Benilde da Piedade Caldeira dos Santos Gaião

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Benilde da Piedade Caldeira dos Santos Gaião
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM
CRIAÇÕES LITERÁRIAS CONTEMPORÂNEAS
Área de Especialização: Literatura Norte-Americana
Contemporânea
A Família Gótica na Ficção de William
Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Grant Wood, American Gothic, 1930.
Benilde da Piedade Caldeira dos Santos Gaião
Orientadora: Professora Doutora Maria Antónia Lima
Évora, Outubro de 2010
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM
CRIAÇÕES LITERÁRIAS CONTEMPORÂNEAS
Área de Especialização: Literatura Norte-Americana
Contemporânea
A Família Gótica na Ficção de William
Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Benilde da Piedade Caldeira dos Santos Gaião
Orientadora: Professora Doutora Maria Antónia Lima
Aos meus pais
4
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e
Anne Rice
Esta dissertação é um estudo que propõe revelar a complexidade e os
paradoxos da família nas obras de três autores contemporâneos, William
Faulkner: The Sound and the Fury (1929), As I Lay Dying (1930) e Light
in August (1932), Thomas Harris: Red Dragon (1981), The Silence of The
Lambs (1988) e Hannibal Rising (2006) e Anne Rice: Interview with the
Vampire (1976) e The Vampire Lestat (1985). Este trabalho analisará a
forma como estes autores desocultam o que convencionalmente deveria
ser resguardado dos olhos do público, daí decorrendo o poder
transgressor deste modo literário, evidenciado nos autores em questão.
Ao expor os núcleos familiares, será fundamental reflectir na sua
disfuncionalidade, no passado reprimido que “persegue” um presente
condicionado pelo abjecto e repulsivo que paradoxalmente atrai o leitor.
Devido à intemporalidade e universalidade do tema, serão estabelecidas
relações entre estas obras e outras representações artísticas, tais como a
pintura e o cinema.
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A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
The Gothic Family in the Fiction of William Faulkner, Thomas Harris
and Anne Rice
This dissertation is a study that aims to reveal the complexity and the
paradoxes of the family in the work of three contemporary authors,
William Faulkner: The Sound and the Fury (1929), As I Lay Dying
(1930) and Light in August (1932), Thomas Harris: Red Dragon (1981),
The Silence of The Lambs (1988) and Hannibal Rising (2006) and Anne
Rice: Interview with the Vampire (1976) and The Vampire Lestat (1985).
This work will analise the way these authors reveal what
conventionally should be kept away from the eyes of the public, from
this derives the transgressive power of this literary form, stressed on
these authors. Showing the familiar units, it will be essential to think
about its lack of functionality, in the repressed past that “haunts” a
present conditioned by the abject and the repulsive, that in a
paradoxical way attracts the reader. Due to the timeless and
universality of the topic, it will be established connexions between
these works and other visual arts, such as painting and cinema.
6
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
ÍNDICE
Resumo ….........................................................................................................5
Introdução …...................................................................................................10
Capítulo 1. William Faulkner: os laços familiares como sinónimo de
maldição em As I Lay Dying, The Sound and the Fury e Light in
August...............................................................................................................18
1.1. Desventura da Maternidade..........................................................................19
1.2. A Realidade e a Insanidade ….....................................................................27
1.3. The “Sins of the Fathers”: Religião e Maldição, Sexualidade e Promiscuidade
....................................................................................................31
Capítulo 2. Thomas Harris: Efeitos negativos provocados pelos traumas
familiares em Red Dragon, The Silence of the Lambs e Hannibal
Rising..............................................................................................36
2.1. Angústia e Identidade …..........................................................................36
2.2. A Inocência e a Experiência ….................................................................43
2.3. Vítima e Carrasco ….................................................................................45
Capítulo 3. Anne Rice: A Família como força vampírica consumidora da
humanidade do indivíduo em Interview with the Vampire e The Vampire
Lestat............................................................................................49
3.1. Indefinição: Vampirismo e Humanidade …...........................................50
7
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
3.2. A Subversão da Religião …...................................................................56
3.3. Família: Ambiguidade e Inovação …....................................................61
Conclusão...................................................................................68
Bibliografia …...........................................................................73
Anexos …...................................................................................78
8
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Este trabalho nunca teria sido possível sem a orientação e apoio da Doutora Maria
Antónia Lima. Incansável e inspiradora, devo-lhe muito. Pela sua dedicação e persistência,
os meus agradecimentos.
O meu especial obrigado aos meus pais porque, mais uma vez, me deram a oportunidade
de expandir o meu horizonte cultural e de crescer.
Um especial agradecimento ao meu marido e ao meu filho que sempre me deram todo o
seu amor e apoio.
Importantes foram também todos os colegas de curso, “góticos” e não só, em especial a
Vânia Matroca, com quem partilhei algumas das minhas alegrias, dúvidas e angústias.
A todos um muito obrigada.
9
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
INTRODUÇÃO
Esta dissertação incide sobre a família na ficção gótica americana e propõe-se abordar as
perspectivas de três autores contemporâneos em relação a um tema que me parece
pertinente e central na cultura norte-americana, que há muito se encontra inundada por
ideais de família e de valores familiares, sendo esta instituição considerada fulcral na
literatura desse país, como explica o psicoterapeuta infantil Adam Philips na introdução da
obra The Uncanny, de Sigmund Freud.1
Já o teórico Richard Davenport-Hines em Gothic: Four Hundred Years of Excess, Horror,
Evil and Ruin, vai mais longe ao defender que a obsessão da literatura gótica americana é
a família, ou seja, os seus aspectos marcados pela disfuncionalidade e ruptura,
responsáveis por perturbar as emoções e a paz doméstica2. Os autores que me proponho
estudar, William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice e as respectivas obras The Sound
and The Fury (1929), As I Lay Dying (1930), Light in August (1932), Red Dragon (1981),
The Silence of the Lambs (1988), Hannibal Rising (2006) Interview with the Vampire
(1976) e The Vampire Lestat (1985) constituem um exemplo de como essa ordem ou
norma familiar tida como ideal é constantemente transgredida, embora no final seja
restabelecida e, por isso o seu valor seja reforçado. Dada esta complexidade, o gótico é o
género que aprofunda e explora as emoções a um nível mais elevado visto que tem em
atenção o não-convencional, como reflectem Robert K. Martin e Eric Savoy em American
Gothic:
Granted, however, that any difference will be a matter of degree, I believe gothic is of all
fiction´s genres the one most intensely concerned with simultaneously liberating repressed
emotions and exploring foreclosed social issues, since gothic presents most aggressively the
range of outré emotions conventionally considered beyond the pale – incest, patricide familial
dysfunction, archaic rage, homoerotic desire.3
Sendo estas emoções exploradas nas obras anteriormente referidas, será também
interessante verificar a forma como a personalidade dos referidos autores surge
indissociada da obra, o que de outro modo seria inconcebível, como comenta Italo Calvino
1
2
3
Sigmund Freud, The Uncanny, p. 26
Richard Davenport-Hines, Four Hundred Years of Excess, Horror, Evil and Ruin, p. 11
Robert K. Martin and Eric Savoy, American Gothic, p. 23
10
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
no seu ensaio Multiplicidade em Seis Propostas para o Próximo Milénio no qual defende
que não é possível uma obra que esteja “imune” à influência da personalidade:
Oxalá fosse possível uma obra concebida fora do self, uma obra que nos permitisse
sair da perspectiva limitada de um eu individual, não só para entrar noutros eus semelhantes ao
nosso, mas também para fazer falar o que não tem palavra, o pássaro que pousa no beiral, a
árvore na Primavera e a árvore no Outono, a pedra, o cimento, o plástico...4
Também os autores escolhidos representam, através das suas obras, não apenas núcleos
familiares disfuncionais, mas também colocam questões que nos levam a reflectir acerca
da natureza do ser humano. Será esta boa ou má? Qual é o papel da família na orientação e
protecção do indivíduo contra o mal, principalmente contra o mal que brota do interior?
Claro que esta dicotomia Bem/Mal, (como qualquer outra) divisão implica o
estabelecimento de limites, de fronteiras que demarquem o “território” de uma e de outra
parte. Ao longo deste trabalho será evidenciada a forma como esta barreira se encontra
esbatida e as características de uma e de outra “facção”, surgem amalgamadas nas obras
que me proponho estudar. Nestas serão atentamente focados os núcleos familiares, pois
estes enfatizam a importância de fronteiras, como afirma Anne Williams na sua obra Art of
Darkness: “These family scandals also rather melodramatically call attention to the
importance of boundaries: the literal and figurative processes by which society organizes
itself, “draws the line”, declaring this “legitimate”, that not; this “proper”, that not; this
“sane”, that not, rules and divisions of human life.”5
Assim, será interessante demonstrar a forma como a família surge representada e o modo
como esta condiciona fortemente o passado e o presente dos indivíduos, projectando-se no
seu futuro como uma inescapável assombração e maldição que lhes determina a sua vida
psíquica invadida por tormentos, obsessões e psicopatologias, muitas vezes agravados pelo
seu espaço físico e padrões políticos, religiosos e sociais.
Esta dissertação encontra-se dividida em três capítulos, constituindo cada um deles o
estudo de três autores contemporâneos. A escolha das obras a analisar deve-se à sua
pertinência e adequação em relação ao tema central deste estudo. O primeiro capítulo é
dedicado a William Faulkner, pois este autor é fundamental para a abordagem do tema,
4
5
Italo Calvino. Seis Propostas para o Próximo Milénio, p. 145
Anne Williams, Art of Darkness, p. 12
11
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
dado que apresenta personagens que, ao depararem-se com situações de desespero
extremo, expõem a essência do seu carácter e a degradação moral da família e da
comunidade. Ao concentrarmo-nos nas obras de Faulkner, será interessante verificar as
falhas de uma sociedade moderna em assegurar à figura feminina a mesma segurança
económica e social atingida pelos homens e a implicação que daí decorre a nível familiar.
Gostaria de destacar a análise das obras de Deborah Clarke, Robbing the Mother: Women
in Faukner (1994), de Irving Malin, William Faulkner: An Interpretation (1957) e de Noel
Polk, Children in the Dark House: Text and Context in Faulkner (1998) porque reflectem
de modo crítico e conciso a temática da família, da maternidade, do incesto e da
sexualidade feminina. A crítica presente nas obras destes autores vai evidenciar nas só as
transgressões e subversões presentes em Faulkner, como vai também contribuir para que
estas sejam observadas como abundantes em convenções sociais que devem ser criticadas
e repensadas, sendo esta uma função do Gótico, como afirma Allan Lloyd Smith em
American Gothic Fiction: “The Gothic deals with trangressions and negativity, perhaps in
reaction against the optimistic rationalism of its founding era, which allowed for a
rethinking of the prohibitions and sanctions that had previously seem divinely ordained but
now appeared to be simply social agreements in the interest of progress and civic
stability.”6
No segundo capítulo, “Thomas Harris: Efeitos negativos provocados pelos traumas
familiares em Red Dragon, The Silence of the Lambs e Hannibal Rising”, sobressai a ideia
da indefinição do bem e do mal, da corrupção da inocência dos indivíduos e da sua
mutação em seres absolutamente ameaçadores para a sociedade e capazes de perpetrar
actos horrendos como o assassínio e o canibalismo. Os serial killers são nestas obras
vítimas de uma família abusadora ou ausente e de uma sociedade insensível. Tendo a
cultura norte-americana um fascínio pelo assassino em série, autores como Kendall R.
Philips em Projected Fears: Horror Films and American Culture (2005), Philip L.
Simpson em Psycho Paths: Tracking the Serial Killers through Contemporary American
Film and Fiction (2000) e Judith Halberstam em Skin Shows: Gothic Horror and the
Technology of Monsters (1995) estão muito presentes neste segundo capítulo pois, para
além de permitirem uma compreensão da figura do serial killer na cultura e literatura
6
Allan Lloyd Smith, American Gothic Fiction: An Introduction. p. 5
12
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
norte-americana, vão concluir ser o papel da família um factor decisivo na personalidade
destes assassinos e comungar com uma ideia muito central no modo gótico: a de que
qualquer ser humano pode cometer actos monstruosos porque, mesmo que nos inspirem
terror e repulsa, acabam por nos atrair inevitavelmente. Em Love to Hate: America's
Obsession with Hatred and Violence (2002), Jody M. Roy é muito elucidativo neste
aspecto: “No crimes inspire our rage and terror like the patterned murder sprees known as
serial killings. Like animals in the wild, serial killers stalk their victims. Like demons,
serial killers subject their victims to hellish ritual torments. Yet serial killers are neither
animals nor demons: they are humans. Serial killers are of “us” no matter how rigorously
we deny them.”7
No terceiro e último capítulo, intitulado “Anne Rice: A família como força vampírica
consumidora da humanidade do indivíduo em Interview with the Vampire e The Vampire
Lestat”, tal como o nome indica, vai incidir na figura ambígua do vampiro e na forma
como a autora o representou nestas obras e quebrou tabus, revelando emoções muito
primitivas no ser humano se considerarmos estes seres como autênticos predadores, ainda
que dotados de sentimentos e emoções humanas, daí a sua complexidade. Anne Rice
apresenta-nos um vampiro muito humanizado, que consequentemente sente, ama e sofre
como qualquer um de nós. Em Writing Horror and The Body: The Fiction of Stephen King,
Clive Barker, and Anne Rice, Linda Badly considera estas obras de Rice uma forma
catártica da autora se libertar das experiências dolorosas causadas pelas mortes da sua mãe
e da sua filha e, assim tornam-se uma espécie de ressurreição dos seus traumas familiares.8
Segundo Anne Williams na sua obra Art of Darkness, A Poetics of Gothic (1995) para
além das características que conferem potencial gótico ao vampiro, esta figura ambígua
representa “o outro”: “Clearly, the vampire represents “the other”. It is associated with the
supernatural, medieval superstition, and the distant lands. Its bloodstucking habits, its
monstrously unnatural mode of reproduction, and, as “undead”, its ontological ambiguity
(in short, its systematic violation of boundaries) have powerful Gothic potential.”9 A figura
do vampiro encontra-se directamente relacionada com esta temática da família gótica na
medida em que nas obras em questão é-nos apresentada pela autora uma alternativa à
7
Jody M. Roy, Love to Hate: America's Obsession with Hatred and Violence, p. 89
8
Linda Badly, Writing Horror and the Body: The Fiction of Stephen King, Clive Barker, and Anne
Rice, p. 107
9
Anne Williams, Art of Darkness, A Poetics of Gothic, p. 21
13
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
família tradicional, especialmente se atentarmos no núcleo familiar composto por Lestat,
Louis e Claudia. A este respeito, na obra Writing Horror and the Body: The Fiction of
Stephen King, Clive Barker, and Anne Rice, Linda Badly afirma: “ Together Lestat, Louis
and Claudia compose a parody of the nuclear family”.10 Para além desta alternativa que é
proposta por Rice e que sugere relações de homossexualidade, incesto e pedofilia, a autora
vai também usar a figura do vampiro como representação do outro, do passado que nunca
morre e que a qualquer momento pode tornar-se mais vivo do que nunca. É o que
acontece, por exemplo com Lestat que, após ter sofrido uma tentativa de assassinato por
parte dos “filhos”, Louis e Claudia, regressa.
Esta dissertação visa ainda estabelecer relações pertinentes entre os conteúdos temáticos
das obras e outras artes (pintura e cinema) que também representaram este tema de forma
tão actual, e intemporal. Tais relações reforçam não só o vínculo entre a arte e a literatura,
mas também a importância da imagem. Este tema é rico e abrangente neste aspecto uma
vez que se encontra universalmente reflectido em figuras mitológicas (Édipo, Cronos e
Medeia, por exemplo) e bíblicas (como Caim), cujos episódios estão marcados pelo
incesto, parricídio e fraticídio, crimes que também figuram nas obras a analisar na presente
dissertação.
Em termos mais específicos, são abundantes os elementos que retratam a unidade familiar
na sociedade norte-americana, pondo a nu a sua instabilidade. Louis Gross na sua obra
Redefining the American Gothic (1989) fala-nos dessa inquietude e desse terror que, ao
invés do que acontecia anteriormente, centra-se no interior:
One of the most important themes in modern horror films is the nature of the
traditional family. Robin Wood, in his brilliant “Introduction to The American Nightmare
indicates the extent to which all modern horrorfilms derive from that seminal Gothic text,
Psycho (1960). The significance of Hitchcock's film is that it relocates the Monster/Other
from outer space where it had dwelt through the fifties' spate of science fiction invasion
narratives, to inner space.11
Tal como sugere Louis A. Gross, em Psycho (1960) de Alfred Hitchcock, o foco de terror
está localizado no pacato hotel onde assistimos à influência nefasta da figura materna (que
em muito se assemelha à obsessão representada pelo autor Thomas Harris e desenvolvida
10
Linda Badly, Writing Horror and the Body: The Fiction of Stephen King, Clive Barker, and Anne
Rice, p. 110
11
Louis A. Sass, Redefining the American Gothic, p. 76
14
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
por Jame Gumb em The Silence of The Lambs e Francis Dolarhyde em Red Dragon pela
mãe e avó, respectivamente), The Omen (1976), que aborda o tema da adopção e da
tentativa de parricídio (episódios que fazem parte da obra de Rice, precisamente no núcleo
familiar composto por Lestat, Louis e Claudia), Twin Peaks (2002), The Amityville Horror
(1979) e o romance the Truman Capote In Cold Blood (1965), ao centrarem-se em
assassinatos (fictícios e verídicos) envolvendo a família chamaram a atenção e suscitaram
interesse e consternação à sociedade norte-americana. Esta inquietação da opinião pública
deve-se também à presença de um acontecimento sinistro dentro de uma comunidade
tranquila e aparentemente pacífica. Também Thomas Hooper retratou a presença do mal na
quinta da família Hewitt, no Texas em Chain Saw Massacre (1974). Assim, pode-se
estabelecer um paralelismo entre estas obras e as seleccionadas como objecto de estudo
nesta tese, uma vez que Faulkner, Harris e Rice exploraram este conceito de “wilderness”
(não só referente ao meio ambiente, mas também à natureza do ser humano) associando a
paisagem rural americana à contaminação da identidade e à transformação da inocência do
indivíduo em pecado e depravação. A este respeito é elucidativa a explicação de Peter N.
Carroll em Puritanism and The Wilderness: The Intellectual Significance of the New
England Frontier, 1629-1700 : “Since wilderness areas possessed none of the trappings of
Christian civilization and, indeed, contained specific temptations for the Christian man,
historical Christianity interpreted the wilderness as a state or symbol of sin.”12
Assim, neste sentido é importante referir a obra de Grant Wood, American Gothic, 1930
(figura 1). Ao evocar uma certa nostalgia, uma vez que se encontra contextualizado num
ambiente rural, neste quadro transparece a rectidão de um carácter puritano visível no
rosto das duas personagens, mas também uma certa imagem de desapontamento e de
constrangimento face à realidade. Ao ter como pano de fundo a casa que detém especial
importância neste estudo, este quadro estabelece um paralelo com as obras de Faulkner,
Harris e Rice pela concordância entre os temas abordados, principalmente na figura
masculina que, ao estar um pouco mais próxima de quem observa a pintura, sugere uma
sobreposição em termos sociais do homem em relação à mulher. A forma como segura na
forquilha, não transmite apenas o valor do trabalho, pois este instrumento é também
considerado um instrumento satânico. Portanto, a expressão do lavrador pode ser
12
Peter N. Carroll, Puritanism and the Wilderness: the Intellectual Significance of the New England
Frontier, 1969-1700, p. 62
15
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
interpretada como uma resposta de defesa a uma ameaça muito real. Estando a obra
impregnada de elementos que sugerem a vida doméstica e familiar, será pertinente
interrogarmo-nos do que seria o lavrador capaz para defender a sua casa e família do mal?
