A Segurança de Voo Baseada no Gerenciamento da Qualidade de

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A Segurança de Voo Baseada no Gerenciamento da Qualidade de
A Segurança de Voo Baseada no Gerenciamento
da Qualidade de Vida e Qualidade de Vida no
Trabalho
Ingrid Rodrigues Athayde – M. Sc.
Hospital Municipal José de Carvalho Florence
Affinitá Medicina Especializada
Selma Leal de Oliveira Ribeiro - D. Sc.
Instituto Nacional para o Desenvolvimento Espacial e Aeronáutico – IDEA
Universidade Estácio de Sá
Instituto Tecnológico da Aeronáutica
Palavras Chave: Qualidade de Vida, Qualidade de Vida no Trabalho, Segurança de Voo, Fatores Humanos.
BIOGRAFIA
Médica Anestesiologista; Especialista em Cuidados ao
Paciente com Dor Crônica pelo Hospital Sírio Libanês;
Especialista em Medicina Aeroespacial pela Universidade da
Força Aérea; Mestre em Engenharia Aeronáutica –ITA;
Médica Credenciada da ANAC (Agência Nacional de
Aviação Civil). [email protected]
Psicóloga; Mestre em Educação; Doutora em Engenharia de
Produção. Atualmente é Diretora Técnica do Instituto
Nacional para o Desenvolvimento Espacial e Aeronáutico IDEA; Docente da Universidade Estácio de Sá, do Curso de
Ciências Aeronáuticas; e, Coordenadora e docente da
disciplina Psicologia em Aviação do Curso de Mestrado
Profissional em Segurança de Aviação e Aeronavegabilidade
Continuada (MP-Safety) do Instituto Tecnológico da
Aeronáutica. [email protected] / [email protected].
RESUMO
Nas últimas décadas, estudos na área de Segurança de Voo
têm recebido destaque especial reunindo esforços
significativos de diferentes campos do conhecimento
humano. Com o intuito de melhor compreender a
participação humana sobre as diferentes facetas que
envolvem o trabalho no meio aeronáutico, abordagens inter e
multidisciplinares têm sido utilizadas.
O objetivo deste artigo é apresentar a contribuição dos
estudos sobre Qualidade de Vida (QV) e Qualidade de Vida
no Trabalho (QVT) relacionando-os com a Segurança de
Voo, com base no Modelo SHELL de estudo dos Fatores
Humanos na Aviação, preconizado pela Organização de
Aviação Civil Internacional (OACI), mostrando a
importância de ações gerenciais que promovam a QV e QVT
e, com isso, contribuam para a segurança de voo.
Esta relação será evidenciada pelos resultados de um estudo
qualitativo exploratório e descritivo, no qual foi solicitado a
um grupo de pilotos da aviação comercial que falassem sobre
questões relacionadas às suas atividades profissionais e que
poderiam deteriorar o seu bem estar psicofísico e o seu
desempenho.
Cinquenta e três pilotos responderam à pesquisa (51,4%). As
respostas, após categorizadas segundo os domínios da QVT,
foram relacionadas aos elementos do Modelo SHELL.
A análise deixou clara a presença de fatores que influenciam
todos os domínios da QVT. No que se refere aos estudos dos
Fatores Humanos, observa-se que esses fatores impactam os
blocos liveware e environment e as interfaces livewareliveware e liveware-environment do Modelo SHELL.
Com isso destaca-se a importância de ações conjuntas que
envolvam as lideranças da empresa, a área de recursos
humanos, a equipe de pilotos e profissionais de saúde com o
intuito de adequar as questões operacionais às necessidades
da organização e do grupo, minimizando os níveis de
estresse, reforçando a motivação e o bem estar destes
indivíduos dentro e fora da empresa, beneficiando, também, a
Segurança de Voo.
INTRODUÇÃO
Desde o início dos experimentos com balões e voos
tripulados no fim do século XVI, o homem se mantém
intrigado com as alterações fisiológicas próprias do ambiente
aeronáutico e com a intensificação das atividades aéreas,
passou a esforçar-se cada vez mais em desvendar as
particularidades fisiológicas e psicológicas inerentes a esta
atividade.
Na era das aeronaves pressurizadas outros aspectos passam a
ocupar o seu lugar, como por exemplo, o fato dos voos se
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tornarem mais longos, mais rápidos e a possibilidade de se
realizarem operações comerciais tais como o transporte de
passageiros.
No passado, se considerava o erro humano como o grande
determinante dos acidentes aéreos atribuindo-se ao piloto
toda a responsabilidade e, sobretudo, a culpa pelo acidente.
Esta ideia começou a ser reformulada com o início dos
estudos sobre os chamados Fatores Humanos. A partir destes
estudos surgiu a tese de que vários aspectos deveriam estar
envolvidos e corroborando para a dinâmica destes erros,
inclusive aqueles relacionados com questões técnicas,
econômicas, sociais e, também, com as organizações
(MOREIRA, 2001).
Melhorias no cockpit foram realizadas, tentando minimizar
os aspectos ergonômicos envolvidos na gênese dos acidentes.
Entretanto, o que não se levou em conta é que o operador
dessas máquinas não pode ser alterado para um melhor
desempenho com o uso de uma nova peça ou software. Ele
tem suas limitações e elas devem ser respeitadas, com a
possibilidade de falha dos “sistemas”.
O ser humano, considerado nos estudos mais recentes de
qualidade de vida e qualidade de vida no trabalho como um
ser biopsicossocial, deve receber uma atenção integral para
que o seu equilíbrio biológico, psicológico, social e
organizacional seja alcançado e ele possa desempenhar as
suas atividades laborais com a maior proficiência possível.
Devido a esta diversidade de aspectos relacionados à saúde
global dos indivíduos e às alterações próprias da profissão, é
aconselhável que as empresas que trabalham com aviação
estejam atentas ao bem estar dos seus empregados,
implementando ações conjuntas que envolvam as lideranças
da empresa, a área de recursos humanos, a equipe de pilotos e
profissionais de saúde com o intuito de adequar as questões
operacionais às necessidades da organização e do grupo.
Com isso procura-se minimizar os níveis de estresse,
reforçando a motivação e o bem estar destes indivíduos
dentro e fora da empresa, beneficiando, também, a Segurança
de Voo, fazendo da promoção à saúde e qualidade de vida no
trabalho um dos pilares que sustentarão o negócio, visando os
objetivos finais: lucro, sucesso e segurança.
