Religando fronteiras - Publicações do Inep

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Religando fronteiras - Publicações do Inep
Teorias e práticas de
letramento
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Luiz Inácio Lula da Silva
MINISTRO DA EDUCAÇÃO
Fernando Haddad
SECRETÁRIO EXECUTIVO
José Henrique Paim Fernandes
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS
EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP)
Reynaldo Fernandes
DIRETORIA DE TRATAMENTO E DISSEMINAÇÃO DE
INFORMAÇÕES EDUCACIONAIS (DTDIE)
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UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO
Reitor
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Vice-Reitora de Graduação
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Vice-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
Carlos Alberto Forcelini
Vice-Reitora de Extensão e Assuntos Comunitários
Cléa Bernadete Silveira Netto Nunes
Vice-Reitor Administrativo
Nelson Germano Beck
Lia Scholze
Tania M. K. Rösing
(Org.)
Teorias e práticas de
letramento
Brasília-DF
2007
UPF
Coordenadora-Geral de Linha Editorial e Publicações (CGLP)
Lia Scholze
Coordenadora de Produção Editorial
Rosa dos Anjos Oliveira
Coordenadora de Produção Visual
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Editor Executivo
Jair Santana Moraes
Revisão
Maria Emilse Lucatelli
Liana Langaro Branco
Sabino Gallon
Capa
Raphael Caron Freitas
Projeto gráfico
Sirlete Regina da Silva
Diagramação e Arte final
Niepson Ramos Raul
Tiragem: 1.000 exemplares
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Editoria
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Distribuição
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são de exclusiva responsabilidade dos autores.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
Teorias e práticas de letramento / organização, Lia Scholze, Tania M. K. Rösing. –
Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira,
2007.
297 p.
ISBN 978-85-75154-07-6
1. Letramento. 2. Leitura. 3. Escrita. I. Scholze, Lia. II. Rösing, Tania M. K.
III. Universidade de Passo Fundo IV. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira.
CDU 372.415
Sumário
Prefácio
André Lazaro.............................................................................7
Apresentação
A escrita e a leitura: fulgurações que iluminam
Lia Scholze e Tania M. K. Rösing..............................................9
Acesso social, práticas educativas e mudanças
teórico-pedagógicas ligadas ao género textual
Ana Maria Raposo Preto-Bay...................................................17
A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças
Cancionila Janzkovski Cardoso...............................................37
Processos de letramento na infância: aspectos da
complexidade de processos de ensino-aprendizagem
da linguagem escrita
Cecília Goulart.........................................................................61
Práticas leitoras multimidiais: no contexto do Centro de
Referência de Literatura e Multimeios – Mundo da Leitura
Eliana Teixeira........................................................................83
O ensino de português nos níveis fundamental e médio:
problemas e desafios
José Luiz Fiorin........................................................................95
Pela não-pedagogização da leitura e da escrita
Lia Scholze............................................................................117
Que linguagem falar na formação docente de professores
de língua?
Ludmila Thomé de Andrade .................................................127
Para ler a narrativa literária
Márcia Helena Saldanha Barbosa........................................145
Letrar é preciso, alfabetizar não basta... mais?
Maria do Rosário Longo Mortatti..........................................155
Letramento na Maré: uma proposta metodológica
de ensino da leitura e da escrita para jovens e adultos
Marlene Carvalho.................................................................169
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula:
do centro à periferia
Miguel Rettenmaier...............................................................191
O professor e o erro no processo de alfabetização
Natália Duarte.......................................................................221
Literatura infantil e introdução à leitura
Regina Zilberman..................................................................245
Estética da recepção: a singularidade do leitor
e seu papel de co-produtor do texto
Rosemari Glowacki................................................................255
Letramento: conhecimento, imaginação e leitura
de mundo nas salas de inclusão de crianças de
seis anos no ensino fundamental
Silviane Barbato....................................................................273
A leitura do texto teatral na escola
Tania M. K. Rösing.................................................................289
Prefácio
O presente trabalho, organizado primorosamente pelas
professoras Lia Scholze e Tania M. K. Rösing, é uma reflexão
sobre o conceito de letramento e suas práticas e mostra-se
oportuno na medida em que vem se somar à discussão que o
Comitê Nacional do Livro e Leitura do MEC está promovendo
internamente, visando à constituição de uma política de
leitura para o país.
Assim como o processo do letramento é complexo e
abrangente envolvendo diversas práticas políticas e sociais,
além da aquisição da competência da leitura e da escrita, o
processo da construção das diretrizes do plano em elaboração
também exige uma visão mais abrangente. Os eixos principais
para iniciar a discussão sobre uma política de leitura, tendo em
vista o “Plano Nacional do Livro e Leitura”, não podem deixar
de contemplar aspectos como a democratização do acesso
da informação científica, didática ou cultural em diferentes
suportes; a formação de leitores, incluindo mediadores de
leitura, gestores e educadores; pesquisa e avaliação sobre
leitura e a produção de materiais científicos, didáticos e
culturais e de leitura, como a obra ora apresentada.
O PNLL é um conjunto de projetos, programas,
atividades e eventos na área do livro, leitura, literatura e
bibliotecas em desenvolvimento no país, empreendidos
pelo Estado (em âmbito federal, estadual e municipal) e pela
sociedade. A prioridade do PNLL é transformar a qualidade da
capacidade leitora do Brasil e trazer a leitura para o dia-a-dia
do brasileiro.
A interlocução, portanto, entre as instâncias acadêmicas
e institucionais – aqui representadas pela Universidade de
Passo Fundo e pelo MEC/Inep – é pertinente e necessária
na medida em que a universidade, formadora de recursos
humanos, encontra no MEC o espaço para a disseminação
desta reflexão.
7
Prefácio
A presente obra consegue reunir a reflexão de pensadores
de várias instituições em caráter multidisciplinar e contempla
diferentes olhares sobre a questão do letramento.
André Lazaro
Secretário Executivo do MEC e coordenador
do Comitê Nacional de Leitura do MEC.
8
Apresentação
A escrita e a leitura: fulgurações
que iluminam
Eis que uma fulguração me ilumina. O que
acontece diante de mim – uma mulher que
lê notícias de mares distantes para duas
crianças, sentadas tranqüilamente numa
calçada – é uma linda e comovente aula. Em
plena rua, ela ensina a ler, ensina a entender
o que se lê, ensina a sentir as emoções escritas,
anuncia a aflição de viver e os perigos da vida,
prenuncia, enfim, que a vida inclui a morte.
Alcione Araújo, “Notícias de mares
distantes”, de Escritos na água
O contato com o texto escrito é, em essência, um ato
repleto de vida, como nos faz crer a epígrafe deste texto.
Está, ou deveria estar, no cotidiano de todos, nas práticas
diárias de comunicação e nas bases do conhecimento de toda
a sociedade. Saber ler e escrever é, para o indivíduo, uma
garantia de existência política e cultural num país, que, por
sua vez, se pretenda letrado e, assim, desenvolvido.
Nesse sentido, alicerçadas na diversidade de situações
de vida e na pluralidade de circunstâncias comunicativas, em
mais de um tipo de demanda e em mais de um espaço social,
a leitura e a escrita deixam de se associar à mera habilidade de
reconhecimento e de manipulação das letras do alfabeto. São
instrumentos para se inserir na realidade, para compreendê-la
e, também, para alterá-la, como ferramentas do entendimento.
Ler e escrever não são apenas habilidades estabelecidas em
torno da decodificação; muito mais do que isso, saber ler e
escrever significa apropriar-se das diversas competências
relacionadas à cultura orientada pela palavra escrita, para,
dessa forma, atuar nessa cultura e, por decorrência, na sociedade
como um todo.
A educação, no que diz respeito a esse ato de inclusão,
que é letrar – mais do que alfabetizar –, tem uma função
9
Apresentação
mediadora. É pela ação educativa, na sala de aula ou em outros
contextos, além do escolar, que se promovem a aquisição
e a utilização crítica da leitura e da escrita. E essa ação
transformadora, tanto do indivíduo quanto da sociedade da
qual ele faz parte, é, acima de tudo, um processo em constante
avaliação. Em uma de suas facetas, esse processo se coordena
articulado ao mundo, numa prática que habilita os sujeitos a
dialogarem com as complexidades do texto escrito; em outra,
de forma contínua, reorganiza-se politicamente, viabilizando
aos sujeitos envolvidos, pela leitura e pela escrita, a reflexão e
a atuação no que tange às dinâmicas sociais; em outra, ainda,
esse processo examina repetidamente os próprios métodos e
conceitos, à medida que tanto os indivíduos quanto o mundo
se transformam. De alguma maneira, o letramento, tanto
como estado ou condição de um indivíduo ou de um grupo,
quanto como conceito, estabelece-se num processo sem fim,
num caminho com pontos provisórios de chegada, de partida,
de redirecionamentos... Este livro é mais um passo nesse
processo de reflexão sobre o letramento, sobre as suas teorias,
sobre suas práticas.
Contando com estudos de diversos teóricos, a obra
articula-se, primeiramente, com o artigo de Ana Maria
Raposo Preto-Bay. Em seu texto, a pesquisadora aborda o
tema da literacia relacionado à questão do gênero textual.
Para a autora, “saber ‘ler’ não significa ‘saber ler’”. Em sua
concepção, a leitura e sua interpretação encontram-se
problematizadas pelos diferentes contextos em torno da
produção e da recepção dos textos nos diferentes gêneros aos
quais podem pertencer. Por isso, há a necessidade de uma
pedagogia ao gênero, a fim de que “os aprendentes tenham
a oportunidade, no contexto educativo, de explorar relações
sociais e a forma como estas se desenrolam e constituem
através dos textos”. Cancionila Janzkovski Cardoso, em “A
escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças”, discute
o ato de escrever como um procedimento que, simulando
uma situação imediata de comunicação, envolve em suas
especificidades, “um enunciador – o escritor – em situação
de comunicação que o distancia de seu interlocutor – o outro/
leitor”. Tal aspecto exige, no caso da criança que aprende a
escrever, um melhor controle sobre esse funcionamento
psicológico específico, no qual a recepção se encontra fora de
seu “aqui” e “agora”. Mediante tal perspectiva, a pesquisadora
10
A escrita e a leitura: fulgurações que iluminam
apresenta uma pesquisa realizada com alunos na 4ª série de
ensino fundamental na qual procurou investigar “os níveis de
reflexividade e de deliberação sobre o processo de escrita já
desenvolvidos por crianças”.
Cecília Goulart, em “Processos de letramento na
infância: aspectos da complexidade de processos de ensinoaprendizagem da linguagem escrita”, pretende refletir sobre
modos de alfabetizar na perspectiva do letramento social, na
escola. Seu estudo, numa pesquisa concluída recentemente
com crianças de quatro e cinco anos de uma creche
universitária, pretende refletir sobre a importância que a
noção de letramento pode ter para dar novos sentidos aos
processos de aprendizagem da leitura e da escrita na educação
infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. Eliana
Teixeira, por sua vez, apresenta em seu artigo as práticas
leitoras multimidiais no contexto do Centro de Referência de
Literatura e Multimeios da Universidade de Passo Fundo (o
Mundo da Leitura), as quais objetivam a formação do sujeitoleitor, a partir do contato com diferentes tipos de textos, nos
mais diversificados suportes, embora com destaque ao texto
literário.
Diante da constatação de que maioria dos estudantes
termina o ensino médio com dificuldade para ler um texto
de média complexidade e para redigir adequadamente
textos, José Luiz Fiorin, em seu estudo, pretende mostrar
os principais problemas do ensino de língua portuguesa
nos níveis fundamental e médio, os quais se estabelecem,
principalmente, na fundamentação em noções equivocadas
a respeito do funcionamento, da estrutura e das funções da
linguagem humana e, dentre outros importantes fatores, no
ensino da leitura e da redação não fundamentado em teorias
do discurso e do texto. Em “Pela não-pedagogização da
leitura e da escrita”, Lia Scholze propugna a linguagem como
representação de pensamentos, idéias, sentimentos do sujeito
em uma dada cultura. Nesse sentido, o uso da linguagem, fora
do propósito da escola, configura-se como um movimento
incessante de incorporação de novas formas de expressão e
de organização. Nessa nova ordem, segundo a estudiosa, cabe
à escola, pela leitura, assumir a ampliação da imaginação
criadora, desenvolvendo sujeitos questionadores e críticos dos
arranjos da sociedade. Segundo a pesquisadora, “criadas as
condições para a sua produção, seremos surpreendidos pelas
11
Apresentação
crianças e pelos adolescentes que esperam por estes desafios e
nos darão respostas consideradas inesperadas por aqueles que
não costumam escutá-los”.
Perante a questão “Que linguagem falar na formação
docente de professores de língua?”, Ludmila Thomé de
Andrade pretende apresentar uma reflexão sobre as condições
de letramento de professores da escola básica que lidam
com a linguagem. Nesse caminho, investiga as práticas de
ensino de leitura e de escrita na formação dos professores,
tomando como campo de pesquisa um curso universitário
de formação continuada oferecido aos professores de séries
iniciais de escolas públicas. Suas conclusões apontam para
a necessidade de se repensar as trajetórias de letramento
docente: “Se queremos formar alunos leitores na escola básica,
é preciso considerar processos possíveis para os professores
se verem antes como produtores de linguagem”. No que se
refere à narrativa literária, para Márcia Helena Saldanha
Barbosa, investir no letramento é proporcionar ao sujeitos
uma experiência de leitura em que o encadeamento das ações
que compõem a história e, também, a conexão entre todos os
elementos do texto sejam percebidos e reconhecidos. É assim,
segundo a pesquisadora, que as potencialidades da narrativa
se concretizam e que a trama se atualiza na interação do texto
com o leitor. Ilustrando essa concepção, Barbosa analisa o
conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis.
Em “Letrar é preciso, alfabetizar não basta... mais?”,
Maria do Rosário Longo Mortatti avalia o histórico recente
do ensino da leitura e da escrita no Brasil, segundo os três
modelos principais que orientaram esse ensino, a saber:
o construtivismo, o interacionismo e o letramento. Para
a autora, embora estabelecida em bases teóricas distintas,
a prática pedagógica, ao tentar, com muita freqüência,
conciliar esses modelos, tem incorrido, forçosamente, na
combinação de elementos incompatíveis entre si, numa
opção problematicamente eclética. Marlene Carvalho, em
“Letramento na Maré: uma proposta metodológica de ensino da
leitura e da escrita para jovens e adultos”, apresenta e avalia
o Programa de Alfabetização desenvolvido por professores,
estudantes e funcionário da UFRJ na Maré, “uma ampla
área geográfica à margem da Baía de Guanabara, no Rio de
Janeiro, próxima do Aeroporto Internacional do Galeão e da
Universidade Federal do Rio de Janeiro”.
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A escrita e a leitura: fulgurações que iluminam
Em “A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do
centro à periferia”, Miguel Rettenmaier propõe uma leitura
hipertextual na mediação da leitura literária. Para isso, valese da leitura das mídias impressas nos textos jornalísticos
para discutir temáticas atuais da sociedade, como a convulsão
de violência ocorrida em maio de 2006 em São Paulo, e para
introduzir, criticamente, as possibilidades interpretativas do
texto literário. Nessa perspectiva, alicerça a leitura do literário
à chamada “literatura marginal”, pretendendo rediscutir os
conceitos sobre o que seja a leitura e o que pode se considerar
literatura. Em outra ordem, mas na mesma problemática
relacionada ao ensino da leitura e da escrita, Natália Duarte, em
“O professor e o erro no processo de alfabetização”, apresenta
um diagnóstico que evidencia o fracasso da alfabetização no
Brasil, discorre sobre as principais propostas de alfabetização
atuais e fixa-se na alfabetização pós-construtivista. Em seu
artigo, a autora propõe uma nova relação do professor com
o “erro” do aluno, entendendo-o como fruto indispensável do
diálogo entre sujeitos e o conhecimento, principalmente na
aprendizagem da leitura e da escrita: “O ‘erro’ do aluno na escrita
desvela o esquema de pensamento e hipótese que o aluno está
vivenciando. É ele que possibilita apoiar a aprendizagem dos
alunos, desde que o professor reoriente seu trabalho pedagógico
para provocar e alimentar os esquemas de pensamento em
construção”.
Em “Literatura infantil e introdução à leitura”, Regina
Zilberman trata sobre o conceito de letramento associado à
leitura literária infantil. Nesse âmbito, para a estudiosa, “a
admissão ao mundo da literatura depende e ultrapassa a
alfabetização e o letramento. Depende da alfabetização,
enquanto envolve o domínio das técnicas de leitura e de
escrita, e do letramento, na medida em que as práticas de
leitura e escrita estão presentes em cada etapa da experiência
do sujeito”. No trabalho de alfabetizar e de apresentar a
literatura às crianças, Zilberman apresenta obras de escritores
consagrados, como Erico Verissimo, Cecília Meireles, Mario
Quintana e Ziraldo, os quais assumiram o desafio de recriar
com qualidade estética as cartilhas de alfabetização. Rosemari
Glowacki, por sua vez, pretende refletir sobre a teoria da
estética da recepção, de Hans Robert Jauss, observando nessa
corrente a descoberta do leitor co-produtor num processo de
interlocução texto/leitor. Para a pesquisadora, as orientações
13
Apresentação
teóricas dessa nova perspectiva sobre o leitor devem ter
implicações na escola: “Segundo a Estética da Recepção,
o contato com os livros, se o objetivo for construir leitores
conscientes e felizes, deve ser iniciado o mais cedo possível,
não só pelo manuseio dos textos, como também pela história
contada, pela conversa ou pelos jogos rítmicos, no sentido de
fazer amar a leitura, para que o leitor se sinta o protagonista
do seu aprendizado, numa ponte que ligue a teoria e a prática,
entre o universo estético e o universo real”.
Silviane Barbato, em “Letramento: conhecimento,
imaginação e leitura de mundo nas salas de inclusão de crianças
de seis anos no ensino fundamental”, reflete sobre as práticas
de letramento no processo de alfabetização, considerando
o desenvolvimento das crianças de seis anos que entram
no primeiro ano do ensino fundamental e as metodologias
de alfabetização no ensino de língua materna. Norteia suas
considerações a condição de que as práticas de alfabetização
sejam consideradas segundo a concepção de que “o processo
de ensino-aprendizado é uma negociação entre o que se espera
atingir em termos de objetivos, as habilidades de acordo com a
série e as demandas das crianças em desenvolvimento”. Nessa
negociação se integra uma pedagogia do diálogo, na qual,
segundo Barbato, “a construção de significados é deslocada
do eu e do tu para o inter, passando a abarcar também os
instrumentos utilizados no processo de ensino-aprendizado
e os procedimentos, inclusive discursivos, da interação nos
modos comunicativos orais, escritos e visuais”. Tania Mariza
Kuchenbecker Rösing, ao final da obra, contrastando com
várias décadas de desvalorização do texto teatral no meio
escolar e nos cursos de letras, expõe, em “A leitura do texto
teatral na escola”, as lacunas que se ampliam na formação
humanista de jovens e adultos quando não têm acesso à leitura
de textos da dramaturgia, ou, o que é ainda pior, a espetáculos
teatrais. Para a pesquisadora, “a decisão de ler o texto teatral
é uma atitude firme em direção ao entendimento da condição
humana pela ampliação do imaginário.”
Teorias e práticas de letramento, pelo número de
pesquisadores envolvidos e pela diversidade de olhares sobre
as questões relativas à leitura e à escrita, é uma reunião de
vozes não rigorosamente unidas por um referencial teórico
monológico. O letramento, como conceito e, mesmo, como
palavra ainda é lugar de discussões. Seus sentidos e suas
14
A escrita e a leitura: fulgurações que iluminam
aplicações dentro e fora da sala de aula não nos conduzem a
definições, mas ao diálogo contínuo. Restará ao leitor, assim,
ao fim e ao cabo do contato com cada um dos artigos deste
livro, não a constatação inequívoca de um entendimento
estabelecido, mas um convite à reflexão que cerca as
complexidades pertinentes às dinâmicas da cultura escrita e a
inserção, na escola ou além dela, dos sujeitos, nessa cultura.
Restará, sobretudo, talvez, a certeza de que o contato com o
mundo da escrita e da leitura é sempre uma fulguração a nos
iluminar, pois guarda sempre em si a capacidade de um maior
entendimento das coisas da vida.
Lia Scholze
Tania M. K. Rösing
(Organizadoras)
15
Acesso social, práticas educativas
e mudanças teórico-pedagógicas
ligadas ao género textual
Ana Maria Raposo Preto-Bay*
Uma abordagem com base na literacia representa um
estilo de ensino que os educadores devem considerar se querem
preparar os aprendentes para uma participação completa em
sociedades que progressivamente exigem competência em
nível multilinguístico, multicultural e multitextual (Kern,
2000, p. 16).
Embora ainda não saibamos exactamente o que o
termo “globalização” significa e quais as suas implicações e
repercussões na vida da população mundial a curto e a longo
prazo, o facto é que o seu uso é presentemente tão comum que
já se tornou quase banal. A realidade que procura descrever
é a realidade do início do século XXI – uma realidade difícil
de descrever dada a sua complexidade e ambiguidade. A
constante movimentação de pessoas e produtos, a falta de
estabilidade dos mercados de trabalho em nível mundial e
local, a diversificação e rápida restruturação de organizações
e empresas e a reconfiguração de tarefas e responsabilidades
que requerem adaptação a qualquer momento, todas elas
intensificam esse sentido de incerteza a vários níveis.
Paralelamente, e não surpreendentemente, o acesso
real aos meios de produção, consumo e participação social
estão cada vez mais ligados à capacidade de adaptação a essas
rápidas mudanças. Os avanços tecnológicos, de que quase
*
Doutora em Psicologia Educativa e Tecnologia na área da aquisição
lingüística. Leciona na Brigham Young University em Provo, Utah, nos
Estados Unidos da América. Licenciada pela Universidade Clássica de
Lisboa, faz investigação na área dos sistemas educativos e da literácia, entre
outros.
17
Ana Maria Raposo Preto-Bay
todas as comunidades humanas alargadas agora dispõem para
a realização de intercâmbios sociais, culturais, económicos
e políticos, requerem um nível de sofisticação que é, na
realidade, responsável por uma ainda maior exclusão social
daqueles que a eles não têm acesso. A participação social
e laboral é, no século XXI, mais complexa. Enquanto, por
exemplo, a economia industrial dependia de trabalhadores
manuais, cujas qualificações se limitavam quase somente à
capacidade de realizar uma mesma tarefa repetidas vezes, a
nova sociedade e economia requerem dos seus participantes,
entre outras, a capacidade de rápido pensamento crítico,
resolução de problemas, argumentação e negociação e, talvez,
acima de tudo, altos níveis de literacia.
A idade da informação é não só definida pelo acesso
e controle de tecnologias e redes-chave, mas também pela
livre circulação de grandes quantidades de dados, os quais
são quase sempre codificados, catalogados e circulados
pelo meio escrito. Neste sentido, a produção e o consumo
de textos revelam-se progressivamente como catalisador
social de participação e acesso a fontes de conhecimento e,
consequentemente, de poder. Trata-se não só de saber ler e
escrever, de saber registar e decifrar os aspectos linguísticos
de um texto, mas, principalmente, de compreender e saber
estabelecer relações sociais através desse mesmo texto.
Como artefactos sociais e culturais, os textos escritos
são produzidos e, até certo ponto, produzem as estruturas
sociais das comunidades em que existem; são mapas para
o entendimento das relações entre membros das várias
comunidades e, por conterem indícios reais dessas relações
sociais, permitem-nos acesso aos valores e princípios de
cada comunidade. Por esse motivo, a nossa familiaridade
com textos escritos constitue verdadeira evidência da nossa
participação legítima em comunidades culturais, políticas,
religiosas e laborais e é, ao mesmo tempo, um ponto de acesso
a comunidades a que ainda não pertencemos. Assim sendo,
o acesso social a estruturas e comunidades a que desejamos
pertencer é, em larga escala, mediado pelo uso efectivo e
competente do processo literato da leitura e da escrita nas suas
vertentes não só cognitivas, mas também sociais e culturais.
Podemos, assim, argumentar que a literacia é um dos
aspectos fundamentais da participação social e que, ao
activarmos os mecanismos necessários em nível educativo,
18
Acesso social, práticas educativas e mudanças teórico-pedagógicas...
é possível, até certo ponto, diminuir os níveis de exclusão e
desigualdade sociais responsáveis por altas taxas de pobreza,
por exemplo, via um maior nível de actividade literata que
emana dum sistema educativo eficaz. De acordo com o
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), “quando
se observa que pessoas com distintos atributos produtivos
recebem distintos rendimentos, considera-se que o mercado de
trabalho revela uma heterogeneidade preexistente na força do
trabalho, gerada no sistema educacional” (TD 1000). Embora
possa parecer não só ambicioso como também injusto justapor
o sistema educativo, a literacia e a participação social numa
relação causal na mesma linha de argumento, a realidade é que
esse é verdadeiramente o “chamado” das pessoas e dos sistemas
ligados à educação. Posicionados como janelas para o mundo,
os sistemas educativos têm, muitas vezes e infelizmente, as
cortinas fechadas. Geralmente preocupados com a aquisição
e transmissão de conhecimentos no contexto escolar, muitos
educadores em todos os níveis recriam ciclicamente uma
forma de incesto intelectual ao duplicarem estruturas antigas
de reprodução de saberes para consumo interno em vez de
prepararem os aprendentes para acção inteligente e autoafirmante nas comunidades a que pertencem, naquelas a que
querem ter acesso e no mundo em geral.
Se o sistema escolar é, por um lado, um veículo sui
generis de transmissão do conhecimento acumulado durante
a história da humanidade, é também, por outro lado, um
contexto privilegeado para a preparação para o presente e
futuro dessa mesma humanidade.
Quando o sistema educativo exclue ou inclue só
parcialmente, pelas suas limitações pedagógicas e logísticas,
aqueles que mais poderiam se beneficiar da sua existência
e funcionamento, o processo de desenvolvimento social é
estancado. É, por esse motivo, vital que a escola assuma o
seu papel social e providencie os meios através dos quais
os aprendentes se possam cientizar do valor intrínseco
das comunidades a que pertencem e da sua capacidade de
participação em novas comunidades sociais, culturais, laborais
e políticas. Esse sentimento de pertença e de valor próprio
pode ser fomentado pela participação activa no processo
escolar, tornando, assim, o sistema educativo uma verdadeira
ferramenta para a inclusão e participação dos aprendentes nas
sociedades a que pertencem.
19
Ana Maria Raposo Preto-Bay
O processo contínuo de desenvolvimento e transformação
social e cultural inerente a todas as comunidades reside na
participação legítima dos seus membros (Lave e Wenger, 1991).
Esta legitimidade está ligada ao acesso a recursos através dos
quais os participantes podem desenvolver o seu potencial. Na
comunidade educativa, os aprendentes precisam ter acesso
a estruturas que facilitam o seu desenvolvimento pessoal
não só sob o ângulo vocacional, mas também nas áreas de
enriquecimento pessoal, lazer e auto-actualização. O lugar
que a literacia ocupa neste processo é indiscutível. Cummins
(1989) sugere que é necessário que se faça uma “análise das
habilidades e atitudes que esta geração vai precisar para
participar tanto numa sociedade democrática como numa
comunidade globalizada” (p. 21) e, segundo ele, uma delas é o
“uso activo da língua para comunicação genuína no contexto
de uma tarefa com a qual os alunos se sentem intrinsicamente
comprometidos” (p. 33).
Alfabetização literária
Apesar de, através dos séculos, a maioria das pessoas
ter tido um acesso limitado à língua escrita, os textos sempre
desempenharam um papel vital na história humana não só em
termos do conteúdo, mas também da forma. A escrita revela
a natureza das relações sociais na comunidade e cultura que
os produz e usa como aspecto fundamental dessas mesmas
relações. A natureza de um texto religioso no século XIV
revela a estrutura social, cultural e religiosa da época. O
mesmo acontece com uma mensagem de e-mail enviada entre
colegas de trabalho numa companhia de seguros. Segundo
Nystrand (1989), “a comunicação escrita é um acto fiduciário
entre autores e leitores no qual ambos se tentam orientar
continuamente visa-vis um estado anticipado de convergência
entre si” (p. 75). De certa forma, todos o textos são “escritos”
tanto pelo escritor como pelo leitor.
A possibilidade de comunicação via textos é mais do que
a capacidade de leitura de símbolos linguísticos numa página.
O que um texto simplemente diz e o que comunica socialmente
podem ser realidades e ideias completamente distintas. O
intercâmbio real entre um autor e um leitor é baseado num
passado social e cultural partilhado. Ler um texto e interpretálo
são duas realidades e experiências diferentes. Saber “ler” não
20
Acesso social, práticas educativas e mudanças teórico-pedagógicas...
significa “saber ler.” Sem a interpretação contextualizada no
tempo e espaço, a comunicação ocorre somente num nível
superficial, se de todo. A menos que o termo e conceito de
alfabetização venham a ser alargados para se referir também a
um tipo de alfabetização cultural e social, este termo não pode
ser considerado sinónimo de literacia, porque, segundo Kern
(2000):
A literacia é o uso de prácticas situadas no contexto social, histórico
e cultural que nos permite criar e interpretar significados através
do uso de textos. (Por esse motivo a literacia) presupõe pelo
menos o conhecimento das relações entre as convenções textuais
e os contextos em que são usadas e, idealmente, a capacidade de
reflectir de forma crítica sobre essas relações. Como está ligado
a objectivos claros, a literacia é dinâmica – não estática – e varia
de uma comunidade discursiva e cultural para outra. (A literacia)
chama a si uma grande variedade de aptidões cognitivas e
conhecimentos da língua escrita e falada, do conhecimento de
géneros e de conhecimento cultural (p. 16).
Os símbolos linguísticos que nos permitem registar
conteúdos são prerequisitos essenciais para a literacia, não
são, contudo, o seu expoente máximo. Kern afirma que,
embora ligada ao uso da língua escrita, “a literacia tem que
ver, acima de tudo, com a linguagem e o conhecimento da
forma como é usada, e só secundariamente com os sistemas
da escrita” (2000, p. 23).
Cada indivíduo tem um discurso primário, aquele
que aprendeu na sua cultura familiar e no grupo em que se
insere. Além desse sistema familiar e comunal do seu discurso
primário, cada um geralmente aprende discursos secundários
ligados às instituições sociais em que se movimenta – escola,
local de trabalho etc. Cada discurso dentro de cada comunidade
é sempre ideológico e resiste à crítica interna enquanto, ao
mesmo tempo, se opõe a outros discursos e atribui valor a
certas coisas a custo de outras, estando, assim, “ligado à
distribuição de poder e à hierarquia estrutural da sociedade”
(Gee, 1996, p. 53). Quando uma pessoa, embora participe
numa comunidade primária e tenha um discurso primário, se
encontra à margem da organização social mais lata, tal sentido
de falta de poder limita a sua capacidade de participação
literata nessa mesma sociedade. Como “domínio [efectivo] dos
discursos secundários” (Gee, 1996, p. 56), a literacia é, por
isso mesmo, uma forma real de participação social alargada.
Por óbvias que as afirmações prévias pareçam, na
realidade, só recentemente se começou a conceber de forma
21
Ana Maria Raposo Preto-Bay
coerente a natureza verdadeiramente generativa e social dos
textos, especialmente no que se refere ao seu ensino e didáctica.
O conceito de alfabetização – anterior ao conceito de literacia
e teoricamente ligado a conceitos comportamentalistas e
cognitivos de independência de acção do aprendente no
processo de aprendizagem – tem sido “executado” através do
ensino dos processos línguisticos irredutíveis da leitura e da
escrita. Independentemente da esfera social onde circula e
existe, e sem esse entendimento, a aprendizagem torna-se um
processo alienatório para muitos dos aprendentes. Segundo
Silva e Colello (2003):
Tradicionalmente, a didatização das atividades para o ensino da
leitura e escrita na escola cristalizou-se como uma linguagem
estranha aos alunos, falantes nativos da língua portuguesa que
nem sempre percebiam as práticas pedagógicas como extensão
ou possibilidade efetiva do seu dizer. Longe de atender as
necessidades do indivíduo, de desenvolver e ampliar os seus
modos de expressão e interação, ou ainda, de alimentar o desejo
de aprender, ensinava-se uma língua que, de fato, não era a
dele; impunha-se uma relação como as letras incompatível com
o seu mundo, e, portanto, a revelia do próprio sujeito (p. 7).
Sem o entendimento e valorização das comunidades e
discursos primários dos aprendentes, e porque não assenta
naquilo que eles já conhecem rumo àquilo que podem vir
a conhecer, a aprendizagem das letras é vazia e conduz a
situações de rejeição por parte dos aprendentes, os quais se
tornam, então sim, resistentes a esforços de alfabetização no
seu sentido mais básico.
Em vez disso, a aprendizagem da literacia pode e deve
ser feita com as literacias primárias dos aprendentes – formas
legítimas de expressão social do seu repertório, sejam elas
quais forem – como ponto de partida. A escola é somente
um dos muitos aspectos da participação social. Os alunos
têm as suas vidas próprias fora do contexto da escola em
que muitos desempenham já papéis muito relevantes nas
suas comunidades primárias. Shaughnessy (1998) diz que
os professores, em vez de tentarem “converter os nativos” e
“abrir as comportas da verdade”, a qual, condescendentemente,
partilham com os seus alunos, devem, sim, tornar-se
observadores atentos e tentar, de facto, conhecer os alunos a
quem querem ensinar. Quando a escola se integra primeiro no
sistema social dos alunos e os ajuda a analisar e entender os
seus discursos primários, a possibilidade de ensinar práticas
literatas da sociedade alargada aumentam significativamente.
22
Acesso social, práticas educativas e mudanças teórico-pedagógicas...
O género como vertente
teórico-pedagógica da literacia
Todos nós reconhecemos um editorial no jornal da
manhã, uma receita médica, um anúncio de uma casa
à venda, um roteiro de um cruzeiro às Bahamas ou um
relatório sobre a qualidade de vida de homens encarcerados
num estabelecimento prisional como formas válidas de
comunicação escrita contendo um certo conteúdo, formato e
função social. Se cada um deles tem ou não a ver com a nossa
vida pessoal, é uma questão de quem somos, onde vivemos, o
que fazemos profissionalmente, qual é o nosso estatuto sócioeconómico etc. Embora, pessoalmente, a autora gostasse de
admitir familiaridade com roteiros de férias nas Bahamas,
tal não acontece. Estamos naturalmente mais familiarizados
com certas formas de escrita do que outras. Provavelmente, já
fomos ao médico e recebemos uma receita; por outro lado, não
é de surpreender que poucos, ou nenhum, de nós já tenham
tido acesso a um relatório do tipo mencionado. Todos esses
textos pertencem a géneros textuais diferentes e realizam
funções sociais diferentes.
Os géneros textuais contêm, como marca da sua
produção, os termos do contracto social estabelecido através
deles. Da mesma forma que a “literacia é uma colecção
de processos culturais dinâmicos e não um grupo de
atributos psicológicos estáticos e monolíticos” (Kern, 2002,
p. 23), o género, como veículo histórico-cultural e didáctico, é
também um conceito aberto, fluido, em permanente evolução,
dada a natureza generativa e evolutiva dos indivíduos que o
usam na sua comunicação. Apesar disso, o conceito de género
mantém, ao mesmo tempo, uma estrutura base, um tipo de
infraestrutura conceptual através da qual nos podemos orientar
tanto na produção como na recepção de textos escritos. Segundo
Freedman (1993), “os géneros são acções, eventos, e/ou
respostas a situações recorrentes ou contextos com relações
complexas de substância, forma, contexto e motivo ou
intenção. A reocurrência de contextos específicos conduzem
a acções sociais que se tornam ritualizadas, por isso os géneros
podem ser concebidos como ‘acções retóricas-tipo baseadas
em acções reocurrentes’” (Chapman, 1994, p. 351).
23
Ana Maria Raposo Preto-Bay
Os autores experientes geralmente iniciam o processo
de comunicação por escrito usando um plano de referência
mútuo entre leitores e autores e uma calibração do tópico
através da escolha de temas, tom e metadiscurso. Podem fazêlo porque, ao longo do tempo e com experiências repetidas,
criaram um tipo de heurística do género, ou seja, as linhas de
base dos elementos que todos os autores bem-sucedidos usam
implícita ou explicitamente quando escrevem. Estes aspectos
são, ao mesmo tempo, parâmetros comuns a todos os géneros e
a base na qual os géneros diferem entre si. Através de decisões
feitas no nível do conteúdo, das expectativas dos leitores, do
vocabulário e do registo linguístico, do tipo de formato e das
fontes usadas, entre outras, o autor consegue desenvolver o
texto de forma socialmente adequada. As escolhas da forma
como o texto é contextualizado e elaborado em termos do
tópico, nível de explicação e da natureza do género são todas
produto não só da experiência e do saber linguístico do autor,
mas também do conhecimento sócio-cultural e histórico da
comunidade a que se dirige por escrito.
O ensino da literacia a aprendentes principiantes ou
inexperientes através do género textual requer, por isso, que
se façam ajustamentos em nível teórico e prático. Por um
lado, o sistema educativo em geral e o professor em particular
precisam adoptar os conceitos de que a aprendizagem e o uso
da leitura e da escrita são um processo social, que a literacia é
a compreensão e produção de discursos secundários, ou seja,
as formas de comunicar por escrito em vários contextos sociais
alargados, e que a escola é, de facto, o ponto de partida para os
processos de acesso e participação social. Essa postura teórica
direcciona o ensino para uma acção responsável, sabendo
que “como aspecto da prática social, a aprendizagem envolve
as pessoas na sua globalidade... [o que] implica não apenas
uma relação com actividades específicas, mas uma relação
com comunidades sociais – implica tornar-se participante,
membro, um tipo de pessoa (identidade)” (Matos [s. d.],
p. 67). Antes que possamos falar dos aspectos práticos da
didática da leitura e da escrita via género, impõe-se que
aceitemos as dimensões teóricas da literacia e do género como
ponto de partida e alicerce da nossa prática.
Por outro lado, a adopção teórica da importância do
ensino da literacia nas suas vertentes cognitivas e sociais
implica uma prática pedagógica comprometida em que
24
Acesso social, práticas educativas e mudanças teórico-pedagógicas...
o ensino da literacia abandona a noção de “escrever por
escrever” (Colello; Silva, 2003, p. 12). Em vez disso, procura
encontrar meios através dos quais o que acontece na sala
de aula reflecte esta noção de que a escrita acontece num
contexto sócio-cultural mais lato do que o contexto escolar
e só pode ser compreendida e ensinada de forma eficaz sob
essa perspectiva. Uma vez que os alunos são já participantes
dentro de comunidades discursivas primárias, a função do
sistema educativo no seu todo é a de alargar a capacidade de
acesso dos alunos a outras comunidades através da leitura e
da escrita, uma responsabilidade que reside na escola, sendo
esta muitas vezes a comunidade de discurso secundário com
a qual os alunos têm o seu primeiro contacto.
Usando o conceito de género textual, o ensino da
literacia pode ser feito com base no reconhecimento de que
todas a comunidades e discursos, incluindo a comunidade
e o discurso primário de cada aluno, têm valor intrínseco,
mas que a participação efectiva a vários níveis dessas
comunidades requer que cada um venha, pelo menos em
parte, a conhecer o conjunto de valores e formas de interação
que essas comunidades, quer sejam culturais, políticas ou
laborais privilegiam. Tal como pessoas que transitam entre
dois mundos e precisam aprender os seus diferentes valores
e contractos sociais, os alunos precisam ser ensinados
explicitamente sobre quais são as características dessas novas
comunidades e aprender a navegá-las através dos processos
da escrita.
Não se pretende com este argumento menosprezar a
função da alfabetização ao seu nível mais básico e vital – o
processo de aprendizagem do código linguístico – e sem o
qual seria impossível sequer pensar em termos de literacia.
No entanto, importa reafirmar que até mesmo no processo
de aquisição da língua escrita o contexto da aprendizagem
deve sempre visar ao que há de social em toda a linguagem
humana, ou seja, o processo de comunicação de algo a alguém.
O código linguístico não é um fim em sim mesmo, mas o meio
através do qual, de forma socialmente adaptada, comunicamos
efectivamente e dessa forma nos tornamos membros ou
mantemos a nossa afiliação literata nas comunidades de que
fazemos ou queremos fazer parte. Segundo Colello (2004),
“na ambivalência dessa revolução conceitual, encontra-se
o desafio dos educadores em face do ensino da língua:
25
Ana Maria Raposo Preto-Bay
alfabetizar letrando” (p. 6). Resta-nos agora repensar a nossa
prática pedagógica de forma a tornar real os princípios teóricos
apresentados até aqui.
A pedagogia aplicada à aprendizagem da
literacia através do género textual
Os anos 80 marcaram o início do ensino da escrita
através do processo. Além de ser revolucionário no sentido que
criou, pela primeira vez, a possibilidade de verdadeiramente
ensinar aos escritores inexperientes o processo seguido pelos
escritores experientes (Preto-Bay, 2005), a pedagogia do
processo da escrita permitiu, ao mesmo tempo, desmascarar
falsas ideias que se pensou estaram associadas à produção
escrita, nomeadamente a noção de que só algumas pessoas
têm o dom da escrita e que esta já existe de forma acabada
na cabeça do escritor antes de chegar ao papel. Basicamente
até à pesquisa realizada por Flower e Hayes (1981), a qual
documentou o processo sofisticadado da escrita seguido por
autores experientes, não havia ensino da escrita segundo
a concepção que temos presentemente. Em vez disso, no
contexto escolar, a escrita era avaliada como produto acabado
sem ser verdadeiramente ensinada. Através do processo, a
escrita começou a ser vista e ensinada como parte de um
método de desenvolvimento e aprendizagem a que todos
têm acesso. Deixou de se pensar que algumas pessoas nunca
poderão se comunicar adequadamente por meio da escrita e
passou a pensar-se em termos da responsabilidade pedagógica
que a escola tem de ensinar esse processo.
Se, por um lado, a psicologia cognitiva nos deu acesso
aos processos mentais dos escritores e nos permitiu pensar na
escrita como um processo passível de aprendizagem, por outro,
a psicologia social tem-nos remetido, mais recentemente, para
noções da língua e da sua natureza social. Entramos, assim,
numa segunda fase da pedagogia da escrita ligada, desta vez,
não somente aos aspectos da produção escrita mas também
do ensino da sua função social. Assim, nascem o conceito
de género textual no contexto escolar e a necessidade de
desenvolver uma pedagogia para o seu ensino. Embora o
ensino do processo da escrita ajude os escritores a sistematizar
as fases e passos da codificação dos textos, este não garante,
por si só, que o autor inexperiente leve em linha de conta os
26
Acesso social, práticas educativas e mudanças teórico-pedagógicas...
aspectos sociais, culturais e históricos da produção dos textos
de modo a que esses textos sejam eficazes comunicativamente
no âmbito social.
De acordo com Johns (1997), “no caso do discurso escrito,
há muitos factores que são determinados na e pela cultura onde
os textos são produzidos ... incluindo os objectivos e a função
dos textos, os papéis e as relações entre os autores e os leitores,
o contexto em que o texto é produzido e lido, as características
formais do texto, o uso do conteúdo e até mesmo o nome dado
ao texto” (p. 196). Para desenvolver uma pedagogia do género
precisamos, pelo menos, pensar em termos (1) das experiências
prévias dos alunos, (2) da aprendizagem situada na sala de
aula e do que os alunos aí podem experenciar e aprender, bem
como (3) da transferência desses saberes para novos contextos
que o aluno virá a encontrar na sua prática social, pois
naturalmente que no contexto escolar não é possível ensinar
a miríade de géneros textuais que as múltiplas comunidades
discursivas usam como forma de comunicação.
Avaliação das experiências prévias,
necessidades e interesses dos alunos
O sistema de design de instrução mais conhecido e mais
usado, o chamado modelo ADDIE, propõe que o design de
sistemas inclua cinco fases sequenciais: a análise, o design, o
desenvolvimento, a implementação e a avaliação. Apesar de
esse processo ser geralmente usado para o design de sistemas
instrucionais em larga escala, podemos aplicá-lo ao design
da instrução ao nível do ensino da literacia na sala de aula.
O primeiro passo nesse processo é a análise, a qual inclue
três aspectos principais: a análise do problema a ser resolvido
através da instrução, o estabelecimento de objectivos para a
instrução e, não menos importante, a análise das características
dos alunos. Não faz sentido fazer design, desenvolvimento ou
implementação de um sistema de instrução sem, primeiro,
saber quem são os alunos, quais as suas experiências
educativas, culturais e sociais prévias, quais os seus objectivos
para a aprendizagem e quais as suas características em geral.
Surpreendentemente, na maioria das situações de instrução, o
ensino é feito como se essas experiências e características não
tivessem qualquer impacto no processo de aprendizagem.
27
Ana Maria Raposo Preto-Bay
Sem conhecer os alunos de perto, as suas situações de
vida, as suas ambições e objectivos, é difícil verdadeiramente
ensiná-los. O tipo de experiência que os alunos têm fora da
escola, nas suas comunidades e discursos primários, tem um
impacto directo na sua aprendizagem de discursos secundários
e da literacia em geral. Ao tentar “proteger a torre de marfim”
(Shaughnessy, 1998) e as suas teorias pré-fabricadas de quem
os alunos são e o que podem ou não aprender, ou que metas
pessoais e sociais podem ou não atingir, os professores tornamse, em parte, pactuantes com uma visão determinística e
pessimista das possibilidades na vida dos seus alunos.
Ao repensar a sua abordagem e atitude perante cada
cada aluno individualmente e cada novo grupo de alunos,
o professor pode “[1] conceber o papel dos alunos como
agentes inteligentes no processo de aprendizagem ... [2] ter
em consideração a variedade de recursos que venham a ser
necessários para atingir objectivos de aprendizagem e [3]
incluir explicações de processos de aprendizagem específicos
no contexto de descrições mais alargadas das estrutura
cognitivas através das quais as pessoas se adaptam a vários
contextos para atingirem as suas metas pessoais” (Bereiter,
1990, p. 619).
Dessa forma, quando o professor reconhece que
os aprendentes têm um “conhecimento inadequado dos
recursos necessários para desempenhar a tarefa [e que o]
seu depositório de conhecimento do mundo, das estruturas
retóricas e linguísticas ...[é] insuficiente” (Wenden, 1991,
p. 318), pode, assim, respeitando e incluindo as experiências
prévias dos alunos, orientá-los na aquisição do desenvolvimento
de discursos secundários, ou seja, da literacia em geral.
A sala de aula como comunidade
linguística
Ao permitir uma experiência social alargada necessária
ao desenvolvimento social dos alunos, a sala de aula tornase uma comunidade sócio-retórica, uma zona em permanente
construção, onde os alunos se apercebem que o seu discurso
primário é um ponto de partida para o entendimento e
aprendizagem das práticas literatas de outros, as quais podem
ser aprendidas e perante as quais não necessitam se sentir
intimidados. Uma vez que toda a aprendizagem ocorre de
28
Acesso social, práticas educativas e mudanças teórico-pedagógicas...
forma situada socialmente, a criação de uma comunidade
de prática na sala de aula permite que os alunos trabalhem
os textos como autores e leitores e, nessa reciprocidade,
aprendam a avaliar a situação retórica. O contexto escolar
torna-se, assim, uma primeira comunidade alargada para os
alunos e, se gerida de forma a explorar o seu potencial real,
pode tornar-se uma ponte para o mundo à medida que “tal
como outras instituições sociais ... providencia prática no
uso de ferramentas específicas e tecnologias para resolver
problemas específicos... [a escola obedece assim] a princípios
que definem objectivos importantes a ser atingidos, problemas
significativos a ser resolvidos e abordagens sofisticadas a ser
usadas para resolver problemas e atingir metas” (Rogoff, 1990,
p. 191).
As relações sociais que se estabelecem na sala de aula,
particularmente no que se refere à posição do professor como
mentor e mestre em relação a um aprendente, dão ênfase
ao conceito da aprendizagem através de participação activa
e progressivamente mais competente numa comunidade
de prática específica (Atkinson, 2002). Assim, através da
participação orientada pelo professor, a literacia desenvolvese como uma actividade completa e complexa, em que as
metas comunicativas e sociais da escrita são comunicadas e
practicadas.
Embora se fale com frequência da zona de
desenvolvimento próximo como um conceito individual,
Moll (1989) propõe que se repense este conceito como
participação colectiva. Diz-nos: “O objectivo é ajudar ... [os
aprendentes] a criar significados através da participação em
diversas actividades literatas. O objectivo é [ajudá-los] ... a
se aperceberem de forma consciente de que estão a usar o
processo literato e ajudá-los a aplicar tal conhecimento para
reorganizar experiências e actividades futuras... [Através
de estratégias que] obtiveram através do uso e análise da
linguagem para moldar as suas próprias actividades e criar
textos mais sofisticados e claros” (p. 132).
Esse tipo de desenvolvimento pessoal e social dos alunos
não acontece, contudo, sem ser cuidadosamente planejado,
desenvolvido e apoiado de forma intencional.
Uma vez que o desenvolvimento dos aprendentes
ocorre a longo prazo, é necessário que esses tenham
oportunidade de reorganizar as suas formas de pensar de modo
29
Ana Maria Raposo Preto-Bay
a, progressivamente, atingirem um nível de entendimento,
habilidade e perspectiva sobre a comunidade a que pertencem
para usarem esse entendimento e crescimento pessoal na
sua relação com instituições sociais alargadas e com outros
membros da comunidade. Para que tal aconteça os alunos
devem ter acesso à participação social orientada pelo professor,
a qual inclui:
• planeamento e estruturação de actividades;
• calibração de tarefas difíceis;
• participação conjunta em tarefas de resolução de
problemas;
• discussão de metas e objectivos gerais;
• atenção à resolução de partes de problemas que levam
à resolução de problemas mais complexos;
• oferta de apoio e estrutura;
• providenciamento de rotinas a serem usadas em
actividades ou situações mais complexas;
• participação orientada;
• transferência de responsabilidades do professor para o
aprendente de acordo com a avaliação que o professor
faz das capacidades deste último;
• ajuste do apoio dado com base nas necessidades do
aprendente;
• aumento de responsabilidades e expectativas à medida
que o aprendente se torna mais capaz (Rogoff, 1990).
Paralelamente, através da reflexão, na sequência
das discussões na sala de aula e da própria natureza da
atmosfera da aula, os alunos começam a desenvolver não só
os seus próprios processos e experiência, mas também uma
arquitectura de significados e relações que são o produto da
comunidade linguística que a sala de aula constitue, bem
como das relações estabelecidas entre os alunos em si e entre
o professor e estes mesmos alunos.
Na aprendizagem da literacia não se pode dar demais
importância às relações pessoais estabelecidas entre o
professor e os alunos. Quando os alunos sentem que têm o
respeito e atenção do professor e que o objectivo do professor
é o de os ajudar, muitos respondem de forma positiva.
Segundo Cummins (1989), a interação estabelecida na aula
entre alunos e professores e entre os alunos em si é vital para o
desenvolvimento da literacia desses mesmos alunos. Algumas
das suas sugestões incluem:
30
Acesso social, práticas educativas e mudanças teórico-pedagógicas...
• diálogo genuíno entre o professor e o aluno tanto
oralmente como através da escrita;
• orientação e apoio;
• colaboração através do diálogo entre os alunos;
• uso significativo da língua escrita em vez de atenção
às estruturas superficiais da comunicação escrita;
• aspectos do desenvolvimento linguístico integrados
em todo o conteúdo curricular;
• ênfase dada às habilidades de análise e resolução de
problemas;
• apresentação de tarefas de forma a engendrar motivação
intrínseca nos alunos.
Essa forma de pensar e estruturar a sala de aula e as
relações nela existentes cria, de certa forma, um sistema
modelo através do qual os alunos podem explorar outras
relações sociais alargadas na sua experiência presente e
futura.
Pedagogia aplicada ao género–um
processo social estável e generativo
O que se pretende com o ensino aplicado do gênero
textual a serviço da literacia é que os aprendentes tenham
a oportunidade, no contexto educativo, de explorar relações
sociais e a forma como estas se desenrolam e constituem
através dos textos. Didacticamente, o nosso objectivo não
pode ser, obviamente, o de ensinar todos os géneros textuais
que os alunos vão encontrar no seu percurso de vida. Em vez
disso, podem usar-se experiências com a leitura e a escrita
de textos específicos como exemplos situados e partir daí
para o entendimento de que, em contextos diferentes e para
fins diferentes, os textos assumem características diferentes.
O género precisa ser apresentado sob a perspectiva de que
é variável e que nos ajuda, ao mesmo tempo, a perceber e a
modificar o mundo, uma vez que, embora tenha um conjunto
de características de base estáveis, é, acima de tudo, uma
actividade generativa.
Johns (1997) sugere um curso de acção que envolva a
discussão do que pode ser considerada uma análise comparativa
de géneros. Como ponto de arranque, os aprendentes começam
31
Ana Maria Raposo Preto-Bay
por examinar textos com que já se encontram familiarizados
nas áreas do conteúdo, forma, intento comunicativo e das
forças sociais em geral que determinam a sua construção e
interpretação. Com base neste tipo de pensamento crítico e
atitude de análise, o professor pode, então, apresentar outros
textos pertencentes a outras comunidades discursivas com os
quais quer que os aprendentes se familiarizem. À medida que
vários textos vão sendo analisados, os alunos vão começando a
produzir textos visando leitores em comunidades diferentes.
A experiência didáctica que visa à familiarização com
vários leitores e às suas comunidades pode, inicialmente, ser
tão simples como pedir que os alunos escrevam um parágrafo
descrevendo um acontecimento das suas vidas, tal como um
hipotético acidente de carro, a leitores diferentes: aos pais,
ao seu melhor amigo, ao chefe da polícia e ao namorado ou
namorada, por exemplo. A análise de tal exercício escrito
revelará, certamente, uma escolha de palavras e ênfase de
acontecimentos que se adaptam às expectativas do leitor e à
forma como o autor quer ser visto e entendido. Dependendo
do nível educativo dos alunos, este parágrafo pode não só ser
diferente em termos do conteúdo, do registo e do tom, mas
também assumir um formato diferente. Dessa forma, os alunos
começam a perceber o conceito de leitor no seu sentido mais
restrito e de comunidade discursiva no seu sentido mais lato.
Actividades didácticas bem mais avançadas requerem que os
alunos leiam um texto com o qual não estão familiarizados e
daí deduzam os valores e relações sociais entre os leitores e
autores desses textos. O que se pretende é que os aprendentes
“façam perguntas aos textos, aos contextos e aos membros
experientes dessas comunidades – e a si próprios” (Johns,
1997, p. 92).
Nesse processo de desenvolvimento da literacia, o
professor, como mentor e autor mais experiente, pode orientar o
aprendente ao ajudá-lo a identificar e analisar as características
dos géneros, as acções retóricas que os autores experientes
usam para atingir os seus objectivos e as escolhas linguísticas
que fazem, entre outras. A sala de aula pode tornar-se, assim,
um lugar de convergência de pessoas e textos, um lugar onde
os aprendentes podem (1) analisar géneros discursivos vários
e aplicar o novo conhecimento a novos contextos da escrita;
(2) rever e actualizar as suas próprias teorias do que são os
géneros textuais; (3) desenvolver estratégias para lidar com
32
Acesso social, práticas educativas e mudanças teórico-pedagógicas...
situações de escrita e leitura novas no contexto social; (4)
aprender a analisar activamente e criticar de forma construtiva
as várias funções sociais, os textos e os contextos; (5) adquirir
uma metalinguagem para discutir os textos; (6) reflectir nas
suas experiências literatas passadas e presentes (Johns, 1997).
Como comunidade linguística, contudo, a sala de aula
não precisa ser uniforme. Quando escrevem, os aprendentes
não têm que escrever todos no mesmo género textual. Com
base na sua experiência prévia e interesses futuros, esses
podem tornar-se pesquisadores etnógrafos das comunidades
em que estão interessados em participar – este tipo de prática
num ambiente acolhedor permite que os alunos experimentem
ideias e processos que podem parecer intimidantes fora do
contexto educativo, mas que nesse contexto transformam a sala
de aula num verdadeiro laboratório social de práticas literatas:
“O tipo de ensino que envolve e desafia os aprendentes em
tarefas com significado também ajuda os alunos a serem
capazes de correr riscos, apoia a colaboração entre eles, revê
de forma propositada as abordagens que faz e anticipa a
natureza a longo-prazo e contínua da aprendizagem. Este tipo
de pedagogia é boa para todos” (Zamel; Spack, 1998, p. XI).
Através deste processo aberto e generativo, os alunos podem
começar, verdadeiramente, a ter experiências que vão além da
realidade da comunidade discursiva a que pertencem e inferir
esses princípios para futuros textos que venham a escrever e
contextos em que venham a participar numa rede social mais
alargada.
Considerações finais
Os estudiosos nas várias áreas do conhecimento
preocupam-se com aspectos multifacetados da experiência
e desenvolvimento humanos. Embora vivamos num
período da história do mundo em que se torna necessário
compartimentalizar os vários ramos dos conhecimento,
importa, ainda assim, estabelecer relações entre eles de forma
a ter uma visão mais abrangente do que é possível. Certamente,
o tema da literacia através do género textual como forma de
desenvolvimento da qualidade de vida dos seres humanos
pode ser considerado como uma minúscula contribuição para
este fim. No entanto, como o relatório do Ipea sugere, “vê-se
que mesmo pequenas diminuições no grau de desigualdade
33
Ana Maria Raposo Preto-Bay
poderiam reduzir a pobreza significativamente” (TD 1000).
Porque a natureza da sociedade e de todo um conjunto de
problemas é multifacetada, torna-se necessário que as soluções
apresentadas também o sejam. Colello (2004) afirma que “a
desconsideração dos significados implícitos do processo de
alfabetização – o longo e difícil caminho que o sujeito pouco
letrado tem a percorrer, a reação dele em face da artificialidade
das práticas pedagógicas e a negação do mundo letrado – acaba
por expulsar o aluno da escola, um destino cruel, mas evitável
se o professor souber instituir em classe uma interação capaz
de mediar as tensões, negociar significados e construir novos
contextos de inserção social” (2004, p. 11). Essa é, certamente,
uma das possibilidades que nos são dadas através da ênfase no
desenvolvimento da literacia através do género textual.
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35
A escrita e o outro/interlocutor
no dizer das crianças
1
Cancionila Janzkovski Cardoso*
Vivemos no Brasil, a partir da década de 1980, profundas
mudanças no processo de ensino da língua materna. O avanço de
várias ciências correlatas da educação, em especial das ciências
lingüísticas, deslocou o centro do ensino da gramática normativa
tradicional para o texto como unidade de ensino. Especialistas
da área da linguagem, pesquisadores, professores formadores
têm feito um enorme esforço para divulgar/vulgarizar uma
concepção de linguagem como interação, como trabalho, como
discurso, como prática sócio-histórica, na qual as práticas de
leitura e escrita são ressignificadas.
Esse movimento se fez sentir, igualmente, no processo
de alfabetização. Por um lado, novas concepções sobre como
a criança apreende o sistema de escrita – a psicogênese da
escrita – e, por outro, a ampliação do conceito de alfabetização
trouxeram muitas modificações para o ensino e a aprendizagem
do ler e do escrever. É nesse contexto que ganha visibilidade
um novo fenômeno: o letramento. Autores brasileiros como
Tfouni (1988, 1995), Kleiman (1995), Soares (1995, 1998,
2002, 2003), Masagão (2003), Mortatti (2004), entre outros, têm
constituído uma importante produção acadêmico-científica
sobre esse novo fenômeno e, portanto, sobre o novo conceito
que veio a denominá-lo no interior da ciência pedagógica,
buscando explorar diferentes aspectos e problemas nele
envolvidos, a partir de diferentes perspectivas teóricas.
*
1
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Texto apresentado no 14o. Cole. Campinas, 2003, modificado e ampliado.
37
Cancionila Janzkovski Cardoso
É, pois, no contexto de profundas alterações científicas,
tecnológicas, políticas e sociais que se propõe a formação de
um novo leitor e escritor. A alfabetização escolar, por si só, já
não basta; é necessário que os indivíduos aprendam a ler e
produzir textos, para além daqueles produzidos no contexto
escolar, textos que remetam às mais variadas práticas sociais
de leitura e escrita.
Alfabetização e letramento, gradativamente, estão
sendo entendidos como dois processos interdependentes,
complementares, cada qual com especificidade própria. A
mudança na compreensão do processo de alfabetização colocou,
portanto, os usos sociais da escrita, materializados em textos,
no centro das atividades de ensino. O desafio que se coloca
hoje para a prática alfabetizadora é alfabetizar letrando. Para
Soares (2003, p. 90), ao mesmo tempo em que o aluno deverá
se apropriar do sistema de escrita alfabético e ortográfico, ou
seja, da “tecnologia” da escrita, deverá conquistar habilidades
e atitudes de uso dessa tecnologia em práticas sociais que
envolvem a língua escrita. O primeiro processo chama-se
“alfabetização”; o segundo, “letramento”. Ambos devem ocorrer
simultaneamente.
Assim, os processos de alfabetização e de letramento
escolares envolvem, fundamentalmente, a apropriação e o
uso competente da leitura e da escrita de textos variados, com
significado e relevância social. Com base nesse pressuposto,
este texto discute um aspecto importante da aprendizagem da
escrita: a adaptação do texto a um interlocutor determinado.
O ato de escrever
Escrever um texto pressupõe a simulação de uma
situação: prever um destinatário e os efeitos de forma e de
conteúdo do texto sobre ele. Desse modo, a aprendizagem da
escrita, diferentemente da aprendizagem da fala, requer da
criança uma dupla abstração: por um lado, ela deve lidar com
uma linguagem que não conta com os aspectos sonoros em
sua realização, restringindo-se ao plano das idéias veiculadas
pelas palavras; por outro, deve trabalhar considerando a
ausência do interlocutor na situação imediata de sua produção
(Vygotsky, 1987/34, p. 122).
Assim, o texto escrito supõe, fundamentalmente, um
enunciador – o escritor – em situação de comunicação que
38
A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças
o distancia de seu interlocutor – o outro/leitor – e, por isso,
exige um trabalho de organização textual que busque a
explicitação dos significados para esse interlocutor ausente.
O processo de construção do texto escrito exige que seu
autor ajuste, antecipadamente, o seu dizer a um determinado
interlocutor. Numa palavra, o texto escrito exige a construção
de um interlocutor, ou, como sugere Bakhtin, a consideração
de um auditório social. Assim, globalmente, pode-se dizer
que o problema da aprendizagem da escrita é o de a criança
conseguir um melhor controle sobre sua própria atividade de
linguagem: aprender a planejar um texto, a desenvolvê-lo em
função da situação, adaptá-lo a um destinatário. Encontra-se
aqui, portanto, aquela característica importante da atividade
de produção de textos escritos já mencionada por Vygotsky:
seu caráter consciente.
Para Schneuwly (1988, p. 50), do ponto de vista
psicológico, trata-se de fazer funcionar e dominar, nas
diferentes situações de comunicação escrita, dois processos: a)
o planejamento autogerado do texto; b) a instauração de uma
relação mediata em relação à situação material de produção.
No que concerne ao primeiro, é necessário compreender que o
controle e a gestão da produção não se ancoram mais na análise
da produção de linguagem na situação, na qual o interlocutor
dá pistas e participa conjuntamente da construção do discurso;
é necessário desenvolver uma instância de controle e de
gestão autônoma, permanente, que funcionará durante toda a
produção do texto. Igualmente, o outro processo implica que
o cálculo e a criação das origens textuais (temporais, espaciais,
argumentativas) funcionem independentemente da situação
particular. No nível psicológico, trata-se de um funcionamento
que exige a criação de novas instâncias de cálculo, de gestão e
de controle, que já se encontram, de maneira rudimentar, nas
situações ligadas ao uso da oralidade. Para esse autor, trata-se
de um processo de planejamento monogerado,2 que exige uma
reflexão mais deliberada e consciente sobre a língua.
2
No modelo de produção do discurso, desenvolvido por Bronckart (1985) e
Schneuwly (1988), existem dois grandes tipos de planejamento no nível dos
planos de textos ou de modelos de linguagem: o planejamento poligerado,
que corresponde, em geral, a uma ancoragem implicada, e o planejamento monogerado, de ancoragem autônoma. Como exemplo de planejamento
monogerado, poderíamos pensar numa narrativa ficcional escrita na qual a
representação do destinatário é mediatizada pela representação interna do
enunciador.
39
Cancionila Janzkovski Cardoso
Os procedimentos da pesquisa
As particularidades elencadas sugerem que o processo
da escrita possui um funcionamento psicológico específico
cuja característica principal é a adoção por parte do escritor
de uma relação “metatextual” com seu texto, tomando-o como
objeto de atenção para o comentar, o estruturar, o modificar, o
clarificar.
Tendo como objetivo apreender os níveis de reflexividade
e de deliberação sobre o processo de escrita já desenvolvidos
por crianças, realizei uma pesquisa com 14 sujeitos, alunos
da 4a série do ensino fundamental, que tinham, em média,
dez anos de idade.3 Os procedimentos envolviam entrevistas
individuais nas quais a criança era convidada a falar sobre
seus processos mentais, suas opiniões sobre a língua,
exigências formais do texto, tarefas escolares, leitores em
potencial, possibilidade de revisão textual etc., três ou quatro
dias após a produção do texto. Os sujeitos ficavam muito à
vontade, dado todo um conhecimento já construído com a
professora/pesquisadora e com o equipamento de gravação.
O objetivo foi mostrar como a criança vê o seu próprio texto
na interação oral sobre ele, evento que denominei “entrevista
de explicitação”. A entrevista de explicitação, que sempre
começava com a leitura do texto, proporcionou momentos de
reflexão meta (metalingüística, metapragmática, metatextual,
metadiscursiva) em que as crianças puderam discutir sobre
as formas de enunciação de seu pensamento para o outro,
apontar o que perceberam como limites na materialização do
texto e, ainda, sugerir formas alternativas de tratamento das
unidades apontadas como inadequadas. Para efeitos de análise,
as entrevistas foram transcritas e recortadas em unidades,
que denominei “seqüências enunciativas”. Nos limites deste
trabalho, discutirei apenas parte dos resultados, notadamente
aqueles que tratam da percepção das crianças relacionada ao
seu interlocutor/leitor.
3
Este foi um dos objetivos de uma pesquisa mais ampla, de caráter longitudinal, na qual acompanhei/analisei quatro anos de escolarização desses sujeitos. Grande parte dessa pesquisa já se encontra publicada em duas obras: a)
CARDOSO, Cancionila J. Da oralidade à escrita: a produção do texto narrativo no contexto escolar. Brasília/Cuiabá: co-edição Inep/Comped e EdUFMT,
2000, e b) CARDOSO, Cancionila J. A socioconstrução do texto escrito: uma
perspectiva longitudinal. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2003.
40
A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças
O interlocutor/leitor em cena
Bakhtin aponta como índice substancial, constitutivo do
enunciado, o fato de ele se dirigir a alguém, de estar voltado
para o destinatário. Para o autor, “as formas e concepções do
destinatário se determinam pela área da atividade humana e
da vida cotidiana a que se reporta um dado enunciado. A quem
se dirige o enunciado? Como o locutor (ou o escritor) percebe
e imagina seu destinatário? Qual é a força de influência
deste sobre o enunciado? É disso que depende a composição
e, sobretudo o estilo, do enunciado” (Bakhtin, 1979/1992, p.
321).
Assim, a avaliação do locutor sobre o que está dizendo,
mesmo quando aparentemente não se faz presente, e o seu
julgamento, com respeito a quem está se dirigindo, moldam
o seu discurso, determinam a escolha das unidades de
linguagem, lexicais ou gramaticais e, ainda, a escolha das
unidades de comunicação, tais como o estilo de uma fala ou
os gêneros discursivos empregados. O interlocutor é, portanto,
também definidor da configuração textual.
No processo de socioconstrução da língua escrita,
quando alunos dos anos iniciais do ensino fundamental
escrevem, o quanto está concretizado esse outro, seu leitor em
potencial?
Algumas seqüências enunciativas poderão elucidar tal
questão:4 [Quadro (1)].
