Bruno Silva de Souza - Jornada de estudos Históricos do PPGHIS

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Bruno Silva de Souza - Jornada de estudos Históricos do PPGHIS
A Doctrina Politica de Eugênio de Narbona: para uma análise do maquiavelismo
espanhol no século XVII
Bruno Silva de Souza1
Resumo: O presente artigo trata da questão referente ao “pragmatismo católico” tal como
aparece sublinhado na Doctrina Politica de Eugênio de Narbona. Trata-se, de modo geral, de
analisar o discurso da boa ou verdadeira razão de Estado na península ibérica no século XVII,
assinalando a tensão em torno do afastamento e da proximidade com o que aparecia definido
àquela altura como maquiavelismo.
Palavras-chaves: Razão de Estado. Península Ibérica. Pragmatismo Católico. Maquiavelismo.
Pensamento Político.
Abstract: This article deals with the question concerning the "Catholic pragmatism " as it is
underlined in the Eugênio de Narbona’s Doctrina Politica. It is, in a general way, to analyze the
discourse of good or true reason of state in the Iberian Peninsula in the seventeenth century ,
marking the tension around the remoteness and proximity to what appeared set that point as
Machiavellianism .
Keywords: Reason of State. Iberian Peninsula. Catholic Pragmatism. Machiavellianism.
Political Thought.
1. Introdução
Em texto clássico acerca da relação entre os escritos de Nicolau Maquiavel e a temida
Inquisição espanhola, Helena Puigdomènech Forcada ponderava que a visão segundo a qual a
igreja católica sempre perseguiu o secretário florentino, conquanto seja correta, precisa ser
melhor matizada com vistas a evitar confusões. Lembra-nos a autora que a reação da igreja
perante Maquiavel não foi a mesma em todo tempo e em todos os lugares2. Para fins de
simplificação, podemos resumir que a Inquisição espanhola tardou a observar as determinações
vindas de Roma, e mesmo a Santa Sé não incluiu tão prontamente o nome de Maquiavel no rol
dos autores considerados como “damnatus 1a classe”, isto é, aqueles mais severamente
condenados. Sendo assim, o lapso de tempo permitiu que os escritos de Maquiavel pudessem
1
Doutorando em história pelo PPGHIS/UFRJ, bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
FORCADA, Helena Puiguidomènech. “Maquiavelo, la monarquía y la Inquisición española”. In: Boletín de la
Real Academia de Buenas Letras de Barcelona, 1976: vol. 36 [pp 203-210]
2
1
circular com certo grau de liberdade entre os letrados europeus. As cópias manuscritas, por sua
vez, podem muito bem ter garantido uma sobrevida aqueles escritos.
Não chega a surpreender, portanto, que uma parte daqueles que se dedicavam a pensar e
a escrever a respeito do poder e de seu exercício estivesse familiarizada, em alguma medida,
com os escritos de Maquiavel. O fato de que o combate ao que veio a ser classificado
posteriormente como razão de Estado pérfida e tirânica, associada ao nome de Maquiavel e
outros autores de reprovável reputação, tenha postulado um pragmatismo católico3 por vezes
próximo ao que aparece defendido pelo próprio Maquiavel, isso sim merece algum destaque. E
é esse o interesse do presente trabalho. Partindo da análise de um escrito do toledano Eugênio
de Narbona, a Doctrina Política, originalmente produzido em 1604 mas republicado, após
problemas com a censura inquisitorial, em 1621, buscamos discutir a aproximação entre o
pragmatismo católico encorpado na doutrina da boa ou verdadeira razão de Estado e os
ensinamentos de Nicolau Maquiavel, dando ênfase à própria posição da censura espanhola com
relação a esta aproximação. Para tanto, analisaremos comparativamente a versão de 1621 com
uma outra versão, originalmente manuscrita e equivocadamente atribuída a Diego Enriquez de
Villegas pelo editor do Semanário Erudito, um periódico madrilenho do século XVIII.
Acreditamos que essa versão do Semanário corresponde, ao menos em boa parte, à versão
recolhida pela censura da Doctrina Politica de Narbona, pelas razões que posteriormente
apontaremos nesse trabalho.
***
Enquanto preparávamos um capítulo que deverá integrar nossa tese de doutoramento, já
pelo meio do caminho, uma constatação tardia nos obrigou a parar e, do ponto mesmo de onde
estávamos, retroceder e recalcular a rota. De fato, a obra que vinhamos analisando, inclusive
em trabalhos anteriores (baseados em autores que dedicaram alguma atenção à mesma obra e
ao seu pseudoautor4), e que acreditávamos ser uma publicação póstuma de um texto deixado
3
OLIVEIRA, Ricardo de. “Amor, amizade e valimento na linguagem cortesã do Antigo regime” in: Tempo vol.11,
n°.21, Niterói Junho 2006, pp.97-l20. p., 106.
4
Assim, para ficarmos num exemplo mais consagrado, Fernández-Santamaría publica em 1980, no Boletin de la
Real Academia de la Historia, um texto intitulado “Simulacion y disimulacion. El problema de la duplicidad en el
pensamiento politico español del barroco”, em que se remete a autoria das Advertencias eruditas para principes y
ministros à figura de Diego Enríquez de Villegas. Ainda mais surpreendente resulta ser o fato de que Santamaría
utiliza, no mesmo texto, citações da Doctrina politica civil, de Eugênio de Narbona. Inclusive o mesmo trecho é
citado em duas ocasiões diferentes, sendo que para cada citação se remete o leitor a um dos dois autores aqui
confrontados. É verdade que o trabalho publicado naquela altura devia tratar-se ainda de um resultado de
2
manuscrito por Don Diego Enríquez de Villegas, em 1641 é, na verdade, um texto da autoria
de Eugênio de Narbona, composto em 1604, recolhido pela censura da Inquisição espanhola e
finalmente autorizado por Felipe IV, dezessete anos depois. O mal entendido, entretanto, pode
ser justificado, conforme se verá na sequência do texto ora apresentado.
