Imagens da cibercultura
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Imagens da cibercultura
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL IMAGENS DA CIBERCULTURA: As figurações do ciberespaço e do ciborgue no cinema Joon Ho Kim Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Antropologia. Orientadora: Profa. Dra. Sylvia Caiuby Novaes São Paulo - 2005 Para minha mãe e meus irmãos. AGRADECIMENTOS À Sylvia Caiuby Novaes, orientadora sempre atenciosa e paciente, pelo apoio e pelas incontáveis contribuições, fundamentais para a materialização deste trabalho e meu crescimento acadêmico e intelectual. Ao Geraldo Costa, por viabilizar a conciliação entre minha vida profissional e acadêmica, assim como pelas conversas e entrevistas que muito ajudaram no amadurecimento da minha pesquisa. Ao Paulo Menezes e ao John Dawsey, pelas críticas e sugestões no exame de qualificação, decisivas para o desenvolvimento metodológico e teórico deste trabalho. À Miriam Moreira Leite, que me honrou com suas sugestões e atenciosa leitura dos meus textos. À Mariana Vanzolini, pelos inúmeros problemas logísticos que ajudou a solucionar, e ao Giuliano Ronco, pelo apoio nas ilhas de som e de vídeo. À Paula Morgado, pela constante iniciativa de divulgar minha pesquisa. Aos demais colegas do Grupo de Antropologia Visual (GRAVI). Em especial, Andréa Barbosa, Edgar da Cunha, Francirosy Ferreira e Rose Satiko Hikiji. A Eduardo Utima, Luiz Antônio Barata, Nara Yoshimatsu, Patrícia Galízia e Sérgio Lima pelas entrevistas gentilmente concedidas. À FAPESP que financia o projeto temático “Alteridade, expressões culturais do mundo sensível e construções da realidade: velhas questões, novas inquietações” do qual esta pesquisa se beneficia. À Promon, pelo apoio dado durante dois anos. À Sofia Koon Ja Song, minha mãe, que acompanhou de perto esta jornada. A todos os demais colegas, amigos e familiares que de alguma forma participaram do meu mestrado. Julho de 2005 RESUMO especificamente como aparecem nos filmes produzidos nas duas últimas décadas. Nos filmes analisados, o corpo representa tanto algo a ser modificado artificialmente, para a superação dos limites impostos pela natureza, como algo a ser sublimado, a fim de se obter a plenitude da experiência virtual em simulações computadorizadas. Independentemente de quão imaginárias sejam essas construções, elas são necessariamente mediadas pelas mesmas categorias que permitem apreender a realidade como uma construção social e refletem as mudanças da própria mentalidade coletiva frente ao desenvolvimento técnico-científico. Nesse sentido, os ciborgues e o ciberespaço das diegeses fílmicas são produtos do que poderíamos chamar de “cibercultura”, uma resposta positiva da cultura na criação de uma “nova ordem do real” diante de contextos práticos inéditos, decorrentes da disseminação das tecnologias chamadas “cibernéticas” e da vulgarização dos discursos científicos, Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia Social • FFLCH • USP | O objetivo deste trabalho é a análise das imagens da cibercultura, mais Imagens da Cibercultura | que desafiam as categorias tradicionais de interpretação da realidade. Julho de 2005 ABSTRACT nature, as well as an object to be sublimated, in order to achieve an absolute virtual experience in computer simulations. In spite of how imaginary the construction of cybercultures images may be, they are unavoidably defined by the same categories that permit apprehending the reality as a social construction and reflect the collective mentality, which changes due to technical-scientific development. From this point of view, the cyborgs and the cyberspace of the film's diegeses are products of what we can name "cyberculture," a positive cultural response in order to create a "new order of reality" This order deals with new practical contexts, due to the dissemination of technologies called "cybernetic" and the spread of scientific discourses, that challenge the traditional categories for the interpretation of the reality. | body represents an object to be artificially modified, to exceed the limits imposed by Imagens da Cibercultura have appeared in films produced over the last two decades. When analyzing films, the Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia Social • FFLCH • USP | The aim of this thesis is to analyze cyberculture images, specifically how they Julho de 2005 ÍNDICE II.1. ... DA CIBERNÉTICA À CIBERCULTURA .................................................................. - 17 II.2. ... O CIBERESPAÇO: DO ABSTRATO AO SENSÍVEL ................................................... - 30 II.3. ... O CORPO NA ERA DO PÓS ORGÂNICO ............................................................... - 50 - III. O REALISMO ESPETACULAR _______________________ - 71 III.1... O CONTEXTO DA SOCIEDADE DE MASSAS ......................................................... - 72 III.2... A VIDA MODERNA E O OLHAR CINEMATOGRÁFICO .............................................. - 81 - IV. AS FIGURAÇÕES DA CIBERCULTURA ________________ - 101 IV.1. . O CORPUS DA PESQUISA .............................................................................. - 102 IV.1.1 Sinopse dos filmes IV.1.2 Ranking de bilheteria dos filmes selecionados - 104 - 108 - | II. A SOCIEDADE CIBERNÉTICA _______________________ - 16 - Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | I. INTRODUÇÃO ___________________________________ - 7 - IV.3. . AS IMAGENS DO CIBERESPAÇO ...................................................................... - 135 IV.4. . IMAGENS DA ALTERIDADE CIBERNÉTICA .......................................................... - 160 - V. CONCLUSÃO _________________________________ - 191 VI. BIBLIOGRAFIA ________________________________ - 199 VII. FILMOGRAFIA _______________________________ - 209 - Imagens da Cibercultura • índice IV.2. . AS ALEGORIAS DA TECNOLOGIA ..................................................................... - 113 - | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005 INTRODUÇÃO Imagens da Cibercultura • I: Introdução I. 7 diferenças entre o natural e o artificial, a mente e o corpo, o autocriado e o Julho de 2005 As máquinas do fim do século XX tornaram completamente ambíguas as aplicar aos organismos e máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós mesmos assustadoramente inertes (Haraway, 2000, p. 294). No fim da década de 1940, foi publicado um livro que propunha reunir sob uma única disciplina científica a teoria e a pesquisa relacionada aos sistemas de controle e comunicação, independentemente de serem fenômenos provenientes de sistemas artificiais ou orgânicos. Sob um paradigma que reduz tudo a uma espécie de engenharia universal das mensagens, essa disciplina, batizada de “cibernética” (Wiener, 1948), influenciou praticamente todas as áreas científicas e tecnológicas existentes, além de ter sido fundamental o reconhecimento de novas áreas especificamente “cibernéticas”, inimagináveis antes da década de 1940, tais como a Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | externamente projetado, assim como outras distinções que costumávamos segundo o qual tudo aquilo que “funciona”, seres vivos e máquinas, são, no limite, | informática, a robótica, a biônica e a biotecnologia. Sob o paradigma cibernético – continuam mudando nosso mundo natural e social em uma velocidade avassaladora. Algumas mudanças são sentidas diretamente no nosso dia-a-dia por meio da aceleração do ciclo de vida de artefatos que forçam a substituição de objetos não tão velhos – como a máquina de escrever, o toca-disco, o toca-fitas e, mais recentemente, o vídeo-cassete, na medida em que perdem seu lugar na nossa rotina e são substituídos por artefatos “pós-eletromecânicos” – e o surgimento de novas necessidades, tais como a indispensável Internet, seus web-sites e e-mail, sem os quais a nossa vida cotidiana, hoje, beira o inimaginável. Outras mudanças são sentidas de forma mais indireta: a robotização que alterou drasticamente a relação Imagens da Cibercultura • I: Introdução sistemas de unidades intercambiáveis – a ciência e a tecnologia mudaram e dos homens com os meios de produção ou a biotecnologia que, apesar de já ter invadido as prateleiras do nosso supermercado, é cotidianamente invisível, como são invisíveis, para nós, as mudanças que ela promove na criptografia da vida. Invisibilidade que é, vez e outra, rompida quando os clones e transgênicos – que, desde a ovelha Dolly1 e a soja Roundup Ready2, deram ares de ficção-científica à 1 O primeiro clone de mamífero produzido com sucesso, Dolly nasceu em 05 de julho de 1996 mas morreu por complicações de saúde consideradas prematuras para sua idade, em 2003. 8 manchetes, reformatadas e simplificadas, é claro, para se adequar ao entretenimento Julho de 2005 nossa realidade – trazem discussões éticas e de bio-segurança para a pauta das há pouco mais de uma década, quando as iniciais “IBM” foram montadas com 35 átomos – anuncia um revolucionário e admirável mundo novo baseado em artefatos cibernéticos menores que bactérias. O que é denominador comum de todas essas tecnologias, suas conquistas e promessas é a noção ciberneticista de que tanto os processos orgânicos como os não-orgânicos compartilham os mesmos sistemas informacionais. Uma das conseqüências dessa idéia se traduz na equivalência funcional entre artifício e organismo, tornando imprecisa, ambígua e questionável a fronteira que separa um do outro. É notório que as máquinas vivas e os organismos artificiais já fazem parte da nossa realidade. Na medida em que o mundo cotidiano incorporou as promessas e produtos das tecnologias cibernéticas, as noções e discursos técnico-científicos, Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | jornalístico da hora do jantar. Já a nanotecnologia – que mal passava de especulação cultura de senso comum, por meio do que podemos chamar de “cultura de massas”. | antes restritos às altas rodas científicas, também foram deslocados para o plano da Segundo Morin, (1967, p. 37-38) é próprio da cultura de massas o sincretismo que em formas assimiláveis ao chamado “homem médio”, ele próprio produto de um pensamento homogeneizador. Esse sincretismo se traduz na união do “imaginário dominado pela aparência de realidade” com os “fatos diversos”, a matéria básica do setor da informação, aquilo que “na vida real se assemelha ao romanesco ou ao sonho”: A cultura de massa é animada por esse duplo movimento do imaginário arremedando o real e do real pegando as cores do imaginário (...), esse prodigioso e supremo sincretismo se inscreve na busca do máximo de consumo Imagens da Cibercultura • I: Introdução tende a “homogeneizar sob um denominador comum a diversidade dos conteúdos” e dá à cultura de massa um de seus caracteres fundamentais (Morin, 1967, p. 39). Na perspectiva da cultura de massas, podemos ver a cibernética como o denominador comum que possibilitou a homogeneização de uma diversidade de 2 A soja modificada geneticamente pela Monsanto para ser tolerante ao herbicida glifosato durante todo o seu ciclo de vida. Em sojas não-transgênicas, o glifosato é utilizado apenas no pré-plantio. Como o glifosato é vendido pela Monsanto sob a marca Roundup, sua soja transgênica é conhecida como “Roundup ready”. 9 para dar sentido não só a uma realidade mais fantástica que a imaginação, mas Julho de 2005 conquistas e promessas da tecnologia em um cientificismo vulgar, porém conveniente cultura de massas matizada com noções cibernéticas deu nomes a seres que eram inomináveis e naturalizou insólitas criações, reais e imaginárias, intrinsecamente relacionadas com a transgressão e desagregação de tradicionais fronteiras classificatórias. É, notoriamente, uma naturalização que se utiliza principalmente de recursos visuais e que encontra no cinema – a despeito da importante influência dos videogames, dos quadrinhos e da literatura nos filmes – o principal meio de disseminação dos temas, modelos e estereótipos que delimitam um recorte cultural que podemos chamar de cibercultura. Como observam alguns autores (Morin, 1967; Bourdieu, 2001), o cinema é um dos meios de produção cultural que melhor incorpora a tendência do mercado da cultura de massas de abolir as fronteiras culturais e homogeneizar as diferenças em “prol de uma cultura das grandes áreas Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | também para dar ares de realidade às fantasias e aos devaneios mais implausíveis. A características de um cosmopolitismo específico que deriva da independência que o | transnacionais” (cf. Morin, 1967, p.42-45). A produção cinematográfica possui cinema tem em relação à língua3 e ao nível de instrução do espectador4. abrangência em termos de classes sociais, encontramos no cinema a consolidação de uma diversidade de significantes, provenientes de variados campos da cultura e da ciência, no discurso sincrético típico da cibercultura. É um discurso intimamente relacionado com a ampliação dos limites humanos por meio da sublimação e retificação do corpo, que se manifestam, respectivamente, na imagem do ciberespaço e no ciborgue. A possibilidade da imersão em ambientes virtuais computadorizados ou de um corpo híbrido de organismo e máquina5 reafirmam velhos ideais e promessas da modernidade. A modernidade é aqui o “fundo de entendimento” Imagens da Cibercultura • I: Introdução Ao lado da sua grande penetração social, decorrente do cosmopolitismo e (“background of understanding”) responsável pelo recorte de nossos discursos e 3 Morin (1967, p.45) nota que todo filme legendado já é cosmopolita e que “todo filme dublado é um estranho produto cosmopolitizado cuja língua foi retirada para ser substituída por outra. Ele não obedece às leis da tradução, como o livro, mas às leis da hibridação industrial”. 4 De acordo com Bourdieu (2001, p. 302), o cinema é, “dentre as práticas culturais”, a “menos estreitamente vinculada ao nível de instrução (...) ao contrário da freqüência a concertos, prática mais rara que a leitura e a freqüência a teatros”. 5 Escobar (2000, p. 56) nota que “enquanto qualquer tecnologia pode ser estudada antropologicamente de uma variedade de perspectivas, cibercultura refere-se muito especificamente às novas tecnologias em duas áreas – inteligência artificial (particularmente tecnologias da informação e computação) e biotecnologia”. 10 e não-problemática (cf. Escobar, 2000, p.58). Com efeito, as imagens do ciberespaço Julho de 2005 práticas sob uma perspectiva utilitária que vê a ciência e a tecnologia de forma neutra uma lógica instrumental na qual a sua sublimação ou alteração da natureza do corpo são meios plausíveis e justificáveis dentro de uma cadeia de meios e fins. No ciberespaço, o corpo é uma entidade cognitivamente transparente e, no ciborgue, o corpo é uma base material pronta para todo tipo de reconstrução cibernética. As imagens fílmicas do ciborgue e do ciberespaço tornam acessíveis ao senso comum o “discurso científico contemporâneo” no qual o corpo é “ontologicamente distinto do sujeito, torna-se um objeto à disposição sobre o qual agir a fim de melhorá-lo” e “declinado em peças isoladas”, torna-se uma “estrutura modular cujas peças podem ser substituídas” (Le Breton, 2003, p. 15-16). A ficção-científica, categoria dentro da qual enquadram-se todos os filmes acerca do cibernético analisados por esta pesquisa, não só nos fala das Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | e do ciborgue engendram profundas alterações na categoria do corpo e cristalizam um imaginário do futuro. Nesses casos, como observa Martins (2004, p.4), essas | possibilidades imaginárias da ciência e tecnologia como, normalmente, as narram em histórias acerca do futuro constituem um “futuro contemporâneo” porque “ainda que mergulhadas em formas de perceber e explicar o tempo presente”. Le Breton (2003, p.161), por sua vez, observa que: A apropriação dos imaginários que organizam as orientações coletivas futuras encontra na ficção científica um caminho mais fácil de desenvolvimentos e de projeção em uma trama social. Ela experimenta os cenários do futuro próximo e já esclarece os processo em jogo no presente. Assim, desde que são produtos de especificidades sociais e históricas, Imagens da Cibercultura • I: Introdução as narrativas se refiram ao futuro, em última análise, suas âncoras estão encontra-se nos filmes ciberculturais uma contínua mudança das representações acerca do cibernético que decorre, precisamente, da sensibilidade das construções fílmicas às transformações do mundo real (cf. Morin, 1970, p.202-203). Nessa perspectiva, esta pesquisa entende que a obra fílmica possui uma inegável relação com o senso comum da sociedade onde ela é produzida – “o cinema transmite representações e esquemas sociais; corta fragmentos do mundo exterior, que constitui em unidades contínuas, os filmes, que impõe ao público” (Sorlin, 1985, p.187) – e busca não só delimitar uma especificidade cultural cujas fronteiras são 11 estudar a mentalidade social acerca do cibernético a partir das recorrências – Julho de 2005 marcadas pela apropriação de modelos e discursos tipicamente ciberculturais como fílmicas. Estudar o imaginário fílmico da cibercultura não visa construir um catálogo de suas construções, mas analisar, a partir de algumas dessas construções, a relação que possuem com as transformações do real. De acordo com Sorlin (1985, p.251252), os filmes não são meros repertórios do visível, são produtos que dão forma à ideologia de sua época. Mesmo a “aparência de realidade” de um filme não é, de forma alguma, universal, mas também sujeita aos códigos e repertório específicos: “Se considero verdadeiro o filme: quais eram, na época, os critérios de verdade?”. Complementa o autor: (...) todas as épocas (...) têm suas regras para organizar o mundo exterior – mundo dos objetos e das relações sociais – de maneira que encontrem ali uma Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | modelos, clichês e estereótipos – e a evolução dessas recorrências nas construções categorias de análise por meio das quais tal maneira de designar verbal ou | coerência e possam aplicar suas regras de conduta: possuem, em particular, iconograficamente os objetos é considerada estilizada, falsa, caricaturesca, Tendo em vista que o ciberespaço e o ciborgue são as principais referências que orientam as figurações dos cibermundos retratados nos filmes, uma das preocupações desta pesquisa foi estudar o contexto social e histórico no qual essas referências surgem como categorias simbólicas importantes para fazer frente às transformações do real. Assim, a primeira parte desta dissertação (II.1 a II.3) versa sobre a sociedade cibernética e está dividida em três capítulos: o capítulo II.1, “Da cibernética à cibercultura”, trata do surgimento da cibernética como modelo científico Imagens da Cibercultura • I: Introdução humorística ou fiel à realidade (Sorlin, 1985, p.157). e da apropriação dos seus resíduos e discursos no processo cultural de “reavaliação funcional” de categorias no qual velhos significantes são reinventados e ressignificados para dar conta de uma realidade tecnológica em incessante transformação. O objetivo do capítulo II.2, “O ciberespaço: do abstrato ao sensível”, é fornecer um panorama do desenvolvimento tecnológico que transformou o computador tanto em um bem de consumo de ampla penetração social como um meio de emular a imersão em ambientes virtuais, tornando socialmente real a sublimação do corpo das relações sociais. Se o ciberespaço suscita a idéia de que o 12 computador é apenas uma das possibilidades reservadas ao corpo na perspectiva da Julho de 2005 corpo é um excesso, notou-se durante a pesquisa que o espaço sintetizado pelo cibernética. A transformação do corpo em um mero “rascunho a ser corrigido” (Le Breton, 2003, p.16) pelas mais variadas tecnologias de reconstrução é o assunto tratado no capítulo II.3, “O corpo na era do pós-orgânico”, que procura montar um breve histórico do ciborgue e do discurso no qual a hibridação de artifício e de organismo é a resposta legítima tanto para a correção de um corpo imperfeito, como para a superação de seus limites naturais. A segunda parte da dissertação (capítulos III.1 e III.2) procura contextualizar o cinema em termos sociais e históricos, analisando-o como produto de uma modernidade na qual desenvolve-se uma afinidade entre o “realismo espetacular” e a sociedade de massas. No capítulo III.1, “O contexto da sociedade de massas”, é analisada como a tendência da sociedade de massas, tanto de elevar aspectos da Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | cibercultura, onde ele é visto como um suporte de defeitos a serem retificados pela realidade, determinaram o surgimento de um olhar cinematográfico antes mesmo do | realidade à categoria de espetáculo como de revestir o espetáculo com aparências de advento do cinema. O capítulo III.2, “A vida moderna e o olhar cinematográfico”, “coeficiente de realidade” do cinema – indissociável do “espetáculo cinematográfico” e lastreado, em grande parte, pela imagem fotográfica, percebida como um “traço da realidade” – é condicionado socialmente e tem sua origem em um “modo de ver” renascentista. A terceira parte é a que trata das figurações da cibercultura encontradas no cinema. Ela está dividida em quatro capítulos (IV.1 a IV.4). O capítulo IV.1 é uma introdução ao material de pesquisa e apresenta, além da metodologia utilizada para o recorte do universo fílmico, uma breve sinopse dos filmes dos quais provêm as Imagens da Cibercultura • I: Introdução analisa o realismo associado à imagem cinematográfica e procura demonstrar que o construções fílmicas analisadas nos capítulos subseqüentes. O capítulo IV.2, “As alegorias da tecnologia”, traça um panorama das representações mais recorrentes do cibernético e como elas vêm se transformando nas últimas décadas, refletindo a dinâmica das categorias do senso comum nas quais estão ancoradas. O capítulo IV.3, “As imagens do ciberespaço”, trata do surgimento e da evolução do imaginário fílmico dos ambientes virtuais computadorizados apresentados, cada vez mais, como o ambiente diegético privilegiado para a ação dos personagens e para a realização da narrativa. O capítulo IV.4, “As imagens da alteridade cibernética”, procura analisar a 13 são, invariavelmente, figuras ambíguas, objetos de um certo estranhamento e retratos Julho de 2005 imagem das alteridades que os filmes ciberculturais constroem. Essas alteridades retificados artificialmente ou tricksters que superam no plano do imaginário fílmico contradições insolúveis no plano da vida real. Examinando as produções fílmicas como “manifestações parciais do sistema de simbolização que é a ideologia de certa época” (Sorlin, 1985, p.190), esta pesquisa busca desvendar um mundo que é certamente mais e mais visto, porém cada vez menos compreendido (cf. Carrière, 1995, p.71). Procura também manter sempre em vista a inserção no que Escobar (2000, p. 59) chamou de “uma das tarefas da antropologia da cibercultura”: estudar a extensão e “de que maneiras concretas as transformações vislumbradas” pelas novas paisagens da ficção científica – “populadas com ciborgues de todos os tipos (seres humanos e outros organismos com inumeráveis próteses e interfaces tecnológicas), movendo-se em Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | desviantes de humanidade: máquinas com aparência humana, seres-humanos estão em processo de tornarem-se reais. É, freqüentemente, um processo no qual a | vastos ciberespaços, realidades virtuais e ambientes mediados por computador” – realidade espetacular parece não se diferenciar mais do espetáculo realista. Para Le O próprio mundo compete de forma desleal com os autores de ficção científica exagerando suas hipóteses ou realizando um meio social e técnico que às vezes parece diretamente saído de seu imaginário. O autor acrescenta que a ficção científica – em particular a oposição entre “um mundo de redenção pela técnica a um mundo de danação” retratado pela ficção cyberpunk – deixou de ser um devaneio e tornou-se “uma experimentação do contemporâneo, uma projeção imaginária das questões que assombram nossas Imagens da Cibercultura • I: Introdução Breton (2003, p.161), “a ficção científica não se opõe mais ao real”: sociedades”. Para ele, a ficção científica “toma o lugar da sociologia ou da antropologia para expressar, em forma narrativa, as tensões que às vezes falta ao modo de formulação das ciências sociais” (cf. Le Breton, 2003, p.160). É aqui que reside a principal meta que norteia esta pesquisa: a de trazer para o foco das ciências sociais as imagens fílmicas que traduzem o desencontro, muito real e contemporâneo, entre a ideologia que celebra o homem como uma mera instância da máquina e a prática que, reduzindo o corpo a mero suporte do cogito ou a 14 Julho de 2005 Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | | desordem simbólica no cosmos do qual o corpo é imagem. Imagens da Cibercultura • I: Introdução justaposição de partes sujeitas às mais insólitas reinvenções e retificações, introduz a 15 | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005 A SOCIEDADE CIBERNÉTICA Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética II. 16 Da cibernética à cibercultura Julho de 2005 II.1. and Communication in the Animal and the Machine, livro que apresenta as hipóteses e o corpo fundamental da cibernética, resultado de vários anos de pesquisa e interação com pesquisadores de diversas áreas cientificas, incluindo as ciências sociais, representados, em especial, pelos antropólogos Gregory Bateson e Margaret Mead. A idéia fundamental desenvolvida por Wiener com seus principais colaboradores, o fisiologista Arturo Rosenblueth e o engenheiro Julian Bigelow, é a de que certas funções de controle e de processamento de informações semelhantes em máquinas, seres vivos e, de alguma forma, na sociedade, são – de fato – equivalentes e redutíveis aos mesmos modelos e mesmas leis matemáticas. Wiener entendia que a cibernética seria uma teoria das mensagens mais ampla que a “teoria da transmissão de mensagens da engenharia elétrica”, Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Em 1948, o matemático Norbert Wiener publicou Cybernetics: or the Control também o estudo das mensagens como meios de dirigir a maquinaria e a | (...) um campo mais vasto que inclui não apenas o estudo da linguagem mas sociedade, o desenvolvimento de máquinas computadoras e outros autômatos teoria conjetural do método científico (Wiener, 1984, p.15). Wiener (1948, p.19 e 1984, p.15) explica que ele e Rosenblueth criaram um termo artificial para designar esse campo científico porque acreditavam que qualquer terminologia existente traria um viés indesejado ao seu sentido. Assim, eles cunharam o termo “cybernetics” derivado do grego “kubernetes”, palavra utilizada para denominar o piloto do barco ou timoneiro, aquele que corrige constantemente o rumo do navio para compensar as influências do vento e do movimento da água. Além do sentido de controle, reforçado pela correspondência que “kubernetes” tem com o latim “gubernator”, de onde também deriva a palavra “governo”, Wiener quis fazer referência aos mecanismos de leme de navios, um dos mais antigos dispositivos a incorporar os princípios estudados pela cibernética. Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética (...), certas reflexões acerca da psicologia e do sistema nervoso, e uma nova O campo que Wiener designa de “cibernética” teve início durante os esforços relacionados com a II Grande Guerra, quando ele realizou pesquisas com programação de máquinas computadoras e com mecanismos de controle para artilharia antiaérea. Tanto em uma como em outra pesquisa, Wiener engajou-se no 17 para usurpar uma função especificamente humana”: a “execução de um complicado Julho de 2005 que descreve como “estudo de um sistema elétrico-mecânico que fosse desenhado futuro” a que Wiener se refere, neste caso específico, é a capacidade de se prever a trajetória de uma aeronave, a fim de que o projétil do canhão antiaéreo encontre-se com o alvo em “algum momento do futuro” (Wiener, 1948, p.11 e 13). Em suas pesquisas sobre a artilharia aérea ele se interessou particularmente pelo princípio denominado de “feedback”. Basicamente, esse princípio consiste em realimentar o sistema com as informações sobre o próprio desempenho realizado a fim de compensar os desvios em relação ao desempenho desejado. Assim, nas máquinas controladas por feedback, é indispensável a existência de um ou mais detectores e monitores que façam papel de órgãos sensórios, de forma que as informações coletadas possam ser confrontadas com o padrão de desempenho programado. A diferença entre o desempenho realizado e o esperado é transformada Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | padrão de cálculo” em um caso e a “previsão do futuro”, no outro. A “previsão do futuro para valores mais próximos do padrão esperado (Wiener, 1984, p.24 e Wiener, | na informação que o mecanismo de compensação utilizará para trazer o desempenho 1948, p.13). notou que eles podiam apresentar uma oscilação anômala e crescente, capaz de tornar o sistema incontrolável e levá-lo à pane6. Esse tipo de oscilação parecia atingir não só máquinas controladas por feedback, mas também alguns seres humanos vitimados pela ataxia, deficiência que se caracteriza pela perda de coordenação de movimentos musculares voluntários. Wiener e Rosenblueth notaram que, em alguns distúrbios neurológicos, o portador de ataxia apresenta anomalias ligadas ao sentido proprioceptivo7, fazendo com que o atáxico, apesar de ter o sistema muscular em 6 Um exemplo simples desse tipo de oscilação pode ser observado em um aquecedor controlado por termostato. Neste caso, o controle por feedback consiste basicamente na realimentação do sistema com valores da temperatura do ambiente, medidos por meio de um sensor de calor, que são confrontados com o padrão de temperatura programado na máquina. Assim, se o termostato detectar que a temperatura está abaixo do desejado, acionará o aquecedor; se detectar que está acima, irá desligá-lo. Esse tipo de controle permite que a temperatura de um ambiente fique estável dentro de uma pequena zona de tolerância acima e abaixo da temperatura desejada. Entretanto, desde que a estabilidade do sistema depende do bom funcionamento do controle por feedback, um termostato defeituoso ou de má qualidade pode resultar em violentas oscilações de temperatura (cf. Wiener, 1948, p.115). 7 Percepção sensorial pela qual sentimos e temos a consciência da existência do nosso corpo e a posição relativa de suas partes e membros, bem como o movimento dessas partes, independentemente dos demais sentidos, tais como o tato ou a visão. Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética Durante as pesquisas com mecanismos controlados por feedback, Wiener 18 as pernas ou ter distúrbios de coordenação nos quais seus movimentos voluntários Julho de 2005 condições adequadas, seja incapaz de andar e mesmo de ficar de pé sem olhar para violenta e fútil”. As pesquisas em pacientes com ataxia demonstravam que bons músculos não eram suficientes para uma ação efetiva e precisa: as informações de feedback fornecidas pelo sistema proprioceptivo, combinadas com as provenientes de outros sentidos, são indispensáveis para o sistema nervoso central produzir o estímulo adequado para o trabalho muscular. Wiener conclui: “Something quite similar is the case in mechanical systems” (Wiener, 1948, p.113-114). Assim, para Wiener (1948, p.15), o sistema nervoso central engendra um processo circular – “emergindo do sistema nervoso para os músculos, e reentrando ao sistema nervoso pelos órgãos dos sentidos” – cujo princípio seria idêntico ao que havia encontrado em dispositivos de controle de máquinas. Essas idéias foram apresentadas por Rosenblueth em maio de 1942 a um grupo de pesquisadores em Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | não passam de movimentos erráticos que “resultam apenas em uma oscilação dedicada aos problemas decorrentes da inibição do sistema nervoso, e publicadas no | um encontro sob os auspícios da Josiah Macy Foundation, organização filantrópica ano seguinte no artigo Behavior, Purpose and Teleology. É desde essa época, vínculo teórico com ela: além dos pesquisadores ligados à medicina, estiveram presentes naquele encontro os antropólogos Gregory Bateson e Margaret Mead. A série de conferências posteriores, conhecidas como The Macy Conferences, reuniu pesquisadores provenientes de áreas diversas como a matemática, medicina, psicologia, filosofia, antropologia e sociologia. Por causa da II Grande Guerra, a primeira conferência aconteceu apenas em 1946 sob o título Feedback Mechanisms and Circular Causal Systems in Biological and Social Systems. O nome da conferência sofreu pequenas alterações em várias edições até que em março de 1950, na sua sétima edição, passou a se chamar Cybernetics: Circular Causal and Feedback Mechanisms in Biological and Social Systems, nome que preservou até a décima e última edição, em abril de 1953. Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética quando a cibernética sequer havia sido batizada, que a antropologia mantém seu Gregory Bateson e Margaret Mead foram ativos participantes desses eventos e, juntamente com o sociólogo Paul Lazarsfeld, constituíram a presença das ciências sociais no “core group” das conferências. Talvez por ser extremamente generalista a cibernética não conseguiu, ao longo das décadas posteriores, lidar com as especificidades das diversas ciências e 19 máquinas e sociedades. Mas, de qualquer forma, praticamente todas elas foram Julho de 2005 tecnologias que tinham como objeto o controle e comunicação em organismos, Wiener e que reverberou por todo mundo científico e tecnológico da segunda metade do século XX a partir dos participantes das Macy Conferences. A cibernética não propõe uma simples analogia entre artifício e organismo, ela propõe uma prática científica cujo princípio é tratar máquinas, seres vivos e sistemas sociais como instâncias da mesma coisa e, portanto, compostos de partes intercambiáveis o que permite, por exemplo, do ponto de vista lógico, que concebamos híbridos montados com partes orgânicas e mecânicas conectadas entre si ou máquinas dotadas de “inteligência artificial”, reproduzindo e, para alguns, superando a faculdade que tradicionalmente é distintiva do ser humano. Em um artigo sugestivamente intitulado When Will Computer Hardware Match the Human Brain, Moravec (1998, p.2) calcula que o cérebro humano tem a capacidade de processar Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | influenciadas, diretamente ou indiretamente, pelo “projeto cibernético” aspirado por Blue, a máquina com poder de executar 3 milhões de MIPS que derrotou o campeão | 100 milhões de MIPS (milhões de instruções por segundo), o que colocaria o Deep mundial enxadrista Garry Kasparov em 1997, a “1/30 do estimado para o a mente do oponente durante o jogo”, teria dito sentir no Deep Blue uma “inteligência alienígena”. Assim, o autor acredita que “um computador parece ter não apenas superado o melhor humano [Kasparov no jogo de xadrez], mas ter transcendido sua condição maquinal”. Mas essa perspectiva de equivalência factual entre artifício e organismo, ou mais especificamente entre homem e máquina, possui uma longa tradição, cujas raízes confundem-se com a origem da Modernidade: “Considerei-me primeiramente como tendo um rosto, mãos, braços, e toda essa máquina composta de ossos e de carne, tal como aparece em um cadáver, a qual designei pelo nome de corpo” (Descartes,1970 apud Le Breton, 2003, p.17, grifo meu). Menos conhecido do que os desdobramentos da cibernética nas ciências exatas e biológicas é a influência que ela teve nas ciências sociais. Ativo participante Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética desempenho humano total”. Segundo Moravec, Kasparov, que vangloriava-se de “ver do grupo dos fundadores da cibernética, desde antes das Macy Conferences, Gregory Bateson é praticamente o fundador do pensamento cibernético nas ciências sociais e provavelmente o maior expoente da cibernética nessa área. A importância que Bateson dá à cibernética – “Eu acho que a cibernética é a maior mordida na fruta da Árvore do Conhecimento que a humanidade deu nos últimos 2.000 anos” 20 em diversos trabalhos. Rapport e Overing (2000, p.102-115) notam que, influenciado Julho de 2005 (Bateson, 2000, p.484) – e a influência que esta exerceu em sua obra se manifesta ‘informação’ e que o conceito natural-científico de ‘entropia negativa’ eram de fato sinônimos”, Bateson desenvolveu teorias onde as relações sociais poderiam ser vistas como “comunicações entre membros co-dependentes cuja interação habitual é caracterizada por circularidades, oscilações, limites dinâmicos e feedback”. Além disso, se o princípio cibernético da entropia, derivado da segunda lei da termodinâmica, se traduz em um processo contínuo de redução de ordem em um sistema, ou de aumento de seu caos, isso implica que os relacionamentos sociais não podem permanecer os mesmos por muito tempo. Em relação à outra questão central no seu pensamento, a dos limites da mente e do “self”, Bateson (2000, p.315-320) vê na cibernética os modelos necessários para responder à antiga questão da transcendência ou imanência da mente. A partir dos modelos cibernéticos de controle Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | pela descoberta apresentada por Wiener de que “o conceito social-científico de características mentais pode qualquer parte ter controle unilateral sobre o todo. Em | e feedback, Bateson conclui que “(...) em nenhum sistema que demonstre outras palavras, as características mentais do sistema são imanentes, não em descartar a transcendência da mente em relação ao corpo, mas também de alterar o termo – sistema e não mais corpo – em relação ao qual a mente é imanente pois “grande parte da rede de pensamento está localizada fora do corpo”. Rapport e Overing (2000, p.102-115) ainda acrescentam que a cibernética de Bateson influenciou amplamente as ciências sociais e, a despeito da influência das suas idéias não ser, na maioria das vezes, explícita, sua contribuição é extensa e é encontrada na obra de vários cientistas: em Rappaport, a “cultura é um todo que pode ser entendido como um sistema cibernético que regula as relações entre as pessoas e seu ambiente”; o trabalho de Goffman sobre “como a estrutura social e a realidade são mantidas pelo processo de sanções sociais, ‘encontros’ situacionais, ou ‘sistemas de atividades situadas’” carrega o sinal distintivo da cibernética; já Strathern faz uso Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética alguma parte, mas no sistema como um todo”. Assim, não é apenas o caso de da figura do “cyborg” e mostra “como a natureza das coisas no mundo é um efeito obtido pela contínua e recíproca relação entre as partes em um particular ponto no tempo e espaço”. Encontramos também a influência da cibernética no pensamento de Geertz que, por sua vez, vê na relação entre a evolução cultural e a evolução biológica 21 recíprocas e condicionadas: Julho de 2005 princípios que levam a um processo contínuo de realimentação e influências desenvolveu, foi concedida uma vantagem seletiva àqueles indivíduos da população mais capazes de levar vantagem (...) até que o Australopiteco protohumano, de cérebro pequeno, tornou-se o Homo Sapiens, de cérebro grande, totalmente humano. Entre o padrão cultural, o corpo e o cérebro foi criado um sistema de realimentação (feedback) positiva, no qual cada um modelava o progresso do outro, um sistema no qual a interação entre o uso crescente das ferramentas, a mudança da anatomia da mão e a representação expandida do polegar no córtex é apenas um dos exemplos mais gráficos. Submetendo-se ao governo de programas simbolicamente mediados para a produção de artefatos, organizando a vida social ou expressando emoções, o homem determinou, embora inconscientemente, os estágios culminantes do seu próprio Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | À medida que a cultura, num passo a passo infinitesimal, acumulou-se e se se criou. (Geertz, 1989, p.60). | desenvolvimento biológico. Literalmente, embora inadvertidamente, ele próprio Ao lado de Bateson, ainda podemos citar Lévi-Strauss como o outro cibernética e disciplinas relacionadas para as ciências sociais. Em Antropologia Estrutural (s.d.), ele inicia o capítulo III, “Linguagem e Sociedade”, com o seguinte parágrafo: Num livro [Cybernetics, or control and Communication in the Animal and the Machine (Wiener, 1948)] cuja importância não poderia ser subestimada, do ponto de vista do futuro das ciências sociais, Wiener se interroga sobre a extensão, à estas últimas, dos métodos matemáticos de predição que tornaram possível a construção de grande máquinas de calcular (...) (Lévi-Strauss, s.d., p.71). No capítulo XV, “A Noção de Estrutura em Etnologia”, ele compara o modelo Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética antropólogo que atentou, ainda em tempos pioneiros, para a importância da estrutural que propõem com a definição de Von Newmann, matemático e integrante do core group das Macy Conferences, e o cita em nota de rodapé: Modelos (tais como os jogos) são construções teóricas que supõem uma definição precisa, exaustiva e não demasiado complicada: devem ser também 22 curso. Para recapitular: a definição deve ser precisa e exaustiva, para possibilitar Julho de 2005 parecidos com a realidade sob todas as relações que importam à pesquisa em que o funcionamento do modelo seja significativo (...). (Von Neumann; Morgenstern apud Lévi-Strauss, p.316) Em outro trecho do mesmo capítulo, Lévi-Strauss (s.d., p.320) afirma que as pesquisas estruturais nas ciências sociais foram um conseqüência indireta de “certos desenvolvimentos das matemáticas modernas, que deram uma importância crescente ao ponto de vista qualitativo”. Ele sustenta que o fato de não haver conexão entre a noção de “medida” e de “estrutura” não invalida o modelo, visto que “em diversos domínios (...) notou-se que problemas que não comportavam solução métrica podiam, apesar disso, ser submetidos a um tratamento rigoroso” e cita as seguintes obras como “importantes para as ciências sociais”: Theory of Games and Economic Behavior, de von Neumann e Morgenstern, de 1944; Cybernetics de Wiener, de 1948 Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | um tratamento matemático. (...) A semelhança com a realidade é requerida para Rapport e Overing (2000, p.113-115) observam ainda que a cibernética está | e The Mathematical Theory of Communication, de C. Shannon e W. Weaver, de 1950. implícita na noção estruturalista de sociedade de Lévi-Strauss – vista como um que seu trabalho relacionado com as combinações e recombinações de unidades de comunicação é influenciado pela ciência da computação, como ilustra bem o seguinte trecho, retirado de sua análise a respeito de um mito, encontrado no Canadá Ocidental, “sobre uma raia que tentou controlar ou dominar o Vento Sul e que teve êxito na empresa” (Lévi-Strauss, 2000, p.35-37): (...) a razão por que se escolheu a raia é que ela é um animal que, considerando de um ou outro ponto de vista, é capaz de responder – empregando a linguagem da cibernética – em termos de ‘sim’ ou ‘não’. É capaz de dois estados que são descontínuos, um positivo e outro negativo. A função que a raia desempenha no mito é – ainda que, evidentemente, eu não queira levar as semelhanças demasiado longe – parecida com a dos elementos que se introduzem nos Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética sistema de comunicação baseado na troca de mensagens culturais de tipo binário – e computadores modernos e que se podem utilizar para resolver grandes problemas adicionando uma série de respostas de ‘sim’ e ‘não’. (...) Esta é a originalidade do pensamento mitológico – desempenhar o papel do pensamento conceptual: um animal susceptível de ser usado como, diria eu, um operador 23 também é um problema binário. (...) Dum ponto de vista científico, a história Julho de 2005 binário, pode ter, dum ponto de vista lógico, uma relação com um problema que num tempo em que a cibernética e os computadores apareceram no mundo cientifico dando-nos o conhecimento das operações binárias, que já tinham sido postas em prática de uma maneira bastante diferente, com objetos ou seres concretos, pelo pensamento mítico. Apesar de ter estimulado hipóteses, teorias e pesquisas em diversos campos científicos – inclusive a antropologia, como foi visto aqui com mais detalhes, e ter dado origem a novas áreas, como as ciências cognitivas, a cibernética foi esquecida como a “vasta teoria das mensagens” aspirada por Wiener. Uma matéria da revista Wired (Kunzru, 1977) observa que seus modelos teóricos se desgastaram e, mesmo no campo do controle artificial, onde se consolidaram sólidas disciplinas “cibernéticas” como a informática e a robótica, a proposta de Wiener esvaziou-se na prática. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | não é verdadeira, mas nós somente pudemos entender esta propriedade do mito | Acrescenta a matéria: (...) quase ninguém, hoje, se auto-intitula um “ciberneticista”. Alguns acreditam que o projeto de Wiener tornou-se vítima da moda científica, com seus fundos artificial. Outros pensam que a cibernética foi eliminada pelo problema básico de que o controle e comunicação em máquinas por meio de mecanismos de porca-e-parafuso são significativamente diferentes daqueles encontrados em animais, e nenhum destes é semelhante ao controle e comunicação na sociedade. Assim, a cibernética, que estava baseada em uma inspirada generalização, tornou-se vítima da sua incapacidade para lidar com detalhes (Kunzru, 1997). Mas se, por um lado, a cibernética não obteve muito êxito como uma ciência, ela influenciou de forma determinante a cultura moderna com resíduos de seus modelos explicativos, engendrando, junto com outros resíduos que são incessantemente produzidos pela tecnologia e ciência, o que poderíamos chamar de “cibercultura”. Tais resíduos são certas noções e valores oriundos do discurso técnico Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética sugados por pomposas mas ao final irrelevantes pesquisas de inteligência e científico que, deslocados para o plano do senso comum, introduzem novas distinções nos antigos esquemas interpretativos para que eles possam fazer frente às propriedades de um mundo, conforme observa Escobar (2000, p.62), no qual as 24 se permeáveis: Julho de 2005 fronteiras entre os domínios do orgânico, do tecno-econômico e do textual tornaram- enquanto natureza, os corpos e os organismos certamente possuem uma base orgânica, eles são cada vez mais produzidos em conjunção com as máquinas, e esta produção é sempre mediada por narrativas científicas (...) e pela cultura em geral [grifos do autor]. Um dos resíduos mais importantes que a cibernética legou à cibercultura foi a visão de que os seres vivos e as máquinas não são essencialmente diferentes. Essa noção se manifesta materialmente, em especial, nas tecnologias especializadas em mimetizar a vida (tecnologia da informação, robótica, biônica e nanotecnologia) e nas tecnologias especializadas em manipular a vida (as biotecnologias), onde a relação entre organismo e máquina depende intrinsecamente do texto, não só na forma de narrativa científica, mas também na forma dos códigos que determinam o Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | (...) produzindo sempre montagens e misturas de máquina, corpo e texto: genético). Os produtos – reais e imaginários – de tais tecnologias podem contradizer | funcionamento tanto das máquinas (softwares) como dos seres vivos (o código certas noções de classificação fundamentais tais como a oposição entre natureza e Segundo Lévi-Strauss (2002, p.25), a exigência de ordem “constitui a base de todo pensamento” e a cultura, como construção concreta e coletiva dessa exigência, consiste fundamentalmente de sistemas de representação que visam substituir o aleatório pelo organizado, classificando, codificando e transformando as dimensões sensíveis do universo em dimensões inteligíveis (cf. Rodrigues, 1979, p.9-12). É por isso que seres ambíguos são, com freqüência, objetos de restrições e tabus: são sinais de desordem, contradizem as fronteiras estabelecidas entre as categorias classificatórias e, assim, ameaçam as próprias convicções acerca da ordem do mundo. De acordo com Douglas (1991, p.54), a experiência dos indivíduos é mediada pela cultura, que fornece algumas categorias básicas, “uma esquematização positiva na qual idéias e valores se encontram dispostos de forma ordenada”. Constatada a Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética cultura, entre orgânico e inorgânico, entre o homem e a máquina, dentre outras. existência de ambigüidades – que já são por si sós, indicadoras da existência do sistema classificatório que contradizem – a cultura pode lidar com elas “de forma negativa, ignorando-as, (...) ou ainda percebê-las e condená-las. Positivamente, 25 real onde a anomalia se possa inserir” (Douglas, 1991, p.53-54). Julho de 2005 podemos enfrentar deliberadamente a anomalia e tentar criar uma nova ordem do repertório organizado de objetos significantes que portam significados socialmente compartilhados. Como nota Sahlins (1990, p.10-11), desde que “o sentido do signo (o valor saussuriano) é definido por suas relações de contraste com outros signos do sistema (...) ele só é completo e sistemático na sociedade (ou na comunidade de falantes) como um todo”. Mas os signos e seus significados não são partes de estruturas estáticas. Além dos consensos que as sociedades elaboram serem resultados da interação de perspectivas diversas, os significados das coisas e suas relações estruturais são reavaliados na realização prática e, freqüentemente, repensados criativamente dentro de certos limites – dados pelo sentido coletivo empregado no uso real de um signo – em resposta às contingências apresentadas pela experiência prática. Assim podemos, por exemplo, entender que o consenso Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | O fato é que o universo não é um agregado de “objetos em si”, mas um significações de “eletrônico” e “correio” (“electronic” e “mail”), sobre os quais já havia | social acerca do que é correio eletrônico (“email”) está dentro dos limites de um consenso social. O mesmo ocorre com ciberespaço (“cybernetics space”) ou discurso técnico-científico (“E” de electronic ou “Cyber” de cybernetics) adquirem novas conotações e engendram significados inéditos na sua conjunção com antigos significantes (mail, space, organism), projetando o sistema antigo de interpretação da realidade sob novas formas, dentro das dadas possibilidades históricas e culturais de significação. O que comumente tem se chamado de “cibercultura” é a resposta positiva da cultura na criação de uma “nova ordem do real” frente aos novos contextos práticos que desafiam as categorias tradicionais de interpretação da realidade. Os robôs e computadores são antigos personagens do nosso imaginário e, de certa forma, mais antigos que a própria cibernética. Mas há entre o homem de lata mecanizado e o corpo humano, ou entre uma máquina de calcular e a mente Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética ciborgue (“cybernetics organism”). São exemplos onde os termos que sintetizam o humana, descontinuidades gigantescas de tal forma que eles dificilmente passam de representações caricaturadas do homem, chegando, em muitos casos, a reafirmar a oposição das categorias que separam o ser humano da máquina. Nesse sentido não são, ainda, “cibernéticos” pois a principal característica enunciada pela “cibernética” é a de que não existe descontinuidade entre os diferentes sistemas, sejam 26 ordem do real, porque, enfim, ao contrário do que ratificam os tabus dos mitos e das Julho de 2005 provenientes de organismos ou máquinas. O futuro cibernético implica em uma nova de compatibilidade funcional. A idéia de acoplar de sistemas orgânicos e máquinas não é recente e estava anunciada na criatura de Mary Shelley (Shelley, 1998) que, para alguns autores, pode ser considerado o primeiro “ciborgue” (Gray; Figueroa-Sarriera; Mentor, 1995, p.5). Assim como o Frankenstein, a figura do ciborgue moderno também “aponta para o poder da ciência, para o fascínio de um conhecimento que da morte procura criar a vida, tornando o tempo reversível” (Caiuby Novaes, 1999, p.164). Mas a criatura morta-viva feita com retalhos de cadáveres de pessoas e animais esquartejados “ainda vivos para aproveitar-lhe o sopro de vida na recomposição da (...) criatura” (Shelley, 1998, p.49) também é uma monstruosidade. Produto de uma ciência capaz de reconstruir corpos, a besta produzida pelo Dr. Frankenstein é desprovida de alma Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | religiões, a intercambiabilidade entre as categorias culturais é apenas uma questão mistura de cadáveres de diferentes naturezas, sua existência é uma ameaça à | (Caiuby Novaes, 1999, p.164). E seu corpo é um suporte de profanações: produto da categoria do corpo humano e contamina o mundo da vida com o perigoso mundo dos Como o local mais imediato de ligação entre o social e o biológico no homem (Rodrigues, 1979, p.43), o corpo é objeto de interdições que ratificam a separação de um domínio e outro. O corpo também é objeto de sinais que demarcam a separação entre os vivos e os mortos: um corpo sem vida é um cadáver, um objeto socialmente impuro, matéria vazia de alma fadada à decomposição. A morte da carne deve ser acompanhada da morte social. Os rituais de sepultamento não são simples procedimentos utilitários de higiene, fazem parte do “penoso trabalho de desagregar o morto de um domínio e introduzi-lo em outro” (Rodrigues, 1979, p.52) e uma vez cadáver, o corpo não deve mais voltar à vida. Os mortos-vivos são objetos de medo não porque tememos pela nossa integridade física, mas porque profanam uma estrutura de significados culturalmente estabelecidos. São produtos da justaposição Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética mortos. de termos incompatíveis: defuntos com atributos de indivíduos vivos, corpos vagando sem alma, partes e restos de diferentes cadáveres unidos em uma besta errante. Enfim, o morto-vivo contraria as noções primitivas de vida e de morte e sua existência é uma ameaça à ordem classificatória do cosmos. 