Raul Malaquias Marques ler é tão importante como

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Raul Malaquias Marques ler é tão importante como
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Fala de estar
Raul Malaquias Marques
diz que
ler é tão importante
como respirar
O Raul Malaquias Marques nasceu em 1947 na Praia da Vieira. A beira-mar e o rio Lis
testemunharam as primeiras traquinices que fez, mas a grande parte das suas memórias
de menino pertence a Moçambique, onde viveu desde os sete anos.Acalentou o sonho
de trabalhar como marinheiro, mas acabou por embarcar na aventura de ser jornalista
e escritor que gosta de mergulhar em sopas de letras e resgatar palavras.
Nasceu na Praia da Vieira. Como era
viver à beira-mar e quais eram as suas
brincadeiras preferidas?
Essa é uma memória um bocado difusa,
ou confusa… Nasci à beira do mar, como
diz, filho de pescador necessariamente.
Acontece que o meu pai, sendo pescador
no verão, era operário na fábrica que havia
três quilómetros acima, em Vieira de Leiria,
e foi preso por tomar parte em atividades
sindicais. A partir da saída da prisão do meu
pai, a minha infância chegou ao fim da sua
primeira metade – que aconteceu até aos
sete anos de idade, na Praia da Vieira. A
segunda metade foi em Moçambique, para
onde fomos por motivos políticos, depois da
saída da prisão do meu pai. As imagens que
guardo da infância, até aos sete, são aquelas
que os meus pais me ajudaram a guardar.
Ou seja, não tenho nenhuma memória
minha, tenho a memória emprestada, digamos assim, da minha infância. Lembro-me, exatamente pela
via da memória emprestada, de um incidente de infância que terá resultado do meu gosto para brincar
com a bicharada. Contou-me a minha mãe que certo dia, teria eu quatro anos, desapareci de casa, atrás
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de um rebanho de ovelhas. Ao lado, na povoação, toda a gente à minha procura, os sinos, presumo,
a baterem desenfreadamente na pequena igreja que lá tínhamos, o medo, naturalmente, de que tivesse
tomado o caminho do mar (ou do rio Lis, que desagua na Praia da Vieira), mas não: encontraram-me
a dormir serenamente à sombra de uma árvore, ao pé das ovelhas que, eventualmente, nem teriam
pastor a guardá-las (eram muito autónomas já naquele tempo). Outras imagens da minha infância não
as tenho, pura e simplesmente. Há umas fotografias de um tio meu que era um bom escritor e contou
em livro a Praia da Vieira, com muito talento e amor por aquela gente – os pescadores e trabalhadores.
Essas fotografias ajudam-me a fazer um puzzle incompleto da minha infância até aos sete anos. Sei que
era um miúdo muito irrequieto, que procurava sítios fora do aconchego paterno – isto é, saía de casa
para as minhas aventuras. Numa dessas aventuras caí de um primeiro andar – eu e mais uns quantos –
depois de subir umas escadas de madeira que, de repente, cederam – fomos ao chão e fiquei com várias
lesões, de que recuperei. Isto tudo para dizer que tinha esse toque de menino irrequieto e rebelde, mas
de mais aventuras não sei. A partir dos sete anos, na periferia da então Lourenço Marques (hoje Maputo),
vivia aventuras, principalmente com os meninos da minha vizinhança, sobretudo meninos negros. Eram
brincadeiras que com o tempo, e estando eu em minoria, foram necessariamente sofrendo adaptações.
Quando começou a gostar de ler e de escrever?
Essa também é uma informação que não posso dar com rigor… De ler, talvez um tanto para além
daquela idade em que é suposto as crianças começarem a ler outros livros que não o da escola, pelo
qual aprendem. Tenho impressão que foi pelos nove ou dez anos que me vi leitor «agarrado» a livros.
