pio xii, o papa de hitler?

Transcrição

pio xii, o papa de hitler?
PIO XII, O PAPA DE HITLER?
PIUS XII, HITLER’S POPE?
Joaquim Blessmann*
Resumo: O presente artigo apresenta alguns testemunhos
históricos da época e do pontificado de Pio XII (Eugênio Pacelli)
a respeito da ação do papa e da Igreja Católica em defesa de
judeus e de tantos quantos foram perseguidos pelo regime nazista.
Rebate-se a já contumaz alegação de que Pio XII foi omisso e
não fez nada em defesa durante o Holocausto dos judeus e, o
que é pior, teria colaborado com Adolf Hitler.
Palavras-chave: Pius XII – Segunda Guerra Mundial –
Holocausto.
Abstract: This article presents some historical evidence from the
time of Pius XII’s (Eugênio Pacelli) pontificate concerning the
Catholic Church and the Pope’s actions in defense of the Jews
and so many others who were persecuted by the Nazi regime. It
argues against the obstinate concern that Pius XII was heedless
and that he did not do anything to help the Jews during Holocaust
and, even worse, that he was Hitler’s collaborator.
Keywords: Pius XII – Second World War - Holocaust
É cansativo, caro leitor, é realmente cansativo, fastidioso,
monótono e mesmo aborrecido e acabrunhador voltar sempre
aos mesmos argumentos, às mesmas provas históricas que mostram
cabalmente não ter sido Pio XII omisso no que diz respeito ao
Holocausto e nem simpatizante de Hitler. Ele teria sido “o papa
de Hitler”, como afirmado por pessoas exaltadas, fundamentalistas
da pior espécie.
O que nos leva a essas considerações e a voltar novamente
ao tema é um artigo de Wálter Fanganiello Maierovith, publicado
na revista Carta Capital de 29/10/2008.
Vamos citar trechos desse artigo, cada um deles seguido
de comentários nossos, baseados em documentos da verdadeira
História, os quais mostram o quanto de falso há nesse artigo.
*
Mestre e Doutor pelo Instituto de Tecnologia Aeroespacial (ITA), Especialista
em Aerodinâmica das Construções, Professor Emérito da UFRGS.
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1 “... deportação de judeus-italianos para o campo de
extermínio de Auschwitz, na Polônia, em 18 de outubro de
1943, que embarcaram na estação Tiburtina, em Roma [...]
Pio XII não levantou a voz, não proferiu alocução ou homilia
nem escreveu texto de protesto [...]. Pacelli preferiu o
silêncio, que a historiografia não deixou passar.
No episódio da deportação de judeus-italianos para o campo
de extermínio de Auschwitz, ele estava no Vaticano e de
tudo soube, mesmo porque entre as prisões e as deportações
passaram-se dois dias, mas não interveio. Nem tocou no
assunto em escritos públicos”.
Comentários
“Pacelli preferiu o silêncio”, diz Maierovitch. Ele pouco
falou, mas agiu muito, sim. Pio XII sabia muito bem, como
detalharemos mais adiante, que protestos de nada adiantavam;
pelo contrário, Hitler afirmara que não admitia críticas às suas
ações, e não só não admitia como responderia com mais violência.
Também não é verdade que “a historiografia não deixou
passar” esse silêncio. Não houve silêncio nem a historiografia o
criticou. Estamos falando aqui da verdadeira História, e não de
simples afirmações gratuitas, falsas e mal intencionadas. Mas
vejamos o que aconteceu e que providências tomou Pio XII,
conforme consta das Atas oficiais do Vaticano.
Foi na noite de 15-16 de outubro de 1943 que membros
das tropas SS começaram a aprisionar cerca de mil judeus, indo
de casa em casa, conduzindo-os para o Colégio Militar, em
Lungotevere. No dia 18 foram enviados, por trem, para a
Alemanha. A primeira informação sobre esse acontecimento
parece que Pio XII obteve de uma jovem princesa italiana, Enza
Pignatelli Aragona.
Ainda pela manhã, o Secretário de Estado Cardeal Luigi
Maglione comunicou ao embaixador alemão no Vaticano, Ernst
von Weizsäcker, o protesto pessoal de Pio XII e pediu que ele
fizesse o que fosse possível, em nome dos princípios humanitários
e da caridade cristã. Após ouvir atentamente o protesto do Cardeal
Maglione, Weizsäcker perguntou se Pio XII realmente insistia
que Berlim fosse informado da indignação papal. “Eu penso”,
disse ele, “nas conseqüências que um protesto da Santa Sé pode
precipitar. A ordem para a ação [de deportação] veio do mais
alto nível. Quer Vossa Eminência deixar-me livre para não
considerar oficialmente esta conversa?” Weizsäcker assegurou ao
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Cardeal Maglione que ele faria todo o possível para tratar, a nível
local, da ameaça aos judeus de Roma. Mas ele não queria assumir
a responsabilidade de transmitir o protesto papal a seus superiores
em Berlim. Baseado nesse compromisso, Maglione não pressionou
para que o protesto chegasse a Berlim. “Por experiência”,
comentou Marchione, “ele possivelmente estava convencido que
em assuntos relativos aos judeus uma intervenção de Berlim não
seria boa e, pelo contrário, poderia produzir um efeito oposto”.1
Além dessas providências por via oficial. Pio XII quis
reforçá-las por meios não oficias. No mesmo dia em que os judeus
foram presos, Monsenhor Aloys Hudal, de origem austríaca,
recebeu a visita do sobrinho de Pio XII, Carlo Pacelli. Após esse
encontro, Hudal escreveu ao general Stahel, o governador militar
de Roma, e insistiu com ele para que suspendesse as prisões de
judeus. Se as prisões continuassem, advertiu Hudal, o Papa
publicaria um protesto público, exatamente na ocasião em que
Alemanha tinha todo interesse em evitar tal ação. Imediatamente
o general Stahel enviou a mensagem para as autoridades
competentes e para o próprio Himmler (considerado o “arquiteto
do Holocausto”), o qual deu ordem para suspender as prisões,
que estavam “fora de consideração, devido ao caráter especial
de Roma”.2 Nada mau para quem, conforme Maierovitch, “não
levantou a voz, preferiu o silêncio”.
Mais tarde, o já citado embaixador alemão, Weizsäcker,
disse o seguinte:
Um “protesto flamejante” pelo Papa não somente não teria
sucesso para deter a maquinária de destruição mas poderia
ter causado uma grande quantidade de dano adicional aos
milhares de judeus escondidos no Vaticano e nos
monastérios, aos oriundos de casamentos mistos (entre judeus
e cristãos), à Igreja, à integridade territorial da Cidade do
Vaticano e — por último e não menor - aos católicos de toda
Europa ocupada pela Alemanha.3
1
2
3
MARCHIONE, Margherita. Yours is a precious witness. New York: Paulist
Press, 1997, p.16-17.
BLET, Pierre, S.J. Pius XII and the Second World War. New York: Paulist Press,
1999, p. 216.
RYCHLAK, Ronald J. Hitler, the war, and the Pope. Columbus (MS), USA:
Genesis Press, 2000, p. 263.
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E Paolo Vincentin, em artigo que apareceu em
L’Osservatore Romano em 1965:
Nós que éramos membros da Embaixada alemã, embora
julgássemos a situação diferentemente, estávamos em
completo acordo em um ponto: um protesto solene de Pio
XII contra a perseguição aos judeus, provavelmente teria
exposto a eles e à Cúria Romana a grande perigo, e
certamente, no outono de 1943, ele não estaria em condições
de salvar a vida de um único judeu.4
Esta mesma advertência a Pio XII fizeram, em várias
ocasiões, bispos de países ocupados.
Pio XII sempre ponderava cuidadosamente os prós e os
contras de uma manifestação clara, direta e mais ou menos
contundente sobre as violências e mortes causadas pelos nazistas.
Em várias cartas aos bispos da Alemanha ele lhes manifestou
suas hesitações e dúvidas, das quais Blet apresenta dois exemplos.
Em carta de 20/02/1941: “Quando o Papa queria gritar em voz
forte, espera e silêncio foram, infelizmente, muitas vezes impostos;
quando ele queria socorrer e levar ajuda, paciência e expectativa
(eram necessários)”. E em carta de 3/03/1944: “Freqüentemente
é com dor e dificuldade que uma decisão é tomada de acordo
com o que exige a situação; reserva prudente e silêncio ou, pelo
contrário, fala imparcial e ação vigorosa”.5
E foi assim que Pio XII agiu, e esta ação foi devidamente
apoiada pelos que viveram o drama da perseguição e pelos
pósteros que, com isenção de ânimo, sem preconceitos, sem
fanatismo, analisaram os documentos e os testemunhos, dos quais
parte está transcrita ao longo desse trabalho. Enquanto Pio XII
mantinha-se comedido em seus pronunciamentos, os Núncios e
Delegados Apostólicos agiam junto aos episcopados e governos
dos países dominados ou sob forte pressão dos nazistas.