Neste sentido, o objetivo deste artigo é apresentar a
contribuição dos estudos sobre Qualidade de Vida (QV) e
Qualidade de Vida no Trabalho (QVT) relacionando-os com
a Segurança de Voo, com base no Modelo SHELL de estudo
dos Fatores Humanos na Aviação, preconizado pela
International Civil Aviation Organization (ICAO),
mostrando a importância de ações gerenciais que promovam
a QV e QVT e, com isso, contribuam para a segurança de
voo.
Para melhor compreender estas relações, a seguir serão
apresentados alguns conceitos relativos à QV e QVT e à
disciplina de Fatores Humanos aplicados à segurança de voo.
QUALIDADE DE VIDA E QUALIDADE DE
VIDA NO TRABALHO
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a
partir de 1998, ter saúde denota uma condição de bem estar
não só do corpo, mas, também, da mente, do espírito e da
qualidade das relações sociais e com o meio ambiente
(WHO, 1998). Este meio ambiente inclui o ambiente laboral.
Neste contexto, pesquisas realizadas denotam que a
qualidade de vida do indivíduo está diretamente relacionada
com a sua qualidade de vida no trabalho, este considerado o
centro da integração social do indivíduo e de sua posição na
sociedade (CASTEL,1998 apud DEJOURS, 2004).
O conceito de qualidade de vida é extremamente amplo.
Muitos autores têm conceituado qualidade vida no decorrer
dos anos e certamente todos estejam certos em suas
definições. Arellano (2008), por exemplo, defende que “a
qualidade de vida é bem estar, no domínio social; saúde, no
domínio da medicina; e nível de satisfação, no domínio
psicológico” (p. 6).
Para se tratar deste assunto, torna-se imperiosa algumas
definições de termos que se confundem no contexto da
Qualidade de Vida. Por bem estar entende-se, “o processo
individual, consciente e autodirigido que envolve a busca do
pleno potencial, tendo um caráter multidimensional e
integrado” (OGATA, 2009). A organização americana
National Wellness Institute determina, de acordo com Arloski
(2007 apud OGATA, 2009, p. 2), que existem seis dimensões
do bem estar, a saber: físico, espiritual, intelectual, social,
emocional e ocupacional; e que é a abordagem integrada
destas diferentes dimensões, por meio de um processo de
aprendizado, que determinará a mudança de comportamento,
a motivação, a satisfação, a felicidade e os melhores
relacionamentos.
O status de saúde “é o nível de saúde de um indivíduo,
grupo ou população avaliada de forma subjetiva pelo
indivíduo ou por meio de medidas mais objetivas como
consultas médicas, e avaliações biométricas e bioquímicas”
(OGATA, 2009, p. 2).
Já a promoção à saúde é o “processo de capacitar as pessoas
e comunidades para intensificar o controle sobre os
determinantes de saúde incrementando a sua qualidade”
(WHO, 1998, p. 1), sendo este incremento, um processo
social, político e de saúde pública.
De acordo com Dehart e Davis (2002), cabe a cada um, a
responsabilidade pela manutenção da própria saúde e bem
estar, sendo a mudança de estilo de vida o principal fator para
se evitar agravos à saúde. Estas mudanças de atitude
individuais, que advém da formação de uma consciência
social, podem, de acordo com Limonge-França (2007),
provocar mudanças expressivas nas práticas empresariais.
Albuquerque e Limonge-França (1998) apontam que
Qualidade de Vida no Trabalho
é um conjunto de ações de uma empresa que
envolve diagnóstico e implantação de
melhorias e inovações gerenciais, tecnológicas
e estruturais dentro e fora do ambiente de
trabalho, visando propiciar condições plenas de
desenvolvimento humano para e durante a
realização do trabalho (p. 41).
Bergeron (1982 apud ARELLANO, 2008) afirma que a QVT
consiste na aplicação de uma filosofia humanista em aspectos
do meio ambiente de trabalho. Arellano (2008) cita ainda
Werther e Davis (1993), que reforçam a importância de um
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Programa de Cargos e Carreira bem conduzido, como fator
fundamental.
Segundo Limonge-França (2004 apud OLIVEIRA et al.,
2009), a criação de um modelo gerencial efetivo de QVT que
se adeque à alta competitividade existente no mundo de
negócios atual é condição básica para assegurar a política de
produtividade das empresas, devendo as áreas de gestão de
pessoas, dar prioridade às condições de segurança e saúde no
trabalho, com o objetivo de resguardar o seu capital
intelectual.
Confirmando esta premissa, observa-se que Programas de
Qualidade de Vida e Promoção da Saúde têm cada vez mais
se tornado uma ferramenta empresarial para incremento da
qualidade de vida no trabalho e melhora da produtividade,
fazendo, em alguns casos, parte da cultura organizacional
(SILVA; DE MARCHI, 1997).
O esforço conjunto, não só para identificar problemas como
para desenvolver ferramentas para solucioná-los, melhoram
os processos e os produtos, e dentro deste aspecto ressalta-se
a comunicação interpessoal como peça fundamental deste
processo de união (LIMONGE-FRANÇA, 2007). Nadler e
Lawler (1993 apud ARELLANO, 2008) ressaltam a ideia de
participação dos empregados na tomada de decisão e na
solução de problemas como elemento determinante da QVT.
Limonge-França (2009, p. 258) aponta que, para que se possa
analisar estas questões de maneira alinhada, a QVT delineiase sob quatro competências, também denominadas de
“domínios”, a saber:
•
•
•
•
Biológico – refere-se às características físicas herdadas
ou adquiridas ao nascer e durante toda a vida. Inclui o
metabolismo, resistência, e vulnerabilidades dos órgãos e
sistemas.
Psicológico – refere aos processos afetivos, emocionais e
de raciocínio, conscientes ou inconscientes, que formam
a personalidade de cada pessoa e o seu modo de perceber
e posicionar-se diante das pessoas e das circunstâncias
que vivencia.
Social – incorpora valores, as crenças, o papel na
família, no trabalho e em todos os grupos e comunidades
a que cada pessoa pertence e de que participa. O meio
ambiente e a localização geográfica também formam a
dimensão social.