Quem foi Don Diego Enriquez de Villegas? Quem foi Eugênio de Narbona? De onde se
recolhem os dados sobre essas “Advertencias Eruditas”? Existem diferenças formais entre as
duas versões? Por que a Doctrina Politica foi censurada? O texto que ora se apresenta
corresponde a uma versão mais concisa do capítulo em que se busca responder a essas
perguntas.
2. Don Diego Enríquez de Villegas: a espada e a pluma
Pouco se conhece da vida de Villegas, afora sua origem lisboeta e as distinções
honoríficas de que era portador, e que se deviam a uma intensa atividade castrense: nosso autor
era Cavaleiro e Comendador da Ordem de Cristo (espécie de substituta portuguesa da extinta
Ordem dos Templários) e capitán de Corazas españoles, distinção da cavalaria na Espanha.
Sabe-se, além disso, que Villegas faleceu em Lisboa, em 14 de outubro de 1671, tendo sido
sepultado no Convento de San Eloy. Essas escassas notícias acerca da vida e ocupação de
Diego Enriquez de Villegas (Diogo Henrique de Vilhegas, conforme a grafia portuguesa) estão
recolhidas pela monumental Biblioteca Lusitana do padre Diego Barbosa Machado5. Segundo
informa o catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal, Villegas teria nascido em data posterior
a 1580. Tal informação consta como descrição de um panegírico composto por Villegas para a
edição de 1632 das Rimas de Camões, na segunda das três partes de que é composta a obra: “à
memoria de Luis de Camoes. Principe dos Poetas”6. A data de seu nascimento, contudo, ainda
explorações talvez iniciais, pois três anos depois o autor publicaria nos Estados Unidos seu livro, cuja edição de
1986 (que consultamos) sai publicada em Madri com o título Razón de Estado y politica en el pensamiento
español de barroco (1595-1640). Existe na referida obra uma nota de rodapé em que o autor afirma que as
palavras de Villegas deveriam ser tomadas com certo ceticismo, já que, segundo Santamaría, uma análise
superficial revela que a obra publicada no Semanario é “idêntica” a Doctrina política civil escrita en aforismos.
Cf. FERNÁNDEZ-SANTAMARÍA, Jose A. Razon de Estado y Política en el Pensamiento Español del Barroco
(1595-1640). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1986, p. 28, n 25.
5
MACHADO, Pe. Diogo Barbosa. BIBLIOTECA LUSITANA. Histórica, Critica, e Cronológica na qual se
compreende a noticia dos autores portugueses, e das obras, que compuseram desde o tempo da promulgação da lei
da graça ate o tempo presente. Oferecida a Augusta Majestade D. João V. Lisboa Occidental: Officina de Antonio
Isidoro da Fonseca, Vol. I., 1741. pp. 659-660.
6
Rimas de Lvis de Camões. Segvnda Parte. Agora nouamente emendadas nesta vltima impressaõ. Lisboa,
Lourenço Craesbeck, 1623 [sic]. No catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal constam as seguintes
informações sobre o ano de impressão da referida obra: “Data com gralha; em 1623, Lourenço Craesbeeck ainda
não era titular da tip. sita em Lisboa que o pai lhe deixou (1632); todas as licenças e taxas são de 1632...”.
3
é um dado incerto. Gonzalo Díaz Díaz, autor da monumental Hombres y documentos de la
filosofía española, informa que Diego Enríquez de Villegas nasceu, de nobre estirpe, nos
primeiros anos do século XVII7.
Há, contudo, uma fonte de maior riqueza de informações a respeito da vida e carreira de
Villegas: trata-se de um memorial que aparece transcrito como apêndice ao artigo de Felix
Diaz Moreno8, em que são descritas as atividades militares desempenhadas pelo Cavaleiro e
Comendador da Ordem de Cristo, sua lealdade perante à coroa espanhola, de quem continuou
servidor após a Restauração, embora tenha se encontrado em situação de moléstia após os
sucessos da campanha militar de Lerida, em 1644, e amargado quatro anos de afastamento de
suas funções militares. Nessa ocasião, nos diz, continuou a servir ao rei de Espanha, senão com
a espada, com sua pluma, escrevendo (até a data da redação do memorial) nada menos do que
43 livros “Militares, Politicos y Mathematicos”, dos quais havia impresso cinco títulos9.
Moreno ainda menciona algumas informações provenientes de anotações pessoais recolhidas
de um arquivo de Lisboa. Tais informações indicam o parentesco de Villegas com familiares
espanhóis do círculo da nobreza, corroborando a alusão de Gonzalo Díaz:
... gracias al anexo podemos saber que don Diego era el cuarto nieto de Pedro Fernández de
Villanueva y de su mujer dona Mencía de Villegas hija a su vez de don Alfonso Ortiz de
Villegas, hermano [sic] de don Diego Ortiz de Villegas (de las Villegas de las montañas de
Burgos) y de los Villanueva de Castilla y Aragón10
O parentesco com Diego Ortiz de Villegas, por seu turno, nos permite saber que nosso autor
provinha, por parte de sua avó, de uma família castelhana com tradições religiosas bastante
sólidas em Portugal, já que Diego Ortiz de Villegas foi bispo e confessor da princesa D. Joana,
além de pertencer ao círculo de confiança do rei D. João II e, segundo informa Francisco da
Silva Cristóvão, ter conhecido os reis D. Manuel I e D. João III (inclusive tendo celebrado
missa, com a presença de D. Manuel I, no domingo antes de Pedro Álvares Cabral partir com
Disponível
em
http://catalogo.bnportugal.pt/ipac20/ipac.jsp?session=G420O8210B622.8099&profile=bn&uri=link=3100018~!12
50854~!3100024~!3100022&aspect=basic_search&menu=search&ri=2&source=~!bnp&term=Vilhegas%2C+Dio
go+Henriques+de%2C+depois+de+1580-1671&index=AUTHOR
7
DÍAZ, Gonzalo Díaz. Hombres y documentos de la filosofía española. Madrid, Centro de Estúdios Historicos,
