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Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias
MEMÓRIAS E NARRATIVAS NA (RE)CONSTRUÇÃO DAS PAISAGENS
AMAZÔNICAS MARAJOARAS
Flávio Leonel Abreu da Silveira1
Cristiane do Socorro Gonçalves Farias2
RESUMO
Neste artigo procura-se entender o cotidiano dos marajoaras que vivem na região dos
furos, às margens do Rio Pará, no município de Curralinho. Para tanto, privilegia-se as
suas narrativas – e a mitopoética que delas emana - amalgadas às suas vivências
junto ao meio aquático e às paisagens nas quais estão inseridos. Sendo assim, a partir
da vida vivida naquele contexto, os narradores evocam as imagens de seres
fantásticos que povoam o imaginário local, como o boto, a mãe do mato e a cobra
encantada, que surgem misteriosamente para animar as paisagens sensíveis
marajoaras.
Palavras Chave: Marajó, narrativas, paisagens, seres fantásticos, água
1 O LUGAR E SUAS PAISAGENS
Este trabalho surge com o intuito de (re)pensarmos as relações dos
amazônidas, aqui em especial os ribeirinhos das várzeas do Marajó situadas
nas regiões de rios e florestas, com as paisagens míticas evocadas por meio
das narrativas que emergem a partir de suas próprias vivências, portanto,
experienciadas no cotidiano, as quais se misturam constantemente com as
paisagens que fazem parte de suas vidas.
A nossa perspectiva é a de um diálogo interdisciplinar que envolva os
campos da Antropologia e da Narratologia, aliados aos estudos de memória.
Nestes termos, o artigo em questão é o reflexo de encontros com pessoas que
habitam Curralinho, no contexto da Ilha do Marajó (PA) – situada no nordeste
do Estado do Pará, na chamada zona fisiográfica do Marajó e Ilhas. É preciso
1
Doutor em Antropologia e professor adjunto na UFPA. Pesquisador do CNPq.
Aluna de mestrado do programa de Pós-graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia UFPABragança.
2
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deixar claro que todos os interlocutores são oriundos de localidades do interior
do município, portanto, as suas narrativas giram em torno de suas memórias,
posicionadas em relação às diversas experiências com seus lugares de
pertença.
Nesse sentido, propomo-nos a entrar em um determinado espaço social
e existencial a fim de tentarmos compreender, ou ainda, interpretar, as
narrativas que foram ouvidas/recolhidas ao longo do ano de 2013 junto aos
moradores dessa região de várzea, recortada por muitos rios e matas.
Interessa-nos refletir sobre os temas de suas narrativas, ou seja, nosso
interesse gira em torno do que eles contam e, a partir daí, dos seus vínculos
simbólico-afetivos com as paisagens praticadas cotidianamente.
Como dito antes as paisagens aqui pensadas pertencem a uma cidade
localizada na Ilha do Marajó, grande ínsula - com uma área de 40.100 km², é
considerada a maior ilha flúvio-marinha do mundo - que constitui com outras
menores o Arquipélago do Marajó, situado no estado do Pará, e cercado pelos
rios Amazonas e Tocantins, bem como pelo Oceano Atlântico. Sabe-se que
com a chegada dos portugueses foi criado o Baronato da Ilha Grande de
Joanes, como então era conhecida a ilha, que estava dividido em 13 distritos,
um desses é hoje a cidade de Curralinho.
Primeiramente, a área do município fora uma fazenda particular cujos
proprietários dispunham de muitas relações comerciais na região. Naquela
época, o lugar constituía-se num porto de parada obrigatória das embarcações
e dos regatões que subiam e desciam o rio, realizando o comércio junto as
comunidades existentes ao longo dos cursos de água. Pela sua localização e,
também, devido a grandes propriedades, pessoas ligadas aos proprietários
para lá se dirigiram, e com autorização, fixavam suas moradas.
Em pouco tempo formava-se um núcleo populacional de relativa
expressão. Com isso, a localidade prosperou, e em 1850, adquiriu a categoria
de Freguesia sob a denominação de São João Batista de Curralinho,
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constituindo-se no município de Curralinho alguns anos mais tarde. O lugar
acolheu, também, muitos aventureiros - portugueses, italianos, turcos,
japoneses, cearenses, entre outros - que vinham em busca de riquezas,
fixando residência e negócios que contribuíram para tornar o local mais
populoso.
Nota-se que a partir do início do século XX, com a chegada desses
aventureiros e o advento de seus negócios, o desenvolvimento local toma
novos rumos, associado à produção na zona rural, com a extração de frutos
que a terra oferecia e o trabalho de lavoura. Os comerciantes, em contrapartida
traziam os produtos para a troca, entre eles o peixe salgado, os cachimbos, o
jabá, alguns tecidos, entre outras coisas. As atividades extrativistas das
sementes locais como a andiroba, a ucuuba, a copaíba (o seu óleo), bem como
as madeiras, que nessa época eram lavradas a machado, ocorriam no período
do inverno Amazônico, enquanto que a extração da borracha, a manutenção
das roças com a plantação de arroz e banana, principalmente, se dava no
período de verão, quando se concretizava a troca dos produtos.
A população sobrevivia à época – mas, em parte ainda sobrevive - da
pesca artesanal de pequenos peixes e camarões, os quais são até hoje
vendidos no
próprio mercado interno. Recentemente houve um alto
crescimento na extração do açaí, fruto muito consumido em toda a cidade e
interior, fazendo com que a economia da cidade se elevasse no tempo de safra
do fruto, que vai de setembro a dezembro. A cidade cresce desordenadamente,
sem estruturas básicas, sem políticas públicas consistentes, além disso, não há
fábricas ou empresas na cidade, desta forma, os moradores sobrevivem da
renda oriunda da prefeitura ou de pessoas que recebem benefícios do governo,
bem como do pequeno comércio que foi se constituindo ao longo do tempo.