Organizacional – domínio integrado visando incluir os
elementos do trabalho em organizações. Refere-se à
cultura organizacional, porte da empresa, tecnologia,
segmento econômico em que atua e padrões de
competitividade.
Com a melhora da QVT os indivíduos passarão a ver o
trabalho não como um fardo, mas como algo prazeroso e que
traz realização pessoal (SILVA; DE MARCHI, 1997).
Este tipo de abordagem tem a tendência de melhorar a
capacidade de adaptação do indivíduo ao mundo atual
globalizado, onde a tecnologia, a informação, a
competitividade e os processos mudam a passos largos
diariamente, sendo por isto, crucial para o sucesso da
empresa e para a sua perpetuidade no mercado (SILVA; DE
MARCHI, 1997).
Obter algo que as diferencie das concorrentes, é também, a
grande busca das corporações modernas, e neste contexto,
deve-se ressaltar não apenas as inovações tecnológicas, mas
aquelas destinadas ao cuidado com as pessoas e ao seu bem
estar no trabalho (SILVA; DE MARCHI, 1997). Para
Limonge-França (2007), é fundamental que as organizações
fortaleçam as atividades e as interfaces relacionadas com
QVT, para que não ocorram ações de bem estar
independentes que não gerem valor real aos trabalhadores.
De acordo com o exposto, deve-se crer que as ações
gerenciais de promoção à saúde são o caminho para atingir a
QVT e o bem estar biopsicossocial, não se resumindo a
gastos desnecessários e que não trazem retorno financeiro, ao
contrário, se traduzem em investimento no capital intelectual
e na força produtiva da empresa, demonstrando ao mercado
em geral uma visão de modernidade e de preocupação com a
excelência empresarial em seu aspecto mais amplo.
OS FATORES HUMANOS E A SEGURANÇA
DE VOO
Com os avanços dos estudos das relações sociais e
trabalhistas nos anos 70/80, e com a contextualização da
participação da cultura e clima organizacionais e suas
repercussões no comportamento e erro humano, a tratativa do
aspecto segurança no meio da aviação começou a mudar
(MOREIRA, 2001). Passou-se a apontar os itens relevantes
para a segurança de aviação e a desenvolver estes pontos
entre os grupos em questão.
Dentre os aspectos importantes, destacavam-se as
potencialidades e limitações humanas, a tomada de decisão,
políticas da empresa, liderança, comunicação interpessoal,
relação entre pares e gestão, dentre outros e, eram
desenvolvidos através de treinamentos, dentre eles o CRM Crew Resource Management, garantindo desta forma
melhorias no desempenho do elemento humano e na sua
capacidade de julgamento, análise, tomada de decisão e
consciência situacional (MOREIRA, 2001).
A importância do estudo dos Fatores Humanos para a
segurança de voo foi oficialmente reconhecida pela
International Civil Aviation Organization (ICAO Organização de Aviação Civil Internacional - OACI), em
1986, quando a 26ª Assembleia adotou a Resolução A26-9.
Em prosseguimento à esta Resolução, a Comissão de
Navegação Aérea (Air Navigation Commission) formulou a
missão do Programa de Fatores Humanos e Segurança de
Voo - Flight Safety and Human Factors Programme (ICAO,
1998, 2002). Em 1998, em seu Manual de Treinamento em
Fatores Humanos, determina que os estudos dos Fatores
Humanos devem ser aplicados e integrados durante as fases
de projeto, estágios de certificação, assim como durante o
processo de formação das pessoas que participarão da
operação das aeronaves, antes que ambos iniciem suas
funções, com o objetivo de tornar a aviação mais segura e
eficiente (ICAO, 1998, 2002).
Além disto, alguns modelos de causas de acidentes foram
desenvolvidos para que houvesse uma melhor compreensão
destes processos a partir dos quais se aplicaria ferramentas
para minimizar as falhas. Um deles é o Modelo SHELL, que
aborda os aspectos relacionados ao indivíduo, visto como
centro do sistema e suas interfaces, e que foi utilizado neste
estudo.
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•
Nele, o ser humano é chamado de liveware (L) e é tido como
o centro do sistema e, em seu entorno, encontram-se as suas
interfaces denominadas hardware (H - a máquina), software
(S – suporte lógico, como manuais, procedimentos, mapas
etc.), environment (E - ambiente interno da aeronave,
ambiente organizacional e condições meteorológicas) e
liveware (L - outras pessoas – pares, chefias). Estas interfaces
são representadas por blocos de contornos serrilhados que
representam o caráter variável destas relações (ALKOV,
1997). Porém, elas devem encaixar-se perfeitamente, pois
caso contrário, se precipitará o erro humano (ICAO, 1993
apud MOREIRA, 2001). Este modelo é representado
conforme diagrama da Figura 1.
Figura 1: Representação do Modelo SHELL (ICAO, 1998;
2002)
Sobre a figura central deste modelo, que representa o ser
humano, consideram-se como fatores determinantes do seu
desempenho todos aqueles descritos anteriormente e que
representam os aspectos biológicos, psicológicos, sociais e
organizacionais. (MOREIRA, 2001).
•
•
Interface Liveware-Liveware: caracteriza as relações do
seu humano com seus pares, superiores e outros
elementos humanos, e é considerado por Alkov (1997),
como a mais importante no estudo dos Fatores Humanos.
Alguns aspectos importantes para a harmonização desta
interface são: comunicação, a interação entre os
indivíduos, relações com a administração, trabalho em
equipe, liderança, cooperação, divisão de tarefas,
barreiras de idioma, compatibilidades, escalas,
remuneração, incentivos, problemas financeiros e
familiares (MOREIRA, 2001). É importante também
salientar que as influências do grupo são fatores
determinantes para o comportamento e o desempenho,
sendo liderança, cooperação, trabalho em equipe e a
interação das personalidades, considerados aspectos
importantes para o desempenho do grupo, assim como as
pressões organizacionais (ICAO, 1998, 2002).
Interface Liveware-Hardware: diz respeito aos ajustes
necessários para que a máquina se adeque o mais
perfeitamente quanto for possível às características
antropométricas, biomecânicas e cognitivas do seu
operador. Segundo Moreira (2001), a maior causa de
erros que advém desta interface repousa no fato de que,
sendo o homem extremamente adaptável, alguma
deficiência do equipamento poderia ser ignorada, devido
à adaptação deste à falha.