Mas o que fazer se o mal está no interior do indivíduo e contamina a casa e a família?
Esta ideia de contaminação está também muito presente em Carpenter's Gothic (1985) de
William Gaddis. O título da obra refere-se a um estilo arquitectónico gótico de habitação,
na qual coabitam personagens estereotipadas que contribuem para um esboço muito
preciso dos valores decadentes da identidade nacional norte-americana. Nesta obra, tal
como nas obras dos autores estudados, é visível essa contaminação das personagens pelo
espaço que as rodeia e pelas convenções sociais e contexto político do país. Podemos
deduzir que a casa e a família não são o refúgio do terror, mas o seu foco de
desenvolvimento, como afirma Loius A. Sass em Redefining the American Gothic: “As a
mode of perception, it (Gothic) sees terror as the governing principle of existence and
institutions as the family, the church, and the state as the custodians of oppression”.13
Sendo o género gótico repleto de contradições, o tema da família gótica apresenta mais
uma contradição: a opressão e a salvação, o mal e a cura. Embora sejam muitas vezes a
fonte do mal, os laços familiares tentam ser também a salvação do indivíduo. Tal é visível
na obra cinematográfica de Roman Polanski, Rosemary's Baby (1968) que foi um enorme
êxito ao chamar a atenção para a reconciliação de uma mãe com o filho, mesmo sabendo
que ele é o filho de Satanás. A maternidade é uma força muito poderosa e nas obras
estudadas na presente dissertação este poder será evidenciado em personagens como
Gabrielle em The Vampire Lestat e Madeleine em Interview with the Vampire, ambas
impelidas para a maldição da vida eterna pela aproximação aos filhos.
Em The Exorcist (1973), William Friedkin apresenta-nos uma família monoparental
disfuncional. É talvez na falta de um acompanhamento mais atento por parte da mãe, que a
pequena Regan se torna uma vítima do demónio Pazuzu. Nesta eterna luta entre o mal e o
bem, o indivíduo torna-se impotente em manter-se mentalmente são se não tiver uma
sólida base familiar e espiritual.
É o que acontece com Regan. Um contexto cultural desolador, se tivermos em
conta que a acção do filme decorre numa época negra da história dos Estados Unidos da
13 Louis A. Sass, Redefining the American Gothic, p. 89
16
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
América manchada pelo conflito armado no Vietnam, unido a uma apatia egoísta da
família, em que cada membro está cada vez mais centrado em si próprio, torna o indíviduo
uma vítima fácil da possessão demoníaca ou um instrumento do mal (como acontece com
as personagens dos autores estudados). Na obra Hostage to the Devil: The Possession and
Exorcism of Five Contemporary Americans, Malachi Martin é muito claro:
Our cultural desolation a kind of agony of aimlessness coupled with a dominant
self-interest is documented for us in the desintegration of our families. In the breakup of our
educational system. In the disappearance of publicly accepted norms of decency in
language, dress and behavior. In the lives of our youth, everywhere deformed by stunning
violence and sudden death; by teenage pregnancy; by drug and alcohol addiction; by
disease; by suicide; by fear. America is graduably now the most violent of the so-called
developed nations of the world.14
Estes são apenas alguns exemplos de como a unidade familiar é fulcral para o equilíbrio
entre os dois pólos Bem/Mal, e fracassa (como veremos que fracassa, tanto nas obras
escolhidas para análise, como noutras que serão mencionadas ao longo desta dissertação) e
negligencia este compromisso, então tudo o resto é falível, como defende Irving Malin em
New American Gothic: “Because the family is usually considered a stable unit, new
American Gothic tries to destroy it – the assumption is that if the family cannot offer
security, nothing can.”15
14
Malachi Martin, Hostage to the Devil: The Possession and Exorcism of Five Contemporary
Americans, p. 13
15
Irving Malin, New American Gothic, p. 50
17
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
1. WILLIAM FAULKNER: OS LAÇOS FAMILIARES COMO
SINÓNIMO DE MALDIÇÃO EM AS LAY DYING E THE SOUND
AND THE FURY E LIGHT IN AUGUST.
O presente capítulo reflecte um sombrio retrato da América invocando, de forma clara e
inequívoca, a importância do passado na história desta nação. A maldição gerada no seio
familiar, facto que transparece genuinamente nas obras estudadas, alastra-se e molda todas
as esferas da vida política e social. Em As I Lay Dying, The Sound of The Fury e Light in
August, William Faulkner expõe, descobre e revela, de forma crua e verdadeira, a essência
da identidade do indivíduo, a sua fraqueza e ambiguidade.
Este retrato não poderia ser mais autêntico se tivermos em conta a melancolia e o
carácter de quem conviveu proximamente com os negros acontecimentos do Sul, os quais
deixaram as suas inevitáveis marcas na identidade nacional. Referindo-se às atitudes e
características presentes no Sul, o autor Robert E. Spiller, na sua obra A Time of Harvest:
American Literature 1910-1960, explica: “ Among these attitudes are the sense of failure,
which comes from being the only group of Americans who have known military defeat,
military occupation, and seemingly unconquerable poverty; America’s classic symbol of
injustice, the enslavement and then the segregation of the Negro; and the sense of
frustration, which comes from the consistent inadequacy of the means at hand to wrestle
the problems to be faced, whether they be poverty, racial intolerance, or the preservation
of a historical past rich in tradition.”16
Considerando estes dados, as obras de Faulkner serão analisadas tendo em conta os
seguintes aspectos ou sub-capítulos: A Desventura da Maternidade, A verdade e
insanidade, e The Sins of The Fathers: Religião e Maldição, Sexualidade e
Promiscuidade. Nestes três sub-capítulos, respeitando o núcleo temático de cada um, será
posta em evidência a importância da identidade familiar na esfera nacional, amaldiçoada e
decadente, tal como defende Irving Malin em William Faulkner: An Interpretation: “ If
blood descent determines who belongs to America (and whom America belongs to), then
the family gains primacy as the ultimate ground of national identity”.17
16
17
Robert E. Spiller,. A Time of Harvest: American Literature, 1910-1960, p. 83
Irving Malin, William Faulkner: An Interpretation, p. 71
18
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
1.1. A Desventura da Maternidade
Anne Williams na sua obra Art of Darkness é muito esclarecedora acerca da figura
materna na literatura gótica: “In reality, the mother as mater, material, matrix, and the
repression of that element by western culture might well be regarded as the source of the
several notoriously 'Gothic' emotions – horror and the terror above all.”18 Estas emoções
negativas abundam e são caracterizadoras das “mães” presentes nas obras de Faulkner, As
I Lay Dying, The Sound and The Fury e Light in August. As personagens Dewey Dell,
Addie, Caroline Compson e Lena Grove apresentam um ponto em comum: uma
experiência de vida que evidencia a maternidade enquanto algo amargo e desventuroso,
desprovido de sentimentos recíprocos e verdadeiros de amor, de alegria, de satisfação e de
cumplicidade.
Tanto o percurso de Lena Grove e de Dewey Dell, enquanto mães, situa-se num estado
embrionário (principalmente o desta última), se atendermos ao facto de que o leitor
acompanha a gestação das personagens ao longo da narrativa. Embora haja alguma
semelhança entre Lena e Dewey, uma vez que ambas foram abandonadas pelos pais dos
filhos que esperavam, Lucas Burch e Lafe, elas enveredam por caminhos diferentes,
tornando-se curiosa a forma diferenciada como Faulkner trata a mesma temática.
Lena é a jovem apaixonada e ingénua que confia e assume o filho como fruto do amor que
a uniu a Lucas, acreditando que este iria aceitá-lo filialmente. São as personagens que com
ela convivem e o leitor que, desde o início da obra, percepcionam que a realidade é
totalmente diferente. Assim, no primeiro capítulo, o autor desvenda-nos de forma breve e
conclusiva um episódio marcante da vida de Lena: “When she was twelve years old her
father and her mother died, in a log house of three rooms and a hall, without screens, in a
room lighted by a bugswirled kerosene lamp, the naked floor worn smooth as old silver by
naked feet.”19 A morte dos pais no momento em que mais necessitava, ou seja, na transição
para a idade adulta, é aliada à ideia de uma certa instabilidade, se atentarmos na breve
descrição que é feita da casa da família que transmite uma sensação de algo frágil e
susceptível de ser corrompido. Anne Williams a esse respeito esclarece: “The walls of the
18
19
Anne Williams, Art of Darkness, p. 11
William Faulkner, Light in August, p. 5
19
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
house both defend it from the outside world (“A man’s home is his castle”) and hides the
secrets it thereby creates. The structure embodies the principles of cultural order.”20
Embora inicialmente Lena se demonstre confiante de que ela e Lucas poderiam formar
uma família, todo o contexto da obra e os comentários das outras personagens são
esclarecedores do contrário e a criança esperada, ao invés de uma bênção é nada mais do
que um fardo, como reflecte Armstid: “The woman had now gone on, slowly, with her
swelling and unmistakable burden.”21
Estabelecendo uma relação entre a pintura e a literatura, Lena tem muito em comum com
a figura feminina criada por Gustav Klimt em Hope I, 1903 (figura 2), onde surge uma
mulher nua ostentando um proeminente ventre em gestação. A nudez e magreza da sua
imagem sugerem uma certa fragilidade, associada à condição da mulher desde então até
aos nossos dias. No entanto, a abundante cabeleira ruiva cor de fogo, faz transparecer uma
inequívoca sensualidade que o leitor também pode deduzir na obra de Faulkner na
passagem em que Armstid reflecte que Lena não usava aliança de casamento e na opinião
pejorativa do irmão acerca desta: “He called her a whore.”22 Como podemos ver, o
nascimento de uma criança é abençoado ou amaldiçoado, dependendo de a mãe ser ou não
casada. A este respeito, Anne Williams, na sua obra Art of Darkness, comenta: “Giving
birth is one female function which society cannot entirely sublimate or deny, though
patriarchies have traditionally repressed this truth by strict regulation of the conditions
under which women have access to maternity.”23
Prosseguindo a análise da obra de Klimt, é de particular importância ter em atenção as
figuras cadavéricas que contrastam com a figura feminina, o que sugere que o título Hope
I, seja uma mera ironia do pintor, pois segundo a explicação de Gilles Néret, na sua obra
intitulada Klimt: “Seguramente tanto o título do quadro, como o próprio corpo, sem pudor,
imagem da feminilidade perfeita, é um hino à vida e à carne. Contudo, os elementos que
estão em redor desse corpo não são eles também representações da noite e da morte?”24
Tal como a mulher da obra de Klimt, Lena é caracterizada ao longo da narrativa num
estado ilusório de graça, de esperança, sendo totalmente alheia ao mal real que a rodeia, ou
20
21
22
23
24
Anne Williams, Art of Darkness, p. 44
William Faulkner, Light in August, p. 7
Ibidem, p.6
Anne Williams, Art of Darkness, p. 128
Gilles Néret, Klimt, p. 45
20
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
seja ao infortúnio de estar só, de ter sido abandonada e da sua busca por Lucas, mantendose numa inquietante tranquilidade : “Her face wakes, serene, slow, warms.”25
Também abandonada por Lafe, o pai do filho que espera, Dewey Dell vivencia uma
situação muito semelhante, embora reaja de forma oposta a Lena. Como cruamente
constatou MacGowan: “You got something in your belly you wish you didn’t have.”26 É
essa rejeição que tenta pôr em prática ao planear um aborto. Embora esta palavra não seja
pronunciada ao longo da obra, ela é, por diversas vezes, sugerida. Na obra Angustia, 1932
(figura 3), do pintor catalão Salvador Dali podemos descobrir pontos convergentes com a
situação de Dewey Dell. A figura feminina criada por Dali ajusta-se a esta personagem de
Faulkner, não só pelo título da obra que poderia também resumir o estado de espírito de
Dewey: “ I feel like a wet seed wild in the hot blind earth”27, mas também por outros dados
significativos. A figura de Dali, mostra-se nua, a contemplar um ceú negro que se
aproxima, numa solidão aparente, uma vez que do lado direito uma sombra ameaça
aproximar-se. Também Dewey Dell pressente uma sombra que a observa, ou seja, Darl, que
conhece e de certo modo invade o terrível segredo da irmã. No corpo representado em
“Angustia” há dois aspectos que merecem particular atenção: a perna mutilada e o ventre,
formado por rosas. As rosas vermelhas, que na cultura popular são símbolo de amor e
paixão, sangram. Esse é de facto o desejo de Dewey Dewell, sangrar através do aborto o
ser que traz no ventre. Uma mulher completamente só, abandonada pelo pai do filho que
espera e a viver uma situação familiar de extrema decadência e pobreza económica e
moral, não estará também mutilada, como a figura de Dali? Como poderá uma mulher, com
o estigma de ser mãe solteira, caminhar por entre a sociedade hipócrita da época? Dewey
Dell intimamente sabe disso e procura interromper a gravidez.
O sombrio tema do aborto é indiscutivelmente actual e universal e foi tratado de forma
magistral pela pintora Paula Rego, que produziu uma série de obras dedicadas a este tema.
Nelas assistimos a uma relação pertinente entre a pintura e a literatura, uma vez que a
artista se inspirou na obra de Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro tendo
demonstrado de forma crua , tal como Faulkner, a dificuldade de a mulher saber lidar com
as consequências indesejadas da sua própria sexualidade. Nos trabalhos, deixados sem
25
26
27
Ibidem, p. 14
William Faulkner, As I Lay Dying, p. 231
Ibidem, p. 58
21
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
título (figura 4, figura 5 e figura 6) encontramos alguns pontos convergentes com as obras
de Faulkner, não só pela intenção de Dewey Dell em pôr termo à vida que carrega no
ventre, como também pela crítica social que está implícita. Embora em As I Lay Dying, o
autor sugira que o aborto de Dewey Dell não foi realizado, temos tal como nos quadros de
Paula Rego, um retrato do anti-social dentro de uma sociedade repressora (seja esta norteamericana ou portuguesa), onde o mal indesejado resulta da complexidade do indivíduo,
que o tenta sempre esconder, uma vez que este não pode ser admitido em sociedade.
Se em Light in August, Lena transita de um estado esperançoso e sonhador para a
frustração e o desencanto, em As I Lay Dying, Dewey Dell manifesta desde o início uma
aversão e rejeição do estado em que se encontra. Estas duas personagens constituem assim
um exemplo, não da representação de um amor materno ideal, mas da própria relação entre
a sexualidade feminina, a dor e a sua própria identidade. Tais elementos encontram-se
também presentes no quadro Birth (figura 7), da pintora Paula Rego, já anteriormente
citada na presente tese. Neste quadro, o filho ou a criança, não surge bem delineado ou
marcado, ao invés disso, é apenas um conceito, um símbolo. Esta representação também é
visível em Lena e Dewey, pela especificidade das circunstâncias em que são mães, e
também pelo facto de que não é conhecido nas obras o nome das crianças, o que sugere
uma espécie de reabsorção da identidade destes seres pelo corpo materno, aspecto que
também é evidente na obra de Paula Rego, como explica Fiona Bradley em Paula Rego:
“This is not a privileged mother-love, but rather the link between childbirth and sex, pain
and a reassessement of identity.”28
Para além de Lena Grove e Dewey Dell, acedemos nas obras de Faulkner, The Sound and
the Fury, e As I Lay Dying a outros exemplos que ilustram a desventura da maternidade.
Encontramos na voz de Addie em As I Lay Dying, um pensamento relativo ao nascimento
de Cash que traduz o conceito de maternidade, que é aplicável também a outras
personagens de The Sound and the Fury, como Caroline Compson e Caddy: “When he
was born I knew that motherhood was invented by someone who had to have a word for it
because the ones that had the children didn´t care whether there is a Word or not.”29
Para Addie ou Caroline, ser mãe é um dever como outro e a maternidade é uma palavra
semelhante a tantas outras, desprovida de significado, de valor sentimental ou emocional.
28
29
Fiona Bradley, Paula Rego, p. 43
William Faulkner, As I Lay Dying, p. 159
22
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Poderiam achar-se ambas reflectidas na obra de Picasso A Mãe e o Filho, 1921 (figura 8).
Se atentarmos na imagem, apercebemo-nos de que a criança está bem aconchegada no
colo da mãe e não parece carecer de cuidados. O seu conforto contrasta com o desalento
da mãe, com a tristeza do seu olhar. Também Addie e Caroline se destacam por uma
maternidade desprovida dos laços que normalmente caracterizam a relação entre a mãe e o
filho. Não há um envolvimento íntimo e verdadeiro, mas o cumprimento de um papel, de
uma obrigação. Esta falta de cumplicidade que se pode atribuir às personagens referidas
anteriormente está também patente na obra de Schiele, Mãe e Dois filhos (figura 9). Notese as faces rosadas das crianças e as cores garridas e alegres do seu vestuário, que
contrastam com a palidez e magreza do rosto da mãe, onde são evidentes sinais de tristeza
e de angústia enfatizados pelo fundo negro que circunda as três figuras.
Estes sentimentos estão bem presentes em The Sound and The Fury. O capítulo “April
Sixth 1928” é muito elucidativo em relação à personalidade de Caroline, pois esta faz
considerações acerca da maternidade, quando assume: “But it’s my place to suffer for my
children, she says. I can bear it.”30 É esta a única função de uma mãe, o sofrimento. Tal
transparece tanto na obra de Picasso como na de Schiele e pode ser também aplicada a
Addie em As I Lay Dying, uma vez que, para Addie, a maternidade é encarada com apatia.
É esta mensagem de vazio que nos é também transmitida nas obras dos pintores referidos
anteriormente e reforçada pelo título The Sound and The Fury, que deriva do discurso de
Macbeth acerca da vida, sendo esta igualmente desprovida de significado: “Life's but a
walking shadow, a poor player,/that struts and frets his hour upon the stage/And then is
heard no more.It is a tale/Told by an idiot, full of sound and fury/Signifying nothing.”31
Tanto Addie como Caroline constituem também um exemplo estereotipado da mãe que
assume a preferência por um dos seus filhos: Jewel e Jason, respectivamente.Tal não é o
mais correcto do ponto de vista moral ou ético. Ao não ser filho de Anse, Addie sente
Jewel como se fosse unicamente seu e Jason é, segundo Caroline “ a true Bascomb”32.
Esta personagem vai ainda mais longe ao confessar que agradece a Deus o facto de, ao ter
perdido um filho, este ter sido Quentin e não Jason. Faulkner apresenta-nos assim um
cenário caracterizado não só pela preferência mas também pela rejeição da mãe em relação
30
31
32
William Faulkner, The Sound and Fury, p. 187
William Shakespeare, Macbeth, p.101
William Faulkner, The Sound and the Fury, p. 134
23
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
aos outros filhos.
Em Light in August essa preferência e rejeição verificam-se também de forma semelhante
se considerarmos a America a “mãe” de todos os seus cidadãos. Em Leaves of Grass, Walt
Whitman no seu poema By Blue Ontario’s Shore dirige-se à Pátria Americana, usando o
vocativo e chamando-a de mãe, indaga-se: “America isolated yet embodying all, what it is
finally except myself?”33 Como se deduz no poema de Walt Whitman, qualquer nação, e
neste caso mais específico a América, é caracterizada por elementos físicos, o que se
traduz num espaço geográfico ou territorial e por elementos espirituais abstractos, ou seja,
a comunidade afectiva, sentimental e cultural e tal como as mães de Faulkner, a América
revelou-se uma mãe negligente e impotente em proteger e cuidar dos seus filhos.
