O Mito Campinas

Transcrição

O Mito Campinas
XIV Jornada de Jovens Pesquisadores da AUGM. Campinas: Unicamp, 2006
O MITO CAMPINAS: PARA QUE SERVE A UNICAMP
E O PÓLO DE “ALTA TECNOLOGIA”?
HENRIQUE T. NOVAES
[email protected]
ROGÉRIO SILVA
[email protected]
“Se a aparência exterior das coisas coincidisse com
sua essência interior, toda ciência seria supérflua”
(Karl Marx)
Introdução
Este artigo é parte de uma pesquisa, ainda em andamento, que procura desobscurecer O Mito
Campinas. Ele discute, a partir de entrevistas informais feitas em Congressos e Seminários
nas várias regiões do Brasil, os elogios feitos por pesquisadores quando nos apresentamos,
nestes eventos acadêmicos, como residentes em Campinas e que, também, estudamos na
UNICAMP. Em conversa com estes pesquisadores, percebíamos que estes acreditavam que
Campinas é um município privilegiado no Brasil, pois possui um Pólo de “Alta Tecnologia”
(PAT) e um centro de excelência em C&T - a UNICAMP. Para nós, trata-se de um mito.
O que é um mito? Neste estudo, utilizamos o termo para nos referir à uma crença difundida
numa determinada região. Ele pode ser entendido como histórias puramente maravilhosas,
mas que têm pouca conexão com a realidade. Nunca se sabe muito bem a origem dos mitos,
porém , é sabido que eles se propagam e retro-alimentam a realidade social.
Reitores e Secretários de C&T, de outras localidades, vêm à Campinas todos os anos na busca
da pedra filosofal, a qual tornaria suas universidades medianas em universidades superiores e
seus Distritos Industriais em PATs. Cabe aqui lembrar que a pedra filosofal - ou mercúrio dos
filósofos - era o principal objetivo dos alquimistas. Com ela, o alquimista poderia transmutar
qualquer metal inferior em ouro.
Será que os reitores e secretários estão em busca de uma pedra que não existe? Será que foram
atraídos pelo canto da Sereia? Ou será que estão transplantando um modelo que serve apenas
2
para a perpetuação dos interesses da comunidade científica e que reforça a sociedade de
classes?
Faremos duas advertências nesta introdução. A primeira, é a de que este estudo não possui
uma constatação estritamente empírica. Ao contrário do que pregam os empiricistas, de que
tudo deve ser provado com base puramente em números, a teoria por nós desenvolvida está
conectada com uma realidade, fundamentada em fatos atinentes à Campinas. Para desenvolver
nossos argumentos, seguimos os trilhos deixados por uma linha de historiadores que não
demonstra suas teorias com números, mas fundamentam suas teorias através de evidências
coletadas na realidade social.
A segunda, se refere ao nosso enfoque. Ele está orientado para a crítica da atuação das
ciências duras. Isso não significa que alguns leitores das ciências sociais não possam ver aqui
uma crítica à atuação de seus pares1.
A disfuncionalidade do CPESP para o complexo produtivo dos países latino-americanos
Desde a década de 1960, pesquisadores latino-americanos vêm observando as especificidades
que levaram à desconexão entre o Complexo Público de Ensino Superior e Pesquisa (CPESP)
e o parque produtivo dos países da América Latina.
De acordo com Amílcar Herrera (1975), muitos pensam que os problemas da América Latina
se devem a fatores de ordem institucional, outros consideram que nosso problema é cultural,
outros afirmam que temos baixos investimentos em P&D ou ainda que há escassez de
Recursos Humanos. Todavia, como dito por ele, o problema maior é que as particularidades
sócio-econômicas da América Latina não são consideradas na agenda da Política Científica e
Tecnológica (PCT) dos países que a integra.
Enquanto que nos países desenvolvidos a maior parte da P&D é funcional aos objetivos
nacionais, o que reflete, de forma mais ou menos imediata, no progresso de suas indústrias, na
América Latina ela (a P&D) possui pouca relação com as necessidades dos seus países
(HERRERA, idem).