Vejamos o que disse o escritor judeu Poliakov: “Contudo
será preciso reconhecer, na base da experiência feita na época e
no lugar adequado, que protestos públicos do Papa poderiam
4
5
MARCHIONE, Margherita. Pope Pius XII: Architect for Peace. New York:
Paulist Press, 2000, p. 129.
BLET, Pierre, S.J. Op.cit., p.285.
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acarretar desapiedadas represálias”.6 De fato, Poliakov estava
confirmando a necessidade de muita cautela, pois Hitler não era
de se impressionar por protestos, quanto menos acatá-los. A cada
protesto, crescia a perseguição a judeus, poloneses e outras
pessoas, independentemente de sua religião.
Ao Embaixador da França, que lhe solicitou uma
intervenção decidida e pública a favor da Polônia, na qual havia
perseguição impiedosa também contra a Igreja e o povo, Pio XII
respondeu: “Não se deve esquecer que no Reich há 40 milhões
de católicos. A que estariam expostos depois de um semelhante
ato da Santa Sé? O Papa já falou e claramente”.7
Pio XII, em pronunciamento aos Cardeais reunidos em Roma,
em 02/06/1943, após ter expressado seu grande pesar pelos
perseguidos, disse o seguinte: “Cada palavra que nós temos dirigido
às autoridades competentes e cada insinuação que temos tornado
pública devem ser seriamente ponderadas, no interesse daqueles
que sofrem, a fim de que, involuntariamente não tornem sua
situação mais complicada e intolerável.”8
E isso Pio XII sabia por experiência própria. No início da guerra,
em 1939, ele fizera protestos públicos em defesa de judeus e
poloneses, que estavam sendo trucidados pelos nazistas. A cada
protesto, aumentavam as represálias, de tal modo que os próprios
bispos poloneses pediram a Pio XII que não mais protestasse.9
Eis outro exemplo das reações intempestivas e doentias de Hitler.
O Pe. Giuseppe Morosini tinha sido preso em Roma por terem
sido encontradas armas em sua casa. Apesar da culpa do Pe.
Morosini, Pio XII enviou um representante, o futuro Cardeal Taglia,
ao marechal-de-campo Kesselring, para interceder pelo acusado.
Kesselring telefonou a Hitler, comunicando-lhe que o Papa estava
tratando pessoalmente do caso. Reação de Hitler, bem a seu
estilo: mandou antecipar a execução do Pe. Morosini.10
Pio XII tinha conhecimento do que dissera Hitler ao Reichstag,
em 30/01/1939:
Frankfurter Allgemeiner Zeitung, 11/05/63, apud BETTENCOURT, Estevão.
Pio não se calou. Pergunte e Responderemos, Rio de Janeiro, ano 39, n. 438,
nov. 1998, p. 299.
7
PACI, Stefano. Leiam o livro do Pe. Ble sobre Pio XII. 30 Dias, v. 16, n.4, abr.
1998, p. 40.
8
McINERNY, Ralph. The defamation of Pius XII. St. Augustine’s Press, Indiana:
South Bend, 2001, p. 160.
9
BETTENCOURT, Estevão. Pio XII e os judeus. Pergunte e Responderemos
, Rio de Janeiro, v. 35, n. 389, out. 1994, p. 440.
10
McINERNY, Ralph. Op.cit., p. 31.
6
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Parece que no estrangeiro certos ambientes alimentam a
opinião de que solidarizar-se em alto tom com elementos
que, na Alemanha, estão em oposição à lei, poderia provocar
uma melhora da situação destes [...] Esta opinião funda-se
sobre um erro capital. No apoio que os estrangeiros dão a
certas iniciativas dirigidas contra o Estado, vemos a mais
cabal confirmação de que são obras de alta traição! [...] Tal
apoio, portanto, parece destinado àqueles que projetam
aniquilar o Reich alemão. É esta a razão pela qual veremos
em cada caso particular mais um imperioso motivo para
reforçar as medidas repressivas [O grifo é nosso].11
E nem a nível diplomático Hitler admitia que se tocasse
no assunto. Veja-se, por exemplo, seu comportamento nada
diplomático em um de seus encontros com o Núncio. Em 1943
Pio XII solicitou a seu Núncio em Berlim, Cesare Orsenigo, que
falasse diretamente com Hitler a fim de discutir o tratamento
dado aos judeus na Alemanha e nos territórios ocupados. Assim
relatou Orsenigo esse encontro:
Uns poucos dias atrás finalmente consegui ir a
Berchtesgaden, onde fui recebido por Hitler. Assim que eu
toquei na questão dos judeus e o judaísmo, a serenidade de
nosso encontro foi repentinamente quebrada. Hitler viroume as costas, foi para a janela e começou a dedilhar no vidro
[...] enquanto eu continuava a falar de nossas queixas.
Subitamente Hitler virou-se, foi até uma mesa auxiliar, da
qual agarrou um copo d’água e arremessou-o ao piso com
fúria. Em face de tal comportamento diplomático, julguei
que minha missão estava encerrada.12
Além disso, Pio XII devia ter sempre presente o que
acontecera na Holanda. Tudo começou com uma medida restritiva
imposta por um comissário do Reich, pela qual os alunos judeus
e os católicos descendentes de judeus só poderiam ter aulas com
professores judeus. A seguir, um novo decreto obrigou todos os
11
12
BETTENCOURT, Estevão. Pio XII, os nazistas e os judeus . Pergunte e
Responderemos, Rio de Janeiro, v. 28, n.305, out. 1987, p. 443.
McINERNY, Ralph. Op.cit., p.162.
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edifícios públicos a afixarem cartazes com os dizeres Voor Joden
verboden! (Proibido para judeus!). O bispo de Utrecht, Mons. De
Jong, protestou em nome do episcopado holandês, o que de
nada adiantou. Pelo contrário, começaram as deportações em
massa. As Igrejas cristãs da Holanda protestaram ao comissário
do Reich por meio de um telegrama que lhe enviaram em 11/
07/1942, no qual também exigiam a suspensão imediata dessas
medidas. Seria quase que desnecessário dizer que este protesto
também foi em vão. Foi então que o episcopado holandês
providenciou um protesto em carta pastoral, a ser lida em todas
as igrejas e capelas da arquidiocese de Utrecht. Esta carta pastoral
incluía o texto do telegrama de protesto anteriormente enviado
ao comissário, o que mais ainda indignou as autoridades nazistas.
As represálias que adotaram foram bem ao modo doentio de
Hitler responder a protestos. No dia dois de agosto centenas de
católicos não arianos, entre eles todos os religiosos de origem
judaica (cerca de 300, entre eles Edith Stein) foram presos e
deportados por agentes das tropas S.S. O próprio comissário geral
Schmidt declarou que a prisão dos religiosos tinha sido uma
reação à carta pastoral de 26 de julho: “Como o clero católico
não se deixa demover por nenhuma negociação, vemo-nos
forçados a considerar os judeus católicos como os nossos piores
inimigos e, por essa razão, a deportá-los para o Leste o mais
depressa possível”.13
Além dos católicos de origem judaica, milhares de judeus
também foram deportados. Seu destino? Birkenau, onde foram
mortos, judeus e não judeus, assim que lá chegaram, em 9/08/
1942. Quanto ao número total de deportados nessa ocasião, há
dúvidas sobre se chegaram a 40 mil.
Os bens da Igreja na Holanda foram confiscados e extintas
as instituições de ajuda fraterna dos católicos na Holanda, Bélgica
e outros países ocupados.
Riegner é outro que relembra o caso da Holanda. Em
entrevista concedida a Alberto Moccetti disse o seguinte:
O protesto dos bispos holandeses deu margem a represálias
por parte dos alemães, que deportaram até os judeus
convertidos. Devo lembrar que um ano depois, em toda a
Europa foram deportados também os judeus convertidos. É
13
KAWA, Elisabeth. Edith Stein, a abençoada pela cruz. São Paulo: Quadrante,
1999, p. 103.
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possível que uma atitude mais decisiva do Papa tivesse tido
conseqüências negativas para certos homens da Igreja, que
teriam sido vítimas de represálias.14
O Bispo Jean Bernard, de Luxemburgo, que esteve preso
no campo de concentração de Dachau de fevereiro de 1941 a
agosto de 1942, declarou que a cada protesto da Igreja contra as
atrocidades dos nazistas o tratamento dos prisioneiros piorava
imediatamente. Eis suas palavras:
Os padres detidos tremiam cada vez que chegava até nós
notícia de algum protesto de autoridades religiosas, mas
principalmente do Vaticano. Todos nós tínhamos a
impressão que nossos guardas faziam-nos expiar
severamente pela fúria que estes protestos despertavam. [...]