A principal via de entrada e de saída dos moradores, visitantes e
vendedores na cidade ocorre através do rio Pará ou Guajará. Quando a cidade
é vista de longe, a partir de um barco que navega, um tempo nostálgico nos
toma os sentidos, principalmente se nos debruçamos sobre o batente do barco
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e ficamos a admirar - um tempo
sensível de devaneio - observando
aquela paisagem que se conecta:
céu, terra e rio, juntos, parecem
dar as boas vindas ao navegante.
E é esse rio que leva e traz
pessoas, conduzindo por meio de
sua força agitada e turbulenta à
cidade, aos furos e aos meandros que constituem uma topografia regional
dinâmica e fantástica, que as bagagens de histórias viajam, sendo
trazidas/levadas/ressignificadas
pessoas
que
circulam
por
pelas
lugares
outros situados além ou aquém do
município.
2 REMINISCÊNCIAS, OU A VIBRAÇÃO DAS IMAGENS DE OUTRORA
Os vínculos simbólico-afetivos com as paisagens de pertença se
relacionam intimamente com as histórias de vida dos sujeitos em relação com
os lugares praticados, indicando trajetórias e possibilidades de construção de si
que revelam, a partir do trabalho da memória e da consequente tessitura da
narrativa, tanto os aspectos das experiências vividas outrora quanto um
(re)pensar acerca das localidade dos espaços onde o sujeito se situa em
relação ao (seu) mundo. A partir deste ponto do artigo fazemos uma incursão a
este universo sensível através das rememorações de um dos autores que
nasceu e tornou-se adulto na cidade de Curralinho.
O ato de narrar histórias é uma prática corrente – e de longa data - entre
os moradores do núcleo urbano e do interior do município e, não raro, pode(ria)
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estar associado à certa sazonalidade em relação aos recursos disponíveis às
pessoas, neste caso, trata(va)-se, mais especificamente, de um tempo de
escassez. É por isso que uma criança quando dirigia-se ao interior com sua
família, a fim de deixar passar aquele que era considerado um tempo ruim na
cidade - de maneira que o grupo familiar pudesse extrair da natureza as
dádivas que ela podia oferecer, tais como os peixes, os camarões, as caças, os
frutos, ou seja, os alimentos que não eram preciso pagar –, que ela poderia
ouvir com frequência as histórias narradas pelos adultos.
De qualquer maneira brincava-se muito com barquinhos feitos de miriti,
com bonecas elaboradas da vassoura de açaí e as panelinhas do barro que era
retirado na beirada do rio ou dos igarapés; os piões, os bichinhos moldados na
pitaíca3 e na pracuuca4. Os banhos eram tomados na Prainha, e muitos botos
foram vistos próximos a ponta da mamorana5.
3
Semente da árvore Pitaiqueira, que ao comando da mão, e com ajuda de uma faca, tomava
várias formas, inclusive, a forma de um boi. Colocava-se palitos imitando as pernas, a partir daí
a semente ficava em pé parecendo com o animal.
4
Semente da planta denominada de pracuubeira.
5
A ponta é uma saliência de terra que adentra o rio e, nesse caso, encontrava-se repleta de
mamoranas, árvore típica da beira do rio, sendo ela uma espécie de cacau selvagem.
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Por isso, a partir das seis horas da tarde ao por do sol ninguém se
atrevia a ficar na beira da praia, todos ficavam observando da janela da
pequena casinha os botos que pulavam para fora da água, parecendo saber
que estavam sendo observados. Passado o dia, os compadres do patriarca e
do tio chegavam e se reuniam no único compartimento da casa – chamado de
tapiri6, sem paredes laterais, no entanto, esse tinha as paredes da frente com
uma porta e uma janela voltada para o rio.
A janela que nessas horas é o lugar de descanso dos braços, do corpo e
da mente, momento em que as pessoas se proporcionam certo devaneio,
perceptível no olhar distante. A casinha apresentava-se rodeada por florestas.
Um fogão a lenha, um jirau7, alguidar8 e peneiras9, além de um pote de barro10,
6
Moradia feita de madeira bruta, geralmente não possuem paredes laterais, sendo cobertas
com palha.
7
Espécie de estrado feito de madeira mais elevado que o chão da casa, serve para as pessoas
cuidarem dos seus afazeres domésticos, como um apoio para as tarefas, podendo ser
considerado como uma espécie de pia.
8
Trata-se de um tipo de cerâmica feita de barro que toma o formato de uma bacia, serve de
depósito para o vinho do açaí, para o peixe salgado, entre outros.
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eram os únicos utensílios de valor que a casa possuía. Tod os arrumados para
dormir, as crianças, cada uma na sua redinha, a lamparina11 acesa - o objeto
que oferecia luz no interior da habitação. Café pronto, barulho de remos
encostando no trapiche improvisado12, os compadres chegavam e se
acomodavam em círculo sentados no chão, quando o tabaco começava a ser
enrolado delicadamente no abade. A lamparina iluminava os contadores
presentes na roda de pessoas. O seu tênue clarão batia no telhado sem forro,
feito de palhas, propiciando ao ambiente uma aura de mistério.