Segundo Herrera (idem), o problema da nossa agenda de PCT consiste na falta de
correspondência entre os objetivos da pesquisa científica e as necessidades da sociedade, vista
como um todo. Ele acredita que os obstáculos à autonomia da C&T e à uma possível agenda,
que levem em conta os interesses e aspirações da maioria da população, se devem à fatores
não econômicos, mas estão relacionados à manutenção das relações de poder.
1
Para uma crítica mais ampla, ver Ribeiro (1982), Fernandes (1975) e Minto (2005).
3
Dentre as raízes históricas que levaram a esta desconexão, Herrera (idem) destaca que nossa
industrialização, mesmo tendo retirado parte do poder da oligarquia rural, não representou
uma alteração profunda na estrutura política econômica e cultural dos paises latinoamericanos.
A raiz principal da disfuncionalidade do CPESP advém de nossa condição periférica. Por um
lado, a nossa industrialização substitutiva de importações se deu num contexto onde os países
centrais já haviam se industrializado, criando barreiras ao nosso pleno desenvolvimento. Por
outro, produzimos uma pauta de consumo imitativa.
Para Regina Morel (1979), nosso CPESP sempre esteve desvinculado do sistema produtivo.
Isso resultou na ausência de demanda de atividades científicas e tecnológicas internas. Para
ela, “não há lugar para a Ciência brasileira” uma vez que o know-how sempre foi obtido das
matrizes (MOREL, 1979, p. 87). Nossos Institutos Tecnológicos, para Morel (idem), não
chegaram a fornecer o suporte tecnológico da industrialização, uma vez que este foi
assegurado, sobretudo, pela importação de know-how. Coube a eles apenas a tarefa de realizar
testes de controle de qualidade e assessorar empresas na instalação de equipamentos e na
solução de problemas operacionais. Já à criação dos Institutos de Ensino Superior ocorreu em
função da formação de recursos humanos para a burocracia pública e de pessoal qualificado
para o setor industrial (MOREL, idem).
Como destacado por Herrera, “os escassos centros de pesquisa básica [na América Latina]
estão quase sempre conectados com os sistemas científicos das grandes potências, resultando
na ausência de estímulo à P&D local” (1975, p.12). Uma vez que a demanda interna está
baseada no padrão de consumo dos países desenvolvidos o que, conseqüentemente, requer a
mesma tecnologia destes, é difícil perceber como os débeis sistemas de P&D dos países
periféricos poderiam competir com a estrutura científica e tecnológica dos centros
industrializados (HERRERA, 2001).
Oscar Varsavsky (1969;1974) também constata a ausência de relação entre o CPESP e o
complexo produtivo latino-americano. Porém, ele acentua sua análise nas características das
comunidades de pesquisa periféricas, que seriam o mimetismo e o cientificismo, dentre outras.
A Dissertação de um dos autores deste artigo (NOVAES, 2005), dedicou um capítulo à
análise dos motivos que levam a comunidade de pesquisa, tanto dos países centrais como dos
países periféricos, a acreditar no que Varsavsky chama de cientificismo.
Podemos afirmar que a comunidade de pesquisa acredita na neutralidade da C&T e em seu
avanço inexorável. Os pesquisadores crêem que a C&T pode servir para o bem ou para o mal,
cabendo a eles simplesmente ofertar novo conhecimento. Isso os leva a adotar uma visão
4
puramente passiva frente aos problemas da sociedade. Em geral, os cientistas, diante dos
problemas sociais, atuam como Pôncio Pilatos: eles lavam suas mãos ao afirmar – “o
problema não está na ciência, na tecnologia, ele está na sociedade que não ‘usa’ de forma
adequada a C&T que produzimos”.
Sem falar que tanto os pesquisadores do Norte como os do Sul, assimilam uma fé indissolúvel
em relação ao método científico, que representaria o caminho para alcançar a verdade objetiva
(DIAS, 2005).
