acelerou-se. No solo americano a raça branca se misturou com a vermelha e a negra gerando novos tipos. Estes, no entanto, tendim, segundo Araripe, ao embranquecimento e “melhoramento” da cor. (...) a raça branca mesclou-se no solo americano com a raça vermelha, autóctone, e com a raça preta trazida das terras d’África. D’esta mescla ou mestiçagem vieram produtos diversos dos tipos primitivos, e a sucessão de tal mestiçagem entre indivíduos que místicos vai produzindo sempre espécimes novos, melhoram na cor e aptidão, aproximando-se cada vez mais do tipo branco, quando o não embaraça o regresso ao tipo preto ou vermelho originário, e vai predominando o sangue da raça caucasiana 288. A partir de tal passagem percebemos que Araripe se baseava no pressuposto da superioridade branca, ao mesmo tempo em que afirmava que a miscigenação não gerava tipos “degenerados”, pelo contrário, forjava uma população saudável que se tornaria cada vez mais clara. Nesse sentido, olhando para a experiência da sociedade brasileira, Araripe optava por 288 Ibidem. 154 perceber que ao se entrecruzar o tipo branco com o negro ou índio, a tendência genética ia em direção ao clareamento, raramente “retrocedendo na cor”. Se a miscigenação estava produzindo indivíduos mais brancos, segundo Araripe, isso era resultado, também, de uma escolha de parceiros mais claros por parte da população negra ou indígena e repulsa das mulheres brancas em relação ao homem negro. Tal aspecto ficava registrado em suas palavras: “(...) notável a tendência da mulher preta, mulata ou mameluca para o homem branco, quando, aliás, é patente a repulsa da mulher branca contra o homem de cor” 289. A opção pela valorização da mestiçagem, sem descartar a superioridade da raça branca, era uma forma, para muitos intelectuais, não apenas de se adaptar às teorias deterministas biológicas, como também, de promover uma valorização e legitimação do Brasil enquanto nação. Foi assim, que uma imagem do Brasil como um país onde não existiam preconceitos de raça, acabou sendo, aos poucos, construída. Grande parte da intelectualidade brasileira assumiu que o país escapara ao preconceito de cor, justamente pelo fato, inegável, da mistura racial. Logo, as teorias desenvolvidas no Brasil, ao mesmo tempo em que resolviam o problema de inserção da nação em meio aos debates sobre superioridades biológicas e raciais, também acabavam por agregar um aspecto único e favorável da sociedade brasileira, a mestiçagem, garantindo um futuro otimista para a nação. Uma forma comum de assegurar ao Brasil a inexistência de preconceitos de cor era a comparação entre a realidade nacional e os Estados Unidos. Ao trazer à tona a experiência americana de segregação racial, letrados brasileiros galgavam um aspecto próprio e benéfico da miscigenação que confirmava a possibilidade de convívio íntimo entre as diferentes raças, admitindo ao Brasil um status de nação desprovida de preconceitos raciais. Dessa maneira, Araripe atestava que as Américas de um modo geral e, especialmente o Brasil, por conta dos fatores biológicos provenientes da colonização e dos fatores sócio-políticos de sua organização, eram naquele momento exemplos evolutivos a serem seguidos pelo resto do mundo. No Brasil foi o país da América, aonde chegou a fundar-se uma monarquia; e a razão foi que nele existia a escravidão da raça africana, e como esse estado violento significava um privilégio em favor dos escravizadores, a monarquia achou apoio, que, aliás, desapareceu apenas a filantropia dos Brasileiros proclamou a lei da libertação geral, a que logo seguiu-se a proclamação da república; podendo dizer-se com verdade, que o Brasil é hoje nos princípios e na prática da igualdade social o primeiro país do mundo. Nele, não dominam nem privilégios políticos nem privilégio de raça290. 289 290 Ibidem, p. 97 Ibidem, p.114 155 Nesse ponto, apreendemos algumas discussões realizadas no capítulo três desse trabalho que associavam a manutenção do regime político monárquico ao sistema escravista, que uma vez abolido vez surgir a República. Após esse empreendimento o Brasil emergia como o “primeiro país do mundo”, livre tanto na política como nas relações sociais isentas de preconceito racial, graças a micigenação. Vale ressaltar que as teorias que aspiravam ao embranquecimento da população eram formuladas levando em consideração um fator de extrema importância para a sociedade brasileira recém liberta da escravidão: a imigração. A chegada de imigrantes brancos ao Brasil proporcionaria um clareamento mais rápido e eficaz do país. Dessa forma, o incentivo a imigração, principalmente européia, se consolidou em políticas adotadas pelo Estado Nacional. Contudo, a chegada de europeus não conseguia suprir as necessidades de produção de maneira satisfatória. Foi assim, que desde a segunda metade do século XIX o incentivo à adoção de mão de obra chinesa aflorou no país. Podemos perceber, intrinsecamente, como a crença no branqueamento, se fazia presente na proposta de importação de trabalhadores asiáticos 291 . Mas, tal sugestão foi juntamente aclamada e depreciada pela sociedade. Muitos indivíduos viam nos chineses trabalhadores inteligentes e industriosos enquanto outros os chamavam de ignorantes e rebeldes. Tristão de Alencar Araripe em uma continuação do artigo anterior, na publicação Movimento colonial da América. Embaixada e tratado292, retoma ao processo de emancipação da escravidão no Brasil, compreendendo que esta drástica mudança na organização sóciopolítica do país trazia a necessidade de novos elementos para constituírem a realidade social do trabalho, principalmente rural. Araripe, ao fazer referência às circunstâncias históricas da Lei do Ventre Livre descreve a reunião de um congresso de agricultores brasileiros, junto ao governo imperial, cujo objetivo era “preparar os ânimos para a aceitação de trabalhadores chineses no país” 293 . Fazendo referência ao Congresso de agricultores, Araripe concordava que, uma vez colocada em prática a lei do ventre livre, a opção pela imigração asiática era uma das formas de suprir a lacuna deixada pela escravidão negra. 291 As tentativas de trazer trabalhadores chineses para o Brasil fracassaram no período imperial. Foi somente após a proclamação da República, por lei sancionada em 5 de outubro de 1902 que foi permitida a introdução da mão de obra chinesa no Brasil. 292 ARARIPE, Tristão de Alencar. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1893, Tomo LVI, Parte II. 123-124. Tal artigo pode ser interpretado como sendo uma continuação do anterior ainda que publicado em separado da Revista do IHGB. 293 Idem, p.123 156 (...) advertíamos da conveniência de procurarmos a substituição das forças empregadas na nossa produção agrícola, que assim perderia milhares de braços aplicados à cultura de nossas terras. Ocorreu então a idéia de buscarmos na Ásia trabalhadores, que viessem ao nosso país desenvolver a riqueza nacional, baseada principalmente na produção agrícola294. Para Araripe, no entanto, a escolha pela população chinesa não era um mero fator do acaso, e sim fruto de sua essência teórica que previa a miscigenação das raças como um sinal de crescimento evolutivo. Enquanto no Brasil existia a presença forte tanto de indígenas, caucasianos e negros, o último fator inexistente, que completaria seu quadro teórico das “quatro raças”, seria o elemento asiático, que através da substituição da mão de obra escrava, ingressaria de forma massiva no país. O Chinês era, nesse sentido, o quarto elemento que faltava ao Brasil, para que este se tornasse o auge evolutivo da humanidade, cumprindo assim a aspiração providencial que havia esclarecido em algumas páginas anteriores. Em vias de conclusão, podemos afirmar que Tristão de Alencar Araripe possuía suas próprias interpretações a respeito da nação que se formava no contexto inaugurado pela abolição da escravidão e pela instauração da República. Sua tentativa de compreender e procurar delimitar a existência de um povo brasileiro único vai além da simples narração de fatos históricos que amalgamados constroem a imagem do Brasil. O que percebemos foi que Araripe não estava apenas narrando os fatos históricos passados, mas antes, procurando compreender e delimitar o sujeito para o qual a história passava a ser destinada, num momento específico de constituição da nação, do “povo brasileiro” e da disciplina da História no Brasil. Podemos perceber na argumentação de todos os autores até então analisados uma das construções míticas mais importantes do nosso imaginário político e social: o mito das três raças, que por conseqüência sustenta a idéia da democracia racial brasileira. As construções míticas surgem para interpretar determinados acontecimentos sociais. Não são, nem ficção e nem realidade. No caso, o proposto por esses autores foi uma tentativa de vencer o obstáculo de delimitar um “povo brasileiro” que pudesse ser compreendido, tanto no próprio país quanto no exterior, afirmando, ou não, suas potencialidades. O que conseguimos apreender, no entanto, foi que discussões sobre miscigenação, que visavam demarcar o lugar do Brasil no mundo, vinham ocorrendo em conseqüência de uma mudança histórica nacional contemporânea. O que significava afirmar, que para além das discussões estrangeiras sobre 294 Ibidem 157 raça e evolução, esses intelectuais necessitavam descortinar o que acontecia no interior da nação, sem deixar de lado a busca pelo progresso e civilização aos moldes europeus. Demoremos um pouco mais para ponderar a respeito de um artigo, onde podemos verificar a presença de análises etnológicas vindas principalmente dos Estados Unidos, que davam mais importância a questões relativas à cultura do que a princípios biológicos ou raciais na análise das sociedades. Escrito por Antônio Ferreira Pitanga295, O selvagem perante o direito. Aspecto americano da comemoração do centenário296, argumenta sobre a importância dos trabalhos produzidos por outro pesquisador, já falecido, Couto de Magalhães. Para Ferreira Pitanga, as contribuições deste estudioso para as pesquisas relacionadas aos indígenas no Brasil são de suma importância, tanto no que diz respeito aos estudos lingüísticos, quanto à sua produção etnográfica. Em primeiro lugar, Ferreira Pitanga nos fala da importante relação entre etnografia e história. De acordo com o autor, poucos sãos os produtores de conhecimento histórico que consideram os trabalhos etnográficos como relevantes. Assim, chama atenção para o diálogo rarefeito entre os etnógrafos e historiadores. Para explicar esse ponto, o autor exemplifica que os historiadores, mais preocupados com relatos escritos de navegadores advindos de mãos européias e de documentos da época colonial, apenas fazem uso da etnografia quando a necessidade se impõe sobre seu trabalho, relegando a este campo, mais uma instrumentalização para a produção histórica, do que uma esfera autônoma de conhecimento a ser visitada por historiadores. Os historiógrafos, a seu turno, tendo objetivo diverso do etnografista, apenas acidentalmente derivam de sua trajetória normal para essa ramificação científica, que lhe é conexa. (...) Observando de longe, fundando-se nas memórias dos navegadores do período colonial, nas tradições e documentos daquela época, perpassa, apenas pela etnografia quando a isso impelidos pela necessidade histórica 297. 295 Antônio Ferreira de Sousa Pitanga nasceu na Bahia no dia 2 de março de 1850 e faleceu no Rio de Janeiro em 11 de novembro de 1918, aos 68 anos. Bacharel em Direito, foi sucessivamente promotor público em ilhéus (1872-1878) e secretário do governo da província da Paraíba, dentre outros cargos assumidos durante o império. Na República foi Juiz do Tribunal Civil e Criminal e Desembargador da Corte de Apelação, no Rio de Janeiro. Preocupou-se permanentemente com a criação de escolas, gabinetes de leitura, e oficinas onde se preparassem operários. Lutou contra a pena de açoites e o trato desumano nas cadeias das províncias. Membro do Congresso Científico Latino Americano. Entrou para o IHGB no dia 03 de agosto de 1900, como sócio efetivo, chegando a honorário em 1910. Foi 3º vice-presidente e orador do Instituto. Integrou a Comissão de Patrimônio e a Comissão Diretora do Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil, editado pelo Instituto Histórico. Cf. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Op. Cit. Volume 4, p. 136. 296 PITANGA, Antonio Ferreira de Sousa. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1900, Tomo LXIII , Parte I, p. 1938 297 Idem, p. 20 158 Podemos perceber que Ferreira Pitanga, possui alguns objetivos diferentes dos autores até antão retratados. Ao mesmo tempo em que se colocava a favor do resgate de memórias e tradições enquanto historiador se preocupava com os acontecimentos presentes, enquanto etnógrafo. Seu principal objetivo no artigo era discorrer a respeito dos povos e culturas indígenas, desde o movimento colonial, considerado por ele como “escravizador”, até a modernidade, afirmando que a opressão portuguesa ocasionou a diminuição demográfica das populações autóctones levando-as à beira da extinção em fins do século XIX. A admitir-se a decrescente progressão aritmética, no fim do século cujo alvorecer vamos comemorar com este festival patriótico, a raça genuinamente brasileira estará de todo extinta.298 Como grande parte da intelectualidade, Ferreira Pitanga interpretava o indígena como sendo o tipo racial natural brasileiro. Ou seja, a raça verdadeiramente nacional era a indígena e não um povo fruto da mestiçagem. Este texto não fala de miscigenação, mas sim da condição dos índios americanos na sociedade brasileira, que aos poucos, com o advento da modernidade, os exterminava. Tendo em vista essa objetivo, o autor organizou um apanhado a respeito do estado em que se encontravam os índios do Brasil, desde a chegada dos colonizadores, passando pela promulgação da liberdade indígena no século XVIII, e pelas reformas pombalinas, interpretadas por ele como um benefício protetor do povo indígena. No entanto, a opressão sofrida em terras brasileiras encaminhava as populações indígenas a um triste fim. Para salientar estes fatos, o autor não mede críticas aos empreendimentos das bandeiras e do catecismo fanatizador dos jesuítas, julgando ambos como elementos catalisadores da miséria nativa Ferreira Pitanga, preocupado com os acontecimentos presentes, passa para uma explanação acerca das dificuldades sofridas pelos indígenas no que diz respeito à integração dessa população à realidade nacional. Por isso, propõe soluções para esta problemática, como uma legislação que protegesse os direitos ao território indígena e a utilização dos bens provenientes destes, assim como escolas especializadas em ensino de línguas tradicionais. Também chamava atenção para