Versão em PDF - Periódico Alethes

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Versão em PDF - Periódico Alethes
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Alethes
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Diagramação: Arthur Barretto de Almeida Costa
Revisão: João Vítor Moreira, Alan Rossi Silva e Marcos Felipe.
Capa: Edição e montagem de Arthur Barretto de Almeida Costa
sobre o quadro Guerra e Paz (1952 e 1956), de Cândido Portinari.
Divisórias: Montagens de Arthur Barretto de Almeida Costa sobre
Guerra e Paz.
_____________________________________________
Alethes: Periódico científico dos graduandos em Direito
Da UFJF. Vol. 04, N. 06. (Julho/Dezembro de 2014)
Juiz de Fora: DABC, 2014. Semestral. 1.
Direito – Periódicos
ISSN 2177-4633
_____________________________________________
As opiniões expressas são de inteira responsabilidade de seus autores
Esta publicação conta com o apoio do Diretório
Acadêmico Benjamin Colucci, da Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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É difícil dizer a verdade, pois, por mais que só haja uma,
esta é viva e tem feições vividamente combinantes.
Franz Kafka
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Conselho Editorial
Editor Chefe
Acadêmico Alan Rossi Silva (UFJF)
Editores Adjuntos
Acadêmico Arthur Barretto de Almeida Costa (UFMG)
Acadêmico João Vítor de Freitas Moreira (UFJF)
Acadêmico Marcos Felipe Lopes de Almeida (UFJF)
Conselheiros
Dr. Alexandre Travessoni Gomes (UFMG)
Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos (UFMG)
Dr. Antônio Márcio da Cunha Guimarães (PUC-SP)
Mestrando Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes (UFJF)
Drª. Cláudia Toledo (UFJF)
Doutorando Daniel Giotti (UFJF)
Dr. Denis Franco Silva (UFJF)
Doutorando Geraldo Adriano Emery Pereira (UFV)
Drª. Eliana Conceição Perini (UFJF)
Doutoranda Éllen Rodrigues (UFJF)
Drª. Fernanda Maria da Costa Vieira (UFJF)
Dr. Marcos Vinício Chein Feres (UFJF)
Drª. Mariah Brochado (UFMG)
Doutoranda Nathane Fernandes da Silva (UFJF-GV)
Dr. Noel Struchiner (PUC-RIO)
Ms. Renato Chaves Ferreira (UFJF)
Dr. Thomas da Rosa de Bustamante (UFMG)
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Sumário
Conselho Editorial
285
Editorial Board
Sumário
288
Summary
Editorial
292
Editorial
Ensaio
Essay
Superando as Crises do Ensino de Direito e da Pesquisa Jurídica a Partir
da Indissociabilidade entre Ensino e Pesquisa
296
Surpassing the crises of Law Education and Research with the connection between
Teaching and Researching.
Arthur Barretto de Almeida Costa
Artigos
Articles
Norma e Direito: Michel Foucault e o excesso normativo-jurídico
309
Norm and Law: Michel Foucault and the juridical-normative excess
Lorena Martoni de Freitas
A Contrariedade do Instituto da Reeleição à Democracia no Brasil
333
The Contrariety of Reelection for Democracy in Brazil
Wellington Borges Throniecke
Suporte Fático de Direitos Fundamentais:Auxílio Interpretativo em
Direitos Sociais no Brasil e em Portugal
357
Factual Support of Fundamental Rights: Interpretative Support to Brazilian and
Portuguese Social Rights
Mírian Zampier de Rezende
As Contradições na Lei de Biosseguração Quanto às Pesquisas com
Células Tronco
The Contradictions on Brazilian Biosafety Law Regarding Stem Cells Research
Grycor Alves de Azevedo
Terceirização à Luz dos Princípios Essenciais do Direito do Trabalho
Outsourcing under the Light of the Essential Principles of Labour Law
Leidiel Araújo de Oliveira
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377
A Inserção dos Autistas no Mercado de Trabalho
420
The Autistic Insert on Brazilian Market Work
Ana Clara Lopes Salgado
Empresa Júnior e o desenvolvimento de habilidades e competências
na prática jurídica: O caso Colucci Consultoria Jurídica Jr.
439
Junior Enterprise and the development of skills on legal practice: The case of Colucci
Consultoria Jurídica Jr.
João Paulo Corradi Ferreira
Thaís Victoretti
Túlio Souza Zancanelo
Uma Lei Mutilada, uma Nação Dividida: Sharia, federalismos e o
(des)cumprimento dos Direitos Humanos na Nigéria
453
A Mutilated Law, a Divided Nation: Sharia, Federalisms and the (Non) Fulfillment
of Human Rights in Nigeria
Arthur Barretto de Almeida Costa
Entrevista
Interview
Entrevista com a Profª Daniella de Freitas Marques
476
Interview With the Professor Daniella de Freitas Marques
Daniella de Freitas Marques e Arthur Barretto de Almeida Costa
Normas de Publicação
489
Publication Norms
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF., v. 4, n., 6 pp. 292-294, jul./dez., 2014.
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SILVA, A. R. Editorial.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF., v. 4, n., 6 pp. 292-294, jul./dez., 2014.
Editorial
Há quem defina que o instrumento de trabalho do operador do Direito é a palavra,
há quem diga que são as leis, outros podem dizer que é uma questão de retórica e até
mesmo de política. Há aqueles que apesar de não tornarem públicos seus sentimentos e
reflexões, encaram também o Direito a sua própria maneira, como uma questão financeira
vultosa, de estabilidade ou de status social. No entanto, independentemente desta ou
daquela perspectiva, se o Direito é encarado como meio ou como fim, até mesmo se ele
é visto como instrumento ou se ele passa a instrumentalizar as pessoas, a Alethes e sua
equipe, nesta e nas outras edições deste periódico, defenderá uma perspectiva jurídica
mais intensa e humana. Defenderemos uma visão do Direito que não leve em
consideração denominações mecânicas do cotidiano jurídico, como “instrumento” ou
“operador”. Faremos coro em prol de uma ciência jurídica inovadora e que leve em
consideração os sentimentos e as vontades de todos os envolvidos em seu complexo
funcionamento. Trabalharemos insistentemente para a construção, mesmo que paulatina,
de uma concepção libertadora do Direito, em detrimento da atualmente posta
produtividade desenfreada de todos os ramos profissionais desta seara. Lutaremos contra
esse Direito que se vê enclausurado por grades de sua própria criação e atado pelas
inúmeras correntes, que rasas, confundem nossos jovens do verdadeiro propósito da
justiça. Reivindicaremos, assim, uma ciência jurídica acolhedora, inclusiva e que trate
com amor e respeito seu maior motivo de existência e o verdadeiro motor da justiça: as
pessoas.
Esta edição, portanto, foi profunda e indelevelmente marcada por pessoas, que se
aglutinaram a este ideal e se tornaram organicamente parte da Alethes. Isto é, juntamente
com o crescimento de todos os desafios inerentes a pretendida expansão do periódico,
tivemos a graça de ser contemplados com novos membros na equipe, que nos trouxeram
mais do que engrandecimento técnico e intelectual, mas, principalmente, alimentaram a
chama de entusiasmo e esperança que um dia irrompeu do anseio inovador dos criadores
da Alethes e que hoje deve ser mantida acesa por seus sucessores. Por isso, utilizo este
espaço que me foi concedido, primeiramente, para agradecer os companheiros de equipe
que possibilitaram, perante as adversidades, que este magnífico trabalho fosse terminado.
Aos companheiros Arthur Barretto e João Vitor, são incomensuráveis os
sentimentos de gratidão, por estarem junto comigo nessa empreitada, desde a última
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SILVA, A. R. Editorial.
edição, quando tudo ainda era novidade, surpresa e, principalmente, aprendizado, que tive
a honra de vivenciar e sorver conjuntamente com esses dois importantes vetores de
crescimento individual e de nosso projeto científico.
Além desses companheiros de longa data, tivemos o prazer de somar forças com
os mais novos membros de nossa equipe, que apesar de iniciarem nesta edição suas
atividades junto à Alethes, foram pilastras fundamentais para que pudéssemos
desenvolver nossas atividades e pudéssemos pensar em nossa revista em longo prazo,
com concretizações de nossos planos, aparentemente utópicos, porém latentes nesse
coletivo que vem se formando. Sendo assim, é o caso de agradecer a todo o esforço
imprimido e todo o comprometimento sedimentado dos novos companheiros Marcos
Felipe, Elora Fernandes, Pedro Cuco e Eduardo Maia, que serão fundamentais para a
persistência e para o sucesso desta empreitada.
Também, concomitantemente à importância dos companheiros listados acima,
está em destaque a essencialidade das pessoas que confiaram a nós suas produções
criativas e colaboraram providencialmente com os anseios deste periódico, que graças a
esta demonstração de confiança nos fizeram sair mais fortes desta edição e com fôlego
renovado para encarar os próximos desafios que estão por vir. Esta edição, pois, foi
marcada mais uma vez por um a forte veia inovadora e pela diversidade regional das
produções acadêmicas. Tivemos o prazer de publicar 8 trabalhos, de faculdades públicas
e particulares, que tiveram os mais variados temas que permearam pelo Direito do
Trabalho, Educação Jurídica, Biossegurança, Filosofia, Política e Direitos Fundamentais.
Além disso, com muito orgulho alcançamos mais uma vez uma satisfatória divulgação
dos trabalhos realizados pela Alethes e conseguimos contribuições de diferentes partes
do país, com forte presença ainda do estado de Minas Gerais, mas com a entusiasmada
adesão do estado do Pará, que se viu muito bem representado por graduandos da UFPA.
Uma alegria contagiante é responsável por inundar esta 6ª edição do Periódico
Alethes, qual eu tenho a infindável honra de inaugurar com a ajuda de meus companheiros
de equipe, que inspiram fé e esperança em todos aqueles que passam a conhecer os
objetivos deste projeto, fazendo, portanto, justiça à etimologia da palavra “companheiro”,
tão repetida ao longo deste breve editorial. Afinal, segundo a origem atribuída a esta
expressão, companheiro é aquele com quem dividimos o pão, oriunda do latim “cum
panis”, em simbologia àquele que confiamos o suficiente para sentar em nossa mesa e
dividir nossas ideias, nossos desafios e nossas conquistas, pois assim como o pão é
responsável pela alimentação do corpo, esses ímpetos compartilhados de coragem,
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF., v. 4, n., 6 pp. 292-294, jul./dez., 2014.
desafiadores do status quo, são responsáveis pela alimentação do espírito, que deverá
estar firmemente posto nos próximos tempos, tendo em vista toda a travessia de
realizações previstas ao Periódico Alethes.
Alan Rossi
Editor Geral do Periódico Alethes
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Superando as Crises do Ensino de Direito e da Pesquisa Jurídica a
Partir da Indissociabilidade entre Ensino e Pesquisa
Arthur Barretto de Almeida Costa1
Resumo
Neste ensaio, buscamos descrever com brevidade a crise instalada no ensino de
direito e na pesquisa, tanto em geral, como a jurídica, em particular. A primeira advém
da mercantilização do conhecimento e da massificação desconectada da qualidade, ao
passo que a segunda se liga à lógica de “publicar ou perecer”, que leva a uma produção
industrial do conhecimento que aniquila a possibilidade de reflexão e, por consequência,
a qualidade. Propusemos, então, que a integração entre ensino e pesquisa pode contribuir
para a superação de ambas as crises, através do emprego de artigos e outros materiais de
pesquisa na graduação, deixando de lado a “cultura manualesca”, ao mesmo tempo em
que esse uso aumentaria a atratividade da publicação de qualidade, já que haveria maior
possibilidade de impactar na realidade. Por fim, foram propostas algumas ações para
professores e diretores de periódicos científicos que poderiam colocar em prática essas
recomendações.
Palavras-chave: Ensino de Direito; Pesquisa Jurídica; Produtivismo; Artigos
Jurídicos.
Abstract
In this essay, we will briefly describe the general crises in teaching and
researching, and the particular situation of both in jurisprudence. The first comes from
the marketing of knowledge and quantity without quality, while the second is connected
to “publish or perish” logic, which consequences are industrial production of science and
no possibility of reflection. We propose so the integration between teaching and research
as the condition of surpassing such situation, by using scientific articles in classroom, and
not only the textbooks, as long as this same usage would increase the quality of
publications, since it will be a higher possibility of those texts impact the reality. Finally,
we proposed some measures for professors and journal’s editors that could make those
observations reality.
Key Words: Law Teaching; Law Research; Productivism; Jurisprudence
Articles.
1
Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista de Iniciação Científica do
CNPq. Membro do GruMEL-FALE/UFMG (Grupo Mineiro de Estudos do Léxico), do Conselho Editorial
da Alethes: Periódico dos Graduandos em Direito da UFJF, e da Revista do CAAP (UFMG).
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COSTA, A. B. A. Superando as crises...
Introdução
Nas discussões atuais acerca da Educação no Brasil, tem-se identificado uma crise
em todos os níveis de ensino, com a percepção da perda do sentido de várias práticas
tradicionais, vistas como deletérias e contraprodutivas, e a difícil busca de alternativas
para a ressignificação do processo de aquisição do conhecimento. O ensino de Direito
ocupa uma posição bastante proeminente nesse contexto, já que é uma das carreiras que
mais atraem estudantes, e tem sua conformação marcada por uma conjuntura bastante
peculiar: os concursos públicos.
De outro lado, tornou-se quase que lugar-comum as críticas aos métodos de
avaliação da produção acadêmica encetados pela CAPES e pelas outras agências de
fomento, os quais induzem a um quantitativismo igualmente prejudicial. A necessidade
de auferições do estado das revistas científicas, dos diferentes programas de pósgraduação e de todos os outros componentes do sistema de produção do conhecimento é
constantemente reafirmada, mas os meios propostos mostram-se muitas vezes falhos e
carentes de profundas revisões.
Neste breve ensaio, buscaremos identificar possíveis conexões entre as duas
problemáticas, mostrando como uma questão pode se refletir na outra, de modo que
soluções pensadas em conjunto possam conduzir a uma melhora substancial e conjunta
tanto da produção como na aquisição do conhecimento acadêmico do Direito.
Ensino de graduação: quais profissionais buscamos?
A realidade dos cursos jurídicos é influenciada por um grande marco, que modela
currículos, interfere na mentalidade de professores e altera as escolhas dos estudantes: os
concursos públicos.
Um dos grandes atrativos dos cursos de Direito no presente são as oportunidades
em carreiras na estrutura gerencial do Estado, como a Magistratura, o Ministério Público,
a Defensoria, dentre diversas outras. Além disso, a advocacia e a maioria das outras
carreiras tem seu ingresso condicionado pelo exame da Ordem dos Advogados, um
processo em muito assemelhado aos concursos: conta com algumas provas de múltipla
escolha, uma minoria de questões discursivas e, via de regra, pouco grau de
interdiciplinariedade e de pensamento crítico e aprofundado.
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Dessa maneira, instaura-se uma racionalidade instrumental na definição do
conteúdo ensinado nas salas de aula: boa parte dos elementos do currículo estão
condicionados pelos ditames dos editais dos concursos. Aquilo que fugir desse objetivo
é identificado como desperdício de esforços, devendo ser contornado face à exigência
maior, que é a aprovação.
A reboque, vem a centralidade dos manuais e da “cultura manualesca” nas aulas.
As exposições dos professores, quando não simples leituras de códigos seguidas por
comentários, se constituem, muitas vezes, na mera repetição do ensinado em um ou dois
manuais consagrados na disciplina. Assim, o que deveria funcionar como mera base de
introdução na temática a ser tratada passa a ser a fonte principal de saber, da graduação à
prática profissional.
Há uma aparênciade que tudo funciona bem: o professor tem pouco trabalho na
elaboração de suas lições, o aluno tem a tranquilidade de saber que está apendendo apenas
o que será cobrado naqueles concursos que pretende prestar, e as altas taxas de aprovação
trarão a chancela do MEC, da OAB, da mídia e das outras instituições. Todos ganham.
Ou quase todos, na verdade. Perde o Direito, cuja densidade em termos de reflexão passa
a ter a profundidade de uma poça d’água, e perdem os jurisdicionados, cujas querelas são
tratadas em debates pouco qualificados, operando sobre bases teóricas defasadas e que
não acompanham (ou pensam acompanhar) o ritmo das mudanças sociais. Em suma,
perde apenas a sociedade que se encontra além dos muros dos tribunais e da academia.
O produto de tudo isso é o famoso “operador do Direito”: um profissional capaz
de ler a lei, coletar um ou dois julgados, tendo um ou outro manual na estande, e preparado
para atender às demandas da vida forense. No entando, como o próprio nome diz, o
“operador” não possui a capacidade crítica necessária para acompanhar os debates
nacionais e internacionais mais avançados, trabalhar com a interdiciplinariedade, enfim,
qualificar seu discurso, pelo simples fato de que sua formação não foi orientada para
tanto: ele foi treinado para apenas marcar o “x” na caixa (que a banca considera a mais)
correta. Nenhuma liberdade de criação. Nenhuma contestação.
Avaliação da pesquisa e crise na ciência
Já há algumas décadas, a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nivel Superior) tem assumido a função de avaliar a qualidade da pós graduação no
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COSTA, A. B. A. Superando as crises...
Brasil, desenvolvendo as mais diferentes técnicas, índices e critérios para efetivar essa
missão.
Uma das formas consideradas mais relevantes para a definição da qualidade
acadêmica de um curso de pós graduação ou de um pesquisador em particular é a sua
produção científica, efetivada sobretudo sob a forma de artigos acadêmicos. Estes são
escrutinados sob dois diferentes vieses: um quantitativo e um outro (aparentemente)
qualitativo. Pelo primeiro, considera-se um bom pesquisador aquele que publica muitos
artigos; pelo segundo, é de bom nível quem escreve para periódicos científicos de
qualidade. Mas a que se atribui a qualificação de “revista de alto nível”?
Para tanto, a CAPES lança mão do sistema QUALIS, o qual classifica as revistas
em 8 diferentes categorias, da mais para a menos bem avaliada: A1, A2, B1, B2, B3, B4,
B5 e C. São utilizados diversos requisitos mínimos para que uma publicação seja
enquadrada no mínimo do sistema, o que a poria no nível B5: mínimo de 14 artigos
disponibilizados por ano, processo de revisão duplo-cega por pares, conselho editorial
composto por pesquisadores consagrados, dentre outros. A partir desse patamar, são
definidos outros parâmetros os quais indicariam a qualidade da publicação; no caso do
Direito, o principal é a exogenia, ou seja, o percentual de pesquisadores de unidades da
federação diferentes daquela que publica o periódico sobre o total de conselheiros
editoriais, de autores de artigos, etc. Cabe ainda ressaltar que são avaliados apenas aqueles
periódicos em que alunos ou professores de programas de pós-graduação publicaram
durante o período que está sendo avaliado; assim, periódicos focados na divulgação de
trabalhos de alunos de graduação, como a Alethes, sequer são avaliados.
O primeiro estranhamento parte do fato de não haver critérios diretamente
qualitativos entre aqueles utilizados pela CAPES: há apenas a presunção, apenas
parcialmente correta, de que uma revista que atraia colaboradores de diversas áreas
geográficas deva ser necessariamente boa. Não há base, como em outras áreas, no fator
de impacto, que é a média de citações recebidas pelos artigos publicados na revista, o
qual, embora tenha diversos problemas, e não defina fielmente a qualidade de um artigo,
pelo menos cumpre a função de mensurar o grau de difusão de um determinado trabalho.
Como não há uma cultura de citações de artigos, nem bases de dados suficientemente
grandes para apurar as citações de artigos juridicos brasileiros, essa métrica fica
impossibilitada.
Mas há ainda outra questão bastante importante: não é possível deduzir a
qualidade de um artigo científico a partir da qualidade do periódico que o publica. De
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fato, muitos artigos de qualidade são rejeitados por periódicos bons, por diversas razões;
uma delas, a qual revela uma distorção importante do sistema, é o fato de o trabalho ser
muito diferente, inovador, ou pertencer a um nicho muito recente da ciência, já que o fato
de menos pesquisadores trabalharem nessas áreas leva a que artigos fora dos camposclichê serem pouco atrativos. E no Brasil há o agravante de que, para se manter bem na
escala do QUALIS, um bom artigo enviado por um pesquisador da mesma unidade da
federação do periódico contribui menos do que um mau artigo de outro estado. Assim,
editores em busca de uma boa qualificação para suas revistas tenderão a rejeitar bons
artigos locais em busca de maus artigos externos, o que pode, na verdade, diminuir a
qualidade de seus periódicos e diminuir sua atratividade para a leitura.
Mas o mais grave em toda essa situação é que a lógica cruel do “publicar ou
perecer” (publish or perish, o mantra internacional da pesquisa científica) leva a uma
busca
desenfreada
por
publicar
cada
vez
mais
nos
melhores
periódicos,
independentemente da qualidade ou do real impacto das pesquisas na vida dos cidadãos
comuns, ou mesmo no desenvolvimento teórico da disciplina. Assim, artigos mais
facilmente publicáveis, e com maior potencial de citação serão produzidos em campos de
pesquisa em que se encontre grandes quantidades de pesquisadores, já que há mais
pessoas para citar e serem citadas; isso contribui para diminuir a já baixa atratividade de
campos de pesquisa pouco explorados, com comunidades de pesquisa pequenas e bastante
arriscados, mas com altíssimo grau de inovação e grandes chances de produção de
impacto. Assim, fomenta-se o que se chama de “ciência incremental”, aquela que gera
pequenos acréscimos e ajustes sobre o conhecimento prévio, mas que não efetua grandes
descobertas, nem é capaz de revolucionar o entendimento sobre a realidade.
Para além dessas possíveis consequências, há ainda práticas que flertam com a
imoralidade ou que transpõem abertamente a barreira da ética. No primeiro caso, temos
a chamada “salami science”, que é a prática de dividir os resultados de uma pesquisa
única em vários artigos, de modo a inflar desnecessariamente o número de publicações;
ou a combinação de se citar um outro pesquisador para que, em troca, ele o cite de volta.
No segundo caso, temos a fraude pura e simples, a invenção de resultados, o plágio e
outras práticas extremamente graves.
No final das contas, muito se escreve e se produz, mas pouco se lê: especialmente
na área do direito, uma olhada rápida nas listas de referências da maioria dos artigos
apresentados em nossos periódicos mostra que a maioria das leituras dos nossos
pesquisadores ainda é de livros. Ou seja, um esforço hercúleo em torno da produção de
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COSTA, A. B. A. Superando as crises...
artigos científicos conduz a uma produção de baixíssimo impcto dentro da própria
academia, já que ela raramente reverbera nos trabalhos seguintes.
O papel dos periódicos científicos nas crises do conhecimento
Como já dito anteriormente, os problemas acima descritos já são profundamente
conhecidos pela comunidade de pesquisadores. Mas cabe explorar um campo
interessante: de um lado, temos um sistema de avaliação que, em muitos casos, produz
trabalhos de beixa qualidade e pouco lidos, e, de outro, estudantes e professores com
pouco interesse na leitura de artigos. Mas uma análise detida pode mostrar que a
superação das dificuldades em cada uma das áreas, educação e ciência jurídicas, tem
potencial gigante – talvez seja indispensável – para deixar para trás as dificuldades que
emperram o desenvolvimento da outra.
Nesse sentido, o uso de artigos científicos em sala de aula tem o potencial de levar
ao início da formação do indivíduo os debates mais avançados que ocorrem no seu campo
do conhecimento, estimulando a formação do espírito crítico e da busca de conhecimento.
Além disso, é um poderoso estímulo na superação da assim chamada “cultura
manualesca”: alunos que aprendem com manuais tendem a citá-los em suas peças
forenses quando se tornam advogados, juízes e promotores, enquanto que, caso tenham
tido contato estreito com a produção bibliográfica publicada em periódicos, tenderão a
utilizá-la em sua prática profissional. Ao mesmo tempo, a criação de uma cultura de uso
de artigos tende a gerar uma demanda tanto por mais como por melhores artigos, tendo
um efeito positivo sobre a produção acadêmica.
Isso decorre de uma característica fundamental da academia: existem dois
incentivos fundamentais para a atuação do pesquisador. O primeiro são as avaliações
institucionais, como aquelas efetuadas por instituições de fomento, como CNPq, CAPES,
FAPEMIG e FINEP, para a concessão de recursos a projetos, ou as realizadas pelas
instituições de ensino para o posicionamento dos profissionais ao longo da carreira; no
final, está-se tocando na questão financeira. A segunda, e que é bastante pronunciada no
ambiente científico, é a reputação. Cientistas em geral, e juristas em particular, tendem a
buscar construir uma imagem positiva de si mesmos e de seus trabalhos perante os pares.
Isso decorre de algumas características da vida acadêmica, como o papel fundamental
desempenhado pela comunicação científica na produção do conhecimento, já que este,
enquanto empreendimento coletivo, só se efetiva com a troca de informações; o grande
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prestígio desempenhado pela atividade científica no mundo atual; o papel desempenhado
pelo fato de se dar palestras em congressos, coordenar enventos científicos e outras
atividades que dependem essencialmente da aprovação dos pares; dentre diversas outras.
Assim, com a difusão dos artigos acadêmicos no mundo prático, é maior a
possibilidade de que essa produção tenha um impacto real na vida das pessoas, gerando
uma reputação positiva para o seu autor e tornando-se, assim, um incentivo alternativo à
produção para além das avaliações efetivadas pelos órgãos oficiais. Atualmente, pelo
menos no âmbito do direito, esse papel é ocupado pelos manuais, de modo que as posições
de prestígio no mundo jurídico são atingidas não por aqueles que publicam com
frequência artigos de qualidade em periódicos qualificados, mas os que publicam manuais
muito vendidos por editoras de prestígio.
Com isso, fica claro que a incursão da produção acadêmica no mundo do ensino
de direito tem um efeito positivo dos dois lados: qualifica o ensino de graduação ao
mesmo tempo em que permite a elevação da qualidade dos artigos publicados; além disso,
há um impacto real sobre a prática dos estudantes após o fim dos estudos formais, de
modo que se efetiva uma das bases da universidade brasileira contemporânea: a
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Mas ainda permanece uma questão:
como então superar a crise atual e construir a ponte entre ensino e pesquisa, o motor do
processo acima descrito?
Trata-se de uma questão difícil, e que não pode ser respondida com certeza;
contudo, tentaremos abaixo elencar algumas possibilidades.
Um primeiro passo é fazer com que os artigos estejam presentes em outros artigos:
por mais irônico que isso seja, os trabalhos publicados em periódicos citam muito poucos
artigos - pelo menos no caso do Direito e das ciências humanas em geral - o que diminui
em muito a importância desses trabalhos. Assim, um primeiro passo seria buscar esse
maior intercâmbio acadêmico, fazendo com que as revistas sejam lidas pelos próprios
pesquisadores, o que muitas vezes não acontece. Uma forma de conseguir isso seria fazer
com que os pareceristas das revistas e os seus editores, quando dessem retorno aos autores
acerca dos manuscritos submetidos, solicitassem a leitura e discussão de mais artigos,
podendo, em alguns casos, indicar trabalhos específicos a ser considerados; o mesmo
deveria ser exigido pelos orientadores dos seus alunos, quando estivessem elaborando
teses, dissertações e outros trabalhos.
Além disso, cumpre efetuar uma melhor divulgação das revistas. Muitas vezes, as
chamadas de publicação ou o lançamento de novas edições são desconhecidas do público
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COSTA, A. B. A. Superando as crises...
acadêmico, sendo divulgadas por meio de um ou outro cartaz na faculdade, e uma
chamada de pouca divulgação na internet. Seria interessante que se criassem sites ou
páginas em redes sociais especializados em fazer essa divulgação, congregando um
público direcionado e aumentando a circulação dessas notícias. A última chamada da
Alethes foi divulgada em diversas cidades de 6 estados brasileiros e em Portugal, na
maioria destes lugares tendo ocorrido divulgação física de cartaz especialmente
elaborado. Isso torna a publicação conhecida e chama a atenção para a leitura de seus
textos, ou pelo menos de seu sumário, o que já ajuda no seu conhecimento, sendo um
primeiro passo para seu uso.
O advento da internet também facilita a difusão dos artigos, já que existem bases
de dados extremamente amplas contendo periódicos das mais variadas áreas do
conhecimento disponibilizados sem custo algum, em alguns casos, assinados por agências
governamentais, e, em outros, no modelo Open Access. Exemplos são o Portal de
Periódicos da CAPES, com quase 40 mil revistas, o SciELO, principal bases latinoamericana, e o Google Acadêmico. Entretanto, essas ferramentas são pouco divulgadas
entre os alunos de graduação; seria interessante que elas fossem apresentadas pro
professores, especialmente os da disciplina de metodologia da pesquisa, nas instituições
em que ela existir, ou por algum outro docente que venha a cobrar a redação de um artigo
ao longo de sua disciplina. Ademais, as próprias bases poderiam efetuar campanhas de
divulgação.
Também é importante que os professores utilizem efetivamente os artigos em sala
de aula, tratando-os como apoio ou fonte principal de informação em seus programas de
graduação. Além disso, é interessante que seja solicitada a escrita de trabalhos sob a forma
de artigo, o que potencializa a necessidade de o estudante buscar escritos dessa natureza
para servirem de base para os seus próprios textos. No entanto, para que isso se efetive, é
necessário uma profunda revisão dos próprios processos de avaliação de aprendizagem
dos cursos de Direito, os quais normalmente estão focados apenas em provas –
frequentemente, de multipla escolha -, seguindo o modelo dos tão desejados concursos
públicos.
Além disso, é necessário um efetivo diálogo da pesquisa com a graduação: os
estudantes do primeiro nível devem ser ser estimulados a se inserir no universo da
investigação, seja na forma dos programas de iniciação científica, cada vez mais comuns,
seja de forma voluntária. Assim, a participação em grupos de pesquisa, a condução de
projetos, a inscrição em congressos e outros eventos torna o aluno parte da pesquisa, e o
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir UFJF, v. 04, n. 06, pp 295-305, jul./dez., 2014.
estimula a querer transferir o instrumental que ele adquire na investigação para o processo
de aprendizagem ocorrido em sala de aula. Ademais, é importante uma política de
publicação por parte dos periódicos que aceite artigos oriundos de estudantes da
graduação, já que isso possibilitar a inserção completa do processo de produção do
conhecimento. No caso do Direito, muitas revistas ainda exigem o título de pós-graduação
para se publicar, ou que pelo menos um dos autores seja doutor; no entanto, as revistas
científicas estudantis vêm quebrando essa lógica. Dentre as várias que existem no Brasil,
podemos citar a Revista do CAAP, na UFMG, a Revista dos Estudantes de Direito da
UnB, e as revistas In Verbis e Fides da UFRN. A nossa Alethes, da UFJF, empunha
também essa bandeira e radicaliza a proposta, aceitando apenas autores graduandos.
Considerações Finais
O ensino do Direito e a Ciência atravesam crises, mudanças de paradigma, perdas
de sentido e ressignificações, gerando conflitos, tensões e disputas. Nossa época tem
assistido à intensificação desse processo, e tem buscado discutir suas causas e possíveis
saídas. Nesse trabalho, tratamos de recolocar os dois problemas sob uma pespectiva
diferente: tratando-os com o mesmo olhar, ou seja, identificando a mudança no sentido
do ensino de direito como vetor para a transformação da pesquisa jurídica, ao mesmo
tempo que vemos a ressignificação desta como o catalizador da melhoria da qualidade
das nossas salas de aula. Com isso, buscamos levar da forma mais séria e comprometida
possível a ideia de indissociabilidade entre ensino e pesquisa, parte do tripé que
fundamenta a compreensão da universidade brasileira moderna.
Podemos ver, assim, que, mais do que meros conceitos retóricos vazios, alguns
dos principais vetores do discurso universitário contemporâneo, como a ideia de
autonomia universitária, o tripé ensino-pesquisa-extensão, ou, o que aqui se tratou de
forma mais detida, a ligação entre ensino e pesquisa, são elementos profundamente
transformadores da realidade, e que, se levados à suas últimas consequências, podem
promover mudanças reais nas vidas das pessoas, solucionando problemas quotidianos que
entravam o desenvolvimento do país.
Este breve ensaio busca ser um primeiro passo nessas discussões, trazendo para o
palco simbólico que é um periódico estudantil reflexões sobre o papel da universidade
na sociedade, que devem ser levadas a cabo por todos, inclusive alunos de graduação.
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COSTA, A. B. A. Superando as crises...
Diversas dimensões do problema foram deixados de lado, como a estreita
vinculação deles a algumas ideologias econômicas – o privilégio da mensuração, do
quantitativismo e dos objetivos estreitos que é típico do neoliberalismo é muito claro em
alguns critérios de avaliação da CAPES, bem como na mercantilização dos cursos de
Direito. Contudo, como espaço de debate, antes de mais nada, a Alethes busca aqui
provocar o leitor e apenas abrir caminho para reflexões ulteriores. Eperamos ter cumprido
esse objetivo.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir UFJF, v. 04, n. 06, pp 295-305, jul./dez., 2014.
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FREITAS, L. M. Norma e Direito
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Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014.
Norma e Direito: Michel Foucault e o excesso normativo-jurídico
Norm and Law: Michel Foucault and the juridical-normative excess
Lorena Martoni de Freitas1
Resumo:
A inflação legislativa é um fenômeno que expõe uma possível crise do direito,
ou talvez, o seu inerente paradoxo. Revela uma prática jurídica que, no intuito de
abarcar a realidade em todas as suas ocorrências, na pretensão de uma completude
seguramente positivada, culmina em um ordenamento em constante modificação, que
desvenda a incoerência intrínseca a seu excesso normativo. Comumente no âmbito
jurídico o problema é explorado e propõe-se solúvel a partir de noções de técnica
legislativa, no entanto o presente trabalho pretende dissecar a matéria sob um viés
foucaultiano. Busca-se compreender portanto, a partir do método genealógico de Michel
Foucault, a relação entre esta evidente inflação legislativa e as ocorrências de
integração de um poder soberano e disciplinar, como vetor da atual realidade jurídiconormativa.
Palavras-chave: Michel Foucault; norma; poder.
Abstract:
The legislative inflation is a phenomenon that exposes a possible crisis of Law,
or perhaps its inherent paradox. Reveals a legal practice that, in order to embrace the
reality in all its occurrences, with the pretension of a completeness surely written,
culminates in a juridical system in constantly change, which reveals an inherent
inconsistency in its normative excess. Commonly in the legal context the problem is
explored and shows itself as soluble by the notions of legislative technique, however
this study aims to dissect the matter under a Foucauldian bias. Therefore it seeks to
understand, from the genealogical method of Michel Foucault, the relationship between
this evident legislative inflation and the integrating occurrences of a sovereign and
disciplinary power, as a vector of the current legal and normative reality.
Keywords: Michel Foucault. Norm. Power.
Recebido em: 28 de outubro de 2014
Aceito em: 28 de janeiro de 2014
1
Aluna de graduação do 10º período da Faculdade de Direito da UFMG, ligada ao Departamento de
Introdução à Ciência do Direito, na linha de pesquisa “Estado, Razão e História”, área “Filosofia do poder
e pensamento radical” com enfoque em biopolítica, sob a orientação do professor Doutor Andityas Soares
de Moura Costa Matos.
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FREITAS, L. M. Norma e Direito
Introdução
Em um breve artigo publicado no jornal Le Monde, em sede de discussão sobre
o livro de Philippe Boucher “Le ghettojudiciaire”, em consonância com este autor
Foucault desenvolve a noção de uma “desordem” no direito, por ser este uma instância
frágil, permeável e transparente, apesar das névoas em que estaria envolta
(FOUCAULT, 1994, p. 696), reforçando a ideia da indiscernibilidade entre direito e os
diversos outros discursos que o circundam. Na medida em que percebe o direito como
instância aberta à penetração dos mais diversos elementos, principalmente àqueles
relacionados a estruturas de dominação que utilizam do discurso jurídico para se
legitimarem, o autor assume a ideia de que os “vícios” do direito fazem parte do seu
próprio mecanismo de manutenção da ordem social.
Essas desordens não são, de fato, nem acidente, nem obstáculos ou limitações
do aparelho judiciário. Nem mesmo perturbações. Mas sim mecanismos de
funcionamento. A Justiça se exerce por e através das incapacidades de um
ministro, das exigências de um interesse, dos erros de ambição.
[...]
Da nossa justiça se espera, pelo menos desde o século XIX, não ter outra
função senão aplicar a lei. É uma formatação muito limitada se você
considerar todas as exceções que ela tolera, todas as contradições que ela
inflige. Mas se você reparar em seu aparelho em funcionamento, em seus
pormenores, você perceberá que a perturbação da lei obedece oprincípio da
preservação da ordem. Diz Philippe Boucher: "A Justiça não está preocupada
com o prejuízo, ela cuida dos transtornos." É devido à ordem que decidimos
processar ou não processar. É devido à ordem que permitimos que a polícia
faça o que quiser. É devido à ordem que expulsamos aqueles que não são
perfeitamente "desejáveis". Este primado da ordem tem pelo menos duas
consequências importantes: que a justiça se preocupa cada vez mais com o
cumprimento da norma do que com o respeito à lei; e que ela tende cada vez
menos punir crimes do que penalizar comportamentos. (FOUCAULT, 1994,
pp. 696-697, tradução nossa)
Esta percepção fornece uma chave de análise para o problema do excesso
normativo jurídico (e suas inerentes contradições) alternativa à adotada no estudo
jurídico dogmático. Ao invés de tomar uma idealização do ordenamento jurídico como
ponto de partida para a crítica de suas imperfeições, como se estas fossem uma
corrupção ou desdobramentos acidentais de um verdadeiro dever ser, e como tais
passíveis de correção, uma abordagem foucaultiana desloca o foco crítico exatamente
para este conceito idealizado, desvelando o caráter discursivo de uma relação de poder
consolidada a partir construções sobre a verdade, e que assim se sustenta na reiteração
de uma ideia de ordenamento jurídico hierarquicamente unificado e coerente, cujo
conteúdo normativo encerraria orientações de caráter absoluto.
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Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014.
A partir desta desmistificação do direito, ainda fortemente atrelado à concepção
iluminista de Estado Legislativo de Direito (FERRAJOLI, 2006), é possível encarar o
confronto entre as normas jurídicas e a realidade social como uma ocorrência natural, e
não falha, que como tal engloba uma mutabilidade necessária, ao invés de adotar
contorcionismos hermenêuticos cada vez mais complexos que insistem em manter a
concepção de um Direito como um sistema de verdades, estático e atemporal,
desconsiderando seu caráter eminentemente decisório e artificial, “posto ou produzido
pelos homens e por isso confiado à responsabilidade dos mesmos sendo como eles o
pensam, o projetam, o produzem, o interpretam e o aplicam” (FERRAJOLI, 2006, p.
430).
Assim, perceber o caráter cultural-construtivo do Direito implica portanto em
assumir uma posição crítica em relação a ideia de legalidade estrita que o sustenta, bem
como o monopólio de sua produção pelo Estado como autoridade formal legítima,
levando-nos a pensar no que Foucault chama em alguns momentos de sua obra de um
“direito novo”, no qual a norma não implicaria a lei, ou seja, um direito ao mesmo
tempo antidisciplinar e liberto do princípio da soberania (Idem, 2005, p. 47), que
serviria como ferramenta possibilitadora de práticas de resistências pautadas em uma
atitude crítica contra o poder normalizador, sendo concebido como de adesão livre do
indivíduo a um estilo de vida que deseja conferir à própria existência (FONSECA, M.
A., 2012, p. 271).
No entanto, para se pensar um direito novo como reflexo de práticas de
libertação, é essencial identificar o caráter normalizador que o direito assume
atualmente, pois somente a partir daí é possível negá-lo e construir subjetividades
jurídicas relacionadas à arte ética da “indocilidade refletida” e ao “cuidado de si”. Por
isso, como prelúdio essencial a um direito a se construir, no contexto do presente
trabalho trataremos pontualmente da ligação entre a ideia de normalizaçãofoucaultiana e
a desordem inerente ao Direito, da forma como este tem se apresentado no decorrer da
história, questão a qual o autor dedicou maior atenção em sua análise crítica, e que será
aqui traduzida no fenômeno do excesso normativo-jurídico. Neste viés será ponderado o
fato de que a lei na atualidade aumenta de modo extraordinário, em quantidade e
diversificação, durando muitas vezes reduzido tempo, impondo alterações ou
substituições constantes no ordenamento jurídico (DOBROWOLSKI, 1999, p. 80) que
se apresenta então necessariamente instável.
311 | A l e t h e s
FREITAS, L. M. Norma e Direito
Assumida como fato social, esta conjuntura tem sido analisada no intuito de
melhor compreender suas causas e efeitos nas esferas jurídica, política e social. Tratarse-ia de uma crise do Direito? Da ideia iluminista de direito - como criação de uma
racionalidade universal - desmistificada em prol de um sistema jurídico mais sujeito à
interpretação hermenêutica? De uma necessidade estatal de organizar integralmente a
sociedade coordenando a atividade de todos os setores particulares no quadro de um
projeto coletivo?
A partir do pensamento desenvolvido por Michel Foucault analisaremos o
conceito de norma para compreendermos porque e se o referido fenômeno deve ser
compreendido como uma inflação do direito. Perceberemos o excesso normativojurídico a partir de um caminho inverso da produção normativa estatal, ou seja, normas
não mais percebidas como projeções de poder do Estado na sociedade, mas sim como
captura de focos de poder pelo aparelho estatal, demonstrando que o Estado opera com
base em relações e redes de poder preexistentes, e não como núcleo único, centralizado
e concentrado emanante de poder.
1.
Contextualização
1.1)
O fenômeno do excesso normativo-jurídico brasileiro
Em outubro de 2013 o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação realizou
um estudo estatístico referente à quantidade de normas no Brasil após 25 anos da
Constituição de 1988, concluindo que:
A legislação brasileira é um emaranhado de complexos assuntos.
Foram editadas mais de 4,7 milhões de normas. Em média são editadas 784
normas por dia útil. Em matéria tributária, foram editadas 309.147 normas.
São mais de 1,91 normas tributárias por hora (dia útil). Em 25 anos, houve 15
reformas tributárias. Foram criados inúmeros tributos, como CPMF,
COFINS, CIDES, CIP, CSLL, PIS IMPORTAÇÃO, COFINS
IMPORTAÇÃO, ISS IMPORTAÇÃO. Foram majorados praticamente todos
os tributos. Em média cada norma tem 3 mil palavras. O termo “direito”
aparece em 22% das normas editadas. Saúde, Educação, Segurança,
Trabalho, Salário e Tributação são temas que aparecem em 45% de toda a
legislação.
[...]
No âmbito federal, foram editadas 158.663 normas desde a promulgação da
Constituição Federal, passando por 6 emendas constitucionais de revisão, 74
emendas constitucionais, 2 leis delegadas, 85 leis complementares, 5.125 leis
ordinárias, 1.238 medidas provisórias originárias, 5.491 reedições de medidas
provisórias, 11.111 decretos federais e 135.530 normas complementares
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Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014.
(portarias, instruções normativas, ordens de serviço, atos declaratórios,
pareceres normativos, etc.).
Em média, foram editadas 17,38 normas federais por dia ou 26,01 normas
federais por dia útil nestes 25 anos.
[...]
Os Estados editaram 1.219.569 normas, sendo 279.906 leis complementares e
ordinárias, 405.884 decretos e 533.779 normas complementares. Em média
foram editadas 133,58 normas por dia ou 199,93 normas por dia útil, em
nível estadual. Neste período, em média, cada Estado editou 45.169 normas,
o que dá 4,95 norma/dia ou 7,40 norma/dia útil.
[...]
Já os Municípios são responsáveis pela edição de 3.406.962 normas,
divididas em 584.045 leis complementares e ordinárias, 647.231 decretos, e
2.175.685 normas complementares. Em média, os municípios brasileiros
editaram 373,16 normas por dia ou 558,52 normas por dia útil. Assim,
considerando que existem 5.567 municípios no Brasil, cada um deles editou,
em média, 611,99 normas neste período.
[...]
Dividindo-se a quantidade de normas editadas pelo número de habitantes do
país, verifica-se que nos três anos anteriores à promulgação da Constituição
de 1988 foi editada 1 (uma) norma geral para cada grupo de 300 habitantes.
No período de 1989 a 2013 foi editada 1 (uma) norma para cada grupo de 42
habitantes. (FERNANDES DO AMARAL; LUIZ DO AMARAL; OLENIKE
(coord., grifo nosso), 2013, pp. 2-6)
Percebe-se que o número de normas jurídicas está em constante aumento, em
contrapartida, seu período de vigência tem se tornado cada vez mais curto. Em adição,
tem-se a incerteza semântica e complexidade da linguagem que as expressa, “permeada
pela imprecisão, obscuridade e ambiguidade, cujos significados podem ser estendidos
indefinidamente em âmbito de aplicação” (FERRAJOLI, 2006, p. 440). Estes fatores
dificultam o conhecimento da legislação pela população, e por vezes pelos próprios
juristas, relativizam o direito gerando insegurança jurídica e hiper-regulam a vida
privada, aumentando a litigiosidade e a judicialização.
Do ponto de vista da Legística, este fenômeno está relacionado, dentre outras, à
condicionantes jurídicas2, políticas3 e procedimentais4, ao fato de que os legisladores
estão elaborando leis mais detalhadas, porque não confiam na legislação ou porque
consideram que os tribunais precisam desse detalhamento. Isso resulta em um problema
cíclico, uma vez que a instabilidade leva à perda de legitimidade, fazendo com que a lei
não atinja o resultado esperado, sendo necessários novos atos normativos para cuidar do
tema. (COSTA JÚNIOR, 2009, p. 80). Ou seja, nos estudos legísticos, a excessiva
2
Relacionada à nossa tradição jurídica federalista assentada no direito escrito.
Exemplos de fatores como a globalização, o direito internacional, a prática do lobby.
4
Pouca restrição à iniciativa individual na apresentação de projetos e emendas, falta de rigor e técnica
legislativa, alta tolerância com as demandas por legislação simbólica, para citar algumas.
3
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FREITAS, L. M. Norma e Direito
produção normativa é resultado de uma irresponsabilidade e inabilidade técnico-teórica,
uma “intemperança normativa”, que pode vir a ser solucionada por meio de melhora nas
redações legislativas, estudos de impacto, análises contextuais, criação de mecanismos
de acompanhamento e aplicação da norma, de instrumentos de acesso, etc. (SOARES,
2007).
José Eduardo Faria por sua vez relaciona este excesso normativo às
transformações tecnológicas e organizacionais da economia industrializada e da
sociedade globalizada, como uma reação do Estado que se vê obrigado a desempenhar
tarefas múltiplas, até mesmo contraditórias, e que substitui a tradicional concepção de
um sistema jurídico fechado, hierárquico e axiomatizado por uma visão do direito como
uma organização de regras sob a forma de rede, modelo que se destaca “pela
multiplicidade de suas regras, pela variabilidade de suas fontes e pela provisoriedade de
suas estruturas normativas, que são quase sempre parciais, mutáveis e contingenciais”
(FARIA, 1994, p. 165).
Esta desenfreada produção normativa, a que o autor trata por “inflação
legislativa”5, também chamada por “anomia jurídica” e “explosão legal”, é comparada a
inflação econômica por disseminar uma insegurança jurídica e inviabilizar um cálculo
racional da vida sócio-política, reduzindo a pó direitos que o autor considera como
“conquistados de modo legítimo”, além de restringir a recepção e compreensão por
parte da sociedade do ordenamento jurídico inflacionado.
Essa comparação entre a inflação econômica e a “inflação legislativa” está
longe de ser gratuita ou forçada. Quando um sistema jurídico está
inflacionado por “leis de circunstância” e por “regulamentos de necessidade”
surgidos a partir de conjunturas políticas, sociais e econômicas muito
específicas e transitórias, a velocidade e a intensidade da produção legislativa
invariavelmente levam o Estado a perder a dimensão exata do valor jurídico
tanto das normas que edita quanto dos atos e comportamentos que disciplina.
Isto porque, nos períodos mais agudos da inflação legislativa, não é só a
coerência e uniformidade das normas “primárias” – as que controlam e
regulamentam os comportamentos – que são completamente erodidas.
Também as próprias normas “secundárias” – isto é, as normas de “mudança”,
as de “reconhecimento” e as de “decisão” – revelam-se progressivamente
incapazes de exercer seu papel de eliminar incertezas e assegurar a identidade
sistêmica do direito positivo, tais as dificuldades, nesses momentos, de
identificação, avaliação e constatação da violação ou descumprimento das
normas “primárias”. (FARIA, 1999, p. 130)
Para o autor o problema dessa polissemia multipolar no ordenamento jurídico é a
instrumentalização do direito de forma retórica-pragmática para enfrentar as ocorrências
5
“Termo utilizado por Rodolfo Pagano em “Inflazioneedinquinamento legislativo” para sintetizar e
resumir todos os fenômenos degenerativos que podem ser observados na legislação italiana, similares às
mazelas que afligem nosso ordenamento jurídico” (COSTA JÚNIOR, 2009, p. 79).
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Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014.
cotidianas, produzindo “leis de circunstância” e “regulamentos de necessidade”,
gerando diferentes microssistemas normativos dotados de lógica própria e resultando
em uma indeterminação do sistema normativo, já que possibilita diversas interpretações
relacionadas a interesses específicos (FARIA, 1999, p. 133). Este sistema esvaziado
torna-se pesado, ineficaz e impotente, agindo como simples instrumento de
implementação de programas econômicos e execução de políticas públicas.
Quanto mais se procura disciplinar e regular todos os espaços, dimensões e
temporalidade do sistema econômico, convertendo numa intrincada teia
regulatória e numa complexa rede de micro-sistemas normativos, esse
ordenamento jurídico altamente "inflacionado" (em termos de quantidade de
regras e da variabilidade de suas formas) e dotado de um formalismo
meramente de "fachada" (graças ao crescente recurso do legislador aos
conceitos jurídicos indeterminados, às normas programáticas e às cláusulas
gerais), menos o Estado parece capaz de expandir seu raio de ação e de
mobilizar os intrumentos de que formalmente dispõe para exigir respeito a
suas ordens (FARIA, 1994, p. 167)
O autor ainda faz referência à teoria de GuntherTeubner sobre os Estados
intervencionistas e seus limites jurídico-estruturais, chamada de “trilema regulatório —
um tríplice dilema formado (a) pela progressiva "indiferença" recíproca entre o direito e
a sociedade, (b) pela tentativa de colonização da sociedade por parte das leis e (c) pela
crescente desagregação do direito por parte da sociedade” (FARIA, 1994, pp. 167-168).
Ou seja, para Faria essa juridificação é tratada como um processo disfuncional que pode
levar à própria anulação do sistema, crise e morte do Direito, pois quanto mais
complexos são os sistemas, menor seria a autoridade institucional do Estado.
Diante desse quadro, o Estado brasileiro parece estar chegando ao limite ou
esgotamento de seu processo de intervenção fiscalizadora e reguladora na
sociedade, na medida em que sua atuação é pautada por diretrizes
desordenadas e erráticas, que o impedem de corrigir as graves distorções
sociais e setoriais, de assegurar um mínimo de organicidade e coerência
lógico-formal em seu ordenamento jurídico e de formular um projeto político
para a nação (FARIA, 1994, p. 173)
Oliveira (2009) apresenta um posicionamento crítico frente à conclusão de Faria,
uma vez que percebe não se tratar de uma crise do direito, mas sim uma permanente
forma de adaptação deste ao dinamismo social e aos novos desafios cotidianos, sendo
antes uma questão de percepção em relação ao sistema jurídico (em que não é a lógica
da subsunção que se encontra ameaçada, mas sim a sistematicidade lógica e a
organicidade do ordenamento), pensando a inflação normativa como impulsionadora do
poder de força do Estado, e não alguma forma de ameaça a ele.
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FREITAS, L. M. Norma e Direito
A inflação normativa, nesse contexto, já não mais seria vista como
decadência do ordenamento ou excesso de acidentes dentro do sistema, mas
apontaria para o fato de que, na indiscernibilidade entre sistema e acidente, o
que vem à tona é um direito como decisão. Diante do irrepresentável que não
se pode prever ou regular, a inflação normativa se demonstra como limiar
entre direito e fato, um movimento irrefreado que acusa o excesso e o
principio da exceção. (OLIVEIRA, 2009, p.18)
Assim, quando o objetivo da ordenação absoluta é desafiado pela união
impossível entre norma e realidade, a captura da caótica vida nua pelo ordenamento
jurídico se dá com sua suspensão pela forma da exceção: um processo que aplica a
norma jurídica desaplicando-a para assim incluir aquilo que antes se encontrava
expulso, realizado por um poder soberano que, localizado no limiar entre ordem e caos,
decide a validade, o fora e o dentro deste ordenamento jurídico (AGAMBEN, 2012, pp.
25-26). Sendo este o movimento contínuo percebido na configuração do fenômeno da
inflação normativo-jurídica, os elementos nodais deste mecanismo serão explorados a
partir do pensamento foucaultiano.
1.2)
As bases do pensamento de Michel Foucault
Michel Foucault foi um filósofo francês nascido em 1926 e morto em 1984,
formado em Psicologia e Filosofia. Possui extenso e rico trabalho que perpassa a análise
das diferenças, relações de poder e produções de saber na história, de forma segmentada
em estudos sobre sexualidade, loucura, as noções de normal e anormal, sujeito e
norma.6 Neste sentido, foi um grande crítico de instituições criadoras de figuras
subjetivas como as clínicas psiquiátricas, prisões, escolas, a igreja, a polícia e o próprio
sistema judiciário.
Rejeitando generalizações e esquemas totalizantes/absolutos construtores de
saber, Foucault discorre sobre a consequente condição do sujeito e, juntamente com
Derrida e Lévi-Strauss, inclui-se no grupo de pensadores franceses pós-Sartre contrários
ao existencialismo por este desenvolvido, que negam principalmente as ideias
humanistas de ativismo e liberdade do sujeito como ser autônomo e precedente a
qualquer poder ou essência. Para Foucault, o sujeito é uma construção da sociedade e
dos saberes dominantes de determinada época que perpassam uma rede de poderes e
discursos de verdade na qual o sujeito se encontra emaranhado.