•
Interface Liveware-Software: refere-se a todo o suporte
lógico necessário para a operação, como manuais,
procedimentos operacionais, check lists, mapas,
simbologias, publicações; requisitos normativos como
qualificação, habilitação, certificação, manutenção de
competência, confiança no sistema (BRASIL, 2005).
Segundo Moreira (2001), a maior fonte de erros desta
interface está nas falhas de interpretação das
documentações, que segundo a ICAO (1998, 2002), é
um fator de difícil observação e, portanto, de difícil
solução.
Interface Liveware-Environment: envolve tanto o
ambiente físico, externo e interno (condições
meteorológicas, umidade relativa do ar, ruídos,
pressurização, temperatura, luminosidade, infraestrutura
aeroportuária, etc.), quanto o ambiente organizacional
(política, clima e cultura, incentivos, reconhecimento,
restrições), cujas características poderão influenciar
diretamente esta interface (ICAO, 1998, 2002).
Acrescentam-se a estes, os problemas relacionados com
alterações dos ritmos biológicos e distúrbios do sono
causados pela privação originada de rápida transposição
de vários meridianos. De acordo com Moreira (2001),
são os fatores ambientais conjuntamente com as
alterações dos ritmos biológicos dos aeronautas, as
maiores causas de erros nesta interface.
De acordo com ICAO (1998, 2002), as necessidades
demandadas pela indústria, no que se refere a fatores
humanos, estão baseadas em seu impacto em duas grandes
áreas que se correlacionam podendo uma afetar a outra, são
elas: a efetividade do sistema, caracterizada pela segurança
de voo e a eficiência e bem estar das pessoas ligadas à
operação.
Toda esta mobilização necessária é impulsionada por uma
cultura de segurança, que segundo a ICAO em sua circular
número 10, referente a Fatores Humanos (COELHO;
MAGALHÃES, 2001), é definida como:
um conjunto de crenças, normas, atitudes,
funções e práticas sociais e técnicas visando
reduzir ao mínimo a exposição de empregados,
diretores, clientes e membros do público em
geral a condições avaliadas como perigosas ou
de risco (p. 43).
Entretanto, apesar de toda esta mobilização para minimizar
os aspectos ligados à segurança de voo, Mauriño et al. (1995
apud MOREIRA, 2001) afirmam que são necessários uma
abordagem e acompanhamento contínuos dos aspectos
ligados ao fator humano através de uma atuação
multidisciplinar, já que as ações do ser humano dependem de
um todo, ou seja, da sua face biológica, psicológica, social e
organizacional, assim como preconizam os estudos da QVT.
Segundo Coelho e Magalhães (2001), uma forte cultura de
segurança pode amenizar as influências que as alterações
biológicas e psicológicas impõem aos trabalhadores visto
que, como já exposto, esta cultura atua nas atitudes dos
indivíduos.
O estudo dos Fatores Humanos como disciplina contempla a
interação do ser humano com o ambiente onde esses objetos
e sistemas serão utilizados e os fatores inerentes ao indivíduo
são examinados sob a ótica dos seus impactos sobre o
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desempenho humano (ALKOV, 1997). O autor acrescenta
que alguns fatores são primordiais para estimular a existência
da cultura de segurança entre os trabalhadores. Um dos mais
importantes é a motivação e interesse dos níveis gerenciais
no bem estar e na segurança dos operadores. Ele afirma
ainda, que isto só é possível ser alcançado quando estes
gestores se aproximam dos trabalhadores em seus postos de
trabalho.
Segundo a ICAO (1998, 2002), ignorar os aspectos
relacionados com os fatores humanos é aceitar um
desempenho menos eficiente. Afirmam também que a
motivação faz com que os indivíduos tenham um
desempenho mais efetivo do que apresentam indivíduos
desmotivados.
O incremento da motivação do indivíduo pode determinar o
seu comprometimento com a operação e demais
necessidades, dentre elas a segurança de voo. A relação entre
a expectativa e o que se recebe efetivamente determina o
esforço do indivíduo em desempenhar o que lhe é designado
da melhor maneira possível. De acordo com a ICAO,
reiterado pelos estudos de Dejours (2005), é a satisfação com
o trabalho que motiva as pessoas a buscar melhores
desempenhos, e o reconhecimento é um dos reforços
positivos para se alcançar esta satisfação.
Associam-se também às questões levantadas pelos estudos da
QVT, reforçando que todos os aspectos relacionados a ela,
sejam
eles,
biológicos,
psicológicos,
sociais
e
organizacionais, podem ser agentes da fragilização da
segurança de voo, quando não são levados em consideração.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Abordagem
Com a finalidade de ilustrar a relação existente entre os
domínios da QV e QVT com os enfocados pelos estudos da
área de Fatores Humanos e suas respectivas influências sobre
a segurança de voo, foi realizada uma pesquisa qualitativa
exploratória de caráter descritivo. Neste sentido, em agosto
de 2008, foi solicitado a um grupo de pilotos da aviação
comercial que falassem sobre as questões que impactavam na
realização de suas atividades profissionais e que poderiam
deteriorar o seu bem estar psicofísico, influenciando
negativamente o seu desempenho no trabalho.
Instrumento
Foi elaborada apenas uma pergunta aberta enviada por e-mail
na qual os participantes poderiam responder livremente. A
finalidade desta forma de obtenção dos dados, apesar da
dificuldade de análise, foi para obtenção de respostas
espontâneas e, portanto, genuínas, destituídas de influências
externas ou sugestões e com uma maior riqueza de
informações.
A questão apresentada ao grupo foi:
“Quais os fatores que, em sua opinião, colaboram para o
comprometimento do seu bem estar na empresa?”
A decisão de não realizar nenhuma menção, na questão,
sobre a segurança de voo se deveu ao fato de que a
pesquisadora pretendia obter respostas mais abrangentes
sobre os diversos aspectos relacionados ao bem estar dos
pilotos e não apenas àqueles relacionados com a segurança de
voo, embora fosse o foco do trabalho.