a importância dos nativos como conhecedores do ambiente natural brasileiro, ratificando a importância desses indivíduos para a construção da nação desde a chegada dos europeus. É importante perceber que as problemáticas advindas da participação indígena em projetos nacionais, na virada do século XIX para o XX, inserem-se na própria problemática 298 Ibidem, p. 21 159 abordada por este trabalho, relacionada a uma perspectiva de formação de um “povo brasileiro”. Neste âmbito, Pitanga se contrapõe as idéias de que a colonização pode ser considerada como algo positivo, demonstrando um crescente desprezo pelas ações opressivas dos homens brancos. O mais instigante é que podemos perceber em seu artigo, uma não conectividade com as pressuposições das teorias raciais, perceptíveis em todos os trabalhos aqui analisados. Ao invés de legitimar as teorias provenientes da Europa e dos Estados Unidos de superioridade das raças, que se utilizavam principalmente da antropologia física, Ferreira Pitanga chamava atenção dos seus leitores para os perigos da utilização de “chavões” concernentes à inferioridade étnica dos povos, se aproximando das propostas etnológicas. Assim, advertia que essas pressuposições não passavam de hipóteses e postulava que nenhum atributo era característica particular de qualquer raça, mas sim do meio e da cultura e que, portanto, a inferioridade indígena ganharia os contornos de mito. Objetar-nos-ão com o chavão de sua inferioridade étnica; esse, porém, é, até hoje, cientificamente uma hipótese; as observações antropométricas não tiveram ainda consagração científica para servir de base a uma classificação rigorosa das superioridades etnológicas. A compleição mongólica não impediu que os Japoneses estejam demonstrando em nosso século aos ortodoxos da antropologia craneometrica que a superioridade intelectual não é partilha exclusiva de qualquer raça, mas o resultado do meio e da cultura.299 No interior dos Institutos Históricos se travou um acirrado debate historiográfico relativo à temática indígena. Esses argumentavam sobre a viabilidade da nacionalidade brasileira ser representada pelo índio americano. Ou seja, a reflexão em torno da “questão indígena” compunha parte substancial da discussão sobre a questão nacional. Apreendemos uma percepção contrária quando tratamos das questões referentes ao negro no Brasil. Podemos apontar para a quase inexistência de publicações preocupadas com a integração do negro liberto no momento do pós-abolição. O indígena, apesar de ser também considerado bárbaro e atrasado pela intelectualidade foi retratado com maior intensidade pela historiografia na narrativa da construção da nação. Além disso, através da exposição de Ferreira Pitanga, verificamos uma preocupação não só do ponto de vista histórico como também em relação ao presente do indígena e sua inclusão na sociedade brasileira. Todavia, nenhuma proposta deste tipo foi formulada em relação aos negros nas páginas das revistas dos institutos, denotando um silenciamento em relação aos destinos dos libertos pelo 13 de maio. 299 Ibidem, p. 33 160 Se a História tinha como objetivo incitar o sentimento de amor à pátria, ao mesmo tempo em que influenciava o processo de instrumentalização do presente e servia como uma mestra do futuro300, para aqueles responsáveis por escrever a história do Brasil, a abolição e a república passavam a ser parte de um projeto de civilização e progresso natural, e infalível, que permitia a compreensão da nação. Coerentemente, o novo “contrato” entre historiador e povo, trouxe a tona questões acerca da formação étnica brasileira, embasadas em teorias raciais301. Com a instituição escravista extinta, o que fazer com as novas classificações sociais, que inseriram “não cidadãos” até então qualificados como escravos, ingênuos, libertos, tutelados, desordeiros e vadios nesse novo universo302? Dessa forma, questões sobre raça se tornaram candentes após a abolição e no início do período republicano. Foi assim, que inúmeros pensadores brasileiros procuraram inserir o mestiço nas teorias deterministas importadas do continente europeu. 4.4 Pensando uma nacionalidade á brasileira Não seria exagero afirmar que as teorias raciais propuseram uma releitura da história dos povos. No caso brasileiro, essas novas idéias adentraram mais firmemente em um contexto de decomposição do sistema escravista e, posteriormente, da própria Monarquia. Tais fatos confundiram ainda mais os indivíduos eleitos para escrever a história da nação, pois, além de lidar com a realidade que se transformava, necessitavam enfrentar as dificuldades e achar os expedientes necessários para o racismo advindo de tais teorias e de seus próprios preconceitos. A atividade de construir uma história do país necessitou, portanto, contar com a presença do mestiço e do negro na sociedade. O lugar resguardado a esses indivíduos era ainda indefinido. Se já era difícil ao Brasil, em vista de mais de trezentos anos de escravidão, ultrapassar algumas barreiras dos preconceitos cristalizados e legitimar a existência de um povo mestiço que não fosse sinônimo de degenerado, com o fim do sistema escravista, esse caso tornou-se ainda mais delicado, uma vez que a sociedade passou a ser constituída por “cidadãos” juridicamente livres. Ao mesmo tempo, e enganosamente de maneira paradoxal, apenas o fim da escravidão permitiu que tais discussões em torno da raça 300 TURIN, Rodrigo. Uma nobre difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista em História da historiografia, n. 2, 2009 301 SCHWARCZ, Lília. Op. cit. 302 Sobre a conquista da cidadania de negros livres ou libertos cf. GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. 2007. 161 fossem trazidas e renovadas no Brasil, pois só após a emancipação total dos escravos, o país tornava-se apto a adentrar nos modelos de civilização e progresso que lhe permitia um dialogo com o mundo ocidental europeu e norte americano. No entanto, muitas das perguntas que orientaram este trabalho ainda necessitam de respostas. Na verdade, contraditoriamente, nos parece que as respostas encontradas suscitaram ainda mais perguntas. Quem eram esses cidadãos fundadores de uma nova nação republicana para esses intelectuais dos Institutos Históricos que estavam escrevendo a história da formação da nação brasileira? E mais importante, onde se localizava o negro nesse quadro geral de formação da nação nos inscritos dessas agremiações? A questão da abolição gerou alguns artigos nas revistas dos institutos a respeito da própria instituição escravista, das leis de libertação e posteriormente sobre a formação do “povo brasileiro”, porém em quais termos esses negros, cativos ou libertos, foram resgatados por esses intelectuais que conformavam e delimitavam o campo da História e da História do Brasil? O que era entendido por cidadania por aqueles “cidadãos-intelectuais” que participavam e escreviam sobre tal assunto? Quem eram os “eleitos” para se pensar a formação de um “povo brasileiro” pelos autores que nessas associações escreviam? Perceber uma ausência do negro enquanto cativo ou liberto nos artigos publicados nas revistas dos Institutos Históricos não foi tarefa de todo dificultosa, bastou adentrar nas fontes pra notar o imperioso silenciamento. Somente através da formulação das teorias raciais que procuravam a legitimação do tipo mestiço encontramos os esboços sobre a forma como o negro