A maneira com que nós éramos tratados tornava-se mais
brutal; os pastores protestantes prisioneiros costumavam
desabafar sua indignação nos padres católicos: “De novo
seu grande ingênuo Papa e aqueles simplórios, seus bispos,
não calam a boca [...] Eles se fazem de heróis e nós pagamos
a conta”.15
Também Marguerita Marchione confirma o agravamento
da situação para os perseguidos por Hitler com os protestos da
Igreja: “Cada vez que o Papa protestava, os judeus e os cristãos
que estavam nos campos de concentração eram tratados muito,
muito cruelmente”.16
O Major britânico William Simpson, presbiteriano escocês,
foi prisioneiro dos alemães na Itália. Não está de acordo com a
afirmação de que o Papa deveria ter clamorosamente denunciado
as brutalidades do nazismo. Ele afirma que o papel discreto do
Vaticano foi de imensa ajuda à causa das vítimas da guerra.
2 “Jamais passou pela cabeça de Gumpel” (Pe. Peter Gumpel,
um dos postuladores canônicos da beatificação de Pio XII)
“que as orações para a beatificação” (solicitadas por Bento
XVI no 50º aniversário da morte de Pacelli) “significariam,
se atendidas, uma absolvição de Pacelli”.17
14
15
16
17
MOCETTI, Alberto. O judeu que denunciou a “solução final”. 30 Dias, v. 3,
n.2, fev. 1988, p. 66.
RYCHLAK, Ronald J., Op.cit., p.260.
BETTENCOURT, Estevão. Pio XII e os judeus, p. 387.
Idem. Ibidem, p. 389.
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Comentários
Absolvição de quê? De ter dirigido, com mão firme e a
cautela que a situação exigia, a salvação de cerca de 860 mil
judeus? Fato este reconhecido por um grande número de
entidades e de personalidades judaicas? Entre elas citamos18:
No dia 29/11/1944, pouco depois de terem os americanos entrado
em Roma, um grupo de 70 israelitas foi ao Vaticano para agradecer
ao Papa a sua atitude durante a guerra.19
Giuseppe Nathan, comissário da União das Comunidades Judaicas
Italianas; Leo Kubowitzki, secretário geral do Congresso Judeu
Mundial; quarenta delegados do United Jews Appeal ; Albert
Einstein, o genial físico judeu; Poliakov, escritor judeu; Pinchas
Lapide, historiador, que foi Cônsul Geral de Israel em Milão e
professor universitário em Jerusalém; Dr. Marcus Melchior, Rabino
Chefe da Dinamarca; Moshe Sharetto, Primeiro Ministro de Israel;
Golda Meier, então Ministra de Assuntos Exteriores de israel, e
posteriormente Primeira Ministra; Isaac Herzog, Rabino Chefe de
Jerusalém; Dr. Joseph Nathan, representante da Comissão hebraica;
a Comunidade Judaica Italiana; Reuben Resnick, diretor norteamericano do Comitê para Ajuda a Judeus na Itália; Emanuel
Rackman; Rabino e presidente do Conselho Rabínico da América;
Israel Zolli, rabino em Roma durante a ocupação nazista.
E não se pode esquecer a mensagem enviada a Pio XII por vinte
mil judeus refugiados da Europa Central: “Permita-nos solicitar a
grande honra de podermos agradecer, pessoalmente, Sua
Santidade pela generosidade que mostrou-nos quando estávamos
sendo perseguidos durante o terrível período do nazi-fascismo”.20
Julgamos oportuno citar testemunhos também de não judeus:
Em 31/10/1944 o representante de Roosevelt junto ao Vaticano,
Myron Taylor, em um relatório enviado ao Comitê para
Refugiados, em Washington, disse o seguinte:
Eu também quero prestar minhas homenagens a muitos
grupos e indivíduos não judeus que mostraram um
verdadeiro espírito cristão em sua pronta e amistosa reação
em apoio aos desamparados da Europa [...]. Em toda a
18
19
20
Para detalhes de suas manifestações, consultar BLESSMANN, Joaquim. O
Holocausto, Pio XII e os Aliados. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003; e também
ID. Bento XVI, Auschwitz e o povo alemão. Cultura e Fé, Porto Alegre: ano
31, nº 121, p. 26-57, abril-junho 2008.
MOCETTI, Alberto. Op.cit., p. 436.
MARCHIONE, Margherita. Op.cit., p.77.
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Europa padres católicos forneceram lugares de refúgio e
proteção aos perseguidos. Sua Santidade, Pio XII, intercedeu
em muitas ocasiões em socorro de refugiados em perigo.21
Sir D’Arcy Godolphin Osborne foi Ministro Plenipotenciário
do Reino Unido da Grã-Bretanha junto à Santa Sé de 1936 a
1947. Teoricamente protestante, era religiosamente indiferente.
O historiador Owen Chadwick, protestante, baseado nas
“Memórias” do Ministro Osborne, afirma o seguinte:
Pio XII foi um Papa corajoso [...] Era cauteloso nas denúncias,
consciente de quanto poderiam ser contraproducentes se não
usasse de circunspecção. Mas, quando via que podia fazer
algo de concreto, entrava em ação e a sustentava até o limite
extremo. Calara-se a respeito da invasão da Polônia porque
suas palavras só teriam contribuído para agravar a situação,
provocando represálias contra os Bispos e os fieis
poloneses.22
Osborne testemunhou as ações do Papa em favor dos
judeus: eles foram escondidos em conventos e mosteiros, no
Vaticano e em Castel Gandolfo. Cerca de seis mil judeus estavam
escondidos em Roma. Quanto aos que foram encarcerados, por
intermédio de seu Secretário de Estado Pio XII pediu ao
embaixador Weiszäcker que se interessasse por eles, conseguindo
que algumas centenas de judeus recuperassem a liberdade.
Um capelão judeu do 5º Exército Norte Americano, falando
pelo rádio, em Roma, em 30/07/1944, disse o seguinte: “Se não
fosse pela assistência realmente essencial dada aos judeus pelo
Vaticano e pelas autoridades eclesiásticas de Roma, centenas de
refugiados e milhares de refugiados judeus teriam sem dúvida
perecido antes que Roma fosse libertada”.23
Outro testemunho de grande valor é o do Major britânico
William Simpson. Aprisionado pelos alemães na Itália, conseguiu
fugir, ficando escondido por meses, com a ajuda de um sacerdote
irlandês e de italianos. Em seu livro A Vatican Lifeline (Um salvavidas do Vaticano), ele atesta que refugiados judeus e outros
prisioneiros foragidos, de outros credos e outras nacionalidades,
21
22
23
RYCHLAK, Ronald J., Op.cit., p. 225.
BETTENCOURT, Estevão. Pio XII, os nazistas e os judeus. Op.cit., p. 438.
MARCHIONE, Margherita, Op.cit., p. 76.
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encontraram abrigo em muitos Seminários e Universidades
Católicos em Roma e outros locais. Simpson não está de acordo
com os que criticam a cautela dos pronunciamentos do Vaticano.
Para ele, o procedimento cauteloso do Vaticano ajudou em muito
as vítimas da guerra.24
3 “No Museu do Holocausto, em Jerusalém, na legenda
abaixo da imagem de Pacelli, procura-se, em 23 linhas,
mostrar a omissão de Pacelli, com ênfase ao fato, verdadeiro,
de ele ter colocado na gaveta uma carta condenando o antisemitismo e o racismo, preparada e aprovada pelo seu
antecessor, Pio XI”.
Comentários
São tantas as inverdades no parágrafo acima, que
chegamos a suspeitar que a crítica abaixo da imagem de Pacelli
seja mais uma inverdade; ou, mais do que isso, mais uma mentira,
pois não cremos que Maierovith creia no que diz. É muita
ignorância, e também muita malícia e descaramento. É desprezar
os conhecimentos alheios, para tentar impingir tantas inverdades.
Omissão de Pio XII? Engavetamento de carta preparada
por Pio XI? A realidade foi completamente diferente. Francamente,
face às tantas inverdades, descaradamente apresentadas em seu
artigo, chegamos a duvidar sobre o registro, no Museu do
Holocausto, da omissão de Pacelli. Está completamente em
desacordo com o que vimos no item 1 e veremos a seguir.
Em março de 1937 Pio XI publicou três encíclicas, todas
elas tratando de relações internacionais. A Encíclica Divini
Redemptoris tratou do comunismo, enquanto que a intitulada
Mit brennender Sorge (Com ardente preocupação) referia-se ao
Nacional Socialismo de Hitler, condenando-o como não cristão.