6
”Alguns chegam a mencionar a existência de três Foucaults: aquele que se preocupa sobretudo com os
discursos (nos anos 60 do século passado), aquele que se ocupa prevalentemente do poder (nos anos 70)
e, por fim, aquele que privilegia o foco na instância ética, ou seja, as formas de autoconstituição do
sujeito (anos 80).” (FONSECA, R.M, 2004, p. 260)
316 | A l e t h e s
Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014.
Em seus estudos, Foucault esmiúça as relações sociais, compreendendo o poder
em uma realidade relacional difusa, ou seja, não necessariamente como um “lugar”, em
uma relação absoluta entre dominante e dominado no âmbito econômico, organizados
em uma pirâmide estrutural na qual uma classe opressora detém o poder e subjuga os
demais de cima para baixo, mas sim um modelo de ramificações em uma rede de poder,
com alguns nós mais evidentes, outros menos. Consequentemente, o autor recusa a ideia
de um poder inteiramente repressor, cujos embasamentos são a violência e a alienação,
admitindo a positividade (no sentido de produtividade) em um poder que, apesar de
normalizador, também induz prazer, constrói saber, realidade e os próprios indivíduos.
O pensamento de Foucault parte de uma análise histórica, com clara influência
da filosofia de Friedrich Nietzsche, desenvolvendo uma epistemologia cujos alicerces
são os fenômenos dispersos na realidade. Seu trabalho sobre as diferenças, sua
arqueologia do saber, a relatividade do poder, os estudos sobre a loucura (três grandes
instâncias do seu trabalho: saber, poder e subjetividade) foram influenciados
diretamente pelos trabalhos nietzscheanos de desconstrução de um pensamento baseado
em verdades conceituais7, sendo a inversão dos valores platônicos o ponto de partida
para a sua filosofia, que rejeita a crença na existência de verdades absolutas e
universais. Nas palavras do filósofo alemão, “uma verdade decerto é trazida à plena luz,
mas ela possui um valor limitado, digo, ela é antropomórfica de fio a pavio e não
contém um único ponto sequer que fosse ‘verdadeiro em si’, efetivo e universalmente
válido” (NIETZSCHE, 2007, p. 40).
Rejeitando a metafísica por considerar ilógica a compreensão de mundo a partir
de outro referencial que não o próprio mundo, Nietzsche foi um grande crítico da noção
platônica de “ideal”, que coloca a verdade em um patamar metafísico a ser alcançado
pelo homem através da razão. Para o filósofo, tal ideia de origem e exterioridade do
conhecimento verdadeiro é absurda, uma vez que esta noção de verdade é uma invenção
do homem, um resultado do constante embate de instintos interpretativos, e de forma
alguma se encontra inscrita na natureza humana, como propõe o idealismo filosófico.
O que é, pois, a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias,
antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram
realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após uma
longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias:
as verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas
que se tornaram desgastadas e sem força sensível, moedas que perderam seu
7
O autor parte da premissa de que “todo conceito surge pela igualação do não-igual” (NIETZSCHE,
2007, p. 35)
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FREITAS, L. M. Norma e Direito
troquel e agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais como
moedas. (NIETZSCHE, 2007, pp. 36-37)
Para Nietzsche a verdade é a cristalização da interpretação do mundo e como tal,
insuficiente, por ser incapaz de acompanhar seu movimento. Foucault se apropria dessa
crítica ao idealismo aplicando-a em sua analítica do poder, estudo intrinsecamente
envolvido com os discursos de saber e desejos de verdade. O filósofo francês identifica
na ideia de “verdade” criticada por Nietzsche a formação de um objeto de desejo que,
uma vez relacionado a um determinado saber discursivo, resulta em uma relação de
poder entre aqueles que detêm um suposto saber verdadeiro, e aqueles que o desejam
(FOUCAULT, 2002, pp. 7-27). Assim, a análise do discurso proposta pelo autor
permite compreender os mecanismos de obtenção, acesso e descrição da verdade, que
fazem emergir focos móveis de poder, tema que irá permear toda a obra do filósofo
francês.
Graças à filosofia genealógica de Nietzsche sobre a relatividade dos discursos,
Foucault desenvolve um estudo do poder que, ao invés de ignorar as singularidades
desconsideradas pela história, universalizando-as e suprimindo as diferenças, identificaas de forma arqueológica, trazendo-as à tona, demonstrando a rede de micropoderes que
rege a sociedade em direção à “normalidade” pela supressão de “minorias desviantes”.
Neste viés relativo aos discursos de verdade que implicam as noções de poder e
seus desdobramentos em estruturas como o Estado e a norma, perceberemos também o
direito e suas formas normativas, a partir do pensamento de “desconfiança”8
foucaultiano, como um discurso legitimador de poder e veiculador de mecanismos de
normalização.
Foucault “desconfia” dos saberes e das práticas da medicina e da psiquiatria
devido ao caráter de normalização inerente à sua atuação sobre os processos
da vida dos indivíduos. “Desconfia” da forma das instituições (como a prisão,
o hospital, a fábrica) que se formam nas sociedades ocidentais a partir do
século XVIII, por que em tais instituições os corpos são submetidos a um
mecanismo de normalização disciplinar. “Desconfia” dos procedimentos das
artes de governar (liberal e neoliberal), que se organizaram e se afirmaram no
Ocidente entre os séculos XVIII e XX, porque nelas reconhece os
mecanismos da normalização como biopoder. Do mesmo modo, “desconfia”
da forma do direito nas sociedades modernas devido à colonização de suas
manifestações concretas (a produção e o conteúdo das leis, a estrutura de suas
instâncias de julgamento, a organização dos saberes que compõe seus
domínios) pelos mecanismos de normalização, colonização que se dá no
interior de um quadro institucional formal ligado ao princípio da soberania
(princípio da legitimidade do poder e da obrigação legal da obediência).
(FONSECA, M. A., 2012, p. 245)
8
Termo utilizado por Márcio Alves da Fonseca para descrever uma tendência de posicionamentos de
Michel Foucault ao longo de sua obra.
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Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014.
Nesse sentido, a partir dessa percepção do direto enfrentaremos a temática do
excesso normativo-jurídico também com “desconfiança”, ou seja, não apenas como uma
mera falha da técnica legislativa, mas como consequência de uma lei que funciona cada
vez mais como norma (no sentido de comprometida com mecanismos de normalização),
não necessariamente na busca da realização da justiça, mas sim para garantir o primado
da “ordem” social, ainda que resultante de uma “desordem” do ordenamento jurídico e
seus princípios.
2. A norma
O estudo do direito divide-se primordialmente entre duas grandes correntes que
se diferenciam desde a delimitação do seu objeto: o positivismo jurídico e o
jusnaturalismo. A primeira, formada a partir da “influência do Círculo de Viena de
Carnap, Neurath e Schlick, identifica o Direito diretamente com a norma jurídica, e foi
desenvolvida inicialmente por juspublicistas alemães como Edmund Bernatzik, Otto
Mayer e Paul Laband que partiram dos trabalhos fundamentais de Carl Friedrich von
Gerber e Georg Jellinek para tentar fundar uma visão científico-objetiva do Direito e do
Estado (MATOS, 2011, p. 45). Teve como principal expoente o jurista austro-húngaro
Hans Kelsen, autor da expressiva “Teoria Pura do Direito”. Já a segunda admite
elementos externos ao próprio direito positivo como componentes do objeto de estudo
do Direito, sejam eles o direito divino, direito natural, a sociologia, reproduzindo-se em
diversas vertentes, como a Escola histórica de Savigny, a Escola Marxista, a Escola
Sociológica, etc.
Independente da corrente adotada, frente ao fenômeno discutido, há de se
admitir o papel crucial da norma no estudo do Direito, gênero do qual a norma jurídica é
espécie, sendo ela componente do objeto do Direito, ou o próprio objeto em si. Para
tanto, necessário compreender seu significado, que assume elementos diferentes na
tradicional teoria da norma estudada no Direito e na filosofia de Foucault.
Importante ressaltar que Michel Foucault não dedicou seus estudos à filosofia do
direito em si, mas desenvolveu grande parte do seu pensamento em torno das noções de
“norma” e “lei” na mecânica social. Como afirma Márcio Alves da Fonseca, em seu
livro “Michel Foucault e o Direito”, tais noções não surgem como conceitos bem
delimitados, mas sim como imagens que afloram na obra do filósofo em diferentes
contextos.
A norma aparece como um princípio de exclusão ou integração, ao mesmo
tempo em que revela a implicação de duas formas que assume
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FREITAS, L. M. Norma e Direito
historicamente, ou seja, a forma de “norma de saber”, anunciando critérios de
verdade cujo valor pode ser restritivo ou constitutivo, e a forma de “norma de
poder”, fixando para o sujeito as condições de sua liberdade, segundo regra
externas ou leis internas. (MACHEREY, 1988, apud FONSECA, M. A.,
2012, p. 51)
Sendo a “norma de poder” o tema pertinente em primeiro plano para o estudo
jusfilosófico, Márcio Alves da Fonseca destaca que, em sua analítica do poder Foucault
distingue dois modelos opostos de representação do poder, o jurídico e o normativodisciplinar, concebendo o direito inicialmente como “enunciado da lei, como legalidade,
como conjunto das estruturas que compõem a legalidade” (FONSECA, M. A., 2012,
p.95), e sendo a lei “uma regra de interdição, de proibição, regra que permite a
separação rigorosa entre o permitido e o proibido, entre o lícito e o ilícito; como
instância que impõe limites e que diz não” (FONSECA, M.A., 2012 p.127) e “que
representa a vontade do soberano que fora lesada e que é o próprio objeto de toda
disputa judiciária da qual o suplício será a conclusão” (FONSECA, M.A., 2012, p.139).
Em contrapartida a norma é a regra portadora de uma pretensão de poder e advinda de
um saber pré-constituído que busca a adequação ao “normal”, tido aqui como o oposto
de patológico (FOUCAULT, 2002, p. 62).
No entanto, feita essa separação conceitual inicial na obra foucaultiana (cujo
intuito era desmistificar a noção de poder como uma posse exclusiva e legítima do
soberano), o filósofo passa a demonstrar como o desenvolvimento do poder jurídico
para um modelo de gestão pautado na biopolítica incorpora a norma em sua estrutura,
convertendo-a em norma jurídica. Nesse momento, norma e lei não podem mais ser
pensadas de forma independente, sendo o aspecto normativo inerente à forma da lei, não
podendo esta ser reduzida a um simples comando (FONSECA, M. A., 2012, pp.144147).
2.1)
A norma e a lei
Na obra de Foucault, a norma nasce da bipolaridade, da separação de dois
objetos contrastantes, reduzindo a complexidade do real e baseando-se eminentemente
em um critério estatístico e um consenso tácito da coletividade, que busca amoldar os
sujeitos e suas condutas por meio de instituições, de forma a garantir sua correta
integração ao corpo social e proporcionar sua homogeneização. Em seu curso “Os
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Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014.
anormais”9, após citar o livro de Georges Canguillhem, “Le normal et lepathologique”,
Foucault define a norma:
Vocês também vão encontrar, sempre no texto a que me refiro, a ideia, que
acho importante, de que a norma não se define absolutamente como uma lei
natural, mas pelo papel de exigência e de coerção que ela é capaz de exercer
em relação aos domínios a que se aplica. Por conseguinte, a norma é
portadora de uma pretensão de poder. A norma não é simplesmente um
princípio, não é nem mesmo um princípio de inteligibilidade; é um elemento
a partir do qual certo exercício de poder se acha fundado e legitimado.
Conceito polêmico – diz Canguilhem. Talvez pudéssemos dizer político. Em
todo caso – e é a terceira ideia que acho importante – a norma traz consigo ao
mesmo tempo um princípio de qualificação e um princípio de correção. A
norma não tem por função excluir, rejeitar. Ao contrário, ela está sempre
ligada a uma técnica positiva de intervenção e de transformação, a uma
espécie de poder normativo (FOUCAULT, 2002, p.62).
François Ewald, em seu livro “Foucault: A norma e o Direito”, retoma a citada
obra de Georges Canguilhem que influenciou os trabalhos do filósofo francês traçando a
origem etimológica da palavra “norma”:
Se soubermos que norma é a palavra latina que traduz esquadro e que
normalis significa perpendicular, sabemos mais ou menos o que é preciso
saber acerca do domínio original dos termos norma e normal. [...] Como
metáfora, o termo será retomado para designar a regra de direito. [...] Ora, no
princípio do século XIX irá dar-se uma singular alteração nas relações entre
regra e norma. Norma já não será um outro nome para regra, antes vai
designar ao mesmo tempo um certo tipo de regras, uma maneira de as
produzir e, sobretudo, um princípio de valorização. É certo que a norma
designa sempre uma medida que serve para apreciar o que é conforme à regra
e o que dela se distingue, mas esta já não se encontra ligada à ideia de
rectidão; a sua referência já não é o esquadro, mas a média; a norma toma
agora o seu valor de jogo das oposições entre o normal e o anormal ou entre o
normal e o patológico (EWALD, 2000, p.79)
Nesse sentido, sob o manto foucaultiano Ewald explica a norma como elemento
referencial de homogeneização social e de articulação da sociedade disciplinar, que
estabelece comunicações entre instituições produtoras de saber e discursos de poder na
construção dos indivíduos. Mas para isso, a norma age antes como medida que torna os
indivíduos comparáveis, salientando os desvios relacionais, “aquilo que a norma torna
visível são sempre desvios, diferenças, aquilo pelo qual nos distinguimos dos outros, ou
até de nós mesmos” (EWALD, 2000, p. 111). Ou seja, antes de produtora de
subjetividade na construção do indivíduo (tarefa realizada no processo disciplinar) a
norma equaliza a partir de uma medida comum, uma média constatada estatisticamente
por um determinado grupo sobre ele mesmo.
A norma designa uma regra de juízo, uma maneira de produzir a regra de
juízo. É uma maneira de ordenar multiplicidades, de as articular, de as
9
Curso ministrado pelo autor no Collége de France entre 1974 e 1975.
321 | A l e t h e s
FREITAS, L. M. Norma e Direito
relacionar consigo mesmas segundo um princípio de pura referência a si. A
norma produz objectividade. É um princípio de comunicação, uma maneira,
particular, de resolver o problema da intersubjetividade. A norma igualiza,
torna cada indivíduo comparável a cada outro; fornece medida (EWALD,
2000, p. 108-109)
Esse processo de categorização, de compartimentalização, proporciona a
produção de saber e de técnicas disciplinares, que para Foucault, passa a se desenvolver
no âmbito institucional como um mecanismo de adestramento dos corpos, remetendo
esse saber constituído por meio de dados e relatórios ao poder soberano para o exercício
da governamentalidade10. A normalização é essencial para uma organização social
coesa, para a padronização de seus mais diversos nichos: econômico, jurídico, social,
proporcionando segurança através do controle social.
Ewald ressalta, no entanto, que como expressão de medida que um grupo social
se dá por auto-referência, seria absurdo atribuir à norma um caráter absoluto, como
pretende a lei:
Não porque uma norma não seja feita para durar – ver-se-á, pelo contrário,
que as normas têm a maior das capacidades para durarem – mas porque a
duração normativa inclui a possibilidade da sua própria transformação. É, em
particular, esta capacidade de adaptação, de emparelhar com as condições
permanentemente móveis de uma situação que, aos olhos industriais, dá valor
à normalização e torna a norma superior à lei ou ao regulamento. A norma
deve o seu valor ao facto de não estar fora do tempo. Tal como não pode
pretender ao absoluto sem perder a sua natureza e as suas virtudes, a norma
nunca é universal. Isso deduz-se do seu modo de formação. A sociologia,
pelo menos desde Durkheim, mas também a etnologia cultural, não se
cansam de repetir que a validade de uma norma não pode exceder o grupo
que a institui como sua regra: “Um facto não pode ser qualificado como
patológico a não ser em relação a uma espécie dada; não pode dizer-se
normal a não ser em relação a uma fase, igualmente determinada, do seu
desenvolvimento.” [...] Relatividade das normas donde se deduz o facto de
que não teria qualquer sentido querer aplicar as normas de um aos outros
(EWALD, 2000, pp. 113-114)
Portanto as normas, como ponto de equilíbrio comportamental, respeitam certa
inércia sociológica, mantendo-se vigentes na medida em que adequadas a um
determinado grupo social da qual advêm, e flexíveis à mutabilidade de desempenho
desse mesmo grupo. O que Ewald diz é que não há necessidade de “se impor uma lei ao
ser vivo para que a sua conduta seja regulada” (EWALD, 2000, p. 120). O caráter
jurídico conferido a normas de conduta por muitas vezes limita a alteração de
comportamento necessário ao desenvolvimento de uma sociedade. Se a própria língua
varia à medida que atravessa os sujeitos falantes, assumindo novos vocábulos e
10
Governamentalidade no sentido trazido por Foucault no curso “Segurança, território e população” de
correta disposição das coisas, das quais alguém se encarrega para conduzi-las a um fim adequado.
322 | A l e t h e s
Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014.
significados, de que modo uma norma escrita poderia permanecer constantemente
adequada como direito positivado? A norma, naturalmente instável, é necessariamente
variável, uma vez que sensível à história, abarcando suas transformações, e portanto
deve ser jungida em flexibilidade.
Frente a esses apontamentos, conclui-se então como uma afronta à evolução
social, uma violência por assim dizer, a cristalização de certas normas pelo âmbito
jurídico, tanto pela relatividade dos valores balizadores que as fundamentam, quanto por
ser característico das normas a interligação aos diversos nichos sociais, cada um com
sua dinâmica própria, mas que influenciam uns aos outros, perpassando inclusive a
esfera jurídica. Não se reduz, portanto, o Direito apenas às suas próprias formas
normativas, como leis, códigos e regulamentos, ou a um ordenamento hermético em sua
completude. Impensável seria dissociar a relação de normas jurídicas e não jurídicas.
Apesar de a formalização de medidas/regras sociais pelo Estado estagnar sua
adaptação temporal, imputando às subsequentes gerações medidas referenciais de um
grupo que não mais subsiste, essa prática mantém-se constante, pois como ressalta
Foucault, relaciona-se intrinsecamente à manutenção de um discurso de poder que
advém desde os Estados monárquicos. Nas palavras de Ewald:
Numa passagem precedente de A vontade de saber, Foucault tinha procurado
as razões pelas quais “se esquematiza o poder numa forma jurídica; e se
definem os seus efeitos como obediência”. Dava duas razões. A primeira é
geral: ‘É sob a condição de mascarar uma parte importante de si mesmo que
o poder é tolerável’. O poder faz do direito o instrumento da sua apresentação
de modo a reservar o segredo que lhe é essencial. A segunda é essencial: a
monarquia reduziu a ‘multiplicidade dos poderes preexistentes’ à forma do
Estado, fazendo-se princípio do direito – deveria dizer-se de um direito
jurídico, caracterizado pela unidade, pela lei como modo de expressão, pela
interdição e a sanção como mecanismos. Deste modo, o jurídico não foi, para
o poder monárquico, apenas a forma da sua aceitabilidade, mas também a sua
‘linguagem’, o seu ‘modo de manifestação’, o seu ‘código’ (EWALD, 2000,
p. 121)
Ewald ressalta que a equalização dos homens através da norma é essencial para a
efetivação da igualdade de direitos no âmbito jurídico. Nesse viés, foi também a ideia de
norma que possibilitou ao direito instituir figuras como o criminoso, o estrangeiro, o
incapaz, e legislar especificamente sobre elas, mais uma vez englobando as técnicas
disciplinares nos códigos jurídicos. A apropriação da norma pelo discurso jurídico
resulta em uma detenção do poder de enunciar verdades, de dizer o que é certo e o que é
errado, o punível e o aceitável.
323 | A l e t h e s
FREITAS, L. M. Norma e Direito
Em “Os anormais” Foucault discorre sobre essas produções históricas da figura
do “anormal”, dos indivíduos desviantes e de sua concepção no imaginário social,
provenientes de valores “médios” estritamente entrelaçados com os variados discursos
de verdades (religioso, científico/biológico, psiquiátrico) predominantes no decorrer do
tempo. Discursos que resultaram em figuras como o monstro, o leproso, o masturbador,
o sodomita, a histérica, todos estes anormais patológicos tratados diferenciadamente
pelo poder jurídico. O autor também demonstra como à medida que as “anomalias”
passam a se tornar recorrentes, o discurso se altera e o desvio se incorpora à regra,
provocando um reordenamento jurídico:
O enfermo pode não ser conforme a natureza, mas é de certa forma previsto
pelo direito. Em compensação, a monstruosidade é essa irregularidade natural
que, quando aparece, o direito é questionado, o direito não consegue
funcionar. O direito é obrigado a se questionar sobre seus próprios
fundamentos, ou sob suas práticas, ou se calar, ou se renunciar, ou apelar para
outro sistema de referência, ou a inventar uma casuística, No fundo, o
monstro é a casuística necessária que a desordem da natureza chama no
direito (FOUCAULT, 2002, p. 80)
Nesse momento, Foucault percebe a presença da norma no direito como
estratégia de poder disciplinar, quando a necessidade da internação, da segregação do
“anormal” que insurge naturalmente no seio social, passa a ser regulamentada pelo
poder soberano, poder jurídico conjugado com o saber médico.
Encontram-se igualmente associados a essa figura do Direito, procedimentos
de organização do espaço institucional representado pelo asilo psiquiátrico
segundo um modelo que será, para Foucault, a matriz comum dos
procedimentos de caráter médico e relação à loucura no Ocidente, a partir do
início do século XIX (FONSECA, M. A., 2012, p.119).
O direito deixa de ser associado então somente com o exercício
punitivo/repressivo do poder soberano por meio da lei e do suplício que buscava
extirpar o anormal da realidade dos homens, a partir do momento que passa a estar
diretamente conectado às instituições onde saberes são produzidos e técnicas
disciplinares atuam não mais na repressão, mas na prevenção por meio da normalização
e do regulamento.
Em “Vigiar e Punir”, Foucault percebe que a partir da produção do saber nas
instituições ligadas ao poder soberano (sendo as penitenciárias seu maior exemplo), que
revelavam tanto o normal (no sentido de média social já apresentado), quanto o anormal
(as recorrentes e múltiplas dissonâncias), surge a noção de ilegalismo, ou irregularidade,
como resultado, e também componente, da própria ideia de legalismo e regularidade.
São nesses desvios, em suas particularidades, que o direito passa direcionar seu foco.
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Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014.
A diversificação das atividades que passam a ser consideradas ilícitas exigirá
uma codificação de todas essas práticas. Codificação que será fundamental
para o exercício de uma punição que não poderá mais ser geral e uniforme
(como era o suplício), mas que terá de ser específica, proporcional à
gravidade da falta a que estava ligada.
[...]
Na gestão dos ilegalismos, trata-se de impedir a ocorrência de algumas
ilegalidades e de deixar que outras sejam realizadas. A penalidade será,
então, calculada: o que e quanto se quer evitar e o que e quanto pode ocorrer.
Toda a “pedagogia” da punição deve obedecer a este critério maior da gestão
diferencial dos ilegalismos. (FONSECA, M. A., 2012, pp. 134-134)
Nesse sentido, Foucault traz à tona a constante necessidade de um ordenamento
jurídico buscar elementos externos a ele mesmo para manter sua coesão e legitimidade
frente aos eminentes desvios sociais que busca regular, frente às constantes alterações
da medida, da norma social na qual se baseia. Ewald volta a citar Canguilhem quanto à
necessária articulação entre normas, inclusive as jurídicas e não jurídicas, para uma
existência social. Ou seja, para a manutenção de um ordenamento normativo é
necessária uma relação entre normas horizontal/modular, como em uma rede relacional
e fluida de afinidades entre os diversos campos da realidade:
Haveria, deste modo, que traçar o mapa das redes normativas: ver-se-ia
sucessivamente como uma norma em um nível se articula com uma norma de
outro nível, norma de segurança com norma de performance, norma de
disciplina com norma de produção, norma de produção com norma de
população. “As normas, volta a explicar G. Canguilhem, são relativas umas
às outras num sistema, pelo menos potencialmente. A sua correlatividade
num sistema social tem tendência a fazer desse sistema uma organização, ou
seja, uma unidade em si, senão por si, e para si.
Tal como não há norma que não seja social, não poderia existir norma
isolada. Uma norma nunca se refere senão a uma outra norma da qual, por
isso mesmo, depende. As normas comunicam entre si, de um nível ou de um
espaço para o outro, de acordo com uma espécie de lógica modular. Uma
norma encontra o seu sentido numa outra norma: só uma norma pode dar
valor normativo à outra norma (EWALD, 2000, p.107)
Por fim, Márcio Alves da Fonseca nos remete a uma entrevista de Mireille
Delmas-Marty (1996, pp. 85-97) que aborda o tema da lei e sua relação com a norma a
partir do pensamento Foucaultiano:
Em um momento da entrevista, dirá que Foucault descreve, em Vigiar e
Punir e em A vontade de saber, a passagem “da lei à norma” e que esta seria
um dos “problemas maiores do direito atualmente”, pois o movimento da
referida passagem não seria um deslizamento num único sentido. Não se
estaria “passando” da lei à norma. Mas o que haveria entre ambas seria uma
espécie de “engavetamento”. E a descrição desse “engavetamento” só poderia
ser feita a partir da consideração de dois conceitos: a “normatividade” da lei e
a “normalização”. Enquanto o primeiro, apesar dos “movimentos” que
envolve, está sempre referido a limites e interdições, ou seja, ao plano de um
“dever-ser”, o segundo reporta-se às noções de “média” ou “medida”,
estando referido ao plano do “ser”. De um lado, a “normatividade” da lei
responde aos critérios de “medida” dados pela norma. De outro lado, a norma
325 | A l e t h e s
FREITAS, L. M. Norma e Direito
se reporta às formas da lei para atuar concretamente. (FONSECA, M. A.,
2012, p. 149)
Nesse ponto, compreendida a conexão entre lei e norma no pensamento
foucaultiano como uma relação de implicação ambivalente entre o disciplinar e o
jurídico, modelo que ao tentar abarcar e regular cada desvio, cada dissonância social,
culmina necessariamente em uma inflação legislativa, analisemos a atual concepção da
norma jurídica no tradicional estudo do direito.
4.2)
A norma jurídica
Diversos juristas discorreram teoricamente sobre a norma e o ordenamento
jurídico no estudo do direito, no entanto, imperativo reconhecer a teoria de Hans Kelsen
como cânone no estudo da norma jurídica desenvolvida por eles.
O Direito, conforme o define Kelsen, é “uma ordem normativa da conduta
humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano”
(KELSEN, 1999, p. 5). Por sua vez, o caráter jurídico da norma jurídica advém da sua
inserção no próprio ordenamento jurídico, ou seja, elas não surgem de fontes e de
instâncias estranhas ao sistema jurídico, mas se formam mediante um processo por ele
regulado, sendo o Direito a sua própria fonte, regulando seu permanente processo de
autoprodução (KELSEN, 2012, p. 377, apud, AFONSO, 2013, p.53).
Inicialmente Kelsen explica que as normas em geral traduzem uma vontade
coletiva no sentido de cumprimento de um ato, solidificado pela repetição durante um
dado período de tempo por um determinado grupo social. Dessa forma, “a norma não
necessita ser efetivamente posta, podendo estar pressuposta no pensamento” (KELSEN,
2012, p. 10). Nesse ponto, percebemos uma convergência com a noção originária de
“norma” no pensamento foucaultiano, no qual, já vimos, aparece como uma regra de
juízo, uma medida que ordena as multiplicidades, fornecendo uma medida que
referencia a si mesma (EWALD, 2000, p. 108-109).
Nesse sentido, assumindo a norma como resultante de uma vontade humana
(proveniente ou não de uma competência qualificada) carregada de juízos de valor
arbitrários, Kelsen explica a mudança abrupta em certas normas no decorrer do tempo,
uma vez que são expressas por valores relativos, sem que isso afete sua legitimidade
durante seu período de vigência. O autor também diferencia “norma vigente” de “norma
eficaz”, sendo a primeira correlata à efetiva aplicação e observância da norma, enquanto
a segunda à sua adequação fática às condutas humanas (KELSEN, 1999, pp. 11-13).
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Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014.
Esta diferenciação assume importância somente tratando-se de normas jurídicas, as
quais são postas e avalizadas por um poder coercitivo (vigente) que busca garantir sua
adoção
pelos
cidadãos
a
ela
submetidos
(eficácia),
enquanto
no
campo
psicossociológico, normas eficazes são normas vigentes e vice-versa, uma vez que uma
norma existe em determinado campo social enquanto seus integrantes nela se
enquadram.
Em seu normativismo jurídico expresso na Teoria Pura do Direito, Kelsen
percebe a norma jurídica como espécie do gênero norma, que assim se caracteriza por
estar inserida em um ordenamento jurídico que lhe confere essa especialidade como
esquema de interpretação da realidade (Ibid, p. 4). Ou seja, através da atribuição de um
valor por um ato de vontade competente, que cria a norma, mas não se confunde com
ela, confere-se um poder, uma competência de tradução de um “dever ser” para a
conformação de determinada conduta humana que se encontra no âmbito do “ser”11:
“Norma” é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita,
permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à
competência de alguém. Neste ponto importa salientar que a norma, como o
sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é
qualquer coisa de diferente do ato de vontade de que ela constitui. Na
verdade, a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o
sentido é um ser (KELSEN, 1999, p.4).
A partir desse raciocínio de norma como estrutura que define e protege certo
valor expresso na matéria do “dever ser”, mas que não se confunde com o próprio “ser”
- mundo da cultura onde se encontram esses valores - conclui-se que sua validade só
pode se encontrar em outra norma, raciocínio esse chamado método normológico
(MATOS, 2012, p. 255), e não em seu conteúdo valorativo, que como já vimos, devido
ao seu caráter mutável e relativo, não pode constituir o objeto da ciência do Direito.
Kelsen elabora então um modelo em cadeia piramidal de normas rigidamente
hierarquizadas, na qual se encontra no topo uma norma emanante de validade de todo
um ordenamento jurídico, à qual ele chamou de “norma fundamental”.
A norma fundamental de Kelsen (Grundnorm) não se confunde com a
Constituição do Estado, que como norma positiva ainda encontra-se submetida a ela.
Trata-se de um pressuposto lógico-transcendental de fundamento de toda a ordem
jurídica, uma “norma jurídica não-positiva, que não é posta por atos humanos de
vontade, mas antes pressuposta pelo pensamento jurídico” (MATOS, 2011, p.50), ponto
vazio de conteúdo apto a ser preenchido por qualquer contento valorativo, tangencial
11
Separação que o jurista extraiu da 1ª fase da filosofia kantiana, da “Crítica da Razão Pura”, que exerceu
grande influência no desenvolvimento de seus trabalhos.
327 | A l e t h e s
FREITAS, L. M. Norma e Direito
entre o mundo do ser e do dever-ser, em que a matéria se confunde com a forma. “Com
efeito, a Grundnormse mostra primariamente enquanto norma definidora de
competência, capaz de conectar a ideia de dever-ser, estrutura lógica especificamente
jurídica, à noção de autoridade criadora do direito” (MATOS, 2011, p.60). Ou seja, ao
garantir a validade de todo um ordenamento jurídico, bem como a legitimidade dos atos
de vontade competentes a exarar as demais normas que o compõem, a norma
fundamental é o ponto limítrofe do objeto de estudo da Ciência do Direito livre da
metafísica e do sincretismo metodológico. Além dela encontram-se os elementos
externos que atuam como fontes ou influências sobre o direito, como as ideologias
políticas, a economia, as dinâmicas sociais, os estudos psicanalíticos, etc, elementos que
Kelsen fez questão de excluir de sua Ciência do Direito, com o principal intuito de
“purificar” o direito das potências que pretendem colonizá-lo e utilizá-lo para seus
próprios interesses.
Afirmando ser “impossível pensar um direito alheio a um contexto geral de força
juridicamente qualificada” (MATOS, 2012, p.261) Matos, sob influência do
pensamento de Walter Benjamin, apresenta uma interpretação da obra de Kelsen como
reveladora do caráter originalmente violento do direito, “um ultrarrealismo crítico que
desvenda não a relação entre direito e violência, mas, sim, a mútua convertibilidade
entre ambas as instâncias” (MATOS, 2012, p. 255), a partir deste ponto tangencial que é
a norma fundamental. Aproximando-se (sem se identificar) com a interpretação de
Bobbio, de que a norma fundamental seria “um ato de poder fundador de dado
ordenamento jurídico, de maneira que, ao se impor, o poder coercitivo funda a
juridicidade” (MATOS, 2012, p.261), o autor rejeita a ideia de ato de poder, por ser esse
pertinente ao âmbito do “ser”, e não do “dever ser”, optando em relacionar a norma
fundamental com a experiência da violência - que é “o que garante a eficácia global do
primeiro ordenamento jurídico enquanto condição para se pressupor a norma
fundamental” (MATOS, 2012, p. 274) -, “tanto a que põe o ordenamento jurídico, tanto
a atual que o mantém” (MATOS, 2012, p.275).
Assim, “deixando de subordinar a validade a elementos fáticos, a norma
fundamental reconhece e assegura o caráter puramente simbólico dos conceitos e
relações jurídicas” (LINDAHL, 1996, p. 66, apud, MATOS, 2012, p. 275), que
expressam simplesmente uma relação de poder a partir de um discurso pretensamente
verdadeiro/correto devido ao seu caráter jurídico. Logo, pautado na característica
meramente formal da norma, independente de um conteúdo valorativo, que atribui uma
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Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014.
competência a determinado operador do direito, “será direito aquilo que os órgãos de
aplicação de determinado ordenamento disserem que é” (MATOS, 2012, p.269), não
tendo a Lógica Jurídica qualquer compromisso com o princípio da não contradição de
seus conteúdos (ibid. p.270), sendo apenas a expressão do poder estatal que se realiza
através do Direito.
Não há que se falar portanto em uma crise do direito devido à falibilidade e
relativização de seus conteúdos, de inflação do ordenamento jurídico no sentido de
desvalorização de seus elementos pela fugacidade de seus valores. Compreendendo o
direito como discurso de poder e o ordenamento jurídico como violência organizada,
cujas normas condicionam e normalizam comportamentos sociais tidos como
referenciais em um determinado momento histórico, o excesso normativo-jurídico, com
todas suas inerentes contradições, revela-se plenamente adequado a uma estrutura do
direito como sistema de controle social, que na busca de apreender o real em suas mais
diversas manifestações, revela-se um sistema disforme e maleável.
Conclusão
É possível afirmar que a aplicação do pensamento foucaultiano ao estudo do
direito tende mais para uma análise crítica não positivista, uma vez que para este a
relação entre norma e o discurso do poder é tão estreita que seria indissociável qualquer
estudo normativo, partindo ele de um ordenamento jurídico ou não, de uma analítica
histórica do poder. A partir deste raciocínio, conclui-se em primeiro lugar que um
estudo do direito estritamente limitado às suas formas jurídicas em consonância com a
intenção de Kelsen, ao contrário do que pretendia o jurista, mascara e fortalece um
poder e um discurso político, pois dificulta as ações de resistência a um poder
normalizador que naturalmente surge quando este é identificado. Percebendo a norma
jurídica como produto de um poder soberano e práticas disciplinares no exercício da
governamentalidade, direcionada ao controle e ordenação de uma população e um
território, inconcebível propor sob a égide foucaultiana um estudo do direito, um estudo
normativo, pautado na pureza da norma jurídica per si, sem analisar as relações de poder
que o atravessa. Na gestão estatal, poder, normas e direito são estruturas
interdependentes, relacionando-se por implicações ambivalentes, sendo por isso
insuficiente um estudo isolado de cada uma delas.
329 | A l e t h e s
FREITAS, L. M. Norma e Direito
Percebendo o poder em seu aspecto microfísico, disseminado em diversos focos
sociais onde atua diretamente nos indivíduos no âmbito do detalhe, é possível
compreender a produção de saber resultante destas relações, e o concomitante
surgimento de instituições, que se especializam e se segmentam cada vez mais.
Multiplicam-se, portanto, os órgãos supranacionais que ditam diretrizes a serem
adotadas pelo Estado, já descentralizado em seu modelo federalista, cujos órgãos da
Administração Direta se desconcentram no ápice do modelo burocrático, e se
descentralizam em uma concatenação de delegação de poderes e competências que
despontam em um número incalculável de normas em forma de portarias, circulares,
resoluções, instruções, regulamentos.
Ademais, tem-se a ideia de norma jurídica como uma estrutura aberta e
penetrável, conectada a uma realidade social inconstante que sobrepõe um determinado
discurso sobre outro, ou seja, uma violência formalizada na determinação de
comportamentos por uma autoridade competente, cujo poder originário advém
primordialmente de uma desigualdade de forças. A penetrabilidade em seu conteúdo
permite variadas interpretações, ou mesmo sua alteração radical, a depender do discurso
subjetivo da autoridade competente, interligado aos mais diversos interesses políticos ou
sociais. Reconhecido o inexorável caráter mutável da norma, não há que se surpreender
quanto à inconstância jurisprudencial, nem mesmo afirmar uma inflação do
ordenamento jurídico frente à preponderância de uma legislação simbólica.
Compreendendo o ordenamento jurídico como uma estrutura porosa e disforme,
que tanto emana quanto absorve discursos, em oposição à rígida estrutura piramidal
normativa, conclui-se o excesso normativo-jurídico e suas inerentes contradições como
uma ocorrência coerente com a percepção de um direito marcado pela força e exceção, e
não como uma crise jurídica. Um ordenamento não pautado nas noções de segurança,
completude e não-contradição, mas sim nos interesses de uma gestão marcada pela
governamentalidade, em que a lei funciona cada vez mais como norma (no sentido
foucaultiano de comprometida com mecanismos de normalização), e que não
necessariamente busca a realização da justiça, mas sim a garantia do primado da
“ordem” social, ainda que resultante de uma “desordem” do próprio ordenamento.
No entanto, ainda que esta compreensão apresente-se eivada de pessimismo, é
válido relembrar a lição foucaultiana de que o poder, não importa quão
multidimensional, nunca é absoluto, pois exige sempre a cooperação submissa do
subordinado e, portanto, produz necessariamente uma resistência. Perceber a norma
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Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014.
como reflexo social, e vice-versa; visualizar o direito como elástico e transformável, não
limitado por textos legais que não passam de força formalizada; conceber seu
ordenamento jurídico como estrutura difusa, aberta e penetrável; são condições
primárias para o combate à normalização juridicizada. No exercício de uma atitude
crítica que abraça a pluralidade, que se inquieta frente a valores e discursos de
pretensões universais, questionando o dever de submissão justificado pelo inócuo
conceito da legalidade, caminha-se na direção de um Direito novo, aberto à
multiplicidade e à produção cada vez mais profícua de subjetividades.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014.
A Contrariedade do Instituto da Reeleição à Democracia no Brasil
The Contrariety of Reelection for Democracy in Brazil
Wellington Borges Throniecke1
Resumo
Através da análise dos princípios democráticos insertos em nossa Constituição, e
do cenário político contemporâneo, este estudo discute a questão da reeleição como
instrumento contrário à vivência de um regime verdadeiramente democrático. Diante da
crise do atual modelo político, torna-se a cada dia mais evidente a necessidade de se
efetuar uma reforma política em nosso país, de modo a resgatar a credibilidade do atual
sistema perante a sociedade. Nesse sentido, um dos pontos de maior relevância ao debate
que se aproxima se refere à possibilidade de reeleição aos cargos do poder executivo,
temática frequentemente abordada durante todo o período de campanha das eleições de
2014. Sob tal viés, o objetivo do presente trabalho é a apresentação de argumentos
favoráveis à extinção do instituto da reeleição aos mandatos do Poder Executivo do
ordenamento jurídico pátrio, de modo a garantir a predominância e efetiva aplicação da
alternância de poder e da igualdade material entre os candidatos. E, de modo adjeto,
defender a realização de uma efetiva consulta à opinião pública, mediante plebiscito, para
realização e aprovação da reforma política.
Palavras-Chave: Democracia.Reeleição. Alternância de poder. Igualdade.
Reforma política.
Abstract
Through the analysis of democratic principles inserts in our Constitution, and the
contemporary political scene, this study addresses the issue of re-election as opposed to
the experience of a truly democratic regime instrument. Given the current political crisis
model becomes more evident every day the need to effect political reform in our country,
in order to rescue the credibility of the current system in society. In this sense, one of the
points of greatest relevance to the oncoming debate regarding the possibility of reelection to the positions of executive power, a theme frequently addressed throughout the
campaign period of the election of 2014. Thus, the aim of this work is the presentationa
favorable arguments about the extinction of the Institute of the mandates reelection of the
Executive Branch of the Brazilian legal system, to ensure the effective application of
alternation of power and the material equality among candidates. And, secondarily,
defending the realization of an effective consultation to public opinion, by plebiscite, to
implementation and approval of political reform.
Keywords: Democracy. Reelection. Alternation of power. Equality. Political
reform.
Recebido em: 30 de outubro de 2014
Aceito em: 1º de Fevereiro de 2015
1
Graduando em Direito pela UFJF.
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THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto
1. Introdução
Durante o longo período de campanha eleitoral no ano de 2014, fora questionado
e abordado pelos os principais candidatos à presidência da República2, a necessidade de
uma reforma política em nosso país, visando aperfeiçoar o modelo político republicano,
de modo a aproximá-lo permanentemente aos princípios democráticos que regem nossa
nação.
Nesse sentido, diversos pontos colocaram-se sob o enfoque dos candidatos em
inflamados discursos e pronunciamentos políticos veiculados nos mais diversos
instrumentos midiáticos, destacando-se, entre estes, uma latente questão, que, ante a crise
do modelo político atual e da democracia representativa, tornou-se elemento de grande
importância para aqueles que assumirão seus mandatos eletivos no próximo ano: a
necessidade de reforma política.
Dentre os temas a serem tratados na clarividente e necessária reforma que se
pretende que seja elaborada no próximo ano, a possibilidade de reeleição para os cargos
do poder executivo está entre aqueles que tiveram maior visibilidade entre os eleitores,
principalmente durante o período de campanha eleitoral, por afetar diretamente ao direito
de escolha de seus representantes.
Nesse sentido, através da confecção e apresentação de determinadas questões, este
artigo tem o intuito de descontruir os argumentos favoráveis ao modelo político brasileiro
que atualmente possibilita a recondução por uma vez dos mandatos do poder executivo.
Ressalto que, diante de tais perguntas, a serem respondidas e debatidas no corpo do texto,
não afirmo que o posicionamento a ser defendido no presente trabalho não possua
imperfeições e que os argumentos a serem apresentados não possam ser alvos de críticas,
mas apenas busco expor uma defesa construtiva das ideias que me incentivaram a abordar
este tema, de modo a engrandecer o debate, que tem por finalidade principal a busca pelo
melhor modelo político para o nosso país.
Este artigo tem ainda a finalidade de tornar evidente o modo como o candidato ao
cargo do poder executivo que busca a reeleição é favorecido pela utilização da máquina
estatal, na medida em que este permanece no exercício do mandato durante todo o
período de campanha eleitoral, tornando desigual a disputa entre este e seus concorrentes
diretos, situação esta plenamente contrária ao exercício da democracia.
2
Neste ponto, me refiro aos candidatos Dilma Rousseff (PT), Marina Silva (PSB) e Aécio Neves (PSDB)
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014.
Pretendo abster-me de apresentar argumentos que tratem de práticas cotidianas
ímprobas, que infelizmente ocorrem em nosso país, como os atos políticos daqueles que
ocupam o cargo de chefe do executivo, através da realização de obras públicas ou demais
atividades administrativas com propósito eleitoreiro, e que buscam exclusivamente uma
exposição positiva do futuro candidatoperante o seu eleitorado3. Desde já,
desconsideremos a existência de práticas na administração pública com propósito
exclusivo de promover o político para que este pleiteie um segundo mandato. Para isso,
consideremos,ainda que de forma utópica, que todos os atos políticos de nossos
governantes são voltados a melhorias das condições de vida em nossa sociedade, tendo
sempre em mente o que é melhor para toda a população, sem que existam atitudes cuja
finalidade seja o favorecimento individual de determinadas pessoas.
Pretendo ainda neste trabalho, afastar-me de exemplos individualizados, buscando
sempre tratar desta temática de forma mais generalizada, sem que exista intenção de
prejudicar a imagem de determinada pessoa que já tenha exercido qualquer cargo no
poder executivo ou que esteja se candidatando a estes, por não ser este o objetivo do
presente trabalho.
Primeiramente, de modo a embasar os argumentos a que me proponho, faz-se
necessário definir o que é a democracia, delineando os princípios essenciais ao exercício
desta, que foram adotados em nossa Constituição. E, ainda, explicar a diferença existente
entre o modelo de democracia participativa e democracia representativa, abordando a
crise social que enfrenta o modelo político atual.
2. Democracia
Inicialmente, faz-se necessário definir o que significa a democracia, enquanto
conceito técnico e em seu entendimento cotidiano, o que já fora realizado e sintetizado de
forma muito eficaz em nossa Constituição Federal onde se prevê que “todo o poder
emana do povo”4. Tal significado pode ser extraído dos termos que constituem a palavra
3
A finalidade na exclusão de tais exceções reside em se destacar que os argumentos que serão tratados
neste estudo, não se pautam nas condutas ilícitas e na corrupção dentro da política, mas apenas nos atos de
governo cotidianos, que se adequam à legalidade.
4
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania;II
- a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V
- o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
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THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto
de origem grega: “demos” (que significa povo) e “kratos” (poder). De forma semelhante,
é definida por Hans Kelsen (2000, p. 139) como “governo do povo”.
Logo, não há maneira de conceituá-la de forma mais simples e mais completa do
que entender a democracia como o exercício do poder pelo povo. Reside na ideia da
prática de ações por cada indivíduo, que por meio da decisão adotada, tem a possibilidade
de modificar os rumos da sociedade e influenciar no modo com que é exercido o poder
estatal.
Contudo, importa ressaltar que o exercício da democracia encontra-se
essencialmente vinculado a três elementos, sem o qual nunca subsistirá qualquer regime
que se construa com base nopoder popular: a soberania da vontade do povo, a liberdade
(principalmente no aspecto político) e a igualdade entre os homens.
Para que resista a democracia e a legitimidade de um governo que se intitule
democrático faz-se necessário que aqueles que o exercem, como representantes do poder
estatal, ajam sempre em conformidade com os anseios do povo, respeitando não somente
a vontade da maioria, mas que atuem também na defesa dos interesses das minorias.
Deve o governante ter em mente que as ações efetuadas em nome do Estado, e as
decisões que interfiram na vida de toda a coletividade devem surgir a partir dos interesses
dos governados, que em contrapartida têm o dever de expressá-los. Portanto, em um
regime democrático, há de ser soberana a vontade do povo perante o Estado, desde que
não vise esta a prejudicar a liberdade dos indivíduos e a igualdade entre estes.
Como segundo elemento anunciado tem-se a liberdade de cada indivíduo na
expressão de suas ideias, na escolha das decisões, na definição das ações a serem
adotadas e na sua participação perante o grupo social. Não há que se falar em liberdade
como algo ilimitado, em que cada ente age da forma como lhe convier, pois, de tal modo,
esta não existiria em qualquer sentido, em vista da interferência que a vida de cada pessoa
tem sobre a de seus próximos. Deve-se tratar a liberdade como o poder de decisão de
cada indivíduo sobre as regras as quais o mesmo será submetido, de modo que esta não
lhe seja plenamente imposta pela vontade alheia5. Porém, para que isto se torne possível,
é necessário que o poder de decisão dos homens se caracterize pela igualdade, devendo
5
Nesse sentido, Montesquieu define que: “É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer;
mas a liberdade política não consiste em se fazer o que se quer. Em um Estado, isto é, numa sociedade onde
existem leis, a liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer
o que não se tem o direito de querer.”. (MONTESQUIEU, O espírito das leis, livro XI, capítulo III. São
Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 166).
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014.
ser conferindo igual valor à decisão de um homem em Oiapoque e à decisão de uma
mulher em Chuí.
Importa destacar que para que um regime de tal magnitude resista ao transcorrer
do tempo e aos sentimentos e às ações humanas em sua individualidade, é necessária a
harmonização e coligação de tais elementos, o que somente será possível mediante a
vivência de apenas resquícios de cada um destes. Nunca a sociedade progredirá partindose do pressuposto de que a soberania da vontade do povo, a liberdade política e a
igualdade dos homens devem ser exercitadas e praticadas individualmente e de forma
plena, de modo a considerar inválidos ou ilegítimosaqueles atos que não correspondam a
qualquer destes elementos de forma perfeita. Entretanto, não há como considerar
legítimos os atos que suprimam significativamentequalquer destes elementos em sua
essência, nunca podendo afirma-los como provenientes do poder do povo.
Constituído o Brasil como um Estado Democrático de Direito, é possível extrair
de nossa Magna Carta, diversos princípios e fundamentos que se pautam no ideal de
construção de uma república democrática. Mas, embora seja possível enunciar vários
destes, pretendo concentrar-me em dois aspectos essenciais à manutenção e ao
fortalecimento da democracia em nosso país, vinculados em sua naturezaao período que
atualmente vivenciamos e que atualmente se repete a cada dois anos: as eleições6.
Nesse diapasão, dois aspectos se elevam ao plano da naturalidade ao se pensar no
aspecto democrático do pleito que tem por finalidade definir os representantes do povo no
exercício do poder legislativo e na gestão máxima das diversas esferas do poder
executivo. O primeiro destes aspectos reside na necessidade de alternância de poder, de
modo a permitir alteração no grupo que controla e exerce funções públicas, para que
aqueles que o ocupem não tomem para si a posse de algo que pertence a toda a sociedade.
O outro aspecto essencial diz respeito a estabelecer da melhor forma possível
igualdade de condições àqueles que pleiteiam representar o povo, e que se candidatam a
tal posto através das eleições. É inegável, no entanto, que jamais se conseguirá assegurar
que se inicie a disputa do mesmo ponto de partida, de modo que a competição decorra ao
longo de todo o procedimento para aferição da vontade popular de forma equânime entre
todos. Porém, não é admissível, que a legislação permita ou até mesmo crie
6
Destaca-se que se encontra em trâmite no Congresso Nacional, a PEC 71/2012, que prevê a unificação das
eleições no país, de modo que a partir de 2022, as eleições ocorreriam em todos os níveis de governo no
mesmo período eleitoral a cada quatro anos.
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THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto
desigualdades, que têm por consequencia, na mecânicaeleitoral, influência direta sobre a
liberdade política de cada indivíduo.
3. Democracia Participativa e Democracia Representativa
Realizando-se um apanhado histórico dos modelos aplicados da democracia,
verifica-se que este se envolta em alterações e mudanças a cada novo período histórico da
humanidade. Atualmente, ainda que provenientes de raízes semelhantes, a democracia no
mundo contemporâneo é aplicada do modo claramente diferenciado nos mais diversos
países. Em tal quesito, não é possível afirmar a existência de um modelo que seja mais
democrático, ou mais condizente com a vontade do povo, visto que cada modelo é
construído de acordo com a cultura de cada nação, na medida de seu desenvolvimento
político.
A primeira forma demonstrativa da existência do regime democráticona história
da humanidade se pautaria no menos complexo modo de inclusão de cada indivíduo na
tomada de decisões em sua comunidade, o que se daria através da participação direta.
Nesse ponto, não existiam intermediários, capacitados a exercitar em nome de outrem o
dever de deliberação das questões de ordem pública, visto que a opinião de cada cidadão
seria expressa pessoalmente através de uma assembleia. O berço deste modo primário de
manifestação da vontade popular é a Grécia Antiga.
Historicamente, nomes como Aristóteles, Heródoto e Sólon, resistem nos dias
atuais como percussores de tal modelo, que ao ser redesenhado em uma imagem física no
período contemporâneo poderia ser representado pela reunião de todos aqueles que têm
capacidade política (os eleitores) em uma praça pública (um edifício público acessível a
todos), no qual por meio de uma assembleia, seria realizada a deliberação com a
possibilidade de participação de todos nas matérias de interesse público concernentes
àquela circunscrição territorial (pólis). Tal modelo pode ser denominado democracia
participativa.
Importante ressaltar que, ainda que destinado à obtenção de modo mais eficaz da
vontade popular, não se conseguia na Grécia Antiga alcançar tal objetivo de modo
perfeito, ainda que exercitada em um modelo de assembleia organizado como a ekklésia.
Ao modelo democrático vivenciado neste momento histórico, resistem diversas críticas
quanto à seleção daqueles que poderiam e deviam participar da vida política da pólis
(homens, maiores de 30 anos, filho de pai e mãe atenienses) e quanto à ausência de
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014.
isonomia e igualdade material entre as decisões expressas por indivíduos de classes
sociais diferentes. Vivenciava-se, portanto, uma democracia que, ainda que proveniente
da vontade popular, era excludente e que não representava de forma isonômica a vontade
real da maioria.
A ekklésia era a Assembleia do Povo e nela o cidadão ateniense adulto de sexo
masculino tinha direito a palavra e voto. Reunia-se com um mínimo de seis mil
cidadãos, numa colina chamada Pnyx, nas proximidades da ágora. Dela
estavam excluídos escravos, estrangeiros, mulheres, crianças e cidadãos
privados de seus direitos políticos (atimoi). Caso algum representante desses
segmentos fosse encontrado durante a realização de uma Assembleia, poderia
ser condenado a sérias punições (MENEZES, 2010, p. 25).
Entretanto, em determinadas circunstâncias seria possível visualizar o quão
impraticável se tornaria o modelo participativo no mundo cotidiano, em razão do
crescimento populacional, da concentração demográfica altíssima em cada centro urbano,
da infinidade de matérias que têm correspondência ao interesse públicoe que são
relevantes a toda a sociedade e, diversos outros fatores que impossibilitam a participação
de cada indivíduo em todos os negócios que digam respeito à sociedade, nos mesmos
moldes com que tais tarefas eram efetuadas neste período inicial da história da
democracia.