Coleta de Dados
Tendo em vista que o grupo pesquisado tinha uma
disponibilidade variável em função das suas atividades,
optou-se pela seguinte estrutura:
•
Em primeiro lugar, foi enviada, por e-mail, uma carta a
todos os pilotos, explicando a finalidade e a forma da
pesquisa, assim como os prazos determinados para a
entrega da mesma; e
•
A pesquisa foi realizada em caráter confidencial; o
tripulante deveria fazer seu relato e enviar por e-mail à
pesquisadora ou entregar pessoalmente em envelope
lacrado, caso não quisesse se identificar.
Organização dos Dados
Após coletadas as respostas, os dados foram categorizados
mediante uma leitura crítica, tabulados e dispostos em tabelas
e gráficos conforme os domínios Biológico, Psicológico,
Social e Organizacional apontados na QVT, tomando-se por
base o número de citações de cada fator apontado e os seus
respectivos percentuais e relacionando-os com os elementos
constituintes do Modelo SHELL de estudo dos Fatores
Humanos na Aviação, adotado pela ICAO.
Amostra
Análise dos Resultados
A população investigada foi o grupo de pilotos de uma
empresa do setor aeronáutico, que possui várias atividades,
inclusive a de transporte de clientes. Na época da pesquisa, o
grupo era constituído por 103 indivíduos. A pesquisa foi
enviada para 100% do grupo e sua participação era de caráter
voluntário e confidencial. Destes, 53 pilotos responderam à
pesquisa, o que correspondeu a 51,4% do total.
O grupo se distribuiu entre as idades de 31 a 65 anos, sendo
68% dos pilotos com idade inferior a 50 anos, com média
etária de 46,3 anos (DP = ±7,8).
A grande maioria do grupo (71%) possuía menos de cinco
anos na empresa e 76% encontrava-se casado.
Os dados obtidos foram dispostos de acordo com os domínios
da QVT, realizando-se uma associação entre o que foi
encontrado na pesquisa e os seus efeitos nas esferas
biológica, psicológica, social e organizacional. Isto
possibilitou, a partir da pesquisa bibliográfica realizada,
verificar a relação existente entre estas questões e a QVT/QV
assim como seus impactos na segurança de voo conforme o
preconizado pela ICAO.
Limitações para a Realização do Trabalho
Houve algumas limitações para a realização deste trabalho. A
principal delas foi o fato da pesquisadora ter se desligado da
empresa após a coleta dos dados, isto dificultou novos
levantamentos que poderiam ter agregado valor aos
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resultados, como a origem dos pilotos (aviação comercial ou
militar), tempo de formação, tipo de formação, dentre outros
que poderiam ter trazido um aprofundamento maior ao tema.
Ainda, cabe ressaltar que o trabalho não chegou a ser
submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa, tendo em vista
que a pergunta, inicialmente feita, tinha um objetivo de
explorar o tema para delinear uma investigação mais
específica, e, em função disso, submeter uma proposta mais
consistente. Entretanto, tendo em vista o desligamento da
pesquisadora da empresa, a continuidade do trabalho não foi
possível. Por outro lado, achou-se por bem aproveitar as
informações já coletadas com o intuito de se fazer um
levantamento preliminar e uma reflexão sobre a questão.
Outro fator que dificultou a coleta de dados foi a escala de
trabalho do grupo estudado. O fato de estarem fora da
empresa por longos períodos e terem uma agenda de trabalho
intensa foram os motivos ressaltados por alguns para não
terem respondido a pesquisa.
APRESENTAÇÃO
RESULTADOS
E
ANÁLISE
DOS
Apresentação dos Resultados
Com relação ao questionamento principal do estudo: “Quais
os fatores que, em sua opinião, colaboram para o
comprometimento do seu bem estar na empresa?”, os
relatos obtidos deram origem a citações que, após leitura
crítica, foram categorizadas, tabuladas e tiveram seus
percentuais calculados. A apresentação dos resultados se
baseará nos domínios ligados à QVT, representado pelo
Modelo BPSO (biológico, psicológico, social e
organizacional) e traduzem o quanto cada aspecto é
representativo para a Qualidade de Vida no Trabalho dos
pilotos e, sempre que possível serão, também, associados aos
elementos do Modelo SHELL preconizado pela ICAO.
Cada um dos participantes apresentou, em média, quatro
relatos, sendo que um mesmo relato podia dar origem a
várias citações que, por sua vez, podiam ser categorizadas em
mais de um aspecto da QVT. Desta forma, a unidade de
análise utilizada foi o número de citações obtidas de cada
relato, o que resultou em um total de 249 citações
distribuídas da seguinte forma pelos domínios da QVT: 8,4%
para o Social, 10,4% para o Psicológico, 14,0% para o
Biológico e 67,2% para o Organizacional (Figura 2).
A seguir, serão apresentados os resultados, por domínio da
QVT, ressaltando-se as categorias que se destacaram em cada
um, segundo a opinião da amostra participante.
•
Domínio Social
Sobre o Domínio Social, que diz respeito aos valores, às
crenças, ao papel na família, no trabalho e em todos os
grupos e comunidades a que cada pessoa pertence e de que
participa, influenciando suas relações interpessoais dentro e
fora do trabalho e relações familiares, as questões
consideradas mais impactantes são as folgas (48%), a relação
com a família (38%) e o relacionamento interpessoal com os
pares e a chefia (14%).
•
Domínio Psicológico
O Domínio Psicológico refere-se aos processos afetivos,
emocionais e de raciocínio, conscientes ou inconscientes, que
formam a personalidade de cada pessoa e o seu modo de
perceber e posicionar-se diante das pessoas e das
circunstâncias que vivencia. Dentro deste aspecto, os itens
considerados mais importantes foram: o estresse (34%),
seguido de questões relativas à relação familiar (31%) e o jet
lag (23%).
•
Domínio Biológico
O Domínio Biológico diz respeito às questões relacionadas às
características físicas herdadas ou adquiridas ao nascer e
durante toda a vida e que refletem sobre a saúde somática do
indivíduo. Neste sentido, foram obtidas 35 citações (14%)
que foram distribuídas em sete categorias.
Entre as categorias que se destacaram neste aspecto, podem
ser citadas a alimentação (34,3%), o estresse (25,7%) e,
novamente, o “jet lag” (17,1%).
•
Domínio Organizacional
O Domínio Organizacional diz respeito aos elementos do
trabalho em organizações, envolvendo as relações entre a
empresa e os empregados, cultura e clima organizacionais,
infraestrutura organizacional e outros. Este domínio
destacou-se com relação aos demais apresentando um
número de citações de 167, o que correspondeu a 67,2% do
total.