Caíse demonstra, por meio de uma reflexão metapragmática,
ter consciência de que a sua produção textual é determinada
pela percepção que ela tem de seus destinatários. Num contexto
pedagógico mais distenso, é possível produzir um texto
4
Tendo como principal interesse as concepções das crianças sobre a escrita,
optei por transcrever as entrevistas de explicitação da forma mais legível
e simples possível, ortograficamente, apontando apenas as pausas mais
evidentes:
- uso de sinais de pontuação (exclamação, interrogação);
- uso de dois pontos (..) para assinalar pausa menor (semelhante a ponto ou
vírgula na escrita);
- uso de reticências (...) para assinalar uma pausa maior – hesitação, reflexão;
- uso de chave ( [ ) para assinalar falas concomitantes;
- uso de aspas (“ ”) para assinalar segmentos lidos;
- uso de duplo parênteses (( )) para assinalar comentários;
- entrevistadora identificada pela inicial K (Kátia Cancionila);
- criança identificada pela inicial do nome.
41
Cancionila Janzkovski Cardoso
(1)
K- agora me fala uma coisa .. quando você produziu
esse texto.. que ocê teve essa idéia de produzir um
texto parecido com o do Continho.. você não ficou
Título do texto:
pensando.. não ficou com medo de que eu e a Edilma
“Kátia e
não gostássemos?
Edilma, as
C- ah eu fiquei
engraçadinhas” K- ficou com medo? ((rindo))
C- aí depois eu falei assim.. “ah também se elas não
gostar.. eu faço outro”
K- eu faço outro... não... e se a gente além de não gostar
a gente ficasse braba com você?
C- ((risos)) mas é que vocês não iam ficar brava.. vocês
iam é ri
K- porque que você acha que eu não ia ficar brava?
C- ah porque você sempre foi alegre.. você não briga
com a gente.. lá.. se não fosse assim.. vichi eu nem
(Obs. Esse texto
ia colocar
é extremamente K- o quê?
C- se você fosse de mau humor eu nem ia fazer esse
sarcástico com
texto.. ia fazer outro
as personagens,
K- ah tá.. você seria capaz de fazer um texto desse
que são a
pesquisadora e
falando da professora?
sua auxiliar)
C- ãh ãh ((negativa))
K- não? por quê? o que que ocê acha?
C- porque ela é muito brava.. muito chata
K- ela é brava e poderia ficar brava com você?
C- é...
K- e se eu tivesse ficado brava... hem?
C[aí
K[assim brava.. nervosa
mesmo... “que absurdo que essa menina escreveu”..
Anexo 1
e aí hem?
C- aí eu ia pegar rasgar e fazer outro.. só que não de
vocês.. de outras pessoas
K- de outras pessoas... mas ocê ia fazer um texto parecido com esse de novo?
C- não.. ia fazer outro .. sem ser desse... é .. pôr de uma
historinha... não engraçada igual essa daí..
Caíse - 25.11.96 –
sarcástico, mesmo envolvendo as professoras como
personagens, pois ela sabe/pressente/antecipa a reação: mas
é que vocês não iam ficar brava .. vocês iam é ri. O mesmo
texto não seria escrito em um contexto mais formal, em que a
concepção que ela tem de seu destinatário a leva a hipotetizar
uma recusa ou censura. Essa concepção, determinada por
uma área de atividade humana – o contexto escolar – pode
não refletir a realidade, mas é, para Caíse, legítima. A fala
da criança parece também revelar uma percepção ampla das
possibilidades dos gêneros de textos, adequados a situações e
interlocutores determinados, na medida em que ela responde
42
A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças
que, para escrever sobre outras pessoas, ia fazer outro .. sem
ser desse... é .. pôr uma historinha.. não engraçada igual essa
daí.
A vivência nas práticas escolares de leitura e produção
textual reafirma, constantemente, um destinatário quase
exclusivo para os textos das crianças. Ao longo de sua
escolarização, elas vão constituindo uma concepção de
interlocutor – o professor/leitor – que tem expectativas bem
definidas com relação à sua produção escrita: ensinar, corrigir,
avaliar. Juliany traduz um conhecimento relativo à função
do texto escolar, seu interlocutor, seu destino, seu objetivo:
[Quadro (2)].
(2)
Juliany 25.11.96
K- hum.. mas Ju.. quando vo.. por exemplo esse dia que
você tava escrevendo esse texto aqui.. você sabia
que esse texto era pra quem.. quem ia ler?
Título do
J- você
texto:
K- cê sabia que era pra mim né.. pra mim e pra Edilma
“Os gnomos”
né.. e aí.. você.. quando cê tá escrevendo você pensa
em mim.. você fica imaginando.. ah quem vai ler é
a professora Kátia.. ou não.. nem pensa nisso.. só
pensa no texto?
J- penso
(Obs. Texto K- pensa? e lá na sala de aula.. quando você tá
muito criativo,
escrevendo.. você também pensa na professora ?
J- hum hum
permeado
K- que tipo de pensamento que vem na sua cabeça
de interassim
ertextualidade
com histórias J- não porque lá.. ela vai olhar as pontuações bem
infantis e
certinha tem que fazer tudo bem certo.. porque
propaganda
depois ela olha.. se tiver errado...
de TV)
K- o que acontece?
J- o que acontece? Você me pergunta?
K- é ..eu te pergunto!
J- ela manda a gente fazer tudo de novo
Anexo 2
J- de novo? mas ela mostra onde tá errado?
J- mostra.. por sinal ela só manda apagar e corrigir
Essa reiteração do interlocutor tem sido apontada como
sendo extremamente prejudicial. Trata-se, como salientou
Geraldi (1991, p. 143), de um grande problema, especialmente
porque as “redações” dos alunos (não sua “produção textual”)
têm sempre como leitor a função-professor, não o sujeitoprofessor. A via de mão única para a produção infantil, em
termos de destinatário, pode gerar inseguranças como a
expressa por Juliany: quando pode, quando seu leitor não é
43
Cancionila Janzkovski Cardoso
compulsório, essa criança diz selecionar quem pode ler seus
textos, apontando para uma vergonha de que seu leitor possa
achá-los de má qualidade: [Quadro (3)].
(3)
Juliany 25.11.96
K- é... quando você escreve Ju.. você pensa.. alguma vez
você já pensou em quem vai ler?
J- já
K- como é que é isso.. conta pra mim como é que é isso
Título do
J- eu não gosto muito de .. assim.. nem minha mãe
texto:
assim eu gosto muito que fica perguntando (...).. eu
“Os gnomos”
fico com vergonha
K- por quê?
J- ah.. sei lá
K- porque que você tem vergonha?
J- achar o texto da gente ruim.. ou senão ... ah sei lá..
Anexo 2
eu tenho vergonha de mostrar.. aí chegando em casa
assim.. não sei porque a minha mãe assim eu não
deixo ver.. mas as minhas colegas assim que é bem
íntima até que eu deixo
A reiteração, no entanto, não impede que as crianças
desenvolvam idéias sobre um interlocutor fictício,
eventualmente outra pessoa que não o professor. É no interior
dessas mesmas práticas sociais de leitura e escrita que se pode,
timidamente, abrir uma perspectiva de maior socialização do
texto escolar das crianças.
No interior das situações vivenciadas e discutidas
naquele momento pelas crianças, Diego é capaz de perceber
funções diferenciadas em seus interlocutores, aliadas
a expectativas distintas: o texto elaborado em situação
escolar é, essencialmente, exercício de estilo, aplicação de
conhecimentos gramaticais e estéticos, isso porque a função
principal de seu leitor é ensinar e o escritor/aluno deve mostrar
que aprendeu. O texto elaborado em situação periescolar5
distingue-se do primeiro em virtude de ter um interlocutor
cuja função principal é estudar. Destinos também diferentes:
um fica no caderno, ao passo que o outro será analisado,
valorizado e, quem sabe, virará livro. [Quadro (4)].
5
Para esta pesquisa, “situação escolar” é entendida como aquela na qual os
sujeitos produziam seus textos escritos como tarefas corriqueiras desenvolvidas pelo currículo escolar. “Situação periescolar” é entendida como um
contexto social de produção distinto do primeiro, embora ainda escolar, em
que os sujeitos eram reunidos para participar de aulas desenvolvidas pela
pesquisadora, envolvendo a produção textual.
44
A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças
(4)
K- me fale uma coisa .. O que que você sente quando
a professora manda fazer um texto.. e quando eu
mando fazer um texto?
Diego – 9.9.96
D- eu faço rápido
K- pois é.. é diferente ou não fazer um texto pra professora ..
e fazer um texto pra mim?
Título do
texto:
D- é diferente
“Olimpíadas K- porque que ocê acha que é diferente?
96 no Futebol D- ah.. pra eu fazer um texto pra você .. você vai estudar
sobre o texto né.. você vai fazer.. como é que é...
Brasileiro”
um livro.. né.. que nem você fez aquela vez com
nós quando nós estava na 1ª série.. e a professora
... quando ela manda fazer um texto é pra gente
aprender a fazer estética e aprender a pontuação
Anexo 3
mais bem.. e aquilo fica no nosso caderno.. e quando
nós faz um texto fica pra você
Esse grupo de crianças teve, pelo menos, dois leitores empíricos
em, também, pelo menos, dois momentos do seu processo
de escolarização, ou seja, na 1a e na 4a série.6 A entrevista
procurou extrapolar esses dois conhecidos leitores empíricos,
criando um leitor virtual, insistindo e puxando a idéia de fazer
a criança pensar num interlocutor hipotético. Nesse contexto,
é o mesmo Diego que fornece outros índices de uma reflexão
sobre esse leitor/interlocutor virtual e suas possíveis exigências
para a recriação de um contexto, no intuito de haver uma boa
recepção do texto. Para Diego, o texto não se basta por si só.
A compreensão requer um “entendimento” sobre o assunto
em pauta; requer uma familiaridade com o jeito de se falar
daquele assunto. Há que se fazer algumas relações para que se
estabeleça um sentido, ou, melhor dizendo, “a compreensão
do todo do enunciado é sempre dialógica” (Bakhtin, 1979/92,
p. 354). Aspectos profundos como contextualização/
descontextualização, auditório social/esferas sociais, temática/
enunciado podem ser identificados na opinião metatextual7
dessa criança: [Quadro (5)].
6
7
A investigação longitudinal foi desenvolvida em forma de pesquisa participativa em dois momentos: quando as crianças freqüentavam a 1ª e a 4ª série.
Para uma análise cognitivista do problema das relações intralingüísticas entre os signos e seu contexto lingüístico (domínio metatextual) ver Gombert
(1990).
45
Cancionila Janzkovski Cardoso
(5)
K- alguém.. digamos assim uma pessoa que mora bem
longe.. que não assistiu as Olimpíadas.. tá?.. que
não escutou nenhuma notícia.. éé.. uma pessoa que
Diego - 9.9.96
mora lá na zona rural.. digamos
D[hum
Título do
K[se essa pessoa ler o seu texto.. você
acha que ela entende tod.. toda a sua história?
texto:
“Olimpíadas D- ((não com a cabeça))
96 no Futebol K- é? por quê?
Brasileiro” D- porque não tem.. não tem é.. não tem entendimento..
sobre.. sobre as o.. o negócio.. tem que ter um
Anexo 3
entendimento sobre as Olimpíadas
K- hum... mas e aí as coisas que estão escritas aqui não
são suficientes para entender?
D- eu acho que não
K- não?
D- não
K- fala mais sobre isso.. vamo ver como é que ocê tá
pensando isso
D- não.. eu tô falando assim ó .. que nem aqui.. que tô
falando assim nas Olimpíadas.. que nem a minha
tia.. uma tia minha mora lá na .. no .. em Goiás na
zona rural né.. aí ela não tem televisão lá.. ela tinha
uma só que quebrou né.. aí ela .. ela gosta de ver
novela assim.. aí se a gente falar de uma novela ela
não vai saber o que que é.. ela vai pensar que é um
filme.. só que é uma novela
K- humm
D- aí ela não vai entender o que que é
K- certo.. mas e se sua tia então.. digamos que ela não
tenha assistido as Olimpíadas.. né
D[não
K- ela tá lá.. ela.. se sua tia lesse o seu texto.. né.. você
acha que ela não vai entender ou ela vai entender?
D- vai entender assim mais ou menos
K- mais ou menos .. então tá bom..
Dessa forma, Caise, Juliany, Lucas e Diego mostram,
cada qual a seu modo, que a imagem do leitor-interlocutor
visado não só está presente como também regula o processo
de produção.
46
A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças
O interlocutor/leitor construído/filtrado
nas formas lingüísticas adequadas
Convidadas a refletir sobre a apropriação de seus textos
para um determinado interlocutor, as crianças manifestaramse de formas variadas. Algumas não apontaram qualquer
problema em seu texto que pudesse impedir a compreensão do
leitor; outras apontaram localmente problemas de letra ou de
ortografia; outras, ainda, foram capazes de perceber distintos
problemas nos aspectos organizacionais de seus textos e nas
suas relações internas.
Scardamalia e Bereiter (1987), ao apontarem dois tipos
de abordagem do conhecimento que o sujeito assume na
tarefa de elaboração de textos, sugerem igualmente diferenças
evolutivas no grau de consciência das operações implicadas
no ato da escrita. Para os autores, o escritor iniciante assume
uma abordagem de “relato de conhecimento” em que a tarefa
da escrita consiste em anunciar o que se conhece, lembra ou
quer dizer. O escritor constrói a representação do conteúdo
temático e essa representação vai preponderar na tarefa de
gerar o texto. Preocupado com o que vai dizer em seguida, não
planeja deliberadamente as questões de coerência. Um escritor
mais experiente assume a abordagem de “transformação
do conhecimento”, em que a tarefa da escrita é entendida
como solução de problemas que envolve tanto o plano dos
constituintes temáticos quanto o dos princípios de organização
do discurso.
A passagem de uma etapa à outra na forma como
o conhecimento é abordado na linguagem envolve,
provavelmente, um longo processo, em que as experiências
em escrever e em pensar sobre como escreveu desenvolvem
papel importante.
Assim, no processo de letramento da criança, penso ser
de fundamental importância refletir sobre o papel, a clareza, a
presença do interlocutor, seja ele real ou imaginário, da/para a
escrita. A entrevista de explicitação proporcionou momentos
de profunda reflexão e aprendizagem por parte dos sujeitos.
Dessa reflexão é possível vislumbrar uma análise mais refinada
e deliberada no uso das formas lingüísticas, tendo em mente o
outro leitor/interlocutor para quem se diz. [Quadro (6)].
47
Cancionila Janzkovski Cardoso
(6)
K- agora me fala uma coisa .. você acha que alguém..
uma outra pessoa que não me conheça .. não
Caíse
conheça a Edilma.. é quem.. uma outra pessoa
– 25.11.96
aí de fora.. qualquer pessoa que ler o seu texto..
esse texto aqui.. ela vai entender o texto todo?
C- sei lá.. acho que vai.. não sei
Título do
K- acho que vai? Porque que ocê ach.. bom dá uma
texto:
olhadinha.. vamo recordar um pouquinho o seu
“Kátia e
texto.. ocê acha que uma pessoa de fora.. qualquer
Edilma, as
pessoa lendo o texto.. ela entende todinho?
ngraçadinhas” C- se não for pela letra eu acho que entende
K- ah.. a letra tá ótima.. sua letra tá linda.. não tem
nada contra
CAnexo 1
[engracadinha olhe eu
K[ãhn?
C- engracadinha engraçadinha
K- ah.. aí tem um um probleminha? mas você
colocou a .. a ..
C[ não.. foi o pinguinho no i
K- ah esse é o pingo do i.. esse não é o cedilha não ..
engraçadinha..
Numa análise metalingüística, Caíse aponta duas
ordens de problemas, ambos elementos de superfície textual:
levanta, inicialmente, a hipótese de a letra ser ilegível, fato
que não corresponde à realidade; depois, aponta a palavra
“engraçadinha” no corpo do texto grafada sem a cedilha (a
mesma palavra aparece no título, escrita corretamente).
Outros sujeitos, como Lucas e Fábio, também
apontam a legibilidade gráfica como fator importante para a
compreensão.
Morlean é outra criança que, colocada para refletir
sobre um interlocutor virtual, rapidamente percebe lacunas
em seu texto e acaba por realizar uma análise metapragmática,
adequando-o, por meio de uma maior explicitação, para um
leitor virtual, não mais a professora/pesquisadora: [Quadro
(7)].
O movimento interlocutivo dessa seqüência parece
apontar para o fato de que, inicialmente, a criança procura
descobrir aspectos referentes à interação, tais como qual é a
concepção do adulto da definição da situação, a expectativa
48
A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças
(7)
K- agora me fale uma coisa Morlean.. alguém que não
conhece a sua vila.. não conhece você.. tá.. outra
pessoa.. outra pessoa de fora... se essa pessoa lê o
seu texto.. aqui ó esse texto seu.. você acha que ela
Título do
vai entender toda a sua história?
texto:
M- vai
“A istória da K- vai? Você acha... você não gostaria de mudar alguma
coisa nessa história.. pra que a pessoa entendesse
minha vila”
melhor?
M- que professora... que a senhora acha? ((gaguejando
muito))
K- então.. eu to perguntando pra você.. se você acha
assim que uma outra pessoa.. qualquer outra
(Obs. Texto
pessoa que não te conheça.. lendo seu texto se ela
bastante curto
vai entender tudo.. ou se falta alguma coisa pra ela
e com muitos
entender melhor...
implícitos)
M- ((silêncio))
K- por exemplo eu fiquei sem saber Morlean onde era
sua vila... qual é a sua vila
M- ah.. vou por aqui
K- não.. só fale pra mim
M- a a minha vila ... é o Jardim Assunção
K- Jardim Assunção... olha só você não pôs aqui o nome
da vila..
Anexo 4
M- esqueci
K- então... eh... pensa aí.. dá uma olhadinha no seu texto
vê se tem mais alguma coisa.. que você mudaria..
que você colocaria agora no texto pra ele ficar mais...
mais claro pra outra pessoa entender...
M- ((pausa)) o nome da rua
K- o nome da rua.. como que é o nome da rua?
M- rua Sergipe
K- hum...
M- o número da casa
K- o número da casa.. aí você ia colocar essas coisas
também.. é? que mais? mais alguma coisa ou só
isso?
M- só isso
Morlean 9.12.96
dos papéis, o foco da discussão (empreitada na qual, diga-se
de passagem, é bem-sucedida) (Perret-Clermont; Perret e Bell,
1993, p. 54). Desse modo, Morlean devolve a pergunta feita –
“Você não gostaria de mudar alguma coisa nessa história.. pra
que a pessoa entendesse melhor?” – dizendo: “O que você acha
professora?”. A pesquisadora, então, insiste, recorta e sugere
possível mudança no texto, uma complementação: “Lendo
seu texto ela vai entender tudo.. ou se falta alguma coisa pra
ela entender melhor”. Na ausência de resposta, a provocação
continua com a apresentação de um exemplo, relacionado
49
Cancionila Janzkovski Cardoso
com a localização espacial: “Eu fiquei sem saber onde era a
sua vila”. De imediato a criança parece captar o sentido do
discurso da entrevistadora e, após explicitar o nome de sua
vila, no momento seguinte é ela própria quem aponta o nome
da rua e o número da casa, como elementos importantes para
a recepção de seu texto por aquele interlocutor fictício, do
qual ambos falavam. Ressalta-se aqui o papel desencadeador
de aprendizagem que teve a entrevista de explicitação
junto a esses sujeitos, na medida em que a fala da criança
só pode ser interpretada como uma construção conjunta de
conhecimentos.
Os trabalhos em psicologia cognitiva sobre o controle
da explicitação das mensagens verbais evidenciam que essa
capacidade tem emergência tardia e está relacionada com
o interlocutor: “A capacidade de produzir mensagens não
ambíguas não é nada mais que um caso particular de adaptação
ao destinatário; trata-se, de fato, de poder ter em conta sua
perspectiva, seu estado de conhecimento” (Gombert, 1990, p.
137).
Morlean foi capaz de apontar o aspecto da explicitação
como forma de refinamento de sua enunciação a partir de uma
certa insistência por parte da pesquisadora. Outras crianças,
no entanto, apontam de forma autônoma (ou quase), a partir
da pergunta inicial da entrevistadora, diferentes anomalias
em suas produções, revelando aspectos de uma análise da
estrutura mais profunda do texto, em que foram capazes de
identificar enunciados incompletos ou obscuros. Isso significa
um esforço metatextual em que a criança precisa considerar a
seqüência de enunciados nos seus aspectos organizacionais,
tendo em vista a adequação ao leitor/interlocutor não presente
e a articulação de relações internas ao texto. [Quadro (8)].
A falta de algumas informações essenciais pode, na
percepção de Lucas, prejudicar a recepção do texto. Para Lucas
o problema da explicitação é traduzido pelo fato de que ele
não escreveu tudo certinho.. tudo não.. não escrevi tudo com
detalhes não. Desse modo, na hipótese de um leitor pouco
habituado com a temática do futebol, a compreensão ficará a
meio caminho: meio tudo não.. tudo não.. mas um pouquinho
vai. Cita, então, algumas informações que seriam importantes
para o enriquecimento do texto e sua maior autonomia, tais
como o número de jogos e de pontos necessários para um time
50
A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças
(8)
K- me fala uma coisa .. é.. se uma pessoa que não
conhece muito futebol.. que não... uma outra
pessoa de fora.. ler o seu texto.. você acha que
vai compreender tudo?
L- meio tudo não .. porque eu não escrevi tudo
certinho.. tudo não.. mas um pouquinho vai
K- o que que cê não escreveu certinho.. por
Título do
exemplo?
texto:
K- Ah eu não escrevi como é que ia ser o res.. como
“Campeonato
é.. quantos jogos tem pra se classificar.. não
Brasileiro 96”
não falei quantos pontos eles precisavam pra se
classificar
K[hum
L- não escrevi isso tudo com detalhes não
Anexo 5
K- não escreveu tudo sobre o quê?
L- detalhes
K- ah detalhes! quer dizer que faltaram alguns
detalhes que talvez fossem importantes?
L- é
Lucas
– 25.11.96
se classificar. Sua análise é metatextual, implicando o nível
mais profundo da configuração do texto.
Como analisa Reuter (1996, p. 135), a modalidade de
funcionamento textual explicitação/implicitação “é uma
dimensão particularmente importante dos textos – qualquer
que seja seu tipo – na medida em que ela está diretamente
referida ao destinatário, à construção de saberes e de suas
expectativas, à elaboração do efeito a produzir [...].”
Trata-se, portanto, de uma dimensão bastante valorizada
na escola. Perceber essa modalidade exige da criança uma
capacidade de descentração para selecionar os conteúdos e
organizá-los em função de um leitor/interlocutor (processo
de planejamento) e para textualizar e revisar em função
desse destinatário (melhor explicar tal passagem, precisar os
implícitos, explicar as referências, melhorar um argumento).
Na seqüência seguinte, Juliany fornece várias explicações
que testemunham o grande avanço em seu conhecimento sobre
a geração de um texto, o planejamento e o replanejamento
conscientes: [Quadro (9)]
O discurso que acompanha o raciocínio de Juliany
não é simples. Nessa atividade metalingüística, seu discurso
centra-se em aspectos diversos da escritura e da reescritura.
Inicialmente, ela aponta um problema de escolha lexical:
no texto, aparece a expressão “exame de corpo”, que a
51
Cancionila Janzkovski Cardoso
(9)
Juliany - 9.9.96
Título do texto:
“Inventando uma
estória”
(Obs.: Texto muito
criativo que conta
a história de um
sonho, em que a
autora se vê como
uma pediatra
que perdeu a
filha no parto e a
reencontra anos
depois)
Anexo 6
52
K- agora me fale uma coisa.. se uma pessoa.. como eu por
exemplo eu não conhecia a história.. ou a sua mãe..
qualquer outra pessoa.. lendo o seu texto.. ãh? ocê acha
que essa pessoa vai entender todinha a sua história?
J- não sei
K- por quê? Por que não sabe?
J- aqui no meio eu fiz uns erros
K- onde por exemplo?
J- olhe aqui.. quer ver .. aqui exame de sangue .. eu fiz
“exame de corpo”
K- ãhn
J- eu errei
K- ocê errou?
J- hum hum
K- então ocê mudaria.. se fosse.. se fosse pra você mudar
alguma coisa pra.. pra essa pessoa.. qualquer outra
pessoa que fosse ler o seu texto.. entender direitinho..
então ocê mudaria esse pedaço aí
J- hum hum
K- que mais cê mudaria.. você mudaria mais alguma coisa
ou não?
J- mudaria
K- que mais?
J- ((lendo)) aqui também
K- o quê?
J- “Levei ela para minha casa e contei tudo para ela”..
mudaria
K- por que que ocê mudaria aí?
J- e aqui também.. quer ver.. hum.. aqui
K- hum
J- “- Que morava na rua” aqui não.. “e que estava com muita
febre e um rapaz lhe trouxe até aqui”.. esse pedacinho
aqui eu mudaria
J[não.. até aqui
K- aonde?
J- “e um rapaz lhe trouxe até aqui”
K- ãhnãhn.. e o que que cê mudaria aqui nesse pedaço
então?
J- eu colocava de outra maneira.. que ela.. tivesse vindo
sozinha ou que o rapaz encontrasse ela mas.. acho que
aqui ficou errado
K- o que será que ocê acha que ficou errado aí nesse
pedacinho?
J- é “e um rapaz lhe trouxe até aqui”
K- sim mas porque que ocê acha que tá errado esse pedaço?
J- “até aqui” agora não sabe se.. se foi até o hospital ou até
o lugar onde ela tava
K- ahrraaaa tá .. então é esse pedacinho só.. “um rapaz lhe
trouxe” esse “até aqui”.. quer dizer onde é esse “até aqui”
né?
J[ é..
K- e aí ocê mudaria como?
J[no hospital
K- ahm sim .. cê colocaria...
J[no hospital
K- no hospital.. então você deixaria esse pedacinho mais claro
né?
J- hum hum
A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças
criança identifica como inadequada, substituindo-a por
“exame de sangue”. Em seguida, outro fragmento textual é
mencionado: “Levei ela para minha casa e contei tudo para
ela”. Afirmando que mudaria essa parte, Juliany demonstra
entendê-la inadequada, mas não consegue localizar/explicar
a inadequação. Uma hipótese possível é a de que essa
criança tenha a percepção de que a causa do estranhamento
é a repetição do pronome “ela”. Nesse caso, a criança teria
identificado nesse segmento uma estratégia oral e que, portanto,
poderia ser mais adequadamente elaborada na escrita. Mais
que a repetição pura e simples, o uso dos dois pronomes em
posição pós-verbal pode ter incomodado a criança (“levei ela/
contei tudo para ela”).8 De qualquer forma, esse enunciado é
apontado como tendo problemas com a clareza.
Continuando a análise, Juliany aponta outro enunciado
que, em sua opinião, mereceria uma reescritura: “e que
estava com muita febre e um rapaz lhe trouxe até aqui”. As
perguntas da entrevistadora, desde o início, visavam dissipar
a ambigüidade para o leitor. Na dinâmica interlocutiva que se
segue, a criança insiste no enunciado que aponta como errado
e a pesquisadora insiste nas perguntas de explicitação: “O que
que ocê acha que ficou errado? por que você acha que tá errado
esse pedaço?”. De início, a pesquisadora parece não entender
a seleção feita pela criança. Esta, então, recorta o enunciado:
“e um rapaz lhe trouxe até aqui; fornece opções para ele: eu
colocava de outra maneira.. que ela.. tivesse vindo sozinha ou
que o rapaz encontrasse ela.. mas acho que aqui ficou errado”.
“Nesse jogo, novo recorte é feito pela criança e, finalmente,
vem a explicação:” “até aqui.. agora não sabe se .. se foi no
hospital ou até o lugar onde tava”. A surpresa da pesquisadora
em verificar a sutileza da análise da criança fica patenteada:
“ahrraaaa tá .. então é esse pedacinho só.. um rapaz lhe trouxe
esse “até aqui”.. quer dizer onde é esse “até aqui” né?” Juliany
está falando de uma referência a um contexto extralingüístico
não compartilhado com o leitor. O uso do dêitico (“aqui”)
naquele enunciado é percebido como inadequado e, portanto,
como elemento dificultador na recepção de seu texto. A
solução encontrada é a substituição do dêitico pela definição
de um lugar (“no hospital”). Entendo que a utilização do
8
A frase toda é: “Levei ela para minha casa contei tudo para ela vesti ela calcei
e tudo oque um boa mãe podia fazer”, apresentando, portanto, mais uma
repetição do pronome.
53
Cancionila Janzkovski Cardoso
dêitico sugere um modo de planejamento; sugere, ainda, que
a criança se comporta como se o interlocutor/leitor estivesse
presente e, desse modo, um certo número de informações que
ela percebe, seja igualmente acessível a ele (“um rapaz lhe
trouxe até aqui” supõe que o destinatário esteja no mesmo
lugar que o enunciador).
Ao perceber a existência de uma unidade lingüística
que exige uma maior contextualização, Juliany sugere sua
substituição por outra unidade lingüística, tendo como
objetivo proporcionar uma maior autonomia do texto em
relação à situação de produção. Ganha o texto em autonomia,
ganha o leitor/interlocutor em clareza, ganha Juliany em
controle consciente de sua produção.
Enunciados com ambigüidade referencial também são
apontados como problemáticos por Laila: [Quadro (10)].
Em resposta à questão da pesquisadora, a criança aponta,
desde o início da seqüência, a ambigüidade envolvendo o uso
do pronome anafórico: “olha professora eu entendo.. pode
assim de uma pessoa em quem .. agora não sei se entende
muito porque algumas palavras eu errei.. e eu não coloquei..
o que que aquela pessoa tava falando.. se era o filho.. se era
a mãe.. ou se era o pai.” Numa clara distinção dos papéis
de produtor/receptor, Laila argumenta que o texto, para ela, a
autora, está claro, uma vez que foi ela quem escreveu (“pra mim
eu entendo porque fui eu que escrevi”), mas há necessidade
de determinar melhor, em algumas seqüências do texto, qual
dos personagens fala ou age. Numa análise rigorosa, parágrafo
a parágrafo (a partir do quarto até o décimo quarto), a criança
vai lendo e apontando a ambigüidade relacionada ao uso do
pronome anafórico.
Ao escrever um texto, o autor defronta-se com o problema
da conservação/progressão das informações, quer dizer,
como introduzir novos elementos, como retomá-los e como
diferenciá-los entre si. Em lingüística estes problemas têm
sido analisados pela rubrica coesão e coerência, “entendida
a coerência como a configuração conceitual subjacente
e responsável pelo sentido do texto, e a coesão como sua
expressão no plano lingüístico” (Costa Val, 1991, p. 20). Dentre
os mecanismos de textualização utilizados para garantir a
coesão nominal encontram-se os pronomes anafóricos. Esses
procedimentos de substituição lexical contribuem para dar
um efeito de estabilidade e continuidade ao texto.
54
A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças
(10)
K- é e.. legal .. então tá bom.. é me fala uma coisa Laila..
olhando essa sua história.. você acha que .. uma pessoa..
como eu por exemplo.. eu não conhecia né.. uma outra
Título do texto:
pessoa que não conhece essa história .. lendo.. ela lendo o
“O mundo azul”
seu texto.. você acha que ela entende tudo?
L- olha professora eu entendo.. pode assim de uma pessoa em
quem .. agora não sei se entende muito porque algumas
Anexo 7
palavras eu errei.. e eu não coloquei.. o que que aquela
pessoa tava falando.. se era o filho.. se era a mãe.. ou se era
o pai..
K- hum
L- aí eu não entendi.. aí eu coloquei.. mas pra mim eu
entendo porque fui eu que escrevi
K- você entende né? então tá .. então aqui nessas coisas que
ocê observou que ocê colocou uma hora.. a alguém que ocê
não..
L[é
K[não determinou bem quem era.. você mudaria
alguma coisa então pra essa pessoa entender?
L- mudaria
K- aonde? Vamo ver .. anote aí pra mim.. anota não.. a..
aponta pra mim .. aonde.. o que que ocê mudaria nesse
texto.. pra essa pessoa entender melhor
L- olha igual aquel.. eu.. eu li bem ali né .. “Depois indiante
ele não dormia com a luz apagada só de medo”.. então
aqui eu colova “o filho”
K- ãhmmm
L- o que eu não coloquei .. ó.. “E o pai” aqui eu já coloquei..
“Ele falava isso ao filho” porque esse aqui é o filho.. eu já
sei que é o pai né
K- hum hum
L- então tá aqui .. aí eu mudaria assim.. “Depois disso aparecia
vários fantasma para passar um medo” .. agora eu não sei se é
no filho.. se é na mãe.. a pessoa não entende se é no filho.. se
é na mãe.. ou até no pai.. então aqui eu tinha que colocar .. o
pai.. aí “Um dia apareceu o fantasma da Obra e todo mundo já
conhecia esse nome”.. todo mundo já conhecia né.. por falar
dele
K- hum.. tá certo.. bom aí o que mais?
L- (...) “Ele tava dormino e apareceu o fantasma .. fantasma
.. Ele ficou até.. tranqüilo porque pensou que era sua
mulher”.. só que aí é sua mulher.. que é o o pai né? “Só
quando ele vio ele assustou tanto que até seus cabelos
arrepiaram a coberta sobio e ele também”.. então aqui eu
colocava o pai né.. porque foi o pai que subiu e que ficou
com os cabelos arrepiados
K- hum hum...
L- “Ele gritou e virou um deflége da cama e correu para o
quarto de seus filhos tremendo.. de seu filho”.. eu coloquei
seu filho.. “tremendo de o queixo de medo”.. o pai né..
“depois de tudo isso ele contou tudo ao filho.. Olha filho
eu te contei aquilo para te passar medo para eu não...”..
aqui até que vai.. aqui não tem nada não..
Laila - 9.9.96
Schneuwly (1988, p. 131), revisando várias pesquisas
sobre os procedimentos anafóricos utilizados por crianças,
a partir de quatro anos, tanto em linguagem oral quanto em
linguagem escrita, hipotetiza que “em torno dos 9 anos, as
crianças aprenderam a utilizar o pronome anafórico como
meio de criação de coesão, meio que serve para indicar ao
55
Cancionila Janzkovski Cardoso
auditor que nada muda, que se continua com os mesmos
atores ou elementos que antes. O pronome pessoal parece ser
um paradigma particularmente produtivo e interessante para
chegar ao domínio da coesão do discurso”.
Para esse autor, a apropriação dessa e de outras unidades
lingüísticas que agem sobre um contexto lingüisticamente
criado9 “funciona também como mediador tornando possível
e impondo uma relação mais distanciada, mais reflexiva em
relação ao próprio comportamento de linguagem materializado
no texto” (Schneuwly, 1988, p. 131).
A análise de Laila, ao mesmo tempo em que torna
evidente essa apropriação, testemunha que ela não se dá de
uma só vez. O uso que essa criança fez do pronome anafórico
na escrita mostra um “desvio de coesão” (Costa Val, 1991,
p. 22), já que criou ambigüidade, porque havia mais de um
termo que podia lhe servir de antecedente (o pai, o filho). No
entanto, ao rever seu texto essa anomalia foi logo observada,
o que supõe um processo em desenvolvimento. Essa análise
expressa, mais uma vez, a capacidade dessa criança em se
colocar no lugar do interlocutor/leitor e, a partir daí, avaliar
seu próprio discurso, notando nele uma infração textual que
poderia acarretar embaraços à leitura.
Considerações finais
À luz dos dados analisados, não é possível negar que
os sujeitos desta pesquisa já se apropriaram de aspectos
relevantes da construção do outro/interlocutor, mostrando
comportamentos/observações extremamente sofisticados,
relacionados com a dimensão reflexiva do ato de escrever.
No que concerne ao Outro/interlocutor, o leitor de seus
textos, os sujeitos parecem querer dizer, tal como argumenta
Geraldi (1991, p. 102): “O outro é a medida: é para o outro que
se produz o texto. E o outro não se inscreve no texto apenas
no seu processo de produção de sentidos na leitura. O outro
insere-se já na produção, como condição necessária para que
o texto exista.”
Diante desses dados, como avaliar as pesquisas relatadas
por Fayol e Schneuwly (1987) cujos resultados sugerem
que “sujeitos de dez-onze anos corrigem mais facilmente
ambigüidades referenciais nos textos dos outros que nos seus,
ou ainda, nos sujeitos de dez a catorze anos, as avaliações
56
A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianças
se restringem ao nível “local”, os sujeitos não chegam a
“diagnosticar” suas dificuldades?”
Pelo menos, há que se considerar, juntamente com a
idade, o fator “prática social” ou “experiências de letramento”,
nas quais são atualizadas diversas variáveis constitutivas das
práticas discursivas escritas. Com efeito, a linguagem em
funcionamento revela, ao mesmo tempo, aspectos referentes
ao domínio do sistema lingüístico, de sua utilização em
situação de discurso, da relação que o locutor mantém com
essa situação e com o seu discurso, daquilo que ele pode/
quer comunicar em tal situação. E isso vale, igualmente, para
a situação de produção da correção ou revisão de textos e,
portanto, deve ser considerado como um aspecto de influência
nos resultados das pesquisas.
Tendo presente essa dimensão, pode-se observar
que, do ponto de vista desenvolvimental os sujeitos desta
pesquisa (que tinham, em média, dez anos, lembro o leitor)
demonstram ter capacidade de aplicar operações textuais
complexas visando intervir como enunciadores de um texto. Os
problemas apontados por eles, sobretudo os relacionados com
os implícitos, a ambigüidade referencial, a coesão, a coerência
e a inadequação pragmática, testemunham a existência de
diferentes níveis de desenvolvimento da dimensão reflexiva
do ato de escrever. São as “pistas” por meio das quais a criança
antevê/constrói/filtra o seu leitor.
Assim, pode-se concluir que os comentários metatextuais
dessas crianças atestam o desenvolvimento de critérios
objetivos para pensar os seus textos e verificar as condições de
aceitabilidade de seu discurso escrito. São essas importantes
e indispensáveis capacidades lingüísticas, desenvolvidas
no contexto do letramento escolar. O conhecimento dessas
capacidades pelos professores alfabetizadores poderá fornecer
alguns elementos de reflexão sobre o potencial das crianças
de apreender a complexidade da trama textual, ajudandoos, portanto, em sua tarefa de alfabetizar em tempos de
letramento.
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59
Processos de letramento
na infância: aspectos
da complexidade de processos
de ensino-aprendizagem
da linguagem escrita
Cecília Goulart*
Começando a conversa
Experiências vividas numa viagem de avião podem nos
colocar questões interessantes em relação à vida, de um modo
geral, e, por que não, em relação a processos de aprendizagem,
levando-nos à reflexão sobre processos de ensino. Foi o que
aconteceu comigo em viagem recente. Em certo momento, os
passageiros foram avisados de que estávamos atravessando um
espaço de muitas nuvens e que poderia haver turbulências.
Lá fora o branco-algodão dominava o cenário. Pus-me,
então, a pensar no que é uma nuvem para quem a olha em
terra firme e para quem se vê no interior de uma nuvem,
dentro de um avião. Seria a nuvem aquela massa branca
esfumaçada, sem contornos, vista de dentro do avião, ou seria
aquela imagem desenhada e destacada no céu, com formatos
ora regulares, ora irregulares, como quando olhamos para o
céu? Seria a nuvem aquele desenho, aquela forma, ou aquele
material que lhe dá consistência? O que é a nuvem para um
*
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense/
(UFF). Integrante do Programa de Pós-Graduação em Educação (UFF). Doutora em Letras/Lingüística Aplicada (PUC-Rio).Coordenadora do GT Alfabetização, leitura e escrita da Anped no biênio. Pesquisadora líder do grupo de
pesquisa Linguagem, práticas educativas e cultura/Diretório de Grupos de
Pesquisa do CNPq. Pesquisadora do Núcleo de estudos da argumentação/Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq.
61
Cecília Goulart
físico? Para um astrônomo? Para um índio? Para uma criança?
Para outra criança? Para um poeta?
Na mesma viagem, muito próximos à chegada ao
aeroporto, questões semelhantes me tomam, quando o avião
sobrevoa uma região, com uma extensa plantação de árvores,
à margem de um rio: como vemos as plantações da janela do
avião? E como vemos as plantações em terra firme? Aqui a
visão se inverte. Do avião foi possível perceber contornos
organizados geometricamente de muitos conjuntos de árvores
de uma mesma espécie, arrumados em desenhos muito bem
definidos. E a chegada a pé nesta plantação, como seria?
Que visão teríamos da plantação, de sua extensão, de seus
contornos? Veríamos as árvores individualmente, as distâncias
entre elas, características de seus ramos, caule e folhas, o que
não me era possível do avião. Veríamos o rio?
Utilizo-me dessas imagens alegoricamente para refletir
sobre o aprendizado da linguagem escrita. Que experiências
as crianças que chegam à educação infantil e ao ensino
fundamental têm com a existência social e formal dessa
modalidade de linguagem? Se a nuvem é a matéria que a
constitui e também o desenho que se avoluma no céu e se a
plantação de árvores é o conjunto de árvores, geometricamente
organizado, e também as árvores com suas características
mais visíveis, a linguagem escrita se constitui nas letras,
na sua linearização no espaço e também no modo como
seu “aglomerado” se organiza, produzindo sentido. Como
as crianças a significam? Que experiências vivem com essa
linguagem tão entranhada no universo social?
Cabe chamar atenção, entretanto, de que essa é uma
reflexão de quem conhece bem a linguagem escrita e pode
estabelecer relação desta com nuvens e plantações. Esse
não é um dado circunstancial principalmente se tratamos
de crianças e de seus processos de aprendizagem... Como
as crianças percebem a linguagem escrita, observando-a no
espaço social, em variados suportes, de variadas maneiras?
Caracteres e desenhos soltos? Aglomerados de caracteres/
desenhos? Destaca-se a linearização dos caracteres? Como
pensam a organização dos caracteres? Que sentidos produzem?
Cada criança, a seu modo e com suas possibilidades, deve se
esforçar para compreender essa linguagem, que desde muito
cedo passa a fazer parte da vida de quem nasce numa sociedade
62
Processos de letramento na infância: aspectos da complexidade...
letrada. Crianças pensam sobre os objetos do mundo, vivem
experiências, buscam relações entre elas, têm curiosidades...
A reflexão das crianças para a compreensão do
funcionamento social da escrita e de sua organização formal
pode ter muitas janelas de entrada, conforme algumas
pesquisas vêm mostrando. O estudo sobre alfabetização
envolve a discussão sobre modos de alfabetizar e, também,
sobre a necessidade de organização de fundamentos teóricos
e metodológicos que nos levem a arquitetar um arcabouço
conceitual sobre a aquisição da linguagem escrita pelas
crianças. Esse arcabouço pode se constituir em marco teórico
para o debate teórico e para a discussão de métodos para o
trabalho pedagógico, o que envolve definição de princípios,
diretrizes, eixos, estratégias e de material didático, entre
outros.
Não temos dúvida de que a exclusão histórica de grande
parcela da população brasileira está vinculada estreitamente
à organização político-econômica da sociedade brasileira, à
má distribuição de bens de todo tipo, como muitos estudos
encaminham. Essa constatação, entretanto, não justifica que
se pare de investigar tanto o objeto escrita em si, quanto a
história do ensino da escrita e também os processos de ensinoaprendizagem. Pelo contrário, precisamos cada vez mais
trabalhar pela elaboração de uma teoria geral da aprendizagem
da leitura e da escrita, seus princípios, parâmetros e
especificidades. Essa tem sido uma grande motivação para os
estudos que realizamos.
Nosso objetivo no artigo é refletir sobre modos de
alfabetizar na perspectiva do letramento social na escola,
ressaltando a importância que a noção de letramento pode ter
para dar novos sentidos aos processos de aprendizagem da
leitura e da escrita na educação infantil e nas séries iniciais
do ensino fundamental. Venho pesquisando interessada em
aprofundar a compreensão dos caminhos que as crianças
percorrem para aprender a escrever na perspectiva da
produção de textos. Ao fato de considerarmos a produção de
textos (não de palavras e frases), já subjaz um pressuposto
relevante: concebemos o processo de alfabetização no interior
do processo de ampliação do conhecimento de mundo, com
relevância para o sentido que a linguagem tem nessa ampliação,
já que é constitutiva dos sujeitos sócio-históricos.
63
Cecília Goulart
Aprender a linguagem escrita, além de um direito,
constitui-se como um processo político de aprender a dizer
o mundo na perspectiva discursiva da esfera social do
conhecimento da cultura letrada, o que inclui novas formas
de organização da linguagem verbal e de visão da sociedade.
Os textos materializam diferentes discursividades. Então
consideramos que a unidade lingüística básica do processo
de alfabetização devam ser os textos orais que produzem o
discurso entre alunos e professores na sala de aula e os textos
escritos que vão sendo chamados a responder perguntas,
desejos e necessidades que vão surgindo, criando novos
discursos, novos textos, novas formas de agir no mundo.
Ressaltamos, entretanto, que o fato de ter os textos como
ponto de partida não exclui que se trabalhe com as demais
unidades lingüísticas, palavras, sílabas, fonemas e letras, na
perspectiva das especificidades da aprendizagem da escrita.
Ressaltamos também que o trabalho com essas unidades pede
aproximações diversas e que as unidades se sobrepõem tanto na
perspectiva de elaboração dos textos por qualquer pessoa quanto
na perspectiva dos sentidos do texto em si. Desse modo a análise
da língua escrita fica subordinada a seus sentidos e a seus usos e
funções sociais, o que para nós tem implicações importantes para
a qualidade da leitura e da escrita resultante. Assim, deixamos
claro, ainda que de modo breve, os pressupostos que estão
subjacentes ao nosso modo de conceber o processo de ensinar a
ler e a escrever.
Apresentando e discutindo resultados
de pesquisa
Desde 1992, realizando estudos com crianças de seis e
sete anos de escolas públicas, venho observando modos como
as crianças se apropriam da língua escrita. Os resultados vêm
contribuindo para a reflexão sobre novas possibilidades de
trabalho pedagógico com esta modalidade de linguagem. No
estudo de 1992 (Pacheco, 1992, atual Goulart), analisando
a produção escrita de crianças de sete anos orientadas por
trabalhos pedagógicos distintos (o que equivale a conceber
sujeito, apropriação do conhecimento, linguagem e texto dentro
de uma determinada perspectiva), observo que as crianças
elaboram questões relativas à produção do texto escrito de
modos também distintos. Essas elaborações estão atravessadas
64
Processos de letramento na infância: aspectos da complexidade...
pelas características do objeto em si, pelas características
subjetivas de cada um, condicionadas pelo contexto cultural
em que vivem e, também, pelas características do trabalho
realizado nas salas de aula.
A análise realizada nesse estudo levou-me a perceber que
as crianças estão procurando meios de organizar seus textos. A
produção de textos envolve idas e vindas em que as crianças
parecem estar continuamente reelaborando seus conceitos,
dando algumas vezes a impressão de que estão retrocedendo em
relação a conceitos já apresentados anteriormente. As crianças
parecem ir refletindo sobre a produção de seus textos enquanto
os escrevem.
Em Pacheco (1996), destaco procedimentos realizados
pelas crianças durante a atividade de produzir textos
escritos, caracterizando, assim, a reflexão epilingüística1
das mesmas. Essa atividade é realizada pelas crianças na
busca da compreensão do modo como a linguagem escrita
funciona. Esses procedimentos têm sido vistos na escola, de
um modo geral, sumariamente como erros, mas podem ser
compreendidos como soluções transitórias que as crianças
elaboram no esforço de resolver os problemas que a complexa
atividade de produção de textos escritos apresenta. Aos
poucos, as crianças vão estabilizando padrões convencionais
da modalidade escrita da linguagem (cf. Pacheco, 1994;
Pacheco, 1995).
Considerando que, em geral, o trabalho estrito com
métodos tradicionais de alfabetização (e os próprios métodos)
caracteriza-se por um controle grande da produção escrita
da criança, na medida em que as unidades lingüísticas são
apresentadas de forma gradual, os métodos acabam por tentar
conduzir a aprendizagem das crianças, obscurecendo de
certo modo seus processos, seus modos de pensar. Um outro
ponto que tem sido criticado em relação ao trabalho com os
1
Procedimentos epilingüísticos têm sido observados na construção de
objetos lingüísticos. Caracterizam-se como hesitações, reelaborações,
autocorreções etc., ou seja são operações espontâneas com a linguagem feitas pela criança numa atividade comunicativa, e resultam de sua
progressiva tomada de consciência do objeto lingüístico (Silva, 1991).
“Chamamos de atividade epilingüística a essa prática que opera sobre a própria linguagem, compara as expressões, transforma-as, experimenta novos
modos de construção, canônicos ou não, brinca com a linguagem, investe as
formas lingüísticas de novas significações”
(Franchi, 1987, p. 36).
65
Cecília Goulart
métodos é que subjacente à sua aplicação está a crença de que
a aprendizagem, primeiro, deve-se dar em nível de domínio
da base alfabética da língua escrita (a língua escrita vista como
código, geralmente) para, depois, então desejar que as crianças
escrevam textos significativos, isto é, utilizem a escrita como
linguagem. Isso quer dizer que primeiro se aprende a escrita,
depois a linguagem escrita (cf. Rockwell, 1987; Ferreiro, 1994;
Abaurre, 1985; Tolchinsky, 1991). Um reforço grande na relação
da escrita com a fala também é observado nesses métodos.
Essa dissociação (escrita/linguagem escrita) e esse reforço
(escrita como transcrição do oral) têm sido diagnosticados
como geradores de grandes dificuldades para que crianças, e
depois jovens e adultos, tornem-se proficientes na redação de
textos de vários tipos (cf. Pécora, 1983; Bastos, 1985; Lemos,
1995).
Em Pacheco, Borba et al. (1996), investigamos numa
escola pública de Niterói a concepção de língua escrita que
crianças de quatro e cinco anos têm antes de saberem ler e
escrever convencionalmente, e observamos um crescente
conhecimento pelas crianças da diferenciação entre o discurso
oral e o escrito.
Tenho então observado a complexidade cognitiva
envolvida no processo de alfabetização infantil, especialmente
na perspectiva do processo de produção de textos escritos, mas,
ao mesmo tempo, observo as complexas condições cognitivas
que as crianças apresentam no esforço para aprender,
principalmente quando nesse processo se consideram seus
conhecimentos, seus modos de compreender o mundo, não
só a escrita, e, cabe ressaltar, quando o trabalho para ensinar
a linguagem escrita se dá no interior de um grande trabalho
com a oralidade.
No trabalho de pesquisa de 1997 (Pacheco, 1997; 2000a;
2000b), acompanhei durante dois anos crianças de seis e sete
anos na classe de alfabetização e na primeira série, numa
turma liderada por uma experiente professora alfabetizadora,
considerada pelas colegas como “nota dez”. Esta professora
trabalhava a partir do universo discursivo das crianças e
tinha o texto oral e escrito como ponto de partida da prática
pedagógica. Dada a plasticidade da linguagem, foi possível
dar visibilidade, nos textos produzidos pelas crianças, a
movimentos discursivos no sentido de compreenderem o
66
Processos de letramento na infância: aspectos da complexidade...
funcionamento da linguagem escrita. Esses movimentos
foram vistos como indícios de manipulação e reelaboração
do material lingüístico pelas crianças. Tais indícios, segundo
Abaurre (1992), são marcas inequívocas de um sujeito da/na
linguagem.
Por meio da análise dos textos, compreendemos que
o conhecimento da língua escrita vai se construindo pelo
agenciamento de estratégias diversas pelas crianças. Essas
estratégias parecem se organizar como uma arquitetura móvel,
instável e aberta que vai sendo construída e modificada, em
razão da gradativa definição de pertinência ao sistema em
questão e de novas necessidades. Aquela arquitetura então
se faz e desfaz no processo de aprendizagem pela forma
como as crianças administram as soluções a serem dadas
aos problemas, sempre renovados, que surgem no contínuo
processo de aprender a escrever textos. Os critérios de
segmentação das palavras no texto, por exemplo, vão aos
poucos se explicitando, evidenciando análises morfológicas
que as crianças vão sendo capazes de realizar, aliadas ao
desenvolvimento de um controle mínimo de características
do próprio sistema de escrita e da linguagem escrita.
A atividade epilingüística das crianças na produção dos
textos explicitou-se durante todo o período investigado. Essa
atividade foi observada em nível ortográfico, morfológico,
sintático-semântico, discursivo e também da própria
organização espacial do texto no papel, evidenciada por
meio de repetições, rasuras, inserções e também por recursos
de configuração gráfica. Os indícios dessa atividade nos
textos revelam as crianças pulsando na criação de seus
textos, revelando, em síntese, a existência de sujeitos na/da
linguagem.
A atividade epilingüística mostrou-se intrinsecamente
atrelada ao processamento textual. Relaciona-se intimamente
ao monitoramento recorrente que se dá durante o processo de
escrita. A complexidade temático-discursiva dos textos, por
sua vez, parece forçar as crianças a gerar recursos expressivos
que foram observados por meio de uma riqueza de operações
discursivas.
Além da quantidade, a qualidade dos aspectos lingüísticos
envolvidos na atividade investigada também se acentuou
nos textos analisados, por meio de oscilações, acréscimos,
67
Cecília Goulart
retificações, inserções, salvaguardas, esclarecimentos, ajustes
e lapsos. Essa atividade incidiu predominantemente sobre:
questões de natureza semântica, como a ordem das palavras
na frase, a organização das referências no texto, a compreensão
do significado de expressões e palavras e o aspecto verbal; e
questões morfossintáticas, como a formação de combinações
de preposições com artigos e outros elementos, a construção
de verbos pronominais, a flexão de número, a coordenação de
sintagmas nominais e oracionais.
Os resultados apresentados acima me levaram a concluir
que o aprendizado de produzir textos está intimamente
relacionado à construção do sentido dos textos. A atividade
epilingüística das crianças, revelando-se em ocorrências
de origens lingüísticas diversas, caracteriza o processo de
produção de textos principalmente de dois modos: como um
processo de contínua e recorrente análise e como um processo
marcado pela presença do sujeito da/na linguagem em direção
a um Outro.
O conhecimento lingüístico das crianças, no início do
período investigado, era diverso; seus sistemas de referências
em construção, com certeza diversos, dadas as suas origens
socioculturais e familiares também diversas. O trabalho
pedagógico de uma mesma professora determinou propostas
de produção de textos iguais para todos. A garimpagem que
realizei nos textos dessas crianças indicou que, mantendo
diferenças e por caminhos diferentes, as crianças vão
convergindo na construção de textos escritos, atraídas pelo
caráter público das convenções. Foi possível observar que os
processos das crianças fundam-se na escrita social e convergem
para a escrita social por caminhos singulares.
As crianças de idades variadas formulam hipóteses em
todos os níveis da língua – fonológico/gráfico, morfossintático
e semântico/discursivo – de forma complexa, deixando
visível parte da análise lingüística que vão aprofundando.
Evidenciam, assim, uma reflexão sobre as necessidades e
possibilidades que o sistema de escrita apresenta ao terem de
solucionar as questões que a elaboração do texto demanda.
Aprender a produzir textos, desse modo, envolve um intricado
conjunto de conhecimentos que não se resumem a uma soma
de conhecimentos lingüísticos; muito mais do que isso, essa
atividade relaciona-se a um enredamento de conhecimentos
68
Processos de letramento na infância: aspectos da complexidade...
em que muitos fatores estão em jogo – lingüísticos, situacionais,
sociais, entre outros.
A pesquisa concluída em dezembro de 2005, com
financiamento do CNPq, gerou o relatório “Processos de letrar e
ser letrado na infância: modos de letrar e ser letrado na família
e no espaço educativo formal” (Goulart et al., 2005). Seus
objetivos principais foram identificar e caracterizar aspectos
das orientações de letramento dos sujeitos selecionados e
buscar relacionar características de orientações de letramento
com os desempenhos das crianças em atividades sociais de
fala, leitura e escrita. Trabalhamos com dez crianças de quatro
e cinco anos da Creche UFF, filhas de funcionários e alunos
da UFF, com renda mensal entre R$ 400,00 e R$ 3.000,00 (em
2003). Realizamos observações e entrevistas tanto no espaço
da própria creche quanto nas casas das crianças. Procuramos
observar o atravessamento da linguagem escrita na vida das
crianças nesses dois espaços, entendendo tanto a intensidade
e o modo a escrita já estava presente nessas vidas, e o que
as crianças eram capazes de fazer com ela, quanto o que a
própria linguagem escrita já interferia na vida das crianças e
fazia com elas.
A análise dos dados, que evidencia as reflexões das
crianças e seus conhecimentos, foi realizada de várias
maneiras, nos registros de rodinhas, em entrevistas e em
outras atividades na creche, e no registro das observações
e entrevistas nas casas das famílias das crianças. Os dados
foram discutidos e analisados com base, principalmente, em
estudos sobre letramento e alfabetização (Soares, 1998, 2003;
Goulart, 2003, 2005a), estudos da teoria da enunciação de
Bakhtin (1988; 1992; 1998) e estudos sobre a relação entre
oralidade e escrita.
O estudo tem relevância para a discussão sobre a
relação entre os processos de letramento e de alfabetização e
para a definição de propostas metodológicas de trabalho com
a linguagem em espaços educativos de educação infantil e nas
séries iniciais do ensino fundamental. Como são muitas as
conclusões do estudo, vamos apresentar aqui apenas as que
se mostram mais pertinentes ao foco do presente artigo.
A pesquisa revela os contextos de letramento em que
todas as crianças vivem principalmente decorrentes do nível
de escolaridade dos pais, responsáveis e parentes próximos.
69
Cecília Goulart
A língua escrita está presente nas casas de variados modos e
em atividades diversas; o interesse por atividades de leitura
e de escrita manifesta-se de muitas formas entre as crianças.
Observa-se também que as crianças ocupam posições
diferentes nas famílias, sobressaindo-se em algumas famílias
um papel de bastante destaque para suas posições. Um outro
ponto a ressaltar é o investimento consciente de algumas
famílias na escolarização das crianças e especialmente em
aspectos ligados ao letramento.
Desde que iniciamos a análise dos dados, fomos
observando a impossibilidade de separar modos de letrar e de
ser letrado. Com essa perspectiva dialética, então, procuramos
abordar os dados da pesquisa.
As crianças investigadas estão cercadas pela escrita de
vários modos: são filhas de pais alfabetizados, com ensino
superior, ou cursando a graduação, e outros, ainda, na pósgraduação ou pós-graduados; têm acesso a materiais escritos
diversos, além de objetos, e participam rotineiramente de
atividades com a escrita e/ou atravessadas pela mesma.
Algumas crianças participam, também de modos diversos, de
outras instituições sociais, além da família e da escola, ligadas
de alguma forma aos pais ou responsáveis próximos, como
espaço religioso, local de trabalho e de estudo, partido político.
Algumas práticas discursivas orais familiares mostram-se como
espaços de participação e reflexão das crianças sobre suportes
de textos escritos, sobre a linguagem escrita e também sobre
suas funções e usos sociais. Essa observação não é de todo
coincidente com o maior poder aquisitivo das famílias, vale
ressaltar. A intencionalidade de ações educativas das famílias,
direcionadas ao letramento ou a um bom desempenho na
escola, merece destaque.
Todas essas relações e espaços estão ligados a modos e
perspectivas diferentes de interpretar a realidade e a presença
forte da escrita na realidade social. Estão ligados, assim, a
orientações valorativas diversas também. Pode-se observar
que tais modos e perspectivas ora abrem mais chances de
efetiva interlocução das crianças, ora abrem menos, ou
seja, em determinadas situações familiares as crianças têm
mais oportunidade, são mais convidadas a se expressar, a
participar.
70
Processos de letramento na infância: aspectos da complexidade...
A língua escrita está presente nas casas de variados
modos e em atividades diversas; o interesse por atividades
de leitura e de escrita e os conhecimentos sobre a escrita se
manifestam de muitas formas entre as crianças. A maioria das
crianças evidencia conhecimento significativo sobre aspectos
das atividades de leitura e escrita, inclusive ao afirmarem não
saber ler e escrever. A conseqüência do nível de consciência
que as crianças vão desenvolvendo sobre a língua mostra-se
também na oralidade, expressando, inclusive, a interiorização
de controles sociais. Algumas crianças também se mostram
capazes de realizar de modo contextualizado análises de
unidades lingüísticas, como sílabas, letras e fonemas, entre
outras. A maioria das crianças apresenta linguagem oral clara
e articulada, o que possibilita a elaboração de explicações,
entre outras formas complexas de organização do discurso.
Boa parte da produção relativa ao letramento dessas
crianças apresenta-se neste momento por meio da oralidade.
As linguagens sociais em que são envolvidas, os objetos que
as cercam, os gêneros do discurso com que entram em contato,
tudo fala a favor do conhecimento e pertencimento a uma
cultura letrada. Vão aprendendo o funcionamento da escrita,
discriminando e manipulando a relação entre sons e letras,
entre outras discriminações. As crianças de quatro e cinco
anos vão também, de modo complexo, fazendo leituras sociais
do que vêem, ouvem e experimentam. As conclusões do
estudo evidenciam o quanto a vida dessas crianças de quatro
e cinco anos investigadas já está atravessada pela linguagem
escrita de muitas e heterogêneas formas.
No registro de observações na creche há um momento em
que a professora diz às crianças que uma das coordenadoras da
creche trouxe uma história especial para ler. A coordenadora
lê a história. Numa certa altura da história um dos meninos do
grupo investigado pergunta: “Tá rimando, num tá, Priscila?”.
E a coordenadora confirma a rima.
As crianças já demonstram em certo sentido um
afastamento de algumas situações, textos e palavras que as
capacita a produzir metaolhares, e, em alguns momentos,
metalinguagem, como quando uma menina corrige a fala de
uma das pesquisadoras, dizendo que o nome da professora
é Andréa, não Andréia, com i. Uma observação como essa
evidencia a qualidade da análise que a criança pequena
é capaz de realizar, discriminando uma particularidade
71
Cecília Goulart
da relação entre a camada sonora e a camada gráfica da
linguagem verbal: nem todos os fonemas expressados na fala
são representados na escrita. Em outra ocasião, as crianças
e a professora se encontram no pátio da creche e, ao chegar
Valéria, uma funcionária da creche, Gabriel B diz a um colega:
“Não chame ela de Varélia... ela chama Valéria.”
A professora ocupa-se de ações que promovam o
conhecimento da linguagem escrita, das letras e de seus usos
pelas crianças, com a garantia de um espaço para que elas façam
tentativas de escrever. As intervenções se dão em contextos
de atividades significativas mais amplas do que treinar as
crianças para escrever. Nesse sentido, o movimento entre as
crianças ganha sentido também. Como destaca Smolka (1991,
p. 64), na prática pedagógica/discursiva analisada percebemos
as relações da professora com objetos de conhecimento e com
as crianças, e também a sua relação com o conhecimento, com
a linguagem e com o próprio ato de ensinar, o que, afinal, é
constitutivo do ato de aprender das crianças.
As crianças de quatro e cinco anos vão, de modo complexo,
fazendo leituras do que vêem, ouvem e experimentam, como
a reclamação que um menino faz de outro que havia escrito
veado na sua cama, palavra de baixo calão, depreciativa da
condição masculina na nossa cultura. Mostram com atitudes
como essa a análise crítica que vão construindo do discurso
falado e escrito.
Um outro menino, ao ver um exemplar de jornal em
meio ao material trabalhado numa atividade desenvolvida por
nós, diz que não sabe ler e que o pai Lê sem falar... lê sem
falar assim, ó..., imitando o pai. Em seguida, diz que a mãe
também lê sem falar. O menino demonstra que vai tomando
conhecimento de modos legitimados de ler socialmente.
A conseqüência do nível de consciência que as crianças
vão desenvolvendo sobre a língua mostra-se na escrita muitas
vezes de forma bastante explícita. Para ilustrar, destaca-se uma
ocorrência, ao final da atividade mencionada anteriormente. A
pesquisadora escreve os nomes “Analice” e “Gabriel”; Analice
acrescenta a letra “A” na palavra “Gabriel” e lê com satisfação
“Gabriela”, o nome de uma coleguinha da creche, também
participante da pesquisa.
Na oralidade, do mesmo modo, observamos dados que
evidenciam a análise do discurso acurada que as crianças
72
Processos de letramento na infância: aspectos da complexidade...
já são capazes de realizar. Thais apresenta um olhar crítico
a um modo não padrão de falar, parecendo expressar a
interiorização de controles sociais, quando nos diz, em sua
casa, que um funcionário do edifício em que mora fala algo
como satirfeito, em vez de satisfeito. É interessante destacar
que a mãe da menina corrige-a por duas vezes, quando ela fala
a palavra satirfeito, parecendo preocupada com a repetição
da forma errada da palavra. A atitude sugere que a mãe não
percebeu a leitura contextualizada de característica marcante
de uma linguagem social estigmatizada que a menina já era
capaz de fazer.
Ligada ainda ao desenvolvimento da oralidade das
crianças, merece destaque a explicação que algumas crianças
elaboram sobre o que sabem, como a mesma Thais, que, em
casa, explica o que está aprendendo na creche sobre processos
de metamorfose de insetos. Pedro também, ao falar sobre o
uso do computador, explica como se acessam alguns jogos e
enuncia alguns endereços eletrônicos.
Um outro dado que, de certo modo, evidencia análise do
material escrito por uma criança é observado numa rodinha.
A professora lê uma história produzida coletivamente pelas
crianças, e escrita pela professora, no dia anterior. Num dado
momento, um dos meninos reconhece uma parte lida como a
parte que ele havia sugerido para entrar na história. Parte do
diálogo pode ser vista abaixo:
Andréa: – De repente ele encontrou uma caixa. E ele abriu ela.
Lucas: – Eu que botei essa parte, né? Fala no meio da leitura da
professora.
O reconhecimento pela criança da parte da história que
havia sugerido no dia anterior implica sua atenção, percepção
e também satisfação, ao fatiar o todo da história e depreender
a sua contribuição. A leitura dessa história foi realizada
repetidas vezes pela professora nesse mesmo dia, a pedido das
crianças. A satisfação individual de Lucas, em destaque, parece
estar ligada a um prazer coletivo das crianças de “lamberem
a própria cria”, ouvindo seguidas vezes uma história escrita
elaborada por elas mesmas.
O desempenho infantil mostrou-se dinâmico e variável
de criança para criança, em momentos e situações diversas. O
mundo da criança é muito heterogêneo; ela está em contato
com várias realidades diferentes, das quais vai apreendendo
73
Cecília Goulart
valores e estratégias que contribuem para a formação da sua
identidade pessoal e social.
O trabalho realizado na creche parece contribuir
para atenuar os efeitos das diferenças sociais observadas
nas famílias. Nossos resultados sinalizam também para a
importância que tem o intercâmbio da creche com as famílias
e o valor que estas dão ao trabalho realizado na instituição.
Os resultados do estudo evidenciam o quanto a vida
das crianças de quatro e cinco anos investigadas já está
atravessada pela linguagem escrita de muitas e heterogêneas
formas: o conhecimento da própria escrita, a avaliação de suas
capacidades de leitura e produção de escrita, o significado
social dos objetos e de atitudes relacionadas ao uso dessa
modalidade de linguagem. Observamos o modo como os
conhecimentos, objetos, atividades, atitudes estão permeadas
por valores sociais. Esses valores aparecem nas relações
que as crianças estabelecem com as outras, com a família,
com a professora e com todos os outros sociais, afirmando,
explicando, negando, assumindo-se como sujeitos do discurso.
Nesse movimento de enunciar e de serem enunciadas vão
hibridizando a linguagem e a vida, tornando-se competentes
para participar dos discursos da cultura letrada.
Refletindo sobre tensões atuais no campo
da alfabetização e do letramento
Uma questão que tem me preocupado permanentemente
em relação à alfabetização é a dislexia sígnica que se tem
produzido numa parcela imensa da população brasileira
(Pacheco, 1998). Agravada pela apresentação da linguagem
escrita como um simulacro, revela-se um trabalho alfabetizador
isolado das tensões discursivas e da historicidade, existentes
em qualquer processo e em qualquer texto. Os alunos são
considerados alfabetizados pela escola, no entanto não
modificam, ou modificam muito pouco, a sua condição
de pertencimento à sociedade letrada (Soares, 1998). Essa
incapacidade de ler e escrever textos válidos socialmente gera
nos alunos sentimentos de incompetência e de impotência que
reforçam a sua “desqualificação” social (Moysés, 1985). Em
suma, temos estado preocupados com a dislexia na leitura e
escrita de palavras e frases, mas temos nos preocupado pouco
74
Processos de letramento na infância: aspectos da complexidade...
com a dislexia social, que continua apartando do mundo da
escrita um contingente enorme de pessoas.