Os elementos ideológicos, presentes nas atividades científicas (e, por extensão, nas atividades
tecnológicas), também podem ser verificados, segundo Varsavsky (1976), na seleção dos
temas a serem pesquisados pela comunidade científica. A partir daí é razoável supor, que em
sociedades capitalistas, o processo de escolha dos temas que compõem a agenda da
comunidade de pesquisa seja orientado pelas perspectivas de acumulação de capital, ainda que
isso não ocorra de forma evidente (DIAS, 2005).
Para Varsavsky (1976), o mimetismo é um aliado da neutralidade da C&T. A comunidade
científica latino-americana, como sócia-menor dos seus pares dos EUA e da Europa, tende a
reproduzir o que está na moda nestes países, independentemente da relevância destas
pesquisas para a América Latina.
No entanto, se o nosso problema fosse apenas o de mimetismo cultural da agenda de pesquisa
científica e tecnológica dos países do Norte, um governo nacionalista poderia resolver a
questão. Tanto para Varsavsky (idem) como para Dagnino (2006b), a questão fundamental
refere-se à força da neutralidade da C&T na comunidade científica. Para Dagnino (2006a),
temos que atuar na forma como se produz ciência, e não simplesmente como se distribui
ciência, como pregam aqueles que defendem a possibilidade de “uso” para o “bem e para o
mal” da C&T.
Campinas: a origem do mito
Podemos distinguir quatro momentos no planejamento territorial de Campinas no que se
refere à implantação do PAT. O primeiro, na década de 1970, é quando surge a concepção de
Pólo Tecnológico enquanto política de planejamento. Neste momento, começa a se conformar
a rede de atores que defendiam a idéia de que o município poderia ser dotado com os mesmos
atributos do Silicon Valey, nos EUA. Nesta concepção, de acordo com Santos (1979), as
políticas de planejamento seriam formuladas a partir de três conceitos fundamentais: a Teoria
5
dos Lugares Centrais; o de Pólo de Desenvolvimento2 e; o de Difusão de Inovação. Neste
momento há, sobretudo, forte presença do Governo Federal e da comunidade científica
estabelecida no município, incentivando o desenvolvimento de um PAT em Campinas.
Neste primeiro momento começam a ser criadas, ou a se instalar, no município, diversas
empresas, sobretudo de capital nacional, de conteúdo tecnológico. Foi também nele em que
mais se construiu casas populares em Campinas. Porém, como expresso por Badaró (1996),
este período foi também aquele em que mais cresceu a população vivendo em favelas.
O segundo momento, a década de 1980, caracteriza-se pela presença ativa do Poder Público
Municipal na implementação de políticas públicas para a viabilização do PAT de Campinas.
São criados, neste momento, a CIATEC (Companhia de Desenvolvimento do Pólo de Alta
Tecnologia de Campinas) e o Parque Tecnológico I para receber indústrias de conteúdo
tecnológico. São concebidos incentivos fiscais e a doação de lotes às empresas. Também são
construídas vias que facilitaram o fluxo de mercadorias e expandidos os sistemas de
comunicação e informação.
No terceiro momento (final dos anos 1980 até por volta de 1993) não é evidente quem são os
atores que mais defendem a implementação do PAT de Campinas. Neste momento, devido à
estrutura formada nos períodos anteriores, começam a se localizar em Campinas e nos
municípios vizinhos um número maior de transnacionais.
A dispersão de atividades industriais de conteúdo tecnológico por Campinas, não se
concentrando no Parque Tecnológico I como pretendido, deveu-se à questões judiciais
envolvendo a Prefeitura e a FEPASA quanto a posse da área do Parque. Nesse contexto, as
empresas que começavam a se instalar em Campinas não necessitavam propriamente da área
do Parque. Necessitavam, sobretudo, segundo Joia (2000), dos macrossistemas técnicos
existentes (Rodovia Anhanguera, Rodovias dos Bandeirantes, Rodovia D. Pedro I, Ferrovias,
Aeroporto de Viracopos).