Esta foi, no dizer de Rychlak, “uma das condenações mais fortes
a qualquer regime nacional que a Santa Sé jamais publicou”. A
encíclica condenava tanto a perseguição à Igreja na Alemanha,
como também o neo-paganismo das teorias nazistas. E sua
idolatria da raça e sangue.
A idéia de escrever essa Encíclica é de agosto de 1936.
Os bispos alemães, em face dos problemas que a Igreja estava
enfrentando na Alemanha, solicitaram a Pio XI que se manifestasse
a respeito. Pacelli, que fora Núncio Apostólico na Baviera (19171925) e em Berlim (1925-1929), era considerado como o prelado
com mais conhecimento dos problemas da Igreja com a
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Alemanha. Em vista disso foi a ele, então Secretário de Estado,
que Pio XI encarregou de elaborar, com a participação dos bispos
da Alemanha, um esboço para uma Encíclica, em 1937. As
Encíclicas geralmente são escritas em latim. Esta, para uma maior
divulgação entre os alemães, foi escrita em alemão. Ela entrou
sorrateiramente na Alemanha, sendo entregue várias cópias ao
Núncio em Berlim no dia 12 de março. Era um documento de
12 páginas, que foi reproduzido e lido em todas as Igrejas da
Alemanha no Domingo de Ramos, em 21/03/1937, além de
divulgado entre os católicos. Só na diocese de Münster foram
distribuídas 120 mil cópias.
Todas as cópias encontradas pelos nazistas foram
confiscadas. Apesar disso, ela continuou a ser impressa
secretamente Quem fosse descoberto imprimindo-a era preso e a
maquinária apreendida. Também eram presos os que eram
declarados culpados de distribuí-la. As publicações ligadas à Igreja
foram suspensas. A simples menção da Encíclica já era
considerada um crime.
Esta reação abrupta tem o mérito de desmentir uma das
muitas acusações feitas a Pio XII: a de ser o “Papa de Hitler”, ele,
o principal autor intelectual desta Encíclica de Pio XI, como este
declarou em certa ocasião.
A segunda grande guerra começou em 1º/09/1939. No
mês seguinte, em 20/10/1939, Pio XII publicou sua primeira
Encíclica, Summi Pontificatus, na qual ele externava sua profunda
dor pela guerra e lembrava “a igualdade da natureza humana em
todo ser humano, qualquer que seja a nação a que pertença”, e
lamenta os que “são maltratados, oprimidos, perseguidos”, sendo
que “o sangue de inúmeros homens, mesmo dos que não
combatem, ergue um gemido horrível”.25
Nesta Encíclica Pio XII também fala do “esquecimento
daquela lei de caridade e solidariedade humana, sugerida e
imposta, quer pela identidade de origem e pela igualdade da
natureza racional em todos os homens, sem distinção de povos,
quer pelo sacrifício da redenção oferecido por Jesus Cristo”.26
24
25
26
BETTENCOURT, Estevão. Pio XII e os judeus, Op.cit., [1997], p.389.
BETTENCOURT, Estevão. Pio XII e os judeus, [1994], p. 437.
DOCUMENTOS DE PIO XII (1939-1958). São Paulo: Paulus, 1998, p.29.
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Na Alemanha o texto foi publicado com profundas
alterações, razão pela qual o Núncio Apostólico em Berlim,
instruído pela Santa Sé, protestou energicamente ao governo
alemão. Foram presos os sacerdotes que leram, no púlpito, a
versão não censurada.
Em 1940, em uma carta a ser lida em todas as igrejas,
intitulada Opere et caritate, Pio XII instruía os bispos católicos
da Europa para darem assistência a todas as pessoas que estivessem
sofrendo discriminação racial nas mãos dos nazistas.27
Nas suas mensagens de Natal de 1939 a 1942 Pio XII
insistiu neste tema. A mensagem de Natal de 1941 foi interditada
em vários países, por ordem de Berlim. Nesta mensagem Pio XII
deplorava “a desonra infligida à dignidade humana, à liberdade e
à vida [...], desonra que clama por vingança”.
Na mensagem de 1942 Pio XII, além de denunciar a
crueldade da guerra e a violação de convenções internacionais
que procuravam limitar seus horrores, falava das “centenas de
milhares de pessoas inocentes, que pelo único fato de pertencerem
a tal nação ou a tal raça foram condenadas à morte mediante seu
progressivo extermínio”. Os exemplares desta mensagem foram
retirados de circulação, tanto na Alemanha como nos países
dominados pelos nazistas.
Além de palavras (com uma certa cautela, pelas razões
que já expusemos), Pio XII agiu. Instruiu institutos e conventos
católicos para abrigarem clandestinamente os judeus perseguidos,
o que incluía o próprio Vaticano e a residência de verão dos
papas em Castel Gandolfo, onde foram abrigados cerca de 500
judeus. Várias crianças nasceram no apartamento do Papa, o
qual tinha sido transformado em uma sala de partos.
Quase cinco mil judeus, um terço da população judaica
de Roma, foram escondidos em edificações pertencentes à Igreja
Católica. Além das já citadas, também em conventos, monastérios,
edifícios adjacentes às Basílicas de São Pedro, Santa Maria Maior,
São João Lateranense e São Paulo Extra Muros, bem como em
casas paroquiais. Muitos outros foram acolhidos em residências
particulares.
Um número ainda maior de judeus encontrou refúgio fora
de Roma. Também soldados alemães que desertavam foram
acolhidos. Aliás, Pio XII concedeu audiências a vários deles, que
27
MARCHIONE, Margherita. Op.cit., p. 32.
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sofriam dramas de consciência, até que uma ordem do alto
comando alemão proibiu-os de entrar (legalmente) no Vaticano.
Hospitais católicos receberam ordem de admitir tantos
pacientes judeus quanto possível, mesmo que suas doenças fossem
fictícias.
Os que recebiam abrigo deviam declarar que não portavam
armas, que agiriam de acordo com a neutralidade oficial do
Vaticano, e que seguiriam todas as regras necessárias para manter
essa neutralidade. Artigos religiosos judeus eram perigosos, pois,
se fossem descobertos, as conseqüências seriam funestas. Muitas
cópias do Torah e de outros livros sagrados para os judeus foram
guardados pelos clérigos que os acolhiam.
Além de abrigo e alimentação, documentos foram forjados,
tais como certidões de batismo e carteiras de identidade falsas,
que os apresentavam como católicos. Judeus aprendiam orações
católicas para passarem no “teste”, caso algum membro das forças
nazistas desconfiasse de que estava em presença de um judeu.
Alguns vestiam hábitos religiosos e aprendiam a liturgia. Alguns
sobreviventes recordavam, anos depois, que, no meio da oração,
passavam do hebraico Shema para o latino Ave Maria, quando
um estranho se aproximava. Quando possível, sacerdotes católicos
pessoalmente escoltavam estes “monges e irmãs” até a zona já
reconquistada pelas forças aliadas, no sul da Itália. Os nazistas
tinham uma lista de padres que tinham dado auxílio a judeus, e
procuravam prendê-los para enviá-los a campos de concentração.
Muitos desses padres esconderam-se então no Vaticano, e só
reapareceram quando os Aliados libertaram Roma. Infelizmente,
no norte da Itália, ainda em poder dos nazistas, havia dificuldade
para os padres procurados se esconderem, e muitos deles foram
executados. O mesmo aconteceu em outros países.28
E isso aconteceu não só na Itália, mas também em países
ocupados, tais como a Polônia, França, Bélgica e Hungria.
Pio XII informou aos Núncios Apostólicos que “a prioridade
das prioridades é salvar o maior número possível de pessoas”. E
foi através dos Núncios que Pio XII pressionou os chefes de
governo nos países dominados, pelo envio de inúmeros protestos.
Destes, como exemplo, citamos trecho do protesto entregue ao
governo eslovaco, em março de 1942: “A Secretaria de Estado
de S. Santidade espera que medidas tão duras e injustas como as
que foram tomadas contra pessoas de raça judaica não possam
28
RYCHLAK, Ronald J. Op.cit., p. 203-4.
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receber a aprovação de um Governo que se ufana de sua herança
católica [...] Não é verídico afirmar que os judeus deportados são
enviados a campos de trabalho; a verdade é que estão sendo
extintos”.29 Devido a este e a outros protestos do Núncio, o
Presidente eslovaco, para mostrar sua boa vontade, suspendeu a
ordem de deportação de quatro mil judeus eslovacos. Na Hungria,
Pio XII fez uma intervenção direta, além das feitas por intermédio
do Núncio. Em 25/06/1944 telegrafou ao regente Miklos Horthy,
pedindo-lhe senso humanitário. O regente suspendeu a deportação
de judeus. Mas em outubro do mesmo ano ele foi deposto e
recomeçaram as deportações. Após isso, embora sem muitos
resultados práticos, o Núncio Apostólico, Mons. Rotta, continuou
intervindo insistentemente em favor dos judeus.