27 as entidades derivadas da fusão de termos provenientes de domínios classificatórios Julho de 2005 Contudo, desde os anos 1980, produtos “high-tech” têm tornado corriqueiras época, popularizou-se um tipo de ficção científica que ficou conhecida como “cyberpunk” 8. Originalmente um gênero literário, sua influência na disseminação – principalmente por meio do cinema – dos contornos e conotações que o “cibernético” tem hoje é inegável. O cyberpunk aglutinou a visão distópica do movimento punk e os estereótipos de seu estilo de vida ao imaginário futurista no qual as gadgets (bugigangas e geringonças) “cibernéticas” e os ciborgues foram amplamente incorporados ao cotidiano. Um dos principais legados do cyberpunk é a imagem do homem-gadget (homem-objeto que não é muito mais que um gadget acoplado a um sistema ou rede de gadgets) cujo corpo é um banal suporte de biônicos e cuja mente só encontra sua totalidade quando conectada ao “ciberespaço”. Diversos autores atentam para a lógica hibridizante da cibercultura: Gray, Mentor e Figueroa-Sarriera Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | incompatíveis (texto, máquina, animal, vegetal, corpo). Além disso, a partir da mesma união entre sistemas orgânicos separados”; para Hayles (1999, p.3) “o sujeito pós- | (1995, p.2) escrevem sobre “a fusão do orgânico e do maquínico, ou a engenharia da humano é um amálgama, uma coleção de componentes heterogêneos, uma entidade reconstrução”; Haraway (2000, p.313) nos lembra que “não há separação fundamental, ontológica no nosso conhecimento formal da máquina ou organismos, do técnico e orgânico”; segundo Escobar (2000, p.62), a permeabilidade das fronteiras entre o orgânico, o tecno-econômico e o textual produzem “montagens ou misturas de máquina, corpo e texto”. No romance de Shelley (1998), o grande desafio da ciência, a que se decide enfrentar o Dr. Frankenstein, é vencer a morte, a finitude da vida e, nesse sentido, igualar-se a Deus. O domínio do cibernético não é apenas aquele onde, como o romance de Shelley já havia anunciado, as descontinuidades entre as categorias culturais são profanadas em nome do utilitarismo e cientificismo sem limites. O cibernético também é a tentativa de recalcar os medos míticos por meio do discurso Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética material-informacional cujas fronteiras permanecem em contínua construção e totalitário da ciência, onde é suspeito tudo aquilo que não pode ser reduzido aos 8 A invenção do termo cyberpunk é cercada de controvérsias. Em 1980, Bruce Bethke escreveu um conto chamado “Cyberpunk” que foi publicado em 1983 no “Amazing Science Fiction Stories” (Bethke, 1987), mas parece que o uso como forma de circunscrever um estilo literário foi feito por Gardner Dozois na sua resenha para o primeiro livro de Gibson, “Neuromancer” (Linus Walleij, 1998, cap. 8). 28 Shelley, as questões morais e o medo transbordam a partir no momento em que as Julho de 2005 critérios da calculabilidade e da utilidade (Adorno; Horkeimer, 1985, p.21). No caso de transgredidas. Já a cibercultura é marcada por um discurso científico que nega a existência de tais fronteiras, escamoteando os medos e temores a elas relacionadas. A cibernética é a “idéia abrangente” que engendra a transgressão de fronteiras classificatórias, reorganizando as ambigüidades sob “um classificador que serve para estabelecer ordem, mas não a conexão” (Adorno; Horkeimer, p.118). Assim, no lugar do medo e do horror que a profanação do sagrado deveria provocar, emerge a apologia que desconecta o híbrido da lógica totalizante do mito e o reestrutura na lógica totalitária da ciência. Aparentemente livres dos tabus relacionados com a profanação do sagrado, as imagens da cibercultura falam de um admirável mundo novo – real ou imaginário – que “não se projeta no céu, fixa-se na terra. Os deuses (...) estão entre nós, são de nossa origem, são como nós mortais.” (Morin, 1967, Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | míticas fronteiras que separam Deus do homem e os vivos dos mortos são Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética | p.176). 29 O ciberespaço: do abstrato ao sensível Julho de 2005 II.2. antes por códigos alfanuméricos do que por imagens gráficas? Como se dá sentido visual àquilo que essencialmente não possui expressão visual? Em The Hacker Crackdown – Law and Disorder on the Electronic Frontier, Bruce Sterling comenta que o termo “cyberspace“ surgiu em 1982 na literatura cyberpunk (Sterling, 1992, p. XI) com a obra de Willian Gibson: Neuromancer. Considerado um clássico da literatura cyberpunk, Neuromancer, além do termo cyberspace, também introduziu o termo “matrix” para se referir ao ciberespaço como uma rede global de simulação9. Sterling acrescenta que o “ciberespaço” não é uma fantasia de ficção científica, mas um “lugar” onde temos experiências genuínas e que existe há mais de um século: (...) o território em questão, a fronteira eletrônica, tem cerca de 130 anos. Ciberespaço é o “lugar” onde a conversação telefônica parece ocorrer. Não Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Quais são as traduções possíveis de uma realidade abstrata que se expressa O espaço entre os telefones. O lugar indefinido fora daqui, onde dois de vocês, | dentro do seu telefone real, o dispositivo de plástico sobre sua mesa. (...) [Mas] dois seres humanos, realmente se encontram e se comunicam. acontecem lá e têm conseqüências muito genuínas. (...) Este obscuro submundo elétrico tornou-se uma vasta e florescente paisagem eletrônica. Desde os anos 60, o mundo do telefone tem se cruzado com os computadores e a televisão, e (...) isso tem uma estranha espécie de fisicalidade agora. Faz sentido hoje falar do ciberespaço como um lugar em si. Porque as pessoas vivem nele agora. Não apenas um punhado de pessoas (...) mas milhares de pessoas, pessoas tipicamente normais. (...) Ciberespaço é hoje uma ‘Rede’, uma ‘Matriz’, internacional no escopo e crescendo rapidamente e constantemente.10 Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética Apesar de não ser exatamente ‘real’, o ‘ciberespaço’ é um lugar genuíno. Coisas 9 Argumento utilizado no filme The Matrix (1999). No original: (…) the territory in question, the electronic frontier, is about 130 years old. Cyberspace is the ‘place’ where a telephone conversation appears to occur. Not inside your actual phone, the plastic device on your desk. (…)The place between the phones. The indefinite place out there, where two of you, two human beings, actually meet and communicate. 10 30 natureza “virtual” do ciberespaço, apreendido, em muitos casos do senso comum, Julho de 2005 A preocupação de Sterling com o estatuto de “realidade” tem a ver com a que a “realidade” é “uma qualidade pertencente a fenômenos que reconhecemos terem um ser independente de nossa própria volição (não podemos ‘desejar que não existam’)” (Berger; Luckmann, 1998, p.11) basta para ver que essa oposição “virtual” versus “real” é ilusória e bastante confusa. Os crimes “virtuais” estão aí para nos mostrar de uma forma bem dura que a “virtualidade” do ciberespaço possui uma inegável natureza coercitiva de “realidade”. O fato é que já somos seres “virtuais” e “reais”, queiramos ou não, ao menos dentro dos grandes bancos de dados de corporações e governos. E cada vez mais temos o conhecimento – “a certeza de que os fenômenos são reais e possuem características específicas” (Berger; Luckmann, 1998, p.11) – de que o ciberespaço, apesar de “virtual”, é bastante “real”. É certo que os limites de significação do ciberespaço estão diretamente Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | como uma oposição à natureza “real” da “realidade”. Entretanto, o reconhecimento de têm no senso comum. Apesar do conceito do computador digital existir desde o | relacionados com a inteligibilidade que a produção e o progresso técnico e científico século XIX e o computador eletrônico ter surgido na década de 1940, o ciberespaço apenas por especialistas e técnicos. Durante muito tempo, foi o texto, na forma de complexos códigos de signos lógicos e mnemônicos textuais, e não a imagem visual, a mediação por excelência entre as máquinas computadoras e o homem. E mesmo assim não foi a primeira. A mediação derradeira entre o homem e a máquina computadora são os “bits”: sinais físicos que podem assumir apenas dois valores nos circuitos elétricos dos computadores convencionalmente representados por “um” e “zero”. O bit é o átomo da informação eletrônica: tudo que é armazenado, processado e intercambiado dentro dos computadores e entre eles são – fisicamente, nos mais diversos tipos de suporte – extensas seqüências binárias. O que temos no disco rígido, CD ou disquete Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética foi, até o início da década de 1970, uma abstração lógica e matemática compartilhada Although it is not exactly “real”, “cyberspace” is a genuine place. Things happen there that have very genuine consequences (…). (…) This dark electric netherworld has become a vast flowering electronic landscape. Since the 1960s, the world of the telephone has crossbred itself with computers and television, and (…) it has a strange kind of physicality now. It makes good sense today to talk of cyberspace as a place all its own. Because people live it now. Not just a few people, not just a few technicians and eccentrics, but thousands of people, quite normal people. (…) Cyberspace today is a ‘Net’, a ‘Matrix’, international in scope and growing swiftly and steadily. 31 Julho de 2005 são apenas cadeias binárias. O que trafega pelo cabo da impressora, pela linha telefônica ligada ao modem ou pelo cabo da rede são bits. A própria indexação das cadeias corretas que compõem um arquivo ou um programa estão em outras cadeias Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | binárias. Entretanto, um bit por si só não possui significado nenhum. Grosso modo, é o byte a menor unidade de significação digital. Um byte é convencionado como uma seqüência de 8 bits, o que lhe dá a possibilidade de assumir 256 valores (28) que podem ser expressos nas mais variadas notações: por exemplo, números – representados por “0 a 255”, “0 a 11111111” ou “0 a FF”, na base decimal, binária ou hexadecimal11, respectivamente – ou signos textuais dos mais diversos idiomas. Desde cedo, na informática, tabelas de conversão dos bytes para caracteres textuais foram padronizadas: por exemplo, no ASCII (American Standard Code for Information Interchange), o padrão quase universal para caracteres latinos, por exemplo, as letras maiúsculas de A à Z correspondem aos valores de 41 a 90 das 256 possibilidades do byte (cf. Norton, 1996: 339-342). A relação entre o computador e o número é inseparável desde o seu | ancestral tecnológico, a máquina de somar, construída por Blaise Pascal em 1642, a quem também é creditada a invenção da caixa registradora. Já o primeiro suporte a dar persistência ao dado surgiu com a invenção de Joseph-Marie Jacquard que Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética automatizou a indústria têxtil. O tear de Jacquard utilizava cartões perfurados com a seqüência de operações necessárias para a produção de um tecido, automatizando e objetivando o conhecimento antes restrito aos contramestres. Herman Hollerit, por sua vez, aperfeiçoou a tecnologia dos cartões perfurados dos teares de Jacquard com o uso da eletricidade para dar entrada aos dados de máquinas de somar e pôde, em 1890 consolidar os dados do recenseamento dos EUA em uma fração do tempo que seria normalmente necessário (cf. Gehringer; London, p.15-18). Contudo, essas máquinas ainda não eram exatamente cibernéticas. O caráter cibernético da computação está no seu caráter sistêmico onde um processo auto- 11 Existe uma correspondência direta entre as bases binária, decimal e hexadecial de numeração. O número decimal “10”, por exemplo, corresponde ao número hexadecimal “A” (não confundir com a letra “A”) e ao número binário 1010, conforme a seguinte tabela: Decimal 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 Binário 0000 0001 0010 0011 0100 0101 0110 0111 1000 1001 1010 1011 1100 1101 1110 1111 Hexadecimal 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 A B C D E F 32 compõe, não apenas o computador e suas partes internas, mas também os Julho de 2005 regulado de entrada e saída de informações se dá pela cadeia de dispositivos que genericamente chamadas “interfaces”, camadas responsáveis pela saída e entrada de dados de um dispositivo a outro ou de um sistema a outro. Assim, há interfaces entre dispositivos – por exemplo, entre o computador e a impressora, entre o computador e o teclado, entre o computador e o monitor – e há interfaces entre sistemas, muito mais complexas e realizadas, na verdade, por um conjunto de interfaces. É o que ocorre em uma máquina industrial computadorizada, como um torno, onde o confronto entre o programado e o real, entre o modelo e a peça, entre o número e o fato, resulta em um ajuste constante dos sistemas conectados. A interação sistêmica entre eletro-mecânica e computação é tal que o conjunto é percebido como uma coisa só. Isso não é diferente quando os homens e computadores precisam se relacionar. Teclado, monitor, mouse são, de fato, Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | dispositivos externos a ele. A comunicação entre os dispositivos é realizada pelas mesma forma que existem dispositivos de interface entre o computador e uma | dispositivos de interface específicos para a comunicação com o ser humano, da impressora, uma máquina qualquer, outro computador, etc. Do ponto de vista Alguns dos primeiros computadores modernos sequer possuíam interfaces com sistemas de signos compatíveis com a linguagem humana. Nas épocas pioneiras, de fato, era o ser humano que se desdobrava para “interfacear” com a máquina, como, por exemplo no caso do ENIAC (Electronic Numerical Integrator And Computer). O ENIAC é considerado um dos primeiros computadores modernos12 e, ao contrário de seus predecessores que eram desenhados para um fim específico13, ele podia ser programado para várias finalidades diferentes a despeito de ter sido originalmente desenvolvido para o cálculo de trajetórias balísticas. Desenvolvido a pedido das Forças Armadas dos EUA, ele ficou pronto em 1945 e era um monstro eletrônico com 17.480 válvulas eletrônicas (não existia ainda a tecnologia de Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética cibernético, esses circuitos podem ser considerados um sistema único. 12 Contudo, o ENIAC não é o primeiro computador digital. Em 1839, Charles Babbage, desenhou e desenvolveu o que é considerado o primeiro computador digital. A sua “máquina diferencial” era um computador mecânico projetado para solucionar problemas matemáticos, incluindo equações diferenciais. Apesar da máquina não ter sido construída, o seu trabalho incorporou vários princípios da computação que foram redescobertos quase um século depois. (Winegrad; Atsushi, 1996) 13 O Colossus desenvolvido em 1942 pela Inteligência Britânica, por exemplo, foi especificamente desenhado para decodificar as mensagens criptografadas pela máquina alemã Enigma, durante a II Grande Guerra. 33 m2, consumia quase 200 KW de eletricidade e todo o conjunto pesava cerca de 8 Julho de 2005 semicondutores que possibilitaram o transistor e o chip), ocupava uma área de 180 “interface” entre a máquina e o ser humano consistia de fios e botões para a programação, leitora de cartão perfurado para a entrada de dados e números decimais na saída de dados (figs. 1 e 2). Desde então, boa parte da história das interfaces entre o homem e o computador é a história de como traduzir um tipo de texto para outro tipo de texto. Os cartões perfurados, os botões e cabos de programação, ou os números apresentados nos displays dos primeiros computadores são, em essência, diferentes notações para mensagens textuais. De forma que o teclado e o monitor surgem em um contexto onde o objetivo era proporcionar Figura 1 Figuras 1 e 2. Fotos dos painéis de programação do ENIAC. Figura 2 Os sucessores do ENIAC incorporaram rapidamente dispositivos de “output” mais convenientes para o uso humano e mesmo mais compatíveis com a linguagem humana tais como teclado e monitores para exibição de caracteres alfanuméricos. Contudo, tais dispositivos eram apenas “mais um” dispositivo de interface e não eram, necessariamente, obrigatórios. Assim, não é de surpreender que o primeiro Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética | suportes mais adequados para a comunicação textual. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | toneladas. Mas apesar de todo esse tamanho, o ENIAC não possuía teclado: a microcomputador para uso doméstico, o Altair 8800 (fig. 3), lançado em 1975, causasse furor mesmo sem possuir sequer entrada para um teclado e muito menos conexão para monitor de vídeo. Às vistas de hoje, sua programação e entrada de dados soa algo irreal, era realizada por um conjunto de chaves e a visualização por 34 eletrônico para “hobbistas”, composto de peças e componentes soltos que eram Julho de 2005 meio de luzes (fig. 4). O Altair nem era mesmo entregue pronto, mas era um “kit” Era evidentemente um produto destinado não só para quem entendia de eletrônica mas para quem, pura e simplesmente, se divertia mexendo com eletrônica. Como não havia literatura a respeito de computadores e muito menos softwares e programas disponíveis, as pessoas que tinham ou queriam ter um personal-computer começaram a se reunir em “clubes” e associações onde técnicos, engenheiros e programadores se encontravam para discutir e trocar idéias sobre os problemas e implementações do Altair e tópicos relacionados. O mais famosos desses clubes foi o Homebrew Computer Club, de onde saíram alguns personagens de grande influência na história da computação: Adam Osbourne, Steve Jobs e Steven Wozniak, dentre outros. Osbourne lançou o primeiro laptop do mercado em 1981, quando os personalcomputers ainda engatinhavam; Jobs e Wozniak fundaram nada menos do que a Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | soldados e montados pelo próprio usuário, de acordo com um diagrama eletrônico. Computer Club, produziram o Apple I (fig. 5), o primeiro micro-computador a ser | Apple Computer. Em 1976, quando ambos ainda eram freqüentadores do Homebrew vendido montado14 e a fornecer conexão para um monitor e um teclado. Diz o folclore do clube e que Jobs transformou em produto. Mas, seja proposital ou não, o Apple I foi a prova de conceito – técnico e de mercado – que convenceram ambos a lançar o Apple II (fig. 6), no ano seguinte, com um design mais aperfeiçoado e melhorias técnicas, consolidando o conceito do computador como um “produto pronto”, entregue montado em um gabinete e pronto para usar. A popularização do microcomputador trazida pelo Apple II e o surgimento de softwares de processamento de textos e planilhas de cálculo, como o Visicalc, fizeram com que o computador saísse lentamente do terreno underground dos nerds. Contudo, mesmo com a entrada do IBM PC no início da década de 1980, que ampliou enormemente a penetração do microcomputador na sociedade, os personalcomputers continuaram a ter um público consumidor restrito. Foi apenas com o Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética que o Apple I era apenas um passatempo feito por Wozniak para mostrar aos amigos surgimento da interface gráfica, a “user friendly interface”, que, finalmente, pessoas sem nenhum conhecimento técnico puderam ligar um computador, usá-lo e desligá14 Montado não tinha o mesmo significado que o de hoje. Mas significava que o “kit” de componentes eletrônicos já vinha soldado na placa, ao contrário do concorrente Altair que era vendido apenas na opção de kit desmontado. 35 Figura 4 Figura 3: Capa da Popular Electronics que anunciou a chegada do primeiro personal computer (1975). Figura 4: A Interface do usuário do Altair 8800, que se resumia a botões e luzes. Julho de 2005 Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | que já encontrava ampla disseminação social: os videogames. | lo. Até então, o uso restritivo dos PCs contrastava com o outro uso dos computadores Figura 5 Figura 6 No ambiente tecnológico, o videogame não teve grande importância Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética Figura 3 acadêmica durante a década de 60. Em um ambiente dominado pela mentalidade matemática e racionalista que precisava justificar as verbas militares que alimentavam as pesquisa no auge da guerra fria, o videogame – exceto pelas versões computadorizadas do jogo-da-velha, xadrez e simulações relacionadas com a “teoria 36 videogame era uma mera curiosidade. Isso não impediu, contudo, que algumas Brookhaven National Laboratory (BNL), um laboratório de pesquisa nuclear em Upton - NY, montou uma máquina que chamou de “Tennis for Two” para entreter as pessoas do “Visitor’s Day” de 1958 no BNL. Era um jogo baseado na representação rudimentar do perfil de uma quadra de tênis na tela de um osciloscópio no qual dois jogadores brincavam com um ponto que quicava de um lado para outro da tela (figs. 7 e 8). Apesar do jogo ter sido um sucesso e ser reeditado na feira do ano seguinte, Higinbotham não patenteou a invenção por achá-la óbvia demais. Em 1962, Steve Russell e um grupo de alunos do Massachusetts Institute of Technology (MIT) desenvolveram o “Spacewar!” para a feira de ciência anual do instituto (figs. 9 e 10). O Spacewar! foi o primeiro videogame totalmente interativo, onde dois jogadores duelavam com suas respectivas naves e mísseis em ambiente eletrônico totalmente sintético e virtual, existente apenas na tela Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | tentativas fossem realizadas. William Higinbotham do Julho de 2005 dos jogos”, que tinham a ver com o desenvolvimento da inteligência artificial – o invenção e o Spacewar! disseminou-se pelo meio acadêmico e serviu livremente de | do computador. Da mesma forma que Higinbotham, Russell não patenteou sua Figura 8 Figura 9 Figura 7 Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética base para muitos videogames dos anos 70. Figuras 7 e 8: O “Tennis for Two” de Higinbotham (1958). Figuras 9 e 10: O “Spacewar!” de Russell (1962). Figura 10 37 pesquisa também na década de 1970, mas ao contrário daqueles – que levaram anos Julho de 2005 Assim como os microcomputadores, os videogames saíram do ambiente de criaram imediatamente sua demanda no campo do entretenimento. Eles popularizaram-se em dois segmentos de mercado que existem até hoje: em consoles para uso doméstico e engenhocas de fliperama denominadas de “arcades” (que quer dizer “galeria”) movidas a moedas de ¼ de dólar. O primeiro arcade videogame era uma versão adaptada do Spacewar, chamado de “Computer Space”, lançada por Nolan Bushnell em 1971. Mas não foi um sucesso. Possuía muitos botões e era difícil de entender. Bushnell teria dito que: Você tinha que ler as instruções antes de poder jogar, as pessoas não querem ler instruções. Para ter sucesso, eu tinha que fazer um jogo que as pessoas já soubessem jogar; algo tão simples que qualquer bêbado em um bar possa jogar (Winter, 2005). Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | procurando o mercado que definiria o formato do personal-computer – os videogames primeiro arcade de sucesso, com 38.000 unidades produzidas. O Pong era | Assim, em 1972, a nova empresa de Bushnell, a Atari, lançou o “Pong”, o basicamente uma simulação de um jogo de pingue-pongue na qual as raquetes eram ficava quicando na tela (figs. 11 e 12). Há relatos de que as pessoas faziam fila para jogar no protótipo do Pong instalado em um bar e que este teria “travado” no segundo dia porque estava atolado de moedas (cf. Winter, 2005). No ano de 1972 também foi lançado pela Magnavox (subsidiária da Phillips nos EUA) o primeiro console de videogame doméstico, o Odyssey, criado por Ralph Baer (ver fig. 13). A despeito de ser muito primário – não possuía placar e, a fim para agregar mais sofisticação à imagem, cada jogo era acompanhado de um painel de plástico transparente colorido que deveria ser colado à tela da TV (ver fig. 14) – o Odyssey vendeu cerca de 100.000 unidades no ano de lançamento. A Atari também passou a competir no mercado de consoles de videogame com uma versão doméstica do Pong em 1975. Em 1977 lançou o Atari 2600, um dos consoles de videogame mais populares já Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética pequenas barras controladas pelos jogadores e a bola um pequeno quadrado que produzidos que ficou conhecido simplesmente como “Atari”. 38 Julho de 2005 Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 13 Figura 12 Figuras 11 e 12: O arcade Pong (1972), da Atari. Figura 14 Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética | Figura 11 Figura 13: Cartaz publicitário do Odyssey (1972). Figura 14: Foto do Odyssey com seus acessórios, incluindo as telas com desenhos transparentes que eram colocadas à frente da televisão. 39 consoles domésticos surgiram e, depois do Pong, novos arcades foram inventados às Julho de 2005 O mercado de videogames cresceu rapidamente: novas gerações e inúmeros mundo. As rudimentares representações do “ciberespaço” de jogos como o Pong foram as primeiras representações visuais do ciberespaço a se popularizarem fora do círculo acadêmico. Enquanto os computadores mantinham o texto como a única forma de mediação entre o usuário e a máquina, os videogames já anunciavam a imagem como mediação por excelência entre o ser humano e o computador. A Atari, Magnavox, Taito, Sega, Nintendo e outras empresas introduziram, produziram e espalharam pelo mundo suas versões pioneiras de “realidades virtuais” ciberespaciais: ambientes gráficos de pequenos mundos sintetizados por computador explorados de forma sensível com o uso de joysticks e botões. Os videogames trouxeram à experiência das pessoas um tipo de relacionamento onde predomina a virtualidade sensorial em detrimento da racionalidade textual. Foram não só os Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | centenas e as casas de diversões eletrônicas espalharam-se pelas cidades do sociedade a familiaridade com os rudimentos do que viria ser chamado de “user | primeiros ciberespaços ao alcance do senso comum como disseminaram na friendly interface”, mais de uma década antes de surgir o primeiro personal-computer de fliperamas ou em pequenas versões de bolso, os videogames se apropriaram rapidamente da tecnologia que se desenvolvia na informática e instilaram em toda geração de adolescentes e crianças dos anos 70 e 80 a familiaridade com uma virtualidade eletrônica cristalizada na matriz de pixels de um monitor. Fora do âmbito do entretenimento, a tecnologia para que o computador se transformasse no suporte por excelência do “espaço cibernético” foi desenvolvida inicialmente no Xerox Palo Alto Research Center (PARC) em 1971 (fig. 17). Essas pesquisas materializaram-se no Alto, o primeiro sistema baseado em interface gráfica e responsável pelos padrões que tornaram-se indissociáveis de qualquer interface amigável. O Alto introduziu o conceito de ambiente gráfico que simula “janelas” (ver fig. 18) e incorporou um dispositivo de “input” chamado “mouse”, inventado em 1963 Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética com interface gráfica. Seja em consoles ligados a aparelhos de TVs, em engenhocas por Doug Engelbart, para manusear as janelas e outras entidades na tela do computador, de forma similar à que fazemos hoje. O mouse faz parte de um grupo de dispositivos conhecidos como “apontadores” (pointer devices), que inclui joysticks, trackballs e mesas digitalizadoras (sketchpads). Engelbart materializou o conceito do mouse em um protótipo de madeira (figs. 15 e 16) que serviu de modelo para os 40 por duas rodas posicionadas perpendicularmente sobre um plano, que repassavam Julho de 2005 mouses industrializados. No projeto original, a captura do movimento era realizada conceito é utilizado até hoje nos mouses de esfera, que possuem duas rodas internas em contato com uma esfera que lhes transmite o deslocamento do mouse sobre um plano. Os conceitos utilizados no Alto foram aperfeiçoados e resultaram no Xerox Star System, de 1981 (fig. 19). É fato notório que nem o Alto e nem o Star System obtiveram sucesso comercial mas seus conceitos convenceram Steve Jobs, da Apple, de que a interface gráfica era viável, levando-o a incorporá-la no sucessor do Apple II, o LISA de 1983 (fig. 20). Contudo, o primeiro personal-computer com interface gráfica possuía um preço proibitivo (cerca de US$ 10.000,00) e rapidamente a própria Apple lançou um sucessor com as mesmas qualidades, mas mais acessível, no ano seguinte. O Macintosh (fig. 21) foi lançado com estardalhaço em 1984 com uma Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | ao computador as coordenadas relativas do deslocamento do dispositivo. Esse daquele ano: “Em 24 de janeiro, a Apple Computer lançará o Macintosh. E você verá | propaganda dirigida por Ridley Scott (fig. 23) e exibida no intervalo do Superbowl porque 1984 não será como ‘1984’”, dizia a propaganda, em referência ao livro de Apple na época, a IBM). Com o Macintosh, caro mas acessível, e o lançamento subseqüente do MS Windows da Microsoft (fig. 22) – uma tosca máscara gráfica que mediava a interface textual dos PCs que rodavam o MS DOS – em 1985, a comunicação entre o homem e o computador deixou de ser necessariamente um processo de abstração lógica mediado por complexo código de comandos e mnemônicos textuais. A partir daí, o uso do computador tornou-se algo cada vez mais próximo da sensibilidade leiga e cada vez mais distante da racionalidade técnica. Com a mediação de um ambiente gráfico, não dependemos mais do conhecimento do “texto” tecnológico que faz o computador funcionar. Algo mais próximo dos velhos videogames que acompanharam a infância e adolescência das gerações pós-1970, a interface user friendly privilegia a relação sensível do usuário Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética George Orwell (e o Big Brother era a metáfora, é claro, do maior concorrente da com um ambiente virtual, como já faziam os videogames, em detrimento do tradicional (e inibidor) código textual piscando sobre uma tela escura. 41 | Figura 17 Figura 19 Figura 21 Figura 16 Figura 20 Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 18 Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética Figura 15 Figura 22 Figura 23 42 Julho de 2005 Enquanto abstração, o ciberespaço é apenas a metáfora de fatos físicos e Julho de 2005 O ambiente gráfico rompeu a cadeia textual que ia do bit ao nosso cérebro. ciberespaço ganha uma dimensão sensorial que é inacessível por meio do texto. Talvez não seja apenas uma coincidência que o termo “cyberspace” tenha surgido em 1984, no mesmo ano do lançamento do Macintosh, uma década depois do surgimento do personal-computer, 12 anos depois do Pong e do Odyssey e depois de 4 anos de Toffler afirmar que estávamos na Terceira Onda e viveríamos em “cabanas eletrônicas”, versões computadorizadas e “business oriented” da aldeia global de McLuhan. Como resposta cultural às redes de computador cada vez mais presentes nas empresas, governos e escolas, a noção de “ciberespaço” é uma forma de conferir sentido àquilo que contraria a categoria fundamental do espaço, reconstituindo-o sobre aquilo que subverte justamente o próprio espaço. Surge uma nova espacialidade na forma de simulacro – a realidade virtual – onde a nossa experiência Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | matemáticos. Mas na forma de realidades visuais e (sonoras) sintéticas, o presencial. Não por acaso, em 1984, no mesmo ano em que o Macintosh introduziu o | se realiza, aos nossos sentidos, de forma análoga a que experimentamos no mundo “desktop virtual” no mercado de consumo, William Gibson anunciou o ciberespaço Cyberspace. A consensual hallucination experienced daily by billions (…)... A graphic representation of data abstracted from the banks of every computer in the human system. Unthinkable complexity. Lines of light ranged in the non space of the mind, clusters and constellations of data. Like city lights, receding...15 (Gibson, 1984, p.51) Sob influência das realidades virtuais, a noção do senso comum de ciberespaço é essencialmente o visual, em detrimento do textual. E, desde que imagem e texto possuem naturezas diferentes, a substituição de uma pela outra não deixa de ter conseqüências. Ao contrário do que ocorre com as imagens e os bits, conversão um texto para bits ou vice-versa não é exatamente uma questão de tradução, mas de notação: a seqüência de letras “i-m-a-g-e-m” e a seqüência de Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética como um espaço lisérgico que exacerba a dimensão sensorial do virtual: números hexadecimais “69-6D-61-67-65-6D” possuem uma relação unívoca. Uma 15 “Ciberespaço. Uma alucinação consensual vivida diariamente por bilhões (...)... Uma representação gráfica dos dados abstraídos dos bancos de dados de cada computador no sistema humano. Complexidade inimaginável. Linhas de luz enfileiradas no não-espaço da mente, agregados e constelações de dados. Como cidades de luz, retrocedendo...” 43 trafegar ao longo da cadeia de interfaces de um sistema sob várias notações sem que Julho de 2005 vez criada e até ela ser modificada ou eliminada, uma mensagem textual pode um mnemônico digitado pelo usuário para a execução de uma função do computador, a cadeia de eventos será um processo textual, desde a mentalização do mnemônico até sua transformação nos bits que trafegam na forma de corrente elétrica nas placas de circuito impresso e pelos chips. Mas isso não acontece com a imagem. No limite, é possível “ler” um texto na sua forma binária, porém “ver” a imagem na forma binária, é praticamente impossível. A descontinuidade entre um sistema de comunicação mediado pelo texto e outro mediado na imagem fica evidente, por exemplo, na impossibilidade de se adaptar interfaces gráficas para deficientes visuais, ao contrário do que ocorre com interfaces textuais, onde o monitor de raios catódicos é facilmente substituído por um terminal Braille. Ou, de forma inversa, a conversão de softwares desenvolvidos para Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | ela perca qualquer fragmento do seu conteúdo. E mesmo quando a questão é traduzir de outro software, ao contrário da suposição, que já foi muito arraigada entre os | ambiente textual para softwares “user friendly” requer, na prática, o desenvolvimento profissionais de software, de que a “imagem” é apenas um “texto” mais sofisticado. A compromete a intuitividade que um ambiente gráfico deve ter. O fato é que não existe a “migração” de um aplicativo de interface textual para a interface gráfica. Tentativas nesse sentido, geralmente resultam em fracasso. A versão gráfica de um aplicativo, originalmente desenhado para interface textual, requer tantas modificações de design e engenharia de software que resulta, na prática, em outro sistema. Isso ocorre justamente porque há uma descontinuidade que existe entre um sistema de comunicação baseado em texto e um sistema de comunicação baseado em imagem. Enquanto a interface textual manifesta a própria informação apenas na forma de texto, em uma cadeia contínua desde os bytes que circulam no computador, a interface gráfica simula um ambiente visual onde prevalece a interação com entidades imagéticas, sejam elas veículos de conteúdo Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética simples agregação de uma “casca gráfica” geralmente mutila o aplicativo original e textual, como a tela de um editor de texto, ou não, como o cursor do mouse. É certo que a interface gráfica não se desvencilhou do texto, até porque, assim como há especificidades que somente podem ser expressas na forma de imagem, há aquelas que só podem ser expressas na forma de texto. E, como nota Quéau (1993, p.91), é um processo onde o “legível engendra o visível”: a realidade virtual instituiu “uma 44 podem produzir, diretamente, imagens”. Essas imagens não são simplesmente a Julho de 2005 nova relação entre imagem e linguagem” e “pela primeira vez, formalismos abstratos sintéticos construídos pela manipulação numérica do átomo da imagem eletrônica: o pixel. Toda imagem eletrônica é um mosaico matricial de pequenos pontos, os pixels, cada qual com uma gradação de luz e cor. Ao contrário da televisão – onde o pixel é resultado de um processo de “contágio” da luz através dos vários suportes da maquinaria óptico-eletrônica desde o momento da sua captura – o computador domina cada ponto da imagem: ele substitui “o automatismo analógico das técnicas televisuais pelo automatismo calculado, resultante da informação relativa à imagem. (...) Cada pixel é um permutador minúsculo entre imagem e número” (Couchot, 1993, p.38-39). A imagem gerada pelo computador não prescinde de uma realidade visual precedente já que ela não é cópia do real, mas um produto da simulação de modelos Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | reproduções de algo que já existe, “cópias” de outras realidades, mas produtos de realidade, reduções lógicas e matematizadas contidas nos dados e nos programas | de computador. Como nota Couchot, (1993, p.24): Se alguma coisa preexiste ao pixel e à imagem é o programa, isto é, linguagem e o mundo real, ela o simula. E por meio dessas simulações, até mesmo o texto é mascarado como imagem. Com efeito, mesmo o texto de uma “caixa de alerta” passa a ser subordinada à lógica engendrada pela imagem: antes de ser lida, ela é “vista” em uma das janelas (a caixa de alerta) do ambiente gráfico com o qual o usuário interage. A interface gráfica com a qual o usuário se relaciona não é simplesmente uma tradução visual do dado textual. Ela também “incorpora um modo de ver” 16 a realidade tecnológica dentro de novos contextos e articulada ao conhecimento prévio e consensual acerca de determinadas realidades coletivas. Esse conhecimento fornece certas expectativas, adquiridas pela experiência passada, que são aplicadas Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética números, e não mais o real. Eis porque a imagem numérica não representa mais aos “infogramas”, entidades funcionais que se revestem de aparências de objetos 16 An image is a sight which has been recreated or reproduced. It is an appearance, or a set of appearances, which has been detached from the place and time in which it first made its appearance and preserved – for a few moments or a few centuries. Every image embodies a way of seeing (Berger, 1971, p.09-10). 45 infogramas são signos que funcionam como parte de um sistema de metáforas Julho de 2005 conhecidos e com os quais supostamente compartilham características. Os representação (...) propondo analogias entre o contexto normal de uma palavra ou imagem e um contexto novo no qual é arbitrariamente introduzida” (Quéau,1993, p.93). Os infogramas – os “ícones” do nosso computador, os elementos visuais de um videogame, o cursor do mouse – são como componentes semânticos de um determinado contexto que articulam traços de semelhança e de funcionalidade de objetos de outros contextos. “Quanto de cópia deve a cópia ter para ter efeito sobre aquilo de que é cópia? Quão ‘real’ a cópia deve ser?” 17 (Taussig, 1993, p. 51). Ao contrário da suposição de que uma realidade virtual deve ser idêntica àquela que ela substitui, a semelhança visual e funcional do infograma em relação aos objetos autênticos é relativa e freqüentemente muito rudimentar. Essa relativização e rudimentaridade não impedem Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | lingüísticas e visuais que “buscam compensar os limites dos sistemas de e um quadrado possa ser uma bola, apesar do nosso dedo não se parecer com uma | que, no contexto da realidade virtual, o cursor do mouse possa ser nosso dedo virtual seta e de uma bola não possuir cantos. São como aquilo que Taussig chamou de daquilo que mimetizam mas também objeto de projeção de expectativas e instrumento de transformação dos originais que representam. A interface gráfica, sintetizada na metáfora do desktop virtual, nada mais é do que um meio de articular o conhecimento de senso comum em modelos de simulação que engendram experiências análogas às experiências adquiridas pelo usuário em outros contextos. A mimese se dá, portanto em dois planos, no plano visual e no plano funcional: no primeiro, o que importa são os traços que nos permitem reconhecer que tal ou qual infograma é uma pasta ou um documento e, no segundo, o que importa é que os atributos funcionais do arquivo digital ou diretório do sistema de arquivos no disco rígido sejam suficientemente análogos ao que esperamos encontrar em um documento ou pasta. Essa síntese entre aparência e funcionalidade Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética “ideogramas pobremente executados” (“poorly executed ideogram”), síntese de traços permite que possamos aproveitar nosso conhecimento prévio acerca das pastas e documentos para supor que – ao manusearmos os simulacros virtuais de arquivos e 17 “How much of a copy does the copy have to be to have an effect on what it is a copy of? How ‘real’ does the copy have to be?” 46 diretórios mas que arquivos jamais contenham diretórios, da mesma forma que Julho de 2005 diretórios com aparência de documentos e pastas – diretórios possam conter Assim, em uma lógica semelhante à popularizada anteriormente pelo videogame, a imagem, ou melhor, os sistemas de imagens articulados por modelos de simulação passaram a dominar nossa relação com o computador, possibilitando realidades nas quais “clicar” e “arrastar” documentos com um “mouse” passassem a fazer mais sentido do que digitar “move C:/dir_1/dir_N/meu_arquivo.DOC C:/dir_2/dir_N”. Aqui, o olho acoplado ao mouse torna-se o órgão do conhecimento tátil que, interagindo com as simulações imagéticas dos softwares, passa a ser “como a mão do cirurgião que corta e entra no corpo da realidade para apalpar as massas palpitantes dentro dela”18 (Taussig, 1993, p. 31). A realidade virtual da interface gráfica é uma “bricolagem” construída através de coleções de “mensagens” – os infogramas – e constitui não só a camada de Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | pastas podem conter pastas mas documentos jamais contêm pastas. mais socialmente compartilhada, ao contrário das mediações puramente textuais. | interação sensível entre o homem e o ciberespaço como a modalidade de mediação Mas as representações imagéticas da informação digital implicam em uma simulação. A realidade virtual opera em dois sentidos, um que cria mundos sensoriais da informação digital e outro que trabalha ocultando a estrutura tecnológica e material do ciberespaço. Um “infograma” é tanto um meio de dissimular o mundo abstrato que o engendra como um meio de torná-lo tangível. “Enquanto ‘imagens’, elas [as realidades virtuais] não nos permitem entender o modelo abstrato que as engendra, mas abrem uma janela para ele” (Queáu, 1993, p.92). Por mais perfeito que venha a ser um modelo de simulação, ele será sempre marcado por dois movimentos ambíguos: o mesmo poder de simular mundos é o poder de falsificar e mascarar19. Com efeito, ao mesmo tempo em que o “desktop” eletrônico media nossa experiência sensível no ciberespaço, ele oculta tudo aquilo que não pode ser traduzido porque não faz sentido ou é desnecessário para a emulação dessa experiência. A realidade Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética descontinuidade entre aquilo que vemos e aquilo que realmente está por trás da virtual, portanto, estabelece uma ordem não só de classes, mas também de domínios: 18 “...like the surgeon’s hand cutting into and entering the body of reality to palpate the palpitating masses encloses therein.” 19 “Once the mimetic has sprung into being, a terrifically ambiguous power is established; there is born the power to represent the world, yet that same power is a power to falsify, mask and pose. The two powers are inseparable”. (Taussig, 1993: 42-43). 47 necessária uma reconstrução seletiva no domínio cotidiano (onde existem pastinhas Julho de 2005 para estender nossos horizontes de interação sensorial com o computador, é (onde o amarelo da pastinha é um número hexadecimal de valor “FDE985” e o número “dez” é um byte de valor “00001010”). A interface gráfica naturaliza o tecnológico justamente porque o oculta. Ela traz à percepção uma realidade que antes só podia ser acessada com o domínio de complexos textos, tornando-a acessível como uma forma de experiência ao alcance dos olhos e das mãos. Assim, a interface gráfica permite replicar aspectos do nosso mundo e criar novos mundos também. A plenitude da palavra “cyberspace”, associada a um espaço global, só foi possível quase uma década depois da invenção do termo, graças a invenção da World Wide Web e do browser, as janelas user friendly da Internet, que trouxeram para a singularidade de nossos escritórios e dormitórios o alcance de uma rede Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | amarelas e se conta até dez) das realidades provenientes do domínio tecnológico mais uma evidência da familiaridade e naturalização que as realidades virtuais | mundial agora na forma de imagens, sons e textos em torrentes multimídia. Como promovem, o formato “user friendly” da Internet, instanciada na forma de janelas de o único – de interação entre o usuário e a Internet. A contrapartida da naturalização do ciberespaço é que nos tornamos, também, extensão dele: na medida em que a virtualidade se transforma em campo de ação prática, cada vez mais a realização do ser humano prescinde de sua inserção como coisa virtual do ciberespaço. Essa perspectiva traz algumas implicações. Ao contrário do que ocorre no mundo presencial, onde o corpo e a presença da pessoa são indissociáveis, no mundo virtual o corpo de carne não só é desnecessário, como se configura como uma âncora que conspira contra a plena realização das potencialidades do cogito no ciberespaço. Como observa Le Breton (2003, p.148), o corpo se “transforma ao longo do tempo em algo estorvante, excrescência desastrada do computador”. Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética nosso desktop, tornou-se rapidamente o meio predominante – para o senso comum, Não por acaso, o corpo já é visto por alguns expoentes da cibercultura como uma barreira incompatível com a tecnologia: “O corpo é obsoleto”, diz Stelarc, um artista que realiza performances interferindo e alterando seu corpo com a tecnologia. Para Stelarc, o corpo não pode mais dar conta com a “quantidade, complexidade e qualidade da informação que acumulou” e é “intimidado pela precisão, velocidade e 48 (1998) fizeram sobre “ter um corpo” e “ser um corpo” 20, Stelarc afirma: Julho de 2005 força da tecnologia” (Stelarc, s.d.). Tomando a distinção que Berger e Luckmann neurológico, as pessoas meramente atuam como mentes, imersos em brumas metafísicas. O sociólogo P.L. Berger fez uma distinção entre “ter um corpo” e “ser um corpo”. COMO SUPOSTOS AGENTES LIVRES, AS CAPACIDADES DE SER UM CORPO SÃO REPRIMIDAS POR TER UM CORPO (Stelarc, s.d., realce do autor). Os monitores de vídeo, mouses, alto falantes e microfones que usamos hoje em dia são interfaces que existem apenas porque há um corpo anacrônico entre a máquina e a “pessoa” reduzida ao cogito. Dentro de uma lógica instrumental, esse corpo de carne é um evidente obstáculo a ser contornado para a realização da pessoa virtual. Daí uma das mais fortes tendências ciberculturais, senão a predominante, ser o elogio ao pós-orgânico onde o corpo torna-se algo sujeito a Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Reforçados pela convenção cartesiana, conveniência pessoal e design Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética | retificações e melhorias técnicas, quando não à eliminação, como qualquer máquina. 