Para tanto, após longo período de afastamento aos princípios democráticos nos
regimes políticos das sociedades ocidentais, em que, por diversos momentos o Estado e
todas as suas instituições se confundiam com a figura do monarca, que a seu bel prazer,
tinha legitimidade para utilizar de suas ferramentas da forma que lhe conviesse7, a
solução encontrada para o retorno do poder às mãos do povo, se daria por meio de um
modificado método de participação democrática.
Neste novo modelo, não caberia mais ao monarca o governo da nação, mas
àqueles que fossem escolhidos pelo povo para, em nome destes, governar. Além disso,
não caberia ao povo tomar as decisões que regeriam a vida da comunidade de forma
direta, visto que neste momento, o único dever destes para com a comunidade se
resumiria ao poder de escolha.
7
Características existentes na Roma Antiga, nos feudos medievais, mas destacável, principalmente, nos
Estados Absolutistas.
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THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto
Surge assim a democracia representativa, no qual a vontade popular não será
expressa de forma direta8 por meio da deliberação pessoal em questões públicas, mas
através de representantes, escolhidos, por meio do voto, entre todos aqueles que surgem
do povo, para participar e proteger, através de suas decisões, os interesses da
coletividade, expressando a vontade de suas maiorias, e ainda, na defesa dos interesses
das minorias.
Dessa forma, a mais de trezentos anos, verificam-se nas sociedades ocidentais,
modelos de democracia representativa em que tanto os membros do Poder Legislativo
quanto membros do Executivo e do Judiciário (hipótese esta que não ocorre no Brasil, no
qual os juízes são investidos no cargo por meio de concursos públicos ou por indicação)
são eleitos por meio do voto para em nome de toda a sociedade exercer o governo.
Destaca-se, no entanto, que não existe uniformidade na caracterização dos
regimes representativos, que vieram a ser constituídos ao longo dos últimos séculos, dos
mais diversos modos e nos mais diversos territórios do mundo, e que a experiência
prática demonstra que a aplicação de um modelo democrático de governo, ainda que
correspondente à legítima expressão da vontade da maioria, nem sempre conseguirá
impedir o autoritarismo e a ocorrência de barbáries e atentados à dignidade humana.
4. A crise do sistema de representação política
Torna-se evidente em nossa vida cotidiana, o quão pequena é a importância que se
atribui ao debate político nos dias atuais. Nas ruas, nos bares e esquinas do nosso país o
descrédito dos membros que ocupam os cargos políticos em nosso país chegou a um
patamar elevadíssimo, sendo capaz de induzir milhões de pessoas a deixar de exercer o
único poder-dever democrático que o sistema político os permite realizar, para que em
um exercício de cidadania possam modificar os rumos da coletividade: o voto.9
Nesse sentido, diversos aspectos são capazes de justificar a apatia política
vivenciada em nosso país, que culminam, consequentemente, na irresponsabilidade do
eleitor na escolha de seus representantes, que muitas vezes são esquecidos poucos meses
após a realização do pleito eleitoral e que, devido a um fenômeno crescente nas
8
Sobre o uso do vocábulo, é importante destacar que no regime político contemporâneo, a única
participação direta da sociedade se dá na escolha dos membros dos Poderes Legislativo e Executivo. Com
isso, pode-se dizer que todas as demais decisões políticas em nosso país são realizadas de forma indireta.
9
Nesse sentido, destaca-se o elevado nível de abstenção no 2º turno das eleições de 2014, que, segundo
dados oficiais do TSE, chega a 21,10% de todo o eleitorado nacional, correspondente a 30.137.479 de
eleitores. Disponível em: < http://divulga.tse.jus.br/oficial/index.html>. Acesso em: 28 out 2014.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014.
campanhas eleitorais, têm suas opiniões a cada dia mais influenciadas por estratégias de
marketing muito bem elaboradas.
Não existe, e desconheço se em algum momento de nossa história política tenha
existido, o costume de cada eleitor realizar uma pesquisa sobre a vida e o histórico do
candidato em quem depositará seu voto de confiança, as propostas e projetos
apresentadospor este e as estratégias e diretrizes de seu partido. Questiono-me se é
possível algum dia sonhar com um modelo democrático mais participativo, em que a
decisão de cada indivíduo, através de procedimentos que requisitem sua participação
ativa, realmente seja capaz de modificar a vida em sociedade, quando nós, enquanto
meros eleitores, temos preguiça de exercer o nosso dever de cidadão.
Nesse sentido, seria possível apresentar como um dos motivos que conduzem a
esta apatia, a incompetência de nossos representantes políticos em cumprir as promessas
efetuadas durante a campanha eleitoral, que conduzem o eleitor ao prévio entendimento
de que, embora proclamadas e repetidas por diversas vozes, boa parte destas jamais serão
cumpridas.
Importa ressaltar ainda que, um dos fatores que mais impulsionam o descrédito
das instituições políticas e dos membros que pleiteiam os cargos eletivos é proveniente da
corrupção. Não há como negar que existem muitos políticos corretos e honestos, que não
se veem envolvidos em escândalos de desvio de dinheiro, que não participam do
superfaturamento de obras públicas ou de esquemas de compra de votos. Possivelmente,
a grande maioria dos nossos políticos possa seridentificada dessa forma, porém, a
ineficiência em se separar o joio do trigo e de punir àqueles que cometem crimes no uso
do mandato, provoca um sentimento negativo no seio da comunidade, que vai da
indignação à profunda descrença, prejudicando severamente a imagem das instituições
políticas perante a sociedade.
Somam-se a isso, as condutas antiéticas constantemente exercidas pelos nossos
políticos que, embora não revestidas de ilegalidade, acabam por demonstrar completo
descaso para com a sociedade, a partir do momento em que fazem uso do erário publico
com o intuito de beneficiarem a si mesmos, ao seu partido político ou determinados
indivíduos que lhes sejam próximos ou a quem devam favores.
Devido a todos estes fatores, já se vislumbra a necessidade na realização de uma
reforma política, de modo a aprimorar o exercício democrático em nosso país e remodelar
o sistema representativo, trazendo mais proximidade do eleitor ao seu representante.
Necessário ainda se torna a reformulação do sistema de financiamento de campanha, no
341 | A l e t h e s
THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto
que se refere às doações direcionadas aos partidos políticos e a responsabilidade do
Estado no repasse de verbas às campanhas.
Porém, vislumbro tais questões como técnicas, e que, embora sejam fundamentais
ao aprimoramento de nosso sistema eleitoral, são meramente secundárias para a
modificação efetiva de nosso regime político, na medida em que não têm o condão de,
aplicadas de forma isolada, terminar com a desigualdade que permeia as disputas
eleitorais em nosso sistema político.
Nesse sentido, são duas as questões a que atribuo relevância neste momento: a
modificação do método de distribuição dos recursos provenientes do Estado através dos
fundos partidários e da exposição às candidaturas no horário eleitoral gratuito, que geram
disparidades tão intensas, que no recente pleito eleitoral realizado, segundo dados
divulgados pelo TSE10, a distribuição ocorreu de modo que 11 minutos e 24 segundosdos
25 minutos disponibilizados se referiam apenas a uma das candidaturas, enquanto as
demais, em número de nove, dividiam o tempo de 13 minutos e 36 segundos, de modo
que seis destas possuíam tempo inferior a 1 minuto. Destaca-se que tal distribuição não
fora realizada com a finalidade ou sob a justificativa de favorecimento a determinada
coligação, mas que decorre da legislação eleitoral11, que estabelece distribuição do tempo
de maneira proporcional à bancada de cada coligação na câmara dos deputados.
Outra questão que se apresenta, e da qual faço uso no presente trabalho e que fora
destacada durante a campanha eleitoral deste ano, se refere à reeleição aos cargos de
chefia do poder executivo.
5. A reeleição no regime político brasileiro
A Constituição Federal de 1988, não previa tal instituto, que viria a ser aprovado
apenas no ano de 1997, a partir da promulgação da emenda constitucional nº 16, sob o
10
Disponível em: <http://www.tse.jus.br/noticias-tse/2014/Agosto/horario-eleitoral-no-radio-e-tv-comecanesta-terca-feira-19>. Acesso em: 25 out 2014.
11
Art. 47 da Lei no 9.504/97: “As emissoras de rádio e de televisão e os canais de televisão por assinatura
mencionados no art. 57 reservarão, nos quarenta e cinco dias anteriores à antevéspera das eleições, horário
destinado à divulgação, em rede, da propaganda eleitoral gratuita, na forma estabelecida neste artigo. §
2º Os horários reservados à propaganda de cada eleição, nos termos do § 1o, serão distribuídos entre todos
os partidos e coligações que tenham candidato, observados os seguintes critérios: I - 2/3 (dois terços)
distribuídos proporcionalmente ao número de representantes na Câmara dos Deputados, considerado, no
caso de coligação, o resultado da soma do número de representantes de todos os partidos que a integram; II
- do restante, 1/3 (um terço) distribuído igualitariamente e 2/3 (dois terços) proporcionalmente ao número
de representantes eleitos no pleito imediatamente anterior para a Câmara dos Deputados, considerado, no
caso de coligação, o resultado da soma do número de representantes de todos os partidos que a integram.”
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014.
seguinte texto: “Art. 14, parágrafo 5º, CF: O Presidente da República, os Governadores
de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído
no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente.”
Colocando-se de lado todo o debate acerca do modo com que tal emenda fora
aprovada, existindo diversas denúncias acerca da corrupção de parlamentares, troca de
favores e compra de votos, conjuntamente, à utilização de tal reforma de modo a
favorecer o presidente em exercício, Fernando Henrique Cardoso, em sua busca a um
segundo mandato consecutivo, verifica-se o curso do lapso temporal de 17 anos, e,
considerando a presente corrida eleitoral, a realização de 9 ciclos eleitorais, entre eleições
municipais, e federais e estaduais/distritais, que registram índices pouco superiores a 50%
de reeleição dos chefes do poder executivo que buscaram a recondução do mandato no
período subsequente.
Para aqueles que defendem a reeleição para os cargos do poder executivo, tal
índice poderia ser considerado baixo, inconsistente com a crescente manifestação
daqueles que defendem o fim da reeleição, devido ao fato de que os números expressam
claramente que a candidatura do chefe do poder executivo não acarreta seguramente em
sua vitória nas urnas. No entanto, em sentido oposto estes demonstram a contrariedade do
modelo político adotado em nosso país aos princípios democráticos mais basilares, como
a necessidade de revezamento de poder e a igualdade de condições àqueles que pleiteiam
a legitimidade de poder para conquista do mandato por meio do voto.
5. 1. Reeleição como método de avaliação da gestão anterior
A primeira questão relevante que proponho a levantar se refere a um dos
argumentos que mais constantemente ressoa das vozes daqueles que defendem a reeleição
aos cargos do poder executivo, que enunciam a possibilidade de reeleição e a candidatura
de um ente político como uma forma de os eleitores avaliarem a gestão anterior exercida
por este, que poderia ser premiado com a reeleição, demonstrando querealizou uma boa
gestão na chefia do poder executivo, ou ainda sofrer com a possibilidade de rejeição nas
urnas, que demonstraria a ineficiência desta. Diante de tal argumento, me parece clara a
relevância da seguinte questão: se o elemento que motiva o ente político a exercer o seu
primeiro mandato com maestria e eficiência é a possibilidade de recondução e
continuidade por meio de um segundo mandato, o que motivaria o candidato reeleito a
exercer o seu segundo mandato com a mesma eficiência se este já não mais poderia ser
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THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto
premiado, existindo a certeza absoluta de que ao término do novo mandato,
independentemente da qualidade de sua gestão, o cargo teria que ser entregue a uma nova
figura política?
O exercício das funções públicas de chefia do poder executivo, assim como todas
as provenientes de mandatos eletivos, devido ao modo com que são investidos os
indivíduos que as ocupam, possui uma característica especial que a difere de todas as
outras funçõesrelativas ao Poder Público, que é o dever de representatividade, inerente
àquele que exerce o mandato político. Nesse sentido, cada decisão do representante deve
expressar a vontade do representado, e ainda, cada ação por aquele praticada deve se
realizar como se aqueles que o escolheram se colocassem a praticá-las. Assim, como
definir a conduta do político que não toma atitudes com o intuito de beneficiar o país?
Estaria este agindo em conformidade com a vontade daqueles que o elegeram?
Neste ponto, pretendo definir que não deveria ser necessário estabelecer-se a
possibilidade de reeleição para motivar o indivíduo que ocupa o cargo público a exercer
um bom mandato. O político tem o dever de agir para a sociedade, visando atender ao
interesse público, através de melhorias à vida da coletividade, de acordo com as
competências que lhe são atribuídas pelo texto constitucional. O mandato político jamais
poderia ser exercido para atender a interesses particulares, somenos quando direcionado
ao interesse próprio.
A partir do momento em que o sistema político autoriza a recondução por meio da
candidatura a um novo mandato, se demonstra pelas experiências recentes que a
campanha eleitoral passa a basear-se em uma oposição: o partido da situação e o
candidato que o representa buscam demonstrar as benesses e os atos positivos de seu
governo, enquanto o partido de oposição tenta demonstrar as fragilidades e as falhas da
gestão anterior. Nesse momento, coloca-se sempre em evidência o candidato que busca a
sua reeleição, seja por meio de sua propaganda partidária ou da oposição. Dessa forma,
ainda que pelo modo com que a propaganda é veiculada, a exposição possa ser tanto
positiva quanto negativa, haverá sempre desigualdade na exposição ao nome dos
candidatos, sendo, portanto, contrária a democracia. A cada oito anos, ou por vezes a
cada quatro, verifica-se que o debate político deixa de efetuar-se de forma positiva, por
meio da apresentação de propostas e pela busca de soluções para o futuro, para realizar-se
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com base na gestão passada em que um dos candidatos busca a construção de sua
imagem, enquanto o seu adversário efetua a tentativa de desconstruí-la.12
Ressalta-se ainda que, existem outras formas de realizar a avaliação de um
governo, que não custe aos eleitores a perda de um tempo precioso que poderia ser
utilizado em um debate positivo, como as pesquisas de opinião realizadas por institutos
especializados, que embora não consigam atingir a totalidade dos eleitores (o que não é
possível nem mesmo com as próprias eleições, que no último pleito realizado no dia
26/10/2014, teve índice de abstenção de 21,10%)13 são capazes de expressar de modo
aproximado o nível de satisfação da população brasileira quanto ao governo com a
utilização de métodos científicos.
5. 2. Mandatos de quatro anos são curtos para a implantação de estratégias
de longo prazo?
A segunda questão que se apresenta diz respeito ao tempo de mandato para os
cargos do poder executivo. Seriam estes demasiado curtos para a realização de mudanças
de médio a longo prazo? Existem programas que demandam um período maior para
serem implantados, e, por isso, pode-se afirmar que não seria possível aplica-los, em vista
do reduzido mandato de quatro anos? Deveria assim o governo buscar apenas soluções
imediatas cujos objetivos seriam alcançados apenas em curto prazo, e, preferencialmente
até o fim do mandato?
Os mandatos de quatro anos instituídos aos chefes do poder executivo não
impedem a realização de projetos e a implantação de mudanças de médio e longo prazo,
tampouco inviabilizam o governo a exercer a gestão de sua esfera política de maneira
eficaz, visto que o modo com a qual se estabelece o sistema de gestão dos recursos
públicos no Brasil se baseia no período de quatro anos. Nesse diapasão, a gestão do
sistema financeiro nas esferas municipal, estadual e federal é pautada em três leis: o
12
Sob tal aspecto, é possível definir o debate que se pauta em ideias políticas e na apresentação de projetos
como um debate positivo, em que se efetuam comparações entre os candidatos em razão das propostas por
este apresentadas. Já odebate negativo corresponde àquele que se baseia na construção da própria imagem e
desconstrução dos adversários políticos, pelo qual se deixa de lado, as questões inerentes ao governo do
país para pautar-se na avaliação pela competência do governante.
13
Conforme dados oficiais do TSE. (Disponível em: < http://divulga.tse.jus.br/oficial/index.html>. Acesso
em: 28 out 2014).
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THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto
Plano Plurianual (PPA), a Lei das Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária
Anual (LOA).
O PPA é elaborado a cada quatro anos, durante o primeiro ano de mandato e tem
por objetivo estabelecer as diretrizes, os objetivos e as metas de médio e longo prazo a
serem alcançadas nos anos seguintes, tendo vigência a partir do início do segundo ano de
mandato ao término do primeiro ano do mandato subsequente. Já a LDO tem por
finalidade estabelecer as metas do período subsequente, dispondo ainda sobre
modificações na legislação tributária e orientando a elaboração do orçamento anual a ser
aplicado ao ano seguinte. Por fim, a LOA compreende a previsão orçamentária para o
exercício financeiro seguinte, pelo qual se estabelece as despesas e as receitas a serem
efetuadas.14
Logo, é possível verificar que o modo com a qual o sistema financeiro nacional se
organiza se pauta no período de quatro anos, não existindo qualquer norma no
ordenamento jurídico brasileiro que autoriza o estabelecimento de metas ou o
planejamento na utilização das receitas públicas para o período de oito anos. Além disso,
o revezamento no poder não impede a realização de uma boa política, visto que uma vez
investido no cargo e, sendo esta condizente com a vontade do povo, caberá ao chefe do
poder executivo dar continuidade aos projetos que apresentaram resultados positivos e
aprimorar, ou até mesmo, encerrar aqueles que não mais correspondem ao interesse
público. Nesse sentido, a mudança tem um aspecto positivo, na medida em que a partir da
renovação da equipe de governo permite-se uma reavaliação das prioridades públicas.
5. 3. Reeleição como a soberania da vontade do povo
Considero importante frisar anteriormente que este se apresenta como um dos
argumentos mais fortes àqueles que defendem a possibilidade de reeleição, por tratar-se
de um dos elementos essenciais à sobrevivência de um regime democrático, conforme já
destacado neste texto. Sob tal ponto, coloca-se a seguinte questão: a eleição, por meio do
voto, daquele que pleiteia a recondução para um novo mandato não poderia ser
correspondente à vontade soberana do povo? A escolha deste não seria condizente com os
interesses da coletividade, de modo que este possa exercer o cargo a que se candidatara
como representante da sociedade?
14
Para uma explicação simplificada sobre o tema: <http://www12.senado.gov.br/orcamentofacil>.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014.
Inicialmente, retorno com a seguinte pergunta: da mesma forma, não poderia
considerar-se aceitável o governo exercido por um ditador ou por um tirano, quando o
poder a ele conferido se reveste de aceitação popular? A resposta para todas estas
perguntas deve ser positiva. Entretanto, para que qualquer destes entes tenha legitimidade
no poder faz-se necessário que o regime político adotado no país, autorize que dessa
forma aconteça, seja esta autorização proveniente da lei ou dos costumes.
Sob tal aspecto, não há como negar a legalidade formal e material da norma que
autoriza a reeleição no Brasil, na medida em que esta fora promulgada por meio de uma
emenda constitucional, através dos procedimentos previstos em nossa constituição.
Porém, seria cabível levantar questionamentos para averiguar se esta norma no momento
de sua formação atendia aos anseios da sociedade.
Quando, iniciado o movimento das Diretas Já, no início da década de 80, a
sociedade brasileira clamava pelo retorno ao regime democrático, evidenciando-se como
principal instrumento dessa mudança, a previsão de eleições diretas. O desejo de poder
escolher quem seria o representante do povo no exercício do governo era tão forte, que o
movimento foi capaz de influenciar, ainda que de forma moderada, na elaboração do
texto constitucional de 1988.
É possível localizar logo no primeiro artigo do referido diploma, a definição do
Brasil como um Estado Democrático de Direito, sendo ainda identificável em todo o
corpo textual a intenção do legislador em criar um regime político pautado em princípios
democráticos. Em tal viés, o texto original previa a impossibilidade de recondução aos
mandatos do poder executivo.
Com isso, para que a norma que atualmente rege a possibilidade de reeleição se
revista da legitimidade conferida pela soberania da vontade do povo, faz-se necessário
que o povo decida sobre esta, expressando a sua opinião de forma direta sobre a
manutenção ou alteração da norma que regulamenta a duração dos mandatos e a
possibilidade de recondução. Para isso, por se tratar de matéria relevante para a nação
faz-se necessária a realização de um plebiscito, que aborde entre outros temas
concernentes à reforma política, sobre a reeleição.
5. 4. Conhecimento e experiência daquele que pleiteia a reeleição
Outro ponto a ser exaltado reside na experiência que aquele que já exerce o
mandato possui, visto que já o fizera nos quatro anos anteriores, e, por isso, já dispõe, em
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THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto
tese, de todo o conhecimento necessário ao exercício desta função pública, podendo ser
utilizada por analogia a ideia de que este já conhece a casa. Sob essa perspectiva, não
seria possível afirmar que este possuiria certa vantagem no exercício da função, capaz de
qualificá-lo como o mais competente a assumir o cargo?
Aplicando-se outra analogia ao tema, realmente é possível afirmar que aquele que
já foi pai ou mãe consegue lidar de uma maneira mais fácil com o nascimento de seu
segundo filho, principalmente sob o aspecto psicológico, do que aquele que nunca o foi.
Porém, neste momento estamos a tratar do exercício do governo e da chefia do poder
executivo, sendo o conhecimento e a experiência requisitos importantes a qualquer
pessoa que pleiteie assumir este cargo público tão relevante à vida da comunidade, de
modo que independente de quem seja indicado pelo partido a candidatar-se, faz-se
necessário verificar na pessoa do candidato atributos que o capacitem a exercer a função,
destacando-se todavia que a avaliação caberá ao povo por meio do voto.
Em contrapartida, embora teoricamente, em determinados casos, possa por meio
da reeleição nas urnas ocorrer a vitória de um político com mais experiência, a
continuidade no mandato gera uma estagnação da máquina estatal, indesejável a qualquer
regime democrático. É preciso destacar que ao reeleger-se determinado candidato, não
somente este permanecerá no cargo, mas muitas vezes conjuntamente, boa parte de sua
equipe de governo. Poderia tal aspecto ser positivo, na medida em que se espera que
aqueles que permanecerão nos cargos tenham, assim como o chefe do poder executivo
eleito, mais experiência na condução das políticas públicas. Contudo, a continuidade no
poder traz consigo outro aspecto prejudicial à democracia, devido à estagnação das
instituições públicas.
A experiência prática demonstra que a permanência de determinado grupo político
no poder por um longo período de tempo gera um fenômeno contrário à democracia, na
medida em que enfraquece de modo substancial a oposição ao governo, prejudicando a
ocorrência do debate necessário à reflexão sobre as prioridades políticas a serem
adotadas, e fornecendo ao grupo que se encontra no poder os meios de que precisa para
exercer de forma unilateral as políticas de seu interesse. Destaca-se que por vezes, o
sistema construído dessa forma pode favorecer a aprovação de boas políticas, que
contrariadas por uma oposição forte jamais seriam aprovadas, porém, do mesmo modo,
podem ser aprovadas más políticas, sem que estasrepresentem de modo inequívoco a
vontade popular.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014.
5. 5. Elegibilidade: direito de recandidatar-se
Tem-se ainda como importante nesta temática, o direito individual da pessoa que
se coloca à disposição de uma nova candidatura, já tendo exercido o cargo no período
anterior. O que diferencia o chefe do poder executivo daquela circunscrição territorial a
qualquer outra pessoa que tenha por intuito a disputa pelo cargo? Por que este, enquanto
cidadão correto, tendo sido um excelente gestor da máquina pública, não poderia pleitear
a recondução do mandato se qualquer outra pessoa, atendidos os requisitos objetivos
previstos na Constituição Federal poderia exercê-lo?
Convém destacar que, de igual modo, a legislação brasileira já permitiu que o
direito de determinada pessoa em se tornar elegível, fosse suprimido pela necessidade de
se permitir a candidatura apenas a políticos que não tenham sido condenados por crimes
relevantes ao exercício da função, ainda que a escolha deste através do voto decorresse
efetivamente da vontade popular.15
Neste ponto, ressalta-se que à luz da legislação vigente nada o impede de fazê-lo,
limitando-o apenas a candidatura a um único mandato subsequente. Todavia, a norma que
concede ao candidato o direito de ser elegível ao mandato continuado, é contrária ao
princípio democrático, em vista da desigualdade material que gera na disputa eleitoral,
conforme será enfatizado posteriormente e ainda, em razão da necessidade de alternância
de poder, essencial à existência e efetiva vivência de um regime democrático.
6. Alternância de poder
Conforme destacado anteriormente neste estudo, a alternância de poder constitui
elemento intrínseco à democracia, sendo este de importância fundamental à manutenção
de um regime político em suas características democráticas, de modo a evitar o
estabelecimento de determinado grupo político no poder por um período de tempo
demasiado longo, a ponto de se verificar a criação de lugares cativos no Poder Público.
Sob outro viés, a renovação política se faz essencial, para que se crie um ambiente
favorável à eleição de novas prioridades políticas e de novos projetos, possibilitando o
crescimento e o progresso não apenas dos mesmos setores em que se realizam
15
Nesse sentido, fora aprovada em 2010 a Lei da Ficha Limpa (Lei complementar nº 135/2010), que
ampliou as hipóteses legais de inelegibilidade, sob a justificativa de conferir proteção à probidade
administrativa e a moralidade no exercício do mandato.
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THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto
investimentos em nossa sociedade, mas para que os demais, alcancem o mesmo índice de
crescimento de forma conjunta.
É inegável que nem sempre a alternância política resultará em mudanças positivas
para a coletividade, restando a possibilidade de que as metas definidas possam não ser
alcançadas como se esperava ou até mesmo que as prioridades estabelecidas pelo
governante eleito não sejam aquelas que tinham maior relevância naquele momento,
verificando-se posteriormente, que outros setores da vida social, necessitavam de
recursos que, por escolha do governante, não foram repassados da forma que seria
necessária para solucionar o problema. Porém, é preciso ressaltar que todos os
governantes, sejam estes eleitos em seu primeiro mandato ou reeleitos, estão sujeitos a
este erro, independente do partido que integrem.
Entretanto, a ocorrência de erros pode ser minimizada por dois aspectos: quando o
governante deixa de realizar práticas de cunho eleitoreiro, que visem exclusivamente
melhorar a imagem de sua gestão perante determinado grupo da sociedade e passa a
pautar-se em um planejamento prévio, que não seja destinado à manutenção de
determinado grupo político no poder, mas que tenha por objetivo a melhoria das
condições de vida da coletividade, assegurando os direitos de cada indivíduo, e ainda,
pelo fortalecimento do debate, na medida em que para que a eleição de prioridades ocorra
de modo mais eficiente para o país, o estado ou o município, faz-se necessária a
existência de uma oposição forte, que seja capaz de colocar-se de forma contrária ao
posicionamento da base de governo, para que de modo construtivo e após reflexão
profunda sobre o impacto das normas a serem estabelecidas se encontre conjuntamente a
melhor maneira de gerir os recursos públicos. Além disso, concerne a oposição papel
imediato na fiscalização dos atos do Poder Público. Neste ponto, somente uma oposição
fortalecida é capacitada ao desempenho de tais funções de modo eficaz, e esta apenas
resultará quando existir ambiente propício à alternância de poder.
Ressalta-se ainda, que a vinculação da ideia de alternância de poder à democracia
não é instituto moderno, já tendo sido defendida por diversos estudiosos políticos,
conforme destaca Tarcísio Vieira de Carvalho Neto (2012, p. 173):
Aristóteles (1998) já se referia à igualdade na “alternância do mando e da
obediência” como o “primeiro atributo da liberdade que os democratas
colocam como fundamento e como fim da democracia”. Entre as máximas
democráticas (em número de doze) concebidas por seu poderoso intelecto,
estavam, justamente, as de que: (i) a mesma magistratura não deve ser
conferida mais de uma vez à mesma pessoa, ou pelo menos que isso aconteça
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raramente e para pouquíssimos cargos; (ii) todos os cargos devem ser de curta
duração, ou pelo menos aqueles em que essa breve duração for conveniente;
(iii) todos devem passar pela judicatura, independentemente da classe a que
pertençam, e ter poder para julgar sobre todos os casos em qualquer matéria,
mesmo as causas da mais alta importância para o Estado; (iv) não se deve
tolerar nenhuma magistratura perpétua. Para ele, o princípio no qual se baseiam
é “o direito que retiram da igualdade numérica” e “quanto mais longe se levar
essa igualdade, mais a democracia será pronunciada” (ARISTÓTELES, 1998,
p. 177-179).
Conforme se pode extrair do trecho transcrito da obra aristotélica, existem outros
elementos importantes ao exercício da democracia, que merecem questionamentos em
momento futuro, no que se refere ao acesso aos cargos eletivos, subsistindo a crítica ao
modelo político excludente que vivenciamos nos dias atuais. Todavia, neste momento,
faz-se necessária a abordagem de outra questão relevante ao tema da reeleição aos cargos
do Poder Executivo, que corresponde de modo direto ao pensamento aristotélico sobre a
democracia acima exposto.
7. Reeleição: desigualdade na corrida eleitoral
Ainda que correspondente à soberania da vontade popular e proveniente da
liberdade política atribuída ao povo, qualquer regime político jamais poderá denominarse democrático, enquanto predominar a desigualdade em dois aspectos: na valoração do
voto, em que se confira valor diferenciado ao voto do rico e do pobre, do homem ou da
mulher, ou que se faça qualquer outra forma de distinção; ou ainda, na competição pelo
poder, proveniente da disputa eleitoral, de modo a estabelecer quaisquer normas que
favoreçam determinado candidato perante os demais. Nesse sentido, a norma que
possibilita a candidatura de uma pessoa que já se encontra no exercício do cargo que
pleiteia, confere-lhe vantagens, que dificilmente serão equiparadas pelos adversários
políticos.
Sob tal aspecto, a desigualdade decorre de vários fatores, sendo o primeiro destes
a permanência do chefe do poder executivo no cargo a qual fora eleito durante todo o
período de campanha, conforme prevê a legislação vigente. Com isso, o candidato em
meio à veiculação de propaganda eleitoral permanece realizando atos de governo,
naturais ao exercício de sua função, que lhe conferem uma publicidade maior do que aos
demais candidatos, na medida em que, pela relevância de tais atos perante toda a
comunidade, a exposição midiática destes torna-se natural, de modo que esta não poderá
de forma alguma ser igualada por qualquer dos demais candidatos.
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THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto
Neste mesmo ponto, é preciso ressaltar que a permanência do candidato no
exercício do mandato durante todo o período de campanha lhe permite a realização de
outros atos políticos capazes de lhe trazer vantagens que também não poderão ser
alcançadas pelos demais candidatos, como a criação ou sanção de leis com propósito
eleitoreiro. Não há como se negar que destas funções pode ser efetuado o uso com
propósito indireto de promover a imagem do candidato, visto que ainda que em atos
corriqueiros, que não são designados propositalmente ao período de campanha eleitoral,
verifica-se a possibilidade de favorecimento ao candidato, que é colocado em uma
posição de evidência pelo mero exercício do mandato.Além disso, existe a potencialidade
da atuação dos funcionários comissionados como cabos eleitorais para angariar votos aos
candidatos que buscam a reeleição, visto que estes, de forma natural, são partes
interessadas na vitória do atual gestor. Destaca-se, que este fator pode não ter grande
relevância no âmbito federal ou estadual, no entanto é inquestionável a potencialidade
que tal fator dispõe na esfera municipal.
Por conseguinte, já tendo sido vislumbrado anteriormente a existência deste
problema, encontra-se em trâmite no Senado, uma proposta de emenda à constituição,
criada pela senadora Ana Amélia (PP-RS), que prevê o afastamento do chefe do poder
executivo que decidisse disputar a reeleição. Originalmente, a PEC 48/2012, tornava
obrigatório o afastamento do mandatário a pelo menos quatro meses antes da realização
do pleito eleitoral, mas após emendafeita pelo senador Luiz Henrique (PMDB-SC), o
afastamento somente teria que ocorrer de forma obrigatória, no primeiro dia útil posterior
à homologação da candidatura. É importante frisar que tal norma constitui um avanço na
reforma política, na medida em que reduz de forma considerável a desigualdade existente
entre o candidato que pleiteia a reeleição e os demais postulantes ao mandato político,
mas não soluciona o problema, subsistindo o desequilíbrio manifesto entre os candidatos.
8. Conclusão
Em diversos momentos do presente estudo, apresentei posicionamento contrário à
norma constitucional que autoriza a reeleição para os cargos de chefia do poder
executivo, expressa no art. 19, parágrafo 5º, do referido diploma. No entanto, torna-se
importante destacar que, embora a considere contrária ao princípio democrático, expresso
em diversos momentos em nossa Carta Máxima, seria um erro técnico considera-la
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014.
inconstitucional, em vista do princípio da unidade, a ser aplicado na interpretação do
texto constitucional.
Destarte, ainda que inserida no referido diploma, tal norma não se caracteriza
como intocável, visto que não se insere entre as normas as quais o constituinte originário
revestiu de imutabilidade, designando-a entre as cláusulas pétreas, sendo possível a sua
modificação mediante emenda à constituição, do mesmo modo com que fora exercida em
1997. Porém, devido a relevância da matéria em questão e da sua importância para a
sociedade, propugno pela realização de uma consulta à opinião pública, através de um
plebiscito.
Nesse diapasão, a consulta por meio de plebiscito se mostra mais eficaz em razão
das múltiplas matérias a serem tratadas pela reforma política que se aproxima, visto que
esta não deve resumir-se apenas à questão sobre a continuidade da reeleição aos cargos
do poder executivo, mas pautar-se também em outros quesitos, como o financiamento de
campanha proveniente de empresas privadas e a unificação dos pleitos eleitorais
municipais e estaduais/federais. E assim, a partir da decisão adotada pelos eleitores nas
urnas, às questões de relevância pública que serão debatidas e votadas pelo povo, caberá
ao congresso nacional, elaborar a legislação pertinente, nos moldes necessários a garantirlhe eficácia em nosso ordenamento jurídico. Dessa forma, caberá à população brasileira
dar o primeiro passo na reformulação da norma, cabendo ao legislador o papel de
assegurar a vontade declarada nas urnas, por meio do debate sobre os detalhes técnicos
quanto à sua aplicação.
De modo diverso, a utilização de um referendo anteciparia o debate, de modo que
as discussões sobre todas as matérias relevantes à reforma política se dariam
anteriormente no Congresso Nacional, ocorrendo, posteriormente, a formulação da
legislação pertinente, cabendo ao eleitor o papel de aprova-la ou rejeitar a sua aplicação,
de modo que este estará adstrito à matéria votada anteriormente pelo legislador e
qualquer hipótese que por este for afastada, jamais chegará a ser apreciada pela
população.
Resta ainda destacar, que o legislador, enquanto membro do Estado, tem o seu
mandato eletivo regulamento pelas normas de nosso sistema político, e, como integrantes
ativos de partidos políticos, é, indubitavelmente, parte interessada no conteúdo material
da reforma política, o que gera evidente conflito de interesses nas escolhas relativas a esta
matéria para elaboração de tais reformas. Logo, torna-se inquestionável a inviabilidade de
realizar uma reforma que não aprecie a opinião pública, através de um referendo ou um
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THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto
plebiscito, sendo este último, conforme já abordado, o método mais eficaz à sua
apuração.
Portanto, diante de todos os argumentos apresentados, o posicionamento contrário
à possibilidade de reeleição aos mandatos de chefia do poder executivo constitui a via
mais eficaz ao exercício de um regime democrático, pautando-se concretamente na ideia
de alternância de poder e de igualdade entre aqueles que pleiteiam o mandato eletivo.
Sobre este ponto, outras mudanças normativas devem ainda ser vislumbradas em um
momento futuro, de modo a reduzir as deficiências de nosso modelo político excludente e
garantir a vivência de uma democracia verdadeira.
Entretanto, como primeiro passo, tão essencial ao combate à crise que se alastra
em nosso modelo representativo, a reforma política é inevitável, e esta não pode jamais
realizar-se sem a participação do povo. Importa destacar que o regime democrático não
deve utilizar-se da soberania da vontade popular apenas no momento de escolher os
representares políticos que irão compor o parlamento, as assembleias legislativas e a
chefia do executivo, visto que o papel social a ser exercido pelo povo é muito maior do
que este. Nesse sentido, a vivência de um efetivo governo do povo, somente será possível
quando o próprio povo puder decidir o modo como queira ser governado e os princípios a
serem aplicados ao regime político forem provenientes da vontade destes, e não dos
interesses de grupos seletos que ousarem tentar manipular os rumos políticos de nosso
país.
Sob tal viés, apresento e defendo um dos possíveis caminhos, mas com a ressalva
de que enquanto vivermos em um Estado Democrático de Direito, somente haverá
legitimidade na escolha, seja ela qual for, esteja bem ou mal fundamentada, se esta for
exercida pela vontade soberana do povo.
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Suporte Fático de Direitos Fundamentais: Auxílio interpretativo em
direitos sociais no Brasil e em Portugal
Factual Support of Fundamental Rights: Interpretative support to Brazilian and
Portuguese social rights
Mírian Zampier de Rezende1
Resumo
O presente trabalho visa buscar o melhor caminho como solução ao problema da
definição do conteúdo dos direitos sociais nos ordenamentos jurídicos português e
brasileiro, que se reflete diretamente no plano da eficácia desses direitos e nas soluções
em caso de violação de seus preceitos. Para tanto, buscou-se amparo teórico na Teoria
dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy e no desenvolvimento de Virgílio Afonso da
Silva em tema de suporte fático. Percebeu-se que, apesar das diferenças jurídicoconstitucionais de ambos os ordenamentos, é possível que se valham da noção de suporte
fático visando que direitos da relevância dos direitos sociais não sejam destituídos de seu
conteúdo e que não sejam os cidadãos privados dos bens e interesses constitucionalmente
protegidos por essas normas.
Palavras-Chave: Direitos sociais. Eficácia. Suporte fático.
Abstract
This work goal is to search the best solution to the problem of definition of
social rights’s content in Brazilian and Portuguese law, what is directly connected to the
effectiveness of these rights. The work is grounded on Robert Alexy Fundamental
Rights Theory and on Virgílio Afonso da Silva work about factual support. In despite of
Brazilian and Portuguese law differences, it is possible to both to use factual support.
By using it, relevant rights as social rights will not be emptied of all it content and
citizens will not be private of goods and interests that are protected by these rights.
Key-Words: Social rights. Effectiveness. Factual Support.
Recebido em: 27 de outubro de 2014
Aceito em: 2 de fevereiro de 2015
1
Graduanda em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
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REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos
Introdução
Analisando os ordenamentos jurídicos português e brasileiro, sobretudo em sede
de direito constitucional, percebe-se a afinidade de ambos quanto à positivação dos
valores mais caros ao homem, sobretudo a partir de normas de direitos fundamentais.
No entanto, a aplicabilidade das normas de direitos sociais ainda enseja certas dúvidas,
indo de encontro ao lugar de destaque que ocupam nas constituições dos respectivos
países. Percebe-se que essa dificuldade é originada, principalmente, pela dificuldade
que têm os juristas na definição do conteúdo das normas de direitos sociais.
Nesse sentido, o objetivo do trabalho é desenvolver e disseminar a utilização da
incipiente noção de suporte fático no âmbito do direito constitucional, de forma a
colaborar no estabelecimento de padrões interpretativos que possibilitem maior
concretização dos direitos fundamentais e, consequentemente, maior proteção da
dignidade daqueles que necessitam da realização dos mandatos trazidos pelas normas de
direitos sociais.
Metodologicamente, fez-se revisão de literatura, de modo à obtenção de
subsídios teóricos fundamentadores do estudo, a partir da análise de melhor doutrina e
jurisprudência. Utilizam-se como marcos teóricos da investigação, sobretudo, a noção
de Robert Alexy de direitos fundamentais enquanto normas prima facie e o
desenvolvimento do conceito de suporte fático em direito constitucional levantado por
Virgílio da Silva em sua tese defendida no concurso para o provimento do cargo de
professor titular de direito constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo. Partiu-se do método dedutivo, de modo que foram analisadas, inicialmente,
questões abstratas, para que, somente depois, possa vir a ser possível a análise das
questões abordadas de uma forma concreta. Ademais, classifica-se a pesquisa como
qualitativa, advinda de busca em referências bibliográficas por argumentos embasadores
do trabalho.
Busca-se responder, então, aos seguintes questionamentos: quais as dificuldades
comuns aos sistemas jurídicos brasileiro e português na aplicação dos direitos sociais?
Como essas dificuldades podem ser sanadas? Qual o conceito e extensão da noção de
suporte fático que devem ser utilizados no âmbito de direito constitucional? Como se
pode adequar tal conceito à aplicação dos direitos sociais?
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014.
1 Noções acerca da concretização dos direitos sociais: cotejamento dos
sistemas constitucionais português e brasileiro
Por diversos fatores2 é percebida, em determinada medida, certa aproximação
entre os sistemas jurídicos brasileiro e português, de forma mesmo que certos autores
consideram possível se falar que esses países fariam parte de um direito comum
lusófono enquanto subgrupo da família romano-germânica3. Dentre esses pontos de
aproximação, é possível elencar a abertura e afinidade de ambas as Constituições no que
tange à positivação e incorporação de direitos econômicos, sociais e culturais4 dotados
de caráter de fundamentalidade, compondo, juntamente aos direitos, liberdades e
garantias5, catálogo extenso e profundo de direitos fundamentais.
Ponto em que divergem sobremaneira os dois sistemas, no entanto, é nas
consequências advindas da sistematização dos direitos fundamentais entre direitos
sociais e direitos a liberdades. A Constituição Portuguesa consagra – à parte de haver
princípios aplicáveis a todos os direitos fundamentais –, um regime material
privilegiado aos direitos a liberdades, que, conforme entendimento majoritário, seria
extensível apenas àqueles direitos sociais de natureza análoga (artigos 17.º e 18.º da
Constituição Portuguesa). Dessa forma, há, nas palavras de Melo Alexandrino, um
primado dos primeiros sobre os segundos, que, para além do regime jurídico
qualificado, refere-se também, para o autor, a uma desigual importância e a um distinto
estatuto jurídico desses conjuntos de direitos (ALEXANDRINO, 2011, p.69)6. No
Brasil, por outro lado, longe de se ignorar que existam diferenças quanto à dimensão
preponderante das normas consagradoras de direitos sociais, sabidamente positiva na
maioria dos casos, equiparam-se juridicamente e em importância ambos os grupos de
direitos7.
2
Dentre eles podemos notar a recepção e influência recíproca de institutos jurídicos e culturais, notadamente por
nutrirem os países aproximação de caráter histórico e linguístico. Com auxílio da maior possibilidade de
comunicação, é possível notar uma aproximação de fontes de estudo do direito e certo intercâmbio doutrinário, que
fazem surgir quadro axiológico aproximado entre eles.
3 Autores como Dario Moura Vicente chegam a reconhecer um Direito Comum aos países de língua portuguesa,
advindo das semelhanças das opções políticas e legislativas no tratamento dos mais relevantes institutos e na opção
por determinados valores a reger os ordenamentos (VICENTE, 2014, p.87).
4
Direitos que, a partir de agora, serão tratados apenas como direitos sociais.
5 Direitos que, à semelhança do realizado na nota 3, serão tratados apenas como direitos a liberdades.
6
Fazendo justiça ao autor, deve-se ressaltar que o mesmo destaca não significar esse primado hierarquia material
entre as normas de direitos fundamentais, mas diferenciação ao nível de estrutura político-constitucional, que
permitem uma estratificação de partida entre os direitos, de modo a revelar uma preferência relativa dos direitos à
defesa sobre os direitos sociais (ALEXANDRINO, 2011, p. 69)
7 Dessa forma, por exemplo, tanto os direitos sociais como os consagradores de liberdades são tratados como limites
materiais de poder de revisão constitucional (art. 60, §4º, IV Constituição Brasileira), diferentemente do que ocorre
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REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos
Em decorrência da diferenciação no que tange ao regime dos direitos
fundamentais sociais e a liberdades, divergem os sistemas, igualmente, quanto à
aplicabilidade dos direitos fundamentais. E isso se relaciona diretamente com a
possibilidade de sua judiciabilidade e com a concepção dos papéis dos Poderes
Judiciário e Legislativo em sua concretização. Nesse sentido, tratando acerca do
ordenamento português, Melo Alexandrino leciona:
[...] a realização do conteúdo principal dos direitos sociais constitui uma
variável não só do processo econômico, mas também do processo político
(Habermas); ao passo que a efetivação dos direitos, liberdades e garantias
depende essencialmente do cumprimento das exigências requeridas pelo
princípio do Estado de Direito, a realização dos direitos sociais mostra uma
marcada dependência da realidade, nomeadamente ao nível de uma devida
articulação com os demais sistemas sociais básicos (Bruno da Costa); ao
passo que o conteúdo dos direitos sociais envolve mutabilidade (Roberto
Bin), o conteúdo dos direitos de liberdade pressupõe a estabilidade (daí as
idéias de determinação do conteúdo, delimitação do âmbito de proteção, etc.);
ao passo que nos direitos sociais é significativo o grau de indeterminação da
sua eventual violação, esse apuramento é relativamente fácil junto aos
direitos de liberdade (Carlos Bernal Pulido). (ALEXANDRINO, 2011, p.46)
Assim, enquanto na Constituição Portuguesa apenas os preceitos constitucionais
respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam
as entidades públicas e privadas (art. 18.º, 1), a Constituição Brasileira não faz
quaisquer diferenciações, de modo que as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata (art. 5º, §1º). No Brasil, dessa forma, também os
direitos sociais produzem efeitos jurídico-subjetivos, inclusive a prestações positivas.
São, pois, normas vinculantes e podem ser exigidos frente ao Judiciário quando for
ausente ou insuficiente a atuação dos demais poderes públicos.
A interpretação da Constituição Portuguesa e a práxi do Tribunal Constitucional,
por sua vez, revelam a persecução da separação dos poderes sob prisma clássico de
autocontenção do Judiciário e de enaltecimento da atividade legislativa no que tange ao
aspecto de aplicabilidade dos direitos sociais. Possuem, os representantes do povo,
ampla margem de conformação desses preceitos, na qual não costuma o outro poder
intervir. A decisão judicial tem apenas função de comunicação ao Legislativo da falha
de seu dever e não há, por exemplo, sequer julgados suficientes que permitam afirmar
na Constituição Portuguesa, que, na alínea d de seu art. 288.º faz menção expressa de que apenas os direitos,
liberdades e garantias atuam enquanto limites de reforma. Os direitos sociais, portanto, não são considerados limites
materiais à revisão constitucional, com exceção dos direitos dos trabalhadores, no que a Constituição Portuguesa é
expressa na al. e do mesmo art. 288.º
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014.
qual a tendência do Tribunal no que tange à inconstitucionalidade por omissão89 do
legislador na densificação desses direitos.
Isso porque a Constituição Portuguesa não proporciona gama de normas
suficientes que tornem possível a busca direta de tutela dos direitos fundamentais por
seus titulares. Principalmente, não há instrumento de interpelação judicial pelo
indivíduo da afirmação de direito social em seu caso concreto10. Considerando uma
inação do poder público na densificação de um direito social, por exemplo, o cidadão
somente pode peticionar ao Provedor de Justiça ou ao Presidente da República para que,
estes sim, possam conduzir o problema à fiscalização do Tribunal Constitucional11. Isso
se reflete na eficácia da norma, pois, não atuando o legislador, e não sendo a ela
concedida aplicabilidade direta a partir do preceito constitucional, não se consegue
definir seu conteúdo, e os cidadãos ficam privados das prestações que delas deveriam
advir.
A Constituição Brasileira de 1988, no entanto, exprime diferente modelo. Das
mudanças trazidas com o contexto histórico do século XX e da concepção de que o
Estado, mais que de direito, deve ser também social, extrai-se que o amparo legal não é
suficiente à proteção última da dignidade humana. Ainda, pelos traumas vividos no
regime ditatorial que antecedeu o constituinte de 1988, adveio o pensamento quase
uníssono de que os direitos dos cidadãos, das maiorias e das minorias, devem ser
protegidos frente às oscilações políticas e ideológicas governamentais. Assume, a
Constituição, dessa forma, papel de diploma normativo máximo consagrador dos
valores mais caros à sociedade, o que se dá, sobretudo, através dos direitos
fundamentais.
8
A maior parte das decisões em sede de omissão em direitos sociais envolve não uma inação legislativa, mas ações
que tendam a eliminar posições consagradas anteriormente, e que geram posicionamentos e fundamentos diversos nos
diferentes julgados.
9 Em Portugal nota-se escasso o recurso à fiscalização de inconstitucionalidade por omissão – até o ano de 2011
foram treze processos e quatro decisões nesse sentido. Mais ainda, até esse mesmo ano, apenas por uma vez o
Tribunal Constitucional declarou inação legislativa decorrente de inexequibilidade de direitos sociais.
10 Essa dificuldade na busca da tutela de direitos sociais não é imune a críticas, que se dão especialmente pelo
paradoxo que revela frente à consagração do princípio da socialidade enquanto princípio constitucional e frente ao
elenco avantajado e pormenorizado de direitos sociais trazidos pela Constituição Portuguesa. Aos direitos previstos
na letra do diploma normativo máximo do ordenamento português, portanto, não está correlacionada uma Justiça
Constitucional de magnitude semelhante. (NOVAIS, 2010, p.374)
11
A título de menção, percebendo o déficit do sistema português de tutela dos direitos fundamentais, tentou-se
superar a deficiência de acesso direito ao Tribunal pela ação de intimação, introduzida em 2002 no Código de
Processo dos Tribunais Administrativos. A ação possibilita a imposição de uma conduta à Administração quando for
necessária atuação célere para a proteção de direitos fundamentais do indivíduo que estejam em perigo e que não seja
suficiente o recurso a uma cautelar. Essa ação é o meio processual que mais se aproxima ao tipo de tutela judicial
direta que ocorre no Brasil. Porém, mesmo ela, em Portugal, é sujeita a um filtro de acesso (NOVAIS, 2010, p. 351),
que a restringe apenas à proteção de direitos, liberdades e garantias.
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REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos
Certo é que a possibilidade fática de concretização dos direitos sociais está
associada à realidade política e econômica do país, de forma que se torna de relevância
ímpar a atuação do legislador democraticamente eleito na análise dos recursos
disponíveis e das necessidades mais emergenciais da população. Ele deve, de fato,
direcionar os gastos e a elaboração do orçamento à persecução dos bens, interesses e
valores a cuja realização a Constituição o vincula, sempre segundo as peculiaridades da
sociedade. A ele cabe, pois, analisar quais os interesses populacionais mais afetados,
quais exigem maiores cuidados e quais as formas ótimas para que as políticas
elaboradas atinjam a sociedade de maneira universal, e, ao mesmo tempo,
materialmente igualitária. No entanto, a vinculatividade dessas normas, por sua
relevância, não deve atingir apenas o legislador, mas a todos os órgãos públicos12.
Dessa forma, também a separação de poderes deve ser compreendida no
contexto do Estado Democrático de Direito Social e da relevância judicial para a
resolução dos conflitos que envolvam direitos fundamentais. Nesse contexto se dá a
elevação da função do poder judiciário – especialmente do Supremo Tribunal Federal –,
cujo papel maior é a proteção da Constituição (logo, dos direitos fundamentais). Esse
papel deve ser cumprido mesmo frente aos desejos de ocasionais maiorias opressoras
legislativas, através da aplicação das regras constitucionais e ponderação dos princípios
envolvidos, visando sempre à máxima concretização de seus preceitos básicos.
Há, assim, maiores fundamentos normativos na Constituição Brasileira a
legitimar um papel ativo do juiz que, por vezes, pode até impor, em sua decisão, o
fornecimento de certa prestação. No entanto, o perigo, aqui, é inverso, qual seja, a
possibilidade de o Judiciário, notadamente o Supremo Tribunal Federal, a pretexto de
proteção da Constituição, violar a igualdade entre os cidadãos, conferindo àqueles que a
ele recorrem acesso a bens e serviços públicos que outros, em condições semelhantes às
suas, não têm. Isso levaria igualmente a um esvaziamento do conteúdo e eficácia
normativa dos direitos sociais, que poderiam ter sua efetivação restrita a um
determinado segmento da população que tem acolhida sua pretensão judicial e ficariam,
os indivíduos, sujeitos ao arbítrio de uma ditadura do Poder Judiciário.
De qualquer forma, o que se nota tanto num quanto noutro sistema após a análise
aqui empreendida, é que grande parte da dificuldade na concretização de direitos sociais
12
Essa ideia é mais facilmente defensável no contexto jurídico constitucional brasileiro, no qual é permitido que, na
ausência de atuação legislativa, o judiciário intervenha para que os bens e interesses constitucionalmente protegidos
dos cidadãos possam ser tutelados, garantindo maior força normativa aos preceitos constitucionais, notadamente aos
direitos fundamentais.
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advém, certamente, da dificuldade de definição e de critérios de definição do seu
conteúdo, e de compreensão de quais condutas representam violações a seus preceitos.
Seja porque ainda não houve densificação pelo legislador infraconstitucional, ou porque
a densificação não é suficiente à proteção do direito, seja por conta do recurso à
ponderação do Judiciário para sua satisfação, nota-se a dificuldade nessas questões.
Por não terem conteúdo facilmente definido, muitas vezes, recorre-se mesmo à
baixa densidade13 normativa dos direitos sociais como fundamento legitimador ao seu
grau de eficácia inferior. Isso acontece, sobretudo, quando há comparação à aplicação
das normas consagradoras de direitos a liberdades, das quais se costuma dizer que mais
facilmente extrai-se o conteúdo, e que, por isso, pouca discussão geram referente à
vinculação direta dos órgãos públicos aos seus mandatos14.
O problema da densidade normativa do direito social, pois, relaciona-se à
dificuldade em estabelecer quais prestações são por ele protegidas, especialmente
quando inerte o legislador. E essa dificuldade é sempre prejudicial. Primeiro, porque
põe em causa a eficácia e a própria seriedade com que devem ser tratados esses direitos.
E, segundo, porque pode servir ao arbítrio de representantes estatais ou grupos políticos
que, para atingir interesses próprios egoísticos, utilizam-se de medidas que ora dão
prevalência demasiadamente robusta aos direitos sociais, ignorando outros interesses e
valores de igual relevância constitucional, e ora, restringe-os de maneira desarrazoada,
condenando-os à destituição de todo e qualquer conteúdo. De um e de outro modo estão
sendo feridas as bases do sistema de um país democrático, de direito e social, e
sujeitando os indivíduos ao arbítrio estatal que há tanto se busca conter.