Nos arquivos de Berlim, Paris, Budapeste, Bucareste e Sofia
encontram-se freqüentes e enérgicas intervenções de Pio XII.
Von Ribbentrop, Ministro das Relações Exteriores de Hitler, no
processo de Nürenberg mencionou sessenta destas mensagens
de protesto junto ao governo alemão.
4 “Quando os nazistas, por nove meses, ocuparam o país
[Itália], muitos judeus foram salvos por terem recebido a
proteção de freiras e padres. A partir desse fato irrefutável,
começaram as indagações acerca da postura desses religiosos
ter decorrido de uma determinação de Pio XII”.
Comentários
Que indagações? É fato comprovado que Pio XII
comandou toda a atividade de membros da Igreja em favor de
todos os perseguidos pelo regime nazista (que não foram só
judeus). Maierovitch, em sua malícia e má vontade para com Pio
XII, parece-nos estar insinuando (de um modo não muito sutil)
que eles, os religiosos, bem que podem ter agido por conta própria,
à revelia do Papa. Mais uma distorção descarada dos fatos.
Detalhes daremos mais adiante.
5 “Fatos a pesar negativamente contra o papa são irrefutáveis.
Em 1933, quando ainda era secretário de Estado do Vaticano,
foi ele o responsável pela costura e a celebração de um
documento com o governo alemão. cuja meta era proteger
os interesses da Igreja Católica naquele país.Tal postura
implicou, por evidente, o reconhecimento do regime nazista”.
29
BETTENCOURT, Estevão. Pio XII e os judeus, Op.cit., [1994], p. 440-1.
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Comentários
Aqui se complementam, de uma maneira ímpar, ignorância,
má-fé e falta de verdade, que levaram a afirmações que, diríamos,
são absurdas. Houve um evidente reconhecimento do regime
nazista? Mas que conclusão genial! Uma preciosidade, na qual,
mais uma vez, Maierovith mostra, insistimos, ignorância, má fé e
falta de raciocínio correto.
Fatos negativos irrefutáveis? Aponte-os, Maierovith. É
impressionante a ignorância imensa, a falta de um conhecimento,
por rudimentar que seja, do que está registrado em documentos
históricos. Para começar, nem sabe o nome correto do documento
a que se refere. Trata-se de uma Concordata, que nada tem a ver
com as concordatas da economia, acordos que comerciantes
fazem com seus credores, para evitar a declaração de falência.
Vamos ver o que significa Concordata na terminologia da Igreja
Católica, E toda a “evidência” desaparecerá. Ou melhor, ela só
existiu na cabeça do autor do artigo que estamos comentando.
Uma Concordata é um acordo ou tratado diplomático
que o Vaticano (a rigor, a Santa Sé) celebra com outro Estado,
pelo qual suas relações mútuas são reguladas, no que diz respeito
aos assuntos de interesse comum.
Quando a Concordata com a Alemanha foi assinada, em
1933, Hitler já estava no poder e governava de forma despótica.
De fato, Hitler foi nomeado Chanceler do Reich (Primeiro Ministro)
em 30 de janeiro de 1933 pelo Presidente Hindenburg. A 23 de
março a Assembléia do Reichstag (Parlamento) conferiu a Hitler
plenos poderes (ditadura) por um prazo de quatro anos. E é após
isso, em 20 de julho, que foi assinada a Concordata entre o
governo nacional socialista e a Santa Sé. Ela foi praticamente
imposta à Igreja. Para forçá-la a assinar a Concordata, já durante
as negociações 92 padres foram presos, 16 clubes de jovens
católicos foram saqueados e nove publicações católicas foram
fechadas.
Ao assinar uma Concordata a Igreja tem seus direitos
oficialmente admitidos. Entre esses, o direito do Papa e dos bispos
do país de publicarem pastorais e encíclicas, liberdade da imprensa
católica, o direito das escolas católicas de ensinarem sua fé,
paróquias e associações religiosas podem estabelecer suas normas,
etc. Só há uma limitação: tudo que é concedido à Igreja deve
estar de acordo com as leis do país. Com a Alemanha de Hitler,
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entretanto, a lei estava unicamente na dependência da
interpretação que lhe desse o Führer. O exercício da religião e as
manifestações dos eclesiásticos em publicações, palestras e mesmo
nas homilias, podiam ser (e de fato o foram) enquadradas como
“atividade ilegal”.
Assim sendo, não havia muitas ilusões sobre o futuro de
uma Concordata com o regime nazista. Mas, ruim com ela, pior
sem ela. Houve algumas vantagens, e males ainda maiores foram
evitados. Apesar de todas as violações que advieram, os católicos
tinham uma base jurídica para sua defesa, ou ao menos para
protestar contra as violações aos direitos da Igreja assegurados
pela Concordata. Muitos se admiraram (e ainda há quem continue
se admirando) de ter a Igreja assinado um “acordo de convivência”
com um regime que ela condenava. Embora, é necessário
salientar, tal acordo não constitua um endosso ao regime nazista.
E assim, após muita hesitação, após pesar os prós e os contras,
Pio XI e seu Secretário de Estado, Cardeal Eugênio Pacelli,
acabaram aceitando a Concordata, embora eles não tivessem
confiança em Hitler.
A Santa Sé protestou 34 vezes em quatro anos contra
rupturas da Concordata e contra a pretensão totalitária do Estado
alemão. Eis as razões de alguns desses protestos: cinco dias após
sua assinatura foi aprovada a lei de esterilização; e após mais
cinco dias o líder da Ação Católica Alemã, Dr. Erich Klausener,
foi assassinado. Em quatro anos centenas de padres católicos
foram presos, sendo que pelo menos 127 foram enviados para
campos de concentração; propriedades da Igreja foram
confiscadas; a imprensa católica foi gradativamente sendo
suprimida; as escolas católicas foram sendo fechadas; a juventude
foi afastada da família e da Igreja, pois as reuniões dos ramos da
Juventude Hitlerista (praticamente todos os adolescentes a elas
pertenciam, por livre vontade ou sob pressão) eram feitas nas
manhãs dos domingos, única oportunidade, naquela época, de
cumprir o preceito de missa dominical.
Citamos, como exemplo de protesto a essas violações do
tratado, o do então Cardeal Pacelli, em Nota que entregou ao
Embaixador do Reich na Santa Sé, em 26/07/1933:
É intolerável que no texto da Concordata prometa-se amizade
e proteção e que o Estado, com seus altos funcionários e com
o Diretor da Educação (A. Rosenberg) combata e insulte a
Igreja. É intolerável que o estado recorde à Igreja as obrigações
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da Concordata e ao mesmo tempo tome medidas (esterilização,
proibição de participação nos movimentos católicos) que
violam os direitos da Igreja.30
6 - “Também silenciou quando informado oficialmente
sobre o massacre dos hebreus, no curso da guerra”.
Comentários
Outra conclusão gratuita, tendenciosa, maliciosa, falsa.
Quem sabia do massacre? Foi um segredo muito bem guardado,
só descoberto no fim da guerra. Daremos algumas informações a
respeito desse segredo.31 As violências, perseguições, torturas e
assassinatos perpetrados pelos nazistas antes e durante a segunda
guerra mundial raramente chegavam ao conhecimento público.
E, nestas raras vezes, eram por demais cruéis para serem
acreditadas. “Mesmo quando alguns conseguiam escapar e
contavam o que tinham vivenciado, os próprios judeus nos
Estados Unidos não conseguiam acreditar”, comentou a irmã
Margherita Marchione, Professora Emérita na Fairleigh Dickinson
University, Madison, N.J., U.S.A., em seu livro “O seu testemunho
é precioso”.
Eis um testemunho que julgamos importante para confirmar
o que dissemos sobre o não conhecimento das atrocidades dos
nazistas. Trata-se do testemunho de Gerhart Riegner, judeu
nascido em Berlim em 1911. Fugiu de Berlim em 1933 e foi
residir em Genebra, Suíça. É um dos fundadores do Congresso
Mundial Judaico, do qual foi secretário geral por quase trinta
anos. Perguntado sobre quando soube da decisão de Hitler de
proceder à “solução final”, assim respondeu:
No verão de 1942, um industrial alemão veio à Suíça e nos
informou daquilo que ele tinha tomado conhecimento no
quartel general de Hitler: falava-se de um plano de
extermínio total de todos os judeus da Europa depois de sua
deportação para o Leste. Era a primeira vez que recebíamos
uma informação desse tipo digna de fé (o industrial tinha
30
31
BLET, Pierre, S.J., Op.cit., p. 118.