Não temos dúvida sobre a relevância dos estudos
lingüísticos, principalmente descrevendo a língua, para
a compreensão da sua estrutura, de seus princípios e da
relação entre oralidade e escrita. Sabemos, entretanto, que a
análise da língua realizada pela criança para aprendê-la não
é a de um pequeno lingüista, como se chegou a pensar no
desenvolvimento de estudos da aquisição da linguagem oral
(ver Peters, 1983). Muitos dos estudos estruturais de descrição
lingüística são criticados, inclusive, por terem esquecido o
processador da língua, ou seja, o sujeito falante, e a inserção
social deste.
No caso da aprendizagem da escrita, historicamente
algo semelhante acontece. Focalizam-se aspectos do objeto
que não necessariamente serão os aspectos a merecerem a
atenção das crianças “quando elas olham a plantação do alto
ou conhecem a plantação em terra firme”. A complexidade do
objeto e da aprendizagem é muitas vezes desconsiderada. A
consciência fonológica, por exemplo, tem sido considerada por
alguns autores como habilidade necessária à criança para se
promover o processo de alfabetização, o que tem influenciado
ações pedagógicas, documentos e propostas (ver Brasil, 2003).
Tal consciência tem sido examinada e medida em crianças,
principalmente, antes e durante o percurso do processo de
alfabetização. Entendemos, de acordo com pesquisas realizadas
por outros autores (Chomsky, 1971a, 1971b, 1979; Clarke,
1989; Pacheco, 1997), que são muitas as janelas lingüísticodiscursivas que se abrem para as crianças no processo e no
esforço de aprender a ler e a escrever. Algumas crianças são
mais sensíveis a palavras e textos, como um todo, e outras,
mais sensíveis a fonemas ou sílabas e, mesmo, a letras. O
conhecimento sobre a língua e sua organização não pode ser
transposto diretamente para a atividade didática.
Entendemos, e temos observado esse aspecto no
acompanhamento dos processos de alfabetização de crianças,
que a consciência fonológica possa se desenvolver na
experiência de boas e significativas situações pedagógicas no
percurso da aprendizagem da linguagem escrita, isto é, como
um produto desse processo, e não precisa ser tomada como
condição para a aprendizagem em questão, o que também
75
Cecília Goulart
tem sido mostrado por alguns autores (Read, 1971, 1975;
Sulzby, 1987, 1992, entre outros). As crianças têm condição
de apreender e aprender as múltiplas dimensões do objeto
linguagem escrita, analisando-as, como temos observado
e apresentamos na seção anterior deste artigo. A idéia de
que se aprende do mais simples para o mais complexo, do
menor para o maior, do mais fácil para o mais difícil, que está
sendo questionada desde meados da década de 20 do século
passado, parece continuar influenciando o ideário pedagógico
(Colinvaux, 2005).
Muitos aspectos do ensino da escrita podem ser
focalizados, considerando as reflexões e preocupações acima,
na perspectiva do objeto de estudo em questão. Destacando
apenas três, diria que o primeiro se refere à língua escrita
trabalhada como uma transcrição do oral. Segundo a lingüista
Ruth Monserrat (1986), “a maioria dos alfabetos “fonêmicos”
atuais – tanto os das línguas com longa tradição escrita, como
os das com escrita recente – são uma mescla de símbolos
fonêmicos, morfofonêmicos e até logográficos. Em outras
palavras, a essência atual da escrita no mundo tem caráter em
grande medida convencional, embora ela tenha tido origem na
representação parcial da fala.”
Se não podemos negar aspectos fonológico-ortográficos
fundamentais na produção da escrita, não podemos
desconhecer também a importante multiplicidade de
outros aspectos, morfofonêmicos, logográficos e, inclusive,
ideográficos, que estão presentes naquela produção, não como
adereços ou elementos periféricos, mas carreando-lhe sentido,
integrando o nosso sistema de escrita alfabético-ortográfico.
Refletindo sobre as possibilidades da escrita no século XXI,
Cagliari (2006) afirma:
A escrita alfabética está muito ligada à cultura Ocidental e, de
certa forma, tem acompanhado o desenvolvimento cultural do
Ocidente. Curiosamente, quanto mais se produziu em termos de
uso da escrita alfabética, mais apareceram formas ideográficas
no Ocidente. Basta abrir um jornal para se constatar isso. Há
uma quantidade enorme de pictogramas, abreviaturas, siglas,
números, fórmulas, gráficos, mapas, símbolos, grifes, logotipos,
etc. Os jornais de oitenta anos atrás não só se utilizavam pouco
desse tipo de material, mas usavam até poucas fotografias e
desenhos. Nos últimos anos, a escrita ideográfica invadiu o
mundo moderno, não só na comunicação externa de avisos e
de informações, como até mesmo nos jornais [...]. Mas, uma
coisa é certa: este uso atual revela uma tendência futura que,
76
Processos de letramento na infância: aspectos da complexidade...
certamente, irá atingir uma dimensão que nós não somos
capazes de imaginar hoje.
É num cenário em movimento de muitos sentidos e de
muitos modos de expressão desses sentidos, portanto, que a
escrita vive e faz parte de nossas vidas.
Um segundo aspecto se relaciona, por um lado, a
estruturas sintáticas da língua escrita, ao léxico e aos conjuntos
de sinais que contribuem para o sentido do texto, como sinais
de pontuação e de acentuação, marcadores de paragrafação, de
divisão das palavras em final de linha e também a disposição
gráfica do texto, ainda que consideremos a relação oralidadeescrita como um continuum. Por outro lado, relaciona-se à
discursividade dos diferentes gêneros do discurso escrito,
implicando conhecimentos que são diferentes e/ou extrapolam
os conhecimentos utilizados para falar.
O terceiro aspecto está vinculado aos modos de
apropriação do objeto pelos sujeitos, envolvendo diferenças
entre os processos, decorrentes das variações nos universos
de conhecimentos, de experiências, de histórias de vida, de
interesses, entre outras.
Quando se concentra o foco do trabalho de leitura e de
escrita na chamada “relação fonema-grafema”, muitas outras
informações relevantes ao objeto em estudo, que é um objeto
cultural, são deixadas de lado. Além disso, no sentido estrito
dessa visão de trabalho, os sujeitos da aprendizagem, em
geral, não são considerados em suas relações concretas com o
mundo em que vivem, que geram conhecimentos, afetividades,
modos de ser e pensar, impregnando suas identidades.
A noção de letramento mostra-se bastante pertinente,
no contexto educacional brasileiro para a compreensão da
dimensão política das práticas de alfabetização, tanto na
perspectiva de quem ensina como de quem aprende. As práticas
sociais de letramento (Soares, 1998, 2001, 2003; Goulart, 2003,
2004, 2005a, 2005b, 2005c) podem se tornar o espaço para
a aprendizagem da escrita em contextos concretos, como os
escolares, condicionando a sua natureza e o tipo de relação
que mantém com a cultura escrita (Viñao Frago, 2000).
No sentido do que colocamos em discussão neste artigo,
a noção de letramento pode se constituir em horizonte éticopolítico para o trabalho pedagógico que se desenvolve na
educação infantil e no ensino fundamental. As nuvens vistas de
77
Cecília Goulart
um avião e as nuvens vistas de terra firme são compreendidas
como nuvens; as plantações de árvores observadas do alto
e um passeio pela plantação revelam aspectos diferentes da
plantação, mas ambas são visões/conhecimentos da plantação.
Aquele que sabe sobre as nuvens reconhece-as de um lugar e de
outro e aquele que conhece uma plantação de árvores também
a reconhece de um lugar e de outro. A escrita e a linguagem
escrita são dimensões da constituição da cultura letrada.
Precisamos conhecer e reconhecer os dois conhecimentos
como necessários para a inserção no mundo da escrita, para
sermos conhecidos e reconhecidos social e politicamente.
Assim, esses conhecimentos devem ser trabalhados na infância,
desde a educação infantil – uma dimensão da cultura letrada
não vive sem a outra.
E as crianças? De acordo com estudos, e também
práticas pedagógicas que temos acompanhado e de outras
que temos lido ou de que temos ouvido relatos, as crianças
possuem condições complexas de aprendizagem desde que
a escola seja voltada para a vida, para o sentido social do
conhecimento, para alargar significativamente suas condições
de pertencimento ao mundo. A sala de aula é um espaço de
trabalho, em que se encontram diferentes linguagens sociais.
Espaço de encontro, de desencontro, de disputa, de tensão, mas
também de acordo, de acumulação, de distinção, de relação e,
sobretudo, de compreensão do jogo de forças que se trava na
sociedade, sendo a linguagem, como o sangue em nosso corpo,
aquela que penetra em todos os momentos e meandros da vida
social, tonalizando-os (Bakhtin, 1992).
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Práticas leitoras multimidiais:
no contexto do Centro
de Referência de Literatura
e Multimeios – Mundo da Leitura
Eliana Teixeira*
O Centro de Referência de Literatura e Multimeios
– Mundo da Leitura da Universidade de Passo Fundo surgiu
a partir da percepção de que, num mesmo ambiente, podese dispor de textos verbais e não verbais apresentados em
diferentes suportes, colocando lado a lado o velho e o novo.
Seus criadores não se deixaram persuadir pelo ufanismo
gerado pelas novas tecnologias nem pela crítica costumeira de
que os jovens leitores são leitores só da linguagem audiovisual
e, portanto, desprovidos de interesse pelo texto escrito.
Um espaço dessa natureza pode ser considerado um
hipertexto, com nós e elos que se tecem pela ação dos leitores
em interação com as linguagens e com os monitores do Mundo
da Leitura, elos imprescindíveis dessa teia.
Entende-se que a formação de leitores críticos exige que
crianças e adolescentes convivam com os diversos suportes,
desde o retroprojetor, o projetor de slides, o mural, o cartaz,
o poster, a fita de áudio, a fotografia, o livro impresso, entre
outros, até os suportes e tecnologias mais recentes, como o
projetor multimídia, a fita de vídeo, o CD-ROM, o CD de áudio,
o DVD e a internet. Do mesmo modo, é essencial que esse
público tenha acesso às diferentes linguagens que circulam
na sociedade, como a pictórica, a musical e a dramática, além
da linguagem verbal. Compreender as especificidades das
linguagens e os discursos que são veiculados por meio delas
*
Mestre em Educação. Monitora do Centro de Referência de Literatura e Multimeios da Universidade de Passo Fundo.
83
Eliana Teixeira
é pré-requisito indispensável para que se possa processar a
crítica da realidade e, conseqüentemente, da sociedade atual.
O Mundo da Leitura foi criado em 1997 por professores
do curso de Letras da Universidade de Passo Fundo, como
fruto do seu empenho, os quais desde os anos 1980 vêm
trabalhando no sentido de implantar uma política de leitura
na área de abrangência da universidade.
A pesquisa e a extensão são os objetivos que norteiam
o trabalho do Mundo da Leitura, que funciona como um
laboratório do curso de Letras, além de atender os alunos das
escolas da região e o público em geral. O Mundo da Leitura
proporciona, durante todo o ano, visitas de turmas de escolas
de Passo Fundo e região, oferecendo aos visitantes atividades
programadas, as “práticas leitoras”.
A leitura – seja nos seus aspectos cognitivos, seja na sua
dimensão social – tem envolvido um significativo número de
profissionais de diferentes áreas, na busca por compreender o
mistério do seu aprendizado e a sua incorporação na sociedade
como um hábito cultural.
O escritor argentino Jorge Luís Borges, num de seus
contos, apresenta a seguinte reflexão: “Não me interessa
o que um homem possa transmitir a outros homens; como
filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita.
As enfadonhas e triviais minúcias não encontram espaço
em meu espírito, capacitado para o grande; jamais guardei a
diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa
não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes o deploro,
porque as noites e os dias são longos.”1
A fala do Minotauro nesse conto de Borges, sobre o ato
de aprender a ler, é reveladora do quanto o aprendizado da
leitura, pela decodificação do código escrito, é uma atividade
“enfadonha e trivial”. A leitura preconizada pela escola, muitas
vezes desprovida de sentidos, acaba por matar nos jovens
espíritos o prazer de ler. Essa alusão ao conto de Borges serve
para se introduzir a questão da leitura, que tem suscitado por
parte dos governos e de pesquisadores de instituições públicas
e privadas ações em prol da constituição de uma “sociedade
leitora”.
1
A casa de Asterion. In: BORGES, Jorge Luís. O Aleph. São Paulo: Globo,
1996.
84
Práticas leitoras multimidiais: no contexto do Centro de Referência...
Sobre o tema da leitura têm surgido muitas pesquisas, as
quais no Brasil se avolumaram nas últimas décadas (1980/90)
do século XX. Essas pesquisas passam pelos aspectos
cognitivos e pedagógicos da leitura, pelas políticas editoriais
e de incentivo à leitura, pelos suportes de leitura, pela própria
história da leitura e da literatura, por meio das suas práticas.
Entende-se por “leitura” toda atividade capaz de fazer
sentido e de despertar o interesse do leitor, permitindo-lhe
fazer relações com o que ele já conhece, não importando a
natureza verbal ou não verbal do texto.
Leitura em outras linguagens
O ser humano, atualmente, relaciona-se com o
conhecimento sobretudo por meio da linguagem oral ou escrita,
mas nem sempre foi assim. Os homens, em outros tempos,
usaram formas como a dança, os rituais – nas culturas antigas o
xamã (indivíduo designado pela comunidade para desempenhar
a função sacerdotal) personifica o conhecimento e a sabedoria –
os desenhos nas cavernas e a música para afastar os maus
espíritos.
Em Ciberespaço: um hipertexto com Pierre Lévy, Lévy
(2000) apresenta quatro relações com o conhecimento, que,
segundo ele, a humanidade desenvolveu ao longo dos anos:
• o saber, antes da escrita, ritual, místico e encarnado por
uma comunidade viva;
• o saber ligado à escrita, o saber trazido pelo livro, fixado
pela figura do comentador ou do intérprete;
• o saber após o advento da imprensa, configurado pela
biblioteca, em cuja organização se destaca a figura do
sábio ou erudito;
• o saber desterritorializado da biblioteca do hipertexto,
encarnado novamente por uma comunidade viva
enquanto espaço cibernético.
O ideal de saber trazido pelos livros está enraizado na
cultura moderna de tal modo que, mesmo quando a linguagem
escrita se materializa fora do suporte estático, por exemplo,
na internet, ou mesmo em CD-ROM, tem-se a tendência a
pensar que se está perdendo a fonte do conhecimento. Antes
da descoberta do alfabeto, no século X a.C., as comunidades
orais eram responsáveis pela transmissão do conhecimento
85
Eliana Teixeira
às gerações que as sucediam e, só depois, a escrita alfabética
tornou-se, por excelência, pelo menos no Ocidente, a forma de
registro e transmissão do conhecimento.
No entanto a música, a dança e a pintura acompanham
o homem desde que este começou a viver em grupos,
relacionando-se culturalmente com a natureza. Quando, no
século XIX e XX, o desenvolvimento tecnológico colocou em
cena a fotografia, o cinema, o rádio, a televisão, o computador,
entre outros, começou-se a pensar não só na linguagem verbal
– oral e escrita, mas também em diferentes linguagens ligadas
a esses novos meios.
Pode-se dizer que muitas linguagens são transformadas
em produtos de consumo em grande escala, como a linguagem
televisiva e a radiofônica. Considerados como meios de
comunicação de massa, esses produtos são freqüentemente
criticados por seu caráter de mercadoria. O “mingau semiótico”
em que a juventude está imersa necessariamente deveria ser
decifrado, sob pena de ela ser devorada por ele.
A linguagem não é herdada biologicamente; é um produto
social, fruto das experiências individuais e coletivas dos
homens em sociedade. Ao longo da história da humanidade,
as mudanças de suporte da escrita ocorreram imbricadas com
o desenvolvimento socioeconômico e cultural.
Nas práticas leitoras apresentadas em diferentes
suportes e linguagens no Mundo da Leitura, a mediação é
fundamental. Na teoria do desenvolvimento e aprendizagem
de Vygosty, o ser humano distingue-se dos animais porque
possui o controle consciente do comportamento, isto é, o
homem é capaz de pensar em objetos ausentes, de imaginar
situações vividas, de planejar ações, enfim, de abstrair.
Vygostsky chama essa capacidade humana de “mecanismos
superiores de pensamento”. Chega-se aos mecanismos
superiores por meio de dois níveis de desenvolvimento – nível
de desenvolvimento real (conhecimento adquirido) e nível
de desenvolvimento potencial (conhecimento a adquirir) –,
intermediados pela zona de desenvolvimento proximal (ação
sobre potencialidades a serem desenvolvidas).
A aprendizagem, para Vygotsky , é sempre mediada,
o homem não se relaciona diretamente com o mundo. Os
signos – por meio das diferentes linguagens (cinematográfica,
coreográfica, verbal, plástica, teatral) – seriam formas de
86
Práticas leitoras multimidiais: no contexto do Centro de Referência...
mediação. Dessa forma, Vygostky percebe que a internalização
dos sistemas de signos produzidos culturalmente pelo homem
no seu ambiente transforma o seu comportamento. Essa
internalização é pontencializada pelo convívio da criança com
adultos ou crianças mais experientes em ambientes ricos em
materiais e situações diversificadas de leitura.
A criança, ao entrar na escola, possui um conhecimento
elementar sobre o mundo que a rodeia: “A aprendizagem da
criança começa muito antes da aprendizagem escolar”. Assim,
o conhecimento prévio dos alunos deverá ser acionado em
sala de aula, pois é com base nesse conhecimento que o
aprendizado na escola fará sentido e contribuirá para o seu
crescimento social e intelectual. Compreende-se, então, o
letramento como o uso efetivo da escrita e da leitura no
contexto social, oportunizando a assimilação dos diferentes
usos da língua por meio das práticas sociais produzidas pelos
grupos na sociedade.
Práticas leitoras multimidiais
As “práticas leitoras” são ações de leitura promovidas
nas visitas agendadas de escolas. Desde 1997, são vivenciadas,
por alunos e professores, experiências envolvendo diferentes
linguagens (verbal, musical, dramática, entre outras),
apresentadas em suportes diversos (impresso, CD-ROM, fitas
de vídeo, internet, DVD, entre outros).
Num primeiro momento, entre 1997/1998, se optou
por trabalhar as práticas a partir de datas comemorativas do
universo escolar, relacionadas à literatura infanto-juvenil. Em
conseqüência, se trabalhava um mesmo tema para todas as
séries escolares, da educação infantil à educação superior.
Foram abordados os seguintes temas: poesia, Monteiro Lobato,
ecologia, arte, o Minotauro, o labirinto e a biblioteca; direitos
da criança e dos adolescentes.
Em 1999, depois de se avaliar o trabalho desenvolvido
e a pertinência de se trabalhar com temas comuns à prática
escolar, surgiu a idéia de um tema gerador a ser desenvolvido
durante todo o ano em diferentes séries, agrupando-as em
duas ou três. Então, pensou-se numa prática para a educação
infantil, outra para a 1a e a 2a séries do ensino fundamental e
assim por diante.
87
Eliana Teixeira
O tema “Censura e exclusão na literatura e em outras
linguagens”, da 8a Jornada Nacional de Literatura, foi o
escolhido para se iniciar essa nova experiência. Com efeito,
as práticas leitoras, a partir desse novo formato com um tema
gerador, proporcionaram uma avaliação mais consistente do
trabalho, pois após um ano de sua aplicação permitiram-se
ajustes no decorrer da caminhada.
No ano de 2000, não se poderia deixar de abordar o
tema dos quinhentos anos do descobrimento. Dessa forma,
as práticas leitoras priorizaram mostrar as raízes do povo
brasileiro, sua história e sua cultura. Dividiu-se o tema em
dois semestres: no primeiro foi desenvolvido o tema “500 anos
de Brasil: memórias que nossa consciência não escolheu”; no
segundo, o tema escolhido foi “500 anos: da carta de Caminha
ao e-mail”, por meio do qual se buscou propor atividades que
resgatassem o conhecimento já sistematizado pelos alunos
e introduzir novos instrumentos para a compreensão das
informações, estabelecendo uma relação menos fragmentária
que a oferecida nas escolas e que se mostrasse coerente com a
realidade atual, marcada pelas inovações tecnológicas.
Em 2001, ano em que se comemoraram vinte anos das
Jornadas Literárias, nada mais pertinente do que se realizar
uma odisséia no espaço, a exemplo de Kubrick. O tema das
práticas foi o mesmo da 9a Jornada Nacional de Literatura
e da 1ª Jornadinha Nacional de Literatura – “Uma jornada
na galáxia de Gutenberg: da prensa ao e-book”. As práticas
leitoras viajaram por universos distantes, mostrando como o
homem desenvolveu diferentes formas de comunicação – dos
desenhos das cavernas ao surgimento do alfabeto, do papiro
ao livro eletrônico.
No ano de 2002, optou-se pelo tema “A representação do
mundo através das artes”. A arte acompanha o homem desde
a Pré-História e é por meio dela que o homem se reconhece
e se sintoniza com o mundo e consigo mesmo. No livro
Histórias em quadrões: pinturas de Mauricio de Sousa, o autor
propõe a releitura de pinturas consagradas pela introdução
dos personagens das histórias em quadrinhos da turma da
Mônica. Esse livro foi a mola propulsora para se pensarem as
práticas leitoras deste ano.
As práticas leitoras do ano de 2003, em sintonia com o
tema da 10ª Jornada Nacional de Literatura e 2a Jornadinha,
88
Práticas leitoras multimidiais: no contexto do Centro de Referência...
“Vozes do terceiro milênio: a arte da inclusão”, abordaram
experiências de inclusão de diferentes segmentos da sociedade,
esses marginalizados não só econômica e socialmente, mas
também afastados cultural e tecnologicamente do mundo da
informação, da comunicação e do conhecimento
Já em 2004, o tema “Cultura popular: ressignificando
a identidade” norteou as práticas leitoras. Com o resgate das
cantigas de roda, das brincadeiras com palavras, das lendas,
dos contos populares, procurou-se valorizar o acervo pessoal
e familiar de crianças, adolescentes e adultos envolvidos nas
atividades de leitura.
No ano de 2005 foram elaboradas práticas leitoras
sobre o tema da 11a Jornada Nacional de Literatura e da 3a
Jornadinha Nacional de Literatura, “Diversidade Cultural: o
diálogo das diferenças”.
Apresenta-se de forma sintética uma prática leitora
aplicada para turmas de alunos de 3a e 4a séries do ensino
fundamental nas visitas agendadas por escolas no ano de
2005.
Tema: “Diversidade cultural: o diálogo das diferenças”
Prática Leitora: O velho e o novo: álbuns de figurinhas X cards
Leitores: Alunos de 3ª e 4ª séries do ensino fundamental
Finalidade: Apresentar aos alunos a influência dos meios de comunicação
de massa através das estratégias multimídias, do consumo de produtos de
entretenimento, como os álbuns de figurinhas e os cards.
Motivação: A partir da obra Goma arábica, de Carlos
Urbim, e do tema da 11a Jornada e 3a Jornadinha Nacional de
Literatura, “Diversidade cultural: o diálogo das diferenças”,
fazer uma reflexão sobre a produção em massa de produtos
de entretenimento dirigidos ao público infanto-juvenil,
veiculados pelos meios de comunicação de massa, como
integrante de uma estratégia multimídia que leva à compra
de álbuns de figurinhas e cards de super-heróis, desenhos
animados, games etc. Mostrar aos alunos e professores que as
estratégias de consumo sempre existiram e que evoluem nas
formas de atingir o público-alvo.
89
Eliana Teixeira
Ferramentas
Livro: Goma arábica, de Carlos Urbim;
Revistas, cola, tesoura, folhas de oficio;
Álbuns de figurinhas e cards diversos;
Retroprojetor ou projetor multimídia.
A prática passo a passo
-Apresentar o Mundo da Leitura e seus espaços, fazendo referência às
diferentes linguagens e aos suportes diversificados; apresentar o tema da
11a Jornada e 3a Jornadinha Nacional de Literatura, “Diversidade cultural: o
diálogo das diferenças; fazer a audição da música “Caminhos cruzados”.
-Convidar os alunos para ocuparem o espaço da arena.
-Distribuir aos alunos álbuns de figurinhas e cards variados (Magic,
Yu-gi-oh Pokemon etc.
-Na seqüência, o monitor propõe que alguns alunos contem para os colegas
a história da coleção, se serve para jogar, se o aluno faz outras coleções
etc.
-Mostrar aos alunos o livro Goma arábica, de Carlos Urbim. Fazer um breve
relato da obra e apresentar o autor e a ilustradora.
-Fazer a leitura coletiva a partir de lâminas ou, ainda, do Power Point, do
texto “Outros álbuns”, que figura no início do livro Goma arábica, fazendo
uma reflexão sobre a influência dos desenhos animados, filmes e games
veiculados ou anunciados na TV na compra das figurinhas, tanto na época
da infância do autor como nos dias atuais.
-O monitor deverá, à medida que for lendo a obra, contextualizar os
fatos narrados pelo autor, fazendo um contraponto entre o velho (as
lembran-ças do autor) e o novo (as vivências das crianças).
-Analisar com os alunos a capa, as ilustrações internas, a existência dos
espaços vazios para colar as figuras e a técnica da colagem utilizada pela
ilustradora Maria Tomaselli.
Trabalho final
Cada grupo elabora um álbum de fotografias dos seus integrantes, utilizando
a técnica da colagem ou da fotomontagem. Ao lado de cada “fotografia” o
aluno deverá escrever como seria o seu nome, suas características (por
exemplo, alegre, raivoso), suas habilidades (por exemplo, rápido, lento)
etc.
Mundo virtual
Solicitar aos alunos que, em duplas, façam um comentário sobre o livro
Goma arábica, de Carlos Urbim, no fórum da Pré-Jornadinha www.
jornadadeliteratura.upf.br, ou, caso não utilizem computador, com
freqüência utilizar no mundo virtual os CD-ROM de arte disponíveis no
acervo.
90
Práticas leitoras multimidiais: no contexto do Centro de Referência...
Referências
Coleção Arte ao redor do Mundo – Callis
http://cienciahoje.uol.com.br/view/2034
http://www.animepro.com.br/a_news/fevereiro_2003/n_27_yugioh.html
http://www.zaz.com.br/istoe/comport/141104.htm
http://www.comtexto.com.br/artigorenataboutin.htm
O autor:
Carlos Urbim nasceu em Santana do Livramento em 1948. Desde bem
pequeno lia tudo o que lhe caía nas mãos. Fazia coleções de gibis, que
trocava depois nas portas dos cinemas. Transferiu-se para Porto Alegre,
onde, desde 1968, atua como jornalista junto aos principais meios de
comunicação sul-rio-grandenses. Em 2004, completou vinte anos de
literatura.
Sua primeira obra de ficção para crianças, Um guri daltônico, foi lançada
na Feira do Livro de Porto Alegre de 1984. Com Saco de brinquedos, Urbim
obteve o título de altamente recomendável da Fundação Nacional do Livro
Infanto-Juvenil.
Outras obras do autor
Dona Juana/Lata de tesouro - Projeto
Diário de um guri
Saco de Brinquedos
A obra
A goma arábica, título da obra de Carlos Urbim, era uma substância utilizada
para colar papéis. Segundo o autor, na sua infância não existia cola plástica
branca nem em bastão, muito menos figurinhas auto-adesivas.
A lembrança da goma arábica é o motivo encontrado pelo autor para trazer
à tona recordações de cenas e fatos ocorridos na sua infância, nos anos 50
do século passado. Assuntos como as matinês de domingo, as temporadas
de circo, as radionovelas, o material escolar novinho e as pandorgas
acabam por divertir e ensinar a atual geração. Entre um relato e outro,
Urbim insere dicas de leitura de outras publicações e autores – de Jane
Tutikian e Sylvia Orthof a Monteiro Lobato e Drummond. Acompanha o
livro um pôster com desenhos da artista plástica gaúcha Maria Tomaselli.
Os desenhos devem ser recortados e colados nos 36 espaços em branco
que aparecem nas páginas do livro.
A prática leitora intitulada “O velho e o novo: álbuns de
figurinhas x Cards” demonstra a preocupação do Mundo da
Leitura em oferecer vivências de leitura sintonizadas com as
experiências de leitura dos alunos, com as novas tecnologias,
com as outras linguagens que circulam no nosso meio e,
especialmente, com o texto literário.
Ao pensarmos uma prática leitora, independentemente
do público-alvo e do tema a ser desenvolvido, temos como
preocupação introduzir informações que possam ir além
91
Eliana Teixeira
dela própria, ou seja, que crianças, adolescentes e adultos
desenvolvam competências para entender, analisar, criticar a
imensidão de informações que estão presentes no seu dia-adia, mas que não fazem parte dos currículos escolares. Sabe-se
das dificuldades da escola em trabalhar com outras linguagens
que não a linguagem verbal oral ou escrita, no entanto crianças
e adolescentes são bombardeados diariamente com desenhos
animados, filmes, telenovelas, propagandas, outdoors,
revistas de folhetim, video games, CD-ROM, internet.
Busca-se com as práticas leitoras uma nova relação com
o conhecimento, menos fragmentado, menos alienante e
coerente com a realidade das inovações tecnológicas em que
estamos vivendo.
É por meio da literatura e da arte que o homem toma
conhecimento das inúmeras batalhas travadas na busca
constante de conhecer os mistérios da vida. Ora os artistas
nos remetem a tempos longínquos, mágicos, fantasmagóricos,
oníricos, em meio a bruxas, fadas, ogros, ora nos transportam
numa nave espacial para um futuro de guerras intergalácticas,
raios laser, robôs, escudos magnéticos. Seja qual for o estilo
narrativo, o tempo em que se localizam a ação e os suportes
que veiculam as histórias, elas narram o mesmo percurso do
homem na busca da compreensão da natureza humana.
A questão que se coloca, então, aos educadores de uma
maneira geral é compreender essa trajetória e, sem temor,
sintonizar-se com as novas formas de representar o mundo
que emergem da produção artística e cultural contemporânea.
Os educadores não devem, porém, estudar só as linguagens
dessas novas formas de representação, mas, também, atentar
para os suportes em que elas se manifestam, visto que suportes
(como o televisor, o computador etc.) exercem grande fascínio
sobre crianças e adolescentes.
Referências
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nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas:
Mercado das Letras, 1995.
LÉVY, P. A emergência do Cyberspace e as mutações culturais.
In: PELLANDA, N. M. C.; PELLANDA, E. C. (Org.). Ciberespaço:
um hipertexto com Pierre Lévy. Porto Alegre: Artes e Ofícios,
2000. p. 13-19.
92
Práticas leitoras multimidiais: no contexto do Centro de Referência...
LÉVY, P. As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1998.
LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.
ONG, W. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da
palavra. Campinas: Papirus, 1998.
RÖSING, T. M. K. Perfil do novo leitor: em construção- a
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_______. Práticas leitoras para uma cibercivilização. Passo
Fundo: EDIUPF, 1999.
_______. Práticas leitoras para uma cibercivilização II: 500
anos de Brasil: memórias que nossa consciência não escolheu.
Passo Fundo: UPF Editora, 2001.
_______. (Org.). Práticas leitoras para uma cibercivilização III:
Brasil 500 anos: da carta de Caminha ao e-mail. Passo Fundo:
UPF Editora, 2001.
_______. (Org.). Práticas leitoras para uma cibercivilização IV:
vivências interdisciplinares e multimidiais de leitura. Passo
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_______. (Org.). Práticas leitoras para uma cibercivilização V:
ressignificando identidades. Passo Fundo: Ed. Universidade
de Passo Fundo, 2005.
TEIXEIRA, E. O. Espaços de leitura interativos. Passo Fundo:
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VYGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins
Fontes, 1984.
VYGOTSKY, L. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual
na idade escolar. In: VYGOTSKY, L.; LURIA. A. R.; LEONTIEV,
A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo:
Ícone, 1988.
93
O ensino de português nos níveis
fundamental e médio:
problemas e desafios
José Luiz Fiorin*
Lucian Goldmann (1972), discutindo as possibilidades
de ação cultural por intermédio dos meios de comunicação
de massa, mostra que o excesso de informação desorganiza a
compreensão. Se isso era verdade quando o texto foi escrito,
época em que não havia TV a cabo, não se dispunha dos atuais
meios técnicos à disposição da indústria gráfica, não existiam os
computadores pessoais nem se sonhava com a internet, muito
mais verdadeiro o é num momento em que o acesso à informação
atingiu níveis inimagináveis, praticamente ilimitados. Não se
diga que na rede só se encontram vulgaridades e inutilidades.
Isso é preconceito daqueles que temem a tecnologia. Quando
o projeto de digitalização dos acervos das grandes bibliotecas
realizado pela Google estiver terminado, teremos em nossa casa
praticamente todo o conhecimento produzido pelo homem ao
longo de sua história. Cada vez mais podemos acessar o acervo
dos grandes museus, as inscrições gregas e latinas até hoje
descobertas e assim por diante.
*
Foi professor de português no ensino fundamental e médio por muitos anos e
atualmente é professor do Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Além de inúmeros artigos em revistas especializadas e capítulos de livros, publicou, entre
outros, os seguintes livros: Linguagem e ideologia; As astúcias da enunciação:
as categorias de pessoa, espaço e tempo; Elementos de análise do discurso; Para
entender o texto; Lições de texto; Introdução à Lingüística I. Ocupou diversas
funções, destacando-se a de representante da área de Letras e Lingüística na
Capes, a de membro do Conselho Deliberativo do CNPq e a de membro da
Comissão Nacional de Língua Portuguesa.
95
José Luiz Fiorin
Com todas as possibilidades de aceder à informação,
a escola deixou de ser sua única ou principal dispensadora.
Seu papel precisa ser redefinido: ela deve preparar as pessoas
para ter acesso às informações disponíveis e organizar sua
compreensão. A informação é pontual e linear, ao passo que a
compreensão exige a inserção e a organização das informações
numa arquitetura conceptual, que permite a reflexão.
Nesse quadro, o ensino de línguas adquire um
papel relevante. Ao contrário do que se dizia, não estamos
caminhando para uma civilização da oralidade ou da
visualidade. A escrita está ganhando um papel cada vez maior.
É verdade que suas funções estão sendo redefinidas e que as
linguagens sincréticas, aquelas que expressam os sentidos
por meio de diferentes planos de expressão (verbal, visual e
sonoro não verbal, por exemplo), vão adquirindo um relevo
cada vez maior.
Diante desse panorama, o aluno precisa aprender
línguas estrangeiras. Essa é a verdadeira precondição de
democratização do acesso à informação disponível na
internet. De outro lado, o ensino de língua materna, nos níveis
fundamental e médio, deve ter como objetivo formar leitores
eficazes e produtores competentes de textos, pois só dessa
forma o aluno poderá compreender a informação disponível e
organizá-la. Isso é condição necessária para o desenvolvimento
de suas plenas potencialidades humanas, para o exercício
da cidadania, para o prosseguimento dos estudos em nível
superior e para a inserção no mercado de trabalho.
No Brasil, no entanto, as avaliações realizadas pelos
diferentes órgãos oficiais têm demonstrado que a maioria
dos estudantes termina o ensino médio com dificuldade para
ler um texto de média complexidade e para redigir textos
adequadamente.
O ensino de português deve ser reorganizado com vistas
a levar o estudante a adquirir e ampliar progressivamente sua
capacidade de compreender textos e de produzi-los. O ensino
de língua deve sempre ter em vista que as formas da língua
existem para produzir sentido.
Analisemos as práticas atuais de nossa escola para
verificar quais são os mais importantes problemas do ensino
de língua portuguesa. São quatro seus defeitos principais
nos níveis fundamental e médio: fundamentação em noções
96
O ensino de português nos níveis fundamental e médio: problemas e desafios
equivocadas e estreitas a respeito do funcionamento, da
estrutura e das funções da linguagem humana; ensino mais da
metalinguagem que da língua-objeto; ensino das categorias da
língua, sem que se considere seu papel no funcionamento da
linguagem; ensino da leitura e da redação não fundamentado
em teorias do discurso e do texto.
Fundamentação em noções equivocadas
e estreitas
O primeiro problema de nosso ensino de português é
que se funda sobre noções equivocadas e estreitas a respeito
do funcionamento, da estrutura e das funções da linguagem
humana. A concepção de língua que norteia o trabalho escolar
é de uma língua unitária e fixa. Dela estão excluídas a variação
e a mudança. Isso leva a gastar tempo no ensino de estruturas
que não mais pertencem à norma culta real. Insiste-se, ainda,
que os verbos “namorar” e “implicar” são transitivos diretos,
quando todas as pessoas, mesmo em situação de uso da norma
culta, dizem “Andréia namora com Pedro” e “Uma causa
implica em uma conseqüência”. O ensino de uma norma
artificial é inútil, porque só leva os alunos a dissociar a língua
aprendida na escola da língua real. O ensino de português
precisa ser visto como algo que diz respeito à língua usada por
todos em todas as situações de comunicação.
Com isso, não se está dizendo que não se deva ensinar
a chamada “norma culta” na escola. O uso lingüístico tem
uma dimensão social, que implica, entre outras coisas, o uso
de variedades em função do gênero utilizado. Para Bakhtin
(1992, p. 279-288), o gênero estabelece uma conexão entre
a linguagem e a vida, porque cada esfera de atividades cria
gêneros, entre cujas características está o estilo, que é marcado,
entre outros traços, pelo uso de uma dada variedade lingüística.
Por isso, é constitutiva de todas as línguas a exigência da
utilização de certas variedades em determinadas situações de
comunicação. No entanto, o ensino da norma culta deve ser
feito no quadro da variação. Isso significa que não se podem
desqualificar as variedades populares, com afirmações como
“isso não é português!” Por outro lado, o ensino da norma culta
é um imperativo de uma escola democrática, porque permite
que o aluno seja uma voz autorizada em todos os gêneros do
discurso.
97
José Luiz Fiorin
Outras concepções errôneas vão se difundindo na
escola, muitas vezes por meio de vozes consideradas bastante
dignas de crédito. Pasquale Cipro Neto, em entrevista dada à
revista Veja de 10 de setembro de 1997, diz que os brasileiros
importam palavras estrangeiras sem saber sequer seu
significado. É o caso da palavra handicap com o sentido de
“vantagem”. Afirma ele que “os locutores vivem inventando
umas expressões bobas como ‘correr atrás do prejuízo’,
usada para o time que precisa virar uma partida”. Pergunta
o professor: “Quem é o maluco que ‘corre atrás do prejuízo’?”
Isso é desconhecer a mudança de sentido das palavras. Por
que handicap não pode passar para o português com sentido
diferente do que tem a palavra em inglês, se isso é um fato
absolutamente normal na história da constituição do léxico
das línguas? Por exemplo, veja-se o caso do termo “esquisito”,
que, em português, hoje significa “extravagante, excêntrico”.
É uma palavra que vem do latim exquisitu (formado de ex
+ quaerere = buscar fora), que quer dizer “refinado, raro,
distinto, delicioso”. É o sentido que tem a palavra em francês,
em italiano, em espanhol, que mantiveram o sentido positivo
do latim. Pode-se, então, dizer que o sentido do português é
um erro? Não, pois o português tomou, para o que está fora
do padrão, o sentido negativo. Os sentidos mudam e as razões
dessas mudanças são perfeitamente explicáveis. E o que dizer
do verbo “embarcar”, que significava, na origem, “tomar
lugar num barco”? É erro dizer “embarcar num ônibus” ou
“embarcar numa aventura”? Não, é ampliação de sentido. Podese considerar “suicidar-se” um erro, sob a alegação de que a
palavra já contém o reflexivo latino sui, significando, portanto,
“matar-se”, sendo o “se” uma redundância viciosa? Não, pois
a memória lingüística se esqueceu da formação original da
palavra. “Correr atrás do prejuízo” quer dizer “reverter uma
situação desfavorável”. Se isso não é possível, como se podem
explicar expressões como “pessoa de idade”, com significado
de “pessoa velha”, se todas as pessoas têm idade? A questão é
que a significação de uma expressão não pode ser vista como
a soma de cada uma das partes. O todo é mais do que a soma
das partes. Só uma visão estreita da língua permite ir de dedo
em riste contra expressões absolutamente aceitas por todos os
falantes da língua. O supremo critério de validade das formas
lingüísticas é o uso, como já dizia há séculos o poeta Horácio,
em sua Arte poética (versos 71-72). E Lévi-Strauss, o grande
98
O ensino de português nos níveis fundamental e médio: problemas e desafios
antropólogo francês, dizia que “a língua é uma razão humana
que tem suas razões” (1962, 300-301). Aplicar uma análise
pretensamente lógica aos fatos lingüísticos é desconhecer as
razões da língua.
No ensino de língua materna, o aluno deveria ser levado
a compreender a natureza e a função da linguagem humana:
as línguas variam, mudam, o uso de determinadas variedades
lingüísticas são marcas de uma identidade social, a linguagem
é uma forma de agir no mundo e assim por diante. Quando
a escola se debruça sobre as funções da linguagem, em geral
apresenta o esquema da comunicação proposto por Jakobson
e, depois, fala rapidamente e de maneira muito estreita sobre
as seis funções que o lingüista russo examinou: referencial,
emotiva, conativa, fática, metalingüística e poética.
Em primeiro lugar, o trabalho da escola sobre as funções
da linguagem é estreito, porque não se apreende todo o
alcance das funções de que trata. Quando se estuda a função
metalingüística, por exemplo, diz-se que a linguagem serve
para falar do mundo exterior (seres, acontecimentos, estados
etc.) e do mundo interior (sentimentos, emoções etc.) ou
para falar dela mesma. No primeiro caso, temos a linguagemobjeto, aquela empregada para falar de acontecimentos, seres,
sentimentos, emoções, paixões etc.; no segundo, temos a
metalinguagem. Em seguida, exemplifica-se: quando dizemos
frases como “A palavra cão é um substantivo”; “É errado dizer”
‘a gente viemos’”; “Estou usando o termo ‘direção’ em dois
sentidos”; “Não é muito elegante usar palavrões”, estamos
falando não de acontecimentos do mundo, mas estamos
tecendo comentários sobre a própria linguagem. Em outros
termos, estamos usando palavras para referir-nos a palavras.
A atividade metalingüística é inseparável da fala. Mesmo
quando falamos do mundo exterior e do mundo interior,
intercalamos comentários sobre a nossa fala e a dos outros.
Quando dizemos, por exemplo, “Desculpe a grosseria da
expressão”, estamos comentando o que dissemos, estamos
dizendo que não temos o hábito de dizer uma coisa tão
vulgar como a que vamos enunciar. Todos os estudos sobre
a linguagem são metalingüísticos. A gramática é, assim, a
linguagem em função metalingüística. Observe-se que o que
acabamos de dizer é o conteúdo de uma aula até significativa
sobre a função metalingüística.
99
José Luiz Fiorin
No entanto, seria preciso ir mais longe. Seria a ocasião
de ampliar a reflexão sobre a metalinguagem. As artes
são linguagens e, portanto, quando elas falam da própria
arte, temos também metalinguagem. A poesia que trata da
poesia é uma metapoesia, o teatro que trata do teatro é um
metateatro; o cinema que trata do cinema é um metacinema,
e assim por diante. Uma reflexão sobre a metaarte alarga a
visão dos alunos sobre a linguagem. Podemos trabalhar com
a metapoesia (por exemplo, o poema “Autopsicografia”, de
Fernando Pessoa); a metamúsica (por exemplo, “Samba de
uma nota só” e “Desafinado”, ambas de Tom Jobim e Newton
Mendonça); a metanovela de televisão (Espelho mágico, de
Lauro César Muniz, apresentada, na década de 70, na rede
Globo). As artes valem-se dos dois níveis de linguagem: falam
do mundo e, assim, nos dão a conhecer os seres humanos, a
história etc., e falam de si mesmas e, assim, nos revelam o
próprio fazer artístico.
Isso é uma reflexão mais significativa sobre as funções
da linguagem, pois amplia seu alcance e seu significado. Por
outro lado, é preciso levar a pensar em outras funções da
linguagem: ela permite apreender o mundo, possibilita criar
novas realidades etc. Com isso, alarga-se o escopo das aulas de
português, pois se leva o aluno a ver a linguagem como uma
forma de categorizar o mundo, que não é um já dado anterior
à linguagem, e possibilita-se compreender a linguagem como
o lugar da criação, da invenção.
Não se deve pensar que apenas o ensino tradicional
se baseia em noções equivocadas e estreitas a respeito do
funcionamento da linguagem. Também certos fundamentos
lingüísticos, considerados a última palavra em matéria
pedagógica, estão sujeitos a esse problema. Depois que os
Parâmetros Curriculares Nacionais estabeleceram que o ensino
de português fosse feito com base nos gêneros, apareceram
muitos livros didáticos que os vêem como um conjunto de
propriedades formais a que o texto deve obedecer. O gênero
é, assim, um produto e seu ensino torna-se, então, normativo.
Sob a aparência de uma revolução no ensino de português
está-se dentro da mesma perspectiva normativa com que se
ensinava gramática. Ademais, retirando esse conceito do
contexto teórico que lhe deu origem, essa noção é vulgarizada
e empobrecida. E aí aparecem lições sobre gêneros de que a
escola não precisa tratar, porque os alunos já os conhecem
100
O ensino de português nos níveis fundamental e médio: problemas e desafios
muito bem. Apresentam-se lições sobre gêneros que, numa
perspectiva bakhtiniana, não poderiam ser considerados
gêneros do discurso. E o ensino novamente cai na irrelevância
e na insignificância.
Bakhtin (1992, p. 277-326) não vai teorizar sobre os
gêneros, levando em conta o produto, mas o processo de sua
produção. Interessam-lhe menos suas propriedades formais
do que a maneira como eles se constituem. Seu ponto de
partida é o vínculo intrínseco existente entre a utilização da
linguagem e as atividades humanas. Os enunciados devem ser
vistos na sua função no processo de interação.
Os seres humanos agem em determinadas esferas de
atividades, a da escola, a da Igreja, a do trabalho num jornal,
a do trabalho numa fábrica, a da política, a das relações
de amizade e assim por diante. Essas esferas implicam a
utilização da linguagem na forma de enunciados. Não se
produzem enunciados fora delas, o que significa que eles são
determinados pelas condições específicas e pelas finalidades
de cada esfera. Esses domínios de atuação ocasionam o
aparecimento de certos tipos de enunciados, que se estabilizam
precariamente e que mudam em função de alterações nessas
esferas de atividades. Só se age na interação, só se diz no agir, e
o agir motiva certos tipos de enunciados, o que quer dizer que
cada esfera de utilização da língua elabora tipos relativamente
estáveis de enunciados.
Os gêneros são, pois, tipos de enunciados relativamente
estáveis, caracterizados por um conteúdo temático, uma
construção composicional e um estilo. Falamos sempre por
meio deles no interior de uma dada esfera de atividade.
Eles estabelecem, portanto, uma interconexão da
linguagem com a vida social. A linguagem penetra na vida
por meio dos enunciados concretos e, ao mesmo tempo, por
eles a vida introduz-se na linguagem. Os gêneros estão sempre
vinculados a um domínio da atividade humana, refletindo suas
condições específicas e suas finalidades. Conteúdo temático,
estilo e organização composicional constroem o todo que
constitui o enunciado, que é marcado pela especificidade de
uma esfera de ação.
O gênero somente ganha sentido quando se percebe
a correlação entre formas e atividades. Assim, não é um
conjunto de propriedades formais isolado de uma esfera de
ação, que se realiza em determinadas coordenadas espaço-
101
José Luiz Fiorin
temporais, na qual os parceiros da comunicação mantêm certo
tipo de relação.
Ensino preponderante da metalinguagem
No ensino de português, ensina-se muito mais a
metalinguagem do que a língua-objeto. Assim, toda atividade
nas aulas de língua materna resume-se a um trabalho de
etiquetagem das formas lingüísticas e à memorização de
prescrições. Observe-se, por exemplo, o ensino da análise
sintática. Seu objetivo último é segmentar o período em
orações e classificá-las. Se um aluno é capaz de dizer que uma
determinada oração de um período é uma oração subordinada
substantiva completiva nominal reduzida de infinitivo
considera-se que o ensino da análise sintática atingiu seu
objetivo. No entanto, esse mesmo estudante escreve períodos
em que não há oração principal ou frases em que faltam termos
essenciais, como, por exemplo, o predicado. Isso significa que o
estudo da análise sintática resultou inútil, porque seu objetivo
deve ser o de montar períodos, não o de desmontálos.
Surge uma questão sempre problemática. Deve-se
ensinar gramática na escola de ensino fundamental e
médio? Depende. Se esse ensino se restringir à etiquetagem
de formas e à memorização de prescrições, não. Se levar a
uma compreensão da estrutura e do funcionamento da língua
e, conseqüentemente, a um maior domínio da produção
e da leitura, sim. A questão é do foco que se dá ao ensino
da gramática. É preciso que esteja voltado sempre para a
compreensão da produção de sentidos.
Um trabalho interessante de ser realizado na escola é o
sugerido por Carlos Franchi, Esmeralda Vailati Negrão e Ana
Lúcia Müller (1998). Como já dissemos, no cotidiano escolar,
a tarefa de refletir sobre a linguagem transformou-se em uma
tarefa meramente classificatória. Tendo-se transformado o
trabalho de análise em exercício de reconhecimento de funções,
o aluno passa a crer que as categorias e funções sintáticas
são algo já estabelecido e o acerto ou o erro de seu trabalho
passa a ser medido pela aproximação ou o distanciamento
do que está dado. Ora, quando associamos uma unidade
lingüística a uma função sintática, “estamos construindo uma
hipótese a respeito da estrutura relacional da oração inteira”
102
O ensino de português nos níveis fundamental e médio: problemas e desafios
(p. 38). Essa hipótese deve basear-se em fatos da língua
observáveis na expressão analisada ou em outras expressões
correlatas, são esses fatos que devem funcionar como
argumentos de suporte à hipótese estabelecida.
Os três autores mostram como fazer isso, partindo de
uma frase ambígua como “Os alunos acharam fácil o caminho”,
que pode ser parafraseada de três maneiras distintas: a)
“Os alunos consideraram o caminho fácil”; b) “Os alunos
encontraram o caminho fácil (e não o difícil)”; c) “Os alunos
acharam facilmente o caminho”. Não contribui em nada
para o conhecimento da estrutura da língua simplesmente
classificar o termo “fácil”, respectivamente, como predicativo
de objeto, adjunto adnominal e adjunto adverbial de modo. O
que é preciso é que o estudante busque fatos lingüísticos que
permitam contrapor as três estruturas, na medida em que se
correlacionam com uma delas e não com outras. Dessa forma,
vai percebendo a função da ordem dos constituintes; o papel
de seu deslocamento em processos como a apassivação, a
topicalização, a interrogação; o sentido da pronominalização.
A análise gramatical não é um exercício de classificação, nem
a construção de uma hipótese para um fato lingüístico isolado.
Precisamos sempre comprovar as hipóteses, avaliando-as em
função de outros fatos lingüísticos. Para isso, no entanto, é
necessário saber muita teoria gramatical, não simplesmente
estar possuído de um furor classificatório.
Ensino das categorias lingüísticas sem
considerar seu papel na criação de
sentidos
No ensino das classes de palavras ou de categorias
lingüísticas, insiste-se no reconhecimento das formas e na sua
memorização, sem que se considere que elas existem para criar
sentidos. Assim, no estudo dos tempos verbais, a finalidade
última não é compreender os sentidos criados pelos diferentes
tempos, mas reconhecer que uma forma é pretérito imperfeito
do indicativo, outra é presente do subjuntivo e assim por
diante. Ao mesmo tempo, exige-se a memorização dessas
formas. Isso resulta em nada se o estudante não for capaz de
perceber os sentidos distintos criados por formas como:
103
José Luiz Fiorin
Encontrei-me com ele quando vinha de Santos para São Paulo;
Encontrei-me com ele quando veio de Santos para São Paulo.
A diferença entre essas duas frases não é propriamente
temporal, já que tanto o perfeito quanto o imperfeito indicam
concomitância em relação a um marco temporal pretérito. A
distinção é aspectual, já que uma indica o perfectivo e outra, o
imperfectivo. No entanto, nosso ensino é tão pouco sofisticado
que tudo entra na categoria de tempo.
É bem verdade que nossa nomenclatura gramatical
muitas vezes dificulta a tarefa de compreender o valor de
certas categorias gramaticais. Continuemos a exemplificar
com a questão do tempo. Temos uma diferença entre tempos
simples e compostos. Quando se diz que há um futuro
do presente simples e um futuro do presente composto, o
estudante é levado a pensar que ambos têm o mesmo valor
temporal. Entretanto, o primeiro indica a posterioridade em
relação ao momento da enunciação; o segundo, a anterioridade
em relação a um marco temporal futuro. Como se observa, a
forma simples é, de fato, futuro do presente; a composta é o
pretérito do futuro.
Seria preciso partir de oposições para que o aluno fosse
apreendendo a diferença de sentidos gerados pelo uso das
categorias e, posteriormente, suas intuições poderiam ser
sistematizadas. Antes de organizar os modos em sistema, seria
necessário que o aluno percebesse a diferença de sentido em
frases como:
Espero um carro que me leva para casa;
Espero um carro que me leve para casa;
Quero uma secretária que fala inglês;
Quero uma secretária que fale inglês.
É interessante começar a ensinar o papel do artigo
definido não por uma exposição de seu valor, mas pela
observação da diferença de sentidos produzida em frases
como:
A política é a arte de tornar o possível necessário.
A política é a arte de tornar possível o necessário.
O método de observar diferenças é importante, mesmo
quando se aprendem as funções sintáticas. Num anúncio
publicitário da Nokia veiculado pela revista Veja (24/12/2003,
p. 18-19) aparecem as seguintes frases:
104
O ensino de português nos níveis fundamental e médio: problemas e desafios
O homem separa o titânio dos demais elementos.
O titânio separa o homem dos demais elementos.
Compreender o sentido dessas sentenças é perceber as
funções sintáticas distintas que “homem” e “titânio” exercem
em cada uma delas.
Todo ensino de categorias, classes e funções só tem
propósito, quando se destina a conduzir o estudante a perceber
os sentidos que criam. O reconhecimento, a classificação e
a memorização como uma finalidade em si mesmos não têm
nenhuma função num ensino de português que vise levar o
aluno a um domínio crescente da língua. É preciso ressignificar
o ensino de português, para que o aprendiz, ao enxergar com
clareza que as formas criam sentidos, aproxime o que aprende
na escola dos usos que faz da linguagem no dia-a-dia.
Ausência de fundamentação
teórica no ensino de interpretação
e de produção de textos
As questões de interpretação de textos, em geral,
não passam de solicitações para localizar informações na
superfície textual. Nos livros didáticos, com raras exceções,
não há questões que levem ao entendimento global do texto e à
compreensão dos mecanismos de constituição de seu sentido.
O texto é um todo organizado de sentido, o que quer
dizer que suas partes se inter-relacionam, ou seja, que ele
possui uma estrutura. Além de ser um objeto lingüístico, é
um objeto histórico. Isso implica que o sentido do discurso se
constrói por meio de mecanismos intra e interdiscursivos, ou
seja, organiza-se por meio de uma estruturação propriamente
discursiva e pelo diálogo que mantém com outros discursos
a partir dos quais se constitui. Paul Ricoeur (1986) dizia que
o sentido do texto é criado no jogo interno de dependências
estruturais e nas relações com o que está fora dele. Esses
dois aspectos não se excluem, mas se complementam. O
ensino do texto precisa fundamentar-se no estudo cuidadoso
de mecanismos intra e interdiscursivos de produção de
significados. Sem isso, ensina-se a ler um texto determinado,
não a ler qualquer tipo de texto.
Como uma teoria científica não constrói “a” verdade e
não explica a totalidade da realidade, mas propõe modelos
105
José Luiz Fiorin
e conceitos para explicar alguns aspectos de seu objeto,
devemos tomar das diferentes teorias do texto e do discurso
elementos que apresentem rendimento para compreender
seja a organização interna do discurso, seja a relação que ele
mantém com outros discursos. Não podemos ter no ensino
uma concepção religiosa de ciência, aquela que pensa uma
teoria como sendo uma explicação totalizadora dos fatos da
linguagem. Só discurso religioso, a que se adere pela fé, tem
a pretensão de explicar tudo: de onde viemos, para onde
vamos, qual o sentido da vida etc. A ciência é uma construção
contínua, porque nunca chega à verdade. Seus modelos, em
função de determinados objetivos, explicam este ou aquele
aspecto do objeto. Por isso, o ensino não está comprometido
com uma só linha teórica dos estudos da linguagem, mas com
elementos provindos de diferentes abordagens.
O aluno deve ser submetido a textos de diferentes
esferas de circulação: o jornalístico, o filosófico, o científico
etc. No entanto, não podemos esquecer-nos de que o texto
mais importante na escola fundamental e média é o literário.
De um lado, porque a literatura é uma forma de conhecer
todas as possibilidades da linguagem humana e das línguas, já
que nela se procura trabalhar a linguagem até o limite de suas
possibilidades expressivas. De outro, porque a literatura é uma
forma de conhecimento da realidade. Com efeito, ela nos leva
a apreender as relações sociais, os modos de sentir e de agir
numa determinada época, numa dada formação social e, mais
que isso, não nos fala apenas do que existe, mas também do
que poderia existir. Isso significa que a literatura (e as outras
artes) tem uma função subversiva: leva-nos a perceber que a
realidade em que vivemos não é natural nem é destino, mas é
construção humana e poderia, portanto, ser alterada.
Depois de mostrar um mecanismo de produção do
sentido num texto verbal, pode-se tomar um texto em que o
sentido é manifestado por outras linguagens, para ampliar a
capacidade interpretativa do estudante.
Vejamos dois exemplos do trabalho que poderia ser feito
com o texto. O primeiro trata da questão das várias leituras
do texto; o segundo, da constitutividade heterogênea dos
discursos.
Umberto Eco, em seu livro Os limites da interpretação
(1992), mostra que as teorias da leitura, criadas ao longo da
história humana, pensam o ato de ler como a busca da intentio
106
O ensino de português nos níveis fundamental e médio: problemas e desafios
auctoris, da intentio lectoris ou da intentio operis. Para nós, a
leitura não pode ser a busca da intenção do autor, dado que, de
um lado, não podemos aceder à consciência de ninguém para
perceber suas motivações, a não ser por meio daquilo que se
externou lingüisticamente, ou seja, da obra; de outro, porque
o sujeito não é o mestre do sentido, que controla, de maneira
perfeita, a totalidade do significado produzido. Não podemos
pensar a leitura como a busca da intenção do leitor, porque,
nesse caso, estaríamos dizendo que o texto não tem sentido, a
não ser aquele que o leitor nele coloca. No limite, o que se está
afirmando, então, é que o sentido do outro não existe, só existe
o meu sentido, já que o significado do texto produzido pelo
outro é aquele que eu dou a ele. Só uma sociedade que levou a
subjetividade e o individualismo ao extremo poderia conceber
uma posição teórica de exclusão total do outro e de seus
sentidos. Resta-nos, portanto, a intenção da obra. É preciso,
pelo exame cuidadoso dos mecanismos inter e intradiscursivos
de constituição do sentido, buscar apreender o que a obra nos
diz. Isso significa que, quando um texto tem várias leituras,
elas estão, de alguma forma, nele inscritas. É necessário,
pois, levar o estudante a perceber os modos de inscrição de
várias leituras no texto para poder lê-lo de uma maneira mais
rica. Alguém poderia objetar dizendo que, pensando a leitura
dessa maneira, ignora-se sua historicidade. Não é verdade. No
século XX, faz-se, por exemplo, uma leitura sexual da obra
da grande poeta mística espanhola Teresa d’Ávila. No entanto,
pode-se mostrar que essa leitura já está inscrita virtualmente
na obra. Nos séculos anteriores, não se percebeu isso, porque
a sexualidade estava fortemente reprimida e sexo era tema de
que não se tratava. Depois de Freud, a sexualidade ganha voz
e apreende-se na obra da poeta, uma virtualidade de sentido
que não se percebia antes.
Vamos exemplificar como se organizaria uma unidade
com o objetivo de levar a compreender os mecanismos de
inscrição das várias leituras num texto. Ater-nos-emos ao
texto verbal, mas o ideal seria trabalhar, depois do estudo do
texto verbal, também com textos visuais, por exemplo, uma
pintura:
O asno e a carga de sal
Um asno carregado de sal atravessava um rio. Um passo em
falso e ei-lo dentro da água. O sal então derreteu e o asno se
levantou mais leve. Ficou todo feliz. Um pouco depois, estando
107
José Luiz Fiorin
carregado de esponjas às margens do mesmo rio, pensou que
se caísse de novo ficaria mais leve e caiu de propósito nas
águas. O que aconteceu? As esponjas ficaram encharcadas e,
impossibilitado de se erguer, o asno morreu afogado.
Algumas pessoas são vítimas de suas próprias artimanhas
(Esopo. Fábulas. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997, p. 139-140).
A fábula é um gênero que se caracteriza pela seguinte
forma composicional: uma história e uma moral. No exemplo
acima, o primeiro parágrafo é a história e o segundo, a moral.
Os dois dizem a mesma coisa. Assim, a principal característica
da fábula é o fato de ela ser um gênero que explicita o tema
da história que narra. Por outro lado, o assunto da fábula é
sempre o comportamento humano. Por isso, embora suas
personagens sejam, quase sempre, animais ou plantas, é uma
história de gente, não uma história de bichos ou de vegetais.
No nosso exemplo, o comportamento humano analisado é a
esperteza que produz conseqüências ruins para as pessoas
que dela se valem.
Como se sabe, porém, que a fábula é uma história de
gente? Poder-se-ia responder, acertadamente, que se sabe
disso porque a moral diz que se trata de uma história de
seres humanos, uma vez que afirma que “algumas pessoas
são vítimas de suas próprias artimanhas”. No entanto, se não
tivéssemos a moral, poderíamos perceber, com base em certos
elementos da história, que ela narra acontecimentos relativos
a seres humanos, não a um asno? Sim, poderíamos inferir isso
com fundamento no fato de que há nos textos uma reiteração
de traços semânticos, que obrigam a ler o texto como uma
história de pessoas.
Vejamos o que ocorre em nossa fábula. Inicialmente,
temos um animal: o asno. Poderíamos, então, pensar que
se trata de uma história de bichos. No entanto, atribuemse a ele procedimentos e qualidades próprios dos seres
humanos; “feliz”, “pensou”, “de propósito”. Essa repetição,
essa recorrência, essa reiteração do traço semântico humano
desencadeia um novo plano de leitura. O primeiro plano de
leitura é história de animais. À medida, porém, que elementos
com o traço humano se repetem, não se pode mais ler a fábula
como uma história de bichos. Esses traços desencadeiam
outro plano de leitura: o de uma história de homens. Nesse
novo plano, o asno é o homem vitimado por sua tentativa de
ser esperto e levar vantagem em tudo.
108
O ensino de português nos níveis fundamental e médio: problemas e desafios
A recorrência de traços semânticos é que estabelece
que leituras devem ou podem ser feitas de um texto. Uma
leitura não tem origem na intenção do leitor de interpretar o
texto de uma dada maneira, mas está inscrita no texto como
virtualidade, como possibilidade.
Lido de modo fragmentário, o texto pode dar a impressão
de um aglomerado desconexo de frases a que o leitor pode dar
o sentido que quiser e bem entender. Não é assim: há leituras
que não estão de acordo com o texto e, por isso, não podem
ser feitas. Mas poderia alguém perguntar: um texto não pode
admitir múltiplas leituras? É verdade, pode admitir várias
interpretações, mas não todas. São inaceitáveis as leituras
que não estiverem de acordo com os traços de significado
reiterados, repetidos, recorrentes ao longo do texto.
Há textos que possibilitam mais de uma leitura. Nele, as
mesmas palavras têm mais de uma interpretação, segundo o
plano de leitura em que forem analisadas. Para explicar isso,
tomemos como exemplo o poema “Psicanálise do açúcar”, de
João Cabral de Melo Neto.
O açúcar cristal, ou açúcar de usina,
mostra a mais instável das brancuras:
quem do Recife sabe direito o quanto,
e o pouco desse quanto, que ela dura.
Sabe o mínimo do pouco que o cristal
se estabiliza cristal sobre o açúcar,
por cima do fundo antigo, de mascavo,
do mascavo barrento que se incuba;
e sabe que tudo pode romper o mínimo
em que o cristal é capaz de censura:
pois o tal fundo mascavo logo aflora
quer inverno ou verão mele o açúcar.
*
Se os bangüês que-ainda purgam ainda
o açúcar bruto com barro, de mistura;
a usina já não o purga: da infância,
não só depois de adulto, ela o educa;
em enfermarias, com vácuos e turbinas,
em mãos de metal de gente indústria,
a usina o leva a sublimar em cristal
o pardo do xarope: não o purga, cura.
Mas como a cana se cria ainda hoje,
em mãos de barro de gente agricultura,
o barrento da pré-infância logo aflora
quer inverno ou verão mele o açúcar.
(Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 356).
O poeta fala, no texto, do processo de fabricação do açúcar.
Nele, o açúcar cristal, ou seja, “o açúcar branco submetido a
109
José Luiz Fiorin
alto processo de concentração e que se apresenta em pequenos
grãos secos, alvos e brilhantes”, é feito sobre um fundo de
açúcar mascavo, isto é, o “açúcar não refinado, cuja coloração
vai do amarelo queimado ao barrento, e que resulta do maior
ou menor resíduo de melaço aderido aos cristais de sacarose”.
O açúcar cristal é bastante instável, pois o açúcar pode
melar e o mascavo aflora, destruindo o cristal. Os bangüês
(= engenhos de açúcar) purgam (= purificam fazendo escorrer
as impurezas) o açúcar com o método tradicional, com uma
mistura de barro. Já as usinas, mais modernas, não realizam
a purificação por esse método. Com máquinas de metal, no
vácuo, levam os cristais de açúcar à sublimação (= purificação
de uma substância volátil pelo calor). Assim, elas não limpam
o xarope escuro da cana (= purga), eliminam dele a cor escura
(= cura). Apesar disso, como a cana ainda hoje é plantada
e colhida (= cria) em mãos sujas de barro das pessoas que
trabalham na agricultura (= gente agricultura), quando o
açúcar mela, o barrento aflora fazendo desaparecer o branco.
Esse é a primeira leitura do poema. No entanto, há
algumas palavras que não se integram ao plano de leitura
proposto, o da fabricação do açúcar no bangüê pelo método
da purga e na usina pela sublimação. Esses termos não
podem ser explicados se a leitura se encerrar nesse primeiro
plano. Quais são eles? São “censura”, “infância”, “adulto”,
“educa”, “enfermarias”, “pré-infância” e, principalmente,
“psicanálise” (= “método terapêutico criado por Sigmund
Freud, empregado em casos de neurose e psicose, que consiste,
fundamentalmente, na interpretação, por um psicanalista,
dos conteúdos inconscientes de palavras, ações e produções
imaginárias de um indivíduo”). Todas essas palavras remetem
ao universo dos seres humanos. Por isso, determinam a criação
de um outro plano de leitura: o da criação de um indivíduo.
Todas as palavras devem ser lidas agora também nesse plano.