Até aos sete anos, aqui em Portugal e na Praia da Vieira, não me lembro de agarrar nenhum livro,
porque a escola só a comecei lá. Lá, sim, lia os Emilios Salgaris, Julios Vernes e por aí adiante. Escrever
já é uma ideia que tenho muito presente. Na escola sempre dei sinais aos professores (e eles toparam
esses sinais) de que gostava de escrever e tinha algum jeito – gostava imenso de fazer redações. Esse
apetite, essa vontade de escrever e esse amor pelos livros, talvez os deva, mais do que aos estímulos
recebidos em casa, aos três anos que passei num colégio de Salesianos, na Namaacha (em Moçambique,
portanto). Lembro-me do fascínio que era, todas as noites, antes de irmos para a cama, ouvir um
sacerdote dos estudos gerais que nos lia livros de aventuras. Lembro-me de aventuras na Rússia, com
trenós, toda aquela bicharada e aqueles acontecimentos turbulentos, próprios das aventuras, e do fascínio
que era estarmos à espera da hora da noite, quando nos era lido mais um episódio da história que ele
contava ao longo de semanas, por vezes. Em casa também o meu pai gostava de ler e de escrever –
escrevia muito bem e tinha uma caligrafia magnífica, coisa que eu nunca tive… Tudo isso junto fez de
mim um leitor um bocado tardio e alguém que começou a gostar de escrever cedo (aos doze anos).
É verdade que quis ser marinheiro?
É verdade; é um daqueles sonhos que nunca pude realizar porque, como costumo dizer, me faltou
maré, ou não cheguei a tempo a ela. Foi um sonho que tive por volta dos meus 19 anos. A história
é assim: saí aos sete anos, vivi em Moçambique até aos 19.Tive de vir para cá, para a «metrópole», como
na altura lhe chamávamos, porque recebi uma bolsa de estudos e não havia lá o curso de Economia.
Não acabei o curso porque havia um esquema de ponderação dos anos de estudo, que tinham
de ser em determinado número e não se podia chumbar; eu chumbei logo no primeiro ano – enfim,
era outro mundo e não me aguentei «nas canetas». Como não acabei o curso, fui para a guerra colonial.
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Neste entretanto, nasceu em mim o gosto de partir, um dia, à aventura num navio mercante. Não
era uma paixão pela Marinha; queria ser marinheiro nos navios de cabotagem e de grandes viagens
transatlânticas, mas não da Armada, nem de cruzeiros. A ideia seria viajar eternamente num navio
à vela… Ainda tratei de ir a uma escola em Paço d’Arcos, creio, mas as inscrições já tinham fechado
e não foi possível. O meu sonho de marinheiro morreu por aí, mas de vez em quando ainda sonho com
grandes viagens – por alguma razão viajar é um dos meus sonhos recorrentes…
É escritor e já trabalhou como jornalista. Como é preparar textos com características tão diferentes,
como reportagens, poemas e peças de teatro, em simultâneo?
São duas práticas que exigem, obrigatoriamente, preparações diferentes. Nos jornais trabalhamos
sob o império de alguém que nos manda fazer as coisas – às vezes desenvolvemos também ideias
nossas, coisas que propomos – e que são passadas para papel, para vídeo… Eu ainda apanhei o vídeo,
cheguei a fazer reportagens filmadas, e a minha base eram, essencialmente, reportagens culturais,
desenvolvidas na medida do possível. O jornalista tem utensilagem e preocupações que o escritor não
tem necessariamente. Como escritores não fugimos ao rigor, não fugimos à preocupação de fazer coisa
legível, e de qualidade, mas somos efetivamente livres. Editores haverá que discutem com os autores
temas a tratar em livro – nunca foi o meu caso, tudo o que escrevi, escrevi porque num determinado
momento se me impôs escrevê-lo. Comecei com um livrinho de poemas. Depois dele, tenho andado por
«várias águas», marinheiro que quis ser e nas letras às vezes também me apetece sê-lo – tanto escrevi
poesia para malta mais nova, como para mais crescida, fiz uns livros de teatro e outros de contos…
Dá a impressão de que estou à espera de saber exatamente em que terreno me hei de fixar, mas acho
que prefiro assim: ir um bocadinho a cada um destes territórios. O romance é uma coisa que tenho
na calha fazer. Voltando ao início da pergunta, diria que são duas artes – acho que o jornalismo também
é uma «arte», com aspas, porque a liberdade nunca é total como na literatura. Com a literatura põe-se
outro tipo de preocupações: o escritor não pode exilar-se totalmente da observação da realidade em
que vive. Para um jornalista, a matéria-prima é a realidade. Para o escritor também tem de ser, por muito
que escreva todos os dias um poema transcendental ou religioso – é sempre da realidade que se parte,
por muito que se evoquem deuses ou demónios.