Para maiores detalhes, consultar 1ª Parte, Capítulo 4 e 2ª Parte, Capítulos 7 e 8
de BLESSMANN, Joaquim. O Holocausto, Pio XII e os Aliados. Op.cit.
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acesso às mais altas instâncias do Reich) [...] Nós ficamos
pensando se podíamos acreditar nele ou não.32
Ou seja, mesmo confiando na testemunha, era tudo tão
dantesco e inacreditável que Riegner ainda duvidava. E o que
dizer então da população em geral, tanto de países da Europa
como da América ? Mais adiante, na mesma entrevista, Riegner
diz o seguinte: “O mundo soube da catástrofe, mas isso não quer
dizer que acreditou. Embora todos tenham sido informados,
nenhum governo acreditou no fato [o grifo é nosso]; só o
embaixador soviético o considerou possível”. Certamente, cremos,
porque estava acostumado com o que fazia Stalin.
Para acabar com as verdadeiras lendas caluniosas contra
Pio XII, fruto de má vontade, ignorância ou mesmo de uma
imaginação doentia, Paulo VI autorizou, em 1964, que fossem
divulgados os documentos existentes nos arquivos da Secretaria
de Estado do Vaticano sobre a 2ª Guerra Mundial. Foi um árduo
trabalho, que ocupou por mais de 15 anos a quatro sacerdotes
jesuítas: Angelo Martini, Burkhart Schneider, Robert A. Graham
e Pierre Blet. Deste trabalho resultou um conjunto de 12 volumes,
publicados entre 1965 e 1981, sob o título “Actes et Documents
du Saint Siège relatifs à la Seconde Guerre Mondiale” (Atos e
Documentos da Santa Sé Relativos à Segunda Guerra Mundial).
Também o Pe. Pierre Blet confirma o desconhecimento
da solução final. Em entrevista a Stefano M. Paci ele afirma que:
Do projeto de extermínio total dos judeus nem Pio XII nem as
organizações judaicas nem os Aliados estavam a par. A
dramática extensão daquele projeto soube-se apenas depois
do final da guerra. Durante, nunca se falou. Nem mesmo a
Rádio Londres, que estimulava as populações submetidas ao
nazismo para que se insurgissem, jamais acenou a esses
campos de morte. Sabia-se das deportações de grupos de
judeus massacrados, mas não desse extermínio em escala
industrial, a horrível ‘solução final’.33
32
33
MOCETTI, Alberto. Op.cit., p. 65.
PACI, Stefano. Op.cit., p. 42.
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E, mais adiante, o Pe. Blet diz o seguinte:
Dois jovens que fugiram de Auschwitz na primavera de 1944
fizeram um relatório do que estava acontecendo ali, mas
não foram acreditados [...]. Os próprios judeus foram os
primeiros que lhes disseram: “vocês estão loucos, perderemos
todos os créditos com esse exagero”. As organizações
judaicas duvidavam das conversas que se ouviam [...]. Ainda
no dia 30 de agosto de 1943 o Secretário de Estado
Americano comunicava: “Não há provas suficientes para
justificar uma declaração a respeito da execução em câmaras
de gás”. A incerteza era grande. De resto, o segredo absoluto
com que foi executada a operação foi confirmado
recentemente.34
Telford Taylor, em relatório que preparou para ser usado
contra os criminosos de guerra nazistas, afirmou que nada sabia
do que estava acontecendo no Leste, apesar de trabalhar no
serviço secreto de informações, em Washington. Só soube da
“solução final” depois da guerra.35
Mario Terracina, judeu, declarou o seguinte: “Em setembro de
1943 a guarnição alemã em Roma recebeu ordens de reunir e
enviar as pessoas de minha religião àqueles campos que mais
tarde [o grifo é nosso] descobriu-se que eram campos de
extermínio”.36
Lopez, crítico ferrenho da atuação do Vaticano, concorda em
que “a compreensão e o conhecimento do extermínio, ao longo
da guerra, foram nebulosos e incertos. Os dados eram muitos,
mas, além de terem sido insuficientes para permitir formar um
quadro completo, ainda esbarravam na incredulidade dos aliados.
A crueldade parecia demasiada para não ser, pelo menos em
certa medida, propaganda anti-alemã e eles temeram cair nessa
armadilha”.37 Ele cita também Walter Laqueur, que chegara à
“conclusão de que a compreensão e o conhecimento do
extermínio, ao longo da guerra, foram nebulosos e incertos”.38
34
35
36
37
38
Idem. Ibidem.
RICCI, Marina. Santa Sé. Judeus: pontos claros sobre a Shoah. 30 Dias, v. 2, n.
9, out. 1987.RICCI, 1987, p. 49. (Entrevista do historiador Robert Graham a
Ricci).
TERRACINA, Mario. Quatro meses nas catacumbas. 30 Dias, v. 8, n. 4, abr.
1994.1994, p. 58.
LOPEZ, Luiz Roberto. Do terceiro Reich ao novo nazismo. Porto Alegre: Ed.
da Universidade UFRGS, 1992, p.113.
Idem. Ibidem, p. 98.
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O ex-embaixador dos Estados Unidos em Roma, Maxwell Rabb,
em entrevista a Cubeddu, disse que “o Holocausto se impôs à
atenção do mundo depois que já tinha terminado. Os Estados
Unidos, na época, não deram muita atenção ao Holocausto. O
presidente Roosevelt também não prestou atenção, embora se
soubesse que havia alguma coisa que não estava sendo bem
administrada”.39
Do impressionante relato das atrocidades cometidas pelos nazistas
que constitui o Relatório Buchenwald, destacamos:
O general Dwight D. Eisenhower, acompanhado pelos generais
Patton e Bradley, percorreu o campo de concentração de
Buchenwald em 13 de abril de 1945, ocasião em que disse: “a
única coisa que deixa uma ponta de otimismo é que realmente
não acho que a maioria dos alemães soubesse do que estava
acontecendo”. O que é confirmado pelo fato de terem se suicidado
o Prefeito de Gotha e sua mulher, após verem o pequeno campo
de concentração de Ohrdruf, situado próximo à Gotha.40
Em 19 de abril do mesmo ano, Eisenhower, em telegrama a
Marshall, diz o seguinte: “Continuamos a descobrir campos de
concentração alemães para prisioneiros políticos em que
prevalecem condições de indescritível horror. Eu próprio visitei
um deles e asseguro-lhe que tudo que foi publicado a respeito
até agora fica aquém da realidade”.41
Neste mesmo dia o general Walter Bedell Smith informou a
Churchill: “Os campos de concentração alemães recém invadidos
pelos exércitos aliados são ainda mais indescritivelmente horríveis
que aqueles sobre os quais o general Eisenhower lhe falou
ontem”.42
John Colville, secretário particular de Churchill, escreveu em seu
diário: “Os jornais estão cheios de matérias com fotografias de
embrulhar o estômago, resultantes da invasão de Buchenwald e
de outros campos de concentração alemães pelos americanos.
Agora há provas de que as histórias dos dez últimos anos não
eram mera propaganda, como o foram muitas das histórias de
atrocidades da última guerra”.43
CUBEDDU, Giovanni. Jantando com um amigo americano. 30 Dias, v. 17,
n.4, abr. 1999, p. 25.
40
HACKETT, David A. O relatório Buchenwald. Rio de Janeiro: Record, 1998, p.
40.
41
Idem. Ibidem, p. 41.
42
Idem. Ibidem, p. 40.
43
Idem.
39
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Ou seja, destes tópicos extraídos do Relatório Buchenwald
conclui-se que não só os aliados mas também muitos alemães
não sabiam das atrocidades cometidas. E mais ainda, “ouvir dizer”
não prova nada, ainda mais considerando o comentário de John
Colville de que muitas das histórias das atrocidades da última
guerra eram mera propaganda. O que não é novidade, não só
nessa mas em qualquer outra guerra.
7 “Mas nenhum vaticanista, no momento, apostaria na
assinatura, por um papa de origem alemã, da beatificação
de um antecessor, sem odor de santo e chamado de o
‘Papa de Hitler’”.
Comentários
O que tem a origem alemã de Bento XVI a ver com isso?
Chamado de “Papa de Hitler” por quem? Por um autor tão ou
mais mal intencionado do que Maierovitch?