passou a ser representado, não ultrapassando a barreira da miscigenação. Era como apontado por Lília Schwarcz303, como se a libertação já bastasse, já pontuasse a sua posição jurídica de pertencimento à sociedade brasileira. Contudo, em nossa opinião, a empreitada mais interessante, foi tentar compreender o porquê de tal silenciamento a partir do modelo de história elaborado por esses homens de ciências e letras, resgatando a abolição e o processo de instauração da República como de grande importância para essa compreensão. Possuir uma tradição era absolutamente indispensável para se fazer a história da nação. “Sem a tradição não se formam as nacionalidades nem se desenvolve o patriotismo” 304 . A tradição era, nas palavras de João Moraes305, sócio do Instituto Histórico e Geográfico 303 SCHWARCZ. Lilian Op. cit MORAES, João Batista de. Revista do IHGSP, São Paulo, Op cit. p.27 305 João Batista de Moraes nasceu no Rio de janeiro no dia primeiro de novembro de 1847, formando-se em Direito pela Faculdade de São Paulo em 1868. Ingressando na política, foi deputado provincial em três legislaturas. Na república lavrou, como Secretário, a ata da Assembléia reunida do teatro S. José. Em 1891, como deputado constituindo, tomou parte na elaboração das leis orgânicas de São Paulo. Afastou-se da política e tornou-se fazendeiro em Mohi-Guaçú e Pirassununga. Retornou ao Rio de Janeiro onde ocupou o cargo de 304 162 de São Paulo, a “Memória da Humanidade, sem Ela não se poderá reproduzir os períodos históricos, nem descrever o espírito e a vida moral e intelectual dos povos” 306. Na realidade, o grande desafio desses intelectuais que escreviam nas páginas das revistas dos Institutos Históricos era resgatar uma tradição em que o mestiço e mais especificamente o negro estivesse presente, sem, no entanto retratar um passado escravista recente e, portanto, incivilizado. Desde a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, ficava claro que a escrita de uma história nacional implicaria também a atribuição de um lugar aos indígenas que então ocupavam o território brasileiro. A interrogação sobre sua origem e os debates sobre sua catequização traduziam as preocupações dos sócios do IHGB, como visto no artigo de Ferreira Pitanga, em atribuir aos indígenas tanto um passado quanto um futuro, ou seja, uma tradição que lhes possibilitasse sua inclusão na história nacional307. A investigação da história indígena, assim como a definição de sua historicidade demonstrava que uma tradição do índio brasileiro poderia e deveria ser resgatada nas páginas das revistas dos institutos históricos. Claro, que a maneira como essa historiografia problematizou as questões relativas aos índios americanos e os retratou de forma pejorativa suscitou e ainda provoca levantamentos historiográficos308. No entanto, de maneira geral, para além da participação do índio como parte integrante e vantajosa no processo de miscigenação, lhe era concedido outro espaço, que de fato resgatava a memória das populações nativas e suas histórias, ao mesmo tempo em que eram reproduzidas preocupações com o estado presente deste indivíduo e de sua população. Afinal o apreço pelo passado nacional era a demonstração indiscutível da civilização de um país. Aos moldes dos intelectuais-historiadores do final do século XIX, que aqui estamos tratando, só um povo que preza pelo seu passado, pela história pátria, é um povo civilizado. E porque não afirmar que o nativo, original das terras americanas era o principal representante da nação? Como vimos essa retórica foi utilizada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, bem como em outras agremiações, constatando Massas Falidas. Pertenceu ao IHGSP, à Real Sociedade Geográfica de Lisboa e outras instituições culturais. Em 1909 ingressou, também, no IHGB como sócio correspondente. Colaborou no Jornal S. Paulo, no qual publicou Reminiscências históricas sob o pseudônimo de Erasmo. Faleceu em 29 de janeiro de 1911. Cf. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Op. Cit. Volume 4. p. 13 306 MORAES, João Batista de. Revista do IHGSP, São Paulo, Op. cit. p. 44 307 TURIN, Rodrigo, « Os antigos e a nação: algumas reflexões sobre os usos da antiguidade clássica no IHGB (1840-1860) », L’Atelier du Centre de recherches historiques [En ligne], 07 | 2011, mis en ligne le 17 avril 2011, consulté le 31 mars 2013. URL : http://acrh.revues.org/3748 ; DOI : 10.4000/acrh.3748. 308 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Comunidades indígenas e Estado nacional: histórias, memórias e identidades em construção (Rio de Janeiro e México – séculos XVIII e XIX). In: ABREU, Marta; GONTIJO, Rebeca; SOIHET, Rachel (orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 163 que cabia ao indígena, ainda que de maneira pejorativa, um lugar na tradição do país e, portanto, na sua história. “A guiarmo-nos pelos ensinamentos da História, o progresso da humanidade é uma função da raça.” 309, afirmava Theodoro Sampaio nas páginas da revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Como demonstrado na análise das fontes, apreender que raça era essa para o caso brasileiro não era matéria simples. Várias identidades regionais partilharam das mesmas ansiedades e questionamentos em torno das teorias raciais estrangeiras e das formas como seriam empregadas no Brasil, repletas de preconceitos. Assim, surgiram propostas de formação de um povo brasileiro multirracial, este sim, de certa forma, digno de ser estudado. Como apreendido anteriormente, não foram raras as propostas e tentativas de delimitar a nacionalidade brasileira a partir da miscigenação, trazendo para a ordem do dia o mestiço enquanto tipo racial unicamente nacional. Propostas de resgate das tradições desse mestiço no passado da nação, também puderam ser percebidas. O tipo miscigenado era, em diversos escritos, o formador do povo, desde os seus primórdios, ainda que não fosse o ideal a ser apresentado no exterior como exemplo de civilização e progresso. Logo, este tipo miscigenado que tinha sua função na história da nação estava destinado ao embranquecimento, garantindo um futuro otimista para as discussões sobre raça no Brasil. No entanto, não conseguimos em nenhum momento perceber por parte destes homens de ciências e letras a preocupação em inserir o negro, recém-liberto, nas discussões que atravessavam a sociedade brasileira. Sem esgotar as possibilidades de respostas, propomos que uma tradição do negro não poderia, naquele contexto, ser resgatada e, portanto sua história estava impossibilitada de ser narrada. É claro, que o preconceito da origem racial desses indivíduos era marcado por uma sutil e poderosa memória social impregnada do imaginário, ainda patriarcal e escravista, o que correlacionava a imagem do negro a do africano, bárbaro e incivilizado, trazido ao Brasil pelo tráfico atlântico. Essas discussões a respeito da inserção da população africana no Brasil como causadora dos males nacionais e responsável pelo não progresso da nação já ocorria desde as propostas pelo fim do tráfico de escravos com o tratado de 1826 e a conseqüente lei de 1831. Tais contendas permaneceram na sociedade brasileira que assimilava a imagem do negro à barbárie africana, o que tornava improvável, um resgate da memória desses homens na construção da nação. Mas era somente isso que legitimava o silenciamento do negro na escrita da história do Brasil? 