As crianças dormiam ou
fingiam o sono para ouvir as
histórias,
permanecendo
na
rede, imóveis e em silêncio. A
luz
da
pequena
lamparina
colocada no meio da roda,
permitia ver o reflexo batendo
na palha que compunha o
telhado, ouvidos atentos para
todas as histórias maravilhosas
que brotavam da voz de seu Banana13, de seu Jabuti, de tia Zeca, e daquele
que parecia ser um grande narrador, o seu Pepira, como é carinhosamente
chamado até hoje. Ele era um contador especial, um performer, principalmente
pelo seu entusiasmo, por sua risada espalhafatosa e suas histórias arrepiantes
e belas sobre o boto, a cobra, as tantas visagens. Tudo verídico, como ele
mesmo dizia.
9
Cesto feito de tala de arumã, de jacitara ou de miriti que é bastante utilizada na pescaria,
onde os pescadores depositam seus pescados.
10
Vasilhame feito de barro muito utilizado para depósito de água.
11
Objeto feito de lata ou vidro, onde é colocado um pavio encharcado de querosene, utilizado
para iluminar o ambiente.
12
Tronco de miriti que a noite ao bater o luar parecia se transformar em uma linda e misteriosa
cobra grande.
13
Todas essas pessoas eram chamadas pelos seus apelidos e não pelo nome de batismo.
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Essas vozes vibravam entre as crianças, tratando-se de verdades
incontestáveis, uma vez que ninguém convenceria do contrário acerca do que
contavam ali, pois “a impressão” que persistia “no ouvinte [era a] de uma
fidelidade menos contestável do que na comunicação escrita ou diferenciada,
de uma veracidade mais provável e [portanto] mais persuasiva” (ZUMTHOR,
2010, p.30).
Essa voz evocadora da continuidade da tradição do contar, do narrar,
constituía, assim, a perdurância de formas sensíveis relativas às manifestações
do imaginário ligado ao mundo da várzea, das florestas ribeirinhas. A sua força
evocativa das imagens mostra como esses sujeitos se inserem e se imbricam
nesses espaços que mesclam o prático e o mítico. Novamente é Zumthor
(2010, p. 52) que nos auxilia ao afirmar que “ninguém duvida que a capacidade
de contar seja definidora do estatuto antropológico; de que as lembranças, os
sonhos, os mitos, as lendas, a história e tudo mais constituam juntos, a
maneira pela qual os indivíduos e grupos tentam se situar no mundo”.
A simbólica das imagens naquele contexto, portanto, ligava-se a um
conjunto complexo de agências de humanos, não humanos (viventes ou não) e
sobre-humanos relacionados entre si, cuja potência vibrava no lugar (e por
isso, persiste nas memórias pessoais e coletivas): as histórias fantásticas - a
lembrança da fulguração da voz - a luz bruxuleante cedida pela lamparina e a
roda de gente formavam uma paisagem misteriosa repleta de vida e de
emoções. Neste sentido, a luz enquanto uma expressão das “forças
fecundantes uranianas” representa o calor que possibilita a vida, o começo
desde a saída das trevas (CHEVALIER, 2012, p.567). Ela se associa à roda
constituída pelas pessoas – a qual se materializa no círculo - que o mesmo
autor afirma ser, na sua forma fechada, algo que simboliza a proteção aos que
estão dentro de seus limites.
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O ato de narrar do
contador, portanto, é uma
experiência performática que
só pode existir na relação
sensível e complexa com a
plateia, pois as agências de
ambos
constituem
expressão
como
formal
dimensão
do
a
rito
da
socialidade naquele contexto
marajoara, onde os mitos
afloram e reverberam sua
imagética
sutil,
cujas
pulsações do mistério vibram
nas memórias do lugar e de
suas gentes.
3 O CONTEXTO E A FULGURAÇÃO DAS PAISAGENS
Ao falarmos em cultura necessariamente tocamos no tema da
linguagem, vislumbrando-a, nestes termos, a partir de suas diversas facetas
produtoras de comunicação, portanto, está longe de nossas intensões neste
artigo a possibilidade de separá-las, pois são elas que, no seu entrelaçamento,
contribuem na estruturação das diversas sociedades humanas. Ora, usamos a
linguagem como extensão do corpo e da natureza, sendo essa mesma
pluralidade da linguagem o que nos auxilia na manutenção de laços complexos
dos sujeitos entre si e deles com o mundo (e, assim, como os não humanos e
os sobre-humanos), os quais sempre se renovam de acordo com as paisagens
em que estão inseridos desde suas agências.
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As paisagens – fantásticas ou não - (re)constituídas pelas narrativas na
Amazônia, propiciam a emergência de inúmeras vozes, e essas vozes
pertencem, por certo, às tantas gentes amazônidas cujas experiências de vida
estão
profundamente
imersas/envoltas nas águas,
florestas, bichos e marés. O
homem
integrado
tensionalmente
à
natureza
transforma e é transformado
por ela: com as oscilações da
maré,
ora
enchente
ora
vazante, que levam e trazem
canoas,
gentes,
mururés14,
lembranças, alegrias, tristeza, esperanças e, por
fim, histórias submersas nas águas da memória –
por vezes, referidas a mundo subaquáticos, aos seres misteriosos do fundo das
águas - histórias essas que não são separadas das suas vivências, porque
vividas a partir do cotidiano, o que permite o olhar calmo e sensível, evocador
do maravilhoso.
As pessoas que tiram o seu sustento da terra hoje, são as mesmas que
de forma admirável se prostram à grandeza e exuberância das paisagens
diante de seus mistérios e epifanias. Elas, cujo passado está marcado por
lutas, mortes e destruições em nome de um processo civilizatório que avança
sobre as fronteiras, e que, atualmente, precisam lidar com o advento das novas
tecnologias
que
alcançam
as
pequenas
localidades,
nem
por
isso,
abandonaram certas práticas e crenças de seus antepassados, especialmente
nas áreas interioranas do município15.