Para tanto, e visando alternativas de preenchimento do conteúdo dos direitos
sociais, vem-se, aqui, propor a utilização da noção de suporte fático para a interpretação
das normas constitucionais, especialmente no que se refere aos direitos fundamentais.
Vem, a proposta, auxiliar na adequação normativa ao contexto fático em que se insere e
na possibilidade de destinação a ela da eficácia de que deve ser dotada, principalmente
quando em causa hipótese de violação de seus preceitos. Que assim, em ambos os
ordenamentos, no que se aproximam e no que se distanciam, dentro das respectivas
13
Uma norma é dita como dotada de densidade normativa quando há em nível constitucional, com certo grau de
precisão, a definição do que compõe o seu conteúdo essencial de forma que, a partir da constituição, e sem recursos
robustos interpretativos, possa-se extrair o mandamento normativo. (SARLET, 2009, p.269)
14
Essa ideia, no entanto, é falaciosa. Isso porque não são apenas os direitos sociais que se apresentam em formas
constitucionais genéricas, o trabalho interpretativo de concretização também é patente em direitos a liberdades,
especialmente quando compostos de conceitos abertos e indeterminados, tornando a autocontenção judiciária, por
vezes, mais ideológica que baseada em fundamentos racionais e dedutíveis da realidade prática.
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REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos
peculiaridades jurídico-constitucionais, não se destitua de conteúdo preceitos da
relevância dos direitos sociais e, ao mesmo tempo, que sua aplicação não se dê ao custo
do completo sacrifício de outros valores que devem ser igualmente protegidos.
2 Suporte Fático em sede de normas constitucionais
Essencial ao estudo da aplicação do direito em uma sociedade, pois, é a análise
das normas jurídicas que o compõem. Estruturalmente são tais normas formadas por
enunciados abstratos os quais, havendo fatos correspondentes no mundo concreto,
possibilitam a aplicação de uma consequência jurídica. Dessa estrutura, origina-se a
noção de suporte fático, objeto de estudo neste trabalho.
Em alguns ramos do direito, são encontrados conceitos equivalentes ao de
suporte fático de forma mais arraigada. Em direito penal (tipo penal), direito tributário
(hipótese de incidência ou fato gerador) e direito privado (também denominado suporte
fático), por exemplo, dá-se maior relevância à sua utilização na compreensão normativa.
Nessas áreas, no entanto, o que ocorre é a mera subsunção da abstração
normativa à concretude dos fatos. Enquadrando-se o fato no preceito abstrato, diz-se
preenchido o suporte fático da norma. Têm, essas normas, em sua maioria, verdadeira
estrutura de regras jurídicas. Assim, praticando um indivíduo, por exemplo, a ação de
matar alguém, matar outra pessoa, será sua conduta, em sede de tipicidade formal,
correspondente ao art. 121 do Código Penal Brasileiro ou art. 131º do Código Penal
Português, podendo estar sujeito à sanção penal cominada nos dispositivos.
O suporte fático em direito constitucional, quando da análise dos direitos
fundamentais, por sua vez, é peculiar. Isso se deve às características principais desses
direitos: entende-se15, no presente estudo, que possuem caráter principiológico
preponderante, e, dessa forma, são dotados de estrutura normativa diferenciada.
15
Entende-se, aqui, na esteira do pensamento de Robert Alexy, em sua Teoria dos Direitos Fundamentais, que as
normas consagradoras de direitos fundamentais são normas princípios. Os princípios podem ser caracterizados como
normas prima facie, que têm seu conteúdo definido à luz do caso concreto. Isso porque são mandatos de otimização,
devendo ser realizados da melhor maneira possível diante da colisão com outros princípios. A regra a ser aplicada ao
caso concreto será, pois, extraída após exame de proporcionalidade entre as normas colidentes, de forma a buscar a
máxima concretização de todas elas, mas sobressaindo as formas de concretização que primem pelas que têm maior
peso no caso concreto. Assim, os princípios são “normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida
possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de
otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida
de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas”.
(ALEXY, 2008, p.90)
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014.
Assim, comparativamente à noção do suporte fático consagrada em outras áreas
do direito, quando do estudo da aplicação de direitos fundamentais, a verificação do
suporte fático é, na esteira de Virgílio Afonso da Silva, contraintuitiva (SILVA, 2010,
p.70). Isso porque não basta a subsunção do preceito normativo para que sua
consequência jurídica possa ser verificada. A conduta, ato, fato ou situação jurídica
protegida, ou seja, o âmbito de proteção do direito fundamental, apesar de também
possuir grande importância para a teoria do suporte fático, não é, por si, suficiente. Deve
impreterivelmente vir acompanhado de outros elementos para que seja de fato possível a
aplicação da consequência jurídica referente à norma.
Conforme apresentado por Alexy (ALEXY, 2008, p. 306), é necessário, no
preenchimento do suporte fático dos direitos fundamentais, para além de um fato que
possa ser inserido no âmbito de proteção da norma, haver efetiva intervenção estatal no
exercício do direito a ela correspondente. É exatamente por essa necessidade de
intervenção estatal que o suporte fático dos direitos fundamentais é contra intuitivo.
Andar livremente pelas ruas, desse modo, não se enquadra no suporte fático do direito à
liberdade de locomoção enquanto não for impedido à pessoa que se ande livremente
pelas ruas. Para esse autor, assim, a configuração do suporte fático dos direitos
fundamentais seria dada pela existência de determinada intervenção estatal que atinja o
âmbito de proteção da norma de direito fundamental. Em momento posterior e fora da
análise do preenchimento do suporte fático, deve-se verificar a existência de
fundamentação constitucional necessária para a intervenção, para que, somente nesse
momento, possa haver de fato a aplicação da consequência jurídica da norma de direito
fundamental, se houver fundamentação inadequada.
Virgílio Afonso da Silva (SILVA, 2010, p. 74), por sua vez, amplia de forma
pertinente o conceito do instituto aqui analisado. O autor considera a necessidade de que
não haja fundamentação constitucional para a intervenção estatal como sendo elemento
intrínseco ao próprio conceito de suporte fático, não mais como algo a ele exterior como
visto em Alexy. Encontrando base na Constituição, a forma como atua o Estado não
configura uma violação ao direito fundamental, mas uma restrição a esse direito, não
conduzindo à ocorrência de sua consequência jurídica.
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REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos
É preciso, então, na análise do suporte fático dos direitos fundamentais16, que
alguns requisitos sejam atendidos. Inicialmente, a conduta que se quer proteger deve
poder ser enquadrada no âmbito de proteção da norma. Este é o rol de todas as condutas
que possam, num plano abstrato, ser reconhecidas como conexas ao que se está nela
protegendo e, por isso, ser objeto de uma valoração apriorística a considerá-las dignas
de proteção. Em segundo lugar, é preciso haver uma efetiva intervenção estatal na
conduta aprioristicamente protegida. Atendidos tais requisitos, faz-se mister a análise
da fundamentação constitucional da intervenção. Se adequadamente fundamentada,
mantém-se a intervenção. Caso contrário, incide a consequência jurídica da norma,
sendo inaplicável a intervenção do Estado e sendo exigido o retorno ao status quo ante.
2.1 Suporte fático restrito e suporte fático amplo: teorias acerca da extensão
do suporte fático das normas de direitos fundamentais
Tão ou mais importante que a definição do que consiste o suporte fático no
âmbito dos direitos fundamentais é a opção que se faz acerca da extensão desse suporte
fático, que gera reflexos diretamente: a) no fato de ser possível ou não haver restrições
aos direitos fundamentais, e b) no grau de fundamentação das atuações estatais.
Para aqueles que defendem um modelo restrito17, a análise do suporte fático está
vinculada à delimitação de um âmbito de proteção aprioristicamente definível e restrito.
Nesse caso, busca-se definir a priori e abstratamente quais condutas, atos, fatos e
situações que possam vir a ocorrer no mundo dos fatos, estão, desde antes de sua
ocorrência, protegidos ou não pela norma de direito fundamental. Não são aceitas
restrições advindas de colisões no caso concreto entre os direitos fundamentais, porque
todos os direitos possuiriam sua extensão e seus limites previamente delimitados, de
forma a nunca colidirem seus objetos de proteção. Assim, os direitos fundamentais são
nela tratados como direitos definitivos, que ensejam uma mesma consequência jurídica
definitiva independentemente do caso concreto.
Por outro lado, os teóricos que primam por um suporte fático amplo,
como é o caso de Robert Alexy (ALEXY, 2008, p. 321), e Virgílio Afonso da Silva
(SILVA, 2010, p. 94), apresentam as grandes dificuldades trazidas pela teoria restritiva.
16 Aqui se refere ao suporte fático de direitos fundamentais a liberdades. Posteriormente será feita análise mais
aprofundada acerca da aplicação do conceito quanto aos direitos sociais.
17 Dentre os quais cumpre ressaltar os trazidos por Virgílio Afonso da Silva: Friedrich Müller (SILVA, 2010, p. 86)
e John Rawls (SILVA, 2010, p. 89)
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014.
Inicialmente, seria difícil conciliar tal teoria com a opção pela teoria dos
princípios de Alexy, a qual o trabalho se filia. Isso porque a opção restritiva dá aos
direitos fundamentais o caráter de direito definitivo que, pela teoria dos princípios, é
apenas conferido às regras.
Além disso, a teoria do suporte fático amplo dá maior ênfase à necessidade de
justificativa para as intervenções estatais que à possibilidade de uma delicada definição
de âmbito de proteção abstrata e definitiva. Em realidade, a análise do âmbito de
proteção feita por essa teoria é muito mais simples. Sendo amplo, nele enquadram-se
abstratamente todas as condutas, atos, fatos e situações que se relacionem, de alguma
forma, com o “âmbito temático” (SILVA, 2010, p. 109) trazido pela norma. O que
realmente se enquadra no suporte fático, no entanto, só poderá ser definido
concretamente após o sopesamento dos valores envolvidos, através do exame de
proporcionalidade. Nesse sopesamento, deverá haver robusto ônus argumentativo para
que a justificativa da intervenção seja constitucionalmente legítima, de forma que a
restrição ao direito fundamental passe pelo crivo da adequação, necessidade e
razoabilidade da medida. Os direitos fundamentais, seriam, aqui, verdadeiramente
normas consagradoras de direitos prima facie.
Não se pode negar que a opção pela teoria ampla de suporte fático potencializa
as situações de colisões normativas e, por consequência, as intervenções levadas a cabo
pelas autoridades estatais. Além disso, tal modelo poderia levar a uma supervalorização
da função do Poder Judiciário na estrutura jurídica de um Estado.
No entanto, isso não se faz problema quando se leva em conta que as
intervenções não serão verdadeiras intervenções, mas restrições constitucionalmente
legítimas aos direitos fundamentais, que deverão possuir alto grau de justificação
constitucional. Assim, certo é que, por essa teoria, não é possível um direito
fundamental que nunca sofra restrição, mas, igualmente, nunca essa restrição será
inconstitucional ou fundada em exames de adequação meramente política. Somando-se
a isso, ressalta-se que o Judiciário não estará exercendo ativismo judicial no sentido
pejorativo que foi cunhado à expressão, mas, antes de qualquer coisa, estará exercendo a
função de proteção da Constituição do país.
A essa corrente o trabalho se alia.
367 | A l e t h e s
REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos
3 O suporte fático no âmbito dos direitos sociais
Se a análise do suporte fático dos direitos fundamentais relativos a liberdades
públicas já é contraintuitiva e pouco abordada no direito constitucional, tais
características são ainda mais evidentes quando se trata dos direitos fundamentais a
prestação estrito senso, quais sejam, os direitos sociais.
No entanto, definir a noção de suporte fático nesses casos é imprescindível para
a melhor compreensão da aplicação dos direitos sociais e do papel do Estado para sua
concretização, especialmente frente às situações em que os órgãos públicos
permanecem inertes ou atuam de modo insuficiente. As bases do conceito de suporte
fático de direitos sociais, no entanto, sofrem algumas alterações em relação às adotadas
no estudo dos direitos a liberdades públicas. Por isso, busca-se desenvolver o conceito
com a devida atenção a essas diferenças.
Para elaborar o correto conceito, então, parte-se de quatro perguntas formuladas
por Virgílio Afonso da Silva (SILVA, 2010, p. 71) para a determinação do suporte
fático das normas de direitos fundamentais, às quais seguem as conclusões a que se
chegou, no presente trabalho, enquanto possíveis respostas.
1) O que é protegido pela norma de direito social?
Os direitos sociais possuem, de fato, peculiaridades frente aos direitos a
liberdades constitucionalmente previstos. Ao revés de, majoritariamente, em sua
dimensão principal, buscarem proteção da esfera de autonomia e liberdade dos
indivíduos frente à atuação do Estado, visam fornecer a esses mesmos indivíduos as
condições materialmente necessárias para que possam exercer tais esferas de autonomia
e liberdade. Isso se dá, no Brasil, especialmente pela prestação dos serviços básicos
extraídos do rol elencado pelo art. 6º da Constituição Brasileira e, em Portugal,
principalmente pelas normas elencadas no Título III da Constituição Portuguesa.
Embora esses serviços muitas vezes sejam também encontrados no mercado,
como a existência de escolas, creches e hospitais de iniciativa privada, o Estado é
chamado a colocar em condições de igualdade material aqueles que, por algum motivo,
não podem deles usufruir. Busca-se igualar as condições fáticas de todos no ponto de
partida, visando à igualdade material dos cidadãos como ponto de chegada.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014.
Daí extrai-se que o que é protegido pela norma de direito social é uma atuação
positiva do Estado na forma de uma ação que repercuta faticamente na busca pela
igualdade material dos indivíduos. São protegidas abstratamente pela norma de direito
fundamental social todas as formas pelas quais o Estado pode atuar na promoção do
direito social envolvido, independentemente da eficiência da medida adotada ou do grau
de afetação que causará em outros direitos constitucionalmente protegidos. Há um
mandado de atuação geral que deve de alguma forma ser cumprido. Esse é, pois, seu
âmbito de proteção.
Assim, por exemplo, tanto o desenvolvimento de programas sociais de
fornecimento de casas a baixo preço e com fáceis condições de pagamento quanto à
construção e distribuição de apartamentos de luxo para determinada parcela da
população são, prima facie, formas de ação estatal para o fomento e efetividade do
direito à moradia.
2) Contra o quê se exige proteção?
Seguindo a mudança lógica de raciocínio, não cabe mais se falar aqui em
intervenção estatal, como se fala no conceito de suporte fático dos direitos a liberdades,
justamente porque o que se almeja através dos direitos sociais é uma atuação do Estado.
Assim, o que deve ser repelido é a inércia do Estado ou a opção por uma ação que seja
insuficiente à efetivação do direito dentre as possibilidades trazidas pelo âmbito de
proteção amplo da norma, de modo a desrespeitar o mandado de atuação por ela trazido.
3) Qual consequência jurídica poderá ocorrer?
No Brasil, frente à ineficiência da atuação estatal, surge a possibilidade
de reivindicação judicial da tutela do direito social através da reivindicação de prestação
no caso concreto e de inconstitucionalidade por omissão. Se o judiciário considerar
necessária a prestação à concretização do direito social, pode vincular os órgãos
públicos a determinada prestação específica enquadrada abstratamente no âmbito de
proteção da norma. Se declarada inconstitucional a omissão ou a insuficiência, surge um
direito definitivo à atuação do legislador. Em Portugal, como não há meios diretos de
exigibilidade judicial da concretização de um direito social, deve-se peticionar aos entes
369 | A l e t h e s
REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos
competentes por acionar a fiscalização pelo Tribunal Constitucional, que, se julgar
existente a inconstitucionalidade por omissão, comunicará a quebra de dever ao
legislador.
4) Finalmente, qual grau de justificação é necessário ocorrer para que a
consequência jurídica possa ser aplicada?
Apesar das diferenças estruturais, algumas delas já elencadas, assim
como no caso dos direitos fundamentais a liberdades, para que incorra a consequência
jurídica, é necessário que o suporte fático da norma seja totalmente preenchido. Para
isso, além da omissão ou da insuficiência da atuação estatal em relação a alguma ação
aprioristicamente abarcada no âmbito de proteção da norma de direito social, deve não
haver fundamentação constitucional para essa omissão ou insuficiência.
Assim, por exemplo, no caso brasileiro, a princípio todo tipo de cobrança
de atuação do Estado pode ser judicializada objetivando o direito definitivo que se
extrai da consequência jurídica decorrente do preenchimento do suporte fático da
norma. Se o Estado é omisso, o Judiciário deve ficar encarregado de julgar sua omissão
e, se necessário, ordenar o cumprimento da medida devida.
No entanto, pode-se decidir por ser justificada a inação através do exame de
proporcionalidade, que, quanto aos direitos sociais, adquire também o escopo de
proibição da não-suficiência (LEIVAS, 2006, p. 76). Pondera-se, de um lado, o grau de
afetação a outros direitos e valores constitucionais, formais ou materiais, e, de outro, o
grau de concretização do direito social almejado. Quanto mais essencial à concretização
da dignidade da pessoa humana for a medida estatal, maior o ônus argumentativo
relativo à não atuação, cabendo ao Judiciário a análise do preenchimento do suporte
fático ou não.
Nesse aspecto, deve-se ter especial atenção ao fato de que, por mais bem
intencionado que seja um diploma constitucional, o legislador originário não pode
prever todas as limitações de cunho material que podem advir à situação fática de um
país, especialmente quanto à sua economia.
No Brasil, verifica-se que, muitas vezes, a Corte Máxima, partindo do poder que
possui de conformação da atuação do Legislativo e do Executivo, esquece-se de que a
atividade política é cercada por limitações maiores que meros impedimentos jurídicos.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014.
O que se nota é que a “tendência natural é fugir do problema, negá-lo. Esse processo é
bastante fácil nos meios judiciais. (...) Tomada individualmente, não há situação para a
qual não haja recursos” (AMARAL, 2002, p.146).
Claro, deve-se sempre filiar à ideia de que políticas públicas relativas à justiça
distributiva devem buscar atender às necessidades mais primordiais da população
através de medidas jurídicas ou materiais, principalmente quando se tem em conta um
Estado Democrático de cunho social. Grande parte das pretensões fundadas em direitos
fundamentais exige, no entanto, para sua concretização, a disponibilidade de meios
materiais; recursos esses que são, em sua maioria, escassos (AMARAL, 2002, p.133).
Essa situação, infelizmente, muitas vezes independe de qualquer vontade
política. A escassez de recursos é advinda da variedade e ampla gama de necessidades
inerentes à existência humana, de forma a exigir opções legislativas relativas à alocação
dos recursos existentes.
Desse modo, é praticamente impossível conceber políticas públicas que não
exijam do Estado sujeição aos limites econômicos, seja enquanto limites orçamentários
ou regulatórios. Assumi-lo não retira dos limites fáticos a condição de entraves à plena
promoção social das políticas públicas e dos objetivos sociais originários
constitucionais, mas é necessário se não quisermos uma Constituição que seja
meramente simbólica.
Assim, no exercício de ponderação a ser feito para análise do preenchimento do
suporte fático, deve-se ter em conta a reserva do possível e os recursos econômicos
disponíveis (CANOTILHO, 1993, p. 545)18. De toda sorte, porém, a “reserva do
possível”, não pode nunca funcionar como uma válvula de escape a não efetivação dos
direitos sociais pelos poderes públicos, de forma que só serviria para cultivar
desigualdades materiais, sem nenhum tipo de benefício social em troca.
Desse modo, pode ser deduzida a fórmula de ocorrência do suporte fático
no âmbito dos direitos sociais, qual seja:
DSx (IE. ¬FC) Ox19.
18
De forma que Canotilho considera as normas de direitos sociais como leges imperfectae, embora admita que
apresentem “relevante significado jurídico como direitos subjectivos”. (CANOTILHO, 1993, p. 545)
19Fórmula pela qual x representa a atuação estatal que promove o Direito Social invocado (DSx); (IEx. ¬FC)
representa a inércia estatal não fundamentada constitucionalmente e Ox a consequência jurídica, que é o dever de
prestação estatal (SILVA, 2010, p. 78).
371 | A l e t h e s
REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos
Deve-se
recorrer
a
essa
fórmula,
pois,
enquanto
critério
de
preenchimento do conteúdo das normas de direitos sociais. Primeiro, de forma a evitar
que argumentos como a baixa densidade normativa, a separação dos poderes e a reserva
do possível sejam impeditivos da atribuição de eficácia às normas e impeditivos de
proteção quando violadas pelo poder público. De outra forma, para que aspectos desses
mesmos argumentos que devem ser levados em conta não sejam ignorados pelo
Judiciário, e que esse não possa, invocando a tutela de direitos sociais, atuar de forma
ilegítima e desconforme à realidade política e econômica da sociedade em que inserido,
por vezes mesmo subvertendo a ótica de igualdade que permeia tais direitos.
Assim, a densidade normativa e, por conseguinte, o conteúdo da norma, devem
ser analisados, para além da dependência de conformação pelos órgãos públicos, na
situação particular de violação da dignidade dos indivíduos, tendo em conta que os
critérios de interpretação, aqui, são distintos daqueles que exigem mera subsunção da
norma. Envolvem, na verdade, a ponderação de diversos interesses, bens e valores
conflitantes, além da análise dos recursos existentes na sociedade, que também são
imprescindíveis à concretização de diversos outros direitos igualmente exigíveis,
inclusive outros direitos sociais, e que devem, devido a essa situação de conflito, ser
também levados em conta na ponderação no caso concreto.
Dessa forma, são extraídas três consequências imediatas da utilização do
conceito de suporte fático pelos ordenamentos ora analisados. É possível que:
a)
o Judiciário possa se valer de critérios tangíveis para averiguação
de violação das normas consagradoras de direitos sociais, podendo promover sua
tutela no caso concreto;
b)
a falta de atuação do legislador não seja empecilho à atribuição de
densidade normativa às normas de direitos sociais por via interpretativa;
c)
em última instância, possa conduzir, no ordenamento português, à
busca de uma dogmática unitária de direitos fundamentais.20
20
Ou, ao menos, em uma mudança menos radical, que o conceito de suporte fático seja utilizado pelo direito
português de forma a conferir maior possibilidade de aplicação do regime jurídico de direitos a liberdades em sede de
direitos sociais pela via do conceito de direitos fundamentais de natureza análoga presente no art. 17º da Constituição
Portuguesa. Os direitos fundamentais de natureza análoga, apesar de não estarem no rol dos direitos a liberdades
expressos na constituição, estão sujeitos ao mesmo regime material privilegiado a que estão submetidos os direitos a
liberdades, seja nas vertentes material (art. 18º a 23º Constituição Portuguesa), orgânica (art. 165º, nº 1, b,
Constituição Portuguesa) ou de revisão constitucional (art. 288º, d, Constituição Portuguesa). Segundo o autor
372 | A l e t h e s
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014.
Conclusão
Da análise das normas de direito constitucional português e brasileiro, sobretudo
de direitos fundamentais, percebe-se que, apesar das peculiaridades inerentes a cada
sistema, em ambos há dificuldade de determinação do conteúdo dos direitos sociais, o
que se reflete diretamente na concretização desses direitos, por vezes condenando-os a
uma situação de baixa eficácia.
Devido à concepção que aqui se tem das normas de direitos fundamentais, qual
seja, de que são normas que consagram direitos prima facie, repreende-se qualquer tipo
de subsunção desses preceitos ou ponderação desvinculada do caso concreto. Assim, é
possível propor uma solução para a interpretação do que pode ser considerado conteúdo
dos direitos sociais através do desenvolvimento da ideia de suporte fático para as
normas em sede de direito constitucional.
O suporte fático, nesses casos, deve ser o mais amplo possível, de forma que o
conteúdo da norma só possa ser extraído no caso concreto. Apesar de, dessa forma, terse que admitir a possibilidade de restrições a direitos fundamentais, essas exigirão
sempre a máxima fundamentação por parte do ente que promove a restrição, com base
em preceitos constitucionais igualmente valiosos.
Tenta-se sistematizar, então, o caminho interpretativo pelo qual deve
passar o aplicador do direito para definir o conteúdo do direito social no caso concreto
para que, se estiver havendo atuação ou inação inadequada do Estado, se possa aplicar a
consequência jurídica da norma de direito social, visando proteger o seu conteúdo e sua
eficácia.
Inicialmente, devem-se analisar quais podem ser as atitudes do Estado na
concretização do direito social. Aqui se pensa em todo o âmbito temático que,
abstratamente, concretiza de alguma forma e em alguma medida o mandato
português Melo Alexandrino, na determinação da natureza análoga devem ser considerados dois aspectos distintos:
inicialmente deve-se identificar um direito dotado de fundamentalidade material, ou seja, ser um direito que busque
uma “igual dignidade” entre os sujeitos; depois, deve-se aferir equivalência aos direitos, liberdades e garantias, sendo
análogo o direito cujo conteúdo puder ser extraído das normas constitucionais a ele referentes (ALEXANDRINO,
2011, p.51-52). Nesse sentido, pois, valendo-se do conceito de suporte fático, pode-se dizer que os requisitos
propostos pelo autor são atendidos, sendo considerados os direitos sociais, também no direito português, diretamente
aplicáveis.
373 | A l e t h e s
REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos
constitucional. Não importa ainda avaliar se a proteção é insuficiente ou violadora de
outras normas constitucionalmente protegidas.
Num segundo momento, vê-se concretamente se o estado atuou, dentro das
condutas que abstratamente pertencem ao âmbito temático da norma, de forma a
proteger suficientemente o direito social em questão. Se a resposta for negativa, surge a
possibilidade, no Brasil, de reivindicação judicial do direito social e, em Portugal, de
peticionar
aos
órgãos
competentes
para
que
acionem
a
fiscalização
da
inconstitucionalidade da omissão pelo Tribunal Constitucional, que, se julgar ser o caso,
comunicará a quebra de dever ao Legislador.
Por último, analisa-se se a insuficiência na proteção do direito social tem
justificação constitucional, e se é embasada em outras normas e valores que, no caso
concreto, mereçam tanta ou mais proteção que o direito social insuficientemente
protegido, em exame de proporcionalidade, passando pelas avaliações de adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito da insuficiência.
Desse modo, conclui-se pela fórmula “DSx (IE. ¬FC) Ox” , pela qual x
representa a atuação estatal que promove o Direito Social invocado (DSx); (IEx. ¬FC)
representa a inércia estatal não fundamentada constitucionalmente e Ox a consequência
jurídica, que é o dever de prestação estatal (SILVA, 2010, p. 78), como indicada a ser
utilizada pelo aplicador do direito para definição e preenchimento do conteúdo do
direito social.
Através desse recurso, é possível que:
i)
o Judiciário possa se valer de critérios tangíveis para
averiguação de violação das normas consagradoras de direitos sociais,
podendo promover sua tutela no caso concreto;
ii)
a falta de atuação do legislador não seja empecilho à
atribuição de densidade normativa às normas de direitos sociais por via
interpretativa;
iii)
em última instância, possa conduzir, no ordenamento
português, à busca de uma dogmática unitária de direitos fundamentais.
Referências Bibliográficas
ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos fundamentais – Introdução geral. Estoril:
Principia, 2011.
374 | A l e t h e s
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Livraria
Almedina, 1993.
LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais: teoria jurídica dos direitos sociais enquanto
direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2010.
SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano (org.). Direitos Fundamentais: orçamento e
“reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
_______. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2009.
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e
eficácia. São Paulo: Malheiros, 2010.
VICENTE, Dário Moura. Direito Comparado. Vol. 1. 3ª Ed. Coimbra: Almedina, 2014.
375 | A l e t h e s
REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos
376 | A l e t h e s
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014
As Contradições na Lei de Biossegurança Quanto às Pesquisas com
Células Tronco
The Contradictions in Biosafety Law Regarding Stem Cells Researches
Grycor Alves de Azevedo1 2
Resumo
A Lei de Biossegurança usa critérios permissivos ao uso de células-tronco
embrionárias, que geram questionamentos. Para entender a amplitude da discussão, fazse necessário conceituar o que são células-tronco embrionárias, quais suas
potencialidades e diferenças com relação às adultas. Existem cientistas, os quais são a
favor das pesquisas com material embriológico. No entanto, consoante resultados
acadêmicos ditos por pesquisadores, pode-se notar a capacidade das células-tronco
adultas em substituir as jovens. Tudo isso é ampliado pelas divergências científicas de
quando a vida humana começa e esta ao desenvolver em estágios iniciais, a adversidade
de tutela de direitos no Código Civil Brasileiro e da Lei de Biossegurança. O escopo
deste estudo é propor uma revisão da Lei 11.105, acerca de ajustes punitivos mais
severos àqueles que não cumprem as condicionantes para utilização de material
embriológico, no intuito de respeitar à vida. Para tal, o método comparativo entre
sanções legislativas da Espanha e Inglaterra, as quais versam sobre o mesmo tema foi
conveniente; juntamente, ao uso procedimental de pesquisas aliadas ao conhecimento,
além da metodologia qualitativa em que há uma valorização da complexidade de
determinados problemas. A Lei de Biossegurança é obscura ao firmar a inviabilidade
como um dos critérios a ser seguido para a autorização de uso das células, mas tal fato
não descarta sua vitalidade; outra condicionante é quanto ao tempo de três anos de
criogênia exigida na lei, porém existem pessoas nascidas depois de seis anos de
congelamento. Esta lei precisa ser reavaliada na seara da engenharia genética, mais
precisamente, nos estudos de células-tronco humanas.
Palavras-chave: Lei de Biossegurança. Células-tronco. Direito à vida.
Abstract
The Biosafety Law uses the permissive use of embryonic stem cells, which
generate questions criteria. To understand the breadth of the discussion, it is necessary
to conceptualize what are stem cells embryonic, what their strengths and differences
compared to adults. Some scientists are in favor of research with embryonic material.
However, you consonant academic achievement by researchers said, may be noted the
ability of adult stem cells to replace Young. All of this is magnified by scientific
differences of when human life begins and to develop this in the early stages, adversity
guardianship rights in the Brazilian Civil Code and the Law on Biosafety. The scope of
this study is to propose a revision of Law 11,105, about more severe to those who do
not meet the conditions for use of embryonic material, in order to respect the life
punitive adjustments. To this end, the comparative method between sanctions laws of
1
Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Pará. Bolsista PIBIC/CNPq. E-mail:
[email protected].
2
Trabalho desenvolvido com o apoio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica- PIBIC/
(Universidade Federal do Pará-UFPA).
375 | A l e t h e s
AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança
Spain and England, which deal with the same topic was con-priate; together, allied to
the use of procedural knowledge surveys, and qualitative methodology in which there is
an appreciation of the complexity of certain problems. The Biosafety Act is unclear as
to establish the impracticability of the criteria to be followed for the authorization of use
of the cells, but this fact does not rule out its vitality; is another constraint on the time of
three years of cryogenics required by law, but there are people born after six years of
freezing. This law needs to be reassessed in the harvest, more precisely in order, in
studies of human stem cell genetic engineerin.
Keywords: Biosafety Law. Stem cells. Right to life.
Recebido em: 2 de novembro de 2014
Aceito em: 2 de Fevereiro de 2015
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014
Far-se-á abordagem sobre as nuances problemáticas da Lei nº 11.105, de 24 de
março de 2005, Lei de Biossegurança, que se reporta às pesquisas com células-tronco
embrionárias, bem como à engenharia genética e à regulamentação do uso de
organismos geneticamente modificados - OGM`S, tendo-se, no entanto, como foco
principal os questionamentos acerca da utilização das referidas células para fins
terapêuticos.
A mencionada lei foi promulgada como resposta jurídica aos avanços científicos
relacionados à biotecnologia e também por força de razões político-econômicas
brasileiras.
Além disso, discorrer-se-á sobre o que é célula, células tronco embrionárias e
adultas e acerca das potencialidades de cada uma para serem matéria de pesquisa. Outro
fator a ser discutido, de inexorável importância, é quanto ao início da vida embrionária
humana, a partir de diversas perspectivas, para melhor compreensão do tema.
Sob enfoque jurídico, será estabelecida a diferenciação e a identificação no
tocante ao tratamento dado ao embrião para a tutela de seus direitos, de acordo com o
Código Civil de 2002 e da Lei de Biossegurança.
Além disso, proceder-se-á a estudo comparado, no intuito de verificar como os
legisladores valoram punitivamente àqueles que desrespeitam as condicionantes para o uso
de material embriológico, seja na destinação, como no direito penal espanhol, ou na
armazenagem e uso, como previsto no direito penal inglês.
Apesar das discórdias científicas a respeito da utilização de células-tronco, devese respeitar os interesses da humanidade de forma geral, pois, consoante critérios éticos
consensuais, é almejado o bem de todos, inclusive, dos que ainda estão por vir, pois a
humanidade deve também ser respeitada no que concerne ao seu patrimônio genético.
Para que isso se resolva é necessário que a legislação acompanhe padrões
mundiais de pesquisas, contudo, sempre atenta à ética consensual, à moral e à
necessidade científica. Algo difícil de ser tratado, porém, possível para os que respeitam
os seres humanos com personalidade civil e aqueles sob a forma de conceptos, cujos
direitos são assegurados pela ciência jurídica.
1. Conceito de Células-Tronco e as Diferenças entre Células Tronco Embrionárias
e Células-Tronco Adultas
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AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança
O ser vivo eucarionte3 é formado por um conjunto de células que dão origem
aos tecidos, que, por sua vez, originam órgãos e a aglomeração destes formam o
organismo. É notório que as células são de extrema importância para constituição da
vida; afinal, é a partir delas que se desencadeiam os demais processos que resultarão em
um indivíduo. Para que este surja, é necessária uma diferenciação celular, ou seja, é
imprescindível que a célula se torne especializada, a fim de conseguir realizar as
funções para que foi programada.
“O que faz com que cada célula seja diferente da outra é o fato de que alguns genes
encontram-se ativos em umas células e inativos em outras. Essa atividade gênica
diferencial explica a diversidade celular dos organismos”4 (AMABIS; MARTHO, 2001,
p. 562).
As células possuem propriedades e formas diferenciadas por servirem a uma
função geneticamente definida. “Por exemplo, há estruturas celulares que absorvem
alimentos, no intestino delgado - vilosidades intestinais; outras, responsáveis pela
sensibilização do nervo ótico e uma consequente imagem, as quais são chamadas de
cones e bastonetes”5 (AMABIS; MARTHO, 2004, p. 180). “Enfim, são inúmeras as
funções celulares, mas todas elas decorrem da união do pró-núcleo feminino com o prónúcleo masculino, ou seja, formar-se-á uma célula ovo”6 (LOPES, 1999, p. 268). Nesta
há informações genéticas que formarão a complexidade do ser vivo, pois é totipotente (o
que será definido logo abaixo) e tem a capacidade de diferenciar-se em vários tecidos.
Essa totipotência é característica de certas células-tronco, que não possuem
diferenciação7, podendo dar origem aos diferentes tecidos, desde que estimuladas para
tal, e também são capazes de se multiplicarem, sem se diferenciarem, como afirma
(ZAGO, 2006), além de produzirem mais células-tronco, para futuras transformações
biológicas.
3
Células eucarióticas, presentes nos seres vivos (algas, fungos, protozoários, plantas e animais). As
células eucarióticas (do grego eu, verdadeiro, e Kayron, núcleo) têm o citoplasma repleto de canais,
bolsas e outras estruturas membranosas, uma das quais é o núcleo.
4
Cada indivíduo de uma espécie é um organismo. Há desde organismos simples, constituídos por uma ou
por poucas células, até organismos complexos como a espécie humana, nos quais muitos órgãos corporais
trabalham em estreita sintonia.
5
A camada que reveste internamente a câmara ocular é a retina, que contém dois tipos de células
estimuláveis pela luz (fotorreceptores): os bastonetes e os cones. Os bastonetes são fotorreceptores
extremamente sensíveis à luz, mas incapazes de distinguir as cores [...] Os cones são menos sensíveis à
luz que os bastonetes, mas, em conjunto, possuem capacidade de discriminar diferentes comprimentos de
onda, permitindo a visão em cores.
6
Células ovo ou zigoto é a junção das células haploides, óvulo e espermatozoide.
7
A diferenciação celular é o processo em que as células de um organismo sofrem transformações em sua
forma, função e composição, tornando-se tipos celulares especializados.
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As células-tronco se diferenciam das outras por diversos motivos, dentre eles
os seguintes: pela sua falta de diferenciação; pela capacidade de multiplicação por
longo tempo, permanecendo indiferenciadas; pela capacidade de se diferenciarem
em células especializadas de um tecido particular (ZAGO, 2006, p. 4).
Outrossim, existem diferenças entre as células-tronco. As totipotentes são
capazes de produzir células embrionárias e não embrionárias, por isso, produzem o
indivíduo por inteiro, como retratado acima; assumem a forma de célula-ovo ou zigoto.
As pluripotentes conseguem se diferenciar em todos os tecidos humanos. As
multipotentes podem produzir células de vários perfis. As oligopotentes produzem um
único perfil celular. Finalmente, as células onipotentes produzem um único tipo celular.
As células-tronco embrionárias são pluripotentes, pois tem potencial de contribuição
para a formação de todas as células e tecido do corpo humano.
Ao lado disso, a legislação brasileira conceitua as células-tronco embrionárias
como células de embrião que apresentam a capacidade de se transformarem em células
de qualquer tecido de um organismo8. Não há dúvida acerca da extrema importância
desse tipo de células.
Contudo, existem diferenças entre células-tronco embrionárias e células-tronco
adultas. “As primeiras existem no embrião e podem ser pluripotentes ou totipotentes. As
pluripotentes são originárias do blastocisto”9 (AMABIS; MARTHO, 2001, p. 230) ou
das “células germinais do espermatozoide e do óvulo; podem resultar na formação de
um novo indivíduo, porém, são incapazes de formar outro embrião”10 (AMABIS;
MARTHO, 2001, p. 180). Por outro lado, “as totipotentes conseguem materializar a
formação de embrião, em função de possuírem estrutura para formar as células que dão
origem ao trofoblasto”11 (ZAGO, 2006, p.4). Apesar dessas características, esses tipos
de células fazem parte de inúmeras controversas científicas e éticas, como se verá
adiante.
8
Conceito de células-tronco enunciado pela legislação. Lei de Biossegurança n0 1105 de 24 de março de
2005. Art. 30, inciso XI.
9
Quando o embrião já tem algumas centenas de células, começa a surgir em seu interior uma cavidade
cheia de líquidos. Nesse estágio, o embrião é chamado blástula. A cavidade interna da blástula chama-se
blastocela, e a camada de células que delimita, blastoderme.
10
Organismo multicelular em estágio inicial de desenvolvimento. Durante a vida embrionária formam-se
todos os tecidos e órgão tipos da espécie.
11
Trofoblasto: que dará origem ao material placentário do embrião.
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AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança
“Existem também as células tronco adultas ou somáticas”12 (CLARKE;
BECKER, 2006, p. 41), que são indiferenciadas localizadas em tecidos especializados,
como, por exemplo, células-tronco no dente de leite, medula óssea e cordão umbilical.
Diferente das embrionárias, estas, não possuem a capacidade de formar todas as células
humanas, mas de formar aquelas do mesmo tecido que lhes deu origem. Portanto, as
diferenças entre as duas células tronco são enormes, assim como são os embates na
definição de qual é a melhor para dar seguimento às pesquisas científicas.
2. Células-Tronco embrionárias e adultas. Argumentos pró e contra a pesquisa
com tais materiais biológicos
Tanto as pesquisas que envolvem células-tronco embrionárias, quanto as de
células- tronco adultas ou somáticas, são dotadas de controvérsias. Tanto uma quanto
outra esbarram em certezas e dúvidas científicas que, apesar de suas complexidades,
necessitam ser resolvidas. Alguns cientistas consideram as pesquisas com células-tronco
embrionárias o futuro da medicina; outros, não.
Devido sua plasticidade, ou seja, conversão em qualquer célula e tecido, os
que defendem o avanço dos estudos referentes às células-tronco embrionárias
têm um bom argumento, pois, afinal, inúmeras doenças poderiam ser tratadas
com tais células, por exemplo, Parkinson, reconstrução de tecido cardíaco nos
pacientes que sofrem infarto, Alzheimer, além de esperanças em tratamento
de diabéticos e na reconstrução dentária (PRANKE, 2004. p.17).
Afirmam que as células-tronco embrionárias são retiradas do embrião antes
mesmo da formação neural, ou seja, segundo essa corrente, antes da existência da vida.
E mais, tal fato, seria vantajoso, pois essa retirada salvaria inúmeras vidas.
Veja-se, nesse sentido, a opinião de Mayana Zatz (cientista do campo genético, ao se
pronunciar, perante o Supremo Tribunal Federal – STF), em cujo âmbito tramitava a
Ação Direta de Inconstitucionalidade-ADIN 3.510, esta, por sua vez, proposta contrária
ao art. 50 da Lei de Biossegurança. “Estamos defendendo que, da mesma maneira que
um indivíduo em morte cerebral doa órgãos, um embrião congelado pode doar suas
células” (informativo verbal)13. Para a referida cientista, não existe vida embrionária
12
Termo mais correto para células-tronco adulta, já que as mesmas também são retiradas de crianças, de
bebês ou fetos.
13
Pronunciamento da Dra Mayana Zatz ao Supremo Tribunal Federal, transcrição da audiência pública da
ação de inconstitucionalidade (TAP-ADI) (3510-0, 2008ª:13), o qual se mostrou a favor das pesquisas
com células-tronco embrionárias, em 2008.
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antes do 140 dia de desenvolvimento, portanto, as células do embrião poderiam ser
usadas e não caracterizaria homicídio ou abortamento.
Além dos pronunciamentos da cientista, o então Ministro Carlos Ayres Britto,
em seu voto, articulou suas palavras em favor das pesquisas. Defendeu-as, baseando em
dispositivos constitucionais que dispõem sobre garantia à vida, à saúde e ao
planejamento familiar, tal como o artigo 226, § 70, que assegura o direito de
planejamento familiar ao casal e que, segundo ele, em momento algum a Constituição
diz que é proibida uma filiação advinda de fertilização in vitro. E mais, mencionou
alguns artigos constitucionais que discorrem sobre o direito à saúde. Afirmou que é
dever do Estado garantir que sua população tenha tal acesso, tudo isso, para
fundamentar seu voto a favor das pesquisas com células- tronco embrionárias.
Contudo, houve vozes contrárias aos estudos desse tipo de células. Seus
argumentos são inúmeros, dentre eles:
A retirada embrionária mataria um ser vivo; há poucos casos concretos de
aplicações terapêuticas de uso das células-tronco embrionárias, no Brasil e
internacionalmente; algumas características atribuídas às células-tronco
embrionárias poderiam ser suplantadas pelas células-tronco adultas (ACERO,
2004, p. 59).
Apesar das discussões acaloradas, cheias de cientificidade ou inverdades, pois,
afinal, ninguém é detentor da verdade, houve um profundo avanço e ratificação do
Estado Democrático de Direito. Hoje, o Supremo Tribunal Federal convoca audiências
públicas, para manifestações por parte dos cidadãos, de autoridades e de quem quiser
participar, como fez em relação ao assunto em voga, tudo para que a legislação e as
decisões judiciárias entrem em sintonia com os avanços das ciências e suas descobertas,
com interferência mínima possível no campo da moral, ou seja, que os valores
arraigados na sociedade com relação: a vida, a morte, a religião, não sofram mudanças
conceituais abruptas com relação à ciência jurídica. Sim, que tais mudanças no
judiciário acompanhem a dinamicidade valorativa da sociedade, desse modo, dirimir-seá conflitos entre o Poder Judiciário que conceitua, por exemplo, quando há vida em um
embrião e a valoração dos cidadãos de quando ela começa a existir. Nesse modo,
caminham juntos para resolução dos conflitos, os quais poderiam vingar caso a
cumplicidade de ambos inexistisse.
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AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança
3. Os motivos que levaram às pesquisas com células tronco
Antes de analisar as questões recorrentes acima, é primordial saber que a Ciência
está longe de ser cristalina, transparente e um estudo atencioso como a que faz a
epistemologia crítica14, que rompe com certos dogmas ditos inquestionáveis com
relação à neutralidade e pureza científica, ratifica ainda mais que a ciência está longe da
canonização, longe de ser o Jardim do Éden15, em face às tamanhas demandas da
fragilidade humana. No entanto, é notório que “saber é poder”. Aliás, vale salientar que a
crítica epistemológica “se interessa profundamente em compreender como é utilizado o
poder em que o saber científico implica; e como é utilizado não só pelos próprios
cientistas, mas também por aqueles que encomendam, manipulam e aplicam os
resultados das ciências, inclusive o Estado”.
Tudo isso é importante para que se possa entender que as pesquisas com célulastronco brasileiras se regulam pelo interesse estatal, científico, financeiro e também
humano.
Corroborando com essas ideias, há cientistas que dizem que o Brasil não pode
ficar atrás de outros países que utilizam pesquisas com células-tronco, pois, com os
avanços em pesquisas medicamentosas, em pouco tempo, existiriam as patentes que
submeteriam os brasileiros à compra e submissão exterior16, e mais, também a compra
de tecnologia extraterritorial acarretaria um descompasso econômico interno. A
verdade é que o passo dado pela Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, Lei de
Biossegurança, é consequência natural do que vem se verificando no mundo, de sorte
que se o País não evoluísse perderia terreno no campo tratado, sujeitando-se aos efeitos
danosos dessa conduta, como, v.g., a dependência científica em relação a outros países,
com sérios reflexos econômicos e prejuízos aos brasileiros ansiosos pela terapia com
células tronco embrionárias.
O motivo dessa explanação é confirmar que interesses diversos levam à
formulação de conceitos e por diversas razões algum objeto de pesquisa é posto em
14
A epistemologia crítica surge da reflexão que os próprios cientistas estão fazendo sobre a ciência em si
mesma, questionando seus pressupostos, resultados, aplicações, alcance e limites sócio-culturais.
15
O Jardim do Éden ou Paraíso tem sido considerado por muitos um mito. Por alguns um ideal. E ainda
por outros uma figura de linguagem de uma vida de deleite[...]Mas, acima de tudo, ali houve a promessa
de um Redentor que não apenas restauraria o caminho, mas seria o próprio caminho, a verdade que liberta
e a vida tão almejada (Jo 14.6).
16
Ideia retirada da audiência pública realizada pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de
Inconstitucionalidade 3.510.
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análise. Por isso, por motivos político-econômicos, pela evolução da ciência e até
humanitários, a pesquisa com células tronco embrionárias foi escolhida para dar
sustentáculo às indagações humanas e seus objetivos. Junto a isso, algo extremamente
polêmico que requer muito cuidado e cautela, que sustenta a pesquisa e confronta o
ordenamento jurídico é quanto ao questionamento de quando começa a vida
embrionária.
4. Bem jurídico e as divergências quanto ao início da vida embrionária
No ordenamento jurídico brasileiro, para a concretização de um ato de infração
penal, com o título de homicídio, logicamente é necessário que a vítima tivesse vida
momentos anteriores ao cometimento da gravidade. Por isso, a definição de quando a
vida começa, nas pesquisas com células tronco, é imprescindível, pois limita a
aplicabilidade das sanções penais.
Antes do breve apanhado histórico sobre Direito Penal, é necessário que se
estabeleça o que é bem, bem jurídico e bem jurídico penal. Bem, segundo o conceito
utilitarista, é tudo aquilo que possui valor para o ser humano, que venha a satisfazer a
vontade humana. Bem jurídico é aquele que diante de todos bens que possuem valor
humano, como acima relatado, o Direito seleciona os principais e os tutela
juridicamente. Para (WELZEL, 1969) o bem jurídico é um bem vital ou individual que,
devido ao seu significado social, é juridicamente protegido. “Pode ele apresentar- se, de
acordo com o substrato, de diferentes formas”. (PRADO, 1997. p. 18). O Direito Penal
tutela juridicamente aqueles bens primordiais de uma sociedade como a vida e a
propriedade, dentre outros, ou seja, aqueles bens almejados por muitos e que, por essa
razão, merecem um Direito rigoroso que os ampare.
“Apesar disso, a ideia de crime, sanção e desenvolvimento do Direito Penal
foram mudando ao longo do tempo. Afinal, o direito deve ser compreendido em seu
contexto histórico, cultural, social e econômico” (SILVA, 2003, p. 29). Antigamente se
punia, por exemplo, um homicídio, para evitar castigos dos deuses, para que o
pragmatismo da bonança, seja da fertilidade da terra seja da agregação do corpo social
antigo, não fosse colocado à prova pelas entidades celestes. “No passado, o direito penal
aparece em uma esfera predominantemente teológica ou privada”. (BITENCOURT,
1995. P. 20).
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AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança
Com o passar do tempo, a razão foi se tornando meio para resolução de
problemas, inclusive o penal. Não se aceitava, no iluminismo, que os conflitos ficassem
à mercê da boa vontade divina, mas da própria capacidade humana na resolução de
conflitos ético-morais. Montesquieu, Voltaire e Rousseau foram os expoentes que
contribuíram muito para o desenvolvimento do estudo do direito penal. Para o primeiro,
a sanção penal deveria prevenir o delito; o segundo, entendia que a pena deveria ser útil
e proporcional, além de prezar pelo princípio da proporcionalidade; o último, foi
defensor da ideia de que onde há crime existe uma quebra do contrato social, o que
demonstra a ineficiência do Estado.
Na contemporaneidade o Direito Penal rege-se pela união de algumas correntes
doutrinárias que são: prevenção do crime, com Montesquieu; suavização da pena por ser
muito ameaçadora à dignidade humana; trabalho de laborterapia, responsável pela
ressocialização do infrator. Tudo isso com estudo criterioso, que tem como objeto o
agente infrator. A pena deve ser a mínima possível e o esforço de recolocação social
enorme.
Após o apanhado histórico da importância e evolução do Direito Penal, fica mais
fácil saber o porquê da relevância do ordenamento jurídico tutelar a vida; saber onde ela
começa é um passo definidor dos limites das penalidades criminais.
Afinal, quando começa a vida? É uma indagação difícil de ser uníssona, pois há
inúmeros conceitos e linhas de pensamento que a define. A que mais possui adeptos é a
de que existe vida desde a fecundação, ou seja, desde que o pró-núcleo masculino se
funde ao pró-núcleo feminino, tese esta defendida com vigor pelas igrejas católica e
protestante e também é seguida por alguns cientistas, como por exemplo, na fala de
Brandão17 (2012). A ciência demonstra insofismavelmente – com os recursos mais
modernos – que o ser humano, recém-fecundado, tem o seu próprio patrimônio genético
e o seu próprio sistema imunológico, diferente da mãe. “É o mesmo ser humano – e não
outro – que depois se converterá em bebê, criança, jovem, adulto e ancião”
(FONTELES, 2005. p. 87).
17
Professor, especialista em ginecologia e membro emérito da Academia Fluminense de Medicina.
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Outro pensamento, defende que o início da vida é quando acontece a nidação18,
quando o útero materno está preparado para nutrir o embrião, por volta da segunda
semana após a fecundação.
A terceira corrente defende a ideia que existe vida, apenas depois da terceira
semana de gestação, quando o embrião passa mais por clivagens19, quando existe uma
fixação embriológica.
A quarta e polêmica linha de pensamento é aquela que afirma a existência de
vida humana na 24ª semana de gravidez, quando os pulmões se formam por completo e
o feto já possui condições de viver em um ambiente extracorpóreo maternal. Contudo, é
polêmico em função de permitir o aborto em níveis avançados de gestação.
A última teoria advoga o início da vida a partir da 2a semana de gestação, quando o
embrião evolui de mórula20, blástula21, gástrula22 e atinge a nêurula,23 fase em que o
tubo neural é formado, afinal. Hoje em dia, aceita-se que o fim da vida é quando a
atividade cerebral cessa. Então por lógica, inicia no momento que é formado o tubo
neural.
Houve tempos em que a defesa da vida humana se definia mediante o quão de
respiração uma pessoa possuísse, ou seja, se não respirasse, não existia vida naquele
corpo. Todavia, com o desenvolvimento das tecnologias, aparelhos foram programados
para possibilitar o ato de respirar por quem não o conseguisse. Então, buscou-se a
definição de morte encefálica, pois assim, uma pessoa poderia respirar com ajuda de
aparelhos e, assim, poderia doar seus órgãos. Há consenso maior de quando a vida cessa
se comparada quando ela começa.
Por mais que sejam nebulosas as hipóteses, existe uma indagação a se fazer. Será
que o conceito de quando existe a vida está desvinculado da vontade humana em definir
quando começa? Para ser mais claro, será que a definição de que a vida começa na
segunda semana de gestação não tem a ver com interesses de que ela comece neste
18
O termo nidação refere-se ao momento de implantação de um embrião de mamífero na parede uterina
que ocorre durante a blástula. Como o processo de deslocamento do embrião das trompas uterinas (onde
ocorreu a fertilização) até o útero pode demorar cerca de 4 a 15 dias, então a fixação do embrião ocorrerá
nesse intervalo de tempo (4° ao 15° dia após a fertilização).
19
Cada divisão das células embrionárias, nesses primeiros estágios do desenvolvimento, é denominada
clivagem
ou segmentação.
20
Esfera maciça de células resultante das primeiras clivagens, no desenvolvimento do embrião.
21
Estágio do desenvolvimento embrionário que sucede o de mórula. A blástula é uma bola oca de células.
22
Estágio do desenvolvimento embrionário que sucede ao de blástula. Apresenta um intestino primitivo
que de comunica com o exterior através do blastóporo.
23
Estágio do desenvolvimento do embrião dos animais cordados que sucede ao de gástrula. Caracterizase pela
formação do tubo neural (ou nervoso), que dá origem ao sistema nervoso.
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AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança
ponto, por possibilidades de retirada do material biológico, sem a justa penalização
criminal? São perguntas que devem ser formuladas, para quem se debruça sobre esses
estudos. Contudo, as respostas estão acima, nos escritos de crítica epistemológica. Não
existe ciência sem interesses e tudo ao seu entorno é, sim, tendencioso.