O aparelho psíquico do ser humano tem um conteúdo
constituído por normas morais inculcadas pela educação
(o superego, na teoria psicanalítica), que recobre um fundo
inconsciente onde estão os desejos e os impulsos recalcados
(o id, na teoria psicanalítica). O psiquismo seria, segundo o
poema, um conteúdo de pureza, de elevação, onde reside a
censura aos impulsos básicos (o açúcar cristal), que recobre
um conteúdo de maldade, de sujeira (o fundo do mascavo
barrento). O primeiro é muito instável. Com muita facilidade,
110
O ensino de português nos níveis fundamental e médio: problemas e desafios
ele se rompe (mela o açúcar) e o fundo mascavo aflora. Nas
sociedades tradicionais, simbolizadas pelos bangüês, havia a
purga (a purificação, a expiação da maldade, da sujeira, por
meio do sofrimento imposto como pena, castigo ou penitência);
nas sociedades modernas, a das usinas, procura-se educar
o homem na infância, levando-o a sublimar seus impulsos
primitivos. A sublimação, na psicanálise, é “a modificação
de um impulso ou sua energia, de maneira a levar a um
outro ato aceito e valorizado pela sociedade”. Dessa forma,
as sociedades modernas pensam que seja possível curar os
impulsos do homem, não simplesmente expiá-los (= purgálos). No entanto, o barro (a maldade, a sujeira) é um conteúdo
da pré-infância, um conteúdo primitivo, que aflora com muita
facilidade (quer inverno ou verão mele o açúcar). O homem
não pode ser curado de seus impulsos básicos.
Como se vê, esse texto admite, pelo menos, duas leituras:
a do fabrico do açúcar e a da criação do ser humano.
As anedotas, as frases maliciosas, de duplo sentido, os
textos humorísticos jogam com dois planos de leitura. Neles, lêse o que pertence a um plano em outro. Veja-se, por exemplo:
O cirurgião lava as mãos, antes da operação, e pede ao
assistente:
– Álcool, por favor.
O paciente ouve e entra em pânico:
– Ai, doutor! Não dá para o senhor beber depois da operação?
(Sarrumor, Laert. Ainda mais mil piadas do Brasil. São Paulo:
Nova Alexandria, 2000, p. 91).
Observe-se que, nesse texto, a palavra “álcool” tem
dois sentidos: 1) substância química que serve para realizar
assepsia; 2) bebida alcoólica. O pedido do cirurgião foi
formulado com o primeiro sentido, que determina um plano
de leitura: o da assepsia para a realização da cirurgia. Foi, no
entanto, lida pelo paciente no segundo sentido, que gera outro
plano de leitura: o da embriaguez.
Um texto pode ter várias leituras, bem como pode
jogar com leituras distintas para criar efeitos humorísticos.
Entretanto, o leitor não pode atribuir-lhe o sentido que bem
entender. Ele contém marcas de possibilidade de mais um
plano de significação. O primeiro mecanismo de inscrição de
leituras no texto são as palavras com mais de um significado.
Elas são chamadas “relacionadores de leituras”, pois apontam
para mais de um plano de sentido. É o caso do duplo sentido
111
José Luiz Fiorin
do substantivo “álcool”. O outro são palavras ou expressões
que não se integram no plano de leitura proposto e, por isso,
desencadeiam outro plano de sentido. São denominadas
“desencadeadores de leituras”. No poema de Cabral analisado
anteriormente, são “desencadeadores” as palavra “censura”,
“infância”, “adulto”, “educa”, “enfermarias”, “pré-infância” e
“psicanálise”.
O segundo exemplo é o da constitutividade heterogênea
do discurso.
O texto de que se parte é um cartaz publicitário de uma
campanha contra o racismo publicado em Eurobest 4: the
Annual European Advertising and Design Awards, p. 8. Nele, há
quatro imagens de cérebros: três do mesmo tamanho e um bem
pequeno. Sob os três cérebros de idêntico tamanho, aparecem
as palavras “africano”, “europeu”, “asiático”. Embaixo do
cérebro diminuto vem a palavra “racista”. A unidade poderia
ser organizada assim.
Esse cartaz mostra que, do ponto de vista da inteligência,
não há nenhuma diferença entre africanos, europeus e asiáticos
e que os racistas, ao afirmar que uns homens são superiores
aos outros, são pouco inteligentes. Esse texto, com grande
sarcasmo, opõe-se aos discursos racistas, que afirmavam haver
uma escala de capacidade intelectual entre as diferentes raças.
Essa idéia era considerada verdadeira, mas a ciência moderna
provou cabalmente que não passa de preconceito. Daí o cartaz
considerar que os racistas têm cérebro muito pequeno.
Esse exemplo mostra uma propriedade fundamental da
construção do discurso, a de se constituir a partir de outros
discursos. Por isso, todos eles são atravessados, ocupados,
habitados pelo discurso do outro. Por conseguinte, a linguagem
é, fundamentalmente, constitutivamente, heterogênea. Um
texto remete a duas concepções diferentes: aquela que defende
e aquela em oposição à qual se constrói. O fato de o ponto
de vista defendido num discurso constituir-se em oposição
a outra perspectiva, de a maneira de ver um assunto gerar-se
numa relação polêmica com outra é que faz de um texto um
objeto heterogêneo. Nele, ressoam duas vozes, dois pontos
de vista. Sob as palavras de um discurso, há outras palavras,
outro discurso, outro ponto de vista social. Para constituir
sua concepção sobre um dado tema, o falante leva sempre
em conta a de outro, que, de certa forma, está, pois, também
112
O ensino de português nos níveis fundamental e médio: problemas e desafios
presente no discurso construído. No cartaz mencionado acima
está presente o discurso anti-racista. No entanto, ele deixa ver
também a existência de um discurso racista na sociedade,
já que só tem sentido firmar uma posição anti-racista onde
circula uma concepção racista. Esse ponto de vista racista
não está marcado no fio do discurso, mas é apreendido pela
memória discursiva.
Esses pontos de vista são sociais, são as posições
divergentes que se estabelecem numa dada sociedade sobre
uma determinada questão. Como uma sociedade é sempre
dividida em grupos sociais com interesses divergentes, não
há uma perspectiva única sobre um dado tema. Os indivíduos,
em seus textos, defendem uma ou outra posição gerada no
interior da sociedade em que vivem. O discurso é sempre a
arena em que lutam esses pontos de vista em oposição. Um
deles pode ser dominante, isto é, pode contar com a adesão
de um número maior de pessoas. Isso, no entanto, não
elimina o fato de que concepções contrárias se articulam
sobre um determinado assunto. Um discurso é sempre, pois,
a materialização de uma maneira social de considerar uma
questão. Por isso, os discursos são sempre históricos.
Essa propriedade de um texto mostrar duas vozes
aparece nos textos manifestados por quaisquer linguagens.
Observe-se o quadro Guernica, de Picasso, cujos elementos
plásticos representam o horror da guerra, com seu cortejo de
destruições. Com ela desaparece a vida, desaparece a arte,
desaparece a civilização. Essa pintura contrapõe-se às obras
de arte que glorificavam a guerra, como o quadro Batalha de
Alexandre em Isso, de Albrecht Altdorfer, em que se retrata
de forma heróica a batalha em que Alexandre Magno venceu
Dario.
A linguagem oral
Muito se tem falado do aproveitamento da linguagem
oral no ensino de português na escola dos níveis fundamental
e médio. Entretanto, é preciso ter clareza de alguns princípios:
o professor de português trabalha com falantes nativos,
que usam a língua para todas as suas necessidades da vida
cotidiana. Portanto, não se trata de ensinar a falar uma língua.
Por outro lado, é um equívoco pensar que falar bem conduz
a escrever bem. Fala e escrita são duas modalidades distintas
113
José Luiz Fiorin
da língua, que se interpenetram em alguns gêneros, numa
gradação que vai do escrito prototípico ao falado exemplar. A
escola, em relação à linguagem oral, deve, de um lado, trabalhar
com certos gêneros não muito freqüentes no cotidiano: o
debate, a entrevista etc.; de outro, deve levar o aluno a tomar
consciência dos mecanismos constitutivos do texto falado.
Exemplifiquemos o trabalho de tomada de consciência desses
mecanismos, discutindo a questão da polidez na conversação.
Eu e Pedro estivemos hoje na sala do Diretor, para discutir
nossa festa de formatura.
Essa frase está absolutamente correta do ponto de vista
gramatical, mas está inadequada do ponto de vista do princípio
da polidez, que deve reger a troca verbal, uma vez que, na fala,
o eu deve vir depois do ele. Assim como devemos permitir que
os outros passem por uma porta na nossa frente, na fala o eu
deve dar precedência ao tu ou ao ele.
A polidez são todos os comportamentos, sejam eles
lingüísticos ou não lingüísticos, regidos por regras, cuja
função é preservar o caráter harmonioso das relações entre
as pessoas. São as maneiras de comportar-se à mesa, o uso
de roupas adequadas a cada situação, mas também os modos
de dirigir-se a uma pessoa, a arte da conversação. Aqui nos
interessa apenas a polidez lingüística. Por isso, vamos tratar
apenas dela.
Para entender bem a questão da polidez lingüística, é
necessário ter presente que cada indivíduo, de um lado, tem
um território da intimidade e, de outro, procura transmitir
uma imagem positiva de si mesmo na interação verbal (por
exemplo: a imagem de pessoa inteligente, esperta, bem
informada ou com excelente desempenho sexual). O território
da intimidade e a imagem positiva de si mesmo que ele
transmite constituem o que se chama a “face do indivíduo”.
No curso de uma conversação, produzem-se atos de fala que
ameaçam a face do interlocutor: perguntas indiscretas buscam
penetrar sua intimidade, que deve ser resguardada; críticas;
insultos; injúrias; gozações; sarcasmos; reprovações; censuras
tentam destruir a imagem positiva que o indivíduo transmite
de si mesmo. Por outro lado, há atos de fala que valorizam a
face do indivíduo, como o cumprimento, o agradecimento, o
elogio etc. A polidez lingüística consiste em manter a face do
outro, seja efetuando atos que valorizem a face do interlocutor,
114
O ensino de português nos níveis fundamental e médio: problemas e desafios
como elogios ou cumprimentos, seja evitando realizar atos que
ameacem sua face, como perguntas indiscretas sobre assuntos
da intimidade ou gozações.
O primeiro princípio da polidez é, pois, evitar atos que
ameacem a face do outro. No entanto, se esses atos forem
inevitáveis, é preciso atenuá-los. O segundo princípio é
reforçar os atos que valorizam a face do outro. Esses atos devem
ser intensificados: “Muitíssimo obrigado, serei eternamente
grato”.
O exame dos atenuadores e intensificadores verbais,
não verbais ou paraverbais dará ao estudante consciência dos
sentidos obtidos na fala e, ao mesmo tempo, permitirá educálo para a necessária polidez na vida em sociedade.
Considerações finais
Os princípios que devem presidir ao ensino de português
na proposta apresentada são os seguintes:
a) a linguagem humana deve ser vista em sua natureza
heterogênea e dinâmica;
b) o ensino dos conteúdos gramaticais deve estar
voltado para, de um lado, a compreensão do
funcionamento do sistema lingüístico e, de outro,
o aumento da consciência dos efeitos de sentido
produzidos pelo uso das formas e dos mecanismos
da linguagem;
c) a explicitação dos mecanismos intra e interdiscursivos de constituição do sentido do texto contribui
para melhorar o desempenho do aluno no que concerne à compreensão e à produção do texto;
d) os mecanismos de produção do sentido do texto
devem ser estudados não só na linguagem verbal,
mas também em outras linguagens;
e) a compreensão dos mecanismos que regem a
linguagem falada dão ao aluno consciência das
realizações intuitivas, para que ele se torne mais
atento aos sentidos produzidos na fala.
Propõem-se esses princípios porque se julga que o
trabalho do professor de português é levar os alunos a aceder,
por meio da palavra, às experiências culturais vividas pelo
homem ao longo de sua história e, assim, nas palavras de
Guimarães Rosa, tornar o homem humano, o que significa
115
José Luiz Fiorin
inconformado com uma realidade apresentada, seja como
destino, seja como fenômeno natural. Ao mesmo tempo,
é preciso levar a compreender que a linguagem não é algo
burocrático. É preciso ensinar a estruturação da língua, para
que o aluno possa mais facilmente subvertê-la. O princípio
ético fundamental que deve reger a tarefa dos professores de
língua materna é que a linguagem é o lugar de diversidade,
da heterogeneidade e da alteridade e, por isso, seu trabalho,
ao ensinar a linguagem, é levar a aprender a tolerância, o
respeito pela diferença e, portanto, a democracia. Esses são
os valores que orientam o ensino de português, liberdade,
inconformismo e democracia.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
ECO, Umberto. Les limites de l’interprétation. Paris: Grasset,
1992.
FRANCHI, Carlos et al. Um exemplo de análise e de
argumentação em sintaxe. Revista da Anpoll, 5, p. 37-63, jul./
dez. 1998.
GREIMAS, A. J.; COURTES, J. Sémiotique: dictionnaire
raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette, 1979.
GOLDMANN, Lucien. A criação cultural na sociedade
moderna. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972.
HORÁCIO. Oeuvres completes: satires, epitres, art poétique.
Paris: Garnier, 1950. Tomo II.
LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée sauvage. Paris: Pocket,
1962.
RICOEUR, Paul. Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II.
Paris: Seuil, 1986.
116
Pela não-pedagogização
da leitura e da escrita
Lia Scholze*
Com a chamada “virada cultural” (Hall, 1997; Culler,
1999), os estudos da linguagem deixaram de ser preocupação
exclusiva dos lingüistas e dos teóricos da literatura. Fala-se
hoje em “discurso” com a compreensão de que a produção
de significados tem a ver não só com as escolhas semânticas,
sintáticas e lexicais, como também com as relações que são
estabelecidas em determinados tempos e espaços.
A linguagem é compreendida como um sistema de
representação, isto é, é um dos “meios” pelos quais pensamentos,
idéias e sentimentos, que são do sujeito, são representados
em uma cultura; ela é central para os processos por meio dos
quais é produzido o significado. A construção dos significados,
porém, não está restrita ao campo da palavra, abrangendo
também a imagem, ou seja, a semiótica cultural (Hall, 1997)
entendendo-se que a imagem também é construída e constrói
significados dentro de determinado campo de representações
que pretendem aprisionar nossos sentidos ao propor papéis
a serem vividos e/ou representados. Nesse sentido, pode-se
dizer que o sujeito circula e, com ele, circulam a linguagem e
a cultura. Elas estão em estreita ligação.
Hall, ao analisar a abordagem discursiva, considera os
efeitos e as conseqüências da representação – sua “política”;
não apenas como a linguagem e a representação produzem
significados, mas “como o conhecimento produzido por
determinado discurso liga-se ao poder, regula as condutas,
*
Licenciada em Letras (UFRGS). Mestre em Teoria Literária (PUC-RS). Doutora em Educação (UFRGS), na linha de pesquisa Estudos Culturais em Educação. Coordenadora-Geral de Linha Editorial e Publicações do Inep/MEC.
117
Lia Scholze
forma ou constrói identidades e subjetividades, e define
a forma como são representadas, refletidas, praticadas e
estudadas certas coisas” (Hall, 1997).
Por outro lado, na análise que Foucault faz da sociedade,
o autor identifica diferentes dispositivos de controle e
regulação existentes, entre os quais inclui a escola. Ele chama
a atenção para a tensão que se estabelece entre a busca de
regulação da linguagem pela escola, que pode ser chamada
“tentativa de pedagogização” (ensinar a ler o certo e o errado,
usar as melhores e mais bem aceitas formas de expressão)
e a própria condição da linguagem, que é estar sempre em
constante movimento de incorporação de novas formas de
expressão e de organização.
Nessa perspectiva, a linguagem pode ser vista como
um elemento de reflexão do indivíduo consigo, com o outro
e com a sociedade, funcionando também como ligação entre
esses indivíduos, num processo de intersubjetividade. Essa
capacidade de reflexão pela linguagem produz conhecimento
e, com ele, produz poder, como observou Culler ao refletir
sobre a teoria de poder/saber de Foucault, que ele chama de
“poder/conhecimento”: “poder sob a forma de conhecimento
ou conhecimento como poder. O que pensamos saber sobre o
mundo – o referencial conceitual dentro do qual somos levados
a pensar sobre o mundo – exerce grande poder” (Culler, 1999,
p. 17).
Na sociedade moderna, a escola assumiu para si a
mediação entre a família e a sociedade com a função de
ensinar/transmitir/fazer circular/produzir conhecimentos
(de acordo com as diferentes teorias pedagógicas), e o fez
definindo, para si e para seus membros, regras de conduta e
de moral visando a melhor ajustá-los às necessidades de uma
sociedade produtiva.
A escola moderna constituiu-se como uma imensa
maquinaria, cujos princípios proclamados apontaram cada vez
mais para os ideais do iluminismo, cujas práticas estiveram
sempre mais ou menos ajustadas ao funcionamento do mundo
que estava sendo construído com base nesses ideais. Assim,
ao invés de uma contradição, o que existe é uma articulação
produtiva entre escola e modernidade, participando ativamente
na construção/fabricação do sujeito moderno (assujeitado/
controlado/analisado/confessante) junto com as demais
118
Pela não-pedagogização da leitura e da escrita
instituições. Isso não significa que devamos nos conformar e
simplesmente constatar uma realidade irrevogável.
Entre as práticas que se engendram na fabricação de
determinado tipo de sujeito, podemos incluir as orientações
de leitura praticadas principalmente na escola e na Igreja,
e, de acordo com Culler (1999, p. 18), devemos, com base
nos estudos de Foucault, nos encorajar a examinar como as
práticas discursivas de um período, inclusive a literatura,
podem ter conformado coisas que aceitamos sem discussão.
Isso nos mostra o “quanto os discursos de médicos, cientistas,
romancistas e outros, criam as coisas que afirmam apenas
analisar” (Culler, 1999, p. 22).
Numa perspectiva neoliberal, o consumidor é visto como
um homo manipulabilis, isto é, é alguém que pode e deve ser
levado a se comportar dessa ou daquela maneira. A orientação
para a leitura poderia ser considerada também nessa lógica.
Porém, o que a leitura desenvolve é algo incontrolável –
não governável, que pode levar o nome de imaginação criadora.
Culler afirma que, historicamente, a literatura foi vista como
perigosa: promove o questionamento da autoridade e dos
arranjos sociais. Nessa medida, pode provocar novos arranjos
de escrita, favorecendo a criação de novas soluções para as
histórias a serem narradas. O sujeito – não mais iluminista/
moderno, mas sujeito-consumidor (utilizando a linguagem
do mercado) – ao qual se oferecem infinitos produtos, passa
a ser, por meio da leitura, um cliente mais exigente, com
maior capacidade de discernimento em relação ao efeito de
seu consumo. Sujeito comprador de livros, ou freqüentador
de biblioteca, é um sujeito que escapa à lógica do mercado,
pois o efeito da leitura não é regulável, oferecendo para o
consumidor possibilidades de novos agenciamentos e novos
dispositivos de subjetivação.
Esse esquadrinhamento serve para que se perceba como
essas relações são construídas e prospectar as fissuras, as
linhas de fuga, as brechas para proceder a sua desconstrução
e oportunizar a emergência de novas construções discursivas,
que contenham as histórias de cada um e suas relações com
o coletivo, seus pontos de convergência, suas permanências e
descontinuidades. Essa preocupação é encontrada nos estudos
desenvolvidos por Chartier (2001, p. 64) quando retoma as
idéias de Kant na obra O que é o iluminismo, em relação à
119
Lia Scholze
expectativa em torno da possibilidade de cada um ser capaz
de produzir textos.
Já na sociedade contemporânea, a cultura passa a ter um
papel central na definição da relação do sujeito consigo mesmo,
com seus pares e com o outro. As tentativas de interdição
da linguagem exercida pela escola ajudam a provocar a
constituição de outras formas de expressão, sobretudo entre os
jovens. As anotações nos diários e nas agendas são uma forma
de escrita de si – reflexões sobre si mesmo – e são muito comuns
na adolescência. Esse comportamento demonstra a existência
de possíveis linhas de fuga, de resistência e de frustração dos
projetos que pretendem regular suas vidas e seus corpos. São
essas anotações que ajudarão os/as adolescentes a constituir
suas histórias, que darão a si mesmos um lugar privilegiado.
Na tensão estabelecida com as linguagens reguladas podemos
questionar o escrito e sua relação com o “já dito” – o que é do
social, o que circula na sociedade. Podemos perguntar sobre
o que sobra para o sujeito se tudo já está dito. Qual o espaço
para a criação do novo, para a instauração da singularidade?
Foucault (1984) propõe que sempre há uma
possibilidade de completude – de vir-a-ser. Segundo o autor,
o sujeito está sempre por se fazer e compreende que a relação
com a linguagem é uma relação singular que exige um grau
de intimidade com o próprio processo de sua constituição.
Deve-se compreender que ela se constitui como um processo
interior que vai sendo gestado e que precisa de um tempo e
de condições favoráveis para aflorar. Porém, deve-se também
compreender que o processo de produção pode ser estimulado
por meio de exercícios principalmente com a utilização do
texto literário. A criação (seja em qual campo for e também no
campo da linguagem) precisa de um tempo para a intimidade,
do sujeito consigo mesmo.
A crítica à escola é feita conjuntamente à crítica feita
à pedagogização dos conhecimentos e práticas veiculadas
nela. O domínio prático distingue-se da competência erudita
(ou escolar), a qual, por ter sido adquirida nas situações do
aprendizado escolar – onde a linguagem freqüentemente é
tratada como letra morta, como simples objeto de análise, isto
é, fora de toda a situação prática. Autoras como Marisa Lajolo
(2001) e Josete Jolibert (1994), entre outros/as, demonstram
em seus estudos preocupação em aproximar ao máximo as
120
Pela não-pedagogização da leitura e da escrita
situações de aprendizagens às situações “reais” vividas pelos/
as alunos/as.
Em geral, na escola, a produção do texto se dá de uma só
vez, sem o tempo necessário para a organização das idéias, da
definição do rumo que se vai dar ao escrito, sem a discussão
e a troca com os pares e sem a reescritura, procedimentos
normais nas produções de escritores experientes. Ao estudante
é dado um determinado tempo, é-lhe solicitado determinado
tema e é esperado que produza um texto dentro de um
número determinado de linhas. E esperam-se dele clareza,
concisão, progressão textual, criatividade etc., como se isso
fosse muito simples. Não se trata o texto como resultado de
um processo nem são dadas condições para que esse processo
se estabeleça. Para Preto-Bay, “para que um texto possa ser
escrito e produza o impacto que o autor deseja, o autor precisa,
tanto da habilidade cognitiva para o produzir, de criar para si
mesmo um processo de produção escrita que funcione, como
da prática e experiência com os aspectos sociais e culturais
necessários para adquirir e demonstrar tal conhecimento”
(2005, p. 13).
Respondendo a esse tipo de questão, pensamos que as
oficinas de leitura e escrita, utilizando principalmente textos
narrativos, ajudam o adolescente a desenvolver desenvoltura
de expressão escrita. Contar histórias é da natureza humana, e
a história de si nos ajuda a nos situar no mundo e em relação
a nossos pares.
Dessa forma, estaremos criando possibilidades para
romper com certas práticas desenvolvidas na escola, que se
esforça em interditar as formas espontâneas de linguagem1 e,
também, em regular e controlar os fluxos do conhecimento.
Nessa instituição, é muito comum o/a professor/a assumir o
papel de intermediário/a e é ele/ela quem irá garantir que a
ordem social estabelecida seja mantida. Isso se dá por meio
de mecanismos de controle, aferição e avaliação, garantindo,
assim, a formação dos “futuros” cidadãos, que irão reproduzir
nos locais de trabalho, nas instâncias de poder onde irão
atuar, a manutenção dessa mesma ordem. Aqueles que não
1
Para a Lajolo, “a escola é a instituição que há mais tempo e com maior eficiência vem cumprindo o papel de avalista e de fiadora do que é literatura”
(LAJOLO, 2001, p. 19).
121
Lia Scholze
se adaptarem às exigências não chegarão ao status de cidadão,
pois esse status é fornecido junto com o diploma e aprovação
concedidos pela escola. A escola assumiu, assim, a condição de
mediadora, rito de passagem necessário e eficaz da sociedade
moderna.
Na pós-modernidade, porém, o papel de mediadora de
conhecimentos e valores vem sendo ocupado cada vez mais
pela mass media. Outros são os agentes que ditam as condutas
e os valores: a TV2 em especial, as revistas e as propagandas. E
o texto também não tem mais como único suporte as páginas
do livro e “vai pegando caronas e se derramando para fora dos
livros, manifestando-se em textos reproduzidos pelas mais
diferentes tecnologias” (Lajolo, 2001, p. 116). O suporte não
é mais unicamente o papel, e o formato não é unicamente o
códex, como é conhecido na nossa sociedade.3 Porém, uma
questão mostra-se duradoura na modernidade ocidental: tratase do papel que a escrita ocupou e ocupa na manutenção e
alteração dos comportamentos da sociedade, ajudando a
manter ou legitimar novos valores, comportamentos e relações,
dando condições de pertencimento ou mantendo diferentes
graus de exclusão social.
Aqueles/as que detêm a competência da leitura e da
escrita poderão mais facilmente circular numa sociedade
letrada, participando mais ativamente na produção dos
considerados “bens culturais”.
Pode-se dizer que, nas aulas de leitura e escrita, os/as
alunos/as aprendem mais do que o domínio dos códigos de
textualização. Aprendem também a construir identidades a
partir das representações de ser humano e de mundo presentes
nos textos que lêem. Aprendem também, nas leituras e nas
interpretações que são feitas, a ocupar um determinado lugar
2
3
Ver Rosa Maria Bueno Fischer, cujas pesquisas sobre o assunto enfocam a
influência da TV no comportamento público: FISCHER, Rosa Maria Bueno.
O estatuto pedagógico da mídia: questões de análise. Educação & Realidade,
Porto Alegre: UFRGS, v. 1, n. 1, 1976; ____, Televisão & educação. Fruir e
pensar a TV. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
Chartier desenvolveu pesquisas que nos mostram a evolução dos suportes
da escrita e com ela os habitus das sociedades, assim como o valor dado à
escrita, acompanhada de rituais de uso, permissões e interdições que irão
sofrer alterações ao longo da história da humanidade. Ver CHARTIER, Roger.
A ordem dos livros. Brasília: UnB, 2. ed., 1999; Cultura escrita, literatura
e história. Porto Alegre: Artemed. 2001; Os desafios da escrita, São Paulo:
Unesp, 2002; A aventura do livro do leitor ao navegador, São Paulo: Unesp,
1999.
122
Pela não-pedagogização da leitura e da escrita
e reproduzem esses aprendizados nos textos que constroem,
pois aprendem a desenvolver os mecanismos necessários
para serem aceitos e aprovados. Aprendem a responder aos
questionários de maneira “correta”; aprendem as escolhas
semânticas, lexicais e sintáticas permitidas. Aprendem a
abolir a linguagem local, as gírias, os conceitos de si e de
mundo para incorporar aqueles que circulam como permitidos
e estimulados, que tendem a estabelecer verdades comuns e
a abolir as singularidades. Aprendem a copiar modelos de
conduta e de expressões discursivas e a assimilar determinados
conceitos e formas de manifestação. E esses aprendizados vão
ajudando a constituir suas identidades.
Portanto, a identidade não é uma coisa com a qual
nascemos, mas é formada no interior da representação
colocada por meio de determinados significados. Segundo
Hall, “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um
‘eu’ coerente [...] a identidade plenamente unificada, completa,
segura e coerente é uma fantasia” (2002, p. 13). A identidade
do/a jovem aluno/a será diferente de acordo com os espaços e
os momentos, como, por exemplo, na danceteria, no momento
de descontração no pátio da escola durante o recreio, no
momento de convívio familiar, permitindo o estranhamento
diante de atitudes que, por vezes, surpreendem professores /as
desavisados/as, que pretendem “conhecer” muito bem seus/
suas alunos/as.
Ao conviver com o trabalho desenvolvido em oficinas de
leitura ou de produção textual encontramos a busca de outras
possibilidades de trabalhar com a linguagem na perspectiva
da experimentação. Nelas, o oficinando é estimulado a
desenvolver suas habilidades sem a preocupação com a nota
ou a correção por parte do professor. Nesse espaço, a correção
do texto é substituída pela aceitação de criação de algo novo,
inusitado. A diferença entre o texto escolar e o texto produzido
em oficina tem a ver com as diferenças entre os dispositivos
nos quais foram construídos, e me animo a dizer que eles
exemplificam a afirmação de que diferentes dispositivos
produzem diferentes singularidades. O texto escolar, em geral,
é mais previsível, atende ao lugar-comum, é mais cheio de
clichês, ainda que sempre haja um jeito de desobedecer ao
script recebido e, a partir dele, improvisar e provocar rupturas
maiores ou menores.
123
Lia Scholze
A instituição escolar é sempre muito cuidadosa na
manutenção do status quo e muito cautelosa em relação a
eventuais propostas de mudança. A metodologia utilizada
na oficina, por sua vez, permite um espaço privilegiado de
criação e de expressão das singularidades, muitas vezes
não encontrado no espaço escolar, pois os objetivos nesses
diferentes espaços são diversos entre si. Considero possível
propor novas práticas educacionais, como aquelas que estão
se dando fora da escola (as oficinas de escrita proliferam e
mostram resultados) e que estão operando no sentido de
produzir novas subjetividades, tornando o trabalho com a
linguagem na escola mais eficiente; criando mecanismos de
ampliação para os textos, tornando-os mais eficientes, mais
criativos, mais significativos para o aluno.
Insisto na idéia de que certas práticas pedagógicas
são produtivas de um certo tipo de sujeito – de acordo com
determinado projeto. Poderíamos dizer, então, que a escola
moderna engendrou o homem moderno, ou seja, o sujeito
submetido a práticas disciplinares que domesticam os corpos
e as mentes, dentro de um determinado projeto de sociedade.
Permito-me, porém, imaginar a reflexão sobre a estética da
existência, como é encontrada em Foucault, Arendt, Ortega,
Heidegger, numa volta do sujeito sobre si mesmo. Para isso
precisamos nos perguntar: O que é voltar-se para si hoje? A
escola pode auxiliar a construir novas formas de reflexão e
produção de si numa perspectiva de uma nova estética?
Ao conceito de “biopoder” que contém a pergunta
de Foucault “como é que nos constituímos sujeitos de
determinadas verdades” e estabelece a discussão sobre a
produção do sujeito e a subjetivação, eu gostaria de acrescentar:
Quais discursos circulam na sociedade? Quais discursos são
capazes de nos constituir como sujeitos singulares? Ou os
discursos que circulam produzem efeito uniformizante, que
nos quer iguais a todos, uma vez que são veiculados nos meios
de comunicação que atingem a maioria da população, ainda
que as audiências sejam diferenciadas. O singular de cada um
acaba sendo um projeto de uniformização da linguagem, dos
gestos, dos gostos, dos desejos.
Ao afirmarmos que a escola não contempla a singularidade
e, em conseqüência, não pressupõe a pluralidade, podemos
querer saber como as relações se deram desse jeito. Este como está
124
Pela não-pedagogização da leitura e da escrita
dentro da linha de preocupação de Foucault (1996), na análise
que ele chama de “antropológica”, visando analisar o conjunto
de práticas instituídas no universo escolar e que dispensa à
linguagem usada um cuidado extremo, pela escolha criteriosa
dos termos, do estímulo à fala (confissão, principalmente das
faltas cometidas) e do silenciamento imposto pela organização
disciplinar instituída pelos regulamentos de horário, permissão
de circulação, de interdição de espaços a serem ocupados,
entre outros. Para o autor, o próprio discurso constrói. É
uma forma muito mais sofisticada de exercer o poder –
que pode ser muito mais eficaz.
Este voltar-se para si mesmo é um exercício que faz
parte das tecnologias do eu, na perspectiva de positivar as
minhas relações comigo mesmo. E a escola pode criar essa
possibilidade e pode assumi-la como tarefa sua, por meio
de uma nova postura em relação ao ensino da língua e da
literatura. O que os alunos querem é ser produtivos, pois
isso é da natureza humana. Criadas as condições para a sua
produção, seremos surpreendidos pelas crianças e pelos
adolescentes, que esperam por esses desafios e nos darão
respostas consideradas inesperadas por aqueles que não
costumam escutá-los. Devemos, como propõe Geraldi (1995),
devolver a palavra ao aluno e teremos uma significativa e
positiva alteração nos resultados.
Referências
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. 2. ed., Brasília: UnB,
1999.
_______. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo:
Unesp, 1999.
_______. Cultura escrita, literatura e história. Porto Alegre:
Artemed, 2001.
_______. Os desafios da escrita, São Paulo: Unesp, 2002.
CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. São
Paulo: Beca, 1999.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. O estatuto pedagógico da mídia:
questões de análise. Educação & Realidade, Porto Alegre:
UFRGS, v. 1, n. 1, 1976.
_______. Televisão & educação. Fruir e pensar a TV. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001.
125
Lia Scholze
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia
das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
_______. Entretien avec Michel Foucault. In: _______. Dits et écrits.
Paris: Gallimard, 1994. v. IV, p. 41-95.
GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo:
Martins Fontes, 1995.
HALL, Stuart. The work of representation. In: HALL, Stuart
(Org.). Representation: cultural representations and signying
pratices. London/Thouzand/OETS/Um Delhi: Sage/Open
University, 1997.
_______. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções
de nosso tempo. Educação e Realidade, Porto Alegre: UFRGS,
n. 2, v. 22, jul./dez p. 15-46, 1997.
_______. A identidade cultural na pós-modernidade. 7. ed. Rio
de Janeiro: DP&A, 1998, 2002.
JOLIBERT, Josette. Formando crianças produtoras de textos. v.
2. Porto Alegre (RS): Artmed, 1994.
LAJOLO, Marisa. Literatura: leitores e leitura. São Paulo:
Moderna, 2001.
PRETO-BAY, Ana Maria. Rev. Portuguesa de Pedagogia,
Coimbra. v. 39, n. 1, p. 7-27, 2005.
126
Que linguagem falar na formação
docente de professores de língua?
Ludmila Thomé de Andrade*
Neste artigo, apresentamos uma reflexão sobre a
formação continuada de professores da escola básica que
lidam com a linguagem (alfabetizadores, professores do
ensino fundamental, médio ou outras modalidades). Em
nosso trabalho de pesquisa (Andrade 2004 e 2005), temos
buscado problematizar a delicada posição de formadores na
interlocução com os professores, a partir de uma visão da
formação como interlocução entre agentes que não possuem as
mesmas preocupações. Buscamos identificar em que medida
as intervenções propostas pela formação de profissionais
docentes - tomando como recurso formador o exercício da
escrita docente - poderiam transformar os conhecimentos que
têm a respeito de suas práticas de ensino de leitura e escrita
na escola os professores.
Para nossas conclusões aqui apresentadas, tomamos
por campo de pesquisa um curso universitário de formação
continuada (curso de extensão), oferecido a professores de
escolas públicas responsáveis por séries iniciais, em que se tratou
do conteúdo do ensino da leitura e da escrita. Perguntamo-nos
sobre os necessários ajustes a serem efetuados na relação entre
formadores e formados. Quais serão os diálogos possíveis? As
preocupações de cada um são equivalentes quando se trata da
língua? Quais são as representações que cada um faz do outro,
seu interlocutor? Que caminhos há ainda a ser trilhados para
*
Doutora em Ciências da Educação. Mestra em Lingüística Aplicada pela
Universidade Estadual de Campinas. Responsável pelo LEDUC (Laboratório
de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação) Universidade Federal
do Rio de Janeiro/Faculdade de Educação.
127
Ludmila Thomé de Andrade
a formação docente sobre o ensino da língua? A utilização da
escrita como instrumento de reflexão sobre o professor e pelo
próprio professor apresenta ricas possibilidades para o seu
desenvolvimento profissional. Ela permite uma consonância
com princípios de uma formação docente que consolidem
uma autonomia dos sujeitos professores, compreendidos como
sujeitos ativos diante do conhecimento e transformadores de
sua própria situação profissional.
O lugar da voz docente na formação
No cenário de políticas educacionais, em que se constata
um crescente privilégio dado a ações de formação docente,
implementadas por instâncias como secretarias de educação,
ressaltam-se mais visivelmente as experiências com a formação
continuada, indo assim ao encontro do que as numerosas
pesquisas sobre formação profissional de professores vêm
preconizando como mais adequado. Estas últimas vieram
igualmente aumentando em quantidade e complexidade na
produção do Brasil durante as duas últimas décadas. Neste
contexto de pesquisa e de políticas, tornou-se um consenso a
importância atribuída a se dar a voz aos docentes (neste caso
na posição de discentes). Se a formação docente constitui-se
essencialmente da transmissão de conhecimentos científicos,
é preciso que tal transmissão, para que seja efetiva, não seja
uma via de mão única, mas que seja permeada pela voz
docente, que dá a medida da recepção dos conhecimentos.
Nesta configuração assim desenhada, os saberes
universitários são situados em posição distinta da original,
ganhando outras dimensões. Os conhecimentos produzidos pela
pesquisa, tão legítimos (no sentido bourdieusiano do termo),
transformam-se, ao entrarem neste processo de transposição
didática. Na universidade, produzem-se conhecimentos que
valem muito em qualquer espaço da sociedade. Quando estes
migram para o espaço de qualquer instância da formação
continuada para que possam ter entrada nesta comunicação
formadora passam, porém, necessariamente por um processo
de atravessamento, em que são permeados por outros saberes,
trazidos da escola, pelos professores. Atravessados, eles
não serão mais os mesmos: serão agora furados. Tais furos,
necessários, não são aleatórios, como o de uma bala perdida.
São furos achados, cada um um ponto exato a ser descoberto,
128
Que linguagem falar na formação docente de professores de língua?
resultado de uma busca. A vontade de transmitir a alguém o
seu saber cria uma relação específica com o próprio saber e
com o outro em questão. Há um desejo de se construir este
interlocutor em seus moldes, de influenciá-lo, de argumentar
na direção de fazer com que ele perceba que o conhecimento
transmitido pode lhe alterar a visão de sua prática. Neste
sentido, busca-se a medida exata na comunicação para que se
produza no conhecimento os furos precisos, e preciosos, que
serão constitutivos dos sujeitos na interação em questão.
Em nossa visão adotada sobre a formação, estes
atravessamentos sofridos pelo conhecimento universitário
constituem, neste movimento, mais consistentemente os
formadores do que o faz a própria solidez do saber científico da
pesquisa. Ao dialogarem entre pares em torno do saber sólido
da ciência, falam de igual para igual e seu saber é comunicado
de forma quase monológica. Distintamente, quando este
conhecimento passa a ser um saber da formação, há diálogos.
O conhecimento científico que revela capacidade de migrar
para novos espaços e incorpora em si este tipo de furo ganha
em valor de comunicação, em valor discursivo, marcando-se
como histórico e social, ao se permitir ser dialógico.
Nos momentos em que a voz do professor é autorizada, nas
situações de formação os formadores, que são os que ocupam
a posição de maior poder nesta relação assimétrica, produzem
a democratização do uso de alguns canais, anteriormente
apenas usados por eles mesmos. A autorização do acesso dos
docentes a momentos de expressão discursiva sobre a sua
prática profissional torna-se um elemento fundamental na
produção das condições de produção adequadas para o acesso
aos conhecimentos científicos disciplinares escolhidos como
importantes para a compreensão dos processos de ensino e de
aprendizagem ocorridos na escola pelos alunos. Mas a decisão
de dar a voz cabe ao formador. Os professores passam a ter
o direito à voz, como docentes em formação, na posição de
discentes. A valorização de sua expressão discursiva tornase um dos ingredientes didáticos da formação continuada
docente, mas é importante observar que tal lugar discursivo
está sendo produzido por decisão. Este espaço de produção
de linguagem passará a constituir ingrediente da situação de
formação docente mas dentro de uma relação instaurada por
decisão de um dos interlocutores, aquele que detém o poder
de definir os limites da situação.
129
Ludmila Thomé de Andrade
As posições em jogo na formação
Na formação docente, assim como em qualquer situação
didática, são aqueles que ocupam a posição de maior poder
na assimetria das relações desta interação discursiva que são
autorizados a falar predominantemente e a designar a quem
cabem os turnos de fala. Sendo assim, compreender como se
realiza o princípio de se dar voz aos professores, que passa a
ser seguido, significa passar a observar as posições definidas
dentro desta relação. Na situação em questão, as posições
principais ocupadas pelos sujeitos são:
• professores universitários;
• formadores;
• professores da escola básica;
• alunos.
A posição originalmente ocupada nas práticas sociais
que definem os agentes presentes nesta cena enunciativa
são transformadas, no interior da situação de formação.
Professores universitários tornam-se formadores e professores
da escola básica tornam-se alunos. Universitários serão
professores para ensinar a professores a melhor desempenhar
este papel. Professores tornam-se alunos de modo a poderem
pensar melhor em como seus alunos aprendem na escola.
Perguntamo-nos sobre as alterações discursivas possíveis que
devem se dar em tal espaço assim construído. As mudanças de
posição podem ser resumidas pelos seguintes deslocamentos:
• Professores => alunos
• Pesquisadores => formadores
• Professores de professores na formação inicial (graduação, licenciaturas) => professores de professores em
formação continuada.
Os pesquisadores, ao ocupar a posição de formadores,
não podem produzir o seu discurso tal e qual o enunciam em
situações típicas universitárias, tais como a formação inicial
e a pós-graduação, onde ocorrem momentos de comunicação
entre pares. Como organizarão seu discurso? Não basta
se tomar a decisão e decretar que será permitida a voz dos
docentes no espaço da formação. Cabe ao formador que ocupa
esta nova posição ter claro que seu saber estará deslocado, será
interrogado, desafiado e posto em questão. Como organizar
esta nova fala? Muitos fatores deverão estar implicados
130
Que linguagem falar na formação docente de professores de língua?
nesta mudança discursiva. Deve-se ainda perguntar sobre os
professores: como se expressarão, ao terem a sua voz docente
autorizada?
Para se compreender as novas posições que serão
assumidas e os novos discursos que serão necessariamente
produzidos, é preciso se perguntar como se vêem mutuamente
os interlocutores, pois as representações que fazem um do
outro são impregnadas de suas posições ocupadas sóciohistoricamente. As expectativas mútuas calcam-se sobre
as representações feitas em torno de ações com o saber: Os
formadores esperam que os professores mudem a sua prática?
Formadores e professores esperam que o discurso da formação
aproxime os professores da pesquisa? Os professores acreditam
que os formadores possam lhes ensinar alguma coisa? Quando
vão a uma formação, a atitude dos professores é realmente de
estarem aptos, propícios, sentem-se capazes, de mudar a sua
prática em função dos conhecimentos que possam receber?
Concepção de linguagem e concepção
de formação
Na situação aqui focalizada, tomam a cena comunicativa
os conteúdos sobre a língua, portanto vindos da pesquisa em
Lingüística ou em Literatura, selecionados como importantes
para se pensar o ensino da língua escrita na escola, nos
momentos da alfabetização, da leitura e da produção de
textos. Em relação a outros conhecimentos disciplinares,
o ensino da língua contém uma especificidade que o torna
interessante. A experiência de aprendizagem teórico-reflexiva
sobre o conteúdo da língua dá-se necessariamente dentro
de uma experiência lingüística. Se tomarmos portanto a
própria formação como uma experiência lingüística, será
preciso considerar que seus modos de realização discursiva
não deveriam ser contraditórios com o que é apresentado
como conteúdo. Se assumimos uma concepção de linguagem
bakhtiniana, na qual os interlocutores constituem-se
mutuamente nos próprios atos enunciativos, em que as
palavras devem ser tomadas como gestos significativos de ação
entre interlocutores, então podemos situar a formação docente
como um diálogo, no qual os saberes são comunicados entre
interlocutores que ocupam posições sócio-históricas distintas,
hierarquizadas assimetricamente. Desejando aproximar,
131
Ludmila Thomé de Andrade
espelhar e mesmo fazer se fundir completamente uma tal
concepção de linguagem e uma concepção de formação
que se quer defender, desenvolver e preconizar, deveríamos
nos perguntar: se o dialogismo da linguagem contribui para
uma concepção da formação, que discursos se produzem
especificamente nas interlocuções acontecidas no dialogismo
da linguagem da formação?
Bakhtin, em sua obra, critica as idéias instauradas no
campo de estudos da linguagem (a Lingüística saussureana),
que se permitem conceber a linguagem sem considerarem
a palavra em seus usos, imersa em situações concretas de
enunciação. A palavra é para Bakhtin por excelência um
signo ideológico, expressão das relações hierarquizadas
entre indivíduos vivendo em diferentes espaços sociais
e institucionais e o discurso se tece de fios ideológicos,
originários de fontes heterogêneas dentro do espaço social.
Cada palavra utilizada nas interações é sempre palavra alheia,
de interlocuções anteriores vividas por cada locutor, que traz
para a interlocução esta experiência marcada por relações
sociais. Ora, na formação, os interlocutores em questão são
o formador e os professores-alunos. Estas identidades sociais
em interação são portanto a fonte de compreensão para se
entender esta ato comunicativo específico.
Uma reflexão sobre qualquer formação implica
essencialmente em tomar por objeto as possibilidades de
transformação a se operar nos conhecimentos prévios de
formadores e de alunos (professores, em nosso caso em
tela). Entretanto, ainda anteriormente a esta reflexão sobre
tais transformações, pode ser interessante considerar as
representações que estes interlocutores fazem sobre os
conhecimentos trazidos por seus parceiros nesta situação
comunicacional, especificamente no que diz respeito a
seus saberes. Vejamos como os professores representam
o conhecimento dos formadores e como os formadores
representam o saber dos professores.
Representações mútuas de saberes e
de conhecimentos
É a partir de idéias sobre o saber universitário presentes
no horizonte profissional docente que os professores-alunos
representam os formadores-professores. Tais representações
132
Que linguagem falar na formação docente de professores de língua?
construíram-se a partir da própria atuação recente da
universidade em políticas de formação. Para ilustrar como se
podem formar estas idéias a respeito da universidade, podemos
citar um caso recente de intensivo esforço de difusão de
conhecimentos da pesquisa no campo da formação. Trata-se das
pesquisas sobre o modelo de aprendizagem do construtivismo
piagetiano, que tiveram um importante efeito na formação
docente durante os anos 80, especialmente no que diz respeito
à alfabetização.
Os efeitos na prática pedagógica que um modelo
psicológico de desenvolvimento cognitivo da criança possa
ter devem ser considerados em função dos modos como
sua difusão ocorreu. No caso da difusão do construtivismo
ferrereano, os professores à época formados por este novo
modelo de aprendizagem viram-se colocados em situação de
depauperamento epistemológico. Lembram-se claramente do
discurso da inovação sendo apresentado como o que vinha
substituir as práticas conhecidas, rotuladas de tradicionais. Este
é apenas um exemplo ilustrativo de como fulcram-se lugares
discursivos com toda especificidade. Os modos como são
implementadas as políticas de formação docente permitem que
se constituam certas posições discursivas, dentro de espaços
de interlocução. Tais lugares, ao serem efetivamente ocupados,
ao terem sido realmente vividos em experiências de formação,
geram processos individuais de aprendizagem.
As experiências dos sujeitos formadores ou em formação
profissional inscrevem-se historicamente na política educacional
brasileira levada à frente há quase duas décadas e meia, desde
que se iniciaram as ações no período chamado de transição
democrática e em que as secretarias de educação iniciaram a
solicitação de colaboração da universidade. Discursos vieram
se moldando e se modulando, no contexto das políticas
federal, estaduais e municipais, das quais a universidade veio
também ganhando seu lugar de interlocutora. Dessa forma, a
legitimidade do saber universitário que, como já dissemos, é
reconhecida socialmente, veio ganhando sentidos específicos e
assim marcando-se historicamente, no contexto brasileiro.
Em cada contexto nacional, os acontecimentos de difusão
de conhecimentos científicos vão ganhando significados
contextuais na formação. Os significados que ganhou o
construtivismo nas práticas alfabetizadoras no Brasil não
equivalem àqueles que ganhou na França, por exemplo. Se
133
Ludmila Thomé de Andrade
houvesse a oportunidade de verificar os significados que a
mesma teoria descritiva adquiriu nas salas de aula francesas
e brasileiras, por exemplo, não encontraríamos os mesmos
procedimentos didáticos. Quando os professores brasileiros
sentem-se realizando ações construtivistas, não procedem
da mesma maneira que os professores franceses sentindo-se
imbuídos dos mesmos princípios epistemológicos. Entretanto,
poderíamos supor que do ponto de vista da pesquisa a teoria de
Emilia Ferrero permanece inalterada e que pares pesquisadores
possam dialogar sobre ela, considerando-a como em seu
estado puro original, científico, sem se ater às apropriações
contextuais.
As considerações acima visam compreender que há
representações sobre o conhecimento universitário que
surpreendem os moldes propriamente universitários. A
trajetória dos saberes na transposição didática não se limita ao
que a universidade pode planejar, intencionalmente. E apenas
importa-nos abordar tais representações do que pode significar
a difusão do conhecimento de pesquisa feitas por docentes da
escola básica porque esta difusão deixa marcas nos sujeitos a
formar.
Do lado dos formadores, torna-se hoje uma responsabilidade
incontornável a explicitação sobre a concepção de formação
adotada, pois além do percurso histórico recente em que
ocupou a posição de interlocutora, difundindo conhecimentos
disciplinares junto a docentes da escola básica, a universidade
também tem produzido paralelamente um meta-discurso de
pesquisa sobre a formação, refletindo sobre estas modulações
possíveis, sobre a própria formação. Vivemos um movimento
fértil de pesquisas feitas sobre o professor, sobre os conhecimentos
a serem transmitidos, sobre a própria universidade. Torna-se
portanto incontornável, em qualquer ação de formação docente,
a explicitação dos modos de representar o saber do professor.
Estes acabam por revelarse, apresentando-se tacitamente no
discurso do formador, nas suas formas discursivas adotadas
que tomam em consideração seu interlocutor, pois no discurso
da formação planejado e organizado pelo formador, seus
conhecimentos (universitários) e os saberes (docentes) dos
professores são confrontados uns em relação aos outros, e
assim medidos em sua eficácia nos momentos de atualização
enunciativa da formação.
134
Que linguagem falar na formação docente de professores de língua?
A efetiva formação acontece no eixo de tensão entre os
conhecimentos da pesquisa a serem transmitidos e os saberes
da prática pedagógica a serem expressos pela voz do professor.
Neste sentido, ainda se torna pertinente retomar o conceito de
saber docente, cunhado por Maurice Tardif. Ele permitiria que
o universitário se perguntasse: O que sabe o mestre, aquele
que ensina? O que este faz com o saber disciplinar? É na
figura do professor da escola básica, realizador de suas ações
pedagógicas, que o saber disciplinar, proposto pela pesquisa, se
mescla, fundindo-se a outros saberes, tão importantes quanto
neste contexto. Tardif desdobra o saber docente em categorias,
que permitem relativizar a importância do conhecimento
disciplinar, científico, em relação ao conteúdo a ser ensinado
calcado conformemente no que a pesquisa propõe. Ele define as
categorias de saber presentes para o professor no desempenho
de suas funções docentes efetivas:
• saber curricular;
• saber profissional (da formação);
• saber disciplinar;
• saber da experiência.
Tais saberes docentes não são nunca objetivados. Eles
permitem ao professor conduzir as situações de interação,
funcionando como princípios pragmáticos, mas constituem
saberes na prática, da prática, e funcionam em plena realização
das ações pedagógicas, sem chegar a existir como forma de
conhecimento apresentada de modo materializado, organizada
discursivamente. Tal e qual ocorre com a linguagem oral,
eles existem sem a normatização pautada numa descrição
científica.
Como a formação na figura do formador lidará com
estes saberes inconscientes dos professores? Se o saber da
prática não é normalmente explicitado e se a formação tem
buscado mesclar o discurso universitário à voz do professor,
nesta interlocução, parece que chegamos a poder afirmar que
a formação continuada deveria poder vir a ser exatamente o
momento de explicitar, de trazer à tona, o que já está lá, porém
sem palavras. Após ter identificado as representações mútuas
destes interlocutores, passamos agora às razões de cada um.
Como lidam formadores com a formação de professores? Como
lidam os professores com esta mesma (seria esta equivalente?)
formação?
135
Ludmila Thomé de Andrade
Posições de cada um dos enunciadores
Como universitários, diante da tarefa da formação, frente
a frente com os professores que querem atualizar seus saberes,
podemos optar por permanecer ancorados na legitimidade
dos nossos saberes acadêmicos, nos quais cremos piamente,
pois somos feitos dele, somos dele produtores, somos dele
reprodutores e produtores. Com a segurança da âncora, o
barco circula num raio de limite determinado e chega até
outras praias, um pouco mais longe do porto original, chega
até à escola, onde encontra o professor.
Outro modo de se relacionar com a mesma tarefa pode
ser ilustrado pela metáfora da exploração de outras terras, pois
pode-se considerar que estar ancorado não permitirá chegar
bem próximo do professor e então se decidir levantar a âncora
e partir para visitar a ilha docente. Neste caso, conceberíamos
a formação como uma visita ao espaço próprio ao professor.
Consideraríamos que por este deslocamento de posição
discursiva, em que formadores escutam o que têm a dizer os
docentes, e não o contrário, ocorre uma experiência interna
para os sujeitos dela participantes, a formação “acontece”. Em
vez de nos ouvir, o professor vai falar do que lhe é conhecido,
mostrar-nos a sua ilha, sua prática escolar, e nos servindo
assim de guia turístico, assume uma voz sobre sua prática e
fortalece-se como autor de um discurso docente enunciado
em um espaço exterior à sala de aula, sobre a sala de aula. Por
este gesto formador de doação da voz, permitindo ao professor
dizer o que não lhe cabe normalmente dizer em seu tempo
e lugar de trabalho, saímos do lugar de quem sempre diz e
concedemos este espaço discursivo ao professor.
Talvez a justa medida não esteja nem tanto ao mar, nem
tanto à terra. Vejamos o lado dos professores, como concebem
o olhar deste turista a sua ilha.
Entre representações ressignificadas e
experiências de aprendizagem cotidianas
Em nossa recente experiência de formadores
universitários atuando junto a professores de séries iniciais de
escolas públicas da zona sul do Rio de Janeiro, temos seguido
o princípio de dar voz aos nossos alunos-professores. Como
pesquisadores, temos podido acompanhar de perto a prática
136
Que linguagem falar na formação docente de professores de língua?
formadora que propomos e assim temos buscado analisar a
voz docente que tem emergido durante o curso, bem como
a medida da autoria dos sujeitos nesta voz. A voz docente
está presente tanto nos momentos presenciais, nas aulas, em
que temos buscado ajustar os procedimentos didáticos a uma
sintonia menos universitária, mais próxima do que passamos
a considerar um produtivo burburinho reflexivo, em que
constatamos modos específicos dos docentes receberem as
informações. Em situações de formação, palestras, seminários,
oficinas e em nosso caso específico aulas, uma evidente
observação é a de que o docente se permite pensar alto e
conversar com seu par ao mesmo tempo em que o formador
fala. Inicialmente, produziu-se em nós um estranhamento
quanto a este comportamento mas, analisando-o com mais
rigor, chegamos à conclusão que se trata de um comportamento
específico, muito diferente do universitário, porém muito
produtivo, pois trata-se de um espelhamento imediato, revela
uma compreensão ativa, uma releitura do que está sendo
apresentado em voz alta, e não leitura silenciosa, como seria a
atitude leitora típica de universitários.
Além desta oralidade autorizada durante as aulas
presenciais, nossas ações formativas propostas enfatizam
também a produção textual escrita dos professores como
um meio de construir a visibilidade da voz docente. Os
modos escolhidos pelos formadores de solicitação aos
professores que produzam textos escritos foram analisados
por nós como fundamentais para que compreendêssemos
este produto. Ao ler o que escreviam, em resposta ao que
havia sido solicitado por nós como tarefa de avaliação da
recepção dos conteúdos da formação, relíamos a qualidade de
nossa consigna pois, freqüentemente, identificávamos vários
tipos de estranhamentos, causados pela quebra de alguma
expectativa universitária. Eles escreviam como docentes
e nós não (re)conhecíamos esta escrita. Neste vaivém entre
formadores e docentes, em que informações acadêmicoconceituais-universitárias são apresentadas, textos escritos
são solicitados e produzem-se escritas tipicamente docentes.
Tais acontecimentos têm nos instigado a produzir nós também
textos reflexivos sobre estes estranhamentos, o que temos
podido fazer dentro do próprio tempo da interlocução. Nestes
registros escritos (relatos das observações das aulas dos cursos,
registros de nossas reflexões e atas de nossas discussões),
137
3
Grifo meu.
Ludmila Thomé de Andrade
temos buscado compreender os sujeitos professores como
nossos interlocutores, que através de oralidade e escrita
expressam os moldes em que deve se dar uma formação. Em
seguida, mostraremos alguns aspectos desta reflexão sobre o
sujeito professor.
Em relatos de memórias de sua infância, por exemplo,
em que focalizam a sua relação com a linguagem escrita, os
retratos que traça o professor de si como criança permitem
ressignificar as ações pedagógicas a que foi submetido. Pode-se
observar nos relatos seu olhar docente crítico sobre as práticas
pedagógicas escolares e sobre os processos de aprendizagem
infantis de sua época. Ressalta-se desta observação com muita
evidência sua subjetividade, pois fica claro nestes textos o
seu olhar de professor. Ao se desenhar como personagem, ele
revela perceber a dimensão do aluno que sofreu a experiência
e apresenta esta última como um retrato de sua experiência
daquele momento. Simultaneamente, apresenta a sua posição
de autor, daquele que constrói através deste flash de memória
uma crítica, a partir de um posicionamento do atual professor
que é. Vejamos dois exemplos:
Estudei numa escola próxima a minha casa chamada N. Acho
que tinha quatro anos. Lembro-me que a professora contava
histórias e as crianças desenhavam, utilizavam a pintura
com guache, brincavam com massinha. Havia cantinhos com
brinquedos na sala, jogos para construção, cantinho de boneca,
aula de música. (...) Lá havia apresentação no auditório onde as
crianças tinham que recitar versinhos e dramatizar para os pais
(eu odiava), ficava nervosa, esquecia a fala ou repetia o texto
sem entender, feito um papagaio. (...) (Professora-aluna de um
curso de formação continuada na universidade) [grifos nossos]
Fiz todo jardim de infância em um colégio pequeno e
aconchegante, no bairro em que meus avós moravam. Lá
aprendi a escrever o nome, alguns numerais e essas coisas que
eram exigidas na década de 70. (Professora-aluna de um curso
de formação continuada na universidade) [grifos nossos].
Vemos se destacar destes dois trechos um olhar crítico
sobre o que é descrito. Na vivência descrita pelos professores,
além da evidente emoção provocada pela descrição bruta de
trechos de sua memória, há um caráter argumentativo, de
defesa ou crítica ao que foi feito com esta. Um olhar docente
tal como este foi encontrado em quase todas as escritas de
memórias, revelando o sujeito professor.
Este aluno-professor-formado que se revela um sujeito
ativo e reflexivo, permite pensar o quão se torna fundamental
que nós formadores nos perguntemos quem é nosso aluno,
138
Que linguagem falar na formação docente de professores de língua?
o professor, quando recebe, no espaço da formação, as
informações por nós selecionadas para lhe formar. Este
sujeito ativo, parte de que pressupostos para ali estar? Sua
atividade discente, de aprendizagem, se constitui de que
elementos? Ora, o professor é um profissional que convive
cotidianamente com a dinamicidade das transformações
que se operam pelas aprendizagens de seus alunos. O ofício
docente tem por principal tarefa a constante busca de formas
novas alternativas e inovadoras para que a aprendizagem se
dê. O foco na aprendizagem é sua principal preocupação, o
que faz com que sua profissão tenha por especificidade a
intimidade com os processos discentes diante do objeto de
conhecimento. Dentre todos os profissionais, pode-se talvez
considerar que ele seja dos mais aptos à formação, a estar
aberto à busca do novo, para ser transformador. Pode-se
considerar que ele possa fazer a ponte, espelhando-se no que
deseja que ocorra para seu aluno focalize-se a si mesmo, e se
pense para poder aprender. Teríamos aí a rica possibilidade
de uma formação ativa, do lado discente, supondo que por
pensar constantemente a aprendizagem de seus alunos, ele
está mais próximo de se inscrever ele mesmo em sua trajetória
de aprendizagem.
É desta particularidade que devemos tirar modelos
de formação. Se temos percebido que o professor gosta de
se sentir visitado, em formação, que gosta de falar de sua
prática, que há efetivamente esta sua necessidade de falar,
devemos considerar e conjecturar sobre os porquês. Parecenos que sua atitude espontânea tem sido a de ao sentir que os
conhecimentos desembarcaram-lhe, foram entregues em sua
ilha, ele começa imediatamente a desembrulhá-los e arrumálos nas prateleiras que já possui, de sua casa (ilha) escola(r).
Os conhecimentos então caem sob o crivo de seu olhar de
sujeito ativo singularmente marcado pela profissão. E é este
conhecimento assim olhado que deveríamos considerar.
Nosso olhar sobre os conhecimentos científicos não
pode ser cruamente o olhar universitário. Ele deve receber
uma camada do olhar que somente pode ser do professor.
Os caminhos pela formação universitária
Nos movimentos docentes relacionados a sua aprendizagem em formação, temos podido observar dois perfis:
139
Ludmila Thomé de Andrade
• atitude de diálogo com os saberes universitários.
Vemos então alguns embates, questionamentos e
desafios. Cada conhecimento disciplinar sobre a
língua que é apresentado é imediatamente passado
pelo crivo da prática docente;
• a procura pela pesquisa, a identificação imediata com
o saber universitário, a decisão de se inscrever ou
se preparar para um mestrado ou um curso de pósgraduação lato sensu.
É preciso notar que na segunda atitude acima descrita,
o que ocorre é a saída dos professores de sua posição docente,
em direção a outra posição, a de pesquisadores. Ora, ela
não está em coerência com o que foi identificado como
movimento espontâneo dos docentes em busca autônoma
do conhecimento. Tampouco seria coerente com a formação
continuada planejada de acordo com os princípios descritos
ter por resultado a migração de professores para outro campo.
Seria objetivo da formação dar visibilidade aos embates
resultantes de constrastes entre modos de conceber os objetos
de conhecimento, para tomá-los como efetivos desafios e haver
como sua resposta a proposição de saídas para as dificuldades,
a provocação de novas reflexões sobre a prática docente.
Dentre os eixos universitários de modalidades de
trabalho, isto é, os da pesquisa, do ensino ou da extensão, ao
caso da formação continuada, o último dos três revela-se como
mais ajustadamente adaptado. A pesquisa funciona como
fonte de conhecimentos disciplinares, no ensino (profissional
no caso) os conhecimentos da pesquisa são didatizados e é
finalmente na extensão que se criam os desafios da utilização,
da funcionalidade, da aplicação possível dos conhecimentos
do primeiro eixo.
Vemos assim se equacionarem de forma harmônica as
três dimensões aqui analisadas:
Formação Docente
Continuada
140
Concepção
Dialógica de Linguagem
Extensão
Universitária
Que linguagem falar na formação docente de professores de língua?
Conclusões sobre o letramento
profissional docente
O que pudemos concluir a partir das reflexões acima
expostas relativas ao processo instaurado no contexto de
interlocução do curso de extensão de formação continuada é
que as experiências docentes relacionadas à leitura e à escrita
podem ser valorizadas no espaço da formação, e isto pode
se dar de duas formas, ambas potencialmente produtivas.
Primeiramente, como conteúdo a ser refletido, através de
um trabalho didático focalizado na construção conceitual
dos processos de leitura e de escrita a serem instaurados na
escola. Trata-se de um trabalho de aprendizagem sobre a
linguagem. Em segundo lugar, como forma, nos momentos em
que os formadores solicitam textos a seus alunos-professores,
o trabalho a leitura e a escrita podem ser constantemente
revistos numa interlocução entre produtores-autores de texto
e formadores-leitores, em que cabe a estes últimos devolver
as observações-impressões de leitura destes textos aos seus
autores. Este eixo de ação didática centra-se na linguagem
como trabalho. O trabalho de formação inclui, simultânea e
imbricadamente à apresentação de conteúdos teóricos, a ação
constante de ler os textos dos professores-alunos e muito
provavelmente surpreender-se com eles, avaliando as surpresas
sempre na medida de poder devolver estas impressões e
programar junto com o autor dos textos intervenções sobre a
sua primeira produção.
Através da leitura dos textos produzidos, vimos aparecer
práticas familiares e escolares de leitura, histórias individuais
de leitores, registradas nos textos em que focalizaram suas
próprias memórias. Vimos professores escrevendo como
professores e decepcionando a expectativa dos formadores,
num primeiro momento. Vimos também a oportunidade de
aprimorarem sua experiência como produtores-autores de
textos. A explicitação de sua relação com a linguagem, sua
posterior abordagem e resgate, tornaram-se ferramentas
práticas de reflexão-formação. A fórmula aqui testada e
proposta como eficaz pode se resumir pela equação de que em
se usando a ferramenta da linguagem, a experiência do uso
permite que se compreenda melhor sobre a linguagem e assim
fertiliza-se o campo de compreensão da linguagem enquanto
141
Ludmila Thomé de Andrade
conceito. Somente a partir de uma compreensão efetivamente
conceitual que é resultado da experiência poder-se-á esperar
que os professores passem a considerar a escrita e leitura de
seus alunos como linguagem efetiva, constitutiva de sujeitos.
Consideramos que tais procedimentos planejados para a
formação docente permitem-nos pensar numa construção de
trajetórias de letramento docente. Se queremos formar alunos
leitores na escola básica, é preciso considerar processos
possíveis para os professores se verem antes como produtores
de linguagem: leitores, escritores, escribas, autores, revisores
e tantas outras posições possíveis. Concordamos com Cecília
Goulart (ao se referir a alunos) é ter em vista que:
A formação destes sujeitos estaria intimamente relacionada
à construção da autoria e da cidadania, na medida em que
associamos estas condições à condição letrada, isto é, à
inclusão e participação efetivas dos sujeitos no tecido social que
se constitui com apropriação da chamada variedade padrão da
língua e da linguagem escrita. Nesta perspectiva, sugerimos a
noção de letramento como horizonte ético-político para a ação
pedagógica nos espaços educativos. (GOULART, 2005:3)
Trabalhar os conhecimentos sobre a linguagem no
âmbito da formação de professores de língua na dimensão
do letramento docente permite portanto pressupor que se
pode partir de fios ideológicos constitutivos da identidade do
docente brasileiro, no contexto histórico e político educacional
em que vivem seu cotidiano escolar. Dar acesso a esta voz e
em seguida dar-lhe escuta, para dar visibilidade a estes fios.
É neste cenário assim tecido que se inscreve a formação a ser
planejada pelos formadores, para que esta venha a se constituir
como acontecimento enunciativo.
Referências
ANDRADE “Escrita, leitura e literatura na escola: professores
em formação” Projeto de Pesquisa inscrito no Sigma/UFRJ,
2006.
ANDRADE Professores leitores e sua formação Belo Horizonte:
Autêntica, 2004.
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem São Paulo:
Hucitec, 1992.
GOULART, Cecília “Letramento e modos de ser letrado:
discutindo a base teórico-metodológica do estudo” trabalho
apresentado na Anped, 2005.
142
Que linguagem falar na formação docente de professores de língua?
KLEIMAN, A. (org.) “Letramento e formação do professor: quais
as práticas e exigências no local de trabalho?” in KLEIMAN, A.
(org.) A formação do professor – perspectivas da lingüística
aplicada Campinas, SP: Mercado de Letras 2001.
SIGNORINI, I. “A interação universitário/alfabetizador em
programas de formação em serviço: ação entre díspares ou
comunicação entre pares?” in Kleiman, A. e Signorini, I. (orgs.)
O ensino e a formação do professor Porto Alegre, Artmed,
2000.
TARDIF, M. et allii. “Os professores face ao saber; esboço de
uma problemática do saber docente”. Teoria & Educação, n. 4,
p. 215-234, 1991.
143
Para ler a narrativa literária
Márcia Helena Saldanha Barbosa*
Ao longo de sua existência, nas experiências cotidianas,
inúmeras são as situações em que o ser humano assume
a condição de narrador, para contar a outra(s) pessoa(s)
uma história que vivenciou, como protagonista ou como
personagem secundária, ou, ainda, um fato que lhe foi
relatado por terceiros. E, uma vez na posição de narrador, o
sujeito confere às ações uma determinada ordem, interligandoas, além de localizá-las no tempo, no espaço, e de apresentar
as personagens envolvidas na história, mostrando a trama que
entre elas se estabelece.