14
Planta aquática que cresce estendendo-se sobre a superfície das águas calmas, no entanto, quando
começa a vazante ou a enchente das águas se aglomeram na boca dos lagos, rios, igarapés, furos em
grande quantidade.
15
José Veríssimo (2013) oferece um conjunto de imagens que, considerando algumas modificações, ainda
é recorrente para a região pesquisada. Conforme o autor: “Nos lugares alagados de beira-rio, com certas
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Sendo assim, nota-se que as paisagens atuais ainda são muito
parecidas com aquelas de outrora, como as que José Veríssimo descreveu.
Mesmo considerando-se o “progresso” que com o passar do tempo chegou à
região, quando percorremos os rios e ruas das localidades é possível, ainda,
perceber a mesma conformação das moradias descritas pelo autor, pois se as
casas não são mais de paxiúba ou de miriti, muito menos amarradas com
cipós, conservam uma estrutura que ainda lembra tais descriçõ es, mesmo em
contraponto com outras habitações muito mais elaboradas.
Entretanto, falar acerca das paisagens, em especial na Amazônia, é
falar de contextos – e territórios - detentores de complexidades que se colocam
ao pesquisador que adentra tais universos, que no contemporâneo não se
apresentam mais como lugares distantes e isolados – aliás, porque nunca
foram -, pois estão interligados física ou virtualmente (rádio; televisão; celular;
internet; WhatsApp, entre outros) a outras localidades da região, ou mesmo,
desde um processo de globalização cultural as
demais partes do mundo.
porções do Amazonas entre o Pará e o Gurupá e em todo o Litoral do arquipélago do Marajó (...) erguem
as casas sobre paliçadas (...) Nada ali é vindo de estranhas terras, tudo (...) proveio, quase sem esforço, da
natureza ao redor. O madeiramento para a casa, o cipó, que faz a vez do prego (...) a matéria do tipiti (...)
o barro e a argila (...). O prato é muitas vezes a cuia, como o pote ou o cântaro é a cuiambuca ou o jumaru
(...) A mata fornece-lhes ainda a caça, o rio e o peixe, a terra frutos, com mão pródiga, e com tudo isso,
que profunda não é a sua miséria”. (Veríssimo, 2013, p. 94)
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Hoje em dia, um objeto básico que figura nas paisagens domésticas,
tanto na zona rural quanto na urbana, é a antena parabólica. Dessa forma as
pessoas tem acesso a muitas notícias e entretenimentos, sendo que algumas
comunidades mais bem organizadas já possuem internet. Os telefones móveis
estão cada vez mais acessíveis. Portanto, por meio de tais tecnologias obtêm
informações em tempo real. Além disso, a presença de embarcações mais
rápidas
permitem
diminuir
as
distâncias.
Por certo, muitas paisagens se
transformaram ao longo do tempo,
tanto pelas agências humanas quanto
por aquelas de caráter não humano,
ocasionadas
pela
dinâmica
das
águas, por exemplo. Das interações
que
ocorrem
entre
homem
e
natureza, emanam experiências que
nos
levam
a
pensar
sobre
a
importância das agências simbólicopráticas, que nos termos de Simmel (1996) desdobrar-se-iam nos “formismos
das paisagens”, e que seguindo Durand (1989), revelariam um conjunto de
imagens/imaginário16 que constelaria aderido/imerso/sobreposto aos lugares,
quando a participação dual da natureza e da cultura se manifesta17.
4 OS PERSONAGENS E A ARTE DE NARRAR
16
Para Maffessoli (2001) “o imaginário é uma realidade (...) quando o real é acionado pela eficácia do
imaginário das construções do espírito", ou ainda, para o autor “[o] imaginário permanece uma dimensão
ambiental, uma matriz, uma atmosfera. Aquilo que Walter Benjamin chama de aura. O imaginário é uma
força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não
quantificável”(2001, p.75).
17
Nestes termos “[p]ermutas dessa ordem possibilitam que cosmologias específicas aflorem em contextos
culturais e ecológicos particulares, nos quais os grupos humanos estabelecem seus vínculos com o meio
biofísico: mitos, fabulações e lendas extravasam do universo imaginal como manifestações da potência
subterrânea das imagens e o resultado das interações entre o mundo social e o ambiente experienciados no
cotidiano, sendo este vivido enquanto “acontecer” no tempo” (SILVEIRA, 2009, p.75).
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As narrativas coletadas para este artigo resultam do trabalho de campo
junto aos contadores de histórias que moram em bairros periféricos da cidade
de Curralinho, as narrativas aqui apresentadas surgiram das entrevistas e
conversas tidas com seu Pedro, dona
Zeca e seu Fernando. Todos com
lembranças
da
infância,
juventude,
vividas nos seus lugares de origem.
Pedro é um jovem senhor de 53 anos,
casado com dona Zeca. Sempre foi um
homem do “mato”, como gosta de
afirmar, mas depois que deixou o interior as coisas se tornaram difíceis na
cidade, ponderou. Atualmente trabalha com concertos de motores, geradores,
entre outros. É um homem alto, magro e de cabelos grisalhos. Em sua rede
simples atada no único compartimento de sua casa de alvenaria que ainda não
foi concluída, conversou e contou um pouco de sua vida, de sua história. Pouco
a pouco foram surgindo as narrativas que ele mesmo diz não ter o hábito de
contar, pois as “pessoas não acreditam”.
Trata-se
de
episódios
que
ocorreram nas suas andanças pelos
interiores, quando se dirigia a certos
lugares para pescar ou caçar. Tivemos a
oportunidade,
dias
depois,
de
acompanha-lo em uma dessas viagens
de barco. Ele não dispensa certos
hábitos e prazeres adquiridos na cidade,
pois não deixa um dia sequer de beber uma cerveja e de fumar o seu cigarro.