No seu conhecido discurso de 28 de Agosto de 1963, Martin Luther King idealiza a
relação entre os filhos da América, brancos e negros, afirmando que esta deveria ser
marcada pela fraternidade. Esse sonho, como o assume Luther King, só se tornaria real
com o fim das injustiças sociais e tal poderia ser conseguido através da persistência, da
calma e da coragem, nunca através da revolta e da violência. Joe Christmas em Light in
August é o exemplo que ilustra de forma clara o contrário do que Martin Luther King
defendeu. Ainda que se questione: “Just when do men that have different blood in them
stop hating one another?”34, Christmas é uma personagem caracterizada pela instabilidade
emocional e pela agressividade, marcas que se podem deduzir pela sua orfandade a nível
biológico e a nível social, uma vez que a mãe América nunca o aceitou.
Assim, em Light in August temos um retrato muito claro dessa incapacidade da América
amar os seus filhos por igual. Na obra assistimos a duas realidades sobrepostas: os negros
e os brancos e a sua relação hostil desprovida de fraternidade. Este contraste, evidenciado
na referida obra de Faulkner está muito bem representado no trabalho fotográfico de
Arthur Rothstein (figura 10), onde a austeridade do rosto da mulher branca se opõe à
imagem cansada e sofrida da rapariga negra, pobre mas bela. A respeito desta fotografia,
James Guimond, na sua obra American Photography and the American Dream, comenta:
“Our awareness that this girl is beautiful, as well as poor, is enhanced by the contrast
between her face and the faded image of the white woman in the newspaper that faces her
33
34
Walt Whitman, Leaves of Grass, p. 275
William Faulkner, Light in August. P. 102
24
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
like a strange, distorted mirror”.35
Como a América, enquanto mãe, não ama os seus filhos do mesmo modo, como poderiam
estes conviver como irmãos? Também as personagens de Faulkner, Addie e Caroline ao
falharem neste aspecto, ao assumirem preferências por um dos filhos, vão de certo modo
implicar que a relação entre eles não seja pacífica e seja marcada por ressentimentos e
conflitos.
Se considerarmos a nação americana como a mãe de todos os seus cidadãos, verifica-se
que a desventura da maternidade é uma situação comum, não apenas nas obras de
Faulkner, como também nas obras de outros autores norte-americanos, cujas ideias se
traduzem na falha da América em conduzir os seus filhos, da mesma forma que o apoio
das mães presentes nas obras de Faulkner foi insuficiente e medíocre. Na obra The Fall of
America, Poems of These States, 1965-1971, Allen Ginsberg chama a atenção quanto à
decadência dos valores morais do seu país e à sua impotência em proteger e guiar todos os
seus filhos. No seu poema, Ecologue, denuncia logo de início: “In a thousand years, if
there’s history, America’ll be remembered as a nasty little country”.36 A hostilidade deste
país centra-se sobretudo no seu papel activo em conflitos armados e nas injustiças sociais.
Ao longo do referido poema, o autor é mais explícito: “Broken legs in Vietnam/ Eyes
staring at heaven,/ Eyes weeping at earth!/ Millions of bodies in pain!/ Who can live with
this consciousness/And not wake frightened at sunrise?”37
Também Kurt Vonnegut em Slaughterhouse 5, elabora um retrato sombrio do panorama
social e político americano e da sua participação na II Guerra Mundial. O autor, ao atribuir
à sua obra o sub-título The Children´s Crusade, a Duty-Dance with Death evidencia o
percurso dos soldados americanos, a sua juventude e o desamparo a que foram sujeitos por
uma nação pouco maternal. Ao longo desta obra, é inúmeras vezes lembrada a fragilidade
destes filhos da América, tornados soldados. Quando recorda os episódios de guerra, Billy
desabafa com o seu companheiro Bernard O’Hare: “We had been foolish virgins in the
war, right in the end of childhood.”38 Apesar de ter sobrevivido à guerra, Billy fica com
marcas profundas, o que é percebido indirectamente na canção entoada pelo quarteto num
35
36
37
38
James Guimond, American Photography and the American Dream, p. 6
Allan Ginsberg, The Fall of America, Poems of These States, 1965-1971, p. 154
Ibidem, p. 154
Kurt Vonnegut, Slaughterhouse 5, p. 11
25
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
evento social: “ The load’s too heavy for our poor backs.”39 A América revela-se então
uma mãe que, não só despreza os seus filhos na sua fase mais crítica (final da infância),
como os traumatiza ao “convidá-los” para uma irrecusável dança com a morte.
Um convite semelhante foi também imposto por Addie, na obra As I Lay Dying, quando
insiste que deveria ser sepultada em Jefferson e as consequências que daí advêm, ou seja, a
difícil passagem pela ponte e o incêndio do celeiro. Estes acontecimentos, embora
perigosos, não provocaram a morte física de Anse ou dos filhos, mas trouxeram-lhes
consequências profundas. Darl, embora se imponha contra a ideia de fazer a viagem,
submete-se a ela porque não tem poder para firmemente a contrariar. Em relação a Darl,
Irving Malin na sua obra William Faulkner: An Interpretation, conclui: “He is an
intellectual in an environment ruled by physical power and decay”.40
Neste aspecto, Darl assemelha-se a Billy em Slaughterhouse 5. Enquanto Darl resiste às
situações mais adversas, sucumbindo à decadência moral da família, Billy deixa-se
gravemente afectar pela sociedade americana, desprovida de autênticos valores familiares
ou fraternos. Em relação a este aspecto, Thomas F. Martin vai ainda mais longe ao
comentar: “Vonnegut portrays a nation that has betrayed its founding principles of
democracy, justice and opportunity for all.”41
A América, enquanto mãe negligente, pode rever-se também na personagem de Faulkner,
Caddy, uma vez que ela própria se destitui da sua função de mãe e sujeita a filha Quentin à
influência negativa de Jason. Este, em várias passagens da obra recorda a si próprio que
Quentin é a sua própria carne e sangue, mas tal não o impede de a desrespeitar, roubandolhe o cheque enviado pela mãe. Na obra The Sound and The Fury, ela surge na narrativa
enquanto a irmã de Quentin, Maury/Benjy e Jason, no entanto acaba por assumir uma
função materna em relação aos irmãos, uma vez que estes dependem dela, quer seja de
forma emocional ou económica, enquanto se distancia da própria filha, Quentin.
Ainda que não se possa considerar Caddy uma mãe exemplar, em termos de
acompanhamento e orientação da filha, é o facto de se tornar mãe que determina e
condiciona o percurso da família e principalmente dos irmãos. Toda a acção da obra se
centra na sua presença e ausência. A este respeito, na sua obra Robbing the Mother:
39
40
41
Ibidem, p. 109
Irving Malin, William Faulkner: An Interpretation, p. 17
Thomas F. Marvin, Kurt Vonnegut: A Critical Companion, p. 113
26
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Women in Faulkner, Deborah Clarke é muito clara: “As both presence and absence, Caddy
determines the fate of the Compson family.”42
A lição magistral que se depreende da obra de Faulkner e que a que se chega do presente
capítulo é a seguinte: o que é fundamental mas extremamente difícil de se atingir é o
equilíbrio entre essa ausência e presença, entre a orientação e a autonomia, seja esta a
nível biológico, seja ao nível da relação entre a pátria e os cidadãos. Tanto as mães de
Faulkner como a América não se realizaram plenamente porque não souberam conjugar os
seus interesses e a sua condição com as necessidades dos filhos transmitindo-lhes o
verdadeiro espírito da união e da estabilidade.
1.2. A Realidade e a Insanidade
Ao longo dos tempos, a insanidade mental e a loucura surgem associadas à diminuição ou
desaparecimento total da faculdade racional orientadora dos actos humanos, tal como
explicou Louis A. Sass no início da sua obra Madness and Modernism – Insanity in the
Light of Modern Art, Literature, and Thought: “Madness is irrationality, a condition
involving decline or even disappearance of the role of rational factors in the organization
of human conduct and experience: this is the core idea that, in various forms but with few
true exceptions, has echoed through the ages.”43 Se a razão e a sensatez são as qualidades
essenciais a um ser humano para ser mentalmente são, então a ausência destas é o que
classifica as personagens de Faulkner, Maury/Benjy, Darl e Joe Christmas como loucas,
uma vez que a sua forma de agir se afasta frequentemente do senso comum.
O capítulo “April Seventh, 1928”, ao ser narrado por Maury/Benjy é abundante em
elementos que corroboram a alienação da personagem face a um tempo e espaços
concretos, devendo o seu papel na obra ser analisado em função da relação que estabelece
com os que o rodeiam. Essa relação é traduzida em termos emocionais e não através da
linguagem, factor que também o distingue das outras personagens tidas como mentalmente
sãs, como explica Noel Polk na sua obra Children in the Dark House: Text and Context in
Faulkner: “Benjy, then, exists as much as outside of space as outside of time. He has no
42
Deborah Clarke, Robbing the Mother: Women in Faulkner, p. 22
43
Louis A. Sass, Madness and Modernism – Insanity in the Light of Modern Art, Literature, and
Thought, p. 1
27
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
language, since language can exist only at pinpointed cruxes where word-sound and
referent become one by mutual agreement between gender and receiver.”44
No entanto, apesar desta falta de interacção linguística e racional, é Benjy o único que se
apercebe da mudança de Caddy, após esta ter perdido a virgindade. Benjy associa o estado
de pureza da irmã ao odor das árvores: “Caddy smelled like trees in the rain”45 do mesmo
modo que pressente a doença, a decadência e a morte através do olfacto, como o próprio
assume: “I could smell the sickness”46. Percebemos através desta secção que as memórias
de Maury/Benjy são fiáveis em termos de registo e percepção dos acontecimentos. Apesar
de serem apresentadas de uma forma aliatória e descoordenada, tal remete-nos para a
personalidade do irmão “retardado” de Caddy.
Em Future, Present, Ethics and/as Science Fiction, Michael Pinsky defende que:
“Personality is unified by a grounded system of memory.”47 Se reflectirmos nesta
afirmação, é compreensível a ligação que se estabelece entre a personalidade
desequilibrada de Maury/Benjy e as memórias que ele nos apresenta, sendo estas
nomeadamente relacionadas com a família, principalmente com Caddy, a sua presença
maternal e protectora e mais tarde a sua ausência, o seu despertar para a sexualidade, que é
um preâmbulo para o declínio e a decadência dos Compson.
Também Darl em As I Lay Dying é o único que ao pressentir a decadência, neste caso
física, materializada pelo corpo em decomposição da falecida mãe, se deixa afectar
profundamente. O acto de Darl incendiar o celeiro não deve ser visto como o resultado de
loucura, mas de sentimentos mais elevados. Foi o amor extremo pela mãe que fez com que
tentasse evitar a todo o custo a humilhação causada pela repugnância que o seu corpo em
decomposição causava. Embora esta personagem se tenha demonstrado genuína para a
família, acaba por ser traída por esta da forma mais cruel, pois é desprezada e
marginalizada. O último monólogo de Darl reflecte a perda da sua identidade, causada
pelo trauma, referindo-se a ele próprio na terceira pessoa: “ Darl is our brother, our brother
Darl. Our brother Darl in a cage in Jackson where, his grimed hands lying in the quiet
44
45
46
47
Noel Polk, Children in the Dark House: Text and Context in Faulkner, p. 102
William Faulkner, The Sound and the Fury, p. 14
Ibidem, p.50
Michael Pinsky, Future, Present, Ethics and/as Science Fiction, p. 44
28
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
interstices, looking out he foams.”48
Este é um claro exemplo de como a percepção da realidade e o sentimento de revolta e de
injustiça afectaram esta personagem. Apesar de ter marcas de loucura, Darl continua a ter
uma percepção mais definida da realidade do que os outros membros da família, uma vez
que todos seguem o seu percurso absorvidos nos seus problemas, ignorando-o. Apenas
Cash faz uma reflexão que se torna fundamental: “But I ain't so sho that ere a man has the
right to say what is crazy and what ain't. It's like there was a fellow in every man that's
done a-past the sanity or the insanity, that watches the sane and the insane doings of that
man witth the same horror and the same astonishment.”49 Através deste excerto, torna-se
claro que a barreira entre a loucura e a sanidade é muito ténue e condicionada por
convencionalismos ditados pelo que é socialmente aceitável.
Da mesma forma, na obra Light in August, Joe Christmas comete actos de loucura e
violência ditados pela percepção de que nas suas veias corre sangue branco e negro. Tal
como Darl e Benjy, Joe carece de referências a nível familiar com as quais comungue e se
identifique, daí a sua crise de identidade. Ao contrário das outras personagens, as relações
de Joe não são estabelecidas a nível familiar, embora sejam igualmente pautadas por
erupções de loucura e violência.
Logo no orfanato, Christmas é hostilizado por Miss Atkins quando este presencia o seu
envolvimento sexual com o médico se refere a ele como louco: “I think he is crazy.”50
Apesar de ser só uma criança de cinco anos e não ter uma ideia exacta do que representava
o envolvimento da dietista com o médico, é o ter assistido, embora acidentalmente, a esse
acontecimento, que vai determinar os actos mais significativos no percurso desta
personagem:a saída abrupta do orfanato, o posterior assassinato de McEachern, o seu pai
adoptivo e, de uma forma geral, a forma como se relaciona com as mulheres. Todos estes
laços são marcados pela irracionalidade e pela loucura associada também a uma identidade
ambígua. De forma mais ou menos evidente, tal também acontece com Maury/Benjy de
As I Lay Dying e Darl de The Sound and The Fury.
Se esta relação entre a identidade e a insanidade se traduz em Maury/Benjy por uma
limitação das capacidades racionais e a posterior alteração do seu nome como forma de
48
49
50
William Faulkner, As I Lay Dying, p. 242
Ibidem, p. 226
William Faulkner, Light in August, p. 57
29
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
tentar suprimir a consciência familiar do seu estado demente, em Darl encontramos o
oposto, uma vez que ao longo da obra percebemos que age com ponderação, pois segundo
Cora Tull: “Except Darl. It was the sweetest thing I ever saw.”51. É um único acto de
desespero que, incompreendido e julgado pela família, vai determinar o seu destino. Ao
incendiar o celeiro, Darl vai, de certo modo, renunciar à identidade da família ao mesmo
tempo que se distancia destes, culminando o seu percurso em solidão e loucura.
Em Joe Christmas é também posta em evidência, de forma muito veemente esta relação,
nem sempre antagónica, entre a identidade e a insanidade. Ao longo da obra, percebemos
esta personagem como totalmente desprovida de referências familiares e, o que é ainda
mais grave, de elementos que o ajudem a compreender a sua origem. No final do Capítulo
11, esta personagem admite que desconhece quem são os seus pais, embora tenha a certeza
que sangue negro lhe corre nas veias. Esta identidade ambígua, evidenciada também pelo
seu próprio nome, é responsável pelos actos de loucura que dão sempre origem a situações
de violência, principalmente contra as mulheres.
Também na mesma obra, o Reverendo Hightower é mais um exemplo de uma carência
dos elementos necessários à construção de uma identidade sólida face a uma realidade
absurda. Obcecado com o passado da família durante a Guerra Civil, Hightower orientou a
sua vida em função disso e quase no final da obra, confessa que viveu com fantasmas:
“They were the house he dwelled within them, within their dark and allembracing and
patient aftermath of physical betrayal.”52
Qualquer uma das personagens anteriormente referidas desenvolve o seu percurso de
forma isolada das outras personagens, embora se chegue à conclusão de que a sua
insanidade ou loucura é simplesmente uma sensibilidade e um poder de reacção muito
mais apurado do que o das restantes personagens, tal como afirmou Linda BayerBerenbaum em The Gothic Imagination: “Madness is often portrayed as a highly
developed sensitivity to a reality that normal people are too dull to perceive”53 É esta
sensibilidade e percepção altamente desenvolvida que provoca uma rejeição, repulsa e
desconexão das personagens em relação ao mundo exterior. Elas, libertam-se da
negatividade que este transmite, através de actos mais ou menos violentos. Sendo os
51
52
53
William Faulkner, As I Lay Dying, p. 20
William Faulkner, Light in August, p. 191
Linda Bayer- Berenbaum, The Gothic Imagination, p. 38
30
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
mesmos incompreendidos pela sociedade, são interpretados, não como um efeito ou
reacção catárquica, mas como atitudes criminosas ou loucas, esquecendo-se de que é a
própria realidade e, no caso das personagens de Faulkner, a debilidade ou inexistência do
apoio familiar, que provoca esse efeito ou reacção, como comentou Wolfang Kayser na sua
obra, The Grotesque: “We are unable to orient ourselves in the alienated world, because it
is aburd.”54
1.3. The Sins of The Fathers: Religião e Maldição, Sexualidade e
Promiscuidade
Nas obras de Faulkner, a noção de pecado assume uma dimensão ambígua, relativa e
humana, sendo que as personagens mais marcadas por vínculos religiosos são
frequentemente ridicularizadas. Na obra As I Lay Dying, a moribunda Addie faz uma
consideração muito lúcida e pertinente acerca do pecado ao concluir que esta palavra é
como o vestuário que usamos perante o mundo e, tal como o amor ou o medo, são apenas
palavras, sons. Addie, opõe-se na obra, de forma veemente a Cora Tull e a Whitfield, cujas
ideias acerca do pecado e da salvação são marcadas pela hipocrisia e o descrédito.
Cora Tull, que sempre pautou a sua forma de agir por preceitos religiosos, tece críticas à
vida familiar de Addie, no entanto os seus conceitos de fé, pecado e salvação são vazios e
desprovidos de lógica e coerência. Tal também acontece com Whitfield que, ao contrário
de Addie, não assume o seu pecado perante o mundo. Após reclamar ter lutado com o
demónio e ter vencido, decidindo por isso contar a verdade acerca da sua relação com
Addie, logo se arrepende assim que descobre que esta já faleceu. Enquando Addie, no seu
monólogo admite os seus pecados, revelando uma vida interior tenebrosa mas honesta,
Cora e Whitfield orientam a sua acção por valores éticos decadentes e hipócritas.
Há alguns pontos semelhantes entre o relacionamento destas personagens e o amor
proibido entre Hester Pryne e o Reverendo Dimes, retratado por Nathaniel Hawthorne em
The Scarlet Letter. Ambos Whitfield e Dimes, enquanto homens de Deus, sucumbiram à
tentação de um relacionamento carnal e, resultante deste nasceram duas crianças: Jewel e
54
Wolfang Kayser, The Grotesque, p. 185
31
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Pearl. Sendo ambas extremamente amadas pela mãe, suportam o estigma social de serem
crianças ilegítimas. Este facto é muito claro se atentarmos nos pensamentos de Hester em
relação à sua filha: “ God, as a different consequence of the sin which man thus punished,
had given her a lovely child, whose place was on that same dishonored bosom, to connect
her parent forever with the race and descent of mortals, and to finally a blessed soul in
heaven.”55
Ainda que a rejeição seja mais evidente na obra de Hawthorne, há aqui uma contradição
entre o que é aceitável em termos religiosos e sociais e a faceta real e humana do
indivíduo,: “ Mother and daughter stood together in the same circle of seclusion from
human society”56, em Faulkner essa rejeição é mais subtil, uma vez que é sugerida pelo
autor através da caracterização indirecta das personagens. O pecado tal como é concebido
em termos religiosos e sociais, principalmente aquele que é cometido por gerações
anteriores, paira sobre as gerações seguintes, amaldiçoando-as. Segundo as considerações
religiosas, o pecado mais marcante é aquele associado à sexualidade, apresentando a obra
de Faulkner vários exemplos válidos.