Desta análise, destaca-se a categoria “Missões” com 100
citações (59,9%), como sendo a mais impactante para a QVT
no grupo estudado. Para melhor compreensão, achou-se por
bem realizar, então, uma análise pormenorizada desta
questão, que demandou outra classificação desta categoria.
As citações foram classificadas em três outras categorias de
acordo com a similaridade dos temas. Sendo assim, foram
criadas as subcategorias: infraestrutura (53%), relacionada
com as condições/ferramentas oferecidas pela empresa para o
desempenho das missões; regulamentação (37%), referente às
questões que concernem à lei do aeronauta; e, preparação
(10%), ligada à orientação, treinamento e organização para as
missões.
Figura 2: Distribuição percentual do número de citações
com relação aos domínios da QVT.
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Análise dos Resultados
Como ressaltado anteriormente, as citações apresentadas pelo
grupo estudado poderiam estar relacionadas com mais de um
aspecto da QVT, podendo a mesma questão causar
desequilíbrio tanto no aspecto Biológico, como no
Psicológico, no Social e no Organizacional. Cada aspecto foi
então analisado de acordo com o Modelo BPSO da QVT e
posteriormente relacionado com os blocos e interfaces do
Modelo SHELL, utilizado nos estudos da área Fatores
Humanos, demonstrando a relação existente entre ambos os
conceitos.
Das respostas apresentadas pelos pilotos serão analisadas as
três categorias que obtiveram o maior número de citações em
cada aspecto da QVT, buscando uma relação com os
conceitos desenvolvidos.
Com relação à alimentação, ela foi relacionada como fator de
desequilíbrio de dois domínios da QVT, o Biológico e o
Organizacional. A amostra enfatizou a necessidade de
melhorar a sua qualidade e a sua oferta principalmente em
momentos em que não podem interromper o trabalho, nos
finais de semana e períodos de trabalho noturnos.
As missões em algumas localidades fora do Brasil como em
países do oriente ou da África impõem intensa dificuldade
alimentar para os pilotos devido a diferenças culturais e,
muitas vezes, à falta de higiene. Alguns ressaltam o fato de
que, em alguns voos, a alimentação não é oferecida durante
as atividades de treinamento de clientes ou que o tipo de
alimentação não satisfaz seus anseios e necessidades.
Comentam também o fato de que muitas vezes não podem
interromper uma atividade para irem até o refeitório nos
horários determinados para as refeições ou das atividades
programadas fora do horário comercial e que não têm hora
definida para terminar. Nestes dois casos, a empresa não
oferece uma alternativa para que os mesmos possam se
alimentar adequadamente e, no primeiro caso, não há
nenhuma cláusula prevista em contrato que preveja o
compromisso dos clientes em prover alimentação adequada
aos pilotos durante as atividades programadas. Este fator
afeta diretamente o bloco liveware do Modelo SHELL,
acarretando prejuízos à saúde física dos indivíduos, que são
considerados como a figura central do processo de segurança
de voo.
No que diz respeito ao estresse relacionado ao aspecto
Biológico da QVT, é ressaltado como causador de mal estar
geral, distúrbios do sono, alteração dos ritmos intestinais,
alteração de apetite e falhas de memória. Conforme ressalta
um dos pilotos “o estresse contínuo nos causa
impossibilidade de dormir, cansaço, irritação etc.”.
ativam outras áreas que se conectam e fornecem comando
motivacional para o processo de aprendizado (GUYTON;
HALL, 2006); e também da ativação do eixo HipotálamoHipofisário-Adrenal (HHA) com a liberação de cortisol. Se
por um lado este hormônio prepara organismo para combater
os efeitos nocivos do estresse, por outro, diminui a eficiência
do sistema imunológico podendo precipitar doenças,
conforme detalhado da revisão de bibliografia.
Ao falarem de jet lag, apontado tanto no aspecto Biológico
como no Psicológico da QVT, reforçam as questões
relacionadas ao mal estar provocado por viagens longas,
ultrapassagem de vários fusos horários, algumas vezes
realizadas em classe econômica quando tinham que assumir
missões fora de sua base, missões noturnas prolongadas e a
falta de informação das equipes das áreas de negócios em
relação ao tempo necessário para o descanso da tripulação,
acarretando um alto nível de pressão destas áreas sobre os
pilotos.
O mal estar geral e os distúrbios do sono são também sinais
típicos do jet lag e são causados por vários motivos, dentre
eles: o relógio biológico estar sincronizado com a hora do
local de origem, sendo difícil manter o sono e demais
atividades fisiológicas em consonância com o horário
vigente, o fato de terem que dormir em horários
inapropriados (durante o dia, por exemplo), em camas
diferentes das que estão acostumados, em locais com ruídos
próprios predispondo o indivíduo a distúrbios do sono com
prejuízo do descanso (DEHART & DAVIS, 2002). O
descanso é fundamental para que os indivíduos possam
sentir-se bem e desempenhe suas atividades com toda a
atenção e reflexos necessários, não devendo ser interrompido
ou dificultado por qualquer circunstância, com o risco de
comprometer o seu desempenho e, consequentemente,
trazendo riscos para segurança do voo.
O estresse e o jet lag quando associados podem deteriorar
ainda mais o quadro de déficit cognitivo, diminuição da
capacidade de memorização, alentecimento dos reflexos e do
poder de tomada de decisões apresentados, podendo com
isto, fragilizar o desempenho, principalmente, em uma
atividade que exige um certo grau de atenção e prontidão,
como é o caso da aviação.
As questões relacionadas com o bem estar físico e mental do
indivíduo estão inseridas no bloco liveware no Modelo
SHELL, impactando diretamente a saúde deste. Aquelas que
têm como agentes as visões e políticas da empresa,
constituem-se também integrantes da interface livewareenvironment, demonstrando a relação do trabalhador com a
empresa.
Dentro do aspecto Psicológico da QVT, o estresse é
caracterizado pelos pilotos como a resultante de todos os
itens levantados na pesquisa, sejam eles biológicos,
psicológicos, sociais ou organizacionais, gerando grande
tensão e alta carga psicológica, podendo acarretar déficit
cognitivo, diminuição da capacidade de memorização,
alentecimento dos reflexos e do poder de tomada de decisões.