Dona Maria José, ou Zeca (49 anos), como é chamada. Possui estatura
baixa, cabelos curtos e é muito falante. A senhora foi criada pela avó. Afirmou
que sempre teve uma vida dura no interior, pois trabalhou em atividades
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pesadas para se sustentar e ajudar sua mãe-avó no que podia, o respeito e a
admiração que nutre por ela surgiam a todo tempo em sua fala.
Zeca contou que veio morar na cidade há mais de quinze anos e nunca
mais voltou ao interior. O casal abandonou o lugar onde moravam quando
perceberam que não tinham mais condições de deixar os filhos sem escola,
pelo fato de que no local era oferecido ensino até a quarta série. Ela possui três
filhos com seu Pedro.
Seu Fernando tem 49 anos. Muito cedo teve que aprender a lutar pela
sobrevivência, a viver sozinho, ou melhor, a criar seus seis irmãos menores
devido a morte prematura de seus pais. Há 11 anos deixou o interior e veio
para a cidade, movido pela necessidade de que seus filhos tivessem mais
oportunidades nos estudos, possibilidade que ele não teve. Até hoje seus
irmãos mais novos o consideram como um pai, todos lhe respeitam e, acima de
tudo, reverenciam a sua coragem.
A partir da convivência com os três narradores fica claro para nós que a
memória sempre foi uma via fundamental para a conservação de histórias do
seu grupo social e, portanto, dos ensinamentos repassados de geração a
geração por meio do ato de narrar. A oralidade, nestes termos, desempenha
papel importante como expressão sensível de estar com o outro, bem como de
partilhar experiências e sentidos no mundo18. O passado como um tempo
distante, a partir do momento em que a memória é elaborada/trabalhada (Bosi,
1994) como exercício de rememoração, permite que as lembranças que
emergem sejam (re)atualizadas e (re)apresentadas, a fim de serem
redesenhadas pelo narrador dinamicamente como experiência do si mesmo –
certamente com o Outro, porque como ensinou Halbwachs (1990) a memória é
sempre social - conexa à imaginação criadora.
18
Desta forma, “não podemos duvidar que a força de narrar tenha formas antropológicas, e tudo que
surge das narrações constituem a maneira de como o homem se coloca no mundo” (JANETT apud
ZUMTHOR, 1993, p,52).
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Nesse sentido não devemos tratar a memória como um mero desenho
de signos externos que emergem de estado psicológicos19, e, sim, como
expressão fantástica vinculada ao real que nos permite compreender, mediante
as narrativas – entendidas como parte das vivências do ser humano, quando
esse entra no plano da intratemporalidade (ROCHA & ECKERT, 2001, p.12) –
que indicam a existência de jogos ritmanalíticos entre o passado e o presente
num devir que vislumbra os horizontes do futuro, processos sutis reveladores
do si-mesmo do narrador a partir das suas relações com o mundo.
Por outro lado Rancière (2010) nas suas reflexões sobre a ficção
documental diz que não devemos imaginar a memória coletiva apenas como
“lembranças de consciência” e, sim, como um montante de signos, vestígios de
monumentos que fazem sentido para os sujeitos. Sendo assim, nenhuma
imagem poderia surgir sem razão, sem a associação de ideias (BACHELARD
apud ROCHA e ECKERT, 2001, p.35) – e coisas -, daí, que na tessitura da
narrativa (Ricoeur, 1994) assume formas estéticas e sensíveis que encerram
dimensões poéticas20 em relação às paisagens.
Dessas vozes emanam imagens, paisagens sensíveis e fantásticas que
perduram nas memórias, sendo continuamente (re)construídas novas imagens,
pois de acordo com Novaes (2008, p.467), as “imagens (...) favorecem a
narrativa (...) Permitem compartilhar a experiência com o real”. Assim, fica
evidente que as formas/táticas pelas quais os narradores vão descrevendo os
fatos e tecendo a narrativa – especialmente, com um cuidado nos detalhes nos leva, enquanto ouvintes, à construções mentais das imagens narradas.
19
“Reconhecer que os jogos da memória estão atrelados às operações do pensamento humano não nos
leva a reduzi-lo a um mero resíduo “material” da consciência, por outro lado, apregoar o lugar da
imaginação criadora como elemento formal do pensamento não nos conduz a concluir que tais jogos
sejam apenas produtos dos estados psicológicos, desvinculados de suas operações com o real”. (ROCHA
& ECKERT, 2001, p. 09)
20
Segundo Paul Zumthor a voz poética assume a função coesiva e estabilizante sem a qual o grupo social
não poderia durar no tempo. Além disso, conforme o autor: “As vozes cotidianas dispersam as palavras
no leito do tempo, ali esmigalham o real; a voz poética os reúne num instante único - o da performance -,
tão cedo desvanecido que se cala; ao menos, produz-se essa maravilha de uma presença fugidia mas
total... a voz poética, é ao mesmo tempo, profecia e memória” (Zumthor, 1993, p.139).
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Esses construtos mentais de ambos tendem a organizar simbolicamente
a realidade dos sujeitos situados nos lugares, conformando sensivelmente as
representações e os sentidos das paisagens locais (em termos físicos e
fantásticos, por exemplo) a partir da voz, da performance e da memória do
narrador em relação com o ouvinte. Nestes termos, imagens diversas acerca
de certos lugares praticados (Certeau, 1994) se configuram, assim, como
reveladoras das forças simbólico-práticas presentes nas relações entre o
mundo mítico (como dimensão do sensível e do mistério) e a realidade dos
sujeitos (como agência humana frente a matéria) nas suas paisagens de
pertencimento. É neste sentido, por exemplo, que a veracidade das narrativas
é acionada pelo narrador (Silveira, 2005), uma vez que se pode perceber na
sua fala a preocupação em deixar claro, que certos episódios e fatos contados,
existiram e foram vivenciados em determinado lugar ou em algum momento,
por ele ou por outrem, quando assevera a veracidade do acontecimento.