Na peça de teatro Um Bobo para o Reino há personagens com nomes como Abachança, Briozélia
e Pavatum. Porque é que tantas das suas personagens têm nomes inventados ou muito invulgares?
Já levei puxões de orelhas de umas quantas crianças por causa disso. Não sou muito de ir a escolas,
mas das vezes que fui ouvi sempre essa pergunta: «Por que carga de água estes nomes?» É curioso
porque não faço pesquisas para arranjar nomes estranhos, saem assim – serei também eu um bocado
estranho por escolher nomes tão fora do comum… O nome já é um bocado da personagem. Dona
Abachança, com esse nome, há de ser (aposto eu, que já não estou bem lembrado do perfil psicológico
da personagem) uma senhora com um tanto de desatinado, volúvel ou irrequieto. Os nomes vêm daí;
nascem assim. Nunca eu chamaria Briozélia a uma princesa de olhos azuis, cabelos loiros, magnífica
de compostura e com uma alma encantadora, porque Briozélia tem o seu quê de brincado. Como
é que chego aí não sei, mas uma coisa garanto: só arranjo nomes para as personagens no final. Quando
estou a escrever, por exemplo, uma peça de teatro, as personagens são «A, B, C, D, etc.» e acrescento-lhes algumas indicações; só no final é que lhes dou nome.
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Criou um rei muito mau para a história de El-Rei Está Triste e um rei um pouco tolo para Um Bobo
para o Reino. Simpatiza pouco com a realeza?
Sou republicano, não me estou a ver regressar ao passado da nossa monarquia, mas não é animosidade
nenhuma – não tenho nada contra a realeza. Os dois reis funcionam meramente como símbolos;
esses livros são manifestações, expressões de um tema que me interessa tratar sempre que posso, que
é a questão do poder. Em Um Bobo para o Reino há um rei «um pouco tolo» – talvez, não necessariamente,
acho eu – que é substituído e ninguém nota a diferença. Isto tem a ver com aquilo de que, por
aprendizagem minha, me apercebo, que os poderes, às vezes, se confundem um tanto: exibem máscaras,
e as máscaras permitem dizer «A» ou «B», consoante interessa a quem está por trás da máscara dizê-lo.
Depois vem alguém com uma máscara diferente que diz também «A» ou «B» e tudo se confunde um
tanto. As coisas não mudam, os poderes repetem-se sem evolução visível. No El-Rei Está Triste a questão
é também essa. Aí há elementos de paródia (de brincadeira), que no primeiro estão menos expressos,
e é sobre alguém que quer poder à viva força – quer estar nele (não o tem), quer dar sempre a saber
que o tem e faz tudo para difundir a expressão desse poder. Faz então «mil por uma linha» para que
falem dele, para que esteja assumidamente no seu papel, com toda a vaidade e estatuto que lhe dá
ser rei. É basicamente isto; nada tenho contra a realeza, ela serve-me aí para brincar com essa questão,
é um símbolo daquilo que quero dizer.
Para o livro De Sol a Sonho escreveu uma série de poemas dedicados à natureza e onde brinca com
os sons e significados da língua. É um «brincador» ou um jardineiro de palavras?
Se calhar um jardineiro-brincador de palavras, não sei… Jardinagem é coisa para a qual sempre tive
pouco jeito – por acaso tenho em minha casa um pequeno jardim, mas é mais tropical do que urbano,
doméstico (gosto mais da paisagem viva e exuberante de uma selva do que dos canteiros dos jardins).