1987. Vol. 3, p.43.
8
MORENO, Felix Diaz. “Don Diego Enríquez de Villegas en el solar de Marte. Rasguear con la espada en el
siglo XVII.” In: Anales de Historia del Arte 2005, 15, 197-218
9
VILLEGAS, Diego Enriquez de. “MEMORIAL DE DON DIEGO ENRIQUEZ DE VILLEGAS CON HOJA DE
SERVICIO A DON JUAN DE MENDOZA, REY DE ARMAS DE FELIPE IV Y CARLOS II. Biblioteca
Nacional de Madrid. Ms 11757. fols. 207-209.” Apud in: MORENO, Felix Diaz. Op. cit., pp 212-213.
10
MORENO, Felix Diaz. Op cit., p, 199.
4
sua frota rumo ao oriente, de que resultou o descobrimento do Brasil)11 Além disso, Diego
Enríquez de Villegas possui um parente consagrado no mundo das letras castelhanas: Francisco
Quevedo y Villegas, segundo informa Don Pablo Antonio de Tarsa na biografia de Quevedo,
presente em Obras posthumas y vida de Don Francisco Quevedo y Villegas: “… Don Diego
Enriquez de Villegas, Cavallero, y Comendador en el Orden de Christo, Capitan de Corazas,
muy conocido por su calidad, y escritos; y fue estimado de Don Francisco por su pariente, y
amigo, y mucho mas por sus letras, y erudicion”12
O memorial a que nos reportamos, conforme se observa de sua leitura, fora redigido
com um propósito bastante bem definido: uma petição de nacionalidade (embora o termo
talvez soe dissonante quando aplicado ao universo do antigo regime), para que seu autor
pudesse gozar dos benefícios reservados aos nascidos na corte:
Parece que en justicia, y en razon de Estado, queda V.S. obligado a condigna remuneracion,
y no permitir carezca de Reyno en que sea natural, para gozar en el de los honores, oficios, y
puestos que podia obtener en aquel que dexó por seguir las vanderas de su Magestad, y servir
a estos Reynos con particular credi-to: La satisfacion que se pretende a perdida que se tuuo
por no faltar a la fideli-dad, siendo del genero mismo, facilita alcançarla. (...)
Auiendo seruido a su Magestad, y estos Reynos con la persona en la guerra,hasta perder,
sino la vida, la salud, con la hazienda menospreciando [fol.209][el 208 es una hoja añadida]
toda, de que era heredero en Portugal: y con las medi-taciones del ingenio en lo Militar, y
Politico, calidades que parece le habilitan para que V.S. le haga natural destos Reynos, aun
en caso que huuiese acordado no conceder semejante gracia a ningun Estrangero, si es que
se puede dar este nombre a Vasallos Españoles que voluntariamente se desnaturalizaron de
sus patrias por ostentar finez, y lealtad13:
A darmos créditos às informações que nos fornece em seu próprio memorial, Diego
Enríquez de Villegas começou a prestar os seus serviços militares à coroa espanhola no ano de
1615, ainda em solo português, transferindo-se para a corte de Castela no ano de 1635, onde
manteve-se em atividade militar até o ano de 1644, quando, conforme informamos há pouco,
motivo de enfermidade contraída durante campanha militar, abandonou suas atividades
castrenses, passando a servir ao rei por meio das obras que escreveu:
…en razon de aver servido a su Magestad en la Guerra desde el año 1615 hasta el de 1644
en las ocasiones, y partes, que constan por papeles que ofrece presentar: y siendo natural de
la ciudad de Lisboa, Reyno de Portugal, y teniendo guerra en diferentes partes de sus
Conquistas, y Colonias (estando a la obediencia de su Magestad) y teniendo Armada naual,
en que podia emplearse; dexó de continuar la guerra por aquella Corona, y vino en el año de
11
CRISTÓVÃO, Francisco da Silva. “O Cathecismo Pequeno de D. Diogo Ortiz de Vilhegas”. Humanitas, vol. L,
Coimbra, 1998. pp. 687-688.
12
TARSA, Pablo Antonio. “Vida de Don Francisco de Quevedo y Villegas”. In: Obras posthumas y vida de Don
Francisco Quevedo y Villegas. Madrid, Juan Ariztia, 1724. fol. 5.
13
Idem, p. 212.
5
1635 a ser-vir a su Magestad, y a estos Reynos (…) aviendo adquirido una grave enfermedad
en la campaña de Lerida año de 1644 de que estuvo mas de quatro años baldado, y aun
padece debilidad grande, no pudiendo servir a estos Reynos con la espadd, sirvió con la
pluma...14
Muito embora sejam por demais breves as informações que pudemos recolher acerca da
vida do autor, podemos, a partir do que até agora expusemos, notar algumas características que
valem o destaque: não obstante ter vivido intensamente as atividades do meio militar, Villegas
foi um autor profícuo15, mesmo se mantivermos em suspeita o número de livros que afirma ter
escrito, já que, em todo caso, podemos citar as seguintes obras publicadas: Levas de la gente de
guerra, y su empleo en todas facciones Militares (Madri, 1647), Aula Militar I, y Politicas
Ideas, deducidas de las acciones de C. Julio Cesar, executadas en la Galia (Madri, 1649),
Academia de Fortificacion de Plaças, y nuevo modo de fortificar una Plaça Real (Madri,
1651), El sabio en su Retiro (Madri, 1652), El advertido (Madri, 1653) El principe en la idea
(Madri, 1656), El despertador en el sueño de la vida (Madri,1667), Piramide natalicio y
baptismal a la Soberana... Magestad De la... Reyna D. Maria Francisca Isabel de Saboya,
Princeza de Portvgal (Lisboa, 1670)16, Leer sin libros. Direcciones acertadas para el govierno
étchico, economico y político. Dirigido al Senor Principe D. Pedro, el Felice... (Lisboa, 1672).
