pio xii, o papa de hitler?
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pio xii, o papa de hitler?
PIO XII, O PAPA DE HITLER? PIUS XII, HITLER’S POPE? Joaquim Blessmann* Resumo: O presente artigo apresenta alguns testemunhos históricos da época e do pontificado de Pio XII (Eugênio Pacelli) a respeito da ação do papa e da Igreja Católica em defesa de judeus e de tantos quantos foram perseguidos pelo regime nazista. Rebate-se a já contumaz alegação de que Pio XII foi omisso e não fez nada em defesa durante o Holocausto dos judeus e, o que é pior, teria colaborado com Adolf Hitler. Palavras-chave: Pius XII – Segunda Guerra Mundial – Holocausto. Abstract: This article presents some historical evidence from the time of Pius XII’s (Eugênio Pacelli) pontificate concerning the Catholic Church and the Pope’s actions in defense of the Jews and so many others who were persecuted by the Nazi regime. It argues against the obstinate concern that Pius XII was heedless and that he did not do anything to help the Jews during Holocaust and, even worse, that he was Hitler’s collaborator. Keywords: Pius XII – Second World War - Holocaust É cansativo, caro leitor, é realmente cansativo, fastidioso, monótono e mesmo aborrecido e acabrunhador voltar sempre aos mesmos argumentos, às mesmas provas históricas que mostram cabalmente não ter sido Pio XII omisso no que diz respeito ao Holocausto e nem simpatizante de Hitler. Ele teria sido “o papa de Hitler”, como afirmado por pessoas exaltadas, fundamentalistas da pior espécie. O que nos leva a essas considerações e a voltar novamente ao tema é um artigo de Wálter Fanganiello Maierovith, publicado na revista Carta Capital de 29/10/2008. Vamos citar trechos desse artigo, cada um deles seguido de comentários nossos, baseados em documentos da verdadeira História, os quais mostram o quanto de falso há nesse artigo. * Mestre e Doutor pelo Instituto de Tecnologia Aeroespacial (ITA), Especialista em Aerodinâmica das Construções, Professor Emérito da UFRGS. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 463 Rev 127.pmd 463 05/03/2010, 10:13 1 “... deportação de judeus-italianos para o campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia, em 18 de outubro de 1943, que embarcaram na estação Tiburtina, em Roma [...] Pio XII não levantou a voz, não proferiu alocução ou homilia nem escreveu texto de protesto [...]. Pacelli preferiu o silêncio, que a historiografia não deixou passar. No episódio da deportação de judeus-italianos para o campo de extermínio de Auschwitz, ele estava no Vaticano e de tudo soube, mesmo porque entre as prisões e as deportações passaram-se dois dias, mas não interveio. Nem tocou no assunto em escritos públicos”. Comentários “Pacelli preferiu o silêncio”, diz Maierovitch. Ele pouco falou, mas agiu muito, sim. Pio XII sabia muito bem, como detalharemos mais adiante, que protestos de nada adiantavam; pelo contrário, Hitler afirmara que não admitia críticas às suas ações, e não só não admitia como responderia com mais violência. Também não é verdade que “a historiografia não deixou passar” esse silêncio. Não houve silêncio nem a historiografia o criticou. Estamos falando aqui da verdadeira História, e não de simples afirmações gratuitas, falsas e mal intencionadas. Mas vejamos o que aconteceu e que providências tomou Pio XII, conforme consta das Atas oficiais do Vaticano. Foi na noite de 15-16 de outubro de 1943 que membros das tropas SS começaram a aprisionar cerca de mil judeus, indo de casa em casa, conduzindo-os para o Colégio Militar, em Lungotevere. No dia 18 foram enviados, por trem, para a Alemanha. A primeira informação sobre esse acontecimento parece que Pio XII obteve de uma jovem princesa italiana, Enza Pignatelli Aragona. Ainda pela manhã, o Secretário de Estado Cardeal Luigi Maglione comunicou ao embaixador alemão no Vaticano, Ernst von Weizsäcker, o protesto pessoal de Pio XII e pediu que ele fizesse o que fosse possível, em nome dos princípios humanitários e da caridade cristã. Após ouvir atentamente o protesto do Cardeal Maglione, Weizsäcker perguntou se Pio XII realmente insistia que Berlim fosse informado da indignação papal. “Eu penso”, disse ele, “nas conseqüências que um protesto da Santa Sé pode precipitar. A ordem para a ação [de deportação] veio do mais alto nível. Quer Vossa Eminência deixar-me livre para não considerar oficialmente esta conversa?” Weizsäcker assegurou ao CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 464 Rev 127.pmd 464 05/03/2010, 10:13 Cardeal Maglione que ele faria todo o possível para tratar, a nível local, da ameaça aos judeus de Roma. Mas ele não queria assumir a responsabilidade de transmitir o protesto papal a seus superiores em Berlim. Baseado nesse compromisso, Maglione não pressionou para que o protesto chegasse a Berlim. “Por experiência”, comentou Marchione, “ele possivelmente estava convencido que em assuntos relativos aos judeus uma intervenção de Berlim não seria boa e, pelo contrário, poderia produzir um efeito oposto”.1 Além dessas providências por via oficial. Pio XII quis reforçá-las por meios não oficias. No mesmo dia em que os judeus foram presos, Monsenhor Aloys Hudal, de origem austríaca, recebeu a visita do sobrinho de Pio XII, Carlo Pacelli. Após esse encontro, Hudal escreveu ao general Stahel, o governador militar de Roma, e insistiu com ele para que suspendesse as prisões de judeus. Se as prisões continuassem, advertiu Hudal, o Papa publicaria um protesto público, exatamente na ocasião em que Alemanha tinha todo interesse em evitar tal ação. Imediatamente o general Stahel enviou a mensagem para as autoridades competentes e para o próprio Himmler (considerado o “arquiteto do Holocausto”), o qual deu ordem para suspender as prisões, que estavam “fora de consideração, devido ao caráter especial de Roma”.2 Nada mau para quem, conforme Maierovitch, “não levantou a voz, preferiu o silêncio”. Mais tarde, o já citado embaixador alemão, Weizsäcker, disse o seguinte: Um “protesto flamejante” pelo Papa não somente não teria sucesso para deter a maquinária de destruição mas poderia ter causado uma grande quantidade de dano adicional aos milhares de judeus escondidos no Vaticano e nos monastérios, aos oriundos de casamentos mistos (entre judeus e cristãos), à Igreja, à integridade territorial da Cidade do Vaticano e — por último e não menor - aos católicos de toda Europa ocupada pela Alemanha.3 1 2 3 MARCHIONE, Margherita. Yours is a precious witness. New York: Paulist Press, 1997, p.16-17. BLET, Pierre, S.J. Pius XII and the Second World War. New York: Paulist Press, 1999, p. 216. RYCHLAK, Ronald J. Hitler, the war, and the Pope. Columbus (MS), USA: Genesis Press, 2000, p. 263. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 465 Rev 127.pmd 465 05/03/2010, 10:13 E Paolo Vincentin, em artigo que apareceu em L’Osservatore Romano em 1965: Nós que éramos membros da Embaixada alemã, embora julgássemos a situação diferentemente, estávamos em completo acordo em um ponto: um protesto solene de Pio XII contra a perseguição aos judeus, provavelmente teria exposto a eles e à Cúria Romana a grande perigo, e certamente, no outono de 1943, ele não estaria em condições de salvar a vida de um único judeu.4 Esta mesma advertência a Pio XII fizeram, em várias ocasiões, bispos de países ocupados. Pio XII sempre ponderava cuidadosamente os prós e os contras de uma manifestação clara, direta e mais ou menos contundente sobre as violências e mortes causadas pelos nazistas. Em várias cartas aos bispos da Alemanha ele lhes manifestou suas hesitações e dúvidas, das quais Blet apresenta dois exemplos. Em carta de 20/02/1941: “Quando o Papa queria gritar em voz forte, espera e silêncio foram, infelizmente, muitas vezes impostos; quando ele queria socorrer e levar ajuda, paciência e expectativa (eram necessários)”. E em carta de 3/03/1944: “Freqüentemente é com dor e dificuldade que uma decisão é tomada de acordo com o que exige a situação; reserva prudente e silêncio ou, pelo contrário, fala imparcial e ação vigorosa”.5 E foi assim que Pio XII agiu, e esta ação foi devidamente apoiada pelos que viveram o drama da perseguição e pelos pósteros que, com isenção de ânimo, sem preconceitos, sem fanatismo, analisaram os documentos e os testemunhos, dos quais parte está transcrita ao longo desse trabalho. Enquanto Pio XII mantinha-se comedido em seus pronunciamentos, os Núncios e Delegados Apostólicos agiam junto aos episcopados e governos dos países dominados ou sob forte pressão dos nazistas. Vejamos o que disse o escritor judeu Poliakov: “Contudo será preciso reconhecer, na base da experiência feita na época e no lugar adequado, que protestos públicos do Papa poderiam 4 5 MARCHIONE, Margherita. Pope Pius XII: Architect for Peace. New York: Paulist Press, 2000, p. 129. BLET, Pierre, S.J. Op.cit., p.285. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 466 Rev 127.pmd 466 05/03/2010, 10:13 acarretar desapiedadas represálias”.6 De fato, Poliakov estava confirmando a necessidade de muita cautela, pois Hitler não era de se impressionar por protestos, quanto menos acatá-los. A cada protesto, crescia a perseguição a judeus, poloneses e outras pessoas, independentemente de sua religião. Ao Embaixador da França, que lhe solicitou uma intervenção decidida e pública a favor da Polônia, na qual havia perseguição impiedosa também contra a Igreja e o povo, Pio XII respondeu: “Não se deve esquecer que no Reich há 40 milhões de católicos. A que estariam expostos depois de um semelhante ato da Santa Sé? O Papa já falou e claramente”.7 Pio XII, em pronunciamento aos Cardeais reunidos em Roma, em 02/06/1943, após ter expressado seu grande pesar pelos perseguidos, disse o seguinte: “Cada palavra que nós temos dirigido às autoridades competentes e cada insinuação que temos tornado pública devem ser seriamente ponderadas, no interesse daqueles que sofrem, a fim de que, involuntariamente não tornem sua situação mais complicada e intolerável.”8 E isso Pio XII sabia por experiência própria. No início da guerra, em 1939, ele fizera protestos públicos em defesa de judeus e poloneses, que estavam sendo trucidados pelos nazistas. A cada protesto, aumentavam as represálias, de tal modo que os próprios bispos poloneses pediram a Pio XII que não mais protestasse.9 Eis outro exemplo das reações intempestivas e doentias de Hitler. O Pe. Giuseppe Morosini tinha sido preso em Roma por terem sido encontradas armas em sua casa. Apesar da culpa do Pe. Morosini, Pio XII enviou um representante, o futuro Cardeal Taglia, ao marechal-de-campo Kesselring, para interceder pelo acusado. Kesselring telefonou a Hitler, comunicando-lhe que o Papa estava tratando pessoalmente do caso. Reação de Hitler, bem a seu estilo: mandou antecipar a execução do Pe. Morosini.10 Pio XII tinha conhecimento do que dissera Hitler ao Reichstag, em 30/01/1939: Frankfurter Allgemeiner Zeitung, 11/05/63, apud BETTENCOURT, Estevão. Pio não se calou. Pergunte e Responderemos, Rio de Janeiro, ano 39, n. 438, nov. 1998, p. 299. 7 PACI, Stefano. Leiam o livro do Pe. Ble sobre Pio XII. 30 Dias, v. 16, n.4, abr. 1998, p. 40. 8 McINERNY, Ralph. The defamation of Pius XII. St. Augustine’s Press, Indiana: South Bend, 2001, p. 160. 9 BETTENCOURT, Estevão. Pio XII e os judeus. Pergunte e Responderemos , Rio de Janeiro, v. 35, n. 389, out. 1994, p. 440. 10 McINERNY, Ralph. Op.cit., p. 31. 6 CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 467 Rev 127.pmd 467 05/03/2010, 10:13 Parece que no estrangeiro certos ambientes alimentam a opinião de que solidarizar-se em alto tom com elementos que, na Alemanha, estão em oposição à lei, poderia provocar uma melhora da situação destes [...] Esta opinião funda-se sobre um erro capital. No apoio que os estrangeiros dão a certas iniciativas dirigidas contra o Estado, vemos a mais cabal confirmação de que são obras de alta traição! [...] Tal apoio, portanto, parece destinado àqueles que projetam aniquilar o Reich alemão. É esta a razão pela qual veremos em cada caso particular mais um imperioso motivo para reforçar as medidas repressivas [O grifo é nosso].11 E nem a nível diplomático Hitler admitia que se tocasse no assunto. Veja-se, por exemplo, seu comportamento nada diplomático em um de seus encontros com o Núncio. Em 1943 Pio XII solicitou a seu Núncio em Berlim, Cesare Orsenigo, que falasse diretamente com Hitler a fim de discutir o tratamento dado aos judeus na Alemanha e nos territórios ocupados. Assim relatou Orsenigo esse encontro: Uns poucos dias atrás finalmente consegui ir a Berchtesgaden, onde fui recebido por Hitler. Assim que eu toquei na questão dos judeus e o judaísmo, a serenidade de nosso encontro foi repentinamente quebrada. Hitler viroume as costas, foi para a janela e começou a dedilhar no vidro [...] enquanto eu continuava a falar de nossas queixas. Subitamente Hitler virou-se, foi até uma mesa auxiliar, da qual agarrou um copo d’água e arremessou-o ao piso com fúria. Em face de tal comportamento diplomático, julguei que minha missão estava encerrada.12 Além disso, Pio XII devia ter sempre presente o que acontecera na Holanda. Tudo começou com uma medida restritiva imposta por um comissário do Reich, pela qual os alunos judeus e os católicos descendentes de judeus só poderiam ter aulas com professores judeus. A seguir, um novo decreto obrigou todos os 11 12 BETTENCOURT, Estevão. Pio XII, os nazistas e os judeus . Pergunte e Responderemos, Rio de Janeiro, v. 28, n.305, out. 1987, p. 443. McINERNY, Ralph. Op.cit., p.162. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 468 Rev 127.pmd 468 05/03/2010, 10:13 edifícios públicos a afixarem cartazes com os dizeres Voor Joden verboden! (Proibido para judeus!). O bispo de Utrecht, Mons. De Jong, protestou em nome do episcopado holandês, o que de nada adiantou. Pelo contrário, começaram as deportações em massa. As Igrejas cristãs da Holanda protestaram ao comissário do Reich por meio de um telegrama que lhe enviaram em 11/ 07/1942, no qual também exigiam a suspensão imediata dessas medidas. Seria quase que desnecessário dizer que este protesto também foi em vão. Foi então que o episcopado holandês providenciou um protesto em carta pastoral, a ser lida em todas as igrejas e capelas da arquidiocese de Utrecht. Esta carta pastoral incluía o texto do telegrama de protesto anteriormente enviado ao comissário, o que mais ainda indignou as autoridades nazistas. As represálias que adotaram foram bem ao modo doentio de Hitler responder a protestos. No dia dois de agosto centenas de católicos não arianos, entre eles todos os religiosos de origem judaica (cerca de 300, entre eles Edith Stein) foram presos e deportados por agentes das tropas S.S. O próprio comissário geral Schmidt declarou que a prisão dos religiosos tinha sido uma reação à carta pastoral de 26 de julho: “Como o clero católico não se deixa demover por nenhuma negociação, vemo-nos forçados a considerar os judeus católicos como os nossos piores inimigos e, por essa razão, a deportá-los para o Leste o mais depressa possível”.13 Além dos católicos de origem judaica, milhares de judeus também foram deportados. Seu destino? Birkenau, onde foram mortos, judeus e não judeus, assim que lá chegaram, em 9/08/ 1942. Quanto ao número total de deportados nessa ocasião, há dúvidas sobre se chegaram a 40 mil. Os bens da Igreja na Holanda foram confiscados e extintas as instituições de ajuda fraterna dos católicos na Holanda, Bélgica e outros países ocupados. Riegner é outro que relembra o caso da Holanda. Em entrevista concedida a Alberto Moccetti disse o seguinte: O protesto dos bispos holandeses deu margem a represálias por parte dos alemães, que deportaram até os judeus convertidos. Devo lembrar que um ano depois, em toda a Europa foram deportados também os judeus convertidos. É 13 KAWA, Elisabeth. Edith Stein, a abençoada pela cruz. São Paulo: Quadrante, 1999, p. 103. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 469 Rev 127.pmd 469 05/03/2010, 10:14 possível que uma atitude mais decisiva do Papa tivesse tido conseqüências negativas para certos homens da Igreja, que teriam sido vítimas de represálias.14 O Bispo Jean Bernard, de Luxemburgo, que esteve preso no campo de concentração de Dachau de fevereiro de 1941 a agosto de 1942, declarou que a cada protesto da Igreja contra as atrocidades dos nazistas o tratamento dos prisioneiros piorava imediatamente. Eis suas palavras: Os padres detidos tremiam cada vez que chegava até nós notícia de algum protesto de autoridades religiosas, mas principalmente do Vaticano. Todos nós tínhamos a impressão que nossos guardas faziam-nos expiar severamente pela fúria que estes protestos despertavam. [...] A maneira com que nós éramos tratados tornava-se mais brutal; os pastores protestantes prisioneiros costumavam desabafar sua indignação nos padres católicos: “De novo seu grande ingênuo Papa e aqueles simplórios, seus bispos, não calam a boca [...] Eles se fazem de heróis e nós pagamos a conta”.15 Também Marguerita Marchione confirma o agravamento da situação para os perseguidos por Hitler com os protestos da Igreja: “Cada vez que o Papa protestava, os judeus e os cristãos que estavam nos campos de concentração eram tratados muito, muito cruelmente”.16 O Major britânico William Simpson, presbiteriano escocês, foi prisioneiro dos alemães na Itália. Não está de acordo com a afirmação de que o Papa deveria ter clamorosamente denunciado as brutalidades do nazismo. Ele afirma que o papel discreto do Vaticano foi de imensa ajuda à causa das vítimas da guerra. 2 “Jamais passou pela cabeça de Gumpel” (Pe. Peter Gumpel, um dos postuladores canônicos da beatificação de Pio XII) “que as orações para a beatificação” (solicitadas por Bento XVI no 50º aniversário da morte de Pacelli) “significariam, se atendidas, uma absolvição de Pacelli”.17 14 15 16 17 MOCETTI, Alberto. O judeu que denunciou a “solução final”. 30 Dias, v. 3, n.2, fev. 1988, p. 66. RYCHLAK, Ronald J., Op.cit., p.260. BETTENCOURT, Estevão. Pio XII e os judeus, p. 387. Idem. Ibidem, p. 389. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 470 Rev 127.pmd 470 05/03/2010, 10:14 Comentários Absolvição de quê? De ter dirigido, com mão firme e a cautela que a situação exigia, a salvação de cerca de 860 mil judeus? Fato este reconhecido por um grande número de entidades e de personalidades judaicas? Entre elas citamos18: No dia 29/11/1944, pouco depois de terem os americanos entrado em Roma, um grupo de 70 israelitas foi ao Vaticano para agradecer ao Papa a sua atitude durante a guerra.19 Giuseppe Nathan, comissário da União das Comunidades Judaicas Italianas; Leo Kubowitzki, secretário geral do Congresso Judeu Mundial; quarenta delegados do United Jews Appeal ; Albert Einstein, o genial físico judeu; Poliakov, escritor judeu; Pinchas Lapide, historiador, que foi Cônsul Geral de Israel em Milão e professor universitário em Jerusalém; Dr. Marcus Melchior, Rabino Chefe da Dinamarca; Moshe Sharetto, Primeiro Ministro de Israel; Golda Meier, então Ministra de Assuntos Exteriores de israel, e posteriormente Primeira Ministra; Isaac Herzog, Rabino Chefe de Jerusalém; Dr. Joseph Nathan, representante da Comissão hebraica; a Comunidade Judaica Italiana; Reuben Resnick, diretor norteamericano do Comitê para Ajuda a Judeus na Itália; Emanuel Rackman; Rabino e presidente do Conselho Rabínico da América; Israel Zolli, rabino em Roma durante a ocupação nazista. E não se pode esquecer a mensagem enviada a Pio XII por vinte mil judeus refugiados da Europa Central: “Permita-nos solicitar a grande honra de podermos agradecer, pessoalmente, Sua Santidade pela generosidade que mostrou-nos quando estávamos sendo perseguidos durante o terrível período do nazi-fascismo”.20 Julgamos oportuno citar testemunhos também de não judeus: Em 31/10/1944 o representante de Roosevelt junto ao Vaticano, Myron Taylor, em um relatório enviado ao Comitê para Refugiados, em Washington, disse o seguinte: Eu também quero prestar minhas homenagens a muitos grupos e indivíduos não judeus que mostraram um verdadeiro espírito cristão em sua pronta e amistosa reação em apoio aos desamparados da Europa [...]. Em toda a 18 19 20 Para detalhes de suas manifestações, consultar BLESSMANN, Joaquim. O Holocausto, Pio XII e os Aliados. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003; e também ID. Bento XVI, Auschwitz e o povo alemão. Cultura e Fé, Porto Alegre: ano 31, nº 121, p. 26-57, abril-junho 2008. MOCETTI, Alberto. Op.cit., p. 436. MARCHIONE, Margherita. Op.cit., p.77. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 471 Rev 127.pmd 471 05/03/2010, 10:14 Europa padres católicos forneceram lugares de refúgio e proteção aos perseguidos. Sua Santidade, Pio XII, intercedeu em muitas ocasiões em socorro de refugiados em perigo.21 Sir D’Arcy Godolphin Osborne foi Ministro Plenipotenciário do Reino Unido da Grã-Bretanha junto à Santa Sé de 1936 a 1947. Teoricamente protestante, era religiosamente indiferente. O historiador Owen Chadwick, protestante, baseado nas “Memórias” do Ministro Osborne, afirma o seguinte: Pio XII foi um Papa corajoso [...] Era cauteloso nas denúncias, consciente de quanto poderiam ser contraproducentes se não usasse de circunspecção. Mas, quando via que podia fazer algo de concreto, entrava em ação e a sustentava até o limite extremo. Calara-se a respeito da invasão da Polônia porque suas palavras só teriam contribuído para agravar a situação, provocando represálias contra os Bispos e os fieis poloneses.22 Osborne testemunhou as ações do Papa em favor dos judeus: eles foram escondidos em conventos e mosteiros, no Vaticano e em Castel Gandolfo. Cerca de seis mil judeus estavam escondidos em Roma. Quanto aos que foram encarcerados, por intermédio de seu Secretário de Estado Pio XII pediu ao embaixador Weiszäcker que se interessasse por eles, conseguindo que algumas centenas de judeus recuperassem a liberdade. Um capelão judeu do 5º Exército Norte Americano, falando pelo rádio, em Roma, em 30/07/1944, disse o seguinte: “Se não fosse pela assistência realmente essencial dada aos judeus pelo Vaticano e pelas autoridades eclesiásticas de Roma, centenas de refugiados e milhares de refugiados judeus teriam sem dúvida perecido antes que Roma fosse libertada”.23 Outro testemunho de grande valor é o do Major britânico William Simpson. Aprisionado pelos alemães na Itália, conseguiu fugir, ficando escondido por meses, com a ajuda de um sacerdote irlandês e de italianos. Em seu livro A Vatican Lifeline (Um salvavidas do Vaticano), ele atesta que refugiados judeus e outros prisioneiros foragidos, de outros credos e outras nacionalidades, 21 22 23 RYCHLAK, Ronald J., Op.cit., p. 225. BETTENCOURT, Estevão. Pio XII, os nazistas e os judeus. Op.cit., p. 438. MARCHIONE, Margherita, Op.cit., p. 76. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 472 Rev 127.pmd 472 05/03/2010, 10:14 encontraram abrigo em muitos Seminários e Universidades Católicos em Roma e outros locais. Simpson não está de acordo com os que criticam a cautela dos pronunciamentos do Vaticano. Para ele, o procedimento cauteloso do Vaticano ajudou em muito as vítimas da guerra.24 3 “No Museu do Holocausto, em Jerusalém, na legenda abaixo da imagem de Pacelli, procura-se, em 23 linhas, mostrar a omissão de Pacelli, com ênfase ao fato, verdadeiro, de ele ter colocado na gaveta uma carta condenando o antisemitismo e o racismo, preparada e aprovada pelo seu antecessor, Pio XI”. Comentários São tantas as inverdades no parágrafo acima, que chegamos a suspeitar que a crítica abaixo da imagem de Pacelli seja mais uma inverdade; ou, mais do que isso, mais uma mentira, pois não cremos que Maierovith creia no que diz. É muita ignorância, e também muita malícia e descaramento. É desprezar os conhecimentos alheios, para tentar impingir tantas inverdades. Omissão de Pio XII? Engavetamento de carta preparada por Pio XI? A realidade foi completamente diferente. Francamente, face às tantas inverdades, descaradamente apresentadas em seu artigo, chegamos a duvidar sobre o registro, no Museu do Holocausto, da omissão de Pacelli. Está completamente em desacordo com o que vimos no item 1 e veremos a seguir. Em março de 1937 Pio XI publicou três encíclicas, todas elas tratando de relações internacionais. A Encíclica Divini Redemptoris tratou do comunismo, enquanto que a intitulada Mit brennender Sorge (Com ardente preocupação) referia-se ao Nacional Socialismo de Hitler, condenando-o como não cristão. Esta foi, no dizer de Rychlak, “uma das condenações mais fortes a qualquer regime nacional que a Santa Sé jamais publicou”. A encíclica condenava tanto a perseguição à Igreja na Alemanha, como também o neo-paganismo das teorias nazistas. E