Em As I Lay Dying, Addie e a sua filha Dewey Dell e Caddy em The Sound and The Fury
sucubem ao apelo de uma relação carnal, da qual resultam descendentes. Tendo Jewel
resultado de uma infidelidade, sendo o filho que Dewey traz no ventre o fruto de uma
relação fugaz e Quentin não conhece o pai, todas estas personagens têm em comum o
mesmo pecado: o acto sexual, que ao ser praticado fora dos vínculos matrimoniais, é
classificado de promíscuo e passível de ser recriminado. Também em Light in August, as
personagens Bobbie Allen, Lena, Milly Hines, Joanna Burden e Miss Atkins têm relações
muito marcadas pela sexualidade, o que mais do que criticado, é absolutamente
condenável. Em Carrie de Stephen King, encontramos um comentário de Margaret White
que traduz de forma muito veemente esta relação amaldiçoada entre a mulher e a sua
própria sexualidade, abordada sob um ponto de vista religioso: “ And Eve was weak and
loosed the raven on the world, Momma continued, and the raven was called Sin and the
first Sin was Intercourse. And the Lord visited Eve with a Curse, and the Curse was the
Curse of the Blood.”57
55
56
57
Nathaniel Hawthorne,, The Scarlet Letter. p. 75
Ibidem, p. 80
Stephen King, Carrie, p. 24
32
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Esta maldição do sangue é uma metáfora intimamente relacionada com o corpo feminino,
isto se tivermos em atenção a menstruação e o parto, mas não só. É uma maldição que une
os que são da mesma carne e sangue. Em The Sound and the Fury temos esta ideia muito
presente, uma vez que é recordado a Jason, no capítulo “April Sixth 1928” que Quentin, é
sangue do seu sangue: “ Remember she's your own flesh and blood.”58
.
Igualmente relacionados por laços de sangue estão os irmãos Caddy e Quentin. A sua
relação incestuosa dá origem à morte. É essa transgressão moral associada a uma inversão
de papéis sociais que dita o suicídio de Quentin, como explica Harold Bloom em William
Faulkner's The Sound and The Fury: “In Quentin´s world young men lose their virginity as
soon as possible, but their sisters keep their virginity until they are married. The reversal of
this situation in the case of Quentin and Candace makes Quentin think that his sister has
assumed the masculine and he has assumed the feminine role.”59
Em conformidade com esta concepção de pecado, incesto e morte está a abordagem de
John Milton ao tema. Na sua obra Paradise Lost, a advertência de Rafael a Adão é muito
clara porque o seu amor por Eva é muito marcado pelo desejo sexual, o responsável pela
insensatez. A Morte ao resultar de uma relação incestuosa entre o Demónio e o Pecado,
filha deste, enquadra-se na relação entre os irmãos Quentin e Caddy, se tivermos em conta
o fascínio que Caddy exerce sobre o irmão e a impotência deste em enfrentar e superar a
ideia promíscua do incesto, optando pelo suicídio. Vejamos que, quando Quentin confessa
ao pai o seu acto incestuoso, este acaba por considerar a promiscuidade como algo natural
e por isso inevitável, uma vez que classifica a pureza e castidade como estados contrários
à natureza humana: “ Purity is a negative state and therefore contrary to nature.”60
Religiosamente amaldiçoada, esta relação entre a sexualidade e a morte é muito
característica na literatura gótica, como referiu Linda Bayer-Berenbaum em The Gothic
Imagination: “ Gothic literature is characterized by an intricate interplay between eros and
thanatos, to which the confrontation with pain serves as catalyst.”61 Nessa relação
incestuosa, Quentin, tal como outras personagens de Faulkner, não conseguiu controlar os
seus impulsos mais negros, uma vez que nasceram com ele e foram-se expandindo no seio
de uma família moralmente decadente que não os soube suprimir ou conter. O mesmo se
58
59
60
61
William Faulkner, The Sound and the Fury, p. 154
Harold Bloom, William Faulkner's The Sound and The Fury, p. 11
William Faulkner, The Sound and the Fury, p. 97
Linda Bayer-Berenbaum, The Gothic Imagination, p. 38
33
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
verifica em Light in August. A personagem Joe Christmas, de trinta e três anos, assume no
capítulo 11 que desconhece quem seriam os seus pais, vivendo uma vida de certo modo
nómada e mantendo uma relação com a prostituta Bobbie Allen. Estes são pontos
coincidentes entre esta personagem e Jesus Cristo, que surgem reforçados se atentarmos
também no seu invulgar nome de “Christmas”.
Desta forma, Faulkner critica implicitamente a religião cristã, associando-a subtilmente à
violência e promiscuidade através desta personagem. Na focalização interna seguinte
torna-se muito clara a associação entre Christmas e a promiscuidade, sinónima do pecado
que é transmitido de pais para filhos: “ He ought to stay away from bitches. He can't help
himself. He was born too close to one.”62 Em concordância com este aspecto, parece-me
pertinente observar atentamente a obra de Marx Ernst, The Virgin spanking the Infant
Jesus in front of three witnesses, 1926 ( figura 11). Nesta obra, o manto azul da Virgem
cai, revelando um sensual vestido vermelho que evidencia as formas femininas do seu
corpo, transmitindo uma imagem inequivocamente erótica. Ao contrário da comum etérea
imagem da Virgem Maria, com traços de delicadeza e inocência, que acolhe o seu filho
Jesus, o pintor retrata-a de outra forma: como uma mãe que não deixa de ser mulher e que,
sem sublimar os seus impulsos, castiga violentamente o seu filho, enquanto as
testemunhas assistem indiferentes.
Ernst, tal como Faulkner em As I Lay Dying, The Sound and the Fury e Light in August,
inova e transgride com uma mensagem inequívoca de religião maldita, vazia e desprovida
de conteúdo. Personagens como Cora Tull, Whitfield, Hightower e Dilsey ilustram de
forma veemente a incapacidade e impotência da doutrina ou família cristã em orientar os
seus filhos, também Bruegel na pintura A Parábola de Cegos, 1568 (figura 12), em que
um cego tenta guiar os outros, o esforço das personagens atrás referidas é em vão, inútil
porque não conseguem “ver” o que há para lá da suas limitações. Como explica RoseMarie e Rainer Haigen em Bruegel, A Obra de Pintura: “Este quadro intitula-se A
Parábola dos Cegos, referindo-se à parábola de Cristo dirigida aos Fariseus: se um cego
guia outro cego, os dois caem num buraco.”63
Tal como os cegos de Bruegel, as personagens de Faulkner marcadamente religiosas
tentam, no caminho do bem, ser justos, no entanto a sua limitação é evidente e não
62
63
William Faulkner, Light in August, p. 89
Rose Marie e Rainer Hagen, Bruegel, A Obra de Pintura, p. 81
34
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
constituem influência para as restantes que optam pelo incerto, pelo desconhecido. Acerca
da limitação humana, Italo Calvino comentou em Ponto Final, Escritos sobre a Literatura
e a Sociedade: “Os raros homens justos: limitados e justos, justos enquanto limitados:
como dizemos nós que não ousamos pretender ser justos mas nos esforçamos por não
sermos limitados, nós já tão identificados com o nosso incerto estado que não queremos
trocá-lo por nenhum outro.”64
64
Italo Calvino, Ponto Final, Escritos sobre Literatura e Sociedade, p. 129
35
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
2. THOMAS HARRIS: EFEITOS NEGATIVOS PROVOCADOS PELOS
TRAUMAS FAMILIARES EM RED DRAGON, THE SILENCE OF THE
LAMBS E HANNIBAL RISING.
Nas obras de Thomas Harris, é magistral e inequívoco o papel da infância e da família na
formação da personalidade do indivíduo e consequentemente nos seus actos. Está
subjacente, nas personagens principais, uma ideia de trauma passado e posterior
transfiguração e isolamento do indivíduo. Nos anos 80, com a ajuda do agente reformado
do FBI Robert Ressler, o autor acede aos processos de serial killers tais como Edmund
Kemper, Richard Chase e Ed Guein e inspira-se nestes para a configuração de Hannibal
Lecter, Francis Dolarhyde e Buffalo Bill. Segundo Stephen J. Giannangelo, em The
Psychopatology of Serial Murder: A Theory of Violence, a infância é crucial para a
revelação do lado obscuro da sua personalidade. A este respeito, o autor anteriormente
citado refere: “Childhood is when these killers develop their obsessive and distorted view
of their own identities and their ever increasing need for control”65 As obras de Harris, The
Silence of the Lambs, Red Dragon e Hannibal Rising não só estão em conformidade com
esta afirmação como também vão enfatizar a influência no indivíduo de uma orientação
familiar deficiente ou inexistente na formação do indivíduo.
O referido autor, como qualquer outro autor gótico contemporâneo, não é declarativo. Ao
invés, representa os aspectos terríveis da existência humana, a sua fraqueza e mediocridade,
num sentido catártico. Como nada se limita ao que é literalmente dito, a significação da
obra será analisada mediante alguns aspectos que considero fundamentais, tendo em conta a
temática principal da presente tese.
2.1. Angústia e Identidade
O teólogo e psicoterapeuta Eugen Drewermann apresenta uma ideia muito clara acerca da
angústia, do mal e da identidade, a qual me parece adequada para introduzir o presente
65 Stephen J. Giannangelo, The Psychopatology of Serial Murder: A Theory of Violence, p. 27
36
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
subcapítulo:
À superfície, não é certamente fácil perceber que a raiz do mal é a angústia. Na maior
parte das vezes mesmo, só a psicanálise (ou um profundo poder de compreensão humana) permite
revelá-la como factor decisivo causador de deformações psíquicas e processos de
desenvolvimento doentios que, em certas circunstâncias, se manifestam numa determinada acção
criminal. Mas um olhar mais atento permitirá encontrá-la sempre, não só na transgressão
acidental de uma determinada norma neste ou naquele aspecto, mas onde o mal que alguém faz
resulta de toda a sua personalidade e é a expressão do seu ser. O caminho entre a angústia original
e a acção final concreta pode ser muito sinuoso, mas todo o mal que caracteriza na essência
aquele que o executa acaba sempre por se poder atribuir à angústia.66
Esse é um ponto em comum que liga personagens que à partida são opostas. Buffalo Bill,
Clarice Starling, Francis Dolarhyde, Will Graham e o próprio Hannibal Lecter são descritos
como alguém que anda numa busca constante. Em todas as obras de Harris, isto parece
bastante evidente. Há uma caracterização indirecta destas personagens, embora esta se
apresente de uma forma dúbia, incompleta e imprecisa. Enquanto Clarice tenta atingir a
realização pessoal através da captura de Buffalo Bill, porque acha que se conseguir salvar a
vida de Catherine
Martin,
consegue silenciar
os
cordeiros,
ainda que seja
momentaneamente, como comentou Lecter em The Silence of the Lambs. O resgate de
Martin representa o cessar da angústia de Starling, uma vez que a agente assume a dor e
angústia de todas as vítimas, como se estas sensações fossem as suas próprias.
Porque a dor e angústia lhe parecem tão próximas, Clarice tenta de todos os modos
proteger as vítimas. Como não há proximidade maior do que aquela traduzida pelos laços
fraternos, a agente refere-se a Kimberly, uma das vítimas de Buffalo Bill, como Kimberly
her sister67. Esta ideia é reforçada se atentarmos nos pensamentos de Starling, em relação a
outra vítima do serial killer: “She wondered if Catherine tried to please her father when she
was little. She wandered what Catherine was doing when they came and told her that her
father was dead, of a heart attack at forty-two. Starling was positive Catherine missed him.
Missing your father, the common wound, made Starling feel more close to this woman.”68
No contexto educativo e social, apesar das diferenças abismais que separam estas duas
personagens, há um momento de dor e angústia que é comum, que as une e que vai,
inequivocamente, marcar a identidade destas personagens: a morte do pai.
66
67
68
Eugen Drewermann, A Angústia e a Culpa, p. 146
Thomas Harris, The Silence of the Lambs, p. 334
Ibidem, p. 238
37
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Clarice confessa a Hannibal Lecter que essa foi a pior recordação da sua infância.
Nas obras de Harris em estudo, a morte ou desaparecimento abrupto de entes familiares
marca e transforma de forma indelével a personalidade e a própria identidade das
personagens. Em The Silence of The Lambs, temos breves retratos da difícil infância de
Clarice e da humanidade quase divina desta personagem, uma vez que reúne o amor,
espírito de sacrifício, compaixão e piedade. Ela é a imagem suprema do Bem, tal como a
descreveu William Blake no seu poema The Divine Image: “ And all must love the human
form/ In heathen, turk or jew/ Where Mercy, Love & Pity dwell/ There God is dwelling
too.”69
No lado do Bem, Clarice e Graham vão assim contrapor-se a Buffalo Bill, Francis
Dolarhyde e Hannibal Lecter. Contudo, na obra Red Dragon são parcas as referências à
infância de Graham embora estas deixem entrever igualmente grandes momentos de
sofrimento, pois o autor, referindo-se ao pai de Graham, esclarece: “He died five months
later, when Willy was six”.70As personagens Graham e Clarice são a prova de que, apesar
dos momentos traumáticos, o ser humano detém a capacidade de superá-los e construir uma
identidade em comunhão com a comunidade ou sociedade que o rodeia, tal como defende
Stephen J. Giannangelo em The Psychopatology of Serial Murder: A Theory of Violence:
“The temptation is great to consider a person’s history of violence as the main precursor to
further violence. However, not every child that is abused becomes a serial killer, just as not
every child who is abused develops a multiple personality.”71
A reforçar esta teoria, encontramos também o comentário de Kendall R. Philips, em
Projected Fears: Horror Films and American Culture: “Finally, and perhaps most
importantly, Starling and Bill both are portrayed, at least at times, as victims of a brutal,
insensitive society, and it is this abusive society that places them on their collision
course.”72 Enquanto Clarice constrói uma identidade baseada no controlo de traumas
familiares, concentrando toda a sua forma de agir na aceitação e cooperação com a
sociedade, embora esta lhe tenha sido por vezes hostil, as personagens Hannibal Lecter,
Jame Gumb e Francis Dolarhyde pensam e agem de um modo totalmente oposto. O mal
interior presente em cada uma destas personagens deriva de um confronto com algo
69
70
71
72
William Blake, Selected Poems, p. 18
Thomas Harris,, Red Dragon, p. 155
Giannangelo, Stephen J. The Psychopathology of serial Murder: A Theory of Violence, p. 23
R. Kendall Philips, Projected Fears: Horror Films and American Culture, p. 154
38
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
exterior que não conseguem controlar (o meio familiar e social disfuncional) e é isso que
vai influenciar a forma como percepcionam o real e constroem a sua identidade.
Apesar destas divergências, ao atentarmos na relação de Hannibal Lecter e de Clarice
Starling, percebemos que estas personagens têm mais em comum do que possa parecer, já
que ambas estão presas à memória do passado de uma infância dolorosa. É significativo o
facto de Hannibal ajudar Clarice em troca de algo: “In return of information about Buffalo
Bill demands that Starling tell hill her nightmares, her most awful memories of childhood,
her darkest fears.”73 Para Clarice se libertar, resgatar Catherine e assim atingir a paz vai ter
de trazer à superfície as recordações tenebrosas que a oprimem. Se para a agente, a única
forma de catarse é combater o mal, evitando mais assassínios e assim silenciar os cordeiros,
para Hannibal Lecter (e para os outros serial killers das obras de Harris), o momento
crucial de libertação e construção de identidade coincide com o assassínio.
Buffalo Bill constrói essa identidade através do crime, ou seja, do acto de matar, como
explica Kendall R. Philips na sua obra Skin Shows: Gothic Horror and the Technology of
Monsters: “To him murder becomes a mean of transformation. Systematically abused as a
child, Bill, in contrast to Starling, seeks an identity in the absence of community.”74 Este
acto serve um único propósito para esta personagem: a transformação. A própria mutação
constitui uma obsessão para ele: “Gumb became obsessed with moths and butterflies and
the changes they go through.”75 A larva que dá origem a uma bela borboleta é a metáfora
por excelência de que tudo é possível, o feio sofre uma metamorfose e transforma-se em
belo. Essa beleza e perfeição para Buffalo Bill está centrada na figura materna pois ele
anseia, através da pele das suas vítimas, assumir a identidade da sua mãe, que desde cedo o
abandonou. Enquanto prepara a sua “indumentária”, comenta: “ Mommy’s gonna be so
beautiful!”76
Esse é um aspecto muito importante e que considero ter sido negligenciado na transposição
da obra The Silence of the Lambs para o cinema, autoria do realizador Jonathan Demme,
uma vez que, no filme é-nos transmitida a ideia de que Jame Gumb é uma personagem
alucinada, a tocar o limite da aberração. Na obra de Harris temos uma alusão que vai
justificar a identidade criminosa de Buffalo Bill. Ainda que, ao longo da obra tenhamos
73
74
75
76
Judith. Halberstam, Skin Shows: Gothic Horror and the Technology of Monsters, p. 164
PhKendall R. ilips, Projected Fears: Horror Films and American Culture, p. 156
Thomas Harris, The Silence of the Lambs, p. 412
Ibidem, p. 330
39
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
alguns excertos que indicam a infância conturbada da personagem, desde o alcoolismo e
abandono da mãe, até à sua passagem por lares de acolhimento e ao assassinato dos avós
pelo próprio, é quase no final de The Silence of the Lambs que se torna mais evidente a
posição do autor: “ At last two scholarly journals explained that this unhappy childhood
was the reason he killed women in his basement for their skins. The words crazy and evil
do not appear in either article.”77
À semelhança de Jame Gumb/Buffalo Bill que construiu a sua identidade numa base de
dor, escolhendo o caminho do crime, o mesmo se pode dizer de Francis Dolarhyde.