309 SAMPAIO, Theodoro. Revista do IHGSP, São Paulo, Op. cit. p. 99 164 Nas páginas do Instituto Histórico de São Paulo, Eduardo Prado310, afirma que o Brasil tem um “inconsciente desprendimento da tradição” 311 . Se apenas um povo que prezava por sua história pátria era considerado civilizado e, se a história enquanto narrativa do passado necessitava de uma tradição que desse conta da idéia desse povo brasileiro, como então elaborar uma história nacional aos moldes de um país em crescente progresso e civilização que inserisse o negro em suas narrativas? O negro não podia existir na tradição, ou melhor, fora das fronteiras da miscigenação nas narrativas do passado e nas preocupações com o presente e o futuro, justamente porque avivar uma memória desse negro significava aludir à história recente do passado escravista brasileiro. Este passado escravista não podia ser resgatado, uma vez que deixava de ser fonte de autoridade para o presente. Se o passado, por excelência, dava autoridade para um país ser considerado civilizado, o que acontece quando ocorre a perda da capacidade do passado em oferecer lições ao presente? Nesse contexto apreendemos o axioma de afastar a escravidão da construção de uma memória viva para o país em formação e, portanto afastar a história do negro no Brasil. De maneira resumida, o que entendemos é que uma tradição do índio pôde ser resgatada, portanto seu passado legitimava a introdução dos nativos na história nacional. O mesmo vinha ocorrendo em relação ao mestiço, para o qual, cada vez mais se forjava uma tradição na tentativa de compreender por quem era formado o povo brasileiro. Todavia, ao negro era legado o “não lugar” 312 , pois não se podia resgatar uma tradição do negro que o separasse do passado escravista que deveria ser lançado ao mais profundo esquecimento313. Relembrar a recente escravidão era o mesmo que atestar que o país não poderia ascender aos modelos de modernidade. Portanto, para além dos preconceitos raciais que silenciavam a presença do negro nas narrativas históricas, outro aspecto, talvez tão importante quanto, seja procurar entender de que maneira essa história era construída e pensada por esses homens de 310 Eduardo Paulo da Silva Prado nasceu em São Paulo no dia 27 de fevereiro de 1860, filho de tradicional família paulista. Formou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo e desde os tempos de estudante praticava o jornalismo, colaborando no “Correio Paulistano” com artigos de críticas literárias e política internacional. Foi adido de legação em Londres, viajando por muitos lugares e relacionando-se com intelectuais consagrados. Em Paris entrou em contato com o barão do Rio Branco, com quem colaborou na organização de Le Brésil en 1889, obra preparada para exposição Internacional realizada em Paris. Na Revista de Portugal publicou uma série de artigos, sob o pseudônimo de Frederigo de S. tais artigos integrariam mais tarde seu famoso livro, Fastos da ditadura militar no Brasil. Foi um Monarquista e em seu livro A ilusão americana combatia a política externa dos Estados Unidos. Seu livro foi confiscado pelo governo e Eduardo prado, perseguido pela polícia, acabou por exilar-se. Além de sócio do IHGSP, foi fundador da ABL (Cadeira nº 40, cujo patrono é o visconde do Rio Branco). Em 1889, foi eleito sócio correspondente do IHGB. Faleceu em São Paulo em 30 de julho de 1901. 311 PRADO, Eduardo Paulo da Silva. Revista do IHGSP, São Paulo, 1896, Volume III, p. 523-534. p. 527 312 SCHWARCZ, Lília. Dos males da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira. In GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. 2007. 313 GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Op. Cit. 165 ciências e letras e como as noções de progresso e civilização os influenciavam e os mantinham prisioneiros dos fatos selecionados para a montagem da história nacional. Ao negro coube algum lugar nas teorias sobre mestiçagem e nada mais. De todo modo, a elaboração de uma escrita moderna da história nacional não deixava de coexistir e de confrontar-se, de diferentes formas e com sentidos diversos, porque ainda se encontrava em um processo de construção314. Avivar a memória do povo, a partir de grandes feitos individuais continuava nas pastas do fazer história de acordo com os Institutos Históricos. Contudo, a abolição da escravidão e a República inauguraram novas formas não só de elaboração das narrativas históricas, como da própria percepção de indivíduo, nacionalidade, cidadania e povo brasileiro, sendo necessário ressaltar, que as próprias noções de povo brasileiro e cidadania, encontravam-se muito mais no campo subjetivo, sem uma delimitação mais concisa dos elementos que na realidade as constituíam. Nesse sentido, este capítulo procurou mapear as formas como as teorias raciais foram empregadas no contexto nacional e nele, não apenas reinterpretadas como transformadas. Mostrando a necessidade e a urgência dos homens encarregados de resgatar o passado da nação e de escrever a história do país, de lidar com uma sociedade multirracial. 314 TURIN, Rodrigo, Uma nobre difícil e útil empresa... Op. cit. 166 CONSIDERAÇÕES FINAIS A prática de construção e reconstrução da memória coletiva é sempre utilizada na montagem de narrativas sobre a história e a identidade de um povo. Portanto, a memória atua como fonte de manipulação do poder. No final do século XIX no Brasil uma elite intelectual, majoritariamente branca, se responsabilizou em construir as narrativas históricas da nação forjando um passado de tradição para o país. As idéias ilustradas que defendiam noções de liberdade e igualdade, mas que comumente assumiam tons de racismo quando tratavam das Américas, apresentaram para a intelectualidade o desafio de valorizar o espaço brasileiro e suas origens. Ao recém formado Estado nacional cabia elaborar uma nova identidade que o diferenciasse dos estados europeus, recriando ou inventando fatos no passado que permitisse o delineamento de aspectos constitutivos de um pretenso povo. Era preciso ainda incorporar à nova identidade os diferentes grupos étnicos que coexistiam no interior do território nacional. Portanto, nosso objetivo se constituiu em investigar as práticas de construção e desconstrução das memórias dos negros na elaboração dos discursos históricos, refletindo sobre o lugar desses indivíduos na história nacional. Em meio às tensões sobre a composição da identidade cultural brasileira, permeada por conflitos, reais e simbólicos, o campo historiográfico constituiu-se em um importante palco de batalhas no final do século XIX. As publicações variaram entre a condenação plena aos tipos raciais não-brancos, dentre os quais o mulato, e a valorização do mestiçamento como forma otimista de definir a identidade do povo brasileiro. Sabemos que os intelectuais presentes nos Institutos Históricos expunham em suas atividades profissionais atitudes visivelmente políticas. Ao selecionarem determinados aspectos narrativos e não outros perpetuavam as marcas que eles consideravam interessantes para a composição da nacionalidade, em um claro processo de construção da memória coletiva. Se o pensamento intelectual brasileiro, de fato estava voltado para o mundo europeu e norte americano, em vista do projeto civilizatório encetado por essas nações, sabemos também que motivações internas guiaram o modo de ver desses homens. Ao lado das teorias