Em outubro de 1999 foi publicado o livro Hitler’s Pope:
the secret history of Pius XII (O Papa de Hitler: a história secreta
de Pio XII), de autoria do jornalista inglês John Cornwell. Se as
acusações feitas em uma obra teatral, de ficção, serviram tanto
para difamar o papa Pio XII, imaginem o que não causará uma
obra pseudamente científica. Seu autor é um jornalista sem
nenhuma formação acadêmica ligada ao tema que abordou com
tanto desembaraço. Diz ele que teve acesso sem precedente aos
arquivos secretos da Secretaria de Estado do Vaticano (nem tão
sem precedentes nem tão secretos). Lá, em uma sala que “parecia
um calabouço”, ele teria descoberto evidência documentária da
aversão racial e religiosa de Pio XII aos judeus. Evidência nada
evidente: é uma opinião pessoal, um palpite, baseado
principalmente em uma interpretação tendenciosa de um relatório,
como mostraremos adiante.
Entre outras acusações Cornwell afirma ainda que Pio XII:
- ajudou Hitler contra os judeus por ódio aos comunistas;
- apoiou o nazismo contra o partido dos católicos na
Alemanha, o Zentrum;
- ajudou Hitler a subir ao poder com a Concordata que
estabeleceu com o governo alemão em 1933.
E Cornwell vai ainda mais fundo em suas acusações
gratuitas. Eis o que comenta Woodward:
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Sem nenhuma evidência Cornwell afirma que Eugenio
Pacelli, como diplomata papal estabeleceu um tratado com
a Sérvia que inflamou as tensões que levaram à primeira
guerra mundial. Como Núncio Papal na Alemanha (até 1929)
e mais tarde como Secretário de Estado do Vaticano, Pacelli
traiu os católicos anti-nazistas da Alemanha e foi conivente
com Hitler ao estabelecer a Concordata entre o Vaticano e o
3º Reich, assim contribuindo moralmente para a eclosão da
segunda guerra mundial, também.44
Portanto, foi graças a Cornwell que a humanidade, embora
mui tardiamente, ficou conhecendo o verdadeiro responsável pelas
duas guerras mundiais do século XX.
Diz Cornwell que ele conseguiu um “acesso sem
precedentes aos arquivos secretos da Secretaria de Estado do
Vaticano”. “Na verdade”, comenta ainda Woodward, “os Arquivos
do Vaticano estão abertos a qualquer interessado que tenha uma
conexão acadêmica. Ele também examinou depoimentos
referentes ao processo de beatificação de Pio XII, que está sob a
direção de jesuítas especialistas em Roma. Estes são documentos
privados, mas dificilmente secretos: eu mesmo os vi”.
Com todo o espalhafato próprio de um jornalista
sensacionalista, Cornwell afirmou que era material jamais visto, e
que esses documentos continham material explosivamente crítico,
e que o Pe. Peter Gumpel (relator do processo de canonização
de Pio XII) tornou-o disponível “a grande risco”. O que não
corresponde à verdade. Este material foi consultado também por
outras pessoas, tanto antes como depois de Cornwell. Por exemplo,
além do já citado Woodward, também Rychlak, após a publicação
do livro de Cornwell consultou-os, a convite de Gumpel. Rychlak
foi instalado em uma sala no Vaticano e pode consultar toda a
documentação examinada por Cornwell.45 E esta documentação
nada tinha de explosiva.
Da crítica de Woodward reproduzimos ainda este outro
trecho: “A evidência apresentada por Cornwell de que Pacelli
era anti-semita baseia-se em sua bizarra interpretação de um
relatório enviado em 1919 por Pacelli, como Núncio Apostólico
em Munique, ao Vaticano”.
44
45
WOODWARD, Kenneth L. The case against Pius XII. Newsweek: International
Magazine, Sept. 27, 1999, p. 48.
RYCHLAK, Ronald J. Op.cit., p. 286.
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Também o Pe. Pierre Blet (já citado em capítulos anteriores)
nega que o livro de Cornwell seja científico: “É muito confuso,
não se trata de uma verdadeira análise histórica. Faltam
documentos que apoiem suas teses. Faz acusações gravíssimas
contra Pio XII sem nenhuma prova de fato”.
Na nota 6 do livro de Paganuzzi aparece a seguinte
declaração de Pe. Roberto Leiber, S.J.:
Primeiro como cardeal Secretário de Estado e depois como
Pontífice, Pacelli entendia a gravidade do perigo nazista.
Isto é evidente também na encíclica Mit brennender Sorge
que, depois da primeira redação do cardeal alemão
Faulhaber, foi elaborada na sua forma definitiva pelo cardeal
Pacelli. Naquele tempo Pio XI estava gravemente enfermo,
e eu lembro que ele segurou por dois dias o texto de Pacelli,
corrigindo poucas coisas e depois assinando-a. Esta
encíclica, que mostrava o verdadeiro rosto do nazismo, foi,
portanto, obra do cardeal Pacelli.46
Hitler compreendeu claramente toda sua importância apesar da formulação diplomaticamente indeterminada do
documento - como ficou claro no jornal Völkischer Beobachter
do dia seguinte, que publicava um venenoso contra-ataque ao
“Deus-Judeu e ao seu vigário em Roma”. O órgão das S.S., Das
Schwarze Korps, definiu-a como “a mais incrível das cartas
pastorais de Pio XI. Cada frase desta encíclica era um insulto à
Nova Alemanha” [...]. As missões diplomáticas alemãs na Europa
foram informadas pelo Ministério do Exterior nazista da profunda
indignação do Reich , e que o governo alemão “considera a
encíclica papal como um grito de batalha [...] pois incita os
cidadãos católicos à rebelião contra a autoridade do Reich”.47
E, dois dias após, em 23 de março, um memorandum
interno do governo alemão dizia que a Encíclica era “quase uma
chamada para uma batalha contra o governo alemão”.48
Nada mau para uma encíclica que teve como seu principal
autor a quem é acusado de ser o Papa de Hitler e amigo dos
nazistas... A respeito dessa “amizade” citamos um diplomata
alemão, Albrecht von Kessel, que trabalhou na Embaixada alemã
46
47
48
PAGANUZZI, Quirino. Em missão em Cracóvia. 30 Dias, v.7, n.9, out. 1999,
nota 6.
Idem. Ibidem, p. 57.
RYCHLAK, Ronald J. Op.cit., p. 93.
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junto à Santa Sé de 1930 a 1932 e de 1943 a 1945: “Quiseram
mostrar que a simpatia do Papa pelo povo alemão era também
simpatia pelo regime nazista. Isso é absurdo”.49
É de assinalar que apesar de Cornwell apregoar suas
ligações com um Instituto de Ciências da Universidade de
Cambridge, ele “não possui nenhum título acadêmico em Ciências
Históricas, Direito ou Teologia”.50 Esta mesma fonte bibliográfica
desmente outras das tantas afirmações falsas do autor:
Cornwell afirma que ele foi o primeiro e único a ter acesso
aos arquivos da Secretaria de Estado do Vaticano. Esta
afirmação é integralmente falsa, pois muitas outras pessoas
tiveram acesso a estes arquivos, mesmo antes de Cornwell
consultá-los. Além disso, na realidade deve ser dito que as
pesquisas de Cornwell foram limitadas a dois grupos de
documentos: Baviera (1918-1921) e Áustria, Sérvia e Belgrado:
1913-1915".
Continua L’Osservatore Romano:
Cornwell afirmou que trabalhou nos arquivos durante meses.
Também esta afirmação não corresponde, absolutamente, à
verdade. Nesses arquivos há um registro, cuidadosamente
guardado, em que são anotados detalhadamente as datas e
horários (horas e minutos) para todas as pessoas que são
admitidas para pesquisar. Nestes registros consta que Cornwell
teve acesso aos arquivos de 12 de maio de 1997 a dois de
junho deste mesmo ano. Portanto, “não alguns meses, mas
cerca de três semanas”. E mesmo assim não comparecia todos
os dias, e nos dias em que lá esteve freqüentemente sua
permanência limitou-se a um curto espaço de tempo.
Além de toda a falsidade que foi desmascarada no texto
do livro de Cornwell, um exame da capa já mostra sua malícia e
predisposição para falsear a verdade. Nela o Arcebispo Pacelli
aparece saindo de um edifício do governo alemão, com suas
vestes diplomáticas formais. Pacelli era então Núncio na Alemanha.
Suas vestes podem ser facilmente confundidas com as vestes
49
50
SCHLIE, Ulrich. O Papa e a outra Alemanha,30 Dias, Ano 7, n. 2 (1992), p.
65-7.
L’OSSERVATORE ROMANO, L’OSSERVATORE ROMANO. Notwendige
Klarstellung zu einer Neuerscheinung. Edição semanal em alemão, n.46, Nov
1999, p. 4.