Indesejado e rejeitado pela própria mãe logo desde o seu nascimento, é criado pela avó com
uma rigidez e severidade extrema. Dolarhyde deixa-se dominar completamente, tanto pela
figura austera da avó como pelo mítico dragão vermelho, assumindo a identidade quer de
um, quer de outro. Esta fusão imaginária ou platónica de Francis na figura da avó materna e
do dragão assemelha-se a outra bem mais real (ainda que de forma tentada): a de Gumb e a
figura materna. Tal remete-nos para um conceito muito importante no gótico: o grotesco,
uma vez que este vai unir esferas que são aparentemente consideradas incompatíveis, como
por exemplo a fragmentação da própria identidade do indivíduo. Tal desintegração coincide
e deriva também da instabilidade do mundo exterior e da impotência da família em orientálo e protegê-lo. O autor Wolfang Kayser na sua obra The Grotesque in Art and Literature
reflecte acerca da definição do termo fazendo referência a estas características: “ To be
sure, many of the essential ingredients of the grotesque – the mixture of heterogeneous
elements, the confusion, the fantastic quality, and even a kind of alienation of the world –
may be found, however vaguely defined, in Schlegel’s Gesprach. But one aspect is
definitely lacking: the abysmal quality, the insecurity, the terror inspired by the
desintegration of the world.”78
Como já foi referido anteriormente, devido a esta incapacidade ou dificuldade de
orientação, o indivíduo e as personagens de Harris em particular, procuram construir a sua
identidade fora da esfera familiar. Este aspecto encontra-se subtilmente evidenciado no
início do capítulo 32 da obra Red Dragon onde existe uma informação crucial que foi
desprezada na obra cinematográfica homónima de Brett Ratner. Apesar da constatação de
que as famílias de Chicago oscilavam entre a tensão e o medo, uma vez que tudo indicava
77 Ibidem, p. 411
78 Wolfang. Kayser, The Grotesque, p. 51, 52
40
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
que Tooth Fairy voltaria a matar, o ambiente era composto, segundo o autor, por dois
elementos que à primeira vista pareciam opostos: "Fascination and Horror.”79
Essa sensação mista, traduzia-se em medo e euforia, manifestando-se num aumento
significativo das audiências dos filmes de terror e no fabrico e venda de t-shirts com a
mensagem irónica: “ The Red Dragon is a One-Night Stand”80. Este excerto constitui um
exemplo de como o feio, o abominável e o moralmente repulsivo pode ser atractivo, o que
nos remete para o conceito de Sublime, tal como o teorizou Burke no século XVIII. A ideia
subjacente no capítulo vai de encontro à explicação de Anne Williams em Art of Darkness:
“Anything that threatens our existence is capable of evoking terror and hence the
sublime”.81 Embora exista ameaça e terror, a população sente um misto de fascínio e
exaltação pelo que me parece pertinente referir a reflexão feita por Umberto Eco em
História da Beleza, a qual considero uma resposta adequada à reacção das famílias de
Chicago: “Burke afirma que não é capaz de explicar as verdadeiras causas do Sublime e do
Belo, mas, de facto, a pergunta que faz a si mesmo é: como é que o terror pode ser
deleitável? E a sua resposta: quando não está demasiado perto.”82
Esta atracção pelo terrível representada nas obras de Thomas Harris remete-nos não só para
a ideia de que este autor rejeita certos contextos ilusórios de beleza mas também afirma a
sua intenção de ser fiel ao real e por isso inevitavelmente ao feio e repulsivo. É sem dúvida
no real que o autor se baseia, o que é absolutamente legítimo, como reflectiu a este respeito
Martin Heidegger em A Origem da Obra de Arte: “ A origem da obra de arte é a arte. Mas o
que é a arte? A arte é real na obra de arte. Por isso, procuramos, antes de mais a realidade
da obra.”83 Um exemplo que valida a teoria de que a arte é indissociada do real e da
identidade do artista é a passagem de Hannibal Rising, no final do capítulo 20, em que o
jovem Hannibal Lecter movido por algo inconsciente, perde a noção do que está a
concretizar: “Toward dawn he stopped forcing; he quit pushing, and simply watched what
his hand revealed to him.”84
O desenho revelador é simplesmente o prenúncio do primeiro acto cruel de Hannibal: o
assassinato de Paul Momund, o talhante. Verificamos assim como o mesmo processo pode
79
80
81
82
83
84
Thomas Harris, Red Dragon, p. 286
Ibidem, p. 286
Anne Williams, Art of Darkness, p. 76
Umberto Eco, História da Beleza, p. 291
Martin, Heidegger, A Origem da Obra de Arte, p. 30
Thomas Harris, Hannibal Rising, p. 118
41
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
ser em simultâneo criativo e destrutivo. A angústia e o ódio de Hannibal que se vai
concretizar no seu primeiro crime é decisivo porque ele, tal como os outros serial killers de
Harris, não sente remorsos ou arrependimento, não há uma reflexão ou análise do crime e
das suas consequências, mas sim a construção da identidade da personagem a partir desse
acto sangrento, repetindo-o ao longo do seu percurso. O acto de matar é para esta
personagem uma fuga dos fantasmas do passado que frequentemente o visitam em sonhos.
Os fantasmas que atormentam os psicopatas de Harris são também a força invisível que os
impulsiona a cometer actos ilícitos que, como constatamos, provocam na sociedade,
piedade e terror. Esses sentimentos obscuros são, sem dúvida, caracterizadores da
identidade de uma nação, como afirma Jody M. Roy em Love to Hate: America’s Obsesson
with Hatred and Violence: “ Americans, in particular, developed a fascination with both and
imagined stories about serial killers.”85A América tem, infelizmente, na sua história um
exemplo muito semelhante de como o assassínio aterroriza e fascina. Esse exemplo
corresponde a um nome: Charles Mason.
Considerando que Charles Mason fundou uma comunidade que propunha escapar às
convulsões sociais e políticas de um país onde mais do que nunca tudo era questionado,
levou os seus seguidores a cometer actos hediondos que chocaram a população norteamericana: o assassínio da actriz Sharon Tate, esposa do realizador Roman Polanski e
quatro amigos do casal, na noite do dia nove de Agosto de 1968 , assim como o assassínio
do casal Rosemary e Leno Labianca, na noite seguinte. Após as primeiras e naturais
impressões de choque e revolta contra o acto em si, Mason e os seus seguidores depressa se
tornaram um ícone da cultura popular, influenciando outros artistas sobejamente
conhecidos no meio musical norte-americano, tais como os Guns n’ Roses e Marilyn
Mason.
À semelhança da personagem Tooth Fairy, Mason cativou a comunicação social norteamericana, o que constitui um prova irrefutável de como os valores sociais e éticos que
deveriam ter sido incutidos no seio familiar e social estavam decadentes. Apesar da
angústia subjacente e da rejeição dos crimes, eles são banalizados e até apreciados, isto
porque a formação moral do indivíduo carece de verdadeiras referências que o ajudem a
construir a sua identidade enquanto ser humano e cidadão. Não foi ao acaso que a
85 Jody M. Roy, Love to Hate: America’s Obsession with Hatred and Violence, p. 90
42
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
comunidade criada por Mason, facilmente confundida com qualquer outra comunidade
hippie comum na época, se apelidava de Mason Family. Tal como o verdadeiro suporte de
uma família, o seu líder procurava dar apoio moral aos seus membros, cuja família
biológica era (e não por mera coincidência) disfuncional.
Tal como a realidade familiar de Hannibal Lecter, Francis Dolarhyde e Jame Gumb,
também os núcleos familiares dos envolvidos no famoso caso Tate-LaBianca, (Linda
Kasabian, Tex Watson, Susan Atkins, Patricia Krenwinkel, Leslie Van Houten, Tex Watson
e o próprio Charles Mason), são impotentes, incapacitados de compreender ou orientar.
Então a forma de superar essa angústia subjacente é construir a identidade em algo
alternativo: o crime e a morte.
2.2. A Inocência e a Experiência
Segundo William Blake, a inocência e a experiência são os dois estados contrários da alma
humana. As obras de Thomas Harris, The Silence of The Lambs, Red Dragon e Hannibal
Rising, vão ao encontro deste conceito de Blake. A inocência, correspondendo à infância, é
indubitavelmente moldada pelas relações familiares que se estabelecem.
Em The Silence of The Lambs temos uma importante ilustração relação entre a inocência e
a experiência, que se traduz no próprio título da obra. Através da sua luta contra o mal,
mais precisamente, pelo resgate de Catherine Martin, Clarice espera restabelecer a própria
paz perdida, o acalmar dos seus terrores nocturnos, como deduz Hannibal Lecter na referida
obra: “Do you think, if you caught Buffalo Bill yourself and if you made Catherine all
right, you could make the lambs stop screaming, do you think they’d be all right too and
you wouldn’t wake up again in the dark and hear the lambs screaming?”86 É através da sua
experiência que Clarice Starling tenta salvar os inocentes. Referente a este episódio, o
salvamento de Hannah, a jovem égua foi iniciado, embora de forma indirecta, por um
momento assustador: a matança dos cordeiros e os sons agonizantes, que acordaram a
jovem Clarice e a impulsionaram a agir. Esta experiência é muito semelhante à que a
personagem vivencia quando tenta capturar Bufallo Bill. Todas as vítimas anteriores a
86
Thomas Harris, The Silence of the Lambs p. 264
43
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Catherine e respectivas famílias obterão alguma paz se o assassino for detido. As vítimas
são os inocentes cordeiros cuja matança, ao chamar a atenção da agente, impele-a a
procurar o agressor e a impedir que este perpetue novos crimes. Se a agente Starling salvar
Catherine, os gemidos dos cordeiros irão parar, embora momentaneamente, porque o
silêncio, a paz interior é um bem a ser conquistado, como explicou Hannibal a Clarice:
“You’ll have to earn it again and again, the blessed silence.”87
Nas obras de Harris, não há mais clara imagem de inocência roubada do que o assassínio
de Mischa, o qual iria deixar no jovem Hannibal marcas profundas. É através dos sonhos
de Hannibal que o leitor se vai apercebendo da crueldade a que foram sujeitos os pais e a
irmã desta personagem, bem como os efeitos que estes trágicos acontecimentos provocaram
no carácter do psicopata. Harris foi magistral em criar um negro prelúdio de suspense, uma
vez que os negros acontecimentos, que antecedem o assassinato e canibalismo de Mischa,
em tudo apontam para o fatídico destino desta personagem e daquele que é mais ligado a
ela: o seu irmão.
Parece assim pertinente termos presente a seguinte descrição: “They put into the fire the
Lecter family album and Mischa’s paper toys, her castle, her paper dolls.”88 Se
considerarmos o fogo como símbolo da destruição e da condenação, torna-se claro o que
vai suceder. É a vida de Mischa, uma criança inocente (representada pelos seus brinquedos)
que está em causa, mas não só: essa experiência avassaladora vai moldar a racionalidade de
Hannibal. Como escreveu William Blake no seu poema Auguries of Innocence: “The
Child’s toys & the Old Man’s Reasons/ Are the Fruits of The Two Seasons.”89 Destruídos
os brinquedos, metáfora da infância e a inocência, os frutos da idade adulta também estarão
ameaçados.
Foi a experiência traumática da perda da família e principalmente do desaparecimento de
Mischa que manchou a inocência de Hannibal e “nublou” ou adormeceu a sua
racionalidade transformando-o num ser monstruoso. Tal como retratou Goya na sua obra O
sono da razão produz monstros, 1797 (figura 13) a ponderação, a sensatez e a racionalidade
são essenciais ao ser humano, uma vez que o desaparecimento destas qualidades vai sempre
implicar o aprisionamento em si próprio ou numa prisão física. Hannibal, quando iniciou o
87 Ibidem, p. 420
88 Thomas Harris, Hannibal Rising, p. 71
89 William Blake, Selected Poems, p. 100
44
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
seu percurso criminoso, foi aconselhado pelo inspector Popil: “Temper is a useful but
dangerous gift. Use judgment and you will never occupy a cell like this.”90
A relação entre a perda de inocência e a experiência do aprisionamento é também
referida no poema de Blake anteriormente citado: “A Robin Red breast in a Cage/Puts all
heaven in a Rage./ A Dove House fill’d with doves & Pigeons/ Shudders Hell thro’ all its
regions.”91 Se considerarmos as aves e, mais concretamente a pomba como símbolo da paz
e atendermos à explicação de Michael Ferber em A Dictionary of Literary Symbols: “A bird
in a cage, or hooded or clipped might stand for any trapped or exiled person”92,
verificamos que os psicopatas de Harris, presentes nestas obras, Hannibal Lecter, Francis
Dolarhyde e Jame Gumb, se assemelham às aves referidas nos versos de Blake.
Inicialmente, qualquer uma destas personagens inicialmente aparenta uma ideia de
fragilidade, de inocência que as torna insuspeitas, o que contribui para fomentar o fascínio
em torno dos serial-killers, porque eles, na sua dicotomia inocência/ experiência, podem ser
qualquer cidadão americano. A este respeito Jody M. Roy, na sua obra Love to Hate:
America’s Obsession with Hatred and Violence, referiu: “Like demons, serial killers subject
their victims to hellish ritual torments yet serial killers are neither animals nor demos: they
are humans. Serial killers are one of “us” no matter how rigorously we deny them.”93
Esta teoria vem comprovar como os pólos aparentemente opostos, tais como o Bem e o
Mal, a Inocência e a Experiência, no género gótico, estão contidos um no outro, existindo
uma contaminação de conceitos que surgem indissociáveis. Consequentemente, estas obras
de Harris são também importantes pela sua dimensão ética.
2.3. Vítima e Carrasco
Na obra Hannibal Rising, é referida uma obra de arte de Caravaggio, O Sacrifício de Isaac
que, não só serve de pretexto para reforçar o interesse de Hannibal pela pintura, mas
também para alertar para o papel inútil e fracassado da religião. Quando foi questionada se
Deus teria ordenado a Abraão para matar Isaac com a pretensão de o comer, Lady Murasaki
90
91
92
93
Thomas Harris, Hannibal Rising, p. 113
William Blake, Selected Poems, p. 77
Michael Ferber, A Dictionary of Literary Symbols, p. 27
Jody Roy, M. Love to Hate: America’s Obsession with Hatred and Violence, p. 89
45
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
respondeu que não, porque o anjo intervém a tempo. Hannibal, devido à experiência
devastadora que teve, é mais pessimista (ou realista!?): “ Not always.”94
Assistimos assim à expressão da mais profunda desolação de uma época: o descrédito da
religião, a evidência da sua inutilidade, na ausência da resposta de salvação. Vejamos que,
em ambas as obras do pintor (de 1596 e de 1603, figuras 14 e 15, respectivamente) o anjo,
cuja mão detém a mão de Isaac, tem uma aparência mais humana que divina, o que pode
significar que o crime, o mal, no caso de se poder evitar, não seria evitável devido à
intervenção da religião. Na obra Hannibal Rising, a família Lecter não foi salva a tempo,
em The Silence of The Lambs e Red Dragon, os “anjos” também têm claramente uma
identidade humana: Clarice Starling e William Graham.
Hannibal Lecter foi vítima, não apenas da guerra, mas também da injustiça e
impunidade que permitiu aos assassinos de Mischa interagirem e reagirem livre e
activamente contra a sociedade. Ao longo de Hannibal Rising são dados indícios de que há
uma possibilidade de “recuperação” do indivíduo face ao dano que lhe fora causado: a
destruição da família. Isso é posto em evidência, quando Hannibal é procurado e acolhido
pelo tio e a sua esposa, Lady Murasaki. Contudo, tal não aconteceu porque, como observou
o Inspector Popil, na referida obra: “War crimes do not end with the war, Hannibal.”95 Em
concordância com esta afirmação está o percurso da personagem, os pesadelos que o
atormentam e, inevitavelmente, o seu modo de agir.
Em comparação, constatamos que o mesmo se passa com outros serial-killers de Harris,
Jame Gumb e Francis Dolarhyde. Vítimas de uma infância infeliz, o seu sofrimento não
terminou, quando chegados à idade adulta. Ambos, tal como Lecter, são constantemente
visitados por recordações do passado, as quais não conseguem controlar e que lhes trazem a
dor de uma forma muito viva, muito presente. A este respeito, Oscar Wilde comentou no
ensaio De Profundis: “Suffering is a very long moment. We cannot divide it by seasons. We
can only record its moods, and chronicle their return. With us time itself does not progress.
It revolves. It seems to circle round one centre of pain.”96
Esse núcleo de dor é facilmente identificável em cada uma das obras em questão. Em
Hannibal Rising, o Inspector Popil apresenta-o sucintamente: “You were orphaned in the
94 Thomas Harris, Hannibal Rising, p. 180
95 Ibidem, p. 143
96
Oscar Wilde, The Complete Works of Oscar Wilde, p. 345
46
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
war. You lived in an institution, living inside yourself, your family dead.”97 À semelhança
de Lecter, também Jame Gumb e Francis Dolarhyde viveram na solidão, como se pode
depreender dos excertos seguintes: “Gumb’s grandparents retrieved him from an
unsatisfactory foster home when he was ten, and he killed them two years later.”98 e “Near
the end of his fifth year, Francis Dolarhyde had his first and only visitor at the
orphanage.”99
Torna-se óbvio que as personagens ao serem vítimas da solidão, insegurança e
instabilidade relacionadas com a ruptura familiar e sendo a sociedade uma entidade hostil e
incapaz de orientar as personagens, elas facilmente se rebelam contra essa mesma
comunidade, tornando-se uma espécie de carrasco da mesma. Note-se que, não há em
nenhuma das obras de Harris uma referência de que, após o acto de matar, Lecter, Jame e
Francis experimentem sensações de alegria, realização pessoal ou de triunfo. Ao invés disso
podemos presenciar uma certa satisfação melancólica de uma necessidade muito primária
para estas personagens. No que diz respeito à relação entre vítima e carrasco, parece-me
oportuno estabelecer uma semelhança entre a obra de Caravaggio David segurando a
cabeça de Golias, 1605-1606 (figura 16) e o percurso dos psicopatas nas obras de Harris.
Tal como eles, também David não está triunfante, aparentando um semblante carregado de
angústia. Não deveria David ser representado exultante? Ao matar Golias, David é carrasco,
mas também vítima da própria comunidade (ainda que, de forma involuntária, o tenha
levado a cometer tal acto), mas não só, porque também se pode deduzir que terá a
consciência de que matar outrem é condenável. Ao derrotar o gigante Golias, o jovem
David destronou também de forma simbólica o poder, a arrogância e a vaidade,
características inerentes à esfera social em que se integrava. É perante a mesma ideia de
sociedade, indiferente e hostil, que Hannibal, Jame e Francis sucumbem, embora se
rebelem de forma impotente contra ela.
A sociedade americana é também, de forma simultânea e complementar, vítima e carrasco,
podendo esta dualidade ser representada pelo jovem David e pelo gigante Golias. Como
sabemos, os valores éticos dessa sociedade estão entorpecidos e decadentes. Este facto é
também corroborado por outras obras, tais como Slaughterhouse 5, de Kurt Vonnegut que
97
Thomas Harris, Hannibal Rising, p. 143
98 Thomas Harris, The Silence of the Lambs, p. 412
99 Thomas Harris, Red Dragon, p. 234
47
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
destaca a forma como a América conduziu os seus “filhos” durante a II Guerra Mundial.
Como o sub-título indica, The Children´s Crusade, a Duty-Dance with Death, os jovens
soldados americanos foram afastados de quem deveria zelar pela sua segurança e
integridade física e moral, ou seja, a família e a nação. Como tal não acontece, confrontamse com a morte, senão física, a morte como extinção da sua humanidade. Vonnegut foi bem
claro, na voz da sua personagem Howard W. Campbell, um americano que fez parte da
propaganda alemã, ao referir-se aos seus compatriotas da seguinte forma: “ They do not
love one another because they do not love themselves.”100
Tal como Vonnegut, também Harris nas obras The Silence of the Lambs, Red
Dragon e Hannibal Rising, deu exemplos válidos de que a América é uma mãe negligente
para os seus “filhos”, os cidadãos americanos. Este facto torna-se evidente se atentarmos
nos factos que assombraram a história americana ao longo dos séculos: o massacre dos
índios, o comércio de escravos, a guerra civil, o conflito no Vietnam, a guerra no Iraque,
entre outros. Como comenta a este respeito, Leslie A. Fiedler em Love and Death in the
American Novel: “How could one tell where the American Dream ended and the Faustian
nightmare began.”101
Os serial killers de Harris, vítimas da sociedade e da família que os desprezou e maltratou,
vão insurgir-se contra esta, tornando-se o seu carrasco, sentindo assim uma sensação de
poder. Esta sensação de supremacia, sendo fugaz tende a repetir, ou seja, Lecter, Gumb e
Dolarhyde voltam a matar. A carência de valores familiares e sociais (uma vez que a
sociedade deve ser considerada como uma família no sentido mais abrangente do termo),
faz com que o indivíduo se torne incapacitado de agir em conformidade com a sua
humanidade e manifeste o seu lado negativo. Como afirma William Blake em Auguries of
Innocence: “A Dog starv´d at his Master’s Gate/ Predicts the ruin of the state.”102 Como
um animal domesticado, dependente de amor e orientação, o indivíduo carente destes
valores, pode representar a ruína e decadência. Contudo, não se deverá cair em
generalizações, uma vez que as personagens Clarice Starling e William Graham, tendo
vivenciado traumáticas experiências familiares, não foram carrascos da sociedade, mas ao
invés traçaram nela um sensato caminho de equilíbrio e harmonia. Por isso, será assim
100
101
102
Kurt Vonnegut, Slaughterhouse 5, or The Children’s Crusade, a Duty-Dance with Death, p. 81
Leslie A. Fiedler, Love and Death in the American Novel, p. 143
William Blake, Selected Poems, p. 77
48
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
pertinente a conclusão de William Blake, no poema anteriormente citado, Auguries of
Innocence: “Some are born to sweet delight/ Some are born to Endless night”.103
3. ANNE RICE: A FORÇA VAMPÍRICA CONSUMIDORA DA
HUMANIDADE DO INDIVÍDUO EM INTERVIEW WITH THE
VAMPIRE E THE VAMPIRE LESTAT
O vampiro é talvez o maior representante da ambiguidade que caracteriza o género gótico.