européias racistas existiram, no final do século XIX, divergências quanto à avaliação do resultado da miscigenação, nem sempre tão condenada. Junto a essas perspectivas positivas de interpretar o enlace racial, a própria noção de branqueamento, todavia, demonstrava a perpetuação de uma visão preconceituosa. As múltiplas teorias que lidavam com a mestiçagem enquanto realidade social, precisavam conviver com o paradoxo de almejar uma 167 população branca para o país, e do mesmo modo, garantir a especificidade nacional no tipo misturado. Para além dessas contendas, fica claro que a intelectualidade começava a avaliar tanto a presença indígena, quanto a presença negra na história do país, principalmente via miscigenação. Pretendemos demonstrar que a intelectualidade brasileira que escrevia, vias Institutos Históricos, criou espaços narrativos que reconheciam a presença do negro no projeto de nação. Ao lado das teorias estrangeiras, a intelectualidade nacional soube repensar os espaços de experiências da sociedade brasileira, francamente miscigenada, e adaptar as informações sobre miscigenação, resgatando aspectos positivos desse processo. Como constatado, a miscigenação fornecia uma solução paradoxal para a sociedade, pois representava, de uma só vez, a qualidade e os males do povo brasileiro. Percebemos objetivos claros de alguns intelectuais em investir na complicada solução de uma versão mestiça da nacionalidade brasileira. Os processos de abolição da escravidão e de estabelecimento da República provocaram uma espécie de urgência em lidar com a população negra e seus descendentes, pois era preciso incorporá-los a vida e a identidade nacional. Nesse sentido, o único caminho viável era reconhecer socialmente o negro como fator componente da nacionalidade brasileira, ao lado do branco e do indígena, ainda que majoritariamente via mestiçamento, pelo cruzamento das três raças. É bem verdade, contudo, que ao indígena coube maior espaço na historiografia, principalmente como possuidor dos traços culturais originais do tipo brasileiro. O negro era, quase sempre, lembrado como elemento secundário do enlace racial315. A questão da mestiçagem cultural não deve ser encarada como um fenômeno homogêneo, as possibilidades de combinações e escolhas sobre quem e o que valorizar eram inúmeras. Ao trabalharmos com historiadores dos Institutos Históricos, na última década do século XIX, encontramos versões otimistas da especificidade nacional interpretada como a miscigenação, ao lado de percepções pejorativas a respeito da mistura racial. Em seus registros, no entanto, não se localizam apontamentos sobre as condições sociais em que o negro se encontrava. Da mesma forma, verificamos uma inexpressiva produção a respeito do negro enquanto componente da nacionalidade fora do lugar da miscigenação. Obviamente os tipos raciais não-brancos dificilmente tornar-se-iam símbolos nacionais, tendo em vista as discriminações e as ameaças que esses homens significavam ao desenvolvimento da 315 ABREU, Marta; DANTAS, Carolina Vianna. “Música popular, folclore e nação no Brasil, 1890-1920. in: CARVALHO, José Murilo de. Nação e cidadania no Império do Brasil: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2004 168 modernidade no país. Os negros, e mesmo os indígenas, naturalmente não preenchiam os requisitos necessários pela intelectualidade brasileira e estrangeira para compor uma identidade coletiva centrada em suas imagens. Como, então, inserir indivíduos considerados inferiores no discurso político e ideológico na narrativa histórica da nação? Nesse sentido, mais uma vez a mestiçagem fornecia a alternativa pra inserir esses homens na história do país. Portanto, a definição do nacional era, obviamente, mais mestiça do que negra ou indígena316. Notamos publicações que acentuavam a formação de um tipo racial específico a partir da miscigenação, como no caso do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e no Arqueológico pernambucano. Nesses momentos, as três raças fundiam-se e harmonizavam-se, fazendo desaparecer qualquer conflito. A partir dessas pressuposições, mostramos que o recurso ao “mito das três raças” foi recorrente desde o final do século XIX entre os intelectuais brasileiros. Essa construção simbólica poderosa acabou por perpetuar a noção de inexistência de tensões raciais no Brasil. Esse tipo de pensamento foi reproduzido pelos homens de letras dos Institutos Históricos em comparações entre o estado brasileiro de igualdade social e o Norte Americano de segregação racial. Se o Brasil, antes da abolição da escravatura se encontrava atrasado na corrida em direção a modernidade, após a emancipação e a chegada da República, ele havia passado a frente dos demais, e a escravidão, antes mácula da nação, entrou para o hall do esquecimento da historia nacional. Não nos interessa apenas apontar que as discussões que associavam nação e mestiçagem já vinham ocorrendo no Brasil antes da clássica obra de Gilberto Freire, nem afirmar que esses autores do final do século XIX defendiam pontos relativamente iguais aqueles que, décadas depois, estarão presentes em Casa Grande e Senzala. Nossa intenção foi problematizar e historicizar um debate intelectual que consagrou a mestiçagem como chave de leitura para o entendimento da nação. Os círculos intelectuais brasileiros ofereceram um caminho ao debate sobre os negros, justamente em um momento decisivo de demarcação de direitos políticos do novo regime republicano e, portanto, da própria definição dos critérios de cidadania. Cabia a intelectualidade nacional redefinir os critérios avaliativos de seleção da memória e demarcar um lugar para o negro na narrativa histórica do país. A abolição da escravidão e a proclamação da República inauguraram novos espaços de experiências sociais que contavam com a presença de indivíduos juridicamente iguais. A antiga demarcação entre escravos e cidadão, já não respondia as exigências da sociedade, que desde a década de 1880 316 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Comunidades indígenas e Estado nacional: histórias, memórias e identidades em construção (Rio de Janeiro e México – séculos XVIII e XIX). In: ABREU, Marta; GONTIJO, Rebeca; SOIHET, Rachel (orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 169 vinha adquirindo nova complexidade. Ao raiar os primeiros anos do novo regime político era imperativo que a delimitação do povo brasileiro se tornasse mais concisa e menos retórica. Os Institutos Históricos possuíram papel fundamental nesse processo pelo menos até a década de 1930, quando foram perdendo espaço para novas instituições de saber, principalmente as universidades. Sabemos que o Estado Novo e seus ideólogos trouxeram para si os méritos de criação de uma nacionalidade baseada no mestiçamento racial de índios, negros e brancos, unificando noções políticas e culturais em torno da idéia de um povo mestiço. Nesse sentido, o governo Vargas passou a representar um momento de ruptura com o passado cultural brasileiro através da música, do carnaval ou das manifestações folclóricas. A Primeira República foi menosprezada pelos historiadores que buscaram entender a formação da nacionalidade brasileira e as tensões sociais e culturais que esse empreendimento representou. Sendo assim, o trabalho proposto, buscou afirmar o contexto histórico dos primeiros anos republicanos no Brasil como de intensa importância para se pensar a formação do povo brasileiro. 