5. Comparação entre a tutela do Novo Código Civil sobre embriões e a lei de
biossegurança
Foram de extrema importância a discussão acima, pois, a partir delas começa a
discussão sobre os direitos que permeiam a vida, no novo código civil, e a lei de
biossegurança que estabelece alguns critérios, nebulosos, para a legalidade das
pesquisas.
A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 50, enuncia que o
direito à vida é inviolável, ou seja, ninguém pode atentar contra ela. Daí a importância
dada ao tópico anterior, que tratou a partir de quando se pode considerar vida
embrionária.
Devido a supremacia constitucional, todas as leis infraconstitucionais devem
obediência à Carta Magna. Alguns estudiosos ressaltam que o art. 50 assegura direitos
àquele que é dotado de personalidade, ou seja, a pessoa. Como se pode verificar, na
Ação Direta de Inconstitucionalidade-ADIN 3510, em que o relator Ayres Britto diz que
quando a Constituição se reporta a “direitos da pessoa humana” e aos “direitos e
garantias individuais” como cláusula pétrea, está falando de direitos e garantias do
indivíduo enquanto pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais “à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...”24 Todavia, Lenise Garcia, na
mesma ADIN, afirma que, na fecundação, estará definido se o indivíduo será homem ou
mulher, se possui falhas genéticas ou doenças, se vai gostar de música ou poesia.25 Não
há dúvida de que a carga genética já definiu a pessoa que vai se tornar, que
personalidade irá desenvolver. Trate-se apenas de uma questão de tempo, eis que não se
pode dizer que a Constituição protege, somente; o indivíduo pessoa, como no
pronunciamento no ministro Ayres Britto acima relatado, mas sim toda potencialidade
24
Pronunciamento do então ministro Carlos Ayres Britto no STF (Supremo Tribunal Federal). 2008.
Ação direta de inconstitucionalidade 3.510.
25
Ideias que a doutora Lenise Aparecida Martins Garcia, professora do Departamento de Biologia Celular
da Universidade de Brasília pronunciou no STF, ADIN 3.510. 25 STF (Supremo Tribunal Federal).
(2008).
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de um ser (embrião) tornar-se humano na plenitude geral das características
personalíssimas, diz-se, o resguardo das capacidades definidas geneticamente; gostar de
futebol ou tênis, matemática ou história em se concretizarem no plano real e não serem
extintas consoante interpretações, por vezes, parciais de alguns juristas com os atributos
que lhe querem dotar.
Nesse passo, traz-se a lume contradições entre a Lei de Biossegurança e o
Código Civil Brasileiro, adotando-se como ilustração o “caso hipotético de constatação
de gravidez, mediante o chamado teste de farmácia, que uma mulher poderá fazer, a
partir do 10 dia de atraso menstrual, segundo os ensinamentos médicos” (PINHEIRO,
2009. p. 30).
Com efeito, suponha-se que uma mulher tivera relações íntimas com seu marido,
pouco antes de entrar no ciclo menstrual. Como esperado, a menstruação atrasou; por
isso, resolveu fazer o teste de farmácia. O resultado dá positivo para gravidez. Pois
bem, o art. 20 do vigente Código Civil prescreve: A personalidade civil da pessoa
começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos
do nascituro.26
É notório que a lei protege o embrião desde o momento de sua
concepção, ou seja, desde o momento da fecundação. No caso em voga, a legislação
protege as demandas que a junção de gametas possa ensejar, portanto, ninguém poderá
usurpar os direitos que, constitucionalmente, foram assegurados para o futuro bebê.
Esses direitos abrangem, também, caso não haja vida, segundo alguns pesquisadores, a
expectativa de se tornar vivo, ou seja, o nascituro teria condições amparadas legalmente
de tornar-se um ser vivo.
Nesse mirante, entretanto, impende anotar que as interpretações doutrinárias se
afiguram, até então, esfumaçadas, imprecisas e convergentes para a realização, a
qualquer custo, de uso de material biológico. Tudo isso ocorre anteriormente ao 14o dia
de gestação, ou seja, antes mesmo da formação das terminações nervosas, o que se
constitui em critério seguido por alguns cientistas para designar existência de vida, ou
seja, a contar do referido dia.
De outra monta, importa assinalar que a Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005,
Lei de Biossegurança, art. 5º, ao enunciar que o uso de pesquisas com células tronco
embrionárias é permitido, desde que os embriões sejam inviáveis,27 é vaga em demasia.
26
27
Pesquisa feita ao código civil brasileiro de 2002. Art.20.
Pesquisa feita à lei de Biossegurança 11.105. Art. 50. Caput e inciso I.
387 | A l e t h e s
AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança
Segundo a professora Di Pietro (2006) não se pode comparar viabilidade com
vitalidade: dizer que um embrião não pode prosseguir seu desenvolvimento não
significa dizer ipso facto que ele não é mais vivo. Portanto, não se pode dizer que
inexiste vida em embriões que não conseguem se desenvolver; aliás, pode sim, para
aqueles que possuem interesses tremendos no uso indiscriminado desse tipo de material
biológico vivo.
Observe-se que, nos temos do Código Civil, desde o momento da concepção,
existe a proteção legal aos direitos do nascituro, mas, consoante a Lei nº 11.105, de 24
de março de 2005, os embriões fecundados “inviáveis” são legalmente considerados
materiais de laboratório.
Diante disso, imagine-se que aquela mãe mencionada anteriormente tenha feito
planos para a chegada e desenvolvimento do embrião, passando a feto e criança, porém,
o médico
diagnosticou que, por motivos desconhecidos, a clivagem parou e, por
conseguinte, perguntou: A senhora pode doar o embrião para fazer pesquisas? Seria, no
mínimo, desumano demais e uma atitude fria e desrespeitosa desse médico.
Por outro lado, se, no futuro, conseguir-se uma substância capaz de fazer com
que zigotos estáticos voltem a se dividir e dar continuidade embriológica? Isso, não é
impossível. Como ficariam os que já foram destruídos? Além disso, já existem
pesquisas que retiram células- tronco, sem matar o embrião. É sabido que, desde agosto
de 2006, várias revistas científicas têm publicado reportagens fazendo referência à
extração das células-tronco, sem destruição do embrião, conforme os trabalhos
científicos realizados pelo pesquisador norte-americano Robert Lanza e colegas da
companhia Advanced Cell Technology. “Só que ainda não há como garantir que tal
procedimento não ofereça risco de destruição, porque a técnica é bastante recente e
encontra-se em fase de estudos” (PARISE, 2003, p. 25). Se quiser usar embriões
“inviáveis”, pelo menos, que se retirem células sem cessar suas vidas; no entanto, não é
o que ocorre. O problema é que, ao se extrair as células-tronco, os embriões são mortos
(RÉGIS, 2001).
Por fim, é salutar a análise da existência de uma contradição jurídica, que
engloba o Código Civil e a Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, Lei de
Biossegurança. O mesmo ordenamento jurídico, conjunto de leis, que ampara os direitos
do mesmo objeto em análise, a concepção embriológica, como está consubstanciado no
Código Civil, de maneira plena, ao passo que, de acordo com o permissivo da referida
388 | P a g e
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014
lei ordinária, é alvo de testes científicos. Eis dois pesos e duas medidas, ou melhor, um
peso e duas medidas.
Ademais, há outra nebulosidade na Lei de Biossegurança, sem que, desta vez, se
faça comparação em relação ao Código Civil. Na referida lei, no art. 5o, inciso II,
constam as seguintes condições para a utilização dos embriões em pesquisas com
células-tronco embrionárias não utilizadas no procedimento de fertilização in vitro:
sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou
que, já congelados na data da publicação desta lei, depois de completarem 3 (três) anos,
contados a partir da data de congelamento. São condicionantes que permitem o uso de
células tronco, para pesquisas ou terapias, como acentua o caput do art.50.
A partir daí, duas indagações cabem em torno das polêmicas condicionantes de
licitude do fato.
A primeira indagação gira em torno de a Lei de Biossegurança ensejar condições
alternativas, por meio dos incisos I e II do seu art. 50, em relação aos embriões e sua
utilização nas pesquisas a que alude o mesmo dispositivo. Comparando esses dois
incisos, verifica-se que acenam com a possibilidade de utilização de embriões inviáveis
ou, por outro lado, de embriões congelados. É o que se depreende da conjunção
coordenativa alternativa28 ou, constante da norma, dando azo a uma alternância de
ideias. Vale dizer que, se antes os embriões precisavam ser inviáveis, na forma do inciso
I, para serem objeto de pesquisa, agora, como dispõe o inciso, não necessitam mais ter
essa condição. De outro modo de dizer, os viáveis entram no rol de amostras
laboratoriais, o que permite deduzir que embriões capazes de desenvolverem o potencial
mitótico de uma gestação serão mortos.
A segunda indagação está relacionada ao art.50, inciso II, da Lei de
Biossegurança, prevendo as condições alhures destacadas, a qual se desdobra nos
seguintes quesitos: qual o motivo do tempo de três anos? Será que o embrião congelado
a três anos perde sua potencialidade, sua viabilidade? A resposta é não. Segundo alguns
cientistas que discutiram tal assunto na audiência pública proposta pelo STF, no dia 24
de abril de 2007, quando foram ouvidos 22 cientistas para dirimir as dúvidas dos
28
Expressam ideia de alternância de fatos ou escolha. Normalmente é usada a conjunção "ou". Além dela,
empregam-se também os pares: ora... ora, já... já, quer... quer, seja... seja, etc. Introduzem as orações
coordenadas sindéticas alternativas.
389 | A l e t h e s
AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança
ministros, o período de três anos de criogenia29 não inviabilizaria um embrião. O bloco
contra –Pesquisas com células -tronco embrionárias- PCTE tentou desmentir a posição
de seus adversários, com respeito à diminuição da viabilidade dos embriões congelados
para a reprodução humana, por meio de referências reiteradas a exemplos de crianças
brasileiras, nascidas após 6 a 12 anos do congelamento do embrião (informativo
verbal)30. (Alice Teixeira Ferreira, STF, TAP-ADI, 2008a:76; Rodolfo Acatauassú,
STF, TAP-ADI, 2008a:134, entre outros).
As condicionantes de licitude das pesquisas se contradizem com o Código Civil
de 2002 e, mais, alguns critérios temporais criogênicos, como o exposto acima, são no
mínimo arbitrários, porque não existe neutralidade por parte dos cientistas, haja vista
que, como dito anteriormente, alguns interesses os fazem criar conceitos. Junto a eles
corrobora a legislação, que também é um meio para atingir um fim. O resultado disto
tudo são lacunas no texto legislativo e um choque principiológico, pois, em alguns
momentos, tutela-se a vida embriológica ou sua expectativa; em outros não. Eis o
firmamento de um paradoxo.
6. Código Penal Comparado
A Lei de Biossegurança, no capítulo VIII, que trata dos crimes e das penas,
define a seguinte figura típica, no art. 24: “Utilizar embrião humano em desacordo com
o que dispõe o art. 5o desta Lei: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.”
Daí, duas questões são levantadas.
A primeira questão diz respeito ao art.5º, § 1º, da referida lei, que determina
como condição para o uso de células-tronco obtidas de embriões produzidos mediante
fertilização in vitro, em se tratando de sua destinação para pesquisa e terapia: “Em
qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores”. Surge então a perquirição
inelutável: Como ficaria a penalização do cientista que usar embriões considerados
“inviáveis” ou estejam congelados há mais de três anos, embora seja esse critério
29
É uma ciência que estuda temperaturas muito baixas (próximas do zero absoluto), assim como as
técnicas para as produzir e as propriedades específicas e elas associadas, como a diminuição da
resistência elétrica. Por exemplo: A comida congelada pode manter-se durante anos e a congelação de
óvulos, esperma e embriões é hoje prática corrente.
30
Linha de pensamento da professora; Dra. Alice Teixeira Ferreira- Professora Associada de Biofísica, da
UNI FESP/EPM, na área de biologia celular proferida ao Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de
Inconstitucionalidade em 2008.
390 | P a g e
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014
duvidoso, em uma situação em que os genitores não tenham sido encontrados para
exteriorizarem a autorização de manipulação laboratorial de seu material biológico?
A segunda questão refere-se a uma espantosa observação. O Código Penal
Brasileiro, art. 121, § 3º prevê: “Se o homicídio é culposo – Pena, reclusão de 1(um) a 3
(três) anos.” É de notória observação a similitude à pena cominada ao crime definindo
no art. 24 da Lei de Biossegurança. Fazendo-se comparação entre as definições do
crime de homicídio culposo e o de utilização de células embrionárias que não atendem
às condicionantes que estão prescritas na mesma lei especial, no mínimo, estar-se-ia
colocando em xeque o entendimento de que a vida só aconteceria a partir da fase de
nêurula. Afinal, a penalidade que emerge da Lei de Biossegurança, cominada a um
crime doloso, foi pareada ao crime de homicídio em sua forma culposa, ou seja, a
consumada mediante imprudência, negligência ou imperícia, como resultado da
inobservância de cuidados objetivos exigíveis de qualquer pessoa. Ademais, essa forma
de homicídio só se configura quando há vida. Agora, encetando outra comparação ou
analise, isto é, se um cirurgião, sabendo que o coração e imprescindível para a
oxigenação das partes de um corpo, retira-o simplesmente com a intenção de cessar uma
vida, pratica um crime de homicídio doloso, capitulado no art. 121 do Código Penal
Brasileiro, pois, afinal de contas, sabia e queria matar o paciente. Pois bem, se um
cientista sabe que se retirar a célula-tronco de um embrião, pode eliminá-lo, e ainda
assim procede, sem observância das condicionantes enumeradas no art. 5º da Lei de
Biossegurança, deverá responder pelo crime doloso tipificado no art. 24 da Lei de
Biossegurança.
Enquanto o Código Penal Brasileiro, para crimes pertinentes ao uso de pesquisas
com células tronco, é pouco abrangente e pouco instigador de temor aos infringentes, o
Código Penal Espanhol é rigoroso e categórico. Segundo o diploma espanhol, pune-se
quem fecundar óvulos humanos sem a finalidade de procriação humana. “O legislador
procurou proteger a fecundação de material humano, aplicando penas de 6 (seis) a 10
(dez) anos, acrescida da proibição especial para exercer emprego ou cargo público”
(MALUF, 2002, p. 72). E mais, conforme os dizeres abaixo:
Aquele que, por qualquer meio ou procedimento, causar em um feto uma
lesão ou enfermidade que prejudique gravemente seu desenvolvimento
normal, ou provoque no mesmo um grave defeito físico ou psíquico, será
punido com pena de prisão de 1 a 4 anos e proibição especial para exercer
qualquer profissão sanitária, ou prestar serviços de todo o gênero em clínicas,
391 | A l e t h e s
AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança
estabelecimentos ou consultórios ginecológicos, públicos ou privados, pelo
tempo de 2 a 8 anos (MALUF, 2002, p.72).
A preocupação do legislador espanhol no que tange à manipulação genética é
evidente. Ao contrário disso, no Brasil, é transparente a falta de rigor na lei que penaliza
o uso indiscriminado de embriões, pois, além da punição privativa de liberdade ser
tênue, depara-se com a inexistência de punições no âmbito trabalhista, não se seguindo
o exemplo de estarem cominadas no regime espanhol. Ali, com base no ordenamento
jurídico espanhol, pessoas também são punidas com a perda de exercerem, por algum
tempo, certas funções profissionais.
Outra esfera penal a que está relacionada a questão aqui tratada e que chama
atenção é encontradiça no direito inglês. Em 1990 o Reino Unido aprovou a Lei de
Fertilização Humana e Embriológica, que regulamenta pontos pertinentes à reprodução
assistida e aos embriões humanos. O diploma estrangeiro contém ressalva acerca do
armazenamento e uso de embriões, além de criar o Conselho de Fertilização Humana e
Embriologia, atribuindo-lhe papel informacional, de assessoramento e permissivo, por
meio de um Comitê de Licenças, que verifica o alcance da lei mediante uma análise
criteriosa no catálogo de delitos, com penas de prisão de até 10 anos.
Eis, por
conseguinte, a dimensão grandiosa dada aos delitos que envolvem fertilizações,
armazenagem e utilização de embriões. No Brasil, o máximo de pena, previsto na Lei de
Biossegurança, é o de 3 anos de detenção, pena privativa da liberdade.
7. Considerações Finais
Diante de questões que fogem ao controle científico, seja no âmbito da medicina
seja no respaldo jurídico, a ética deve ser chamada para resolver tais indagações que,
muitas vezes, nem mesmo cientistas do mais alto gabarito conseguem elucidar.
Essa ética deve buscar o apaziguamento social e decidir sobre fatos da
humanidade em geral; deve prezar pelo bom senso total, isto é, pelo que seria bom para
todos, por isso difícil de ser posta em prática, pois, no mundo atual, as pessoas em geral,
se preocupam consigo mesmas, em detrimento das demais.
A ética do consenso projeta-se para a universalidade porque garante a
sobrevivência da espécie, ou, mais que isso, permite a sua progressão
cultural, e não o efeito contrário –aniquilamento- fazendo-se das diferenças
392 | P a g e
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014
intersubjetivas pontos favoráveis para o crescimento do que é comum a todos
(BITTAR, 2013. p. 79).
Dentre os diversos problemas que servem de matéria à ética está a utilização de
embriões inseminados in vitro para pesquisas com células-tronco embrionárias.
Em função dessas pesquisas serem problemáticas, pela discórdia de quando a
vida embrionária começa, em debates religiosos e científicos, alguns estudiosos, apesar
de confirmarem a potencialidade das células-tronco embrionárias em restaurações
teciduais, não descartam a substituição delas por células-tronco adultas e até a regressão
delas ao estágio de embrionárias, mediante o uso de técnicas aprimoradas e eficazes.
Outro fator de extrema importância é a diferença dada ao tratamento de tutela de
direitos garantidos ao concepto no Código Civil, que destoa daquele dado pela Lei de
Biossegurança, pois, no primeiro, seus direitos são garantidos, porém, no outro, é alvo
de pesquisas que destruirão suas vidas ou potencialidades delas. Ademais, a Lei 11.105,
de 24 de março de 2005, lobriga condicionantes vagos e imprecisos à legalidade com
pesquisas com células tronco embrionárias.
Por fim, é de salientar que o Código Penal Brasileiro, se comparado
ao inglês e ao espanhol, no tocante aos atos ilícitos, no campo da embriologia, comina penas
aquém do esperado para uma nação protetora dos direitos pluralísticos.
No entanto, apesar de todas as nuances tratadas, fica a dúvida do que fazer com
embriões excedentários. Será providencial a formulação de leis que diminuam o estoque
laboratorial de embriões congelados, chegando a um número mínimo, com a ajuda da alta
tecnologia para tal? Por outra, tais materiais biológicos devem ser objeto de estudo médico?
Eis, portanto, dúvidas pertinentes à evolução da biomedicina, engenharia genética, ao lado da
moral e da legislação. Um desafio aos juristas e estudiosos do assunto!
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Terceirização à Luz do Princípio Essencial da Primazia da Realidade
Outsourcing the Light of the Primacy of Essential Reality Principle
Leidiel Araújo de Oliveira1
Resumo:
O presente artigo foi desenvolvido sob a perspectiva da terceirização à luz do
Princípio Essencial da Primazia da Realidade, bem como uma leitura a cerca das
generalidades da terceirização no ramo do Direito do Trabalho. Apresentando os
fundamentos e as consequências práticas desse princípio trabalhista, delimitamos as
fronteiras entre atividade-fim e atividade-meio, como também a relação de tal princípio
com a tutela da confiança e os preceitos constitucionais da boa-fé objetiva e da
igualdade. Para tanto, pontuamos alguns períodos da evolução do Direito do Trabalho,
assim como da flexibilização das normas trabalhistas e a evolução do trabalho
terceirizado. Esclarecendo a terceirização, mostrando sua evolução histórica, as formas
de caracterização (lícita e ilícita) e seus efeitos jurídicos. Esta pesquisa foi desenvolvida
com base na jurisprudência e doutrinas atuais, pontuando sobre o estudo da
terceirização e suas relações com o direito, especialmente o direito do trabalho, a partir
da investigação e aplicação dos princípios gerais de direito e dos princípios do direito do
trabalho estabelecidos pela Constituição de 1988.
Palavras-chave: Direito do Trabalho; Terceirização; Princípios do trabalho;
Constituição Federal de 1988.
Abstract
The present article was developed under the perspective of the outsourcing by
the light of the Essential Beginning of the Primacy of the Reality, as well as a reading
her around the generalities of the outsourcing in the branch of the Right of the Work.
Presenting the bases and the practical consequences of this labor beginning, we delimit
the frontiers between activity-end and activity-way, just as the relation of such a
beginning with the protection of the confidence and the constitutional precepts of the
objective good-faith and of the equality. For so much, we punctuate some periods of the
evolution of the Right of the Work, as well as of the flexibility of the labor standards
and the evolution of outsourced work. Clarifying outsourcing, showing its historical
evolution, forms of characterization (licit and illicit) and its legal effects. This research
was developed on basis of the jurisprudence and current doctrines, punctuating on the
study of the outsourcing and his relations with the right, specially the right of the work,
from the investigation and application of the general beginnings of right and of the
principles of the right of the work established by the Constitution of 1988.
Keywords: Labor Law; Outsourcing; Principles of Labor; Constitution of 1988.
Recebido em: 30 de outubro de 2014
Aceito em: 2 de fevereiro de 2015
1
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém/PA.
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OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio
I. Justificativa e Problematização
A primazia da realidade dentro da lógica do ordenamento jurídico trabalhista
mostra-se como solução constitucional frente a real e corriqueira desigualdade nas
relações de emprego da atualidade, em que se observa o empregador (com domínio
econômico maior), impondo sua vontade ao empregado (trabalhador hipossuficiente)
nas mais diversas formas de trabalho, em especial a terceirização. Nesse sentido, os
vários problemas que emergem no campo das relações do trabalho e do ordenamento
jurídico provindos dessa relação configuram-se como novas necessidades e formas de
organização e execução do trabalho, infringindo muitas vezes na própria lei, gerando as
fraudes, a intermediação de mão-de-obra ilegal, a precarização do contrato de trabalho,
a representação sindical, e o desemprego. Nessa lógica, tal princípio tem como
finalidade a garantia da dignidade da pessoa humana, com promoção de igualdade no
relacionamento terceirizado, assim como, a tutela da confiança na relação jurídica
empregatícia e o bem comum baseado na boa-fé objetiva da norma.
II. Objetivo Geral e Específico:
– Objetivo Geral
Estudo sucinto acerca dos principais princípios norteadores do direito do
trabalho, em especial o princípio da primazia da realidade, analisando a evolução do
Direito do Trabalho, assim como da flexibilização das normas trabalhistas e a evolução
do trabalho terceirizado (terceirização).
– Objetivo específico
Analisar os aspectos jurídicos do princípio da “Primazia da Realidade” dentro do
ramo do Direito do Trabalho, apresentando os fundamentos e as consequências desse
princípio trabalhista junto à prática da Terceirização, bem como a pouca legislação
existente sobre a mesma.
III. Metodologia
398 | A l e t h e s
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014.
No presente artigo adotar-se-á a pesquisa exploratória, mediante análise de
material bibliográfico, documental e jurisprudencial.
1 Introdução
De forma sucinta, o direito do trabalho surgiu mediante a necessidade
econômica das relações laborais, em que as liberdades existentes de contratação entre as
pessoas com poder e capacidades econômicas desiguais se fazia presente. Tais relações,
historicamente, levaram o empregado a uma intensa e constante luta pela conquista de
direitos que dessem resposta aos abusos praticados pelos empregadores. As contratações
representavam, muitas vezes, uma explicita exploração abusiva de direitos. O
intervencionismo estatal quando sensível as desigualdades sob o hipossuficiente,
moldou a legislação trabalhista brasileira. O Direito do Trabalho constituiu-se assim
como fonte de recurso material aos trabalhadores, uma vez que passou a regular as
relações jurídicas de emprego, “sanando” as disparidades de poder entre as partes, com
base fundamentalmente nos princípios da Constituição Federal de 1988.
Nesse sentido, o princípio da primazia da realidade, assim como os demais
princípios do Direito do Trabalho, se baseia na hipossuficência do trabalhador para
garantir a esse uma proteção contra eventuais abusos por parte dos empregadores no que
concerne às divergências entre a prestação de serviços e o que está documentado, com
vistas ao que entende o ordenamento jurídico atual da Constituição Federal de 1988 e
Código Civil de 2002.
Além disso, esse princípio ordena que os fatos devam prevalecer sobre os
documentos. Logo, no Direito do Trabalho, os documentos acessórios ao contrato de
trabalho não têm a natureza “Juris et de Jure”. Dessa maneira, objetiva-se a elucidação
da importância do princípio da primazia da realidade para a incidência da boa-fé
objetiva, tutela da confiança e igualdade substancial na relação de emprego.
1.1 Principais pontos acerca do Direito do Trabalho
Percebemos que o processo construtivo do direito do trabalho deu-se mediante
conflito de classes através dos séculos, e por ser um direito social, haveria a necessidade
de um sistema jurídico capaz de proteger os trabalhadores dos abusos advindos dos
empregadores. Nas palavras de Martinez (2012, p. 66): “o direito do trabalho foi o
399 | A l e t h e s
OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio
primeiro dos direitos sociais a emergir e, sem dúvida, por conta de sua força expansiva,
o estimulante da construção de tantos outros direitos sociais [...]”.
Para tanto o direito do trabalho surge como um conjunto de princípios e regras
normativas, capazes de regular a prestação do trabalho subordinado, e excepcionalmente
do trabalho autônomo, no âmbito das relações laborais individuais ou coletivas, bem
como as consequências jurídicas provenientes dessas relações. Nesse sentido, entendese que a Justiça do Trabalho passaria a dirimir conflitos à luz do direito do trabalho.
Nessa atuação distintiva do direito, características fundamentais formariam o arcabouço
desse instituto, tais como: o intervencionismo, o protecionismo, o reformismo social, o
coletivismo, o expansionismo, o cosmopolitismo e o pluralismo de fontes.
Através dos tempos, a relação de trabalho influenciada pelas transformações
sociais, passou por várias mudanças ao longo da história, ao ponto da própria sociedade
passar a cobrar do Estado regulamentação quanto às relações de trabalho. Porém, já no
final do século XX surgem os fenômenos da globalização e do neoliberalismo,
representando um novo e grande impacto ao Direito do Trabalho e nos Direitos Sociais
protegidos pelo Estado. Sendo a função maior do direito o equilíbrio entre as relações
sociais frente a uma realidade específica.
O direito do trabalho, apesar de autônomo, procura agora estabelecer seus
entendimentos com base nos princípios da Constituição Federal. Os quais, em conjunto
aos princípios do trabalho, funcionam como verdadeiras normas jurídicas, que elucidam
o significado e o sentido de sua existência no sistema jurista-trabalhista para a
interpretação e aplicação ao caso concreto.
2
Princípios do direito
Os princípios, de forma geral, fazem parte das regras morais e dos valores que
orientam o comportamento coletivo das pessoas na sociedade, tais princípios evoluem e
sofrem com o tempo valorações éticas e também políticas, constantes do ambiente
moral de cada sociedade. Violar um princípio constitui falha mais grave que transgredir
uma regra, pois sua desatenção implica ofensa a todo sistema de normas existentes.
Logo, os princípios jurídicos são o fundamento sobre o qual se assenta o ordenamento
jurídico, informando o seu nascimento, interpretação, integração e controlando o
exercício dos direitos.
400 | A l e t h e s
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014.
Nesse sentido, afirma Norberto Bobbio que:
Um ordenamento é completo quando o juiz pode encontrar nele norma para
regular qualquer caso que se lhe apresente, ou melhor, não há caso que não
possa ser regulado com uma norma tirada do sistema (...). Os princípios são
verdadeiras normas, pois, em primeiro lugar, se são normas aquelas das quais
os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de
generalização sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também;
em segundo lugar, a função para qual são extraídos e empregados é a mesma
cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso (BOBBIO,
1997, p. 115)
Podemos definir “princípio como mandamento nuclear de um sistema,
verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas”
(MELLO, 2000, p. 138). Os princípios são verdadeiras normas jurídicas, visto que a
disposição do artigo 4º da LICC, de aplicação a todo o direito, manda recorrer, na falta
de normas, aos princípios gerais do direito. No mesmo sentido, a legislação trabalhista
(CLT- decreto-lei n.º 5.452, de 1º/5/1943) traz em seu artigo 8º que, conforme a
necessidade, as autoridades competentes poderão decidir também conforme os
princípios gerais de direito. Isto é, na ausência de disposições legais ou contratuais, de
normas heterônomas ou de normas autônomas, as autoridades administrativas e
judiciárias podem, conforme o caso, da jurisprudência, da analogia, da equidade, bem
como dos princípios e normas gerais de direito.
Nesse sentido, segundo Miguel Reale (1996, p. 59), princípio possui duas
acepções, “a primeira, de ordem moral, e a segunda, de ordem lógica. Naquela se
enquadra o sentido ético, para significar as virtudes, a boa formação e as razões morais
do homem; esta, por sua vez, deve partir da escorreita compreensão de juízo”. Os
princípios
gerais,
ao
lado
das
regras,
são
verdadeiras
normas
jurídicas,
independentemente de estarem positivados ou não.
Pode-se, com isso, concluir que cada ramo da ciência jurídica possui princípios
próprios, evidenciando sua autonomia, de forma que esses podem ser utilizados para a
melhor compreensão das normas expressas. Tais princípios possuem significação de
direito, os quais devem ser utilizados pelo intérprete e aplicador da norma, em conjunto
ou isoladamente, diante de um caso concreto, a fim de obter o melhor resultado.
2.1 PRINCÍPIOS APLICÁVEIS AO DIREITO DO TRABALHO
A Constituição de 1988 traz sob sua proteção alguns princípios gerais de direito,
também aplicáveis ao direito do trabalho, isto é, princípios fundamentais
constitucionais, norteadores do direito do trabalho, os quais são: o princípio da
dignidade da pessoa humana (inciso III do artigo 1º e no caput do artigo 170 da CF/88),
401 | A l e t h e s
OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio
dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, a igualdade entre homens e mulheres.
Tais princípios possuem carga normativa extremamente vigorosa, a qual não
pode ficar como mera promessa do legislador constituinte, mas, sim, deve ser expressa e
concretizada em cada manifestação jurídica. Haja vista que o trabalho humano assentase no princípio da livre iniciativa, relativizado em função do valor preponderante da
dignidade da pessoa humana. Realça-se dessa forma uma profunda identidade do direito
do trabalho com a concepção do Estado Democrático de Direito. Tal como observamos
no artigo 5º da CF/88.
Vale ressaltar também que além dos princípios já citados, temos também os
princípios constitucionais específicos do direito do trabalho, os quais são essenciais a
proteção do trabalhador: a) proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa
(artigo 7º, inciso I); b) irredutibilidade dos salários (artigo 7º, inciso VI); c)
reconhecimento das convenções e acordos coletivos (artigo 7º, inciso XXVI); d)
proteção em face da automação (artigo 7º, inciso XXVII); e) a liberdade sindical (artigo
8º); f) não interferência do Estado na organização sindical (artigo 8º, inciso I); g) direito
de greve (artigo 9º); h) representação dos trabalhadores na empresa (artigo 11), todos da
Constituição Federal de 1988. Estes princípios são essenciais e devem ser sempre
inseridos nas relações jurídicas do trabalho, de forma a servirem como princípios
fundamentais constitucionais para garantir e assegurar o direito individual do
trabalhador.
2.1.1 Princípio da proteção
O fundamento do princípio da proteção tem como objetivo o equilíbrio entre o
capital e a força de trabalho. Este princípio divide-se em três outros princípios que
visam fundamentalmente garantir as melhores condições de serviço aos trabalhadores,
bem como, a aplicação da norma mais correta e favorável ao empregado. Sendo eles:
“In dúbio pro operário”, “Aplicação da norma mais favorável” e “condição mais
benéfica”. Para Francisco Rossal (1996, p. 77): “[...] o princípio da proteção do
trabalhador é uma opção do direito do trabalho em favorecer a parte mais fraca da
relação empregado-empregador, ou seja, através de uma série de normas
compensatórias, inclina-se para proteger o empregado”.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014.
O princípio do “In dúbio pro operário” volta-se a interpretação da norma e de
sua aplicação de forma mais benéfica ao trabalhador. Pois havendo um dispositivo de lei
ou de um contrato que enseje interpretação em sentido dúbio, a regra é que será adotada
a interpretação mais benéfica ao trabalhador.
O princípio da “Aplicação da norma mais favorável” será aplicado sempre que
houver uma pluralidade de normas, devendo-se optar por aquela mais favorável ao
trabalhador. Valendo ressaltar que diante da aplicação deste princípio não haverá
hierarquia de normas, mas sim, a aplicação daquela que for mais benéfica ao
trabalhador.
Já o princípio da “condição mais benéfica”, consiste em manter os direitos e
privilégios alcançados pelo trabalhador no decorrer do contrato de trabalho, a exemplo,
o art. 10 da CLT em que: “Qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não
afetará os direitos adquiridos por seus empregados”. Bem como visto também no art.
468 da CLT.
A função desse princípio é fundamental para a orientação do direito do trabalho
uma vez que rompe com a premissa de que as partes da relação jurídica de trabalho são
iguais. Deve-se tutelar os direitos da parte que possui evidente inferioridade, ou seja, o
empregado.
2.1.2 Princípio da irrenunciabilidade
O princípio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas ou princípio da
indisponibilidade (art. 9 CLT), em regra, impede que o empregado renuncie a direitos
decorrentes da relação de emprego que lhe foram conferidos pelo Estado. Isto é,
protegendo o trabalhador contra a sua própria vontade. Por este motivo, em regra, o
silêncio ou a concordância do empregado com a supressão de algum direito seu
decorrente da relação de emprego não produzirão qualquer efeito, pois o Estado não lhe
concede a faculdade de abdicar dos mesmos. Este princípio vem a garantir os direitos
mínimos do trabalhador, não possibilitando ao empregado privar-se voluntariamente,
em caráter amplo e por antecipação, dos direitos concedidos pela legislação trabalhista.
A exceção a esse princípio ocorre quando a norma jurídica expressamente
conceda ao empregado a faculdade de praticar o ato. A lei veda, por exemplo, que o
trabalhador abra mão do seu décimo-terceiro, férias ou aviso prévio, tachando como
nulo qualquer documento que expresse tal vontade do trabalhador. Admite, porém, a
403 | A l e t h e s
OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio
convenção ou acordo coletivo de trabalho, quando se tratar de direitos disponíveis do
trabalhador, artigo 7º, VI, da CF/88.
2.1.3 Princípios da boa-fé
A boa-fé é um princípio jurídico fundamental. Volta-se a uma conduta legítima
sem prejudicar terceiras pessoas, ou lealdade, no sentido de honestidade, que é o
vigorante no Direito do Trabalho, em respeito a “dignidade da pessoa humana”. Tal
princípio de boa-fé apresenta-se por duas facetas: subjetivo, que é a estima, e o jurídico,
que é a sua conduta exteriorizada. Além disso, este princípio, de forma geral, deve
existir entre ambas as partes no direito laboral em virtude do mútuo relacionamento
entre empregado e empregador (valor ético do trabalho).
A dignidade da pessoa humana tem valor substancial, tanto que para o
doutrinador Alexandre Moraes (2007, p. 16): “[...] a dignidade da pessoa humana é um
valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na
autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz a pretensão ao
respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que
todo estatuto jurídico deve assegurar”.
O homem trabalhador deve ser visto como sujeito-fim e não o objeto-meio do
desenvolvimento. Deve-se nessa tônica, garantir a eficácia fundamental em relação aos
direitos do homem, seus direitos sociais. O contrato de trabalho é, portanto, oneroso e
comutativo. Gera direitos e deveres para ambas as partes; ou seja, há prestação e
contraprestação. Por isso, o empregado deve trabalhar bem e o empregador, em
contrapartida, fornecer-lhe todas as condições humanas e materiais para o
desenvolvimento de uma relação de trabalho digna e justa.
2.1.4 Princípio da razoabilidade
A responsabilidade subsidiária, à luz do princípio da razoabilidade, pressupõe
hipóteses de terceirização pessoal (de serviços). Uma vez que, os trabalhadores da
empresa fornecedora de mão-de-obra sujeitam-se a obrigações de meio, com
apropriação imediata da força de trabalho pela empresa cliente.
Percebemos que o princípio da razoabilidade, mesmo não sendo especificamente
trabalhista, é aplicado constantemente nas relações de trabalho atuais, sendo “[...] a
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014.
qualidade daquilo que esteja conforme a razão, entendida como a faculdade de que
dispõe o ser humano de avaliar, julgar e ponderar idéias universais, concebidas na
medida em que seja possível conhecer o real por oposição ao que é aparente”
(MARTINEZ, 2012, p. 271).
2.1.5 Princípio da continuidade da relação de emprego
Nos ensinamentos de Demétrius Vecchi, o Princípio da continuidade da relação
de emprego fundamenta-se na norma constitucional de 1988:
A Constituição Federal de 1988 traz, sob o título “Dos Princípios
Fundamentais”, em seu artigo 3º, primeira parte, o trabalho como valor social
e, em seu título “Da Ordem Econômica e Financeira”, como um dos
princípios gerais da atividade econômica, no inciso VIII, do artigo 170, a
busca pelo pleno emprego, evidenciando, dessa forma, que o contrato de
trabalho deve ser visto como de interesse social e público (VECCHI, 2004, p.
144)
O princípio da continuidade pode ser entendido como aquele que visa “atribuir à
relação de emprego a mais ampla duração possível, sob todos os aspectos”, gerando, por
isso, presunções sempre favoráveis aos trabalhadores. Nessa lógica, se um contrato por
tempo determinado é violado em algum dos seus requisitos previstos em lei, há, por
bem da continuidade, uma conversão do ajuste por tempo determinado em um contrato
por tempo indeterminado.
O entendimento cristalizado pelo TST, através da Súmula 212 do TST, descreve:
“O ônus de provar o término do contrato de trabalho, quando negados a prestação de
serviço e o despedimento, é do empregador, pois o princípio da continuidade da relação
de emprego constitui presunção favorável ao empregado” (Res. 14/1985, DJ, 19-91985).
3 Terceirização
3.1 Conceito
A doutrina e a jurisprudência designam terceirização como uma: subcontratação,
terciarização,
filiação,
recontratação,
desverticalização,
descentralização,
desverticalização, exteriorização do emprego, focalização, parceria, etc. A expressão
“terceirização” adivinha de um neologismo utilizado pela ciência da Administração,
405 | A l e t h e s
OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio
significando uma forma de reestruturação administrativa, pela qual uma empresa
transfere para outras determinadas atividades produtivas, em regra, não relacionadas
diretamente a sua atividade produtiva principal.
A terceirização para Renato Saraiva (2013, p. 111): “permite que uma empresa
contrate empresas intermediárias para a execução de determinadas atividades sem que
tal fato gere vínculo empregatício direto com os prestadores se serviços”. Levando a
uma flexibilização das normas.
A terceirização pode ser definida apenas como “[...] a transferência de atividades
para fornecedores especializados, detentores de tecnologia própria e moderna, que
tenham esta atividade terceirizada como sua atividade-fim, liberando a tomadora para
concentrar seus esforços gerenciais em seu negócio principal” (SILVA, 2002, p. 65).
Logo, percebemos com isso que a terceirização vem a constituir um repasse da
atividade-meio, não sendo diretamente relacionado com o objetivo principal da empresa
contratante, em relação à empresa contratada, que mantém com a mão-de-obra apenas
um vínculo empregatício. A empresa terceirizada figura como intermediária na relação.
Conforme nos ensina Maurício Delgado (2002, p. 417): “a Terceirização
provoca uma relação trilateral em face da contratação de força de trabalho no mercado
capitalista”. Já segundo Gabriela Delgado pode-se compreender a terceirização como
“[...] utilização de mão-de-obra terceirizada (“emprego terceirizado”), o que, do ponto
de vista administrativo, é tido como instrumento facilitador para a viabilização da
produção global, vinculada ao paradigma da eficiência nas empresas” (DELGADO,
2003, p. 142).
Em acordo com Rubens Ferreira de Castro, terceirização é “[...] uma moderna
técnica de administração de empresas que visa ao fomento da competitividade
empresarial através da distribuição de atividades acessórias a empresas especializadas
nessas atividades, a fim de que possam concentrar-se no planejamento, na organização,
no controle, na coordenação e na direção da atividade principal” (CASTRO, 2000, p.
78).
Diante o exposto dos autores, pode-se afirmar que a terceirização configura-se
como uma técnica de organização do processo produtivo por meio da qual uma
empresa, visando concentrar esforços em sua atividade-fim, contrata outra empresa,
entendida como periférica, para lhe dar suporte em serviços meramente instrumentais,
tais como limpeza, segurança, transporte e alimentação.
406 | A l e t h e s
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014.
3.2 Natureza jurídica da terceirização
A natureza jurídica da terceirização é contratual, pois há a celebração de contrato
entre duas pessoas, físicas ou jurídicas, baseado no acordo de vontades, em que a
primeira (prestadora de serviços) prestará à segunda (tomadora de serviços) serviços
especializados de forma continuada
Para Sergio Martins ao se referir à natureza jurídica da Terceirização “[...]
dependendo da hipótese em que a terceirização for utilizada, haverá elementos de vários
contratos distintos” (MARTINS, 2003, p. 25). No entanto tal caráter da terceirização
dependerá, tanto da forma contratual, quanto do acordo de vontades representado pela
celebração de um contrato.
3.3 Breve histórico da terceirização
A terceirização remonta os tempos da II Guerra Mundial, quando os EUA
aliaram-se aos países europeus para combater as forças nazistas e os Japoneses. As
indústrias de armamento da época não conseguiram abastecer o mercado, necessitando
suprir o aumento excessivo da demanda e aprimorar o produto e as técnicas de
produção.
Segundo Sergio Martins (2003, p 16): “a idéia de terceirização surgiu no mundo
durante a Segunda Guerra Mundial, pois foi nesse período que as grandes indústrias de
armamento estavam sobrecarregadas e buscaram uma solução para atender a toda a
demanda”. Essa necessidade demonstrou que a concentração industrial deveria voltar-se
para a produção, e as atividades de suporte deveriam ser transferidas para terceiros.
A partir deste marco histórico é que temos a terceirização interferindo na
sociedade e na economia. No Brasil, a noção de terceirização foi trazida por
multinacionais por volta de 1950, pelo interesse que tinham em se preocupar apenas
com a essência do seu negócio. As empresas dessa época objetivavam o aumento do
lucro, com mão de obra barata e com menores custos de produção, sem tantas
preocupações com a legislação trabalhista desse contexto, apesar da mesma visar pela
proteção do hipossuficiente da relação de trabalho.
Segundo o entendimento ainda do autor Martins Sergio:
No Brasil, a idéia de terceirização foi trazida por empresas multinacionais por
volta de 1950. Encontram-se seus primeiros passos nos decretos-leis 1.212 e
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OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio
1.216, de 1966, que autorizavam aos bancos dispor de serviços de segurança
bancária prestados por empresas particulares; no decreto-lei 63.756, de 1968,
que regulamentou o funcionamento das agências de colocação ou
intermediação de mão-de-obra, e no decreto-lei 1.034(10), de 1969, que
tratou das medidas de segurança para as instituições financeiras (MARTINS,
2003, p. 16).
O termo “terceirização”, no Brasil, foi adotado inicialmente no âmbito da
administração de empresas. Posteriormente, os tribunais trabalhistas também passaram a
utilizá-lo, podendo ser descrito como a contratação de terceiros visando à realização de
atividades que não constituam o objeto principal da empresa.
A partir do Decreto-Lei 200/67, as tarefas executivas passaram a ser executadas
indiretamente, via contrato de intermediação de mão-de-obra. Já na década de 70 foi
publicada a Lei 5.645, que previa que “as atividades relacionadas com transporte,
conservação, custódia, operação de elevadores, limpeza e outras assemelhadas” seriam
objeto de execução mediante contrato, conforme determinado pelo Decreto-Lei 200/67.
A globalização representou a outra face da moeda, que diante da economia
mundial mostrou-se como um fruto do capitalismo, com uma nova concepção entre o
capital e o trabalho, com grande expansão dos mercados na busca de acumulação de
capital, uso de mão-de-obra barata dos países subdesenvolvidos e o baixo custo para a
produção.
Tal dinâmica dos mercados e dos bens e serviços, durante a expansão do
capitalismo global, levaram a uma degradação do poder estatal, o qual acabou perdendo
força frente à economia de mercado e deixando conquistas sociais serem alvo do
crescente neoliberalismo, capaz de, através de uma política flexibilizadora das normas
trabalhistas, e do processo globalizador, gerar postos de trabalho com diminuição dos
encargos trabalhistas e das normas trabalhistas em prol de atender uma nova dinâmica
do mercado, à exemplo, a redução do salário, art. 7º VII; a redução da jornada de 8
horas diárias, art. 7º XIII e a redução da jornada de 6 horas para o trabalho realizado em
turnos ininterruptos de revezamento, etc.
De acordo com Maurício Delgado, “a terceirização teve sopro de crescimento no
país apenas a partir da década de 70. Em fins da década de 1960 e início dos anos 70 é
que a ordem jurídica instituiu referência normativa mais destacada ao fenômeno da
Terceirização” (DELGADO, 2002, p.418-19). Durante os anos foram criadas normas
específicas de terceirização, como o trabalho temporário (Lei 6.019/74), serviços de
vigilância bancária (Lei 7.102/83), serviços de telefonia (Lei 9.472/97) e nas
concessionárias de serviço público, na forma definida na Lei 8.987/95.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014.
Somado a esse contexto de flexibilização dos direitos do trabalho, o TST,
através da súmula 331 regulou o instituto da terceirização, com o fim principal de
reduzir custos e acelerar a economia (desverticalização). Com isso, temos um
enfraquecimento dos direitos trabalhistas e sociais na definição bilateral típica da
relação de emprego, com resultados que ferem as condições de trabalho no Brasil.
Tal súmula 331 buscou esclarecer o contraponto entre terceirização lícita e ilícita
e dispôs sobre os quatro casos, excepcionais, em que é possível terceirizar o serviço,
quais sejam, o trabalho temporário para atender necessidade transitória de substituição
de pessoal regular e permanente da empresa tomadora ou necessidade resultante de
acréscimo extraordinário de serviços dessa empresa, ou seja, a terceirização na
atividade-fim da empresa é ilegal, sendo excepcionalmente permitida no caso do
trabalho temporário; serviços de vigilância; serviços de conservação e limpeza; e
serviços especializados, ligados a atividade-meio do tomador do serviço.
A Lei 8.863/94 ampliou a hipótese de terceirização para toda a área de vigilância
patrimonial, pública ou privada, inclusive para as pessoas físicas. Assim, na esfera
privada, apenas estes dois tipos de terceirização (trabalho temporário e vigilância
patrimonial) eram permitidas pela lei. Já a lei 8.949/94 introduziu o parágrafo único do
art. 442 da CLT, estimulando as terceirizações por meio de cooperativas, determinando
que “qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo
empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços
daquela”.
O Ministério do Trabalho e Emprego, considerando a necessidade de se
uniformizar o procedimento de fiscalização do trabalho, após o advento da súmula 331,
editou Instrução Normativa n° 3 de agosto de 1997, dispondo sobre a fiscalização do
trabalho nas empresas, a fim de evitar fraudes na terceirização. De acordo com a
instrução, empresa terceirizante é a empresa de prestação de serviços a terceiros a
pessoa jurídica de direito privado, de natureza comercial, legalmente constituída, que se
destina a realizar determinado e específico serviço a outra empresa fora do âmbito das
atividades-fim e normais para que se constitui essa última. Já a empresa tomadora é
conceituada como “a pessoa física ou jurídica de direito público ou privado que celebrar
contrato com empresas de prestação de serviços a terceiros, com a finalidade de
contratar serviços”.
Valendo dizer ainda que a tomadora e a contratada devem desenvolver
atividades diferentes e ter finalidades distintas, bem como que os empregados da
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OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio
empresa de prestação de serviços a terceiros não estão subordinadas ao poder diretivo,
técnico e disciplinar da empresa contratante, nem podem prestar serviço diverso ao qual
foi contratado.
3.4 Caracterização da Terceirização
Terceirização basicamente entendida como uma contratação de serviços por
meio de empresas, intermediária (interposta) entre o tomador de serviços e a mão-deobra, mediante contrato de prestação de serviços. A relação de emprego se faz entre o
trabalhador e a empresa prestadora de serviços, e não diretamente com o contratante
(tomador) destes. É um procedimento administrativo que possibilita estabelecer um
processo gerenciado de transferência, a terceiros, da atividade-meio da empresa,
permitindo a esta concentrar-se na sua atividade principal.
Existem, no entanto, atividades que podem ser terceirizadas e outras não. Quanto
as atividades que podem aderir a terceirização abarcam todas as áreas da empresa
definida como atividade-meio. A CLT, no art. 581, § 2º dispõe que se entende por
atividade-fim a que caracterizar a unidade do produto, operação ou objetivo final, para
cuja obtenção todas as demais atividades convirjam exclusivamente em regime de
conexão funcional. Por exemplo, serviços de alimentação, serviços de conservação
patrimonial e de limpeza, serviço de segurança, serviços de manutenção geral predial e
especializada, engenharias, manutenção de máquinas, equipamentos, etc.
Já em relação as atividades que não podem ser terceirizadas, estão vinculadas a
uma forma ilegal de serviço. A terceirização encontra-se ligada diretamente ao produto
final. Isto é, A atividade-fim é a constante no contrato social da empresa, pela qual foi
organizada. As demais funções que nada têm em comum com a atividade-fim são
caracterizadas como acessórias, ou de suporte à atividade principal, as quais podem ser
terceirizadas. Valendo ressaltar que isolando a atividade-fim, todas as demais podem ser
legalmente terceirizadas. Temos as normas sobre terceirização contidas na legislação,
disciplinadas pelo Enunciado TST na súmula nº 331.
A terceirização representa uma forma atual e moderna de desenvolvimento
comercial e industrial, uma maneira inteligente encontrada para enfrentar problemas de
custos de produção e de comercialização de produtos. Uma técnica moderna de
administração de empresas, sendo hoje adotada por um número elevado de empresas,
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especialmente as grandes e médias, o que produz reflexos nas áreas social, econômica e
jurídica.
Na terceirização temos a figura do tomador de serviços, que contrata a empresa
ou pessoa física, para intermediar a prestação laboral, estando os trabalhadores a ela
vinculados. Já a relação de emprego em si, se estabelece com a empresa ou pessoa
física, cuja atividade consiste em disponibilizar mão-de-obra para outrem (o cliente),
havendo uma dissociação dos elementos que caracterizam a relação de emprego, nos
moldes tradicionalmente previstos pela legislação trabalhista, valendo notar que o
beneficiário final dos serviços não é o empregador dos trabalhadores envolvidos no
processo produtivo.
O modelo trilateral de relação jurídica oriundo da terceirização é efetivamente
diverso daquele modelo bilateral clássico que se funda a relação celetista de emprego.
Há, necessariamente, a presença de 3 (três) personagens: Empresa de trabalho
temporário (intermediadora); Trabalhador temporário; e, Empresa tomadora dos
serviços (clientes). Conclui-se, basicamente, que a empresa tomadora pode focar-se
apenas na produção do objeto principal, aumentando a qualidade e a produtividade,
aliada à redução dos custos de produção. Ou seja, enquanto no modelo tradicional o
empregado presta serviços diretamente ao empregador, com o qual possui vínculo
empregatício (art. 2º, caput, CLT), na terceirização a relação é trilateral, onde o
empregado presta serviços ao tomador, embora não seja seu empregado efetivo. A
relação de emprego é estabelecida com outro sujeito, a empresa interveniente ou
fornecedora.
As principais formas de aplicação da técnica de terceirização são:
desverticalização, prestação de serviços, franquia, compra de serviços, nomeação de
representantes, concessão, permissão, alocação de mão-de-obra. Já a desintegração,
facção, corporação e descentralização integrada, são específicas de determinado ramo
da economia ou ainda incipientes.
É suma importância que se diga ainda que a adoção do Princípio da Proteção do
Trabalhador pelo direito do trabalho brasileiro vem a proteger sempre o empregado,
mesmo que contra a sua vontade. Tal princípio de proteção do trabalhador resulta das
normas imperativas, que são de ordem pública e caracterizam a intervenção do Estado
nas relações jurídicas de trabalho.
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OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio
4 Terceirização à luz do princípio essencial da primazia da realidade
Já observamos que os princípios são considerados como estruturas jurídicas, que
têm como finalidade viabilizar a aplicação das normas nos casos concretos. Os mesmos
possuem grande relevância no ordenamento jurídico por serem considerados como
norteadores do direito e possuírem características informadoras, interpretativas e
normativas no direito.
Na legislação do direito do trabalho, o artigo 8º da CLT traz uma função
essencial aos princípios, dispondo que os mesmo deverão ser aplicados em caso de
omissão legal ou contratual. Isto é, as autoridades administrativas e a Justiça do
Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela
jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito,
principalmente do direito do trabalho.
Tal como se entende também no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil diz
que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princípios gerais de direito”. Logo, caberia aos magistrados o
desenvolvimento do direito no caso de haver lacuna na legislação, na tentativa de
alcançar a decisão mais favorável ao caso concreto. Certo é dizer que diante da falta de
legislação, a solução vem através da interpretação sistemática do ordenamento jurídico,
principalmente nos princípios contidos em nossa Constituição e na CTL faz-se essencial
e necessária o uso de outras fontes e interpretações.
É correto afirmar também que tais princípios constitucionais e do trabalho estão
acima do direito positivo, na medida em que servem como elemento inspirador, não
podendo, porém, tornar-se independentes do sistema, visto que se influenciam
mutuamente.
4.1 Princípio essencial da primazia da realidade
O Princípio da primazia da realidade ou “primazia sobre a forma”, que prevê no
caso de dissonância entre a realidade fática e os documentos (contratos existentes), a
prevalência da realidade do caso concreto, com base na verdade real, pois a realidade
dos fatos é insuscetível de adulteração pela vontade humana e os documentos podem
exprimir sem exatidão a vontade das partes, além de poderem revestir-se de vícios de
formação que prejudicam a sua validade.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014.