Tendo experienciado a morte, ele ultrapassa-a e continua a viver. Mata e com essa morte
pode gerar uma nova vida. Ao contrário do envelhecimento dos mortais, o decorrer do
tempo aumenta e estimula as suas capacidades físicas e mentais. A respeito desta criatura,
Linda Bayer-Berenbaum comenta em The Gothic Imagination:
The vampire is neither death or alive; he is both. Further, the vampire is neither human
nor divine but a combination of the two; he is a spirit incarnate in life, not all-powerful, yet not
mortal. Like the saint or savior, he is all-suffering, a perverted Christ figure who offers the
damnation of eternal life in this world rather than the salvation of eternal life in the death. Life
after death has been transposed into a living death.104
É devido não só à ambiguidade atrás referida, mas também à contínua violação de limites
físicos e morais, que o vampiro detém uma forte conotação gótica, tal como explica Anne
Williams na sua obra Art of Darkness: “Clearly, the vampire represents the other. It is
associated with the supernatural, medieval superstition, and distant lands. Its bloodsucking
habits, its mounstrously unnatural mode of reproduction, and, as undead, its ontological
ambiguity (in short, its systematic violation of boundaries) have powerful gothic
potential”.105
São estas características paradoxais que serão exploradas neste capítulo, focando sobretudo
o papel da família como elemento que destrói e vampiriza a energia das personagens das
obras de Anne Rice, Interview with the Vampire (1976) e The Vampire Lestat ( 1985).
103
104
105
Ibidem, p. 80
Linda Bayer-Berenbaum, The Gothic Imagination, p. 35
Anne Williams, Art of Darkness, p. 21
49
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
3.1. Indefinição: Vampirismo e Humanidade
A dúbia fronteira entre a vida e a morte sempre foi tida em conta pelos autores e criadores
góticos. É muito elucidativa a explicação de Edgar Allan Poe no conto The Premature
Burial: “The boundaries which divide Life from Death are at best shadowy and vague. Who
shall say where the one ends, and where the other begins?”106 Esta ambiguidade é também
visível na criação do artista plástico Hans Ruedi Giger, Landscape XVIII (figura 17) É
possível discernir com exactidão se os recém-nascidos estão vivos, mortos, acordados ou
adormecidos?
O vampiro, tal como estas figuras de Giger, estando em companhia dos demais da sua
espécie, para além da ambiguidade da sua forma, como já foi referido, faz transparecer uma
ideia de isolamento, abstracção e apatia. Domina em ambas as personagens uma calma
inquietação, reforçada pela complexidade e indefinição dos seres e pela solidão em que
estão mergulhados. Os bebés de Giger e os vampiros de Rice, partilham uma semelhança
fraternal inequívoca e reflectem o abandono a que foram sujeitos. Estão ambos entregues a
si próprios e a um caminhar solitário desde o nascimento (e renascimento). Onde está a
presença maternal ou paternal que supostamente guia e reconforta?
Nestas obras ela mostra-se inválida ou inexistente. Por isso predomina a ideia do
incompleto, um conceito muito frequentemente representado no género gótico, como
explica Linda Bayer-Berenbaum em The Gothic Imagination: “The attraction to irregularity
stems from an attraction to the incomplete; what is not whole, not self-contained or
balanced, is more prone to motion or change, to the dynamism that characterizes Gothic art
forms.107 Compreendemos assim porque os bebés de Giger surgem como que mutilados.
Essa mutilação também é visível nos vampiros de Rice, e a nível emocional esta ruína é
muito evidente nas personagens de Louis, Claudia e Lestat, que estão constantemente
desesperados por respostas acerca da sua condição.
Tal como o narrador de The Imp of the Perverse108, os vampiros de Rice, que representam
106
107
108
Edgar Allan Poe. Selected Tales, p. 322
Linda Bayer-Berenbaum, The Gothic Imagination, p. 28
Edgar Allan Poe, Selected Tales, p.132
50
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
na perfeição a dualidade bem/mal através do conflito entre a sua sobrevivente ligação à
humanidade e a sua nova forma, são também vítimas da perversidade, do mal, por isso o
seu percurso (que é a metáfora do percurso da América do século XX) revela-se difícil e
atormentado. Para termos uma ideia mais clara da natureza deste percurso, basta
reflectirmos sobre o conselho de uma mulher vampira que acompanhava Armand em The
Vampire Lestat: “Good-bye, brave child, she cried. Ride the Devil’s Road as long as you
can”.109 Nesta metáfora concentra-se uma ideia-chave da obra. O vampiro, tal como o ser
humano, tem uma estrada a percorrer, o caminho que fica para trás acaba por persegui-lo
porque, tal como uma criança, muitos dos actos cometidos são ingénuos, instintivos e
irreflectidos. Nas obras de Rice o vampiro traça o seu caminho com alguma humanidade,
enquanto o ser humano movido pelo seu instinto de perversidade inata, assume
características vampirescas. Perde a sua humanidade e consoante a natureza das suas
intenções surge ao mundo sob várias formas, revestido de falsidade, enganos e disfarces.
Assim, a humanidade é uma condição de certo modo marcada pela indefinição e
ambiguidade, mas ainda assim deverá ser valorizada em detrimento da eternidade.
Encontramos em Brian J. Frost, em The Monster with a Thousand Faces: Guises of the
Vampire in Myth and Literature, uma explicação importante sobre o vampirismo e a
humanidade, que nos remete também para a família: “By the beginning of the historical era
the vampire was a well-established denizen of the demon world, appearing in a variety of
guises. Records left by the ancient Assyrians and Babylonians confirm that vampirish
demons were a great menace to the people of those times.”110 Para além da variedade de
formas que pode assumir este ser, o autor refere ainda que uma das primeiras vampiras teria
sido Lilith, a primeira mulher de Adão. Ao mencionar Lilith, dotada de juventude, beleza e
voluptuosidade, facilmente poderíamos associar esta personagem a Gabrielle, mãe de
Lestat, uma vez que, possuem as mesmas características, pois são ambas insubmissas,
abandonam o lar e vagueiam pelo mundo espalhando a destruição e morte. Se Lilith foi a
primeira mulher, e não Eva, não será ela a mãe de toda a humanidade e de quem herdámos
a tendência inata para o mal que transforma o nosso mundo interior e exterior num lugar
caótico?
109
Anne Rice, The Vampire Lestat, p. 233
110
Brian J. Frost, The Monster with a Thousand Faces: Guises of the Vampire in Myth and Literature,
p. 5
51
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
O nosso planeta é apelidado por Lestat de Savage Garden mas Marius vai ainda mais
longe, quando conclui: “ The mind of each man is a Savage Garden”111 Coincidente com
esta opinião, está a composição poética de Emily Dickinson, Ghosts, que reflecte:
“One
need not be a chamber to be haunted,/ One need not be a house; / The brain has corridors
surpassing/ Material place.112 O mundo agreste e hostil e a tendência inata do homem para
o mal são ainda agravados por outro factor mais relevante: a falta de apoio e segurança.
Estes deveriam, primeiramente, ser facultados pela família. Como tal não acontece, o ser
humano vagueia neste Savage Garden incompleto ou mutilado. Como os vampiros, ele está
condenado a uma constante morte na vida e sente a sua instabilidade e dúvida traduzida nas
palavras de Marius: “We have no place”113 O lugar de cada um no mundo, o seu percurso
e as suas acções remetem sempre para a família porque esta é a sua base. Tal como a um
edifício, a base sustenta-nos. Se esta for débil, a instabilidade pode dar origem a um
desmoronamento, parcial ou até total. Anne Rice demonstra, através das suas personagens,
a importância do papel da família e dos efeitos negativos que esta pode provocar.
Sendo as obras Interview with the Vampire e The Vampire Lestat pertencentes ao género
gótico, a ambiguidade já referida anteriormente manifesta-se também em termos dos laços
ou estruturas familiares apresentadas. Logo desde o início da obra The Vampire Lestat, é
notável a forte ligação entre Lestat e a sua mãe. Este vínculo vai para além do dizível e do
convencional, uma vez que unidos pela consanguinidade, Gabrielle gerou Lestat dando-lhe
uma vida mortal de receios, decepções e angústias que soube resolver. Prestes a morrer, é
Lestat que ao assumir o papel de progenitor, oferece-lhe a vida imortal, propondo-se guiá-la
e ensinando-lhe tudo o que sabe. Porém estes ensinamentos foram escassos, cedo se
revelaram insuficientes, tendo o resultado, sido fatalmente decepcionante: “She had
become a pure predator”.114 Esta inversão de papéis está também patente nas figuras de
Akasha e Enkil, uma vez que Marius se refere aos pais de todos os vampiros como Those
who must be kept. Subentende-se assim que os filhos, The Children of Darkness, são
responsáveis por amar e guiar os seus criadores.
Porém, revela-se infrutífera ou até nula a orientação de Lestat, tanto em relação a Gabrielle
como em relação aos seus outros “filhos”: Louis e Claudia. Não é possível transmitir
111
112
113
114
Anne Rice, The Vampire Lestat, p. 465
Emily Dickinson., Selected Poems, p. 32
Anne Rice, The Vampire Lestat, p. 465
Ibidem p. 165
52
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
estabilidade e equilíbrio quando o caos interior triunfa. Nestas obras de Anne Rice,
Interview with the Vampire e The Vampire Lestat vemos que todas as personagens que
assumem um papel de criador ou progenitor não são bem sucedidas nesta função. Contudo,
não podemos atribuir a falha ou frustração das personagens (e do ser humano) apenas à
incapacidade da família no cumprimento do seu papel orientador já que, mesmo que esta
seja eficiente, o indivíduo tende a seguir o caminho do mal.
Lestat e Louis assistem desiludidos à desobediência e declínio dos seres que criaram, tal
como sucede a Victor Frankenstein que, ao criar um monstro que se rebela contra os seus
ensinamentos e cujas atitudes danosas não consegue evitar ou reparar, confessa:
No human being could ever passed a happier childhood than myself. My parents were
possessed by the very spirit of kindness and indulgence. We felt that they were not the tyrants to
rule our lot according to their caprice, but the agents and creators of all many delights which we
enjoyed. When I mingled with other families I distinctly discerned how peculiarly fortunate my
lot was, and gratitude assisted the development of filial love115.
Gabrielle enquanto mortal, apesar da empatia e intimidade com este, não consegue libertarse da força opressora do seu marido que os devasta moralmente, a ambos. Esta libertação só
irá ocorrer com a imortalidade. Mas essa vai significar também um desprendimento e um
acentuar da sua maldade. Gabrielle acaba por mais uma vez abandonar o filho quando, na
euforia da sua nova forma, parte e o deixa na solidão.
Lestat também erra quando cria Louis porque apenas procura alguém com quem dividir a
sua dor e angústia. Este erro torna-se ainda mais grave quando ambos dão a vida eterna a
Claudia, que tal como Gabrielle, usa a sua condição feminina, sinónimo de fragilidade e
doçura para atrair as sua vítimas. Louis, apesar de ser apresentado com características mais
humanas, vive num eterna condenação de si próprio, submerso em dúvida, culpa e remorso,
acabando também por cometer um grande erro quando torna Madeleine um ser semelhante
uma vez que esta via em Claudia, “A child who can’t die”116 e a menina, cuja mãe tinha
morrido, tentava encontrar em Madeleine um amparo, uma mãe eterna que decerto nunca a
iria abandonar. Claro que conceber um filho (seja da forma mais convencional ou não)
como um analgésico ou cura para feridas do passado nunca poderia resultar e ambas
perecem.
115
116
Mary Shelley, Frankenstein, p. 36
Anne Rice, Interview with the Vampire, p. 289
53
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Este sentimento de dor causado por algum acontecimento familiar passado e que se tenta
ultrapassar da forma menos adequada no seio da família é pois muito recorrente no género
gótico e é sem dúvida uma transposição do mundo real. Embora tais actos possam ser
profundamente inconscientes, e tenham uma função sem dúvida catárquica, estão
destinados a falhar. Curiosamente, um exemplo em que a arte e a literatura comungam no
seu carácter de libertação de desejo irracional, inconsciente e reprimido é todo o trabalho
do pintor catalão. Segundo o autor Gilles Néret, “Dali procurou abrir a porta ao irracional.
Não acolher senão as imagens que marcam, sem procurar saber porquê.”117 O pintor, tal
como Rice, viveu uma experiência intimamente relacionada com a morte, o sofrimento e a
catarse, pois o irmão do pintor morreu de meningite, ainda criança três anos antes de ele
nascer. Os pais, desesperados, só encontraram alguma paz aquando do nascimento do
pintor, que por isso foi chamado de “Salvador”. Incompreendido pelo pai, que rejeitava a
sua dedicação às artes (encontramos o mesmo género de conflito entre Lestat e o seu pai),
desenvolveu um amor enigmático e obsessivo pela mãe, chegando mesmo a representá-lo
na obra O Enigma do Desejo – Minha mãe, minha mãe, minha mãe, 1929 (figura 18).
Note-se que nesta obra de arte surge imponente uma espécie de monumento ruinoso e
irregular que, embora pouco definido, parece ser a figura central que se destaca. Por detrás
vislumbra-se apenas um cenário aparentemente calmo e desértico. Áridas, ambíguas e
incompletas são também as relações familiares retratadas nas obras Interview with the
Vampire e The Vampire Lestat. A Salvador Dali foi-lhe suprimido o afecto da mãe que
faleceu. A sua obra representa o desejo de algo que muito cedo lhe foi roubado e que é
expresso como um pedido, um apelo, um chamamento, logo o subtítulo do quadro: Minha
mãe, minha mãe, minha mãe que podemos ler nas cavidades da formação geolítica.
Encontra-se assim neste quadro (tal como nas obras de Anne Rice citadas) uma relação
íntima entre o amor e a morte que é estabelecida pela imagem que parece representar a face
do pintor que jaz numa extremidade. São visíveis formigas que surgem do seu rosto inerte,
o que sugere decomposição e podridão. Podemos ver também a cabeça de leão, a figura de
um velho e parte de um corpo feminino. A respeito destas imagens parece-me muito
pertinente a interpretação de Cathrin Klingsohr-Leroy na sua obra Surrealismo: “ O
agressivo leão e o velho de cabelos brancos parecem ser as duas faces do pai. Ele foge do
117
Gilles Néret, Dali,p. 16
54
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
seu filho, que se agarra a ele com medo, alheio ao punhal que o seu pai lhe crava nas
costas. (…) Quase como algo saído de um conto de fadas, esta figura feminina parece
possuir a perspectiva da libertação, permitindo que a criatura escravizada que está no chão
se liberte das algemas do medo e da obsessão.118 A complexidade, indefinição e
instabilidade do meio familiar em assegurar ao indivíduo uma formação emocional plena
vai conduzi-lo à sua deterioração e degradação moral e até física. Esta decadência física e
moral presente na arte (nomeadamente em correntes como o Expressionismo e o
Surrealismo) e a literatura gótica provocam estados mentais que, embora repelentes são
profundamente atractivos. Na obra Haunted Tales of The Grotesque, no artigo Reflections
on the Grotesque, Joyce Carol Oates afirma relativamente a este assunto: “In a more
technical sense, art that presents “horror” in aesthetic terms is related to Expressionism and
Surrealism in its elevation of interior (and perhaps repressed) states of the soul to exterior
status.”119
As relações familiares em Interview with the Vampire e The Vampire Lestat
partilham a mesma ideia de solidão, de isolamento, de devastação de sentimentos presente
na obra de Dali, como se estes estivessem sujeitos à erosão do tempo e do seu efeito. Essa
espécie de erosão transparece nos remorsos sentidos por Louis pela morte do seu irmão
Paul. Esta culpa vai agir no seu interior da mesma forma que as intempéries do deserto
actuam sobre a figura de O Enigma do Desejo- Minha mãe, minha mãe, minha mãe (1929),
desgastando-o profundamente como podemos confirmar: “ I could not forgive myself. I felt
responsible for his death”120 Depreende-se também que os seres, quando partem, são
insubstituíveis e, consequentemente, quando estes se ausentam para sempre ficamos sós,
entre ruínas, daí o nosso deserto interior. Lestat cria Louis, porque vê a imagem de
Nicholas, pois segundo ele: “Shortly after reaching the colony, I fell fatally in love with
Louis, a young dark-haired bourgeois planter, graceful of speech and fastidious of manner,
who seemed in his cynicism and self-destructiveness the very twin of Nicholas”.121O
resultado foi decepcionante, quer para um quer para o outro.
De forma semelhante, também Madeleine tenta encontrar em Claudia a filha que
perdeu e esta anseia um afecto maternal, uma vez que pressente que Louis está prestes a
118
119
120
121
Cathrin Klingsohr-Leroy,. Surrealismo, p. 36
Joyce Carol Oates, Haunted, Tales of the Grotesque, p. 307
Anne Rice, Interview with the Vampire, p. 12
Anne Rice. The Vampire Lestat, p. 497
55
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
abandoná-la para acompanhar Armand. Mas aquela que parecia ser a solução mais sensata
revela-se desastrosa. Estes são apenas exemplos de como as obras de Anne Rice tentam
decifrar e valorizar o sentido da humanidade e enfatizam a importância do ser humano,
uma vez que ele é único, logo insubstituível. A própria autora, escassos anos antes da
criação das obras, tendo perdido a mãe e a filha e após se afundar no álcool, entendeu que
a forma de ultrapassar a sua dor não seria procurar quem substitua os seres que perdeu,
mas sim uma forma de catarse que a liberte da dor resultante da sua perda. Assim, para se
libertar do seu trauma, compôs a personagem Louis, como explicou Linda Badly em
Writing Horror and the Body: The fiction of Stephen King, Clive Barker, and Anne Rice:
“The vampire Louis provided a mask for articulating the complex experience of growing
up in New Orleans and the deaths of her mother (from alcoholism) and five-year-old
daughter, Rice told Katherine Ramsland. As Louis, she was able to touch painful realities.
Through Louis eyes, everything became accessible.”122
Depois de nos concentrarmos no percurso errante das personagens que procuram através
da tentativa de transformar o outro num ser diferente, apenas com o intuito de substituir ou
preencher a sua lacuna emocional, Rice apresenta uma alternativa válida que consiste na
reflexão dos nossos actos e na valorização da humanidade como tentativa de libertação e
superação da dor. O que parece ser um acto absolutamente razoável e justificável provoca
acções imprevistas e incontroláveis. Por exemplo, é totalmente compreensível,
enternecedor e comovente a passagem em que, confrontado com a possibilidade da morte
da mãe, Lestat recusa-se a aceitar este facto e evita-o: “ I drove my teeth into her, feeling
her stiffen and gasp, and I felt my mouth grow wide to catch the hot flood when it
came”123. No desespero e agonia de ver partir quem mais ama, podemos condená-lo ou
em vez disso tentar compreender os seus actos?