170 BIBLIOGRAFIA E FONTES FONTES IMPRESSAS Revista IHGB Tomo LXIII – Parte I (1º e 2º trimestres) – 1900 Tomo LXIII – Parte II (3º e 4º trimestres) – 1900 Tomo LXII – Parte I (1º e 2º trimestres) – 1899 Tomo LXII – Parte II (3º e 4º trimestres) – 1899 Tomo LXI Parte I (1º e 2º trimestres) – 1898 Tomo LXI Parte II (3º e 4º trimestres) – 1898 Tomo LX Parte I (1º e 2º semestres) – 1897 Tomo LX Parte II (3º e 4º semestres) – 1897 Tomo LIX Parte I (1º e 2º semestres) – 1896 Tomo LIX Parte II (3º e 4º semestres) – 1896 Tomo LVIII Parte I (1º e 2º semestres) – 1895 Tomo LVIII Parte II (3º e 4º semestres) – 1895 Tomo LVII Parte I (1º e 2º semestres) – 1894 Tomo LVII Parte II (3º e 4º semestres) – 1894 Tomo LVI Parte I (1º e 2º semestres) – 1893 Tomo LVI Parte II (3º e 4º semestres) – 1893 Tomo LV Parte I (1º e 2º semestres) – 1892 Tomo LV Parte II (3º e 4º semestres) – 1892 Tomo LIV Parte I (1º e 2º semestres) – 1891 Tomo LIV Parte II (3º e 4º semestres) – 1891 Tomo LIII Parte I (1º e 2º semestres) – 1890 Tomo LIII Parte II (3º e 4º semestres) – 1890 Tomo LII Parte I (1º e 2º semestres) – 1889 Tomo LII Parte II (3º e 4º semestres) – 1889 Tomo LI - 1º folheto de 1888 (1º e 2º semestres) Tomo LII Parte II (3º e 4º semestres) – 1888 171 Revista do IHGAP Exemplar Nº 35 (1888) Exemplar Nº 36 (1890) Exemplar Nº 37(1890) Exemplar Nº 38 (1890) Exemplar Nº 39 (1891). Exemplar Nº 40 (1891). Exemplar Nº 41 (1891) Exemplar Nº 42 (1891). Exemplar Nº43 (1893) Exemplar Nº44 (1893) Exemplar Nº45 (1894) Exemplar Nº46 (1894) Exemplar Nº47 (1895) Exemplar Nº48 (1896) Exemplar Nº49 (1896) Exemplar Nº50 (1897) Exemplar Nº51 (1900) Exemplar Nº52 (1900) Exemplar Nº53 (1900) Revista do IHGAC Tomo II (1888) Tomo III (1889) Tomo VI (1892) Tomo VIII (1894) Tomo XI (1898) Tomo XII (1899) Tomo XIII (1900) Tomo XVI (1901) 172 Revista do IHGSP Volume I Volume II Volume III Volume IV Volume V Volume VI OBRAS DE REFERÊNCIA IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 4, Rio de Janeiro: 1993. IHGB, Dicionário bibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Vol. 3, Rio de Janeiro: 1993. FLEIUSS, Max, O Instituto Histórico através de sua revista. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1938. LIVROS E ARTIGOS ABREU, Marta; DANTAS, Carolina Vianna. “Música popular, folclore e nação no Brasil, 1890-1920. in: CARVALHO, José Murilo de. Nação e cidadania no Império do Brasil: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2004 ABREU, Marta; GONTIJO, Rebeca; SOIHET, Rachel (orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação; abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Comunidades indígenas e Estado nacional: histórias, memórias e identidades em construção (Rio de Janeiro e México – séculos XVIII e XIX). In: ANDERSON, Benedict R, Comunidades imaginadas: reflexão sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2008. ARÓSTEGUI, Júlio. O processo Metodológico e a Documentação Histórica in: A pesquisa Histórica: teoria e método. EDUSC. 1995. AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. São Paulo: Annablume. 1987 173 BADINTER, E. As paixões intelectuais: desejo e glória (1735-1751). Rio de Janeiro, RJ. Civilização brasileira. V.1, 2007. BARROS, José D’Assunção. História Comparada: um novo modo de ver e fazer a história. Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.1-30, jun.2007 BERLIN, Ira. De crioulo a africano: as origens atlânticas da sociedade afro-americana na América Norte Continental. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 26, nº 2, 2004, pp. 241-256. BERSTEIN, Serge. A cultura política. IN: RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François. Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. BERSTEIN, Serge. Culturas Políticas e Historiografia. In: AZEVEDO, Cecília et al. Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009. CARVALHO, José Murilo de e NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Repensando o Brasil do oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ________________________. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. ________________________. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi, Rio de Janeiro, nº 1 pp.123-152 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo, Companhia das Letras, 2011. __________________. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 __________________. Medo branco das almas negras: escravos, libertos e republicanos na cidade do Rio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.8, n. 16, p. 83-105, mar./ ago. 1988. __________________. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 __________________. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das letras, 1996. CORRÊA, Darcísio. A construção da cidadania. Ijuí: Unijuí. 1999. CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista, Editora da Universidade São Francisco, 2001. 174 CUPELLO, Rafael. O poder e a lei: o jogo politico no processo de elaboração da "lei para inglês ver" (1826-1831). Dissertação de Mestrado em Historia. Niterói: UFF/PPGH, 2013. DA MATTA, Roberto. Relativizando – Uma introdução à antropologia social, Rio de Janeiro: Rocco, 2000. DARNTON, R. O iluminismo como negócio: história da publicação da ‘Enciclopédia’ 17751800. Companhia das Letras. FLAIRCLOUGH, Normam. Discurso e Mudança Social. Brasília: Ed. UNB, 2001. FONER, Eric. Nada Além da Liberdade: A emancipação e seu Legado. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília, CNPQ, 1988. FRAGA FILHO, Walter. O 13 de maio e as celebrações da liberdade, Bahia, 188-1893, in História Social; Revista de pós-graduandos da UNICAMP, nº 19. 2010, pp. 63-90. FERES, João (org.). Léxico da História dos Conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 30 ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Record, 2002. GOMES, Ângela de Castro. A república, a história e o IHGB. Editora Argvmentvm, Belo Horizonte, 2009. _______________________. Cidadania e direitos do trabalho. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2002. _______________________. História, historiografia e culturas políticas no Brasil: algumas reflexões. In SOIHET, Rachel, BICALHO, M.F.B. & GOUVÊA, M. F. S. (orgs.). Culturas Políticas – ensaios de História Cultural, História Política e Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad/ FAPERJ, 2005. P.21-44. ________________________; ABREU, Martha. A nova “Velha” República um pouco de história e historiografia. in: Tempo Nº 26 Vol. 13 - Jan. 2009 ________________________. História, historiografia e culturas políticas no Brasil: algumas reflexões. In SOIHET, Rachel, BICALHO, M.F.B. & GOUVÊA, M. F. S. (orgs.). Culturas Políticas – ensaios de História Cultural, História Política e Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad/ FAPERJ, 2005.p.21-44. GOMES, Flávio dos Santos; DOMINGUES, Petrônio. Experiências da emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980). São Paulo: Selo Negro, 2011. ________________________. No meio das águas turvas – racismo e cidadania no alvorecer da República: a Guarda Negra na Corte Imperial (1888-1889), in Estudos Afro-Asiáticos, nº21, dez./ 1991, pp.75-96. 175 ________________________. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. 2007. ________________________. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Editora UNESP, 2007. GRINBERG, Keila. Liberata – a lei da ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. GUIMARÃES, Lucia Paschoal. Da escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e geográfico Brasileiro (1889-1938). Museu da República, Rio de Janeiro, 2006. GUIMARÃES, Lucia Paschoal. Debaixo da imediata proteção de sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e geográfico Brasileiro (1838-1889). Revista do IHGB, Rio de Janeiro, n. 388, pp. 437-506, 1995. HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. São Paulo: Paz e Terra, 2013; ____________; RANGER, Terence. A Invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2012 HOLLANDA, Cristina Buarque. Modos de representação política: o experimento da Primeira República brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. JESUS, Ronaldo P. de, As visões da Monarquia: escravos, operários e abolicionismo na Corte. Belo Horizonte: Editora Argumentum, 2009. KOCKA, Jürgen. Comparison and beyond. History and Theory. Fev. 2003. p. 39-44. KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Editora; Editora PUC Rio, 2006. LESSA, Renato. A invenção republicana: Campos Sales, as Bases e a decadência da Primeira República brasileira. Rio de Janeiro: Editora IUPERJ/ Vértice, 1988. LEONZO, Nanci. Um reduto intelectual na sua intimidade: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Relações humanas. São Bernardo do Campo (SP), p.41-51,1987. LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. Rio de Janeiro: Editora, 1998. LOFTUS, E. Memory. Surprising New Insights into How we Remember and Why we Forget. Massachusetts: Addison-Wesley, 1980. MAIER, Charles. S. La Historia Comparada. Studia Histórica-Historia Contemporânea, Vol. X-XI. 1993. pp. 11-32. MAHL, Marcelo Lapuente. Teorias raciais e interpretação histórica: o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (1894-1940). Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista. Assis, 2001. MARCOS, Fernando Sánchez, Cultura Histórica. Cultura Histórica, 2009 176 MARSHALL, T. H.. Cidadania, classe social e Status. ZAHAR EDITORES, Rio de Janeiro, 1967. MARTINS, Maria Fernanda Viera. A velha arte de governar: Um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889) . Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007 MATRIZ, Silvana Fernandes. Disputas discursivas ou alquimias identitárias? Identidades em trânsito no Ceará pós-Durban. Cadernos do CEOM - Ano 24, n. 35 - Identidades MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista: Brasil século XIX. 2ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. ___________________. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico, Rio de Janeiro, 2004. MATTOS, Ilmar. O tempo Saquarema. São Paulo: Editora HUCITEC, 2004. MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida: cultura democrática e científica do final do Império. Rio de Janeiro: Editora FGV; Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2007 MENESCAL, Ana Alice Miranda, A História trazia à luz: o instituto do Ceará e as análises acerca dos povos indígenas. Campina Grande, Ano III, vol. 1, nº 4, 2012 MENESCAL, Ana Alice Miranda, Comemorações, memórias e documentos: uma hermenêutica da ideologia nacionalista na Revista do Instituto do Ceará do ano de 1903. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, vol. 4, nº7, 2012 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Cultura política e lugares de memória. P. 447. In: AZEVEDO, Cecília et al. Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009. _____________________________. A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, S.Paulo, n.34, p.9-23, 1992. MINTZ, Sidney & PRICE, Richard. O nascimento da cultura Afro-americana. Uma perspectiva antropológica, Rio de Janeiro, Pallas-Universidade Candido Mendes, 2003. MORAES, Figueiredo Renata. Memórias e Histórias da Abolição: uma leitura das obras didáticas de Osório Duque-Estrada e João Ribeiro. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. "Opinião Pública." In: FERES, João (org.). Léxico da História dos Conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, pp.181202. OLIVEIRA, Almir Leal de. História, tradições e patriotismo: o significado das comemorações do tricentenário do Ceará. Proj. História: São Paulo, abr. 2000 177 PACHECO, R. A. P. O cidadão está nas ruas: representações e práticas acerca da cidadania republicana em Porto Alegre (1889-1991). Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, 2001 PALLARES-BURK, Maria Lúcia Garcia. The Spectator, o teatro das luzes: diálogos e imprensa no século XVIII. São Paulo: Editora HUCITEC, 1995. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil (1826-1865). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011; POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 2, nº 3, 1989, P.3-15. REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: A resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins. “Cultura política na passagem brasileira do século XIX ao século XX”. In: LESSA, Mônica Leite e Fonseca, Silvia C. P. de Brito. Entre a Monarquia e a república: imprensa, pensamento político e historiografia (1822-1889). Rio de Janeiro: EDUREJ, 2008 RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Cia. Editor Nacional, 1932. SALES, Ricardo. Nostalgia imperial: escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. Rio de Janeiro. Editora Ponteio, 2013. SCHWARCZ, Lília. Dos males da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira. In GOMES, F. S. (Org.); CUNHA, O. M. G. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. 2007. SCHWARCZ, Lilia, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. Companhia das letras, 1993. SCOTT, Rebecca, COOPER, Frederick. e HOLT, Thomas. C. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais in: RÉMOND, René. Por uma história política: Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1996. SKIDMORE, Thomas. E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negrada instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1994. 178 SOARES, Carlos Eugênio Líbano, GOMES, Flávio dos Santos, ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira de, FARIAS, Juliana Barreto. Cidades Negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX, São Paulo: Alameda, 2006. SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000 SOUZA, George Felix C. de; NEVES, Fernanda Ivo; LEÃO, Reinaldo Carneiro; GALVÃO, Tácito Cordeiro. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano: breve história ilustrada. Recife: IAHGP, 2010 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008 THELM, Neyde e BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha. História Comparada: olhares plurais. Revista de História Comparada, n.1, v.1, Junho de 2007 TURIN, Rodrigo. Uma nobre difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista em História da historiografia, n. 2, 2009 ______________. Narrar o passado, projetar o futuro: Sílvio Romero e a experiência historiográfica oitocentista. Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005 VEYNE, Paul. O inventário das diferenças. São Paulo: Brasiliense, 1983. WEHLING, Arno. As origens do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Revista do IHGB, Brasília-Rio de Janeiro, 338:7-6, 1983. WEHLING, Arno. Historiografia e epistemologia histórica. In MALERBA, Jurandir (Org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2009. P. 175-189. 179