20 “Por um lado, o homem é um corpo, no sentido em que isto pode ser dito de qualquer outro organismo animal. Por outro lado, o homem tem um corpo. Isto é, o homem experimenta-se a si próprio como uma entidade que não é idêntica a seu corpo, mas que, pelo contrário, tem esse corpo ao seu dispor” (Berger e Luckmann, 1998, p.74). 49 O corpo na era do pós orgânico Julho de 2005 II.3. contemporâneos mais visíveis de uma sociedade na qual a presença da pessoa está cada vez mais dissociada de seu corpo orgânico. A necessidade de sublimação do corpo, nitidamente visto como um “excesso” no elogio ao virtual típico da cibercultura, é conseqüência de uma tendência mais ampla, onde o corpo se tornou, em muitas circunstâncias, algo ineficiente – e portanto, indesejável – na sua forma in natura. É indiscutível que a sociedade informática nos coloca à frente de uma época de “desabono ao corpo”: (...) fato vivido em seu nível por milhões de ocidentais que perderam sua relação de evidência com um corpo que só utilizam parcialmente. No limite, esse sonho de uma humanidade livre do corpo é lógica nesse contexto em que o veículo é rei e o ambiente é excessivamente tecnicizado, e no qual o corpo não é mais o Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | A ausência do corpo nas relações ciberespaciais é um dos sinais Breton, 2003, p.20-21). | centro irradiante da existência, mas um elemento negligenciável da presença (Le A desvalorização do corpo decorre da perspectiva mecanicista da cibernética, descobertas científicas e tecnológicas – sobretudo das bio-tecnologias – parecem corroborar o paradigma cibernético: além dos computadores e sistemas informáticos que simulam e potencializam o trabalho da mente, a própria vida parece ser, no limite, uma espécie de máquina que se desenvolve e funciona de acordo com uma programação criptografada nos genes. O modelo cibernético é impregnado de um behaviorismo radical segundo o qual toda máquina ou ser vivo é definido por um permanente feedback entre as informações nele programadas e as informações provenientes do ambiente exterior. Na perspectiva cibernética, o modelo do corpo é, invariavelmente, a máquina. Contudo, longe de ser contemporânea, a imagem mecanicista do corpo é anterior à cibernética. É notório que o período renascentista foi marcado não só pela Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética na qual organismos e artifícios são reduzidos a meros sistemas de informação. As valorização das proporções matemáticas do corpo como pela introdução de um modo de ver esse mesmo corpo que é, formalmente, o mesmo modo de ver que planifica os artefatos e máquinas. O Homem Vitruviano (fig. 24), de Leonardo Da Vinci, é uma das mais emblemáticas representações da matematização do corpo humano. O desenho 50 proporções do corpo humano a partir da largura dos dedos. Inscrito dentro de um Julho de 2005 refere-se a uma passagem onde o arquiteto romano Marcus Vitruvius descreveu as celebra o corpo humano como um ideal matemático. Apesar de ser uma espécie de representação de um homem-protótipo que já insinua a separação do corpo da noção Figura 24 Figura 25 O corpo que se separa em partes já estava enunciado em outros estudos do próprio Da Vinci, como, por exemplo, os seus desenhos sobre a anatomia do braço (fig. 25). Mas foi Vesálio que desmontou o corpo e deu autonomia às suas partes, consolidando a “representação médica do corpo que não é mais solidária de uma visão simultânea do homem” (Le Breton, 2003, p.18). Em 1543, Vesálio publicou De Humanis Corporis Fabrica, ou “do funcionamento do corpo humano”, onde ele representou o corpo como se representa uma máquina. É um corpo que pode ser Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética | de pessoa, o Homem Vitruviano ainda mantém o princípio do todo. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | quadrado e de uma circunferência cujo centro é o umbigo, o Homem Vitruviano “desmontado” por camadas – do corpo esfolado com os músculos visíveis (fig. 26) ao esqueleto desprovido carne (fig. 27) – e em partes que são desenhadas separadamente para uma análise mais minuciosa – uma caixa torácica (fig. 29) ou uma traquéia e laringe conectada aos tubos bronquiais (fig. 28) – e, quando 51 da mandíbula (fig. 30) – exatamente como são tratadas as representações das peças Julho de 2005 necessário, em vistas ortogonais – o verso e o reverso dos ossos da mão (fig. 31) ou de uma máquina. Vesálio instituiu a visão na qual o corpo nada mais é do que a Figura 26 Figura 27 Figura 30 Figura 28 Figura 29 Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | articulação de mecanismos e peças elementares. Figura 31 52 também fundam uma separação radical onde o corpo se desconecta da morte que, Julho de 2005 Ao realizar um tipo de “engenharia reversa” do corpo, os desenhos de Vesálio desconexão, o corpo-artefato de Vesálio também se desconecta da pessoa, esta sim sujeita à morte: O corpo, como representação, é desligado do campo negativo da morte, e a compreensão de seu funcionamento passa a ser assimilada, progressivamente, à de processos mecânicos, físicos e químicos totalmente objetivos. (...) Vesálio trabalha sobre um corpo-artefato destituído e separado da alma da morte (Leite Leite Brandão, 2003, p.292). As pranchas de Vesálio antecipam um olhar e um método que se tornaram típicos da modernidade. Um olhar esvaziado de sentimento e um método que desmonta o corpo em partes para compreensão do todo. Separado da pessoa, o corpo-artefato de Vesálio não suscita empatia e seu desmonte em conjuntos de Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | de fato, está ligada aos cadáveres que servem de modelos. Ao realizar essa artesão poderia reproduzir tais “peças”, desde que com os recursos técnicos | peças cada vez mais elementares conduzem, no limite, à idéia de que um exímio necessário e um bom “projeto” – do qual De humanis corporis fabrica seria um Leite Brandão (2003, p.293) observa que o projeto de Vesálio é similar ao cartesianismo, onde o cogito constituinte do sujeito, é totalmente distinto do corpo e do universo reduzidos “às propriedades geométricas e mecânicas passíveis de serem compreendidas e manipuladas pelo espírito”. Le Breton (2003, p.18) acrescenta que Descartes, ao desligar a “inteligência do homem de carne”, transformou o corpo apenas no “invólucro mecânico de uma presença; no limite poderia ser intercambiável, pois a essência do homem reside, em primeiro lugar, no cogito”. Segundo o autor: Descartes formula com clareza um termo-chave da filosofia mecanicista do século XVII: o modelo do corpo é a máquina, o corpo humano é uma mecânica discernível das outras apenas pela singularidade de suas engrenagens. Não Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética escorço – em mãos. passa, no máximo, de um capítulo particular da mecânica geral do mundo. As concepções do corpo introduzidas por Descartes e Vesálio disseminaramse durante o Iluminismo e resultaram em profundas modificações na forma como o 53 torna-se dominante a visão científica na qual “as partes, organizadas e em função, Julho de 2005 homem é visto pelo próprio homem. Segundo Coli (2003, p.300), com o Iluminismo homem. Antes “seus pedaços não formavam elementos constituintes”. Acrescenta o autor: Assiste-se, paralelamente, ao adentrar pela cultura dos últimos séculos, a um fascínio pelo humano que se desmembra. (...) Cria-se, por assim dizer, uma poética do fragmento. Posto que a visão mecanicista do corpo possui uma longa tradição no pensamento ocidental, é importante ressaltar que por mais que o corpo fosse visto como uma máquina, não era ainda, de fato, uma máquina. Isso mudou com a cibernética. “Wiener foi decerto o primeiro a embaralhar as fronteiras do autômato e do Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | produzem o todo”, quebrando a unidade divina irredutível que era conferida ao vivo. Da mesma maneira que ele dissolve a especificidade do homem sob o | ângulo do mecanismo, proporciona à maquina um sistema de organização que a aparenta ao vivo” (Le Breton, 2003, p.182). pensar o corpo. A poética do fragmento fundiu-se à poética da máquina. Cada parte do corpo é, desde então, um objeto passível de ser substituído ou melhorado por máquinas, tendo em vista o desempenho e de acordo com as possibilidades tecnológicas em permanente evolução. Assim, o monstro construído pelo Dr. Frankenstein dá lugar ao ciborgue e os retalhos de cadáveres dão lugar a reluzentes, limpas, e eficientes máquinas biônicas. Resultado da contração de cybernetics organism, o termo “cyborg” foi apresentado em 1960 por Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline (1995, p. 30-31) no Psychophysiological Aspects of Space Flight Symposium. No simpósio, eles sugeriram que “alterar as funções corporais do homem para se atingir os requisitos dos ambientes extraterrestres pode ser mais lógico do que prover um ambiente Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética Essa concepção do vivo, e do não-vivo, resultaram em novas formas de terrestre para ele no espaço”. Inspirados por uma experiência realizada nos anos 50 em um rato, no qual foi acoplada uma bomba osmótica que injetava doses controladas de substâncias químicas, os autores propuseram que o astronauta fosse ligado fisiologicamente a sistemas capazes de monitorar e regular as funções físico- 54 espacial. Propuseram o termo “cyborg” para o acoplamento de um organismo com Julho de 2005 químicas e deixá-lo dedicado apenas às atividades relacionadas com a exploração do conjunto para novos ambientes. Associadas com as promessas das tecnologias biônicas, o ciborgue proposto por Clynes e Kline tornou-se imagem da transposição dos limites humanos e figura emblemática dessa “nova ordem do real” baseada na cibernética. O termo “bionics” foi cunhado pelo Major Jack Steele da Força Aérea Americana em 1958 e popularizado no primeiro “Bionics Symposium”, em 1960. Segundo Steele (Gray, 1995, p. 62), o termo surgiu da palavra grega “bion” – “unidade de vida em oposição à ‘morphon’ com ênfase na forma” – acrescida do sufixo “ics”, utilizada amplamente para denominação de áreas de conhecimento ou outras atividades como “mathematics” ou “athletics”. Ao contrário de apenas buscar a imitação da aparência e de funcionamento de sistemas biológicos, como ocorre com a bio-mimética em geral, Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | componentes exógenos capazes de auto-regular e estender as funções fisiológicas disciplina que utiliza princípios derivados de sistemas vivos na solução de problemas | a biônica é um processo de design. Para Steele (Gray, 1995, p. 62), a “biônica é a de design” e sua especificidade está em um método que sistematiza a análise “Tendo selecionado um problema, o sistema biológico e os processos responsáveis pela sua solução são analisados. A informação é formalizada ou descrita matematicamente e aplicada à solução do problema de engenharia. Esta é a análise, formalização e síntese representada no símbolo biônico” (Steele, 1995, p. 58). Em 1972, sob influência dos discursos científicos do ciborgue e da biônica, Martin Caidin publicou a ficção científica Cyborg, um dos primeiros produtos literários a tratar da artificialização do corpo como forma de superar os limites humanos. O livro conta a história de um piloto de testes da Força Aérea americana, Steve Austin, que após um grave acidente, é reconstruído com partes biônicas pelo laboratório cibernético do Dr. Killian: Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética biológica, a formalização matemática e a síntese da engenharia: “(...) para transformar a carcaça de um humano mutilado não apenas em um novo homem, mas em um tipo totalmente novo de homem. Uma nova raça. Um casamento da biônica (biologia aplicada à engenharia de sistemas eletrônicos) e 55 (Caidin, 1972, p. 55-56 apud Abbate, 1999) Julho de 2005 cibernética. Um organismo cibernético. Chame-o de ciborgue...”21 biônica reinventada que, sob a inspiração da idéia de Clynes e Kline, torna-se o meio de superar a natureza humana com o acoplamento de máquinas melhores que os sistemas biológicos que elas substituem. A história do homem biônico Steve Austin ganhou notoriedade com a famosa série de TV intitulada The Six Million Dollar Man (“O Homem de Seis Milhões de Dólares”) veiculada na década de 1970 (Abbate, 1999) e a figura do homem-biônico cujo corpo natural é melhorado com o acoplamento de máquinas vem, desde então, sendo reproduzida à exaustão. Como nos lembra Pyle (2000, p.125), “quando fazemos ciborgues – ao menos quando os fazemos nos filmes – também fazemos e, nessa ocasião, desfazemos nossas concepções sobre nós mesmos”. O ciborgue é, antes de tudo, um homem que se dispõe em fragmentos, como nas pranchas de Vesálio, para os Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | O ciborgue que Caidin legou para a cultura de massas é produto de uma resistência, velocidade, força, durabilidade – melhor. The Six Million Dollar Man e | quais se abre a possibilidade de substituição por produtos que tenham desempenho – outros ciborgues imaginários anunciam a imagem de um homem “melhorado” com a O ciborgue, seja ele imaginário ou não, é produto do pensamento utilitarista aplicado sem limites (se é que há algum limite para esse tipo de pensamento) à fusão da carne com o aço e o plástico: feita a concessão, que pode ser justificada por um acidente ou não, a “performance” passa a ser a noção fundamental para a reformulação do ser humano na direção do “pós-orgânico”. Apesar de serem representações imaginárias, é certo que o homem pósorgânico só tem sentido a partir dos resultados socialmente concretos e promessas palpáveis da ciência e da tecnologia, sem os quais o ciborgue não seria sequer inteligível. Talvez o marca-passo cardíaco seja o primeiro marco, para o homem comum, da dissolução efetiva das fronteiras entre organismo e artifício propostas pela teoria cibernética. Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética acoplagem da tecnologia e cada vez mais além das limitações ditadas pela natureza. Desenvolvido para pessoas cujo coração bate muito lentamente, o marcapassos é, em essência, um dispositivo eletrônico que envia pulsos elétricos ritmados 21 No original: “(...) to create out of the mutilated human wreck not only a new man but a wholly new type of man. A new breed. A marriage of bionics (biology applied to electronic engineering systems) and cybernetics. A cybernetics organism. Call him cyborg...“. 56 passo foi apresentado em 1955. Desenvolvido por Paul Zoll, o PM-65 consistia de um Julho de 2005 para o coração a fim de estimulá-lo a bater mais rapidamente. O primeiro marca- monitoração do ritmo cardíaco. Apesar de manter o paciente vivo, o PM-5 transformava a pessoa em uma espécie de eletrodoméstico que precisa ficar permanentemente ligado na tomada. Além disso, ele era tão grande e pesado que requeria um carrinho (fig. 32). Em 1957, Walton Lillehei apresentou um modelo muito menor (fig. 33), alimentado por baterias e que podia se amarrado ao corpo do paciente, restituindo sua mobilidade. Finalmente, em 1958, apenas uma década após a publicação de Cybernetics, começou a era na qual máquinas são acopladas definitivamente ao homem para corrigir seus corpos defeituosos. Naquele ano, em Estocolmo, Ake Senning implantou o marca-passo desenvolvido por Rune Elmqvist no corpo de Arne Larsson, que viveu – após passar por praticamente todas as gerações de marca-passos – até 2001, quando faleceu por motivos que não estavam Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | gerador de pulsos elétricos sobre o qual era montado um eletrocardiógrafo para a com seus antecessores, um disco com 5,5 centímetros de diâmetro com 1,6 | relacionados com o coração. O primeiro marca-passo implantado era, em contraste Figura 32 Figura 33 Figura 34 A busca por dispositivos que corrijam corações defeituosos ou mesmo que venham a substituí-los completamente é exemplar. A implantação de marca-passos tornou-se rapidamente um procedimento corriqueiro e eles passaram a ser, de fato, Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética centímetro de espessura e possuía autonomia de 12 a 18 meses (fig. 34). cibernéticos ainda nos anos 60, quando incorporaram mecanismos de feedback: sensores capazes perceber quando o coração bate por conta própria ou quando precisa de ajuda externa. Desde os anos 70, os marca-passos são dispositivos que podem ser programados externamente por rádio, dispensando a intervenção cirúrgica 57 computadores programados para reagir a diversas circunstâncias cardíacas. Marca- Julho de 2005 para esse procedimento e, a partir dos anos 90, eles passaram a ser pequenos paciente tornar-se-ão comuns. A história de sucesso do marca-passo – a do pequeno dispositivo que auxilia o órgão deficiente – se contrapõe à menos bem sucedida busca por um artefato capaz de substituir integralmente o coração. Em 1969, Denton Cooley, do Texas Heart Institute, conectou, pela primeira vez, um primeiro coração artificial ao ser humano como procedimento de emergência. O paciente sobreviveu por 55 horas ligado ao coração artificial até que recebesse um coração humano. Mas foi somente mais de uma década depois, em 1982, que um ser humano teve um coração artificial implantado em seu corpo. No Centro Médico da Universidade de Utah, William De Vries implantou em Barney Clark um coração modelo Jarvik-7, transformando-o imediatamente em espetáculo. Clark, o protótipo de uma nova era, atraiu a fascinação Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | passos que também monitoram e gravam o histórico da atividade cardíaca do publicados ao longo dos 112 dias até sua morte por falência múltipla dos órgãos. Diz- | da mídia. Relatórios quase que diários sobre o estado de saúde de Clark foram se até que repórteres tentavam entrar na UTI escondidos nos “cestos de roupa da O Jarvik-7 era implantado na caixa torácica, porém permanecia ligado por tubos a um compressor de ar externo, trazendo os mesmos problemas dos primeiros marca-passos externos: falta de mobilidade e um canal de entrada para infecções. Descobriu-se também que a descontinuidade das superfícies do Jarvik-7 propiciava a formação de trombos e coágulos, capazes de provocar derrames. De Vries implantou ainda o Jarvik-7 em mais 3 pacientes que sobreviveram por 620, 480 e 10 dias. A experiência demonstrou, contudo, que o preço da sobrevida era altíssimo em termos de qualidade. William Schroeder, o paciente que viveu por mais tempo com o Jarvik7, sofreu derrames, febres, infecção e passou um ano sendo alimentado através de tubo (Ditlea, 2002, p.38). O procedimento ainda foi testado em outros hospitais e com outras versões derivadas do Jarvik-7, mas a idéia foi abandonada pela maioria dos Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética lavanderia, ou disfarçados de médicos” (Ditlea, 2002, p.36). médicos e a imagem do moribundo-biônico, apesar do estardalhaço da mídia, também foi apagada da memória coletiva. Apesar dos enormes riscos envolvidos e dos sucessivos fracassos, o sonho de se construir um ser humano no qual zune um coração totalmente artificial continua. Ao contrário de seus antecessores da década de 1980 o coração modelo AbioCor, 58 do AbioCor certamente são fascinantes. Confrontado ao seu equivalente orgânico Julho de 2005 fabricado pela Abiomed, é uma máquina totalmente implantável. A idéia e a imagem dos fatores de rejeição, orgânicos e simbólicos. Sem possuir tubos ou fios externos – mesmo a energia elétrica é passada pela superfície da pele, por indução eletromagnética, para uma bateria implantada no abdômen do paciente – o AbioCor também não estigmatiza os pacientes como seus antecessores. Em testes desde julho de 2001, o AbioCor é, sem dúvida, uma evolução, mas ainda possui problemas que o impedem de ser considerado um sucesso. Talvez a principal diferença entre o Jarvik-7 e o AbioCor seja a forma mais reservada com a qual o segundo vem sendo tratado pela mídia, o que se deve, em parte à divulgação limitada das experiências clínicas. A imagem do moribundo-biônico não voltou à tona apesar dos problemas relacionados à formação de coágulos persistirem – o que implica no uso de drogas anticoagulantes incompatíveis com a Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | (Figs. 35 e 37), ele tem a vantagem de ser virtualmente inesgotável e independente AbioCor requer a remoção do original sem fornecer uma solução definitiva. | saúde dos receptores, provocando eventualmente hemorragias fatais – e sabe-se, o Em resposta às críticas acerca dos problemas que seus protótipos têm artificial continuou funcionando em situações que poderiam ter lesado ou destruído um coração natural, como insuficiência de oxigênio no sangue e uma febre de 41,5º C” (Ditlea, 2002, p. 39). Da perspectiva de Lederman, o ponto não é apenas se o AbioCor um dia substituirá ou não o coração humano, mas que, apesar das inconveniências apresentadas, o coração artificial já aponta para a superioridade da cópia em relação ao original em alguns aspectos. Esse elogio à máquina é aderente ao discurso geral que se escora na condição de saúde dos candidatos, tão precária que os torna inaptos ao transplante. Frente às adversidades encontradas nos testes, tanto médicos como os representantes da Abiomed tendem a supor que não é o AbioCor que funciona mal, mas que é o corpo em volta dele que não funciona (c.f. Ditlea, 2002, p. 38). Não é a toa que insinuem surpresa diante de um coração-biônico Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética apresentado, o fundador da Abiomed, David Lederman, afirmou que “o coração que continue a funcionar em um ambiente tão deteriorado. Mesmo a comunidade científica se divide em relação à substituição do coração por uma máquina. Robert Jarvik, o criador do Jarvik-7, confessa: 59 não se sabia que o coração pode melhorar muito se você o ajudar em certas Julho de 2005 Extirpar completamente o coração não é uma boa idéia na prática (...). Em 1982 extremas (Ditlea, 2002, p.43). Jarvik se refere ao acoplamento de bombas auxiliares no coração, conhecidas como “aparelho de assistência ao ventrículo esquerdo”. Conectados ao coração, essas pequenas bombas aliviam e complementam o trabalho do coração doente e, em alguns casos, promovem a regeneração do tecido cardíaco. Em contraste com os dispositivos que visam auxiliar e recuperar o tecido original, a obsessão pelo coração de titânio e plástico – e mesmo a forma como ele é exibido na mídia, uma máquina cristalina e sempre dissociada do corpo – manifesta uma incômoda postura onde a cura é apenas um detalhe do processo de mecanização do corpo cujo fim é a ampliação de seus limites naturais. Nessa perspectiva, recuperar a condição original do corpo não passa de uma Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | doenças comuns. É por isso que você só deve tirar o coração nas situações mais das próteses para portadores de deficiência física, onde estão aqueles que são vistos | etapa na evolução do ciborgue. De certa forma é o que está acontecendo no campo e aceitos pela sociedade como os primeiros ciborgues a materializarem o que era, há de Steve Austin no romance Cyborg, uma reportagem sobre o assunto anunciava, ainda em 1999: “Quase melhor que o original” (Dias, 1999). A maior estrela da reportagem era Tony Volpentest (fig. 36), um dos para-atletas que levou para a mídia as próteses especiais de competição e que fez fama por mostrar que não só podia ultrapassar, e em muito, as pessoas comuns como chegar próximo do recorde mundial olímpico: Tony Volpentest inspira admiração e, quem sabe, até despeito. Munido de duas pernas mecânicas, o atleta americano, de 26 anos, faz 100 metros rasos em impressionantes 11 segundos e 36 centésimos de segundo - apenas um segundo e meio atrás do recordista mundial, o canadense Donovan Bailey, que nasceu com tudo no lugar. Medalha de ouro nos Jogos Paraolímpicos de Atlanta, em Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética uma década, apenas imaginação. À semelhança do que o Dr. Kirlian disse a respeito 1996, Tony veio ao mundo sem os pés e sem as mãos (Dias, 1999, p. 136). 60 Figura 37 Figura 38 Figura 40 Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 35 Figura 36 Figura 39 61 Julho de 2005 na capa a imagem que lembra a de uma sereia cujo rabo de peixe foi trocado por um Julho de 2005 No ano anterior, em setembro de 1998, a revista Dazed and Confused trouxe próteses de alto desempenho, mais do que as limitações reais impostas pela deficiência a foto de Aimée Mullins confronta o estigma tradicionalmente associado à deficiência física. “Fashionable?”, insinua a capa da revista. Aimée Mullins amputou as pernas abaixo do joelho quando tinha um ano de idade, o que não a impediu de se tornar um destaque no esporte. Chegou a competir com pessoas não-deficientes em alguns eventos e consagrou-se como para-atleta olímpica. Porém tornou-se mais famosa ainda por instigar nosso olhar com estranhamento e fascinação ao participar de desfiles de moda e posar para revistas e anúncios publicitários onde o estigma da deficiência física é ostensivamente contraposto a sensualidade e beleza de outras partes do seu corpo. O estigma do portador de deficiência física decorre da incompatibilidade entre Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | par de próteses de competição (fig. 39). Nua da cintura para cima e acoplada a portador de deficiência física, o estigmatizado possui um atributo “desviante” que se | o seu corpo e os modelos sociais aos quais ele não se conforma. Mais do que impõe a todos os demais atributos “normais”, destruindo as possibilidades de (cf. Goffman,1988, p.13-14). Além disso, poderíamos acrescentar, na medida em que o estigma marca seu portador como alguém que não é completamente humano (Goffman, 1988, p.15), reafirma, por oposição, a normalidade de quem não o possui. As fotos de Aimée Mullins (figs. 38-40) ameaçam justamente a noção de “normalidade” sobre a qual está ancorada a percepção do que é socialmente o corpo humano. Elas não incomodam porque ela é bela e apareça seminua ou de lingerie exibindo seu corpo bem torneado apesar de portar uma deficiência física visível. Elas incomodam porque ela é atraente mesmo possuindo esta deficiência que é, normalmente, um estigma e, certamente, as fotografias não teriam o mesmo apelo se ela estivesse de muletas e pernas de pau. A forma pela qual a mídia exibe os corpos dos para-atletas não deixa de ser um tipo de espetacularização do estranho, mas Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética relacionamento simétrico e igual entre quem possui o estigma e quem não o possui diferente daqueles que eram exibidos em freak shows e circos de aberrações ao lado de garrafas com fetos mal-formados e bezerros de duas cabeças. É porque nossa relação frente à correção do corpo está mudando que podemos olhar para as fotos de Mullins e perceber que há outros atributos em seu corpo além daquilo que, em outras circunstâncias, apenas estigmatizaria. A imagem 62 justamente porque ele se conforma a uma outra noção de corpo, o corpo-máquina Julho de 2005 do para-atleta transcende a estigma do corpo incompleto, ao qual falta um pedaço, a noção convencional de corpo. A existência do corpo mutilado, porém corrigido pela tecnologia, afeta diretamente a normalidade que deveria ser reafirmada pelo corpo estigmatizado: ao mesmo tempo em que é inegavelmente um corpo mutilado, seu desempenho não confirma a inferioridade que deveria acompanhar o estigma e mais, indicam a inferioridade do ser humano “normal”, cujo desempenho é muito menor em uma pista de corridas. Além disso, parte da fascinação deve-se à encarnação em seres humanos da perspectiva do “culto ao fragmento” que se aplicava apenas às estátuas e estudos de anatomia. Não só aceitamos com certa facilidade um corpo no qual partes faltantes convivem com partes sobressalentes e sobre-humanas, como permitimo-nos, ainda que com surpresa consternada, perceber nas demais partes atributos que suscitam empatia e mesmo o desejo. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | melhorado pela tecnologia e, nesse sentido, algo sobre-humano ao qual não se aplica recente matéria jornalística (Marriot, 2005) intitulada “Prótese hi-tech é motivo de | Volpentest e Mullins são pioneiros de uma tendência que se confirma. Uma orgulho” diz: “Jovem amputado exibe em público suas pernas e braço mecânicos e que perdeu, aos 15 anos, ambas as pernas e um dos braços ao dormir bêbado sobre trilhos e ser atropelado por um trem. Ao contrário dos portadores de deficiência física de outras épocas, preocupados em disfarçar ou esconder o estigma mais do que superar a deficiência, Clapp faz parte do grupo de pessoas que, não satisfeitas em apenas exibir suas próteses tecnológicas, as decoram para destacá-las mais ainda: suas pernas de competição são decoradas com camuflagem verde. O orgulho de Clapp e de tantos outros usuários de produtos da Ossur, Otto Bock Health Care, Hanger Orthopedic Group e outras empresas deriva, certamente, da força de vontade e determinação de superar situações adversas, inclusive o estigma de portar uma deficiência física. Mas, como admite Clapp, a tecnologia está a seu favor: “Tenho motivação e auto-estima, mas talvez encarasse a minha situação Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética torna-se exemplo de uma nova tendência”. Esse jovem é Cameron Clapp (fig. 41), de forma diferente se a tecnologia não estivesse, cada vez mais, do meu lado”. Ao contrário de Barney Clark e outros que incorporaram a imagem do moribundo-biônico, os para-atletas são celebrados pela mídia, como a antecipação do futuro no qual a tecnologia não só recuperará a funcionalidade do corpo mas também ampliará o seu desempenho. Atingir o desempenho desejado – que não 63 estritamente ciberneticista e sustenta novas posturas frente ao próprio corpo objeto Julho de 2005 necessariamente é o do corpo fornecido pela natureza – manifesta um discurso se materializam em dispositivos biônicos de alto desempenho que assumem o design dinamizado, matematizado e geometrizado da máquina, despreocupados com a morfologia da parte humana que substituem. O mundo das novas próteses não é mais limitado pela imitação caricata do corpo humano, mas determinado por requisitos de funcionalidade e desempenho, cuja solução nem sempre aponta para o mesmo desenho do órgão ou membro original. Assim, as próteses biônicas não mais preocupadas em reproduzir a imagem do órgão faltante, apontam para um futuro onde os limites humanos – não só os impostos àqueles cuja natureza do corpo foi mutilada, por nascença ou acidente – podem ser superados pela manipulação artificial do corpo. No discurso da mídia e da propaganda, onde exibem ostensivamente o seu corpo híbrido, os para-atletas corredores materializam hoje as Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | da reconstrução. Essa nova postura liberou a tecnologia para saltos fantásticos que “melhor performance”. | aspirações do futuro do corpo pós-humano, do homem redesenhado para uma É claro que próteses caríssimas, que podem chegar a US$ 40 mil cada caso você não seja um para-atleta financiado pelas indústrias. Os para-atletas, além de serem excelentes laboratórios de testes onde as máquinas são levadas ao limite, também proporcionam imagens espetaculares, de corpos vigorosos e musculosos que são, no jogo da mídia, associados aos seus produtos. O conjunto homemmáquina dos para-atletas sintetiza uma imagem de vitória na pista e na vida. O que antigamente era estigma, hoje é vitrine para exposição das marcas que competem pelo mercado de pernas e braços artificiais: os “pés” de Clapp e o braço de Aron Ralston22 – que posa na foto com Clapp (fig. 42) em um duplo aperto de mão, um orgânico e outro mecânico – ostentam a marca de seu patrocinador. É fato que o espetáculo funciona melhor quando pode mostrar os portadores de deficiência física lidando com situações tão bem – às vezes melhor – quanto Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética membro, determinam diferentes possibilidades para que é rico e para quem é pobre, aqueles que não as portam. Essas imagens não fragmentam apenas o corpo, 22 Aron Ralston é famoso por ter decepado o próprio braço após um acidente no qual uma rocha esmagou sua mão em 2003. Ele ficou preso durante 5 dias em um cânion do Colorado até que quebrasse os ossos do braço e cortasse a carne com um canivete cego. Após se libertar da rocha, Ralston ainda teve que descer pelo cânion e andar vários quilômetros pelo deserto até ser encontrado. 64 produto. Daí serem os para-atletas, e de modalidades específicas de deficiência, que Julho de 2005 também fragmentam a realidade social e mostram apenas o que pode valorizar o assistidas pelas mais recentes tecnologias, não fornecem um espetáculo hi-tech e estigmatizam duplamente seu portador: como mutilado e como protótipo mal resolvido. É o caso de Jesse Sullivan (fig. 43 e 44), que sofreu amputação de ambos braços na altura dos ombros após um acidente com eletricidade. Ele ganhou certa notoriedade porque um de seus braços mecânicos foi substituído por outro que pode ser controlado diretamente pelos impulsos elétricos dos músculos que ainda possui na região do ombro. Apesar de ser um grande avanço tecnológico, o novo braço de Jesse Sullivan ainda é uma geringonça cibernética desajeitada e, acima de tudo, não possui design atraente. O conjunto mecânico pendurado nos ombros de um senhor mutilado certamente é melhor que nada, mas além de ser pouco atraente e pouco funcional, ele ratifica a deficiência do corpo de Sullivan. Ao contrário das pernas dos Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | são exibidos e se exibem. Algumas modalidades de deficiência, mesmo que Contudo, é provável que seja só uma questão de tempo para que os futuros | para-atletas o braço de Sullivan não é um produto acabado. Jesse Sullivans possam realizar a ficção do “Six million dollar man” de Caidin e dêem espetáculo cada vez mais exaltado pela mídia, mas que só adquiriu essa dimensão atual porque as indústrias de próteses gastam fortunas patrocinando grandes equipes de para-atletas para que estes usem seus produtos e ostentem as suas logomarcas. Algumas competições de para-atletismo são tanto uma vitrine de corpos glamourosos acoplados a próteses reluzentes como pistas de provas onde conceitos e produtos de alta tecnologia são testados por ciborgues de competição antes de serem transformados em produtos de consumo. Como acontece na Fórmula I. Engendrados na lógica do consumo, já é possível encontrar catálogos e prospectos de próteses que não são mais desenhadas para o médico ou fisioterapeuta, mas para o usuário final. Como uma peça de bicicleta ou acessório de carro, podemos escolher o “joelho” de nossa preferência no site da Ossur (fig. 45). Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética continuidade ao espetáculo onde as atuais vedetes são os para-atletas. É um Todos são apresentados como produtos duráveis, com ruído reduzido e com garantia de dois anos. Oferecido em quatro modelos, pode-se escolher o “Total Knee 1900”, caso você tenha um “estilo de vida pouco ativo” ou o “Total Knee 2100”, desenhado para “estilos de vida ativos” – com níveis extremos de impacto, trabalho pesado e esportes – e para suportar adultos com mais de 125 quilos. Há também um joelho 65 Junior”, que aparece em um prospecto decorado com um par de alegres mascotes Julho de 2005 cujo metal ganhou cores alegres para satisfazer o público infantil, é o “Total Knee Para a criança há ainda uma “junior solution from Ossur” (fig. 46) que fornece uma perna inteira para a criança amputada acima do joelho, com o “total knee” já incluso. “It’s playtime”, diz o prospecto em letras coloridas. Uma solução inteira é o que também promete a “Hanger Complete System” (fig. 47), cujo maior diferencial é o joelho hidráulico controlado por micro processador. Na home-page da Hanger Orthopedic Group pequenos filmes aleatórios são exibidos para mostrar como a “vida pode ser normal” com os produtos da Hanger (fig. 48). Nada indica, no começo do filme, que o simpático senhor de bermudas em plano americano que vemos rebolando e dançando com desenvoltura use uma Hanger Complete System. Ao longo desse e de outros pequenos filmes, as tomadas enfatizam os movimentos naturais que o usuário da Hanger Complete System pode Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | dançando. Certamente, o “Total Knee” é uma prótese para ser exibida desde criança. par feminino, inclusive. O braço mecânico, por sua vez, tem presença | fazer, lançar uma bola de futebol americano e não deixar nada a desejar para o seu significativamente menor – aparecendo em um filme onde seu usuário liga e opera mecânica possa executar com naturalidade o que uma mão humana faz. O concorrente da Hanger, anuncia seu joelho biônico, o Rheo Knee, como: Uma revolução baseada em um sonho de atingir a pura fisiologia. Função sem limitação. A revolução é biônica, fundada sobre a interdisciplinaridade e fusão precisa da eletrônica, mecânica e fisiologia humana. Ao lado, uma grande foto do Rheo Knee (fig. 49) sintetiza a poética do fragmento do corpo, agora biônico. A máquina humaniza-se nos testemunhos ilustrados que mostram Julie Greder (fig. 50) – “o Rheo Knee faz parecer que minha perna anda por mim” – e Gil Moncrief (fig. 51) – “pela primeira vez na minha vida, eu tenho uma tremenda sensação (...) de confiança no próprio joelho” – caminhando com naturalidade. Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética um aparador de grama – talvez pelo conjunto menor de situações onde uma mão 66 | Figura 41 Figura 44 Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 42 Figura 43 Figura 45 67 Julho de 2005 Figura 49 | Figura 48 Figura 50 Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 47 Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética Figura 46 Figura 51 68 Julho de 2005 prometem restaurar uma naturalidade que nem sempre é real, mesmo em termos de Julho de 2005 Inserida na lógica do consumo, as propagandas de próteses high-techs quanto a mão mecânica que manuseia tão naturalmente o cortador de grama consegue fazer a higiene pessoal no banheiro? As próteses high-tech têm mostrado maior eficiência justamente porque elas são desenhadas para determinados fins e não são, ainda, versáteis e flexíveis como a parte original que substituem. Um portador de deficiência que pratique para-atletismo costuma ter três modelos de pernas, em quantidades variadas. A imagem social que fazemos dos atuais ciborgues traduz uma nova postura em relação ao corpo, cada vez mais relacionada com o desempenho desejado (essa noção tão cibernética). As imagens que exaltam os corpos híbridos dos portadores de próteses biônicas materializam hoje as aspirações do futuro do corpo pós-orgânico, o homem redesenhado e reconstruído para um “melhor desempenho”. Mas os Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | funcionalidade, e omitem as circunstâncias nas quais elas não são adequadas. O apenas um extremo de um processo social mais amplo de objetivação do corpo, onde | ciborgues que emergem da fusão do corpo mutilado com a tecnologia biônica são ele pode ser disposto como um tipo de acessório, mesmo que a pessoa não possua O corpo ideal do “body building” – atlético, sexy e clean – tão em moda atualmente, é um reflexo cotidiano do mesmo pensamento cibernético que objetiva o corpo como um artefato. Na medida em que a máquina torna-se, de fato, a unidade de medida do homem, uma nova postura estética do corpo toma forma, na qual o que é belo materializa-se na modelagem desse corpo como a encarnação do desempenho, forjado e trabalhado como uma máquina. Le Breton (2003, p. 40-43) nota que o corpo do body builder é uma “fortaleza de músculos inúteis em sua função, pois para ele não se trata de exercer uma atividade física em um canteiro de obras ou trabalhar como lenhador em uma floresta canadense”. Contudo é um corpo que exalta a estética do desempenho, transformando “o corpo em uma espécie de máquina, versão viva do andróide”. Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética partes mecânicas. Produto da mentalidade que vê o corpo de forma fragmentária, o body building é um hino aos músculos, um virar o corpo do avesso sem esfoladura, pois as estruturas musculares são tão visíveis sob a pele viva dos praticantes quanto nas pranchas de Vesálio. (...) Peça por peça, o body builder 69 aparência subcutânea. Julho de 2005 constrói seu corpo à maneira de um anatomista meticuloso preso apenas à potência mecânica: uma pessoa é “uma máquina”, está “bombada” ou é um “avião”. A ideologia do desempenho transforma-se em obsessão por massa muscular e a alimentação é reduzida a “pura matéria para fabricar músculos”, baseada “em um cálculo científico da soma de proteínas a serem absorvidas”. Daí a noção afetada de pureza na qual comer um torresmo ou fumar um cigarro são atos relativamente mais impuros do que ingerir complementos alimentares sintéticos ou injetar esteróides artificiais. Na perspectiva da “estética do desempenho”, no imaginário que coloca o corpo no mesmo patamar da máquina, os equipamentos de musculação, os programas planejados de modelagem muscular, as próteses estéticas, as técnicas cirúrgicas de lipoaspiração, a toxina botulínica (Botox), os anabolizantes e os Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Até mesmo o vocabulário fica marcado pela analogia do corpo com a Imagens da Cibercultura • II: A Sociedade Cibernética atingir e antecipar a imagem do corpo de alto desempenho, a imagem do ciborgue. | complementos alimentares são apenas meios que a tecnologia disponibiliza para se 70 Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005 III. O REALISMO ESPETACULAR 71 Julho de 2005 III.1. O contexto da sociedade de massas sociedade de massas, é concomitante com o declínio do que ele chamou de “comunidades de públicos” (1968, p.354). Ele associa a primeira com a industrialização desenfreada de todos os aspectos da sociedade e a segunda ao liberalismo político dominante do período pré-capitalista. Nesse processo de “massificação” da sociedade, ainda que seja a referência ideológica, o indivíduo é reduzido a mero fragmento da “massa” coletiva, “substituído pelas formas coletivas de vida econômica e política” nas quais passaram a predominar, dentre outras coisas, as “decisões dos peritos nos assuntos complicados” e o “apelo irracional ao cidadão”. De forma muito similar à oposição comunidade-sociedade de Tönnies23, a tipologia de Mills (1968, p.354-357) opõe a “sociedade de massa” à “comunidade de públicos”. Ele observa, contudo, que tanto “sociedade de massa” como “comunidade de público” Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Na sua análise da sociedade americana, Mills nota que a ascensão da características da realidade – e que se encontram combinadas na realidade social, | devem ser entendidos como tipos extremos – elaborações que indicam certas com a exacerbação de um tipo em detrimento de outro. Para Mills, na “comunidade as recebem, enquanto a sociedade de massas é fundamentada na desproporção entre um grupo e outro de forma que “o número de pessoas que expressam opiniões é muito menor que o número de pessoas para recebê-las”. Aqui a imagem emblemática é aquela na qual há o “porta-voz que fala, impessoalmente, através de uma rede de comunicações, a milhões de ouvintes”. Nessa perspectiva, a comunicação em uma sociedade de massas caracteriza-se pela assimetria baseada na concentração dos veículos em poucas instituições, frente às quais os indivíduos, praticamente não possuem poder de resposta ou autonomia. Essa passividade se realiza no mercado da diversão com torrentes de produtos de entretenimento oferecidos em formas de prazer prontamente consumíveis, engendrando um processo de mecanização do lazer justamente para aqueles que querem “escapar do Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular de públicos” há uma proporção entre os grupos que formam opiniões e aqueles que 23 “Em teoria, a sociedade consiste em um grupo humano que vive e habita lado a lado de modo pacífico, como na comunidade, mas, ao contrário desta, seus componentes não estão ligados organicamente, mas organicamente separados. Enquanto, na comunidade, os homens permanecem essencialmente unidos, a despeito de tudo o que os separa, na sociedade eles estão essencialmente separados, apesar de tudo o que os une” (Tönnies, 1995, p.252). 72 (Adorno; Horkheimer, 1985, p.131). Julho de 2005 processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo” que a diferenciam das “sociedades tradicionais”, em particular no que tange à produção cultural, realizada em larga escala. Para Adorno e Horkheimer (1985) esse tipo de produção cultural destinada às massas é o que chamam de “indústria cultural”. Em essência, a indústria cultural é a indústria da diversão e do entretenimento que alia o espetáculo e o consumo, potencializados pelas tecnologias de reprodutibilidade mecânica. E Morin (1962, p.16-17), por sua vez, crê mesmo que há uma cultura própria ligada à sociedade de massas, uma “cultura de massas” produzida “segundo as normas maciças da fabricação industrial; propagada pelas técnicas de difusão maciça (...); destinando-se a uma massa social, isto é, um aglomerado gigantesco de indivíduos da sociedade”. Para ele, essa cultura, como qualquer cultura, entra em concorrência com outras culturas e apresenta “um corpo de símbolos, mitos e Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Em certo sentido, a sociedade de massas possui especificidades culturais de identificações específicas”. | imagens concernentes à vida prática e à vida imaginária, um sistema de projeções e A indústria cultural não visa apenas a produção e o consumo das reais e sua eficácia fundamenta-se, em grande parte, na identificação do sujeito com o espetáculo e com o espetacular. É um consumo tanto do imaginário como do real, da imagem do personagem que nos causa empatia como do cigarro que ele fuma ou a roupa que ele veste. Nas telas do cinema, por exemplo, o ordinário e prosaico se tornam espetaculares, e nas modas de consumo lançadas pelas vedetes, as mercadorias reais contaminam-se do espetacular. Em grande parte, a cultura de massas é resultado dessa aliança entre o espetáculo e o consumo: o espetáculo como mercadoria e a espetacularização do consumo. Daí o papel preponderante do imaginário na sociedade de massas. De acordo com Morin (1962, p.81 e p.176), a “característica mais marcante da cultura de massas é a proximidade entre o imaginário e o real” de forma que é pela união estética entre a realidade ordinária ao Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular mercadorias culturais mas também inculca – por meio delas – o consumo de produtos imaginário espetacular que a cultura de massas presta-se tanto como mercadoria em si como instrumento para o consumo dirigido de outras mercadorias: Nas sociedades ocidentais esse desenvolvimento do consumo imaginário provoca um aumento da procura real, das necessidades reais (elas mesmas cada 73 luxo, prestígio); o crescimento econômico caminha num sentido que teria Julho de 2005 vez mais embebidas do imaginário, como as necessidades de padrão social, própria vida, pelo menos a um certo nível médio entre dois limiares variáveis, que se consome mais e sob o efeito da cultura de massa. As participações imaginárias e as participações na vida real, longe de se excluírem, se compatibilizam. Certamente a cultura de massas está marcada pela efemeridade de estilos e modas decorrente, em grande parte, da obsolescência planejada e do curto ciclo de vida das mercadorias. Contudo, a cultura de massas não é um simples porta-voz da ideologia dominante e extensão mecânica da estrutura de reprodução do capital. Se por um lado, como nos lembram Adorno e Horkheimer (1985, p.127), há uma dependência entre as “inovações e aperfeiçoamentos da produção em massa” e a capacidade da cultura de massa se inovar, por outro, não podemos reduzir a segunda Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | parecido incrível há um século atrás: realizar o imaginário. Ainda há mais: é a pela evolução tecnológica possuem, sempre, conseqüências imprevisíveis. É certo | a uma mera conseqüência da primeira, visto que as conseqüências proporcionadas que, por exemplo, exista uma relação causal entre a evolução tecnológica das produção de câmeras de vídeo teve tal barateamento que elas deixaram de ser apenas bens de capital, restritos às grandes emissoras, e invadiram o mercado de consumo na forma de um bem acessível às classes médias de todo o mundo. Com isso surgiram novos tipos de produtos televisivos baseados nas – atualmente já famosas – cenas do “cinegrafista amador” que se desdobraram basicamente em programas que justapõem os fragmentos espetaculares da “vida como ela é” e em programas que incorporam o “vídeo amador” como meio estético e narrativo capaz de dar mais “credibilidade” à cena assim produzida. Há certamente uma dependência entre o mercado de câmeras de vídeo e o surgimento de novos tipos de produtos culturais, mas não é possível afirmar que a renovação dos produtos televisivos e o novo mercado de compilações temáticas tais como as “pegadinhas”, Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular câmeras de vídeo e a inovação dos programas de televisão. A tecnologia de “videocassetadas” ou séries como “The World's Most Amazing Videos” são meras conseqüências da inovação tecnológica e da lógica de mercado. Perde-se nessa redução o aspecto cultural do fenômeno. 