sua idolatria da raça e sangue. A idéia de escrever essa Encíclica é de agosto de 1936. Os bispos alemães, em face dos problemas que a Igreja estava enfrentando na Alemanha, solicitaram a Pio XI que se manifestasse a respeito. Pacelli, que fora Núncio Apostólico na Baviera (19171925) e em Berlim (1925-1929), era considerado como o prelado com mais conhecimento dos problemas da Igreja com a CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 473 Rev 127.pmd 473 05/03/2010, 10:14 Alemanha. Em vista disso foi a ele, então Secretário de Estado, que Pio XI encarregou de elaborar, com a participação dos bispos da Alemanha, um esboço para uma Encíclica, em 1937. As Encíclicas geralmente são escritas em latim. Esta, para uma maior divulgação entre os alemães, foi escrita em alemão. Ela entrou sorrateiramente na Alemanha, sendo entregue várias cópias ao Núncio em Berlim no dia 12 de março. Era um documento de 12 páginas, que foi reproduzido e lido em todas as Igrejas da Alemanha no Domingo de Ramos, em 21/03/1937, além de divulgado entre os católicos. Só na diocese de Münster foram distribuídas 120 mil cópias. Todas as cópias encontradas pelos nazistas foram confiscadas. Apesar disso, ela continuou a ser impressa secretamente Quem fosse descoberto imprimindo-a era preso e a maquinária apreendida. Também eram presos os que eram declarados culpados de distribuí-la. As publicações ligadas à Igreja foram suspensas. A simples menção da Encíclica já era considerada um crime. Esta reação abrupta tem o mérito de desmentir uma das muitas acusações feitas a Pio XII: a de ser o “Papa de Hitler”, ele, o principal autor intelectual desta Encíclica de Pio XI, como este declarou em certa ocasião. A segunda grande guerra começou em 1º/09/1939. No mês seguinte, em 20/10/1939, Pio XII publicou sua primeira Encíclica, Summi Pontificatus, na qual ele externava sua profunda dor pela guerra e lembrava “a igualdade da natureza humana em todo ser humano, qualquer que seja a nação a que pertença”, e lamenta os que “são maltratados, oprimidos, perseguidos”, sendo que “o sangue de inúmeros homens, mesmo dos que não combatem, ergue um gemido horrível”.25 Nesta Encíclica Pio XII também fala do “esquecimento daquela lei de caridade e solidariedade humana, sugerida e imposta, quer pela identidade de origem e pela igualdade da natureza racional em todos os homens, sem distinção de povos, quer pelo sacrifício da redenção oferecido por Jesus Cristo”.26 24 25 26 BETTENCOURT, Estevão. Pio XII e os judeus, Op.cit., [1997], p.389. BETTENCOURT, Estevão. Pio XII e os judeus, [1994], p. 437. DOCUMENTOS DE PIO XII (1939-1958). São Paulo: Paulus, 1998, p.29. Coleção Documentos da Igreja. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 474 Rev 127.pmd 474 05/03/2010, 10:14 Na Alemanha o texto foi publicado com profundas alterações, razão pela qual o Núncio Apostólico em Berlim, instruído pela Santa Sé, protestou energicamente ao governo alemão. Foram presos os sacerdotes que leram, no púlpito, a versão não censurada. Em 1940, em uma carta a ser lida em todas as igrejas, intitulada Opere et caritate, Pio XII instruía os bispos católicos da Europa para darem assistência a todas as pessoas que estivessem sofrendo discriminação racial nas mãos dos nazistas.27 Nas suas mensagens de Natal de 1939 a 1942 Pio XII insistiu neste tema. A mensagem de Natal de 1941 foi interditada em vários países, por ordem de Berlim. Nesta mensagem Pio XII deplorava “a desonra infligida à dignidade humana, à liberdade e à vida [...], desonra que clama por vingança”. Na mensagem de 1942 Pio XII, além de denunciar a crueldade da guerra e a violação de convenções internacionais que procuravam limitar seus horrores, falava das “centenas de milhares de pessoas inocentes, que pelo único fato de pertencerem a tal nação ou a tal raça foram condenadas à morte mediante seu progressivo extermínio”. Os exemplares desta mensagem foram retirados de circulação, tanto na Alemanha como nos países dominados pelos nazistas. Além de palavras (com uma certa cautela, pelas razões que já expusemos), Pio XII agiu. Instruiu institutos e conventos católicos para abrigarem clandestinamente os judeus perseguidos, o que incluía o próprio Vaticano e a residência de verão dos papas em Castel Gandolfo, onde foram abrigados cerca de 500 judeus. Várias crianças nasceram no apartamento do Papa, o qual tinha sido transformado em uma sala de partos. Quase cinco mil judeus, um terço da população judaica de Roma, foram escondidos em edificações pertencentes à Igreja Católica. Além das já citadas, também em conventos, monastérios, edifícios adjacentes às Basílicas de São Pedro, Santa Maria Maior, São João Lateranense e São Paulo Extra Muros, bem como em casas paroquiais. Muitos outros foram acolhidos em residências particulares. Um número ainda maior de judeus encontrou refúgio fora de Roma. Também soldados alemães que desertavam foram acolhidos. Aliás, Pio XII concedeu audiências a vários deles, que 27 MARCHIONE, Margherita. Op.cit., p. 32. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 475 Rev 127.pmd 475 05/03/2010, 10:14 sofriam dramas de consciência, até que uma ordem do alto comando alemão proibiu-os de entrar (legalmente) no Vaticano. Hospitais católicos receberam ordem de admitir tantos pacientes judeus quanto possível, mesmo que suas doenças fossem fictícias. Os que recebiam abrigo deviam declarar que não portavam armas, que agiriam de acordo com a neutralidade oficial do Vaticano, e que seguiriam todas as regras necessárias para manter essa neutralidade. Artigos religiosos judeus eram perigosos, pois, se fossem descobertos, as conseqüências seriam funestas. Muitas cópias do Torah e de outros livros sagrados para os judeus foram guardados pelos clérigos que os acolhiam. Além de abrigo e alimentação, documentos foram forjados, tais como certidões de batismo e carteiras de identidade falsas, que os apresentavam como católicos. Judeus aprendiam orações católicas para passarem no “teste”, caso algum membro das forças nazistas desconfiasse de que estava em presença de um judeu. Alguns vestiam hábitos religiosos e aprendiam a liturgia. Alguns sobreviventes recordavam, anos depois, que, no meio da oração, passavam do hebraico Shema para o latino Ave Maria, quando um estranho se aproximava. Quando possível, sacerdotes católicos pessoalmente escoltavam estes “monges e irmãs” até a zona já reconquistada pelas forças aliadas, no sul da Itália. Os nazistas tinham uma lista de padres que tinham dado auxílio a judeus, e procuravam prendê-los para enviá-los a campos de concentração. Muitos desses padres esconderam-se então no Vaticano, e só reapareceram quando os Aliados libertaram Roma. Infelizmente, no norte da Itália, ainda em poder dos nazistas, havia dificuldade para os padres procurados se esconderem, e muitos deles foram executados. O mesmo aconteceu em outros países.28 E isso aconteceu não só na Itália, mas também em países ocupados, tais como a Polônia, França, Bélgica e Hungria. Pio XII informou aos Núncios Apostólicos que “a prioridade das prioridades é salvar o maior número possível de pessoas”. E foi através dos Núncios que Pio XII pressionou os chefes de governo nos países dominados, pelo envio de inúmeros protestos. Destes, como exemplo, citamos trecho do protesto entregue ao governo eslovaco, em março de 1942: “A Secretaria de Estado de S. Santidade espera que medidas tão duras e injustas como as que foram tomadas contra pessoas de raça judaica não possam 28 RYCHLAK, Ronald J. Op.cit., p. 203-4. 476 Rev 127.pmd CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 476 05/03/2010, 10:14 receber a aprovação de um Governo que se ufana de sua herança católica [...] Não é verídico afirmar que os judeus deportados são enviados a campos de trabalho; a verdade é que estão sendo extintos”.29 Devido a este e a outros protestos do Núncio, o Presidente eslovaco, para mostrar sua boa vontade, suspendeu a ordem de deportação de quatro mil judeus eslovacos. Na Hungria, Pio XII fez uma intervenção direta, além das feitas por intermédio do Núncio. Em 25/06/1944 telegrafou ao regente Miklos Horthy, pedindo-lhe senso humanitário. O regente suspendeu a deportação de judeus. Mas em outubro do mesmo ano ele foi deposto e recomeçaram as deportações. Após isso, embora sem muitos resultados práticos, o Núncio Apostólico, Mons. Rotta, continuou intervindo insistentemente em favor dos judeus. Nos arquivos de Berlim, Paris, Budapeste, Bucareste e Sofia encontram-se freqüentes e enérgicas intervenções de Pio XII. Von Ribbentrop, Ministro das Relações Exteriores de Hitler, no processo de Nürenberg mencionou sessenta destas mensagens de protesto junto ao governo alemão. 