5 DAS NARRATIVAS E SUAS PAISAGENS FANTÁSTICAS
A partir de agora apresentaremos algumas narrativas dos narradores
com os quais dialogamos, para tentarmos mostrar como se colocam frente à
situações reais da sua vida, especialmente quando envolvem o fantástico.
Dona Zeca nos contou sobre certas memórias relacionadas a sua
infância, envolvendo fatos acontecidos com ela, ou outros narrados por sua
mãe, principalmente episódios que dizem respeito à figura do boto, quando
histórias que envolvem o animal mítico e seres humanos são comuns e
temidas:
“Ah... eu cheguei a vê boto, foi que no...no...assim em dia de
lua nova eles subiam no trapiche, eles vinham subiam no
trapiche, batiam na porta de casa, só que a mamãe não abria,
que a casa que nós morava tinha segurança naquela época...
Era com chave, com tudo... ela sabia que era, porque ela
cansou de me chamar a janela pra ver... tava em pé... uma
pessoa normal... a única diferença é que o pé era pra trás...
Todos com chapéu... igual marinheiro, tudo de branco... e nós
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via muito, eu com ela... aí na costa do Samanajós... agora o
filho, ele chora igual uma criança... porque também umas
quantas vezes nós ia pro mato, eu com ela, na beirada... choro,
choro, choro de criança e ela encostava porque ela não tinha
medo de nada... Ia roçando e ia, ia, até que achava, passava a
mão e jogava dentro da água../ele fica no seco?/fica...ela pari
nos tocos do pau... igualzinho gente, tem placenta tem tudo...
tem porque eu cansei de ver... pegava e jogava na água e
acabava tudinho a confusão e nós ia embora... e isso ela fazia
e mamãe nunca foi mulher de.... duvidar... ela acreditava e ela
dizia que ele era perigoso, que ele malinava de mulher que ele
engravidava mulher... quando eu tava menstruada ela não
deixava eu ir na beira por causa de boto, até porque pra eles
não atacarem a gente... E dava muito, e nós morava só nos
duas... longe de vizinhos... aí ela não deixava, e quando eu
menstruava era quando nós se aquietava em casa, porque na
época ela não menstruava mais, aí pronto era três dias que a
gente não saía.. Tinha uma mulher que ela contava aí do
Samanajós... que... a mulher dizia: - Ah se tu presta vem dormir
com ela... depois a mulher... o marido saía pra lanternar e o
boto vinha dormir com ela feito o marido... e foi uma dessas
vezes foi que ela... chegou parece ao ponto de... eles levarem
ela. O boto levou ela... aí com uns quatro dias acharam ela
morta na beira... foi, a mamãe contava isso.. O marido dela já
tinha visto umas quantas vezes ela com ele... Ele dentro da
casa com ela né... naquela época não existia esse negócio de
cornagem, essas coisas longe de vizinho, era boto mesmo ele
sabia o que era e aí ela começou a ficar pateta... esquecendo
de tudo né... e foi o que aconteceu com ela, largou filho, largou
marido, largou tudo... e... ficou pateta... Ele falava com ela e ela
não dava atenção pra ele... como se fosse assim... eu não sei
quem tu é, eu não te conheço... e quando foi num dia ela não
amanheceu na casa e aí procuraram, procuram. Foi quando já
com quatro dias que acharam ela... essa história que a mamãe
contava”
Fernando contou sobre uma prima sua que ao cair da tarde quando
olhava para o Rio Pará, afirmava ter visto algo muito brilhoso, lindo. O objeto
reluzia maravilhosamente. A jovem nunca tinha visto algo tão belo assim. Na
realidade, tratava-se do boto que mostrava-lhe o objeto. Mais tarde, já
encantada, comentou que era a sua mãe que a chamava, por isso ela tinha que
acompanhá-la, coincidentemente, nesse período, a moça estava menstruada.
O fato teria acontecido na ilha do Caí, que fica no meio do rio à frente da
cidade de Curralinho. De acordo com o narrador:
Mas antes era assim... E aquilo foi engraçado! Era tarde,
era seis horas da tarde, era uma hora dessa assim, eu com um
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tio meu que é marido dela, nós tava vindo de igarapé... e ela
tava no tempo dela lá né [menstruada] e ela viu aquele boto
boiando e o boto mostrou... e ela achou demais lindo aquilo, e
ela se embelezou daquele negócio lá!... Ela disse que brilhava
igual um ouro... e quando a gente chegou de lá, ela já tava
sentindo um negócio e ela disse: - Manoel, bora pra casa do
meu sogro que eu tô sentindo um negócio assim, uma coisa
assim, sei lá... tá me dando vontade de correr pra água... E, e
ele também não brincou né... pegamos ela e levamos... menina
quando chegamos lá, cara! Pensa numa situação que nós
enfrentamos... Ela começou a fazer força lá, o desejo dela só
era a vontade de ir pra água e... queria ver aquilo que ela viu e
aí pronto, ela endoidou... Cara, olha ela era uma menina
magrinha, assim, como ela é até hoje, mas olha negócio de
quatro, cinco homens pra segurar ela era brincadeira. Ninguém
segurava ela, eu sempre fui forte do jeito que eu sou, mas a
gente pegava nela e era o mesmo que não pegar nada! Um,
tinha um amigo meu que era baixinho, que empinou nas
últimas que ela pulou na água e ele pegou ela e puxou pra
terra, quase consegue levar ela, olha nós fechamos a casa
todinha, era grande, tinha uma sede lá, e ela ficava doidinha na
casa, correndo, querendo pular pra água. Tu pensa na
quantidade de boto que tinha debaixo daquele jirau que tinha
lá, que a casa ficava em cima da água, assim... e pensa na
quantidade de boto que tinha debaixo daquela casa pra querer,
tu sabe, levar ela assim na marra, eles assobiavam, ela
assobiava também... Olha ela pulava por cima de uma travessa
assim da casa igual um peixe assim de cabeça na tábua, ela
saía na tábua só a cabeça e o calcanhar, igual uma cobra
assim. Era horrível aquilo, e nós levemos na casa da pajé, e
tiraram aquilo, depois de tudo aquilo passado que ela procurou
uma filha dela de dois anos que ela tinha na época... a Josiane
né... depois de tudo aqueles dias... ela perdeu o sentido... ela
mesmo mais embelezada no que ela viu... olha eu vou te falar
uma coisa, que o boto é maléfico, o desgraçado... Ele encanta
a pessoa... no tempo dos antigos ele era malino, mas agora
não, o pessoal até lidam com ele é... o boto agora é
praticamente parceiro do homem, é parceiro da gente, é...eu
digo que é parceiro, porque o boto só fica rebelde se você
mexer com ele... se você irar ele, ele fica brabo, ele fica macho,
ele rasga tua malhadeira se tu tiveres pescando, ele pula no
teu casco ele vira...”