O modo como lida com todos esses elementos, por
um lado, revela o distanciamento, ou não, e a perspectiva
daquele que narra em relação aos fatos relatados; por outro
lado, permite entrever o(s) interesse(s) do enunciador, no que
se refere ao efeito ou à reação que ele pretende provocar em
seu interlocutor. Esse interesse pode ser, simplesmente, o de
despertar e manter a atenção de quem ouve, ou, então, o de
sensibilizar esse indivíduo, conquistar sua cumplicidade e
convencê-lo a adotar determinada atitude diante do caso que
é narrado.
Quando não é no papel de narrador, lançando mão de
estratégias narrativas, é no de ouvinte, procurando decifrar
tais estratégias, que as pessoas participam desse jogo. Em
geral, os indivíduos, em seu dia-a-dia, desempenham esses
papéis de forma alternada. Ora, se essa situação é tão familiar
e corriqueira no cotidiano, por que a análise e interpretação
de textos de caráter narrativo, não raro, surgem para os alunos
como um obstáculo, aparentemente, instransponível? O mais
*
Doutora em Teoria da Literatura e professora do Programa de Pós-Graduação
em Letras pela UPF.
145
Márcia Helena Saldanha Barbosa
estranho é que não estão imunes a essa sensação aqueles que,
fora da escola, já se dedicavam, e com satisfação, à leitura da
narrativa literária. Esses, na sala de aula, sentem-se, muitas
vezes, entediados e desapontados, como se houvessem
desaprendido a ler, como se o contato com o texto literário
não pudesse mais proporcionar-lhes qualquer tipo de
prazer ou como se a literatura não fosse aquilo que, um dia,
imaginaram.
Esse afastamento dos alunos em relação à narrativa
literária torna-se compreensível e, até mesmo, previsível,
quando se considera aquilo que, em grande medida,
ainda continua ocorrendo no ambiente escolar. Pensando
particularmente nas obras literárias de caráter narrativo,
convém lembrar que, na sala de aula, de maneira geral, não
são nem ao menos mencionadas as semelhanças existentes
entre a intriga exposta nesses textos e as tramas que, na vida
real, cada um constrói quando, por algum motivo, deseja
contar um fato a alguém. É verdade que, de tão óbvias que
são, essas semelhanças talvez não precisassem sequer ser
explicitadas, se a narrativa literária fosse abordada de forma
tal que permitisse ao aluno intuir a referida proximidade
entre universo ficcional e realidade. Entretanto, em diversas
ocasiões, essa via de acesso ao texto é inviabilizada pela
abordagem de que este é objeto.
Não é exagero afirmar que a trama tão bem urdida
pelo escritor se desfaz aos olhos dos estudantes, quando não
é percebida – ou quando é desprezada – por aqueles que
deveriam exercer a função de mediadores de leitura. Marisa
Lajolo (1993, p. 41-51), ao refletir sobre o uso que a escola
costuma fazer da poesia, explica que a literariedade, presente
na obra em estado latente, depende, para se atualizar, “de
certa interação do texto com cada um de seus leitores”. Faz-se
necessário, conforme a ensaísta, que “a leitura se configure
como literária para o leitor”. Assim, tendo em vista os prérequisitos destacados por Lajolo para que a leitura de poesia se
torne, de fato, uma “experiência poética”, é possível considerar
que a percepção e o reconhecimento dos elementos peculiares
à narrativa literária são imprescindíveis para que esta seja lida
como tal.1
1
Para uma visão panorâmica acerca dos elementos que compõem a narrativa
literária, consultar REIS (1995).
146
Para ler a narrativa literária
Se em sala de aula, raramente, esse tipo de leitura tem
lugar, é porque os alunos, com freqüência, são instruídos a
classificar o(s) narrador(es) e as personagens, a identificar
o tempo e o espaço da ação, a dividir o texto em unidades
seqüenciais, observando, de forma isolada, cada um desses
aspectos. Desse modo, a trama se desmancha, se desestrutura.
Perde-se de vista que, na narrativa literária, não há apenas
um encadeamento das ações que compõem a história,
mas, também, uma conexão entre todos os elementos do
texto.
Perceber esse encadeamento e essa conexão e propiciar
que os estudantes os reconheçam parece ser o procedimento
adequado quando se trata de estimular uma leitura em que as
potencialidades da narrativa literária se concretizem, ou em
que a trama se atualize por meio da interação do leitor com
o texto. A necessidade de ver o texto como um todo – lição
que, na prática, é tão repetida quanto ignorada – é o que se
procurará demonstrar a seguir, mediante a análise do conto
“Pai contra mãe”.
A narrativa em questão, de autoria de Machado de Assis,
foi publicada em Relíquias da casa velha (1906). No início do
conto,2 o narrador convoca expressamente o narratário – por
intermédio do qual pode atingir o leitor real –, a fim de situálo, fornecendo-lhe informações relativas ao contexto da época
em que transcorre a ação a ser relatada:
A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá
sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos
senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao
pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folhade-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos
escravos, por lhes tapar a boca. [...]
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai
uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou
à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave.
Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal.
Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um
reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. [...]
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem
lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais
do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro
2
Todas as citações de “Pai contra mãe” foram retiradas da seguinte edição:
Machado de Assis. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. 2.
p. 659-667.
147
Márcia Helena Saldanha Barbosa
por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha
a quantia, vinha a promessa: “gratificar-se-á generosamente”
– ou “receberá uma boa gratificação” (p. 659).
Feitos os esclarecimentos preliminares, o narrador
conclui que “pegar escravos fugidos era um ofício do tempo”,
um ofício que “não seria nobre”, mas que, “por ser instrumento
da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta
outra nobreza implícita das ações reivindicadoras”. Além
disso, alerta para o fato de que “ninguém se metia em tal ofício
por desfastio ou estudo”; os fatores que impulsionavam um
homem a adotá-lo eram os seguintes: “a pobreza, a necessidade
de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e
alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via”
(p. 659-660). Cabe observar que esta última alusão – ao “gosto
de servir também, ainda que por outra via” – é carregada de
ironia, como sói acontecer nos relatos de Machado de Assis,
e sugere que o homem que se dedicava ao ofício de apanhar
escravos era, ele próprio, por opção, uma espécie de escravo.
Tal é o trabalho a que recorre Cândido das Neves,
Candinho para os familiares, depois de desistir de vários
empregos que “não agüentava”, pois “carecia de estabilidade”
(p. 660). A situação se agrava quando Candinho casa-se com
Clara, moça órfã, que morava e cosia com a tia, Mônica. Clara
logo engravida, e os lucros do marido, que passa a enfrentar
concorrentes na “caçada” aos negros fugidos, começam a
escassear, enquanto as dívidas aumentam. Quando Clara chega
à “última semana do derradeiro mês de gravidez”, tia Mônica,
vendo que também a comida passa a rarear, aconselha o casal a
levar a criança que nascesse à Roda dos Enjeitados, pois, assim,
ela seria bem criada e não viveria à míngua. A princípio, os
futuros pais recusam a “solução” sugerida pela tia; em seguida,
contudo, a situação se torna mais difícil. Eles são despejados
da casa que alugam, por falta de pagamento, e vão morar, os
três, nos quartos baixos da casa de uma senhora velha e rica,
que faz esse empréstimo à tia Mônica.
Dois dias depois da mudança, nasce a criança, trazendo
ao pai uma alegria enorme e uma tristeza, igualmente, imensa.
Tia Mônica prontifica-se a levá-la à Roda dos Enjeitados,
porém, como chove, Candinho vale-se dessa circunstância
para ganhar tempo: promete desfazer-se do filho na noite
seguinte. De manhã, vai em busca de uma escrava fugida pela
qual era oferecida a maior gratificação, cem mil-réis, mas não a
148
Para ler a narrativa literária
encontra. Então, após cogitar “mil modos de ficar com o filho”,
nenhum deles viável, obriga-se a cumprir a promessa que
fizera. Sai de casa com o filho nos braços, porém o sofrimento
afrouxa-lhe o passo e determina a sua decisão de entregar a
criança “o mais tarde que puder”. Assim, desvia-se da rua que
o conduziria à Roda, entrando por um dos becos, ao final do
qual avista a mulata fugida, de nome Arminda. Deixa o filho
aos cuidados do dono de uma farmácia e segue a escrava até
alcançá-la, atando-lhe os pulsos com um pedaço de corda. Ela
suplica que ele a solte “pelo amor de Deus”:
– Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem
algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei sua
escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu
senhor moço! (p. 666).
Candinho não cede aos apelos, nem mesmo quando
a mulher alega que o seu senhor era muito mau e que lhe
mandaria dar açoites, um castigo que se tornaria ainda mais
penoso no estado em que ela estava. Sem complacência,
Candinho responde: “Você é que tem culpa. Quem lhe manda
fazer filhos e fugir depois?” (p. 666). Note-se que tal afirmação
soa como uma ironia, pois parte, justamente, de alguém
que também fizera filhos e fugira depois. Premido pelas
circunstâncias, Candinho fugira, primeiro, da responsabilidade
de criar o filho; posteriormente, levado pela dor de separar-se
daquele que amava, fugira da própria decisão de entregá-lo
à Roda e, logo em seguida, fugira da criança, ainda que por
algumas horas, deixando-a na farmácia, à espera dele, detalhe
lembrado, nessa passagem, pelo próprio narrador.
O fato de viver, sob vários aspectos, uma situação
semelhante à da escrava não estimula Candinho a mudar
de atitude. Após muita luta entre ambos e uma última
súplica por parte de Arminda, Candinho entrega a escrava
ao seu senhor e ganha a gratificação prometida. Arminda,
enfraquecida pelo medo e pela dor, no chão onde se encontra,
ainda tenta lutar, mas acaba abortando, e o seu filho “entra
sem vida neste mundo”. Candinho, “sem querer conhecer as
conseqüências do desastre”, corre à farmácia e, lá chegando
– nova ironia –, o acaso prega uma peça àquele que havia
afastado, definitivamente, a escrava de seu filho: ele encontra
o farmacêutico sozinho, sem a criança que lhe havia sido
entregue. Antes de esganá-lo, Candinho é informado de que
149
Márcia Helena Saldanha Barbosa
a criança está “lá dentro” com a família do homem. De volta à
casa em que mora de favor, Candinho é bem recebido, mesmo
não tendo cumprido a promessa de desfazer-se do filho, uma
vez que traz consigo cem mil-réis. Tia Mônica diz algumas
palavras contra a escravidão, que havia motivado o aborto e a
fuga. Todavia, a reação de Candinho contraria a atitude da tia
de sua esposa:
Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas verdadeiras,
abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.
– Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração (p. 667).
Ainda que Arminda não tenha existido, é mediante a
sua história que o cotidiano dos escravos é inventado, ou
imaginado, e ressurge em imagens vívidas. A ação apresentada
pelo texto adquire uma aparência de real, o que propicia aos
leitores “a dor do espetáculo” ou o espetáculo da dor. Então, por
obra da narrativa de Machado de Assis, o sofrimento humano
deixa de ser apenas pensado em suas causas e conseqüências,
ou transformado em datas e cifras, para ser visto, ouvido e
sentido. Por isso, a expressão antes mencionada é repetida pelo
próprio narrador, com variações, em duas ocasiões diferentes:
na primeira, Candinho vê o filho que aguarda o momento de
ser levado à Roda dos Enjeitados e mal consegue esconder “a
dor do espetáculo”; na segunda, tem-se a passagem relativa
ao aborto de Arminda, quando se afirma que o caçador de
escravos “viu todo esse espetáculo”.
Desse modo, o narratário é convidado a assistir a tais
cenas – convite que é, indiretamente, estendido ao leitor – e
a sensibilizar-se com aquilo que é contado. O passado, assim
imaginado, presentifica-se, torna-se palpável e infenso à
desumanização. Essa oportunidade concedida a ambos
– narrador e narratário – vem confirmar a convocação feita ao
segundo por parte do primeiro no início do conto: “O ferro
ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai3 uma
coleira grossa [...]” (p. 659 - grifo nosso).
Constata-se, ainda, que o texto literário em questão
alerta para a naturalização da história e ajuda, até mesmo, a
desmontar esse processo de naturalização. A frase dita por
Candinho – “Nem todas as crianças vingam” – leva a pensar
que a morte do filho de Arminda é obra de Deus ou fruto
do acaso, constituindo-se num fato da natureza, desprovido
de causas sociais. Porém, o contraponto oferecido pela fala
150
Para ler a narrativa literária
da tia Mônica – embora não reproduzida no relato e, ao que
parece, destituída de qualquer vibração –, a qual condena a
escravidão, e, sobretudo, pelas palavras do próprio narrador,
ao longo do conto, impede que os acontecimentos imaginados,
prováveis ou verossímeis, tendo em vista o contexto a que se
referem, sejam privados de sua origem histórica.
O desaparecimento trágico do filho de Arminda ocorre
não só porque Candinho, casualmente, se depara com a
escrava ou porque, em virtude do egoísmo que o caracteriza
– a despeito do nome e do sobrenome que recebera, ambos
associados à inocência, à pureza – e da situação em que se
encontra, decide devolvê-la ao seu proprietário. A ação
também se torna possível porque as personagens vivem, no
tempo da ação, sob um sistema social que consagrara o ofício
de caçar negros fugidos, os castigos corporais e a troca de seres
humanos por dinheiro, além de “acorrentar” os brancos, ao
despertar neles “o gosto de servir”. É esse sistema que coloca
um pai contra uma mãe, como diz o título do conto.
O olhar irônico do narrador se contrapõe à naturalização
de um fato que, embora particular, individual, possui caráter
social e histórico. Esse olhar está expresso nos próprios
nomes das ruas por onde Candinho circula atrás da escrava. A
princípio, ele sai “a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca,
Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar segundo o
anúncio” (p. 665). Note-se que os nomes dessas duas últimas
ruas expressam, exatamente, aquilo que Candinho e o sistema
social negaram a Arminda: a experiência do parto, através
do qual ela daria à luz um filho, e que é substituído por um
aborto, provocado pelo sofrimento físico e psicológico; a ajuda
de que necessitava para preservar sua liberdade e a vida da
criança que esperava.
Observe-se, ainda, que é pela Rua do Ourives que
Candinho arrasta a escrava, a fim de receber a gratificação, e
que ele se dirige à Rua da Alfândega, onde reside o senhor
de Arminda. Alfândega é a repartição pública encarregada
de vistoriar bagagens e mercadorias em trânsito e cobrar os
correspondentes direitos de entrada e saída, e é numa rua com
esse nome que a escrava fugida é trocada por dinheiro, como
se fosse uma mercadoria. É através dessa mesma rua que seu
filho “entra neste mundo” – cruza a alfândega –, pagando
com a vida pela fuga que a mãe empreendera, na tentativa de
151
Márcia Helena Saldanha Barbosa
passar da escravidão à liberdade, e pela resistência que ela
oferecera à prisão.
Se a escravidão não é obra de Deus ou do acaso,
também não o é o relato ficcional ou histórico. É isso que o
narrador evidencia quando se mostra no decorrer da narração
e, simultaneamente, expõe ou exibe, aos olhos do narratário,
e do próprio leitor, a construção da narrativa, como um
processo que implica escolhas e decisões decorrentes dos
valores, da posição, da sensibilidade e do julgamento de quem
conta. Assim, o narrador machadiano distingue-se de outros
tipos de narrador onisciente, que se escondem do destinatário,
que desejam ser esquecidos e que, para isso, recorrem a uma
espécie de ilusionismo: uma voz que parece ser divina, não ter
dono nem origem, e que finge ser a expressão da verdade.
No fragmento abaixo, o narrador revela que todo relato
pressupõe uma opção, uma vez que cabe àquele que toma
a palavra selecionar os fatos e aspectos a serem destacados
ou omitidos. Se há trechos em que o narrador convoca o
narratário a ver “a dor do espetáculo” em detalhes, há outros
momentos em que ele procede à elipse de tais cenas, instando
seu interlocutor a imaginá-las:
A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à
mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e
necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso
também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam
ser mais amargos (p. 663).
E o narrador dá continuidade a esse procedimento
quando, nas linhas subseqüentes, reproduz a fala do
protagonista:
– Não, Tia Mônica! Bradou Candinho, recusando um conselho
que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso
nunca!
Foi na última semana do derradeiro mês que Tia Mônica deu
ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos
Enjeitados.
Verifica-se aí o sentimento do narrador e/ou a consciência
que ele tem de que, às vezes, não narrar, hesitar em fazê-lo ou
dizer que não se vai contar algo pode ser um gesto mais eficaz
do que relatar um fato, quando o que se pretende é avivar a
imaginação do narratário e, assim, provocá-lo, sensibilizá-lo.
Logo a seguir, o narrador mostra ao narratário que não decide
somente quais eventos ou fenômenos devem ser comentados
ou omitidos; ele lembra a seu interlocutor que também
152
Para ler a narrativa literária
escolhe as palavras a serem empregadas no relato, além de
adverti-lo, de maneira indireta, de que essas palavras não são
usadas ingenuamente. Nos vocábulos estão inscritos juízos de
valor e a opinião de quem fala, e isso comprova que nomear é
muito mais do que designar a realidade; é um ato de constituíla. Leia-se a frase abaixo, dita a respeito de tia Mônica:
Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez
que o fazia com tal franqueza e calor – crueldade, se preferes
(p. 664).
O conto machadiano alerta para algo que parece óbvio,
mas que deixa de sê-lo, e se oculta, justamente porque está
sempre revelado, imerso na sua obviedade, sem solicitar, por
si só, o distanciamento e a atenção dos indivíduos. É óbvio
que a história é vivida por seres humanos e que a narração das
histórias, as reais e as possíveis, é obra humana, mas, porque
isso é óbvio, não é percebido. É aí que entra a literatura para
dizer aos leitores que a história é a história dos seres humanos,
contada de modo diverso por diferentes narradores. E a
narrativa analisada diz isso direcionando o foco para o próprio
narrador, que, por vezes, passa da terceira para a primeira
pessoa do singular; lembrando que há alguém que decide o quê
e como relatar, tornando visíveis os procedimentos narrativos;
em resumo, recolocando os andaimes que são retirados depois
de erigido o edifício.
Além disso, no conto, o afastamento do narrador em
reação àquilo que conta promove a conversão desse universo
em espetáculo e faz aparecer o drama encenado pelas
personagens. Assim, o texto em questão convida o narratário
e, conseqüentemente, o leitor a revisitarem o passado e
realizarem um exercício que bem poderia ser descrito por
meio das palavras do eu-lírico de Alberto Caeiro, um dos
heterônimos de Fernando Pessoa:
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos [...].
(Pessoa, 1995, p. 226)
Ao que parece, a literatura pode auxiliar os seres
humanos nesse processo, na medida em que oferece outras
formas de “lembrar” e em que traz de volta o tempo pretérito
através da reinvenção do cotidiano vivido. É isso o que ocorre
com o texto de Machado de Assis aqui examinado. O conto
projeta na tela da imaginação de cada um o espetáculo da dor,
153
Márcia Helena Saldanha Barbosa
tornando palpáveis os dados abstratos, animando as análises
com um sopro humano e restituindo aos fenômenos sociais a
plurissignificação que lhes é inerente. Assim, a literatura raspa
a “tinta” com que foram “pintados” os sentidos dos indivíduos,
como queria Fernando Pessoa.
Os comentários feitos, sobre “Pai contra mãe” mostram
que a percepção da onisciência do narrador e só o primeiro
passo para a interpretação do texto. Não há como separar
a figura do narrador dessa outra entidade ficcional que é o
narratário. O isolamento desses dois elementos impediria,
entre outras coisas, que fossem revelados a atitude e o
posicionamento ideológico do narrador em relação aos eventos
por ele relatados e à conduta das personagens que participam
da história. Da mesma forma, ignorar que esse narrador exibe
o próprio processo de construção da narrativa seria desprezar
um componente fundamental do conto.
Por fim, é preciso salientar que, nesse conto, estão de
tal modo intrincados os espaços, o destino das personagens,
as seqüências narrativas e a opinião do narrador sobre
a ação relatada, que só existe uma maneira de examinar,
adequadamente, tais aspectos, sem desfazer a trama em
que o texto se constitui: percebê-los em conjunto; verificar
a articulação ou o arranjo de que foram objeto por parte do
escritor. Portanto, investir no letramento, no que se refere à
abordagem da narrativa literária, significa propor uma análise
interpretativa do texto capaz de evidenciar a conjugação dos
elementos que o integram e, ao mesmo tempo, de estimular
o leitor a refletir sobre a história de seus semelhantes, ali
reinventada, e sobre o seu próprio lugar no mundo.
Referências
LAJOLO, Marisa. Poesia: uma frágil vítima da escola. In: __.
Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo:
Ática, 1993. p. 41-51.
MACHADO DE ASSIS. Pai contra mãe. In: _____. Obra
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. 2. p. 659-667.
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1995.
REIS, Carlos. A narrativa literária. In: _____. O conhecimento
da literatura; introdução aos estudos literários. Coimbra:
Almedina, 1995. p. 341-377.
154
Letrar é preciso,
alfabetizar não basta...mais?
Maria do Rosário Longo Mortatti*
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo. Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Adélia Prado
Quero ser livre.
A esperança é um dever do sentimento.
Ricardo Reis
Explicação necessária
No livro Os sentidos da alfabetização (Mortatti, 2000)
abordo a história do ensino da leitura e escrita na fase inicial
de escolarização de crianças no Brasil, com ênfase na situação
paulista, desde o final do século XIX até os dias atuais, e
proponho a divisão desse movimento histórico em quatro
momentos que considero cruciais, cada um deles marcado por
um “novo” sentido atribuído à alfabetização.
Nas décadas que antecederam a proclamação da
República brasileira, o ensino inicial da leitura e escrita já
começava a se tornar objeto de preocupação de administradores
públicos e intelectuais. Foi somente, porém, a partir da
primeira década republicana que as práticas sociais de leitura
e a escrita se tornaram práticas escolarizadas, submetidas
a organização metódica, sistemática e intencional, porque
consideradas estratégicas para a formação do cidadão e para
o desenvolvimento social, de acordo com os ideais do regime
republicano.
*
Professora Livre-Docente em metodologia do Ensino de 1º Grau junto ao
Departamento de Didática e ao Programa de Pós-Graduação em Educação da
Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP – Campus de Marília. Doutora em
Educação – Metodologia do Ensino pela Faculdade de Educação (Unicamp).
155
Maria do Rosário Longo Mortatti
De lá para cá, saber ler e escrever tornou-se o principal
índice de medida e testagem da eficiência da escola pública,
laica e gratuita. E, com diferentes finalidades, de diferentes
formas e com diferentes conteúdos, visando enfrentar as
dificuldades de nossas crianças em aprender a ler e escrever,
para , assim, responder mais adequadamente a certas urgências
políticas, sociais e culturais do país, diferentes sujeitos foram
atribuindo diferentes sentidos ao ensino inicial da leitura e
escrita. Resultantes de disputas que têm sua face mais visível
na “querela dos métodos”, ou seja, na disputa em torno do
método de ensino inicial da leitura (e escrita), considerado
“novo” e melhor, em relação ao “antigo” e “tradicional”, em cada
momento histórico cada “novo” sentido se tornou hegemônico,
porque oficial, mas não único, nem homogêneo, tampouco
isento de resistências mediadas especialmente pela velada
utilização de “antigos” métodos e práticas alfabetizadoras.
O primeiro momento (1876 a 1890) caracteriza-se pela
disputa entre os partidários do “novo” método da palavração
e os dos “antigos” métodos sintéticos (alfabético, fônico,
silábico); o segundo momento (1890 a meados dos anos de
1920), pela disputa entre defensores do “novo” método analítico
e os dos “antigos” métodos sintéticos; o terceiro momento
(meados da década de 1920 a final da de 1970), pelas disputas
entre defensores dos “antigos” métodos de alfabetização e
os dos “novos” testes ABC para verificação da maturidade
necessária ao aprendizado da leitura e escrita, de que decorre
a introdução dos “novos” métodos mistos; o quarto momento
(meados de 1980 a 1994), pelas disputas entre os defensores
da “nova” perspectiva construtivista e os dos “antigos” testes
de maturidade e dos “antigos” métodos de alfabetização.
Como o ano de 1994 indica apenas o encerramento
daquela pesquisa, uma vez que este quarto momento da
história da alfabetização no Brasil se encontra ainda em
curso, em livro posterior (Mortatti, 2004) apresentei um
ensaio de continuidade da abordagem das características
mais recentes desse momento, incluindo os principais
aspectos envolvidos na introdução, em nosso país, do termo
“letramento”. E é à abordagem desses aspectos que objetivo dar
continuidade neste artigo, por meio da problematização das
seguintes questões: como o termo “letramento” dialoga com
as características deste quarto momento crucial na história
156
Letrar é preciso, alfabetizar não basta... mais?
da alfabetização no Brasil, em especial com as perspectivas
construtivista e interacionista em alfabetização? Por que se
tornou preciso letrar? A alfabetização não basta mais? Por
quê? Que alfabetização?
Três modelos explicativos
A partir de meados da década de 1980, em decorrência
de certas urgências políticas, sociais e culturais em nosso país,
passou-se a questionar, sistemática e oficialmente, o ensino
inicial da leitura e escrita, já que nessa etapa de escolarização se
concentra(va) a maioria da população brasileira que fracassa(va)
na escola. Relacionadamente a esses questionamentos, a partir
de então foram engendrados ou adotados por pesquisadores
brasileiros pelo menos três modelos principais de explicação
para os problemas da alfabetização no Brasil, os quais
podem ser denominados, sinteticamente e por enquanto, de
“construtivismo”, “interacionismo” e “letramento”.
Embora motivados por constatações semelhantes e
apresentando certos aspectos comuns entre si, trata-se de
modelos explicativos diferentes, porque fundamentados em
diferentes perspectivas teóricas, formulados por diferentes
sujeitos, com diferentes finalidades sociais e políticas e que
tiveram diferentes ritmos de implantação, em diferentes modos
e lugares de circulação. Além de serem modelos diferentes,
deve-se considerar que foram objeto de apropriações didáticopedagógicas também diferentes entre si, demandando, nesse
nível, pensarmos em construtivismos, interacionismos e
letramentos. Apesar de seu caráter plural e das diferenças
entre eles, em certas apropriações, esses modelos vêm sendo
“conciliados” de maneira eclética e apresentados como se
fossem homogêneos e complementares entre si e como se
todos pudessem ser entendidos, de forma redutora, como
correspondentes a três novos “métodos de ensino”. Apesar
dessas diferenças, ainda, e das ecléticas propostas conciliatórias,
é possível constatar, por um lado, mais divergências do
que diferenças e semelhanças entre construtivismo e
interacionismo, assim como entre construtivismo e letramento;
e, por outro lado, mais semelhanças do que diferenças entre
interacionismo e letramento.
157
Maria do Rosário Longo Mortatti
O construtivismo
A partir de meados da década de 1980, no âmbito do
que denominei “quarto momento na história da alfabetização
no Brasil”, logrou hegemonia, por meio de sua oficialização,
o modelo resultante da perspectiva construtivista em
alfabetização, ou simplesmente “construtivismo”, como ficou
conhecido.
Como se sabe, o construtivismo apresentou-se
como uma “revolução conceitual” e decorre das pesquisas
desenvolvidas pela pesquisadora argentina Emilia Ferreiro e
colaboradores, divulgadas entre nós principalmente por meio
do livro Psicogênese da língua escrita (Ferreiro; Teberosky,
1985). Os resultados dessas pesquisas se propõem a explicar a
psicogênese da língua escrita na criança, ou seja, a forma como
a criança aprende a ler e a escrever. Esse processo de aquisição/
aprendizagem é entendido como predominantemente
individual, resultante da interação do sujeito cognoscente
com o objeto de conhecimento (a língua escrita). Trata-se de
uma mudança de paradigma que gerou sério impasse entre o
questionamento da possibilidade do ensino da leitura e escrita
e sua metodização e a ênfase no modo como a criança aprende
a ler e a escrever, ou seja, como a criança se alfabetiza. Do
ponto de vista do construtivismo, portanto, “alfabetização”
designa a aquisição, por parte de crianças, da lectoescrita.
Assim, pode ser considerado alfabetizado aquele que
conseguiu compreender (construir para si o conhecimento) a
base alfabética da língua escrita (no caso do português).
Essa nova perspectiva teórica veio justamente questionar
as concepções até então defendidas e praticadas a respeito desse
ensino, em particular as que se baseavam tanto na centralidade
do ensino e, em decorrência, dos métodos e cartilhas de
alfabetização, quanto nos resultados dos testes de maturidade
para o aprendizado da leitura e escrita. E, diferentemente do
que supunham muitos alfabetizadores principalmente nos
anos iniciais da divulgação, entre nós, dos resultados dessas
pesquisas, o construtivismo não pode e não pretende ser nem
um novo método de ensino da leitura e escrita, nem, portanto,
comporta uma nova didática da leitura e escrita.
158
Letrar é preciso, alfabetizar não basta... mais?
O interacionismo
Apesar de o construtivismo em alfabetização ter-se
tornado oficial, outros estudos e pesquisas foram ganhando
destaque, também a partir de meados dos anos de 1980, no
Brasil, como ocorreu com os fundamentados no interacionismo
lingüístico e na “psicologia soviética” e desenvolvidos pelos
pesquisadores brasileiros João Wanderley Geraldi e Ana Luiza
Smolka.1
Como se sabe, desse ponto de vista interacionista,
“alfabetização” designa o processo de ensino-aprendizagem da
leitura e escrita entendidas como atividade discursiva, ou seja,
quando se ensina e se aprende a ler e a escrever, já se estão
lendo e produzindo textos (escritos), de fato, e essas atividades
dependem diretamente das “relações de ensino” que ocorrem
na escola, especialmente entre professor e alunos. Desse
ponto de vista, portanto, “alfabetizado” designa o estado ou
condição daquele indivíduo que sabe ler e produzir textos,
com finalidades que extrapolam a situação escolar e remetem
às práticas sociais de leitura e escrita, algo próximo à leitura
e escrita “do mundo”, conforme proposta pelo educador
brasileiro Paulo Freire, no âmbito da alfabetização de jovens
e adultos.
A perspectiva interacionista propõe, portanto, uma
forma de compreender como se ensina e se aprende a língua
escrita e comporta uma nova didática da leitura e escrita,
centrada no texto e na qual se relacionam os diferentes
aspectos envolvidos nesse processo discursivo: por que, para
que, como, o quê, quando, onde, quem, com quem ensinar e
aprender a língua escrita.
O letramento
Ainda neste quarto momento da história da alfabetização
no Brasil, em meados da década de 1980, o termo “letramento”
foi introduzido em nosso país, em estudos e pesquisas
1
Embora Geraldi não trate especificamente da alfabetização, na coletânea O
texto na sala de aula, por ele organizada e com primeira edição em 1984,
são apresentadas propostas para o ensino de língua portuguesa do ponto de
vista interacionista, as quais contribuíram significativamente para reflexões
posteriores, por parte tanto de Geraldi quanto de outros pesquisadores, envolvendo a alfabetização como processo inserido no âmbito do ensino da
língua portuguesa. A esse respeito, ver especialmente Mortatti, 1999.
159
Maria do Rosário Longo Mortatti
acadêmicos, sob influência do inglês literacy, que, até a
década de 1990, era aqui traduzido por “alfabetização” e, mais
recentemente, também por “alfabetismo”.
Os primeiros registros de uso do termo “letramento” no
Brasil são creditados a: Mary Kato (1986), que o utiliza para
salientar aspectos de ordem psicolingüística envolvidos na
aprendizagem da linguagem, em especial sua aprendizagem
escolar, por parte de crianças, e Leda Tfouni (1988), que
estabelece um sentido para o termo, centrado nas práticas
sociais de leitura e escrita e nas mudanças por elas geradas
numa sociedade quando esta se torna letrada. Mas o termo
passou a ser usado mais sistemática e extensivamente na
década de 1990, a partir de publicações de Tfouni (1995),
Kleiman (1995) e Soares (1995).
Além das constatações já mencionadas relativamente
a meados dos anos de 1980, a posterior disseminação do
termo “letramento” somente começou a ser possível quando
novos fatos, como a condição de alfabetizado e a extensão
da escolarização básica, começaram a se tornar visíveis,
gerando novas idéias e novas maneiras de compreender os
fenômenos envolvidos. Essas novas formas de compreensão
apontaram para o esgotamento das possibilidades de o termo
“alfabetização” designar algo mais do que a “mera” aquisição
inicial da técnica ou habilidade de leitura e escrita, ou seja,
para designar a condição de pessoas ou grupos que não apenas
sabem ler e escrever mas também utilizam a leitura e a escrita
e seus usos e funções sociais, incorporando-as em seu viver e
transformando, por isso, sua condição (Soares, 1995).
Inicialmente restrita ao âmbito dos estudos e pesquisas
acadêmicos, a palavra “letramento” teve seu uso disseminado
a partir de meados dos anos de 1990; já se encontra registrada
num dicionário geral e em dois dicionários de lingüística,
estando “popularizada” entre gestores, educadores e
alfabetizadores, como se verifica, por exemplo, em títulos de
cartilhas ou livros de alfabetização e de material para formação
continuada de professores publicados nos últimos anos.
Entretanto, ainda não se abandonou “alfabetização”
nem se criou consenso sobre o uso de “letramento”. Embora
o letramento não seja conseqüência natural e direta da
alfabetização, nem se restrinja aos resultados da aprendizagem
inicial da leitura e escrita, e embora a escola não seja a
único lugar em que pode ocorrer essa aprendizagem, o fato
160
Letrar é preciso, alfabetizar não basta... mais?
de, atualmente, no Brasil, o termo “letramento” já estar
incorporado em discursos e práticas relativas ao ensino e
aprendizagem da leitura e escrita na fase inicial de escolarização
de crianças, impõe-se a necessidade de considerar tanto a
relação de interdependência e indissociabilidade entre letrar
e alfabetizar quanto as possíveis distinções entre letramento
escolar e letramento social Tais relação e distinção vêm sendo
apontadas como necessárias, uma vez que, como um conjunto
de habilidades e conhecimentos específicos, a leitura e a escrita
precisam ser ensinadas e aprendidas, e a escola continua sendo,
neste país, uma das agências privilegiadamente responsáveis
por esse processo de ensino-aprendizagem.
Talvez por essa razão, o fato de o termo “letramento”
já se encontrar hoje bastante disseminado não implica
coincidência de significados no que se refere a conceitos e
correspondentes práticas pedagógicas, tampouco, implica
estarem suficientemente esclarecidas as relações entre
alfabetização e letramento. Para alguns, “letramento” deve
substituir, definitivamente, “alfabetização”, ou se deve optar
por um ou outro termo; para outros, trata-se de denominações
distintas de duas etapas distintas e seqüenciais, devendo-se,
primeiramente, alfabetizar para, depois, letrar; para outros,
ainda, trata-se de alfabetizar, letrando, como dois momentos
diferentes, mas complementares e simultâneos, no ensinoaprendizagem inicial da leitura e escrita.
Possíveis relações entre construtivismo,
interacionismo e letramento (escolar)
Apesar das diferentes teorias do conhecimento subjacentes
ao construtivismo, ao interacionismo e ao letramento e de
suas diferentes implicações para a prática pedagógica, dada
a relativa simultaneidade cronológica de introdução desses
modelos nas pesquisas e propostas sobre alfabetização no Brasil,
em certas apropriações que deles se fizeram e se divulgaram –
como, por exemplo, as apresentadas nos documentos e
orientações oficiais e operantes nas práticas docentes
de alfabetizadores no Brasil –, buscou-se “conciliar”
construtivismo e interacionismo, acrescentando-se, mais
recentemente, o letramento. Dessas apropriações resulta um
tipo muito eclético de opção didático-pedagógica, que pode
161
Maria do Rosário Longo Mortatti
ser assim formulada: no processo de alfabetização escolar,
devem-se respeitar as “fases” de construção, pela criança, do
conhecimento sobre a língua escrita, mediante “trabalho com
textos”, para se atingir o objetivo de “letrar”’.
Considero, porém, que construtivismo e interacionismo
não podem ser conciliados se se considerarem, rigorosamente,
as teorias do conhecimento subjacentes a cada uma dessas
perspectivas e suas relações com a prática pedagógica
em alfabetização. Considero, ainda, que essa conciliação,
característica das apropriações como as mencionadas acima,
vem se mostrando pouco produtiva para alfabetizandos e para
alfabetizadores.
Se o objetivo é desenvolver uma atividade didática
coerente e responsável, no sentido de os alfabetizadores
poderem se responsabilizar e responder por ela, trata-se de
escolherem entre uma ou outra perspectiva. Se fizerem opção
pela perspectiva interacionista, é incompatível conduzir
sua atividade de ensino com base no que o construtivismo
propõe a respeito da psicogênese da língua escrita, a saber:
a aprendizagem resulta da construção, por parte da criança,
do conhecimento sobre a leitura e a escrita, na interação com
esse objeto de conhecimento (a língua escrita). A construção
desse conhecimento ocorre de acordo com certas etapas,
seguindo um processo de desenvolvimento de estruturas
cognitivas que a criança “possui naturalmente”, sem depender
de intervenções de ensino e de condições socioculturais.
Diferentemente, na perspectiva interacionista se
considera que o processo de aprendizagem do sujeito depende
essencialmente da interação com o “outro” e, sobretudo, das
“relações de ensino”, no caso da aprendizagem escolar. Trata-se,
assim, de um processo social, porque acontece entre sujeitos,
em situações reais de interlocução, nas quais a linguagem/
língua tem função constitutiva, constituidora e mediadora.
Quando se aprende a língua materna, já na modalidade oral
e desde antes da alfabetização escolar, aprendem-se certos
modos de pensar, sentir, querer e agir, que interferem no
desenvolvimento de certas estruturas cognitivas dos sujeitos,
propiciando-lhes produzir significados e sentidos para si,
para o mundo e para a linguagem/língua. Esses significados e
sentidos não estão “prontos”, mas dependem da aprendizagem
na interação com muitos outros sujeitos. Essa é uma diferença
que considero fundamental: o lugar da linguagem/língua e
162
Letrar é preciso, alfabetizar não basta... mais?
do “outro” no processo de desenvolvimento cognitivo e de
aprendizagem escolar da língua escrita por parte do aluno
(sujeito social e histórico). Esses são aspectos que a perspectiva
construtivista não pode considerar como determinantes e
essenciais, porque não “cabem” nessa teoria.
Devo lembrar, porém, que trato aqui de perspectivas
relativamente objetivas e definidas no nível teórico, pois, no
nível das apropriações didático-pedagógicas e mesmo em
inúmeras pesquisas acadêmicas, dificilmente se constatam
ocorrências e aplicações “puras” de uma ou outra perspectiva
teórica; e que, além do construtivismo e do interacionismo,
podem-se ainda observar, nas práticas alfabetizadoras,
atividades didáticas baseadas nos “antigos” métodos de
alfabetização: sintéticos, analíticos e mistos.
Trata-se, portanto, de fenômenos complexos, o que
impede que o termo “alfabetização” tenha um sentido único.
Por essa razão, o fato de se considerar que a introdução do
termo/conceito “letramento” decorre também da constatação do
esgotamento das possibilidades explicativas do termo/conceito
“alfabetização” demanda que se defina a qual sentido de
“alfabetização” se refere essa constatação e, conseqüentemente,
que se pense também em “alfabetizações”.
A idéia de esgotamento pode ser aplicada, por exemplo:
à concepção de alfabetização subjacente aos “antigos”
métodos sintéticos (alfabético, fônico, silábico) e analíticos
(palavração, sentenciação, da “historieta”),2 entendida,
portanto, como o ensino e aprendizagem de uma técnica ou
habilidade como pré-requisito para o ler e escrever textos, de
fato, característicos daqueles mencionados usos e funções
sociais da língua escrita; ou à concepção de alfabetização
decorrente do construtivismo, cujas principais características
já expus. É em relação a concepções como essas que talvez
se justifique a posição dos que defendem seja a substituição
de “alfabetização” por “letramento”, seja a opção por um em
detrimento do outro termo, seja a aplicação desses termos
para designar duas etapas escolares distintas e seqüenciais,
seja, ainda, a concomitância do “alfabetizar, letrando”
O mesmo, porém, não se pode aplicar à concepção de
alfabetização como atividade discursiva, característica do
2
Para explicações detalhadas sobre esses métodos de ensino da leitura e escrita e suas concretizações no Brasil, ver especialmente Mortatti, 2000.
163
Maria do Rosário Longo Mortatti
modelo interacionista. Conforme também já expus, desse
ponto de vista, quando se ensina e se aprende a ler e a escrever,
já se estão lendo e produzindo textos (escritos), de fato, e essas
atividades dependem diretamente das “relações de ensino”
que ocorrem na escola, especialmente entre professor e alunos.
Desse ponto de vista, portanto, “alfabetizado” designa o estado
ou condição daquele indivíduo que sabe ler e produzir textos,
com finalidades que extrapolam a situação escolar e remetem
às práticas sociais de leitura e escrita.3
Relativamente
à
concepção
interacionista
de
alfabetização, por isso, não cabe, pensar em esgotamento de
suas possibilidades explicativas, até porque nem chegou a se
tornar oficial, com utilização, se não em todas, pelo menos na
maioria das escolas públicas brasileiras. E a essa concepção,
portanto, não cabe exatamente contrapor o termo/conceito
“letramento”, em especial o de “letramento escolar”, o que, se
ocorresse rigorosamente, implicaria concluir que se trata de
modelos explicativos com muitas semelhanças entre si.
Qual alfabetização? Qual letramento?
Por estarem ainda em curso, as características deste
quarto momento da história da alfabetização no Brasil,
conforme as apresentei até aqui, indicam apenas as limitadas
possibilidades de sua apreensão “no calor da hora”, impedindo
conclusões definitivas. De qualquer modo, pensar sobre o
presente é também uma forma de nele interferir, ao mesmo
tempo em que se constata que o presente somente se deixa
apreender como um passado recentíssimo que é, de fato.
A despeito dos diferentes modos de olhar e apreender
este presente do ensino e aprendizagem da leitura e escrita
em nosso país, porém, é ainda necessário perguntar a que
alfabetização e a que letramento se referem as afirmações:
“alfabetizar não basta mais; é preciso (também) letrar”.
Uma nova denominação, um novo esforço de mudança
de situação indesejada? Mudar para “letramento” pode
significar apenas atribuir nova denominação a “antigos”
3
Nesse sentido, trata-se de concepção próxima à de “leitura (e escrita) do
mundo”, conforme proposta do educador brasileiro Paulo Freire, no âmbito
da alfabetização de jovens e adultos.
164
Letrar é preciso, alfabetizar não basta... mais?
modelos e práticas didático-pedagógicas, como nos ensinam
muitos exemplos históricos. Mas pode também significar uma
nova denominação, cuja função principal é trazer ao centro
da cena algo que, embora antigo, é novo, porque ainda espera
seu lugar.
Esse é o caso da perspectiva interacionista, que defendo
como a que pode propiciar melhores e mais consistentes
explicações e propostas para o ensino-aprendizagem de língua
portuguesa, processo que se estende ao longo da educação
básica e no qual se insere, como uma etapa integrante, o
ensino (inicial, do ponto de vista “cronológico”) da leitura e
escrita, ou alfabetização.
Com base na perspectiva interacionista, é possível pensar
em sentidos relativamente coincidentes para alfabetização e
letramento, porque, dessa perspectiva, o texto é a “concretude”
da língua e a “materialização” do discurso. Ler e escrever,
ensinar e aprender a ler e escrever demandam tomar o texto
como unidade de sentido e, portanto, como objeto de ensinoaprendizagem, ao mesmo tempo em que como mediador
desse processo. Mas trata-se aqui de texto entendido como
“configuração textual”, ou seja, como
o conjunto de aspectos constitutivos de determinado texto, os
quais se referem: às opções temático-conteudísticas (o quê?)
e estruturais-formais (como?), projetadas por um determinado
sujeito (quem?), que se apresenta como autor de um discurso
produzido de determinado ponto de vista e lugar social (de
onde?) e momento histórico (quando?), movido por certas
necessidades (por quê?) e propósitos (para quê?), visando
a determinado efeito em determinado tipo de leitor (para
quem?) e logrando determinado tipo de circulação, utilização e
repercussão. É, portanto, a análise integrada desses aspectos que
propicia ao investigador: reconhecer e interrogar determinado
texto como configuração “saturada de agoras’’ e “objeto singular
e vigoroso” e dele produzir uma leitura possível e autorizada,
a partir de seus próprios objetivos, necessidades e interesses
(Mortatti, 2000, p. 1).4
Porque a configuração textual é o mapa “que guarda
sangue e tesouros” (Prado, 1991), é a certeza de que existe um
território de destino, o sentido – “esse elemento de liberdade
que transpassa a necessidade”, esse elemento constitutivo do
4
Para uma expansão do conceito de configuração textual e sua relevância para
a análise e interpretação de material discursivo, ver especialmente Magnani,
1993; Mortatti, 2000.
165
Maria do Rosário Longo Mortatti
diálogo, que permite responder a perguntas (Todorov, 2003) –
e as possibilidades de sua interpretação como exercício de
liberdade. Professores e alunos são companheiros nessa
viagem – que é o aprender e ensinar a ler e produzir textos
– em busca do sentido.
E este é o ponto de vista que defendo: não há
aprendizagem da leitura e escrita sem ensino, nem, portanto,
sem professor competente para tal. E a escola é o espaço
por excelência, hoje, para que se efetivem as relações de
ensino-aprendizagem inicial da leitura e escrita, processo
que já implica ensinar e aprender a ler e produzir textos
não como se fossem instrumentos para “algo” e “no futuro”,
mas compreendendo o texto como a unidade de sentido e o
objeto de ensino-aprendizagem da língua escrita, em torno
do qual se organizam os conteúdos específicos de ensino e
aprendizagem (iniciais) da leitura e escrita e as atividades para
seu desenvolvimento em sala de aula, na escola, envolvendo
todas as necessidades da vida dos sujeitos, agora, também.
Em síntese, ensinar a ler e a escrever é ensinar a ler e
produzir textos (orais e escritos) que permitam ao sujeito se
constituir como tal no âmbito de uma sociedade letrada. O
ensino visa, primordialmente, à aprendizagem e não pode
prescindir da atuação competente do professor, no âmbito
da escola. O ensino e a aprendizagem da leitura e produção
de textos, como atividades especificamente humanas, visam,
primordialmente, à formação do ser humano, e seu objetivo é
“simplesmente” a busca de sentido.
Como se pode observar, a perspectiva interacionista
nos propicia compreender que o que está em jogo, quando
se trata de ensinar e aprender a ler e escrever, não são apenas
finalidades pragmáticas e de adaptação aos precários usos e
funções sociais da língua escrita numa sociedade (semi-)letrada
como esta em que vivemos. Para além dessas finalidades, o
interacionismo propicia ousarmos pensar em ampliar as
possibilidades de uso e funções sociais do ler e escrever,
porque nos propicia pensar na contribuição dessas atividades
especificamente humanas para o processo de constituição do
sujeito (professor e alunos, no caso da alfabetização escolar),
que se constituem também como leitores e produtores de
textos como quem busca atribuir sentidos para a vida.
166
Letrar é preciso, alfabetizar não basta... mais?
Considerações finais
Neste artigo tratei de um tema atualmente tão repetido
que pode parecer óbvio demais, levando os possíveis leitores
a se perguntarem o que justificaria abordá-lo – e do modo
como o fiz – numa publicação como esta. Penso, porém, que
é justamente no que nos parece óbvio que podemos encontrar
outros e, por vezes, surpreendentes sentidos, silenciados, seja
pelo hábito e pela rotina de uso dos nomes que designam a
“coisa” e da “coisa” em si que esse nome designa, seja pelo
sedutor equívoco de imaginar que o nome “cria” a “coisa” que
até então não existia.
Por isso, o que apresentei aqui não é nenhuma messiânica
boa-nova, apenas um outro modo de olhar e pensar o que
vem sendo discutido em nosso país há mais de um século,
em particular do modo como vem sendo discutido nas duas
últimas décadas: O que é ensinar a ler e escrever? A quem
compete esse ensino? Onde deve/pode ser realizado? A quem
se destina? Ensinar a ler e escrever o quê? Como? Por quê?
Para quê?
Talvez a maior contribuição da introdução do termo/
conceito “letramento” no Brasil seja a de reapresentar sobre
novas bases e nestas específicas condições histórico-sociais
essas antigas perguntas, às quais também busquei responder
ao longo deste artigo por meio da problematização dos
aspectos envolvidos na formulação de seu título: “Letrar é
preciso, alfabetizar não basta ...mais?”.
Mas, certamente, respostas melhores são as que os
poetas nos podem sugerir: a coisa mais fina do mundo é o
sentido, porque seu dever é a esperança de liberdade.
Referências
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escrita. Trad. de Diana M. Lichtenstein et al. Porto Alegre:
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167
Maria do Rosário Longo Mortatti
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MAGNANI, M. R. M. Em sobressaltos: formação de professora.
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TODOROV, Tzvetan. Introdução. In: BAKHTIN. Mikhail.
Estética da criação verbal. Trad. de Paulo Bezerra. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
168
Letramento na Maré:
uma proposta metodológica
de ensino da leitura e da escrita
para jovens e adultos
Marlene Carvalho*
Chama-se Maré uma ampla área geográfica à margem da
Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, próxima do Aeroporto
Internacional do Galeão e da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Houve tempo em que muitas das moradias do local
eram palafitas, casebres precários, espetados na lama. As
zonas alagadas foram aterradas e hoje o espaço está ocupado
por dezesseis favelas cujas condições de saneamento e
habitação são heterogêneas. Em algumas comunidades, há
grandes conjuntos habitacionais e construções de alvenaria
de dois, três e mais pavimentos; em outras, casebres
miseráveis. Há ruas largas e asfaltadas em algumas zonas, mas
também becos, vielas, ruelas labirínticas (Varella; Bertazzo;
Jacques, 2002). Há muito movimento de pedestres e veículos,
mas são poucas as árvores e plantas e poucos os espaços livres
para convivência. Em síntese, “é inegável o reconhecimento
dessa localidade como um espaço proletarizado, com
predomínio de populações nordestina e negra em condições
sócio-profissionais subordinadas e com baixa escolaridade”
(UFRJ, 2003).
O objeto deste artigo é a proposta metodológica de ensino
da leitura e da escrita para alunos que freqüentam o Programa
de Alfabetização desenvolvido na Maré por professores,
estudantes e funcionários da Universidade Federal do Rio de
*
Doutora em Ciências da Educação pela Université de l’Etat, Liége, Bélgica.
Trabalhos acadêmicos: Três campanhas de educação de base no Brasil no
período: 1947-1963: análise, crítica e comparação.
169
Marlene Carvalho
Janeiro (UFRJ). O programa propõe-se a alfabetizar e letrar
jovens e adultos, ou seja, torná-los usuários da escrita e da
leitura para fins profissionais e sociais. O projeto de letramento
subjacente ao programa baseia-se na concepção de Kleiman e
Signorini (2001, p. 238), isto é, “[...] um conjunto de atividades
que se origina de um interesse real na vida dos alunos, e cuja
realização envolve o uso da escrita, isto é, a leitura de textos
que, de fato, circulam na sociedade e a produção de textos
que serão lidos, em um trabalho coletivo de alunos e professor,
cada um segundo sua capacidade”.
Na primeira parte deste artigo são apresentados os eixos
do programa, uma síntese da proposta metodológica e trechos
de depoimentos de alfabetizadores. Na segunda parte, analisa-se
uma amostra de textos produzidos, de setembro a dezembro de
2005, por alunos situados em vários pontos do continuum de
letramento. Na terceira e última parte, apresenta-se um balanço
preliminar da experiência nos anos de 2004 e 2005.
Primeira parte
O que é o projeto
O Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos da UFRJ
compreende três eixos: o projeto de extensão propriamente
dito, a formação continuada e assessoramento dos estudantes
de graduação que atuam como alfabetizadores e a pesquisa
participativa (Carvalho, 2005a, 2005b, 2005c, 2004). Os
principais objetivos do programa são alfabetizar e letrar jovens
e adultos moradores da Maré e outros espaços populares;
encaminhá-los, após a alfabetização inicial, ao sistema de
ensino fundamental regular; oferecer formação continuada a
estudantes de graduação e pós-graduação, sob supervisão e
orientação de docentes universitários; desenvolver e difundir
pesquisas sobre alfabetização de jovens e adultos (UFRJ,
2003).
Levando-se em conta que muitos dos jovens e adultos
analfabetos da Maré já passaram pela escola e dela foram
excluídos – após penosas tentativas de aprender a ler e
escrever –, o programa de extensão propôs-se a desenvolver
um currículo aberto, sem progressão predefinida, partindo
dos conhecimentos dos alunos e de seus interesses e
necessidades. Os pressupostos do currículo são o respeito
170
Letramento na Maré: uma proposta metodológica de ensino da leitura...
pelo “conhecimento do mundo, saberes, experiências e valores
dos alunos” (Freire, 2005); o reconhecimento das variantes
lingüísticas do português por eles utilizados; a organização dos
conteúdos pelo professor em unidades temáticas, de acordo
com as características e necessidades das turmas; a integração
das áreas de língua portuguesa, matemática e estudos sociais
(realidade social / meio ambiente / saúde); a concomitância e
interdependência das atividades de alfabetização e letramento;
a perspectiva de estimular a continuidade de estudos
após a alfabetização inicial. Neste artigo, os conteúdos de
matemática e estudos sociais não são abordados; analisam-se
apenas os aspectos relativos aos processos de alfabetização e
letramento.
Adotando-se o ponto de vista de Kleiman e Signorini
(2001, p. 19), entende-se letramento “como o conjunto de
práticas sociais relacionadas ao uso, à função e ao impacto da
escrita na sociedade, diferenciando esse conceito do conceito
de alfabetização, o qual é mais restrito, em geral interpretado
como processo de aquisição do código da escrita e domínio
individual desse código”. Para alfabetizar e letrar, foram
priorizados recursos didáticos “em que a leitura da palavra fosse
precedida da leitura do mundo” (Freire, 1992), estimulando-se
o diálogo sobre temas de interesse político, social e cultural
abordados em textos de diferentes gêneros. Enfatizaram-se
a leitura e escrita em situações sociais significativas, em
oposição aos exercícios escolares tradicionais de leitura como
decifração de palavras ou de fragmentos textuais, e de escrita
meramente escolar, sem significado ou função social.
A formação inicial dos estudantes, com trinta horas de
duração, versou sobre educação popular na perspectiva de
Paulo Freire, noções de lingüística, de didática da alfabetização
e da matemática e informações sobre a vida social na Maré.
A seguir, veio a formação continuada, da qual participei em
2005, como professora aposentada da Faculdade de Educação
da UFRJ, membro de uma equipe composta de docentes da
mesma unidade, da Faculdade de Letras, da Escola de Serviço
Social, do Instituto de Matemática e de funcionários técnicoadministrativos da Pró-Reitoria de Extensão.
Realizada quinzenalmente, a formação continuada
partiu também da perspectiva freiriana, enfatizando o diálogo
entre docentes universitários e estudantes-alfabetizadores.
Dali surgiram a discussão de alternativas didáticas, a
171
Marlene Carvalho
problematização das práticas pedagógicas, a preparação
coletiva de materiais de ensino e a análise dos problemas de sala
de aula. Ao longo do trabalho, os alfabetizadores construíram
“saberes da experiência” (Tardif, 2002) e criaram metodologias
híbridas,1 a partir do arcabouço teórico-metodológico de Paulo
Freire (2005), cuja proposta didática foi sendo adaptada ao
contexto urbano da favela e aos interesses, necessidades e
avanços dos alfabetizandos.
Ao começar o programa, em fevereiro de 2004, foram
formadas 25 turmas, sob a responsabilidade de 25 estudantes
de graduação da UFRJ, oriundos principalmente dos cursos de
Letras, Pedagogia e Serviço Social. Em número menor, havia
estudantes de outros cursos. Matricularam-se no programa
504 alunos jovens e adultos, dos quais 74,80% eram mulheres
e 25,20%, homens. Cerca de 72% dos alunos situavam-se na
faixa entre 21 e 50 anos. Os mais jovens, entre 14 e 20 anos,
eram 9% do alunado. Houve grande participação de pessoas
entre 51 e 80 anos, ou seja, 111 pessoas nesta faixa etária,
totalizando cerca de 25% do alunado.
Em 2005, a matrícula foi de 548 alunos. A participação
masculina aumentou ligeiramente, passando a 33,94%,
enquanto a feminina totalizou 66,06%. Trinta e quatro alunos
de graduação da UFRJ assumiram as turmas. A participação
de estudantes de letras, pedagogia e serviço social continuou
predominante, mas houve também estudantes de história,
ciências sociais, desenho, entre outros.
Cerca de 70% dos jovens e adultos estavam na faixa
etária de 21 a 50 anos. Na extremidade inferior da escala,
havia cerca de 6% de alunos de 14 a 20 anos. A participação
de adultos entre 51 e 80 anos diminuiu sensivelmente: 46
pessoas, representando 8,61 do grupo.
Os avanços obtidos pelos jovens e adultos no processo
de letramento são abordados na segunda parte deste artigo.
Alfabetizadores falam sobre a experiência
Da Maré, território híbrido, marcado por contradições, a
mídia só divulga imagens de horror: guerra entre facções do
1
Chamamos “metodologias híbridas” aquelas inspiradas em determinada matriz metodológica, no caso, o método Paulo Freire, que sofreram adaptações
didáticas por iniciativa dos alfabetizadores. Ver o tópico “Alfabetização e
letramento” deste trabalho.
172
Letramento na Maré: uma proposta metodológica de ensino da leitura...
tráfico de drogas, bandidos em fuga, balas perdidas. Contudo,
ali coexistem trabalhadores e traficantes; banditismo e
religiosidade, solidariedade e conflito; modernidade e atraso;
conjuntos habitacionais futuristas e casebres precários;
isolamento cultural e abertura para grupos que desenvolvem
atividades esportivas, religiosas e culturais e promovem
cursos de dança, fotografia, música, entre outros.
Uma das preocupações da equipe de formadoras dizia
respeito à entrada dos estudantes no território da Maré:
embora alguns poucos morassem ali mesmo, e outros, em
bairros populares, igualmente proletarizados, a maioria
jamais havia entrado numa favela. Fossem quais fossem seus
locais de moradia, seriam os estudantes capazes de vencer
a distância social que os separava dos habitantes da Maré?
Como enfrentariam o medo da violência, das balas perdidas,
das ameaças constantes à segurança?
Em entrevistas realizadas com alfabetizadores, eles
revelaram suas primeiras impressões e descobertas sobre
o contexto.O alfabetizador Joaquim, estudante de história,
assim se expressou:2
Foi me trazendo assim, muita preocupação, eu ficava
angustiado. Como é possível assim um povo tão perto de tanta
riqueza e tá tão ferrado, tão, tão ruim assim de informações?
Eu ficava angustiado com esse negócio, caramba! Como é que
pode isso? Como é que funciona esse negócio?
A alfabetizadora Shirléia, estudante de sociologia,
declarou:
O impacto inicial pra mim foi perceber o quanto as pessoas,
não só lá na comunidade, mas às vezes você fala com a
pessoa, convive com a pessoa e não percebe que ela não foi
alfabetizada, e me dei conta de que eram pessoas... tipos que
eu já tinha encontrado a minha vida toda, que eu não tinha me
dado conta de que tanto a cozinheira, a moça do cafezinho, a
moça que vendia bala... eram tipos muito próximos à minha
realidade que eu não havia observado e que quando eu fui
para lá, este foi o meu primeiro impacto. Que as pessoas que
eram muito comuns a mim, à minha realidade também e que
eu nunca tinha observado isso... vizinhos, pessoas do bairro,
pessoas com quem eu já trabalhei no mesmo ambiente, e que
eu não tinha me dado conta, e como a pessoa que mesmo sem
saber ler e escrever, ela consegue passar uma imagem de que
não é isso, só você perguntando... elas têm muita vergonha
2
Os alfabetizadores citados neste artigo deram permissão para que seus nomes verdadeiros fossem mencionados em trabalhos acadêmicos vinculados
ao programa.
173
Marlene Carvalho
disso. As pessoas iam com o caderno enrolado num saco preto
escondido debaixo do braço, filho levando mãe, estas situações,
assim, de muita vergonha, de estar freqüentando o curso de
alfabetização e também de ser num lugar onde vinha... não era
revelado. Em vários ambientes que não era revelado.
Trecho do depoimento da alfabetizadora Luciana,
estudante de serviço social:
[o impacto inicial] Foi um choque. Não que eu não conhecesse a
realidade de uma favela. A gente convive e, profissionalmente,
eu vejo muito. Ficava chocada com as condições, com os
objetivos da pessoa que morava numa casa, que não tinha
água, direito, um lugar pequeno, sem condições de nada
e trabalhando pesado. Faxineira, pedreiro. Então, você via
aquelas pessoas até tentando lutar. Por um lado, v. via uma
dificuldade muito grande, mas uma vontade muito grande
deles.
A entrada no território da favela provocou estranhamento
dos modos de viver, da cultura da população. A princípio, os
estudantes mostravam-se indignados com a deterioração das
condições da vida nas favelas, com a miséria, falta de segurança
e de oportunidades profissionais e culturais. O discurso dos
estudantes sobre suas experiências revela que nas primeiras
semanas predominavam a descrença na capacidade de exercer
o papel de educadores, angústia e medo de errar. Mais adiante,
surgiram indícios de empatia, descoberta de valores comuns,
admiração por traços de caráter e histórias de vida de pessoas
empenhadas em estudar em condições adversas. Apareceram
o desejo e a disposição de ensinar; os estudantes começam a
perceber-se como professores. A identidade de cada um foi
afetada pela experiência vivida.
Segunda parte
Ao final do ano letivo de 2005, na condição de
responsável pela formação continuada de um pequeno grupo
de alfabetizadores, solicitei-lhes que coletassem trabalhos
escritos dos alunos. Em virtude das limitações da extensão
deste artigo, aqui são examinados textos produzidos por
alunos de apenas duas turmas, entre setembro e dezembro
de 2005. Os respectivos alfabetizadores – Fabiano e Joaquim
– freqüentemente estimularam a leitura, discussão e produção
de textos de gêneros variados, conforme a proposta do
programa.
174
Letramento na Maré: uma proposta metodológica de ensino da leitura...
Os trabalhos foram produzidos nas salas de aula, na
presença dos alfabetizadores. Na transcrição dos textos foram
mantidos os erros de ortografia e gramática e procurou-se
manter o tipo de letra usado (cursiva ou maiúsculas de
imprensa) e ser fiel à disposição gráfica adotada pelos autores.
Alguns poucos trabalhos trazem indícios de correção ou
reescrita, mas, em geral, não foram corrigidos. O corpus de
dados inclui textos curtos e simples, de natureza funcional,
como listas de compras, listas de nomes de familiares e colegas
e fichas de dados pessoais; textos subjetivos inspirados em
fotos, escritos de comunicação pessoal (bilhetes e mensagens
de boas festas) e também textos mais longos e elaborados,
como narrativas pessoais, “causos” do mundo rural ou lendas
urbanas.
Uma primeira aproximação com esses textos revela que
seus autores, embora manejem com dificuldade a ortografia, e
ignorem as regras de pontuação, são capazes de expressar com
veemência idéias, desejos, sentimentos e críticas.
Textos funcionais, como listas de compras, listas de
nomes de pessoas da família, fichas com dados pessoais
(nome, endereço, naturalidade, RG, nomes dos filhos), e
outros foram produzidos por quase todos que freqüentaram
o programa com assiduidade durante um ou dois semestres.
Textos de gêneros textuais variados – bilhetes, “causos” do
mundo rural ou lendas urbanas, narrativas pessoais, e poesias
– foram produzidos em menor número.
Há muitos trabalhos, ilustrados por fotografias,
relacionados com as condições de vida da população pobre,
com a identidade do brasileiro, e com a situação política do
país ao fim do ano de 2005. Há outros textos expressivos, de
natureza subjetiva, cujos temas são sentimentos de solidão
e o medo da violência. Nas narrativas pessoais, voltam os
temas das agruras da vida passada e atual. Os alunos falam
da migração do mundo rural para a favela da Maré, ou de
fatos marcantes de sua história, das dificuldades da vida e do
trabalho, temperadas pela fé religiosa, esperanças no futuro e
o amor pela família.
Os gêneros narrativa pessoal, mensagens de boas
festas e legendas, ou pequenos textos inspirados em fotos,
permitiram que pessoas situadas em diferentes pontos do
processo de letramento expressassem idéias, preocupações,
sentimentos. Com poucas palavras dizem muito, falam das
175
Marlene Carvalho
mazelas do Brasil e dos políticos. Os temas tratados pertencem
ao seu universo de interesses e preocupações. Não há escritas
gratuitas, desconectadas do mundo real. Não há infantilização
ou frases acartilhadas. Os alunos se revelam, se expõem. Seus
textos são toscos, do ponto de vista da correção gramatical,
mas expressivos.
Legendas de fotos
Usar fotos e gravuras como estímulo para a produção
de textos é uma prática escolar comum, que pode ser mais ou
menos enriquecedora do processo de letramento, segundo os
objetivos do professor, o contexto de produção e o interesse
que os alunos encontram na tarefa. No programa, os próprios
alunos escolhem as imagens e escrevem legendas, ou
comentários, não apenas descritivos, mas indicativos de suas
opiniões, pontos de vista ou estados d’alma. Instaura-se um
diálogo entre imagem e texto, pois o aluno não escreve sobre a
imagem em si, mas sobre o que esta lhe sugere: pensamentos,
lembranças, críticas, sentimentos, idéias, preocupações,
posições políticas, esperanças. Assim, nesses trabalhos,
experimentam a função expressiva da escrita.
Em setembro de 2005, mês da independência, o
alfabetizador Joaquim pediu aos alunos que escrevessem frases
com as palavras Brasil e brasileiro/brasileira e escolhessem
fotos de jornais para ilustrá-las. Nas frases, são reveladas
facetas diversas da identidade do brasileiro: o amor à pátria,
o entusiasmo pela seleção de futebol, o orgulho pelas belezas
do Brasil, recorrentemente considerado “o país mais bonito do
mundo”. Por outro lado, os textos produzidos em novembro e
dezembro de 2005, mostram que os alunos estavam a par das
notícias sobre escândalos de corrupção no governo federal e
assumiam posição crítica contra o presidente Lula.
As fotos, recortadas de jornais ou revistas não
identificados, foram coladas em folhas de papel reaproveitadas,
por medida de economia, que tinham no verso cópias
xerocadas de textos acadêmicos. Os trabalhos dos alunos
são bem apresentados, limpos, escritos em letra cursiva, ou
maiúsculas de imprensa. Os dois tipos de letras por vezes
aparecem misturados em alguns exercícios. Em alguns casos,
as frases são curtas, quebradas, lembrando a disposição gráfica
das frases das cartilhas; em outros, os alunos usam toda a
largura do papel para escrever seus textos.
176
Letramento na Maré: uma proposta metodológica de ensino da leitura...
Foto 1: Cenário de pobreza no meio rural. Casebres de pau-apique, galinhas ciscando, figuras humanas indistintas. Céu
azul. A aluna escreveu:
BRASIL
O Brasil é o lugar mais bonito do mundo.
A brasileira é muito sofrida.
Em apenas duas frases e uma foto a aluna expressou
contradições que percebe. A imagem de pobreza rural contrasta
com o clichê O Brasil é o lugar mais bonito do mundo. Por outro
lado, o enunciado A brasileira é muito sofrida é coerente com
a imagem dos casebres e possivelmente com a auto-imagem
da aluna.
Foto 2: Céu azul, uma pipa voando alto, com a bandeira do
Brasil ao centro. As frases:
O Brasil é o país mais bonito do mundo.
A brasileira é muito trabalhadora.
A aluna, mulher trabalhadora de baixa renda, repete o
clichê, mas insere no texto um enunciado que expressa uma
faceta da identidade feminina.
Foto 3: Torcida de futebol, homens exultantes, com os braços
para o alto, a bandeira brasileira em primeiro plano. A
legenda:
Esta é maior torcida do mundo não importa o sexo é a torcida
brasileira.
Há um diálogo entre a foto e o texto: a aluna observou
que não aparecem mulheres na foto, mas afirma-se como
torcedora e brasileira ao dizer que “não importa o sexo é a
torcida brasileira”.