Há também, neste momento, a implantação do Parque Tecnológico II (1992) e da Trade Point
(1993). A criação do Parque Tecnológico II foi devida à localização estratégica da área
pensada para ele (nas proximidades das Rodovias Campinas-Moji Mirim e D. Pedro I e da
UNICAMP, PUC-Campinas e CPqD). Já a Trade Point visava agilizar as exportações das
empresas instaladas em Campinas e Região.
2
Existência de indústrias motrizes exercendo efeitos multiplicadores sobre outras atividades (PERROUX, 1967).
Todavia, diversas outras concepções sobre pólo foram desenvolvidas e adaptadas de acordo com interesses
diversos.
6
Embora a viabilização do Parque Tecnológico II e da Trade Point seja atribuída ao Poder
Público Municipal é a comunidade científica (principalmente da UNICAMP) quem exerceu
pressão para que isso ocorresse. É neste momento em que grandes empresas transnacionais
começam a se instalar ao longo da Rodovia D. Pedro I, localizada no perímetro decretado
como Área de Urbanização Controlada Norte (Plano Diretor de 1995), onde estão os Parques
Tecnológicos I e II, a UNICAMP, o CPqD-TELEBRAS, o LNLS, o CenPRA/ITAL, e
também onde há a maior porcentagem de glebas sem edificações e com topografia adequada à
grandes empreendimentos.
O quarto momento, a partir de 1994/1995 até o presente, configura-se pela forte presença do
governo do Estado de São Paulo (haja vista a criação da Região Metropolitana de Campinas
em 2000), juntamente com as corporações transnacionais e com a comunidade de pesquisa
local. Neste momento há uma forte presença da UNICAMP que se coloca a favor de
interesses das corporações transnacionais localizadas, ou aquelas que pretendem se instalar,
em Campinas e proximidades.
Se no primeiro momento a maior parte das empresas instaladas em Campinas era nacional e
de origem local (isso era o que se vislumbrava com as políticas de planejamento nas décadas
de 1970 e 1980), no presente esta situação se transforma. Hoje, há o predomínio das
corporações transnacionais, não somente em Campinas, mas também as mesmas começam a
se instalar com maior intensidade nos municípios próximos.
Na atualidade, são os macrossistemas técnicos, que visam o aumento da fluidez territorial e os
sistemas de comunicação e informação, que ganham ainda mais importância nas políticas
públicas de Campinas. Isso é devido, como apontam Souza e Garcia (1998), à constatação de
que a instalação das empresas em Campinas está vinculada, principalmente, com a vasta infraestrutura logística que cerca a região, com um complexo e integrado sistema viário e com um
aeroporto internacional que recebe grande parte do movimento de cargas provenientes do
exterior.
Há, na atualidade, um caráter seletivo dos investimentos industriais que privilegiam espaços
específicos, sendo estes os que mais proporcionam uma maior competitividade mercadológica
(ARAÚJO, 2000). Campinas e municípios próximos foram, ao longo de suas histórias, se
configurando como um desses espaços3.
3
O Canto da Sereia foi tão alto que atraiu até mesmo o Partido dos Trabalhadores. Basta ver os elogios da
Prefeita Izalene Tiene (2000-2004) à expansão dos PATs em Campinas.
7
O que a Unicamp “oferece” à Campinas?4
A tese de doutorado de Erasmo Gomes (2001) intitulada “A relação Universidade-Empresa:
testando hipóteses a partir do caso da UNICAMP” critica as visões otimistas que afirmam
estar havendo uma relação virtuosa entre a UNICAMP e as empresas (da cidade ou não). Para
estes, a interação está ocorrendo em função da mudança no ambiente a partir dos anos 1990,
marcado pelo acirramento da competição. Para Gomes, a Universidade está procurando as
empresas (e não o contrário) porque houve uma queda dos salários recebidos no período e em
função do vácuo deixado pelos contratos anteriormente realizados pelo governo e não em
virtude da busca de uma maior interação com as empresas que teoricamente estariam saindo à
procura da Universidade, tal como postula a bibliografia hegemônica. Infelizmente não
poderemos desenvolver aqui os argumentos de Gomes, mas pode-se perceber que os
argumentos de Gomes (2001) e outros pesquisadores que tentam combater os argumentos dos
defensores da relação Universidade-empresa não surtem efeito. Por que será?