14
Idem, ibidem.
Fato que não passou despercebido por Eugenio de La Iglesia, autor de um opúsculo sobre Diego Enriquez de
Villegas: El capitán de corazas don Diego Enriquez de Villegas.Tratadista de milicia. Opúsculo leido en la velada
literaria celebrada en el Centro del ejército y de la Armada, en la noche del 18 de Diciembre de 1884 en
conmemoración del segundo Centenario del nacimiento del insigne escritor militar Don Alvaro de Navia Osorio
vizconde de Puerto Marqués de Santa Cruz de Marcenado. Tipografía de Diego Pacheco. Plaza del Dos de Mayo
núm. 5 . Madrid, 1884. Após listar os livros da autoria de Villegas, La Iglesia conclui que “Todas ellas le hacen
digno de figurar en la legion, no escasa en número, de escritores
que supieron hermanar las armas con las
letras, la ciencia con la, fuerza, el hecho con la idea”. LA IGLESIA, Eugenio de. Op. cit. pp. 21-22. La Iglesia
procura, no referido opúsculo, associar o nome de Villegas ao rol de tratadistas militares que em Espanha
somavam um grupo considerável, de acordo com o autor. Lamentavelmente, o texto de Laiglesia pouco acresenta
ao que se conhece sobre Diego Enriquez de Villegas, tirante o fato de informar que as três primeiras obras do
nosso autor seriam partes de um projeto maior, Elementos Militares, o que, ademais, deduz-se do que vem
impresso em Levas de la gente de guerra.. onde Villegas informa que o referido volume serve como introdução
aos Elementos Militares, obra dividida em 14 tomos, dos quais apenas três foram publicados. Idem, pp. 13-14.
16
Há uma lista, intitulada “Libros que tiene dado a la Estampa D. Diego Enriquez de Villegas, Cavallero professo
en la Orden de Christo, & c.” que figura imediatamente antes da primeira folha numerada da Piramide natalicio y
baptismal... que registra, entre os livros El principe en la idea e El despertador en el sueño de la vida, uma obra
intitulada El memorial politico. Trata-se de um memorial com um nome relativamente extenso: Memorial politico
en que se responde a dudas que se pueden ofrecer contra la execucion de algunos de los efectos propuestos a V.
Magestad para que en ellos se crien encomiendas y se apliquen a la nueua orden, religion y caualleria militar de
Nuestra Señora del Patrocinio, cuyo instinto y principal empleo de sus caualleros sea la guarda, custodia y
defensa de unos y otros mares y estar siempre promptos para seruir, pelear y morir en defensa de nuestra sagrada
religion y militar contra los enemigos del nombre catolico. (Madri, 1657). Ainda a respeito de suas obras
publicadas, Matilde Conde Salazar fornece uma lista, com base no Catálogo Colectivo del Patrimonio
Bibliográfico Español (http://www.mcu.es/patrimoniobibliografico/), que incluem, além dos já citados, duas obras
em latim: Inscriptio templi in limine appensa Deo. Opt. Max quisquis es? si pius? ne parcito lacrymis ... hoc
sarcophago perexiguo continentur ossa magni Philippi IV ... / [Didacus Enriquez de Villegas] (o Catálogo
acresenta, em nota, que se deduz que o texto em questão seja posterior a 1665 e Epitaphium I D. O. M. Philippus
15
6
A trajetória de Villegas é exemplar de duas características do antigo regime que a
historiografia já teve ocasião de assinalar. Por um lado, a fragilidade da noção de nacionalidade
para se explicar a questão das matrizes identitárias daquele universo17 e, por outro, o perfil
“prático” de boa parte dos autores, sobretudo do Setecentos: muitos deles ocuparam postos de
serviço de natureza prática. Não se tratavam, conforme Maravall já salientara, de escritores
catedráticos, professores das universidades; em uma palavra, de “letrados” na acepção mais
estrita do termo18.
3. Eugênio de Narbona
A respeito dos dados biográficos do autor da Doctrina Politica estamos, pesa-me dizêlo, ainda menos bem servidos. O que podemos afirmar com segurança é que nasceu em Toledo,
e que pertencia a uma poderosa família de convertidos da qual também saíram muitos juristas e
intelectuais19; viveu na mesma cidade entre o último terço do século XVI e primeira metade do
XVII. Abraham Mandroñal Durán nos diz que Eugênio de Narbona faleceu em Toledo, no ano
de 162620, ao passo que as informações biográficas que aparecem em uma coletânea de textos
sobre a razão de Estado na Espanha aludem ao fato de que o toledano falecera antes de ver sua
Historia de Don Pedro Tenorio, sair publicada, em 162421. Por sua vez, o pequeno aporte
biográfico de que dispõe uma edição oitocentista de sua Doctrina politica nos diz que Narbona
falecera perto dos cinquenta anos de idade.
O autor toledano foi celebrado pelos poetas Góngora e Lope de Vega, que lhe
dedicaram poemas, tendo este último, inclusive, composto um soneto dedicado a sua morte22.
Nicolás António, o autor da Bibliotheca Hispana Nova ainda nos informa que o toledano foi
doutor em direito canônico, protonotário apostólico e pároco da Igreja de São Cristóvão, em
IV Vere Catholicus ... anno MDCLXV ... (O nome do autor figura no final do texto, segundo nota do Catálogo).