Para tanto, podemos afirmar que os registros podem refletir a verdade em muitos
casos, porém pode refletir também a ficção destinada a dissimular ou esconder a
verdade com o objetivo de impedir o cumprimento de obrigações legais ou de obter um
proveito ilícito. Tal princípio da primazia da realidade privilegia justamente o conteúdo
real frente a forma ou configuração do contrato de emprego. No caso da terceirização, o
efeito principal do contrato é a prestação da atividade, provinda da natureza humana;
isto é, os fatos prevalecem sobre a forma contratual, uma vez que são os contratantes
que determinam a existência ou não de um contrato de emprego, mas, sim, o modo pelo
qual os serviços são desenvolvidos.
Isso nos leva a concluir que o princípio da primazia da realidade decorre do
Princípio da Proteção, pois o trabalhador sempre poderá ser beneficiado, tanto pela
facilitação da prova de suas alegações, quanto pela ineficácia dos registros
desconformes com a situação de fato mais favorável.
Todavia, pode-se dizer que tal princípio tem como finalidade a pessoa humana
em sua dignidade; a promoção de igualdade no relacionamento entre elas; o bem
comum; a facilitação da boa-fé objetiva; e a tutela da confiança na relação jurídica
empregatícia. In verbis, o art. 9º da CLT: “Serão nulos de pleno direito os atos
praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos
contidos na presente Consolidação”. Em outros termos, o direito do trabalho sempre
privilegiará o “contrato da realidade”; isto é, independente do contrato ou documentos,
prevalecerá a realidade. Uma vez que a documentação pode refletir a verdade, porém
pode refletir a ficção destinada a dissimular ou esconder a verdade com o objetivo de
impedir o cumprimento de obrigações legais ou de obter um proveito ilícito.
Segundo Carmen Camino (2003, p. 257), “os requisitos formais essenciais para a
formação do contrato de emprego a serem considerados são típicos da relação de
emprego, tais como a não-eventualidade dos serviços, subordinação hierárquica do
empregado e pessoalidade da prestação da força de trabalho”.
Na CLT observamos o princípio da primazia da realidade em seu artigo 442, in
verbis, “Art. 442 – Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso,
correspondente à relação de emprego. Parágrafo único – Qualquer que seja o ramo de
atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus
associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela”. Em outros termos, o
Estatuto não vê de forma diversa o contrato celebrado tacitamente daquele outro
documentado ou registrado. O princípio da primazia da realidade mostra-se então,
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OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio
novamente, como princípio de proteção do trabalhador, em que considera a realidade
em toda sua dimensão, em detrimento da forma, beneficiando o trabalhador frente a
realidade que se demonstra através de qualquer meio idôneo.
Essa proteção ao trabalhador, trazida pelo princípio da primazia da realidade se
mostra pelo simples reconhecimento de vínculo empregatício do operário quando presta
serviços à uma determinada empresa em condições nas quais se configurem os
requisitos de uma relação de emprego, pouco importando a forma contratada. Ou então
quando do reconhecimento de direitos trabalhistas, quando da prestação de serviço,
documentada erroneamente ou não formalizada, sem a devida contraprestação, ainda
que os documentos digam o contrário e que o vínculo empregatício já esteja
reconhecido. Outra forma seria quando da inversão do ônus da prova e valorização da
prova oral e testemunhal, ocorrendo quando os documentos, num primeiro momento
não aparentam ser verdadeiros.
4.1.1 Aplicação da Primazia da Realidade
Primeiramente vale dizer que tanto a pessoalidade do empregado como a
subordinação do mesmo são elementos caracterizadores da relação de emprego ou do
vínculo empregatício, previstos no artigo 3º da CLT. Significa dizer que mesmo que
uma determinada empresa prestadora de serviços não esteja devidamente constituída,
ainda assim existirá a presunção da relação de emprego com a empresa tomadora de
serviços pela aplicação do princípio da primazia da realidade.
A súmula n.º 331 do TST orienta que é possível a contratação de qualquer forma
de terceirização na atividade-meio da empresa. No entanto, para que não haja vínculo de
emprego com a empresa tomadora de serviços, só se admite a terceirização na sua
prática de atividade-meio. Desde que para isso sejam serviços especializados e
vinculem-se à atividade-meio; isto é, atividades diferenciadas, com características
próprias, em relação ao produto final da empresa, em outras palavras, seria a prestação
de trabalho das fornecedoras de serviços, dirigidas a um serviço particularizado, com
especificações próprias, e não simplesmente a realização de todo e qualquer tipo de
tarefa de interesse à tomadora.
Tais atividades ou serviços seriam aquelas que não visassem aos objetivos
finalísticos da empresa (atividades-fim, artigo 581, § 2º da CLT), logo, não se poderia
ter a transferência de sua execução por terceiros. Assim teríamos que “as atividades que
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014.
integram o objeto social de uma empresa indicam sua atividade-fim, ao passo que as
atividades que não integram o objeto social são consideradas atividade-meio”
(CASTRO, 2000, p. 101).
Entretanto, é de suma importância e essencial dizer que a proibição da
subcontratação na atividade-fim, admitindo-a só na atividade-meio, não se considera
aceitável, uma vez que, por vezes, torna-se difícil ou até mesmo impossível fazer essa
distinção. A não ser que “a empresa se dedique mais à sua vocação, à sua missão, seus
esforços tendem a se concentrar menos na execução e mais na gestão, exigindo
qualidade, preço, prazo e inovações” (CASTRO, 2000, p. 103).
No caso da terceirização, essa é a fraude de que trata o artigo 9º da CLT. Como
dito anteriormente, atividade-fim e atividade-meio não são conceitos empresariais.
Sendo, no entanto, quando ilegal a atividade (ex.: fraude à lei, inadimplemento e
inidoneidade financeira das empresas), a necessária responsabilização subsidiária ou
solidária do tomador de serviços. In verbis, “Art. 9º– Serão nulos de pleno direito os
atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos
preceitos contidos na presente Consolidação”.
Sendo muito importante dizer ainda, que a contratação de mão-de-obra na
atividade-fim da empresa tomadora do serviço, quando eivada de ilegalidade frente à
legislação trabalhista, causa prejuízo ao trabalhador (inadimplemento ou inidoneidade
financeira empresarial), torna-se tanto uma fraude que fere o artigo 9º da CLT quanto ao
princípio do pleno emprego, contido no artigo 170 da CF/88. In verbis, “Art. 170. A
ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados os seguintes princípios: [...] VIII - busca do pleno emprego; [...].”
Segundo a súmula nº 331 do TST, a empresa tomadora de serviços quando do
inadimplemento do empregador real, mesmo não existindo a caracterização de vínculo
de emprego entre a empresa tomadora de serviços e o empregado da empresa prestadora
de serviços, a súmula reserva o direito do empregado de receber da empresa tomadora
de serviço os direitos que lhe são devidos. Ou seja, a Responsabilidade subsidiária
encontra-se vinculada a terceirização. E é também o que entende Rubens Castro (2000,
p. 150) quando diz que: “a responsabilização subsidiária garantirá a satisfação do
crédito do trabalhador se a empresa prestadora de serviços não for encontrada, se esta
não possuir patrimônio ou se este for insuficiente”.
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OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio
Tal conclusão do autor é bastante lógica, pois se a tomadora do serviço é
beneficiada pela prestação de serviços do trabalhador, ela deve responder
subsidiariamente, conforme orientação do inciso IV da súmula 331 do TST. Uma vez
que, o inadimplemento das obrigações decorrentes do contrato de trabalho por parte do
empregador implica a responsabilidade subsidiária do tomador de serviço quanto
àquelas obrigações, desde que este tenha participado da relação processual e conste
também no título executivo judicial.
4.1.2 A licitude da Terceirização e a Primazia da Realidade
O princípio em questão nos fornece a estrutura necessária para o reconhecimento
da relação de emprego do trabalhador com o empregador, deixando transparecer o fato
real sobre o conteúdo dos contratos a fim de se evitar fraudes nos contratos de emprego.
A terceirização, seguindo a lógica da relação trilateral (empresa tomadora,
empresa fornecedora e trabalhador), poderá ser lícita ou ilícita. Quando lícita temos
todos os preceitos legais respeitados do trabalhador. Já quando ilícita, temos uma fraude
relacionada aos direitos trabalhistas e com prejuízo direto ao trabalhador, caberá então
para isso a aplicação do princípio da primazia da realidade, uma vez que este mostrará
os essenciais fatos reais da relação estabelecida entre as partes, os quais determinam o
vínculo de emprego, a fim de garantir os direitos essenciais constitucionais trabalhistas.
O trabalho temporário está disposto na lei n.º 6.019/74 e no inciso I e III da
súmula n.º 331 do TST, distinguindo a terceirização lícita da terceirização ilícita. Assim
como normatizado pela lei n.º 7.102/83, e lei n.º 5.645/70 (serviços especializados).
Rubens de Castro (2000, p. 95-6) comenta que “a licitude da terceirização está centrada
na ausência de lei que a proíba, devendo, no entanto, ser observados os critérios de sua
aplicação, a fim de que não se deixem de lado conceitos elementares do direito do
trabalho, tais como contrato-realidade e presença somente do empregado e do
empregador na relação de emprego”.
A Constituição Federal, também prevê em seu artigo 7º a proteção do
trabalhador, um princípio constitucional fundamental, em que a terceirização no direito
laboral é lícita, o tomador de serviços é responsável em caráter secundário pelas
obrigações trabalhistas, tendo limitada a sua responsabilidade, que não se fixa como
principal ou solidária, mas apenas em caráter subsidiário.
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Sabe-se, no entanto, que a terceirização, muitas vezes, baseia-se em um trabalho
temporário, esse vínculo encontra-se definido no artigo 2º da lei n.º 6.019/74, e se
caracteriza por uma prestação de pessoa física a uma empresa, para atender a
necessidade de substituição temporária de um determinado serviço. Essa intermediação
de mão-de-obra temporária vincula-se ao entendimento da alínea “a” do parágrafo 2º do
artigo 443 da CLT, que dispõe que “o serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique
a predeterminação de prazo”. O doutrinador Rubens de Castro (2000, p. 128) comenta
que o “trabalho temporário é uma das espécies lícitas de interposição de empresas na
contratação de trabalhadores, não se confundindo com a terceirização”. Para ele a
distinção entre a terceirização e o trabalho temporário está centrada na “duração da
contratação, na subordinação do trabalhador com a tomadora, na necessidade da
contratação, nas atividades desenvolvidas pelos trabalhadores e na forma de
contratação”.
Ao diferenciar o trabalho temporário da terceirização, o mesmo autor entende
que “na terceirização o trabalhador não está subordinado diretamente com o tomador
dos serviços, pois a direção e a fiscalização direta formam o vínculo de emprego com
este, pela aplicação do artigo 3º da CLT” (CASTRO, 2000, p. 128). Ainda para o autor
“na terceirização a responsabilidade do tomador é subsidiária, arcando com os débitos
trabalhistas deixados pela prestadora de serviços independentemente de falência [...]”
(CASTRO, 2000, p. 130).
No caso de falência, a empresa tomadora de serviço é solidariamente
responsável pela remuneração e indenização previstas em lei durante o tempo em que o
trabalhador esteve à sua disposição, conforme o artigo 16 da lei n.º 6.019/74.
Já uma contratação de mão-de-obra por empresa interposta é, num primeiro
momento, considerada ilegal. Exceto, segundo a súmula n.º 331 do TST, o trabalho
temporário, os serviços de vigilância, a limpeza e aqueles serviços especializados
ligados à atividade-meio da tomadora de serviços. Para tanto, teríamos apenas então
apenas a responsabilidade subsidiária da empresa tomadora de serviços, do contrário,
haveria nulidade na contratação, pois geraria vínculo empregatício junto a empresa
tomadora do serviço; logo, caberia a responsabilização solidária da empresa prestadora
de serviços, conforme se depreende no artigo 942 do Código Civil/92. Assim, nada mais
justo, no caso de a empresa prestadora de serviços ser conivente com a ilicitude da
relação contratual, ser solidariamente responsabilizada.
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OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio
Nesse sentido, a legislação jurisprudencial e o direito do trabalhista primam pelo
princípio da primazia da realidade. Onde os fatos podem indicar a existência de uma
terceirização lícita ou ilícita de uma sociedade cooperativa autêntica ou não.
Acreditamos que a interpretação do direito é essencialmente feita pela interpretação dos
princípios, que conferem coerência e equilíbrio ao sistema jurídico. Nestes termos, o
princípio da primazia da realidade constitui uma ferramenta de suma importância a
pesquisa e a busca da verdade real nas situações de litígio nas relações trabalhistas
direcionadas a terceirização.
Tal princípio em essência busca garantir tanto a isonomia remuneratória entre os
trabalhadores terceirizados e os empregados originais da empresa tomadora de serviços
quanto a direta responsabilização da mesma pelos valores trabalhistas oriundos da
prática da terceirização e de seu comportamento ilícito, observados no texto da lei
(artigo 3º, parágrafo único, CLT) e previstos na Constituição Federal de 1988, em seus
artigos 5º, caput, I; 7º, XXXII.
No entanto, apesar da legislação existente abranger e normatizar certa parte da
relação de trabalho terceirizado frente às empresas tomadora de serviços. Assim mesmo,
achamos de fundamental urgência o debate de novas e especificas normas que abranjam
a lógica do princípio da Primazia da Realidade junto à relação de trabalho trilateral,
assegurando assim de forma mais completa as garantias fundamentais, de modo
permanente, de cada trabalhador dentro da ordem constitucional.
5 Considerações finais
A terceirização surgiu como uma alternativa especializada/administrativa de
otimização dos serviços. Possibilitou as grandes empresas maior qualidade e redução de
custos. Entretanto, a pouca regulamentação existente, deu brecha a ilicitude em relação
ao pagamento de encargos sociais aos empregados, bem como seus direitos trabalhistas.
Em outras palavras, a terceirização, atualmente, acaba por gerar tanto desemprego
quanto precarização, pois são reféns da pouca legislação específica que priorize os
direitos fundamentais do trabalhador.
A terceirização também se caracteriza como um processo econômico e um
poderoso instrumento de inclusão social, bem como formação de renda. No entanto, a
pouca legislação existente que a regulariza, torna as relações de trabalho desiguais entre
a prestadora de serviço, o trabalhador temporário, e a empresa tomadora dos serviços,
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resultando na ilegalidade e na falta da boa-fé objetiva na relação de emprego.
Entretanto, mesmo diante da inexistência de fraude, a empresa tomadora de serviços se
obriga subsidiariamente a responder pelos prejuízos do empregado vinculado à empresa
prestadora.
Não devemos esquecer um dos poucos instrumentos de regulação da
terceirização expressa-se na súmula 331 do TST, que considera a legalidade da
terceirização de mão-de-obra, desde que esta não atinja a atividade-fim da empresa.
Apesar da legislação ordinária atual regulamentar apenas os serviços de vigilância e o
trabalho temporário, elas possuem interesse comum de evitar a precarização do
trabalho, a dispersão dos trabalhadores em função da desconcentração produtiva, o
enfraquecimento dos sindicatos, a informalização das relações trabalhistas e o
desemprego.
Em outras palavras, a terceirização é válida mediante forma lícita, isto é, apenas
em atividade-meio das empresas, ou quando regulamentadas por lei (ex.: vigilantes).
Tudo em prol da segurança dos princípios gerais do Direito do Trabalho, com proteção
ao trabalhador. Em face disso, temos também o importante papel dos sindicatos das
categorias, que junto ao Poder Legislativo regulamentam e equilibram a terceirização
dos serviços, sem, contudo, limitar direitos fundamentais dos trabalhadores, coibindo
abusos na ausência de regulamentação especifica para utilizar a terceirização na sua
forma lícita.
Nesse sentido, a primazia da realidade no Direito Trabalhista vem a aumentar a
confiança entre os entes da relação de terceirização, uma vez que assegura de forma
mais rígida e legal as obrigações e deveres a todos os envolvidos, assegurando a
dignidade da pessoa humana, a partir da interpretação razoável dos fatos e documentos,
seguindo basicamente, os entendimentos jurisprudenciais, bem como a súmula nº 331
do TST.
Valendo ainda ressaltar, neste artigo, que não são todas as atividades-meio que
podem ser terceirizadas, mas somente aquelas em que inexistirem a pessoalidade e a
subordinação direta.
Por fim, é de certo afirmar também que a existência de uma legislação específica
que trate o tema da terceirização e que priorize os direitos fundamentais do trabalhador
dando manutenção de nível de emprego, bem como delimitando as atividades-fim e
atividades-meio, realizando a fixação de piso salarial por função, aumentando a
representação sindical, assim como o controle das fraudes e a imposição de barreiras ao
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OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio
rebaixamento das condições de trabalho, poderia dinamizar o setor de serviços sem
perda das garantias constitucionais trabalhistas.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014.
A Inserção de Autistas no Mercado de Trabalho Brasileiro
The Autistic Insert in Brazilian Work Market
Ana Clara Lopes Salgado1
Resumo:
O presente artigo almeja uma análise sobre as condições que as pessoas com o
transtorno do espectro autista apresentam para uma efetiva ingressão no mercado de
trabalho brasileiro. Tem como escopo, primeiramente, a compreensão do que seja uma
pessoa diagnosticada com o transtorno, suas características e aptidões da infância até a
fase adulta. Somado a isto, discute-se a denominação destes ao considerá-los como
pessoas capazes, relativamente incapazes ou absolutamente incapazes. Ademais, propõe
abordar como a legislação protege o direito à inserção ao mercado de trabalho e,
consequentemente, como os contratos abordam esses direitos previstos na lei 12.764/12.
Utilizou-se como modelo a ser observado casos em que multinacionais empregam a
mão de obra de pessoas com o transtorno do espectro autista, adequando-as diante de
suas principais características. A metodologia atribuída ao presente trabalho valeu-se de
fontes estatísticas das quais apresentam a realidade que se depara tais pessoas no
universo laboral: poucos são aqueles emergidos no âmbito do trabalho. Nesta esteira,
apurou-se que não existem dados quaisquer relativo aos autistas no mercado trabalhista.
Sendo assim, o objetivo que o presente artigo científico vislumbra é conseguir uma
discussão que fomente a necessidade de melhores condições para que o autista consiga
ingressar no mercado de trabalho e, por meio deste, consiga melhores condições de
vida. A Constituiçãoda República assegura, em seu artigo 5º, inciso XIII, o livre
exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão que, contudo, não se percebe
aplicação plena de tal dispositivo, haja vista que o presente estudo se incumbiu em
suscitar tal realidade de modo expositivo, crítico e elucidativo. Diante do exposto, este
trabalho científico almeja constatar que os autistas podem desempenhar tarefas no
mercado de trabalho, de acordo com suas condições e, consequentemente, sua
capacidade civil.
Palavras-chaves: Autista. Mercado de Trabalho. Contratos de deficientes
mentais.
Abstract:
This article aims at an analysis of the conditions that people with autism
spectrum disorder requite to have an effective integration into the Brazilian labor
market. Its scope includes, primarily, understanding what a person is diagnosed with
concerning the disorder, their characteristics and skills from childhood to adulthood. In
addition to this, we discuss the designation of those that are considered capable people,
relatively incapable, or absolutely incapable. Moreover, the legislation proposes to
protect the right to integration into the labor market and, consequently, the contracts
address these rights under the law 12.764/12. This law was used as a model where
multinationals that employ people with autistic spectrum disorder, adjusting the front of
its main features to be observed. The methodology assigned to this study drew on data
sources, which have faced the reality that these people face in the working world: there
are few that emerged in the work. On this track, it was found that there is not any data
concerning autism in the labor market. Thus, the objective that the present research
paper envisions is to get a discussion that fosters the need for better conditions for
1
Graduanda do curso de Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
421 | A l e t h e s
SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas
enabling people with autism to enter the labor market and, through this, get better living
conditions. The Constitution provides, in Article 5, paragraph XIII, the free exercise of
any work, occupation or profession which, however, do not realize full implementation
of such a device, given that this study undertook to bring about such a reality of
expository mode, critical and explanatory. Given the above, this scientific work aims to
observe that people with autism can perform tasks in the job market, according to their
conditions and, consequently, their civil capacity.
Keywords: Autistic. Labour Market. Agreements for the mentally disabled.
Recebido em: 28 de outubro de 2014
Aceito em: 2 de fevereiro de 2015
422 | A l e t h e s
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014.
1 – Introdução
No presente artigo almeja-se desmistificar um estigma quanto ao Transtorno do
Espectro Autista (TEA): se o autista é capaz de exercer uma profissão, tendo em vista
sua notável limitação no desenvolvimento social, mental, dentre outras evidencias que
variam de caso a caso. A pesquisa pretende debater se tal situação compromete
plenamente o desempenho de todas suas funções laborais.
Par tanto, necessitar-se-á atribuir ao presente estudo um viés interdisciplinar a
fim de se compreender as implicações socioculturais a despeito do objeto em estudo.
Por esta razão, se fará necessário o viés sociológico, assim como o filosófico,
fomentando ao temário o embate dentre o que se nota da percepção dos interesses
privados dos empreendedores, em face ao direito público, no que diz respeito aos
ditames legais elucidados pela Carta Magna de 1988. Na tentativa de, juntamente,
desenvolver um raciocínio indutivo almejando alcançar uma pesquisa multidisciplinar.
A ideia vem de uma carência da expectativa de uma vida digna e independente
para aqueles com o dito transtorno psicológico. Ausência advinda da pouca informação
acerca das características dos autistas, o que impossibilitou oprogresso de práticas que
desenvolvessem suas habilidadesmentais. E, consequentemente,dificulta que eles
ingressem efetivamente no mercado de trabalho.
Sendo assim, observa-se que o tema proposto abrange uma pluralidade de
percepções, conflito de interesses, à luz do diploma legal, e especialmente, uma análise
da compreensão humana, isto é, se de fato a condição de autista apresenta óbice ao
exercício do trabalho ou se trata de mais uma classe na sociedade marginalizada e sem
qualquer representatividade política.
2 - O que é autismo?
Ao estudar o autismo nota-se que tal terminologia é de caráter geral, podendo-se
classificar como um vocábulo polissêmico. Isto se dá em razão do fato de tal termo
denominar uma série de transtornos do desenvolvimento do cérebro, relacionado
principalmente às habilidades sociais e da comunicação, conhecido como Transtornos
do Espectro Autista (TEA).
423 | A l e t h e s
SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas
De acordo com a AMA, Associação de Amigos do Autista, que é também a
primeira associação de autistas no Brasil, um histórico do que vem a ser a definição do
autista, porém ainda incompleta, mas precisa no âmbito acadêmico e cientifico é:
Embora inúmeras pesquisas ainda venham sendo desenvolvidas para
definirmos o que seja o autismo, desde a primeira descrição feita por Kanner
em 1943 existe um consenso em torno do entendimento de que o que
caracteriza o autismo são aspectos observáveis que indicam déficits na
comunicação e na interação social, além de comportamentos repetitivos e
áreas restritas de interesse. Essas características estão presentes antes dos 3
anos de idade, e atingem 0,6% da população, sendo quatro vezes mais
comuns
em
meninos
do
que
em
meninas.
A noção de espectro do autismo foi descrita por LornaWing em 1988, e
sugere que as características do autismo variam de acordo com o
desenvolvimento cognitivo; assim, em um extremo temos os quadros de
autismo associados à deficiência intelectual grave, sem o desenvolvimento da
linguagem, com padrões repetitivos simples e bem marcados de
comportamento e déficit importante na interação social, e no extremo oposto,
quadros de autismo, chamados de Síndrome de Asperger, sem deficiência
intelectual, sem atraso significativo na linguagem, com interação social
peculiar e bizarra, e sem movimentos repetitivos tão evidentes.
(ASSOCIAÇÃO DE AMIGOS DO AUTISTA, 2014).
Além da explicação acima da AMA, pode-se mensurar, como leciona Vera
Stumm (2014), que o autismo é uma síndrome e, como qualquer outra, não tem cura,
apesar do quadro ser modificado a medida que a pessoa envelhece. O que facilita o lidar
no dia a dia são os medicamentos e as terapias comportamentais que amenizam os
sintomas.
Ainda na tentativa de melhor descrever o autismo:
Uma síndrome presente desde o nascimento ou que começa quase sempre
durante os trinta primeiros meses. Caracterizando-se por respostas anormais a
estímulos auditivos ou visuais, e por problemas graves quanto à compreensão
da linguagem falada. A fala custa aparecer e, quando isto acontece, nota-se
ecolalia, uso inadequado dos pronomes, estrutura gramatical, uma
incapacidade na utilização social, tanto da linguagem verbal quanto corpórea
(ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 1998).
As características supracitadas podem variar diante do tipo de autismo
apresentado. Entre os tipos se têm o autismo clássico (variando de leve ou de alto
funcionamento a grave ou de baixo funcionamento), a síndrome de asperger, o
transtorno invasivo do desenvolvimento sem outras especificações (PDD-NOS), o
transtorno de rettrespostas às perguntas mais frequentes sobre o DSM-V e, por fim, o
transtorno desintegrativo da infância.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014.
Em linhas gerais, autismo clássico é caracterizado por movimentos repetitivos,
problemas com a comunicação e a interação social. Quando variado, o autismo clássico
de leve ou alto funcionamento tem o QI na sua faixa normal, podendo exibir nenhum do
comportamento compulsivo ou autodestrutivo. Já o grave ou de baixo funcionamento, é
um caso mais grave da síndrome, os sintomas são profundos e envolvem déficits graves
em habilidades sociais e movimentos repetitivos estereotipados, além de geralmente
serem associados com um QI abaixo da média. A síndrome de asperger tem algumas
características distintas, como excepcionais habilidades verbais, problemas com
habilidades sociais, obsessivo interesses especiais, diferentemente do autismo clássico,
não implica em nenhuma dificuldade na linguagem. O transtorno invasivo do
desenvolvimento sem outras especificações (PDD-NOS) é caracterizado por alguns
sintomas do autismo clássico, pois podem lutar com a linguagem ou habilidades sociais
ou comportamentos repetitivos, não em todas. O PDD-NOS é diferente da síndrome de
asperger quando podem ter atrasos na linguagem. O transtorno de rettrespostas às
perguntas mais frequentes sobre o DSM-5, também conhecido como transtorno de rett,
não é representado pelas mesmas dificuldades que o autismo clássico enfrenta, as
dificuldades podem variar entre a deterioração de habilidades motoras e problemas
posturais. Por último, o transtorno desintegrativo da infância é caracterizado pela perda
da comunicação e de habilidades sociais entre as idades de dois e quatro anos, este
transtorno se assemelha com o autismo regressivo.
Na adolescência e na fase adulta, o Dr. Drauzio Varella (2013), explica que: “as
manifestações do autismo dependem de como as pessoas conseguiram aprender as
regras sociais e desenvolver comportamentos que favoreceram sua adaptação e autosuficiência.” A partir da supracitada é perceptível o quão relativo são as capacidades de
um autista na fase adulta. Se tratada apropriadamente desde a infância, um adulto pode
sim ter uma vida independente e ser capaz de desenvolver atividades laborais.
Dante de todas as características e reais possibilidades discorridas neste tópico, a
pesquisa almeja desmistificar a ideia de que todo autista, por ser deficiente conforme o
parágrafo segundo do artigo primeiro da lei 12.764, de dezembro de 2012, se encontra
impossibilitado de ter uma vida autônoma e exercer uma profissão.
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SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas
2.1 – Capacidade civil do autista
Importante observar qual é o entendimento da doutrina à luz da capacidade civil
do autista. Isto porque tal identificação é fator determinante para responder se esse
deficiente, diante do conceito legal, seria apto a desempenhar função laboral, se tem a
capacidade civil mínima, a fim de responder aos seus atos, ou se entendem que ele seja
um incapaz, estando inapto de plano para tal desempenho.
Para iniciar esse debate é necessário esclarecer o que seria a capacidade civil.
César Fiuza bem esclarece esse conceito quando narra: “Capacidade é a aptidão inerente
a cada pessoa para que possa ser sujeito ativo e passivo de direitos e obrigações.” (2013,
p.132) .
Ademais, a capacidade gera outras classificações podendo ser tanto a de direito
como a de fato. A primeira diz respeito àquela que ao nascermos com vida, respirarmos,
adquirimos. Nesta esteira, segundo Fiuza (2013, p. 135), se todos possuem capacidade
de direito, nem todos podem exercer, de fato, os atos da vida civil. Assim, acapacidade
de fato é “o poder efetivo que nos capacita para a prática plena dos atos da vida civil”
(FIUZA, 2013, p.133). Em regra, os autistas não teriam essa capacidade de fato por
serem enquadrados como deficientes no âmbito legal, como rege o parágrafo segundo
do artigo primeiro da lei 12.764, de dezembro de 2012. No entanto, há discussões sobre
exceções neste âmbito devido aexistência de tipos diferentes do Transtorno do Espectro
Autista, como explicado no tópico anterior.
Antes de debater em qual seria a classificação que se adeque o autista,
importante entender as ramificações que traz o conceito da capacidade de fato. Nos
deparamos com as classificações de absolutamente incapazes, relativamente incapazes e
capazes. O primeiro é denominado quando a pessoa é menor de 16 anos, ou também as
que por alguma enfermidade ou deficiência mental não tiveram o discernimento
necessário para a prática dos atos da vida civil, ou ainda aqueles que, mesmo
transitoriamente, não podem exprimir sua vontade. Os relativamente incapazes são
aqueles maiores de 16 anos, no entanto menores de 18 anos, além dos que tem o
discernimento reduzido e os pródigos (aquelas que não têm controle financeiro). Por
fim, os capazes são os maiores de 18 anos e os emancipados, ou seja, possuem a
capacidade de direito e a de fato.
A discussão neste tópico será a classificação que o autista se enquadra na
sociedade civil.O autistaé considerado absolutamente incapaz pelo fato de no âmbito
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014.
legal ser deficiente, o que pode ser duvidoso em alguns casos. Alguns autistas tem
discernimento, ainda que pouco, e conseguem levar uma vida autônoma.
Em referência ao tópico anterior, por serclassificado como deficiente, na forma
da lei, o autista não tem necessariamente sua capacidade civil violada. Como
supracitado, existem vários tipos de autismo. Uma das síndromes consideradas mais
leves, dentro do Transtorno do Espectro Autista, é a Síndrome de Asperger, em que
muitas vezes, a pessoa se torna um adulto plenamente capaz de conduzir sua vida civil.
Em casos como dessa síndrome não é necessário (na maioria das vezes) a interdição da
pessoa ao completar seus 18 anos. Lembrando que a interdição é, nas palavras da
defensora pública do Estado de São Paulo, Renata Tibyriçá:
Um processo judicial que tem que ser proposto via um advogado ou defensor
público, caso não tenha condições de pagar um advogado, e nesse processo
vai ser verificada a capacidade dele em entender os atos da vida civil, ou seja,
se ele tem condições de contratar, de cuidar da vida dele sozinho ou se ele
depende de alguém, aí vai ser definido um curador para ele, que pode ser o
pai ou a mãe, e a partir disso ele é considerado incapaz total ou parcialmente.
(TIBYRIÇÁ, 2011).
Assim, diferentemente da Síndrome de Asperger, existem quadros que, como
bem definiu LomaWing (1988), variam de acordo com o desenvolvimento cognitivo.
Em outro extremo, portanto, há casos de autismo associados à deficiência intelectual
grave, sem o desenvolvimento da linguagem, com padrões repetitivos simples e déficit
importante na interação social. Nesses casos énecessário a interdição, sendo o resultado
do mesmo analisado entre a incapacidade relativa e a absoluta.
Portanto, tendo em vista toda a relação acima levantada, não é possível
classificar o autista em um tipo de capacidade civil só pelo fato deste ser considerado
deficiente. Em cada caso é necessário levar em conta vários fatores para se estabelecer o
nível de discernimento que está pessoa alcançou ao longo da vida. Esse nível de
discernimento é variado por diversos aspectos. Entre esses aspectos há o tipo de
deficiência, quando foi descoberta essa deficiência, quais foram os tratamentos que essa
pessoa teve ao longo da vida para o desenvolvimento de suas capacidades. Enfim, a
capacidade civil vai depender do prognóstico alcançado no seu desenvolvimento
mental, variando de autista para autista.
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SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas
3 –O direito de trabalhar
Em uma análise dos tópicos anteriores, pode-se presumir que o autista, quando
se enquadra na possibilidade supracitada de ser capaz ou relativamente incapaz, pode
exercer um trabalho, basta que ele seja apto para tal.
A lei 12.764/12, artigo 3º, inciso IV, alínea “c”, rege sobre o direito do autista a
ter acesso ao mercado de trabalho. Esse direito, apesar de estar explícito na lei, encontra
dificuldades para ser concretizado quando dispusermos sobre os contratos e a relação
efetiva que eles têm sob as necessidades do autista.
3.1 – Os contratos de trabalho
No artigo 442 da Consolidação das Leis de Trabalho (BRASIL, 1943), está
presente o conceito de contrato de trabalho que seria “o acordo tácito ou expresso
correspondente à relação de emprego”. No entanto, esse conceito sofre fortes críticas
pela doutrina, como bem explica Alice Monteiro de Barros (2011, p. 235), “sob o
argumento de que o contrato não corresponde à relação de emprego, mas cria essa
relação jurídica”, sendo esta o vínculo que impõe a subordinação do prestador de
serviços ao empregador, detentor do poder diretivo.
Para fins didáticos, Alice de Barros propõe um novo conceito, vislumbra o
contrato de trabalho como:
um acordo expresso (escrito ou verbal) ou tácito firmado entre uma pessoa
física (empregado) e outra pessoa física, jurídica ou entidade (empregador),
por meio do qual o primeiro se compromete a executar, pessoalmente, em
favor do segundo um serviço de natureza não eventual, mediante, salário e
subordinação jurídica.(BARROS, 2011, p. 236 - 237).
Os contratos de trabalho são classificados com uma série de denominações,
podendo ser quanto à forma de celebração, quanto ao consentimento, quanto à duração,
quanto ao fim, entre outros.
Além da classificação, os contratos também possuem características específicas.
O enquadramento no campo do direito privado é uma dessas características, como
também, o caráter sinalagmático empregado, por respeitar o princípio da autonomia da
vontade, e a reciprocidade das partes. Além dessas, a prestação de serviço não é
concretizada por um ato singular, sendo chamada de trato sucessivo. O acordo do
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014.
contrato pode dispensar formalidades, basta o consentimento para sua eficácia. Existe a
característica de o contrato ser “intuitu personae” por ele ser personalíssimo, não
podendo ser transferido para outra pessoa. Há, também, a onerosidade. No entanto,
apesar de todos esses aspectos característicos do contrato de trabalho há um que se
sobrepõe, a subordinação jurídica.
Para um contrato de trabalho se efetivar ele precisa preencher alguns requisitos.
Esses requisitos são a capacidade das partes, licitude do objeto e o consentimento. Para
alguns contratos de trabalhos especiais, ainda é exigido o requisito da forma prescrita.
3.2 – Contrato de trabalho para deficientes
Para suprir um direito fundamental de uma vida digna e justa a todos, com
igualdade de direitos e oportunidades, o artigo 93, da lei nº 8.213/91, prevê a reserva de
cargos (conhecida como cota) para trabalhadores com deficiência em empresas com
mais de cem empregados.
Maria Aparecida Gugel (2011), subprocuradora geral do Ministério Público do
Trabalho, explica algumas peculiaridades que a lei aludida requer para a sua efetivação.
A primeira menciona a quantidade de empregos que cada empresa deve oferecer tendo
em vista o número de funcionários total, de todos os estabelecimentos, atendendo,
assim, a oferta de cada localidade.
Por conseguinte, de extrema relevância, o empregador deve requisitar que seu
funcionário, com determinada deficiência,comprovesua qualificação profissional para
que o cargo seja ocupado, a fim dedesempenhar sua função de modo produtivo. Isto
porque, como cediço, o portador do espectro autista apresenta certas limitações, porém
também o é possuidor de qualidades que o habilite a desempenhar funções àquele
trabalho. Assim, otimizando seu potencial. Nesta esteira, insta salientar que “fere a
ordem constitucional e legal as exigências de ‘aptidão plena’ para o exercício de cargos
ou funções” (GUGEL, 2011).
Por outro lado, no caso em que o funcionário se encontrar privado de atender a
todas asexigências das atividades do cargo ou da função tendo por razão sua deficiência,
na medida do possível, serão adaptadas, tendo por respaldo os elementos assistidos do
Decreto nº 3.298/99: os procedimentos especiais que são horários flexíveis, ambiente de
trabalho adaptado às suas especificidades, jornada variável, proporcionalidade de
vencimentos ou salário, entre outros; e as ajudas técnicas que são elementos para
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SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas
compensar as limitações mentais, motoras ou sensoriais para permitir que as barreiras
limitadoras sejam superadas.
Outrafeição a se analisar implica no fato da demissão só ocorrer se for contratado
outro trabalhador para o mesmo cargo com deficiência semelhante, segundo a redação
do art. 93, § 1º, da Lei n° 8.213/91.
Paralelamente a isso, no que diz respeito ao ingresso do trabalhador com
deficiências na inserção ao mercado de trabalho no regime especial, o primeiro aspectoé
por meio da colocação seletiva, que depende da adoção de procedimentos especiais para
sua concretização, sendo permitido às entidades beneficentes de assistência social o
apoio especial na inserção da pessoa com deficiência; a segunda forma é a promoção do
trabalho por conta própria. Somado a isto, a título de complementação, a “cooperativa
social, nos termos da Lei nº 9.867, de 10/11/99, revela-se um meio eficaz de inserção
laboral da pessoa com deficiência porque, assume a existência de pessoas em
desvantagem econômica e social” (GUGEL, 2011).
Ademais, as entidades beneficentes de assistência social podem fazer convênios
com as empresas e com a administração pública, de modo que ampare os direitos do
trabalhador comdeficiência, sendo que o número desses contratados pelas empresas não
contarão como cota, conforme observa-se na Lei de nº 8.666/93, assim como no§§ 1º e
7º do Art. 35 do Decreto de nº 3.298/99.
As entidades beneficentes de assistência social ainda podem de acordo com o Art.
2º da Lei nº 7.853/89, que estão regulamentadas no Decreto nº 3.298/99, Art. 35 §§4º e
5º, criar oficinas e, assim, transformá-los em aprendizes, com o intuito de desenvolver
programas de habilitação profissional para adultos e adolescentes que tenham alguma
deficiência. Desse modogarantindouma independência econômica e pessoal relativo aos
ganhos fruto de seu trabalho.As oficinas, também, tem por finalidade a integração social
por meio de atividades de adaptação e capacitação para essas pessoas que, tendo em
vista o alto grau de deficiência, não encontram formas de desempenhar atividades
laborais que o mercado exige. A lei sobredita, em seu Art. 428, §§ 5º e 6º, não exige a
comprovação de escolaridade e não define idade máxima para o aprendiz. As empresas
e seus estabelecimentos são obrigados a empregar cinco por cento, no mínimo, e quinze
por cento, no máximo, de aprendizes sobre o número existente em cada
estabelecimento. Para tanto, são colocados algumas exigências de forma a garantir os
direitos do aprendiz com deficiência:
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014.
O contrato de aprendizagem tem natureza especial e para ter validade deve
obedecer aos seguintes requisitos: deve ser ajustado por escrito (Art. 428,
caput, CLT); com prazo determinado, não superior a dois anos (Art. 428, §
3º, CLT); o aprendiz deve estar inscrito em programa de aprendizagem do
Sistema Nacional de Aprendizagem; de escolas técnicas de educação; ou
entidades sem fins lucrativos (Art. 428, caput, § 1º; 430, I e II, CLT); deve
ser anotado na Carteira de Trabalho e Previdência Social (Art. 428, § 1º,
CLT); o aprendiz deve comprovar a matrícula e frequência escola, do ensino
fundamental e obrigatório (Art. 428, § 1º, CLT); alíquota de depósito de 2%
ao FGTS (15, § 7º, Lei nº 8.036, de 11/5/90); deve ser ajustado o pagamento
de salário mínimo hora, salvo condição mais favorável (Art. 428, § 2º, CLT);
o tempo de jornada diária não poderá ser superior a seis horas, sendo
expressamente vedada a prorrogação e a compensação de jornada (Art. 432,
CLT); a jornada somente poderá ser de oito horas diárias, incluídas as
atividades teóricas e práticas, se o aprendiz completou o ensino fundamental
(Art. 432, § 1º, CLT); a conclusão do curso de aprendizagem, com
comprovado aproveitamento, dá direito ao certificado de qualificação
profissional; as férias devem ser concedidas ao aprendiz de uma só vez (Art.
134, § 2º, CLT), coincidentes com uma das férias escolares (Art. 136, §2º,
CLT); é devido ao aprendiz o repouso semanal remunerado (Lei º 605/49),
décimo terceiro salário, aviso prévio (Art. 487, CLT);”(GUGEL, 2011).
Ademais, o amparo continua quando o Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE) disponibiliza em seu site (MINISTÉRIO DO TRABALHO, 2014) respostas para
as dúvidas mais frequentes sobre o contrato trabalhista para deficientes.
Ao contrário do que muitos imaginam o contrato de trabalho para deficientes
não é muito diferente do contrato padrão, tendo em vista que o seu maior objetivo é
disponibilizar um mercado igualitário. O salário, por exemplo, deve ser pago no valor
igual aos empregados que exercem a mesma função que o deficiente, como bem explica
o artigo 7º, incisos XXX e XXXI, da Constituição Federal de 1988 e o artigo 461 da
CLT. Já a jornada de trabalho, como regido pelo artigo 35, § 2º, do Decreto nº
3.298/99,pode ser mais flexível e reduzida, quando for necessário, em razão do seu grau
de deficiência, o salário, portanto, pode ser proporcional a esse horário.
Por outro lado, muitos empregadores encontram dificuldades quando precisam
achar portadores de deficiência para preencher cargos nas empresas. No entanto, o
Ministério do Trabalho e Emprego (2014), esclarece em seu site esse problema de modo
a informar que os Postos do Sistema Nacional de Empregos (SINE) dispõem cadastros
de candidatos com deficiências que almejam ingressar no mercado de trabalho, assim
como as escolas e entidades representativas das pessoas com deficiência também
contém cadastros de seus associados. Além disso, o SICORDE (Sistema de Informações
da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência) contém
relações com o nome de instituições que agem no amparo à pessoa portadora de
deficiência.
431 | A l e t h e s
SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas
Outra prática comum, no entanto discriminatória, é a empresa concentrar-se na
contratação de um tipo específico de deficiente. A legislação, quando ampara na
contratação de deficientes objetiva garantir o acesso ao mercado de trabalho por todos
os tipos de deficientes, como é bem estruturado no artigo 7º, XXXI, da Constituição
Federal assim como vista na redação do artigo 4º da Recomendação nº 168 da OIT
(Organização Internacional do Trabalho).
É necessário, ainda, explanarsobre o que são terminantemente proibidos em
contratos trabalhistas para deficientes.Segundo Maria Aparecida Gugel (2011),
subprocuradora geral do Ministério Público do Trabalho,enaltece que: a questão da
proporção de jornada de trabalho exaustiva, de acordo ao que rege o art. 432, CLT; a
jornada de trabalho em horário noturno, nos termos do art. 404, da CLT; o exercício
trabalhista em ambientes insalubres, perigosos e ofensivos à moral do adolescente ou
que venham a prejudicar seu desenvolvimento psíquico e físico, tão pouco quanto às
atividades árduas que exijam tarefas demasiadamente exaustivas, ambos à luz da
Convenção 182/OIT e, por fim, diante de atividades em locais que são de difícil acesso,
salvo se disponibilizado gratuitamente o transporte público em horários compatíveis
com a jornada de trabalho.
Portanto, apesar da resistência colocada pela sociedade ao portador do Espectro
Autista ingressar no mercado de trabalho, este encontra amparo na legislação que
possibilita sua efetivação. Diante disto, há uma confirmação da capacidade do cujo
portador do transtorno psicológico.
3.3– O desenvolvimento histórico da desigualdade social
Tão importante como a criação de políticas públicas que possibilitem uma
igualdade no mercado de trabalho para deficientes, é saber como e quando elas foram
criadas, assim como o que gerou essa necessidade.
O direito ao trabalho está expressamente prevista na Constituição da República
em seu artigo 6º. Nela é coibido qualquer tipo de discriminação de salários, escolha do
profissional, entre outras. Portanto, a de se salientar que a carência de qualquer desses
requisitos na contratação de um deficiente, seja ele físico ou mental, vai contra os
preceitos da ordem maior vigente, a Constituição.
Conforme os valores previstos na redação do artigo citado, nota-se que estes
fundamentam o Estado Democráticode Direito (artigo 1º, III e IV da Constituição),
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014.
cumprindo, assim, o objetivo da Republica de promover a possibilidade de trabalho a
todos, sem qualquer tipo de discriminação (artigo 3º, IV da Constituição).
Pode-se dizer que o marco da origem de igualdade entre os indivíduos dar-se-á
mediante a Declaração Universaldos Direitos do Homem (1948). Mas, o ápice desse
direito, ocorreu mesmo nos anos 70 sob pressão dos movimentos sociais mundiais,
tendo em vista a Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1959, a Organização
Internacional do Trabalho (OIT), um organismo que integra a ONU, editou uma
convenção mostrando explicitamente para a sociedade mundial os preconceitos e as
discriminações no mercado de trabalho. Sobre esta, se tem pela Convenção nº 111/OIT
o que seria discriminação no âmbito do emprego e profissão:
Toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião,
opinião política, ascendência nacional ou origem social que tenha por efeito
destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria
de emprego ou profissão;
Qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito
destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de
emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Membro interessado
depois de consultas as organizações representativas de empregadores e
trabalhadores, quando estas existam e outros organismos adequados (Artigo 1
- 1. a, b).(ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO apud
GUGEL, 2011).
A
Convenção
mencionada
objetivou
que
os
Estados
Membros
se
comprometessem a formular e aplicar políticas capazes de promover a igualdade no que
se almeja em matéria de emprego e profissão. Alémda consequente substituição de
formas legislativas e suas práticas abusivas em relação ao que prega a referida política.
Além desta, há a convenção nº 159/OIT que exprime sobre a reabilitação
profissional e emprego de pessoas deficientes. Nela, se objetiva que a pessoa portadora
obtenha e conserve um emprego digno. Sendo assim, compromete os Estados Membros
a estabelecer políticas para a reabilitação profissional.
No entanto, a mais importante das convenções é a conhecida como a Convenção
de Guatemala, que ocorreu em 1999, também chamada de Convenção Interamericana,
cuja relevância foi em contribuir para a diminuição de todas as formas de discriminação
contra as pessoas portadoras de deficiência. Tal convenção indicou o termo
discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência como:
Toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência,
antecedente de deficiência, consequência de deficiência anterior ou percepção
de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de
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SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas
impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas
portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades
fundamentais.(CONVENÇÃO DA GUATEMALA, 1999).
As ações propostas mundialmente foram atitudes que levaram a construir o
princípio do direito à igualdade. Dessas, seguiram leis como a de nº 7.853/89 que
disciplina sobre a inserção da pessoa com deficiência indicando a necessidade de
adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado. Como também a
que passa a prever a reserva de vagas para candidatos com deficiência em concursos
públicos, com o número 8.112/90. E, por fim, a Lei nº 8.213/91 dispondo sobre a
reserva de postos de trabalho para pessoa com deficiência em empresas com cem ou
mais empregados, seguida do Decreto nº 3.298/99 que regulamenta a Lei nº 7.853/89.
Desse modo, a desigualdade que permeava há um século atrás encontrou forma de
ser reduzida e construir um espaço mais disciplinado a atender as reais necessidades do
deficiente.
4 – Perspectiva atual do autista no mercado de trabalho
A partir de 2012, quando o autista passou a ser denominado como deficiente,
possibilitou a visualização de informações de sua inserção no mercado de trabalho. O
que foi de suma importância para a identificação do comportamento social à luz da
receptividade desta específica classe de deficientes no nicho laboral.
Através de dados estatísticos possibilita-se a realização de estudos a fim da
compreensão da dinâmica social a despeito do objeto em atenção. No caso da pessoa
autista, nota-se que sua inserção no mercado de trabalho está muito aquém do que se
poderia entender como satisfatório. Isto porque, segundo a Organização Mundial da
Saúde (2011), as deficiências de tipo mental, onde se enquadra o autismo, são as que
mais encontram dificuldade na inserção social, consequentemente, na inserção do meio
de trabalho. Os números comprovam que, em 2011, mais de 325 mil deficientes
estavam inseridos no mercado de trabalho do Brasil. Desse número, apenas 5,78%
tinham algum tipo de deficiência mental ou intelectual, que é onde se insere o autismo.
Diante desta realidade é notório que apesar de leis que amparem o deficiente,
neste caso o autista, observa-se a ineficácia da norma, em razão de sua inaplicabilidade,
quando se deseja de fato inseri-los no mercado de trabalho. Assim, há uma necessidade
de ampará-los não somente através de inserção de leis, como também em apresentar
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014.
capacitação, a fim de melhor desenvolver suas habilidades, que existem, porém não são
exercitadas e, desse modo, apresentadas.
Isto porque o autista, na maioria dos seus tipos, ao ingressar na vida escolar
encontra barreiras na absorção do conhecimento, o que acarreta seriíssimas sequelas à
sua formação acadêmica. Tal situação se agrava em razão do despreparo do docente em
não possuir a didática necessária para melhor atende-lo.
Apesar dos dados muitas vezes demonstrarem que o número de autistas
representantes da classe trabalhista é insignificante, há exemplos que demonstram que
essa realidade para o autista pode estar mais presente do que pareça.
A revista “Autismo – Informação gerando ação” (2013), trouxe uma reportagem
com a norte-americana, TempleGrandin, que foi diagnosticada com autismo e conseguiu
seguir uma carreira de trabalho.Grandin, é bacharel pela Franklin Pierce College,
mestrado em Ciência Animal na Universidade Estadual do Arizona, Ph.D. em Ciência
Animal pela Universidade de Illinois e tornou-se uma prova de que as características do
autismo podem ser modificadas e controladas.
Grandin, em sua entrevista para a revista, afirma que, todos os autistas,
independente do nível e tipo do espectro, devem adquirir habilidades profissionais.
Além disso, ela relata o quanto é importante se especializar em suas aptidões, sejam
elas, fotografia, computador, culinária; oimportante é desenvolvê-las. No caso dela, por
exemplo, a carreira científica acadêmica era difícil, mas a tendência dela autista na
fixação em um assunto possibilitou que ela se mantivesse firme.
Para finalizar a entrevista, Temple Grandin, exemplificou como pode ser
trabalhada, em favor do empregador, uma pessoa com o autismo:
Para contribuir com a inclusão, precisamos mostrar o que as pessoas com
autismo são realmente boas em fazer. Uma habilidade é a memória incrível.
Muitos indivíduos do espectro autista seriam bons em lojas do varejo ou em
armazéns, porque eles podem se lembrar e ter informações de todos os
produtos. Em uma cidade, um homem autista memorizou a posição de toda a
tubulação sob as ruas. Ele poderia mostrar as equipes de construção o local
correto para escavar para evitar quebrar os canos. (GRANDIN, 2013).
Desta forma, percebe-se uma notória discrepância entre a legislação presente e
sua efetividade na sociedade, sendo perceptivo que o problema vai muito além do
jurídico, não sendo esta a solução. Há uma falta de oportunidades que impossibilita o
autista de ampliar suas habilidades, limitando seu desenvolvimento pessoal e,
435 | A l e t h e s
SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas
consequentemente, o profissional.Para tal situação necessitando-se, portanto, de
elaboração e efetivação de políticas públicas em atenção a essa situação.
5 – Conclusão
Diante do que se pôde observar com o discorrer do presente artigo, há uma nítida
discricionariedade entre leis existentes e a sua aplicação, principalmente quando o
assunto é a inserção dos autistas no mercado de trabalho.
Há um problema em que se baseia no porque essa barreira entre efetivar pessoas
com deficiência mental, em especial com o Transtorno do Espectro Autista, no mercado
de trabalho brasileiro, se há leis que almejam facilitar a entrada dos mesmos.
Por um lado, pode-se dizer que as leis não são eficientes e por outro, que o
Brasil não disponibiliza recursos que tornem o autista hábil para exercer uma profissão.
Há a possibilidade sim de haver lacunas na lei que dificultem o engajamento dos
mesmos, no entanto, o que é mais perceptível é que deficientes físicos, que se
enquadrem igualmente nas leis mencionadas ao discorrer do trabalho, conseguem
melhor se adaptar e exercer uma profissão. Portanto, é notório que no Brasil há um falta
de incentivo ao desenvolvimento mental de habilidades que poderiam serampliadas a
favor de um labor para aqueles que apresentam alguma deficiência de tipo mental, como
é o caso do Transtorno do Espectro Autista.
Para amenizar tal problema, deveria ser incentivada a formação de profissionais
que estivessem aptos a diagnosticar o autismo o mais rápido possível, uma vez que os
profissionais da saúde muitas vezes encontram dificuldades ao notar as características
do autismo, e consequentemente a conceber um diagnóstico preciso. Quanto mais
rápido sabido, mais cedo se inicia o tratamento na tentativa de desenvolver suas
habilidades mentais e motoras.
Além disso, é necessário que profissionais de escolas tivessem uma melhor
capacitação na tentativa de lidar sabiamente com o transmitir do conhecimento, para
que assimfossem capazes de desenvolver as habilidades dos ditos excepcionais o quanto
antes. Com métodos como esses, portanto, fomenta-se o afastamento da marginalização
daquele com o espectro autista a incensar no âmbito do trabalho e, por conseguinte, se
integrar às relações sociais.
436 | A l e t h e s
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014.
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438 | A l e t h e s
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 439-452, jul./dez., 2014.
Empresa Júnior e o desenvolvimento de habilidades e
competências na prática jurídica: O caso Colucci Consultoria Jurídica
Jr.
Junior Enterprise and the development of skills on legal practice: The case
of Colucci Consultoria Jurídica Jr.