4 “Quando os nazistas, por nove meses, ocuparam o país [Itália], muitos judeus foram salvos por terem recebido a proteção de freiras e padres. A partir desse fato irrefutável, começaram as indagações acerca da postura desses religiosos ter decorrido de uma determinação de Pio XII”. Comentários Que indagações? É fato comprovado que Pio XII comandou toda a atividade de membros da Igreja em favor de todos os perseguidos pelo regime nazista (que não foram só judeus). Maierovitch, em sua malícia e má vontade para com Pio XII, parece-nos estar insinuando (de um modo não muito sutil) que eles, os religiosos, bem que podem ter agido por conta própria, à revelia do Papa. Mais uma distorção descarada dos fatos. Detalhes daremos mais adiante. 5 “Fatos a pesar negativamente contra o papa são irrefutáveis. Em 1933, quando ainda era secretário de Estado do Vaticano, foi ele o responsável pela costura e a celebração de um documento com o governo alemão. cuja meta era proteger os interesses da Igreja Católica naquele país.Tal postura implicou, por evidente, o reconhecimento do regime nazista”. 29 BETTENCOURT, Estevão. Pio XII e os judeus, Op.cit., [1994], p. 440-1. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 Rev 127.pmd 477 05/03/2010, 10:14 477 Comentários Aqui se complementam, de uma maneira ímpar, ignorância, má-fé e falta de verdade, que levaram a afirmações que, diríamos, são absurdas. Houve um evidente reconhecimento do regime nazista? Mas que conclusão genial! Uma preciosidade, na qual, mais uma vez, Maierovith mostra, insistimos, ignorância, má fé e falta de raciocínio correto. Fatos negativos irrefutáveis? Aponte-os, Maierovith. É impressionante a ignorância imensa, a falta de um conhecimento, por rudimentar que seja, do que está registrado em documentos históricos. Para começar, nem sabe o nome correto do documento a que se refere. Trata-se de uma Concordata, que nada tem a ver com as concordatas da economia, acordos que comerciantes fazem com seus credores, para evitar a declaração de falência. Vamos ver o que significa Concordata na terminologia da Igreja Católica, E toda a “evidência” desaparecerá. Ou melhor, ela só existiu na cabeça do autor do artigo que estamos comentando. Uma Concordata é um acordo ou tratado diplomático que o Vaticano (a rigor, a Santa Sé) celebra com outro Estado, pelo qual suas relações mútuas são reguladas, no que diz respeito aos assuntos de interesse comum. Quando a Concordata com a Alemanha foi assinada, em 1933, Hitler já estava no poder e governava de forma despótica. De fato, Hitler foi nomeado Chanceler do Reich (Primeiro Ministro) em 30 de janeiro de 1933 pelo Presidente Hindenburg. A 23 de março a Assembléia do Reichstag (Parlamento) conferiu a Hitler plenos poderes (ditadura) por um prazo de quatro anos. E é após isso, em 20 de julho, que foi assinada a Concordata entre o governo nacional socialista e a Santa Sé. Ela foi praticamente imposta à Igreja. Para forçá-la a assinar a Concordata, já durante as negociações 92 padres foram presos, 16 clubes de jovens católicos foram saqueados e nove publicações católicas foram fechadas. Ao assinar uma Concordata a Igreja tem seus direitos oficialmente admitidos. Entre esses, o direito do Papa e dos bispos do país de publicarem pastorais e encíclicas, liberdade da imprensa católica, o direito das escolas católicas de ensinarem sua fé, paróquias e associações religiosas podem estabelecer suas normas, etc. Só há uma limitação: tudo que é concedido à Igreja deve estar de acordo com as leis do país. Com a Alemanha de Hitler, CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 478 Rev 127.pmd 478 05/03/2010, 10:14 entretanto, a lei estava unicamente na dependência da interpretação que lhe desse o Führer. O exercício da religião e as manifestações dos eclesiásticos em publicações, palestras e mesmo nas homilias, podiam ser (e de fato o foram) enquadradas como “atividade ilegal”. Assim sendo, não havia muitas ilusões sobre o futuro de uma Concordata com o regime nazista. Mas, ruim com ela, pior sem ela. Houve algumas vantagens, e males ainda maiores foram evitados. Apesar de todas as violações que advieram, os católicos tinham uma base jurídica para sua defesa, ou ao menos para protestar contra as violações aos direitos da Igreja assegurados pela Concordata. Muitos se admiraram (e ainda há quem continue se admirando) de ter a Igreja assinado um “acordo de convivência” com um regime que ela condenava. Embora, é necessário salientar, tal acordo não constitua um endosso ao regime nazista. E assim, após muita hesitação, após pesar os prós e os contras, Pio XI e seu Secretário de Estado, Cardeal Eugênio Pacelli, acabaram aceitando a Concordata, embora eles não tivessem confiança em Hitler. A Santa Sé protestou 34 vezes em quatro anos contra rupturas da Concordata e contra a pretensão totalitária do Estado alemão. Eis as razões de alguns desses protestos: cinco dias após sua assinatura foi aprovada a lei de esterilização; e após mais cinco dias o líder da Ação Católica Alemã, Dr. Erich Klausener, foi assassinado. Em quatro anos centenas de padres católicos foram presos, sendo que pelo menos 127 foram enviados para campos de concentração; propriedades da Igreja foram confiscadas; a imprensa católica foi gradativamente sendo suprimida; as escolas católicas foram sendo fechadas; a juventude foi afastada da família e da Igreja, pois as reuniões dos ramos da Juventude Hitlerista (praticamente todos os adolescentes a elas pertenciam, por livre vontade ou sob pressão) eram feitas nas manhãs dos domingos, única oportunidade, naquela época, de cumprir o preceito de missa dominical. Citamos, como exemplo de protesto a essas violações do tratado, o do então Cardeal Pacelli, em Nota que entregou ao Embaixador do Reich na Santa Sé, em 26/07/1933: É intolerável que no texto da Concordata prometa-se amizade e proteção e que o Estado, com seus altos funcionários e com o Diretor da Educação (A. Rosenberg) combata e insulte a Igreja. É intolerável que o estado recorde à Igreja as obrigações CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 479 Rev 127.pmd 479 05/03/2010, 10:14 da Concordata e ao mesmo tempo tome medidas (esterilização, proibição de participação nos movimentos católicos) que violam os direitos da Igreja.30 6 - “Também silenciou quando informado oficialmente sobre o massacre dos hebreus, no curso da guerra”. Comentários Outra conclusão gratuita, tendenciosa, maliciosa, falsa. Quem sabia do massacre? Foi um segredo muito bem guardado, só descoberto no fim da guerra. Daremos algumas informações a respeito desse segredo.31 As violências, perseguições, torturas e assassinatos perpetrados pelos nazistas antes e durante a segunda guerra mundial raramente chegavam ao conhecimento público. E, nestas raras vezes, eram por demais cruéis para serem acreditadas. “Mesmo quando alguns conseguiam escapar e contavam o que tinham vivenciado, os próprios judeus nos Estados Unidos não conseguiam acreditar”, comentou a irmã Margherita Marchione, Professora Emérita na Fairleigh Dickinson University, Madison, N.J., U.S.A., em seu livro “O seu testemunho é precioso”. Eis um testemunho que julgamos importante para confirmar o que dissemos sobre o não conhecimento das atrocidades dos nazistas. Trata-se do testemunho de Gerhart Riegner, judeu nascido em Berlim em 1911. Fugiu de Berlim em 1933 e foi residir em Genebra, Suíça. É um dos fundadores do Congresso Mundial Judaico, do qual foi secretário geral por quase trinta anos. Perguntado sobre quando soube da decisão de Hitler de proceder à “solução final”, assim respondeu: No verão de 1942, um industrial alemão veio à Suíça e nos informou daquilo que ele tinha tomado conhecimento no quartel general de Hitler: falava-se de um plano de extermínio total de todos os judeus da Europa depois de sua deportação para o Leste. Era a primeira vez que recebíamos uma informação desse tipo digna de fé (o industrial tinha 30 31 BLET, Pierre, S.J., Op.cit., p. 118. Para maiores detalhes, consultar 1ª Parte, Capítulo 4 e 2ª Parte, Capítulos 7 e 8 de BLESSMANN, Joaquim. O Holocausto, Pio XII e os Aliados. Op.cit. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 480 Rev 127.pmd 480 05/03/2010, 10:14 acesso às mais altas instâncias do Reich) [...] Nós ficamos pensando se podíamos acreditar nele ou não.32 Ou seja, mesmo confiando na testemunha, era tudo tão dantesco e inacreditável que Riegner ainda duvidava. E o que dizer então da população em geral, tanto de países da Europa como da América ? Mais adiante, na mesma entrevista, Riegner diz o seguinte: “O mundo soube da catástrofe, mas isso não quer dizer que acreditou. Embora todos tenham sido informados, nenhum governo acreditou no fato [o grifo é nosso]; só o embaixador soviético o considerou possível”. Certamente, cremos, porque estava acostumado com o que fazia Stalin. Para acabar com as verdadeiras lendas caluniosas contra Pio XII, fruto de má vontade, ignorância ou mesmo de uma imaginação doentia, Paulo VI autorizou, em 1964, que fossem divulgados os documentos existentes nos arquivos da Secretaria de Estado do Vaticano sobre a 2ª Guerra Mundial. Foi um árduo trabalho, que ocupou por mais de 15 anos a quatro sacerdotes jesuítas: Angelo Martini, Burkhart Schneider, Robert A. Graham e Pierre Blet. Deste trabalho resultou um conjunto de 12 volumes, publicados entre 1965 e 1981, sob o título “Actes et Documents du Saint Siège relatifs à la Seconde Guerre Mondiale” (Atos e Documentos da Santa Sé Relativos à Segunda Guerra Mundial). Também o Pe. Pierre Blet confirma o desconhecimento da solução final. Em entrevista a Stefano M. Paci ele afirma que: Do projeto de extermínio total dos judeus nem Pio XII nem as organizações judaicas nem os Aliados estavam a par. A dramática extensão daquele projeto soube-se apenas depois do final da guerra. Durante, nunca se falou. Nem mesmo a Rádio Londres, que estimulava as populações submetidas ao nazismo para que se insurgissem, jamais acenou a esses campos de morte. Sabia-se das deportações de grupos de judeus massacrados, mas não desse extermínio em escala industrial, a horrível ‘solução final’.33 32 33 MOCETTI, Alberto. Op.cit., p. 65. PACI, Stefano. Op.cit., p. 42. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 481 Rev 127.pmd 481 05/03/2010, 10:14 E, mais adiante, o Pe. Blet diz o seguinte: Dois jovens que fugiram de Auschwitz na primavera de 1944 fizeram um relatório do que estava acontecendo ali, mas não foram acreditados [...]. Os próprios judeus foram os primeiros que lhes disseram: “vocês estão loucos, perderemos todos os créditos com esse exagero”. As organizações judaicas duvidavam das conversas que se ouviam [...]. Ainda no dia 30 de agosto de 1943 o Secretário de Estado Americano comunicava: “Não há provas suficientes para justificar uma declaração a respeito da execução em câmaras de gás”. A incerteza era grande. De resto, o segredo absoluto com que foi executada a operação foi confirmado recentemente.34 Telford Taylor, em relatório que preparou para ser usado contra os criminosos de guerra nazistas, afirmou que nada sabia do que estava acontecendo no Leste, apesar de trabalhar no serviço secreto de informações, em Washington. Só soube da “solução final” depois da guerra.35 Mario Terracina, judeu, declarou o seguinte: “Em setembro de 1943 a guarnição alemã em Roma recebeu ordens de reunir e enviar as pessoas de minha religião àqueles campos que mais tarde [o grifo é nosso] descobriu-se que eram campos de extermínio”.36 Lopez, crítico ferrenho da atuação do Vaticano, concorda em que “a compreensão e o conhecimento do extermínio, ao longo da guerra, foram nebulosos e incertos. Os dados eram muitos, mas, além de terem sido insuficientes para permitir formar um quadro completo, ainda esbarravam na incredulidade dos aliados. A crueldade parecia demasiada para não ser, pelo menos em certa medida, propaganda anti-alemã e eles temeram cair nessa armadilha”.37 Ele cita também Walter Laqueur, que chegara à “conclusão de que a compreensão e o conhecimento do extermínio, ao longo da guerra, foram nebulosos e incertos”.38 34 35 36 37 38 Idem. Ibidem. RICCI, Marina. Santa Sé. Judeus: pontos claros sobre a Shoah. 30 Dias, v. 2, n. 9, out. 1987.RICCI, 1987, p. 49. (Entrevista do historiador Robert Graham a Ricci). TERRACINA, Mario. Quatro meses nas catacumbas. 30 Dias, v. 8, n. 4, abr. 1994.1994, p. 58. LOPEZ, Luiz Roberto. Do terceiro Reich ao novo nazismo. Porto Alegre: Ed. da Universidade UFRGS, 1992, p.113. Idem. Ibidem, p. 98. 482 Rev 127.pmd CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 482 05/03/2010, 10:14 O ex-embaixador dos Estados Unidos em Roma, Maxwell Rabb, em entrevista a Cubeddu, disse que “o Holocausto se impôs à atenção do mundo depois que já tinha terminado. Os Estados Unidos, na época, não deram muita atenção ao Holocausto. O presidente Roosevelt também não prestou atenção, embora se soubesse que havia alguma coisa que não estava sendo bem administrada”.39 Do impressionante relato das atrocidades cometidas pelos nazistas que constitui o Relatório Buchenwald, destacamos: O general Dwight D. Eisenhower, acompanhado pelos generais Patton e Bradley, percorreu o campo de concentração de Buchenwald em 13 de abril de 1945, ocasião em que disse: “a única coisa que deixa uma ponta de otimismo é que realmente não acho que a maioria dos alemães soubesse do que estava acontecendo”. O que é confirmado pelo fato de terem se suicidado o Prefeito de Gotha e sua mulher, após verem o pequeno campo de concentração de Ohrdruf, situado próximo à Gotha.40 Em 19 de abril do mesmo ano, Eisenhower, em telegrama a Marshall, diz o seguinte: “Continuamos a descobrir campos de concentração alemães para prisioneiros políticos em que prevalecem condições de indescritível horror. Eu próprio visitei um deles e asseguro-lhe que tudo que foi publicado a respeito até agora fica aquém da realidade”.41 Neste mesmo dia o general Walter Bedell Smith informou a Churchill: “Os campos de concentração alemães recém invadidos pelos exércitos aliados são ainda mais indescritivelmente horríveis que aqueles sobre os quais o general Eisenhower lhe falou ontem”.42 John Colville, secretário particular de Churchill, escreveu em seu diário: “Os jornais estão cheios de matérias com fotografias de embrulhar o estômago, resultantes da invasão de Buchenwald e de outros campos de concentração alemães pelos americanos. Agora há provas de que as histórias dos dez últimos anos não eram mera propaganda, como o foram muitas das histórias de atrocidades da última guerra”.43 CUBEDDU, Giovanni. Jantando com um amigo americano. 30 Dias, v. 17, n.4, abr. 1999, p. 25. 40 HACKETT, David A. O relatório Buchenwald. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 40. 41 Idem. Ibidem, p. 41. 42 Idem. Ibidem, p. 40. 43 Idem. 39 CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 Rev 127.pmd 483 05/03/2010, 10:14 483 Ou seja, destes tópicos extraídos do Relatório Buchenwald conclui-se que não só os aliados mas também muitos alemães não sabiam das atrocidades cometidas. E mais ainda, “ouvir dizer” não prova nada, ainda mais considerando o comentário de John Colville de que muitas das histórias das atrocidades da última guerra eram mera propaganda. O que não é novidade, não só nessa mas em qualquer outra guerra. 