Foto 4: Uma parte da bandeira do Brasil foi recortada e colada
no alto da página. O aluno escreveu em letras grandes,
maiúsculas de imprensa, que ocupam quase toda a página
no sentido transversal:
BRASIL
O BRASIL É UM PAÍS BRUITLFUO [O BRASIL É BEAUTIFUL]
O BRASIL É UM PAÍS BONITO.
BRASILEIRO
BRASILEIRO É MUITO TRABALHADOR.
A BRASILEIRA É MUITO GOSTOSA.
177
Marlene Carvalho
O aluno usa primeiro uma palavra em inglês (beautiful)
para expressar o clichê, indicando que conhece algo desta
língua de prestígio, embora cometa um erro de ortografia
na palavra beautiful. Depois escreve O BRASIL É UM PAÍS
BONITO. A seguir, a identidade de brasileiro/brasileira é
expressa em dois enunciados contrastantes: BRASILEIRO
É MUITO TRABALHADOR e A BRASILEIRA É MUITO
GOSTOSA. Ambos os enunciados expressam admiração
pelos compatriotas, mas a qualidade ressaltada para o gênero
feminino relaciona-se com o estereótipo da brasileira sensual,
não com a mulher trabalhadora e sofrida mencionada por
alunas em outros trabalhos.
Foto 5: Um casebre de pau-a-pique, cobertura de sapé. Uma
porta e uma janela, na qual se vê um vulto indistinto. Diante
do casebre, quatro crianças sentadas num banco. A legenda
tenta explicar as razões da pobreza desta família da zona
rural:
O Brasil tem muito roubo. esta família sofre porque não tem
terra para plantar.
Foto 6: Recorte de uma foto de jornal, tirada por ocasião da visita
do presidente Lula e dona Marisa ao Vaticano. Em primeiro
plano, à esquerda, a mão de um sacerdote oferecendo a hóstia
e à direita, o presidente, com expressão compenetrada. Dona
Marisa está com a cabeça coberta por um véu preto. Note-se o
contraste entre a imagem piedosa do casal e a legenda crítica
do aluno, que se dirige ao presidente como se estivesse com ele
dialogando:
Lula você precisa ajudar os pobres a arrumar emprego
melhorar as escolas os hospitais e aumentar os salários.
Foto 7: Foto da bandeira nacional, seguida de um texto em que
o aluno explica as condições para que o Brasil, país muito
rico, venha acabar com as desigualdades: salários iguais,
universidade para os pobres, boa escola e bom hospital para
os pobres.
O BRASIL é muito rico
Nele não poderia ter desigualdade
Entre rico e pobres
Todos poderiam ganhar por igual
Onde pobres pudessem fazer a universidade como os ricos
Boa escola hospital com bom
Atendimento para pobres.
178
Letramento na Maré: uma proposta metodológica de ensino da leitura...
Assim todos vivam bem
Neste BRASIL.
Foto 8: Bandeira brasileira seguida de um texto em que a crítica –
o Brasil é uma calamidade – é logo a seguir suavizada ou
relativizada;
Esse país que nós vivimos é uma calamidade mais mesmo
assim é bom de se viver
E trabalhar por que não falta dinheiro mesmo
Sendo salário mínimo mais dar para comprar as coisas
devagarzinho.3
Em novembro de 2005, o alfabetizador Joaquim propôs
outro exercício do mesmo gênero. As fotos escolhidas e os
textos giraram em torno da figura do presidente da República.
No discurso dos alunos, o presidente é alvo de críticas severas
e de acusações graves, assim como de manifestações de
desconfiança e desapontamento. Uma única aluna disse que
Lula é “um bom presidente”, mas a seguir acrescentou “que
Promete muito mais (sic) ainda não fez mais (sic) pode fazer
muito mais pelo povo brasileiro.”
Foto 9: O presidente Lula está num palanque, com os braços
erguidos, cercado por pessoas que o aplaudem. O texto do
aluno, datado de 21 de novembro de 2005, diz:
O Lula não fez nada para o nosso Brasil ele só sabe dizer que
vai fazer não faz porcaria nenhuma e só quer aparecer na
televisão dizendo que vai fazer só sabe viajar com a mulher
para conhecer outros paiz que não pertence a ele e os bobo
acompanha ele.
Foto 10: Esta é uma foto colorida, em que Lula, de olhos
fechados, põe a mão na testa. Apesar do meio sorriso,
aparenta preocupação, ou cansaço. O aluno escreveu como
se estivesse falando com o presidente:
Lula você está chorando de arrependimento pois todos
confiarão (sic) em você.
Foto 11: A foto, em preto-e-branco, mostra Lula entre dois
homens engravatados. O da esquerda é José Dirceu, flagrado
pelo fotógrafo apertando fortemente o nariz, com os dedos
da mão direita. O gesto, talvez uma tentativa de reprimir um
espirro, pode ser interpretado de outras maneiras. Primeiro
o aluno escreveu algo quase ilegível.
3
Texto corrigido: Esse país que nós vivemos é uma calamidade, mas mesmo
assim é bom de se viver e trabalhar, porque não falta dinheiro, mesmo sendo
salário mínimo, mas dá para comprar as coisas devagarinho.
179
Marlene Carvalho
Lula você pecirdo mto mai dia você vence pecirido é gadende
e deu e e deu muito.
Abaixo, passou um traço horizontal e reescreveu a frase,
provavelmente com a ajuda do alfabetizador, misturando
letras de imprensa e cursivas. Também aqui o aluno escreve
como se falasse diretamente com Lula:
Lula você é muito persiguido mais um dia você vence.
Grande é deus e ele é muito bom.
Foto 12: Mais uma foto de Lula, agora diante de um
microfone, tendo a bandeira nacional atrás de si. Assim
como no exercício anterior, há duas legendas. A primeira,
em maiúsculas de imprensa, é:
LULA CERA QA VOCE TA FALADO A VEDADI SO DESU
É QUA SABE
Abaixo desta legenda, e separado por um traço, aparece
o texto agora com pontuação e ortografia corretas:
LULA, SERÁ QUE VOCÊ ESTÁ FALANDO A VERDADE? SÓ
DEUS É QUE SABE.
Foto 13: Lula aparece sorridente, segurando um microfone,
com expressão satisfeita. A simpatia que a aluna expressa
pelo presidente é acompanhada de uma cobrança:
Lula é um bom presidente
Promete muito mais (sic) ainda não fez mais (sic) pode fazer
muito mais pelo povo brasileiro
Foto 14: Sorridente, cercado por uma multidão, Lula está
tentando sair de um automóvel. O aluno escreveu:
Lula você disse no seu palanque corrupto não sobe
E no seu governo não entra
Como você pode esplica tudo o que esta acontecendo. será
que podemos comfiar em você?
Esta pequena série de exemplos mostra como a
combinação foto-legenda, ou foto-comentário, abriu caminho
para expressão de preocupações e críticas de natureza social
e política, talvez antes limitadas ao mundo da comunicação
oral dos alunos em questão. A propósito, vários trabalhos
estão marcados por fórmulas lingüísticas próprias do diálogo,
como o uso do vocativo: “lula você disse”, “Lula você é muito
perseguido”, “lula será que você está falando a verdade”.
As imagens provocaram reflexões e, ao mesmo tempo,
ampliaram e enriqueceram os pequenos textos. O exercício
180
Letramento na Maré: uma proposta metodológica de ensino da leitura...
escolar foi simples e produtivo; as fotos, extraídas de
publicações de grande circulação, são material didático
acessível, afinado com os acontecimentos da atualidade, à
altura da compreensão do mundo dos jovens e adultos. Notese, no entanto, que esses textos foram produzidos no contexto
de salas de aula em que a discussão de temas de natureza
política e social era freqüente. Fosse outro o modo de ensinar,
teríamos tido provavelmente outro resultado.
Sentimentos
Outros trabalhos dos alunos de Joaquim, também
inspirados em fotos, falam de sentimentos, especialmente de
solidão e de medo da violência. Produzidos em sala de aula, a
pedido do alfabetizador, revelam a subjetividade dos autores.
Sobre solidão, uma aluna produziu dois trabalhos.
Na Foto 1 vê-se uma rua quase deserta. Em primeiro
plano, um homem negro, de meia-idade, está montado numa
bicicleta; tem a cabeça raspada, veste macacão e empunha
uma vassoura, ou espanador de cabo longo. Presa ao guidão
da bicicleta, uma bolsa do tipo sacola. A aluna, que registrou
sua idade – 58 anos –, escreveu:
Quando eu estou sozinha me sinto na solidão não é só
de sexo é falta de outras coisas como falta de conversa
principalmente a noite o dia as pessoas se distraen
conversando e vai passando, a noite que é triste.
Na Foto 2 aparece um jovem de corpo inteiro, atlético,
sem camisa, de bermuda florida. Está descalço e posa muito
sério, num cenário natural. Trata-se de uma foto publicitária,
de moda. Sobre a foto, a mesma autora do texto acima escreveu
algo híbrido, que tem marcas formais da carta e da descrição.
Rio de Janeiro, 21/11/2005
Eu acho que este rapaz tem uma boa estatura [...] era assim
que a minha mãe queria um genro alto de cor clara e muito
famoso e lindo só que não é para mim e para garotas mais
nova do que eu ele tem o corpo bonito, famoso, só que eu
acho ele muito serio não dar nenhuma risada para mim ver
o jeito dele mas eu gosto dele assim mesmo termino com
um forte abraço e um beijo com muito respeito de não ter
conhecido pessoalmente desculpe de alguns erros.
Enquanto no primeiro texto a imagem de um trabalhador
negro, de meia idade, sugeriu à mulher alguém com quem
se identificaria para atenuar a solidão, no segundo trabalho,
o modelo da foto publicitária é um rapaz inacessível, que
“tem o corpo bonito, famoso”. Após descrevê-lo, dirige-se
181
Marlene Carvalho
a ele formalmente, manda-lhe “um forte abraço” (marca de
formalidade) e um beijo, “com muito respeito” (retorno da
formalidade), acrescentando um pedido de desculpas pelos
erros, fórmula que aparece com freqüência nas cartas de
indivíduos que não confiam nas suas habilidades epistolares.
Na Foto 3, um homem de costas, curvado sob um guarda
chuva, leva uma mochila. O cenário é cinzento, desolador. O
texto reforça a imagem e vice-versa.
A solidão é muito triste
Viver so é não ter uma pessoa para conversa e não tenho
marido.
Outra aluna escolheu duas fotos (4 e 5). Na primeira,
uma menina risonha, de vestido florido, tem a seu lado outra
criança, cujo rosto não é visível. O cenário sugere uma casa
árabe. A segunda foto mostra uma mulher negra, descalça,
pano na cabeça, sentada sobre uma cama tosca, num ambiente
pobre. Na parede atrás da mulher, uma profusão de cabaças,
canecas e panelinhas. Abaixo das fotos, a aluna escreveu:
A solidão não existe so quem procura ela
quem tem beija flor nunca fica sozinho
reconheço que os idozo estão abandonado
Eita filho desnaturado
Nos primeiros textos, a solidão é descrita como algo
penoso, que provoca tristeza, ataca principalmente à noite e
se manifesta pela falta de alguém com quem conversar. Mas
é também negada poeticamente: a solidão não existe, “pois
quem tem beija-flor nunca fica sozinho” (Foto 4 e 5). Neste
mesmo texto, a aluna retoma a perspectiva realista e diz que
reconhece que os idosos (como a mulher negra da foto) estão
muito abandonados.
Narrativas pessoais
Dentre um variado conjunto de trabalhos dos alunos do
alfabetizador Fabiano, há algumas narrativas pessoais, gênero
pouco explorado nas demais turmas.
As narrativas abaixo foram produzidas por alunos
em níveis distintos do processo de letramento. São escritas
geralmente em letra cursiva, de bom tamanho, com boa
disposição gráfica no papel. Nestes relatos expressivos, os
alunos comparam as condições de vida anteriores à chegada na
Maré com as condições atuais, falam da luta pela sobrevivência,
182
Letramento na Maré: uma proposta metodológica de ensino da leitura...
citam os professores, em textos em que não faltam coesão e
coerência, apesar das falhas gramaticais.
Narrativa 1 - Datada de dezembro 2005.
Lá no norte nós não tínhamos condições de pagar uma
escola particular e por isso eu vim para o Rio para conseguir
uma vida melhor e aí eu conheci o Fabiano ele é um ótimo
professor muito bacana além do Fabiano conheci vários
colegas de classe que também são gente fina como Silas a
dona erly e outros. melhorou bastante a minha letra e todo
dia agradeço a Deus por ele iluminar meu caminho.
Narrativa 2
Eu nasci no ceará. Vim de uma cidadizinha chamada
Catunda cheguei no Rio de janeiro em junho de 1976. E
graças a deus consegui hoje trabalho de servente em um
edifício garagem que se chama Rio Park no norte a vida não
era fácil eu plantava horta para sobreviver quando cheguei
conheci muita gente conheci vareos professores quando
cheguei
Narrativa 3
Eu naci em taqara estado do espírito santo fui resistrada
em cachoeiro de itapemirim vim para o rio de janeiro em
1957 pela viação itapemirim cheguei em niterói ais 9 horas
da noite a travessei a barca para o Rio depois fui para são
Cristovo e de la eu vim morar no Parque união.
Narrativa 4. Datada de 1 junho 2005.
Escrita legível, em maiúsculas de imprensa, traços firmes.
EU (segue-se o nome completo) TRABALHE NA ROSIA ATE
OS 13 ANO DE IDADE DEPOIS FOI A CIDADE DE CANPIN
GRADE (Campina Grande) TRABALHE ATE 17 ANO DE
IDADE EU VI AO RIO DE JAENIRO PARA TRABALHA EU
TENHO MUITA DIFICUDADE PARA SOBREVIVE TENHO
MUITA FOFA (força) PARA TENTA A VIDA AQUI
No dia seguinte, o aluno deu continuação ao texto 4
escrevendo:
CONTINUAÇÃO AQUI E MUITO DIFICIO MAIS DIFICIO
NO NORDESTE A FAUTA DE EMPREGO SÃO MUITA
DEFICUDADE PARA SOBREVIVE NO NORDESTE POR
MOTIVO EU TER VINDO AO RIO PARA TRABALHAR
PARA AJUDA A MINHA FAMILIA SÃO MUITO POBRE
E TRABALHAR NA ROÇA NA REGIÃO DE CANPINA
GRANDE PARAIBA NORDESTE
Reexaminando os textos apresentados neste artigo,
podem-se constatar algumas das dificuldades manifestadas
pelos alunos quanto ao domínio da escrita. Os principiantes,
que apenas começaram a estabelecer relações entre letras e
183
Marlene Carvalho
sons, cometem erros de troca ou omissão de letras, como mto
por muito, vedade por verdade, falado por falando etc. Sílabas
fechadas são grafadas como se fossem abertas (vedade, falado)
e há casos de transposição da consoante para o lugar da vogal
(desu em lugar de deus).
À medida que os alfabetizandos avançam no domínio
do código alfabético, erros desse tipo são menos freqüentes,
sem chegar a desaparecer de todo. A pontuação é sempre
problemática quando começam a escrever pequenos textos.
Em geral, limitam-se a colocar um ponto ao final da frase ou
do parágrafo. Vírgulas são inexistentes, ou colocadas de modo
aleatório. A regra de uso das maiúsculas no início das frases
quase sempre é respeitada, mas aparecem nomes próprios
com minúsculas (ceará por Ceará).
São freqüentes as grafias que espelham o modo de
falar dos alunos. Como disse Lemle, “sua escrita é como
uma transcrição fonética da fala”. Escrevem naci por nasci,
resistrada por registrada, dificudade por dificuldade, trabalha
por trabalhar, fauta por falta, e assim por diante.
Erros de ortografia que Lemle denomina “falhas
de terceira ordem”, correspondentes à troca entre letras
concorrentes (Lemle, 2004, p. 41), aparecem com freqüência:
idozo por idoso, cera por será, paiz por país etc. Há também
numerosos erros de concordância verbal e nominal.
A falta de familiaridade com as convenções que regem
diferentes gêneros textuais é mais visível nas cartas, bilhetes e
legendas do que nas narrativas. De fato, a narrativa parece ser
o gênero com o qual os alunos lidam com mais facilidade.
A questão da correção gramatical tem sido discutida
com os alfabetizadores, que muitas vezes se declaram
despreparados para lidar com o ensino de regras, exceções e
particularidades do português. Algumas de suas perguntas:
como lidar com a escrita que espelha variações dialetais?
Como ensinar pontuação? Como diminuir a incidência de
erros de ortografia? Como aliar a criatividade na produção dos
textos a um mínimo de correção gramatical? Como ensinar
gramática de forma não coercitiva e autoritária? Embora
tenham sido tratadas nas reuniões de formação continuada,
deveriam ter merecido mais tempo e mais atenção por parte
dos formadores. A par disso, o programa deve investir, logo
184
Letramento na Maré: uma proposta metodológica de ensino da leitura...
que possível, na preparação de material didático centrado nas
dificuldades, necessidades e demandas dos jovens e adultos.
A proposta metodológica:
balanço preliminar de uma experiência
A proposta metodológica inspirada em Paulo Freire
– contextualizar a palavra geradora, desmembrá-la em
sílabas, usá-las como unidades para formação de novas
palavras – funcionou a contento para aqueles que precisavam
ainda aprender o código alfabético. Ao mesmo tempo, os
alfabetizadores proporcionaram contato com ampla variedade
textual, por meio da leitura em voz alta e pela realização de
atividades visando ao letramento. Foram valorizadas a leitura
e interpretação de textos curtos, leitura oral (pelo educador
e pelos alunos) de crônicas, poesias, notícias de jornais,
a discussão dos textos e construção de textos coletivos.
Contrariamente às práticas pedagógicas mais comuns, os
alfabetizadores não esperaram que os alunos tivessem
dominado o alfabeto, as combinações silábicas e as relações
grafo-fônicas para depois apresentar frases e textos. Estes
últimos apareceram paralelamente em atividades didáticas
com diferentes suportes de textos (jornal, encarte, livro,
embalagens, revistas). Assim, considera-se que foi utilizada
uma metodologia híbrida, que contém elementos da proposta
de Paulo Freire e de abordagens didáticas características dos
métodos globais de aprendizagem da leitura.
Esse caminho metodológico misto, quando foi proposto
aos alfabetizadores, criou dúvidas e insegurança, pois muitos
não acreditavam ser possível ensinar a ler a escrever, a não ser
começando pelas menores unidades lingüísticas, como letras
ou sílabas. O processo de formação continuada serviu para
dar aos alfabetizadores a base teórico-metodológica que lhes
faltava, de modo que, paulatinamente, alguns foram ousando
trabalhar com textos naturais, ao passo que outros ficaram
presos à apresentação seqüencial de palavras-chave.
A ausência de material didático produzido especialmente
para o programa foi outro motivo de insatisfação tanto para
alguns alfabetizadores quanto para outros alfabetizandos. Uma
tarefa urgente para os professores universitários interessados
no campo da educação de jovens e adultos é a elaboração
185
Marlene Carvalho
desse tipo de material. Nesse sentido, a colaboração entre
estudantes-alfabetizadores e professores-pesquisadores será
um campo fértil para a produção de material didático.
A interdisciplinaridade é um dos pressupostos do
programa e tem sido buscada, mas apresenta dificuldades
tanto para os educandos quanto para os educadores. Não
obstante a orientação recebida dos professores universitários
na formação inicial e continuada, houve alfabetizadores que
deixaram de lado quaisquer tentativas de integração entre
conteúdos de matemática e português e até mesmo elegeram
dias da semana distintos para ensinar essas disciplinas,
alegando que seus alunos “preferiam assim”. Isso ocorreu
talvez pela força da tradição escolar do ensino por disciplinas,
ou, ainda, pelas lacunas e fragilidades na formação inicial e
continuada dos alfabetizadores.
Até o momento, não se investigou sistematicamente como
os jovens e adultos avaliam o programa. Alguns alfabetizadores
relatam que seus alunos estão satisfeitos e motivados. Muitos
adultos procuram o programa não só porque o analfabetismo
traz dificuldades na vida cotidiana, mas, principalmente,
por ser um estado ou condição estigmatizante, por isso
mesmo ocultada ou disfarçada, tanto quanto possível. Para
aqueles que nunca freqüentaram escolas ou que delas foram
excluídos, o programa oferece possibilidades de passar a fazer
parte da comunidade dos usuários da língua escrita, ali onde
o domínio da leitura e da escrita se torna mais visível: nas
igrejas, nas associações de moradores, nas organizações não
governamentais e até mesmo nas escolas freqüentadas por seus
filhos e netos. Nesse sentido, considera-se que a alfabetização
constitui um bem simbólico pelo qual os adultos sacrificam o
escasso tempo livre para freqüentar aulas à noite.
Por outro lado, para os que procuram o programa na
expectativa de encontrar emprego, a simples alfabetização,
mesmo seguida da inserção num programa de ensino
fundamental regular, não traz benefícios imediatos. O mercado
de trabalho formal está cada vez mais fechado para os apenas
alfabetizados, ou que completaram o ensino fundamental,
restando-lhes procurar a subsistência nos empregos domésticos,
na economia informal (vendedores não legalizados, prestadores
de serviços sem carteira assinada, biscateiros), nas vagas de
trabalho sazonal e nos programas de assistência social (bolsa-
186
Letramento na Maré: uma proposta metodológica de ensino da leitura...
família e outros). Para ocupar funções qualificadas no setor
de serviços (aquele que oferece maior quantidade de vagas)
exigem-se cada vez mais certificados de estudos de nível
médio e superior.
No entanto, por mais importantes que sejam emprego
e renda, não são categorias isoladas de outros aspectos da
identidade dos indivíduos. Homens e mulheres moradores
da Maré, negros, pardos e brancos, nordestinos e cariocas,
jovens e idosos têm identidades múltiplas e, de uma maneira
ou outra, são afetados pelo fato de saberem (ou não) ler e
escrever. Kleiman e Signorini (2001, p. 225) consideram que
“a escrita tem também para esses grupos uma função social
emancipadora (ou, ainda, obstaculizadora) no sentido de que
é seu conhecimento o que abre e fecha as portas de acesso
para os melhores empregos e permite-lhe ou impede-lhe de
lidar com a burocracia das instituições urbanas: a escola, o
posto de saúde, a previdência”.
Considerando que muitos alunos das turmas de jovens
e adultos já passaram pela escola pública, por vezes durante
dois ou três anos, e de lá saíram sem terem aprendido a ler
e escrever o quanto baste para atender a suas necessidades
sociais, nunca é demais repetir que os sistemas de ensino
devem rever seus currículos, métodos de ensino e conteúdos,
exigências e normas, assim como processos de formação de
professores, para criar uma escola de qualidade, que propicie
condições para o letramento de crianças e jovens das classes
populares.
Condições inadequadas de trabalho são flagelo comum
na educação pública brasileira, que se tornam mais agudas
no caso da educação popular, destinada aos excluídos. A
alfabetização de jovens e adultos sofre cronicamente com a
inadequação dos espaços escolares, escassez ou inadequação
de material didático, improvisação de professores etc. No
projeto em pauta, apesar da vontade política da Pró-Reitoria
de Extensão e do empenho da equipe, as condições materiais
inadequadas, agravadas pelas interrupções freqüentes da
rotina escolar em virtude da ação da polícia e de bandidos,
influíram negativamente sobre o trabalho.
O programa em questão traz o desafio da convivência
com diversos tipos de diferenças.
187
Marlene Carvalho
• diversidade de formações: estudantes-alfabetizadores
que freqüentam os cursos de Pedagogia e Letras, que
lidam com a questão do ensino da língua materna; alunos
de serviço social, teoricamente mais familiarizados
com a problemática da educação e da cultura das
populações marginalizadas, e outros – estudantes de
física, matemática, desenho etc. –, para quem esses
universos de saberes são pouco familiares;
• diversidade de condições da existência: alfabetizadores
que moram na Maré, ou em outras comunidades
populares, e outros que nunca haviam entrado numa
favela;
• diversidade de experiências: alfabetizadores que já
haviam dado aulas, outros que nunca ocuparam o lugar
de professores;
• diversidade de áreas de conhecimento dos professores
universitários (pedagogia, letras, matemática, serviço
social) que se colocam na posição de formadores;
• diversidade dos alunos: adolescentes, adultos e velhos,
homens e mulheres, alguns já iniciados na leitura e na
escrita, outros que não conheciam o alfabeto.
Tamanha diversidade é difícil de enfrentar tanto mais
que o desejo de homogeneidade é fortemente inculcado na
cultura escolar. Por um lado, a diversidade permitiu a troca de
experiências e saberes, uma abertura para os pontos de vista de
colegas, a explicitação de divergências e até mesmo a tomada
de consciência de preconceitos em relação aos habitantes das
favelas.
Uma questão política relevante é saber em que medida
deve a universidade participar de projetos de alfabetização
de adultos, se considerarmos que a persistência do fenômeno
do analfabetismo tem raízes sócio-históricas e reflete a
incapacidade dos sistemas de ensino municipais, estaduais
e federais para cumprir suas funções. Em favor do programa,
meu ponto de vista é que as atividades realizadas fornecem
elementos para que se estabeleça uma ponte entre dois mundos
vizinhos que se desconhecem e se ignoram: o dos moradores
das favelas e o dos professores e estudantes universitários.
Quando se trata de alunos dos cursos de licenciatura, futuros
professores, esse é um conhecimento importante. Quanto
aos resultados da formação continuada, considero que os
188
Letramento na Maré: uma proposta metodológica de ensino da leitura...
estudantes que se propuseram a alfabetizar os jovens e adultos
da Maré aprenderam mais que ensinaram sobre injustiças
sociais, educação bancária, opressão, discriminação em
função de gênero, cor, local de residência e outros fatores de
exclusão. A participação no programa de extensão levou-os a
refletir sobre a dimensão política da educação e do exercício
do magistério, sem falar na experiência de enfrentarem a
insegurança e a violência, que são mais agudas nas favelas do
que em outras áreas do Rio.
As estratégias didáticas, os materiais de leitura, os
textos de apoio e os materiais de alfabetização recriados
pelos alfabetizadores não são padronizados e originaram-se
do diálogo, da reflexão e das trocas entre eles, seus alunos e
as professoras universitárias responsáveis pela formação. Sem
serem criações inéditas, constituem produções pedagógicas
nascidas da experiência, das limitações, possibilidades e
necessidades do contexto. Além disso, constatei que os
alfabetizadores alargaram seu conhecimento do mundo,
aprenderam a explorar seus pontos fortes, a criar recursos e
materiais didáticos, a inventar novos modos de trabalhar, a
aplicar conhecimentos de base dos respectivos cursos de
graduação. Quanto à pesquisa em didática da alfabetização
e letramento de jovens e adultos, considero importante
investigar sistematicamente os métodos híbridos e os
recursos didáticos usados com sucesso pelos educadores,
suas estratégias de ensino, as invenções que acrescentaram
ao arcabouço básico proporcionado pelo método Paulo Freire.
Isso pode vir a ser contribuição acadêmica significativa para
outros alfabetizadores, do mesmo programa, ou que trabalham
em contextos análogos.
Referências
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da Maré: diálogos de alfabetizadores, jovens e adultos. In:
CONGRESSO INTERNACIONAL “COTIDIANO – diálogos
sobre diálogos”. Anais... Universidade Federal Fluminense,
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na Maré. In: CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL (COLE),
15. Anais... Associação de Leitura do Brasil, Unicamp, 2005c.
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um educador de adultos. Pró-Reitoria de Extensão da UFRJ.
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VARELLA, Drauzio; BERTAZZO, Ivaldo; JACQUES, Paula B.
Maré. Vida na favela. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
190
A leitura literária e o hipertexto
na sala de aula:
do centro à periferia
Miguel Rettenmaier*
Ausência de ética, falando em
estética
Negro arcado, intitulado plebeu
A África não vale, só padrão
europeu
De que o branco é bonito, feio sou
eu
Gato Preto
O ano de 2007 marcará 25 anos da publicação de
uma obra que se tornou canônica nos estudos sobre leitura.
Organizado em 1982, por Regina Zilberman, o livro Leitura
em crise na escola: as alternativas do professor, além de
inaugurar a importante série Novas Perspectivas, da editora
Mercado Aberto, pode ser considerado como um marco
fundamental na reflexão crítica que relaciona às preocupações
com a democratização do ensino a formação dos leitores e a
importância de metodologias eficazes de estímulo à leitura.
A década de 80 é, por excelência, o momento inicial de tal
perspectiva que se centraliza na e pela leitura, enfatizada
no ensino da literatura. Em 1980, Ezequiel Teodoro da
Silva publica O ato de ler e, em 1981, funda-se no Cole, que
acontecia desde 1979, a Associação de Leitura do Brasil (ALB).
Nesse torvelinho, também em 1981 inaugurou-se em Passo
Fundo o projeto das Jornadas Literárias, idealizado por Tania
Rösing, com o acontecimento da I Jornada de Literatura SulRio-Grandense. Estavam tais iniciativas, todas, conduzidas
*
Universidade de Passo Fundo. O presente artigo é resultado de uma pesquisa
que contou com o apoio da Fapergs, no programa ARD, ano 2004.
191
Miguel Rettenmaier
por uma mesma inquietação, que, mobilizada pelo efetivo
interesse de formar leitores, pretendia uma transformação não
apenas no âmbito da escola, mas no cenário de todo o contexto
sociopolítico daquela época.
No que se refere ao Leitura em crise na escola, o livro
avançava em tal processo ao propor ações, em lugar de apenas
constatar a problemática acerca dos encaminhamentos
inadequados da escola no que se refere, principalmente, à
leitura de obras literárias. Na apresentação, Regina Zilberman
justifica a iniciativa de reunir artigos de importantes
pesquisadores no sentido de atacar, como idéias e práticas,
o problema da ausência de leitura de livros de literatura ou
do uso inadequado do texto literário nas ações pedagógicas
vigentes naquele momento:
[...] o âmbito reservado à literatura se vê assolado pela crise
de ensino, somada a uma crise particular – a da leitura, que
extravasa o espaço da escola, na medida em que se depara com
a concorrência dos meios de comunicação de massa. É por essa
razão que se justifica uma reflexão coletiva a respeito tanto
do significado e da finalidade do incentivo à leitura na escola,
como a propósito das estratégias de que o professor pode se
valer, se este tem em vista estimular a freqüência do aluno à
obra literária.1
A obra organizada por Regina Zilberman, nesse
encaminhamento, assumiu, assim, o papel de lançar reflexões
e proposições de trabalho, reunindo os mais atuantes – hoje
consagrados – pesquisadores na área da leitura. Entre outros
autores, Vera Aguiar e Maria Cattani contribuíam com uma
análise crítica à proposta curricular na leitura do, então, 1º
grau; Marisa Lajolo cooperou com o clássico “O texto não é
pretexto”, no qual adverte para o encaminhamento do texto
literário como “intermediário de outras aprendizagens que não
ele mesmo”;2 Ezequiel T. da Silva, em seu artigo, questionou
as práticas de leitura (in)existentes nas bibliotecas escolares,
defendendo a proposta de uma dinamização do acervo dessas
bibliotecas; Vera Aguiar, com nova contribuição, e Ana Maria
Filipouski lançam, em outros dois textos, bases práticas para
a seleção do material de leitura destinado aos jovens e para
1
2
ZILBERMAN, R. Estimulando a leitura – democratizando a escola. In: ZILBERMAN, R. (Org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 7.
LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, R. (Org.). Leitura
em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 53.
192
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia
as atividades em sala de aula, a partir de estratégias segundo
os estágios de desenvolvimento dos alunos. A preocupação
com a leitura na escola, porém, era a face evidente de uma
intenção mais profunda, não declarada, talvez por ser mesmo
inconsciente: na medula do livro, unindo todos esses textos
e os de outros autores, como Lígia Chiappini, Regina Maria
Marques, Lígia Averbuck, Haquira Osakabe e Alcir Pécora,
além da própria organizadora, Regina Zilberman, havia a
intenção de transformar, pela leitura, um país politicamente
também em crise.
O Brasil da década de 70 era um país de chumbo. A
democracia, no início da década completamente sepultada,
reerguia-se lentamente ao se aproximar da década de 80. A
educação, combalida em muitos aspectos pelas reformas
de ensino do governo militar, carecia de uma abordagem
que valorizasse as humanidades, em contraposição aos
encaminhamentos tecnicistas do Estado burocráticoautoritário. Nesse sentido, a obra Leitura em crise, de forma
subentendida, buscava reagir pela leitura, num campo – a
escola – no qual a reflexão, sobretudo, pelas áreas humanas
e pelo texto literário, possibilitaria transformações nos
referenciais sociais, políticos e culturais da época. Essa era,
de certa forma, a luta desses pesquisadores no início de um
processo de combustão que desaguaria em tantos efeitos
posteriormente positivos.
Além das conquistas democráticas, restabelecidas
por um conjunto de atitudes que contou, também, com a
participação da intelectualidade da época na rediscussão de
temas nevrálgicos de nossa condição política, como a própria
democratização da educação e do pensamento, na ordem
específica no que se refere à da leitura, consolidou-se no país
a pesquisa sobre a formação do leitor e engendrou-se, para a
atualização de práticas escolares tradicionalmente ineficazes,
a noção de um sistema literário que incluísse a leitura do
jovem. Nesse sentido, a literatura infanto-juvenil, lado a lado
com o amadurecimento de nosso mercado editorial, tornou-se
um gênero “independente”, não subalterno à literatura adulta,
a verdadeira, e tornou-se objeto “digno” de pesquisa.
Fundamentalmente, graças a esses primeiros movimentos,
a literatura, seja qual for, adulta ou para jovens, pôde imporse como coisa tão séria quanto às demais “ciências” da época,
exatas, técnicas e produtivas, e a leitura passou a tornar-se
193
Miguel Rettenmaier
assunto de reflexão crítica, ainda, evidentemente, incorporada,
essa reflexão, às circunstâncias contextuais desses primeiros
passos.
A introdução de Zilberman aponta, no Leitura em
crise, no cerne dessa resistência a leitura, uma concorrência
perigosa. Ao tratar da problemática envolvendo a leitura
na escola, refere os meios de comunicação de massa como
possíveis ameaças ao que a leitura poderia fomentar ao jovem,
tais como “o domínio cognitivo” e a “organização formal de
seu raciocínio e expressão”. É esse o sentido, “em prol do
alargamento do espaço para o livro na escola”3 em detrimento
dos perigos da comunicação de massa, que a organizadora de
certa forma estabelece, na abertura do livro, como o norteador
político de Leitura em crise. A década de 70, sob a condução
dos governos militares, foi a da incorporação da televisão
na sociedade brasileira. Paralelamente ao AI-5, a segurança
nacional investia pesadamente num sistema que unificasse
a nação, num programa que sobejamente beneficiou a Rede
Globo. Por isso, a ameaça da comunicação de massa, toda ela –
já desde anos anteriores, “demonizada” pelos círculos de
esquerda – era, talvez, a principal das preocupações de uma
intelectualidade comprometida com as causas libertárias e
com a democratização do país. De alguma forma, era um dos
desdobramentos do sistema alienante capitalista no Brasil,
irmanado com os aparelhos de repressão da ditadura.
O tempo, porém, mostrou que, se a comunicação de
massa teve influência nos (des)caminhos políticos do Brasil,
não foi propriamente a vilã no que se refere ao dificultoso
processo de formação de leitores de literatura. Não há
qualquer evidência forte que nos comprove que a televisão
tenha formado “não-leitores”. Por outro lado, somadas a todas
as problemáticas sociais que envolvem o acesso aos livros
e ao saber, as abordagens referentes à promoção da leitura,
malgrado suas inúmeras conquistas, talvez tivessem sido
mais eficientes no enfrentamento de um quadro de crise da
leitura do texto literário se tivessem procurado ampliar sua
concepção de leitura no sentido de envolver a literatura
com as demandas de uma sociedade quase completamente
envolvida por uma inédita renovação técnica na ordem das
3
ZILBERMAN, R. Estimulando a leitura – democratizando a escola. In: ZILBERMAN, (Org.). Leitura em crise na escola:..., p. 8.
194
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia
relações comunicativas. Ao elegerem o texto literário como
o texto por excelência, o que se justificava naquele momento
em que o progresso técnico e material era sobrevalorizado,
possivelmente, tenha-se, em contrapartida, isolado por demais
o texto literário no universo de textualidades que começavam
a se colocar à disposição dos leitores.
Nesse encaminhamento, ao introduzir no verbo “ler”
uma transitividade específica, fixada na complementaridade
do texto literário – muitas vezes subtraído mesmo de sua
qualidade de literário, já que o “verdadeiro” texto era o
literário –, a decorrência provável desse esforço pode ter sido,
senão a escolarização absoluta da literatura, seu isolamento
a instâncias específicas da sociedade, mais informadas, mais
“letradas”. Talvez se tenha enobrecido demais a literatura... e,
quem sabe, uma maneira de fazê-la ser lida, como queriam e
querem os formadores de leitores, seja restituí-la à vida... às
“impurezas” de um mundo em que a palavra escrita está jogada
em mais de um suporte ou em mais de um gênero discursivo,
e alicerçada a mais de uma linguagem, a mais de um código...
Hipertexto x literatura?
A complexidade do atual momento dos intercâmbios
comunicativos globais já há algum tempo aponta para a
exaustão de qualquer preocupação no que se refere aos
“perigos” da comunicação de massa. A tela hoje se compreende
não como um objeto manipulador do indivíduo. É, pelo
contrário, uma mídia de interação, ainda que restrita a alguns
estratos da sociedade, principalmente no que se refere ao
Brasil. Apesar de tal dificuldade (mais uma, no rol das injustas
distribuições em nosso país), não há como negar que, direta
ou indiretamente, na contemporaneidade, a subjetividade
humana cada vez mais está associada à discursividade das
múltiplas mídias e do hipertexto.
No que se refere ao hipertexto, tem, em si,
simultaneamente, dois atributos que lhe são fundamentais.
Em primeiro lugar, o hipertexto permite a “navegação”. Sua
conexão com os demais hipertextos permite, da parte do
leitor, um “agenciamento intertextual”4 que lhe garante a
4
LEVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. O futuro do pensamento da era
da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. p. 37.
195
Miguel Rettenmaier
liberdade de saltar, pelo browser, ao clique do mouse, de
página para página da infinita rede do www. Em segundo
lugar, o hipertexto permite a convergência de várias mídias.
Sua natureza multimidial, ou “multimodal”,5 permite, assim,
que se associem palavras (em movimento ou não), som,
imagens, vídeo, gráficos, diversas linguagens num único
suporte, como refere Capparelli, “com a possibilidade de
intervenção instantânea do navegador através de dispositivos
que favorecem a interatividade”.6
Tal instantaneidade, à primeira vista, em todos esses
aspectos, seja no que se refere à interação entre leitor e blocos
de (hiper)textos ou páginas, seja na possibilidade de acesso
às múltiplas mídias, parece se contrapor àquela literatura
impressa, aparentemente pacífica, imóvel e “presa” nos
livros. O movimento aparentemente descontrolado do
leitor por textos incessantes, movediços, parece afrontar
as possibilidades da fruição do estético, e a velocidade
dos processos tecnológicos atuais sugere mais entraves à
contemplação do que uma possibilidade real de leitura
sensível-interpretativa dos fenômenos literários.7 A grande
questão é que o mundo já está rápido, o “segundo dilúvio”, o
de informações, do hipertexto e da cibercultura já existe... em
fluxo dinâmico e indeterminado. Como defende Lévy: “Para
melhor ou pior, esse dilúvio não será seguido por nenhuma
vazante. Devemos, portanto, nos acostumar com essa profusão
e desordem. A não ser em caso de catástrofe natural, nenhuma
grande reordenação, nenhuma autoridade central nos levará
de volta à terra firme nem às paisagens estáveis e bem
demarcadas anteriores à inundação.”8 Assim, sob pena de
elegermos mais um vilão, da mesma forma como já o fizemos
com a comunicação de massa (já em via de esgotamento, pelo
menos na força que outrora monopolizava nas tecnologias da
informação), não podemos desalicerçar a leitura de literatura
5
6
7
8
LÉVI, Pierre. Cibercultura. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 1999. p. 63.
CAPPARELLI, Sergio. Novos formatos de leitura e internet. In: RÖSING, Tania; BECKER, Paulo. Leitura e animação cultural. Repensando a escola e a
biblioteca. Passo Fundo: UPF, 2002. p. 106.
Tal circunstância de leitura, na cibercultura, poderia em outra oportunidade
ser mais bem discutida. O dinamismo da leitura na rede digital não necessariamente pode implicar uma leitura superficial, passiva. irrefletida. Na realidade, a cibercultura, como coloca Lévy, “não é justamente a civilização do
zapping.” LEVY, op. cit., nota 5, p. 68.
LÉVY, op. cit., nota 5, p. 161.
196
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia
dessa vida que está acontecendo, dessas tecnologias, com as
quais, talvez, a literatura em sua essência nem rivalize.
Possivelmente, os medos sejam nossos, de professores e
de pesquisadores, não da arte. Aliás, a arte nunca se contrapõe
à vida. E a literatura, não menos e cada vez mais, abeberase dessas “perturbações” à ordem na experiência humana.
Assim, em nome de lermos melhor e, principalmente, em
nome de vencermos a tal conhecida “crise” da leitura na
escola, talvez seja melhor começarmos a navegar seriamente
pela (hiper)realidade!
O hipertexto sem tela
Quando falamos sobre a leitura do hipertexto em sala de
aula, imediatamente surgem ressalvas quanto às possibilidades
de se trabalhar com computadores, principalmente nas
escolas públicas. Os argumentos dos professores reportam
tanto a inexistência de computadores conectados à rede na
escola (ou a existência de apenas uma sala de informática para
toda uma população de alunos), quanto ao pouco domínio dos
próprios professores no que se refere a essa ferramenta. Tais
argumentos podem até ser momentaneamente válidos, mas
estão condenados, é certo, à obsolescência. A introdução das
multimídias digitais na escola é já uma realidade, mesmo
que ainda tímida, da mesma forma como o desconhecimento
do professor quando ao uso do computador é um fator
necessariamente em vias de superação. Por enquanto, neste
momento intermediário entre a sala de aula tradicional e a
da cibercultura, há, contudo, uma possibilidade bastante
exeqüível: hipertextualizar a sala de aula, mesmo sem a
necessária presença de monitores de computador.
De alguma maneira, a realidade dos demais
suportes nos permite hipertextos que apenas não são dessa
forma reconhecidos por estarem impressos e em papel. Se o
hipertexto tem em sua natureza a convergência de múltiplas
linguagens, outros textos, como os de jornais e revistas, por
exemplo, também recorrem a essa convergência, embora,
evidentemente, com limitações características. Ao propor o
trabalho com a leitura do texto jornalístico informativo num
projeto pedagógico interdisciplinar e intertextual, Angela
Kleiman e Silvia Moraes observam que a Folha de S. Paulo,
assim como outros textos, pode ser lidas como hipertextos:
197
Miguel Rettenmaier
Se o leitor nada souber sobre o assunto e se o assunto for
complexo, pode ir para os encartes de gráficos e quadros (como
se estivesse “clicando”) “Saiba mais”, “Entenda mais”, que,
muitas vezes, trazem históricos, explicações, tabelas e mapas.
A reportagem de revistas semanas de informação segue também
essa tendência e utiliza diversos recursos e fontes nesse esforço
de didatização: fotos, reproduções de documentos, tabelas,
gráficos, diagramas, encartes explicativos. Como os prazos para
a publicação não são tão exíguos como os dos jornais diários,
encontra-se maior variedade no uso desses recursos, em geral
também reproduzidos de forma mais atraente, pelo tipo de
papel utilizado.9
As reportagens são exemplos de textualidades que
se utilizam de vários códigos e de diversas mídias e são
economicamente mais acessíveis no que se compare aos
equipamentos de computador. Numa circunstância de eventual
carência de recursos tecnológicos, podem servir como “janela”
hipertextual e como um recurso importante para o estudo da
literatura. Nesse aspecto, é importante, desde já, que digamos
que, num trabalho hipertextual que vise ao estudo da literatura
e à promoção da leitura, parece inadequado o centralismo
exclusivo da leitura às fontes canônicas da história da literatura.
As obras literárias são parte de um sistema comunicativo
dinâmico que não está fechado e definido, mesmo que assim
o desejem os planos de ensino; pelo contrário, em constante
renovação e em constante diálogo, esse sistema e a literatura
estão, incessantemente, sendo produzidos. Apenas com um
trabalho aberto às demais construções sociocomunicativas
e aos demais gêneros textuais, a própria noção do que seja
literatura poderá ser posta em discussão como um fenômeno
vivo, não como um conceito “pronto”, “acabado”, como um
“conteúdo”, como veremos posteriormente.
Os textos jornalísticos podem ser introduzidos, assim,
no estudo da literatura, pela sua condição textual, na qual
convergem mais de uma mídia, mais de uma linguagem. São,
de alguma forma, gêneros que, historicamente antecedendo o
hipertexto na tela do computador, dão conta de uma leitura
que não se basta na linearidade e na fluidez seqüencial fixa;
antes, associam-se a uma visão que passeia pelo impresso,
por diferentes lugares de informação do texto, por diferentes
códigos, por imagens, por textos paralelos que se completam.
Além disso, esses hipertextos guardam em si um outro fator
9
KLEIMAN, Ângela; MORAES, Silvia. Leitura e interdisciplinaridade. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1999. p. 101.
198
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia
de grande pertinência no trabalho de leitura na escola: são
portadores de atualidades. Por eles, podemos refletir sobre
impasses, sociais, culturais, políticos, éticos etc. presentes em
nossa realidade. São textos que trazem temas vigentes, notícias,
matérias investigativas, denúncias, descobertas. São, assim,
na forma e no conteúdo, vivos, dinâmicos, provocadores,
embora, é claro, possam ser, principalmente quanto ao seu
assunto, efêmeros.
A questão, então, é fazer que esses textos, dinâmicos,
atraentes, apesar de efêmeros e contextualizados, sejam leituras
que abram espaço para aqueles textos que, pela sua qualidade
artística, sejam – ou possam a vir a ser – perenes. O texto
literário, se, com freqüência, não tem a riqueza de recursos
dos hipertextos jornalísticos, guarda em si a possibilidade
de perdurar, pela universalidade que atinge. E isso o justifica
como um “sítio” privilegiado de sentido a ser interpretado e
reinterpretado. Em trabalho “em rede”, assim, orientado para
a leitura hipertextual, é condição fundamental assegurar e
preservar o lugar da palavra artística. É fundamental, na rede
construída pelos percursos dinâmicos da leitura, jamais igualar
os nós!
Na proposta abaixo, buscaremos sugerir não um método
de trabalho, mas uma possibilidade de leitura em rede que,
sincronizada com o interesse pela reflexão sobre os impasses
da atual realidade, não perca o foco sobre o mérito e as
particularidades da leitura do literário. Em lugar de conceitos,
propomos discussões; em lugar de conteúdos, propomos
interpretações. Dessas discussões e dessas interpretações,
encaminharemos respostas que nos farão tanto compreender a
realidade tematizada na rede de textos quanto permitirão uma
discussão sobre como pode ser compreendida e promovida a
leitura literária.
Um verdadeiro impasse da atualidade: a
violência urbana e o crime organizado
Os acontecimentos em São Paulo, em maio de 2006,
talvez não sejam por muito tempo esquecidos. Pela primeira
vez na história social brasileira, uma facção criminosa, o PCC,
mostrou o verdadeiro poder do crime organizado, fazendo
da cidade mais economicamente produtiva do Brasil, o
centro do país, refém de sua violência. Números alarmantes
199
Miguel Rettenmaier
de atentados contra a população, delegacias e veículos de
transporte coletivo, além de toda a sorte de violência e de
homicídios contra policiais, pessoas comuns e bandidos,
fizeram da capital financeira do país uma praça de guerra.
Tudo, segundo a imprensa, mobilizado por lideranças que, de
dentro dos presídios, impunham condições não admitidas
pelas autoridades paulistas, que, embora advertidas sobre
a realização da megarrebelião antes de sua execução, nada
puderam fazer contra o poder do PCC. Dentre as exigências
dos bandidos, estariam, segundo a imprensa e a revista Isto É,
que será objeto de nossa análise, a não-transferência de presos
para outras penitenciárias, mais seguras, a instalação nos
presídios de aparelhos de TV para que os presos pudessem
assistir à Copa do Mundo, a ampliação dos horários de banho
de sol e de visitas íntimas, além da ampliação do indulto do
Dia das Mães e da mudança do uniforme dos apenados – para
uma cor mais adequada às fugas noturnas! O indeferimento
dessas solicitações teria dado margem a que acontecesse o
talvez maior conflito urbano entre a polícia e os criminosos
na história do Brasil.
Antes de qualquer julgamento sobre os fatos e de
qualquer reflexão sobre o tema, é fundamental que façamos a
leitura das intencionalidades dos desdobramentos discursivos,
fundamentalmente dos publicados na imprensa, perante o
ocorrido. Mesmo em se tratando de matérias que se pretendem
jornalísticas, a referencialidade de qualquer texto, inclusive
dos que se pretendem em uma dicção informativa e objetiva,
está sempre impregnada de uma imparcialidade ora implícita,
ora abertamente atuante, como poderemos ver na revista
Isto É de 17 de maio de 2006. Ali, na matéria principal, se
intercalam às informações comentários sobre a megarrebelião,
os quais ganham força de verdade quando avalizados por
enunciados visuais, por imagens que supostamente confirmam
os enunciados verbais, como podemos já ver na capa da edição,
que se apresenta como uma espécie de portal de hipertexto, ao
qual se seguem outras páginas a ele “linkadas”.
200
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia
Figura 1 – Isto É: a capa (ou o Portal) – Habitantes em pânico
A capa da revista anuncia e apresenta o que se abre no
conteúdo posterior. É como uma home page, a página básica,
da edição, nesse caso, sobre a megarrebelião do PCC. Nele se
introduzem o fato em cobertura e o tratamento que se dará
ao fato. Ali, contrariamente ao que se verá posteriormente
na matéria, ricamente ilustrada com fotografias em grande
destaque, a diagramação centraliza-se na dimensão maior da
expressão “O caos”, em relação à foto, que é menor, datada e
localizada. A dimensão da imagem não toma toda a página,
seu tamanho é inferior à palavra em destaque. Ao que
parece, a ênfase é na palavra, que se justifica no flagrante de
um acontecimento entre outros tantos no “caos” instituído
pela violência. O enquadramento permite a visão de todos
os integrantes envolvidos no fato e a distância inviabiliza
reconhecerem-se rostos ou feições. O importante é a cena,
emoldurada em preto, na qual aparecem pessoas, como tantas
outras naquele dia, submetidas à violência de armas pesadas.
Enfatizando a amplitude do fato, diz a legenda: “Dominada
por atentados, a cidade vira praça de guerra com 20 milhões
de habitantes em pânico”. É um instantâneo de um incidente
envolvendo sujeitos anônimos e reproduzido às centenas na
201
Miguel Rettenmaier
cidade sem controle, que será apresentada na matéria das
partes centrais da edição.
Figura 2 – Primeira página: A matéria – O Ataque do PCC
A matéria de Marco Damiani10 ocupa as páginas centrais
da revista Isto É de 17 de maio de 2006. É introduzida por várias
fotos e nela não há um título convencional e um subtítulo
que delimite sobre o que tratará o texto. Há, sobretudo, na
sua apresentação, imagens “linkadas” em várias páginas,
num mesmo indicador, “Sob o domínio do crime”, que marca
cada foto na parte superior esquerda. As imagens ocupam
duas páginas da revista e, além de flagrar os fatos, encadeiamse numa espécie de estrutura de continuidade, pelas palavras
“terror”, “pânico”, “caos” e “vergonha”, que, em destaque, ao
mesmo tempo legendam as imagens e fazem parte do título
da matéria. Nessa progressão de signos verbais e visuais se
apontam as ações dos bandidos, as reações dos policiais,
o desespero da população e a suposta ineficiência dos
governantes.
Na primeira página da matéria, num plano de cima, que
apequena um ônibus em chamas quase à condição de um
brinquedo indefeso, a imagem combina o fogo e a escuridão
em diálogo com a palavra “terror” e com as legendas abaixo
10
DAMIANI, Marco. Terror... Pânico... Caos... Vergonha. Isto É, São Paulo, n. 1909,
p. 30-39, maio 2006.
202
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia
da palavra – em caixa alta, “Ônibus incendiado na zona leste
de São Paulo”, e a seqüência “Com 82 coletivos atacados,
frotas foram recolhidas às garagens”. Nesse ônibus depredado,
apequenado, destruído, encaminha-se a leitura de que a
população está a pé, abandonada à própria sorte e à mercê
de outros perigos nas ruas, como os que seguem na próxima
página.
Figura 3 – Segunda página – A reação da polícia e as pessoas nas ruas
A continuação da página anterior exibe os perigos das
ruas. A foto, desta feita, não se dá de baixo para cima, mas
de uma lente que está entre as pessoas da rua, expostas à
guerra urbana. À frente, em primeiro plano, junto à palavra
“pânico” em destaque e logo abaixo do indicador “sob o
domínio do crime”, na lateral, à esquerda da fotografia, uma
jovem assustada tenta fugir do local do conflito. Suas mãos
retraídas e seu olhar mostram o temor da popular que carrega
seus pertences em sacolas plásticas. Atrás dela, no centro
da imagem, um policial à paisana pula como um soldado,
fortemente armado e protegido com um colete, na direção
do passeio onde se encontra a jovem. Dentre os veículos
na rua, outro policial, de costas para a cena, carrega uma
pistola, enquanto, ao fundo, mais pedestres, também em
pânico, tentam abandonar o lugar. O quadro não aponta para
o sentimento de confiança na polícia, ou de segurança por sua
presença, o que se confirma na legenda da foto: “Tiroteio nas
ruas (em caixa alta): Em pleno centro da cidade, todos corriam.
203
Miguel Rettenmaier
Policiais armados buscavam vingança em meio à população”.
Há a sensação de que as pessoas estão, sem proteção, no meio
de uma guerra na qual não pertencem a nenhum dos lados
em luta.
Figura 4 – Terceira página - Os efeitos no trânsito entre periferia e centro
Na continuação da cena que mostra o pânico dentre os
pedestres, surge a confusão entre os veículos, que também
estão, como se apresenta na expressão, à esquerda, na parte
superior da página, “sob o domínio do crime”. A imagem de
um grande congestionamento de fim de tarde, como mostra
a legenda, “Às 18 horas na Av. 23 de Maio”, deixa claras as
perturbações no trânsito da cidade e, principalmente, os
transtornos que o crime causou ao centro da metrópole. Em
ambas as direções, o engarrafamento mostra a impossibilidade
de tráfego e de comunicação entre os pontos centrais, os
bairros e os pontos periféricos da cidade. Avançando-se na
leitura dessa ausência de comunicação, as questões relativas às
distâncias socioculturais já podem começar a ser observadas.
Justamente dessa falta de comunicação e desse desacerto
decocorre o que a palavra em destaque, “caos”, pode significar.
De alguma maneira, durante a megarrebelião do PCC, quando a
periferia invadiu o centro, imobilizou-se qualquer tentativa de
comunicação entre os distintos espaços sociais, que deixaram
de coexistir, mesmo que problematicamente, em prejuízo,
em especial, das pessoas que andam pelas ruas centrais,
dos motoristas que trafegam pelas avenidas. As diferenças
204
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia
colidiram, os estratos sociais se inverteram na momentânea
desordem da pirâmide social de São Paulo.
Figura 5 – Quarta página – A responsabilidade pelo ocorrido
A parte final da seqüência dá começo ao texto da
matéria propriamente dita. As reticências, antes posteriores
às palavras “terror”, “pânico” e “caos”, agora são anteriores à
palavra “vergonha”, que se encontra abaixo de um foto na qual
Cláudio Lembo, o governador do São Paulo, aparece cabisbaixo.
Sob essa foto, uma legenda cita a avaliação do político frente
aos fatos – “Está tudo sob controle” – em contraste com a
foto maior, que mostra um presídio dominado pelo crime, e
em contraste também com os demais elementos textuais da
matéria que apresentam os números da megarrebelião do PCC
em São Paulo, comparada a Bagdá, como uma cidade vítima
do terror. A perspectiva panorâmica na foto do presídio, nesta
página, diferentemente da imagem do ônibus (Fig. 2), não
apequena o presídio, mas o mostra, em enquadramento do
tipo bird angle, de cima, completamente dominado pelos
criminosos, que são visíveis apenas como minúsculos pontos
espalhados pelo pátio do prédio. De maneira semelhante às
demais imagens da matéria, os criminosos não aparecem, não
são visíveis. À medida que viramos as páginas, “linkados”
pelo indicador “Sob o domínio do medo”, surgem, no texto
de Damiani, apenas imagens dos efeitos dos atentados em São
Paulo e do pânico causado pela megarrebelião organizada pelo
205
Miguel Rettenmaier
PCC. Em nenhum momento, os criminosos são fotografados, o
que lhes dá a feição de sujeitos não identificados, de terroristas
invisíveis, de inimigos públicos que fugiram ao controle do
Estado.
O que surge, mesmo, nas imagens que antecedem o texto
de Damiani é um panorama da cidade de São Paulo, orientado
pelas lentes que, na foto do presídio dominado, fecham uma
incursão pelo caos na cidade. Como se fôssemos conduzidos
por uma realidade virtual, simulamos uma imersão pelo caos
de São Paulo. Primeiramente, de cima, vimos um ônibus
em chamas (Fig. 2); após, descemos às ruas, ficando entre a
população à mercê da violência (Fig. 3); depois, começamos a
subir novamente, vendo de cima o plano de um engarrafamento
(Fig. 4) e, finalmente, num quadro mais amplo, pudemos ver de
cima, com mais distância, o presídio (Fig. 5), no qual, como o
ônibus, percebe-se o incêndio de uma rebelião não controlada.
As imagens são como janelas que, encadeadas, nos conduzem
a uma tomada geral do que foi a megarrebelião em São Paulo
e se fecham no rosto abatido de seu suposto responsável, o
governador do estado.
Há, no texto de Damiani, em palavras e imagens, uma
clara responsabilização ao governo de São Paulo pelo ocorrido.
Cláudio Lembo é o grande culpado pelos problemas, por não
aceitar auxílio federal, por não se antecipar aos fatos, preferido
por acusar a “elite branca” pela situação. O PCC, segundo esta
matéria, é o grande vencedor nesse round entre o crime e a
legalidade ao propagar a desordem pelo não-cumprimento de
suas exigências. No meio da crise, que, uma vez organizada
pelos criminosos, permitiu por parte da polícia uma revanche
que a igualou aos bandidos (segundo a matéria “a polícia
militar teve licença para matar”), à mercê de tudo isso, está
a população, que “na gangorra entre bandidos, policiais,
governos e políticos” não tem a quem recorrer.
A intencionalidade da matéria de Isto É, assim, encaminhase, na cobertura da megarrebelião, pela interpretação que
redunde na responsabilização do Estado, ou do governo de
Cláudio Lembo, no sentido de não conter a reação das lideranças
do PCC diante do não-cumprimento de suas exigências. A
dicção da matéria está, evidentemente, malgrado algumas
discordâncias políticas pontuais, relacionadas às contendas
partidárias específicas do momento histórico da publicação,
206
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia
em conformidade com os ângulos de visão da classe média
leitora desse tipo de revista de circulação nacional. Não há
abrangência na reflexão ou diálogo entre diferentes pontos
de vista, apenas o ângulo fechado da matéria em choque
com a avaliação do governador, retratado, cabisbaixo, sobre
a palavra “vergonha”. As causas da rebelião são, assim, claras
e decorrem do fracasso de uma política coerciva contra os
presos amotinados que patrocinaram atos terroristas.
A grande questão é: seriam essas as verdadeiras causas
do que houve em São Paulo? Seriam tão imediatos os fatos
que possibilitaram a convulsão que se seguiu? No contato com
outros textos, contudo, parecem surgir mais fatores envolvidos
nas raízes em nosso histórico distanciamento entre o centro e
a periferia, em nossos permanentes conflitos entre o núcleo e
a margem, que poderiam ser muito bem discutidos a partir da
imagem ressemantizada do engarrafamento na av. 23 de Maio.
Talvez o engarrafamento possa representar mais do que a mera
perturbação na rotina dos motoristas. Talvez possa ser visto
como a concretização de nossa histórica falta de diálogo...
Em outra plataforma: a megarrebelião
do PCC em São Paulo e o “centro”
Pensar determinado contexto implica visitar outros textos,
outras “plataformas”. Nesse sentido, abandonamos o “Portal”
de Isto É, com suas páginas “linkadas” no indicador “sob o
domínio do crime”, para ingressar em outra “plataforma”,
orientada por uma nova circunstância de leitura e, sobretudo,
de comunicação social.
“Meu dia de periferia”, um texto de Mônica Bergamo,
poderia bem ilustrar a maneira como a plataforma central da
sociedade (não) vê a periferia. O texto, publicado no caderno
Folha Ilustrada, da Folha de São Paulo, de 17 de maio de 2006,
em meio ao torvelinho da megarrebelião do PCC, mostra um
outro lado do fenômeno, relacionado aos efeitos que o terror
(não) causou a setores abastados da sociedade paulista.
As imagens, em lugar de mostrar praças de guerra
e operações policiais, revelam indivíduos solitários em
dependências luxuosas que deveriam aguardar convidados
para eventos sociais de alta monta. Numa das fotos, a
207
Miguel Rettenmaier
maior, um dos sujeitos lamenta o fato de ter sido obrigado a
desmarcar seu aniversário de trinta anos e de ter sido forçado a
se desfazer de trinta arranjos de orquídea, conforme a legenda
que acompanha a foto. Logo abaixo, em imagens menores,
mais dois integrantes do high society paulistano demonstram
seu “desagrado” com os problemas causados pelo PCC. Um
deles, conforme a legenda, lamenta ter cancelado a festa para
150 convidados; o outro, só, sentado a uma mesa, na qual está,
ao centro, um abacaxi, revela “fúria” em sua indignação apesar
de, paradoxalmente, revelar estar planejando um protesto pela
paz.
O texto é estarrecedor para um leitor com uma
compreensão crítica um pouco mais elaborada. Em seu início,
Mônica Bergamo, em possível ironia, dá o tom do que virá: “O
high society paulistano viveu seu dia de periferia na segundafeira, 15. Toques de recolher espontâneos, bandidos por perto,
pânico nas ruas. Foi um choque.” E o que vem é ainda mais
assustador, tendo em vista a estreiteza de pensamento da elite
de São Paulo. O mesmo sujeito fotografado à mesa, com o tal
abacaxi, é citado em sua argumentação no sentido de convocar
cinqüenta amigos para um protesto: “Se podemos fazer
passeata gay na avenida paulista, se podemos permitir também
vandalismos depois dos jogos de futebol, porque não podemos
fazer uma grande passeata de protesto contra a corrupção e a
ineficiência de nossos dirigentes ?!?!?!”. Na fala dessa “querida”
figura dos Jardins/Higienópolis/Morumbi transparece a visão
preconceituosa que vê como similares à desordem as diferenças
sexuais.
208
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia
O esforço do nobre sujeito, entretanto, parece fadado
ao fracasso, como nos mostra a matéria, já que não houve
a necessária adesão das outras (mesmas) partes, pois o
sentimento que orientou a fina flor dessa sociedade paulistana
foi – senão de tédio pelo acontecido, como nos mostram, na foto
maior, as feições do aniversariante amofinado, que brinda só –
apenas de desconforto pela impossibilidade de realização de
seus eventos sociais. Viver seu “dia de periferia” parece não
ter abalado o centro para os dramas das margens da sociedade,
para o estado convulsivo em que se encontram as grandes
209
Miguel Rettenmaier
cidades graças à indiferença como são vistos os dramas que
não fazem parte do mundo dos “patês”, das orquídeas, do
champanhe. As vozes periféricas, porém, podem não estar
caladas sempre. Em outras “plataformas”, a arte e a literatura
parecem dar vazão ao testemunho dos excluídos.
A periferia, o centro e a leitura do texto
literário!
O que os olhos vêem11
Eduardo Dum-dum
O retrato da favela tem só uma imagem, mais cada olho tem sua
interpretação pra essa imagem.
Meus olhos vêem quando eu olho pra favela almas tristes,
sonhos frustrados, esperanças destruídas, crianças sem futuro,
vejo apenas vítimas da dor.
Os olhos do gambé12 vêem traficantes com AR-15 lançador de
granada, vagabundas drogadas, mães solteiras, desempregados
embriagados no balcão do bar, adolescentes viciados, pivetes
com pipa, com rojão avisando que os homi tão chegando, vêem
em cada barraco um esconderijo, uma boca, em cada senhora
de cabelo branco uma dona Maria mãe de bandido.
Os olhos do político vêem presos ignorantes, ingênuos,
marionetes de manuseio simples, a faca e o queijo, o passaporte
para Genebra, o talão de cheque especial, o tapete vermelho
para a loja da Mercedes, o tamanco, a bolsa, o vestido, o modes
e o vibrador da sua puta, um mar de peixes cegos que sempre
mordem o anzol.
Os olhos do boy, esses não vêem nada, nenhum problema, não
vêem fome, as rebeliões, os aviões13 com droga, o tráfico de
arma, as escolas sem telhado, lousa, professor, segurança, o
jovem sem acesso a livro, quadra esportiva, centro cultural, os
ossos no cemitério clandestino, as vítimas da brutalidade da
polícia, o povo esquecido e desassistido, os olhos do boy só são
capazes de enxergar na imagem da favela o medo, o medo em
forma de HK na ponta de seu nariz.
– E você, truta?14 O que seus olhos vêem quando olham para
favela?
O texto acima é de um gênero definido como “escrita
periférica”. Seu autor é paulista e rapper do grupo Facção
Central. O texto é curto, contundente, sem a organização
fabulística de uma narrativa ficcional, de um conto, sem a
entonação lírica de um poema, embora estruturado à maneira
da organização argumentativa de uma crônica literária. Acima
11
12
13
14
DUM-DUM, Eduardo. O que os olhos vêem. In: FERRÉZ: Literatura marginal.
Talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 29.
Polícia Militar.
Traficante de drogas.
Parceiro, pode significar colega de quadrilha.
210
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia
de tudo, é um testemunho, um desabafo, que mostra a realidade
da periferia e como essa realidade parece ser focalizada por
parte de integrantes de outros estratos da sociedade. “Os olhos
que vêem” é um texto que trata da resposta do periférico às
diferentes maneiras como distintos atores sociais podem
observar as margens dos grandes centros urbanos. Aos
dramas da periferia, à carência de recursos básicos para uma
sobrevivência digna nas favelas, associa-se, assim, uma nova
mácula: o olhar depreciativo e preconceituoso do restante da
sociedade.
Se na matéria de Isto É os sujeitos periféricos em nada se
manifestam, em nome da construção de um inimigo invisível,
disfarçado de terrorista, que vem das margens perturbar o
centro; se, no texto de Mônica Bergamo, esses sujeitos ainda
mais invisíveis se tornam graças à indiferença blasé da elite
paulistana, no texto de Eduardo Dum-dum a periferia surge
como um lugar que se reconhece multifacetado por diferentes
olhares, advindos de setores nucleares da sociedade. Em
resposta a isso, de alguma maneira a periferia rejeita, pela voz do
“eu” que conduz o texto “Os olhos que vêem”, ser aquilo que o
centro quer que ela seja, resistindo às interpretações injuriosas
que são impostas aos setores periféricos da sociedade.
Nesse sentido, o “eu” que se manifesta assume-se não
apenas como objeto mudo às concepções das diferentes
perspectivas centrais, mas como centro também de uma
perspectiva, como uma voz crítica que não apenas se recusa
a abdicar do diálogo com os outros “eu”, mais proximamente
ambientados nos lugares institucionalmente nucleares da
sociedade, mas os questiona frontalmente. Para isso, não
abandona a linguagem, as gírias e as expressões da favela,
testemunhando, assim, em resposta aos “outros”, logo nos
primeiros parágrafos de “O que os olhos vêem”, sobre a
verdade da realidade de dor das favelas, nas quais residem
“almas tristes, sonhos frustrados, esperanças destruídas,
crianças sem futuro”. Numa literatura de margem, sabe o que
centro pensa, conhece o centro, mas não fala como ele...