João Paulo Corradi Ferreira1
Thaís Victoretti2
Túlio Souza Zancanelo3
Resumo:
O presente artigo tem como objetivo apresentar o desenvolvimento de
habilidades e competências a partir da experiência proporcionada ao aluno de graduação
na empresa júnior jurídica. Partindo da crítica ao ensino jurídico tradicional e da
insatisfação dos alunos graduandos com o modelo vigente, faremos uma breve
apresentação do Movimento Empresa Júnior, suas instâncias de representação e normas
pertinentes. Demonstraremos como a proposta interdisciplinar do MEJ, a estrutura e as
áreas de atuação da Colucci Consultoria Jurídica Jr. proporcionam aos seus membros o
desenvolvimento de habilidades e competências técnicas e não técnicas indispensáveis
para a formação de um operador do Direito.
Palavras-chave: Ensino Jurídico. Empresa Júnior. Inovação.Habilidades e
Competências Profissionais.
Abstract:
In this paper, we aim to present the development of professional skills within a
Junior Enterprise experience. First we will present the students dissatisfaction and
criticism towards the traditional legal education model, than we will do a briefly
explanation about the Junior Enterprise movement, its instances of representation and
laws. Finally, we will demonstrate how the Junior Enterprise movement
interdisciplinary proposal together with Colucci Consultoria Jurídica Jr. structure and
legal services provide the development of professional skills needed to a law student.
Keywords: Legal education. Junior Enterprise. Innovation. Professional Skills.
Recebido em: 31 de outubro de 2014
Aceito em: 6 de fevereiro de 2015
1
Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora
3
Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora
2
439 | P á g i n a
FERREIRA, J. P. C.; VICTORETTI, T.; ZANCANELO, T. S. Empresa Júnior.
1- Introdução
O ensino jurídico é alvo de muitas críticas na realidade atual. O curso,
especialmente na graduação, por vezes dogmático e tecnicista, é constantemente alvo de
críticas dos próprios alunos que se sentem insatisfeitos com a formação ofertada pelas
bancas universitárias. Há uma preocupação com o futuro e um sentimento de não estar
preparado para atuar. Isso se torna ainda mais latente na prática jurídica.
Contudo, é preciso fazer uma digressão histórica para compreender o atual estado do
ensino jurídico no Brasil. Antônio Alberto Machado1, em sua obra ´´Ensino jurídico e
mudança social”, nos diz:
As escolas de Direito, lembra Sérgio Adorno, foram realmente criadas para
atender às necessidades da burocracia de um Estado Nacional em
emergência. Por essa razão é que o ensino jurídico, no seu início, privilegiou
a formação política, em lugar de uma formação exclusivamente jurídica [...]
Até hoje, o ensino jurídico [...] desfrutando ainda daquela antiga dignidade de
ensino com importante componente ético-político [...]que proporciona ao
bacharel a perspectiva de carreiras atraentes e a possibilidade de assumir
postos relevantes na burocracia estatal [...] trata-se de campo do saber e do
ensino universitário que, em boa medida, ainda segue mantendo aquela velha
antiga aura de autoridade e de vinculação ao poder que lhe conferia o culto ao
Direito Romano e Canônico. (MACHADO, 2009, p. 85-86)
Considerando a célebre frase de Machado de Assis, - Brasil, o país de bacharéis
-, tem-se uma forte crítica ao modelo padrãode indivíduos com ensino superior na então
época, podendo até ser de digna comparação aos dias atuais.
O Direito era, sem dúvida, a porta de acesso à elite local. Assim, como se
observa nos discursos e aconselhamentos de Bento Cubas, pai de Brás, nas intenções de
Natividade, para um de seus filhos; e, em ´´Teoria do Medalhão``, nos dizeres e
indicações de um pai a seu jovem filho bacharel:
(...) a predestinação à vida pública e o Direito entrelaçam-se como etapa
estratégica nessa inserção, já que o principal projeto da elite brasileira era a
vida pública, carreira vinculada principalmente ao Direito, curso forjado para
melhor preparar o futuro deputado ou senador . (ARAÚJO, 2008, p. 61)
Do Brasil Império, passando pela República Velha, até os dias de hoje, as
críticas ao ensino jurídico persistem. Atualmente há um grande número de Faculdades
de Direito no Brasil. Esse crescimento se deu, principalmente, durante a década de
440 | P a g e
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 439-452, jul./dez., 2014.
1990. Entre 1996 e 2014 o aumento foi de 700%. Se em 1996 havia 160 faculdades de
direito, hoje há 1.2844. Com expansão de tamanha magnitude:
[...] não há prova mais evidente da alta lucratividade desses cursos que
atraíram os investimentos do setor privado da educação com uma voracidade
nunca antes imaginada, o que tornou quase impossível o exercício de um
controle efetivo sobre a qualidade dos cursos de direito. (MACHADO, 2009,
p. 96-97)
O diminuto índice de aprovação do XIV Exame da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) também serve como parâmetro para atestar a má-qualidade do ensino
jurídico no Brasil. Dos 110.820 inscritos nesta edição, somados aos 17.185 candidatos
inscritos para a repescagem, apenas 27.835 lograram aprovação nesta edição do exame,
o que representa 25,11% do total de candidatos inscritos.5
Nas bancas universitárias, deve-se ressaltar ainda que a prática jurídica
encontrada na maior parte das Faculdades de Direito do Brasil atua em poucas e restritas
áreas. Mais grave, muitas das Faculdades nem possuem Laboratórios ou Núcleos de
Prática, e as poucas e restritas áreas referidas, na maior parte das vezes, ocorrem na
seara do Direito de Família e Sucessório, via ações de pensão alimentícia e usucapião. A
prática fica inteiramente a cargo do aluno, que se aventura em estágios em escritórios de
advocacia e órgãos públicos, onde encontra toda a gestão pronta e somente passa a
elaborar as peças jurídicas requisitadas.
Deve-se pontuar que as experiências proporcionadas por um Núcleo de Prática,
um estágio em um escritório de advocacia ou em um órgão público são enriquecedoras e
dignas de atenção por parte do aluno ao longo de sua graduação. Contudo, não
proporcionam autonomia e não desenvolvem habilidades e competências outras, verbi
gratia, conhecimentos de gestão e empreendedorismo, necessários a formação de um
advogado completo.
Este trabalho, portanto, justifica-se pela necessidade de busca de alternativas ao
ensino tradicional, mais especificamente à prática jurídica, para o desenvolvimento de
habilidades e competências ao aluno graduando em Direito. Nesse sentido, apresentamse as empresas juniores como soluções inovadoras à problemática levantada, uma vez
que, nestas associações, os graduandos em Direito conseguem desenvolver habilidades e
competências técnicas e não técnicas a partir do desenvolvimento de projetos.
4
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-out-23/cursos-direito-aumentam-700-18-qualidadecai-oab>. Acesso em 23 de outubro de 2014.
5
Disponível em: <http://blog.portalexamedeordem.com.br/blog/2014/10/xiv-exame-de-ordem-aprovou2511-dos-candidatos-inscritos/>. Acesso em 21 de outubro de 2014.
441 | P á g i n a
FERREIRA, J. P. C.; VICTORETTI, T.; ZANCANELO, T. S. Empresa Júnior.
2- Movimento Empresa Júnior (MEJ)
A história do Movimento Empresa Júnior (MEJ) inicia-se em Paris (França), no
ano de 1967, na Ecole Supérieure dês Sciences Economiques et Commerciales
(ESSEC).
Diante do quadro de insatisfação com o ensino, que ainda possuía um viés muito
teórico, os estudantes da graduação propuseram um modelo no qual se associariam para
prestar serviços ao mercado e, com isso, por em prática o conhecimento teórico
adquirido na faculdade
A proposta encontrou receptividade no meio acadêmico e, em 1986, já existiam
mais de cem associações com tal característica na Europa. Em 1990 foi criada a
Confederação Europeia de Empresas Juniores (JADE) (BRASIL JÙNIOR, 2012).
Tal iniciativa chegou ao Brasil no final dos anos 1980. Por intermédio da
Câmara de Comércio França-Brasil, foi colocado um anúncio no jornal convocando
jovens estudantes brasileiros a fundarem empresas juniores. Assim, três cursos
atenderam ao pedido: o curso de Administração da Fundação Getúlio Vargas, conhecida
pelo nome Júnior GV, o da FAAP – Fundação Álvaro Armando Penteado e o da Escola
Politécnica da USP, todas as três empresas concebidas no ano de 1988 (OLIVEIRA).
Hoje são 14 federações representando 13 Estados brasileiros mais o Distrito
Federal, mais de 200 empresas juniores e milhares de empresários juniores, condição
que proporciona ao MEJ brasileiro o título de maior em âmbito mundial.
Em Minas Gerais, a representação das empresas juniores é feita pela Federação
Mineira de Empresas Juniores do Estado de Minas Gerais (FEJEMG). Fundada em
1995, é hoje conhecida como a maior federação do mundo, e possui atualmente 49
empresas juniores federadas em todo o estado.
Nacionalmente, a representação das empresas juniores é feita pela Confederação
Brasileira de Empresas Juniores. A Brasil Júnior, como é conhecida, foi fundada em
2003 durante o XI Encontro Nacional de Empresas Juniores (ENEJ), em Salvador, no
Estado da Bahia. Sua criação intentou a garantia da correta gestão de todas as instâncias
do MEJ (Brasil Júnior, Federações Estaduais e Empresas Juniores) e a geração de
resultados que desenvolvem seus membros, empresas e instituições de ensino. Hoje é a
maior confederação nacional de empresas juniores do mundo. Segundo a Brasil Júnior:
Formalmente, Empresa Júnior é uma associação civil, ou seja, com um
objetivo comum e bem definido. Estruturalmente, é um grupo formado e
442 | P a g e
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 439-452, jul./dez., 2014.
gerido única e exclusivamente por alunos de graduação. Esta associação, para
que seja configurada numa EJ, tem que ser declaradamente sem fins
econômicos. A receita oriunda dos projetos deve ser reinvestida na própria EJ
e não pode ser distribuída entre seus membros [...] Informalmente,
costumamos definir a EJ como um grande laboratório prático do
conhecimento técnico e em gestão empresarial. Diferentemente dos estágios
convencionais, aqui você tem um alto grau de liberdade de se pensar em
todos os processos da EJ. É local onde as soluções mais criativas são
implementadas com certa facilidade, não encontrando burocracias (BRASIL
JÙNIOR, 2012).
Podemos então dizer que uma empresa júnior é uma associação sem fins
lucrativos e com fins educacionais composta exclusivamente por alunos graduandos do
ensino superior, que objetiva proporcionar aos membros a vivência e aquisição de
habilidades necessárias ao mundo corporativo.
Destaca-se ainda o grande impacto social que tais empresas juniores exercem na
comunidade onde estão inseridas. Seus clientes habituais são micro e pequenos
empresários que, além de não possuírem conhecimento e pessoal para realização da
maioria das atividades gerenciais, não conseguiriam pagar por um serviço sênior de
consultoria e/ou assessoria.
Pode-se então, concluir que as empresas juniores são uma excelente ferramenta
para qualificação e profissionalização dos pequenos empresários, apresentando como
iniciativa inovadora no mercado, por meio da atuação de graduandos que impactam
diretamente no progresso nacional.
3- Normas Jurídicas pertinentes às Empresas Juniores
No ordenamento jurídico brasileiro, as associações sem fins lucrativos
acompanham o disposto nos artigos 53 a 61 do Código Civil de 2002. As disposições
gerais dessa associação estão previstas nos artigos 40 a 52 do mesmo código
supracitado.
Importante se faz frisar a empresa júnior como possibilidade de otimização do
artigo 207 da Constituição Federal de 1988, o qual dispõe acerca de indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão. Também é, enquanto inovação pedagógica, uma
proposta para o desenvolvimento do ensino jurídico do país. A empresa júnior, dado o
seu caráter pedagógico e de prestação de serviços a micro e pequenos empresários,
como já destacado, se apresenta nesse sentido como uma atividade marcadamente
extensionista.
443 | P á g i n a
FERREIRA, J. P. C.; VICTORETTI, T.; ZANCANELO, T. S. Empresa Júnior.
O vínculo existente entre a empresa júnior e os seus membros é o de
voluntariado. Este instituto legal está previsto na Lei Federal n. 9.608/98. Portanto, não
há qualquer tipo de remuneração aos membros das empresas juniores ou relação
empregatícia. A dedicação do tempo à empresa júnior não gera remuneração pecuniária,
mas enriquece profissional e pessoalmente o graduando em Direito. Tal atividade já é
vista como um dos principais diferenciais nos processos seletivos de grandes empresas,
a exemplo das seleções de trainees voltadas exclusivamente para empresários juniores.
Ainda nessa linha de raciocínio, válida se faz a análise de Leandro Vieira acerca
da opção em massa dos estudantes por concursos públicos após a graduação. Segundo
ele, “os gênios americanos criam empresas fantásticas que mudam os rumos da
humanidade. Os gênios brasileiros passam em concursos públicos” (VIEIRA, 2011).
Esta crítica gira em torno do descrédito que o graduado tem com relação ao setor
privado, despendendo anos de sua vida à tentativa de aprovação em algum concurso do
setor público.
É fato incontroverso que a maioria dos graduandos em Direito iniciam a
faculdade aspirando um cargo público. E muitas vezes, seja por desconhecimento ou por
preconceito, não conhecem o vasto leque de atuação profissional que o direito pode
proporcionar na iniciativa privada.
O resultado disso é a desproporção na quantidade de vagas ofertadas para a
quantidade de pessoas que prestam os concursos. Este desinteresse pelo setor privado
deve-se à instabilidade econômica e escassez de empregos oferecida por este setor. Na
visão do autor, o setor privado necessita de investimentos dos jovens graduados para
que as habilidades e competências destes não se percam em maçantes tentativas de
aprovação na seara pública.
Visando dar maior base normativa e segurança jurídica às empresas juniores, a
Confederação Brasileira de Empresas Juniores, propôs, por meio do Senador José
Agripino Maia, o Projeto de Lei (PL) n. 437 de 2012. Tal projeto de lei busca
disciplinar a criação e organização das associações denominadas empresas juniores. O
projeto foi aprovado em 29 de outubro de 2014 por unanimidade na Comissão de
Constituição, Justiça e Cidadania e seguiu para a Comissão de Educação da Câmara dos
Deputados.
O PL n. 437 positiva em seu texto o conceito de empresa júnior citado aqui
anteriormente, que é a diretriz feita pela Confederação Brasileira de Empresas Juniores,
por isso a importância de um diploma legal específico que apresente formalmente as
444 | P a g e
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 439-452, jul./dez., 2014.
Empresas Juniores ao Ordenamento Jurídico Brasileiro e também para que os demais
órgãos competentes possam se manifestar, verbi gratia, federações estaduais e órgãos de
classe.
4- O caso Colucci Consultoria Jurídica Jr. (ColucciC.J.Jr.)
Em face do que já foi apresentado e do problema do ensino do Direito, que hoje
se encontra muito dogmatizado, surge a proposta inovadora da Colucci Consultoria
Jurídica Jr., empresa júnior de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.
A Colucci Consultoria Jurídica Jr. foi fundada por um grupo de alunos
graduandos da Faculdade de Direito da UFJF em 6 de setembro de 2013 e carrega,
orgulhosamente, o sobrenome do maior benemérito da história da Faculdade de Direito
da UFJF, o Dr. Benjamin Colucci.
Essa iniciativa dos graduandos surgiu da insatisfação com o ensino prático
ofertado pela faculdade. Embora a Faculdade de Direito da UFJF goze de um grande
prestígio na graduação em todo o cenário nacional, tendo em vista o ótimo desempenho
nos exames da Ordem dos Advogados do Brasil e o reconhecimento da qualidade de
seus egressos, esses alunos vislumbravam uma possibilidade de ofertar aos demais
graduandos uma experiência prática para além da que existia na faculdade.
Essa experiência prática é embasada na consultoria e assessoria jurídica em
direito empresarial, civil, trabalhista e tributário, previstos estatutariamente como
objetos sociais da Colucci Consultoria Jurídica Jr. Seus clientes são outras empresas
juniores, micro e pequenos empresários.
É sabido que consultoria é uma atividade privativa do advogado, contudo
excepciona-se aos graduandos que estejam nos dois últimos anos do curso. Assim, em
respeito ao Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei n.8.906/94), apenas os
alunos do sétimo período em diante atuam na área de projetos da Colucci, sempre
orientados por professores inscritos na OAB. É válido ressaltar que a Colucci é a
primeira empresa júnior de Minas Gerais a ser reconhecida pela OAB-MG, tendo
recebido a aprovação desta em 4 de fevereiro de 20146.
6
Disponível em: <http://www.juizdefora-oabmg.org.br/index.php/noticias/1737/OAB-Subseo-Juiz-deFora-apoia-empresa-jnior-da-Faculdade-de-Direito-da-UFJF>. Acesso em 29 de outubro de 2014.
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FERREIRA, J. P. C.; VICTORETTI, T.; ZANCANELO, T. S. Empresa Júnior.
Não é permitido às empresas juniores de Direito atuarem no contencioso, por
isso os serviços de consultoria e assessoria jurídica são exercidos sob uma ótica
preventiva. Dessa forma, são avaliados os riscos envolvidos em todos os serviços para a
elaboração de um projeto que leve segurança jurídica ao cliente, minimizando as
chances de litígios.
As empresas juniores diferenciam-se ainda dos núcleos de prática jurídica,
escritórios de advocacia e outras iniciativas discentes. O traço distintivo marcante, além
da atuação restrita ao direito preventivo, é a autonomia. Toda a gestão, como já
destacado, é feita pelos próprios membros.
A Colucci Consultoria Jurídica Jr. organiza-se, conforme seu estatuto, em seis
diretorias, na assembleia e no conselho consultivo. São as diretorias de presidência,
administrativo-financeira, projetos, gestão de pessoas, relações públicas e qualidade.
4.1 – O desenvolvimento de habilidades técnicas
No que tange ao desenvolvimento de habilidades técnicas, a Colucci as
desenvolve em seus membros por meio da prospecção das searas empresarial, cível,
trabalhista e tributária, todas ministradas no âmbito acadêmico, comunicando-se com a
prestação dos serviços de seu portfólio. Neste está prevista a elaboração e revisão de
estatutos e regimentos internos; elaboração, revisão e acompanhamento de contratos;
palestras para esclarecimento de questões jurídicas quanto às melhores práticas de
governança corporativa; identificação e monitoramento de riscos jurídicos na realização
de projetos; elaboração e revisão de contratos sociais e demais normas internas;
consultoria para criação de micro e pequenas empresas; e consultoria trabalhista.
Dentre os serviços ofertados para empresas juniores destaca-se a elaboração,
revisão e alteração de Estatutos e Regimentos.
Para que toda empresa júnior se constitua legalmente é preciso que seja
elaborado um estatuto e um regimento interno. O estatuto é o diploma normativo que
rege sua constituição, seu funcionamento, suas obrigações. A lei estabelece uma série de
requisitos sob pena de nulidade. Dessa forma, a Colucci atua na elaboração, revisão e
alteração e também na orientação para registro dos atos societários do Estatuto e
Regimento Interno. Nesse sentido o membro da Colucci exercita seus conhecimentos
sobre pessoa jurídica, associações e técnica legislativa.
446 | P a g e
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 439-452, jul./dez., 2014.
Já na elaboração, revisão e acompanhamento de contratos busca-se mapear todos
os riscos intrínsecos ao contrato em questão, proporcionando segurança jurídica e
prevenindo litígios. Além disso, o aluno desenvolve habilidade em consultoria nos casos
de quebra contratual e responsabilidade civil.
Também são ofertadas palestras sobre as melhores práticas e esclarecimento de
dúvidas quanto à governança corporativa, qual seja, um conjunto de boas práticas para o
exercício de uma atividade empresarial segura.
Realiza-se ainda identificação e monitoramento de riscos jurídicos para
realização de projetos, nos quais o aluno emite pareceres orientando quanto às
oportunidades e ameaças visando o melhoramento do desempenho da empresa.
Para as micro e pequenas empresas, permanecem os dois últimos serviços
supracitados – oferta de palestras e identificação e monitoramento de risco jurídicos
para elaboração de projetos - além de consultoria no que condiz à sua criação e é
ofertada a elaboração e revisão de contratos sociais e demais normas internas. O
associado, dessa forma, desenvolve habilidades por meio da adequação do contrato às
normas vigentes com vistas à proteção do patrimônio do cliente, no intuito de que este
jamais se confunda ao da empresa.
Por fim, é também realizada a consultoria trabalhista, na qual o aluno aperfeiçoa
suas habilidades de direito do trabalho, quanto à admissão e dispensa de empregados –
contrato trabalhista -, rotina trabalhista, terceirização, benefícios previdenciários,
contribuições sindicais e cumprimento de convenções coletivas.
O desenvolvimento de habilidades técnicas não se restringe a áreas jurídicas. Uma das
características marcantes das empresas juniores é a interdisciplinaridade. Como
exemplo pode-se citar a elaboração do Planejamento Estratégico da Colucci em parceria
com uma empresa júnior da UFJF.
O Planejamento Estratégico é uma ferramenta de gestão de muita relevância para
traçar os objetivos e como a empresa irá cumpri-los.
Durante seis meses, a equipe que compunha o projeto e os demais membros da
Colucci discutiu intensamente, dentre outros assuntos, quais seriam as diretrizes
estratégicas mais apropriadas a empresa júnior.
Como resultado pode-se apresentar a Missão, Visão e Valores adotados pela
Colucci.
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FERREIRA, J. P. C.; VICTORETTI, T.; ZANCANELO, T. S. Empresa Júnior.
A Missão é desenvolver juristas empreendedores capazes de prestar consultoria
jurídica personalizada à micro e pequenas empresas a fim de evitar litígios e prevenir
conflitos.
Já a Visão é ser conhecida em Juiz de Fora pela excelência em consultoria
jurídica personalizada até 2017.
E os Valores são: Responsabilidade Social, Sinergia, Profissionalismo, Espírito
Empreendedor, Paixão em ser Colucci e Probidade.
Com Responsabilidade Social quer-se dizer que os projetos realizados pela
Colucci visam à geração de valor e impacto na comunidade na qual ela se insere.
Sinergia significa acreditar que a união de todas as forças gera mais resultados que
somadas individualmente. Profissionalismo é prezar pelo conhecimento técnica e pela
postura ética para a prestação de um serviço de excelência.
Já o Espírito Empreendedor, para a Colucci, é dizer que a motivação define-se
como a capacidade de identificar oportunidades e buscar soluções que gerem valor a
todas as partes interessadas. Na Paixão em ser Colucci, os membros dizem que se
orgulham de ser parte da instituição, demonstrando comprometimento com os objetivos
e finalidade da Colucci. E com Probidade quer-se dizer que a empresa preza pela
integridade e honestidade.
4.2 – O desenvolvimento de habilidades não técnicas (soft skills)
Passando-se à análise do desenvolvimento de habilidades não técnicas, a Colucci
propicia, através de práticas não inclusas na grade curricular da Faculdade de Direito, a
capacidade de organização e método, trabalho em equipe, liderança, empreendedorismo,
networking, gestão de pessoas e empresas, apresentação pessoal e oratória. Essas
habilidades e competências não técnicas, também chamadas soft skills, são cruciais para
o perfil de profissional desejado na atualidade.
Não obstante ao uso de métodos e formas mais clássicos do curso de Direito, as
habilidades acima expostas são de suma importância para o operador de direito.
A capacidade de organização e método, também entendida como capacidade
gerencial, diz respeito à capacidade do profissional saber se organizar e gerir as
ferramentas adequadas a uma boa consecução da tarefa ou projeto que lhe é entregue. O
trabalho em equipe, característica cada vez mais valorizada no perfil profissional,
448 | P a g e
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 439-452, jul./dez., 2014.
significa uma boa capacidade de relacionamento interpessoal e convergência de forças e
interesses para a execução de algo.
A liderança, fundamental para a motivação de uma equipe, destaca a importância
do profissional saber conduzir uma equipe.
O networking é a capacidade que o profissional tem de construir uma boa rede
de contatos e interlocução profissional. Isso é importante não só para a consecução dos
objetivos da empresa júnior, mas também pode desaguar em parcerias, sociedades e
novos negócios que podem ser firmados entre os egressos, antigos empresários juniores.
A gestão de pessoas apresenta-se como ferramenta indispensável a todos os
departamentos de recursos humanos. Da seleção, passando pelo acompanhamento e
motivação, até o desligamento do colaborador.
Ressalte-se ainda que a apresentação pessoal, aliada a uma boa oratória, é um
grande diferencial para o profissional contemporâneo. Para se expressar diante do
outros, o graduando (e futuro operador do Direito) precisa dominar sua oratória,
apresentando de forma clara suas ideias e sugestões. Assim sendo, o aluno também é
capaz de explorar seu lado criativo, não sendo mero instrumento de propagação de
ideias. Como exemplo pode-se citar as reuniões de diretoria, que simulam o meio
corporativo, no qual o aluno, futuro profissional, será cobrado e deverá apresentar,
diante de outros membros da companhia, o trabalho desenvolvido.
Aplicando-se essas habilidades à realidade da Colucci, pode-se citar como mais
um exemplo o atendimento ao cliente feito pelos membros da diretoria de projetos. Este
atendimento possibilita a prática da oratória e apresentação pessoal, visto que se
necessita de uma boa capacidade de apresentação e de comunicação para entender e
propor uma solução ao problema apresentado pelo cliente.
O membro irá lidar também com o gerenciamento de projetos, haja vista a
necessidade de utilizar as ferramentas adequadas, como o cronograma, para um bom
andamento do projeto. Neste caso o aluno tem a oportunidade de vivenciar o direito
prático e aprender a lidar com o próximo, sendo capaz de perceber suas necessidades e
atende-las da melhor forma possível.
Para atender à necessidade do cliente é necessário todo um estudo sobre o
assunto demandado. Por isso os membros do projeto fazem um trabalho de pesquisa
acerca da legislação, doutrina e jurisprudência. Posteriormente, esse estudo é utilizado
para embasar o verdadeiro trabalho requisitado.
449 | P á g i n a
FERREIRA, J. P. C.; VICTORETTI, T.; ZANCANELO, T. S. Empresa Júnior.
Dada a necessidade de contínua melhoria e aperfeiçoamento dos membros da
Colucci, as capacitações são uma constante na rotina da empresa júnior. Portanto, os
próprios membros, pós-juniores – membros egressos da Colucci - e demais profissionais
ministram palestras e treinamentos conforme as demandas apresentadas.
Tal aperfeiçoamento contínuo é fundamental para o desenvolvimento
profissional do membro da empresa júnior e proporciona a eles um contato constante
com profissionais renomados e experientes. Deve-se destacar ainda, que a maior parte
dos eventos de capacitações como palestras e minicursos são abertos a todos os alunos
da Faculdade de Direito da UFJF, o que demonstra a preocupação da Colucci com os
demais alunos não voluntários.
Como já dito anteriormente, a interdisciplinaridade é outro fato marcante da
empresa júnior. Ela resulta do contato da empresa júnior com outras instituições –
dentre elas outras empresas juniores, órgãos de classe e terceiro setor -, que
proporcionam aos membros da Colucci um maior conhecimento em diferentes áreas.
Em virtude da maior parte das empresas juniores serem concentradas em
somente um curso superior, e de isso não ser o suficiente para sua própria gestão e
desenvolvimento das atividades, elas necessitam de buscar conhecimento por fontes
externas, quais sejam as outras empresas juniores. Essa interação, chamada de
benchmarking, é o que proporciona um crescimento constante da rede e fortalece a
interdependência entre elas.
5- Conclusão
Por todo o exposto, entende-se que é necessária uma reavaliação na maneira de
ensinar e pensar a prática jurídica. O dogmatismo do ensino que ainda insiste em ser
praticado é distante da realidade social, uma vez que não vai a campo, não sendo capaz
de acompanhar a dinamicidade necessária à formação do advogado contemporâneo.
O curso de Direito deve prover uma instrução humanista, capaz de proporcionar
ao futuro profissional a compreensão das transformações céleres da sociedade moderna.
Contudo, o parâmetro de um profissional técnico não deve ser abandonado, mas sim
aprimorado, com o intuito de amplificar o senso crítico dos graduandos e formar
especialistas gradativamente mais empenhados a modificar o meio em que se inserem.
450 | P a g e
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 439-452, jul./dez., 2014.
O bacharelismo compreendido como apenas como a formação de letrados para
manter um dogma já concentrado deve ser removido do entendimento do ensino
jurídico.
Ainda nesse sentido, o direito positivado não deve ser encarado como uma
ciência autoaplicável alheia a qualquer modificação, mas sim estar interconectado como
um todo, com a finalidade de preencher as lacunas da sociedade, não obstando o acesso
à justiça social.
Por suposto, insere-se a importância da reformatação do ensino jurídico no
Brasil, com a proposta de que o jovem operador do direito não seja apenas um
reprodutor de normas e conceitos, mas um agente capaz de vivenciar, identificar,
compreender e buscar soluções para os conflitos da realidade que o cerca.
Como tentativa concreta e ousada de contribuir para a formação prática do
graduando em Direito, surge a Colucci Consultoria Jurídica Jr. Ao trazer experiências
que desenvolvem habilidades técnicas jurídicas e não técnicas, a Colucci mostra-se
como uma alternativa viável para a construção de um profissional mais dinâmico e
interdisciplinar, capaz de interagir e compreender os reflexos das mudanças sociais de
seu tempo.
Não obstante, reafirma o compromisso Constitucional da Extensão Universitária
e, como inovação social, ao prestar consultoria e assessoria jurídica a micro e pequenos
empresários, contribui para a qualificação da atividade empresarial o que é, em última
instância, contribuir para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil.
É este perfil de profissional diferenciado o almejado para impactar,
transformando as empresas e a sociedade. E é este o compromisso que a Colucci
Consultoria Jurídica Jr. firma com todos os graduandos em Direito da Universidade
Federal de Juiz de Fora e que está presente em sua Missão: desenvolver juristas
empreendedores capazes de prestar consultoria jurídica personalizada à micro e
pequenas empresas a fim de evitar litígios e prevenir conflitos.
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Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014.
Uma Lei Mutilada, uma Nação Dividida: Sharia, federalismos e o
(des)cumprimento dos Direitos Humanos na Nigéria1
A Mutilated Law, A Divided Nation: Sharia, Federalisms and the (Non)
Fulfillment of Human Rights in Nigeria
Arthur Barretto de Almeida Costa2
Resumo
No presente trabalho, procuramos mostrar um panorama geral da aplicação dos
direitos humanos na Nigéria e relacioná-lo com as diferentes maneiras de se aplicar o
direito muçulmano presentes na legislação nacional. Estas podem ser duas: o direito do
estatuto pessoal, regulado desde a constituição de 1979; ou no código penal. Esta última
não se conformaria com a Lei Maior, mas desde 1999 vêm sendo instituída em estados
do norte, majoritariamente islâmico. Com esse processo, e a subsequente contestação do
mesmo por parte do governo, emergiu um conflito acerca do que deveria significar o fato
de a Nigéria ser uma federação: a garantia de uma autonomia relativa e da preservação
das diferenças; ou uma licença para uma ampla autodeterminação independente dos
governos locais. Nesse sentido, a religião, sobretudo islâmica, aparece como a
legitimadora da autoridade do governo estadual face a um governo central ausente, adepto
de concepções ocidentais.
Palavras chave: Nigéria; Federalismo; Islamismo; Conflitos Religiosos; Direitos
Humanos.
Abstract
In this article, we try to show an overview of human rights application in Nigeria,
and relate it with the different ways of Muslim law application that take place in federal
legislation. Those can be two: the personal statue law, regulated since 1979 constitution;
or in the penal code. This last one could not be constitutional, but, since 1999, it has been
adopted by several northern states, which are mostly Islamic. With this process, and the
subsequent attack to it by the central government, a conflict has emerged on what should
mean the fact that Nigeria is a federation: the guarantee of a relative autonomy and the
preservation of differences; or a license for a huge self-determination by the local
governments. In this situation, the religion, and mostly the Islamic one, has become the
legitimating of states government’s authority over an absent central administration which
adopts western standards.
Keywords: Nigeria; Federalism; Islamism; Religious Conflicts; Human Rights.
Recebido em: 26 de setembro de 2014
Aceito em: 6 de fevereiro de 2015
1
O presente artigo foi apresentado em uma primeira versão simplificada como requisito para a conclusão
da disciplina de Antropologia Cultural do Estado, do curso de Ciências do Estado da UFMG, oferecida pelo
professor Marcelo Maciel Ramos, no segundo semestre de 2013. Uma segunda versão, ainda incompleta,
foi apresentada ao segundo concurso de artigos jurídicos do XXIX Encontro Mineiro de Estudantes de
Direito, realizado em Viçosa, em 2014, no qual obteve o primeiro lugar. A versão atual é revisada e
ampliada; agradeço aos amigos Ana Clara Abrantes Simões e João Vítor de Freitas Moreira pelas críticas
e sugestões.
2
Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do Grupo Mineiro
de Estudos do Léxico – GruMEL. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. E-mail:
[email protected].
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COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo
1- Introdução
A Nigéria é, atualmente, a nação com maior população da África, e também uma
das economias mais pujantes do continente, muito em função do fato de apresentar a
maior produção de petróleo da região. Entretanto, também atravessa diversos conflitos,
devido à presença de uma gigantesca diversidade étnica no interior de suas fronteiras,
contando com mais de 250 grupos diferentes, compondo um “caldeirão” potencialmente
perigoso. A clivagem mais visível é entre o sul, predominantemente cristão e produtor de
petróleo, e o norte, majoritariamente islâmico e tradicionalista.
Há predomínio da população muçulmana, que corresponde a cerca de 50% do
total, com os cristãos contando com 40% do contingente de pessoas (CIA, 2013). Além
disso, devido à histórica influência dos líderes tribais do norte, cortes islâmicas locais
foram sendo introduzidas em alguns estados desde a década de 60, passando a contar com
apoio oficial a partir da constituição de 1979, estando presente, também, nas
determinações da atual, de 1999. Contemporaneamente, a lei islâmica só é aplicada com
respaldo da constituição em alguns estados, e apenas em determinadas situações,
sobretudo de direito de família e de sucessões, no caso de, no mínimo, uma das partes ser
muçulmana, e em alguns outros casos excepcionais.
Essas cisões de origens étnicas, religiosas e linguísticas, suscitaram profundos
debates na Nigéria, os quais revelaram o confronto entre diferentes concepções de
federalismo. Disputas acirradas continuam ocorrendo sobre os limites da independência
dos estados com relação à união, muito em função de uma série de competências serem
partilhadas pela assembleia legislativa central e pelas casas de representantes estaduais.
No presente artigo, buscaremos examinar a forma com a lei islâmica funciona na
Nigéria atual, confrontando este estado de coisas com o respeito (ou a falta dele) aos
Direitos Humanos, e tentando relacionar como o desvalor destes e a amplitude da
aplicação da Sharia podem ser relacionados com a questão do federalismo e da
independência dos entes federados. Devido às limitações de tempo e de recursos
financeiros, pudemos nos valer apenas de fontes indiretas, não podendo, infelizmente,
empreender uma viagem de campo à nação considerada.
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Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014.
2- A lei mutilada: aspectos da aplicação da Sharia na Nigéria
Primeiramente, cabe enfatizar algumas características genéricas do direito
islâmico para, posteriormente, tratar mais propriamente da maneira como ele se efetiva
no Estado nigeriano.
O Direito Muçulmano apresenta três fontes principais: o Corão, a Suna, e o Idjmâ.
O Primeiro é o livro sagrado propriamente dito, contendo as revelações feitas por Alá ao
profeta Maomé ao longo da vida deste, e compiladas por seus discípulos. A Suna, por seu
turno, é a descrição do conjunto de práticas e pensamentos do profeta, feitos por seus
seguidores. Por fim, o Idjmâ é a opinião unânime da comunidade de fiéis, considerada,
na doutrina muçulmana, como infalível. Na atualidade, a Suna e o Corão são apenas
fontes históricas para o direito, uma vez que, ao longo dos últimos quatorze séculos, as
interpretações aceitas e consolidadas para aqueles dois escritos foram todas feitas e
registradas pelo idjmâ. Graças a essa última característica, pode-se afirmar que tal direito
não é legislado, e sim uma construção intelectual dos juristas-teólogos3, fazendo com que
o direito muçulmano possa ser classificado, tal qual o antigo direito romano, como “de
juristas” (BADAR, 2011): é o discurso sobre o direito que, com base no Corão e na Suna,
formando o idjmã, o constitui.
Uma característica fundamental desse tipo de ordem jurídica é que, ao contrário
mesmo do direito canônico das sociedades ocidentais, ele é todo religioso, advindo da
revelação divina, de modo que não pode ser modificado, sob pena de se cair em heresia.
Contudo, cabe ressaltar que a regulação de boa parte dos comportamentos é deixada a
cargo dos costumes, de modo que não é incorreto se falar em flexibilidade associada à
imutabilidade do direito islâmico (DAVI, 1982).
Desse forma, têm tido lugar diversos movimentos de incorporação de instituições
de matriz ocidental em países islâmicos, nas mais diversas áreas do direito. A
possibilidade de recurso ao costume naquilo em que ele não entre em choque frontal com
as determinações religiosas tem permitido uma progressiva flexibilização dos ditames da
tradição. Entretanto, há um ramo do mundo jurídico que resiste mais a esse processo:
3
Já que, no islamismo, a vivência da fé é entendida como holística, devendo abranger todos os âmbitos da
vida dos fiéis, de modo que algumas distinções ocidentais, como aquela entre público e privado, deixam de
fazer tanto sentido. Do mesmo modo, a fé é inseparável da política e, por conseguinte, do Direito, de modo
que toda lei deve ter um fundo teológico, ou não contradizer as determinações de Allah. Essa visão impediu
durante muito tempo até mesmo a tentativa de promulgação de códigos que se pretendiam transcrições
exatas da legislação tradicional para leis escritas na língua do estado que as aplicava.
455 | A l e t h e s
COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo
É o direito das pessoas e das famílias que, com as regras de comportamento ritual
e religioso, sempre foi considerado o mais importante na Sharia. (...) é a esse
respeito que se encontram no corão o maior número de prescrições. (DAVI,
1982, p. 534)
Isso fica muito visível no tratamento que a Nigéria dá à questão do direito
muçulmano, o que detalharemos mais abaixo.
Feitas as observações acima, passemos agora à análise das previsões
constitucionais nigerianas acerca da aplicação do direito Muçulmano e sobre a justiça
islâmica separada das cortes comuns.
O primeiro tribunal especial para a aplicação da lei de Maomé foi criado ainda
durante a colonização inglesa, no ano de 1956 (BOLAJI, 2013); tal previsão, no entanto,
só foi constitucionalizada a partir de 1979, já que na primeira constituição, de 1960, os
tribunais islâmicos não estavam presentes (NIGÉRIA, 1960). As disposições
constitucionais acerca das cortes muçulmanas, tanto na carta de 1979, como na atual, de
1999, mostram-se tributárias da visão acima revelada, de que a aplicação do direito
muçulmano deve se dar, sobretudo, relativamente às questões de estatuto pessoal do
indivíduo. Ambas as leis, portanto, citam cinco situações em que se pode recorrer aos
tribunais muçulmanos: em quaisquer questões acerca da validade ou dissolução de um
casamento feito conforme as normas muçulmanas; nos casos de direito de família, quando
há acordo entre as partes e ambas são muçulmanas; sobre a guarda de incapaz, quando
este é muçulmano; sobre doação, herança e sucessão quando aquele cujos bens estão
sendo transferidos é muçulmano; e, por fim, em qualquer caso, na hipótese de ambas as
partes, sendo islâmicas, requererem a resolução da contenda via tribunal religioso
(NIGÉRIA, 1979; NIGÉRIA, 1999).
Em ambas as cartas, há cortes de apelação em direito muçulmano apenas nos
estados; qualquer decisão relativa a recursos deve ser remetida à corte federal de apelação,
na qual deve haver juízes com comprovado conhecimento em direito muçulmano para
dirimir as controvérsias; e, em último caso, as demandas são enviadas à suprema conte,
também secular. Além disso, cumpre acrescentar que as questões devem ser remetidas
em primeira instância a tribunais comuns, não-islâmicos, e só em caso de recursos elas
poderão ser remetidas a alguma das cortes de apelação (SALMAN, 2013).
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Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014.
Por fim, cabe ressaltar que, em ambas as constituições, as disposições relativas às
cortes muçulmanas sempre precedem aquelas que remetem aos tribunais de direito
costumeiro de mesmo nível.
No que diz respeito às legislações infraconstitucionais, a grande diversidade étnica
da Nigéria levou à formação, desde o período da colonização, de formações normativas
híbridas. Os ingleses permitiam a manutenção das estruturas tradicionais de regulação,
contanto que não ultrapassassem aquilo que os europeus consideravam razoável e
equânime. Após a independência, a comunidade islâmica chegou a manifestar
insatisfação por estar submetida a normas que não refletiam sua tradição comportamental;
entretanto, após árduas discussões, chegou-se a um modelo legislativo misto,
incorporando elementos de origem tanto muçulmana quanto cristã, sob a égide do sistema
do common law (NMEHIELLE, 2004).
No entanto, logo após a promulgação da constituição de 1999, iniciou-se um
processo não previsto de extensão da Sharia aos códigos penais dos estados federados no
norte de maioria islâmica. Começando com Zamfara, o processo estendeu-se,
posteriormente, a um total de 12 unidades dentre as 36 que compõem a federação
nigeriana (BOLAJI, 2013). Apoiados em brechas da constituição que permitiam a
expansão do âmbito de aplicação da Sharia para além da lei pessoal, códigos criminais
inteiramente islâmicos foram adotados, com diferentes graus de vinculação para as
populações muçulmanas, conforme o ente federado sob análise. Tal estado de coisas gera
uma série de problemas aos direitos humanos, dada a conhecida rigidez da lei muçulmana
em matéria penal, com a prescrição de penas que incluem a amputação e o açoitamento.
Essas disposições legais nos dão a impressão de que o direito islâmico é
profundamente contrário, em essência, aos Direitos Humanos. Nada mais fora da
realidade. O que se pode verificar é que a Sharia, para além daquelas disposições que a
nós ocidentais parecem “bárbaras”, também é dotada de uma série de princípios que,
especialmente levando-se em conta o momento histórico em que foram produzidos, são
bastante avançados.
Nesse sentido, a lei criminal original baseava-se no princípio da legalidade, desde
o tempo em que, na cristandade, se passava a Idade Média, impedindo que pessoas fossem
criminalizadas por lei retroativa; no da pressuposição da inocência do réu, no caso da
inexistência de prova em contrário; o estabelecimento da necessidade da conjunção entre
ação criminosa, intenção de cometer esta atitude e consciência da ilicitude da mesma para
que se dê a condenação; dentre diversos outros (BADAR, 2011). Mas, no processo de
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COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo
implementação da Sharia na Nigéria, várias dessas prerrogativas foram deixadas de lado,
dando lugar a uma série de normas mutiladas e, por isso, tirânicas.
Aspectos processuais da legislação islâmica tradicional também não costumam
ser respeitados. A condenação pelo crime de adultério, por exemplo, exigiria o
testemunho de quatro homens que tivessem testemunhado ao vivo o ato da penetração;
tal circunstância, no entanto, é de muito difícil consecução. Dessa maneira, as
condenações por relacionamentos extraconjugais têm, sistematicamente, prescindido
dessa determinação, de modo a facilitar a penalização (NMEHIELLE, 2004). Além disso,
o islamismo está calcado na defesa do princípio da igualdade. Ora, em diversos momentos
membros dos altos escalões do governo nigeriano foram perdoados por seus crimes, ainda
que fosse amplamente reconhecido o cometimento dos mesmos, devido ao fato de serem
apoiados pelo governador do estado, em óbvio desacordo com o que a legislação
muçulmana prescreveria (BADAR, 2011).
Percebe-se, portanto, que a Sharia implementada na Nigéria é uma forma mutilada
da mesma, que desconsidera vários dos avanços obtidos ao longo dos 14 séculos de
desenvolvimento do direito islâmico. Diversos dos princípios básicos adotados pelo
sistema, especialmente os de matéria processual, não são considerados, tornando a Sharia
do norte nigeriano não mais do que uma pálida caricatura daquilo que ela deveria ser.
Diversos dos dispositivos da lei islâmica são, dessa forma, claramente compatíveis
com o direito internacional, permitindo o avanço dos direitos humanos, caso haja um
efetivo esforço de compatibilização dos preceitos da Sharia com as garantias
fundamentais. Ressaltar as máximas de igualdade entre os indivíduos; preferencial
resolução pacífica das controvérsias; e imperativo da busca da justiça; é uma maneira de
aproximar os países islâmicos em geral do cumprimento dos Direitos Humanos
(POWELL, 2013). O Islã não é o empecilho, mas sim algumas deturpações e apropriações
incompletas dele.
3- O tratamento dos Direitos Humanos na Nigéria
A implementação da Sharia em toda a legislação dos estados de maioria islâmica
do norte tem levado a um aprofundamento da intolerância religiosa, sobretudo contra
cristãos. A despeito de diversos teóricos defenderem que a instauração da lei muçulmana
seria uma forma de resistência das tradições nacionais contra a opressão internacionalista,
a apropriação da divisão cristãos vs. muçulmanos como uma reedição do conflito entre,
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Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014.
respectivamente, colonizadores e colonizados, tem gerado graves embates entre estes dois
grupos religiosos majoritários. Tal estado de coisas se revela quando se percebe, por
exemplo, que em escolas muçulmanas todos são obrigados a portar vestes islâmicas,
inclusive os cristãos. Nas escolas cristãs também se é obrigado a oferecer instrução
muçulmana, sendo que não há contrapartida na forma de obrigatoriedade da oferta de
ensino cristão em escolas islâmicas. Ademais, a proibição de consumo (e produção) do
álcool e da exploração de jogos de azar prejudicou não-muçulmanos que exploravam
essas atividades (BOLAJI, 2013).
A diferença de estatuto entre as diversas religiões vai além: a Sharia criminaliza
a apostasia, ou seja, a conversão de um muçulmano a qualquer outra denominação. Como
consequência, a ação de missionários cristãos sobre os islâmicos torna-se uma falta legal.
Contudo, a constituição nigeriana, em seu artigo 38, estabelece que:
(1) Toda pessoa deve ter a titularidade do direito de pensamento, consciência e
religião, incluindo-se a liberdade de mudar sua religião ou crença, e a liberdade
(tanto sozinho como em comunidade, em público ou no privado) de manifestar
e propagar sua crença na adoração, ensino, prática e observância. (NIGÉRIA,
1999, tradução nossa4).
Mas não se observa apenas desigualdade religiosa, mas também de gênero e de
classe. Enquanto que mãos de pobres são cortadas como punição a roubos, membros da
elite que subtraíram milhões de dólares do erário não foram sancionados. Além disso,
algumas exigências processuais da lei muçulmana causam tratamento diferenciado par
homens e mulheres. Há o relato de um caso em que se acusou um casal de cometer
adultério; a mulher foi condenada a sofrer 80 chibatadas, ao passo que o homem, por não
contar com o número mínimo de quatro testemunhas masculinas que afirmassem tê-lo
visto fazer sexo com a mulher, foi absolvido (ELAIGU e GALADIMA, 2003).
Ademais, o grupo radical Boko Haram tem promovido uma série de atentados ao
longo dos últimos anos, propondo-se a lutar contra uma suposta tentativa de
ocidentalização da Nigéria, sendo talvez a mais visível face da violência inter-religiosa
no país. Para evitar o decréscimo dos valores islâmicos no sistema de educação, chegouse promover, no segundo semestre de 2013, um massacre contra uma universidade
nigeriana, vitimando fatalmente cerca de 50 estudantes, já que se considera que as
4
Texto original: “(1) Every person shall be entitled to freedom of thought, conscience and religion,
including freedom to change his religion or belief, and freedom (either alone or in community with
others, and in public or in private) to manifest and propagate his religion or belief in worship, teaching,
practice and observance”.
459 | A l e t h e s
COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo
universidades são o maior símbolo da educação ocidental (ESTADO DE SÃO PAULO,
2013). As estimativas sobre as mortes provocadas por aquele grupo atingem a marca de
3000 apenas entre 2010 e 2012 (BOLATITO, 2013), com as técnicas terroristas
abrangendo desde a queima de igrejas até a utilização de homens bomba. Entretanto, a
ação do Boko Haram tem um fundo político de oposição ao atual regime que é tão ou
mais forte que sua faceta religiosa, sendo esta, também, uma forma de se legitimar perante
determinados segmentos da população.
Cumpre ainda acrescentar que a enorme dificuldade para a efetivação dos direitos
fundamentais está estreitamente ligada à questão do aceso à justiça (OKOGBULE, 2005).
Para além dos vários problemas decorrentes das precárias condições socioeconômicas da
população nigeriana, somam-se outros, de ordem técnica, sobretudo processual. Por
exemplo, alguns tribunais nigerianos cobram, quando da proposição da ação, uma taxa
proporcional aos valores pedidos pelo requerente a título de indenização; assim, para as
fragilizadas populações do Delta do Rio Níger, torna-se de extrema dificuldade a entrada
com um processo que intente solicitar ressarcimento pelos danos ambientais provocados
pela exploração de petróleo. Discussões tecnicistas sobre a forma mais correta para a
entrada de ações que se proponham a efetivar Direitos Humanos, decorrentes de
legislação ambígua, também contribuem para a constituição do preocupante quadro o qual
podemos divisar. Advogados inescrupulosos, os quais cobram taxas abusivas, “criaram
um método para cobrar não apenas seus honorários profissionais, mas também uma taxa
de transporte cada vez que se apresentam ao tribunal” (OKOGBULE, 2005, p. 107), fato
esse que, aliado à infindável duração dos processos, exclui ainda mais a população do
poder judiciário.
Tal quadro contribui para a geração de um distanciamento do Estado com relação
aos indivíduos, impedindo que os cidadãos confiem na justiça e possam propor ações. Há
quem aponte que essa evidência da ineficiência do sistema judiciário comum foi um dos
fatores (embora talvez não o mais importante) que estimulou a população dos estados do
norte a apoiar a adoção da lei islâmica também na esfera penal (NMEHIELLE, 2004).
Ademais, é mister dizer que a construção dos direitos humanos, historicamente datada,
não se adéqua completamente à realidade nigeriana: não há sentido em se falar em
liberdade de expressão para uma população analfabeta. A isso se soma a forma pela qual
a justiça nigeriana interpreta a incorporação de tratados internacionais no Ordenamento
Jurídico nacional, ou seja, considerando que os mesmos têm apenas valor para orientar a
elaboração das normas, contribuindo mais ainda para distanciar do que para aproximar os
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Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014.
direitos humanos da realidade da população, já que a carta magna local assegura apenas
direitos civis e políticos. Isso fiou bastante evidente na integração da Carta Africana dos
Direitos Humanos e das Pessoas:
Ainda que se possa dizer que a Carta Africana, em geral, suplemente e não
derrogue a Constituição, existem certos direitos que são obrigatórios pela carta
africana, mas que são explicitamente identificáveis na Constituição como
opcionais. Por exemplo, o artigo 17(1) da Carta Africana diz: “Todo indivíduo
deve ter o direito à educação”. Esse direito não está contido na seção de direitos
humanos fundamentais da Constituição. (EGEDE, 2007, p. 8. Tradução nossa)5.
Portanto, não se pode prescindir de uma efetivação de direitos sociais, de modo
que o discurso dos direitos humanos se adéque a estas especificidades da população
nativa. Caso contrário, se tornarão mais distantes ainda da realidade da população, alijada
da justiça não apenas por tribunais ineficientes, mas também por um direito que é mero
transplante discursivo de práticas ocidentais com pretensão de universalidade, e não
construção preocupada com a realidade fática da população que se propõe a regular.
Cabe ressaltar ainda que certas determinações dos tratados internacionais de
direitos humanos dificultam sobremaneira a sua implementação efetiva na Nigéria, por
serem aplicados irrefletidamente pelos administradores da justiça nigeriana. Assim, a
proibição absoluta de certos tipos de castigo físico a crianças, instituída pelos
administradores do sistema nacional de educação, é uma afronta a um conjunto de
concepções culturais nigerianas, as quais consideram que castigos físicos moderados são
fundamentais para a formação de bons cidadãos (EGEDE, 2007). A preferência pela
interpretação literal das determinações do tratado, sem a devida aclimatação ao contexto
cultural nigeriano, impossibilita a efetivação dos instrumentos normativos internacionais
daquele país, contribuindo apenas par a instauração de uma visão dos Direitos Humanos
e dos tratados como meras imposições externas inaplicáveis. O mesmo se dá com
proibição do casamento de meninas abaixo da idade de 18, sendo que a definição desta
época se deu em uma discussão ocidental que levou em conta os padrões de
desenvolvimento humano do oeste, criando uma obrigação arbitrária e meramente
ficcional, a qual não será, nas condições atuais, jamais aplicável pelo ausente Estado
nigeriano. Da forma como estão estruturados atualmente, os direitos humanos com os
5 Texto original: “While it may be said that the African Charter generally supplements and does not necessarily
derogate from the constitution, there are certain rights under the African Charter which are enforceable but are
expressly identified by the constitution as unenforceable. For instance, article 17(1) of the African Charter says,
‘every individual shall have the right to education’. This right is not contained in the fundamental human rights
provision of the constitution”.
461 | A l e t h e s
COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo
quais a Nigéria se defronta se aproximam mais de um presente idealizado do ocidente
messiânico (SUPIOT, 2007) do que de uma produção autóctone e verdadeiramente
aplicável ao contexto nacional.
A nação dividida: federalismos na Nigéria
Durante e logo após a colonização inglesa, a convivência entre Islamismo e
Cristianismo na Nigéria foi relativamente pacífica, com acordos entre a colonização
britânica garantindo autonomia religiosa e, em certo grau, política, aos emires do norte,
em troca da possibilidade de introdução de missionários cristãos. Os conflitos que
ocorreriam tinham, no máximo, um pano de fundo religioso, mas eram mais relacionados
às disputas étnicas ou de caráter político partidário.