Seu Pedro, por sua vez, nos contou sobre um episódio ocorrido quando
era mais jovem, momento em que ajudou um conhecido que se perdera na
mata ao ir atrás de um caititu. O rapaz foi encantado, ou ainda, mundiado por
algo desconhecido e ficou desaparecido por muito tempo até que o
encontraram, sem rumo:
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Olha... Eu já vi vários casos desses que as pessoas
contam lá, inclusive... lá no Mocajatuba tinha um homem que
eu conheci, inclusive, quem fez o caixão dele quando morreu
fui eu... eles saíram pra pegar uns peixes lá pras cabeceira do
rio, eles eram uns 8 ou 9 homens, quando eles vinham
baixando de lá... essa época de verão pra lá, seca né? Aí cara
vai só juntar peixe nos poços, dá muito, nós fazia muito isso lá,
aí...o Chiquinho saiu, aí nesse dia que eles vieram de lá eles
estavam pegando uns peixes, eles vem vindo de lá, Era umas
quatro horas da tarde. No que eles vão andando na beira do
caminho, na vista dele, ele enxergou um caititu andando - eles
já vinham voltando né! Que a gente subia no rio aí, deixava o
casco até onde dava a maré, de lá a gente andava pra chegar
por terra – então, eles vinham até chegar no casco ele
enxergou um caititu, passou um caititu na frente dele... e ele
arriou o paneiro com o peixe que ele trazia e saiu atrás do
caititu pra matar, pra trazer né, pra matar e pra comer né.
Nessa saída que ele saiu pra lá, querendo, ele quis voltar, o
caititu sai andando, ele olhava o caititu saía andando, e
enxergava o caititu ele indo atrás pra querer atirar, o caititu
sumia, o caititu sumia... quando ele se espantou que ele quis
voltar... não acertou mais, não acertou a voltar mais, ele
passou dezesseis dias perdido, no mato, e ele conhecia a área,
aí ele... quando os cara chegaram no casco que deram por
falta dele, os caras voltaram atrás dele. Os caras atiravam e ele
não escutava, eles gritavam, ele também não escutava, ele
ficou paranóio, ficou paranóio, e ficou andando, dormiu no
mato... Eu sei que ele levou dezesseis dias, rodando, rodando,
rodando, quando completou dezesseis dias ele varou nas
cabeceira de um rio chamado Curuanã, que entra aqui na boca
de Oeiras, do rio de Oeiras. Ele chegou na beira desse rio pra
lá, mas é perto minha filha... é perto... de lá de onde ele se
perdeu pra varar pro Curuanã direto, assim, tem caminho que
vara, dá umas duas horas de pé pra lá, e ele levou dezesseis
dias rodando, ele fez, ele fazia tapiri na boca do campo do
Arcênio lá, ele fez uns dois tapiris, aonde anoitecia ele
quebrava umas folhas e se aquietava lá de baixo né! E o
pessoal achavam os tapiris dele mas ele não conseguiam
encontrar, não conseguiam não, aí ele nesse dia que ele varou
nesse rio lá, no Parnaúba, vinha um casco, aí todo mundo já
sabia, só que já tinham dado ele por morto ninguém mais
acreditava que ele tava vivo, aí vinha um cidadão baixando na
beira do igarapé lá, ele estava sentado na beira no igarapé, aí
o cara embarcou ele no casco levou pra casa dele, de lá rodou
e foi deixar ele lá na casa dele no Mocajatuba, viveu ele não
morreu, foi pro hospital, cuidaram dele, aplicar soro essas
coisas... quer dizer que esse é um dos casos que ele foi sei lá
mundiado por um bicho né? Porque na verdade o caititu que
ele enxergou não era um caititu, era uma assombração do
mato, porque se fosse caititu não fazia isso com ele, ele tinha
matado, né? Então, mesmo depois dessa perdida dele, esse
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homem levou o que... uns 15 anos vivo ou mais, e o caixão
desse homem fui quem fez..
Perguntamos se ele lembrava das histórias que sua mãe lhe contava.
Lembrou da única história que a sua mãe sempre narrava sobre a existência de
uma cobra que nascera na sua família.