A partir do terceiro parágrafo, então, observa o modo
como a polícia (“gambé”), os agentes da ordem, estrangeiros à
periferia quando a serviço do Estado, vêem a favela. Por esse
olhar a periferia é o lugar onde se avolumam contraventores
e despossuídos, excluídos e viciados. É espaço de criminosos
a serem debelados. O olhar seguinte, dos políticos, é flagrado
211
Miguel Rettenmaier
na maneira como os homens públicos vêem a favela: pelos
benefícios que ela lhes proporciona ao manipularem os
eleitores, “peixes cegos que sempre mordem o mesmo anzol”.
O terceiro olhar avistado criticamente pelo eu-periférico é o
do boy, que nada vê além do medo, que não enxerga o crime
como um aspecto associado a carências no que se refere à
educação, à cultura e à dignidade das pessoas marginalizadas
pelo sistema, que não percebe que todas elas tão vítimas do
HK das guerras urbanas ou da brutalidade da polícia.
O texto de Dum-dum, assim, de sua perspectiva marginal,
visita o ponto de vista do(s) centro(s) e manifesta-se em réplica
à repressão, à exploração ou ao temor irrefletido com relação
à periferia, acusando em tais posturas a inexistência de uma
atitude que reconheça a favela, em suas dificuldades e na sua
circunstância, como efeito da desatenção, ou, principalmente,
da exploração política no que se refere às questões sociais,
educacionais e culturais. Nesse avanço, pela palavra e pela
voz assumida, do olhar de excluído para o de um sujeito,
como seus pares, apartado das garantias de cidadania, DumDum pode, além de contestar perspectivas preconcebidas e
reprodutoras da ordem injusta, estender a questão ao próprio
leitor que está fora da margem: “– E você, truta? O que seus
olhos vêem quando olham para favela?”.
É essa perspectiva que torna o texto de Dum-dum
diferente dos demais. Em sua capacidade de tentar ultrapassar
seus próprios limites e particularidades, na sua busca e no
desafio ao(s) outro(s), às alteridades que, de forma manifesta,
conhece e às quais procura responder, a literatura marginal
de Dum-dum torna-se também um centro. Deixa de ser uma
margem silenciosa (ou silenciada) vista a distância pelos olhos
dos bem situados; passa a agir como um núcleo irradiador de
questões que, diversamente dos demais textos, não apontam na
direção de interpretações categóricas (ou da ausência delas!,
como no texto de Bergamo). Por isso, por também ser centro,
não abdica da própria linguagem, pois sua linguagem já é, de
alguma maneira, seu tema, já que é parte da cultura periférica,
da favela.
Para Dum-dum, os elementos de sua identidade,
a linguagem e cultura não sugerem a afirmação de um
código fechado. Não são articuladas palavras específicas e
compreensíveis apenas ao grupo a que pertencem. Como visa
ao outro, seu código, a língua da favela, é reelaborado como
212
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia
representação de uma oralidade, para uma recepção além do
“si” de quem se expressa, embora ainda centrada no “si” de
quem escreve: o artista. Sua proposta é aberta, sua leitura é
releitura, sua voz é dialética. Nessa orientação, o texto exige a
participação do leitor, numa postura de provocação à interação
e, sobretudo, à reflexão.
Avançando nessa literatura de margem e nas questões
que envolvem a megarrebelião do PCC, encontramos a obra
Ninguém é inocente em São Paulo,15 de Ferréz. Publicada
no contexto dos incidentes de maio de 2006, o livro é mais
um testemunho de uma perspectiva periférica que pretende
também ter voz. É um livro de contos, mas também é, acima
de tudo, uma resposta, pela via da arte ficcional, às conclusões
superficiais que cercaram as questões relativas à violência
urbana.
Sem esquecermos a importância dos recursos visuais
para a leitura dos enunciados verbais, a primeira leitura desta
obra poderia se estabelecer na relação entre o título e a imagem
da capa da edição. A foto mostra dois mundos distintos, lado a
lado, o da riqueza e o da pobreza, dois mundo que, como quer
mostrar Ferréz, não possuem inocentes.
Figura 6
15
FERRÉZ. Ninguém é inocente em São Paulo. Rio de Janeiro: Objetiva. 2006.
213
Miguel Rettenmaier
Na capa de Ninguém é inocente em São Paulo, mais do
que se diferenciarem, os opostos são envolvidos em um jogo
especular. Abaixo, à esquerda está a favela, uma união caótica
de zincos e de vielas, num desordenado mosaico rasteiro
no qual se acumulam e se concentram casas e detritos nas
limitações espaciais impostas pela coexistência de muitas
pessoas, aproximadas e avizinhadas pela pobreza. Separado
por um muro, ascende um luxuoso condomínio. Em oposição
à densidade opressora da favela, o que impera na área dos
bem nascidos é espaço e conforto. O prédio sobe em um
espiral planejado, asséptico, o que permite aos moradores
uma varanda com jardinagem e piscina. Abaixo, na área
comum do condomínio, abundam áreas de lazer. Há espaço
para moradores, há um ambiente de convívio civilizado, um
lugar em que a vida agradável está separada pelos muros da
desordem rasa da periferia. A capa do livro porém, parece não
permitir dicotomias claras, como já podemos ler no título, que
não inocenta ninguém em São Paulo. Na parte superior, esses
mundos divididos são invertidos de ponta-cabeça e cruzados.
O condomínio passa a refletir a favela e a favela tem como
reflexo justamente o condomínio. Cada mundo como parte
mútua do outro, cada lado como espelho de seu contrário,
cada parte como cúmplice de sua oposta.
O autor, como Eduardo Dum-dum, é um jovem advindo
das periferias dos centros urbanos. Além de escritor, é
compositor de hip-hop e, sobretudo, um leitor que, para
sobreviver, antes da arte, teve vários pequenos empregos. A
orelha de seu livro salienta que Ferréz “sempre freqüentou
bibliotecas”. De alguma maneira, a leitura foi sua alternativa
de superação, uma maneira de poder esta, deixar pela palavra
e pelos livros, assimilar os valores do centro, para mostrar-se,
ele, Ferréz, como centro irradiador de cultura, como um agente
transformador da ordem que não lhe é favorável. Seu nome
literário, em si, já aponta para esse caráter de contestação:
“Ferréz, nome literário de Reginaldo Ferreira da Silva, é um
híbrido de Virgulino Ferreira (Ferre) e Zumbi dos Palmares (Z)
e uma homenagem a heróis populares brasileiros”.16
O livro Ninguém é inocente em São Paulo, por isso, é
uma união de contos e de “insultos”. Para o autor, contos
“sempre foram desabafos” (p. 9), e esses desabafos aparecem
16
http://www.itaucultural.org.br
214
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia
nas histórias narradas pelo autor numa linguagem de quem
conhece as mazelas da pobreza, as dificuldades da periferia,
a dor dos excluídos. O conto “Fábrica de fazer vilão” trata
da violência policial gratuita, das abordagens desumanas
dos agentes de segurança, que, em lugar de protegerem
as comunidades pobres, são promotores da desordem,
motivadores ao crime. “Pega ela” é um diálogo entre dois
“soldados” da favela numa discussão fatal a partir dos
rigorosos códigos de fidelidade do crime. “Pão doce” tematiza
os desrespeitos à dignidade dos trabalhadores de menor
escalão no organograma das grandes empresas (no caso um
supermercado), submetidos aos desmandos e crueldade de
chefias, também pequenas, também periféricas, mas nem por
isso solidárias.
Outros contos e outros ‘insultos” mostram as tentativas
de superar as más condições da pobreza. “No vaga” envolve
um diálogo de desempregados tentando encontrar meios de
sobrevivência; “Rastejar” envereda pela via do fantástico ao
relacionar o ato da leitura à metamorfose do sujeito à condição
de um réptil – a leitura transforma!. O conto “Vizinhos” trata
das dificuldades de convivência entre os sujeitos da periferia
e as armadilhas dessa convivência num jogo no qual não há
benfeitores ou malfeitores absolutos. Todos são cúmplices de
um mesmo processo, no qual não há inocentes, como lemos
no texto “O plano”:
Meu povo é assim, vive de paixão, o ideal revolucionário
também é pura paixão, muitos amam Lucimares, muitos amam
Marias, Josefas, Dorotéias, e, na transubstanciação da dor, um
tipo mata um empresário no posto e o plano funciona.
E quer saber?
NIGUÉM É INOCENTE EM SÃO PAULO.
Somos culpados.
Culpados. Culpados também. (p. 16)
A visão crítica de Ferréz não isenta a favela dos próprios
problemas. Se é evidente que a sociedade a abandonou,
também é certo que, nesse processo de abandono, colabora o
alheamento de seus habitantes: “Não me admira que o plano
funcione, os pensamentos são vadios, afinal essa é a soma de
tudo, quem? O rei do ponto? Esse tá sossegado, só contando
dinheiro. Informação? Não! povo é leigo, não entende, então
não complica, o assunto na favela aqui não vinga seu manual
prático do ódio, só Casa dos Artistas, discutir na favela só se o
Corinthians é campeão ou não” (p. 16).
215
Miguel Rettenmaier
As narrativas de Ferréz são, dessa forma, provocações
abertas não apenas ao centro que marginaliza, mas às periferias,
que, ao se isentarem da crítica a própria condição, não se
tornam também centros. Nesse sentido, os sujeitos excluídos,
mesmo sem querer, colaboram com o “plano” excludente da
sociedade.
Na discussão, então, sobre o enfrentamento da condição
de marginalidade, a obra de Ferréz é um testemunho
contundente da necessidade de superação da posição de
injustiçado (que alimenta o crime organizado) para sujeito
crítico. Nesse sentido, além de replicar ao mundo exterior,
Ferréz quer fazer pensar a própria margem onde se encontra.
E esse caminho só pode ter execução pela via da leitura e da
literatura, como formadora de novos centros. Pela palavra
escrita dos periféricos, dos excluídos, podem surgir as réplicas
contra os ditames dos costumes, dos valores, da linguagem e
da estética dos núcleos padronizadores. Nesse sentido, Ferréz,
em seus “insultos”, pretende que se discuta mesmo o que é a
literatura.
O primeiro texto do livro, “Bula”, trata do encaminhamento
do autor com seu fazer literário, na medida em que seus textos
que “têm algo de bom sempre nasceram rápido, de uma
paulada só”: “A maioria é duro, desesperançado, porque assim
foi vivido ou imaginado. No rastejar o ser mutante não se
contenta em ser “normal”. Trechos de vida que catei, trapos de
sentimentos que juntei, fragmentos de risos que roubei estão
todos aí, histórias diversas do mesmo ambiente, de um mesmo
país, um país chamado periferia” (p. 10).
No âmago das questões sociais está também um fazer
literário que pede espaço. Somente legitimada como arte, a
oralidade da periferia pode ser elevada ao status de uma
linguagem reflexiva, crítica, atuante. Ferréz quer seu país,
a periferia, que também é de todos, mesmo dos que vivem
melhor, valorizado como centro de arte e de criatividade.
Busca, então, a partir do factual, o ficcional e a universalidade
da literatura. Inventa histórias, junta “trapos de sentimentos”,
“rouba” “fragmentos de riso” e transforma-os em matéria
artística, associada a uma realidade específica e a uma crise
particular – as mazelas urbanas da sociedade paulista e
brasileira –, mas própria de merecer leitura em qualquer
lugar do mundo onde exista pobreza, onde existam guetos
216
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia
formados pela insensibilidade política de todos os que com
eles relacionam, fora ou dentro da margem.
E o caminho que Ferréz vislumbra é pela cultura, pela
arte, pela contundente manifestação do texto literário, como
ele mesmo parece afirmar no conto “Assunto de família”:
“Continuo andando, Pai, e por isso nunca mais deu tempo para
gente se falar, eu continuo de escola em escola, de entidade
em entidade, de show em show, tentando espalhar informação,
tentando cultivar o prazer de ler e de buscar algo melhor, e
sei que o senhor me apóia e torce para que um dia nós todos,
brasileiros sofredores, lutemos com as armas certas, um livro,
um caderno e um lápis, saberemos um dia o que é um livro,
pois é um trecho de livro que nos coloca da cadeia, que nos
afasta do dinheiro e que nos jogou aqui há quinhentos anos”
(p. 81).
Considerações finais – a literatura,
os centros e as margens
A publicação de Leitura em crise na escola, em 1982, foi
resposta à questão social e política que residia nos desmandos
da perspectiva do Estado burocrático-autoritário pós-64, os
quais repercutiam em todas as demais instâncias sociais, entre
as quais se encontrava a escola. Denunciar um processo em
crise na formação de leitores e propor atividades efetivamente
em conformidade com as particularidades do texto literário,
este concebido, na sua verdadeira essência, como o texto, por
excelência, emancipatório e mobilizador da reflexão, foi a
base pedagógica de um movimento político que se encontrava
em ebulição, principalmente nas partes letradas da sociedade.
Nos objetivos da obra, de “circunscrever um novo perímetro
para a leitura e o texto literário em sala de aula, sugerindo
um relacionamento mais participante para o para o aluno, de
modo a tornar autenticamente democrático o processo por
que passa[va] a escola brasileira no nosso [naquele] tempo”,17
encontra-se a base de uma transformação inerentemente
política. Formar leitores era formar sujeitos sensíveis ao texto
literário e, assim, politizados. Era essa a necessidade no fim da
década de 70, e início da de 80, quando todos pareciam unidos
17
Zilberman, op. cit., p. 8.
217
Miguel Rettenmaier
por um problema maior do que os demais: o restabelecimento
da liberdade no país.
A atualidade desse novo milênio aponta para outros
problemas, já que a democracia – ao menos, formalmente –
encontra-se consolidada. A questão agora é torná-la accessível
a todos. De alguma maneira, a liberdade efetiva não atingiu
milhões de desfavorecidos, que permanecem dependentes de
condições de vida indignas. Nesse sentido, o caminho, hoje,
parece ser a superação crítica da suposta “unidade nacional”,
em nome da reflexão sobre os distintos e antagônicos espaços
de nossa sociedade fracionada. Nesse sentido, é urgente um
encaminhamento de reflexão sobre os diferentes setores da
sociedade, aparentemente indiferentes, de costas uns aos
outros, ou de frente, enfrentando-se, na busca por supremacia.
Parece mais importante agora a reflexão crítica sobre os
distintos códigos e as diferenças culturais.
A pluralidade de nossa sociedade, além das diferenças
identitárias que fazem parte de qualquer nação, quanto mais
com a extensão territorial do Brasil, em alguns aspectos
parece diferir da dos demais países. Nosso caso específico
forjou diferenças resultantes do histórico acúmulo de riqueza
em partes minúsculas da sociedade com o empobrecimento
de milhões de pessoas. Nosso caso específico não se deu
apenas por diferentes tradições que urdiram culturas distintas
num único território, ao contrário, é um mesmo passado,
violento, autoritário e injusto que apartou grupos humanos.
Por isso, a crise de agora é mais profunda e mais difícil de ser
enfrentada.
O caminho para tal alteração da ordem, pela educação,
parece ser o exercício da reflexão crítica quanto às demandas
dessa sociedade fracionada pela pobreza de muitos e pela
violência contra todos. Devemos permitir que os “invisíveis”
aflorem no cenário da educação e da cultura. Devemos
patrocinar a comunicação, não o congestionamento. Nesse
sentido, é importante abrir e reorientar conceitos, já que são,
de qualquer texto, socialmente circunstâncias, legitimados
nas esferas centrais do conhecimento. Em primeiro lugar,
então, devemos perceber e fazer perceber que o(s) saber(es)
e as artes estão no mundo, não nas classes das instituições
de ensino ou no acervo das academias. No mesmo plano,
devemos reconhecer a arte que está na margem, respeitando
218
A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia
e valorizando a estética desses setores. Dum-dum e Ferréz
são artistas, são poetas, são ficcionistas – fazem literatura,
mesmo que sua obra esteja fora dos currículos das escolas e
da universidade. Legitimar a arte das minorias é um caminho
para se entenderem as periferias como centros de reflexão.
Em segundo lugar, devemos pensar a leitura segundo
uma abordagem necessariamente dialógica, abandonando
as pretensões de uma “literariedade” intrínseca aos textos.
Faz parte da condição essencial de todos os textos, mesmo e
sobretudo os literários, serem condutores de réplicas. Isolados,
perdem seu sentido, perdem a força. São plantas artificiais ou
de laboratório – não passa por eles a seiva da vida. Justamente
nesse diálogo entre textos, na forma e no conteúdo como se
constroem as réplicas, escabelem-se as relações que fazem um
texto ser artístico ou não.
Em nosso caso, neste trabalho, partimos de um impasse
do cotidiano para saber mais não apenas sobre este cotidiano,
mas sobre a própria sociedade e a própria literatura dessa
sociedade. Para melhor entendermos esse mundo e a arte desse
mundo, “navegamos” por diferentes “plataformas” textuais,
transitando, conseqüentemente, por distintivos espaços
sociodiscursivos da sociedade. Percebemos as limitações da
abordagem da imprensa escrita no tratamento do fenômeno,
que torna invisíveis as periferias e que acentua apenas as
perturbações ocorridas no centro; estarrecidos, assistimos à
indiferença entediada e autocentrada da elite paulistana quanto
à megarrebelião do PCC em São Paulo. Por outro lado, vimos
surgirem, pela literatura, testemunhos críticos de artistas que,
numa estética própria, na oralidade rapper da favela, jogam
na discussão elementos que comprometem toda a sociedade,
inclusive as periféricas, como responsáveis por esse estado
de coisas. São testemunhos profundos de uma arte particular,
que, ao mesmo tempo, torna-se universal pela possibilidade
de suplantar a própria circunstância: onde houver um gueto,
Ferréz e Dum-dum serão compreendidos.
No entrechoque de textos, de imagens, de realidades,
redescobrimos a realidade em mais de uma instância, em
mais de um centro; pela leitura em rede, rediscutimos a
literatura, retirando-a dos sítios letrados e ilustrados da
sociedade para restituí-la à vida e a seus impasses reais...
Nesse encaminhamento não há fim. Há mais leituras, há mais
219
Miguel Rettenmaier
textos, há mais livros, há mais interfaces no infinito mundo
hipertextual de descobertas no qual podemos navegar.
Referências
DAMIANI, Marco. Terror... Pânico... Caos... Vergonha. Isto É, São Paulo,
n. 1909, p. 30-39, maio 2006.
DUM-DUM, Eduardo. O que os olhos vêem. In: FERRÉZ:
Literatura marginal. Talentos da escrita.
FERRÉZ. Ninguém é inocente em São Paulo. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2006.
KLEIMAN, Ângela; MORAES, Silvia. Leitura e interdisciplinaridade.
Campinas, SP: Mercado das Letras, 1999.
LEVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. O futuro do
pensamento da era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1993.
_______. Cibercultura. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 1999.
RÖSING, Tania; BECKER, Paulo. Leitura e animação cultural.
Repensando a escola e a biblioteca. Passo Fundo: UPF, 2002.
ZILBERMAN, R. (Org.). Leitura em crise na escola: as
alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
http://www.itaucultural.org.br
220
O professor e o erro no processo
de alfabetização
Natália Duarte*
A educação é uma das demandas mais clamadas pela
sociedade mundial na perspectiva de um mundo melhor. No
Brasil, educação de qualidade para todos é apontada como
elemento fundamental de estratégia de mudança, do fortalecimento da democracia e da redução permanente de desigualdades sociais, regionais, étnicas e de gênero. Contudo, em vez de
servir como redutora, a educação brasileira tem sido indutora
da desigualdade. Por raça, etnia, gênero, região, classe social,
deficiência e outros, a educação apresenta-se desigual e desiguala, principalmente no que se refere à alfabetização.
A educação pode contribuir, nomeadamente, com a
construção de um Brasil igualitário não apenas na perspectiva
econômica tão apregoada, mas, sobretudo, para a ampliação
da maturidade intelectual, fortalecimento da ética e democracia, reconhecimento e valorização da diversidade cultural
estruturante do Brasil e desenvolvimento da empatia com os
outros seres humanos e com a natureza.
Promover um Brasil alfabetizado, educado, conhecedor
de seus direitos, capaz de pensar, de resistir e de propor, em
condições de se organizar e de lutar por sua liberdade, passa,
inexoravelmente, pela melhoria do ensino da língua escrita
em ambientes formais e não formais. A alfabetização efetiva é
coadjuvante na viabilização de um novo projeto de desenvolvimento social, político e econômico nacional.
*
Professora de Educação e pedagoga; especialista em alfabetização e mestre
em Educação. Foi professora de rede pública do Distrito Federal por 17 anos.
É professora de graduação e pós-graduação no Centro de Ensino Universitário do Distrito Federal há seis anos e há três trabalha no MEC – atualmente é
Coordenadora Nacional do Programa Escola Aberta. É conselheira no CNAS
representando o MEC.
221
Natália Duarte
No contexto brasileiro, a inclusão social e a conquista
da cidadania passam pela educação e sua porta de entrada é
a aprendizagem da leitura e da escrita. Contudo, os programas e sistemas de avaliação nacionais e internacionais vêm
averiguando duas contradições. A primeira: ainda que a universalização do ensino fundamental venha sendo construída efetivamente no Brasil, encontra-se hoje um contingente
muito grande de crianças, dentro da própria escola, que não
sabem ler e escrever (39%);1 a segunda é que, mesmo que a
taxa de analfabetismo absoluto acima dos 15 anos tenha sido
reduzida em mais de 50 pontos no decorrer do século XX (de
65,3% em 1900 para 13,6% em 2000),2 hoje o contingente de
analfabetos é quase três vezes maior do que o de então – com
o detalhe de que 35% dos analfabetos absolutos de hoje passaram pela escola.3
É inadmissível que num país com o potencial do Brasil
ainda haja cerca de 14 milhões de brasileiros absolutamente
analfabetos e mais de trinta milhões de analfabetos funcionais.4 Comparativamente: temos um dos mais baixos índices
de escolaridade na América Latina, com taxa de analfabetismo adulto maior que a do Peru (10,1%), da Colômbia (8,4%),
Equador (8,4%) e Paraguai (6,9%).5 Se continuarmos com a
velocidade de alfabetização que temos hoje, alcançaremos as
taxas de analfabetismo do Peru em 2006, da Venezuela em
2010, do Paraguai em 2011, do Chile em 2016 e da Argentina e
Uruguai em 2020. Taxas próximas de zero, somente na segunda metade do século XXI.6 É preciso abolir o analfabetismo
jovem e adulto no Brasil e garantir que toda criança, sem exceção, aprenda a ler e a escrever na escola, tendo este direito
assegurado.
Entretanto, os alunos das escolas vêm apresentando resultados piores ao longo da última década. Comparando-se
os resultados obtidos pelo Sistema Brasileiro de Avaliação
Escolar (Saeb) nos anos de 1995, 1997, 1999 e 2001, percebe-se uma queda no desempenho dos alunos (os resultados
obtidos são de 188,3; 186,5; 170,7 e 165,1, respectivamente).
1
2
3
4
5
6
Saeb - 2003.
Mapa do Analfabetismo no Brasil. Inep - 2003.
Idem.
IBGE, Censo Demográfico - 2000.
Alfabetização de Jovens e Adultos. MEC - 2004.
Alfabetização de Jovens e Adultos. MEC - 2004.
222
O professor e o erro no processo de alfabetização
Se compararmos o primeiro e o penúltimo Saeb, constatamos
uma queda de 13% no desempenho dos alunos. Nas regiões
Nordeste e Centro-Oeste essa queda foi de 21,1% e 17,6%, respectivamente – atribuída à pouca competência na leitura e
interpretação de textos (análise-síntese do Saeb).7
Outro contra-senso: os profissionais responsáveis pela
alfabetização são os que possuem menor taxa de escolaridade. A taxa de docentes com nível superior no ensino fundamental é de 36,1% para 1ª a 4ª série, de 77,1% para a 5ª a 8ª,
e, nas classes de alfabetização, essa taxa é de apenas 16,7%.8
Nos programas de alfabetização de adultos o quadro é ainda
pior, posto que a alfabetização realizada por instituições não
governamentais não exige sequer titulação de seus docentes.
Em sua maioria, são voluntários com muito boa vontade, sem
formação profissional e com uma “capacitação” de, em média,
40 horas.
Esses dados são intrigantes posto que muito tenha se
produzido, academicamente, sobre alfabetização, desde a
ploriferação de variadas metodologias organizadas ainda com
a lógica do conteúdo (métodos silábicos, fonéticos, analíticos, sintéticos, Dom Bosco,...), passando por discussões mais
abrangentes, que, desfocando o conteúdo, centram-se no contexto do educando pensando a alfabetização com base em
situações-problema, alfabetização com base lingüística, com
práticas de valorização de cultura, chegando a concepções de
educação alicerçadas nos estudos sobre a aprendizagem, com
ênfase nos esquemas de pensamentos e processos psicogenéticos de aquisição da leitura e escrita. Ou seja, há avanços teóricos e conceituais que abrangem mudanças paradigmáticas
do ponto de vista epistemológico da educação, contudo esses
avanços ainda não conseguiram se efetivar em maior competência da escola para a alfabetização.
A efetiva alfabetização de jovens e adultos é o ponto de
partida para promoção da justiça social, da democratização,
da inclusão no mercado de trabalho, no desenvolvimento
do país, no aumento da renda nacional e na sua distribuição.
Manter o atual quadro de analfabetismo significa perpetuar
uma situação de pobreza e de exclusão social de uma grande parcela da população. A Declaração de Hamburgo sobre
7
8
Inep - 2002.
Censo Escolar 2003.
223
Natália Duarte
Educação de Adultos entende a alfabetização “como o conhecimento básico, necessário a todos num mundo em transformação em sentido amplo, é um direito humano fundamental”.
Ainda citando a declaração: “Em toda sociedade, a alfabetização é uma habilidade primordial em si mesma e um dos
pilares para o desenvolvimento de outras habilidades [...] tem
também o papel de promover a participação em atividades sociais, econômicas, políticas e culturais, além de ser requisito
básico para a educação continuada durante toda a vida” (Ireland et al., 2004, p. 43).
Além de ser signatário da Declaração de Hamburgo de
Educação para Todos e das cartas das Conferências Internacionais sobre Educação de Adultos (Confiteas), há leis brasileiras
que apontam para a ação de alfabetização – inclusive com sua
erradicação – e ampliação da escolaridade dos jovens e adultos brasileiros. Podemos começar ressaltando os artigos 205 e
208 da Constituição Federal, que afirmam a educação como
um direito subjetivo assegurado, inclusive, àqueles que não
tiveram acesso em idade própria. A Lei de Diretrizes e Bases,
mais especificamente em seus artigos 4º, 37 e 38, prevê a educação de jovens e adultos como uma modalidade de educação,
reafirmando a obrigatoriedade, por parte do Estado, de seu
atendimento. As Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação para Jovens e Adultos – res. no 01 de 2000 do Conselho
Nacional de Educação – reafirmam o direito do adulto à educação e ressaltam a necessidade de “formulação de propostas
pedagógicas coerentes com as especificidades desta modalidade” (p. 188), e o Plano Nacional de Educação (PNE) recomenda prioridade em seu atendimento, abordando incisivamente
o tema: “o número de analfabetos de 16 milhões de brasileiros
maiores de 15 anos, na ocasião, envergonha o país” (Martins,
2004, p. 123). O PNE propõe erradicar o analfabetismo em dez
anos e assegurar EJA a 50% da população adulta que ainda
não detém a escolarização fundamental prevista em lei.
Se utilizarmos o conceito letramento, os números são
maiores. Para Ribeiro, o letramento compreende “a leitura e
a escrita como práticas sociais complexas, desvendando sua
diversidade, suas dimensões políticas e implicações ideológicas... abarca não só habilidades (que seriam medidas por meio
de teste), mas também práticas e representações das pessoas
sobre a leitura e a escrita” (2004, p. 12).
224
O professor e o erro no processo de alfabetização
A partir desse critério, a Ação Educativa,9 pesquisando
duas mil pessoas entre 15 a 64 anos em todo o território nacional, percebeu que, dentre os que já cursaram de um a três anos
de estudos, 32% são analfabetos absolutos e 51% apresentaram um domínio muito rudimentar da leitura e escrita; os com
mais de quatro anos de escolaridade, 42%, apresentaram um
domínio muito rudimentar de leitura e escrita. Segundo a pesquisa, de todos os entrevistados, apenas 26% da amostra eram
letrados.
É consenso que a manutenção do atual quadro de analfabetismo, seja de adulto, seja de escolares, significa perpetuar
uma situação de pobreza e de exclusão social de uma grande
parcela da população. A alfabetização é o ponto de partida
para promoção da justiça social, da democratização, da inclusão no mercado de trabalho, no desenvolvimento do país, no
aumento da renda nacional e na sua distribuição. E optar por
uma proposta pedagógica de alfabetização é o primeiro passo
na consecução desse objetivo.
Um caminho para conhecer e analisar as propostas de
alfabetização pode ser referenciado nas bases epistemológicas
que sustentam o tema e se fazem presentes nas ações apoiadas. Uma primeira divisão das propostas a partir de suas bases
epistemológicas pode ser realizada com base em Grossi (1995)
e Duarte (2000, 2002, 2003), mas ainda carecendo de muita
sistematização. A estruturação de programas de alfabetização
de adultos pode se calcar em três grandes eixos, a saber: a organização do programa a partir da lógica do conteúdo, a partir
da incorporação do contexto/cultura do público participante e
a partir da lógica dos processos de aprendizagem.
Algumas propostas de alfabetização se organizam a partir da lógica dos conteúdos. E essa forma de organização faz-se
sentir principalmente nos programas que se constituem a partir do método silábico. Esse(s) método(s) é(são) bem antigo(s)
e o registro mais anoso de sua utilização data do século XVIII.
Trata-se de método(s) que centra(m) os esforços cognitivos no
entendimento da unidade sonora sílaba.
Os principais períodos da história do ensino da história e da
escrita mostram as diferentes formas de tratamento que a sílaba tem recebido na alfabetização de crianças, jovens e adultos,
desde séculos passados, de tal forma que podemos dizer que
9
Organização não governamental da área de educação.
225
Natália Duarte
ela sempre esteve presente e que, mesmo tendo a metodologia
apoiado em elementos sem significação, de uma forma ou de
outra, dos trabalhadores braçais à elite intelectual do país, todos que sabem ler e escrever hoje, aprenderam pelos métodos
tradicionais da silabação (Corrêa, 2003, p. 29).
Mesmo partindo das letras, da palavra ou de frases,
essa(s) metodologia(s) de alfabetização tem por ancoragem a
sílaba. Muito simplificadamente, podemos afirmar que esse
método tem por princípio epistemológico o positivismo/empirismo e a lógica do conteúdo. Organizam a leitura e escrita
seguindo da parte (vogais e consoantes) para o todo (sílaba,
palavra, frase texto); do simples (sílabas estruturadas a partir de consoante/vogal) para o complexo (encontros consonantais e dígrafos); do concreto (substantivos concretos) para
o abstrato (texto). E mesmo sendo anacrônico em termos de
construções científicas e educacionais disponíveis hoje em
dia, não consegue ser abandonado.
Paulo Freire faz denúncias sobre o positivismo presente
na educação (principalmente na alfabetização de adultos) em
muitas de suas obras. Segundo Freire, a educação bancária,
que foca o acúmulo memorial de conteúdo, precisa ser significada, contextualizada, criticada e transformada para que os
que estão aprendendo rompam com a reprodução inevitável
da escola de massa10 e iniciem o movimento libertário de reconhecimento e valorização. Para Esteban, o saber – de analfabetos por exemplo – é desqualificado pela escola “num quadro
de múltiplas negações, dentre as quais se coloca a negação da
legitimidade de conhecimentos e formas de vida formulados à
margem dos limites socialmente definidos” (1999, p. 8).
Na alfabetização de adultos, Freire (1992) ressalta
ainda mais esse ponto indo à construção de um método de
alfabetização que inaugura outro paradigma. Com Freire a
lógica do conteúdo é substituída pelo foco no contexto, no
significativo, na experiência do aluno. Freire (1999) aponta a
necessidade da aproximação com o educando, sua comunidade,
suas representações simbólicas, para, então, conseguirmos, a
partir do que é reconhecido e valorizado pelo aluno, propormos
o trabalho de alfabetização, que não tem mais o foco na sílaba,
e, sim, o fomento à crítica do alfabetizando. Paulo Freire
10
Conceito construído por Mariano Enguita (1989) para denominar a escola
de crianças na sociedade capitalista.
226
O professor e o erro no processo de alfabetização
revoluciona ao deslocar o foco do conteúdo para o educando
(ou seja, sua cultura) e, nesse movimento inédito, desconstitui
a base da escola de massa. Os princípios de hierarquia, de
desqualificação e desvalorização do conhecimento do
educando, da incorporação da alegria e esperança insurgem
contra o instituído e fazem Freire conhecido mundialmente.
Esse movimento se concretiza no que Freire denominou:
palavra geradora. “[...] as palavras com que organizar o programa da alfabetização deveriam vir do universo vocabular dos
grupos populares, expressando a sua real linguagem, os seus
anseios, as suas inquietações, as suas reivindicações, os seus
sonhos. Deveriam vir carregadas da significação de sua experiência existencial e não da experiência do educador. A pesquisa do que chamava de universo vocabular nos dava assim
as palavras do Povo, grávidas de mundo” (Freire, 1999, p. 21).
Essa proposta expressou a transformação que insurgia
no mundo ocidental. Significou romper com a modernidade,
dar voz a quem não falava para a escola. Também na linha
de romper com a violência simbólica da escola de massa, a
alfabetização de base lingüística busca o reconhecimento e a
valorização da cultura do educando, de sua linguagem e de
suas representações. Com ampla divulgação, muita produção
acadêmica e propostas já visíveis em muitos programas de alfabetização, a lingüística contribui na perspectiva da valorização da diversidade, rompendo com a modernidade e a norma,
tentando transformar a escola em espaço democrático.
Segundo Bortoni, na “sala de aula, como em qualquer
outro domínio social, encontramos grande variação no uso da
língua” (2004, p. 25), e essa variação precisa ser reconhecida,
afirmada e valorizada sob pena de inferiorização e exclusão.
Continua o autor: “a superioridade de uma variedade ou falar
sobre os demais é um dos mitos que se arraigaram na cultura
brasileira. Toda variedade regional , ou falar é, antes de tudo,
um instrumento identitário, isto é, um recurso que confere
identidade a um grupo social” (p. 33).
Após os anos 80, entraram em cena o construtivismo e
a lógica da aprendizagem. Embrenhando-se nas escolas sem
o necessário adensamento teórico, o “método construtivista”
– denominação equivocada conceitualmente – tem o mérito
de introduzir a discussão sobre como se aprende. A partir daí
a intervenção didática na aprendizagem ganha consistência
e passa a ser o cerne do trabalho do professor. “Nos anos 80,
227
Natália Duarte
dois fenômenos se destacam por sua influência na educação
escolar. O impacto da denominada revolução cognitiva na forma de entender o ensino e a aprendizagem e as mudanças nas
concepções sobre o conhecimento” (Hernandez, 1998, p. 71).
Ao desfocar o conteúdo e centrar esforços na aprendizagem, ressurgem discussões a partir de teóricos do início do
século XX – Jean Piaget, Henry Wallon e Levy S. Vygotski – na
tentativa de compreender como se aprende e ressignificar a didática. A crítica à lógica do conteúdo é contundente em Grossi
(1995): “...conhecimento não é memorizar informações. É, isto
sim, ampliar sua capacidade de estabelecer relações entre os
diversos elementos que interferem neste campo da aprendizagem. E o que é extremamente importante é que é impossível
selecionar e dirigir por deliberação docente quais e quantos
elementos devem ser oferecidos sucessivamente para os alunos, regulando de fora para dentro a sua aproximação com a
complexidade dos conhecimentos científicos” (p. 22).
Também é a partir de Grossi que se intensifica a discussão da didática vinculada ao processo de aprendizagem, eclodindo com sua publicação Didáticas da alfabetização – três
volumes (1989), com mais de 15 edições. O Grupo de Estudos
sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação – Geempa,
presidido por Grossi, capitaneia a discussão sobre construtivismo no Brasil11 elaborando a teoria que, num primeiro momento, denominaram de “construtivismo pós-piagetiano”12 e,
em seguida, de “pós-construtivismo”.13 Essa discussão acrescenta ao contexto significativo – que deve ser considerado pelo
professor – o processo de aprendizagem. E é nessa proposta
pedagógica que passo a me deter mais detalhadamente.
Ao nos referirmos ao processo de aprendizagem da leitura e da escrita, emerge um tema estudado mais recentemente:
o erro e seu aproveitamento como estratégia didática. Alguns
educadores se sensibilizaram com a facilidade com que certas hipóteses eram consideradas como “erro” na escola, bem
como a forma punitiva como eram tratadas no cotidiano escolar. O “erro” é fruto indispensável do diálogo entre sujeito
e conhecimento. Atuar desrespeitosamente sobre hipóteses,
11
12
13
Eliane Veras. A recepção de Piaget no Brasil. Tese (Doutoramento) – Departamento de Sociologia - UnB, 1998.
GROSSI, E. P. Construtivismo pós-piagetiano. Petrópolis, RJ, ed. Vozes, 1995.
Ver: Por que ainda há quem não aprende? A teroia, Petrópolis, RJ: Vozes,
2004.
228
O professor e o erro no processo de alfabetização
competências e performances em construção, indispensáveis
para a aprendizagem, pode prejudicar, ou, mesmo, impedir o
letramento.
O “erro”, fruto “das tentativas de operar com novos
conceitos e procedimentos, tem um papel fundamental” na
aprendizagem dos alunos (Carvalho, 1997, p. 20). Aprender é
construir esquemas de pensamento. Em alfabetização, “os que
ainda não sabem ler e escrever formulam hipóteses lógicas
e pertinentes que são, entretanto, inicialmente bem distantes
do que corresponde de fato aos aspectos do sistema de escrita” (Grossi, 1995, p. 18). Essas hipóteses são absolutamente
necessárias para a construção da escrita e acontecem mesmo
sendo desrespeitadas. Nesse sentido, o “erro” é imprescindível
e deve ser percebido como “fonte de virtude” (Luckesi, 1999).
Todavia, não é assim que este vem sendo percebido na escola,
e, sim, como “erro” em contraposição ao “certo”, “que é associado ao saber, e se revela quando a resposta do(a) aluno(a)
coincide com o conhecimento veiculado pela escola, este sim,
verdadeiro, valorizado e aceito, portanto positivamente classificado” (Esteban, 1999, p. 15).
Dessa forma, não há diálogo entre o conhecimento do
aluno com o proposto pela escola, nem respeito às hipóteses
elaboradas pelo aluno na construção do conhecimento escolar. Entende-se que há o conhecimento e que este tem de ser
apreendido, de fora para dentro, sem distorções no caminhar
e, de preferência, todos ao mesmo tempo – o tempo pensado
pela escola. Não há espaço para heterogeneidades de saberes e
de hipóteses. Só há espaço para uma geléia homogênea denominada “sala de aula”. A escola passa de local privilegiado da
heterogeneidade real, percebida por qualquer professor que
esteja em classes de alfabetização, para local de uma homogeneidade irreal e imposta. E frente à homogeneidade, implanta-se a inexorabilidade do “erro”, que surge principalmente
como desvio de um padrão, ou melhor, do padrão, excluindo
todas as outras possibilidades, que passam a ser classificadas
como “erro”. “Quando se supõe a existência de padrões de desempenho melhores e piores, os desvios da norma adequada
são considerados patológicos e devem ser corrigidos” (Oliveira, 1997, p. 49). Para Esteban, “essa perspectiva excludente,
silencia as pessoas, suas culturas e seus processos de construção de conhecimentos; desvalorizando saberes fortalece a hierarquia que está posta, contribuindo para que diversos saberes
229
Natália Duarte
sejam apagados, percam sua existência e se confirmem como
ausência de conhecimento” (1999, p. 15).
No período escolar responsável pela socialização da leitura e escrita, uma postura punitiva e convencional diante do
erro é particularmente deletéria. Para reverter esse quadro, é
preciso que o “erro” passe de “fonte de castigo a fonte de virtude” (Luckesi, 1999).
A aprendizagem se dá por construção, por esquemas
que se sucedem, não obedecendo às leis conteudístas: do simples para o complexo, da parte para o todo, do concreto para
o abstrato, como bem demonstraram Piaget (1976), Vygotsky
(1988), Wallon (1973), Dewey (1976), dentre outros.
A construção de esquemas de pensamento não se dá de
forma linear e homogênea. Aprender implica construir hipóteses que dependem da significação que cada um dá ao que está
aprendendo – e isso a partir de sua própria cultura – transcendendo em muito a perspectiva utilitarista que a escola dá aos
conhecimentos. Aprender não é apenas utilizar, mas elaborar
representações simbólicas do mundo a partir do conhecimento novo construído. É nessa perspectiva de escola que se consegue construir uma “aventureira trajetória em que o espaço
para a fabulação pessoal inteligente, engenhosa e tortuosa,
é garantido” (Grossi 1995, p. 19). Mas não é fácil posto que
o “erro” é um dos elos mais resistentes da cadeia avaliativa
escolar. Ele tem sido apontado como elemento negativo, algo
ruim que precisa ser eliminado e apagado do contexto escolar”
(Pinto, 1999, p. 48).
O “erro” é uma hipótese inteligente que construímos na
aquisição de algum conhecimento. Essas hipóteses, no caso
da alfabetização, foram explicitadas na descoberta da psicogênese14 da lecto-escrita por Emília Ferreiro, que mais tarde foi
reconceituada pelo Geempa, particularmente por Grossi, de
uma forma que me parece muito esclarecedora e adequada.
Segundo Grossi (1996), a apreensão do código escrito se
dá por fases de construção e ruptura e seu gráfico poderia ser
uma escada, representada da seguinte forma:
14
Psicogênese é um conceito da epistemologia genética defendido por Piaget.
Segundo esse autor, qualquer conhecimento é reconstruído pelo sujeito que
aprende e passa por estágios que podem ser classificados num contínum entre
menor e maior complexidade dos esquemas de pensamentos construídos.
230
O professor e o erro no processo de alfabetização
ALFABETIZADO
Alf3
Alf1
NÃO
ALFABETIZADO
S
PS2
PS1
Alf1
FONETIZAÇÃO
FINA
A
FONETIZAÇÃO
GROSSA
PERÍODO
FONÉTICO
PERÍODO
LOGOGRÁFICO
Essa apreensão tem dois grandes períodos: o período
logográfico, que contém os níveis pré-silábico 1 (PS1) e présilábico 2 (PS2); e o período fonético, que contém os níveis
silábico (S), alfabético (A), alfabetizado 1 (Alf1), alfabetizado
2 (Alf2) e alfabetizado 3 (Alf3). Podemos dividir essas hipóteses em estágio não alfabetizado (PS1, PS2, S e A) e estágio
alfabetizado (Alf1, 2 e 3). Entre cada um dos níveis encontramse os estágios intermediários, caracterizados pela “quebra” da
hipótese anterior, porém ainda sem a construção do invariante
operacional do nível subseqüente.
No período logográfico, o alfabetizando escreve o objeto mesmo, o que se denomina “realismo nominal”. Assim,
quando se encontra no nível PS1 e quer escrever “cadeira”,
ele desenha a cadeira: ou, no nível PS2, quer escrever “boi”,
desenha um grande número de letras “porque boi é uma palavra muito grande”. No período fonético o aluno deixa de
escrever o objeto e passa a escrever o som do nome do objeto; é quando começa a relacionar grafema/fonema. No estágio
alfabetizado o aluno construiu a capacidade de decodificar
o código da escrita – mesmo que, de início, se dê de forma
extremamente precária –, o que ainda não faz no estágio não
alfabetizado (apesar de já ter pensamentos extremamente procedentes). Também não podemos desconsiderar o refinamento
porque passa a transcrição dos sons das sílabas no processo de
alfabetização. O aluno passa da escrita inicial do princípio da
palavra “transverso” de “t”, passando por “ta”, depois “tara”,
depois “tras”, “trãs”, até “trans”.
231
Natália Duarte
Vejamos alguns exemplos de escritas logográficas:
Exemplo PS1:
Exemplo de PS2:
(A baleia é azul)
(A baleia é azul)
Ainda sobre PS2, ilustro essa hipótese com a resposta de
Adeildo, quando pedi que ele escrevesse a palavra “chão” e ele
respondeu: “Chão é muito grande, deve ter muitas letras.”
No estágio fonético, encontramos o nível S, em que o
alfabetizando não desmembra a sonoridade da sílaba; por essa
razão, representa as sílabas com letras. Se a palavra tem quatro sílabas, terá quatro letras; se tem duas sílabas, terá duas
letras...
Exemplo:
(boca)
(dedo)
(copo)
(casa)
(pato)
(gato)
Já no nível alfabético o alfabetizando desmembra a
unidade sonora, mas ainda não construiu um invariante
operacional para representar a sílaba – às vezes a representa
232
(pano)
O professor e o erro no processo de alfabetização
com uma; outras vezes, com duas letras. Essas tentativas não
estão erradas, são hipóteses inteligentes.
Exemplo:
(A xícara serve para tomar café.)
(A tesoura serve para cortar o tecido.)
Quando o aluno se alfabetiza (no sentido de ser capaz,
minimamente, mesmo com equívocos consideráveis, de decodificar o código), passa por uma caminhada. No nível Alfabetizado 1, o aluno acredita que a sílaba é composta, inexoravelmente, por duas letras, sendo a primeira uma consoante e
a segunda uma vogal, construindo um invariante operacional
(sílaba = consoante + vogal). Essa construção é, como classifica Emília Ferreiro (1989), uma regularização, pois a maioria
das sílabas é composta dessa forma. Esse nível também se caracteriza por uma escrita de frases com segmentação equivocada das palavras. Isso acontece porque o aluno(a) não escreve
palavras, e, sim, sílabas. São escritas difíceis de se ler, contudo
já demonstram um invariante operacional capaz de decodificar
rudimentarmente o código. Vejamos alguns exemplos:
(É fácil cuidar de avestruz)
(Eu gosto do Zezé de Camargo porque é bonito)
(Romário, eu gostaria de jogar no seu time porque gosto de você)
233
Natália Duarte
No nível Alfabetizado 2, o aluno já começa a segmentar
corretamente as palavras, flexibiliza a construção da sílaba e
já escreve os encontros consonantais, mas ainda não representa dígrafos, nem a nasalização, e estabelece uma relação
biunívoca letra/som.
Exemplo:
O Alfabetizado 3 já rompe com a relação biunívoca letra/som e consegue perceber que um único som pode ser escrito com dois grafemas – como nh, rr, ss, lh; já consegue representar a nasalização com n e m, começando a demonstrar
preocupação com a acentuação e os aspectos notacionais do
texto.
Exemplo:
Encarando o processo de aprendizagem como construção do conhecimento proposto, portanto, uma caminhada, é
possível perceber que a avaliação classificatória do tipo certo e errado não pode ser aplicada. Não podemos considerar
errada a escrita silábica de Eraldo da palavra abacaxi como
“abki”. Uma avaliação formativa que apóia a aprendizagem do
alfabetizando e reorienta o trabalho do alfabetizador para intervir nos esquemas de pensamento incompletos dos alunos é
que deve ter lugar em sala de aula, especialmente em classes
de alfabetização. Perceber que a construção da escrita é uma
caminhada permite-nos intervir precisamente na construção
da escrita de todos, olhem bem, todos os alunos.
234
O professor e o erro no processo de alfabetização
As informações que os erros dos alunos nos dão são
subsídios para adequar o trabalho pedagógico às necessidades
individuais de aprendizagem. A didática escolhida para um
aluno que possua esquemas de pensamento incompletos precisa atender e respeitar as características da sua compreensão
de escrita, atuar em sua incompletude e desestabilizá-la. Seu
“erro” – que não é erro – deve ser fonte de virtude, não de classificação e punição. Essa concepção de aprendizagem ressignifica a avaliação e reconduz sua prática no sentido de apoiar
a aprendizagem do aluno. Para transformar a atual realidade
escolar, pôr o diálogo no centro da organização do trabalho pedagógico é um caminho. Para Grossi, “fazer o trânsito entre os
saberes cotidianos, frutos das culturas dos grupos onde vivem
os alunos, constitui objeto da didática” (1995, p. 17).
E a didática tem de ser constituída a partir do que sabemos sobre o que os alunos sabem. Portanto, aproveitar que
“o erro oferece novas informações e formula novas perguntas
sobre a dinâmica aprendizagem/desenvolvimento, individual
e coletiva. O erro, muitas vezes mais do que o acerto revela o
que a criança “sabe”, colocando este saber numa perspectiva processual, indicando também aquilo que ela “ainda não
sabe”, portanto o que pode vir a saber” (Esteban, 1999, p. 21).
Interpretar positivamente o “erro” é mudar radicalmente a escola e seu papel na sociedade. O “erro, visto como uma
oportunidade de ensino, se associa com esperança, conhecimento e êxito, e não necessariamente com fracasso” (Carvalho, 1997, p. 21). Com base nesse príncípio, a didática para
a construção dessa prática pedagógica não é simples, mas
está ao alcance de qualquer alfabetizador que se enamore das
escritas de seus alunos e que saiba ser possível alfabetizar a
todos. Para tanto, cada aula deve ser capaz de atender a alguns
critérios imprescindíveis para o trabalho pedagógico de alfabetização. Vejamos quais são.
Uma aula, para ser produtiva, tem de trabalhar e oferecer informações sobre letras, sílabas, palavras, frases e textos;
respeitar e atuar sobre a lógica do processo de aprendizagem
da leitura e escrita e o esquema de pensamento de cada um
dos alunos; oferecer informações sobre letra, sílaba, palavra,
frase e texto; construir a aula partindo de uma unidade significativa e compartilhada pelo grupo, que permita o sentido
para cada um dos alunos presentes (sentimentos, elementos
culturais do grupo, atividades significativas...), e provocações
235
Natália Duarte
didáticas específicas para cada aluno presente na sala de aula
(derivadas do conhecimento minucioso que o alfabetizador
tem sobre o que cada um dos alunos sabe a respeito da leitura
e escrita).
Vejamos alguns exemplos de como os conceitos letra, sílaba, palavra, frase e texto podem permear o planejamento da
aula:
Sobre as letras
O aluno precisa experenciar atividades que lhe permitam reconhecer cada letra, aprender o nome das letras, estabelecer a relação letra/som com cada uma das letras e ser capaz
de escrever corretamente cada letra; para tanto alguns jogos
adequados para essa função são: alfabeto vivo, bingo do nome
próprio, jogo da memória com letra inicial e figura...
Sobre as sílabas
A estruturação para a percepção auditiva da sílaba é a
primeira estratégia na consecução da escrita. Percebê-la como
um som (nível silábico); depois, desdobrá-lo em dois (consoante-vogal); após, percebê-la mais detalhadamente a ponto de
identificar os encontros consonantais, construir os dígrafos,
até conseguirmos praticar a translineação, é uma longa caminhada. Esse caminho do aprender, bastante lógico, deve ser
levado em consideração para o planejamento das aulas, bem
como para a construção de atividades em grupo, jogos e intervenções didáticas. Alguns jogos interessantes para cumprir
essas tarefas são dados com diferentes consoantes e outro com
vogais, onde o aluno joga os dois e tem de se forçar a sílaba, dizer uma palavra com ela e escrevê-la. Outro jogo interessante
é um auto ditado, no qual, de um lado, tem-se uma figura e, do
outro, o nome da figura (de preferência dissílabas como vela,
uva, dedo, boca...).
Sobre as palavras
O entendimento do conceito de palavra é imprescindível
para a construção da escrita. Por muito tempo os alunos
escrevem apenas as sílabas. A construção desse conceito
vem da gradativa competência de transcrever os sons da
fala, que, por sua vez, vem do entendimento cada vez mais
procedente das letras, seus diversos e variados sons, e das
sílabas, com, também, suas diversas e variadas composições,
de uma, duas, três, quatro e até cinco letras. Somente após
236
O professor e o erro no processo de alfabetização
uma certa intimidade com as letras e uma certa competência
na percepção e transcrição das sílabas é que o aluno começará
a pensar em palavras. Ótimos jogos para esses objetivos são
recortar textos emendados, contar palavras de um determinado
poema, formar palavras com letras soltas, formar frases com
letras soltas etc.
Sobre as frases
Entender a frase ou oração como uma idéia econômica e
bem construída é o primeiro passo para o exercício da função
social da escrita. Contudo, esse exercício precisa ser experenciado continuamente, nos mais variados textos, expandindo
palavras, depois frases simples etc. A oralidade dá sustentação a esse esquema de pensamento.
Sobre os textos
Textos são produzidos com o objetivo de serem compreendidos. E a unidade textual é fruto da riqueza de experiências
envolvendo as habilidades de falar, escutar, ler e escrever. Os
processos de produção e compreensão de textos se enriquecem
de atividades diversificadas e variadas de fala e escrita, leitura
e escuta. Assim, no processo de alfabetização, urge a extensão
das possibilidades de experienciar o uso da linguagem.
Algo importante a ser ressaltado é o fato de que todos os
alunos, de todos os níveis, tem de escrever desde o primeiro
dia de aula e todos os dias. É importante solicitar ao pré-silábico que escreva sempre, pois só nesse exercício ele estará
refletindo sobre os conceitos envolvidos.
Também se deve ressaltar que, para uma aula produzir
muita aprendizagem, ela precisa de diferentes espaços de reflexão e exercícios. Por isso, uma aula precisa ter momentos coletivos, imprescindíveis para a construção da unidade, do sentido e do pertencimento dos alunos ao espaço áulico; precisa
ter momentos em grupos, de preferência compostos de quatro
componentes, para as discussões, onde se colocam em xeque as
incoerências dos esquemas de pensamento; o espaço mais íntimo de diálogo a dois para que a análise, reflexão e intimidade
favoreçam a abertura; e o momento individual, importante para
o exercício da zona real. Mas como identificar que jogo deve ser
utilizado para qual aluno e em qual momento?
Didaticamente, o jogo é excelente para propiciar os
momentos descritos acima e, por meio deles, favorecer a
237
Natália Duarte
reflexão, a experimentação e a descentração. Os jogos são um
espaço privilegiado de aprendizagem, contudo não é qualquer
jogo para qualquer aluno. Para escolher os jogos certos é
imprescindível cruzar o nível em que o aluno se encontra na
sociopsicogênese com o conceito de zona de desenvolvimento
proximal de Vygotski (1993), que passamos a explicar.
Para Vygotski, as aprendizagens não devem ser medidas pelo que é demonstrado. A performance real e objetiva
é apenas uma dimensão, uma zona no processo de aprendizagem. O autor compara a aprendizagem a um agricultor que
quer calcular a sua produção de laranjas: ele não considera
apenas as laranjas maduras, mas, todas as que estão no pé.
Da mesma forma, a aprendizagem de um aluno não pode ser
medida apenas pelo que ele é capaz de realizar sozinho, mas
também o que consegue fazer com a ajuda de alguém. Assim,
para Vygotski, aquilo que alguém faz sozinho é denominado
de “zona atual” da criança, ou “zona real”. Outro nível é “um
nível de desenvolvimento potencial. Entre os dois situa-se a
zona de próximo desenvolvimento (ou melhor, zona proximal
de desenvolvimento) que Vygotski define como aquilo que a
criança sabe fazer com a ajuda de alguém e que não sabe fazer
sozinha” (Vergnaud, 2004, p. 30).
Essa afirmação permite-nos entender que aquilo “que a
criança pode fazer hoje com a ajuda de adultos poderá executar sozinha amanhã” (Vergnaud, 2004, p. 30). E o ensino deixa
de focar o que o aluno já sabe para focar naquilo que ele ainda
não sabe, mas pode vir a saber, se provocado para isso.
É importante para o professor conhecer esses conceitos
que precisam permear a aula. Sinteticamente, podemos associar, na alfabetização, a zona real à forma como ele escreve
sem ajuda, espontaneamente. A zona potencial é aquilo que
esperamos do aluno; por isso, desejar, entender que todos os
alunos podem ler e escrever em poucos meses é uma forma
de modular, ampliando, a zona real de todos os alunos. E a
zona de desenvolvimento proximal é aquela explicitada pela
escrita que o aluno consegue fazer com a ajuda de um colega,
um jogo, um cartão ou mesmo do professor. Podemos acrescentar agora uma explicação de Piaget,15 de que se aprende
15
Essa fala foi retirada do vídeo Piaget por Piaget, do Centro epistemológico
de Genebra, onde o ele próprio explica a razão de alguns de seus métodos
clínicos de investigação sobre os esquemas cognitivos dos entrevistados.
238
O professor e o erro no processo de alfabetização
resolvendo problemas, mas uma situação pode ou não ser problema, dependendo para quem está posta. Explicando melhor,
para um aluno PS2, que precisa vincular a escrita à fala para
avançar ao período fonético, um problema é ele vincular sons
às letras, reconhecendo sua regularidade, não apenas como
símbolos aleatórios. Para um aluno silábico, é necessário desconstruir a hipótese de que cada sílaba se representa por uma
letra e passar a representá-la por duas letras.
Utilizando a ZDP e a psicogênese podemos identificar o
espaço de aprendizagem de um nível que é nada menos que o
seu nível subseqüente. A provocação didática virá especificamente do trabalho para construção dos conceitos presentes no
nível subseqüente da performance real (zona de desenvolvimento real) do aluno. Vejamos o quadro sintético explicativo
a seguir.
Nível
PS1
Zona real
Escreve desenhando
Zona de desenvolvimento proximal
Escreve com símbolos. Perceber as
letras, relacionar a escrita ao falado.
PS2
Escreve com símbolos e sem
relacionar com o som
S
Escreve 1 símbolo/letra para cada
pedaço da palavra (sílaba)
Vincular a escrita a fala, vincular
som a letra, construir a relação
letra/som.
Quebrar a unidade sonora de sílaba
(perceber a letra/fonema). Fortalecer
a relação letra/som.
A
Engole
letras.
Representa
procedentemente
algumas
sílabas (do tipo consoante e
vogal) e continua representando
algumas
sílabas
por
letras
(principalmente pelo nome da
letra)
Representa a sílaba rigidamente:
consoante/vogal. Não apresenta a
segmentação correta das palavras.
Escreve as sílabas
Já escreve a palavra e não mais
a sílaba. Já consegue vincular
um som para cada letra, numa
relação biunívoca, já ensaia a
representação
dos
encontros
consonantais.
Come-ça
a
apresentar pontuação.
Escreve frases, já flexibilizou a
relação letra/som (mais de uma
letra para um som e vice-versa). Já
constrói textos com procedência
Alf1
Alf2
Alf3
Construir o conceito de sílaba:
consoante/vogal. Ler pequenos
textos e frase, e ditos populares. Ler
orações conhecidas.
Flexibilizar a sílaba e escrever
palavras.
Quebrar a relação biunívoca letra/
som ou 1 letra= 1 som. Atentar para
os elementos notacionais do texto e
da frase.
Construir os dígrafos (2 letras = 1
som), nasalizar, escrever textos com
unidades textuais
239
Natália Duarte
Considerações finais
Ao longo do texto, passeamos rapidamente pelos indicadores e diagnósticos sobre alfabetização, quadro esse que
nos evidencia a necessidade de refletirmos e agirmos sobre
esse momento imprescindível na vida escolar e cotidiana dos
brasileiros. Pudemos verificar que a alfabetização e as propostas pedagógicas para executá-la são muitas, principalmente se
considerarmos as últimas décadas. Nesse período, alguns consensos foram obtidos teoricamente, mas não conseguiram ter
rebatimento efetivo na maioria das classes de alfabetização
de escolas públicas e particulares brasileiras. É consenso que
todos podem aprender a ler e escrever, que há um processo
de aprendizagem da língua que precisa ser respeitado, que
a vinculação com o contexto social e cultural dos alunos é
imprescindível, que a alfabetização exige um trabalho diversificado muito bem planejado pelo professor, dentre outros. O
que é apresentado pelo texto, que não é novo, mas que ainda
está longe das salas de aulas, é que a relação que o professor
estabelece com o “erro” do aluno precisa deixar de ser desrespeitosa e, por vezes, classificatória e punitiva para tornar-se
uma relação de atenção, respeito e deleite. O desrespeito às hipóteses que os alunos constroem denuncia a expectativa dos
professores de um andamento homogêneo em sala, onde todos
avançam ao mesmo tempo, construindo as mesmas hipóteses.
Essa expectativa fundamenta as aulas coletivas, onde se pretende que todos os alunos resolvam as mesmas atividades ao
mesmo tempo.
O “erro” do aluno na escrita desvela o esquema de pensamento e hipótese que o aluno está vivenciando. É ele que
possibilita apoiar a aprendizagem dos alunos, desde que o
professor reoriente seu trabalho pedagógico para provocar e
alimentar os esquemas de pensamento em construção. Para
tanto, é cogente conhecer a sociopsicogênese, ser capaz de
identificar na escrita dos alfabetizandos seus elementos fundamentais e atuar sobre eles a partir de jogos e da utilização
da zona de desenvolvimento proximal. É forçoso abordar em
cada aula os conceitos de letra, sílaba, palavra, frase e texto
na alfabetização.
Uma escola democrática que pretende ensinar a
todos deve ter por princípio o respeito e o interesse pelas
240
O professor e o erro no processo de alfabetização
construções dos alunos, além de uma didática que possibilita
o acolhimento dessas hipóteses e também suas rupturas. A
constatação respeitosa das hipóteses dos alunos, por si só,
não garante a aprendizagem. O conhecimento do esquema
de pensamento tem de ser profundo e articulado com uma
didática que, dialogando com o já estabelecido, permita a
compreensão de sua incompletude, desestruturando-a. O
trabalho pedagógico deve ser organizado de forma a permitir
que o próprio aluno se dê conta das lacunas que contém sua
hipótese, ao mesmo tempo em que forneça as situações e
procedimentos necessários para que novas hipóteses sejam
construídas.
Romper com a lógica homogênea, tão arraigada na cultura da escola de massa, exige fundamentação teórica e revisão de práticas ainda não conscientes. Instiga uma constante
reflexão, ora sobre a teoria, ora sobre a prática, ora sobre os
preconceitos inerentes à escola reprodutivista excludente.
A partir dos “erros”, que interessaram aos professores,
exige-se a diferenciação das atividades propostas com base
no quadro apresentado, as quais passam a ser planejadas não
mais para o aluno padrão, e, sim, para cada aluno, que tem
nome, sentimentos e história singular. A partir do que cada
um sabe, propõem-se atividades específicas, rompendo definitivamente com as aulas coletivas ministradas para o aluno
padrão, para quem se dava aula, mas que, em realidade, não
era nenhum dos alunos presentes em sala.
Assim, as hipóteses passam a ser percebidas como inteligentes, construídas na interação com o grupo, a partir de jogos
escolhidos conscientemente. E de posse dessa nova percepção
do “erro”, fundamento do pós-construtivismo, um erro não
pode nunca ser punido; tem de ser pesquisado como alicerce
de novas aprendizagens. Uma hipótese é sempre inteligente. E
é a partir dela que eu construo diálogos.
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Natália Duarte
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243
Literatura infantil
e introdução à leitura
Regina Zilberman*
Alfabetização e letramento
A inserção no mundo da escrita depende de dois fatores
distintos: de um lado, de uma tecnologia, a alfabetização;
de outro, do letramento, definido por Magda Soares
como “o desenvolvimento de competências (habilidades,
conhecimentos, atitudes) de uso efetivo dessa tecnologia em
práticas sociais que envolvem a língua escrita”.1 A alfabetização
supõe a “aquisição” do “conjunto de técnicas – procedimentos,
habilidades – necessárias para a prática da leitura e da escrita”,
contando-se entre elas:
As habilidades de codificação de fonemas em grafemas e de
decodificação de grafemas em fonemas, isto é, o domínio do
sistema de escrita (alfabético, ortográfico); as habilidades
motoras de manipulação de instrumentos e equipamentos para
que codificação e decodificação se realizem, isto é, a aquisição
de modos de escrever e de modos de ler – aprendizagem de
uma certa postura corporal adequada para escrever ou para ler;
habilidades de uso de instrumentos de escrita (lápis, caneta,
borracha, corretivo, régua, de equipamentos como máquina de
escrever, computador...); habilidades de escrever ou ler seguindo
a direção correta da escrita na página (de cima para baixo, da
esquerda para a direita); habilidades de organização espacial do
texto na página; habilidades de manipulação correta e adequada
dos suportes em que se escreve e nos quais se lê – livro, revista,
jornal, papel sob diferentes apresentações e tamanhos (folha de
bloco, de almaço, caderno, cartaz, tela de computador...).
“Em síntese”, afirma Magda Soares, “a alfabetização é o
processo pelo qual se adquire o domínio de um código e das
*
1
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Letras,
Departamento de Pós-Graduação em Letras. Doutorado em Romanistica pela
Universitat Heidelberg (Ruprecht-Karls), R.K.U.H., Alemanha. Pós-Doutorado pela Brown University, B.U., Estados Unidos.
SOARES, Magda. Letramento e escolarização. In: RIBEIRO, Vera Masagão
(Org.). Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003. p. 90.
245
Regina Zilberman
habilidades de utilizá-lo para ler e para escrever, ou seja: o
domínio da tecnologia – do conjunto de técnicas – para exercer
a arte e ciência da escrita”.2
O letramento ultrapassa a alfabetização, na medida
em que corresponde ao “exercício efetivo e competente da
tecnologia da escrita”,3 o que implica também habilidades
várias, entre as quais a de “orientar-se pelos protocolos
de leitura que marcam o texto ou de lançar mão desses
protocolos, ao escrever; atitudes de inserção efetiva no mundo
da escrita, tendo interesse e prazer em ler e escrever, sabendo
utilizar a escrita para encontrar ou fornecer informações e
conhecimentos, escrevendo ou lendo de forma diferenciada,
sendo as circunstâncias, os objetivos, o interlocutor”.4
O letramento é um processo que se inicia antes mesmo
de a criança aprender a ler, supondo a convivência com
universo de sinais escritos e sendo precedido pelo domínio
da oralidade. Outros fatores associam-se ao processo de
letramento, já que a convivência com a escrita começa no
âmbito da família e intensifica-se na escola, quando o mundo
do livro é introduzido à infância.
A criança convive igualmente com outros universos
associados à escrita e à linguagem verbal, apresentando-se
como suas expressões a publicidade, os jornais, as revistas, a
mídia, computadores e jogos eletrônicos (quando ela pertence
às classes mais abastadas). Assim, se a alfabetização ocorre
num momento da existência de um indivíduo, quando ele
aprende a codificar e decodificar fonemas numa das etapas
de seu processo de escolarização, o letramento está sempre
presente, mostrando-se sob diferentes perspectivas, dentro e
fora da sala de aula.
A criança fica exposta, igualmente, ao letramento literário,
já que, desde pequena, é iniciada ao universo da fantasia, que
lhe aparece por meio da escuta de histórias. Essas se mostram
em diferentes formatos: contadas oralmente, lidas em voz
alta por outras pessoas, vistas, quando se trata da audiência a
programas de televisão, teatro infantil ou cinema. De todo modo,
o conhecimento do mundo da ficção, vital para a apreciação
2
3
4
SOARES, Letramento e escolarização. In: RIBEIRO, Vera Masagão. Letramento no Brasil, p. 91.
Idem.
Idem, p. 92.
246
Literatura infantil e introdução à leitura
de obras dirigidas à infância, dá-se mesmo quando o acesso ao
livro é dificultado por razões econômicas, sociais ou culturais.
Letramento literário
A admissão ao mundo da literatura depende e ultrapassa
a alfabetização e o letramento. Depende da alfabetização,
enquanto envolve o domínio das técnicas de leitura e de escrita,
e do letramento, na medida em que as práticas de leitura e
escrita estão presentes em cada etapa da experiência do sujeito.
Este, por outro lado, vivencia, a todo instante, o universo
ficcional dominado pelo imaginário, haja vista os diferentes
apelos à fantasia propiciados pelos meios de comunicação,
sob suas distintas possibilidades de manifestação (verbal
e visual). Contudo, o letramento literário efetiva-se quando
acontece o relacionamento entre um objeto material, o livro, e
aquele universo ficcional, que se expressa por meio de gêneros
específicos – a narrativa e a poesia, entre outros – a que o ser
humano tem acesso graças à audição e à leitura.