Parece-nos, contudo, que estas duas últimas referências fazem alusão à uma mesma obra. Cf. SALAZAR, Matilde
Conde. “Enriquez de Villegas, comentarista de César”. In: Humanismo y pervivencia del mundo clásico, número
4, parte 2, Madrid, 2008. [pp. 641-650]
17
HESPANHA, António Manuel; SILVA, Ana Cristina Nogueira da. “A identidade portuguesa” In: MATTOSO,
José (dir.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1992. pp. 19-37
18
MARAVALL, José Antonio. Teoria española del Estado en el siglo XVII. Madrid: Centro de Estudio
Constitucionales, 1995, p. 30
19
DURÁN, Abraham Mandoñal. “San Tirso de Toledo, tragedia perdida de Lope de Vega”. Hipogrifo. Revista de
literatura y cultura del Siglo de Oro. Vol. 2, número 1. Navarrra, 2014. [pp. 23-54], p. 26.xx
20
Idem, p. 27.
21
ECHEVERRÍA, Javier Peña, et ali. (ed.). La razón de Estado en Espana: Siglos XVI – XVII (Antología de
textos). Madri: Tecnos, 1998, p. 71
22
PÉREZ, Francisco José Aranda. “Recetarios políticos. Aforismos tacitistas em la Escuela de Toledo en el
primero tercio del siglo XVII”. Conceptos. Revista de Investigación Graciana. Vol. 4, La Coruña, 2007. [pp. 1332], p. 17.
7
Toledo. Já em 1604 dava para impressão a primeira edição de seus aforismos, na imprensa de
Pedro Rodríguez, os quais a Inquisição mandou recolher e incluiu, no Index de 1612,
advertência para que não se voltasse a imprimir a referida obra até que a mesma fosse
emendada e corrigida consoante as exigências do Santo Ofício. As razões que explicam a
censura à obra do pároco de Toledo buscaremos apontar mais a frente23.
Eugênio de Narbona é mais conhecido da historiografia especializada, particularmente
por causa da obra de que nos ocupamos aqui, já que quase não se encontram referências aos
demais escritos do autor24
4. O Semanario Erudito
As Advertencias eruditas para principes y ministros (que agora já sabemos se tratar da
Doctrina politica civil escrita en aforismos), já o dissemos, foram publicadas no último tomo
do Semanario Erudito, periódico voltado a publicação de obras inéditas conforme vem
informado nas descrições que o título completo apresenta: semanario erudito, que
comprehende varias obras ineditas, criticas, morales, instructivas, políticas, históricas,
satíricas, y jocosas de nuestros mejores autores antiguos y modernos. dalas a luz don antonio
valladares de sotomayor) editado por Don Antonio Valladares e impresso em Madri por Blás
Roman. A respeito da atribuição do texto a Diego Enríquez de Villegas, diz-nos o editor do
Semanario que foram feitas muitas diligências para se saber se estavam ou não impressas as
Advertencias, ao que indica que os estudiosos consultados asseguraram que, para eles, tratavase de uma obra desconhecida, e que aqueles que a haviam visto manuscrita duvidavam que
estivesse publicada. Alude ainda o editor para o fato de que Nicolás António listava outras
obras de Villegas, mas não mencionava essas Advertencias25. Tampouco o próprio Diego
Enríquez de Villegas faz qualquer alusão ao manuscrito nas listas de livros impressos ou
mandados à impressão, que figuravam em alguns de seus impressos. Dessa forma, ficamos sem
23
DÍAZ, Gonzalo Díaz. Hombres y documentos de la filosofía española. Madrid, Centro de Estúdios Historicos,
1995. Vol. 5, p.765.
24
Ainda de acordo com Díaz: Annales Eclesiásticos desde el nacimiento de Jesucristo Nuestro Señor
(Manuscrito); Don Félix de Luna (Biografía del Conde-Duque de Olivares, manuscrita); Exercicios espirituales y
oración afectuosa para estar en presencia del Santísimo Sacramento, Toledo, 1624; Historia de Don Pedro
Tenorio, arzobispo de Toledo, Madrid: Juan Ruiz Pereda, 1624; Historia de la ciudad de Toledo (Manuscrito); La
recuperación del Brasil (Manuscrito [com versão publicada pelos anais da Biblioteca Nacional, vol 69, 1950]);
Relación de las Fiestas que hizo la Imperial Ciudad de Toledo en la traslación de la Sacra Santa Imagen de
Nuestra Señora del Sagrario,Toledo: Bernardino de Guzmán, 1616.
25
“Nota del editor” In: SEMANARIO ERUDITO, QUE COMPREHENDE VARIAS OBRAS INEDITAS, CRITICAS,
MORALES, INSTRUCTIVAS, POLÍTICAS, HISTÓRICAS, SATÍRICAS, Y JOCOSAS DE NUESTROS MEJORES
AUTORES ANTIGUOS Y MODERNOS. DALAS A LUZ DON ANTONIO VALLADARES DE SOTOMAYOR.
TOMO XXXIV. CON PRIVILEGIO REAL. MADRID: M.DCC.XCI, p. 252.
8
conhecer quais foram os critérios adotados pelo editor do Semanario para atribuir o texto à
autoria de Villegas. Talvez se pudesse argumentar que a Doctrina politica civil fosse pouco
conhecida à época de Don Antonio Valladares e, em se tratando de um texto que já havia sido
alvo da Santa Inquisição, não figurasse em muitas bibliotecas particulares, abonando, assim, o
desconhecimento do editor. Mas o fato é que, apenas onze anos antes da publicação do último
tomo do Semanario, a obra de Eugênio de Narbona fora objeto de uma nova edição,
juntamente com El concejo y consejeros del Principe, de Furió Ceriol, na imprensa de Andres
de Soto, também em Madri, no ano de 1779. À luz de tais informações, o equívoco de Don
Antonio Valladares parece-nos um pouco menos desculpável.