(...) contava às vezes alguma coisa, mas a gente era
moleque e não dava atenção pra muita coisa né... a gente
ainda não ligava muito pra esse tipo de coisa, então, eu não
tenho muito esses tipos de histórias da mamãe, a única coisa
que eu ouvia que ela sempre contava, ela sempre relatava
era... que... de um negócio de uma cobra encantada que tinha
lá no Tucupi, mas que era... era... a irmã dela, por que nasceu
enrolada na tia Nadir, a minha vó, que era a mãe da mamãe
teve uma... quando ela teve a tia Nadir no parto dela veio uma
cobra envolta nela, na cintura da neném, nasceu a cobra junto
com ela, ela veio enrolada aqui [mostra a cintura] e naquele
tempo, como os antigos, eles, eles tinham uma visão diferente
de hoje. As parteiras, que naquele tempo não tinha médico,
eram as parteiras, as benzedeiras, os curadores, né, a parteira
nasceu vive junto com a criança, a parteira batizou e jogou na
água e a cobra simplesmente nadou e sumiu... E essa história
a mamãe sempre contava que essa cobra de vez em quando,
depois que um negócio de dois três anos eles viam, ela estava
encostada no miritizeiro lá no porto, sempre ela estava por lá,
de vez em quando eles vinham lá, ela estava boiada por lá,
encostava, vinha... às vezes subia... botava a cabecinha em
cima do miritizeiro... Foi, foi ,foi, e... até um dia que ela sumiu,
não viram mais, então, é uma das histórias que se dizem que
tem cobra encantada, essa é uma delas né?... E aconteceu
justamente na nossa família, na verdade ela vinha a ser a irmã
da minha mãe, porque a menina que ela nasceu era mais velha
que a mamãe, mas olha, teve o tio Dedir, Mariquinha e tia
Nadir - da terceira filha que aconteceu – e, de lá pra cá teve, tio
Ormando, mamãe, Orlando e Raimundo, na terceira filha...
depois que ela foi... tem umas histórias de cobra que eu ouvi a
cobra sempre pede para alguém a desencantar, mas essa
nunca fez nada, nunca pediu pra ninguém, nunca falou nada...
Sempre as pessoas viam ela por lá, sempre a própria minha
avó de vez em quando os irmãos mais velhos viam ela por lá,
boiada lá pelo porto, no lado do miritizeiro, mas também não
mordia ninguém, não falava com ninguém, foi, foi, foi, foi,
depois ela sumiu, desapareceu, depois sumiu, não se sabe o
que aconteceu com ela, não se sabe se cresceu, não sabem se
morreu, não sei, só sei dizer que... então, mas se a gente for
relatar isso para as pessoas, sair falando, os caras vão dizer
que é uma baita de uma mentira, é assim que fazem é assim
que acontece... então era a única coisa que a mamãe ela
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sempre falava contava isso pra gente, outras coisas ela não
comentava, não assim que eu me lembre, né...
Um olhar mais detido sobre as três narrativas permite-nos perceber as
maneiras pelas quais os contadores se colocam no enredo, como agentes –
pois teria acontecido com eles - ou como alguém que narra episódios ocorridos
com outras pessoas. Nestes casos, o narrador não duvida dos acontecimentos,
pois os mistérios do mundo vibram nas coisas e nos viventes, nas suas
trajetórias e nas dos outros. Trata-se de crer nas sutilezas do mundo
amazônico, presenciando, ou não, os episódios estranhos que ocorrem nos
lugares praticados.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com as narrativas apresentadas podemos perceber como os
sujeitos se colocam nas paisagens que os cercam e com as quais interagem
em termos simbólico-práticos, tendo, por isso, que lidar com as experiências
misteriosas e sutis - uma realidade vibrante e desestabilizadora vivida no
cotidiano, que exige agências – configurando, complexa, a potência do
imaginário como dimensão místico-aurática das paisagens amazônicas, onde
os mitos se apresentam como hierofanias.
As pessoas ao praticarem os lugares, literalmente transformam a
natureza em cultura constituindo paisagens e, assim, precisam negociar com a
sobre-natureza, pois a fantástica que vibra nos mistérios que povoam esse
mundo sutil constituem as verdades do Outro narradas por sua voz,
representadas na mulher menstruada atraída pelo objeto que reluz igual a ouro
e, por isso, seduzida pelo boto; na figura do animal que simboliza o guardião da
floresta, que mundia o homem por alguma falta grave que cometeu e, por fim,
a cobra que nasce do ventre de uma mulher e recebe o batismo cristão para
logo depois ser lançada nas águas turvas do rio. Cotidiano comum e estranho
neste mundo amazônico, ambíguo e sensível na sua força imaginária, no seu
existir aos olhos que o contemplam pela janela enquanto o rio passa, como se
sabe, sem nunca ser o mesmo.
Ipiranga Pesquisa, Belém/Pará, v. 3, n. 1, p. 25, jan. /jul. 2015
Flávio Leonel Abreu da Silveira, Cristiane do Socorro Gonçalves Farias
RESUMÉ
Cet article tend à comprendre le quotidien des habitants de l’ile de Marajo, qui habitent
sur les affluents situés aux marges du fleuve Pará, dans la municipalité de Curralinho.
L’importance est mise sur les récits - et la mytho-poétique qui en émane - mélangées
aux expériences de ses habitants avec le milieu aquatique et les paysages dans
lesquels ils sont insérés. Ainsi, à partir de leur vécu dans ce contexte, les narrateurs
évoquent des images de créatures fantastiques qui peuplent l’imaginaire local, tel que
les botos, la « mère » de la forêt, et le serpent enchanté, qui émergent
mystérieusement pour animer les paysages sensibles de Marajó.
Mots-clés: Marajó, récits, paysages, êtres fantastiques, eau
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