Sobre a questão relação com a família, ela é ressaltada como
impactante tanto no aspecto Psicológico como no Social da
QVT. Sobre este item, referem que o longo tempo de
permanência em missões fora da sua base, as folgas
interrompidas por necessidades mercadológicas e da empresa
e a dificuldade para o planejamento das férias, são os
principais pontos que interferem nesta questão, conforme
relato de um piloto abaixo:
Os diversos tipos de estresse físico e psicológico associados a
causas diversas, inclusive à privação do sono, determinam a
ativação do sistema límbico, responsável pelos
comportamentos, emoções e motivação e pelos impulsos que
É necessário que após o cumprimento de uma
jornada longa de um piloto que viaja, ao
retornar, exista igual período, para permanecer
com a família. Vários têm sido os casos de
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separações, ou alto nível de estresse com casais
e filhos.
Alegam que este fato os afasta da convivência com a família,
gerando alta demanda psíquica e deixando uma sensação de
vazio, falta de identidade e perda de significação dentro do
núcleo familiar, trazendo sofrimento e desgaste emocional
para ambos os lados.
A questão das folgas também é salientada com bastante
ênfase como fator de desequilíbrio em mais de um aspecto da
QVT, são eles o aspecto Social e o Organizacional. Quando
relacionado ao aspecto social, ressalta-se como principal
ponto, a frequente interrupção da mesma após as missões
devido a necessidades da empresa, dificultando o
planejamento das atividades fora do trabalho e impedindo-os
de participar de eventos sociais programados, como viagens,
aniversários e outros. Este fato concorre também para
influenciar a relação familiar, abalando sua harmonia, como
mencionado no item anterior. A apresentação deste aspecto
mostra como as questões organizacionais podem influenciar
outros domínios da QVT e da qualidade de vida do indivíduo
como um todo, deteriorando a sua saúde física e mental, e,
por conseguinte, podendo trazer reflexos sobre a segurança
de voo.
Estas questões, de acordo com o Modelo SHELL, estão
relacionadas com o bloco environment, pois são derivadas
das decisões da empresa. Entretanto, o estresse que advém
das situações expostas pode causar impacto na saúde física e
mental do indivíduo (liveware), podendo por isto, ser
enquadrados também na interface liveware-environment, que,
por sua vez, acarretam distúrbios na interface livewareliveware.
Sobre o relacionamento interpessoal no ambiente de trabalho,
acreditam que a falha de comunicação entre líderes e
liderados, assim como a desigualdade que eles acreditam
haver na confecção das escalas propiciam um clima de
discórdia e intrigas no grupo. Conforme a fala de um deles:
“as chefias devem acabar com privilégios e repartir melhor as
programações de forma que todos fiquem dentro de uma
média”.
Ressaltam também como argumento, a grande frequência
com que realizam estas viagens e o fato de que muitas vezes
não conseguem alcançar um estado de descanso adequado
para assumir suas atividades associado ao desgaste da viagem
e ao tempo que dispõem para descansar antes de iniciá-las.
No que se refere aos estudos dos Fatores Humanos, estas
questões relacionadas com o bloco environment contribuem
para fragilizar o bloco liveware e as interfaces livewareenvironment e liveware-liveware.
Nesta pesquisa ilustrativa realizada entre os pilotos, as
questões relacionadas ao domínio organizacional foram
identificadas por eles como as de maior impacto em sua QV e
QVT, traduzindo-se em questões relacionadas com:
descanso, alimentação e atividade física adequados, relação
entre as equipes e comunicação com a empresa, folgas e
número de dias fora em missão, relação com a família e
treinamento adequado para a realização das missões.
Todas estas questões foram caracterizadas por eles como
responsáveis por uma grande carga psíquica, estresse,
insatisfação com o trabalho e deterioração da sua saúde física
e mental, fatos que, de acordo com a ICAO (1998, 2002),
podem afetar profundamente a segurança de voo, acarretando
acidentes.
A análise das questões levantadas deixou clara a presença de
fatores que influenciam todos os domínios da QVT (Modelo
BPSO). No que se refere aos estudos dos Fatores Humanos,
observa-se que esses também impactam os blocos liveware e
environment e as interfaces liveware-liveware e livewareenvironment.
A Figura 3 demonstra, resumidamente, como os domínios da
QVT poderiam interferir nos blocos e interfaces do Modelo
SHELL fragilizando-os, facilitando assim, a ocorrência da
falha humana.
Modelo
BPSO
Modelo
SHELL
BIO
SOCIAL
PSICO
Estas questões de relacionamento podem trazer riscos à
segurança de voo, tendo em vista que desentendimentos
dentro do grupo dificultam a comunicação e o entrosamento
durante a atividade, o que é representado pela interface
liveware-liveware do Modelo SHELL. Numa atividade em
que as capacidades devem se completar para um melhor
desempenho do grupo e da operação, a falha na comunicação
pode ser fator determinante para o insucesso da missão. O
relacionamento entre líderes e liderados também é fator de
extrema relevância para a segurança de voo, principalmente
dentro do cockpit, onde as ações de ambos são
interdependentes e uma falha na comunicação ou no
gerenciamento dos recursos disponíveis podem determinar
um acidente, conforme afirma ICAO (1998, 2002).
Dentro do aspecto Organizacional, representado pelo bloco
environment no Modelo SHELL, a categoria missões foi a
mais indicada entre os participantes da pesquisa como fator
de deterioração da sua QVT, como mostrado na apresentação
dos resultados. Sobre este item, os indivíduos argumentam
que as viagens são longas e com transposição de vários fusos
horários, o que determina um grande desgaste físico.
ORG
Figura 3: Relação identificada entre os domínios da QVT,
representados pelo Modelo BPSO, e os blocos e interfaces
do Modelo SHELL
Neste sentido, pode-se deduzir que, ao se implementar ações
de melhorias de todos os domínios da QVT, por
consequência, se estaria, também, atuando sobre os blocos e
as interfaces de Fatores Humanos, representados no Modelo
SHELL, contribuindo para a manutenção dos índices de
segurança de voo.