É evidente que há palavras com as quais apetece brincar e por alguma razão temos uma língua riquíssima
de potencialidades. Podemos arrancar das palavras sentidos que à partida parecem não ter, mas têm –
estão lá, é uma questão de os resgatar da redoma em que estão. Gosto de brincar com elas, gosto
de as tratar bem (aí a ideia de «jardineiro» funciona). As palavras, nos meus poemas, são colocadas
sempre com preocupação minha de estarem na medida justa, no contexto justo, com o sentido que lhes
é devido. Quando quero dar uma volta ao sentido, há sinais no texto que dizem isso, que estou a brincar
com o sentido das palavras. Não há mistério nenhum nesse jogo, nessa brincadeira.
Tem palavras preferidas?
Claro; os nomes de todas as pessoas de quem gosto são algumas das minhas palavras preferidas (não
vou dizer todos porque ainda me esqueço de algum e alguém se queixa…). Quando faço uma «ronda
mental» para responder à pergunta, penso que há palavras que gosto de ouvir, e que há palavras que
me suscitam logo o gosto de brincar com elas. Gosto muito de fazer anagramas, por exemplo e de «pôr-me» ao contrário (no lugar de Raul passo a ser o Luar). «Anticonstitucionalissimamente» é uma palavra
também muito interessante, que me leva àquela da Mary Poppins, «supercalifragilisticexpialidocious»…
Têm métrica diferente: anticonstitucionalissimamente tem onze sílabas, é um alexandrino perfeito,
a outra tem sete ou oito, mas ambas soam muito bem. Anticonstitucionalissimamente é uma palavra
sempre complicada de pronunciar, que hoje em dia apetece dizer para qualificar muitas situações que
nos acontecem, mas há palavras seguramente bonitas. Há palavras que não são tão bonitas quanto isso,
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mas têm muito sentido, e há palavras que parecem desinteressantes e dizer pouco e são muito bonitas.
Gosto também dos nomes de frutos: amora, abacate, papaia, que é dos frutos mais simpáticos, mais
dadivosos – é um fruto que se dá, mesmo sem hífen.
Porque é que é importante gostar de ler?
Porque é que é importante gostar de ler? O meu tio escritor tem um livrinho de versos, Nasci
à Beira do Mar, dos anos 50. Ele era mais interessante como contista do que como poeta, a meu ver,
e tem uma quadrinha, que não vou dizer porque não sou capaz de a reproduzir fielmente, mas cujo
sentido era este: o mundo sem poetas, sem a poesia (pode extrapolar-se que sem ler, sem livros), seria
um mundo nu, de estradas desertas, vazio. É tão importante ler como respirar. É certo que se as pessoas
não lerem não lhes acontece o mesmo que às pessoas que, por doença ou uma situação igualmente
grave como um acidente, deixam de respirar. Nós não morremos se deixarmos de ler, mas é importante
igualmente, porque, não sendo exatamente o ar que se respira, é, seguramente, através da leitura
que temos a possibilidade de nos descobrirmos e de descobrir outros mundos, outras paisagens –
de enriquecermos o nosso património cultural, por um lado, e o nosso património humano. Aprendemos
a estar melhor connosco mesmos e com os outros através da leitura. A leitura enriquece, pode ser
um caminho para abrir novos horizontes na nossa vida. A leitura – e a literatura – não é salvífica,
não salva ninguém, não remedeia os males do mundo, mas é seguramente uma necessidade. Entendo
que há abordagens diferentes – há pessoas para quem não é necessário ler, dirão. Mas se elas passarem
do «zero» (que é não ler) para a leitura, vão ver que se passa do zero para um enriquecimento a todos
os níveis – talvez não na conta bancária, ler livros não dá dinheiro a ninguém (eventualmente escrevê-los também não dá muito). Fazendo a síntese: a literatura e ler só nos fazem bem, só nos melhoram
e enriquecem patrimonialmente. Portanto, é absolutamente necessário ler, o que não quer dizer que
eu defenda a leitura obrigatória – as pessoas são livres, mas se puderem confrontar a diferença entre
não ler e ler, vão ver que ficam melhores e que sabem ler melhor o mundo em que vivem.
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