Ademais, acreditamos que a UNICAMP tem pouco a oferecer ao município de Campinas, a
ponto de podermos afirmar que se ela estivesse na lua ou em Roraima, não faria diferença
alguma para a sociedade na qual está inserida: o que se estuda e se pesquisa nela tem pouca
relação com os problemas fundamentais da cidade. Alguns poderão dizer que a UNICAMP
tem uma missão mais nobre: a de servir ao Estado de São Paulo, ou, até mesmo, ao Brasil e
América Latina. Trata-se, evidentemente, de um discurso ufanista.
O Mito UNICAMP se dissemina tendo como principais vetores: a) o marketing extremamente
bem feito pela UNICAMP, b) a difusão, promovida pelos pesquisadores de outras instituições
que se consideram inferiores, c) a comunidade científica de Campinas, que ao lavar suas mãos
quanto aos fins ou destinos da ciência, tem interesses em propagá-lo, d) a Mídia que reforça o
mito, ao invés de combatê-lo, e) a própria população da cidade, que acredita que a ciência é
neutra e que os cientistas são úteis para a cidade. Em função destes fatores, a UNICAMP
continua ganhando o título de centro de excelência.
No que se refere à Pós-graduação, a UNICAMP desenvolve pesquisas que são estranhas às
necessidades das empresas instaladas no município e na região, pois elas são, principalmente,
de baixa tecnologia. Se a grande maioria das empresas da cidade e do país é de baixa
tecnologia, por que a PCT é para as empresas de alta tecnologia?
4
Apesar de não concordarmos com a visão hegemônica sobre inovação que tende a separar as universidades enquanto o pólo da oferta - e as empresas – como o pólo da demanda por tecnologia - adotamos a mesma tendo
em vistas objetivos puramente esquemáticos e didáticos.
8
Como dito por Dagnino (2006b), numa análise mais ampla, mas que certamente incluiria a
UNICAMP, o CPESP latino americano não serve nem à classe dominante nem à classe
dominada. Para entender por que a Pós-graduação não serve à classe dominante basta ver as
estarrecedoras estatísticas de mestres e doutores das ciências duras desempregados. Para
entender o por que ela não serve à classe dominada, temos que nos remeter às críticas de
Varsavsky (1976) e Dagnino (2006b), sobre a crença na neutralidade e no determinismo da
C&T. Se a comunidade científica acredita que a ciência serve para o “bem ou para o mal”,
podemos deduzir que para estes ela serviria tanto para a burguesia como para a classe
trabalhadora, bastando apenas dominar a universidade e utilizá-la para o “bem”. O problema,
para nós, parece ser bem maior do que a simples apropriação da ciência já disponível na
Universidade.
Devemos ressaltar que, ao contrário da Pós-graduação, a graduação é funcional à classe
dominante dos países latino-americanos. Não podemos ignorar o papel dos cursos de
graduação, que são veículos para a perpetuação da sociedade de classes, ao formar, de acordo
com Gramsci, as “classes auxiliares”. Engenheiros, economistas, etc. adquirem na
Universidade as qualificações e a visão de mundo necessária à reprodução do capital na
periferia do capitalismo.
O Pólo de “Alta Tecnologia” incorpora os pesquisadores de Campinas?
O Mito do PAT de Campinas também se difunde através de vários mecanismos, os quais têm
a ver com o que os ideólogos (neste caso, aqueles que estudam as idéias), chamam de
obscurecimento da realidade. Sabendo que estamos numa sociedade de classes, e que, não
por acaso, os donos dos meios de produção também controlam a visão de mundo da
sociedade, afirmar em todos os cantos que Campinas tem um PAT que gera progresso é um
dos instrumentos necessários para a perpetuação das classes e a naturalização do papel das
mesmas na sociedade5.
Aqui, porém, temos que avançar mais devagar para tentar descortinar este Mito.