O Semanario começou a ser publicado em 30 de abril de 1787 e foi suspenso pelo
decreto de Floridablanca, em 24 de fevereiro de 1791, quando todos os periódicos tiveram suas
licensas de publicação suspensas, com exceção do Diario de Madrid, da Gaceta de Madrid e
do Mercurio histórico y político, numa tentativa de impedir que “ideias prejudiciais” fossem
veiculadas através das páginas dos periódicos (efeito direto da Revolução Francesa e do terror
que ela inspirava nas demais monarquias da época)26.
Ramón Baldáqui Escandell, em estudo que realizou a propósito do referido periódico,
assinalou que o Semanario possui um caráter francamente regalista, em que a temática da
relação entre a monarquia espanhola e a igreja católica (sobretudo a questão do patronato)
domina boa parte dos textos recolhidos e publicados por Valladares.27 O artigo de Escandell
traz informações quantitativas acerca do Semanario, tal como a periodicidade, número médio
de folhas para cada volume publicado, o percentual de folhas totais dedicadas ao tema do
regalismo em suas diferentes abordagens (inclusive dividindo cronologicamente os textos:
quinhentistas, seiscentistas e setecentistas, além da divisão “doutrinal”: “episcopalistas” e
“jurisdiccionais”)28, o preço em que o mesmo era vendido, etc. Não é nosso interesse
ocuparmo-nos de tais pormenores. Gostaríamos, isto sim, é de salientar que, se o periódico de
Valladares possui, como demonstra Escandell, esse caráter regalista, é uma surpresa
26
HITA, Beatriz Sánchez. “Prensa para mujeres en Cádiz después de 1791. El Correo de las Damas (1804-1807)
y El Amigo de las Damas (1813)”. Cuadernos de Ilustración y Romanticismo. Cádiz, 2003. Número 11, [pp. 111147], pp. 111-112.
27
ESCANDELL, Ramón Baldáqui. “El regalismo en el Semanario Erudito de Valladares”. In: Revista de historia
moderna: Anales de la Universidade de Alicante. Número 4, 1984. [pp. 339-386]
28
Idem, p. 341. Escandell explicita o que entende por “jurisdiccional” e “episcopalistas”: “Llamaremos regalismo
jurisdiccional al que tiene por objeto el reforzamiento del poder real mediante la atribución al monarce del mayor
número de competencias en materias eclesiásticas; y regalismo episcopalista a aquél que pretende dar peso a la
institución divina del episcopado frente al papado, a fin de realizar la reforma disciplinar de la iglesia. Ambas
tendencias persiguen un objetivo similar, la independencia disciplinar de la iglesia española frente a Roma, pero
sus fines son muy distintos...” Idem, pp. 341-2.
9
encontrarmos um texto como as Advertencias Eruditas (Doctrina Politica...) publicado alí. De
fato, como veremos adiante, o referido texto não trata da polêmica do patronato, ou da desejada
independência da igreja espanhola face à Sede Romana. Reside aí, pois, outro elemento curioso
em torno da obra de que ora nos ocupamos.
5. Comparação entre as duas versões examinadas
O editor do Semanario Erudito não informa a origem do manuscrito que imaginava
trazer à lume pela primeira vez. Não podemos, portanto, ter certeza se a peça se tratava de uma
cópia manuscrita da edição recolhida pela Inquisição. Além disso, não conseguimos ter acesso
a nenhum exemplar da Doctrina publicado naquela data (1604). Por outro lado, tanto quanto
pudemos constatar, a edição de 1779 é baseada na edição de 1621, a mesma que consultamos.
Afora as incertezas mencionadas, podemos desde já informar que a edição que figura no
periódico de Valladares apresenta algumas diferenças formais quando comparada com a
Doctrina politica publicada em 1621, sobretudo no que diz respeito às referências aos autores
consultados (a versão conhecida como Advertencias eruditas nem sempre informa com
precisão as citações) e, em alguns casos, à numeração dos aforismos. O cotejamento das duas
versões, no entanto, revela diferenças mais significativas. A versão atribuída erroneamente a
Villegas não traz o paratexto intitulado “Protestacion”, e que consta nas duas versões
analisadas do Doctrina politica. Essa “Protestacion”, muito provavelmente, atendia a uma
exigência da licença concedida para a impressão da obra após a mesma haver sido proibida
pela Inquisição, e sua ausência na versão do Semanario parece sugerir que o manuscrito
reproduzia parcialmente (conforme se discutirá mais adiante) a versão de 1604. Vejamos o que
diz o paratexto:
Protestacion
Si algo huviere em este libro, que contradiga , ò disuene de la verdad catolica, observancia
de Religion, ò buenos costumbres, su Autor lo juzga por no dico, lo contradize y, reprueva, y
obediente lo sugeta à lá correcion de Santa Yglesia Catolica Romana, y protesta lo errado ser
efecto de ignorancia, no de la voluntad que quiera apartarse de lo justo29
Esse zelo em professar a supremacia da religião sobre as máximas políticas também
aparecerá no “Prólogo a la Magestad catolica del rey de las Españas Don Felipe IIII”, também
ausente da versão do Semanario: “Escrivo una dotrina civil y politica, conque un Principe
29
NARBONA, Eugenio. “Protestacion”. In: Idem, Doctrina Politica civil escrita en aforismos. Madrid, Viuda de
Cosme Delgado, 1621, sem indicação de página ou fólio.
10
acierte à ser bueno, justo, grande, generoso, amado de los suyos, y temido de los estraños, sin
impedir esto (como falsamente entendieron los politicos deste tiempo) la observancia de la
verdadera Religion de Christo...”30 .
As duas edições da Doctrina politica consultadas (1621 e 1779) não contém o aforismo
24, que na versão do Semanario registra o seguinte:
24. Si ay miedo que por castigar algun herege, habrá turbacion pública, suspéndase el
castigo para mejor ocasion, que aguardar à tiempo y conyuntura, no es falta, sino prudencia.