74 ocorre simplesmente porque temos acesso à câmera, mas porque o vídeo vernacular Julho de 2005 A transformação de cada um de nós em um cameraman em potencial não mero truísmo dizer que sem o desenvolvimento de câmeras de vídeo melhores, menores e mais baratas não teríamos a enxurrada de vídeos amadores que temos hoje. Mais importante do que isso é observar que a câmera de vídeo doméstica surgiu em um contexto social no qual vários mecanismos de produção e consumo da imagem já estavam disseminados e o registro de imagens por meio de câmeras fotográficas e, mais raramente, por meio de câmeras super 8mm já constituíam uma espécie de rito em determinadas situações sociais. As câmeras de vídeo, por sua vez, superaram as limitações técnicas que tornavam difíceis, caros e breves os registros de imagens em movimento (como ocorria com o super 8mm), tornando prosaica a captura de horas e horas de filmes. Um vídeo doméstico surge simplesmente apertando-se o gatilho e mediando o olho e o mundo por meio da Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | surge no contexto de uma modernidade que há muito incorporou o culto à imagem. É Não há dúvidas de que a câmera de vídeo doméstica é, na maior parte das | câmera enquanto ela roda. vezes, uma máquina de vulgarização serial da imagem, usada compulsivamente efemeridade da vida, a câmera de vídeo fornece a ilusão de que é possível capturar a totalidade de uma dada realidade – imagem com som e movimento – para revivê-la quantas vezes quisermos, exacerbando o processo de substituição da experiência pela imagem inaugurada pela fotografia. Em outras palavras, não se vive o fato para poder registrá-lo em uma fita de vídeo que freqüentemente jamais é assistida. Carrière (1995, p.194) chama esses vídeos de “pseudo-filmes” e comenta sobre os vídeos de viagens: A cada ano, milhares de homens e mulheres levam suas câmeras de vídeo para as férias. Conservam-na junto ao rosto e assim eles mesmos nada vêem. (...) E eles mesmo se esquecem de viajar. (...) Deixar a câmera filmar significa não filmar mais. E ninguém vê esses pseudo- Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular como meio de satisfazer a obsessiva necessidade de “não se perder nada”. Frente à filmes, nunca mais, nem mesmo os que os fizeram. Por uma razão: eles não têm tempo de vê-los. E agora já é tarde para ver o mundo para o qual fecharam os olhos, enquanto viajavam. 75 experiência, que obteve-se a matéria prima dos programas televisivos baseados em Julho de 2005 E foi a partir da produção maciça desses pseudo-filmes, sucedâneos da linguagem da própria televisão, sendo a obra mais acabada dessa estética do “real” os sofisticados e profissionalizados “reality shows”, que minimizam o acaso e maximizam o espetáculo da vida real por meio da planificação social aplicada a um ambiente “ideal” e totalmente monitorado. A disseminação social do vídeo vernacular e seus desdobramentos na indústria do entretenimento por todo o mundo são apenas um exemplo recente da tendência cosmopolita e homogeneizadora – ainda que não ocorra necessariamente tal como planejada – da sociedade de massas. É uma tendência inerente ao sistema de produção industrial e freqüentemente disfarçada sob uma variedade limitada pela “moda” e seus modelos de referência que são copiados pelas mercadorias da indústria cultural. De acordo com Morin (1967, p.58-59), a indústria cultural multiplica, Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | cenas “reais”, tão comuns hoje em dia. Sem dúvida, isso influenciou o formato e a acompanhado de um processo de vulgarização que consiste de procedimentos de | “segundo suas próprias normas aquilo que vai buscar nas reservas de alta cultura”, “simplificação, maniqueização, atualização, modernização” para “para aclimatar as alterações que retiram “excessos” e introduzem “temas específicos da cultura de massa, ausentes da obra original como, por exemplo, o happy end”, consideradas necessárias para transformá-las em mercadorias facilmente consumíveis. A repetição cega engendrada pela indústria cultural, segundo Adorno e Horkheimer (1985, p.155-156), acaba por esvaziar a conexão dos termos reproduzidos nas mercadorias culturais e a experiência. Para eles, a liberdade de escolha nesse mundo homogêneo se resume a “escolher o que é sempre a mesma coisa” e ter personalidade (“personality”) significa “pouco mais do que possuir dentes deslumbrantemente brancos e estar livre do suor nas axilas e das emoções”. Assim, a homogeneização da cultura de massas não é apenas a dos produtos culturais ou a das mercadorias concretas que os primeiros promovem, mas também a das próprias Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular obras de ‘alta cultura’ na cultura de massa”. Essa “aclimatação” se refere às pessoas que, por meio do consumo, acabam por mimetizar os modelos e estereótipos disseminados pela indústria cultural. A tendência homogeneizante da cultura de massas atravessa as classes sociais, as distâncias geográficas e mesmo as faixas etárias, sendo marcada emblematicamente pelo predomínio dos temas jovens – que 76 acriançados” (Morin, 1962, p.41) – capazes de atrair audiências de 8 a 80 anos. Julho de 2005 não sabemos se se destinam para “crianças com caracteres pré-adultos” ou “adultos muitas vezes, incorporá-la e, por vezes transformá-la em uma falsa variedade. Para Morin (1967, p.37-39) na cultura de massas, há uma indissociável relação entre o sincretismo e a homogeneização, tornando “euforicamente assimiláveis a um homem médio ideal os mais diferentes conteúdos” e reunindo “sob um denominador comum a diversidade de conteúdos”. Assim, ao lado da padronização há uma variedade – mesmo que planejada – “que visa a satisfazer todos os interesses e gostos de modo a obter o máximo de consumo”. Uma das manifestações mais evidentes do sincretismo da cultura de massas é a tendência em unificar sob um mesmo prisma os fatos informativos e os aspectos imaginários da vida cotidiana. A demanda pelo fato – atendido pelo setor informativo da indústria cultural – não só privilegia “tudo que na vida real se assemelha ao romanesco ou ao sonho” como também “as informações Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Homogeneizar não significa simplesmente eliminar a diversidade, significa, imaginados pelos jornalistas” 24 . Inversamente, a demanda pelo imaginário privilegia | que se revestem de elementos romanescos, freqüentemente inventados ou as “intrigas romanescas que têm as aparências da realidade”. da cibernética tornaram-se centrais na cultura de massas contemporânea, transformados em vagos traços genéricos – simplificados, maniqueizados, atualizados e modernizados – com pouca ou nenhuma conexão direta com a idéia original. Como termo da cultura de massas, por exemplo, a cibernética não possui nenhum vínculo com Wiener. Tornou-se um mero componente semântico apropriado não só para dar sentido ao que antigamente era mesmo inominável, mas para também valorizar, diferenciar e espetacularizar o banal. São muitas as facetas do cibercultura na cultura de massas contemporânea. No mundo do fato jornalístico, por exemplo, é inegável o fascínio que os crimes praticados por computador provocam frente aos seus equivalentes não-cibernéticos. Uma fraude feita pela Internet será mais atraente no noticiário do que uma fraude Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular Ainda que surgido em espaços sociais marginais, as apropriações culturais feita por um falsário comum; uma gang de pixadores não tem como competir com um vírus de computador em termos de audiência; e o que dizer da pedofilia que ganhou 24 Como observa Carrière (1995, p.160) acerca da necessidade de tornar a realidade prosaica mais interessante em um roteiro: “a realidade não é suficiente. O imaginário precisa introduzir-se na realidade, desfigurá-la, intensificá-la”. 77 do que era trivial tornou-se espetacular aos olhos do mercado do fato: cibercrimes, Julho de 2005 tanta visibilidade com o advento da Internet que parece até que surgiu com ela. Muito apelo cibernético é tão tentador que, se houver algum computador por perto do crime – seja este um crime cibernético ou não – dir-se-á que o computador teve algo a ver. Os próprios jornais “renovam” seu formato com imagens diretas do campo transmitidas via Internet. Inaugurado na Guerra do Iraque, esse formato de cobertura foi amplamente anunciado como uma inovação tecnológica para trazer as notícias na velocidade do fato. Poderão dizer alguns que esse “diferencial competitivo” foi um grande engodo que trocou a qualidade visual por uma variedade duvidosa de imagens ao vivo que, de tão toscas, cada plano pouco acrescenta aos demais. Aquelas tantas cenas parecidas do que nos diziam ser imagens de rastros luminosos de balas e foguetes ou tanques em uma tempestade de areia no deserto do Iraque marcaram uma estética na qual a qualidade da imagem perdeu a primazia para o Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | comunidades virtuais, guerra cibernética, comércio eletrônico, pirataria cibernética. O ruins – cenas tremidas, borradas, com bruscos congelamentos do movimento (a típica | apelo à velocidade da informação. Nesse apelo, não importa que as imagens sejam queda do frame rate em transmissões via Internet) e mal-sincronizadas com o áudio – consumimos é uma espécie de “reality show” que nos dá a certeza de que se uma pessoa explodir ou for atingida no campo – tanto mais sensacional se for o próprio jornalista – o momento da sua morte poderá ser visto, praticamente no mesmo instante, graças à cobertura cibernética, em qualquer lugar do planeta. Da mesma forma que o “cibernético” sensacionaliza o noticiário do jantar, o “cyber” também faz parte do sincretismo que articula a renovação real ou ilusória das mercadorias e das promessas de uma vida espetacular. Em um mercado de consumo fortemente pautado por imagens de “gadgets” exaltados nos programas de TV, nos anúncios publicitários, nas reportagens de revistas e nos espetáculos cinematográficos, há tempos consolidou-se um mercado específico de produtos cibernéticos: computadores de mesa, notebooks, handhelds, celulares, videogames, Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular mas que as imagens sejam produzidas e trafeguem pela “information highway”. O que robôs de brinquedo, bichinhos virtuais (“tamagotchis” e afins), periféricos, acessórios e complementos diversos. Objetos de desejo já consagrados – automóveis, veículos aéreos, armas, casas, aviões, roupas – também são constantemente “renovados” pela “cibernética” e o último “release” sempre está preparado para ser lançado nas lojas mais próximas de nós. 78 “exclusividades” a produtos já existentes a um custo mínimo, tornando mais rentável Julho de 2005 O raciocínio de agregar compulsivamente “melhorias”, “diferenciais” e absurdos, com as tecnologias cibernéticas. Se, na década de 60, a idéia de gadgets que uniam as funcionalidades mais díspares em um objeto único – como o “sapatofone” do Maxwell Smart, o agente 86 (ver figs. 52 e 53) – eram caricaturas exageradas para comédias televisivas, a década de 90 mostrou que aquelas imagens Figura 52 Figura 53 Figuras 52 e 53: Fotos do agente 86 e seu sapatofone. Do seriado “Get Smart”, veiculado nos EUA de 1965 à 1970. Mesmo importantes figuras do mundo tecnológico têm criticado a compulsão mútua que o culto ao gadget criou entre os produtores e consumidores de mercadorias. Alan Cooper, considerado o pai do Visual Basic, em seu livro com o título sugestivo de “The Inmates are Running the Asylum” (1999) nota que essa tendência é particularmente perversa nos produtos computadorizados porque o funcionamento destes é baseado em software. Ao contrário do que ocorre necessariamente com novas funcionalidades ou acessórios de mercadorias físicas – Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular | eram pouco perto daquilo que realmente estava por vir. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | e mais atraente um mesmo produto, é levado a limites, que outrora pareciam por exemplo, os bancos de couro, rodas de liga leve e o ar-condicionado de um automóvel – existem funcionalidades que podem ser agregadas a um software existente por custos praticamente marginais (cf. Cooper, 1999, p.27-29). Daí a profusão de gadgets digitais que diversificam a mesma carcaça com a justaposição 79 software, freqüentemente comprometendo a utilidade original com o acúmulo de cada Julho de 2005 de uma variedade crescente de funções – nem sempre compatíveis – baseadas em físicos. Nicholas Negroponte (2000, p.94), um dos fundadores do Media Lab do Massachusetts Institute of Technology, já comentava no começo em meados da década de 90: Os telefones celulares têm uma interface que consegue ser ainda pior que a dos videocassetes. Um Bang & Olufsen [uma marca de produtos eletrônicos] é uma escultura, não um aparelho telefônico – não é mais fácil, mas mais difícil de usar do que aqueles antigos telefones pretos. E, o que é pior: encheram os telefones de “características especiais”. Armazenamento de números, rediscagem, gerenciamento de cartão de crédito, espera de chamada, transferência de chamada, resposta automática, mostrador de números etc. etc. – tudo isso é constantemente espremido na superfície de um Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | vez mais funções diferentes em um conjunto muito menos flexível de teclas e botões | aparelho de pequena espessura que cabe na palma de sua mão, tornando-lhe a utilização praticamente impossível. E Negroponte ainda não vira ainda os celulares hand-held com câmera. tecnologia digital (ainda que quase ninguém saiba o que é isso) capaz de espetacularizar a vida cotidiana com as cores e sons multi-tonais de um mundo sintetizado por chips de computador. Compram-se as possibilidades imaginárias do poder da informação e do ciberespaço na palma das mãos, da versatilidade de se capturar frames sensacionais da vida para nunca mais serem vistos, de se comunicar da mesma forma – sem palavras, mas ao vivo e a cores com imagens via celular – que fazem aquelas pessoas tão maravilhosas que aparecem nas propagandas. Além de ser espetacular e espetacularizar nossa vida, o aparelho celular ainda serve de telefone. Como acontece no cinema. Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular O que é consumido, afinal, já não é mais um telefone. Mas um artefato com a 80 Muitos autores irão demarcar nas mudanças das sociedades ocidentais do século XIX o terreno onde a transformação das mentalidades e das experiências subjetivas, engendrada pelo capitalismo e pela cultura de massas emergente, criou um lugar para o cinema antes mesmo da sua invenção. O cinema e a modernidade seriam, nessa perspectiva, praticamente indissociáveis. Charney e Schwartz (2001, p. 19-21) notam que há um conjunto de “inovações talismânicas” cujas respectivas histórias geralmente são instrumentos de compreensão e análise da “modernidade”: “o telégrafo e o telefone, a estrada de ferro e o automóvel, a fotografia e o cinema”. Fundamentalmente invenções que anularam ou encurtaram o tempo e o espaço, são tanto reflexos como meios de maximizar a circulação de mercadorias e do capital. Destacam os autores, que “desses emblemas da modernidade, nenhum personificou Julho de 2005 Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | III.2. A vida moderna e o olhar cinematográfico cinema”. Mais do que isso, o cinema se inseriu em uma cultura urbana de | e ao mesmo tempo transcendeu esse período inicial com mais sucesso do que o entretenimento que o antecede, baseada na “reprodução mecânica, mobilidade de “a cultura da modernidade tornou inevitável algo como o cinema, uma vez que as suas características desenvolveram-se a partir dos traços que definiram a vida moderna em geral”. O surgimento de uma mentalidade da vida moderna é, em muitas análises, fundamental para a compreensão da genealogia do cinema. Em geral, tomam como ponto de partida a perspectiva de Simmel acerca da vida e da mentalidade do sujeito metropolitano cujos sentidos são incessantemente estimulados. Assim, para Charney (2001, p.404), o cinema “refletiu a experiência epistemológica mais ampla da modernidade”. O cinema incorporou esteticamente certas características fenomênicas da vida moderna – choque, velocidade, deslocamento, esvaziamento da presença – na fragmentação intrínseca do filme, “sempre uma sucessão de momentos”. A Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular produtos, consumidores e nacionalidades”. Nessa perspectiva, segundo os autores, modernidade seria, como nos lembra Singer (2001, p.116-117), concebida como “um bombardeio de estímulos” provenientes de um mundo fenomênico “marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fases anteriores da cultura humana”. A imprensa ilustrada da virada do século XIX para o século XX 81 modernidade urbana” na sua preocupação com os riscos cotidianos, retratados de Julho de 2005 reflete as “ansiedades de uma sociedade que não havia se adaptado por completo à essa “estética do espanto” onde predominava a excitação e tornou-se, em alguns casos, um emblema da descontinuidade e da velocidade modernas. O autor lembra que, para Kracauer, a “estética da excitação superficial e da estimulação sensorial (...) assemelhou-se ao tecido da experiência urbana e tecnológica”. Nessa perspectiva, “o ritmo rápido do cinema e sua fragmentação audiovisual de alto impacto constituiriam um paralelo aos choques e intensidades sensoriais da vida moderna” (Singer, 2001, p.137-138). O sensacional, o espetacular, o espantoso atendem a demanda de maior quantidade e intensidade de estímulos, de forma a adequar as novas formas de entretenimento às mentalidades e sentidos “calibrados para a vida moderna”. Mas o sensacionalismo também “funcionou como uma resposta compensatória ao empobrecimento da experiência na modernidade” (Singer, Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | forma intensa e sensacionalista (Singer, 2001, p.133). O cinema surgiu em meio a Outras invenções e modas já haviam antecipado o lugar do cinema e, como | 2001, p.137-139). observa Sandberg (2001, p.443) havia todo um contexto econômico, tecnológico e “em combinações diversas, os espectadores de cinema também freqüentavam outras atrações visuais”. Nessa mesma perspectiva, para Bruno (2001, p.39-44), a demanda pelos simulacros transportáveis e sua lógica de circulação, a qual o cinema atendeu prontamente, já havia sido antecipada pelos cartões-postais e fotos estereoscópicas: “Os primeiros filmes de atualidade apresentavam com freqüência um simulacro de viagem não apenas ao apresentar paisagens estrangeiras mas também ‘passeios fantasmas’, que eram filmados da parte dianteira de trens ou da proa de barcos e que davam aos espectadores, sentados e parados, uma sensação palpável de movimento”. Schwartz (2001, p.411-440), por sua vez, nota que a experiência cinematográfica já era cultivada em uma série de práticas culturais anteriores ao Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular cultural que ampliou as possibilidades de “uma clientela ávida por cultura visual” e cinema nas quais predominava uma indistinção entre a vida e a arte, na realidade transformada em espetáculo e na obsessão dos espetáculos pelo realismo. Estes, por sua vez incorporaram “muitos elementos que já podiam ser encontrados em diversos aspectos da chamada vida moderna”. A autora cita alguns locais da Paris de fin de 82 com o olhar que irá definir o espectador cinematográfico: os necrotérios de Paris, os Julho de 2005 siècle onde se praticou um tipo de “flânerie para as massas” intimamente relacionada “vida real era vivenciada como um show mas ao mesmo tempo, os shows tornavamse cada vez mais parecidos com a vida” (Schwartz, 2001, p.411). A exibição pública de corpos nos necrotérios era uma espécie de “espetáculo da vida real” gratuito, capaz de exercer grande fascinação pois, ao contrário dos museus de cera, as pessoas exibidas eram “realmente de carne e osso”. As exibições públicas dos necrotérios são encerradas no ano de 1907, ano também marcado pela proliferação de instituições dedicadas exclusivamente ao cinema: “O público, ao que parece, havia mudado da salle d’exposition para a salle du cinéma” (Schwartz, 2001, p.420). Os museus de cera e os panoramas faziam do show algo semelhante à vida real. O Musée Grévin foi concebido como um museu cuja finalidade era reproduzir fielmente, em cenários habitados por pessoas de cera, os principais acontecimentos Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | museus de cera e os panoramas. São locais identificados com o espetáculo, onde a era impressionante, em grande parte devido ao cuidado e a fidelidade com que as | noticiados na mídia impressa. A despeito de ser inanimado, o realismo do conjunto cópias – cenários e adereços – tinham em relação aos originais: figura de cera para reproduzir o mundo social, seu foco em eventos contemporâneos e na mudança rápida, seu vínculo com o espetáculo e a narrativa, bem como a organização abrangente de seus quadros, são elementos associados com o início do cinema e, no entanto, encontrados no Musée Grevin bem antes da sua alegada invenção em 1895 (Schwartz, 2001, p.429). Similarmente, os panoramas também eram representações de experiências da vida real e ofereciam “versões sensacionalistas do mundo” (Schwartz, 2001, p.435). Benjamin (1986, p.185) observa que “antes que o cinema começasse a formar seu público, o Panorama do Imperador, em Berlim, mostrava imagens, já a essa altura móveis, diante de um público reunido”. Feitos para se assistir coletivamente, os panoramas eram simulacros de eventos históricos ou lugares turísticos que Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular A dedicação do Musée Grévin ao gosto do público pela realidade, seu uso da chegavam a utilizar recursos como a fotografia e engenhocas mecanizadas para melhorar o realismo do espetáculo. O próprio cinema, em seu início, foi incorporado em panoramas mecanizados como mais um recurso de “realismo” dos passeios simulados. Os museus de cera e os panoramas conseguiram reunir nas suas platéias 83 trabalhadores (...), homens e mulheres da burguesia, comerciantes e diplomatas” 25 . Julho de 2005 massas de espectadores das mais diversas origens sociais: “camponeses, todos, sem distinção social, seu sucesso “estava no olho e na mente do espectador; o realismo não era meramente uma evocação tecnológica” (Schwartz, 2001, p.432433). É a exata continuidade dessa mentalidade e desse olhar, notavelmente predispostos ao realismo espetacular e fragmentário dos simulacros, que está por trás do “modo de ver” do cinema. Seguindo a tradição dos espetáculos realistas que precederam-no, “a estética do cinema repousa sobre uma técnica exata de reprodução da realidade: o cinema é por essência ‘realista’, dá impressão da realidade” (Martin, 1963, p.87). E mais até do que os museus de cera e os panoramas, a experiência cinematográfica, a estética e o realismo sobre o qual se fundamenta, não são meros produtos das tecnologias de registro óptico – supostamente neutras, objetivas, verdadeiras e universais – mas também são Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Contudo, a despeito do requinte e da sofisticação dos simulacros apreciados por privilegiam esta ou aquela forma de perceber e representar o mundo visível. Como | condicionados por determinados contextos e heranças sociais específicos que observa Benjamim (1986, p.169), “o modo pelo qual se organiza a percepção também historicamente”. Sorlin (1985, p.157) também atenta para a importância da disposição do espectador para a realização do “realismo” da construção fílmica: “A impressão de contemplar a realidade (...) que nós mesmos sentimos diante de certos filmes não se deve (...) ao conteúdo das imagens, mas às disposições em que se encontram os espectadores”. A dependência do contexto histórico e social fica tanto mais evidente quando constatamos a exigência de uma “experiência cinematográfica” adquirida, sem a qual um espectador inexperiente não consegue “ver nada (...) além de um monstruoso embaralhamento do tempo, exatamente como um extraterrestre num estádio de futebol não faria a menor idéia do que estava acontecendo no jogo” (Carrière 1995, p.114). Esse é um dos motivos, segundo Carrière (1995, p.13), pelo qual, nos Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas 25 Vale notar que Morin (1962, p.42) parece desconsiderar esse fato: “o cinema foi o primeiro a reunir em seus circuitos os espectadores de todas as classes sociais urbanas e mesmo camponesas”. Contudo para os fins desta pesquisa, o que importa é que esse caráter unificador ou homogeneizante – que Morin crê ser uma tendência da cultura de massas e que o cinema apresenta de forma exemplar – era compartilhado por outras formas de manifestação da cultura de massas contemporâneas ou anteriores ao cinema. 84 tradição oral. Ele ficava ao “lado da tela, durante todo o filme” explicando aos demais Julho de 2005 primórdios do cinema, havia a figura do “explicador” nas exibições em sociedades de daquilo que estavam acostumados. A figura do “explicador” ainda era encontrada na África da década de 1950. Em relação às especificidades sociais e históricas que determinam a disposição ao realismo cinematográfico, podemos acrescentar que, como notam Aumont et al. (1983, p. 21), um espectador típico reage à imagem plana do cinema como se visse uma “uma porção de espaço de três dimensões, análoga ao espaço real em que vivemos”, a despeito das suas limitações. A força dessa analogia envolve uma “’impressão de realidade’ específica do cinema, que se manifesta principalmente na ilusão de movimento (...) e na ilusão de profundidade” [grifos meus]. E, provavelmente, a ilusão de profundidade não seria tão intensa para os “primeiros espectadores” de filmes como é para o espectador habitual contemporâneo. Os primeiros deviam ser, “sem dúvida, mais sensíveis ao caráter Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | o que acontecia naquela “sucessão de imagens silenciosas” que eram o oposto Se o gosto pelo realismo espetacular e a percepção fragmentária da | parcial da ilusão de profundidade” [grifo meu]. realidade – ambas fundamentais para a constituição do espectador cinematográfico – renascença, mais especificamente na definição de um tipo de perspectiva como a representação da realidade visual por excelência. A perspectiva pode ser definida como “a arte de representar os objetos sobre uma superfície plana, de maneira que esta representação se pareça com a percepção visual que se pode ter dos objetos mesmos” (Aumont et al, 1983, p.30). Essa percepção visual está indissociavelmente ligada à certas convenções tácitas que não só determinam o que é uma “representação tridimensional” adequada mas também condicionam o olhar, predispondo-o à “perceber” tridimensionalidade onde ela não existe. São essas convenções, preservadas e transmitidas socialmente, que estão por trás tanto das ilusões de profundidade às quais estamos acostumados como dos “muitos sistemas representativos e de perspectiva que (...) nos parecem mais ou menos estranhos” Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular consolidaram-se no fin de siècle, o olhar realista do cinema tem suas raízes na (Aumont et al, 1983, p.30). 85 Julho de 2005 PF2 | PF1 Figura 55 - “A Última Ceia” de Leonardo da Vinci (Convento de Santa Maria delle Grazie, Milão), de 1498. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 54 - “A Última Ceia” de Giovanni Canavesio (Santuário de Notre-Dame des Fontaines, La Brigue), de 1492. Figura 57 Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular Figura 56 Figura 58 86 Canavesio (fig. 54) e a outra de Leonardo da Vinci (fig. 55), realizadas quase que na Julho de 2005 Com efeito, duas representações da última ceia de Cristo, uma de Giovanni tridimensional, nos impressionam de formas diferentes. É importante observar, independentemente da eficácia da impressão, que a dimensão da profundidade está registrada em ambas obras: da mesma forma que sabemos que na pintura de da Vinci a mesa está à frente dos personagens e há uma janela ao fundo do conjunto, podemos notar que na de Canavesio há personagens à frente da mesa e que Cristo está atrás da mesa. No limite, ambas obras são ilusões parciais que reconstroem o espaço de três dimensões em um plano bidimensional e compartilham as mesmas deficiências: além de planas, não dispõem de paralaxe e nem de binocularidade. É certo que consideraremos, nós como observadores, a perspectiva de da Vinci muito mais “eficaz”. Mas vale questionar se não contribui para essa eficácia, talvez mais do que a sofisticação técnica, a ilusão que já está nos olhos de quem a vê. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | mesma época, mas segundo distintas normas estéticas de representação do espaço ausência da distorção na qual a representação de objetos de mesmo tamanho devem | Um dos fatores que provoca estranhamento na obra de Canavesio é a ser relativamente menores de acordo com sua posição no sentido da profundidade. aparente aleatoriedade na proporção de tamanho entre os apóstolos e destes com Cristo, representado em tamanho visivelmente maior que todos o demais. Nosso estranhamento ocorre porque, em grande medida, no que tange à representação da tridimensionalidade do espaço, “o único sistema que costumamos considerar como próprio, posto que domina toda a história moderna da pintura, é aquele que se elaborou no princípio do século XV sob o nome de perspectiva artificialis, ou perspectiva monocular” (Aumont et al, 1983, p.30). É o caso da representação do espaço na Última Ceia de da Vinci. A perspectiva utilizada por ele é o sistema que, dentre outros experimentados durante a Renascença, tornou-se dominante por permitir a reconstrução, por meio de leis geométricas, a visão do olho humano (daí sua denominação “monocular”) e por Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular Daí a impressão “chapada” que a cena nos provoca. Além disso, há mesmo uma possuir um caráter automático (artificialis) através do uso de formas elementares que se materializaram em técnicas e nos aparatos mais diversos de geometrização da imagem. Nesse tipo de perspectiva, também conhecida como “cônica”, a ilusão da tridimensionalidade baseia-se na relativização do que é representado em função de um “observador”, o que não ocorre em outros sistemas de perspectiva. Na 87 relativo dos objetos representados independem dele, tal como ocorre com a pintura Julho de 2005 perspectiva paralela por exemplo, o observador não existe no desenho e o tamanho cubos cujas arestas estejam paralelas ao triedro altura X largura X profundidade, não importará a posição relativa deles no espaço que um cubo sempre será representando igual a outro cubo (ver fig. 56). Na perspectiva cônica, a distorção da imagem tridimensional no plano depende da posição relativa do objeto representado em relação à uma “linha do horizonte” imaginária, referida a um observador virtual à frente do objeto representado, no qual situam um ou dois pontos de fuga26 que definem a distorção da perspectiva. Assim, a representação dos objetos em uma perspectiva cônica depende da localização espacial desses objetos em relação ao olho que os vê, o olho de um observador que transcende o plano (ver fig. 57). Objetos que são representados de forma idêntica na perspectiva isométrica27 (fig. 56), serão diferentes dos uns dos outros na perspectiva cônica (fig. 57) de acordo com sua Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | de Canavesio. Isso implica que, por exemplo, ao representarmos um conjunto de a posição geométrica do olho para o qual se configura a perspectiva. | posição em relação ao observador. Na perspectiva cônica, é possível até reconstruir A familiaridade ou estranhamento em relação à tridimensionalidade na obra condicionamento do olhar. Não encontramos em Canavesio a reconstrução matematizada à qual nosso “modo de ver” já está condicionado. Mais do que isso, não conseguimos nos localizar no quadro de Canavesio. Ao contrário, em da Vinci, a perspectiva cônica ordena não só o espaço visível, mas também o invisível, designando o local do próprio observador: exatamente em frente da cabeça de Cristo, por onde passa a linha do horizonte e se localiza o ponto de fuga (PF1) da obra (ver fig. 58). Aumont et al. (1983, p.30-32) notam que a instituição de um ponto de vista que corresponde ao “olho do pintor” foi fundamental para a constituição do olhar moderno. Para os autores, “a perspectiva fílmica é tão somente a continuação exata dessa tradição representativa” e, na medida em que “esta perspectiva inclui na imagem, através do ‘ponto de vista’, um sinal de que está organizada por e para um Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular de Canavesio ou de da Vinci não é meramente uma questão técnica, mas também de 26 A linha do horizonte está sempre posicionada no nível dos olhos do observador e é onde o céu se encontraria com a terra, em um terreno completamente plano. O ponto de fuga é um ponto localizado na linha do horizonte para o qual convergem a linhas paralelas ao eixo da profundidade. 27 Um tipo de perspectiva paralela onde os eixos de largura, profundidade e altura possuem um ângulo de 60º entre elas. 88 vê, a cujo olho se assinala um lugar privilegiado”. Julho de 2005 olho colocado diante dela”, a representação fílmica também “supõe um sujeito que a perspectivação ou projetar a perspectiva de objetos reais. Dentre eles estava a camera obscura, que era uma caixa lacrada contra a luz e com um pequeno furo em uma das faces verticais. Grande o suficiente para comportar um homem, o artista dentro da camera obscura podia desenhar sobre a imagem do exterior projetada na parede oposta ao furo. Essa era uma das técnicas para se obter automaticamente uma perspectiva do mundo real idêntica à perspectiva artificialis em todos os aspectos matemáticos. Contudo, o registro da imagem dos objetos reais projetados dentro da camera obscura passava necessariamente pela mão e pela sensibilidade do artista, o que lhe conferia um caráter subjetivo inegável. A busca por uma forma de fixar as imagens projetadas na camera obscura era a meta de muitos pesquisadores. Isso foi conseguido com o deguerreótipo, o precursor das câmeras fotográficas Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Na Renascença, vários dispositivos foram utilizados para automatizar a conseguiu fixar as imagens da camera obscura, (...) os pintores haviam sido | modernas. Segundo Benjamin (1991, p.224), no “instante em que Daguerre despedidos pelo técnico”. objetividade das lentes da câmera fotográfica. “Quer o pintor queira, quer não, a pintura transita inevitavelmente por meio de uma individualidade. (...) Ao contrário, a foto, naquilo que faz o próprio surgimento de sua imagem, opera na ausência do sujeito” (Dubois, 2003, p.32, grifo meu). É dessa suposta ausência de uma subjetividade que provém a “objetividade” da fotografia que é onde, por sua vez, se assenta o “coeficiente de realidade” que Martin (1963, p.21) atribui à imagem fílmica. Para ele, a fotografia (ou o “fotograma” da imagem cinematográfica) é “antes de tudo, um dado científico: é o produto da ação de raios luminosos sobre uma superfície química sensível por intermédio de um sistema óptico justamente chamado de ‘objetiva’”. Ou em outras palavras, é no “automatismo de sua gênese técnica” (Dubois, 2003, p.25) que repousa a credibilidade que a fotografia tem em relação às Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular Com o advento da fotografia, a subjetividade do pintor deu lugar à outras formas de representação visual. É por isso que, dentre outros problemas, a ausência de cor das primeiras fotografias – uma nítida desvantagem frente à pintura que, em certos aspectos, conseguia ser mais “realista” do que as fantasmagóricas imagens impressas no vidro dos antigos daguerreótipos – não impediu a fotografia de se difundir como um “espelho de real, onde ela é considerada a ‘imitação mais 89 fotografia, ao eliminar a intermediação humana da gênese da imagem, passa a ser Julho de 2005 perfeita da realidade’” (Dubois, 2003, p.27). Isso explica-se, em parte porque a Barthes (1990, p.12-15), a fotografia opera uma redução do objeto – em termos de perspectiva, cor e proporção – mas não executa uma “transformação do real”. Por esse motivo, “no senso comum, o que define a fotografia é essa perfeição analógica que ela tem com o real: mesmo não sendo o real, a fotografia é o seu ‘analogon’ perfeito”. Entretanto o estatuto de analogia perfeita da realidade não significa, necessariamente que ela simplesmente “copie” as aparências do real. Como comenta Dubois (2003, p.25) a consciência do “automatismo de sua gênese técnica” confere à fotografia um “peso de realidade” que independe da sua semelhança com o original. O seu realismo é beneficiado antes pela “transferência de realidade da coisa para sua reprodução” do que pela sua fidelidade com a realidade: a ontologia da fotografia está Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | percebida, ela própria, como um pedaço da realidade que representa. Como nota princípio de uma transferência das aparências do real para a película sensível” | na “relação de contigüidade momentânea entre a imagem e seu referente, no (Dubois, 2003, p.35). Aqui a foto é índice antes de ser ícone: “por sua gênese Acrescenta o autor que o realismo da fotografia deve mais ao seu caráter indicial do que a sua semelhança visual com o real: a priori, nada implica que o aquilo que é visto em uma fotografia de um objeto realmente se pareça com a visão que temos do objeto28. Ao contrário da pintura, a fotografia parece estar investida de uma “verdade” que deriva de seu caráter indicial. Não supomos que a Última Ceia de da Vinci seja uma “prova” do evento, ainda que, por outros motivos, possamos crer que o evento tenha ocorrido e possamos mesmo imaginá-lo tal como da Vinci o representou. Já as fotografias são provas da existência daquilo que representam, elas não são simplesmente imagens realistas, são também “traços do real”. É inegável a predisposição em acreditar que uma fotografia apresenta uma verdade sobre o Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular automática, a fotografia testemunha irredutivelmente a existência do referente”. 28 Isso também pode ser constatado nos registros fotográficos não convencionais – como, por exemplo, a fotografia realizada por meio de lentes macro, microscópios, telescópios e vistas aéreas, ou mesmo aquelas realizadas com o uso de filmes sensíveis às partes do espectro invisíveis ao ser humano (UV e infra-vermelho) ou raios-X que são prontamente aceitos como evidências de uma realidade, a despeito das diferenças, às vezes absoluta, em relação ao real que apreendemos com os nossos olhos. Nestes casos imputamos ao real uma verdade que só pode ser apreendida na sua reprodução. 90 verdade? Becker (1978, p.9-13) lembra-nos que, devido ao caráter polissêmico da Julho de 2005 mundo que ela registra. Mas, acerca do quê as fotografias nos comunicam a formular acerca da realidade evidenciada por ela. A verdade dita pela fotografia – que não é, necessariamente “toda a verdade” – é apenas uma verdade dentre várias que podem ser, até mesmo, contraditórias entre si. Acerca da “verdade” da foto, Carrière (1995, p.58) ainda nota: A “verdade” de uma foto, ou de um cinejornal, ou de qualquer tipo de relato, é, obviamente bastante relativa, porque nós só vemos o que a câmera vê, só ouvimos o que nos dizem. Não vemos o que alguém decidiu que não deveríamos ver, ou o que os criadores dessas imagens não viram. E, acima de tudo, não vemos o que não queremos ver. No contexto levantado por Becker e Carrière, a polêmica em torno da famosa fotografia de Joe Rosenthal (fig. 59) da bandeira americana em Iwo Jima é Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | fotografia, a sua “verdade” está condicionada às inumeráveis questões que podemos monte Surubachi em 1945, mas era sem dúvida muito mais espetacular do que | emblemática. Ela não era a foto da primeira bandeira hasteada em Iwo Jima, no aquela tirada pelo fotógrafo da Marinha Americana, Lou Lowery, que acompanhou o Rosenthal que foi heroificado pela mídia. Há mesmo registros das bandeiras sendo trocadas (fig. 61). Certamente ambas fotos contam verdades, em certos casos a mesma verdade. Mas algumas verdades contadas pela foto de Lowery – como o medo retratado na imagem do soldado em guarda com a arma em punho – são muito menos sedutoras do que a gloriosa imagem de Rosenthal, que exclui para fora do quadro qualquer “sujeira” visual que comprometa o espetáculo. Se por um lado, a despeito das polêmicas, não existam evidências de que sua foto seja uma mentira, por outro lado, sua verdade não deixa de ser parcial, ocultando aspectos que suscitam perguntas que não são compatíveis com o espetáculo proporcionado pela imagem. Assim, porque não adaptar a própria realidade para que ela própria seja Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular grupo que hasteou a primeira bandeira (fig. 60). Contudo, foi o grupo registrado por alçada à categoria de espetáculo? Assim, tudo que pudesse espetacularizar o momento da foto de Rosenthal foi realçado e os soldados que nela aparecem foram elevados à qualidade de heróis pelo presidente Truman e pelos meios de comunicação de massa. Retirados do campo de batalha pelo presidente, os soldados 91 e foram envolvidos – aparentemente à contra-gosto – em uma enorme campanha de Julho de 2005 da foto de Rosenthal que sobreviveram a Iwo Jima, tornaram-se garotos-propaganda fotografia, ícones em carne e osso, não sem impactos, alguns trágicos, na vida pessoal deles29. Em contrapartida, tudo aquilo que conspirasse contra o espetáculo deveria ser escondido e os soldados da primeira foto, assim como a própria foto, | foram convenientemente esquecidos pelos meios de comunicação de massa. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | arrecadação de dinheiro para a guerra. Tornaram-se, eles próprios, cópias vivas da Figura 60 Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular Figura 59 Figura 59: Foto de Joe Rosenthal do hasteamento da segunda bandeira no Monte Surubachi em Iwo Jima, às 1:05 da tarde de 23 de fevereiro de 1945 (cf. Landsberg, 1995). Figura 60: Foto de Lou Lowery do hasteamento da primeira bandeira no Monte Surubachi em Iwo Jima, às 10:37 da manhã de 23 de fevereiro de 1945 (cf. Landsberg, 1995). Figura 61: Foto de Bob Campbell da troca de bandeiras. À frente a primeira bandeira sendo recolhida e, ao fundo, a segunda bandeira, maior, sendo hasteada. Figura 61 29 A história mais famosa é a do soldado indígena Ira Hayes retratado no filme “The Outsider” de 1961. Ele tornou-se alcoólatra e morreu em 1954. 92 realidade. Exacerbamos tanto o aspecto objetivo da fotografia que freqüentemente o Julho de 2005 Contudo, no dia-a-dia, assumimos a priori que as fotografias são traços da abstrairmos o fotógrafo, esquecemo-nos também que a fotografia não é, no fim das contas, tão objetiva assim. Ela é, no mínimo, uma seleção da realidade e produto de um recorte que define o que é deixado ou não no quadro. Ao contrário do que supõe a “objetividade da fotografia”, há todo um mundo para além dos limites do campo registrado na fotografia e um fotógrafo sempre tende a recortar o mundo de acordo com seus próprios quadros de apreensão da realidade, excluindo aquilo que não faz sentido. Além disso, no limite, o poder de evidência da fotografia sempre estará ameaçado pela possibilidade dela ter sido montada ou fraudada de alguma forma30. Mesmo assim, a verdade que a fotografia nos diz continua sendo irresistível e a tendência natural é “acreditar nas imagens que contemplamos antes de que algo nos induza a desconfiar de sua veracidade” (Menezes, 1996, p.84). Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | fotógrafo não passa de um ser anônimo, extensão da máquina que fotografou. Ao um analogon, um eidolon a que só faltasse o movimento” (Morin, 1970, p.43). E o | “Temos, na verdade, perante uma fotografia, a impressão de contemplarmos cinema trouxe o movimento às entidades congeladas pela fotografia. A imagem referência espacial – a perspectiva monocular – como se vale de uma característica desse mesmo olho, a persistência retiniana, para conferir a ilusão de movimento à ilusão de profundidade do analogon fotográfico. É inegável que o movimento da imagem fotográfica tornou a analogia do cinema com a realidade vivida particularmente intensa. Mas a imagem do cinema não é exatamente a mesma que uma imagem fotográfica ou uma fotografia animada. Ela não é única, “um fotograma está sempre colocado em meio de outros inumeráveis fotogramas”; depende do tempo, a imagem do filme “se define por uma certa duração”; e está em movimento, não só movimentos internos ao quadro (...), mas também movimentos do quadro em relação ao campo (Cf. Aumont et al., p.38). Martin (1963, p.197) nota que “o cinema reproduz de maneira bastante Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular fílmica é uma reconstrução imagética que não só privilegia o nosso olho como realista o espaço material real, mas que cria à parte um espaço estético absolutamente específico”. É um espaço construído tanto pela perspectiva do quadro 30 Alguns crêem que o maior problema da foto de Rosenthal é que ela é “muito perfeita”, não há o que “pôr ou tirar” para deixá-la melhor. Essa perfeição é a base da freqüente acusação, nunca provada, de que a foto seria uma fraude, uma encenação produzida por Rosenthal (cf. Landsberg, 1995). 93 diegético” 31 do filme: Julho de 2005 como pelo campo que é revelado pelo quadro. Esse é o que chamamos de “espaço O espaço fílmico é um espaço vivo, figurativo, tridimensional, dotado tanto de temporalidade como de espaço real, o qual a câmera experimenta e explora como nós fazemos na realidade; ao mesmo tempo, é uma realidade estética, do mesmo modo que a pintura, sintética e densificada, com o tempo, pela planificação e montagem (Martin, 1963, p.197). Em certo sentido, a diegese fílmica é apreendida como um mundo à parte, análogo ao mundo real dos espectadores. É nesse mundo diegético que a ficção realiza-se como um mundo concebível e encaixa-se no que Eco (2000, p. 172-177) chama “pequeno mundo” da narrativa. “Pequeno” porque ele “não é um estado de coisas maximal e completo”, suas propriedades estão circunscritas ao que é narrado e ele não está sujeito às mesmas cadeias de implicações do mundo real. Contudo, Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | (...) o espaço diegético é inseparável dos personagens que evolucionam nele (...). real que deriva de sua condição analógica: “se as propriedades alternativas [do | apesar disso, esse mundo diegético possui uma relação “parasitária” com o mundo mundo narrativo] não são especificadas, aceitamos como ponto pacífico as Para que o mundo diegético faça sentido ele deve ser um mundo “concebível” porém não, necessariamente, um mundo “possível”. Lembra-nos Eco, que o mundo “possível” está ligado ao que nós entendemos como crível e verossímil, enquanto que o mundo “concebível” está ligado aos nossos hábitos lógicos e epistemológicos. Assim, podemos representar mundos impossíveis que façam sentido, como, por exemplo, mundos populados por animais e objetos falantes ou mundos onde pessoas convivam com desenhos animados, apesar disso ser incrível e inverossímil. Por outro lado, mundos que sejam inconcebíveis – “mundos mobiliados com círculos quadrados que se compram com uma quantidade de dólares correspondente ao maior número 31 Originalmente, em Platão, a diegese e mimese são as duas formas de se colocar uma narrativa. Na diegese o autor conta a história e na mimese a história é representada. Assim, neste sentido, uma peça é uma mimese e um poema é uma diegese. Contudo, “diegese” é também utilizada para se referir ao mundo criado por uma narrativa de qualquer tipo e inclui não só aquilo que está descrito – espaço, personagens, objetos, etc. – mas também aquilo que a narrativa pressupõe, como eventos passados e futuros, por exemplo. A diegese fílmica está relacionado a este segundo sentido da diegese. 32 “(...) se é verdadeiro que John mora em Paris, também é verdadeiro que John vive na capital da França, que vive ao norte de Milão e ao sul de Estocolmo, e que vive numa cidade cujo primeiro bispo foi São Diniz” (Eco, p.172). Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular propriedades que valem no mundo real”32. 94 contudo, que mundos inconcebíveis sejam citados e mesmo que sejam possíveis Julho de 2005 par” (Eco, 2000, p. 174) – tendem a tornar a diegese ininteligível. Isso não impede, Mesmo sendo um produto mediado pelo imaginário, o cinema estende para si parte da suposta “objetividade” que imputamos à fotografia. Tudo que é visível na diegese fílmica possui um “coeficiente de realidade” lastreado pela imagem fotográfica que é o ponto de partida e pedra fundamental do realismo fílmico. Para Martin (1963, p.21), os “fenômenos de adesão e de crença do público no filme” são explicados, em parte, pelo “caráter realista da imagem cinematográfica”. Essa adesão não significa, vale frisar, que em algum momento o “realismo” do filme pretenda se confundir com a realidade do espectador. Um filme é até mesmo composto por diversos elementos não-realistas – a trilha musical talvez seja o exemplo mais evidente – e o espectador cinematográfico tem consciência de que o mundo diegético do filme não é o mesmo mundo da vida prática: a adesão à diegese fílmica não Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | apesar de estarem além da nossa capacidade de compreensão. experiência de comer pipoca na sala de cinema onde o filme é projetado. Isso não | significa que ela esteja no mesmo nível de adesão que temos, por exemplo, com a impede, contudo, que a experiência cinematográfica seja mais intensa do que a Com exceção dos desenhos animados e filmes abstratos ou “experimentais”, a matéria bruta do cinema é a realidade e o “cinema continua fundamentalmente um ambiente realístico” (cf. Carrière, p.81). A diegese fílmica assenta-se sobre um “realismo espacial” por meio do qual podemos penetrar no espaço diegético33 e aderir à ação (cf. Martin, p.197). Para que a ilusão de “realismo” se sustente, o cinema deve ser intransigente em relação à subordinação dos elementos visuais da diegese à geometria da perspectiva e ao realismo fotográfico. Todo conjunto visual apresentado pelo filme deve parecer ao espectador tão real quanto o seu equivalente “autêntico”. Observa Morin (1970, p.191) que: Foi o próprio Méliès, mágico do irreal, que estabeleceu sem equívocos a regra de ouro da verdade das coisas: ‘Tudo é necessário para dar uma aparência de Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular experiência de comer pipocas. verdade a coisas inteiramente fictícias (...) Em questões materiais, deve o cinematógrafo fazer melhor que o cinema e não aceitar o convencional’. Enquanto o teatro pode (...) satisfazer-se com panos de fundo e sinais 33 Vale lembrar que o espaço da diegese fílmica vai além do que surge no quadro. 