3.2. A Subversão da Religião
Nas obras de Anne Rice percebemos como é difícil definir a fronteira entre o bem e o mal,
122
Linda Badly, Writing Horror and the Body: The fiction of Stephen King, Clive Barker, and Anne
Rice, p. 107
123
Anne Rice, The Vampire Lestat, p. 157
56
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
o correcto e o incorrecto e comentar acerca da culpa e da justiça. A esse respeito, até a
orientação católica se revela insuficiente. Não obtendo uma resposta acerca da fé, Lestat
ainda na sua forma humana, procura um padre mas também não é esclarecido: “I went to
the village priest and demanded did he really believe the Body of Christ was present on the
altar at the Consecration. And after hearing his stammered answers, and seeing the fear in
his eyes, I went away more desperate than before”124. Em Interview with the Vampire, a
personagem Louis vai ainda mais longe, quando reconhece que: “People who cease to
believe in God or in goodness altogether still believe in the evil. I don’t know why. No, I do
indeed know why. Evil is always possible.”125
Qualquer uma destas personagens procurou apoio e respostas no seio da família e após esta
se ter revelado impotente para o fazer, vão procurar um refúgio numa esfera familiar
universal: a família católica. Também ela falha e é no contexto desse fracasso que Anne
Rice vai apresentar o vampirismo como uma alternativa ao cristianismo. Também a autora,
aquando do seu encontro devastador com a morte da sua mãe e filha, teria procurado alívio
e consolo na doutrina cristã e teria esta sido em vão, infrutífera? David Punter, em A
Companion to the Gothic, é muito esclarecedor: “For Rice’s characters, vampirism is an
alternative religion in a world which Christianity has disappointed. Theirs is a
contemporary response to the emptying of sacred values and beliefs”.126
Esta ideia da incapacidade da igreja em responder à ansiedade dos que a ela recorrem, não
é original em Rice. Torna-se, pois, pertinente fazer uma breve referência a duas obras que
julgo fundamentais, que são The Castle of Otranto, de Horace Walpole e Dracula, de Bram
Stoker. Na primeira, após a morte acidental de Conrad, Manfred, seu pai, decide casar com
Isabella que, repudiando profundamente a ideia, refugia-se na igreja e implora por auxílio:
“She addressed herself to every saint in heaven, and inwardly implored their assistence.”127
Este apelo é infrutífero porque, apesar de Manfred não ter sido bem sucedido nos seus
intentos, tal é fruto da recusa do Frade Jerome em matar Theodore, pois reconhece-o como
seu filho. É importante salientar aqui dois aspectos fundamentais: a salvação de Isabella
não se realizou mediante auxílio divino e, apesar de Jerome não ter concretizado os seus
intentos assassinos, o facto de ser um membro da igreja não o impediu de ser um
124
125
126
127
Ibidem, p. 57
Anne Rice, Interview with the Vampire, p. 16
David Punter, A Companion to the Gothic, p. 172
Horace Walpole, The Castle of Otranto. p. 37
57
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
instrumento do mal.
Em Dracula de Bram Stoker, encontramos inúmeros apelos de várias personagens ao poder
divino. É, no entanto no capítulo III, Jonathan Harker's Journal, que merecem especial
atenção as desesperadas, embora sensatas, palavras de Jonathan aquando se sentiu
prisioneiro no imponente castelo do conde Dracula : “ Bless that good, good woman who
hung the crucifix round my neck! For it is a confort to me whenever I touch it. It is odd that
a thing which I have been taught to regard with disfavour and as idolatrous should in a time
of loneliness and trouble be of help. It is that there is something in the essence of the thing
itself, or that it is a medium, a tangible help, in conveying memories of sympathy and
comfort?”128 Creio que a resposta está implícita ao longo da obra, pois embora Jonathan e
as outras personagens implorassem pela ajuda de Deus, Lucy morreu e os efeitos do mal
materializado na obra pelo conde Dracula, propagaram-se.
Estas duas obras comungam com Interview with the Vampire e The Vampire Lestat no
facto de que todas elas reforçam a ideia de que o mal é inato e acaba sempre por prevalecer
porque a família e, de um modo mais geral, a sociedade, tem um papel impotente e vazio na
orientação do indivíduos. Os sentimentos religiosos não são de verdadeira fé e devoção,
mas, tal como acontece em The Castle of Otranto e Dracula, são o resultado das ansiedades
e frustações pessoais das personagens. A este respeito, Edward J. Ingebretsen em Maps of
Heaven, Maps of Hell: Religious Terror as Memory from the Puritans to Stephen King, é
muito claro: “From 1630 till the present, American religious sentiment has been
compounded partly of personal anxieties, civic sensibilities and by pragmatic social
needs.”129 Assistimos em The Vampire Lestat à intenção de Lestat em ingressar numa ordem
religiosa, tendo este desejo sido frustrado pela sua família e foi a partir daí que se verificou
a decadência desta personagem. Se atentarmos nas palavras de Armand em Interview with
the Vampire, entendemos que se o mal existe, este foi igualmente criado por Deus, como
Armand explica a Louis: “(…) if you believe God made Satan, you must realize that all
Satan's power comes from God and that Satan is simply God's child, and that we are God's
children also. There are no children of Satan, really.”130
Tendo em conta de que os valores relativos à família, biológica ou cristã, estão decadentes
128
Bram Stoker, Dracula, p. 40
129
Edward J. Ingebretsen, Maps of Heaven, Maps of Hell: Religious Terror as Memory from the
Puritans to Stephen King, p. 193
130
Anne Rice, Interview with the Vampire, p.253
58
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
ou simplesmente não existem, não me parece pertinente considerar a culpa de Lestat como
tal. O comentário de Frederich Nietzsche em A Genealogia da Moral está totalmente de
acordo com o comportamento desta personagem e o de Louis: “ O sentir-se alguém culpado
e pecador, não prova que na realidade o esteja, como sentir-se alguém bem não prova que
na realidade esteja bem. Recordem-se os famosos casos de bruxaria; naquela época os
juízes mais humanos acreditavam que havia culpabilidade; as bruxas também acreditavam;
contudo, a culpabilidade não existia”.131 Penso que, do mesmo modo, a culpabilidade
também não existisse nos actos de Lestat, embora as consequências destes tenham sido
nefastas, as intenções não foram malévolas. Qualquer Deus em qualquer religião, pode de
certa forma ser considerado um tirano, pois estabelece com o crente uma relação de
senhor/escravo. Assim essa relação nunca poderia ser dócil, como comenta S.T. Joshi em
Atheism: A Reader: “Religion does not teach self-reliance, independence, manliness,
courage, self-defence. Religion makes God a master and man his serf. The master cannot
not be great enough to make slavery sweet.”132
Esta idea enquadra-se nas obras de Rice se atentarmos nas personagens que poderiam ser
comparadas com Deus, ou seja, Lestat e Louis, pois têm poder sobre a vida e a morte.
Apesar da culpa destas personagens ser muito discutível, como foi referido anteriormente,
vão, como qualquer Deus em qualquer religião, dominar e infligir sofrimento e
dependência aos seres que criam. Assim, tal como as personagens de Rice, qualquer
entidade divina e a relação que estabelece com os seres criados, é marcada pela
ambiguidade e pela fuga ao que é convencionalmente estabelecido. A este respeito, Oscar
Wilde em The Soul of Man under Socialism, comenta: “Jesus knows this. He rejected the
claims of family life, although they existed in his day and community in a very marked
form. Who is my mother? Who are my brothers? he said, when he was told that they wished
to speak to him. When one of his followers asked leave to go and bury his father, Let the
dead bury the dead, was his terrible answer.”133 O nascimento e a morte de alguém ligado
a nós (por laços de sangue ou não) significa também o despontar e o cessar de
manifestações da nossa personalidade até então ocultas ou adormecidas.
Mais ainda, se atentarmos na figura de Jesus Cristo e reflectirmos sobre o seu renascimento
131
132
133
Frederich.Nietzsche, A Genealogia da Moral, p. 91
S. T. Joshi, Atheism: A Reader, p. 127
Oscar Wilde, The Complete Works of Oscar Wilde, p. 358
59
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
da morte, tal como o vampiro, compreendemos melhor as intenções de Anne Rice nestas
obras. É imperativo, para o ser humano, viver com tais crenças espirituais. Nicolas assim o
afirma em The Vampire Lestat: “ But can men live without these beliefs? Nicolas asked
almost sadly. Can children face the world without them?”134 Nesta passagem, Nicolas e
Lestat recordam a ida ao sítio onde bruxas foram executadas na fogueira. Enquanto que a
mãe de Lestat lhe explicou que estas tinham sido vítimas da superstição, a mãe de Nicolas
mostra-se satisfeita, uma vez que, segundo a fé católica elas eram responsáveis por danos e
mortes. Podemos perceber a injustiça cometida em nome da religião e o efeito que tal teve
na mente de Lestat, ainda criança: “ No wonder I had screamed and screamed”135
Assim, Cristo voltou do mundo dos mortos (tal como o vampiro) para nos salvar ou
condenar em seu nome? Será válida a imposição da religião ao indivíduo praticamente
desde que este nasce se a fronteira entre o bem e o mal se encontra frequentemente
esbatida, impossível de delinear? Na obra de Rice percebe-se como são vazios os
ensinamentos religiosos, já que são desprovidos de verdade e existindo uma cumplicidade
ou conivência entre a igreja cuja doutrina é falaciosa e a família porque esta promove e
fomenta tais enganos. Chegado à idade adulta, o indivíduo tal como as personagens de
Rice, é confrontado com a terrível verdade de que o seu lado obscuro será triunfante e de
forma mais ou menos acentuada o irá dominar. A mesma ideia de prevalência do mal sobre
o bem, está bem patente na obra de Hans Ruedi Giger intitulada Satan, (figura 19). Nesta
imagem vemos uma figura demoníaca segurando na mão Cristo pregado na cruz como se
fosse uma fisga e estivesse prestes a lançar algo numa espécie de vingança ou brincadeira
infantil. Nesta negra figura de Giger podemos ver os vampiros de Rice e o ser humano em
geral que revela e deixa imperar o seu lado mais tenebroso e lança contra outros o fruto da
sua maldade perante a impotência de um Deus derrotado e inútil. Sendo o mal muito mais
poderoso porque reside em nós, é inútil apelar ao auxílio divino, como comentou o
simbolista francês Marcel Schwob em A Cruzada das Crianças: “ Deus não se manifesta.
Assistiu Ele o seu filho no Jardim das Oliveiras? Não o abandonou Ele na sua angústia
suprema? Oh, que loucura pueril é invocar o seu socorro! Todo o mal e todas as provações
residem apenas em nós!”136
134
135
136
Anne Rice, The Vampire Lestat, p. 47
Ibidem, p. 48
Marcel Schwob, A Cruzada das Crianças, p. 64
60
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
3.3. Família: Ambiguidade e Inovação
Note-se que, quando Lestat vampiriza a sua mãe, esta passa não só a ser sua “filha”, no
sentido de ser uma criação sua, como os laços mãe-filho de antes se esbatem, o que vai
contribuir para acentuar a ambiguidade desta relação. O própria passagem em que se dá a
morte física e transformação da mãe de Lestat, sugere um clima erótico e uma amálgama de
emoções: “And jetting up in to the current came the thirst, not obliterating but heating
every concept of her, until she was flesh and blood and mother and lover and all things
beneath the cruel pressure of my fingers and lips, everything I have ever desired”137. A
este respeito, Brian J. Frost na sua obra The monster with a thousand faces: Guises of the
Vampire in Myth and Literature, esclarece: “Rice’s use of the vampire paradigm enables her
to break taboos and to tap in to primal emotions”138.
É a partir do momento em que Lestat concede a vida eterna à mãe que as suas emoções
mais primárias e reprimidas surgem à superfície. Ele deixa de a ver como sua mãe e passa a
vê-la como uma mulher bela, uma deusa, o amor da sua vida. Por isso deixa de a chamar
mãe e passa a dirigir-se a ela como Gabrielle. Isto torna-se muito explícito quando afirma:
“The only woman I had ever loved”139 ou “I went to kiss her again and she didn’t stop me.
We were lovers kissing”140 Encontramos assim indícios de uma relação marcada pelo
incesto, pela sensualidade e pelo desejo.
Estes sentimentos também surgem em Interview with the Vampire na relação entre Louis e
Claudia. Louis assume-se claramente como o criador ou pai de Claudia, a criança vampiro,
uma vez que lhe deu a vida eterna e não só, pois esforça-se por orientá-la, como explica: “
And all this time, I was educating Claudia, whispering in her tiny seashell ear that our
eternal life is useless to us if we did not see the beauty around us, the creation of mortals
137
138
156
139
140
Anne Rice, The Vampire Lestat, p. 157
Brian J. Frost The Monster with Thousand Faces: Guises of the Vampire in Myth and Literature, p.
Anne Rice,The Vampire Lestat, p168
Ibidem, 169
61
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
everywhere”141. Apesar de paternal, a relação entre Claudia e Louis ultrapassava estes
limites: “ Father and Daughter. Lover and Lover”142
Como vemos, são determinantes no género gótico estas relações marcadas pelo incesto,
pelo erotismo e consequentemente pela morte como refere Linda Bayer-Berenbaum em The
Gothic Imagination: “Gothic literature is characterized by na intricate interplay between
eros and thanatos, to which the confrontation with pain serves as catalyst”143 Este
confronto pode ser moral, como acontece em Interview with the Vampire e The Vampire
Lestat, ou mesmo físico cujo exemplo podemos encontrar no conto de Edgar Allan Poe,
The Fall of the House of Usher. Usher ama a irmã tão profundamente que a morte desta
representa também o falecimento da sua sanidade mental mas ao mesmo tempo movido
pela culpa de um passado incestuoso como explica o narrador: “I had learned, too, the very
remarkable fact, that the stem of the Usher race, all time honoured as it was, had put forth,
at no period, any enduring branch; in other words, that the entire family lay in the direct
line of descent, and had always, with very trifling and very temporary variation, so lain”144
Será pela sugestão implícita no conto desta relação incestuosa que Usher receia que
Madeleine se levante da sepultura como acabaria por acontecer, suscitando assim a dúvida:
será que Madeleine foi enterrada viva ou, tal como os vampiros, vive na morte?
Sendo a ambiguidade das relações familiares um tema recorrente no género gótico, não a
devemos julgar e condenar sem antes reflectir que se o ser humano é, por natureza dual e
ambíguo, como será possível definir o moralmente correcto e incorrecto mesmo ao nível
das suas relações familiares? Se Lestat e Gabrielle extinguem os laços mãe-filho e se
passam a ver como amantes e o mesmo acontece com Louis e Claudia, podendo-se concluir
que a nova forma que estes assumem, lhes dá a capacidade de terem outra visão do mundo
e consequentemente daqueles com que partilham os mesmos laços de sangue. O que
sobressai aqui é que, muito mais importante e abrangente do que a esfera familiar, a própria
essência humana é muito mais relevante, porque esta nos atrai ou nos causa repulsa,
independentemente da ligação que tenhamos com esse indivíduo. Está este pensamento
implícito no comentário de Lestat, que depois de ter dado a vida eterna à mãe, reflecte:“I
141
142
143
144
Anne Rice. Interview with the Vampire, p. 111
Ibidem, p. 112
Linda Bayer- Berenbaum, The Gothic Imagination, p. 31
Edgar Allan Poe Selected Tales, p. 78
62
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
think I said Mother, in that instant like some stupid mortal, and I closed my eyes.145
Seria assim absurdo Lestat chamar “mãe” a Gabrielle porque ele, através das suas
vivências e do seu percurso entende finalmente que não há nem mãe nem filho, nem criador
nem cria, mas uma transformação ou metamorfose que se opera no interior dos dois. Uma
mãe renasce com o nascimento de cada filho porque este acontecimento vai estar presente
de forma indelével para sempre através dos laços marcados pela solidão e pela dor que
estabelece com o recém-nascido, logo nos primeiros instantes. A confissão de Gabrielle em
The Vampire Lestat vai demonstrar não só a empatia entre esta personagem e Lestat, mas
também reforçar a ideia anteriormente apresentada: “ It was the first time I bore a child, she
said, I was in agony for twelve hours, and I felt trapped in the pain, knowing the only
release was the birth or my own death. When it was over, I had your brother Augustin in
my arms, but I didn’t want anyone else near me.”146
Em semelhança às obras de Rice em questão, encontramos também em Frankenstein de
Mary Shelley um exemplo de como os laços familiares que unem as personagens não são
algo estritamente definido, uma vez que Victor, apesar de não ser ligado a Elizabeth pelo
factor sanguíneo, é-o emocionalmente mas tal não impede de assumir a sua paixão por ela:
And when on the morrow, she presented Elizabeth to me as her promised gift, I,
childish seriousness, interpreted her words literally and Elizabeth as mine – mine to protect, love,
and cherish. All praises bestowed on her received as made to a possession of my own. We called
each other familiarly by the name of cousin. No word, no expression could body put forth the
kind of relation in which she stood to me – my more than sister, since till death she was to be
mine only.147
Por isso, o acto de matar é mais desculpável fazê-lo se não conhecermos as vítimas. Talvez
por esse motivo, Claudia seja descrita como a personagem mais cruel. Enquanto que Louis
se alimenta de estranhos, Claudia manifesta a sua preferência pelos membros da mesma
família, principalmente por mulheres e crianças. É curiosa a sua obsessão se considerarmos
o percurso desta personagem desde que nos é apresentada na trama. Ao perder a mãe, vê-se
“adoptada” por Louis e Lestat, que lhe dão uma nova vida sendo através dessa nova vida
que ela vai infligir aos mortais aquilo que vivenciou enquanto mortal: a destruição do meio
145
146
147
Anne Rice, Interview with the Vampire, 159
Anne Rice, The Vampire Lestat, p. 37
Mary Shelley,Frankenstein, p. 34
63
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
familiar: “But Claudia had a family there which she took one by one”148. Claudia é uma
vítima, uma criança cuja inocência foi roubada, tal como aqueles que sofreram abusos
sexuais ou maus tratos e mais tarde manifestaram tendências para se tornarem igualmente
abusadores. Também Claudia comete o crime do qual foi vítima. É certo que foi um erro de
Louis e Lestat terem tornado Claudia uma criança vampiro. Este facto foi também criticado
por Armand: (A child who can never grow, never be self-sufficient”149 ) e pela própria
Claudia: “To give me immortality in this hopeless guise, this helpless form!”150
Claudia ficaria para sempre dependente devido ao facto de ser uma criança, mas Anne Rice
demonstra que por vezes são os filhos o pilar que faculta a sustento moral e económico.
Louis, em Interview with the Vampire, sendo órfão de pai, torna-se o responsável pela mãe
e a irmã como explica: “ My father was dead then, and I was the head of the family.”151
Situação semelhante verifica-se também com Lestat: “ I alone provided the food for us.