Muchos Príncipes católicos lo han hecho asi, y principalmente el Emperador Carlos V. en
Alemania con Lutero, à quien pudo matar facilmente, y de miedo de la commocion popular lo
dexó, y pareció buen consejo, y el Emperador Valentiniano en ocasion de estar el Imperio
dividido en cisma.31
O aforismo de número 77, presente nos dois textos que estamos comparando, possui uma
pequena diferença, na verdade uma omissão: a versão do Semanario não chega a citar o nome
de Maquiavel, como acontece com a versão da Doctrina:
77.
El juramento no solo no ha de violar el Principe, pero ni pensar que puede hazerse por
ningun respeto ò razon. Los Romanos temieron mas quebrantar los juramentos que las leyes,
assi dize Machiavelo, autor condenado, de la contraria opinion. Lib. 1. de sus discursos, c.
II.32
Outra referência ao nome do secretário florentino voltará a aparecer no aforismo de
número 170 da Doctrina; este, por sua vez, não aparece na versão do Semanário:
170. Honre el Principe, engrandezca, enriquezca al privado, quedandose Rey. Luzgasele a la
nube en su su resplandor la vezindad del Sol, y al arbol en lo fertil criase junto a las aguas y
pague estos oficios el privado sirviendo sin codicia, de mas utilidad que acertar a servir,
atento a la conservacion del estado y reputacion del dueño. Machiavelo (autor condenado)
lo advirtio assi a su Principe. Lib. de Principe.33
Outro ponto importante que a análise comparativa das duas versões fez aparecer foi o
fato de que não apenas ocorrem as referências diretas (mesmo que temperadas pela fórmula
“autor condenado”) a Maquiavel na versão pós-censura da Doctrina, como também figuram
argumentos que sabor marcadamente pragmático, tais como o aforismo 215, que trata da
pertinência dos castigos e da dosagem que deles o príncipe deve se utilizar:
30
Idem, “ Prólogo a la Magestad catolica del rey de las Españas Don Felipe IIII”. In: Idem, ibidem, sem indicação
de página ou fólio.
31
Semanario, op. cit., p. 264.
32
NARBONA, Eugenio. Op. cit., fols 38f e 38v. Grifos nossos
33
Idem, fols 65f e 65v. Grifos nossos
11
215. Si escarmientos no aprovechan, castigue el Principe rigurosamente, que graves males,
sino es con grandes y fuertes medicinas no se curan. Diche de Tacit. 3. Annal, y el Rey Don
Enrique 3 de Castilla, pareciendo que se perdian el respeto por la poca edad, empeço a
castigar, y no bastando, de una vez hizo ahorcar em Sevilla mil hombres de plebeyos y nobles,
y despues tuvo apique de cortar las mas principales y mayores cabezas de Reyno, con que
adquirio el respeto, y la mayor obediencia que jamas se tuvo a outro Principe.”34
Aqui, a defesa de uma postura que pouco faz lembrar o príncipe clemente, cuja imagem
é classicamente construida pela literatura católica dos espelhos de príncipes. O tema da
clemência
e novamente trazido à baila por Narbona, e as diferenças de redações são
significativas entre as duas versões. O aforismo 226 da versão do Semanario, e que na versão
da Doctrina politica aparece como 231 (as numerações diferentes vão se acumulando a partir
do aforismo de número 80, conforme já mencionamos), apresentam redações diferentes. No
primeiro caso, ao se referir ao castigo que o príncipe deve infligir uma vez descoberta alguma
traição, Narbona argumenta que se deve esquecer a clemência, pois guardá-la nesse caso seria
um gênero de crueldade. O aforismo 231, por sua vez, não faz menção à clemência, aconselha
o rigor e defende que tê-lo não constitui um gênero de crueldade. Comparemos as redações:
226. Descubierta la traicion, y por legitimos modos probada castigue el Principe, con rigor y
olvidado toda clemencia, que tenerla es un genero de crueldad en casos tales, donde vá la
salud publica, y el vivir todos con seguridad.35
231. Descubierta la traycion, y por legitimos modos provada, castigue el Principe cõ rigor,
que tenelle no es genero de crueldad en casos tales, donde va la salud publica.36
Diferença sutil para nós, mas que pode evitar o inconveniente de se associar aquela que
era considerada uma das mais importantes virtudes que o príncipe devia possuir, a clemência,
com seu vício contrário, a crueldade. Os dois aforismos seguintes, também dedicados ao tema
do castigo de traidores, está presente somente na Doctrina:
232. Antes de castigar la traycion procure el Principe assegurarse bastantemente, y no se dè
por ofendido primero que tenga en su poder los ofensores, cõ prudencia aguarde la sazõ (si
en la tardança no ay peligro) que suele el no darse por entendidos remediar tales casos. El
consejo es de Tacito 5. Annal. y la ultima razõ, lib. 14 y las cõtinuas guerras de Flãdes son
testigos de quãto daño es no prender primero los conjurados, pues uno solo que quedò há
costado tanto a los reynos, y a la religion.
233. Si los que conjuran cõtra el Principe son tã poderosos que el castigallos podria
resultar en mayor peligro, o por el amor que han adquirido del pueblo, o por las familias a
que se injuria con su castigo, prudentemente lo mire el Principe, y ò perdone del todo,que la
clemencia usada con los indignos della, suele reduzir la obediencia y amor, o ca igue con
34
35
36
NARBONA, Eugenio. Op. cit., fols. 78V e 79f.