7 “Mas nenhum vaticanista, no momento, apostaria na assinatura, por um papa de origem alemã, da beatificação de um antecessor, sem odor de santo e chamado de o ‘Papa de Hitler’”. Comentários O que tem a origem alemã de Bento XVI a ver com isso? Chamado de “Papa de Hitler” por quem? Por um autor tão ou mais mal intencionado do que Maierovitch? Em outubro de 1999 foi publicado o livro Hitler’s Pope: the secret history of Pius XII (O Papa de Hitler: a história secreta de Pio XII), de autoria do jornalista inglês John Cornwell. Se as acusações feitas em uma obra teatral, de ficção, serviram tanto para difamar o papa Pio XII, imaginem o que não causará uma obra pseudamente científica. Seu autor é um jornalista sem nenhuma formação acadêmica ligada ao tema que abordou com tanto desembaraço. Diz ele que teve acesso sem precedente aos arquivos secretos da Secretaria de Estado do Vaticano (nem tão sem precedentes nem tão secretos). Lá, em uma sala que “parecia um calabouço”, ele teria descoberto evidência documentária da aversão racial e religiosa de Pio XII aos judeus. Evidência nada evidente: é uma opinião pessoal, um palpite, baseado principalmente em uma interpretação tendenciosa de um relatório, como mostraremos adiante. Entre outras acusações Cornwell afirma ainda que Pio XII: - ajudou Hitler contra os judeus por ódio aos comunistas; - apoiou o nazismo contra o partido dos católicos na Alemanha, o Zentrum; - ajudou Hitler a subir ao poder com a Concordata que estabeleceu com o governo alemão em 1933. E Cornwell vai ainda mais fundo em suas acusações gratuitas. Eis o que comenta Woodward: 484 Rev 127.pmd CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 484 05/03/2010, 10:14 Sem nenhuma evidência Cornwell afirma que Eugenio Pacelli, como diplomata papal estabeleceu um tratado com a Sérvia que inflamou as tensões que levaram à primeira guerra mundial. Como Núncio Papal na Alemanha (até 1929) e mais tarde como Secretário de Estado do Vaticano, Pacelli traiu os católicos anti-nazistas da Alemanha e foi conivente com Hitler ao estabelecer a Concordata entre o Vaticano e o 3º Reich, assim contribuindo moralmente para a eclosão da segunda guerra mundial, também.44 Portanto, foi graças a Cornwell que a humanidade, embora mui tardiamente, ficou conhecendo o verdadeiro responsável pelas duas guerras mundiais do século XX. Diz Cornwell que ele conseguiu um “acesso sem precedentes aos arquivos secretos da Secretaria de Estado do Vaticano”. “Na verdade”, comenta ainda Woodward, “os Arquivos do Vaticano estão abertos a qualquer interessado que tenha uma conexão acadêmica. Ele também examinou depoimentos referentes ao processo de beatificação de Pio XII, que está sob a direção de jesuítas especialistas em Roma. Estes são documentos privados, mas dificilmente secretos: eu mesmo os vi”. Com todo o espalhafato próprio de um jornalista sensacionalista, Cornwell afirmou que era material jamais visto, e que esses documentos continham material explosivamente crítico, e que o Pe. Peter Gumpel (relator do processo de canonização de Pio XII) tornou-o disponível “a grande risco”. O que não corresponde à verdade. Este material foi consultado também por outras pessoas, tanto antes como depois de Cornwell. Por exemplo, além do já citado Woodward, também Rychlak, após a publicação do livro de Cornwell consultou-os, a convite de Gumpel. Rychlak foi instalado em uma sala no Vaticano e pode consultar toda a documentação examinada por Cornwell.45 E esta documentação nada tinha de explosiva. Da crítica de Woodward reproduzimos ainda este outro trecho: “A evidência apresentada por Cornwell de que Pacelli era anti-semita baseia-se em sua bizarra interpretação de um relatório enviado em 1919 por Pacelli, como Núncio Apostólico em Munique, ao Vaticano”. 44 45 WOODWARD, Kenneth L. The case against Pius XII. Newsweek: International Magazine, Sept. 27, 1999, p. 48. RYCHLAK, Ronald J. Op.cit., p. 286. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 Rev 127.pmd 485 05/03/2010, 10:14 485 Também o Pe. Pierre Blet (já citado em capítulos anteriores) nega que o livro de Cornwell seja científico: “É muito confuso, não se trata de uma verdadeira análise histórica. Faltam documentos que apoiem suas teses. Faz acusações gravíssimas contra Pio XII sem nenhuma prova de fato”. Na nota 6 do livro de Paganuzzi aparece a seguinte declaração de Pe. Roberto Leiber, S.J.: Primeiro como cardeal Secretário de Estado e depois como Pontífice, Pacelli entendia a gravidade do perigo nazista. Isto é evidente também na encíclica Mit brennender Sorge que, depois da primeira redação do cardeal alemão Faulhaber, foi elaborada na sua forma definitiva pelo cardeal Pacelli. Naquele tempo Pio XI estava gravemente enfermo, e eu lembro que ele segurou por dois dias o texto de Pacelli, corrigindo poucas coisas e depois assinando-a. Esta encíclica, que mostrava o verdadeiro rosto do nazismo, foi, portanto, obra do cardeal Pacelli.46 Hitler compreendeu claramente toda sua importância apesar da formulação diplomaticamente indeterminada do documento - como ficou claro no jornal Völkischer Beobachter do dia seguinte, que publicava um venenoso contra-ataque ao “Deus-Judeu e ao seu vigário em Roma”. O órgão das S.S., Das Schwarze Korps, definiu-a como “a mais incrível das cartas pastorais de Pio XI. Cada frase desta encíclica era um insulto à Nova Alemanha” [...]. As missões diplomáticas alemãs na Europa foram informadas pelo Ministério do Exterior nazista da profunda indignação do Reich , e que o governo alemão “considera a encíclica papal como um grito de batalha [...] pois incita os cidadãos católicos à rebelião contra a autoridade do Reich”.47 E, dois dias após, em 23 de março, um memorandum interno do governo alemão dizia que a Encíclica era “quase uma chamada para uma batalha contra o governo alemão”.48 Nada mau para uma encíclica que teve como seu principal autor a quem é acusado de ser o Papa de Hitler e amigo dos nazistas... A respeito dessa “amizade” citamos um diplomata alemão, Albrecht von Kessel, que trabalhou na Embaixada alemã 46 47 48 PAGANUZZI, Quirino. Em missão em Cracóvia. 30 Dias, v.7, n.9, out. 1999, nota 6. Idem. Ibidem, p. 57. RYCHLAK, Ronald J. Op.cit., p. 93. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 486 Rev 127.pmd 486 05/03/2010, 10:14 junto à Santa Sé de 1930 a 1932 e de 1943 a 1945: “Quiseram mostrar que a simpatia do Papa pelo povo alemão era também simpatia pelo regime nazista. Isso é absurdo”.49 É de assinalar que apesar de Cornwell apregoar suas ligações com um Instituto de Ciências da Universidade de Cambridge, ele “não possui nenhum título acadêmico em Ciências Históricas, Direito ou Teologia”.50 Esta mesma fonte bibliográfica desmente outras das tantas afirmações falsas do autor: Cornwell afirma que ele foi o primeiro e único a ter acesso aos arquivos da Secretaria de Estado do Vaticano. Esta afirmação é integralmente falsa, pois muitas outras pessoas tiveram acesso a estes arquivos, mesmo antes de Cornwell consultá-los. Além disso, na realidade deve ser dito que as pesquisas de Cornwell foram limitadas a dois grupos de documentos: Baviera (1918-1921) e Áustria, Sérvia e Belgrado: 1913-1915". Continua L’Osservatore Romano: Cornwell afirmou que trabalhou nos arquivos durante meses. Também esta afirmação não corresponde, absolutamente, à verdade. Nesses arquivos há um registro, cuidadosamente guardado, em que são anotados detalhadamente as datas e horários (horas e minutos) para todas as pessoas que são admitidas para pesquisar. Nestes registros consta que Cornwell teve acesso aos arquivos de 12 de maio de 1997 a dois de junho deste mesmo ano. Portanto, “não alguns meses, mas cerca de três semanas”. E mesmo assim não comparecia todos os dias, e nos dias em que lá esteve freqüentemente sua permanência limitou-se a um curto espaço de tempo. Além de toda a falsidade que foi desmascarada no texto do livro de Cornwell, um exame da capa já mostra sua malícia e predisposição para falsear a verdade. Nela o Arcebispo Pacelli aparece saindo de um edifício do governo alemão, com suas vestes diplomáticas formais. Pacelli era então Núncio na Alemanha. Suas vestes podem ser facilmente confundidas com as vestes 49 50 SCHLIE, Ulrich. O Papa e a outra Alemanha,30 Dias, Ano 7, n. 2 (1992), p. 65-7. L’OSSERVATORE ROMANO, L’OSSERVATORE ROMANO. Notwendige Klarstellung zu einer Neuerscheinung. Edição semanal em alemão, n.46, Nov 1999, p. 4. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 487 Rev 127.pmd 487 05/03/2010, 10:14 papais, para quem não está a par dos detalhes dos trajes oficiais da Santa Sé. Do mesmo modo, os dois soldados de guarda podem passar por soldados de Hitler. E, face ao texto do livro, repleto de inverdades, é razoável supor que essa foi a intenção de Cornwell: dar a entender que a foto mostra o Papa Pio XII saindo de uma entrevista com Hitler. Isto é reforçado pelo título do livro, que aparece logo acima da foto: o Papa de Hitler . Na realidade Pacelli estava saindo de uma visita oficial ao Presidente da Alemanha, Hindenburg, em 1927, durante a chamada República de Weimar. Esta foto, portanto, foi tirada cerca de seis anos antes de Hitler assumir o poder (em 1/01/1933) como Primeiro Ministro dotado de poderes especiais. Acrescente-se ainda que Pacelli deixou a Alemanha em 1929, e nunca mais lá esteve. Comentários finais As falsas acusações de Maiorevitch à atuação de Pio XII não são as primeiras, e vêm se repetindo nas últimas décadas, principalmente a partir de uma peça teatral (Der Stellvertreter O Representante ), de Rolf Hochhut, e de um livro que já comentamos (Hitler’s Pope: the secret history of Pius XII - O Papa de Hitler: a história secreta de Pio XII), de autoria de John Cornwell. Ambos apresentam acusações graves e gratuitas, facilmente refutáveis, se considerarmos as ações de Pio XII (comprovadas por documentos idôneos) e os testemunhos de muitas pessoas, muitas delas sem qualquer ligação com a Igreja Católica. A primeira dessas acusações graves e de repercussão mundial, a peça teatral acima citada, apareceu em 1963, portanto 18 anos após o término da guerra. E o livro de Cornwell foi publicado em 1999, ou seja, 36 anos após a peça. Lembremos também que a perseguição não foi só aos judeus. Para Hitler, tanto judeus como eslavos (poloneses, russos) e ciganos eram raças inferiores. O Cardeal Macharski, de Cracóvia, em janeiro de 1986 havia declarado: “Auschwitz é sinônimo de massacre realizado pela Alemanha contra o povo polonês”. E do Prof. Maciej Giertych relembramos: “Auschwitz não é só um símbolo do martírio judaico. É também a maior necrópole polonesa” (Os grifos são nossos). Quanto à acusação de omissão, é conveniente insistir que a quase totalidade do povo alemão nada sabia sobre a “solução 488 Rev 127.pmd CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 488 05/03/2010, 10:14 final”, incluindo aí até muitos membros do partido nazista. As raras informações que vazavam não eram acreditadas nem pelos governos dos países aliados nem pelos próprios judeus; haja vista o que disseram a dois jovens que escaparam de Auschwitz: “vocês estão loucos, perderemos todos os créditos com esse exagero”.51 E em 30 de agosto de 1943 o Secretário de Estado Americano informava: “Não há provas suficientes para justificar uma declaração a respeito da execução em câmaras de gás”.52 Não esqueçamos que a decisão de exterminar os judeus, na Conferência de Wannsee, e os campos de extermínio, foram segredos cuidadosamente guardados pelos nazistas, e que uma verdadeira e completa revelação de todo esse morticínio de judeus e não-judeus só se deu após a conquista desses campos pelos Aliados. Antes disso, somente notícias e informações esparsas, nas quais algumas pessoas acreditavam, e a maioria não. Basta ver que em novembro de 1944 uma pesquisa do Instituto Gallup mostrou que 36% dos entrevistados estavam convictos de que os mortos em campos de concentração (incluindo os de extermínio, que naquela época não eram do conhecimento público) eram menos de cem mil. Somente 16% acreditavam que tivesse sido 2 milhões ou mais. Convém lembrar que, na realidade, o número de judeus assassinados foi de cerca de 5,5 milhões de pessoas. Igual número de cristãos poloneses (não em combates!) e prisioneiros de guerra russos tiveram o mesmo destino, e quase ninguém sabe deste fato, o qual foi devidamente comprovado. Todos os documentos idôneos e os testemunhos mostram claramente que Pio XII não poderia fazer uma crítica direta a Hitler, tendo em vista suas reações violentas às críticas que recebia. Como já vimos, Pio XII inclusive pensou em denunciar severamente os crimes cometidos pelos nazistas na Polônia. Solicitou um parecer do episcopado polonês sobre a conveniência de tal pronunciamento. A resposta do Cardeal Sapihea, de Cracóvia, foi a seguinte: “Digam ao Santo Padre que nós lhe imploramos não fazer nada; o povo polonês, judeus e católicos, sofreriam juntos o preço de uma denúncia”.53 PACI, Stefano. Op.cit., p. 42. Idem. 53 “Cardeal Tonini: eis porque Pio XII calou sobre o Holocausto ...”, 30 Dias, Ano 16, nº 3 (1998), p. 31. 51 52 CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 Rev 127.pmd 489 05/03/2010, 10:14 489 Os arquivos do Vaticano guardam telegramas de governos exilados, da Polônia e de outros países, pedindo ao Papa que não fizesse pronunciamentos públicos contra os nazistas, pois a cada crítica novas e mais violentas perseguições aconteciam. Lembremos também as palavras de Pio XII quando soube que Hitler mandara prender e matar milhares de judeus e de judeus convertidos ao catolicismo na Holanda: “Se a carta dos Bispos holandeses custou quarenta mil vidas humanas, o meu protesto poderia custar duzentas mil. Não devo nem posso assumir esta responsabilidade”. Por outro lado, agiu como pôde, tanto antes (tentando evitar a guerra) como durante o conflito, quando instruiu institutos e conventos católicos de diversos países para abrigarem clandestinamente os judeus perseguidos, inclusive no próprio Vaticano e em Castel Gandolfo. Também pressionou os chefes de governo dos países dominados, pelo envio de inúmeros protestos. Dos diversos testemunhos que confirmam o correto procedimento de Pio XII, relembramos o de Robert Kempner, delegado dos Estados Unidos da América no processo de Nüremberg: “Qualquer tentativa de propaganda da Igreja Católica contra o Reich de Hitler [...] teria provocado a execução de um número maior de judeus e de sacerdotes”.54 De tudo o que expusemos, cremos que se pode concluir que Pio XII agiu como podia e como devia agir, dentro do contexto da época. A Igreja Católica, sob seu comando, salvou cerca de 860 mil judeus do Holocausto, muito mais do que todas as outras instituições juntas, governamentais e não-governamentais. A propósito, também a Cruz Vermelha Internacional foi acusada de pouco ter feito. Os Estados Unidos, com um órgão específico para tratar do problema dos judeus, e apesar de todo seu poderio militar e econômico, conseguiu salvar apenas 1/5 dos judeus salvos pela Igreja Católica. Quanto à crítica de que deveriam ter sido feitas manifestações severas condenando os massacres, a razão pela qual nem Pio XII tampouco os governos aliados as fizeram, é a mesma: Hitler respondia a protestos com mais violência, com 54 PACI, Stefano. Op.cit., p. 43. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 490 Rev 127.pmd 490 05/03/2010, 10:14 mais morticínio. Entre outros temores, os Aliados preocupavamse com o que poderia acontecer aos prisioneiros de guerra em mãos dos nazistas. E Pio XII, entre outras considerações, perguntava sobre o que aconteceria com os mais de 40 milhões de católicos na Alemanha (além dos católicos nos países ocupados), se ele fizesse uma manifestação incisiva contra Hitler. E, como expusemos em nosso livro55, Hitler pretendia acabar não só com os judeus, mas também com os cristãos que não se adaptassem a sua nova “religião”. E, no que se refere à eficácia desses protestos, no início de 1944, por exemplo, o Foreign Office britânico informava que a Declaração dos Aliados de 1942 não tinha tido sucesso, tinha atrapalhado os Aliados e provocado excessiva expectativa entre judeus. E, mais ainda, já em 1943 Robert Borden Reams, especialista em refugiados, afirmara que a Declaração de 1942 tinha acelerado a perseguição nazista aos judeus. O que confirma a correta atuação de Pio XII, que agiu mais por atos do que por palavras. Mas por que, apesar de tudo que se sabe, historicamente comprovado, sobre a intensa e eficiente atuação de Pio XII, continuam as acusações falsas contra ele? E por que só ele é alvo de críticas? O que fizeram Roosevelt, Churchill e Stalin em favor dos judeus? O que fez a própria comunidade judaica norteamericana? O que fez a Cruz Vermelha Internacional? O que fizeram as nações para acolher os milhões de judeus que poderiam ter emigrado antes da definição da “solução final”? Mais detalhes do que expusemos neste artigo, e de temas correlacionados, são encontrados em nosso livro já citado. 55 BLESSMANN, Joaquim. O Holocausto, Pio XII e os Aliados. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. CULTURA E FÉ | 127 | Outubro - Dezembro | ano 32 | p. 463-91 491 Rev 127.pmd 491 05/03/2010, 10:14