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papais, para quem não está a par dos detalhes dos trajes oficiais
da Santa Sé. Do mesmo modo, os dois soldados de guarda podem
passar por soldados de Hitler. E, face ao texto do livro, repleto
de inverdades, é razoável supor que essa foi a intenção de
Cornwell: dar a entender que a foto mostra o Papa Pio XII saindo
de uma entrevista com Hitler. Isto é reforçado pelo título do
livro, que aparece logo acima da foto: o Papa de Hitler . Na
realidade Pacelli estava saindo de uma visita oficial ao Presidente
da Alemanha, Hindenburg, em 1927, durante a chamada
República de Weimar. Esta foto, portanto, foi tirada cerca de seis
anos antes de Hitler assumir o poder (em 1/01/1933) como
Primeiro Ministro dotado de poderes especiais. Acrescente-se ainda
que Pacelli deixou a Alemanha em 1929, e nunca mais lá esteve.
Comentários finais
As falsas acusações de Maiorevitch à atuação de Pio XII
não são as primeiras, e vêm se repetindo nas últimas décadas,
principalmente a partir de uma peça teatral (Der Stellvertreter O Representante ), de Rolf Hochhut, e de um livro que já
comentamos (Hitler’s Pope: the secret history of Pius XII - O
Papa de Hitler: a história secreta de Pio XII), de autoria de John
Cornwell. Ambos apresentam acusações graves e gratuitas,
facilmente refutáveis, se considerarmos as ações de Pio XII
(comprovadas por documentos idôneos) e os testemunhos de
muitas pessoas, muitas delas sem qualquer ligação com a Igreja
Católica.
A primeira dessas acusações graves e de repercussão
mundial, a peça teatral acima citada, apareceu em 1963, portanto
18 anos após o término da guerra. E o livro de Cornwell foi
publicado em 1999, ou seja, 36 anos após a peça.
Lembremos também que a perseguição não foi só aos
judeus. Para Hitler, tanto judeus como eslavos (poloneses, russos)
e ciganos eram raças inferiores. O Cardeal Macharski, de Cracóvia,
em janeiro de 1986 havia declarado: “Auschwitz é sinônimo de
massacre realizado pela Alemanha contra o povo polonês”. E do
Prof. Maciej Giertych relembramos: “Auschwitz não é só um
símbolo do martírio judaico. É também a maior necrópole
polonesa” (Os grifos são nossos).
Quanto à acusação de omissão, é conveniente insistir que
a quase totalidade do povo alemão nada sabia sobre a “solução
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final”, incluindo aí até muitos membros do partido nazista. As
raras informações que vazavam não eram acreditadas nem pelos
governos dos países aliados nem pelos próprios judeus; haja vista
o que disseram a dois jovens que escaparam de Auschwitz: “vocês
estão loucos, perderemos todos os créditos com esse exagero”.51
E em 30 de agosto de 1943 o Secretário de Estado Americano
informava: “Não há provas suficientes para justificar uma
declaração a respeito da execução em câmaras de gás”.52
Não esqueçamos que a decisão de exterminar os judeus,
na Conferência de Wannsee, e os campos de extermínio, foram
segredos cuidadosamente guardados pelos nazistas, e que uma
verdadeira e completa revelação de todo esse morticínio de judeus
e não-judeus só se deu após a conquista desses campos pelos
Aliados. Antes disso, somente notícias e informações esparsas,
nas quais algumas pessoas acreditavam, e a maioria não. Basta
ver que em novembro de 1944 uma pesquisa do Instituto Gallup
mostrou que 36% dos entrevistados estavam convictos de que os
mortos em campos de concentração (incluindo os de extermínio,
que naquela época não eram do conhecimento público) eram
menos de cem mil. Somente 16% acreditavam que tivesse sido 2
milhões ou mais. Convém lembrar que, na realidade, o número
de judeus assassinados foi de cerca de 5,5 milhões de pessoas.
Igual número de cristãos poloneses (não em combates!) e
prisioneiros de guerra russos tiveram o mesmo destino, e quase
ninguém sabe deste fato, o qual foi devidamente comprovado.
Todos os documentos idôneos e os testemunhos mostram
claramente que Pio XII não poderia fazer uma crítica direta a
Hitler, tendo em vista suas reações violentas às críticas que recebia.
Como já vimos, Pio XII inclusive pensou em denunciar severamente
os crimes cometidos pelos nazistas na Polônia. Solicitou um
parecer do episcopado polonês sobre a conveniência de tal
pronunciamento. A resposta do Cardeal Sapihea, de Cracóvia,
foi a seguinte: “Digam ao Santo Padre que nós lhe imploramos
não fazer nada; o povo polonês, judeus e católicos, sofreriam
juntos o preço de uma denúncia”.53
PACI, Stefano. Op.cit., p. 42.
Idem.
53
“Cardeal Tonini: eis porque Pio XII calou sobre o Holocausto ...”, 30 Dias, Ano
16, nº 3 (1998), p. 31.
51
52
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Os arquivos do Vaticano guardam telegramas de governos
exilados, da Polônia e de outros países, pedindo ao Papa que
não fizesse pronunciamentos públicos contra os nazistas, pois a
cada crítica novas e mais violentas perseguições aconteciam.
Lembremos também as palavras de Pio XII quando soube
que Hitler mandara prender e matar milhares de judeus e de
judeus convertidos ao catolicismo na Holanda: “Se a carta dos
Bispos holandeses custou quarenta mil vidas humanas, o meu
protesto poderia custar duzentas mil. Não devo nem posso assumir
esta responsabilidade”.
Por outro lado, agiu como pôde, tanto antes (tentando
evitar a guerra) como durante o conflito, quando instruiu institutos
e conventos católicos de diversos países para abrigarem
clandestinamente os judeus perseguidos, inclusive no próprio
Vaticano e em Castel Gandolfo. Também pressionou os chefes
de governo dos países dominados, pelo envio de inúmeros
protestos.
Dos diversos testemunhos que confirmam o correto
procedimento de Pio XII, relembramos o de Robert Kempner,
delegado dos Estados Unidos da América no processo de
Nüremberg: “Qualquer tentativa de propaganda da Igreja Católica
contra o Reich de Hitler [...] teria provocado a execução de um
número maior de judeus e de sacerdotes”.54
De tudo o que expusemos, cremos que se pode concluir
que Pio XII agiu como podia e como devia agir, dentro do
contexto da época. A Igreja Católica, sob seu comando, salvou
cerca de 860 mil judeus do Holocausto, muito mais do que todas
as outras instituições juntas, governamentais e não-governamentais.
A propósito, também a Cruz Vermelha Internacional foi acusada
de pouco ter feito. Os Estados Unidos, com um órgão específico
para tratar do problema dos judeus, e apesar de todo seu poderio
militar e econômico, conseguiu salvar apenas 1/5 dos judeus
salvos pela Igreja Católica.
Quanto à crítica de que deveriam ter sido feitas
manifestações severas condenando os massacres, a razão pela
qual nem Pio XII tampouco os governos aliados as fizeram, é a
mesma: Hitler respondia a protestos com mais violência, com
54
PACI, Stefano. Op.cit., p. 43.
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mais morticínio. Entre outros temores, os Aliados preocupavamse com o que poderia acontecer aos prisioneiros de guerra em
mãos dos nazistas. E Pio XII, entre outras considerações,
perguntava sobre o que aconteceria com os mais de 40 milhões
de católicos na Alemanha (além dos católicos nos países ocupados),
se ele fizesse uma manifestação incisiva contra Hitler. E, como
expusemos em nosso livro55, Hitler pretendia acabar não só com
os judeus, mas também com os cristãos que não se adaptassem a
sua nova “religião”.
E, no que se refere à eficácia desses protestos, no início de
1944, por exemplo, o Foreign Office britânico informava que a
Declaração dos Aliados de 1942 não tinha tido sucesso, tinha
atrapalhado os Aliados e provocado excessiva expectativa entre
judeus. E, mais ainda, já em 1943 Robert Borden Reams,
especialista em refugiados, afirmara que a Declaração de 1942
tinha acelerado a perseguição nazista aos judeus. O que confirma
a correta atuação de Pio XII, que agiu mais por atos do que por
palavras.
Mas por que, apesar de tudo que se sabe, historicamente
comprovado, sobre a intensa e eficiente atuação de Pio XII,
continuam as acusações falsas contra ele? E por que só ele é alvo
de críticas? O que fizeram Roosevelt, Churchill e Stalin em favor
dos judeus? O que fez a própria comunidade judaica norteamericana? O que fez a Cruz Vermelha Internacional? O que
fizeram as nações para acolher os milhões de judeus que poderiam
ter emigrado antes da definição da “solução final”?
Mais detalhes do que expusemos neste artigo, e de temas
correlacionados, são encontrados em nosso livro já citado.
55
BLESSMANN, Joaquim. O Holocausto, Pio XII e os Aliados. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2003.
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