Cotidianamente, em Campinas, nos é vendida a idéia de progresso, de que vivemos na
sociedade do conhecimento. Mais ainda, de que o PAT gera emprego e bem-estar para a
população do município e da região, e de que as empresas nele inseridas produzem bens úteis
para a sociedade, vista como um todo.
5
Não tivemos acesso às cifras, mas soubemos que foram realizados no ano de 2004 alguns estudos – os famosos
estudos de viabilidade econômica - para implantação de novos pólos na cidade. A cidade gastou uma quantia não
desprezível de dinheiro público para contratar consultores da Unicamp e de outros centros de excelência. Como
não poderia deixar de ser, os mesmos eram favoráveis a criação de novos PATs.
9
Trata-se, obviamente, de um falseamento da realidade social. Primeiro, devemos desmistificar
que idéia de que as empresas produzem bens úteis à população. Isso não é coerente, pois o
objetivo último da produção é a reprodução do capital. Ao contrário do que propagam os
defensores do PAT, não estamos diante de um modo de produção que tem como meta a
satisfação das necessidades humanas.
Porém, o falseamento da realidade não termina na propagação de que o povo da cidade vive o
progresso. Ainda que não haja estatísticas a respeito – será que é uma coincidência? - o PAT
exerce um impacto pouco significativo em termos de geração de emprego para o município.
Todavia, os defensores do PAT afirmam que ele emprega tanto a população da cidade quanto
os egressos dos cursos da Pós-graduação. Devemos destacar que o PAT não incorpora e não
incorporará esses Pós-graduandos, mesmo os da UNICAMP, devido a fatores históricos da
América Latina. Devido à nossa particularidade periférica –tal como vimos nas linhas
anteriores - as empresas transnacionais, aqui instaladas, importam o conhecimento necessário
para suas ações estratégicas. Caso necessitem dos pesquisadores egressos das Universidades,
é apenas para trabalhar com as migalhas da P&D. É este o chamado processo de
tropicalização da tecnologia, etapa totalmente subalterna da pesquisa, como nos lembram o
nacionalista José Leite Lopes (1969) e o nacionalista-socialista Darcy Ribeiro (1982).
São os fatores elencados acima que nos permitem observar – ainda que em poucas linhas - a
pouca funcionalidade do PAT para o povo e sua baixíssima demanda por pesquisadores
egressos da UNICAMP6.
Considerações Finais
Este artigo procurou desobscurecer O Mito Campinas, que é propalado pela UNICAMP, a
qual vangloria desmedidamente sua função, seja para o povo, para o Estado, para o País, para
a América Latina e para o progresso da ciência. Aqueles que implementaram e buscam
implementar novos PATs na cidade também perpetuam um mito que tem pouca relação com a
realidade social do povo campineiro.
Entendemos que a funcionalidade da UNICAMP e do PAT para a cidade não passa de um
Mito. Mas, os mitos não se propagam por acaso. Através deles, ocorre o enaltecimento dos
prestigiados pesquisadores da UNICAMP pelo restante do País e, com isso, o obscurecimento
6
Infelizmente não poderemos delinear neste artigo as alternativas teórico-práticas que vêm sendo construídas
por aqueles que se contrapõem aos defensores dos PATs. Também não poderemos enunciar um possível papel
das UPs para fazer definhar a sociedade regida pela produção de mercadorias. Para isso, indicamos os artigos de
Dagnino (2004), Lima Filho (1998), Lima Filho e Macedo (2006), Oliveira e Dagnino (2004) e Novaes (2006).
10
da pouca relevância da UNICAMP e do PAT para a população da região, que é, em geral,
composta por trabalhadores que lutam diariamente para não morrer de fome.
Ao mesmo tempo em que vangloriam a comunidade científica da UNIICAMP e os
Secretários da cidade e do Estado que trabalham com o tema da C&T, os Mitos exercem um
poder de atração e sedução em outros pesquisadores e secretários que são hipnotizados
diariamente pelo canto da Sereia. A nós, só resta a pergunta: até quando durará esse mito?
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