And for some strange reason this gave me satisfaction. I don’t know why, but I liked to sit
at the table and reflect that everyone there was eating what I had provided”.152
O facto de os filhos serem a fonte de segurança económica ou emocional constitui mais
uma inversão à estrutura familiar convencional. Em Interview with the Vampire, Anne Rice
vai apresentar-nos outro exemplo em que esta segurança é posta em causa através de um
núcleo familiar secundário, mas não menos importante, que é a família Freniere na qual o
comando da família é assumido por uma mulher, o que no século XVIII era no mínimo
invulgar. A família Freniere possuía uma plantação vizinha à de Louis e espelha mais uma
vez uma imagem de decadência ou ruptura familiar neste caso provocada pelo infortúnio e
pela maldade de Lestat. No entanto, em The Vampire Lestat encontramos uma versão
diferente: “The young Freniere, for example, a planter whom Louis romanticizes hopelessly
in his text, was in fact a wanton killer and a cheater at cards on the verge of signing over his
family’s plantation for debt when I struck him down.”153
O jovem Freniere envolveu-se num duelo e, apesar de o ter vencido, perde a sua vida nas
mãos de Lestat. Seria esta morte um castigo justiceiro? Da família restaram apenas cinco
irmãs. Babette, inspirada por Louis, assume o controlo da plantação e consequentemente
148
149
150
151
152
153
Anne Rice, Interview with the Vampire p. 115
Ibidem, p. 273
Ibidem, p. 283
Ibidem, p. 8
Anne Rice, The Vampire Lestat, p. 35
Ibidem, p. 499
64
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
sofre exclusão social e é ostracizada por uma comunidade que não aceitava passivamente a
intromissão de uma mulher nos negócios. Louis dá-lhe um conselho muito importante:
“Stop at nothing until you have the answers”154. Este é o lema que ele próprio seguiu. O
vampiro sente uma empatia muito forte por Babette, ao considerá-la um ser humano
completo que partilha com ele uma característica fundamental, pois tendo uma
personalidade muito forte, o seu destino é a marginalização e a solidão: “like all strong
people, she suffered always a measure of loneliness; she was a marginal outsider”.155
Embora mais tarde Babette seja aceite na vida social e case, morre jovem e louca. Loucura
que pode ter sido causada pelo seu encontro com Louis e Lestat. Ao deparar-se com essas
duas figuras (o que pode também metaforicamente significar um confronto com uma
realidade que não está ao alcance de todos) e com o efeito nefasto que elas causaram,
parece pertinente reflectir e tentar responder à questão colocada por Louis A. Sass em
Madness and Modernism: “What if madness, in at least some of its forms were to derive
from a heightening rather than a dimming of conscious awareness, and an alienation not
from reason but from the emotions, instincts and the body?156
Independentemente do contexto em que tal se verifica, Lestat destrói o núcleo familiar dos
Freniere, composto apenas pelos irmãos órfãos. Lestat, cuja relação com os irmãos nunca
foi muito boa, mantém também um relacionamento com o pai pautado pelos constantes
conflitos. São todavia contraditórias as referências ao seu ambiente familiar. Segundo a
narração de Louis, em Interview with the Vampire, é notória uma relação entre Lestat e o
pai minada por inúmeros conflitos e ressentimentos de ambas as partes. A frieza e desprezo
com que Lestat trata o pai doente é perturbante e contribui para que este vampiro seja
descrito como um perfeito vilão que não lhe restou o mínimo vestígio de humanidade. No
entanto, na obra The Vampire Lestat, esta personagem não desmente a narração de Louis a
este respeito (como, por exemplo, tinha feito em relação à família Freniere), mas antes
descreve a crueldade com que o pai e os irmãos o tratavam. Poder-se-á dizer que está
implícito que esta personagem masculina assume a hostilidade com que tratou o pai,
encarando-a com naturalidade (já que nem se refere a ela), mas tenta antes justificá-la
através do comovente relato da sua infância, do desprezo, indiferença e desamor com que
154
155
156
Anne Rice, Interview with the Vampire p. 32
Ibidem, p. 72
Louis A. Sass, Madness and Modernism, p. 32
65
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
cresceu.
De facto, Lestat também contradiz Louis, quando este último afirma que Lestat o criou
movido por interesses económicos, e concedendo uma nova vida a Claudia, não por
necessidade de formar uma família, mas com o intuito de o manipular emocionalmente para
que este se sinta também responsável pela criança e não os abandone. No entanto, Lestat é
muito elucidativo quando afirma: “Shortly after reaching the colony, I fell fatally in love
with Louis, a young dark-haired bourgeois planter, graceful of speech and fastidious of
manner, who seemed in his cynicism and self-destructiveness the very twin of
Nicholas”.157
Claudia, ao ser orfã, é uma vítima bastante fácil e sendo “adoptada” por Louis e Lestat,
acaba por se rebelar e trair o último pondo em causa a fraternidade e união familiar
tradicionais. Segundo Linda Badly em Writing Horror and the Body: The Fiction of
Stephen King, Clive Barker and Anne Rice: “Together Lestat, Louis and Claudia compose a
parody to the nuclear family”.158 Embora este núcleo familiar apresente características
algo peculiares, é certo que a pequena Claudia adquire alguns traços da personalidade de
ambos os progenitores, como acontece com os filhos biológicos. Ela e Louis mantêm um
entendimento e cumplicidade que é evidenciada em várias passagens da obra mas é de
Lestat que ela herda a superficialidade, o gosto pelo luxo e por matar.
Tal como Claudia e Lestat constatamos em todas as personagens, a satisfação e fascínio por
matar, mas estas sensações depressa são substituídas pelo desalento e melancolia. Apesar
dos seus actos, nada lhes provoca já novas emoções. Os vampiros nada esperam.
Encontram a apatia e o vazio. Vivem na solidão, porque a família é uma orientação
desonrientada, uma companhia solitária e, ao desfazerem as suas ilusões, finalmente
descobrem que estão completamente sós. Os vampiros de Rice podem ser comparados à
família retratada na obra de Schiele, A Família, 1918 (figura 20). Nela estão representados
um homem e uma mulher nus cuja forma como estão posicionados remete para uma ideia
que está muito enraizada na nossa sociedade: o homem é o chefe ou a cabeça da família.
Em baixo podemos ver uma criança que, não estando nua como os progenitores, nos pode
remeter para a ideia de sacrifício destes. Os pais que se abstêm de bens ou conforto
157
Anne Rice, The Vampire Lestat, p. 497
158
Linda Badly, Writing Horror and the Body: The fiction of Stephen King, Clive Barker and Anne
Rice. p. 110
66
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
pessoais em prol dos filhos é uma situação comum e em The Vampire Lestat, damo-nos
conta disto quando Gabrielle vende as jóias para proporcionar a Lestat uma boa educação.
Embora esse propósito falhe, não parece ser fundamental para a realização plena do
indivíduo porque mais tarde Lestat torna-se herdeiro de uma vasta fortuna, mas o seu
interior mantém-se destroçado, em ruínas. Louis e Babette, possuidores de uma plantação,
fracassam também, o que sugere que há necessidades muito além daquelas que podem ser
mitigadas com o poder económico.
Chegamos também à conclusão que, ainda que a família se encontre estritamente
hierarquizada, como transparece na pintura de Schiele e nas unidades familiares retratadas
nas obras de Anne Rice, a frustração do seu papel é evidente. Esta organização hierárquica
contrasta com o cenário, que envolve a família de Schiele, onde se salienta a palidez das
cores, a ambiguidade, a indefinição e o caos. Equivalente a este está também o Savage
Garden que Lestat várias vezes mencionou. Tendo em conta o meio envolvente e a postura
que apresentam, tanto as personagens de Rice como as representadas na obra de arte
anteriormente citada, transparece uma alienação, uma apatia melancólica, o que é uma das
emoções mais nocivas para o ser humano. A esse respeito encontramos em Frankenstein de
Mary Shelley a reflexão de Victor Frankenstein: “Nothing is more painful to the human
mind than, after the feelings have been worked up by a quick succession of events, the dead
calmness of inaction and certainty which follows and deprives the soul both of hope and
fear.”159
Crucial também para uma melhor percepção da família, segundo Rice, será constatar que
as personagens ligadas por laços familiares estão em constante oposição. Não há
compreensão e empatia no sentido pleno do termo. Os núcleos compostos por Lestat e
Gabrielle, e por Lestat, Louis e Claudia são irremediavelmente incompletos uma vez que,
em termos morais e de acção, há um visível contraste entre eles, pois as personagens não
estão emocionalmente coesas. Tal como na pintura de Schiele em que há uma divergência
no olhar das personagens, verificamos que a união familiar é ilusória. Esta ilusão (ou
desilusão?) aliada a outros factores que já foram aqui comentados propicia uma alienação
do indivíduo à sua própria natureza: a humanidade. Na ficção gótica de Rice, essa alienação
surge representada pela figura do vampiro. Pertinente seria questionar: e no mundo actual,
159
Mary Shelley, Frankenstein, p. 86
67
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
que forma assumirá esta alienação na nossa sociedade? Sob que nomes se esconde? Mais
uma vez, a ambiguidade e a prevalência do lado negro do indivíduo impedirão uma
resposta peremptória. Já outrora Sócrates se questionou: “E os que nascem contra a sua
natureza, com forma de monstros, que nome se há-de dar?”160
CONCLUSÃO
Estando a nossa sociedade em constante mudança, torna-se muito difícil apresentar uma
definição completa e objectiva da palavra família. Nas obras estudadas, bem como noutras
que foram mencionadas, encontrámos o conceito de família subvertido e essa subversão é
uma das marcas do Gótico. As obras de Faulkner, Sound and The Fury e As I Lay Dying são
exemplos de como o relacionamento familiar entre os membros das famílias Burden e
Compson é pautado pelo conflito, desconfiança e traição, enquanto que em Light in August,
este é completamente nulo e como tal as personagens deparam-se com inseguranças
interiores em relação à sua própria identidade e espaço na comunidade. A este respeito, Fred
Botting, na sua obra Limits of Horror – Technology, Bodies, Gothic, é muito claro: “There
are few families in Gothic fiction. (…) Parentless children are left to roam the wild, gloomy
landscapes without protection or property and often without the secure sense of themselves
that comes with proper name and position”.161
Ao considerarmos nas personagens das obras estudadas, verificamos que todas são
entidades isoladas apesar de algumas delas se encontrarem inseridas numa família ou
comunidade. É o caso dos irmãos das famílias Burden e Compson, que vêem nos pais a
decadência de valores morais, inércia e a apatia e estas características negativas serão
condicionantes da sua forma de agir e trarão consequências. Tanto a morte de Addie como a
promiscuidade e abandono do lar por parte de Caddy, vão implicar aos restantes membros
da família resultados semelhantes: o detrimento da estabilidade emocional das personagens
e a ruptura com o mundo exterior, o que vai contribuir ainda mais para a sua ansiedade e
160
161
Platão, Crátilo, p.36
Fred Botting, Limits of Horror- Technology, Bodies, Gothic, p. 33, 34
68
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
isolamento, como afirma Irving Malin em New American Gothic: “The characters are
isolated; they do not and cannot belong to the outside world. This lack of communication
creates anxiety. They do not know where to turn for assistence and confort. (…) Their
isolation is complete.”162
Este isolamento e solidão são bem representados por Anne Rice nas suas obras, nas quais
duas figuras fundamentais, Lestat de Lioncourt e Louis que, embora em oposição de
carácter e acção, partilham um factor que se tornou determinante nas suas personalidades: a
desagregação da família. Em relação a Lestat, as diferenças irreconciliáveis com o pai e os
irmãos foram determinantes para o abandono do lar por parte da personagem e, ao tentar
encontrar o sentido da sua existência no meio artístico, cruza-se com Magnus, que ao
“adoptá-lo”, cede-lhe também uma nova condição, embora mais tarde o abandone,
lançando-se ao fogo. Só assim se pode compreender o temperamento cruel de Lestat, já que
tendo sido rejeitado pelo pai e os irmãos e, mais tarde pela mãe Gabrielle, a quem ele
devotava uma adoração profunda, acaba por ser também deixado sozinho pelo seu “pai” e
criador, Magnus. Podemos assim encontrar algumas semelhanças entre Lestat e Louis (e
entre estas personagens e as apresentadas por Faulkner e Thomas Harris), pois em Interview
with the Vampire, também assistimos ao desmoronamento da estabilidade de Louis Point du
Lac após um acontecimento familiar: a morte de irmão. A partir daí, Louis opta por uma
vida dissoluta e cheia de riscos, o que atrai o vampiro Lestat que o transforma também num
ser da mesma espécie.
À semelhança de Faulkner e de Rice, Thomas Harris vai também, nas suas obras Red
Dragon, The Silence of The Lambs e Hannibal Rising, abordar o efeito de um
acontecimento familiar traumático na acção das personagens, embora nestas obras não haja
conformidade e até se verifique uma certa oposição. Se em Hannibal Rising, o pequeno
Hannibal é vítima de uma situação brutal que lhe destrói o núcleo familiar que, segundo
vários elementos textuais, era equilibrado e feliz, o mesmo não se pode dizer dos serial
killers Francis Dolarhyde e Jame Gumb em Red Dragon e The Silence of the Lambs. Nestas
duas obras, ambas as personagens viveram uma infância muito dolorosa, ignoradas em
orfanatos, negligenciadas e desprezadas por aquelas que os deveriam amar, a avó e a mãe,
respectivamente. Tanto Francis Dolarhyde como Jame Gumb desenvolveram por elas um
162
Irving Malin, New American Gothic, p. 15
69
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
amor obsessivo. Apesar do mal inegável que elas lhes causaram, tiveram muitas
repercursões ao longo das suas vidas, pois ao longo das obras, tanto Francis como Jame
deixaram-se possuir, amalgamaram-se nos traços de carácter daquelas que amavam. Essa
junção foi muito além do plano mental, uma vez que era concretizada cada vez que
matavam e também através do plano físico e concreto, materializado pelo poder da dentição
e pelo fascínio pela pele. Assim, conclui-se que, apesar de a influência familiar da mãe e da
avó serem negativas, é uma tendência natural das personagens referidas (e do ser humano)
amar aqueles que ferem, que maltratam, o que indica que os laços familiares mais directos,
para além de serem fundamentais e insubstituíveis, são também questionáveis. Parece-me
pois, pertinente ilustrar esta situação com uma pergunta colocada por Lord Byron no seu
poema Fare thee Well : “When your father first accents flow/ wilt thou teach her to say “Father! ”/ Though his care she must forego?163
A dificuldade em responder à questão anterior remete-nos para a complexidade das obras
estudadas e da própria vida, o que leva a concluir que esta é muito mais complexa do que
aparenta, sendo abundante em simbologia e indefinições. Tal encontra-se muito bem
representado na obra de Pablo Picasso, A Vida, 1903 ( figura 21) que tem muito em comum
com as obras estudadas pela sua significação e pelo período artístico em que se enquadra, a
chamada fase azul. Esta fase remete-nos não só para a tristeza, a dor e a melancolia, mas
também para o erotismo e o sobrenatural. Nesta obra de Picasso encontramos estes
elementos e, todos eles podem ser relacionados com as obras de Faulkner, Rice e Harris. A
mulher que, descalça, segura o filho nos braços poderia ser qualquer uma das mães
representadas nas obras, na sua solidão e melancolia, olha para o casal abraçado na sua
nudez apática, quase mecânica, sem paixão. Uma relação que demonstra uma frustração da
vida amorosa, como se esta, além da função reprodutiva, fosse desprovida de sentido. Estas
são também as conclusões que se podem retirar das obras estudadas: a incapacidade de
amar, o cuidado desatento da mãe, que segura o filho, mas sempre a olhar noutra direcção
e, acima de tudo, a dor e a solidão, esta é a vida na qual os laços familiares não estão bem
definidos e inserem-se num cenário tão simples, mas que talvez por isso mesmo seja o mais
propício para se enraizar o mal.
Neste sentido, há várias obras que corroboram com toda esta linha de pensamento, para
163
Lord Byron, Selected Poems, p.12
70
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
além de A Vida de Pablo Picasso. Se em Picasso há imagens que ilustram a relação
amorosa, a frustração desta, a maternidade como um acto isolado e depressivo, um estado
apático, em Grant Wood, tudo isto aparece ofuscado, subentendido. Por isso é de uma
importância fulcral a sua obra, American Gothic, 1930 (figura 1) porque nela temos a
imagem da América rural e a indefinição presente nas relações familiares, uma vez que os
rostos das personagens deixam transparecer sentimentos complexos e difíceis de definir.
Embora não se trate de um verdadeiro retrato de família (uma vez que os modelos foram o
dentista e a irmã do pintor), esta obra tornou-se um símbolo da severidade, do sacrifício,
mas também da repressão e do conservadorismo da América. Há aqui um espírito crítico,
uma rigidez, uma frieza e uma nostalgia que comunga com as obras de Faulkner, Harris e
Rice.
Como vimos ao longo dos capítulos, as personagens destes autores movimentam-se num
contexto social e familiar decadente, sem rumo. Em American Gothic, a austeridade das
personagens aliada à imagem central da forquilha alerta-nos para uma mensagem
igualmente insinuada nas obras de Faulkner, Harris e Rice, a da instabilidade de uma
América espiritualmente morta. Tal está representado na rigidez e na austeridade dos rostos
das personagens de Grant Wood, como explica Katherine Hoffman em Concepts of
Identity: Historical and Contemporary Images and Portraits of Self and Family: “There is a
coldness in their faces and in the precise clean lines that dominate the painting that suggests
there is a criticism implicit in the painting, that this man and woman were spiritually dead,
caught in a culture that was loosing its social and economic anchor.”164
A rigidez estende-se também, à habitação que está por trás da imagem do casal.
Sendo a casa (como já foi referido ao longo dos capítulos expostos) a metáfora da mente
humana, esta imagem de Grant Wood sugere o indecifrável, o imperturbável, a aparente
normalidade que esconde o mal mais terrível. Tal sugere o intranquilo dentro da aparente
tranquilidade. A casa que recebe a família e que deveria ser o seu acolhimento deixa de ser
o seu refúgio para se constituir um centro de contaminação, uma vez que é o
prolongamento, em termos físicos, da família.
Em suma, nas obras estudadas podemos verificar que abundam exemplos da
incapacidade da família em proporcionar apoio e estabilidade ao indivíduo, embora esta
164
Katherine Hoffman, Concepts of Identity: Historical and Contemporary Images and Portraits of
Self and Family, p. 120
71
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
continue a desempenhar um papel inegável na sua formação. Então seria oportuno reflectir
acerca da função da literatura gótica e, mais especificamente, do propósito destes autores e
obras. Se expoem e “acordam” o leitor para o conceito de Das Unheimliche segundo Freud,
porque o colocam face a algo familiar, embora banido através da repressão, serão estas
obras e as respectivas representações do conceito de família que povoam a nossa mente
com demónios ou constituirão, devido à sua natureza, uma forma de
exorcismo dos
mesmos? Estas obras constituem uma forma de catarse dos nossos medos reais, daí o seu
fascínio e complexidade, embora tal diferenciação não seja fácil de responder, como
comentou David Punter em A Companion to the Gothic:
Pest, pester, pestilence; is the Gothic, to engage in a little etymological arabesque,
pestifugous, or is it a pestiduct? Does it spread contamination, or might it provide a channel for
the expulsion of contaminating materials? What Gothic perhaps suggests is that such a
differentiation is impossible, that we cannot tell whether the materials of Gothic, however their
currency is handled by writers or other media, will serve to draw the plague of images (which is,
put in another language, the terror of repetition) away from us, or wether the very repetition, the
insoluble dilemma of how to rid ourselves of vampires and monsters of our own making, will
embed this images of unease, of dis-ease, more uncontrollably in the heart.”165
165
David Punter, A Companion to the Gothic, p. 12
72
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
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ANEXOS
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A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 1 – Grant Wood, American Gothic, 1930
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A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 2 – Gustav Klimt, Hope I, 1903
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A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 3- Salvador Dali, Angustia, 1932
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A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 4 – Paula Rego, Untitled, 1998
Figura 5 – Paula Rego, Untitled, 1998
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A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 6- Paula Rego, Untitled, 1998
Figura 7 – Paula Rego, Birth, 1959
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A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 8 – Pablo Picasso, A Mãe e o Filho, 1921
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A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 9 – Schiele, Mãe e dois Filhos, 1917
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A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 10-Arthur Rothstein, 1937
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A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 11 – Max Ernst, The Virgin spanking the Infant Jesus in front of three
witnesses, 1926
Figura 12 – Bruegel, A Parábola dos Cegos, 1568
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A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 13- Goya, O sono da razão produz monstros, (1797)
Figura 14 – Caravaggio, O Sacrifício de Isaac, 1596
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A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 15- Caravaggio, O Sacrifício de Isaac, 1693
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A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 16 – Caravaggio, David segurando a cabeça de Golias, 1605-1606
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A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 17 – H.R. Giger, Landscape VIII, 1973
Figura 18- Salvador Dali, O Enigma do desejo, Minha Mãe, Minha Mãe, Minha
Mãe, 1929
91
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 19 – H. R. Giger, Satan, 1977
92
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 20- Schiele, Mãe e dois Filhos, 1918
93
A Família Gótica na Ficção de William Faulkner, Thomas Harris e Anne Rice
Figura 21- Picasso, A Vida, 1903
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