O conflito entre cristãos e muçulmanos emergiu verdadeiramente só no fim da
década de 70, quando da segunda assembleia constituinte, na qual muçulmanos tentaram
a criação de uma corte federal para a aplicação da Sharia como direito pessoal para
muçulmanos, nas questões de direito de família, das sucessões, e alguns outros casos
pontuais. Tal fato decorre da já tratada função do direito pessoal na constituição da
identidade islâmica, a qual esbarrou na defesa por parte da minoria cristã de um Estado
neutro nas questões religiosas, convicção assentada desde o início do colonialismo, e
calcada na máxima cristã de que o reino de Jesus Cristo “não é desse mundo”. Após uma
série de acordos, o estatuto da Sharia foi conformado para uma situação praticamente
idêntica à atual dentro do sistema judiciário.
Diante destes conflitos, associada à grande diversidade étnica do país, que
comporta mais de 400 línguas, que foi gestado o federalismo como forma de organização
do Estado nigeriano (ELAIGU e GALADIMA, 2003); gerando uma certa tranquilidade,
já que foi facultado a cada estado articular em seu interior um sistema para a aplicação
do direito pessoal islâmico, tal qual previsto na constituição de 1999.
Entretano, a partir de 1985, com entrada repentina da Nigéria na Organização da
Conferência Islâmica (OIC), os conflitos se acirraram. Cristãos acreditavam que tal
atitude configurava uma afronta aos seus direitos, enquanto que muçulmanos rebatiam
afirmando que, como contrapartida, o país já mantinha uma embaixada no Vaticano
adotava o calendário cristão, dentre outras concessões. Ademais, o Estado Muçulmano,
além de meramente secular, tem como dever constitucional o de fomentar a diversidade
462 | A l e t h e s
Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014.
religiosa e o desenvolvimento autônomo dessas entidades, o que, no caso do Islamismo,
exigiria a adesão nigeriana à OIC.
Tais tensões permaneceram camufladas, uma vez que de 1983 a 1998, a nação
atravessou um período de ditadura militar. Entretanto, com o fim do governo autoritário
e a subsequente instalação de uma Assembleia Constituinte, os conflitos voltaram a
aflorar. Já em 1999, como referido no início deste artigo, foi, pela primeira vez, estendido
à esfera criminal o âmbito de aplicação da Sharia. Tal fato ensejaria o combate entre duas
concepções de organização do estado: o que chamamos aqui de “federalismo conjuntivo”
e um “federalismo disjuntivo”6.
A declaração da constitucionalidade da adoção da lei muçulmana em outras
esferas que não o direito pessoal foi a expressão da primeira concepção: a de uma forma
de Estado que conferisse a cada unidade federada, a despeito da integração a uma
comunidade política comum, a prerrogativa de estatuir de maneira independente leis
islâmicas nas regiões de maioria muçulmana.
Dessa maneira, a federação passa a ser entendida como uma forma de,
preservando a segurança garantida pela unidade política, resguardar um distanciamento
relativamente grande no que tange as regras de comportamento entre os diferentes estados
federados, em todas as esferas. Dessa forma, torna-se compreensível o desdém com que
os Direitos Humanos são tratados: eles só podem ser pensados na medida em que se
estabelece que todos os seres humanos, a despeito de suas flagrantes diferenças físicas,
partilham de uma natureza fundamental comum, o que lhes permite ter um determinado
nível de garantias invioláveis. Um determinado grau de universalismo, indispensável à
aplicação de garantias a todos os seres humanos, é negado pelo “federalismo disjuntivo”,
portanto. Algo que gerou diversos conflitos não só judiciários com o governo federal, mas
problemas, inclusive, de ordem técnica, uma vez que, por exemplo, a polícia é
subordinadas à união, mas, pelo menos de acordo com as novas legislações, deveriam
passar a cumprir um código penal estadual e desacordo com algumas determinações das
esfera superiores (ELAIGU e GALADIMA, 2003; NMEHIELLE, 2004).
6
Enfatizamos que tal distinção não pretende ter valor teórico, em especial no âmbito das ciências política
e jurídica; trata-se apenas de uma classificação de valor antropológico, indicando o que os grupos nigerianos
entendiam (ou entendem) por federalismo, e não tem uma pretensa dimensão filosófica, sobre a definição
mais correta do que seja o federalismo. Daí termos optado por não discutir mais aprofundadamente este
conceito, o que nos levaria, inevitavelmente, a discussões de ordem jurídica e política que remeteriam a
problemas ocidentais muitas vezes distantes das questões que na Nigéria se colocam.
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COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo
Ora, se o federalismo torna-se instrumento para a instituição de uma lei
diferenciadora, que é obrigatória para aqueles que se encontram no interior da jurisdição
islâmica, mesmo que não partilhem das crenças de Maomé, além de se gerar um grupo
essencialmente privilegiado, posto que em conformidade com as regras superiores, o
princípio da igualdade é completamente obliterado. A criação de justiças especificamente
islâmicas é uma mostra adicional dessa hipótese, uma vez que ela não constitui
meramente uma instância aplicadora de um conjunto de regras diferentes; e sim a
legitimadora de um conjunto de ordenamento superiores: se muçulmanos têm acesso às
duas justiças, e cristãos somente a uma, mas a lei muçulmana obriga a ambos, torna-se
claro que as regras de Maomé são vistas como, em um certo sentido, superiores, bem
como aqueles que as seguem.
Insurgindo-se contra tais práticas, os cristãos do sul chegaram a defender a
instituição de uma confederação, a qual preservasse os seus interesses, o que geraria uma
forma de organização política ainda mais distanciada da unidade. Percebendo o risco, e
colocando-se como defensor da organização original do que aqui chamamos de
“federalismo conjuntivo”, o governo central tentou acalmar os ânimos; entretanto, após a
definição, por parte da suprema corte, da constitucionalidade da doção do direito
muçulmano, a administração central deixou de oferecer resistência mais acirrada à
implementação completa da Sharia. O “federalismo conjuntivo” seria a renúncia a uma
maior independência dos estados em prol da garantia de regras comuns, instituídas pela
união, possibilitando a construção mais efetiva de uma convivência harmônica.
Cabe ressaltar, contudo, que tais fatos ocorreram durante o governo de um
presidente cristão, mas que fora eleito, sobretudo, por sua ampla votação no norte
muçulmano, e que, a despeito estas credenciais ecumênicas, foi acusado de deixar de lado
aqueles que o haviam colocado no poder. Assim, a separação entre um governante cristão
e uma população islâmica foi um dos possíveis gatilhos da expansão da Sharia (ELAIGU
e GALADIMA, 2003).
Tal processo colocou em causa a supremacia da constituição nigeriana, e, por
consequência, a possibilidade da manutenção de um Estado Democrático de Direito capaz
de se superpor aos interesses regionais. Contestou-se a adoção da Sharia com base
sobretudo, no décimo artigo da carta magna, o qual reza que “o governo da Federação ou
o de um estado não deve adotar nenhuma religião como religião estatal” (NIGÉRIA,
1999, p. 7), de modo que a implementação da lei islâmica no norte seria um rompimento
da superioridade da constituição e dos princípios básicos do pacto federativo. Argumenta464 | A l e t h e s
Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014.
se que os estados adotaram uma religião como oficial, em flagrante contraste com aquilo
determinado pela Constituição federal e com a própria orientação geral do governo. Esta
situação evidencia-se por uma série de fatos, sendo o mais claro a adoção de um
“Ministério de Assuntos Religiosos” em alguns dos estados nortistas (NMEHIELLE,
2004).
Essa desvalorização da constituição pode ser equiparada à daquilo que ela
representa, ou seja, a própria unidade, o poder da federação. Esta situação surge, em
grande medida, em decorrência do grande distanciamento entre o poder Estatal,
encarnado pela união, e a sociedade civil, a qual se vê mais refletida nos valores religiosos
encampados pelos estados. Tal situação, a qual favorece o “federalismo disjuntivo”,
encontra ecos não apenas na atuação material do governo, mas também em normas, ou
seja, em abstrações que versam sobre os modos de funcionamento da administração
pública, que estimulam a competição ente o poder central e as unidades da federação. Isso
se expressa no fato de que algumas matérias são de competência legislativa
compartilhada: tanto a casa dos representantes em Abudja quanto as dos estados podem
tratar delas, como é o caso do direito penal, foco da controvérsia sobre a Sharia. Essa
configuração da distribuição jurídica do poder fomenta (ou pelo menos abre ume brecha
para que haja) uma competição entre os vários níveis de poder estatais, favorecendo a
separação primeiro entre os diferentes estados, mas também de cada um deles com relação
ao todo.
Outra mostra da competição, em lugar de colaboração, existente entre os
elementos da federação nigeriana é o tratamento do sistema de saúde. Naquele país
africano, há a classificação dos problemas médicos em de nível primário, secundário e
terciário, em ordem crescente de complexidade e de gravidade. Ao governo central, cabe,
prioritária mas não exclusivamente, tratar das questões mais difíceis, sendo as secundárias
mais diretamente relacionadas aos estados, e as mais simples, terciárias, de competência
dos municípios (ASUZU, 2004). Contudo, como costuma render mais dividendos
políticos tratar dos problemas terciários, cujos equipamentos são mais caros, os estados
acabam investindo mais do que o que deveriam nesta área, relegando as questões de
atenção básica ao segundo plano. E a maior prejudicada é a população em situação de
fragilidade, já que seus problemas, teoricamente de resolução mais simples, são
esquecidos.
465 | A l e t h e s
COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo
Entre a liberdade religiosa e o respeito à pluralidade: Considerações Finais
A Nigéria, uma nação que passou por um recente processo de colonização e que
teve de enfrentar conflitos devido à enorme diversidade étnica presente no interior de suas
fronteiras, viu crescer nos últimos anos os conflitos de ordem religiosa. A despeito de a
constituição de 1999, surgida no processo de transição do regime militar findado em 1998,
garantir o secularismo do poder público, alguns entes federados optaram por adotar a lei
muçulmana como integrante do código penal.
Estes fatos levaram a um acirramento dos confrontos entre o sul
predominantemente cristão e o norte de maioria muçulmano, causando graves prejuízos
para o cumprimento dos direitos humanos, somando-se à fragilidade econômica difundida
na África e da qual a Nigéria, infelizmente, não escapa. Contudo, como pudemos
perceber, a solução para tais impasses não se encontra externamente, mas pode ser
atingida mediante o estímulo a mecanismos e forças internas à própria Nigéria. As
garantias constitucionais, a adesão a tratados internacionais e alguns dos princípios da
própria Sharia podem cumprir essa tarefa.
O grande empecilho para a realização desse objetivo é o sectarismo, o qual impõe
uma não-identificação entre os cidadãos7, a qual seria fundamental para a instituição de
garantias aplicáveis à totalidade da população. Superar este obstáculo implica atacar os
dois maiores problemas que levaram a situação nigeriana a chegar ao ponto em que se
encontram: o “federalismo disjuntivo”, cujo corolário é a supressão na prática da
supremacia da constituição; e a não identificação dos cidadãos com o estado. Estes
problemas são profundos, e, em última instância, suas raízes históricas e sociais
reverberam por toda a vida nigeriana. Abaixo, à guisa de conclusão, trataremos de
esmiuçar mais profundamente estas duas questões e apontar algumas possíveis soluções.
O “federalismo disjuntivo” esta umbilicalmente ligado ao distanciamento do
estado na vida das pessoas: com os péssimos índices de saúde e de educação (o
analfabetismo bate na casa dos 40% [CIA, 2013]), demonstrando a ineficiência do
governo federal, torna-se compreensível que os nigerianos não confiem na administração
central. Os grupos locais, por serem mais enraizados, sobretudo na tradição, adquirem
mais força, e apoiam a ampliação da influência da religião. Esta tem mais espaço para se
efetivar no âmbito dos governos estaduais, especialmente por que é entre estes que fica
7
E que se reflete na cisão entre os estados federados, bem como nos atentados perpetrados por grupos
fundamentalistas.
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Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014.
mais patente a cisão entre muçulmanos e cristãos, já que a maioria dos entes federados
possui quase sempre um grupo religioso com ampla hegemonia, de modo que as tensões,
pelo menos no âmbito político-administrativo, são deslocadas para a esfera estadual.
Juntando-se a gigantesca diversidade étnica da Nigéria ao quadro, fica mais clara
a impossibilidade de que haja a supremacia da constituição, que é (ou deveria ser) a
garantidora dos direitos humanos e ser uma ferramenta simbólica forte para a construção
da unidade e de compromisso com a convivência pacífica. A reaproximação com os
cidadãos passará, necessariamente, pelo incremento da qualidade dos serviços públicos,
aumentando a confiança em um governo central8.
Contudo, não se poderá gerar essa aproximação construindo-se um Estado
divorciado da história cultural nigeriana. Ou seja, não se pode prescindir da contribuição
da religião, sob pena de se impedir que os cidadãos se identifiquem com os princípios
básicos norteadores da administração pública, o que apontamos como o segundo
problema básico da implementação dos direitos humanos na Nigéria. Tentar trilhar o
caminho do estreitamento da relação entre governo e sociedade civil significa, mais
diretamente, uma aliança com o islamismo.
Como já foi dito, o islã está alicerçado em uma indissociabilidade fundamental
entre as esferas do público e do privado, o que implica que o muçulmanismo deve ter
espaços (controlados, evidentemente) de expressão de sua fé no âmbito público. Assim,
para a garantia da união entre governantes e governados, não se pode deixar de lado, por
exemplo, a aplicação da Sharia no direito de família e no das sucessões para os
muçulmanos, salvaguardo, claro, um tratamento diferenciado para os casos que envolvam
praticantes de outras religiões. Nesse processo, a presença de uma justiça especial para a
aplicação do direito muçulmano é de suma importância: ela permite enxergar, claramente,
a presença de princípios obviamente nigerianos (dito de outra forma, de matriz islâmica)
no funcionamento constitutivo do Estado. Uma cisão restrita no direito é uma concessão
a qual permite que práticas específicas sejam preservadas, de modo a abrir espaço para
que, com base na identificação com o Estado, os cidadãos reconheçam neste um agente
legítimo de intervenção na coletividade.
8
Ou seja, a imprescindível ajuda internacional deve ter em mente que suas ações devem buscar, na máxima
medida do possível, uma aliança com o Estado. Caso contrário, permanecerá imensa a desconfiança para
com o governo. Essa conjunção de forças é mais fácil na Nigéria do que em outros países africanos por
causa da ausência de uma ditadura; contudo, ainda há de se enfrentar diversos outros problemas, como a
violência, a falta de recursos, a conhecida corrupção do governo, dentre outros, já exaustivamente tratados
em outros trabalhos.
467 | A l e t h e s
COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo
Além disso, faz-se necessário explorar as disposições do direito islâmico que
promovem a convivência pacífica, as quais vêm sendo ignoradas na implementação da
Sharia na Nigéria, como mostramos acima. Não é possível simplesmente transplantar os
institutos do direito ocidental, e muito menos esperar que os nigerianos constituam uma
forma nova de normatividade: esta já existe, e é a Sharia. Não é possível ignorar que ela
se constitui como o terceiro maior sistema jurídico do mundo moderno, após o civil law
e o common law (BADAR, 2011), sendo, portanto, depositário de uma tradição cultural
e de uma série de reflexões que vem de longa data. Assim, a exploração dos princípios de
igualdade, “reserva legal”, busca pela justiça, primazia da lei, e outros, pertencentes ao
próprio sistema islâmico de direito, cuja aplicação está atrelada a mecanismos
específicos, deve ser explorada. Nesse sentido, a presença de juízes versados em direito
muçulmano em cortes pode ser um fator positivo, já que, pelo fato de estes deverem ser
apontados pelo governo (NIGÉRIA, 1999), é possível prezar pela escolha daqueles com
formação humanística mais sólida. Balanceando-se o quantidade de juízes islâmicos e
comuns, pendendo-se mais para esses, pode ser uma ferramenta importante para garantir
a aplicação de uma normatividade comum que incorpore as especificidades do islamismo,
sem deixar de lado os outros grupos.
Entretanto, propugnar pela legitimação do Estado perante os muçulmanos através
da recorrência ao direito da tradição islâmica só fará sentido se o governo também for
capaz de se legitimar perante os não-muçulmanos. E isso só é possível na medida em que
seja construída uma esfera correspondente à da Sharia de prática ampla das outras
religiões, o que, no caso do cristianismo, por exemplo, pode se dar com a liberdade de
realização do proselitismo. Também devem ser garantidas as práticas das religiões
tradicionais, assegurados os locais de culto e a realização de suas cerimônias; e também
o direito de não se praticar religião alguma. É interessante a proposta de Lanre Bolatito
(2013, p. 141), de criação de conselhos compostos por membros dos diferentes grupos
religiosos, de modo a construir políticas comuns as quais, respeitando os direitos
humanos, garantam a liberdade religiosa. Com o reconhecimento do Estado como um ator
capaz, que incorpora as contribuições religiosas sem se engolfado por elas, será possível,
então, a imposição de um espaço comum de convivência entre os diferentes grupos,
permitindo, portanto, uma mitigação dos conflitos.
É possível que se tenha percebido que a visão anteriormente apresentada se
distancia, em certa medida, com a construção ocidental da separação entre direito e
religião. Nós, ocidentais, reconhecemos que a religião pertence à esfera do privado,
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Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014.
devendo ser distanciada do público (POWELL, 2011; RAMOS, 2010); também em
função de uma visão cristã que sempre procurou colocar uma clara linha demarcando o
âmbito do secular e do religioso, ainda que esta fronteira se turvasse em determinadas
épocas. Entretanto, em um país com a Nigéria, com uma história cultural bastante
diferente da nossa, tal visão deve ser, no mínimo repensada. E, diante do que
apresentamos neste trabalho, torna-se legítimo crer que o importância da religião como
elemento na constituição da solidariedade coletiva dos nigerianos e, no caso dos
muçulmanos, instrumento de legitimação normativa em determinados âmbitos do direito,
faz dela um elemento que deve sim ser incorporado na construção do Estado nacional.
Afinal, nem todos os povos necessitam adotar as mesmas opções culturais preferidas por
nós ocidentais.
Contudo, não estamos aqui advogando por uma completa união entre “igreja” e
Estado na Nigéria. O que se está afirmando é que a convivência entre os diferentes grupos
culturais implica aceitar seus pressupostos comportamentais na medida em que não
impeçam a convivência. E, nesse sentido, é imprescindível que, fora de determinadas
esferas mínimas, a religião possa ser mesclada àquilo que, no ocidente, é tarefa
exclusivamente pública e temporal, como o caso do direito das sucessões. Com isso, se
garantiria o direito à liberdade de crença religiosa, o qual implica não só a possibilidade
de acreditar em uma certa metafísica, mas também de orientar a maior parte de suas
práticas quotidianas por aquelas convicções.
Não há, dessa forma, pretensão de que a tolerância signifique conivência com
todas as práticas consideradas abusivas perpetradas por grupos fanáticos. O que é
relevante é que haja uma reapropriação de pressupostos de uma razão universal,
umbilicalmente ligados ao desenvolvimento do cristianismo e que depois, em certa
medida, seriam reincorporados pelo islamismo (ALVES, 2007), os quais permitem a
construção das bases para um debate. Este pode se dar (e é importante que se dê) tanto no
âmbito secular como no religioso. Como exemplo dos primeiros, temos a implementação
dos direitos humanos por vias estritamente constitucionais, e outras de caráter puramente
normativo. Já na esfera de atuação do segundo, podemos falar na legitimação de certas
práticas, como o direito das mulheres de dirigir, ou a proibição da poliginia, com base em
interpretações do Corão.
Isso permite a legitimação do discurso religioso como mais um considerável na
constituição dos valores públicos, ao lado da ciência, da filosofia e das ideologias
políticas, balizado, como todos os outros, pelo princípio da harmônica conivência mútua.
469 | A l e t h e s
COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo
Ou seja, a religião é contribuinte, mas não legitimadora, da ação pública. Assim será
possibilitada a necessária identificação dos cidadãos com o Estado, mas estará
salvaguardado o respeito às diferenças e às minorias. Essa perspectiva, inovadora tanto
com relação à absoluta cisão entre direito e religião própria das sociedades ocidentais
modernas, bem como da visão à ela anterior, de união entre os dois termos, seria capaz
de unir o direito à diferença e o à identidade.
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Entrevista com Daniela de Freitas Marques
473 | A l e t h e s
Entrevista com Daniela de Freitas Marques
474 | A l e t h e s
Entrevista com Daniela de Freitas Marques
Entrevista
Daniela de Freitas Marques é graduada (1995), mestre (1998) e doutora (2005)
em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, trabalhando na área do Direito
Penal. É juíza de direito da Justiça Militar de Minas Gerais, e professora da FDUFMG.
Também já foi vice-presidente do Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG, além de
direitora da Revista da Faculdade de Direito da UFMG.
No dia 9 de novembro, Daniela recebeu gentilmente a Alethes, representada pelo
nosso editor Arthur Barretto, para uma entrevista no prédio da justiça militar de Minas
Gerais. Uma profunda conversa sobre temas como o papel da Polícia, Direito e Literatura,
o papel do professor e outros, que agora publicamos, acreditando que ela pode acrescentar
em muito ao público da nossa revista
você
virtudes. E o direito é um amálgama de
trabalha muito com a área Direito e
vida, é um conhecimento antes de tudo
Literatura.
a
cultural. E o direito cuida de problemas
literatura e outros tipos de arte podem
humanos: da relação do homem com ele
contribuir com o Direito?
mesmo, do homem com o outro, do
Alethes:
Professora,
Para
você,
como
homem em sociedade. Há um conceito
Daniela: A literatura sempre foi
do Dante Alighieri sobre direito no livro
uma grande paixão da minha vida. Na
A Monarquia: ele fala que o direito é a
verdade, desde que eu me entendo por
proporção real e pessoal de homem para
gente, os livros ocupam um papel
homem que, conservada, conserva a
fundamental
minha formação:
um
sociedade,
na
amor
à
biblioteca e um
O Direito é um amálgama de
vida, é um conhecimento
antes de tudo culural
amor aos livros.
corrompida, a
corrompe.
E
quando ele fala
de
A literatura cuida dos grandes
e
uma
proporção real e pessoal, isso, no fundo,
grandes
é um conhecimento literário: qualquer
questões: das dores, dos sofrimentos, das
obra de arte, qualquer obra literária,
falhas humanas, das misérias, das
qualquer texto (e não só o texto literário,
problemas
humanos,
das
475 | A l e t h e s
Entrevista com Daniela de Freitas Marques
porque uma pintura também é um texto,
vícios, todo o deboche, toda a perversão
assim como uma escutura) revela as
de uma cultura que, para o europeu, era
paixões humanas. Se eu olhar, por
decadente. Isso revela concepções de
exemplo, uma escultura como a do
mundo, entre o nosso direito que tem
Moisés, do Michelangelo: tem toda a
uma herança europeia, ocidentalizada; e
força dos 10 mandamentos caindo por
como ele é lido e relido nas Américas.
terra, a raiva que o Moisés talvez teve
Porque nós trabalhamos com
quando viu o povo cultuando um outro
vários níveis de literatura, e cada livro
deus. Isso, no fundo, é uma questão de
discute um mundo, e o direito cuida do
interdito, de obediência.
mundo. Na verdade, a literatura nos
Quando se lê um grande livro
permite ver o direito de uma forma
como - hoje, por exemplo, eu falei com
poética, repleta de paixão, repleta de
os meus alunos de Processo e Literatura
vida. A literatura tem um grande dom: o
sobre – Jane Eyre. No fundo, essa é uma
condão de nos tornar mais humildes e
história de amor, de orgulho: é uma
compassivos. Muitas vezes, nós vivemos
história de uma mulher que não está
vidas que jamais imaginaríamos que
condenada ao casamento, pois ela tem a
iríamos viver se não fosse pela literatura:
força para resistir a uma situação
eu consigo compreender a dor de uma
ilegítima: ser amante de um homem
mulher abandonada que talvez seja a
casado, que queria contrair um novo
motivadora de uma conduta criminosa
casamento
com
ela sem ela saber
da situação do
bígamo. Mas é
uma história de
força,
Na verdade, a Literatura
nos permite ver o direito de
uma forma poética, repleta
de paixão, repleta de vida
terrível, como o
caso da Fera da
Penha, um crime
acontecido em 30
de julho de 1960,
em que a mulher,
de
coragem; mas também é uma história de
amante de um homem casado, resolve se
preconceito, de comparação entre duas
vingar dele matando a filha dele de 4
culturas: a europeia, que se viu como a
anos de idade com um tiro na cabeça e
fina flor da civilização, e a cultura das
queimando parcialmente o corpo com
Américas, representada pela primeira
álcool, no matadouro da Penha, no Rio
mulher do Mister Rochester, a Maison,
de Janeiro. Ficou conhecida com a
que era uma crioula (uma nativa da
“Besta
América). Ela representa talvez todos os
“Frankenstein de Saias”. Esse drama
Fera”,
“Fera
da
Penha”,
476 | A l e t h e s
Entrevista com Daniela de Freitas Marques
humano, esse crime é quase que um Mito
ter nessa vida o prazer de ler um Dom
de Medeia traduzido. Quase que aquela
Quixote”.
visão
da
mulher
que
perdeu
a
O Dom Quixote talvez possa ser
possibilidade de se salvar por um
lido de várias formas; esse símbolo do
casamento porque aquele homem em
homem que sonha, que, na verdade, é
quem ela confiava e acreditava a
mais que um herói, porque uma pessoa
abandonou: uma vingança feita pela
que ousa viver uma vida verdadeira,
mulher ao homem que ousou abandoná-
quando
la, mas não feita no corpo e na pele dele,
hipócritas, quase que com uma cobertura
mas no espírito, porque ele sempre se
farisaica. Eu acho que o sonho é
lembraria da morte dada à sua filha. Isso
fundamental para o direito; o direito não
é literatura!
é compreendido sem esse componente
nós
somos
muitas
vezes
onírico que, no fundo, é o componente da
Al: O símbolo da nossa revista,
imaginação. E na verdade, boa parte dos
a Alethes, é o Dom Quixote. A gente o
grandes casos de direito, das grandes
escolheu por representar a ideia de
histórias de direito tiveram um grão de
utopia e de sonho. Para você, qual é o
sonho e um grão de ousadia. O caso so
papel do sentimento e do sonho na
Sobral Pinto, que eu já contei, quando ele
produção da ciência?
defende o Harry Berger com a legislação
de proteção aos animais; um outro caso
Da: Eu acho fundamental. Eu
do Sobral Pinto, quando eles impetram
amo profundamente o Dom Quixote. Ele
um Habeas Corpus, que era o antigo
é um dos maiores livros já escritos. Uma
Habeas Corpus de localização, apesar da
vez,
eu
vi
um
documentário sobre
grandes
livros,
e
havia um professor,
um intelectual bem
velhinho
Boa parte dos grandes
casos de Direito tiveram
um grão de sonho e um
grão de ousadia
que
proibição
da
impretração
de
Habeas Corpus
no
caso
de
crimes contra a
segurança
perguntava para os jovens: vocês já
nacional e atos de subverção, imposta
leram Dom Quixote? E quando o jovem,
pelo Ato Institucional n. 5. Esse tipo de
a pessoa respondia para ele: “não, não li
defesa só foi possível pelo grão de
ainda não”: “Que bom! Vocês ainda vão
imaginação e ousadia. Eu acho que é
fundamental o sonho, até porque a vida é
477 | A l e t h e s
Entrevista com Daniela de Freitas Marques
sonho. O Calderón de La Barca fala isso:
cada vez mais presente e os espetáculos
a vida é sonho. Nós não podemos seguir
tomam o lugar da essência das pessoas,
uma vida real se não vivermos uma vida
queremos tudo muito fácil. Com a lei do
sonhada por alguém.
menor esforço, com a menor dificuldade
possível, com “pílulas de felicidade”, e
pode
essa não é a vida. A vida tem que ser
transformar a sala de aula em um
tomada até o seu âmago. A vida, no
espaço mais atraente para o aluno? A
fundo, é um sacrifício. Não adianta a
literatura pode contribuir com isso?
gente tentar afastar o cálice, nem do
Al:
Como
a
gente
conhecimento nem do sofrimento da
Da: Eu acho que a literatura
vida.
contribui, desde que ela seja uma paixão
Se a literatura pode tornar mais
compartilhada. O espaço de sala de aula
atraente: eu acho que depende. A sala de
precisa ser atraente em certa medida? Ele
aula é tão heterogênea que, de repente
precisa. Mas o saber, o conhecer, é algo
um professor que dê uma aula baseada na
árduo. Não é algo fácil. O conhecimento
literatura vai ter alguns alunos que vão
dói, as grandes vitórias da vida doem.
seguí-lo
Um grande amor é sacrificado, é doído;
fantástico.
as perdas da nossa vida, seja de pessoas
terrível, porque ele não está dando o
queridas, seja de frustrações de trabalho,
direito propriamente dito, antes ele
elas são doídas, elas são sacrificadas. O
contasse os seus casos, trabalhasse com
conhecimento,
de
jurisprudência, trabalhasse com a leitura
conhecimento, a obtenção de cultura é
da lei. Outros não querem nem saber da
difícil, ela é sacrificada. Ela tem um
vida, vai depender, na verdade, do seu
componente muito grande de esforço, de
sonho. Eu acho que o professor tem um
trabalho. Então, na verdade, essa atração
papel de despertar curiosidades, de tentar
funciona como uma espécie de fuga da
despertar o conhecimento, de indicar
realidade dura do conhecer. Porque,
talvez, como diz o Umberto Eco, as listas
quando
de conhecimento.
eu
a
obtenção
quero
conhecer
e
que vão
Outros
achar
vão
achar
aquilo
algo
profundamente, eu vou ter uma certa
dose de sacrifício e de trabalho difícil.
Al: Além de professora você é
Nós, os ocidentais, em uma
juíza. Como você faz para conciliar
sociedade em que nos últimos anos os
essas duas carreiras sem deixar a
mitos se perderam, em que o consumo é
478 | A l e t h e s
Entrevista com Daniela de Freitas Marques
docência em segundo plano, como
trabalho de sala de aula: ele tem que
acaba acontecendo com muitos?
estudar, que preparar as aulas, às vezes
tem que descobrir um texto que casa com
Da: Eu não sei (risos)! É difícil
aquele tema de que ele fala, ele tem que
na
ter hoje alguma produção científica
universidade, eu tenho a menor carga
relevante, se é que se pode chamar assim:
horária possível entre os professores da
escrever artigos, pesquisar; e eu vejo que
universidade. Pelo menos na federal ou
às vezes a minha produtividade é um
você é 20 horas, ou 40, ou Dedicação
pouco aquém daquilo que eu gostaria que
Exclusiva. Então eu seria uma professora
ela fosse. Eu tento me empenhar, mas às
nitidamente de sala de aula.
vezes eu acho que o meu esforço não é
conciliar.
Eu
sou
20
horas
É a conciliação de paixões:
suficiente. E a magistratura, bem ou mal,
muitas vezes eu me divido entre a minha
é a minha atividade principal. Então, eu
profissão de juíza, que, para mim, é
tento tratar a magistratura com o maior
extremamente importante, eu amo o que
cuidado possível, até porque em cada
eu faço; a minha função de professora
processo eu tenho a vida de uma pessoa
também
para decidir. E não é
é
extremamente
importante,
apesar
das
muitas
crises
que, às vezes, a
Cada processo, na verdade,
é um grande drama, e esse
drama não pode ser tratado
com descaso
só a vida daquela
pessoa:
é
a
da
família dela, é a da
(possível)
vítima.
Cada processo, na
gente tem, seja no magistério, seja na
verdade, é um grande drama, e esse
magistratura. Tem talvez aí a mesma
drama não pode ser tratado com descaso.
Então, de uma forma ou de outra,
raíz.
A conciliação para mim às vezes
eu tento conciliar. É lógico que elas se
é um pouco complicada, eu trabalho
ajudam: às vezes, por exemplo, um caso
muito, pelo menos na minha forma de
aqui na justiça me ajuda em sala de aula
ver. Começo a trabalhar 7:30 da manhã,
num
que é quando eu dou as aulas (e mesmo
reflexão em sala de aula, uma pergunta
qunado eu não dou as aulas, eu começo a
de um aluno, alguma experiência de sala
trabalhar a partir de 7:30 da manhã), e eu
de aula é frutífera para aqui. E eu me
encerro meu serviço 8, 9 horas da noite.
sinto jovem às vezes, por lidar com a
Porque o trabalho do professor não é ó o
juventude, inclusive nos erros, como
determinado
exemplo;
uma
479 | A l e t h e s
Entrevista com Daniela de Freitas Marques
hoje eu brinquei que vocês tinham que
direito desempenhou no passado e que
pensar com a própria cabeça (risos).
pode vir a desempenhar no futuro. E que
nunca uma decisão, nunca uma atuação
Al: Qual é o papel do direito
enquanto ciência e da academia na
se esgota naquele momento, ela vai ter
consequência para além.
Então, ler, por exemplo, um livro
prática forense?
de um grande constitucionalista, um
Da: Eu não penso muito no
livro dos teóricos da justiça, um grande
Direito como ciência não, a não ser que
filósofo do direito como foi Kelsen, é
a gente pense a ciência como algo que o
fundamental para compreender não só o
Menelick falava: como um saber que se
momento
sabe provisório.
escreveram, mas também concepções de
histórico
em
que
eles
Eu acho que o Direito é, antes de
direito e concepções de mundo que
tudo, história, cultura e política. Há no
dialogam com outras que podem,
direito muita política. O papel do direito,
eventualmente, ser divergentes. Então
do conhecimento acadêmico no campo
saber, conhecer profundamente o direito
profissional, seria isso? É fundamental.
é fundamental. É lógico que esse
A
conhecimento
universidade
tem a obrigação
de
formar
juristas, não de
formar
–
expressão
uma
Eu não penso no Direito
como ciência. Eu acho que
o Direito é, antes de tudo,
História, Cultura e Política
aprofundado
é
difícil de se obter.
A
minha
área,
Direito Penal e
Processo Penal, é
terrível, no meu modo de ver –
difícil. É difícil, por exemplo, pensar em
“operadores do direito”. Essa é, na
uma teoria do crime com fundamento no
verdade, uma visão técnico-instrumental
fato analítico: conduta típica, ilícita e
da função do jurista. Nem tampouco
culpável. Não, eu tenho que saber de
leitores de leis, porque saber ler uma lei,
onde veio o tipo, qual é a concepção de
ler um código não é saber direito. O
tipo, os elementos que o compõem, quem
Direito tem que despertar a sensibilidade
o elaborou pela primeira vez, tenho que
daquilo que eu estudo para o seu tempo
saber os doutrinadores: Beling, Nagler,
atual, para a vida atual, para as pessoas.
Metzer.
Mas para ter despertada a sensibilidade,
componentes da ilicitude: a ilicitude é
eu tenho que saber todo o papel que o
única no direito penal, ela é geral. Qual é
Tenho
que
saber
os
480 | A l e t h e s
Entrevista com Daniela de Freitas Marques
o papel, por exemplo, de Aldo Mouro no
embrião da justiça militar da união; isso
conhecimento da ilicitude. Porque esses
foi em 1° de Abril de 1808.
conhecimentos supostamente teóricos
Porque
um
dos
aspectos
vão ter um impacto prático. E, de
fundamentais da Justiça Militar é a
repente, eu tenho um caso ali que se
disciplina e a organização das tropas
afigura difícil, e esse caso difícil me
militares. Grande parte das forças
ajuda a pensar ou a efetivar aquele
armadas,
cabedal de teoria que eu tenho dentro de
civilizados, dos países desenvolvidos
mim. Então eu acho que é fndamental:
tem uma Justiça militar, porque no meio
sem o conhecimento aprofundado do
militar, a autoridade é o que guia,
Direito não se tem o profissinal do
baseada no princípio da hierarquia e no
direito.
da disciplina. No campo civil, não existe
grande
parte
dos
países
essa subordinação à autoridade.
Al: Qual é o papel da justiça
Então, a justiça militar foi criada
militar no contexto da democracia,
no período de organização das tropas
apóso o fim da ditadura militar de
aqui no Brasil. Ela teve um papel
1964?
importantíssimo; ela foi, por exemplo, a
primeira a conceder liminar em habeas
Da: Há um grande erro de se ligar
corpus no Brasil, que depois houve uma
a justiça militar ao regime militar. A
decisão lá no Supremo Tribunal Federal,
Justiça Militar é bem mais antiga, seja a
se não me engano para assegurar a posse
do Nilo Peçanha.
da união, seja a dos
estados. A da união
foi o primeiro órgão
judiciário criado no
país,
quando
as
topas do Dom João
vieram para o Brasil
fugindo
Não sei se o conhecimento
evita a repetição da
história, porque, às vezes,
novas roupagens
escondem velhas ideias
das
Durante
o
Regime Militar, a
atuação
Justiça
da
Militar,
pelos
historiadores
é
controvertida.
invasões napoleônicas, escoltados pelos
Hoje os arquivos têm vindo à tona, e isso
ingleses, que os truxeram até o Rio de
é bom, porque nos permite ver a nossa
Janeiro. Ele fundou o Conselho Supremo
história. Curar as nossas feridas? Não sei
Militar de Justiça de Guerra, que é o
se é o papel da história. Mas pelo menos
evitar que a história não se repita? Não
481 | A l e t h e s
Entrevista com Daniela de Freitas Marques
sei se o conhecimento evita a repetição
uma justiça militar, mas se as justiças
da história, porque, às vezes, novas
militares ainda são necessárias ao Brasil,
roupagens escondem velhas ideias.
a minha opinião é que são. Não, porque
Mas há controvérsias sobre o
jamais foram, órgãos de exceção, mas
papel da justiça militar: a verdade nunca
porque a disciplina delas é diferente, são
é única, a verdade é múltipla. Carlos
contingentes armados, em que há ali
Drummond de Andrade fala isso: a
decisões sobre condutas que pertinem ao
verdade está casada com uma meia-
militar. Para ser clara, ele está sujeito a
verdade, e juntas formaram outra meia-
dois códigos: ele está sujeito ao Código
verdade. E há historiadores que falam
Penal comum, ele pode praticar qualquer
que o papel da justiça militar da união,
crime do Código Penal comum, mas ele
no regime militar, foi trazer de forma
está sujeito ao Código Penal Militar
anômala uma espécie de discussão
também, que é a chamada “lei penal de
daqueles casos que não eram discutidos
barretina”, na expressão do Napoleão
durante o regime militar. Ela teve uma
Bonaparte.
ampliação de competência, vinda pelos
possibilidade de dupla imputação. Isso
atos institucionais; mas eu acho um
não é uma exceção, nem um privilégio
equívoco historiográfico vincular a
concedido aos militares, no meu modo
justiça militar da união ao regime militar.
de ver.
Então,
ele
tem
uma
Porque, se não, teria que vincular todas
as justiças, inclusive o antigo Tribunal
Regional
Federal
de
Recursos.
Estruturas autoritárias existem em todas
Al: O que você achada questão
da desmilitarização e da proposta de
unificação das polícias?
as instituições.
Quanto à justiça militar dos
Da:
Eu
sou
contrária
à
estados, ela é uma criação já do século
desmilitarização das polícias porque
XX que cuida dos policiais militares e
você só vai mudar o nome e manter,
dos
talvez, a mesma essência.
bombeiros
militares
naqueles
estados em que estes existem. Jamais a
Eu acho que, na verdade, para
justiça militar dos estados julgou civis. A
quem conhece as polícias, elas hoje são
justiça militar da união até hoje tem
muito menos militares do que se
competência para o julgamento de civis.
imagina. Nós temos aí a polícia
Eu penso, particularmente, que não mais
comunitária, as atuações sociais, e
se justifica o julgamento de civis por
trabalhos importantíssimos como, por
482 | A l e t h e s
Entrevista com Daniela de Freitas Marques
exemplo, a ecoterapia na cavalaria.
unificação, porque é um vocábulo tão
Então eu não acho que seja a saída a
amplo, que abrange tantas e tantas
questão da desmilitarização. Eu acho que
propostas, que não permite saber, na
esse discurso vem recheado de divisões
verdade, o que ele quer no fundo. Teria
do regime militar, como uma forma de
que haver a proposta em mesa para que
tentar passar a limpo a história, como
houvesse a discussão.
uma forma de limpar a história. E a
Na verdade, os dois temas são
história não pode ser varrida para
extremamente difíceis. Mas eu entendo
debaixo do tapete.
que há uma simplificação dos debates. E,
A unificação das polícias é uma
mais do que isso, eu acho que deveriam
questão complicada, pois diz respeito ao
ser ouvidas as pessoas que realmente
ciclo das polícias: em quero ter uma
estudam a história, que conhecem
polícia com ciclo único, de prevenção e
profundamente as instituições. Existem
investigação, ou eu posso ter uma polícia
aí historiadores das forças armadas,
cindida, como atualmente acontece?
historiadores das polícias militares.
Qual que é o papel da unificação, é um
Existem
papel de diálogo? Eu vou ter um
profundamente a profissão do policial
inquérito
um
boletim de ocorrência,
hojé
já
informatizado,
é
que
militar,
policial
informatizado,
que
pessoas
A história não pode
ser varrida para
debaixo do tapete
civil,
conhecem
do
do
policial
policial
federal, no campo aí
das
unificações.
Existem pessoas que
pelo
menos aqui em em Minas? O REDS vai
conhecem profundamente a questão do
necessáriamente
à
que que é o conceito militar, quais são as
instauração de um inquérito? Eu não sei
possibilidades militares. Então é um
qual seria o papel da questão da
discurso difícil, que não se exaure aí em
unificação.
me
5 ou 10 minutos de conversa. O que eu
parecem quase que utópicas, outras me
acho, na verdade, é que a questão tem
parecem possíveis, no sentido de um
que
diálogo entre as polícias, de uma
aprofundada e, inclusive, politicamente
integração, como tem sido feito, ainda
decidida: que tipo de país eu quero
não de maneira ideal, e que ainda pode
construir, quais são as demandas, o que
ser melhorado. Realmente eu não sei
que
muito me posicionar sobre a questão da
atualmente,
dar
Algumas
margem
propostas
ser
a
menos
segurança
na
panfletária,
pública
questão
mais
precisa
da
483 | A l e t h e s
Entrevista com Daniela de Freitas Marques
desmilitarização. São questões confusas,
violações,
eventuais
transgressões,
complicadas, complexas. Mas fica aí a
eventuais crimes. Mas elas não são a
questão: eu acho que menos panfletagem
instituição, elas não representam a
e mais estudo, estudo com seriedade.
instituição. As polícias militares são
instituições seríssimas, que, muitas
Al: Quais seriam possíveis
vezes, têm um papel fundamental até
medidas para aproximar mais a
mesmo social: em pequenas cidades, às
polícia da sociedade civil e evitar o tipo
vezes, o que eu tenho como presença do
de
Estado é um destacamento ou um sub-
violência
policial
que
ainda
destacamento policial. Às vezes, naquele
acontece?
destacament ou sub-destacamento, o
Da: Tem o trabalho da chamada
policial ali é a representação da
polícia comunitária, Ela tem justamente
autoridade. Ele lida, muitas vezes, com
esse viés, esse enfoque de aproximação
vários problemas.
do policial com a população civil. Tem o
Então, eu acho que isso parte de
policiamento do bairro, a polícia tem
um esforço da sociedade civil, em
hoje – eu posso falar da Polícia Militar
conjunto com as polícias militares, para
daqui de Minas – ela tem viaturas de
ter
atendimento a casos de ocorrência de
aproximação da polícia também é uma
Maria da Penha, de violência doméstica
aproximação difícil porque a polícia
familiar, há reuniões com os conselhos
militar atua com a função de prevenção e
de comunidade para se decidir sobre a
de ostentação. Se há o cometimento de
questão
do
policiamento,
da
intervenção da polícia.
Não
se
pode
confundir uma questão
individual, de violência,
desmando, arbítrio de
essa
aproximação.
Mas
a
um crime, eu vou ter
Às vezes eu acho que
o criminoso é o outro,
geralmente, aquele
em quem eu não vejo
alguém igual a mim
que ter a atuação da
polícia,
essa
atuação pode não
agradar
aquelas
pessoas
que
cometem
Aquela
algumas pessoas que se
e
crimes.
velha
encontrem nas instituições com a
história do “você sabe com quem você tá
instituição
qualquer
falando”: será que eu quero uma polícia
instituição, sempre vai haver uma pessoa
que atua contra todos que estão no
ou outra que vai cometer eventuais
momento de infração? Não sei se nós
em
si.
Em
484 | A l e t h e s
Entrevista com Daniela de Freitas Marques
queremos; às vezes, por exemplo, eu não
politicamente organizada, eu tenho que
me vejo como um infrator: às vezes eu
obedecer às regras do jogo. E, se eu tiver
acho que eu posso dirigir embriagado,
uma polícia realmente efetiva, ela vai ter
que eu posso dirigir sem documentos, eu
de atuar, pela própria propra função dela
acho que eu posso cometer as mais
de uso legítimo de força, contra aquelas
variadas
as
pessoas que desrespeitaram as regras do
administratiavas até as criminais, mas
jogo. Eu fico pensando até que ponto que
que, na verdade, o criminoso é o outro,
nós, sociedade, queremos uma polícia
geralmente aquele em quem eu não vejo
assim também. Mas há, assim como eu
alguém igual a mim.
disse, trabalhos importantíssimos da
infrações,
desde
Se eu tenho uma polícia que se
aproxima
da
comunidade, e a
polícia
tende
a
fazer isso, como eu
dei o exemplo da
polícia
comunitária, essa
polícia,
que
mesmo
não
aproxime
se
polícia: há trabalhos sociais, o PROERD,
Eu não gosto muito da
ideia de “pacificação”,
porque ela não significa
cuidar efetivamente do
problema; talvez
simplesmente esconder ou
espraiar a questão
se
eu
não
me
engano, na Polícia
Militar
aqui
de
Minas,
que
faz
palestras
nas
escolas, sobre o
uso de drogas, há
os
policiamentos
de bairro, há os
policiamentos da
da
comunidade, se for uma polícia mais
Maria da Penha. Pode melhorar? Acho
justa e mais igual, ela não vai atuar
que tudo é passível de melhora. A gente
somente como uma força de contenção
estava falando da universidade: a gente
daquele indesejável, mas também como
vê tantas iniciativas boas, mas tantas
uma força de atuação efetiva contra
iniciativas
aquele que não se vê como criminoso por
possibilidades de melhoria. Acho que
nobreza
isso é a verdade de toda instituição.
de
nascimento,
codições
que
naufragam,
tantas
econômicas. Então eu acho que o
discurso tem que ser retirado desse viés
Al: Só mais uma questão: você
de mantos de falsidade. A lei – é quase
tem alguma opinião sobre a política de
que um lugar-comum falar isso – existe
UPPs lá do Rio de Janeiro?
para todos, para o bem e para o mal. Se
eu estou numa determinada sociedade
485 | A l e t h e s
Entrevista com Daniela de Freitas Marques
Da: Eu conheço muito pouco.
Assim, eu não gosto muito da ideia de
“pacificação”, porque a pacificação não
significa
cuidar
efetivamente
do
problema; talvez simplesmente esconder
ou espraiar a questão, então, eu não
tenho conhecimento sobre as UPPs para
poder te falar assim não. Teria que
estudar mais, se não eu vou te dar uma
informação que não é refletida. Mas eu
não acho que é a saída ideal, mas eu não
posso criticar o programa porque eu não
conheço a fundo.
Al: Então é isso. Muito obrigado
professora.
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Normas de Publicação
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Normas de Publicação
Normas de Publicação
1. Regras Gerais
1.1 Todo artigo deve ser de autoria exclusiva de graduandos, não havendo
restrições com relação a área de conhecimento abordada, desde que dialoguem com a
temática jurídica.
1.2 Para cada artigo submetido será aceito para avaliação apenas 1(um) trabalho
como primeiro autor e os demais como co-autor, não podendo ultrapassar o máximo de 3
(três) no total.
1.3 Para a submissão de trabalhos, o autor deve enviar três arquivos em formato
Word (.doc ou .docx) para o e-mail do periódico ([email protected]): um
arquivo com o texto completo do artigo; um segundo arquivo com o mesmo texto, mas
sem a identificação do autor; e um terceiro arquivo apenas com os dados (nome completo,
filiação institucional e contatos) do(s) autor(es) e área do Direito que abordada
diretamente no trabalho.
1.4 Os trabalhos devem conter de 15 a 20 laudas e estar de acordo com a
formatação descrita nos itens abaixo e disponíveis no site do periódico:
http://periodicoalethes.com.br/.
1.5 O artigo submetido deverá ser inédito, e não estar sob avaliação de nenhuma
outra revista. Entretanto, obras publicadas em anais de congressos e outros eventos
acadêmicos podem ser republicados na revista, contanto que tenham ocorrido alterações
substanciais.
2. Critérios de avaliação e aceitação dos artigos.
2.1 Todo artigo será submetido à análise do Conselho Editorial, sendo enviados a
dois pareceristas anônimos para avaliação qualitativa de conteúdo, segundo o método da
avaliação duplo-cega por pares.
2.2 Os pareceristas serão definidos pelos editores de acordo com a área de
atuação/formação, a qual deverá ser, na máxima medida do possível, coincidente com a
temática do artigo a ser avaliado.
2.3 Os pareceristas deverão optar por uma das seguintes recomendações:
Aprovado; reprovado; aprovado com necessidade de alterações. Caso haja uma aprovação
e uma reprovação, o artigo será enviado a um novo pareceristas para decisão final.
2.4 Recebidos os pareceres pelo Editor, esse definirá a publicação ou não dos
artigos, enviando as justificativas e especificações necessárias ao autor, com o intuito que
ele possa adequar seu trabalho às sugestões feitas e reenviá-lo para nova avaliação.
2.5 Os pareceres poderão conter indicações de bibliografia, sugestões de
mudanças na estrutura dos textos, acréscimo ou subtração de informações, críticas,
elogios, sugestões e outras observações julgadas pelo pareceristas como pertinentes para
a melhoria do conteúdo do artigo e para a adequação deste aos critérios definidos pela
revista.
2.6 Feitas as alterações pelos autores, caso sejam aprovadas pelo conselho
editorial, o artigo será publicado. A ALETHES, no entanto, reserva-se o direito de colocar
as obras nos números seguintes, conforme for a conveniência.
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2.7 O processo de análise dos artigos terá o prazo de 30 a 45 dias, que se iniciará
ao fim da chamada de artigos, definido neste edital.
2.8 Serão utilizados como critérios: a adequação à metodologia científica; a
relevância do tema e a originalidade da abordagem; o bom delineamento do objeto de
pesquisa; a qualidade na seleção e no manejo da bibliografia pertinente; a utilização da
norma culta da língua portuguesa; e outros que forem julgados pertinentes.
2.9 A decisão dos editores é final, e dela não cabe recurso.
3. Estrutura e Formatação dos artigos.
3.1 Os artigos devem ser apresentados digitados em folha A4 (210 x 297 mm).
3.2 Editor de texto Word for Windows 6.0 ou posteriores. Times New Roman,
tamanho 12.
3.3 Margens esquerda, direita, superior e inferior de 2 cm.
3.4 Espaçamento e Parágrafos: Espaçamento 1,5 entre linhas, com texto
justificado. Parágrafo recuado 1,25 da margem esquerda e sem espaço entre parágrafos.
3.5 Texto.
3.5.1 A primeira página deve conter título (português e inglês) com no
máximo 15 palavras, com alinhamento centralizado, fonte Times New Roman,
tamanho 14, destacado em negrito
3.5.2 O nome do(s) autor(es) deve vir logo abaixo do título, com duplo
espaço, fonte Times New Roman, tamanho 12 e alinhados à direita.
3.5.3 O nome do autor deve ser acompanhado pela primeira nota de
rodapé, contendo um breve currículo do autor, levando em consideração a
Instituição e o curso do graduando
3.5.4 A primeira página deve conter um resumo em português –
antecedidas pela expressão “Resumo:”, também em português e inglês - com no
máximo 300 palavras, fonte Times New Roman, tamanho 12.
3.5.5 As palavras-chave devem figurar logo abaixo do resumo, em um
número máximo de 5 palavras, com espaçamento simples, antecedidas da
expressão “Palavras-chave:”, em português e inglês; separadas entre si por ponto
e finalizadas também por ponto.
3.5.6 O texto, de forma geral, deve ser digitado, fonte Times New Roman,
tamanho 12, alinhamento justificado.
3.5.7 As notas devem ser postas no rodapé do texto, numeradas em
sequência, fonte Times New Roman, tamanho 10, alinhamento justificado.
3.5.8 As citações devem seguir a regra: se menores que três linhas, serem
inseridas diretamente no texto, entre aspas, com indicação da devida referência,
de acordo com as normas da ABNT. E, se maiores que três linhas, devem ser
destacadas com recuo à esquerda de 4 centímetros, fonte Times New Roman,
tamanho 10, com a indicação da devida referência, de acordo com as normas da
ABNT.
3.6 Referências Bibliográficas: As referências completas deverão ser
apresentadas, em ordem alfabética e no final do texto, de acordo com as normas da
ABNT.
4. Disposições Finais
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Normas de Publicação
4.1 As opiniões contidas nos artigos são de inteira responsabilidade dos seus
autores, de modo que a ALETHES não se responsabiliza pelo conteúdo dos textos que
publica.
4.2 A publicação dos artigos não terá por contrapartida qualquer tipo de
remuneração aos autores, especialmente financeira.
4.3 Os autores, ao concordarem com a publicação de seus artigos, estarão
concedendo do direito da primeira publicação à ALETHES. Ficam autorizados a
republicá-los futuramente, aceitando, contudo, citar o nome e edição da revista, fazendo
referência ao fato de a publicação original ter ocorrido na ALETHES.
4.4 A constatação de qualquer imoralidade, ilegalidade, fraude ou outra atitude
que coloque em dúvida a lisura da publicação, em especial a prática de plágio, importarão
imediato abortamento do processo de avaliação do artigo; caso este já tenha sido
publicado, ele será retirado da base da revista, sendo proibida sua posterior citação
vinculada ao nome da ALETHES, e, no número seguinte da revista, será publicado texto
divulgando e justificando o cancelamento da publicação.
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