95 aparentemente autênticos. A sua exigência de exatidão corporal é uma exigência Julho de 2005 convencionais, o cinema necessita de objetos e dum meio ambiente intriga extravagante, uma orquestra no fundo duma mina e um rosto de vedeta invulnerável à sujidade do carvão, nunca admitirá uma vagoneta sem a forma material duma vagoneta, ou um picareta que não apresente a forma material duma picareta. Até mesmo a ilusão de profundidade da perspectiva, originalmente produto da automação do processo fotográfico, pode resultar de maquinações ópticas, como cenografias bidimensionais posicionadas de acordo com o horizonte e o ponto de fuga determinados pela posição da câmera. Se no teatro ou na ópera a aparência ostensivamente artificial do cenário e o uso de sucedâneos lúdicos ou artifícios totalmente insinuados não comprometem a diegese, no cinema, a verossimilhança visual dos elementos em cena e a estruturação deles em perspectivas referidas a um Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | fundamental. Se bem que um filme admita uma voz post-sincronizada, uma único observador são imprescindíveis para a adesão do espectador (ver figs. 62 a | 65). É certo que tanto no cinema como no teatro, o plano da diegese não é o irrealidade, e complementamos aquilo que não vemos com a nossa própria imaginação, o cinema baseia-se justamente na substituição da imaginação pelo realismo fabricado pela técnica: Se, em certo trecho do Mahabharata, um ator inspirado nos diz: “Eu vejo nossos elefantes na planície, de suas trombas decepadas jorra o sangue”, nenhum espectador se volta para ver os elefantes no fundo da platéia. Ele os vê, se tudo correr bem, em algum lugar dentro de si. Eles aparecem independentemente de qualquer contexto realista (...). Este tipo de processo seria totalmente inaceitável no cinema. O cinema tem que mostrar os elefantes. Não existe escolha: é parte do contrato que cada espectador faz ao pagar pelo ingresso. (Carriére, p. 78) Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular mesmo que o da realidade. Mas, enquanto o palco não faz o menor segredo de sua 96 Julho de 2005 Figura 63 Figura 63: Cena de making-off do filme The Matrix onde se pode ver como a sobreposição de perspectivas diferentes (o “observador” desta imagem está em uma posição diferente do “observador” da foto impressa no painel) acaba anulando a perspectiva da paisagem urbana impressa no painel. Figura 64: Cena de making-off que, em contraste com a imagem do filme propriamente dita (figura. 65), evidencia que o espaço diegético é uma construção artificial que funciona apenas de um ponto de vista. Figura 64 Figura 65: Cenas do filme The Matrix onde podemos ver como a perfeita coesão dos elementos cenográficos constroem a ilusão de realismo fotográfico da diegese. O realismo não está apenas na aparência “autêntica” dos elementos visuais, mas também na estruturação deles em uma perspectiva cônica referida a um único observador. É certo que o filme não é composto apenas de traços ou simulacros de realidade34 e a contradição entre a visão exigente e o ouvido tolerante é a Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 62: Cena de making-off que mostra o set de filmagem de The Matrix. Aqui podemos ver o painel cenográfico e o mock-up de helicóptero utilizado em algumas seqüências do filme (figura 65). | Figura 65 Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular Figura 62 manifestação mais emblemática da complexa relação entre realismo e irrealismo do 34 “(...) foi em volta da irrealidade musical que primeiro o complexo de realidade e irrealidade se formou. A vida real encontra-se, evidentemente, desprovida de eflúvios sinfônicos. E todavia a música, acompanhante já do filme mudo, vai-se integrar na banda sonora. Esta exigência de musicalidade vem situar-se no pólo oposto da exigência de objetividade” (Morin, 1970, p.195). 97 aparência de realidade do filme (cf. Morin, 1970, p.195 e p.202), por outro, a Julho de 2005 cinema. Se, por um lado, a trilha sonora, ou mesmo a dublagem, não furtam a indispensável. Por mais fantasioso que seja um filme, não se toleram deformações da forma visual pois, ao mesmo tempo em que um filme apresenta as estruturas afetivas do imaginário, ela também necessita apresentar as aparências da vida vivida (Morin, 1967, p. 106). Daí a intransigência do cinema quanto à aparência dos cenários, adereços e personagens. Mesmo que não sejam “reais”, suas imagens – capturadas por um aparato supostamente objetivo – precisam atender a determinados critérios de realismo. Contudo, esses critérios estão relacionados aos modelos idealizados de realidade: ao mesmo tempo em que a suaviza – rejeitando “tudo o que na vida real nos parece incomum ou absurdo” (Carrière, 1995, p.87) – o realismo fílmico não é validado pelos mesmos critérios que validam a experiência prática. Morin (1970, p. 192-193) comenta que como os elementos visuais da diegese devem preservar sua Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | necessidade de fidelidade fotográfica nas manifestações visuais da sua diegese é cortes rápidos, eles são, muitas vezes, reduzidos aos traços considerados essenciais | aparência de autenticidade durante o movimento do filme, mesmo sob seus planos e e transformados em signos convencionais, processo no qual podem se tornar certas características desejadas enquanto ocultam as características indesejadas, obtém-se mesmo, em certos aspectos, um realismo imagético maior do que a própria realidade, uma “hiper-realidade” que visa atender muito mais as expectativas baseadas na imagem mental que temos de tal ou qual objeto do que reproduzir exatamente o autêntico. A objetividade e a homogeneização do conteúdo acabam destilando de forma tão acentuada os traços do real que o “objeto típico é aquele que, de certa maneira, foi supra-objetivado”, podendo mesmo “voltar-se contra o real: as paisagens típicas, os trajos típicos, as casas típicas, etc., acabam por perder toda a verdade” (Morin, 1970, p. 193). Em outras palavras, isso significa que mais do que mostrar os elefantes, o realismo da diegese fílmica exige que os elefantes manifestem Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular tipificações desprovidas de verdade. E graças aos recursos técnicos que enfatizam visualmente o modelo aceito de elefante, nem que, para isso, tenham-se que construir os elefantes caso os elefantes reais não se enquadrem no modelo idealizado. Tipificações supra-objetivadas dessa natureza atendem à demanda por signos imediatamente compreensíveis para a maioria dos espectadores e compõem o universo iconográfico do cinema. E a repetição e reemprego de seus figurinos, 98 frente às mais fantasiosas representações do fantástico (cf. Sorlin, 1985, p.182). Julho de 2005 paisagens, interiores, adereços estereotipados assegura a impressão de familiaridade existe na realidade ou que não possui uma imagem mental definida? Como já foi observado, o realismo funda-se não só na aparência fotográfica como na articulação da imagem em racionalizações que dão sentido aos mais fantasiosos mundos diegéticos. Muito do realismo das diegeses dos filmes de ficção científica – onde se enquadram praticamente todos os filmes relacionados com o cibernético – está relacionado com a racionalização do “fantástico desconhecido” por meio do “trivial tipificado”. A ficção científica “constrói mundos impossíveis que dão a ilusão de serem concebíveis” (Eco, 2000, p. 177) e essa ilusão é engendrada por racionalizações baseadas em vulgarizações do discurso científico, supra-objetivados em estereótipos de tecnicismo e cientificismo: é o elétrico, o atômico e, também, o cibernético. De fato, nos filmes de ficção cientifica mais recentes, que poderíamos enquadrar como Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | E quais seriam os traços essenciais e supra-objetivados daquilo que não centelha elétrica em Shelley ou à radiação atômica nos filmes “B” de ficção científica | ciberculturais, a vulgarização da cibernética tem um papel diegético similar ao da dos anos 50. em estereótipos construídos a partir de traços genéricos da realidade tecnológica e científica, engendrados em racionalizações que, apesar de mirabolantes, dão o caráter realístico às situações mais insólitas e fantasiosas. Os oráculos bioeletrônicos, os exoesqueletos, os escravos produzidos geneticamente, a fusão entre a mente e o computador, as máquinas que parecem seres biológicos e os organismos maquínicos não são apenas imagens do fantástico, são manifestações de um imaginário embebido de realidade onde as tipificações da realidade prática da tecnologia e de seus “fatos variados” (as Dollies, os vírus de computador, os corações artificiais) fornecem a racionalização – é verdade, nem sempre adequada ou suficiente – sobre a qual se assenta o ar de veracidade da diegese fílmica. Em certos casos, frente a campos inusitados e desconhecidos, as racionalizações fílmicas Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular Nas imagens da cibercultura, sua conexão com o mundo vivido está ancorada chegam mesmo a prover modelos de rápido entendimento e fácil digestão que dão ao sujeito carente de conhecimentos as tipificações que serão reproduzidas nos seus próprios quadros de compreensão de seu mundo prático. O cinema é o reino da fantasia, porém é a fantasia realista, produto da imaginação condicionada tanto pelas identificações subjetivas como pelas 99 cinema – o que é “afetivamente vivido” na realização do espetáculo em oposição ao Julho de 2005 racionalizações realistas. Entretanto, é importante notar que a participação afetiva do com o semelhante como com o estranho: seu poder de mobilizar a subjetividade e os sentimentos do espectador leva “tanto a uma identificação com o semelhante como a uma identificação com o estranho, sendo este segundo aspecto o que quebra nitidamente com as participações da vida real” (Morin, 1970, p. 128, grifo do autor). Daí a ambigüidade inerente às imagens da cibercultura que proporcionam devaneios nos quais, ao mesmo tempo em que identificamos o familiar, nos identificamos com o estranho. Elas, ainda que amplamente relacionadas com o que nos causa estranhamento, também estão relacionadas com a apologia daquilo que elas tornam familiares por meio da identificação afetiva. O imaginário da cibercultura, enfim, não manifesta apenas a fantasia, mas, ao necessariamente articular esta com as racionalizações ancoradas na vida prática, também manifesta as “necessidades de Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | “praticamente vivido” da vida cotidiana – leva os espectadores a se identificar tanto Imagens da Cibercultura • III: O Realismo Espetacular a vida prática não pode satisfazer” (Morin, 1970, p. 136). | todo imaginário, de todo o devaneio, de toda a magia, de toda a estética: aquelas que 100 Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005 IV. AS FIGURAÇÕES DA CIBERCULTURA 101 Julho de 2005 IV.1. O corpus da pesquisa além de estarem ligados diretamente aos temas da cibercultura, fossem socialmente representativos. De partida, todos as obras selecionadas são referências na constituição de um imaginário visual do cibernético. São filmes que, além de engendrarem exemplarmente o sincretismo entre fato e fantasia, típico da cultura de massas, criaram novos signos ou ressignificaram antigos para dar inteligibilidade a admiráveis mundos novos – outros não tão admiráveis assim – que despontavam no horizonte da cibercultura. São filmes “cujo título, ao menos, todos conhecem” – pelo menos quando se fala em cibercultura – e que proporcionaram alguns planos que “são indefinidamente reproduzidos” ou que marcaram “transformações ou novas tendências” (cf. Sorlin, p. 208-209), em alguns casos, não apenas na indústria cinematográfica, mas na indústria cultural de forma geral. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Para esta pesquisa, buscou-se montar um corpus composto por filmes que, histórico são aquelas que “tenham mobilizado um enorme público, provocado | Tendo em vista que as realizações mais interessantes do ponto de vista cinema” (Sorlin, 1985, p.208-209), tomou-se como critério de seleção a relevância em termos de audiência. Exceto pelo filme Metropolis, do qual não se obteve os dados necessários, os filmes selecionados para esta pesquisa se enquadram ao menos no que se pode considerar uma “bilheteria média”, a partir da comparação com a bilheteria de outros filmes produzidos no mesmo ano. Os dados foram obtidos no site The Numbers (http://www.the-numbers.com/) e complementados, quando necessário, por informações obtidas no site The Internet Movie Database (http://www.imdb.com/). A opção preferencial pelo site The Numbers em detrimento do The Internet Movie Database, é porque o segundo não possui uma uniformidade na apresentação dos dados, apesar de, em muitos casos, oferecer mais informações do que o primeiro. Há diferenças entre os números entre uma fonte e outra, mas a ordem de grandeza é geralmente a mesma. Desde que o que se busca aqui, não é um estudo Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura debates, polarizado a atenção inclusive daqueles que não se interessavam no mercadológico preciso, mas um indicador da relevância social do filme, pequenas disparidades foram desprezadas. Foi considerado que uma comparação em termos de ordem de grandeza é suficientemente válida para excluir filmes com bilheteria muito tímida e que seriam, em tese, irrelevantes para a análise da mentalidade e do 102 listar uma quantidade de filmes menor que o The Internet Movie Database, visto que Julho de 2005 imaginário coletivo. Foi também considerado indiferente o fato do site The Numbers das duas fontes de dados. Assumindo que a audiência é diretamente proporcional à bilheteria, quando não maior, foi montado um ranking anual para “validar” os filmes inicialmente selecionados. O ranking é resultado da comparação da bilheteria entre filmes lançados no mesmo ano, a fim de minimizar as defasagens que teríamos, por exemplo, se comparássemos a bilheteria de um filme de 1968 com um de 1999. Certamente isso não impede que filmes que sofreram sucessivas reprises, “remasterizações”, remontagens e reestréias, apresentem distorções em relação aos demais filmes produzidos no mesmo ano da sua estréia. Contudo, neste caso, podemos inferir que a própria durabilidade da obra reafirma a relevância histórica e social do filme. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | os filmes que interessam a esta pesquisa e os de renda mais significativa constam excluiu filmes cuja arrecadação indicasse uma difusão social restrita. Assim, por | O mesmo critério da bilheteria que validou o corpo de pesquisa, também em um ranking de 428 filmes produzidos em 1990) e SimOne (bilheteria americana de US$ 9.680.000 e 148º lugar em um ranking de 464 filmes produzidos em 2002) foram deixadas de lado, a despeito de estarem relacionados com o tema desta pesquisa. Além disso, alguns filmes com bilheteria relevante, como o The 13th Floor (bilheteria americana de US$ 11.810.854 e 113º lugar em um ranking de 428 filmes produzidos em 1999), não foram considerados na pesquisa porque não acrescentavam muito material de análise ou porque material similar era proporcionado por outros filmes, de maior bilheteria, já incluídos na pesquisa. Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura exemplo, obras como eXistenZ (bilheteria americana de US$ 2.840.417 e 173º lugar 103 Julho de 2005 IV.1.1 Sinopse dos filmes informações dos filmes selecionados para compor o corpo desta pesquisa. Metropolis (1927). Metropolis é uma cidade-modelo dividida em dois mundos: um subterrâneo, na qual operários são explorados até a exaustão, e outro, de superfície, onde a elite vive uma vida de luxúria. A cidade é governada por Joh Fredersen cujo filho, Freder, apaixona-se por Maria, líder espiritual dos operários. Fredersen tem a seu serviço Rotwang, um cientista louco e que está criando um robô para substituir os seres humanos. Maria é raptada e o robô de Rotwang é transformado em uma cópia dela. Enquanto Maria permanece presa com o cientista, o robô é infiltrado em seu lugar a fim de semear a discórdia e a desordem nos Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Em ordem cronológica de lançamento, segue abaixo a sinopse e algumas 2001: A Space Odyssey (1968). Os tripulantes da nave espacial Discovery One são incumbidos de ir a Júpiter em uma missão que só será revelada em seu destino: descobrir qual forma alienígena recebeu o sinal enviado por um monolito desenterrado por uma missão lunar. O único tripulante que conhece o real objetivo da missão é HAL 9000, computador que controla praticamente todas as funções da nave. O astronauta Frank Pole e os demais tripulantes humanos em hibernação são assassinados por HAL. Dave Bowman, o astronauta humano que consegue a sobreviver à paranóia do computador, decide desligá-lo. Star Wars (1977). Obi-Wan Kenobi, um cavaleiro jedi, e seu aprendiz Luke Skywalker partem do planeta Tatooine para ajudar a princesa Leia Organa, que foi capturada por Darth Vader e as forças imperiais. Acompanhados Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | subterrâneos de Metropolis. dos robôs C3-PO e R2-D2, Luke e Obi-Wan contratam um mercenário, Han Solo, para partirem de Tatooine. Após serem capturados pelas forças imperiais, Obi-Wan se sacrifica e é morto por Darth Vader, para que os demais, junto com a princesa, possam fugir. Leia carrega as plantas da 104 inteiros, que são fundamentais para que os rebeldes organizem um ataque Julho de 2005 Estrela da Morte, uma super-arma imperial capaz de destruir planetas Blade Runner (1982). Em um futuro onde sempre chove e nunca se vê a luz do sol, Deckard é um policial especializado em caçar replicantes, andróides de carne e osso, com força e resistência espetaculares fabricados para trabalhar para os humanos. A missão de Deckard é “aposentar” quatro replicantes, Roy, Pris, Zhora e Leon, que voltaram a Terra. Espécimes de um modelo especial, o Nexus 6, os andróides adquirem aspirações realmente humanas e querem encontrar Tyrrel, dono da corporação que os fabricou, para descobrir como configurar a expectativa de vida para além dos 5 anos programados. Para se familiarizar com o modelo, Deckard é apresentado à Rachel – uma Nexus Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | à ela. Tron (1982). Flynn é um ex-engenheiro de software da Encon que foi despedido após ter seus videogames roubados pelo atual presidente da empresa, Dillinger. Dono de um fliperama e exímio jogador de videogames Flynn tenta invadir o sistema da Encon para obter provas do roubo. Sentindo-se ameaçado, o Master Control Program (MCP), software ditatorial da Encon, desmaterializa o Flynn de carne e osso e o rematerializa dentro do ciberespaço. No mundo virtual Flynn descobre que precisa sobreviver a sucessivos videogames, nos quais o game-over significa a morte, e encontrar uma forma de ajudar Tron, o avatar de seu amigo Alan, a derrotar o MCP. Wargames (1983). David é um hacker que utiliza seus talentos para coisas Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Kampff –, por quem acaba se apaixonando. | 6 que pensava ser sobrinha de Tyrrel até ser reprovada no teste de Voight- ilícitas como mudar as notas da escola e não pagar conta de telefone. Mas ao tentar invadir uma empresa de videogames para copiar um jogo antes de seu lançamento, acaba inadvertidamente acessando o WOPR (War Operation Plan Response), um novo sistema militar de lançamento de mísseis nucleares. Decidido a jogar com o WOPR uma partida do que 105 The Terminator (1984). Sarah Connor é mãe de um futuro líder que comandará a resistência dos seres humanos contra o domínio das máquinas. Para evitar isso, as máquinas do futuro enviam para 1984 um Exterminador, ciborgue desenhado para matar, extremamente forte e resistente. Para evitar que o Exterminador assassine a mãe do futuro líder, ele próprio envia para o passado um soldado, Kyle, para protegê-la. The Lawnmower Man (1992). O Dr. Lawrence Angelo é um cientista de uma empresa de armas que desenvolve meios de ampliar a capacidade cognitiva com o uso da realidade virtual. Após alguns insucessos com chimpanzés, ele decide testar seus métodos em Jobe, um jardineiro com Julho de 2005 guerra nuclear. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | pensa ser um simples videogame, David coloca o mundo a beira de uma e inteligência sobre-humanos como adquire poderes paranormais. Alterado | problemas mentais. Jobe não só desenvolve uma velocidade de raciocínio puramente ciberespacial para controlar as redes de dados e telecomunicações do mundo todo. Johnny Mnemonic (1995). Em um futuro onde ocorre uma epidemia incontrolável de NAS (Nerve Attenuation Syndrome), doença neurológica provocada pela tecnologia, Johnny é contratado para traficar dados da Pharmakon da China para os Estados Unidos. Ele é um courier cibernético que, graças a um implante, é capaz de carregar dados digitais em seu cérebro. Contudo, como a Yakuza também está interessada nos dados, Johnny precisa usar suas habilidades ciberespaciais para salvar sua cabeça que está, literalmente, a prêmio. The Matrix (1999). Em um futuro dominado pelas máquinas, a maior parte Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura com seus super-poderes, Jobe planeja se transformar em entidade da humanidade foi reduzida a geradores de eletricidade e vive uma vida de simulação na Matrix, um gigantesco sistema de realidade virtual. Neo é um hacker que consegue se libertar da Matrix com a ajuda de Morpheos, líder de um grupo de hackers rebeldes. Morpheos acredita que Neo é “O 106 impossíveis. O grupo é traído por um de seus integrantes e Morpheos é Julho de 2005 Prometido” e o ensina a manipular as regras da Matrix para realizar coisas Minority Report (2003). A Divisão Anti-Crime da Washington do futuro conseguiu reduzir os homicídios para zero graças a um sistema computadorizado que une as visões de três paranormais, os Pré-Cogs, capazes de prever crimes violentos. O trabalho de John Anderton é organizar as visões dos Pré-Cogs e identificar o local do crime para que a polícia possa chegar ao local a tempo de prender o criminoso antes que perpetre o crime. Uma possível falha do sistema surge quando o próprio John Anderton se vê nas visões dos Pré-Cogs como um assassino. | las. Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura salvá-lo, Neo descobre que não só pode desviar de balas, mas pode pará- Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | capturado pelos programas vigilantes da Matrix, os agentes. Decidido a 107 Julho de 2005 2001: A Space Odyssey Comparativo a partir dos 25 filmes de 1968 com informações disponíveis no site “The Numbers”. Bilheteria EUA (US$) Rank. Título original Bilheteria mundial Orçamento (US$) (US$) (estimativa) 1º Funny Girl $ 58.500.000 n. d. n. d. 2º 2001: A Space Odissey $ 56.700.000 $ 190.700.000* $ 10.500.000* 3º The Odd Couple $ 44.527.234 n. d. n. d. 4º Bullit $ 42.300.873 n. d. $ 5.500.000* 5º Romeo and Juliet $ 38.901.000 n. d. n. d. 6º Oliver! $ 37.402.877 $ 40.000.000* $ 10.000.000* 7º Rosemary's Baby $ 33.395.426 n. d. $ 3.800.000* 8º Planet of the Apes $ 33.395.426 n. d. $ 5.800.000* 9º Yours, Mine and Ours $ 25.912.624 n. d. $ 2.500.000* $ 22.276.975 n. d. n. d. $ 1.000.000 n. d. n. d. 10º The Lion in Winter 25º Doctor Faustus Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | IV.1.2 Ranking de bilheteria dos filmes selecionados Star Wars Comparativo a partir dos 39 filmes de 1977 com informações disponíveis no site “The Numbers”. Bilheteria EUA (US$) Bilheteria mundial (US$) Orçamento (US$) (estimativa) $ 460.998.007 $ 797.900.000 $ 11.000.000 2º Close Encounters of the 3 Kind $ 166.000.000 $ 303.800.000 $ 20.000.000 3º Saturday Night Fever $ 139.486.124 $ 282.400.000 n. d. 4º Smokey and the Bandit $ 126.737.428 $ 126.737.428 n. d. 5º Goodbye Girl, The $ 83.700.000 n. d. n. d. 6º Oh, God! $ 51.061.196 n. d. n. d. 7º Bridge Too Far, A $ 50.800.000 n. d. $ 26.000.000 8º The Deep $ 50.681.884 n. d. n. d. 9º Rescuers, The $ 48.775.599 n. d. n. d. $ 46.800.000 $ 185.400.000 n. d. $ 1.000.000 $ 1.000.000 $ 7.000.000 Rank. Título original 1º Star Wars rd 10º The Spy Who Loved Me 39º March or Die Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | * dados obtidos no site “The Internet Movie Database”. 108 Julho de 2005 Bilheteria mundial (US$) Orçamento (US$) (estimativa) 1º ET: The Extra-Terrestrial $431.197.000 $772.000.000 $10.500.000 2º Tootsie $177.200.000 $177.200.000 $15.000.000 3º Officer and a Gentleman, An $129.795.554 $129.795.554 - 4º Rocky 3 $125.049.125 $125.049.125 - 5º Porky's $109.492.484 $109.492.484 $4.000.000 6º Star Trek II: The Wrath of Khan $79.912.963 $96.800.000 $11.000.000* 7º 48 Hours $75.936.265 - - 8º Poltergeist $74.706.019 - $10.700.000* The Best Little Whorehouse in 9º Texas $69.701.637 - - 10º Annie $57.059.003 - $50.000.000* 21º Blade Runner $34.968.423 n. d. $28.000.000 26º Tron $26.918.576 n. d. $17.000.000* 50º Author! Author! $13.111.101 n. d. n. d. $2.678.103 n. d. n. d. $8.222 n. d. n. d. 100º Diva 127º Hammett * dados obtidos no site “The Internet Movie Database”. Wargames Comparativo a partir dos 152 filmes de 1983 com informações disponíveis no site “The Numbers”. Rank. Título original Bilheteria EUA (US$) Bilheteria mundial (US$) Orçamento (US$) (estimativa) 1º Return of the Jedi $309.205.079,00 $572.700.000,00 $32.500.000,00 2º Terms of Endearment $108.423.489,00 n. d. n. d. 3º Flashdance $90.463.574,00 n. d. $7.000.000,00 4º Trading Places $90.400.000,00 n. d. n. d. 5º WarGames $74.433.837,00 n. d. $12.000.000* 6º Octopussy $67.900.000,00 $183.700.000,00 $27.500.000* 7º Sudden Impact $67.642.693,00 n. d. n. d. 8º Mr. Mom $64.800.000,00 n. d. n. d. 9º Staying Alive $63.841.474,00 n. d. n. d. 10º Risky Business $63.541.777,00 n. d. $6.200.000* 50º Survivors, The $14.000.000,00 n. d. n. d. $3.594.000,00 n. d. n. d. $24.164,00 n. d. n. d. 100º Traviata, La 152º Better Late Than Never Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Bilheteria EUA (US$) | Rank. Título original Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Blade Runner Tron Comparativo a partir dos 127 filmes de 1982 com informações disponíveis no site “The Numbers”. * dados obtidos no site “The Internet Movie Database”. 109 Rank. Título original Bilheteria mundial (US$) Orçamento (US$) (estimativa) 1º Ghostbusters $238.600.000 $291.600.000 $30.000.000 2º Beverly Hills Cop $234.760.478 $316.300.000 $15.000.000 Indiana Jones and the Temple of 3º Doom $179.870.271 $333.000.000 $28.000.000 4º Gremlins $148.168.459 $148.168.459 $11.000.000* 5º The Karate Kid $90.800.000 n. d. n. d. 6º Police Academy $81.198.894 n. d. n. d. 7º Footloose $80.000.000 n. d. n. d. 8º Star Trek III $76.471.046 $87.000.000 $17.000.000* 9º Romancing the Stone $74.900.000 $114.900.000 n. d. 10º Purple Rain $63.358.487 n. d. n. d. 22º The Terminator $38.019.031 n. d. $6.400.000 50º The Last Starfighter $21.000.000 n. d. n. d. $5.717.795 n. d. n. d. $58.689 n. d. n. d. 100º Ninja III: The Domination 144º Crackers (1984) Julho de 2005 Bilheteria EUA (US$) Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | The Terminator Comparativo a partir dos 144 filmes de 1983 com informações disponíveis no site “The Numbers”. The Lawnmower Man Comparativo a partir dos 179 filmes de 1992 com informações disponíveis no site “The Numbers”. Rank. Título original Bilheteria EUA (US$) Bilheteria mundial (US$) Orçamento (US$) (estimativa) 1º Aladdin $217.350.219 $501.900.000 $28.000.000 2º Home Alone 2: Lost in New York $173.585.516 $279.600.000 $20.000.000 3º Batman Returns $162.831.698 $282.800.000 $80.000.000 4º Lethal Weapon 3 $144.731.527 $319.700.000 n. d. 5º A Few Good Men $141.340.178 $236.500.000 $33.000.000* 6º Sister Act $139.605.150 $231.600.000 n. d. 7º Bodyguard, The $121.945.720 $410.900.000 n. d. 8º Wayne's World $121.697.323 $121.697.323 n. d. 9º Basic Instinct $117.727.224 $352.700.000 $49.000.000 10º A League of Their Own $107.533.925 n. d. $40.000.000 42º Lawnmower Man, The $32.100.816 n. d. $10.000.000* 50º Hoffa $23.365.858 n. d. n. d. $8.205.703 n. d. n. d. $5.000 n. d. n. d. 100º Gladiator, The 179º Rain Without Thunder Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | * dados obtidos no site “The Internet Movie Database”. * dados obtidos no site “The Internet Movie Database”. 110 Rank. Título original Bilheteria mundial (US$) Orçamento (US$) (estimativa) 1º Toy Story $191.796.233 $356.800.000 $30.000.000 2º Batman Forever $184.031.112 $335.000.000 $100.000.000 3º Apollo 13 $172.070.496 $334.100.000 $65.000.000 4º Pocahontas $141.579.773 $347.100.000 $55.000.000* 5º Ace Ventura: When Nature Calls $108.360.063 $212.400.000 $30.000.000* 6º Goldeneye $106.429.941 $351.300.000 $80.000.000* 7º Jumanji $100.458.310 $264.700.000 $65.000.000 8º Casper $100.328.194 $282.300.000 $55.000.000 9º Se7en $100.125.643 $328.125.643 $30.000.000 $100.012.499 $365.000.000 $90.000.000* 50º Money Train $35.324.232 $77.200.000 $68.000.000 84º Johnny Mnemonic $18.976.621 $33.300.000* $26.000.000* $13.715.170 n. d. n. d. $536.023 n. d. n. d. $5.000 n. d. n. d. 10º Die Hard: With a Vengeance 100º Highlander: The Final Dimension 200º Underneath, The 235º Business Affair, A Julho de 2005 Bilheteria EUA (US$) Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Johnny Mnemonic Comparativo a partir dos 235 filmes de 1995 com informações disponíveis no site “The Numbers”. The Matrix Comparativo a partir dos 428 filmes de 1999 com informações disponíveis no site “The Numbers”. Rank. Título original Bilheteria EUA (US$) Bilheteria mundial (US$) Orçamento (US$) (estimativa) 1º Star Wars: Phantom Menace $431.088.297,00 $925.600.000,00 $115.000.000,00 2º Sixth Sense, The $293.501.675,00 $672.800.000,00 $40.000.000,00 3º Toy Story 2 $245.823.397,00 $485.800.000,00 $90.000.000,00 Austin Powers: The Spy Who 4º Shagged Me $206.040.085,00 $309.600.000,00 $35.000.000,00 5º Matrix, The $171.479.930,00 $456.500.000,00 $65.000.000,00 6º Tarzan $171.091.819,00 $447.100.000,00 $145.000.000,00 7º Big Daddy $163.479.795,00 $233.800.000,00 $30.000.000,00 8º Mummy, The $155.385.488,00 $413.500.000,00 $80.000.000,00 9º Runaway Bride $152.149.590,00 $307.900.000,00 $70.000.000,00 $140.539.099,00 $248.300.000,00 $35.000,00 $40.846.082 n. d. $19.000.000 $14.395.874 n. d. $14.000.000 $1.350.248 $1.788.168 $312.000 $5.000 n. d. n. d. $603 n. d. n. d. 10º Blair Witch Project, The 50º House on Haunted Hill 100º Tea with Mussolini 200º Tumbleweeds 400º Getting to Know You 428º Summerspell Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | * dados obtidos no site “The Internet Movie Database”. 111 Orçamento (US$) (estimativa) 1º Spider-Man $403.706.375 $821.700.000 $139.000.000 Lord of the Rings: The Two 2º Towers $341.784.377 $924.291.552 $94.000.000 3º Star Wars: Attack of the Clones $302.181.125 $648.200.000 $115.000.000 Harry Potter and the Chamber of 4º Secrets $261.987.880 $869.400.000 $100.000.000 5º My Big Fat Greek Wedding $241.437.427 $353.900.000 $5.000.000 6º Signs $227.965.690 $407.900.000 $70.000.000 7º Austin Powers in Goldmember $213.079.163 $292.700.000 $63.000.000 8º Men in Black 2 $190.418.803 $440.200.000 $97.000.000 9º Ice Age $176.387.405 $375.600.000 $65.000.000 10º Chicago $170.684.505 $306.400.000 $30.000.000 17º Minority Report $132.014.112 $342.000.000 $102.000.000 $51.432.423 n. d. $30.000.000 $23.607.202 n. d. n. d. $2.099.719 n. d. n. d. $18.062 n. d. n. d. $656 n. d. n. d. 50º Like Mike 100º Adam Sandler's 8 Crazy Nights 200º State Property 400º Scarlet Diva 464º Besotted Julho de 2005 Bilheteria mundial (US$) Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Bilheteria EUA (US$) | Rank. Título original Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Minority Report Comparativo a partir dos 464 filmes de 2002 com informações disponíveis no site “The Numbers”. 112 Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Figura 66 (Metropolis) Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005 IV.2. As alegorias da tecnologia Figura 67 (Metropolis) 113 científicas ou tecnológicas do impossível, mas sim sua “aparência” de cientifico e Julho de 2005 Para o realismo da diegese fílmica não importam as premissas e implicações normas da objetividade ou, pelo menos, envolto em verossimilhança” (cf. Morin, 1970, p. 200). É a tendência que se materializa no culto ao gadget, simulação de tecnologia e produto da obsessão moderna por máquinas. Daí as alegorias mais incoerentes ou supérfluas não conspirarem contra o realismo do filme, ao contrário, com freqüência, são recursos que privilegiam a performance visual em detrimento das implicações científicas, reforçando racionalizações que passariam despercebidas. Constituem estereotipações distantes da realidade técnica e científica, freqüentemente inconsistentes nesses termos, porém revestidos de certos traços essenciais adequados para conferir o realismo necessário à diegese fílmica. Introduzem certas “condições de (...) de veracidade que asseguram a comunicação com a realidade vivida” (Morin, 1967, p. 86) no seio do impossível e do desconhecido, da ciência Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | tecnológico, articulada em alegorias e racionalizações que reduzem o mito “às eletrônico”, da informação automática, da realidade virtual, dos biônicos e gadgets | regredida ao nível do mito. São as alegorias tecnológicas – figurações do “cérebro humanos vivem imersos no ciberespaço, assassinos são condenado por assassinato antes de cometê-los e as máquinas são dotadas de consciência. Desde cedo, a indústria do cinema representa a tecnologia com alegorias construídas a partir de significantes conhecidos do senso comum. O andróide de Metropolis (fig. 66), é uma alegoria de gente e máquina, bricolagem de articulações e encaixes com estilizações de costelas, seios, abdômen e rosto estampados em metal. É também uma alegoria que, apesar de tecnológica, incorpora a simbologia mística: a cabeça da máquina é coroada por uma auréola metálica e a andróide surge no filme sentada em um trono exatamente à frente de um grande pentagrama, do qual uma das pontas termina por trás de sua cabeça. Rotwang, “o inventor”, diz para Johhan: “Então, Joh Fredersen?! Não valeu a pena a perda de uma mão para criar o homem do futuro, o Homem-Máquina?” [grifo da legenda do filme], exibindo orgulhosamente Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura acopláveis ao corpo – que tornam imaginariamente concebíveis mundos onde seres tanto sua obra como sua mão, supostamente artificial, coberta por uma grossa luva. Ele vai ainda mais longe: “Me dê outras 24 horas, e ninguém, Joh Fredersen, ninguém poderá distinguir o Homem-Máquina de um mortal!”. A fusão de Maria (fig. 67) com o andróide é um notável exemplo de como as alegorias tecnológicas estão ancoradas em seu próprio presente, mesmo que articulem um imaginário – o do 114 técnico e do científico assentam-se sobre a estereotipação visual da eletricidade e da Julho de 2005 ciborgue, neste caso – muito à frente de seu tempo. Assim, os traços genéricos do controle eletrônicos e plásticos, o laboratório de Rotwang é uma grande alegoria construída com arcos voltaicos, relógios, chaves, alavancas e acessórios de vidro. A cada girar de chaves e alavancas, vemos um gadget entrar em funcionamento: luzes se acendem, líquidos borbulham em tubos e recipientes de vidro, faíscas surgem de relés expostos sobre isoladores de cerâmica, arcos voltaicos disparam sobre o domo cilíndrico de vidro onde Maria jaz inconsciente, círculos de luz oscilam em torno da máquina humanóide. Assim, mediado pelas figurações da química e da eletricidade, aos poucos a andróide adquire os atributos humanos de Maria, vemos um coração e circulação sanguínea que brilha no corpo da máquina que antecede o surgimento do Golem do “barro” tecnológico, com a metamorfose da face metálica do andróide na face humana de Maria. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | química. Em um mundo ainda desprovido de raios lasers, computadores, painéis de estereotipações de gadgets elétricos, químicos ou mecânicos, onde luz, fumaça e | Durante décadas, as alegorias da tecnologia foram fundamentalmente a geometria, em geral, não produziram figurações marcantes até o surgimento da computação e sua assimilação pela cultura de massas. Segundo o artigo de Winegrad e Akera (1996), ENIAC: A Short History of the Second American Revolution, para demonstração pública do ENIAC em 1946, as lâmpadas de monitoramento dos acumuladores do ENIAC foram cobertas com meias-esferas translúcidas, na verdade bolas de ping-pong cortadas ao meio. Desde então, “as luzes piscantes de computadores (...) têm sido parte da cena envolvendo computadores e ficção cientifica”. Contudo, essa forma de se estereotipar a computação não era algo visualmente inédito, visto que luzes piscantes sempre fizeram parte, e ainda fazem, do repertório de alegorias tecnológicas. A verdadeira inovação dessas alegorias aconteceu em 1969, no filme 2001: A Space Odissey que transformou as alegorias tecnológicas com a incorporação de novos estereótipos, Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura movimento transformavam o técnico-científico em metáforas visuais. A matemática e relacionados com a computação. Ao mecânico e elétrico introduziu-se o informático, que se tornou indissociável da idéia de “cibernético”, cada vez mais consolidado como categoria de apreensão da realidade. A palavra computar vem do latim computare, que significa calcular, contar, fazer o cômputo, avaliar. Não por acaso, os códigos e signos matemáticos (números, 115 estereotipações da computação. Na construção fílmica, tais signos ganham novos Julho de 2005 equações, enunciados) e os traços geometrizados são praticamente onipresentes nas relacionados em seus contextos originais. Reduzidos a estereótipos eminentemente visuais, em detrimento de seus significados originais, e inseridos em novos contextos de significação, os caracteres matemáticos e seus enunciados (ou a aparência de enunciados) são incorporados no que podemos chamar de alegorias tecnológicas. Os significados originais não são importantes sendo, muitas vezes, articulados como mensagens propositalmente ininteligíveis, justamente para simular o distanciamento e opacidade em relação ao senso comum, reforçando a aparência de cientificismo e tecnicidade. De fato, desde que mobilizados como um discurso visual destinado ao público leigo, a alegoria tecnológica não tem nenhum compromisso com o sentido original dos signos que o compõe, o que resulta, na maior parte das vezes na bricolagem de pseudomensagens tecnológicas, destituídas de qualquer sentido se Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | sentidos e referem-se a imagens mentais diferentes daquelas às quais estão a imagem, é também, além de um dos símbolos mais simples da racionalidade | extraídas do contexto visual do filme. Já a reta, signo intermediário entre o número e abstração humana. Não existem retas na natureza e a associação visual com elas simboliza uma oposição ao “estado de natureza” das coisas. Nas representações da realidade virtual freqüentemente vemos estereótipos que têm nas retas o seu elemento estrutural mínimo, como se assim traduzissem de forma visual a matematização do universo. A esses estereótipos acrescenta-se outro complementar: o traço, abstração típica do desenho técnico, relacionado ao reducionismo no qual o mundo visual pode ser esquadrinhado, medido, equacionado, e reconstruído em “wireframes” (“modelos em arame”) sob referência do número e da reta. Nas diegeses fílmicas, o código lógico-matemático, as formas geométricas primitivas e o wireframe são figurações recorrentes das alegorias tecnológicas, largamente utilizadas para tipificar as realidades virtuais e os gadgets computacionais. É essa tendência alegórica que já estava anunciada no design dos Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura humana, um forte índice de oposição à natureza: a reta é, antes de tudo, produto da instrumentos das naves espaciais de 2001: A Space Odyssey. Dentre os gadgets, as inumeráveis bugigangas com luzes e indicadores diversos, destacam-se as telas de raios catódicos para as quais os pilotos sempre olham para conduzir as naves espaciais. No filme, quando o ônibus espacial se aproxima da estação orbital, a seqüência (fig. 68) oferece uma visão privilegiada do interior da cabine do piloto. Do 116 girando em seu próprio eixo: é a estação orbital, o destino do ônibus espacial. O Julho de 2005 lado de fora da nave, no espaço, desloca-se uma estrutura em forma de anel duplo luzes dos indicadores e botões e às telas localizadas, estrategicamente, no centro da cena. São cinco telas, duas no painel de instrumentos superior e três no console central entre os pilotos. As telas superiores e laterais do console central exibem alternadamente fórmulas, tabelas, e gráficos matemáticos com curvas em duas e três dimensões, enquanto a tela central do console exibe uma mira vermelha sobre um conjunto de traços verdes que formam retângulos do mesmo tamanho. No decorrer da aproximação da nave à estação orbital podemos ver que o conjunto de traços retangulares que compõe a imagem por trás da mira na tela possui um movimento de paralaxe e rotação que supostamente acompanha a posição absoluta da estação orbital. Assim, mesmo quando, da perspectiva do piloto, a estação parece não girar, a pequena simulação composta de traços retangulares permanece em rotação. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | interior da cabine é escuro, o que dá destaque à imagem do exterior, ao mosaico de outras cenas. O transporte da estação orbital para a estação lunar é realizado por | O filme apresenta esse modelo de simulação com pequenas variações em pilotos com a plataforma. Eles se orientam por uma imagem, exibida pelo monitor central do painel de pilotagem, composta por círculos de diferentes tamanhos cujos centros se movem para um ponto comum, demarcado pelo cruzamento de duas linhas perpendiculares (fig. 69). O alinhamento dos círculos é anunciado visualmente nessa tela por um aviso textual, por uma barra graduada à esquerda do conjunto e por cantoneiras invertidas que realçam o centro da composição, indicando que o alvo foi atingido e que a nave está alinhada com a plataforma de pouso. Em outra seqüência, quando o protagonista Dave Bowman resgata o corpo do seu colega com o módulo de manutenção espacial (fig. 70), a densidade de gadgets na cena, começando pelo próprio traje de astronauta de Dave, conota uma “tecnicidade” maior que nas demais seqüências que mostram cabines de pilotagem das naves espaciais. Dentre as luzes do painel e as várias telas do módulo de manutenção, ricas em Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura uma outra nave, cuja manobra de aterrissagem ocorre sem o contato visual dos gráficos matemáticos, uma das telas é destacada e, como nas demais cenas, é a que exibe um modelo de simulação do espaço exterior. A tela mais olhada por Dave, e pelo espectador por conta do close-up no painel de instrumentos, é a que antecipa a aproximação do alvo – por meio de uma composição de traços que sobrepõe 117 mesmo que ele seja visualizado: o corpo do colega de Bowman, Frank Poole. Julho de 2005 coordenadas circulares e retilíneas, acompanhadas de códigos textuais – antes tipificações da computação e da aviônica (instrumentação de aviões). Mas eles contêm algo de inovador para uma época na qual a televisão ainda era um artigo de luxo. Os monitores raramente exibem imagens de câmeras, exibem números, equações, gráficos matemáticos e modelos animados que simulam a realidade exterior: são figurações do imaginário das possíveis “interações humano-computador” (IHC) e que se tornaram prototípicas nas diegeses fílmicas posteriores. Reproduzem o que pode ser identificado como produto do “fato diverso”, banalizações e simplificações veiculadas cotidianamente nos meios de comunicação de massa, mas também são objetivações da tecnologia e da ciência, estereotipadas em pequenas unidades semânticas acessíveis ao público leigo – a reta, o círculo, a matriz de linhas, o número, a equação, o código, o gráfico matemático – capazes de fornecer as Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Os instrumentos de navegação em 2001: A Space Odyssey são claramente Apesar de realizado em um período anterior ao uso das interfaces gráficas e | racionalizações que dão ar de plausibilidade ao imaginário e ao fantástico. “wireframe”, ou “modelo em arame”. O wireframe é produto inerente ao processo de representação técnica da forma, é o desenho ou modelo em linhas que materializa a primeira instância de realização dimensional e figurativa do objeto, tanto em duas como em três dimensões. Com as possibilidades de automatização da sua visualização pelo computador, antes dependente do exaustivo e extenso trabalho braçal do desenhista técnico, o wireframe tornou-se o estereótipo mais paradigmático da realidade virtual computadorizada. A cena em que o computador HAL 9000 sugere que há um problema na unidade “AE-35” é ilustrada com imagens de um modelo virtual em 3 dimensões em uma das telas do computador (fig. 71). O modelo em wireframe é rotacionado em três eixos perpendiculares de forma a exibir, sem interrupção, as suas vistas ortogonais. A cena dá ênfase ao sensível (o analógico, a similaridade entre as imagens do modelo virtual e as imagens do objeto real) em Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura dos modernos programas de CAD (computer aided design), o filme já cita o detrimento do inteligível (o digital, o textual). E, mesmo aquilo que se propõe ser “digital” e “textual” , como ocorre nas demais partes do filme, não passa de uma estereotipação do código alfa-numérico cujo sentido literal é simbolicamente insignificante. Com efeito, na cena do “diagnóstico” do módulo supostamente defeituoso (fig. 72), os textos que piscam, se alternam, se atualizam conforme o 118 linguagem humana, exceto como algo que tem a “aparência” de texto técnico- Julho de 2005 modelo em wireframe gira na tela não parecem fazer o menor sentido para a imagem em wireframe do módulo, são apenas signos visuais que ao mesmo tempo em que ilustram as possibilidades imaginativas do computador, conotam a “objetividade” da técnica e da ciência. As alegorias baseadas em wireframes também surgem em outra grande referência de uma cibercultura emergente do final da década de 1970: Star Wars. Como forma de conferir um ar “tecnológico” aos combates espaciais os wireframes sempre estão presentes de alguma forma. Em algumas seqüências, as naves inimigas são reproduzidas em “wireframe” nas miras dos caças espaciais (fig. 73) e em outras seqüências, o caminho percorrido pela nave aparece na forma de um esquema visual que associa um “cenário” quadriculado a duas barras verticais que se movem para o centro conforme o “alvo” se aproxima (fig. 74), em uma lógica visual Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | científico. Esses textos, juntamente com a matriz quadriculada que acompanha a 70). Entretanto, a alegorização tecnológica não impede que estereótipos antigos | muito similar ao painel da nave utilizada por Dave para resgatar o corpo de Frank (fig. atacada pelos caças do Império, a performance nas cenas é praticamente a mesma daquela vista nos filmes que retratam batalhas aéreas das fortalezas voadoras B-17 americanas da II Grande Guerra. Esta é a referência de senso comum que é “modernizada” e “tecnologizada” com um cenário cheio de plásticos, luzes e armas “laser” com “displays” que reproduzem a “movimentação” dos inimigos dentro de grades quadriculadas (fig. 75). De forma análoga, Blade Runner une esterótipos antigos e novos nas suas alegorias tecnológicas. O antigo, muito presente nos figurinos e alguns cenários, é “modernizado” com máquinas e aparelhos esquisitos, como o utilizado durante o “teste Voight-Kampff” de “detecção de andróides”: uma geringonça dotada de um braço com uma câmera na ponta, caixas com luzes piscantes e monitores de TV, com destaque ao monitor maior que exibe o close-up do olho do interrogado (fig. 76). Mas Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura façam parte da alegoria. Na seqüência em que a espaçonave Millenium Falcon é é, ainda, uma alegoria sem muitos estereótipos computacionais, não possui índices de que é uma máquina pensante. Ao contrário, o painel do veículo policial e o equipamento de ampliação de fotografias são nitidamente “computadorizados”. Na seqüência em que o veículo policial leva Deckard para a delegacia (fig. 77), pode-se ver um monitor que exibe códigos alfanuméricos e esquemas de uma plataforma 119 Figura 73 (Star Wars) Figura 70 (2001: A Space Odyssey) Figura 74 (Star Wars) Figura 71 (2001: A Space Odyssey) Figura 69 (2001: A Space Odyssey) Figura 75 (Star Wars) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Figura 68 (2001: A Space Odyssey) Julho de 2005 pouso lunar em 2001: A Space Odissey (fig. 69). Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | circular esquadrinhada por uma matriz, em uma montagem bastante similar à do Figura 72 (2001: A Space Odyssey) 120 Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005 Figura 77 (Blade Runner) Figura 78 (The Matrix) Figura 79 (The Matrix) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Figura 76 (Blade Runner) Figura 80 (The Six Million Dollar Man) 121 com aqueles encontrados em Metropolis, e estereótipos das novas tecnologias Julho de 2005 A união de estereótipos da tecnologia antiga, muito similares esteticamente arcaísmos tecnológicos incorporados aos artefatos estejam relacionados exclusivamente ao nível tecnológico da sociedade na época de produção do filme. Ao contrário, muitas vezes, é o que pretende ser futurista aquilo que mais parece velho nesses filmes. The Matrix, por exemplo, exibe junto com seu discurso “super-futurista” incontáveis símbolos do arcaísmo tecnológico: engrenagens, faíscas, seringas, gadgets eletro-mecânicos. A sala onde se dá a “desconexão” de Neo da Matrix é uma grande alegoria tecnológica no seu sentido mais pleno (fig. 78). Talvez o telefone antigo acoplado a um dispositivo mecânico de “discagem automática” seja o exemplo mais significativo desse cenário abundante de artefatos que, apesar de eletrônicos, informáticos e telemáticos, têm aparência de antiguidades, em caixas de ferro, com engrenagens, alavancas e fios expostos. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | cibernéticas persistem até em filmes mais recentes, não havendo indicação de que os “Real World”, como o chamam os personagens, ou é um canal conectado a ele. A | O antigo, em The Matrix, está vinculado ao mundo presencial: ou é o próprio mais parece ter saído de um conto de Júlio Verne. Seus controles, assim como dos equipamentos do “mundo real” em geral se assemelham aos encontrados nos filmes de ficção científica dos anos 50 e, para a imersão no mundo high-tech da Matrix, as pessoas precisam conectar um enorme e primitivo plug metálico nas suas nucas. Em outra seqüência (fig. 79), quando Neo é reconectado à realidade virtual, o ambiente clean e homogêneo do ciberespaço contrasta com o ambiente presencial precedente: sujo, velho, populado por pessoas subnutridas e maltrapilhas. É evidente a importância dos estereótipos da computação na “modernização” das alegorias tecnológicas, mesmo que elas sejam tão arcaicas quanto as alegorias de Metropolis. Os estereótipos do wireframe e do código alfanumérico – figuração tanto do discurso científico como da linguagem de máquina – são praticamente signos indispensáveis nas alegorias tecnológicas relacionadas ao cibernético de uma Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura nave onde Neo é acolhido depois de ser desconectado da Matrix é um artefato que forma geral. Ainda no início da década de 1970, a abertura da série de TV “Six Million Dollar Man” já incorporava a alegorização do ciborgue com a bricolagem de estereótipos do corpo humano, da máquina e do computador. O nome do seriado aparece sobre o piscar de luzes em uma trama quadriculada (um computador?). Toda a apresentação é acompanhada de um número aleatório exibido no canto da tela. 122 “Steve Austin, astronauta, um homem que mal está vivo”, passam as cenas de uma Julho de 2005 Logo após as cenas do desastre de uma espaçonave, enquanto a voz em off diz carne. Mas a voz continua: Cavalheiros, nós podemos reconstruí-lo. Nós temos a tecnologia. Temos a tecnologia para construir o primeiro homem biônico do mundo. Steve Austin será este homem. Melhor do que era antes. Melhor, mais forte, mais rápido. Wireframes mostram partes do corpo como uma superfície mapeada para a intervenção biônica. Os modelos coloridos e com aparência de simulação computadorizada que surgem dentro do boneco virtual quadriculado emprestam a conotação de “precisão” e “superioridade” às máquinas que aparecem em seguida, em uma sala de operações, supostamente sendo implantadas no corpo humano. As cenas que fundem os gráficos de uma tela de um osciloscópio – que exibe um traço que se move rapidamente, em oposição ao monótono e regular traço do Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | sala de cirurgia e o rosto de um homem inconsciente. É a imagem da fragilidade da “desempenho” superior do ser humano reconstruído pelas tecnologias cibernéticas | eletrocardiograma humano – com a imagem do “novo homem” correndo evocam o Em 1984, a alegoria do “built machine-man” ganhou novos horizontes com The Terminator, onde somos confrontados com um ciborgue que inverte a hierarquia dos termos: ao invés do ser humano ser melhorado com o acoplamento da máquina, é a máquina que é melhorada com o acoplamento de uma casca de carne. Assim, o filme apresenta, vez e outra, estereótipos da computação incorporados às imagens que o exterminador vê, a “perspectiva de mundo” do ponto de vista da máquina por meio de imagens transformadas por tecnologias que supostamente “melhoram” a percepção visual e “turbinadas” com gráficos matemáticos e figurações de códigos de computador (fig. 81). Em outro caso, quando o exterminador rouba um caminhão, o desenho esquemático em linha estereotipa um “processo” de coleta e “aprendizado” a partir das informações de sua memória digital (fig. 82). Mais ou menos no mesmo período, em 1982, o filme Tron introduziu, sob Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura (fig. 80). influência dos videogames, o imaginário do ciberespaço como um espaço de imersão do ser humano. As referências visuais, entretanto, a despeito da sofisticação das imagens proporcionadas, não só pela evolução tecnológica, mas também por novas possibilidades imaginativas, permaneceram articuladas por estereótipos baseados na 123 apresenta um ambiente ciberespacial do ponto de vista das entidades digitais, Julho de 2005 geometrização da forma, no desenho em linha e no código alfanumérico. O filme nos fenomênico” similar ao mundo presencial do qual supõe-se ser extensão, é marcado por amplos espaços planos cobertos por linhas quadriculadas ou padrões similares, sobre os quais erguem-se formas geométricas regulares e paredes retilíneas, dotadas de superfície extremamente homogêneas e pontuadas por grafismos e estilizações futuristas. É nesse ambiente que entidades de aparência humana, “alter-egos” dos jogadores de videogame (fig. 83) e usuários de computador (fig. 84), evolucionam em máquinas virtuais espetaculares. De fato, foi Tron que popularizou o padrão quadriculado e o wireframe como “traços característicos” por excelência da “realidade virtual” – em oposição à ausência desses “traços” in natura na “realidade presencial”. Assim, o wireframe e os padrões quadriculados – a princípio, instrumentos que precedem o “rendering35” das imagens Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | representando-o como um mundo paralelo que, apesar do “funcionamento ostensivamente nas cenas que retratam o ciberespaço, ou quando a cena que | produzidas por computador – são incorporadas como figurações que permanecem similares ao wireframe são reproduzidos no cenário físico ou por trucagem óptica a fim de simular a simulação que não pôde, por limitações tecnológicas da época, ser realizada. A realidade virtual representada em Tron é o campo da experiência no ciberespaço. O filme introduz a realidade virtual não apenas como mera simulação ou imitação da realidade presencial, mas também como o mundo da hiper-realidade sintética que se opõe ao presencial pelo exagero do conceito que homogeneíza e uniformiza. É o mundo clean, esterilizado pela fórmula dos modelos computadorizados que proporcionam experiências em ambientes limpos, sem ruídos visuais e delimitados por traços e formas uniformes demarcadas por geometrias simples onde predominam a reta. Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura pretende retratar o virtual é resultado da filmagem convencional, traços e padrões 35 Processo que resulta na visualização das superfícies do modelo computadorizado. A visualização em wireframe é uma visão ainda esquemática do modelo que, em tese, desaparece com o processo de rendering. 124 Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Figura 81 (The Terminator) Figura 82 (The Terminator) Figura 83 (Tron) Figura 84 (Tron) 125 | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005 Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Figura 86 (Johnny Mnemonic) Figura 85 (Tron) Figura 87 (Tron) 126 | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005 Figura 90 (The Matrix) Figura 88 (Johnny Mnemonic) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 89 (The Matrix) Figura 91 (The Matrix) 127 Julho de 2005 Figura 92 (The Matrix) Figura 94 (The Matrix) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 93 (The Matrix) Figura 95 (The Matrix) 128 Julho de 2005 impossível: ao exagero visual se associa o exagero do desempenho. Na seqüência Julho de 2005 Tron também associa esse mundo da hiper-realidade com o mundo do “surgem” em torno dos jogadores, reproduzindo o próprio processo de “rendering” da computação gráfica: o desenho em linha do wireframe se materializa por “camadas” e, depois de atingida a forma final do objeto, o “modelo em arame” é coberto por superfícies uniformes até que se torne opaca. As lightcycles possuem aceleração irreal e realizam impossíveis curvas em ângulo reto. A ampla flexibilidade das leis físicas também se aplica às câmeras, que juntamente com as motos, realizam travelings fisicamente impossíveis e não possuem restrições de profundidade de campo. Tron também introduziu a noção de que o ciberespaço é uma realidade virtual na qual a mesma simulação que reproduz o funcionamento do mundo presencial é também o modelo de superação desse mundo. Com esse filme, a realidade virtual passa a ser o elemento de racionalização narrativo segundo o qual podemos Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | onde dois times se enfrentam com as lightcycles (fig. 85), as máquinas virtuais estamos submetidos dão abertura para experiências impossíveis de serem vividas | conceber mundos onde a flexibilização e ruptura das regras às quais habitualmente A penetração da computação e dos gadgets cibernéticos reais na vida prática das pessoas, a partir do fim da década de 1980, não mudou em essência o imaginário do ciberespaço. Ainda que o advento da interface gráfica, do mouse e da Internet tenham trazido o ciberespaço para o dia-a-dia das pessoas e estejam tornando progressivamente indistinta a descontinuidade entre virtual e presencial na vida prática (o quanto do e-mail é presencial e o quanto dele é virtual?), as construções fílmicas permanecem, como em Tron, fortemente marcadas pela oposição do presencial e do virtual. Essa oposição é, ainda, como mostram os filmes da década de 1990 e pós-2000, ancorada nos mesmos estereótipos da computação, ainda que travestidas em figurações tecnologicamente atualizadas. Assim, apesar de Jonnhy Mnemonic nos apresentar a Internet como um mundo de imersão total alcançado com o uso de “visores de realidade virtual”36, que produzem a ilusão de Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura fora do ciberespaço. profundidade, e data-gloves, luvas que capturam movimentos das mãos para reconstruí-las na realidade virtual, alegorias lisérgicas baseadas em estereotipações de códigos matemáticos, wireframes, matrizes quadriculadas e formas geométricas 36 Tecnicamente conhecidos como HMD (Head Mounted Display). 129 chega a ser notável a semelhança entre as figurações da realidade virtual na Julho de 2005 regulares são bastante visíveis nas suas imagens do ciberespaço. Nesse sentido, cérebro (fig. 86), as imagens de Tron dos ambientes liminares que mediam a entrada (fig. 87) e a saída de Flynn do ciberespaço. Em outra seqüência que ilustra a relação de Johnny com o ciberespaço (figs. 88), assim que ele estabelece a conexão com o ciberespaço vemos o que supostamente ele vê por meio dos visores: sobre um limbo negro, suas mãos virtuais, os dizeres “INTERNET LOCAL TIME: 10:15:37 PM” e um código de barras com uma seqüência numérica que retoma, de forma mais gráfica, o estereótipo do signo lógicomatemático. O gestual de Johnny denota a interação exclusiva com o ciberespaço: os movimentos de suas mãos realizados no vazio são reproduzidos pelas mãos virtuais que manipulam a realidade virtual que se materializa à frente de seus olhos. Apesar da maior densidade visual do que a encontrada em Tron, no ciberespaço de Johnny Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | seqüência na qual Johnny realiza um upload de dados diretamente para o seu sua organização ortogonal. E, conforme Johnny penetra nas camadas mais atômicas | Mnemonic ainda podemos ver a predominância das formas geométricas regulares e de superfície tornam-se cada vez mais evidentes, até que ele chega a um banco de dados com informações organizadas visualmente em forma de matriz. O uso de figuras matriciais ou que fazem alusão à matriz é um dos recursos mais recorrentes nas alegorias da tecnologia. Nelas, a presença da matriz indica tanto aquilo que é sintetizado por meio do número como indica a presença de um cogito artificial do qual eliminou-se qualquer traço não cartesiano. Manifestação visual da ortogonalidade típica da geometria analítica, o plano quadriculado é sobretudo símbolo de uma tradição cartesiana de pensar o mundo. A matriz é índice de objetividade, da apropriação do mundo ou da criação de outros sob a exatidão e regularidade do número. Indica também controle obtido pela redução do universo às coordenadas geométricas e equações. A matriz aparece desde os primórdios dos filmes ciberculturais – nas telas Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura da informação – Internet, mundo, China, Beijing, Hotel – o wireframe e a uniformidade dos consoles do HAL 9000 em 2001: A Space Odissey, na apresentação do Six Million Dollar Man, nos artefatos de mira de Star Wars, em todo o background do ciberespaço de Tron, nos instrumentos dos veículos e no dispositivo de edição fotográfica de Blade Runner – e mesmo que em filmes mais recentes, ainda que tenha se tornado mais “discreta”, ou mais camuflada por trás das linhas subliminares 130 se deseja conotar “tecnicidade” ou “artificialidade” às construções imagéticas da Julho de 2005 dos objetos em cena, a matriz continua sendo o estereótipo mais importante quando Não por acaso, em The Matrix, as linhas de grade estão, invariavelmente, presentes no cenário – na forma de objetos comuns do mundo presencial, tais como janelas, azulejos, estruturas, prateleiras, ladrilhos – como índices visuais de que o ambiente no qual os personagens estão evolucionando é uma construção “virtual” de computador, apesar de possuir sempre uma aparência “fotográfica” e de ser, quase sempre, fenomenologicamente aceitável como representação fílmica do mundo onde (nós, espectadores) vivemos. Em The Matrix, às vezes, as alusões à linha de grade são sutis, outras nem tanto. Na seqüência em que os agentes procuram por Neo em seu escritório (fig. 91), os móveis, as baias e o teto marcam linhas paralelas verticais e horizontais no cenário. Na cena após sua captura (fig. 92), a sala de interrogatório é introduzida Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | tecnologia. sobre planos quadriculados marcados pelas linhas da parede, atrás dos personagens. | visualmente por vários monitores de TV dispostos em matriz. O interrogatório se dá ambientada em uma edificação tipicamente oriental, cujos padrões quadriculados são realçados e dominam todo o cenário da ação: a estrutura de madeira, as portas, as armações de papel, o tatame, o forro. Não é difícil enxergar nas cenas da luta de kung-fu em The Matrix a mesma composição visual das cenas das lightcycles ou dos tanques de guerra virtuais de Tron. The Matrix mostra um ciberespaço de aparência fotográfica – praticamente rompendo com a estética da imagem sintética inaugurada com Tron – e muito próxima da realidade presencial tal qual a conhecemos. São, contudo, imagens marcadas pela ostensiva e exagerada presença da organização matricial, um típico índice de artificialidade associado à computação. Assim, mesmo em cenas em que a desorganização e a sujeira predominam, elas são pontuadas pela organização matricial. Na seqüência em que Neo e Morpheos dirigem-se ao encontro do Oráculo, Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura A luta de kung-fu entre Neo e Morpheos no “programa de treinamento” (fig. 94) é o ambiente que eles percorrem é notavelmente sujo e desorganizado. Em uma das cenas há um mendigo sentado com seus pertences, um carrinho de mão com um trapo jogado de um lado e uma garrafa pousada sobre uma pilha de entulho do outro lado. Apesar da sujeira, da parede e do banco pichados, a figura do mendigo é emoldurada por um mosaico retangular formado por linhas perpendiculares entre si e 131 no elevador, o padrão matricial é reafirmado pelo painel de botões do elevador. O Julho de 2005 quadrados vermelhos (fig. 91). Na cena seguinte, quando Neo e Morpheos já estão Matrix também tem seus padrões visuais regulares disfarçados pela imundície. Na seqüência em que eles são emboscados nessa casa (fig. 93), as saídas da casa são fechadas com paredes de tijolos expostos e as luzes aleatórias dos policiais iluminam ambientes que revelam as linhas do azulejo e quadriculados do piso xadrez por baixo da sujeira e do pó. Em The Matrix, o predomínio da sujeira e a desorganização aparente estão associados aos interstícios do controle da Matrix, ainda que a presença do padrão matricial marque o pertencimento ao ciberespaço. Inversamente, a exacerbação da composição matricial e das linhas retilíneas em cenários impecavelmente limpos e uniformes, sem ruídos e interferências visuais, conota “controle”. Todo o cenário do interrogatório de Morpheos pelo agente Smith (fig. 94) é uma apoteose do retilíneo: o abajur, a poltrona, as janelas dos prédios ao fundo, os Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | interior da casa que Morpheos e sua gang costumam utilizar para entrar e sair da ortogonais. Da mesma forma, o hall de entrada do edifício de segurança máxima | enormes vidros retangulares e mesmo as bolinhas da cadeira seguem coordenadas cruzam ortogonalmente: o piso, o equipamento de detecção de metal, os painéis de pedra retangular das paredes e colunas, as estrutura da janela ao fundo. A fronteira entre o presencial e o virtual, em The Matrix, assim como em outros filmes, está associada à alegoria do signo matemático-lógico. Aqui, o uso de colunas com números e caracteres katakana37 invertidos (fig. 96) ampliam a sofisticação aparente do signo, tornando-o mais distante ainda do senso comum ocidental e reforçando o seu caráter conotativo. É um signo praticamente despido de denotação dentro do contexto narrativo, é alegoria pura, produto da supra-objetivação do “código matemático-lógico”. O traço do “extremo oriente”38 incorporado pelo “código da Matrix” tem a ver com uma idéia de tradicionalidade, reforçada pela cor do texto, no mesmo tom dos velhos monitores monocromáticos de fósforo verde. São os enigmáticos códigos “orientais” da Matrix que ganham ares de revelação no fim do Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura onde Morpheos está aprisionado (fig. 95), é composto por linhas retilíneas que se filme quando aquilo que só pode ser visto pelos monitores do mundo presencial fora 37 O japonês possui três sistemas que são utilizados na escrita corrente: o kanji, o hiragana e o katakana. O primeiro corresponde aos caracteres chineses, o segundo e o terceiro são sistemas de escrita silábicos, sendo que o katakana é o utilizado para palavras estrangeiras. 38 Trata-se também de um certo orientalismo cuja presença vêm se acentuando na cibercultura e que é melhor analisado no capítulo IV.3 – Imagens da Alteridade Cibernética. 132 sua frente, transmutados em uma composição que evoca um complexo wireframe Julho de 2005 da Matrix é visto por Neo dentro da realidade virtual, sobre o cenário e os agentes a A revelação mediada pelo computador também é tema de Minority Report, que mostra como as previsões de oráculos ligados a computadores, os “PreCogs”, permitem que o Departamento de Pré-Crime de Washington possa punir os assassinatos antes que eles aconteçam de fato. Na seqüência de abertura (fig. 98), é o olho do oráculo humano que vê e a sua boca que diz “assassino”, mas é o gadget que formata a “prova” do crime. O maquinário desbasta com um raio de luz as arestas de dois cubos até torná-los esferas que são lançadas dentro de dois tubos em forma de espiral. Uma das bolas, com os nomes de Sarah Marks e Donald Dublin, desemboca em um compartimento com os dizeres “VICTIM” e a outra bola, com o nome de Edward Marks, cai em um compartimento com os dizeres “PERPETRATOR”. As enigmáticas imagens previstas pelo oráculo e armazenadas Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | sobre o qual os códigos deslizam (fig. 97). pelo protagonista do filme, John Anderton. As caóticas imagens dos eventos, das | em um fantástico sistema da divisão Pré-Crime são esquadrinhadas e organizadas gestos de Anderton sobre um painel transparente onde se vislumbra uma barra horizontal graduada e numerada. Aos poucos, as fragmentadas e borradas imagens do crime se contaminam com as conotações de objetividade proporcionadas por alegorias tecnológicas: a sobreposição de códigos alfa-numéricos, as fotos de possíveis suspeitos organizadas em linhas e colunas, as marcações de tempo, as visões dos “PreCogs” reduzidos e esquadrinhados em seqüências de fotogramas que detalham a cronologia e a geografia do crime. Descoberto o local do crime, Anderton e sua equipe do Departamento “Pré-Crime” descem por uma rampa em forma de espiral. Eles impedirão a consumação de um crime e punirão o assassino pela certeza de que ele praticaria este crime. A figura da espiral marca a passagem entre o virtual e o presencial: as bolas que descem os tubos acrílicos pontuam a transformação das caóticas imagens de uma vaga premonição humana na certeza Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura vítimas, do assassino, da arma e da cena do crime se organizam de acordo com os material de modelos computadorizados; simetricamente, a rampa em espiral pela qual os policiais descem é a fronteira entre a ilusória convicção proporcionada pela realidade virtual e a incerta realidade presencial que a simulação aspira substituir. 133 Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Figura 97 (The Matrix) | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 96 (The Matrix) Figura 98 (Minority report) 134 Julho de 2005 Julho de 2005 IV.3. As imagens do ciberespaço característica comum a todos os filmes que retratam o ciberespaço: a referência ao videogame. Freqüentemente os protagonistas dos filmes estão associados aos videogames e a imagem do ciberespaço é construída como um espaço de imersão, com raras exceções, marcado por uma “estética do videogame”, independentemente de quão sofisticada visualmente seja essa representação. É no início da década de 1980 – pouco antes do lançamento do Macintosh – que surgem os primeiros filmes que retratam os computadores como mediadores de “realidades virtuais”: Tron e Wargames. Neles, a representação do que ainda viria a ser conhecido como ciberespaço ficou fortemente marcada pela referência aos videogames. A função mais evidente dessa referência é supra-objetivar não só as “coisas” tecnologicamente distantes do senso comum – redes de computadores, Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Apesar de serem obras relativamente distantes no tempo, há uma que manipulam essas “coisas”, sujeitos excepcionais cuja habilidade nos videogames | realidade virtuais, sistemas de simulação por computador – mas também as pessoas que não passam, no contexto fílmico, de apenas mais um jogo. Tanto o protagonista de Tron, Flynn, como o de Wargames, David, são apaixonados por videogames e os filmes enfatizam a ligação deles com os arcades, a forma mais socializada de imersão no ciberespaço na época. O primeiro é um engenheiro de software e programador de videogames e o segundo, um adolescente colegial cujo hobby é invadir sistemas por meio do modem para, dentre outras coisas, alterar suas notas escolares e conseguir acesso a jogos de computador que ainda não foram lançados. A composição do estereótipo que associa a imagem do hábil videogamer à imagem do “especialista em computação” é muito similar em ambos os filmes. Logo no início, Tron mostra-nos a casa de diversões eletrônicas do protagonista do filme, o “Flynn’s”, ambiente que parece divertido, repleto de pessoas jogando, conversando e rindo. Na seqüência em que aparece jogando um dos Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura só é superada pela perícia em invadir e enganar complicados sistemas eletrônicos, videogames do seu fliperama, o “Space Paranoids” (fig. 99), as pessoas ao redor de Flynn se aglomeram, vibram, torcem – “outro ‘reco’ [recognizer] e ele consegue o recorde mundial”, diz alguém – e gritam ao fim do jogo. A trama de Tron também é baseada nos videogames: Flynn é um ex-programador de videogames que teve seus 135 narra a saga de Flynn dentro dos computadores da ENCON a fim de encontrar provas Julho de 2005 programas roubados por Dillinger, ex-colega e atual presidente da ENCON. O filme De forma análoga, em Wargames, o protagonista também é obcecado por videogames. David é apresentado no filme por meio do seu reflexo em um arcade, em uma seqüência (fig. 101) que começa com adolescentes de malas e mochilas saindo do “20 Grand Palace”, um tipo de fliperama agregado a uma lanchonete. Vemos pelo reflexo na tela que David está compenetrado no jogo, enquanto os garotos ao seu redor saem apressadamente para a escola. Ele só larga o jogo quando percebe que realmente está atrasado e o vemos, já na seqüência seguinte, chegando à escola depois das aulas terem começado. A trama principal de Wargames também é baseada nessa compulsão por videogames que o leva a acessar inadvertidamente uma rede militar de computadores no lugar de uma empresa de jogos. Nessa rede David conecta o WOPR (War Operation Plan Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | contra Dillinger e recuperar os direitos sobre seus softwares. nucleares – do NORAD (North American Aerospace Defense Command) e disputa | Response - fig. 102) – um novo sistema computadorizado de lançamento de mísseis 103). Mesmo uma década depois de Tron e Wargames, The Lawnmower Man nos mostra a associação literal do videogame às habilidades excepcionais de um determinado personagem. O filme conta a história da transformação de Jobe, um inofensivo jardineiro com problemas mentais, em um super-vilão virtual, após ser envolvido como cobaia humana nas experiências de realidade virtual do Dr. Lawrence Angelo. A realidade virtual de The Lawnmower Man é muito similar a um videogame visualmente sofisticado e é freqüentemente tratada na própria diegese como um “jogo”: “Eu tenho um jogo na minha casa que talvez você goste de jogar”, diz Dr. Angelo para cooptar Jobe, enquanto este limpa seu jardim. Após isso, Dr. Angelo – cientista de um empreendimento militar que pesquisa o uso da realidade virtual como meio de aumentar as capacidades mentais – submete Jobe a um tratamento que une Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura com ele um jogo virtual que pode desencadear o lançamento de mísseis reais (fig. a imersão na realidade virtual com a injeção de “neurotrópicos” que catalisam o desenvolvimento mental proporcionado pela interação com novos mundos cognitivos. No filme, a seqüência na qual Jobe vence no “cyber-boggie” (fig. 104) é uma espécie de rito de passagem que demarca o fim do processo “evolutivo” da sua mente humana e início da sua transformação em uma entidade supra-humana. Enquanto Dr. 136 atividade sináptica cresceu 400% em menos de um mês”, vemos cenas de Jobe, com Julho de 2005 Angelo diz que a mente de Jobe “é como uma esponja faminta e limpa” e que “sua entender. Durante as cenas que mostram Jobe recebendo drogas e sendo imerso em realidades virtuais, complementa a voz do Dr. Angelo: “seu cérebro humano responde aos neurotrópicos e estimulação virtual mais rapidamente do que minhas cobaias animais”. A seqüência encerra-se com o Dr. Angelo congratulando Jobe após sua vitória no cyber-boggie: “Parabéns, você acabou de se graduar para o próximo nível”. Mais recorrente do que a associação do personagem com a imagem do videogamer, é o uso do videogame como a referência “estética” na construção fílmica do ciberespaço. Nesse sentido, ele é pensado tanto como realidade logicamente concebível e ancorado em analogias da realidade presencial (por mais “lisérgico” e mesmo absurdo que possa ser, o ciberespaço não é um “sonho”) como é pensado em termos de um espaço circunscrito de impossibilidades, como de fato são os Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | um olhar “esperto”, resolvendo testes de lógica que ele não conseguia, antes, sequer distorcidas ou ignoradas a fim de realçar esta ou aquela possibilidade performática. | videogames onde, dentre outras coisas, as regras de funcionamento da realidade são presencial populado por “avatares” de usuários e videogamers humanos. A proposta inovadora de Tron, que tornou-se rapidamente lugar comum, foi imaginar o ciberespaço como uma realidade onde a simulação fosse tão plena e análoga à realidade presencial que não teríamos como distinguir sensorialmente uma da outra. Tron não foi o primeiro filme a mostrar como deveria ser uma realidade virtual computadorizada, mas foi o primeiro filme a representar o ciberespaço como ambiente de imersão, o que difere das telas que mostram modelos de simulação tridimensionais, como aquelas vistas em 2001: A Space Odissey (figs. 68 a 72) ou Star Wars (figs. 73-75). O ciberespaço imaginativo de Tron é evidentemente influenciado pela estética do videogame, a despeito das enormes diferenças gráficas entre o videogame daquela época e as imagens do filme. Esse ciberespaço é justificado mesmo como uma “grande arena de videogame” que conecta todos os Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Na diegese de Tron, existe todo um mundo virtual contíguo ao mundo videogames e computadores do mundo, do arcade do Flynn’s aos computadores do Pentágono. Essa conexão entre o mundo presencial e o mundo virtual é apresentada logo no início do filme, em uma seqüência que começa com uma moeda sendo colocada em um arcade de videogame adornada com traços geométricos e luminosos, realçadas pelo ambiente escuro de seu entorno. A seqüência (fig. 83) 137 uma mão empunhando o joystick que controla um dos dois traços luminosos – um Julho de 2005 continua com uma voz dizendo, em off, “all right, give me room, here we go” e vemos reta contínuos e perpendiculares. Conforme o zoom amplia a área da tela do videogame para um primeiro plano, vemos que o jogo chama-se “lightcycle” e que a partida em andamento é entre um jogador e o computador. A tosca imagem bidimensional da tela do arcade se funde lentamente com a sofisticada imagem do ciberespaço “por trás” do videogame: um ambiente tridimensional com um extenso plano quadriculado delimitado por paredes com grafismos de inspiração “tecnofuturista” sobre o qual correm dois bólidos que lembram motocicletas feitas com sólidos geométricos regulares. São as “lightcycles” do ponto de vista de “dentro” do ciberespaço. As arestas que definem seu desenho são marcadas por linhas claras e as lightcycles deixam, no seu rastro, paredes verticais que visam bloquear a trajetória do oponente, destruindo-o. Intercalados entre as cenas em que os veículos correm Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | laranja e outro azul – que vão se desenhando no monitor escuro, em segmentos de “pilotos” virtuais das lightcycles. Seus rostos são monocromáticos e o corpo é suporte | sobre o tablado quadriculado, vemos os closes de duas figuras humanas: são os impressos. Um é a projeção do videogamer no ciberespaço, o “avatar” do jogador humano, coisificado como entidade virtual, e o outro, o avatar do computador, antropomorfizado com feições humanas. A seqüência justapõe cenas da tela do arcade, onde vemos apenas duas linhas correndo sobre um fundo preto, com as cenas do ciberespaço “por trás das telas”, onde fantásticas motos realizam manobras absurdas em cantos retos e sem inclinação. Quando a moto do avatar humano espatifa-se no ambiente virtual, a mão, no mundo presencial, imediatamente bate no joystick e ouve-se uma voz praguejar “Damn!”. Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura de grafismos luminosos que lembram a regularidade do traçado de circuitos 138 Figura 101 (Wargames) Figura 102 (Wargames) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 99 (Tron) Figura 100 (Tron) Figura 103 (Wargames) 139 Julho de 2005 Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Figura 104 (The Lawnmower Man) Figura 106 (The Lawnmower Man) Figura 105 (The Matrix) 140 | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005 “primeira pessoa” (que praticamente não existia naquela época), uma perspectiva que Julho de 2005 Tron também foi o primeiro filme a oferecer uma visão de “videogame” em visão é a mesma utilizada para tipificar o que acontece “por trás dos monitores” de um computador. Na seqüência em que Flynn tenta invadir o sistema do Master Control Program (fig. 84), vemos Flynn, vestido de kimono, na penumbra de seu quarto, mal iluminado por um abajur, e com o rosto iluminado pela claridade do terminal de computador à sua frente. Enquanto ouvimos o ruído do teclado, um closeup mostra o que Flynn está digitando: “REQUEST ACCESS TO CLU PROGRAM CODE 6 PASSWORD TO MEMORY 0222”. Aos poucos, a imagem do texto se funde com um ambiente virtual tridimensional, onde uma grade quadriculada se estende até a linha do horizonte e sobre a qual elevam-se blocos geométricos que desenham um gigantesco labirinto. Entre as enormes paredes vemos um veículo que lembra um tanque de guerra, composto de formas sólidas simples e com contornos realçados Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | a diegese tornou possível com a imersão do videogamer no ambiente virtual. Essa grafismos e linhas luminosas, assim como o corpo da figura antropóide que executa | por traços vermelhos. O interior do tanque é um pequeno ambiente cheio de usuário do mundo presencial. A semelhança entre ambos indica a extensão da personalidade presencial no mundo virtual dentro dos computadores; a comunicação vocal entre Flynn e seu avatar no tanque é a tradução verbal daquilo que é visto textualmente em código no monitor no mundo presencial. O videogame do fliperama e o computador de Flynn são, na diegese, as portas para um mesmo ambiente, uma realidade virtual que é o campo da experiência no ciberespaço. Enquanto no mundo presencial as nossas mediações são limitadas a pobres interfaces baseadas em monitores de vídeo como “output” e joysticks e teclados como “inputs”, o mundo virtual abre um novo universo de experiências sensórias iguais ou melhores que das experienciadas no mundo presencial. Ao contrário de Tron – que propôs um tipo de realidade virtual sintetizada por computador e perspectivas dessa realidade em primeira pessoa, coisa que as Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura movimentos mecânicos. O avatar “virtual” possui a mesma fisionomia de Flynn, seu tecnologias dos videogames e computadores não conseguiam produzir em tempo real naquela época – Wargames, filme contemporâneo de Tron, mostra um ciberespaço mais conservador, similar ao que havia em termos de jogos de computador e videogames no início dos anos 1980. Em Wargames, as representações do cibernético estão ancoradas em imagens e situações que eram mais familiares e, 141 da época, ao contrário de Tron, que exigiu até mesmo o desenvolvimento de novas Julho de 2005 portanto mais confortáveis – apesar de visualmente mais pobres – aos espectadores mundos jamais vistos anteriormente. Entretanto, assim como em Tron, o videogame é, em Wargames, referência fundamental tanto para as representações do ciberespaço como para a história narrada onde a guerra termonuclear é reduzida a uma espécie de jogo de computador. As imagens do ciberespaço em Wargames são bastante convencionais, mais arcaicas em termos estéticos do que aquelas já propostas nas visualizações tridimensionais vistas em 2001: A Space Odyssey e Star Wars. Mas a idéia fundamental aqui é a de que as telas de computador representam um mundo virtual – vale relembrar, um mundo visual – descontínuo do mundo presencial mas contíguo a ele e capaz de trazer conseqüências reais. Como o filme mostra, enquanto em um arcade de fliperama, o máximo de conseqüência real do videogame é gerar atrasos no dia-a-dia de David. Mas, quando ele lança seus Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | tecnologias de computação gráfica e de trucagem fotográfica para criar imagens de War”, as imagens que aparecem nas inúmeras telas do NORAD são interpretadas | mísseis virtuais no que pensa ser apenas um videogame chamado “Thermonuclear que se a mesma lógica por trás da simulação dos videogames é utilizada para simular mundos presenciais, as fronteiras que separam aquilo que é cópia daquilo que é original podem se confundir. A partir dos anos 1990, ainda que permaneça esteticamente muito presente, o videogame começa a decair como referência literal. The Lawnmower Man e Johnny Mnemonic são filmes que pontuam bem essa transição, enquanto no primeiro, a realidade virtual continua sendo efetivamente a instância de um jogo, o segundo já caracteriza a realidade virtual como um espaço de interação humano-computador – não mais o videogame, apesar de preservar sua estética visual – refletindo, possivelmente a naturalização do computador no cotidiano das pessoas. Como o cyber-boogie usado pelo Dr. Angelo para testar Jobe, a maior parte das representações do ciberespaço de Lawnmower Man são literalmente videogames. A Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura pelos militares como um ataque real dos russos. O filme trabalha com o argumento de seqüência de abertura (fig. 106) intercala as imagens de um chimpanzé acoplado a diversos gadgets de realidade virtual e as imagens em primeira pessoa da realidade virtual na qual está imerso. A paisagem virtual por onde ele flutua é mostrada em uma perspectiva de jogo muito similar à que era encontrada no primeiro PC-game em primeira pessoa, o Wolfenstein 3D. Durante a seqüência, típica de um videogame, 142 com uma barra com o aviso “TOX-DET” e, conforme ocorrem explosões virtuais e Julho de 2005 avisos vocais, textos e ícones aparecem na tela: um símbolo piscante de “bio-hazard” “THREAT” e “KILL COMPLETE”. Johnny Mnemonic, por sua vez, marca uma nítida transição no cinema na qual não há mais a referência literal ao videogame, apesar de utilizar praticamente as mesmas alegorias tecnológicas utilizadas em The Lawnmower Man, tanto na representação do ciberespaço como nos equipamentos e gadgets utilizados para a imersão do usuário no virtual. Possivelmente, à época da produção de Johnny Mnemonic, os computadores e as interfaces gráficas, assim como a cibercultura relacionada ao consumo de gadgets cibernéticos, já estivesse socializada suficientemente para dispensar o videogame como a referência por excelência do ciberespaço. Apesar do videogame não ser mais a imagem literal do ciberespaço e da relação humano-computador, sua influência estética persiste até os filmes mais Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | inimigos estilizados são destruídos pelo chimpanzé-videogamer, surgem alertas de são nitidamente influenciadas pelos exageros, planos e tomadas utilizadas em | contemporâneos, tais como The Matrix, onde as seqüências de luta corpo-a-corpo conhecimento diretamente na mente dos personagens, dispensando o “aprendizado”. Esses “cartuchos”, que lembram os antigos cartuchos de videogame, aparecem na seqüência em que Neo é submetido ao “combat training” (fig. 105). A tela de um computador do “operador” mostra bonequinhos estilizados em posição de combate sobre grafismos de caracteres enquanto os dizeres “JU JITSU”, “KEMPO”, “TAE KWON DO”, “DRUNKEN BOXING” vão se alternando. A imagem de um cérebro na tela do computador sendo “preenchida” indica o nível do upload do conhecimento no cérebro de Neo. As cenas de luta no ciberespaço em The Matrix apresentam planos evidentemente influenciados pelos videogames de luta que se popularizaram a partir dos anos 1990, tais como o Mortal Kombat e Street Fighter, reproduzindo no cinema estereótipos39 típicos desses jogos, como a forma dos oponentes se encararem antes de uma disputa (fig. 107), os saltos sobre-humanos com cambalhotas (fig. 108) ou Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura videogames. Há também referências aos “cartuchos” utilizados para implantar que se prolongam durante longos momentos (fig. 109), o lançamento espetacular do oponente golpeado (fig. 110), o efeito “estroboscópico” que apresenta em uma 39 Na verdade, a maioria desses estereótipos provém dos mangás (histórias em quadrinhos) e dos animes (desenhos animados). Porém foi por meio dos videogames que tais estereótipos tiveram ampla penetração no mercado de massas não-japonês. 143 velocidade (fig. 111) e impossíveis saltos seguidos de um vôo horizontal contra o Julho de 2005 mesma imagem diversos momentos de um movimento a fim de conotar uma grande A referência que os filmes fazem aos videogames não é gratuita, visto que estes foram, bem antes dos personal-computers, os primeiros instrumentos de mediação sensível com simulação de modelos computadorizados disponibilizados no mercado de massas e, durante muito tempo, as únicas referências de ciberespaço tangíveis ao senso comum. O videogame é referência recorrente no cinema sempre que é necessário um mediador entre o conhecimento de senso comum e a descrição de ambientes novos e inusitados construídos pelo computador. Frente ao distanciamento, e mesmo estranhamento diante de gadgets que mediam realidades virtuais novas, a generalização do ciberespaço impalpável dos computadores como uma espécie de videogame é uma forma de naturalizar o estranho, tipificando-o como uma instância do conhecido. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | oponente (fig. 112). serem – os videogames os primeiros modelos de realização prática do que Lupton p. 479) chama de “discurso do desincorporação” (“discourse of disembodiment”), central na cibercultura, onde o computador oferece a fuga do corpo, e este é “freqüentemente representado como uma infortunada barreira para a interação com os prazeres da computação”. Segundo a autora, “o sonho da cibercultura é deixar a ‘carne’ para trás” destilando o relacionamento com o computador em algo “limpo, puro e descontaminado”. Assim, não é por acaso, que quando surgem na década de 1980, pouco antes do lançamento do Macintosh, as primeiras representações fílmicas da interatividade do ser humano com o ciberespaço, essas fossem predominantemente ancoradas na experiência real que era experimentada não nos arcaicos computadores de interface textual – máquinas de recursos limitados e pobres em experiência sensível – mas nas mini-realidades simuladas nos populares arcades e consoles de videogame. O “discurso da desincorporação” se traduz nos filmes na transformação do ciberespaço em um lugar Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura (2000, | Além disso, o cinema não deixa de incorporar o fato de terem sido – e ainda privilegiado da realização da ação, nos quais os personagens têm o seu melhor desempenho, transformados em entidades virtuais desvencilhadas das coerções do mundo físico. A trajetória dessas representações ao longo dos filmes, e as racionalizações diegéticas que as engendram, das mais plausíveis às mais absurdas, mostra a metamorfose da própria mentalidade acerca do ciberespaço. 144 Figura 108 Cena do filme The Matrix e screen-shot do videogame Street Fighter. Figura 109 | Imagem do ápice de salto que precede golpe, em The Matrix e no videogame Street Fighter. Julho de 2005 Oponentes se encaram antes de luta em The Matrix e no videogame Mortal Kombat. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 107 Oponente sendo lançado à distância, em The Matrix e no videogame Street Fighter. Figura 111 Efeito “estroboscópico” típico dos movimentos “mais rápidos que os olhos”, em The Matrix e no videogame Mortal Kombat. Figura 112 Salto com vôo horizontal, em The Matrix e no videogame Street Fighter. Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Figura 110 145 inexplicável que desintegra objetos físicos por meio de um canhão de laser e os Julho de 2005 Em Tron, Flynn é inserido no ciberespaço por meio de um gadget quase o tempo parece congelar-se e seu corpo é esquadrinhado e recoberto por uma grade de cubos. Em uma espécie de animação suspensa, ele é rastreado e desmaterializado cubo a cubo. Sugado para as entranhas do computador através do feixe de luz, acompanhamos seu percurso por formas caleidoscópicas que, aos poucos, se transformam em um cenário sintético de luzes e objetos geometrizados (fig. 87). Dentro de um ambiente “in door” no ciberespaço, uma área reservada à entrada de novos programas no sistema do MCP, um feixe de luz materializa o corpo de Flynn (fig. 113) e assim que ele recobra a consciência, é recepcionado por “guardas” que o conduzem, sob a mira de bastões elétricos (fig. 114), às celas reservadas aos programas “rebeldes”, que insistem na existência dos “usuários” (fig. 115). Por meio dos programas que dividem a cela com ele, Flynn descobre que está Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | transforma em dados de computador. Quando Flynn é atingido pelo canhão (fig. 100), mas do lado oposto do monitor, preso ao ciberespaço. É como entidade virtual nesse | dentro do MCP e que freqüentará a arena dos videogames, não mais como usuário, de lá do monitor. Não mais limitado pela condição de exterioridade ao ciberespaço, Flynn, um “game warrior” por vocação, pode ludibriar a vigilância do MCP e trafegar pelas entranhas do ciberespaço atrás das informações capazes de mudar sua condição no mundo presencial e, de quebra, libertar, no mundo virtual, os softwares oprimidos pelo sistema autoritário do Master Control Program. O realismo de um filme é conduzido tanto pelas aparências de realidade como pela consistência das racionalizações utilizadas pela diegese. Assim como os filmes de ficção-científica em geral, os filmes ciberculturais são permeados por racionalizações derivadas do discurso científico-tecnológico – não necessariamente o mesmo discurso – sobre as quais desenvolve-se a estrutura lógica que sustenta a diegese. É bem verdade que no sentido de propor uma impossibilidade concebível, Tron, comparado a outros filmes ciberculturais, parece estar mais para um conto de Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura ciberespaço que Flynn obtém aquilo que não consegue como um “usuário”, pelo lado fadas ou uma história infantil – como aquelas que propõem mundos habitados por automóveis antropomorfizados – do que para uma ficção científica. Mas também é verdade que a falta de consistência das suas racionalizações, substituída por uma liberdade poética e metáforas lúdicas nem sempre eficazes ou lógicas, também é reflexo da falta de “massa crítica” para produzir racionalizações e da dificuldade de 146 A interface gráfica sequer era imaginada fora dos laboratórios tecnológicos e a Julho de 2005 propor imagens plausíveis do ciberespaço a partir da tecnologia conhecida na época. rudimentares visualizações dos videogames, nenhum tipo de tecnologia de imersão no ciberespaço. E mesmo o mais primitivo de todos os dispositivos de imersão do “corpo” na realidade virtual, o mouse, era desconhecido fora dos laboratórios em 1982. Se por um lado, as racionalizações de Wargames, filme contemporâneo a Tron, parecem mais consistentes e minimamente aderentes com as possibilidades tecnológicas conhecidas, por outro lado, sua representação do ciberespaço é muito mais pobre visualmente e a diegese não o apresenta como uma realidade virtual de imersão. Em Wargames, a relação que os personagens têm com o ciberespaço é essencialmente baseada na inteligibilidade de códigos e esquemas, onde o videogame funciona mais como uma metáfora do que como um modelo de interação Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | computação gráfica parecia ser um luxo sem grande utilidade. Não existia, exceto as travam é mediado sem dúvida por imagens (fig. 103), mas ao contrário da proposta | humano-computador baseado em mediações sensíveis. O jogo que David e o WOPR série de planisférios esquemáticos. De certo modo, Wargames era um filme mais confortável para o espectador pois sua diegese adere às mesmas categorias utilizadas para dar conta da realidade cotidiana, ao contrário de Tron, freqüentemente lembrado como um filme interessante porém um tanto quanto absurdo e incompreensível. Mas a influência deste na representação do ciberespaço nas produções posteriores é muito maior do que Wargames o que, talvez, demonstre a afinidade que a percepção de “ciberespaço” tem com o visual, mesmo que eventualmente não faça muito sentido do ponto de vista “racional”. Foi em The Lawnmower Man que o cinema introduziu as primeiras representações que mostram o ciberespaço mediado por gadgets de imersão virtual, lembrando que em Wargames não há imersão do personagem no ciberespaço e Tron não apresenta uma explicação consistente de como se dá essa imersão. Os Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura altamente sensorial de Tron, o mundo virtual de Wargames desenrola-se como uma personagens de The Lawnmower Man utilizam e vestem parafernálias que a diegese propõe serem os meios que ao mesmo tempo em que emulam sensações visuais, auditivas, táteis e cinéticas, isolam o corpo do ambiente presencial, a fim de proporcionar uma experiência otimizada de imersão no ciberespaço. O filme introduziu na cultura de massas a imagem da workstation de realidade virtual (figs. 59 147 Mounted Display) e datagloves, dispositivos desenvolvidos especificamente para Julho de 2005 e 60), conceito que se consolidou nos anos 1980 com o uso integrado do HMD (Head consiste de dois visores colocados à frente de cada olho que projetam imagens com pequenos desvios de paralaxe entre elas, a fim de simular o efeito tridimensional da binocularidade. O dispositivo também captura a posição e os movimentos da cabeça, de forma a reproduzir em tempo real as imagens que usuário vê de acordo com tais e quais movimentos fisicamente realizados. E as datagloves são luvas que utilizam a tecnologia de “motion capture” na qual o computador é capaz de apreender e reconstruir virtualmente os movimentos capturados por sensores cinéticos junto ao corpo ou em parte dele, como a mão, no caso das datagloves. O mouse, por exemplo, é um dispositivo que registra o movimento de apenas um sensor e em apenas duas dimensões, enquanto que uma dataglove possui diversos sensores, localizados nas articulações e extremidades e o seu movimento é registrado em três Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | emular a relação sensorial do usuário em um ambiente virtual (figs. 57 e 58). O HMD de proprioceptividade” virtual, na medida em que torna sensível a presença de partes | dimensões. Os uso conjunto da HMD e datagloves também introduz um “coeficiente virtual, The Lawnmower Man apresenta usuários montados em estruturas mecânicas que supostamente reproduzem o movimento, ou parte dele, que eles têm na realidade virtual, tecnologia que já era utilizada nos arcades de videogame como o After Burner (1987) ou R-36040 (1991, fig. 56). Em uma das seqüências de The Lawnmower Man, na qual o Dr. Angelo está “relaxando” imerso no ciberespaço com suas datagloves e HMD (fig. 120), vemos o corpo virtual dele “caindo” e “voando” pelos lisérgicos ambientes ciberespaciais. Seu isolamento das frustrações do mundo presencial é interrompido quando sua esposa desliga repentinamente o computador, produzindo um “choque” com a realidade. “Nunca desplugue um programa quando eu estiver conectado. Você acabou de arruinar todo o efeito”, pragueja o Dr. Angelo. Sugerindo uma crítica em relação ao distanciamento do marido com as coisas reais, ela retruca, lendo no CD que acabou Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura do corpo – cabeça e mãos – em um espaço virtual. Além da workstation de realidade de tirar do computador: “Falling, floating, and flying? So, what’s next, fucking?”. Com efeito, outra seqüência mostra Jobe e uma mulher, Marnie, em uma espécie de 40 O R-360 da SEGA era um simulador de combate aéreo e seu maior atrativo era a cabine montada sobre um mecanismo que permitia a rotação em 360º para qualquer direção, reproduzindo a posição do avião virtual pilotado pelo usuário, deixando-o, inclusive, de cabeça para baixo. 