CONCLUSÕES
A disciplina Fatores Humanos surgiu para agregar
conhecimento aos estudos das relações do ser humano com o
seu trabalho. Discorre sobre as interfaces do ser humano
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neste ambiente, a saber: os seus pares, o ambiente laboral e
organizacional, as regras escritas, manuais e a operação
propriamente dita e estuda também as questões relacionadas
com a organização e que podem acarretar insatisfação e
fragilização das relações empresa-empregado. Dentro deste
contexto apresenta as questões que devem ser trabalhadas ou
mitigadas para o melhor desenvolvimento do ser humano em
relação a sua atividade e ao seu bem estar geral, como intuito
de implementar a segurança de voo.
Sendo esta disciplina relacionada com o ser humano e o seu
trabalho, evidencia-se uma estreita relação desta com os
fatores levantados nos estudos da QVT, demonstrando que
estes fragilizadores da saúde biopsicossocial e organizacional
dos pilotos são semelhantes às das outras atividades laborais.
Além do disposto, os diversos tipos de organização do
trabalho podem também determinar a fragilização das
capacidades físicas e psicológicas dos trabalhadores
concorrendo para deteriorar a sua QV, QVT e, no caso dos
pilotos, trazerem risco à segurança de voo.
Entretanto, é importante ressaltar que apesar das semelhanças
existentes entre o impacto da organização do trabalho sobre o
grupo estudado e os demais grupos, existem também
diferenças fundamentais que fazem com que a atenção dos
profissionais dedicados à manutenção da QV e QVT deste
grupo, em particular, deva ser intensificada objetivando a
manutenção da segurança de voo, tendo em vista o nível de
complexidade e risco envolvidos no desempenho da atividade
aérea.
Neste sentido, o objetivo deste artigo foi apresentar uma
breve análise de questões relacionadas ao trabalho de pilotos
da aviação comercial e que influenciam a Qualidade de Vida
(QV) e Qualidade de Vida no Trabalho (QVT), e sua relação
com a segurança de voo, com base nos estudos de Fatores
Humanos na Aviação.
As questões levantadas tanto do aspecto Biológico, como do
Psicológico, Social e Organizacional da QVT podem ser, de
acordo com a ICAO (1998, 2002), fatores contribuintes para
a fragilização da segurança de voo, vindo contribuir para a
ocorrência de acidentes. É fundamental, portanto, promover e
sedimentar ações com intuito de reduzir os efeitos que as
questões vistas pelo grupo como deletérias, têm sobre a sua
QV e QVT e, por conseguinte, sobre a segurança de voo.
São esperadas, para minimizar estas ocorrências, ações
empresariais e também individuais, ambas consideradas
fundamentais para a concretização das mudanças necessárias.
A qualidade de vida (QV) é definida hoje como o bem estar
global do indivíduo, levando-se em consideração todos os
cenários de sua existência, sejam eles biológico, psicológico,
social ou organizacional. A qualidade de vida no trabalho
(QVT) por sua vez, encontra-se profundamente inserida neste
contexto, estando relacionada, e até determinando, a
primeira.
Diante das informações levantadas por este breve estudo,
observa-se a importância de ações conjuntas que envolvam as
lideranças da empresa, a área de Recursos Humanos e a
equipe de pilotos, no intuito de adequar as questões
operacionais às necessidades da organização e do grupo,
minimizando, desta forma, os níveis de estresse e
implementando a sua QV e QVT. Como consequência, a
satisfação destes indivíduos com o seu trabalho e com a
equipe, sua motivação e o seu bem estar geral dentro e fora
da empresa, estariam sendo beneficiados de modo direto e,
indiretamente, revertendo, também, melhorias para a
segurança de voo.
A partir da apresentação e análise dos resultados extraídos da
pesquisa realizada demonstrou-se que as questões levantadas
estão relacionadas com os domínios da QVT, apresentados
no Modelo BPSO, e que estes podem impactar na saúde
física e mental dos pilotos deteriorando as suas relações com
os elementos humanos que compõe o seu dia a dia e com a
organização onde está inserido. Sendo assim, a segurança de
voo poderia ficar fragilizada tendo em vista que, segundo a
ICAO (1998, 2002), a atividade aérea requer o equilíbrio da
saúde física e mental do piloto, uma boa relação interpessoal
no cockpit e com suas lideranças e um ambiente
organizacional provido de uma forte e sólida cultura de
segurança.
Observa-se que as questões levantadas pelos pilotos como
impactantes para o seu bem estar no trabalho apresentam uma
relação com os aspectos que, segundo a ICAO (1998, 2002),
concorrem para fragilizar a segurança de voo, favorecendo a
ocorrência do erro humano.
Neste contexto, de acordo com Moreira (2001), o psicólogo e
o médico não devem ter suas atuações restritas ao diagnóstico
e a propedêutica; devem ao contrário, ser inseridos nas
questões administrativas e estratégicas da organização,
visando uma tomada de decisão condizente com as reais
necessidades do grupo, com economia de tempo e dinheiro
para a empresa e maior aproveitamento das capacidades dos
indivíduos.
O resultado de uma ação gerencial bem direcionada
demonstrará a afirmação de Boog et al. (1999 apud
LIMONGE-FRANÇA, 2007) sobre o aspecto liderança
ligada à QVT, quando ressalta a importância da integração
dos líderes em todo o processo de QVT e a necessidade de
haver uma política transparente vinda destes. Além de
colaborar para o processo de QVT, a aproximação e a
confiança entre líderes e liderados concorre, também,
conforme preconiza a ICAO (1998, 2002), para fortalecer a
segurança de voo.
Neste sentido, a principal contribuição deste trabalho aponta
para que, por meio dos relatos obtidos, os domínios da QVT
e os aspectos ressaltados pelo Modelo SHELL, utilizado pela
ICAO nos estudos da falha humana e de causa de acidentes,
parecem relacionar a Qualidade de Vida no Trabalho e a
segurança de voo.
NOTA
Trabalho
extraído
da
Dissertação
de
Mestrado
Profissionalizante
em Segurança
de
Aviação
e
Aeronavegabilidade Continuada do Instituto Tecnológico da
Aeronáutica sob o título “Qualidade de vida no trabalho e
segurança de voo: a integração através do estudo de fatores
humanos na aviação” (ITA/2010).
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Estratégia de recursos humanos e gestão de qualidade de vida
no trabalho: o stress e a expansão do conceito de qualidade
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