Semanario, op. cit., p. 296 Grifos nossos
NARBONA, Eugenio. Op. cit., fol. 84f. Grifos nossos
12
tales penas templadas (de prisió ò destierro) que no irriten ni ofendan. Doctrina de Seneca 1.
de clemencia, y el exemplo de Cina con Cesar, que està en el aphorismo 9137
Os dois aforismos acima aludem não somente a questão da clemência, mas também da
dose necessária de dissimulação de que deve dispor o príncipe afim de evitar inconvenintes que
poderiam resultar da simples e obstinada observância da clemência. Isto é, até mesmo a virtude
de um príncipe deve ser objeto de um cálculo envolvendo os objetivos e as consequências; o
pragmatismo. Ainda na versão da Doctrina, na sequência do trecho acima reproduzido,
aparece uma alusão à clássica questão colocada por Maquiavel: é melhor ser temido ou amado?
Eis o que Narbona conclui a esse respeito:
235. El Principe justo tema llegar a ser temido, sin tener porque merecer ser amado, que los
imperios que por solo miedo se governã, duran poco, que al fin quien teme aborrece, y quien
aborrece dessea el fin del enemigo. Consejo de Ciceron 2. de officio y el Rey don Enrique 3,
de Castilla dezia, que mas temia el aborrecimiento de sus vassallos, que las huestes de los
enemigos. Marian. Lib 22. c. 19.
236. Principe que llega a ser aborrecido de sus vassallos: aun de los mesmos de quien se fia
y es guardado, no esta seguro. Macrõ capitan de la guarda del Emperador Tiberio, le hizo
ahogar. Tacit. 4. Annal.
Ao todo, a versão de 1621 da Doctrina politica civil escrita en aforismos contem 20
aforismos, de um total de 292 (a numeração termina em 294, mas os aforismos 24 e 220 não
existem nas edições de 1621 e 1779), que não aparecem na versão que o Semanario Erudito
nomeou de Advertencias eruditas para principes y ministros. Essa versão do texto de Narbona,
que o editor do Semanario Erudito atribuiu à Diego Enriquez de Villegas, contem apenas dois
aforismos que não se encontram na Doctrina politica de 1621.
Conforme se mencionou anteriormente, não dispomos de informações a respeito da
origem do manuscrito publicado por António Valladares em seu Semanario. Também não
conseguimos ter acesso a um exemplar da Doctrina publicado em 1604, razão por que não
podemos ter certeza se o manuscrito publicado por Valladares corresponde à versão censurada
(seja como manuscrito anterior à versão impressa de 1604, seja como manuscrito produzido a
partir da mesma versão) do texto de Eugênio de Narbona. Entretanto, parece-nos bastante
razoável a hipótese de que o manuscrito a que estamos fazendo referência fosse, em realidade,
uma versão incompleta da primeira edição da Doctrina de Narbona, e isto por duas razões. Em
primeiro lugar, o texto do Semanario apresenta um número menor de aforismos
comparativamente à versão de 1621 por nós analisada e, em segundo lugar, Francisco Tomás y
37
NARBONA, Eugenio. Op. cit., fol. 84F, 84v e 85f.
13
Valiente, que analisou as duas versões impressas da Doctrina, assinalou que no texto de 1621
se modificaram ou foram retiradas algumas palavras em 9 aforismos, e apenas dois aforismos
foram inteiramente cortados do texto (justamente o número de aforismos que aparecem na
versão do Semanario e não aparecem na edição de 1621)38.
Antes de concluirmos é preciso dedicar algumas palavras sobre os motivos que teriam
feito com que a obra e Narbona tivesse sofrido a ação da censura inquisitorial. Aqui, devemos
reconhecer, pairam algumas incertezas. Em primeiro lugar, como já dissemos, ficamos
impedidos de afirmar de forma peremptória que o manuscrito publicado por Valladares fosse
uma versão da Doctrina politica em sua primeira e fugaz aparição, em 1604. Em segundo
lugar, seria necessário consultar, além da referida versão, toda a documentação produzida pelo
processo de censura à obra. Sem o acesso a esse material, apenas nos resta ponderar sobre o
que seria um "maquiavelismo" de Narbona, segundo apontam alguns autores especialmente
dedicados ao pensamento político espanhol durante os séculos XVI e XVII39.
Se a versão do Semanario puder ser admitida como um texto originado da (ou para a)
edição de 1604, conforme acreditamos, a comparação revelou que a edição que a censura
autorizou faz duas referências ao nome de Maquiavel, o que não
chega a ocorrer no
manuscrito publicado por Valladares, mesmo que nele contenham traços maquiavelianos.
Parece-nos, contudo, que essas alusões diretas ou não à Maquiavel não tiveram peso definitivo
na decisão da Inquisição, muito embora estejamos informados de que a obra de Maquiavel
havia sido inclusa no Índice de Paulo IV em 1559 e novamente no Índice tridentino de Pío IV
de 1564. Na Espanha, contudo, a obra do secretário florentino será expressamente proibida
somente em 158340; fato que demonstra não só que a Inquisição Espanhola se posicionava com
certo grau de independência no que tange às decisões de Roma, mas também que os escritos de
Maquiavel puderam circular (e circularam) dentro da Espanha por tempo suficientemente
longo para que fosse lido por muitos intelectuais, inclusive de origem e ocupação religiosas,
como Eugênio de Narbona.
Portanto, diante da impossibilidade de indicar os motivos que levaram os aforismos de
Narbona a serem censurados, podemos inferir que a presença, expressa ou não, de Maquiavel
38
PÉREZ, Francisco José Aranda. Op. cit., pp. 18-19, n.23.
É o que sugere o clássico texto de Enrique Tierno Galván, "El tacitismo en las doctrinas políticas del Siglo de
Oro español", publicado en Anales de la Universidad de Murcia, curso 1947-48, p. 933.
40
Cf.: FORCADA, Helena Puigdomènech. “Maquiavelo, la monarquía y la Inquisición española”. In: Boletín de
la Real Academia de Buenas Letras de Barcelona, 1976: vol. 36 [pp 203-210]
39
14
não foi fator determinante, como também não o foram as diversas manifestações do que aqui
estamos chamando de pragmatismo católico.
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17

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