148 se fundem, enquanto os corpos físicos permanecem isolados e separados pela Julho de 2005 experiência sexual ciberespacial na qual os corpos virtuais se tocam, se abraçam e desincorporação” mais longe. Convencido de que a realidade virtual não é apenas uma simulação, mas uma nova dimensão, Jobe decide completar sua evolução, iniciada com os videogames, por meio da imersão total no ciberespaço para levar a cabo seus projetos de dominar todas as redes de computadores do mundo. Em uma das seqüências finais do filme (fig. 122), após se conectar à parafernália da workstation de realidade virtual, ouve-se a voz de Jobe em off e vemos seu corpo se desmaterializar – literalmente, como que sugado pelo equipamento que veste – e Jobe, libertado das limitações físicas, transforma-se exclusivamente em uma entidade virtual capaz de circular livremente pelas redes de telecomunicações pelo mundo, argumento bastante similar ao utilizado em Tron, uma década antes. Utilizando recursos semelhantes, todas as peripécias do protagonista do filme Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | parafernália de simulação (fig. 121). Porém, o filme leva a realização do “discurso do virtual da Internet. Como não poderia deixar de ser, pouco realiza enquanto | Johnny Mnemonic, uma espécie de “hacker do futuro”, acontecem dentro do mundo encontra seu ambiente natural e obtém tudo aquilo que o mundo presencial lhe nega. Após sofrer uma série de reveses no mundo presencial, perseguido pela Yakuza, Johnny resolve acessar a Internet para descobrir porque sua cabeça – literalmente – está a prêmio. Conectado ao ciberespaço da Internet (fig. 88), parece entrar na arena de um grande jogo: paisagens coloridas e objetos geométricos iluminados, publicidade espalhada por todo o cenário virtual, como uma grande cidade eletrônica. Essa seqüência intercala cenas de Johnny movendo a cabeça para o nada e movimentando as mãos para pegar coisas no vazio com cenas do que ele vê em primeira pessoa, na realidade virtual. Vemos a projeção de suas datagloves no ciberespaço manipulando objetos virtuais a fim de acessar um Hotel em Beijing (fig. 88, primeira coluna) e invadir seu sistema de computadores, procurar o destinatário de um fax no buffer de dados do fax do quarto desse hotel (fig. 88, segunda coluna) e Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura personagem presencial mas quando Johnny veste seu HMD e suas datagloves ele acessar a loja em Newark para onde o fax foi enviado (fig. 123). 149 | Figura 115 (Tron) Figura 118 Figura 116 Figura 117 Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 113 (Tron) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Figura 114 (Tron) Figura 119 (The Lawmower Man) 150 Julho de 2005 Figura 120 (The Lawmower Man) Figura 121 (The Lawmower Man) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Figura 122 (The Lawmower Man) Figura 123 (Johnny Mnemonic) 151 | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005 Figura 124 (The Matrix) Figura 125 (The Matrix) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Figura 126 (The Matrix) Figura 127 (The Matrix) 152 | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005 diegese é centrada na Matrix, sistema de realidade virtual no qual toda a humanidade Julho de 2005 O ápice da apologia ao mundo virtual surge com o filme The Matrix. Sua ciberespaço de The Matrix rompe com a tradição iniciada com Tron, quase duas décadas antes, onde as diegeses sempre identificaram as imagens do ciberespaço com o uso ostensivo de “traços de irrrealidade” em oposição aos “traços de realidade” das imagens fotográficas, reservadas para identificar a realidade presencial. Já em The Matrix, contudo, o ciberespaço também é representado com o uso da imagem fotográfica a fim de denotar que é uma réplica exata do mundo presencial, exceto pelo fato de que o virtual permite que “regras” de funcionamento da realidade sejam quebradas. De fato, The Matrix não eliminou os “traços de irrealidade” que caracterizam o ciberespaço, apenas os reinventou. É o que dá às suas representações do ciberespaço uma característica particularmente paradoxal, já que a mesma construção fílmica contém tanto estes “traços de irrealidade” como os Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | está presa e crente de que vive uma realidade presencial. A representação visual do aparências de realidade presencial, o mundo da Matrix é o mundo onde as regras de | “traços de realidade” apoiados na imagem fotográfica. Assim, a despeito das nos videogames. A seqüência inicial (fig. 124) do filme nos oferece os primeiros sinais de que a realidade mostrada não se conforma aos critérios que validam a realidade presencial. No que parecia ser uma operação policial rotineira em um pequeno quarto de um velho edifício, Trinity, uma hacker procurada é surpreendida enquanto tentava fazer contato com Neo, outro hacker. Aparentemente acuada, ela vira-se de forma cautelosa para, de repente, dobrar o braço do policial mais próximo. Com os policiais ainda surpresos frente ao ataque, Trinity salta para dar o golpe fatal e vemos o efeito visual que The Matrix tornou famoso: o “slice time effect” ou “bullet time effect”. O tempo nesse momento congela, como se nós, juntamente com Trinity, pudéssemos apreender toda a realidade ao redor no tempo infinitesimal que dura o ápice de seu salto, antes dela desferir um chute anormalmente violento. O segundo momento Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura funcionamento da realidade podem ser exageradas e trapaceadas. Como acontece absurdo da seqüência fica por conta da corrida que Trinity realiza pelas paredes a fim de se desviar dos tiros. Na seqüência imediatamente posterior a esta, vemos que não é apenas Trinity que é capaz de subverter as regras de funcionamento da realidade. Ao chegar no limite de um edifício Trinity não para, mas salta de um edifício a outro, literalmente atravessando a rua pelo ar. Quando o grupo de policiais que a perseguia 153 surpresa não só frente ao salto dela, mas também diante do salto do “agente”, ainda Julho de 2005 é obrigado a parar, a fala do policial – “That’s impossible” – verbaliza a nossa própria “Guns, a lot of guns”, diz Neo ao celular enquanto ele e Trinity aguardam no “loading program”, espaço virtual intermediário pelo qual as projeções virtuais dos personagens humanos passam antes de entrar na Matrix. É um espaço vazio, totalmente branco, sem céu ou terra para dividir o horizonte. Após ouvir as instruções, Tank, o “operador”, dá meia dúzia de toques no teclado e – como os códigos secretos dos videogames que permitem ao jogador ter munição ilimitada ou acesso a todas as armas do jogo – uma infinidade de armas surge do infinito cobrindo todo o horizonte imaginário do “loading program” (fig. 126). Essa imagem, assim como outras do filme, como a sequência em que Neo é introduzido pela primeira vez no ciberespaço depois de conhecer o “mundo real” fora da Matrix (fig. 79) ou quando o cenário de uma cidade surge aos pés de Neo e Morpheos (fig. 127), evocam o ciberespaço Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | mais eficaz e preciso (fig. 125). nada. Possivelmente as cenas nas quais Flynn, em Tron, é materializado no | como uma possível instância da singularidade, onde qualquer coisa pode surgir do 85) são as primeiras a imputar à realidade virtual essa possibilidade. Não muito diferentes são os widgets41 de The Lawnmower Man, Johnny Mnemonic e de tantos outros filmes, que surgem do nada, reproduzindo uma lógica muito similar à dos widgets que já eram populares nas interfaces gráficas dos computadores. O planisfério que Johnny abre para “navegar” na Internet (fig. 88) ou o menu que o Dr. Angelo abre vazio (fig. 120) são apenas versões mais espetaculares dos menus e “popups” que existem em qualquer personal-computer. Contudo, em nenhum desses filmes, o ciberespaço representado pretende ser “idêntico” à realidade que conhecemos. A proposição de uma realidade alternativa e oposta à presencial está dada na própria imagem sintética que caracteriza a maioria dos filmes, ao contrário do ciberespaço de The Matrix, onde mesmo as coisas mais impossíveis – como coisas que surgem do nada – e extremamente exageradas são representadas com Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura ciberespaço (fig. 113) e motocycles se materializam em volta dos personagens (fig. fidelidade fotográfica. E as infinitas prateleiras de armas que surgem com o toque no teclado apenas anunciam o apoteótico exagero que virá nas seqüências seguintes, 41 Componente de interface gráfica com o qual o usuário interage. Exemplos de widgets: botões, ícones, barras de rolagem, janelas e pop-ups, caixas de diálogo, menus. Um widgets pode ser composto por outros widgets, como por exemplo o desktop do computador. 154 pelos agentes. Julho de 2005 quando Neo e Trinity entram na Matrix para resgatar seu líder, Morpheos, capturado invasão ao edifício onde Morpheos está preso (fig. 95), Neo é solicitado a mostrar os objetos metálicos no detector de metais no lobby de entrada. Ele exibe suas armas, em uma nítida releitura do estereótipo do “homem-armado-até-os-dentes” dos filmes de ação de Stallone e Schwarzenegger. Quando Neo ataca o segurança mais próximo, o filme desacelera e roda em um slow-motion que perdura até a chegada de Trinity, permitindo que nos fixemos, junto com Neo, nos alvos que são mortos antes mesmo que percebam o que está acontecendo. Assim que os guardas da entrada são eliminados, chega um grupo de soldados, com fuzis e metralhadoras. “Freeze!” grita um deles antes de Neo e Trinity saírem por lados opostos. A seqüência de ação restante é uma montagem frenética, porém quase toda rodada em slow-motion, feita para o deleite do exagero que caracteriza o ciberespaço da Matrix: cartuchos Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | A regra básica dessas seqüências é o exagero. Na seqüência que inicia a atingem os protagonistas, enquanto eles correm, chutam, dão piruetas – atirando | deflagrados jorrando das armas, o cenário sendo destruído por tiros que nunca apoteose do exagero, estetizada como um videogame e com ares de videoclipe. Em The Matrix, o ponto máximo da apologia ao virtual está na seqüência que mostra o agente e Neo se desviando de balas. Enquanto Neo descarrega suas armas, os movimentos do agente se desviando das balas ficam sobrepostos, como em um efeito “estroboscópico”, denotando visualmente que muitos movimentos foram realizados em um curtíssimo espaço de tempo. A seguir, assim que Neo fica sem munição, o agente descarrega sua arma. Logo após o primeiro disparo, o filme dilata o instante que os projéteis levam para percorrer a distância entre o agente e Neo em longos segundos de um travelling circular à sua volta, onde podemos contemplar de forma espetacular os projéteis que se aproximam e passam um após o outro sem o ferir, enquanto seu corpo se retorce abaixo deles. A última bala é, enfaticamente, dirigida à nós, simples espectadores do mundo real, alvos passivos daquilo que nos é Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura durante elas – e eliminam um a um os adversários ao redor. A coreografia é a projetado na tela do cinema (fig. 128). Apesar da lentidão da cena, tudo acontece em uma breve “rajada de balas”, como atesta o comentário da própria Trinity: “nunca vi ninguém se mover tão rápido”. Em oposição à percepção de tempo “real” dos tiros contra o agente, tem-se a percepção de um tempo dilatado que emula o tempo virtual no qual a mente e o corpo podem ser mais rápidos que uma bala. 155 que pretendem tanto emular experiências passadas a partir de fragmentos gravados Julho de 2005 Em Minority Report, a alienação do presencial é dada por realidades virtuais futuras. O futuro é reconstruído por meio de uma parafernália cibernética que converte as visões dos “PreCogs” – para-normais sensíveis a eventos violentos – em imagens virtuais que antecedem os crimes antes que eles aconteçam no mundo presencial. As vagas visões de três indivíduos ligados em rede entre si são convertidas na sólida certeza tecnológica: as imagens articuladas por simulações computadorizadas dão o testemunho ocular que corrobora as provas materiais do crime – duas esferas de madeira com os nomes da vítima e do criminoso, lapidadas pelo mesmo maquinário premonitório – a ser evitado e punido antecipadamente (fig. 98). No filme, a virtualidade é também a presentificação das experiências passadas. John Anderton não rememora, mas revive o passado por meio de fragmentos petrificados em pseudo-experiências holográficas. As prateleiras cheias de retratos de Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | em hologramas como sintetizar as imagens do devir para evitar certas experiências plano seguinte (fig. 132). Ninguém aparece quando ele diz “estou em casa”. As | uma vida familiar alegre contrastam com o amplo apartamento vazio que se abre no as luzes do apartamento que se acendem. A pia sobre a qual ele despeja os pacotes de “clarity”, uma droga, está cheia de louça suja. Em seguida (fig. 133), vemos Anderton pegar um cartucho transparente com a etiqueta “Sean at the Beach” de um pequeno rack com vários outros cartuchos, todos com etiquetas relacionadas a Sean, seu filho que desapareceu misteriosamente: “Sean at home playing with toys”, “Sean’s 4th birthday”, “Sean and Lara”, “Sean – Soccer”, dentre outros. Após inserir o cartucho e apertar um botão no computador à sua frente, Anderton pede: “wall screen”. Surge a imagem de Sean em tamanho natural, mais botões são apertados e outros projetores começam a funcionar. Na medida em que o simulacro ganha animação Anderton revive o diálogo que teve quando filmou o arquivo a que assiste. Ele cumprimenta o filho, que responde enquanto ele anda na direção de Anderton: “Oi pai. Pode me ensinar como correr mais rápido? Porque todos os meninos da minha Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura únicas respostas que Anderton obtém são a música ambiente que começa a tocar e classe correm mais rápido que eu”. Os olhos de Anderton brilham enquanto reexperiencia um momento com o filho desaparecido. “Eu te amo papai”, diz o menino virtual antes de desaparecer gradualmente. Anderton “turbina” seus sentidos com uma dose do “clarity” e insere o arquivo “Lara e John”, onde ele vê a esposa mandando-o colocar a câmera de lado e “cuidar da sua esposa”. Ele se aproxima da 156 mas o choque com o real emerge dramaticamente quando toda a simulação Julho de 2005 imagem tridimensional da esposa em tamanho natural, envolve-se com a experiência vidrados de Anderton. De Tron a Minority Report, há uma trajetória das representações do ciberespaço que mostra uma tendência de naturalização da realidade virtual, cada vez mais o lugar privilegiado da experiência, em detrimento da realidade presencial, algumas vezes reduzida a um mero repositório de corpos físicos. O “modo de ver” das construções fílmicas acerca do ciberespaço incorpora, invariavelmente, um discurso visual que faz a apologia sem pudores ao sintético, ainda que camuflado por um discurso textual que diga o contrário. De fato, por mais que os personagens digam que a “realidade virtual não é real”, os filmes retratam o ciberespaço como o lugar onde se realiza a existência “prática” e autonomia desses personagens, enquanto a realidade presencial é o lugar da negação dessa autonomia. No modelo dicotômico Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | desaparece e é substituída pela frase “END OF FILE”, bem à frente dos olhos modernidade da qual ela é produto – implica na representação do presencial como | em que se opõe o virtual ao presencial, a apologia ao virtual – e portanto à adulto infantilizado rodeado de brinquedos eletrônicos; David (Wargames) é um simples garoto de desempenho escolar medíocre e viciado em videogames; o Dr. Angelo e Jobe (The Lawnmower Man) são, respectivamente, um excêntrico cientista abandonado pela esposa e um jardineiro retardado; fora da Internet, Johnny (Johnny Mnemonic) é apenas um sujeito sem sobrenome com problemas de memória e alvo de gangues que querem arrancar sua cabeça; os personagens desconectados da Matrix (The Matrix), não passam de pessoas comuns, pouco atraentes, maltrapilhas e perdidas em uma realidade desconectada do ciberespaço. Apesar da recorrência de uma estrutura dicotômica onde a crítica do presencial marca a apologia do virtual, há uma notória mudança do objeto de estranhamento, que passa, conforme os filmes são mais recentes, do mundo virtual para o mundo presencial. Em Tron, quando Flynn é “materializado” no mundo virtual, Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura uma realidade medíocre: Flynn (Tron) é um programador fracassado que parece um o filme expõe o estranhamento de estar imerso no ciberespaço. Já em The Matrix, quase duas décadas depois, somos solidários com o estranhamento de Neo frente ao mundo presencial, quando ele acorda imerso em um líquido gosmento e vê seu corpo repleto de cabos conectados diretamente na carne (fig. 129), após passar por uma espécie de transe no mundo virtual que pensava ser presencial, onde viu um espelho 157 em pauta é justamente a inversão do estranhamento, onde o virtual parece cada vez Julho de 2005 fundir-se e correr pelos seus braços engolfando-o (fig. 78). O que The Matrix coloca estranhamento e frustração. Logo após acordar no mundo presencial, Neo é apresentado às cenas do mundo fora da Matrix: cidades devastadas, “plantações” de seres humanos em fazendas de fetos, bebês engatados aos casulos das usinas de energia (fig. 131). É também um mundo vigiado por sentinelas, máquinas com traços de molusco e inseto e que andam em bando para destruir qualquer ser vivo que encontrem pela frente (fig. 130). The Matrix evoca o estranhamento ao mundo presencial – repulsivo e povoado por aberrações: seres humanos maquínicos e artefatos com aparência orgânica – e a naturalização do mundo virtual que se adequa àquilo que aceitamos (nós, espectadores) como representação fílmica de uma metrópole do final do século XX. Ao longo do percurso dessas representações, de Tron a The Matrix, o que observamos é um estranhamento cada vez menor com o Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | mais com a realidade “por excelência” enquanto o presencial torna-se objeto de como vinha sendo representado desde Tron, e na medida em que as próprias | ciberespaço, na medida em que ele não se parece mais com um espaço sintético, Contudo, continua sendo no virtual que os limites humanos são superados: quando vemos, ao fim do filme, as balas que se aproximam lentamente de Neo parando no ar, à sua frente e o código da “realidade da Matrix” estampado sobre o cenário (fig. 97), The Matrix reafirma a apologia ao mundo da fantasia sintética, no qual é possível, não só viver a “vida”, mas transcender a mediocridade e estranhamento que temos em relação à própria vida no mundo real. Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura entidades digitais desse ciberespaço são representadas como figuras humanas. 158 Julho de 2005 Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 128 (The Matrix) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Figura 131 (The Matrix) Figura 129 (The Matrix) Figura 130 (The Matrix) Figura 132 (Minority Report) Figura 133 (Minority Report) 159 A contrapartida da perspectiva que vê o computador como um meio de negar Julho de 2005 IV.4. Imagens da alteridade cibernética representações da alteridade cibernética, a inteligência é, talvez, o traço humano mais essencial. A capacidade de a máquina jogar xadrez – notório símbolo de desafio ao intelecto humano – é um índice recorrente não só de inteligência, mas também de superioridade intelectual, que pode ser visto em filmes de diversas épocas, sejam eles sobre computadores ou outras formas de “alteridades cibernéticas”. Em 2001: A Space Odissey, HAL joga xadrez com Frank Poole (fig. 134); em Wargames, o xadrez aparece em um documentário sobre o criador do WOPR (fig. 135); em Star Wars, mesmo sem ser exatamente um xadrez, o robô C3PO é visto jogando um jogo de tabuleiro similar (fig. 137); em Blade Runner, o jogo de xadrez é a primeira mediação direta entre o andróide e seu criador (fig. 136). A mediação do jogo é por si só um elemento de antropomorfização, na Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | o corpo é o movimento concomitante de humanização do computador. Nas | medida em a máquina e o ser humano confrontam-se no mesmo nível de interlocução. Mas além dos atributos intelectuais, são igualmente recorrentes tanto os cibernéticas. Imaginar que os computadores possam ser semelhantes aos seres humanos – dotados de personalidade, voz, fisionomia e, eventualmente, qualidades que os tornam mais humanos do que o próprio ser humano – não é uma construção restrita ao imaginário fílmico. Como observa Lupton (2000, p.482), “paradoxalmente, enquanto a cultura do computador muitas vezes procura negar o corpo humano, a forma como a tecnologia dos computadores é vendida e representada, freqüentemente, desenha uma analogia entre o computador e o corpo humano”. A tendência social de humanizar ou materializar um “corpo” no computador é uma forma de se reduzir a ansiedade e o desconforto que ele provoca, proporcionando um “sentido” à essa entidade construída para mimetizar faculdades humanas. Lupton nota que a humanização dos computadores se manifesta de várias formas e é um recurso praticamente exclusivo dos personal-computers: “ícones sorridentes não são Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura traços de emoção como o antropomorfismo na construção das alteridades encontrados em outras tecnologias que as pessoas acham difíceis de usar, como os videocassetes” (Lupton, 2000, p.484). Outro sinal de que os computadores são, ao menos potencialmente, uma espécie de alteridade está na corriqueira metáfora do “vírus de computador” que supõe que os computadores, assim como os humanos, 160 relacionado a um comportamento “promíscuo” (Lupton, 2000, p.486). Contudo, a Julho de 2005 estão sujeitos à disseminação de doenças por vírus que, por sua vez, pode estar cinema e nem na vida social. Segundo Winegrad e Akera (1996), o ENIAC foi a primeira máquina a ser chamada, pelo menos na mídia, de “cérebro eletrônico”, nome que continuou sendo usado para se denominar os mainframes durante décadas. Em 2001: A Space Odyssey, HAL 9000 manifesta diversos traços humanos: a comunicação verbal e o tipo de relação (humana) que os demais personagens têm com ele e vice-versa, as imagens “subjetivas” de HAL capturadas por seus “olhos” que tudo vêem e, talvez o mais importante, os rudimentos de emoção que HAL parece possuir, em certos casos até mais emocional que seus pares humanos. O computador HAL 9000 é apresentado no filme juntamente com os astronautas Frank Pole e Dave Bowman, na seqüência em que todos assistem à matéria sobre sua missão no noticiário da BBC, a bordo da nave espacial Discovery One (fig. 138). Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | tendência de se atribuir traços humanos ao computador não é recente, nem no homens e uma das gerações mais avançadas dos computadores HAL-9000” vemos o | Quando o jornalista comenta que “a tripulação da Discovery One consiste de cinco emoldurado em um retângulo com as inscrições “HAL 9000” ladeado por monitores de vídeo, que nos permitem ver parcialmente o que o “cérebro eletrônico” pensa e vê. Enquanto o programa de TV transcorre, o filme mostra planos do interior da nave, normalmente sincronizados com a matéria à qual assistem os personagens. Em um dado ponto do noticiário o repórter comenta: (...) o sexto membro da tripulação não ficou preocupado com a hibernação porque ele é o mais recente resultado em inteligência de máquinas: o computador HAL-9000 que pode reproduzir, embora os especialistas prefiram usar o termo “mimetizar”, a maioria das atividades do cérebro humano, e com velocidade e confiabilidade incalculavelmente maiores. Falamos com o computador HAL 9000 a quem, descobrimos, todos chamam de “Hal”. Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura que seria um primeiro plano da “face” de HAL: um “olho” eletrônico vermelho 161 Julho de 2005 Figura 136 (Blade Runner) Figura 137 (Star Wars) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Figura 135 (Wargames) Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 134 (2001: A Space Odyssey) Figura 138 (2001: A Space Odyssey) 162 jornalista parece se dirigir ao olho de HAL: “(...) você é o cérebro e o sistema nervoso Julho de 2005 Em um dos monitores de vídeo, que exibe partes do programa de TV, o causa alguma insegurança?”. Assim que HAL inicia sua resposta – “deixe-me colocar nesses termos, senhor Amer: a Série 9000 é o mais confiável computador já feito. Nenhum ‘9000’ jamais cometeu um erro ou distorceu informações” – vemos um closeup da grande lente vermelha seguida de um plano que supõe-se ser a visão “subjetiva” de HAL do interior da nave e dos astronautas sentados, durante o qual HAL continua: “todos nós somos, por quaisquer definição prática das palavras, à prova de falhas e incapazes de errar”. Um pouco mais adiante, perguntado se acredita se HAL possuiria emoções genuínas, Bowman responde: Bom, acho que ele age como se tivesse emoções genuínas. É claro que ele é programado dessa maneira para tornar mais fácil que conversemos com ele. Mas se ele possui ou não emoções reais é algo que acho que ninguém pode realmente Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | da nave. Entre suas tarefas está a de cuidar dos que estão hibernando. Isso lhe A capacidade de um computador conversar já manifesta uma forte | responder. sintética, porém ela também é o suporte da ansiedade e do medo ocasionado pela sua desconexão. A transparência das emoções e fraquezas que HAL manifesta em alguns momentos contrasta com a frieza dos personagens humanos frente às adversidades ou à morte. Lupton (2000, p. 483) nota que atribuir emoções ao computador é “um movimento discursivo que enfatiza sua natureza humanóide” pois a emoção não só é um atributo dos seres vivos como também é considerada como um “fenômeno que separa seres humanos dos animais, evidência de sua sensibilidade, espírito e alma”. No que se refere à caracterização de uma máquina como portador de atributos humanos, até mais do que os próprios humanos, a seqüência em que Dave desconecta HAL é emblemática (fig. 139). Vemos, pelo reflexo do olho de HAL, Dave aproximando-se ameaçadoramente. “Dave, pare”, pede o computador. “Você pode Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura antropomorfização. A voz monótona e aveludada de HAL-9000 reflete sua natureza parar Dave?”, continua a voz de HAL enquanto Dave desconecta os cartuchos de memória de HAL, um a um. “Tenho medo, Dave. Minha mente está se esvaindo”, diz mais de uma vez com a voz progressivamente mais grave e lenta. Em um dado ponto HAL começa a “delirar” e conversar como se estivesse na sua “infância”: 163 nas instalações HAL em Urbana, Illinois em 12 de janeiro de 1992. Meu Julho de 2005 Boa tarde, senhores. Eu sou um computador HAL 9000. Me tornei operacional ouvi-la posso cantá-la para você. Dave pede que HAL cante a música e ele canta até que sua voz, quase incompreensível, cesse. É inevitável reconhecer em HAL 9000 uma alteridade que “experiencia” o drama da própria morte. A alegoria do computador falante é um lugar comum quando se representa a “inteligência artificial” e um traço antropomórfico essencial para se construir a alteridade cibernética. Quando, em Wargames, David consegue acessar o WORP, a tela do computador mostra o diálogo textual entre ambos que rapidamente é substituído por diálogo verbal “Você quer ouvi-lo falar?”, pergunta à sua namorada antes de ligar uma engenhoca com alto-falante. Diante do espanto de Jennifer (fig. 140) – “Como ele consegue falar?” – David explica que a caixinha apenas “interpreta Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | instrutor foi o Senhor Langley e ele me ensinou a cantar uma música. Se quiser é substituído pela vocalização eletrônica – típico clichê da “voz de computador”: | os sinais do computador e os transforma em som”. Por meio desse dispositivo, o “bip” diegese, mas à voz de “Joshua”, nome humanizado do WOPR. A “voz” acompanha a “fala” de Joshua ao longo de todo o filme, mesmo quando não há mais a engenhoca "vocalizadora” na cena. Em Tron, Dillinger não só parece falar ao computador embutido sob o tampo de vidro de sua mesa, como aos poucos percebe-se que a voz que repete as frases do Master Control Program que surgem no monitor do computador não é uma voz em off externa a diegese. É a voz que dialoga “de fato” com Dillinger, pois este mal olha para o monitor e, em um certo momento, vira-se de costas sem interromper o diálogo com o MCP, quando passamos a ver Dillinger pelo reflexo da janela (fig. 144). Contudo, nota-se em filmes mais recentes que a faculdade da fala deixou de ser vista como uma manifestação da capacidade de pensar. Assim, em certos casos, a “fala” perdeu seu “coeficiente de humanização”, caracterizando com mais Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura sintetizada, estridente e metálica –, associada não à engenhoca que a justifica na freqüência – quando há máquinas falantes – uma “interface” de comando vocal ou simplesmente um gadget sonoro do que como um traço humano. Possivelmente isso seja reflexo de uma realidade social que já está infestada de produtos que não passam de caricaturas falantes incapazes de dialogar e, freqüentemente, objetos de 164 vocal da rigidez mecânica. Em The Matrix, os personagens humanos não conversam Julho de 2005 irritação e frustração onde a fala, muito longe de humanizar, transforma-se no signo botões, teclado, texto ou interface gráfica, e em The Minority Report – reproduzindo uma tendência que já era notória em Johnny Mnemonic e Lawnmower Man – a faculdade da “fala”, por si só, é insuficiente para a construção de uma alteridade e ela aparece nas cenas apenas como a vocalização de comandos textuais – não um suporte de diálogos – ou como forma de satirizar a falta de bom senso da máquina. Nas representações mais recentes do computador consolidou-se a tendência de se desvincular os traços antropomórficos do hardware e de se enfatizar o caráter humanóide do software. É uma tendência que já se encontra de forma embrionária em Tron, o primeiro filme a humanizar o software, como se este fosse a “alma” do computador: na diegese do filme, as entidades do ciberespaço – exceto o MCP – compartilham as mesmas características antropóides da projeção virtual de Flynn. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | com as máquinas ou com os computadores, cuja relação é estritamente mediada por pelo MCP, como esclarecem os diálogos surreais que se seguem após Flynn ser | Entidades que parecem gente, são softwares que trabalham ou foram capturados 115), um dos guardas do Master Control Program diz empurrando-o: “Videogame unidade 18. Aqui programa!”. Flynn responde: “Ei, a quem você está chamando de programa, programa?”. Dois companheiros de cela, Tron e Ram, observam o “software” recém capturado e comentam: - Outro programa livre off-line. - Você realmente acha que os Usuários ainda estão lá? - É bom estarem lá. Eu não quero fugir daqui e encontrar nada além de um monte de circuitos frios esperando por mim. Em uma seqüência posterior, Ram comenta com Flynn: “Eu era um programa atuarial. Trabalhei para uma grande companhia de seguro. Realmente dá uma boa sensação ajudar as pessoas planejar suas necessidades futuras”. O MCP, por sua Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura capturado, assim que aporta no ciberespaço (figs. 113-114). Levado para a cela (fig. vez, inaugurou a antropomorfização da imagem sintética. Dentro do ciberespaço, a voz do MCP é uma “besta” digital que tem um “rosto” lapidado por polígonos sintetizados por computador (fig. 141), um tipo de construção da entidade virtual que se tornou um estereótipo corriqueiro, tal como podemos ver em Johnny Mnemonic na 165 humanóide de Jobe, de The Lawnmower Man, quando ele transforma-se em uma Julho de 2005 personificação da BBS que Johnny consegue “hackear” (fig 142) ou no corpo Contudo, é em The Matrix que temos a antropomorfização total da alteridade ciberespacial. Aqui, desde que a diegese supõe um mundo virtual cujo funcionamento simula exatamente o mundo presencial de 1999, a figura humana é a imagem que representa tanto as projeções virtuais dos seres humanos no ciberespaço como os programas residentes na Matrix, tais como os “agentes”. Nos filmes precedentes, a representação dos híbridos ciberespaciais baseia-se na articulação sintagmática de signos visuais que originalmente pertencem a categorias distintas e descontínuas, tais como signos associados a atributos e corpo humanos e signos associados ao inorgânico e artificial, tais como linhas luminosas, polígonos, sólidos geométricos primitivos, superfícies hiper-reais, códigos textuais e números. Em The Matrix, os “agentes” – programas vigilantes da Matrix – além de possuírem uma aparência Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | entidade totalmente ciberespacial (fig. 122). apreensão do “agente” dentro de quadros relacionados com categorias sociais – | humana, reproduzem o estereótipo de “agentes do FBI”. Esse recurso privilegia a pode ter – em detrimento de categorias relacionadas com o artificial e o sintético. É na manifestação de certos traços de “irrealidade”, em particular no que tange à performance surreal dos personagens, por exemplo que se revela a condição artificial do que é representado como humano, seja ele “agente” ou não. A construção da computação como um meio de negar o corpo, por um lado, e como suporte de atributos humanos, por outro, está relacionada a uma lógica mais ampla, derivada das possibilidades – reais ou imaginárias – abertas pela hibridação entre o organismo e a máquina. Uma das características predominantes da cibercultura é a crença cibernética de que a “informação pode circular inalterada entre diferentes substratos materiais” (Hayles, 1999: 1), de onde deriva a idéia de que os seres humanos são “entidades de processamento de informação essencialmente similares às máquinas inteligentes” (Hayles, 1999: 7). É essa crença que está por trás Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura inclusive nas diversas conotações que um “agente” de terno preto e óculos escuros do imaginário proposto em construções fílmicas mais recentes onde a ligação da mente humana com o computador realiza-se por meio da fusão entre corpo e máquina, unidos por dispositivos conectados diretamente à carne e ao sistema nervoso do usuário. A idéia de que entidades ciberespaciais podem ser instâncias das mentes humanas separadas de seus corpos – realizando plenamente o “discurso 166 mais amplo, o imaginário do “pós-humano”, onde o ciborgue é a figura emblemática. Julho de 2005 da desincorporação” – é apenas uma das possibilidades abertas por um imaginário da tecnologia e cada vez mais além das limitações de desempenho ditadas pela natureza: a “performance” é a noção fundamental para a reformulação da imagem do ser humano na direção da imagem do “pós-humano”. Nos filmes sobre o ciberespaço, paradoxalmente, é a imagem do corpo humano otimizado com o acoplamento de máquinas que viabiliza a fuga desse mesmo corpo. Em Johnny Mnemonic, o protagonista é um courier que trafica dados de computador em seu próprio cérebro, misturados às suas memórias de gente que, para tanto, tiveram que ser parcialmente sacrificadas. O filme, é um dos primeiros filmes que une o “discurso da desincorporação” à imagem do ciborgue. Híbrido de gente e computador, Johnny possui um “implante cerebral” que o transforma em um dispositivo humano de armazenamento de dados digitais e seus olhos a entrada de Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | A figura do ciborgue anuncia a imagem de um homem “melhorado” com a acoplagem apresentar aos clientes para executar um serviço, ele “duplica a capacidade” de | chaves de criptografia que o impedem de “ler” os dados armazenados. Antes de se pequeno “slot” para a conexão de dispositivos eletrônicos que ele possui em sua cabeça. “Activating Pemex Memory Doubler”, diz uma voz feminina assim que Johnny liga um pequeno gadget à sua cabeça por meio de um cabo, iniciando o processo que permite a Johnny aumentar sua capacidade de armazenamento de 80 para 160 gigabytes, em uma clara alusão aos softwares de “duplicação de disco” – como o Double Space, muito usados até início dos anos 1990 – que ampliavam a capacidade de armazenamento do disco rígido para além de seus limites nominais por meio da compactação de dados. Na seqüência do upload de dados, Johnny explica aos seus clientes como proceder quando a transferência estiver quase completa: Quando o contador se aproximar de zero, clique em três frames da TV, quaisquer três. Eles serão mesclados aos dados e eu não saberei o que eles são. Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura gravação de seu cérebro. Nessa seqüência (fig. 143) somos apresentados ao Esse é o código de download. Pegue a cópia física [dos frames da TV] e envie-a por fax ao seu contato do outro lado. Quando eu chegar lá, introduziremos o código e faremos o download. 167 prepara seu HMD (Head Mounted Display), espeta o cabo para a transferência de Julho de 2005 À frente de uma mesa cheia de gadgets que ele tirou de sua valise, Johnny indicando o botão no mini CD player. “Hit me!”, ele anuncia colocando o HMD à frente dos olhos e um mordedor entre os dentes. O CD começa a girar, Johnny cerra as mãos e os dentes, seu corpo enrijece, códigos alfanuméricos e gráficos tridimensionais – metáforas dos dados que estão sendo enviados diretamente para o cérebro – correm frente aos seus olhos vidrados, a contagem regressiva indica o montante de dados ainda a ser transferido, os frames de TV se misturam à torrente de imagens que passam pelo HMD e quando o contador chega a zero, tudo se silencia. Diante dos clientes pasmos, uma cópia dos frames da TV sai da miniimpressora (fig. 86). Johnny Mnemonic apresenta-nos uma imagem inovadora do “homemgadget”: um ser que, conectado à máquina, torna-se extensão física dela sendo Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | dados na sua cabeça e diz: “o upload começa quando você pressionar aqui”, que são transferidos de um CD para o seu cérebro. Essa imagem do “homem-gadget” | capaz de interagir cognitivamente e sensivelmente – com dor, inclusive – aos dados corpo é reduzido a um mero suporte físico para a conexão dos cabos que introduzem a mente dos personagens diretamente no ciberespaço. Na diegese de The Matrix, as pessoas “vivem” toda a sua vida em um mundo virtual que é a réplica do mundo presencial de 1999. A condição de seu corpo revela-se após Neo “acordar” no mundo presencial (fig. 129), em uma bolha cheia de um líquido gelatinoso, e romper a película desse “útero sintético”. Assim que ele retira um longo tubo de sua boca e regurgita o líquido para respirar diretamente o ar, percebe que sua pele está totalmente enrugada pelos anos imersos nesse líquido “amniótico” sintético e que cabos metálicos estão plugados à sua nuca, espinha e outros pontos nevrálgicos. À sua volta, Neo vê um ambiente escuro e sem céu: apenas uma imensidão de domos, iguais ao seu, que se acumulam em forma de enormes edifícios, nos quais bilhões de outros seres humanos dormem. Nas seqüências seguintes descobrimos que a Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura como meio de transcender o corpo material é levada ao limite em The Matrix, onde o imersão na realidade virtual só é possível para os homens-gadgets que dispõe do conector cervical onde um longo conector é espetado (fig. 79). Os não ciborgues, os “naturalmente” gerados como o operador Tank, só podem permanecer no mundo presencial e utilizar mediações arcaicas como teclado e monitor – curiosamente sequer há um mouse – e, freqüentemente, diante de códigos textuais ininteligíveis. 168 Julho de 2005 Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 142 (Johnny Mnenomic) Figura 139 (2001: A Space Odyssey) Figura 141 (Tron) Figura 143 (Johnny Mnenomic) Figura 144 (Tron) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Figura 140 (Wargames) Figura 145 (The Terminator) 169 ou substituição de partes dele por artefatos é sempre um potencial objeto de aversão. Julho de 2005 Do ponto de vista da categoria social, a reconstrução do corpo pela conexão contaminado em contextos indevidos pelo corpo natural, suas emanações, secreções e partes internas. Nesse sentido, a imagem ciborguiana coloca o hibridismo tanto como a imagem da superação dos limites naturais do corpo como objeto de aversão e estranhamento. A diegese de The Matrix reserva ao mundo presencial o lugar do estranhamento e da aversão e ao mundo virtual a superação dos limites humanos. A imagem do “desempenho”, a pedra de toque da cibernética, que se realiza no mundo virtual da Matrix é exatamente a mesma dos ciborgues não virtuais de outros filmes, como o exterminador de The Terminator e os andróides de Blade Runner. São imagens nitidamente marcadas por estereótipos de força e resistência que eram tipicamente aplicados aos super-heróis dos filmes B e das histórias em quadrinhos, tais como o Superman. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | É uma relação homóloga à que ocorre quando esse mesmo corpo, o social, é dominaram o mundo volta ao ano de 1984 para eliminar uma mulher, Sarah Connor, | Em The Terminator, o assassino-ciborgue de um futuro onde as máquinas humanos contra as máquinas. Construído com tecnologia futurística, o exterminador não é um robô, mas máquina revestida de carne e sangue. É um supervilão cuja indestrutibilidade incorpora toda uma apologia à hibridação ciborguiana: sua casca de gente permite que ele passe despercebido entre suas vítimas humanas e seu interior artificial controlado por computador garante a máxima eficiência de destruição. A despeito de Arnold Schwarzenegger, ator que representa o ciborgue, ser uma pessoa real, ele é a imagem da ambigüidade, tendo em vista tanto o ar maquínico da sua atuação como o seu físico body-built, Mr. Universo e Mr. Olympia diversas vezes (fig. 145). Essa ambigüidade da aparência fica ainda maior com as demonstrações de força e a resistência física fenomenais do exterminador mas, a partir de certo ponto, ela desaparece com a eliminação da progressiva da carne que reveste o metal da máquina. O exterminador é imbatível na luta com mãos nuas, como na seqüência em Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura a mãe do líder humano que sequer foi concebido e que irá comandar a rebelião dos que ele mata a pancadas o namorado da amiga de Sarah (fig. 146) – que se resume na sucessão de cenas de um corpo humano sendo lançado através de uma porta de vidro, contra um espelho, sobre uma cômoda e finalmente através de uma porta, morto – ou quando vemos o exterminador saltar do meio de chamas sobre um automóvel em movimento para atravessar seu pára-brisa com um soco (fig. 147). 170 demonstrações exageradas de força e resistência não é inédita. Ela já aparecera de Julho de 2005 A forma como The Terminator tipifica o corpo ciborguiano, como suporte de Terminator, o filme Blade Runner, já havia apresentado construções muito similares. Os andróides de Blade Runner, chamados de “replicantes” são máquinas orgânicas e o contexto diegético do filme supõe um tal desenvolvimento técnico que a única diferenciação visual entre um ser – humano ou animal – “verdadeiro” e um ser fabricado é o número de série microscópico impresso nas células. Cada “replicante” do filme, em algum momento aparece exibindo “super-poderes” que marcam a diferença e a superioridade entre eles e os seres humanos com os quais se assemelham. Leon, em uma cena aparece mergulhando a mão em um líquido congelante (fig. 148) e noutra aparece surrando Deckard, um blade runner ou caçador de andróides, que parece indefeso frente à força e resistência de Leon. Até certo ponto da seqüência, poderíamos aceitar que Leon é apenas “muito” forte, mas Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | forma rudimentar no seriado Six Million Dollar Man e, poucos anos antes de The apesar da aparência, ele não é “apenas” humano (fig. 149). Em outra seqüência, | quando o soco de Leon atravessa a chapa metálica de um caminhão fica claro que, com o corpo é algo trivial para um replicante. Em uma cena Roy perfura com o punho a parede de concreto (fig. 150) para pegar a mão de Deckard e quebrar-lhe os dedos e noutra, ele atravessa a parede com a cabeça para dizer provocações a Deckard (fig. 151): “É melhor andar logo ou eu terei que matá-lo. Se você não ficar vivo, não pode brincar, e se não pode brincar...”. Deckard arranca um cano da parede e Roy corre em sua direção, levando vários golpes fortíssimos dos quais ele se recobra rapidamente e responde animado: “Esse é o espírito!” (fig. 152). Deckard foge novamente ciente de que não tem chances em uma luta corporal contra um replicante. Ao final da perseguição, Roy salta facilmente de um edifício a outro atrás de Deckard, que está pendurado em uma viga após fracassar na tentativa de salto (fig. 153). Contudo, apesar dos replicantes parecerem resistentes à morte – como na longa e demorada cena em que Deckard mata Zhora (fig. 154) ou na cena da morte Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura quando Deckard é perseguido por Roy, vemos que atravessar coisas muito sólidas de Pris (fig. 155), quando ela tem convulsões que parecem mais uma espécie de “curto circuito” que cessam apenas com outro tiro de Deckard – eles morrem depois de, no máximo, dois tiros. Mas o exterminador que vem do futuro é quase indestrutível. Quando ele está para executar Sara com um tiro, Kyle o defensor humano dela, que também veio do 171 o exterminador que, empurrado pelos tiros, é lançado através da vitrine e cai Julho de 2005 futuro, surge por trás com uma espingarda pump-action e dispara cinco vezes contra comigo se quiser viver”, na tentativa de convencer Sarah a fugir com ele, o exterminador recobra os sentidos e imediatamente retoma a perseguição a eles (fig. 156). Em outra seqüência, o exterminador cai da moto e a caminhonete na qual Sarah e Kyle fugiam ainda passa por cima dele antes de capotar. Depois de deslizar vários metros, o exterminador é atropelado por um caminhão-tanque e, mesmo assim, ele levanta-se e assume o caminhão para continuar a perseguição. Quando Kyle consegue explodir e incendiar o caminhão-tanque, o exterminador, em chamas, cambaleia para fora da cabine e cai junto a outros destroços no meio do fogo. Seus movimentos tornam-se cada vez mais lentos até que ele pára, já com a carne consumida pelas chamas. É claro, o exterminador não morreu. Na seqüência seguinte, enquanto Kyle e Sarah se abraçam aliviados, pode-se ver a silhueta do Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | aparentemente desacordado na calçada. No breve tempo em que Kyle diz “venha de carne e reduzido ao esqueleto de aço os fita com os olhos vermelhos antes de | esqueleto metálico que surge do meio dos destroços. O exterminador já sem a casca Contudo, o filme leva a “recusa em morrer” ao limite: a besta ainda “morre” ainda mais duas vezes no filme. Kyle, após dar uma série de pancadas com um cano no exterminador, fazendo-o ceder a cabeça (fig. 158) – como na cena em que Deckard bate em Roy com um cano, em Blade Runner –, é lançado para o chão com dois golpes. Kyle consegue encaixar uma bomba no esqueleto metálico do exterminador que acaba explodindo em pedaços. Mas a perseguição continua. O corpo mecânico mutilado do exterminador, sem o abdômen e as pernas, rasteja por cima do corpo de Kyle, morto com a explosão, arrastando cabos e fios pendurados no lugar do que seriam as vísceras em um corpo humano (fig. 160). Sarah, ferida na perna, também se arrasta até encontrar e fechar uma grade providencial que lhe dá tempo para alcançar um botão que aciona uma prensa hidráulica sobre o exterminador. Raios saem do esqueleto metálico, Sarah e ele trocam olhares Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura reiniciar a caçada (fig. 157). enquanto seu corpo e rosto são esmagados. O olho do exterminador se apaga (fig. 161). Mas, permanece a dúvida, ele estará mesmo morto? 172 Julho de 2005 Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | | Figura 148 (Blade Runner) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Figura 152 (Blade Runner) Figura 146 (The Terminator) Figura 149 (Blade Runner) Figura 150 (Blade Runner) Figura 147 (The Terminator) Figura 151 (Blade Runner) Figura 153 (Blade Runner) 173 Figura 155 (Blade Runner) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 154 (Blade Runner) Figura 156 (The Terminator) 174 Julho de 2005 Julho de 2005 Figura 163 (The Matrix) Figura 158 (The Terminator) Figura 161 (The Terminator) Figura 159 (The Terminator) Figura 162 (The Terminator) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Figura 160 (The Terminator) Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 157 (The Terminator) Figura 164 (The Matrix) 175 humanização de alteridade cibernética. O medo e ansiedade de HAL, impotente Julho de 2005 Nota-se que há uma relação entre a proximidade com a morte e o grau de máxima humanização dos replicantes de Blade Runner é quando Roy, diante da morte iminente de Deckard, acaba salvando-o e aceitando sua própria morte diz: “time to die”. Ao contrário, a indestrutibilidade aparente do exterminador de The Terminator se dá ao longo de um progressivo “descarte” dos traços humanos. No quarto de seu hotel, ele corta a carne de seu braço com um estilete a fim de “consertar” o mecanismo da mão (fig. 159) e, com o mesmo estilete, ele espeta o olho a fim de arrancar a casca orgânica danificada (fig. 162). Esse processo revela a inutilidade e descartabilidade da carne, e culmina com o renascimento do exterminador como uma entidade cibernética purificada pelo fogo (fig. 160). A indestrutibilidade e a bestialidade parecem ter afinidade semântica. Estar sujeito à morte, de certa forma, continua sendo um traço que aproxima a alteridade Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | diante de sua própria morte, é desconcertantemente humano e o momento de “indestrutibilidade” freqüentemente constitui um traço de bestialidade. Em Tron, o | cibernética do ideal natural de ser humano enquanto que a “imortalidade” ou experienciado pelos avatares e pelos softwares como a “morte”. Por outro lado, a “indestrutibilidade” é, em The Matrix, justamente a característica que mais distancia os “agentes” dos “seres humanos”. Mesmo que sujeitos à fatalidade, a morte do agente é sempre momentânea pois o corpo que cai nunca é o de um agente: após Trinity atirar na cabeça de um deles, o cadáver que bate no chão é do piloto de helicóptero que teve seu corpo ocupado pelo agente, momentos antes (fig. 163). Da mesma forma, quando o agente Smith é atingido pelos tiros disparados pela metralhadora giratória de Neo, o corpo que cai transforma-se no corpo de um policial (fig. 164) e, pouco depois, vemos o mesmo agente Smith entrar pela porta. A morte ainda tem outra importante função na construção de algumas alteridades cibernéticas. É onde a “performance” como “máquina de matar” pode ser vista como uma das mais recorrentes construções ciborguianas. E mesmo com Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura ciberespaço é uma espécie de arena de videogames onde o “game over” é intervalo de quase duas décadas, é uma construção que permanece praticamente inalterada, desde os filmes que a consagraram, como Blade Runner e The Terminator, até filmes mais recentes, como The Matrix, que caracteriza a realidade virtual como o local possível dos exageros da “máquina de matar” e reproduz nos agentes e nos protagonistas projetados dentro da matrix os mesmos estereótipos que 176 Neo e Trinity invadem o prédio de segurança máxima onde Morpheos está preso (fig. Julho de 2005 caracterizam os replicantes e o exterminador. Não por acaso a seqüência em que exterminador invade a delegacia de polícia atrás de Sarah (fig. 165). Logo após ele anunciar seu retorno com a célebre frase “I’ll be back”, o vemos arrombar a delegacia com um automóvel. Ele sai do veículo com uma metralhadora na mão esquerda e uma espingarda na mão direita e invade o interior da delegacia atirando em todos que vê no corredor e nas salas que olha uma a uma. Além de possuir uma mira impressionante, conseguir arrombar facilmente portas e enxergar no escuro, ele é “à prova de balas”. Qualquer resistência é inútil e os tiros dos policiais, sejam de revólveres ou de fuzis, com os quais se armam desesperadamente, não surtem nenhum efeito e eles são abatidos às pencas pelo exterminador. Além de aspectos performáticos similares com armas de fogo – em ambos os filmes os personagens demonstram tal conhecimento e intimidade com as armas que estas chegam a Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | 95) é praticamente uma releitura da seqüência de The Terminator na qual o particularmente fria e impiedosa. O que muda, entre The Terminator e The Matrix, é a | parecer extensões deles –, as “máquinas de matar” assassinam de forma “máquina assassina” é o mesmo. A despeito do estereótipo do “arsenal ambulante” ser um traço marcante na construção da alteridade cibernética como “máquina de matar” ele não é o único e nem essencial. Talvez o estereótipo mais importante seja o da transformação do corpo em uma máquina de alto desempenho e resistência, instrumento ideal e praticamente invencível na disputa corporal contra seres humanos comuns. O corpo de alto desempenho é tipicamente aquele corpo com aparência humana mas capaz, como mostra, ad nauseam o filme The Matrix, fazer paredes e colunas cederem sob o impacto de seus corpos e destruir paredes e colunas com a força de seus socos e cabeçadas (fig. 93 e 166), em cenas, por sinal, bastante semelhantes com as encontradas em The Terminator (fig. 147) e Blade Runner (figs. 149, 148 e 150). Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura justificativa da diegese para a matança, mas o aspecto performático que caracteriza a 177 Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Figura 165 (The Terminator) Figura 166 (The Matrix) 178 | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Julho de 2005 conservador de representação desse corpo, muito aquém das possibilidades dadas Julho de 2005 A despeito das eventuais diferenças, há, notavelmente, um padrão ampliar as capacidades e os limites propriamente, ou reconhecidamente, humanos, sendo muito rara a presença de “novas funcionalidades” e, sobretudo, alterações morfológicas do modelo básico do corpo humano. Os ciborgues do cinema podem quebrar concreto com os punhos, esmagar uma cabeça com as mãos, resistir ao calor e ao frio extremos, dar saltos inacreditáveis, desviar de balas ou mesmo ser à “prova de balas”, mas não os vemos lançando raios com os olhos, atirando com os dedos, soltando gases venenosos ou cuspindo fogo. Nesse sentido, o imaginário ciborguiano se identifica menos com a imagem desumanizada da besta cibernética de The Terminator, uma carcaça de aço “disfarçada” no corpo “super-marombado” de Arnold Schwarzenegger, e mais com a figura ambígua dos replicantes de Blade Runner ou com os personagens ciberespaciais de The Matrix. Mesmo incorporando Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | pelo conceito do ciborgue. A fusão de organismo e máquina é sempre um meio de simbólica central e sua subversão e violação – por meio da transformação das | as promessas da biônica, a representação dos ciborgues tem no corpo uma categoria categorias – inevitavelmente o torna objeto de estranhamento e potencial portador de traços de bestialidade, como ocorre com o exterminador, ou símbolo de degeneração, como nos corpos violados por conectores metálicos em The Matrix. É nessa perspectiva que a imagem de corpos reconstruídos pela realidade virtual ou biotecnologia tem um apelo irresistível, pois manifestam a ampliação das possibilidades da bio-maquinaria sem agredir a integridade das aparências do corpo humano valorizado como máquina. Nesse sentido, a imagem ciborguiana que é exaltada no cinema não é a do homem-gadget ou da besta-cibernética, uma versão contemporânea de Frankenstein, mas imagem do corpo reconstruído e remodelado artificialmente em corpos não só melhores e mais eficientes do que o obsoleto corpo de carne e osso, mas também mais belos. Assim, o culto à beleza coincide com o culto ao desempenho: os andróides e entidades ciberespaciais mais-que-humanos Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura relações que os signos ligados ao corpo têm entre si e com signos de outras são modelos de beleza cujos corpos podem quebrar coisas mais sólidas que o aço e vencer os limites da própria física. Em certos casos, também observamos um certo orientalismo, cuja presença vem se acentuando na cibercultura, incorporado na construção das alteridades cibernéticas. Trata-se, certamente, de um orientalismo fabricado tanto pelo fascínio 179 ocidentalizado. Talvez porque seja percebido como um novo território a ser Julho de 2005 como pelo medo que se tem do outro oriental, em oposição às concepções do “eu” “Oriente”, a construção do “cibernético” e da alteridade cibernética seja homóloga às construções que se faziam do Oriente e do oriental. Em seu sentido original, orientalismo refere-se ao estudo das sociedades do Oriente, desde o Oriente Próximo ao Extremo Oriente, pelos ocidentais, mas também é aplicado à imitação ou estereotipação de traços do Oriente pelas artes ocidentais. O termo tornou-se academicamente obsoleto e é pejorativamente vinculado a uma visão colonialista do Oriente. Entretanto, Said (2001, p.289) nota que mesmo decaído o colonialismo francês e britânico, o discurso e a prática orientalista continuam. Fundamentalmente o produto do orientalismo é um Oriente que não passa de uma construção do Ocidente, na qual o primeiro se define por oposição ao segundo. É uma construção abstrata, onde sempre é preferível a imagem de um Oriente “clássico” às “evidências diretas Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | qualificado, definido e generalizado como por muito tempo foi – e ainda é – o houvesse uma incompatibilidade entre a modernidade e o Oriente. Assim, nos filmes, | extraídas das realidades orientais modernas” (cf. Said, 2001, p.305), como se qual a associação de traços de modernidade e de orientalidade proporcionam figuras caricatas e decadentes e outra, na qual oriental é símbolo de resistência às vicissitudes da modernidade42. Ainda que seja, como neste caso, um objeto de admiração, o “Oriente, no fundo, ou é algo a ser temido (o Perigo Amarelo, as hordas mongóis, os domínios pardos) ou a ser controlado (por meio da pacificação, pesquisa e desenvolvimento ou ocupação pura e simples sempre que possível)” (Said, 2001, p.305). Um objeto, enfim, que suscita reações análogas àquelas que os objetos cibernéticos provocam. Apropriado pela cibercultura, o Oriente reforça o contraditório e o híbrido característico do “outro” cibernético, dentro de esquemas onde o ciber-futuro ou ciber- 42 Como exemplo recente podemos citar o filme The Last Samurai. Ele retrata a elite militar japonesa que se alia aos ocidentais e adota armas de fogo como gananciosa e traiçoeira. Ao contrário dos generais “ex-samurais” que trocaram a armadura pela farda, aqueles que se recusam a abandonar a espada e a aderir às armas de fogo, são retratados como monumentos de moralidade e coragem. É sintomático que o “último samurai” seja um ocidental: enquanto o custo da modernidade a um oriental é a destruição da sua integridade moral, a orientalização de um ocidental resgata sua moralidade corrompida. A despeito da aparência “histórica” que têm os eventos do filme, as armas de fogo são utilizadas pelos exércitos comandados pelos samurais desde o século XVI, período no qual o Japão se unificou sob Ieyasu Tokugawa. Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura a relação entre o Oriente e a modernidade é fundamentalmente de dois tipos: uma na 180 ciberculturais é reflexo de um imaginário popular ocidental que freqüentemente Julho de 2005 presente é atravessado pelo arcaísmo do tradicional. O orientalismo dos filmes modernidade e as tradições milenares. Na vida prática, esse imaginário se manifesta nos procedimentos “orientais” reinventados dentro de quadros de referência ocidentais, nos quais floresce a idéia da harmonia entre a visão bucólica do antigo e a utilitária eficiência do moderno: são o budismo e o kendo de fim de semana capazes de resolver o stress do cotidiano e é a apropriação da “Arte da Guerra” de Sun Tzu – sempre em moda entre os executivos ocidentais – como um manual de sucesso na “guerra” empresarial. Nos filmes ciberculturais, o ocidente cada vez mais se reveste de oriente e se manifesta nas conotações de auto-disciplina e determinação normalmente associadas ao modo de vida tradicional e estamental que sobrevive “no Oriente”. Mas esse mesmo orientalismo também se manifesta no estranhamento e desconfiança que o Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | associa o outro oriental à superação das contradições entre o progresso da como de fascinação. É onde emerge a oposição entre o Oriente naturalizado como | outro sempre inspira. Assim como o “cibernético”, o Oriente é tanto objeto de medo portanto, encarado como degenerado e impuro. Em um caso, a associação entre o ocidente com estereótipos orientais produz uma valoração positiva enquanto que o Oriente contaminado por estereótipos ocidentais – sinal da degeneração do “Oriente” – produz um juízo de valor negativo. No grupo de construções em que o Oriente produz conotações positivas, situam-se as construções onde personagens ocidentais associam-se aos símbolos orientais, como na cena em que Flynn aparece vestido de quimono enquanto ele “hackeia” o computador da Encon (fig. 84) ou na seqüência em que Neo e Morpheos aparecem vestidos a caráter lutando kung-fu em um ambiente tipicamente oriental (fig. 92). Com a computação, o Oriente também se tornou mais acessível e foi incorporado tecnologicamente pelo “eu” ocidental: caracteres japoneses invertidos tornam-se os “códigos da Matrix” (fig. 96) ou os ideogramas chineses são traduzidos Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura um traço pitoresco do ecletismo ocidental e o Oriente profanado pela modernidade, e automaticamente para a linguagem ocidental (fig. 88). Ainda em The Matrix, percebese que os estereótipos do oriente misturam-se nitidamente ao antigo, aos sinais de arcaísmo associados aos mocinhos do filme. São como os telefones antigos e as telas verdes monocromáticas que aparecem ao longo das áreas que a diegese nos apresenta como intermediárias entre o presencial e o virtual; são signos da “história 181 tecnológico opressor. Julho de 2005 congelada”, sinais de sobrevivência e salvação nos interstícios do desenvolvimento objetivações freqüentes. Aqui podemos situar o mundo deprimente de Blade Runner, lugar abandonado por todos que podiam e passaram pelos controles de imigração para outros planetas mais aprazíveis. Em certo sentido, a Terra é retratada como um repositório da escória humana, um lugar sujo, escuro – nunca há sol – e sempre chuvoso. A cidade do filme é cheia de luminosos e video-walls gigantes que exibem dragões em néon, ideogramas e garotas-propaganda orientais anunciando produtos ocidentais. Parece uma metrópole que foi engolida pela “Chinatown” (fig. 167), com as ruas apinhadas de uma mistura degenerada de etnias e sub-culturas, significativamente representada por pessoas orientais ou vestidas como tais. Assim como em outras construções, o Oriente de Blade Runner é homogeneizado e elimina qualquer distinção de origem entre os signos da cultura japonesa e da chinesa, por Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | As construções que portam valorações negativas também são supra- Runner é um filme que fala dos híbridos, os replicantes, e o Oriente é também um | exemplo, apesar de ficar bem claro o que é e quem é o Ocidente e o ocidental. Blade significantes – a tecnologia e a ciência – ocidentais. Analogamente, a Beijing de Johnny Mnemonic aparece como uma cidade caótica, lugar de passeatas e violência, e o único refúgio calmo, nesse Oriente sinônimo do caos é o hotel – um fragmento do ocidente – mas com servos orientais que reverenciam Johnny assim que ele entra na recepção (fig 168). Johnny também é o Ocidente que vai ajudar clientes orientais que, de tão atrapalhados que são, apontam suas armas contra o salvador (fig. 169). Os bandidos orientais são, evidentemente, a imagem do Oriente deteriorado, contaminado e impuro, associado às coisas “ruins” do Ocidente: o banditismo de uma Yakuza com capangas ocidentais e mestiços (fig. 170) ou o chefão japonês vestido com trajes ocidentais que segura um revólver em uma mão e uma katana, a espada samurai, em outra (fig. 171). Por fim, também encontramos nesses mitos cinematográficos personagens Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura signo do estranho, do alienígena, que entra no esquema da hibridação, misturado aos que lembram, em muitos aspectos, a figura do trickster. O trickster, segundo Queiroz (1991, p.94) é, em geral: (...) o herói embusteiro, ardiloso, cômico, pregador de peças, protagonista de façanhas que se situam, dependendo da narrativa, num passado mítico ou no 182 más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os, Julho de 2005 tempo presente. A trajetória deste personagem é pautada pela sucessão de boas e um lado, e de indignação e temor, por outro. O trickster está presente em mitos de praticamente todas as culturas o que, segundo o autor, constitui “uma categoria por meio da qual podem manifestar-se certas dimensões universais da existência humana”. Contudo, completa ele: (...) esta última só se concretiza em contextos sócio-culturais específicos, cada qual com sua história. Assim, as diferentes modalidades do trickster também não poderiam deixar de traduzir peculiaridades próprias aos grupos sociais que lhes dão vida (Queiroz, 1991, p.104). E não é diferente na cibercultura. Situados no limiar da desordem, nas regiões de fronteira e hibridação entre o artefato e o organismo, entre a cultura e a natureza, entre o virtual e o presencial, os “tricksters cibernéticos” são tanto Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | despertando-lhes, por conseqüência, sentimentos de admiração e respeito, por | desrespeitadores da ordem social vigente como agentes de uma nova ordem social. “trickster cibernético”. As aventuras dos hackers, como ocorre com os tricksters em geral, são “marcadas, amiúde, pela malícia, pelo desafio à autoridade e por uma série de infrações às normas e aos costumes” (Queiroz, 1991, p.96). Neo de The Matrix é perseguido pelos agentes justamente porque é uma ameaça à ordem do sistema; Johnny de Johnny Mnemonic trafica em seu cérebro os dados secretos da Pharmakon, capazes de curar uma doença neurológica que interessa à empresa que continue existindo; Flynn, de Tron, utiliza suas habilidades para destruir o Master Control Program e seu controle sobre o ciberespaço; David, de Wargames, abala a ordem geopolítica do mundo com seu jogo contra o WORP. Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura O hacker talvez seja o tipo de personagem que melhor exemplifica a imagem do 183 Julho de 2005 Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | | Figura 167 (Blade Runner) Figura 170 (Johnny Mnemonic) Figura 169 (Johnny Mnemonic) Figura 171 (Johnny Mnemonic) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Figura 168 (Johnny Mnemonic) Figura 172 (Wargames) 184 Julho de 2005 Figura 175 (Wargames) Figura 177 (The Lawnmower Man) Figura 176 (The Lawnmower Man) Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura | Figura 174 (Wargames) Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Figura 173 (The Matrix) Figura 179 (The Lawnmower Man) Figura 178 (The Lawnmower Man) 185 filmes, os hackers compartilham quase sempre as mesmas características. São outsiders, diferentes do que é visto como norma na sociedade da Julho de 2005 Nos fixa, perambulando pelos espaços sociais, naturais e sobrenaturais” (cf. Queiroz, 1991, p.87). David (Wargames) é um garoto aparentemente comum, mas vive em um mundo à parte de seus pares escolares e seus amigos são outros hackers mais velhos, mais outsiders ainda que ele, que ficam escondidos nos fundos de uma empresa de computação (fig. 172); Johnny (Johnny Mnemonic) perdeu parte de suas memória e, da mesma forma que não lembra quem é, não tem vida pessoal e mora em hotéis; Neo (The Matrix) leva uma vida dupla, de dia é Thomas Anderson, programador em uma empresa de software, e à noite é um hacker famoso que rouba e vende dados. A imagem fílmica dos hackers também está associada à desordem, seu ambiente é uma “bagunça” de gadgets cibernéticos misturados aos seus objetos pessoais, como o quarto de Neo (fig. 173), o quarto de David (fig. 174) ou o escritório Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | qual fazem parte, são amantes “do viver errante e solitário” e “raramente têm morada os mainframes repousam em um lugar limpo, organizado e monitorado por pessoas | de seus mentores hackers que contrasta visivelmente com o ambiente contíguo, onde Os hackers também são, invariavelmente, especialistas que manifestam sua intimidade com a tecnologia pela desenvoltura com que dominam os temíveis e “indecifráveis” códigos de computador e manipulam, além de computadores, aparelhos eletrônicos e outros gadgets. Os aparatos manipulados pelos “tricksters cibernéticos” não costumam ser de grande sofisticação tecnológica, são usualmente objetos que não precisam ser “apresentados” ao senso comum e muitas vezes objetos que fizeram, fazem ou farão parte, como supõem os filmes futuristas, do cotidiano das pessoas. Assim, o “circo” montado por Johnny antes dele iniciar o upload de dados para sua cabeça são basicamente adereços estilizados que lembram um CD player, um contador digital, uma impressora e um visor que lembra os antigos óculos estereoscópicos, mas caracterizados como high-techs, não porque sejam tecnologicamente sofisticados, mas porque são o futuro de 1995 (fig. 86). Mas Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura “normais” (fig. 172). foi Wargames que forneceu algumas das construções mais consistentes do hacker “traquitaneiro” e que influenciam até hoje o imaginário da cultura de massas. David ameaça a humanidade e a ordem geopolítica do mundo não com aparelhagem sofisticada, mas a partir de uma miscelânea de aparelhos eletrônicos que eram, já naquela época, acessíveis à população comum, mas vistas, pela maioria, como 186 incorporados ao nosso cotidiano pela explosão dos personal-computers, tais como o Julho de 2005 gadgets esquisitos (fig. 174 e 177). Muitos desses gadgets já foram naturalizados e importante do filme, já que ele não é só um gadget, mas o ícone fílmico da “conectividade”, talvez o primeiro, da aliança entre o computador e a telefonia, a base fundamental sobre a qual foi construído o imaginário do ciberespaço tal como concebemos hoje43. Outro traço característico do hacker que o diferencia nitidamente de outras construções de “especialistas” científicos ou mesmo mágicos – sempre caracterizados como senhores experientes e maduros – é a aparência jovem, freqüentemente associada a traços juvenis, sejam eles físicos ou comportamentais. Nos filmes mais antigos isso é mais evidente, tanto pela presença constante do videogame como pelo fato de crianças serem mais íntimas deles do que amigos da mesma idade. Em Tron, Lori, a amiga de Flynn pergunta por ele a um menino em um Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | drive de disquete (gigantesco no filme) e o modem (fig. 177), a engenhoca mais apontando para o lado, antes de retomar o jogo em seguida (fig. 99). Ainda que o | arcade videogame que responde prontamente “Sim, ele está lá, naquela máquina”, um comportamento adolescente e que continua a se dedicar a coisas pouco sérias, como o videogame, e a se vestir como um adolescente. No filme ele aparece com o cabelo desleixado, vestido de camiseta e jeans, com um fone de walkman pendurado ao pescoço, enquanto seus ex-colegas usam ternos. Em Wargames, enquanto todos saem do fliperama para a escola, o amigo que entra e para quem David passa o jogo em andamento antes de sair correndo é um menino (fig. 101). Longe de serem jovens exemplares, os hackers são representados como a imagem da imaturidade social. Flynn é alguém que montou uma casa de diversões eletrônicas depois de ser despedido da empresa de software onde trabalhava. David, chega atrasado à aula porque joga videogame até não poder mais, faz piadas do professor e “rouba” senhas para acessar o sistema da escola e melhorar suas péssimas notas do boletim. Traço essencial do trickster, a ambigüidade se manifesta aqui na tipificação do hacker como Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Flynn seja um adulto, a construção do personagem é a de um adulto infantilizado com adolescente rebelde e visual desleixado que contrasta com o conhecimento técnico e a perspicácia normalmente imputados ao tipo sênior e conservador tradicionalmente associado à ciência e tecnologia. 43 Não por acaso, o telefone é uma metáfora onipresente da conectividade em The Matrix. 187 do termo “hacker”. Nos filmes, o termo só surge a partir de meados dos anos 1990 e Julho de 2005 Essa imagem do “trickster cibernético” talvez seja até anterior à socialização não era comum. É provável que a palavra só tenha começado a ser usada fora do que seriam os “círculos hackers” quando os vírus de computador e as invasões de sistemas começaram a ganhar notoriedade na mídia, entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990. O estereótipo do “trickster cibernético” – o adolescente outsider e subvertedor da ordem, uma ameaça, portanto – é mais antigo do que o termo hacker, como demonstram os filmes, e persiste praticamente inalterado até hoje. Talvez isso ocorra, em grande medida, porque esse mesmo estereótipo é utilizado, desde os anos 90, pela mídia de fatos variados para espetacularizar o real, ao destacar aos garotos que realmente invadem e vandalizam sistemas de alta tecnologia, cujo conhecimento necessário – ao menos aos olhos do senso comum – não poderia estar a alcance de meninos que nem terminaram o colégio. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | mesmo no ambiente de desenvolvimento de softwares dos anos 1980, essa palavra é que a circulação de informações acerca de sistemas de tecnologia eletrônica nunca | Mas o fato menos conhecido, e parcialmente explorado nesses estereótipos, há décadas, antes do personal-computer se popularizar e, quando este surgiu, foi no contexto do hobby eletrônico, que reunia uma diversidade de pessoas com interesses e formações diversas – tais como radioamadores, médicos, profissionais de som, engenheiros, técnicos ou simples curiosos – e que tradicionalmente já consumiam literatura, trocavam informações, comercializavam ou realizavam escambo de peças eletrônicas, kits e placas de circuito feitas em casa. Da mesma forma, a invasão de sistemas de telecomunicações também não é recente. Antes mesmo do termo “hacker” ser conhecido, já havia a denominação “phreak” para aqueles que desenvolviam e compartilhavam técnicas para burlar e violar sistemas de telefonia, desde enganar o sistema de cobrança até acessar funções reservadas do sistema. Algumas dessas técnicas eram facilmente implementadas com dispositivos eletrônicos que qualquer “hobbista” podia construir, sendo que as mais procuradas e Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura foi, ao contrário do que se costuma pensar, tão restrito. A eletrônica já era um hobby desenvolvidas eram as que permitiam realizar ligações de longa distância sem pagar. O personagem mais famoso do mundo do phreaking é John Draper, conhecido como 188 como blue-box45. A partir dos anos 1980, com a popularização dos personal- Julho de 2005 Captain Crunch44, que construiu um dispositivo para esse fim que ficou conhecido conexão de outros computadores via modem para troca de arquivos e mensagens. Como a conexão era realizada por meio do telefone e o custo da ligação era proporcional à distância entre os computadores e o tempo de conexão, as técnicas de phreaking tornaram-se parte inseparável do arsenal de truques do que viria a ser conhecido na cultura de massas como “hacking”. Se em Tron, as referências ao phreaking são limitadas a uma visão lúdica da invasão ao MCP, onde Flynn explora as brechas do sistema, Wargames possui claras referências ao phreaking, como a seqüência em que David, sem moedas, desmonta o bocal do telefone público e utiliza um lacre de lata de refrigerante para “aterrar” o sistema momentaneamente para liberar a linha (fig. 175). A associação do videogame ao “trickster cibernético” também não é gratuita. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | computers surgiram as BBBs (Bulletin Board System) que eram redes disponíveis à vistos com interesse por serem úteis no desenvolvimento da inteligência artificial. | De fato, o universo de pesquisa da computação sempre esteve ligado aos jogos, até por uma afinidade mental, apaixonados por jogos. Em filmes mais recentes, a figura do “trickster cibernético” evoluiu para um imaginário ciborguiano que, ao mesmo tempo em que projeta nossa mente para uma fusão sem fronteiras com o ciberespaço, transforma nosso corpo para que ele ultrapasse suas fronteiras naturais. São as representações de Jobe (The Lawnmower Man) e de Neo (The Matrix), que transcendem a condição carnal humana por meio da conexão direta da mente com a máquina, as mais próximas do caráter liminar do trickster. No início de The Lawnmower Man, Jobe não é retratado apenas um adulto infantilizado, mas também aparentemente portador de deficiência mental e seu único amigo é um menino que é mais inteligente que ele (fig. 176). Potencializado pela realidade virtual, Jobe adquire novo aspecto e sua relação com o cortador de grama, construído por ele, resume sua transformação. No início do filme, o cortador de grama Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura Além disso, não é incomum que profissionais de desenvolvimento de software sejam, 44 Esse apelido deve-se ao fato dele ter distribuído a informação de que um apito que acompanhava a caixa de cereais Captain Crunch reproduzia o som de 2.600 Hz necessário para enganar o sistema de cobrança da Bell, como uma blue-box fazia. 45 Apesar de ilegais, produziam-se blue-boxes para escambo e venda. Steve Wozniak aprendeu com Draper a tecnologia e construiu com Steve Jobs, sua versão de blue-box pouco antes de fundarem a Apple Computer. 189 transformação, a máquina é conduzida imponentemente por um Jobe com o corpo Julho de 2005 parece “puxar” o corpo torto de Jobe (fig. 176) e, já após a primeira fase de corpo conduzindo a máquina, ela é conduzida mentalmente por Jobe (fig. 179). Tanto em Lawnmower Man como e The Matrix, os protagonistas adquirem “poderes excepcionais, mágicos, empregando-os tanto nas ações destrutivas ou perturbadoras, quanto de modo construtivo, auxiliando os que se encontram em situações adversas” (cf. Queiroz, 1991, p.97). Mas, Jobe, conforme seus poderes sobrenaturais se desenvolvem, transforma-se em um personagem que vive também na fronteira do bem e do mal, nesse sentido mais próximo ainda da imagem do trickster, que não é nem uma entidade exclusivamente benfazeja ou malfazeja, como prega a mentalidade maniqueísta ocidental (cf. Queiroz, p.104), ao contrário de Neo, muito mais próximo do modelo messiânico. Os tricksters são “personagens que mediam o desejo da própria sociedade de Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | másculo e viril (fig. 178). Por fim, após transcender sua condição humana, não há tempo em que “realiza tudo aquilo que todos, secretamente, gostariam de fazer” | violar tabus" (Queiroz,1991, p.99). Objeto de fascinação e medo – porque ao mesmo cibernético” que se consolida a tendência mais evidente da cibercultura de se aproximar do mito, criando modelos lógicos para resolver contradições que são insuperáveis no plano da realidade (cf. Lévi-Strauss, s.d., p. 265). Imagens da Cibercultura • VI: As Figurações da Cibercultura (Queiroz, p.100), é ameaça à ordem social vigente – é na figura do “trickster 190 Imagens da Cibercultura • V: Conclusão | Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Agosto de 2005 V. CONCLUSÃO 191 humana uma entidade completa, independente de qualquer forma, exceto de Deus”, a romana é a mais importante. De acordo com o autor, os romanos herdaram dos Agosto de 2005 Mauss (p.369-397) nota que das raras culturas que “fizeram da pessoa noção de personagem: “de papel cumprido pelo indivíduo em dramas sagrados, assim como ele desempenha um papel na vida familiar”. A noção de pessoa foi parcialmente estabelecida pelos romanos que a tornaram um fato fundamental do direito, a persona civil, do qual eram excluídos, por exemplo, os escravos. Ao sentido jurídico da persona acrescentou-se o sentido moral, o sentido “de ser consciente, independente, autônomo, livre, responsável”. Mas foi na pessoa cristã que se deu a base metafísica consistente para a pessoa moral e para a unidade da pessoa: É a partir da noção de uno que a noção de pessoa é criada – acredito nisto há muito tempo – a propósito das pessoas divinas, mas simultaneamente a propósito da pessoa humana, substância e modo, corpo e alma, consciência e ato Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | etruscos o sentido original da palavra “persona”, associado à máscara e semelhante à É essa noção de pessoa indivisível que é destruída com o corpo cibernético. | (p.393). de acordo com Mauss, tem origem a noção de pessoa, a categoria do Eu, identificada ao Cogito e à consciência. Desde então, o corpo humano passa a ser visto como um suporte do espírito e cada vez mais identificado à imagem da máquina. A cibernética, por sua vez, propôs que essa imagem fosse muito mais do que uma simples metáfora. Aos olhos da cibernética, o corpo passou a ser, de fato, uma máquina. Esse olhar é, em grande medida, o olhar da sociedade contemporânea, resultado da influência que as idéias cibernéticas exerceram, a partir do último quarto do século XX, na cultura ocidental em geral, em especial por meio da indústria cultural e cultura de consumo, como foi observado por esta pesquisa. Imagens da Cibercultura • V: Conclusão Vale relembrar que as raízes desse corpo remontam à Renascença quando também, A ciência, longe de ser um repositório estanque de produção e conhecimento, é apropriada pelo “senso comum” na reavaliação funcional das categorias sobre as quais se assentam as possibilidades lógicas de apreensão do mundo (cf. Sahlins, 1990, p.9-10). É assim que o cibernético, o digital, o biônico, o genético, o eletrônico, o robótico, o nanotecnológico, idéias originárias das altas rodas científicas, transformaram-se em lugares comuns e importantes referências para lidar com as 192 computadores, clones e transgênicos. No contexto da cibercultura, o ciberespaço e o ciborgue são as categorias Agosto de 2005 contingências classificatórias trazidas pelos corpos-biônicos, realidades virtuais, possibilidades tecnológicas com a categoria do “Eu” 46 . Tanto as possibilidades abertas pelo virtual mediado por modelos computadorizados como a artificialização do organismo fundam-se na objetivação do corpo como um artefato e sua separação do Eu. A ausência do corpo no sonho da realidade virtual é a separação cibernética do cogito do corpo, não muito diferentemente de como Descartes enunciara, e a percepção do corpo como um “reservatório de partes destacáveis e manipuláveis” (Le Breton, 2003, p.83), sujeitas tanto a defeitos como melhorias, é inseparável do modo de ver o corpo inaugurado por Vesálio em seu De Humanis Corporis Fabrica. O ciberespaço e o ciborgue são, de fato, apesar de produtos de uma recente “revolução cibernética”, herdeiros de uma antiga tradição de conceber a categoria social do corpo. Nessa perspectiva, a cibernética coroou um longo processo de separação do Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | mais fundamentais pois são elas, justamente, que articulam – ou desarticulam – as | Eu do corpo e rompeu definitivamente com a indivisibilidade do corpo e do espírito, a pessoa do cristianismo. Com a cibernética, passou a dominar a tese de que a pela vulgarização do discurso cibernético e pelos avanços tecnológicos, a imagem de que o corpo é um mero acessório da pessoa, a ser descartado para a plena experiência no ciberespaço ou a ser melhorado para superar as limitações impostas pela natureza, tornou-se lugar comum. Boa parte da produção cultural contemporânea está inserida no contexto da cultura de massas, onde predomina a lógica do mercado e da produção industrial. Não é diferente com a cibercultura, ela própria uma especialização da cultura de massas. Predominantemente, a produção cibercultural se manifesta em produtos de Imagens da Cibercultura • V: Conclusão separação do corpo do cogito não é metafísica, mas fisicamente possível. Sustentada consumo e nos meios de comunicação de massas: a televisão, o cinema, a imprensa, a música, a literatura, as máquinas de entretenimento, as histórias em quadrinhos. Neles, os fragmentos dos discursos, metáforas e modelos explicativos da ciência e tecnologia dialogam com as transformações tecnológicas da nossa vida prática, que 46 Poder-se-ia adicionar, aqui, pelos mesmos motivos, o “clone” como outra categoria cibercultural fundamental. Mas aparentemente a clonagem ainda é motivo de grande confusão classificatória no senso comum, sendo mais freqüente encontrar, na cultura de massas, imagens ciborguianas que incorporam e mesclam as características do clone. 193 ciberculturais que, apesar de fantásticos, são logicamente concebíveis e mesmo plausíveis aos olhos do conhecimento científico de botequim. Agosto de 2005 está se tornando tão ou mais espetacular quanto os tecno-mundos dos filmes produção e de distribuição, o cinema também é o veículo privilegiado de disseminação das imagens relacionadas com a cibercultura. A despeito da temática super-futurista e das modernas técnicas de produção, as figurações da cibercultura manifestam-se sobretudo em um meio no qual predomina um tipo tradicional de visualidade e, pode-se acrescentar, o cinema é uma das formas de representação mais conservadoras das artes visuais contemporâneas. Praticamente ancoradas em um “modo de ver” renascentista47, as imagens fílmicas podem até mesmo ser hiperreais ou surreais, como demonstram, nesse sentido, o cinema impressionista e algumas maneiras de se incorporar a imagem sintética aos filmes. Contudo, muito raramente, a diegese de um filme será composta por imagens destituídas de “traços de realidade”. Mesmo quando resultados da síntese por computador, que desvincula Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Produto cultural indissociável da indústria de massas, pelo seu modo de | a produção da imagem e a existência material do seu referente, o resultado demonstra-se, com raras exceções, um ideal renascentista. Ao contrário do que vídeo, o cinema abstrato é raro e dificilmente sai de círculos sociais muito restritos. O corpo ciberespacial ou o corpo ciborguiano refletem um ideal no qual o corpo poderia ser manipulado como se manipulam as simulações de computador, onde se altera a cor de um objeto, sua espessura ou textura com o clique de um mouse. Esse ideal, quase que onipresente nos filmes, reflete a noção social de “corpo” na qual ele perdeu sua especificidade e, sendo considerado simples matéria, artefato, coisa, equipamento, máquina, também é esvaziado de sua sacralidade. Ainda que seja antiga a idéia da que o espírito é uma entidade independente do Imagens da Cibercultura • V: Conclusão ocorre em outras artes visuais, tais como a pintura, escultura e mesmo fotografia ou corpo, é apenas com as tecnologias cibernéticas que temos a ruptura de fato da unidade da pessoa. Nesse sentido, os filmes não são meros produtos do imaginário, mas manifestações da mesma mentalidade coletiva que tem de lidar com as mudanças tecnológicas que já se fazem sentir. A figurações da cibercultura tornaramse tão ricas e abundantes na cultura de massas porque, por mais fantásticas que sejam, elas fazem sentido e têm aderência com a realidade concreta das pessoas. É 47 Ver: III.2. A vida moderna e o olhar cinematográfico. 194 contexto fílmico e muito além dos videogames e próteses. O advento do “embrião” como categoria social é um exemplo que sintetiza a necessária adaptação da Agosto de 2005 inegável que o homem-virtual e o homem-máquina já se façam presentes fora do armazenamento e tráfego – e tráfico, algumas vezes – de pessoas potenciais, prontas para serem “plantadas” no útero. Aqui o embrião é visto como um proto-corpo, agregado de células, receptáculo minimamente viável de DNA, do qual pretende-se riscar qualquer traço de humanidade. O recém-nascido, assim produzido, assemelhase ao resultado de um processo de manufatura: “A criança entra na era de sua reprodutibilidade industrial (...)”. (cf. Le Breton, 2003, p.96 e p.98). O homem virtual também não é uma fantasia que existe apenas nas diegeses fílmicas. Como as moléstias e as deficiências do corpo passam a ser vistas como um defeito de fabricação do corpo artefato, cada vez mais, o homem potencial (o embrião) depende do homem virtual (a projeção de seu genótipo) para ser autorizado a se desenvolver. E, como demonstram as tendências médicas atuais, mesmo depois disso, viverá à Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | mentalidade coletiva frente a uma nova realidade prática: lidar com a produção, | sombra de seus genes e será visto como alguém limitado pelos defeitos de fabricação – predisposição ao câncer, ao enfarte, ao Mal de Alzheimer – atestados pelo eu O corpo da mentalidade cibercultural, além de ser herdeiro de uma longa tradição, também se antecipa às possibilidades de fato da ciência e tecnologia. Enquanto o futuro tecnológico realiza-se plenamente nos filmes, simulacros desse futuro já permeiam aspectos da vida do homem comum: seja no cabeleireiro ou no cirurgião plástico, a simulação de computador que mostra como ficará o corpo após passar pela tesoura ou pelo bisturi, é a caricatura de um futuro imaginário onde a mediação humana – do cabeleireiro, do cirurgião plástico – será eliminada por processos totalmente objetivos e automáticos, como a fotografia fez com o pintor que Imagens da Cibercultura • V: Conclusão genético (cf. Le Breton, 2003, p.90-93). imprimia a imagem da camera obscura sobre uma tela. É o que antecipam os filmes, onde o freqüente elogio à automatização das faculdades humanas manifesta o desejo de eliminar as distorções e imperfeições introduzidas pelo homem. Nos futuros imaginativos da cibercultura, fílmicos ou não, as tecnologias de redesign e reconstrução orgânica serão tão desenvolvidas que nosso corpo nada mais será do 195 tecnologias de CAD/CAM48. Ao lado da constatação de que a cibercultura e o modo de ver Agosto de 2005 que o equivalente biológico dos protótipos e mock-ups fabricados pelas atuais não pôde passar despercebido o olhar etnocêntrico que vez ou outra se manifesta nas imagens da cibercultura. Seja como um Oriente degenerado que contamina o mundo, como em Blade Runner, ou como algo que o Ocidente admira porém supera, como em The Matrix, é evidente que há, nos filmes ciberculturais em geral, uma perspectiva que generaliza e circunscreve o oriental e as coisas orientais de forma análoga ao tratamento dado ao cibernético. A presença do Oriente nesses casos pode estar relacionada com a afinidade simbólica entre o asiático do imaginário ocidental e a ambigüidade que permeia a cibercultura de uma forma geral. Colocado em uma categoria de estranhamento similar à que as criaturas e espaços cibernéticos ocupam, o asiático e os estereótipos de sua cultura são necessariamente “objetos alienígenas”, mesmo que as cenas sejam ambientadas em território Oriental, neste Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | cinematográfico estão profundamente enraizados na cultura e história do ocidente, | caso apenas um território a ser “conquistado”. Além disso, o personagem de aparência asiática é caracterizado como um fragmento estereotipado do Oriente, tal conclusão, o fato de que, ao contrário, um personagem representado por um ator de aparência negra não é caracterizado como um “pedaço da África”. Certamente isso não significa que a negritude não esteja sujeita a outros tipos de discriminação, cujo melhor indicador é a escassez de atores negros nos filmes ciberculturais até produções mais recentes, a partir de quando passaram a pesar regras da “inclusão racial” e do que é politicamente correto. Contudo, mesmo assim, na maioria dos casos em que há um personagem representado por ator de aparência negra nos filmes analisados, não é difícil supor que ele possa ser representado por um ator de Imagens da Cibercultura • V: Conclusão como os ideogramas, as roupas típicas e as artes marciais. Corrobora para essa aparência branca ou vice-versa. Por fim, alguns comentários acerca do caráter mitológico das narrativas ciberculturais devem ser feitos. Foi observado que, como figurações de mundos imaginários, as imagens da cibercultura também abrem possibilidades para reencantar aquilo que foi desencantado pela modernidade. Contudo, longe de 48 Acrônimo de computer-aided design / computer-aided manufacturing. Os sistemas CAD/CAM permitem que um projeto desenhado por computador seja executado diretamente por uma máquina, sem a intermediação humana. 196 vantagens da modernidade. De fato, são as próprias racionalizações tecnológicas e científicas a inspiração para as construções fílmicas que ultrapassam as raias do Agosto de 2005 constituir uma crítica, o reencantamento proposto pela cibercultura não abre mão das (...) parece que a sucessão dos acontecimentos não está aí sujeita a nenhuma regra de lógica ou de continuidade. Qualquer sujeito pode ter um predicado qualquer; toda relação concebível é possível (Lévi-Strauss, s.d., p.239). Na maioria dos filmes analisados também foram encontrados, a exemplo do que Lévi-Strauss observa em relação aos mitos, uma trama baseada em um ponto de partida e de chegada que são invariáveis (cf. Lévi-Strauss, s.d., p.257) e um conjunto de variantes que são combinadas para cumprirem funções análogas dentro das diferentes narrativas que são, na verdade, também análogas entre si (cf. LéviStrauss, 1987, p.169). Nestes filmes, o ponto de partida é o surgimento de uma máquina ou máquinas com características humanas que ameaçam a ordem e a Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | absurdo. Nessas construções, como em um mito, tudo pode acontecer: andróides de Blade Runner, o MCP de Tron, o WORP de Wargames, o Exterminador | existência do sistema ao seu redor: Hal 9000 de 2001: A Space Odyssey, os Star Wars. Tais máquinas-gente confrontam-se com heróis que são figuras comuns das tramas ciberculturais e que foram aqui denominados de tricksters cibernéticos, em vista das similaridades que têm com certos heróis míticos (cf. Lévi-Strauss, s.d, p.237-276; cf. Queiroz, 1991, p.93-107). Assim como seus pares dos mitos tradicionais, os tricksters dos filmes ciberculturais são personagens liminares e ambíguos, muitas vezes tão ambíguos quanto as ameaças contra as quais eles lutam. Mas, ao contrário destes, os tricksters cibernéticos, ainda que dependam da tecnologia ou do acoplamento de máquinas, possuem alguma característica humana ou poder mágico fora do alcance da tecnologia, permitindo-lhes agenciar – o ponto de Imagens da Cibercultura • V: Conclusão de The Terminator, a Matrix e seus agentes de The Matrix e mesmo Darth Vader de chegada desses mitos – o restabelecimento da ordem ou instauração de uma nova ordem. Lido como mitos, os filmes ciberculturais não só dão forma aos medos e ansiedades provocados pela tecnologia, como também são meios de superar, no plano do mito, contradições que são insuperáveis na vida real. Daí a importância do trickster e a razão de suas características ambíguas: “porque ele retém qualquer coisa da dualidade que tem por função superar” (Lévi-Strauss, s.d., p.261). É só 197 menos imaginariamente, parte da mágica que foi esvaziada pela mesma ciência e tecnologia que lhe dá forma. Mas, no fundo, talvez eles nada mais sejam do que Agosto de 2005 porque as contradições coexistem no trickster cibernético que é possível restituir, ao cibercultura – seriam somente a conciliação ilusória e artificial de contradições que, no limite, traduzem-se no confronto entre a fantasia de onipotência do homem e a mortalidade de seu corpo. | sentido os tricksters cibernéticos – os Blade Runners, hackers e ciborgues da Imagens da Cibercultura • V: Conclusão produtos do mesmo desencantamento do mundo que pretendem superar. Nesse Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | sucedâneos ao qual se colou uma película de magia, pouco mais do que refinados 198 Julho de 2005 VI. BIBLIOGRAFIA <http://www.inform.umd.edu/EdRes/Colleges/ARHU/Depts/History/Faculty/JAbbate/cy borg/cyborg.html>. Acesso em: 12 abr 2004. ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:Zahar, 1985 (1944). AMERICAN SOCIETY FOR CYBERNETICS. 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País de produção: EUA; Reino Unido. Produtora: Metro Goldwyn Mayer. Ano de produção: 1968. Disponível em: DVD (148 min), wide screen, color, Warner Home Video Brasil, 2001. BLADE Runner (Blade Runner: o Caçador de Andróides). Direção: Ridley Scott. Produção: Michael Deeley. Intérpretes: Harrison Ford (Rick Deckard); Rutger Hauer (Roy Batty); Sean Young (Rachael); Edward Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | VII. FILMOGRAFIA País de produção: EUA. Produtora: Blade Runner Partnership; The Ladd | James Olmos (Gaff) e outros. Roteiro: Hampton Fancher e David Peoples. screen, color, Warner Home Video Brasil, 1998. Baseado na novela “Do androids dream of eletric sheep?” de Philip K. Dick. JOHNNY Mnemonic (Johnny Mnemonic: o Cyborg do Futuro). Direção: Robert Longo. Produção: Don Carmody. Intérpretes: Keanu Reeves (Johnny Mnemonic); Dina Meyer (Jane); Ice-T (J-Bone); Takeshi Kitano (Takahashi); Dennis Akayama (Shinji); Dolph Lundgren (Street Preacher) e outros. Roteiro: William Gibson. País de produção: Canadá; EUA. Produtora: Alliance Communications Corporation; Cinévision; TriStar Imagens da Cibercultura • VII: Filmografia Company. Ano de produção: 1982. Disponível em: DVD (117 min), wide/full Pictures. Ano de produção: 1995. Disponível em: DVD (98 min), color, wide/full screen, Columbia Tristar Home Video, 1997. Baseado no conto “Johnny Mnemonic” de William Gibson. LAWNMOWER Man, The (O Passageiro do Futuro). Direção: Brett Leonard. Produção: Gimel Everett. Intérpretes: Pierce Brosnan (Lawrence Angelo); Jeff Fahey (Jobe Smith); Jenny Wright (Marnie Burke); Mark Bringleson (Sebastian Timms); Geoffrey Lewis (Terry McKeen) e outros. Roteiro: Brett Leonard; Gimel Everett; Stephen King. País de produção: 209 New Line Cinema. Ano de produção: 1992. Disponível em: DVD (113 min), Julho de 2005 EUA. Produtora: Allied Vision; Fuiji Eight Co.; Lane Pringle Productions; THE MATRIX (Matrix). Direção: Andy Wachowski; Larry Wachowski. Produção: Joel Silver. Intérpretes: Keanu Reeves (Neo / Anderson); Laurence Fishburne (Morpheus); Carrie-Anne Moss (Trinity); Hugo Weaving (Agent Smith); Joe Pantoliano (Cypher); Marcus Chong (Tank) e outros. Roteiro: Andy Wachowski; Larry Wachowski. País de produção: EUA. Produtora: Groucho II Film Partnership; Silver Pictures; Village Roadshow Pictures. Ano de produção: 1999. Disponível em: DVD (136 min), color, wide screen, Warner Home Video, 1999. METROPOLIS (Metrópolis). Direção: Fritz Lang. Produção: Gale Anne Hurd. Intérpretes: Alfred Abel (Johhan Fredersen); Gustav Fröhlich (Freder Fredersen); Brigitte Helm (Maria / Der Maschinen-Mensch / o Robô) e Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | wide screen, color, New Line Home Video, 1997. (UFA). Ano de produção: 1927. | outros. País de produção: Alemanha. Produtora: Universum Film A.G. Spielberg. Produção: Jan de Bont; Bonnie Curtis; Gerald R. Molen; Walter F. Parkes. Intérpretes: Tom Cruise (John Anderton); Colin Farrell (Danny Witwer); Steve Harris (Jad); Max von Sydow (Lamar Burgess); Samantha Morton (Agatha); Kathryn Morris (Lara Anderton) e outros. Roteiro: Scott Frank e Jon Cohen. País de produção: EUA. Produtora: 20th Century Fox; DreamWorks SKG; Amblin Entertainment; Blue Tulip. Ano de produção: 2002. Disponível em: DVD (148 min), wide screen, color, Twentieth Century Fox Home Entertainment Brasil, 2003. Baseado no conto “Minority Report” de Philip K. Dick. Imagens da Cibercultura • VII: Filmografia MINORITY Report (Minority Report: a Nova Lei). Direção: Steven TRON (Tron: Uma Odisséia Eletrônica). Direção: Steven Lisberger. Produção: Donald Kushner; Steven Lisberger. Intérpretes: Jeff Bridges (Flynn / Clu); Bruce Boxleitner (Alan / Tron); David Warner (Dillinger / Sark / voz do Master Control Program); Cindy Morgan (Lora / Yori); Barnard Hughes (Dr. Walter Gibbs / Dumont) e outros. Roteiro: Steven Lisberger; Bonnie MacBird. País de produção: EUA. Produtora: Lisberger-Kushner; Walt Disney Pictures. Ano de produção: 1982. Disponível em: DVD (96 min), color, wide screen, Buena Vista Home Entertainment, [s.d.]. 210 Schneider. Intérpretes: Matthew Broderick (David Lightman); Dabney Julho de 2005 WARGAMES (Jogos de Guerra). Direção: John Badham. Produção: Harold Sheedy (Jennifer Katherine Mack); Barry Corbin (Gen. Jack Beringer) e outros. Roteiro: Lawrence Lasker; Walter F. Parkes. País de produção: EUA. Produtora: MGM; Sherwood; The Leonard Goldberg Company. Ano de produção: 1983. Disponível em: DVD (113 min), wide screen, color, MGM Home Entertainment, 1998. STAR Wars: A New Hope (Guerra nas Estrelas: Uma Nova Esperança). Direção: George Lucas. Produção: Gary Kurtz, George Lucas. Intérpretes: Mark Hamill (Luke Skywalker), Harrison Ford (Han Solo), Carrie Fisher (Princess Leia Organa), Peter Cushing (Grand Moff Tarkin), Alec Guinness (Ben Obi-Wan Kenobi) e outros. País de produção: EUA. Produtora: Lucasfilm Ltd. Ano de produção: 1977. Joon Ho Kim @ Depto. Antropologia • FFLCH • USP | Coleman (Dr. John McKittrick); John Wood (Dr. Stephen Falken); Ally Cameron. Produção: Erich Pommer. Intérpretes: Arnold Schwarzenegger | TERMINATOR, The (O Exterminador do Futuro). Direção: James Connor) e outros. País de produção: EUA. Produtora: Hemdale Film Corporation; Cinema 84; Euro Film Fund; Pacific Western. Ano de produção: 1984. Imagens da Cibercultura • VII: Filmografia (o exterminador); Michael Biehn (Kyle Reese); Linda Hamilton (Sarah 211