Há livros, por sua vez, que se dirigem a crianças no
período em que elas se alfabetizam. Avizinham-se às cartilhas,
mas são obras artísticas, cabendo-lhes propiciar o letramento
literário durante o período em que se dá a aprendizagem da
escrita, de sua combinação e formação de palavras. Cabe
examinar como os escritores se posicionam perante tal
desafio, pois, se desejam colaborar para a formação do leitor, e
sobretudo do leitor de literatura, precisam conferir qualidade
estética ao produto oferecido, o que advém da presença do
imaginário e da narratividade.
Erico Verissimo,5 sob o pseudônimo de Nanquinote,
publicou Meu ABC em 1936, obra ilustrada por E. Zeuner.6 A
cada letra do alfabeto destina-se uma página, acompanhada do
desenho a cores, que colabora para o entendimento do texto:
5
6
Erico Verissimo (1905-1975), nascido em Cruz Alta, RS, notabilizou-se como
romancista, trajetória inaugurada em 1932, com a publicação de Clarissa.
Carl Ernst Zeugner (1895-1967), nascido na Alemanha, emigrou para o Brasil em 1922, trabalhando na Editora Globo como ilustrador.
247
Regina Zilberman
Figura 1 – Erico Verissimo – Meu ABC
Dois aspectos podem ser destacados na figura
reproduzida:
• as letras são expostas nas suas formas gráficas diversas:
manuscrita, impressa, maiúscula e minúscula;
• o trecho compõe uma narrativa curta, em que predominam
as orações coordenadas, de fácil acompanhamento;
porém, prevê sua reprodução em voz alta por um adulto
ou por uma criança que, já dotada de alguma fluência,
decodifique fonemas, uma vez que vocábulos como
“prefere” e “agradável” supõem emissor mais maduro;
de todo modo, a ilustração reforça o entendimento do
texto, amparando o leitor aprendiz.
Em 1937, Cecília Meireles7 e Josué de Castro8 publicaram
A festa das letras, obra ilustrada por João Fahrion.9 O livro
mescla a cartilha ao ensino de “preceitos de higiene alimentar,
indispensáveis à sua [do leitor] vida”, conforme declaram os
autores.10 Duas páginas na abertura do livro são dedicadas à
primeira letra do alfabeto:
7
8
9
10
A poeta Cecília Meireles (1901-1964), autora de obras como Vaga música
(1942) e Mar absoluto (1945), atuou igualmente como educadora e autora
de livros infantis.
Josué de Castro (1908-1973), médico nascido em Recife, destacou-se por
suas pesquisas sobre nutrição e higiene alimentar.
João Fahrion (1898-1970), artista plástico, foi capista e ilustrador da editora
Globo nos anos 30 e 40 do século XX.
MEIRELES, Cecília; CASTRO, Josué. A festa das letras. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996.
248
Literatura infantil e introdução à leitura
Figura 2 – Cecilia Meireles e Josué De Castro – A festa das letras
À narrativa, os autores preferem a poesia, recorrendo
a estrofes paralelas e a versos rimados. A rima facilita a
memorização e introduz o elemento lúdico, apoiado pela
ilustração, que faz com que o grafema A seja representado por
um palhaço.
Outro poeta, Mario Quintana,11 é autor de O batalhão
das letras, de 1946, cuja primeira edição foi desenhada
por Edgar Koetz.12 A página de abertura, ilustrada por Eva
Furnari na versão mais recente do livro, apresenta o tema por
intermédio de um quarteto, em que à rima e à metrificação são
atribuídas as tarefas de facilitar a memorização do texto e das
letras iniciais e finais do alfabeto:
11
12
Mario Quintana (1906-1994) é autor dos livros de poemas A rua dos cataventos (1940), Canções (1946) e Aprendiz de feiticeiro (1950), entre outros.
Edgar Koetz (1913-1969) atuou como ilustrador na editora Globo entre os
anos 40 e 60 do século XX.
249
Regina Zilberman
Figura 3 – Mario Quintana – O batalhão das letras
Quando a letra A é introduzida, a rima e o tema
procuram estabelecer um ambiente lúdico, sendo o imaginário
acionado pela associação entre o formato da letra e a posição
do cavaleiro:
Figura 4 – Mario Quintana – O batalhão das letras
250
Literatura infantil e introdução à leitura
Em 2003, Ziraldo13 reuniu num único volume os livros
que compunham, desde 1992, a Coleção ABZ. A criação do
escritor, que passa a se chamar o O ABZ do Ziraldo, é arrojada
desde o título, ao substituir o convencional ABC por ABZ, que
importa para o primeiro plano, e envolvida por carinhosas
mãos, a derradeira letra do alfabeto, o Z, coincidentemente a
que começa o nome do autor.
A obra encerra com uma apresentação em que Ziraldo
recapitula a origem do livro, lançado primeiramente em
exemplares separados, cada um destinado a um grafema
distinto. Comenta que “muita gente acreditou, pelas letras
nas capas, que se tratava de livrinhos para alfabetização. Não
eram. Eu estava querendo era fazer literatura para crianças.
Literatura, mesmo.” Em decorrência da natureza literária
da obra, ele convoca o leitor “a ir lendo tudo, como se fosse
um romance só. Aliás, é. Cheio de personagens!”14 Prova da
realização desse propósito é a primeira narrativa, “A história
do A”, principiada pela locução “era uma vez”, recurso que
joga o leitor imediatamente para o mundo da ficção e da
inventividade:
Figura 5 – Ziraldo – O ABZ do Ziraldo
13
14
Ziraldo (1932) escreve livros para crianças, como Flicts (1969) e histórias em
quadrinhos, como as que reúnem a Turma do Pererê.
ZIRALDO. O ABZ do Ziraldo. São Paulo: Melhoramentos, 2003. Grifo do A.
251
Regina Zilberman
Na seqüência aparece o narrador, que dá a conhecer a
personagem e nomeia-a. Na condição de ser fictício, ela vive
acontecimentos, liderando uma ação que tem início, meio e
fim, como é próprio de uma narrativa. A designação se justifica,
pois, conforme se escreve ali, “até as pedras têm nome”; só
que a primeira letra, A, é especial, ao inaugurar a história dos
homens e das palavras, como demonstra a denominação de
Adão, herói do Livro da Criação e ser concebido por Deus:
Figura 6 – Ziraldo – O ABZ do Ziraldo
A história de André ocupa várias páginas, pois registrase minuciosamente sua trajetória existencial, da infância à
idade adulta. A ilustração sedimenta a passagem do tempo
e o amadurecimento da personagem, ao alterar a aparência
da letra: o André criança aparece sob o formato da minúscula,
ao passo que que o André jovem e aventureiro coincide com
um foguete. Quando André retorna à origem, adulto, magro e
compenetrado, é a maiúscula que o representa.
252
Literatura infantil e introdução à leitura
“A história de André”, exemplificando o teor de O ABZ do
Ziraldo, revela-se criativa do princípio ao final, aliando texto
e ilustração de modo inovador e instigante. Realiza, pois, o
objetivo das obras, que, apoiando-se no modelo das cartilhas,
estimulam a imaginação e colaboram decisivamente para o
letramento literário das crianças que começam a freqüentar a
escola e a serem alfabetizadas.
253
Estética da recepção:
a singularidade do leitor e seu
papel de co-produtor do texto
Rosemari Glowacki*
O conhecimento é sempre gerado num processo de
participação, num debruçar-se sobre os textos, sobre as teorias,
na intenção de apreender sua essência, numa preocupação de
se entenderem significados, para, então, experienciá-las, numa
franquia permitida àqueles que no processo de interlocução
ousam questioná-las.
Definida por Jauss (1986) como uma pesquisa sobre a
recepção da literatura e seus efeitos no leitor, a estética da
recepção visa ultrapassar uma teoria imanentista do texto,
deslocando o eixo de análise para a sua recepção pelo leitor.
Essa nova estética compreende a relevância da relação do autor
com a obra dentro de um dado contexto e o papel significativo
do leitor na sua recepção
Nessa perspectiva, a posteriori, a relatividade histórica
dos estudos literários será focada na intencionalidade de
entender a arte poética em sua longevidade, não apenas
na legitimação recortada num dado tempo e espaço, mas,
sobretudo, ampliando sua abrangência. É uma viagem
introspectiva de aventuras que permite “a salvação da obra”,
pautada na criatividade do leitor como co-produtor do texto.
*
Mestre em Comunicação, especialista em metodologia do Ensino da Língua
Portuguesa e Literatura. Coordenadora da Pós-Graduação das Faculdades
Unidas do Vale do Araguaia. Docente das disciplinas de Comunicação Empresarial e Leitura e Produção de Textos, dos cursos de Administração e
Tecnologia em Sistemas de Informações.
255
Rosemari Glowacki
(Re)Pensar a transitoriedade dos textos e a sua recepção,
é o intuito maior deste texto, não com a pretensão de
apresentar algo novo, mas com o objetivo de ampliar o leque
de possibilidades de leitura.
Estética da recepção
A gênese da teoria da recepção
A “estética da recepção”, teoria criada por Robert Jauss,
consiste na abordagem e análise do texto da ótica e perspectiva
do leitor. “A ‘Estética da Recepção’ também chamada ‘Teoria
da Recepção’ é uma corrente de crítica literária nascida há
cerca de quinze anos, na Universidade de Constança, e hoje
candidata a desbancar o estruturalismo como cânon de
teorização e análise” (Merquior, 1981, p. 137).
A crítica moderna data de meados da Primeira Guerra
Mundial e tem como foco principal, na obra de arte, o
aspecto subjetivo. Uma nova ênfase dada ao estudo do texto
em si, a partir dos formalistas russos, propõe-se minimizar
circunstâncias ambientais ou biográficas do texto e do seu
autor, enfatizando os atributos intrínsecos da obra. Esse
comportamento opunha-se ao tratamento dado anteriormente
pelos estudiosos da literatura.
Organizar uma nova história da literatura, baseada nas
reconstruções da obra literária, decorrentes da sua recepção na
época do autor e em diversas épocas, realizando uma pesquisa
sincrônica e diacrônica da recepção do texto pelo leitor por
meio de releituras, e por leitores diversos era a proposta de
Jauss. “Jauss estabelece um programa metodológico que se
propõe a investigar a literatura a partir de três aspectos: o
diacrônico, relativo a recepção das obras literárias ao longo
do tempo; o sincrônico, pertinente ao sistema de relações
da literatura numa época determinada e a sucessão desses
sistemas; a relação literatura/vida prática” (Flory, 2000, p. 24).
Em 1976, à parte dos estudos dos estruturalistas, teóricos
que o antecediam, Jauss entrou em cena para contrapor-se à
idéia destes de que o sentido dos textos pertence, em última
análise, ao seu autor. Nascia a “teoria da recepção”.
Ao utilizar a teoria de Jauss, não se tem em mente
cristalizá-la como única e verdadeira, mas construir pontes
que aproximem outros pensamentos críticos acerca da
256
Estética da recepção: a singularidade do leitor e seu papel de co-produtor do texto
recepção textual, estudos esses literários ou filosóficos
anteriores, lançando luzes sobre a forma de pesquisa do
assunto. Num debruçar-se para melhor compreender como se
dá esse processo, alinhavamos um ensaio de crítica estética e
ideológica com a pretensão primeira de descortinar esse tão
complexo campo de estudos literários.
O sentido imanente do texto, invariavelmente, levanta
problemas de interpretação. Daí a normalidade de uma
tendência de bifurcação da sua análise: uma valoriza a
interpretação autêntica (o sentido do autor) e a outra, uma
busca do significado, de preferência, como bem comenta
Merquior,1 do lado do leitor.
Era preocupação de Jauss a dimensão histórica das
interpretações literárias. Nessa perspectiva, reconhecia a tese
do filófoso heideggeriano Hans Georg Gamader, defendida no
texto Verdade e método, quando dizia que a hermenêutica, ou
arte da interpretação, não reconhece nenhum privilégio ao
sentido autoral. “Numa palavra: o autor põe, mas os leitores
– a história - dispõem.”
O estudioso tinha precursores, especialmente no
estruturalismo tcheco de Jan Mukarovski, o qual distinguia
o texto entre “artefato” e “objeto estético”, mas isso será
abordado no item “relatividade dos estudos literários”, a
posteriori. Assim como a questão da relatividade, das
delimitações temporais na literatura, uma vez que tempo,
como bem esclarece Chauí (2001), é visto como: “O que é
tempo? Estamos acostumados a considerar o tempo como
uma linha reta, feita de sucessões de instantes, ou com uma
sucessão de ‘agoras’ – um agora que já foi é o passado, o agora
que está sendo é o presente, um agora que virá é o futuro”
(p. 242).
Tudo somado, da crítica reducionista do século XIX às
correntes inaugurais da crítica moderna (o new criticism, o
formalismo russo, a estilística), e, na atualidade, a estética da
recepção, podem-se apontar dois momentos desse processo:
no primeiro, a rejeição da obra como documento, colocando-o
como monumento; no segundo, a rejeição como tal.
1
Na obra As idéias e as formas, há um capítulo destinado a refletir sobre essa
teoria, intitulado “Arte e literatura”, tratando desde “as contradições da vanguarda” à “estética da recepção”. Sua leitura, certamente, facilitará ao leitor
a compreensão do caminho percorrido por Jauss na idealização de sua teoria
com foco no receptor do texto.
257
Rosemari Glowacki
Jauss condena justamente o fato de se visualizar a
obra estanque, em si mesma, como um monumento, parada
num tempo delimitado, e defende a idéia de senti-la como
experiência viva da literatura.
Numa palavra: subjetivação. Em outras: apreensão,
introspecção, leituras diferenciadas. Infelizmente, a lacuna
de sua teoria ainda não foi preenchida: qual seria o leitor
ideal? Isso não importa, tendo em vista que suas idéias já
despertaram para um retorno, sem mistificação, ao texto. Os
postulados epistemológicos sempre surgirão a seu tempo;
primeiro há que se pensar muito e pesquisar.
É verdade que nas duas últimas décadas foi-nos possível
observar uma verdadeira revolução no campo da teoria
literária e do criticismo. Como bem comenta Flory (2000) em
seu texto O leitor e o labirinto, “palavras como leitor, audiência,
receptor, antes vistas como conceitos óbvios e triviais, passam
a ser preocupação comum a várias correntes atuais de estudos
críticos” (p. 21).
Os valores intrínsecos, em suma, o próprio processo de
apreensão de significados que se legitima, tanto na construção
do autor quanto na reconstrução do leitor, é que permitem a
existência da obra literária, partindo da premissa básica de
que esta só continua viva quando é atualizada pela leitura. O
conceito aristotélico de prazer retomado por Jauss deixa claro
que sempre existiu uma preocupação extrema com a produção
e leitura do texto artístico.
Para o teorizador da estética da recepção, o prazer
estético advém da admiração de uma técnica perfeita, ou seja,
a estruturação do texto, como também do prazer que se obtêm
no reconhecimento do assunto imitado. Daí os conceitos de
mimese e verossimilhança, e nesse contexto destaca-se o
leitor.
A recepção de um texto constitui-se num processo
gerador de significado que se inicia muito antes da leitura
do texto propriamente dito, como ressaltado anteriormente.
A obra se inicia quando da sua construção pelo autor; assim,
pode e deve ser reconhecida em inter-relação com a realidade
histórico-cultural do autor e do leitor. Enfim, da intensificação
da natureza comunicativa do texto emerge a experiência
estética na obra de arte, e Jauss, resgatando a importância
dessa experiência, desdobra e afirma que ela passa por três
258
Estética da recepção: a singularidade do leitor e seu papel de co-produtor do texto
momentos simultâneos e complementares: a poiesis, a aisthesis
e a katharsis.
Poiesis é produção, fabricação; significa uma criação que
instaura uma realidade nova. Criar não é fazer algo do nada,
como afirma a tradição hebraica, mas, no sentido da acepção
grega, significa gerar e produzir, dando forma à matéria bruta
preexistente. O prazer de se sentir co-autor da obra é a poiesis.
Jauss afirma que, quanto mais o artista inova, mais se torna
interessante para o público. Ainda, poiesis pode ser compreendida, no sentido aristotélico da “faculdade poética”, como o
prazer diante a obra da qual se apropriou o receptor no ato da
leitura.
A aisthesis diz respeito ao efeito provocado pela obra de
arte como renovação da percepção do mundo circundante, a
própria vivenciação do leitor. Sublinha Jauss que “legitima-se,
desta maneira, o conhecimento sensível, face à primazia do
conhecimento conceitual [...] como experiência da densidade
do ser” (Sartre apud Jauss, p. 80).
Já a katharsis corresponde à libertação do leitor por
meio da experiência estética comunicativa fundamental da
arte, permitindo-lhe enxergar mais amplamente os eventos,
ressignificá-los, de forma a dar uma resposta nova.
Jauss afirma que essas reações não dependeriam
do arbítrio pessoal, mas das sugestões emitidas pela obra.
Explicita-se, assim, a função basicamente mobilizadora da
catarse, que ocorre na experiência estética ao contato com a
obra de arte. Posteriormente à leitura compreensiva, temos a
leitura retrospectiva, na qual se dá a interpretação, que assim
se chama porque se pode, no processo, voltar do fim para
o começo ou do todo ao particular. Em síntese, a vivência
estética é formada a partir de três momentos: da poiesis, da
aisthesis e da katharsis. Jauss afirma ainda a necessidade da
existência do processo de identificação: reação maior de que
é capaz o receptor. Essa experiência catártica, inerente ao
processo de identificação vivenciado pelo receptor, acentua a
função comunicativa da arte verbal.
Enfoques da estética da recepção
A multiplicidade de enfoque sobre o leitor no texto foi
assim dividida por Susam Suleiman, que, juntamente com
acadêmicos e professores universitários europeus e críticos
259
Rosemari Glowacki
norte-americanos, passou a estudar também a teoria da
recepção: retórica, semiótica-estruturalista, fenomenológica,
subjetivo-psicanalítica, sociológico-histórica e hermenêutica.
“As teorias literárias, baseadas na visão privilegiada do pólo
da recepção do texto sobre o da produção, desenvolveram-se
rapidamente na Itália, França e Estados Unidos, retomando
abordagens formalistas, estruturalistas e outros precursores,
desenvolvendo uma multiplicidade de enfoques sobre o leitor
no texto” (Flory, 2000, p. 26).
Apresenta-se, em continuidade, essa direção dada aos
estudos recepcionais.
A categoria retórica engloba estudos que priorizam o
significado, o conteúdo ideológico ou a força persuasiva que
permeia a situação comunicativa. Ainda, Waine Booth, como
comenta Flory (2000), um dos mais representativos teóricos
retóricos, elaborou o conceito de autor-implícito, ou seja,
aquele que se define como o alter-ego, uma presença que
permeia a obra e pode ser detectada pela leitura.
Todorov, outro estudioso da recepção, debate os
paradoxos da interpretação, bem como sua validade,
apontando um ponto de união entre as abordagens retóricas e
as abordagens semiótico-estruturalistas, focalizadas a seguir.
O enfoque semiótico-estruturalista está pautado na
leitura do texto artístico não apenas com o intuito de interpretálo, mas, também, de analisar todos os códigos e convenções
presentes no mesmo. Dentre os estudiosos defensores dessa
categoria temos Barthes, Bakhtin, Kristeva, dentre outros.
A última estudiosa defende o texto como um aparelho
metalingüístico onde a verticalidade (intertextualidade,
dialogismo) e a horizontalidade (leitura sintagmática e coesão
textual) caminham juntas.
A fenomenológica tem suas bases na questão da leitura,
no papel da imaginação, na construção do significado e,
segundo Flory, na própria percepção estética.
Ler é um ato que leva à produção de sentido, uma vez
que permite ao leitor a seleção, organização, antecipação,
retrospectiva e modificação durante o processo da leitura do
texto; seriam os denominados “pontos de indeterminação” a
serem “preenchidos pelo leitor”.
Maslow (1996) declarou: “O existencialismo assenta
na fenomenologia, isto é, a usa como experiência pessoal e
260
Estética da recepção: a singularidade do leitor e seu papel de co-produtor do texto
subjetiva como fundação sobre a qual o conhecimento abstrato
é construído [...] uma pessoa é realidade e potencialidade” (p.
36-37).
Em se tratando da categoria subjetivo-psicanalítica, como
a própria nomenclatura sugere, opõe-se às já apresentadas
porque valoriza não a estrutura comum de recepção, e, sim,
a variedade de respostas advindas de um mesmo texto. Em
outras palavras, a personalidade do receptor influencia a
leitura e decodificação da mensagem artística.
Assim, os teóricos que a defendem argumentam que os
estudos literários devem vislumbrar os efeitos emocionais e
intelectuais dessas mensagens nos receptores.
A penúltima categoria é a sociológico-histórica, cujos
defensores pontuam que é interessante unir a dialética da
produção textual, a recepção das obras literárias num dado
contexto epocal e as características do autor para melhor
apreender os significados da obra literária. A teoria jaussiana
está ligada a esta categoria, uma vez que entende que se
deva traçar a história da recepção de uma obra. Propõe:
“Reconstruir a evolução das sensibilidades, das mudanças de
geração ou épocas, das transformações e oscilações de gostos,
das ideologias dominantes, do ser histórico por detrás de um
texto” (Flory, 2000, p. 32).
Daí esse enfoque não ter a pretensão de encontrar a
“verdade” do texto, senão de abrir leques de significação que
atualizem sua interpretação, legitimando-a como tal.
A categoria hermeunêutica, o último dos enfoques da
estética da recepção, rejeita a idéia de intenção autoral e
enfatiza o aspecto autônomo do texto como objeto poético.
Distingue o significado (sentido da obra em si mesma)
da significação (sentido da obra para os leitores). Bloom,
Fish, Gamader, Todorov, dentre outros, foram considerados
hermenêuticos.
Em síntese, os estudos relativos aos múltiplos enfoques
da estética da recepção atribuem valor ao desempenho do
leitor, à diversidade de questionamento atingido, à pergunta/
resposta estabelecida entre o leitor e o próprio texto, enfim, à
análise intrínseca e extrínseca da obra de arte.
Para uma abordagem mais completa dos elementos
constitutivos do texto literário é interessante o estudo
extrínseco e intrínseco. Essa proposta advém do estudo
261
Rosemari Glowacki
da historicidade da obra literária (é o método histórico
comparativo – extrínseco – mais o enfoque intrínseco presente
na mesma, somado à abordagem dos enfoques de recepção).
No que tange à crítica extrínseca, esta atividade parte
de fora para dentro. D’Onofrio (1996) destaca a crítica
sociológica, a crítica psicológica e a crítica arquetípica como
modalidades desse tipo de análise. Nesse tipo de modalidade
de abordagem observam-se a biografia do autor, as condições
socioculturais que influenciaram as personalidades, as escolas
e os movimentos literários, com todos os complexos estéticos
e ideológicos presentes.
Em se tratando do aspecto intrínseco, essa crítica
preocupa-se não mais com o uso do método históricocomparativo, como as críticas anteriormente destacadas,
mas com o texto enquanto texto, palavra. Preocupando-se
com o aspecto interno, distingue enfoques diferenciados que
possibilitam estudo mais abrangente:
a) enfoque lingüístico – elementos constitutivos sintáticos
e a mensagem;
b) enfoque formalista – postura metodológica da crítica
que substitui a oposição tradicional buscando o
arranjo estético do material textual. As idéias vieram
de Moscou, em 1914;
c) enfoque estruturalista – a estrutura não poderia ser
individualizada num objeto particular, mas num
modelo teórico formulado a partir da análise de vários
objetos;
d) enfoque semiológico – considera o aspecto lingüístico
e estrutural da obra literária, fazendo uma abordagem
semiológica que vê o texto como um sistema de
signos;
e) enfoque fenomenológico – a experiência perceptiva é
o fundamento;
f) enfoque estilístico – análise do estilo no plano
da enunciação e análise do estilo do plano do
enunciado;
g) enfoque temático – estuda as unidades temáticas.
Assim, a integração dos vários métodos de estudo crítico
de análise e interpretação literária possibilitará um trabalho
mais completo.
262
Estética da recepção: a singularidade do leitor e seu papel de co-produtor do texto
Relatividade histórica dos estudos
literários
Reflexões
A observação da arte poética em sua longevidade alerta
para o fato de que o leitor, na tentativa de apreender a verdade
absoluta da arte escrita através de uma análise puramente
sincrônica (imediatista), não estará apreendendo mais do
que uma das suas circunstâncias legitimadoras. Se a análise
for apenas direcionada ao movimento ao qual pertenceu
determinado escritor, perder-se-ia muito da singularidade de
sua obra literária.
Giambattista Vico, filósofo do século XVII, criou a
teoria da recorrência dos ciclos históricos e acredita que a
própria história sofre por ser recorrente. Os estudos literários
devem ser realizados e analisados nessa perspectiva cíclica.
Com a revisão do passado e da consciência do presente,
hoje denominado “atemporal”, tornou-se impossível o nãoreconhecimento de que todos os valores estéticos não são
relativos, e as críticas não são mais únicas, porém acrescentam
uma nova leitura ou releitura das referidas obras.
Em menor ou maior intensidade, cada escritor sofrerá e
exercerá influência na literatura, em razão da própria natureza
metalingüística da arte, ou seja, o templo pleno possibilita o
estudo crítico e amplia as linhas de pesquisa, que tendem não
a esgotar, mas a ampliar os efeitos e sugestões de uma obra ou
produção literária de um dado autor.
E assim, após comprovar que uma obra de arte transcende
o tempo de vida de seu autor e do próprio leitor de seu tempo,
emerge a vontade de estudá-la no decorrer do tempo e não
estaticamente. Essa “leitura” pode se dar na sua publicação
ou em outros universos epocais; por exemplo, textos como o
do Rei Arthur e os Cavaleiros da Távora Redonda, que deram
voz a vários personagens, tais como Lancelot, Guenevere; As
brumas de Avalon-Morgana, Merlin, que já foi reescrito e até
se transformou em filme.
Essa nova definição do texto, e do olhar não tão ortodoxo
sobre ele, supõe interpretar o ato de ler como uma viagem
introspectiva de aventuras que o leitor há de realizar por meio
do livro, buscando sempre contínuos ajustes, por intermédio
263
Rosemari Glowacki
da imaginação, porque as palavras lidas não podem representar
apenas o real, nem transportar significados inamovíveis.
Pelo contrário, são enunciados humanos e históricos que se
apresentam sob a aparência de ficção estética e que, justamente
por isso, tornam possível que a criatividade do leitor configure
representações imaginárias que (re)inventem a realidade.
Segundo Maslow (1986): “Termino com o estímulo que
mais poderosamente me afetou na literatura existencialista a
saber o problema do futuro em psicologia [...] nenhuma teoria
estará completa se não incorporar [...] o conceito de que o
homem tem o seu futuro dentro dele próprio, dinamicamente
ativo nesse momento presente” (p. 42).
Outro conceito-chave na teoria da recepção é aquele que
define a estrutura apelativa do texto: a linguagem não cobra
textualidade até ao momento em que é lida. O significado
é um “efeito para ser experimentado”, não um mero objeto
para ser definido. Para que o significado se comporte como
suscetível de ser realmente experimentado, isto é, para que
se produza a desejável cooperação leitor/texto, é necessária
a configuração apelativa na escrita do autor; caso contrário,
não se dará a possibilidade semântica de que o leitor gere
significados próprios e múltiplos.
Talvez a teoria de Jauss represente, como bem define o
filósofo Gaston Bachelard (1990), a partir da criação de uma
nova expressão, uma “ruptura epistemológica”, uma vez que
provoca uma espécie de ruptura/abertura entre as chamadas
“teorias científicas”, conduzindo a uma descontinuidade do
conhecimento científico no universo lingüístico e literário.
A historicidade da literatura e seu estudo permitem que
tudo seja revisto, e este é o objetivo nesta análise, explorar
leituras que sejam possíveis, pois, segundo Benjamim, “a
salvação da obra” consiste em reavaliá-la, reconhecendo a
maior gama possível de elementos estruturais que a sustentam,
independentemente da cadeia de acontecimentos históricos
(história linear), idéias e ideais estéticos do momento em que
a mesma nasceu.
A obra literária como devir
A obra literária, primeiramente, deve ser visualizada
como projeto (vontade de confecção); segundo, como
legitimação (a sua longevidade e a possibilidade de leituras
264
Estética da recepção: a singularidade do leitor e seu papel de co-produtor do texto
diferencias), ou seja, quando esta lança luzes sobre si mesmo e
também ilumina outras obras (alusão e intertexto); finalmente,
a obra como devir, que pode ser definida como a volta ao
passado (translatividade regressiva), buscando subsídios
culturais anteriores para torná-la mais consistente, e a ida
para o futuro (translatividade progressiva), impulsionando-a
a exercer influência sobre as demais produções literárias.
Dois movimentos essenciais são observados na obra
possível com referência à linha do devir:
• a obra gira sobre si mesma, num dado espaço e época
determinados. Leitores diferentes podem legitimá-la
de formas variadas; dá-se, então, a rotatividade da obra.
Cada um também pode perceber nuanças diferenciadas,
que são filtradas pelos indivíduos de forma singular e
fluídica. Seria a valoração sincrônica da arte escrita;
• no segundo momento, o movimento é translativo,
em outras palavras, o projeto literário é infinito em
possibilidades de leituras, basta adequarmos a padrões
estéticos diferentes. Esse estudo se concretiza no
tempo diacronicamente, e a legitimação da obra ocorre
quando da exploração das referidas possibilidades de
leitura numa linha de observações temporais sucessivas,
procurando verticalizá-la para a produção.
Daí a importância da historicidade literária, que vai
observar a sucessividade dos desempenhos estéticos de
um projeto, canalizando essa análise para a busca do pólo
energético e o campo semântico em alta num dado momento
estilístico-epocal. Vale ressaltar que, até então, as escolas
literárias se sucedem do trovadorismo ao modernismo e os
professores tendem a ensiná-las aos alunos de forma estanque,
estáticas, delimitadas por datas e acontecimentos. Uma obra
não pode ser considerada acabada enquanto existir quem a
leia e legitime o seu projeto, submetendo-o a novos parâmetros
estéticos.
O leitor
A abertura de uma obra (leitura e releitura) permite que
ela continue viva, e quem lhe dá essa chama eterna é o leitor.
O leitor “salva” a obra literária sempre que a ressignifica
mediante uma interpretação única e singular. Nesse instante,
o leitor será co-produtor de seu significado.
265
Rosemari Glowacki
Assim, há que se cuidar da obra, observando, analisando,
apaixonando-se pelo texto; e cuidar do leitor, estimulando-o,
ouvindo suas releituras, numa co-produção. Dessa forma, o
prazer será constante. Vale ressaltar, então, a relevância desse
novo olhar sobre o texto e sobre seu leitor.
A leitura, por tratar-se de uma habilidade humana, tem
existência histórica, porque se associa à adoção do alfabeto
como forma de comunicação e à aceitação da escola como
instituição responsável pela aprendizagem. Leitura e literatura
integram-se ao programa da língua portuguesa. Esta constitui
elemento fundamental na estruturação do ensino brasileiro
porque forma a sua base: está no começo da aprendizagem e
conduz a outras etapas do conhecimento.
Quando o estudante é estimulado ao hábito da leitura,
esta se entranha na sua vida, torna-se uma atividade de prazer
e emancipatória. Jauss utiliza essa expressão como palavrachave de sua teoria, porque a experiência da leitura pode
libertar o leitor, obrigando-o a uma nova percepção das coisas.
Seus horizontes se abrem. Declara o autor: “A função social
da literatura só se manifesta em sua genuína possibilidade
ali onde a experiência literária do leitor entra no horizonte
de expectativa da sua vida prática, pré-forma sua concepção
de mundo e, com isso, repercute também em suas formas de
comportamento social” (p. 154).
Desse modo, é chegada a hora do leitor, tendo em vista
que o texto depende da disponibilidade deste de reunir numa
totalidade os aspectos que lhe são oferecidos, criando uma
seqüência de imagens e acontecimentos que desembocam
na constituição do significado da obra. E esse significado só
pode ser construído na imaginação depois de o leitor absorver
as diferentes perspectivas do texto, preencher os pontos de
indeterminação, sumariar o conjunto e decidir-se entre iludirse com a ficção e observá-la criticamente.
A leitura implica aprendizagem e, ao mesmo tempo em
que ler é pensar o pensamento do outro, também é possibilidade
de adentrar em épocas distintas e compartilhar o universo da
alteridade ali presente. É um perder-se no texto para depois se
encontrar. Abre-se, assim, um portal de possibilidades para a
formação do estudante/leitor. Quando ocorre a apropriação do
texto por parte do leitor, ocorre quase uma ritualística: o leitor
apropria-se do sentido do texto e apaixona-se pela leitura.
266
Estética da recepção: a singularidade do leitor e seu papel de co-produtor do texto
O papel da escola é ajudar o estudante nessa tarefa,
nunca o “obrigando” a determinadas leituras, sem promover
a contextualização e estímulo necessários a essas atividades,
mas, sim, mostrando-lhe que leitura é viagem. Da rotina
cotidiana para o mundo da fantasia, um percurso de ida e
volta; uma sala de aula mais ativa e mais alegre, onde o texto
é prazer, não obrigação.
Cabe, então, à escola ensinar e promover atividade
de leitura, levando os estudantes aos diferentes tipos de
convivência com os textos escritos. Assim como os pais,
ela é uma das responsáveis pela formação do leitor. Nessa
perspectiva, os sujeitos-leitores autônomos, devidamente
estimulados em atmosferas pedagógicas que permitam
a criticidade e co-participação na leitura, poderão fruir
prazerosamente esses textos, desse modo dinamizando sua
imaginação e possibilitando-lhes uma viagem ao mundo do
conhecimento.
Considerações finais
Adentrar na floresta densa da análise literária é tarefa
que pressupõe curiosidade e receptividade para o novo.
Curiosidade para não se contentar com o já existente, com
teorias cristalizadas e idéias, por vezes, criadas na solidão
da reflexão de certos estudiosos, como o passeio subjetivo
pela mata dos conceitos; e receptividade para o novo, porque,
quando este novo ainda não está totalmente delineado, surge
o medo, medo de perscrutar os recônditos dos ecossistemas
filosóficos, políticos, sociais, sociológicos das árvores
chamadas “texto”.
As discussões e reflexões apresentadas remetem ao
novo, a um novo olhar sobre o texto, e, como já destacado
anteriormente, independente do momento de sua construção.
Como foi destacado, a estética da recepção, surgida na década
de 60 pelos estudos de Jauss, entende o texto como parte do
processo de conhecimento, não como uma entidade autônoma
que não interage com o leitor.
Ao contrário, como sugere o próprio nome dessa corrente
estética, leva em conta como o espectador recebe a obra;
a análise torna-se viva, de modo que as leituras críticas e
questionadoras do mundo sejam o alvo do aprendizado.
267
Rosemari Glowacki
Entretanto, enganam-se aqueles que recortam as teorias
sem integrá-las ao texto analisado, mais ainda, o texto exige
o leitor e vice-versa. Vale ressaltar, então, a relevância desse
novo olhar por sobre o texto, descobrindo o leitor como
seu continuador. Nas universidades, no ensino médio e
fundamental, cabe ao mediador de conhecimentos, o professor,
compreender que cada nova leitura realizada no espaço da
sala de estar ou de aula revitaliza o texto.
Como destacado anteriormente, a leitura constitui
elemento fundamental na estruturação do ensino brasileiro e,
atualmente, após um longo caminho percorrido, percebe-se
que a leitura proposta pela escola não se justifica sem exibir e
intencionar um resultado que está além dela. Liberar “amarras”,
pois compete à escola recuperar o elemento emancipatório do
texto, quer dizer, possibilitar espaço para o nascimento de um
leitor mais crítico e mais participante.
Desenvolver um programa com vistas à formação do
leitor cidadão exige uma mudança pedagógica e um novo
olhar da educação sobre a leitura, encontrando extensão para
além dos muros escolares. Vale ressaltar que a leitura não
pode estar confinada às aulas de línguas e literatura; deve,
sim, percorrer todo o espaço da aprendizagem. Atividades
tais como oficinas de leitura, grupos de teatro, contadores de
histórias e muitas outras podem ser realizadas, promovendo
a interdisciplinaridade e, em conseqüência, estimulando a
formação do leitor.
No meio do caminho tem a escola, mas esta não deve
configurar-se numa pedra. A leitura, às vezes, parece ficar de
fora, porque os professores não a incorporam ao universo do
ensino. Então, todos os envolvidos no ato educativo precisam
rever conceitos.
Em síntese, segundo a estética da recepção, o contato
com os livros, se o objetivo for construir leitores conscientes
e felizes, deve ser iniciado o mais cedo possível, não só pelo
manuseio dos textos como também pela história contada, pela
conversa ou pelos jogos rítmicos, no sentido de fazer amar
a leitura, para que o leitor se sinta o protagonista do seu
aprendizado, numa ponte que ligue a teoria e a prática, entre
o universo estético e o universo real.
Anteriormente à estética da recepção, as histórias da
literatura e da arte transmitiam o produto (a obra de arte) já
objetivado. Era considerado o lado produtivo da obra – o lugar
268
Estética da recepção: a singularidade do leitor e seu papel de co-produtor do texto
da obra de arte em seu tempo, em relação a seus autores e às
obras contemporâneas –, porém raramente o receptivo e quase
nunca o comunicativo. Com isso perde-se o entendimento da
experiência daqueles que, na atividade produtiva, receptiva
e comunicativa, desenvolveram in actum a práxis histórica e
social.
Para Jauss, o prazer estético deve servir como orientação
basilar de todo estudo e desenvolvimento do processo de
recepção de textos. Outro fator muito importante para o estudo
da recepção: o momento da experiência primária e o do ato
de reflexão, que são diferentes. A formação do juízo estético
baseia-se nas instâncias de efeito e recepção comparandose os dois efeitos de uma obra, o atual e o desenvolvido
historicamente (a obra ao longo do tempo).
O efeito e a recepção são momentos distintos: o primeiro
trata do efeito condicionado ao texto propriamente dito; a
segunda é aquele momento do leitor. Daí que o sentido do
texto se constrói nessa inter-relação texto/receptor, o que vai
gerar uma experiência, um processo de significação ainda
mais abrangente e produtivo.
Ao procurar resgatar a importância da experiência
estética, conforme considerações apresentadas anteriormente,
Jauss desdobra-a e afirma que passa por três momentos
simultâneos e complementares: a poiesis, a aísthesis e a
katharsis.
O autor explicita, por meio dessas três fases, a natureza
libertadora da arte fundindo dois aspectos importantes: seu
papel transgressor e seu papel comunicativo. O plano da
poiesis corresponde ao prazer de se sentir co-autor da obra.
Jauss afirma que, quanto mais o artista inova, mais ele espera
contar com a participação do destinatário de sua mensagem.
O segundo plano, da aisthesis, diz respeito ao efeito provocado
pela obra de arte como renovação da percepção do mundo
circundante.
Já a katharsis corresponde à experiência comunicativa
fundamental da arte, que permite explicitar a sua função
social ao inaugurar ou legitimar normas e também libertar o
espectador de sua rotina cotidiana, permitindo-lhe enxergar
mais amplamente os eventos e, assim, estimulá-lo a posicionarse. Esta etapa é considerada fundamental porque, durante
essa leitura reconstrutiva, o intérprete verifica seu lugar na
cadeia temporal. O professor Jauss espera que, pelo exercício
269
Rosemari Glowacki
da hermenêutica literária, o intérprete, no questionamento do
texto, venha também a interrogar-se.
Parece chegada a hora do leitor, não do leitor passivo,
mas daquele que interage com e no texto, uma idéia pósmoderna que deriva em grande parte do romantismo. Como
bem define Eco “o texto não passa de um piquenique em que
o autor traz as palavras e os leitores, o sentido.”
Uma vez (re)definidos esses entornos da obra, certamente
será possível romper barreiras no campo dos estudos literários,
alinhavando estruturas e teorias que formam o tecido maior
que é o textum; utilizando para tanto nuanças de linhas
coloridas, cada teoria uma cor, a fim de matizá-las e encontrar
mais uma bela composição de tons, a mais bela composição
artística: aquela que, por ser inacabada, permite sempre um
novo matiz, uma nova leitura/releitura única, singular... como
é singular o leitor.
Referências
BACHELARD, Gaston. O ar e o sonho: ensaio sobre a
imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São
Paulo: Hucitec, 1999.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2001.
D`ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1 – prolegômenos da
narrativa. São Paulo: Ática, 1995. v. I e II.
ECO, Umberto. Estética: as formas do conteúdo. São Paulo:
Perspectiva, 1964.
_______. Tratado geral de semiótica. São Paulo: Perspectiva,
1980.
FLORY, Suely Fadul Villibor. O leitor e o labirinto. São Paulo:
Arte e Ciência, 2000.
JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais.
In: A leitura e o leitor. Seleção, tradução e introdução por Luiz
Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
KOTHE, Flávio. Historiografia/historicidade literária. Rio
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.
MASLOW, Abraham H. Introdução à psicologia do Ser. Rio de
Janeiro: Eldorado, 1968.
270
Estética da recepção: a singularidade do leitor e seu papel de co-produtor do texto
MERQUIOR, José Guilherme. As idéias e as formas. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Trad. de Maria
Helena Nery Garcez. São Paulo, 1984.
271
Letramento: conhecimento,
imaginação e leitura de mundo
nas salas de inclusão
de crianças de seis anos
no ensino fundamental¹
Silviane Barbato*
Este texto tem por objetivo discutir as práticas de
letramento no processo de alfabetização, considerando o
desenvolvimento das crianças de seis anos que entram no
primeiro ano do ensino fundamental e as metodologias de
alfabetização no ensino de língua materna.
Com a complexidade da comunicação e a quantidade de
informação que recebemos e produzimos em nosso cotidiano,
precisamos refletir sobre como desenvolver metodologias de
trabalho com a leitura e escrita em sala de aula que ofereçam
aos alunos a possibilidade de formação de uma perspectiva
de linguagem escrita como comunicação em diferentes
contextos. Esse aprendizado deve ocorrer concomitantemente
ao aprendizado da construção da palavra, da sílaba e do
conhecimento fonológico em língua portuguesa do Brasil, com
atividades de análise, confronto e julgamento de semelhança
entre fonemas e grafemas (Orsolini, 1999).
*
1
Professora do Departamento de Psicologia Escolar e de Desenvolvimento e
do Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano
e Saúde do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. É licenciada
em Língua e Literatura Portuguesa pela UnB, tem Mestrado em Lingüística
Aplicada pela Universidade de Durham, Inglaterra, e Doutorado em Psicologia, também, pela UnB. É membro do Laboratório de Microgênese nas Interações Sociais e coordena o Programa de Inclusão da crianças de seis anos
no Ensino Fundamental de nove anos do Convênio Cform/UnB e Rede/SEB/
MEC.
Apoio CNPq, Edital MCT/CNPq 61/2005, processo: 401480/2006-2.
273
Silviane Barbato
Assim sendo, a discussão sobre a relação entre os
princípios teórico-metodológicos e a transposição didática
torna-se central, na medida em que percebemos que, apesar
das diversas experiências bem-sucedidas de muitas escolas
no ensino-aprendizado da leitura e da escrita, o fracasso
ainda ronda a história de muitas crianças a partir de suas
primeiras vivências escolares. E como defendemos que os
alunos tenham oportunidades de se desenvolverem desde os
primeiros momentos da escolarização, como pessoas criativas
e críticas, faz-se necessário uma metodologia que contemple o
trabalho com as diferentes unidades de significação, do texto
à relação grafema-fonema.
O avanço nas pesquisas sobre o processo de letramento
e os resultados recentes de testes nacionais e internacionais
(Saeb, Pisa) sobre o desenvolvimento das habilidades de
leitura e escrita nos diferentes níveis de escolaridade têm
contribuído para o direcionamento de nossas reflexões teóricopráticas com ênfase no aprendizado da língua materna na
escola, a partir dos usos e funções da escrita em diferentes
situações sociocomunicativas nas diversas comunidades
lingüísticas de nossa cultura. Há caminhos diferenciados para
o aprendizado da leitura e da escrita e diferentes processos
de letramento, definidos relativamente à história das práticas
culturais de cada grupo e às demandas dos diferentes contextos
situacionais (Halliday; Hasan, 1989) e comunicativos.
Ao percorrermos essa problemática, passamos a
considerar que os letramentos ocorrem relacionados também
aos processos de desenvolvimento humano e às possibilidades
de aprendizagem oferecidas pela escola. Defendemos, então,
que as práticas de alfabetização sejam consideradas tendo em
vista que o processo de ensino-aprendizado é uma negociação
entre o que se espera atingir em termos de objetivos, as
habilidades de acordo com a série e as demandas das crianças
em desenvolvimento.
Neste texto, vamos enfocar as crianças de seis anos,
chamando a atenção do leitor para as dinâmicas de ensinoaprendizado dialógico e suas relações com o desenvolvimento
humano quando as crianças aprendem a ler e escrever. Por
meio de nossas observações numa sala de aula no Distrito
Federal, anotadas em diário de pesquisa (Barbato, 2006), o
aprendizado das crianças nessa faixa etária e no primeiro
274
Letramento: conhecimento, imaginação e leitura de mundo nas salas...
ano da escolarização parece ser direcionado por operações
características do brincar desencadeadas na interação com o
novo conhecimento, a professora e os colegas.
O processo de ensino-aprendizado e
o desenvolvimento das crianças e dos
professores
O ensino nas salas de alfabetização deixou em
segundo plano os conhecimentos lingüísticos e sobre
o desenvolvimento humano, dando ênfase a atividades
relacionadas muitas vezes às dinâmicas e aos aspectos
referentes aos mecanismos da aprendizagem das habilidades
de ler e escrever sílabas e palavras, sem uma preocupação
com a comunicação mais complexa nos diferentes contextos
de letramento experienciados pelos alunos em seu cotidiano
dentro e fora da escola. No entanto, os resultados que estamos
obtendo nos testes e provas nos indicam a necessidade de uma
conciliação entre os conhecimentos da lingüística, psicologia
e pedagogia de uma forma mais executiva para que o professor
possa se tornar autônomo, a partir de atividades de formação
continuada, aplicando novos conhecimentos referentes
à fonética da língua, às variações lingüísticas, atentando
também para as características do aprender das crianças em
sua sala e a se organizar e efetivar critica e criativamente a
transposição didática.
Historicamente, os professores têm se adaptado a
inúmeras práticas que muitas vezes conduzem ao fazer
pedagógico que só privilegia a aprendizagem das unidades
menores da língua ou das unidades maiores, não possibilitando
que a criança tramite do texto à palavra, à relação grafemafonema, praticando adequadamente a leitura e a escrita com
o apoio do professor. O ensino tradicional fonocêntrico, o
construtivismo (muitas vezes interpretado parcialmente)
e, mais recentemente, o trabalho a partir da perspectiva do
letramento têm sido alternativas abraçadas por professores
em todo o país. As três perspectivas experimentam sucessos e
fracassos, mas todas podem desencadear aspectos de exclusão
se não atentarmos para o fato de que as práticas de leitura,
escrita e da oralidade de textos verbais e não verbais estão
relacionadas ao desenvolvimento das crianças como pessoas
275
Silviane Barbato
participantes de suas famílias, de seus grupos e da comunidade
escolar.
A leitura, escrita e oralidade e as posturas do professor
em sala são exemplos que modelam e negociam com a
produção de significação de cada aluno. Assim, a produção da
novidade no aprendizado depende da história que a criança
está participando e tecendo para si com os outros, incluindo
seus professores e colegas: das suas experiências, do seu
conhecimento prévio e do embate dessas experiências no
cotidiano da casa, da família, da rua com as novas vivências
e os novos encontros proporcionados no ambiente escolar. A
escola oferece possibilidades de socialização, e as práticas
de letramento produzem momentos muito ricos para o
desenvolvimento da identificação cultural e pessoal do aluno
(Moita Lopes, 2004), inclusive, pela valorização das práticas
lingüísticas das comunidades.
Os professores, buscando compreender como se dá a
alfabetização, muitas vezes trabalham conforme uma posição
tradicionalista, reeditando no processo de alfabetização a
leitura de cartilhas e um trabalho que utiliza o nome das letras
e operações de soma de habilidades, cujo ensino depende de
pré-requisitos relacionados à aprendizagem das partes menores
da palavra em direção às maiores. Nessa perspectiva, aspectos
comunicativos da oralidade, leitura e escrita são desconhecidos
como legítimos para as salas de alfabetização e deixados para
serem privilegiados somente após a aprendizagem de prérequisitos. O ensino baseia-se numa dinâmica de repetição
com a soma de novos constituintes.
Entretanto, sabemos que os contextos letrados da
cultura, incluindo os contextos de escolarização a serem
percorridos pelos alunos nos anos seguintes, são muito mais
complexos e exigem que, desde o primeiro ano, os alunos
possam praticar a leitura e a escrita também de unidades
maiores de significação, com o trabalho bem planejado com os
processos de construção do conhecimento e da crítica a partir
de atividades de compreensão do que é lido e da produção
textual.
As práticas mais tradicionais e mesmo as posturas
sincréticas não estruturadas ocorrem, geralmente, quando se
impõem novas tendências e não se possibilita ao professor que
tome conhecimento de outras práticas e discuta-as, tentando
estabelecer critérios de planejamento, experimentação e
276
Letramento: conhecimento, imaginação e leitura de mundo nas salas...
avaliação do que aprendeu. O professor, como cidadão ativo,
também está em desenvolvimento, também está se letrando e
também está negociando os significados que conhece sobre
o aprender e ensinar a ler e escrever com as novas idéias
que lhe estão sendo apresentadas. Se não tem oportunidades
adequadas para a discussão, que respeitem sua experiência
acumulada dando oportunidade de transformá-las, o professor
volta a repetir com seus alunos os caminhos de aprendizagem
que achou ter percorrido quando criança ou que intui
que devam ser os mais adequados. Não desenvolvendo as
técnicas a partir de um referencial teórico, passa a depender
somente de suas habilidades de envolver as crianças num
ambiente afetivo que possa proporcionar-lhes um início de
aprendizagem saudável.
Em anotações de diário de pesquisa junto a alguns
professores (Barbato, 2006), registramos a seguinte fala de
uma professora que chegara de um encontro de formação que
possibilitou um momento de reflexão sobre sua prática e uma
descoberta: – “[...] Aprendi que as letras têm sons. Por isso,
que quando eu dizia para as crianças C (nome da letra /se/)
mais ‘a’ é igual a ...elas diziam: – ‘sa’.”
Entretanto, com os esforços de uma formação continuada
de qualidade, observamos que os professores criam práticas
pedagógicas mais direcionadas para a alternância na construção
de um conhecimento dos processos de significação utilizando
textos e a relação entre sons e a formação de palavras, ao menos
no que diz respeito à aplicação de uma série de estratégias que
levam o aluno a negociar com o conhecimento que produziu.
Por exemplo, quando a professora interfere, lendo o que o aluno
escreveu em voz alta e discutindo com ele os sons e as partes
da palavra. Essas estratégias têm surtido efeito, pois os alunos
aprendem, passando de pré-silábicos para silábicos e silábicoalfabéticos ao longo do primeiro ano do ensino fundamental.
Porém, a escola não é um lugar apartado da sociedade; ela
faz parte da sociedade. Em nossas observações, assim que a
criança passa por aquelas duas ou três semanas iniciais de
trabalho com o alfabeto, os sons e as palavrinhas, percebemos
que ela desenvolve um apetite pelo descobrimento; ela busca
momentos de brincadeira em que aprende com seus colegas a
expandir o conhecimento sobre os usos e funções da escrita
na sociedade, e muitas vezes esse aprendizado se dá também
sem que o professor perceba.
277
Silviane Barbato
A beleza do processo de ensino-aprendizado é
que, se o processo está organizado e o professor trabalha
minimamente construindo andaimes (Bruner, 1975) para
apoiar o aprendizado, as crianças se sentem seguras e criam a
partir do jogo entre o que conhecem e o que estão aprendendo,
extrapolando o conhecimento. As crianças de seis anos
negociam com os conhecimentos que estão aprendendo, na
maior parte do tempo brincando, desencadeando eventos que
utilizam operações próprias do faz-de-conta (Vigotski, 1998).
Podemos afirmar, com base nas construções de
conhecimento das crianças de seis anos observadas em
sala, que as operações do processo de imaginação intervêm
no aprendizado da leitura e da escrita como parte inerente
das estratégias utilizadas pelas crianças ao aprenderem a
ler e escrever. Ao observarmos as crianças nessa faixa etária,
enquanto a professora desenvolvia atividades de leitura e
escrita no quadro, notamos vários tipos de jogos ocorrendo,
nos quais brincam com sons, sílabas e palavras. Por exemplo,
quando a professora trabalhava uma música que tinha a
palavra “pateta”, diversas crianças desencadeavam “por conta
própria”, em voz alta e paralelamente à professora, exercícios
com sílabas contendo partes da palavra “pa, pa, pa, la, la, la”;
“pata, peta, pita, pota, puta”!
Observamos também momentos de negociação
comunicativa complexos. Em notas de diário de campo
(Barbato, 2006), por exemplo, a seguinte conversa entre
as alunas (A1) e (A2), que já tinham terminado de fazer a
atividade, desenvolvia-se enquanto a professora percorria as
mesas para verificar como as tarefas estavam sendo resolvidas.
Nesse episódio da aula, A1 e A2 desenvolveram uma atividade
de faz-de- conta em um evento de letramento, utilizando
materiais que possivelmente foram trazidos de casa e que
vivenciam como rotineiros:
A1: [abre um folheto de propaganda de maquiagens de uma marca
conhecida]: _ Eu tenho aqui batons para vender, qual você quer?
A 2 [virando o folheto para ver melhor].
A1 [retomando a palavra]: _ Tenho essa cor aqui, essa aqui
[apontando para o batom escolhido e tentando ler o que estava
escrito]. É marrom.
A2: _quero essa aqui [também virando para si a cartela e passando
o dedo sobre o possível nome da cor do batom]. Quanto custa?
A1: _Custa trinta centavos [localizando os preços e fazendo como
se estivesse lendo o preço na tabela do encarte].
278
Letramento: conhecimento, imaginação e leitura de mundo nas salas...
As crianças convivem com diferentes usos e funções
da leitura e da escrita e com materiais diferenciados, e em
suas brincadeiras rompem os modelos dados; ao brincarem
sozinhas ou com os colegas, usam as estratégias aprendidas
em casa e na escola, transformando o conhecimento.
Um outro exemplo foi anotado também enquanto a
professora passava pelos grupos de alunos verificando e
conversando sobre a atividade em desenvolvimento. Neste
exemplo podemos notar que os alunos de seis anos utilizam
quaisquer materiais que estão à mão para construir interações,
que são vistas como a negociação para o aprendizado de
operações complexas como a comparação. Dois meninos
começaram a notar as imagens que havia nas capas de seus
cadernos de escrita livre. Compararam as duas capas e depois
começaram a circular pelas mesas adjacentes e comparálas com as de outros colegas. Depois, ao virarem o caderno,
perceberam que na capa de trás havia fotos menores, com as
capas da coleção de cadernos. Passaram, então, a comparar
as capas que encontraram com as fotografias que tinham da
coleção, mexendo os cadernos, virando-os e apontando para
as figuras. Podiam-se ver, claramente, o manuseio adequado
do caderno e o processo de reversibilidade, de checagem do
conhecimento, imprescindíveis para o desenvolvimento de
estratégias de leitura e escrita.
O processo de ensino-aprendizado da leitura e da
escrita envolve práticas de pensar e agir sobre o mundo por
meio de palavras escritas e depende de diferentes processos
de acordo com o desenvolvimento desses conhecimentos e da
negociação entre professores e alunos e entre os pares. Isso
ocorre em contextos escolares rurais, rururbanos e urbanos,
dependendo dos usos e das funções da escrita nas situações
sociocomunicativas, dos gêneros, da prática das diferentes
etapas de leitura (Bortone, no prelo), do uso de estratégias
de leitura e escrita, da convenção ortográfica da língua, do
reconhecimento global de palavras, por composição e
decomposição de unidades maiores e menores.
Então, uma proposta de formação continuada de
qualidade visa formar o professor mediador para que trabalhe
com o conhecimento lingüístico a partir de uma perspectiva
social, histórica e cultural, a fim de que desenvolva com os
alunos diferentes aspectos da compreensão e produção da
escrita como atividade comunicativa, utilizando estratégias
279
Silviane Barbato
que sejam direcionadas ao desenvolvimento da consciência
enquanto autoregulação e regulação das atividades (Barbato,
2005).
Assim, as práticas de letramento em sala abarcam
também o reconhecimento de que as trocas no coletivo estão
contribuindo para o desenvolvimento de cada indivíduo que
participa das interações. A mediação que possibilita a coconstrução do conhecimento ocorre alternando-se atividades
de leitura e escrita, desenvolvidas individualmente ou
colaborativamente em duplas ou grupos, na negociação de
significados entre colegas e entre o professor e o grupo de
alunos. O professor alterna a leitura com perguntas (o que,
quem, como, quando, por que) que trabalham o conhecimento
e as estruturas de diferentes gêneros apropriados para as
crianças de seis anos (fábulas, bilhetes, cartas, histórias em
quadrinho etc.); utilizando diferentes portadores (livros
infantis, revistas, cartazes, suplementos em jornais etc.);
oferecendo modelos de textos concretos; escrevendo ele
mesmo no quadro sobre suas experiências (suas férias, uma
narrativa sobre quando vai às compras, alguma lembrança de
como brincava na infância, um descrição de seu cachorro) para
que todos acompanhem e deixando os alunos desenvolverem
sua escrita autonomamente.
O professor mediador alterna também assuntos já
conhecidos e estudados com novas atividades, construindo
andaimes para as novas práticas a partir do que os alunos já
conhecem, ampliando seus conhecimentos. O ensino não se
dá apenas pela repetição do que se sabe oralmente em práticas
diferentes de leitura e escrita, mas, além da repetição, devese ampliar o aprendizado; é a idéia da espiral, inserindo-se
pontos de discussão temáticos e relacionando-os à própria
estrutura da lógica de pensar.
A significação é construída por meio da história dos
significados existentes (conhecimentos prévios), que dá
origem e permeia as trocas comunicativas e a construção
de novos significados. Produzimos um ensino-aprendizado
significativo ao considerarmos o conhecimento prévio e as
práticas de cultura das comunidades onde estamos interagindo,
juntamente com o novo conhecimento que desenvolvemos
com os alunos por meio de textos e outros materiais. Assim,
percebemos que, nessa perspectiva, há a valorização da
280
Letramento: conhecimento, imaginação e leitura de mundo nas salas...
construção do conhecimento e da comunicação de cada
interlocutor participante, mas enfatiza-se a negociação dos
significados na inter-ação. Essas atividades podem ajudar o
professor a aprender a ouvir seu aluno, tornando-se sensível a
suas formas de aprender e produzir conhecimento. Organizar
momentos de discussão e de aprendizagem conjunta,
enfatizando um ou outro elemento do processo, de acordo
com a situação comunicativa, promove o desenvolvimento
dos processos de identificação social, mesmo se tratando de
crianças tão pequenas.
Uma postura do professor que envolva o conhecimento
lingüístico necessário e que considere os aspectos mediacionais
relevantes provoca o desenvolvimento de uma sensibilidade
à necessidade de mudanças no fazer e na rapidez com que
procura desencadear respostas eficientes, ou criar novos
instrumentos e procedimentos que resolvam as questões
surgidas nas interações, colocadas pelos alunos. O professor
mediador é aquele que é sensível aos seus alunos e que
aprende a julgar e avaliar a necessidade de resposta e, se há,
qual resposta dar e na direção de qual objetivo pedagógico.
Por uma mediação dialógica
Pensamos que, para lidar com a complexidade atual
das situações interativas do cotidiano, torna-se necessário
que os cursos de formação de professores direcionem as
práticas pedagógicas para uma ação que não apenas constate
problemas, mas para que aprendam a resolvê-los em sala
de aula, por meio de atividades que contemplem a todas as
crianças e busquem incluir a todas no processo de ensinoaprendizado (Mercer, 2005). O dialogismo no ensino se dá
quando pensamos que, além de construir o conhecimento e um
discurso crítico com as crianças, proporcionamos contextos
de aprendizado diversificados nos quais esses conhecimentos
conceituais e procedimentais possam ser transferidos, sendo
experimentados em outros eventos de letramento na escola,
na família, na comunidade, em situações de lazer.
O conhecimento é construído nas interações, com
os outros; assim, um ponto positivo é o incentivo ao
reconhecimento dos saberes dos alunos e das culturas
locais. Quando o conhecimento que os alunos trazem de seu
281
Silviane Barbato
cotidiano e os raciocínios que desenvolvem ao resolverem
uma atividade são aproveitados como alavancas para o
ensino, estamos contribuindo para o aprendizado reflexivo
da leitura e da escrita, dos usos da língua e para a formação
de significados, avaliando o que sabem para direcionar o
próximo desenvolvimento (Vigotski, 1998). Isso ocorre, por
exemplo, quando proporcionamos trocas efetivas entre os
alunos, como sugere Calkins (2002), para que, desde o início
da escolarização, os alunos participem de rotinas de discussão
conjunta dos temas que vamos utilizar nas atividades de leitura
e escrita, ouvindo a opinião do professor e dos colegas ao
longo do processo de negociação; inclusive nos momentos de
desenho, escrita espontânea, quando forem mostrar e explicar
aos seus colegas suas produções, mesmo que se expressando
por meio de duas ou três palavras, no início da prática dessa
atividade.
O professor está, assim, criando oportunidades de trocas
e de tomada de consciência. Essa postura muda inclusive
aspectos da temporalidade relacionados à leitura e escrita de
textos, tornando as atividades de leitura e releitura possíveis,
por exemplo, quando os textos são colocados em varais e
expostos nas paredes internas e externas da sala; os livros,
gibis e outros portadores (como os próprios livros produzidos
pelas crianças) são disponibilizados no cantinho de leitura e
as bibliotecas escolares e públicas funcionam plenamente para
visitas, leituras individuais e coletivas in loco e empréstimos.
A significação também é construída pela qualidade da
relação professor-aluno. Muitas vezes vemos professores que
valorizam sobremaneira seus planejamentos e esquecem-se
de que o ensino-aprendizado ocorre como uma negociação de
significados com os alunos. Por exemplo, em situações que
envolvem aspectos lúdicos que requerem uma flexibilidade
por parte do professor para julgar como conduzirá a interação,
torna-se crucial a leitura dos significados das falas e fazeres
dos alunos antes de quaisquer tomadas de decisão quanto ao
direcionamento da construção de conhecimento.
Ao observarmos uma aula de alfabetização em que a
professora conduzia uma atividade cujo tema era “a minha
casa”, ela não percebeu que, ao perguntar quantos quartos e
quantos banheiros tinha a casa de cada aluno, poderia estar
constrangendo crianças que moravam em condições precárias.
Porém, ao ouvir a resposta extraordinária de um aluno, parou,
282
Letramento: conhecimento, imaginação e leitura de mundo nas salas...
refletiu sobre o que, possivelmente, estava ocorrendo e
continuou a participar da interlocução de forma positiva. Ao
chegar sua vez de responder, um menino disse: – “Na minha
casa tenho 48 banheiros e 48 quartos”. A professora parou
brevemente a seqüência que desenvolvia, mas logo retomou: –
“Ah sim! Quarenta e oito quartos e banheiros! Que imaginação!
E tomou nota no quadro da resposta do menino” (Barbato,
2006).
Tanto a professora como as crianças são respondentes
ativas (Volosinov, 1992). No exemplo anterior, podemos
verificar que a professora considera e respeita a construção
lúdica do aluno e, ao fazê-lo, constrói significações que
motivam o aluno, pois tenta ser sensível aos aspectos
relevantes do momento interativo. As pessoas aprendem
aquilo que acreditam poder tornar seu (Bruner, 1998); se
notam que suas produções estão sendo desvalorizadas ou não
são levadas em conta, muitas vezes se sentem desmotivadas e
acabam desistindo de continuar aprendendo. Isso diz respeito
não somente às formas de agir e ver o mundo, mas também
às próprias formas de falar. É, por exemplo, o que ocorre hoje
em dia com a luta contra o preconceito lingüístico: evita-se
o preconceito e aceita-se o desafio de trabalhar as variantes
lingüísticas que são utilizadas em diferentes contextos sociais
e locais por diferentes grupos (Bortoni-Ricardo, no prelo). Ao
reconhecer os preconceitos, a escola constrói a norma padrão
como uma das variações possíveis, acolhendo os falares
locais.
Muitas vezes, as variantes utilizadas pelos alunos são
confundidas com erros de aprendizagem. Recentemente,
quando analisávamos os dados de produção escrita de crianças
de seis anos com a professora regente, deparamo-nos com
uma dessas formas: a criança, ao escrever “flor”, produziu
“fulo” (Barbato, 2006). Nesse caso, a professora foi incentivada
a trabalhar com as crianças “formas de falar” e “formas de
escrever”, utilizando exemplos de suas produções quando
surgissem.
Assim, o desenvolvimento da participação cidadã crítica
ocorre também nas relações em sala com as crianças pequenas,
nas possibilidades que o professor tem de transformar o
que parece erro em momento de construção e ampliação do
conhecimento de seus alunos e de seu próprio conhecimento,
nas práticas de respeito mútuo, de argumentação e pela
283
Silviane Barbato
dinâmica de ensino dialógico, que transforma a situação
pedagógica. Nessa perspectiva, a construção de significados
é deslocada do eu e do tu para o inter, passando a abarcar
também os instrumentos utilizados no processo de ensinoaprendizado e os procedimentos, inclusive discursivos, da
interação nos modos comunicativos orais, escritos e visuais.
Nesse sentido, o professor procura ouvir e observar a
fim de transformar o conhecimento, utilizando os elementos
produzidos nas interações em sala no aprendizado da
oralidade, leitura e escrita. Cabe ao educador, como mediador,
interpretar o que está acontecendo e, ao tentar alternativas
visando à participação e ao aprendizado de todos, motiva o
aluno a construir seu conhecimento. Assim, a participação dos
indivíduos na comunidade desenvolve-se desde que nascem e
não se dá apenas pela construção da crítica sobre o cotidiano,
mas pelo domínio dos instrumentos que possibilitem a
transformação pessoal relacionada aos objetivos e processos
escolares.
O professor como mediador planeja suas aulas tendo
em vista os processos já adquiridos pelas crianças e aqueles
em desenvolvimento; provoca situações que promovam o
aprendizado por meio de atividades diferenciadas, discussões
e reflexões que conduzam o aluno à transformação de seu
conhecimento. Estar para o outro é abrir com ele novas zonas
de desenvolvimento proximal (Vigotski, 1998), é dialogar
com ele, num movimento de escuta-reflexão e ação em que se
têm por princípios básicos o trabalho conjunto e a crença na
potencialidade de responsividade ativa (Bakhtin, 1992) para a
transformação do conhecimento pelos indivíduos.
O educador, ao alternar atividades em que lidera com
atividades em que os alunos lideram, oportuniza a todos
diferentes formas de aprender e praticar a leitura, escrita e
oralidade em eventos comunicativos, construindo com o
coletivo um suporte que se estende a cada aluno, incentivando
a atuação crítica sobre os conhecimento em processo de
aprendizado.
Algumas das formas de intervenção na zona de
desenvolvimento proximal são comparadas à construção
de andaimes, de apoios pelo professor para auxiliar a
transformação do conhecimento por parte dos alunos. Exemplos
de dinâmicas de trabalho que podem desencadear a zona de
desenvolvimento proximal incluem a manipulação de textos e
284
Letramento: conhecimento, imaginação e leitura de mundo nas salas...
materiais escritos com o planejamento alternado de dinâmicas
de sala de aula, incluindo atividades lúdicas. Quando trabalha
na zona de desenvolvimento proximal, o professor planeja
uma série de atividades similares e vai retirando aos poucos a
ajuda que oferece aos alunos, ora instruindo-os, ora deixandoos tomar as decisões. Por exemplo, quando, na alfabetização,
quer enfatizar a relação entre os sons e a escrita de letras
e palavras, procurando antecipar o planejamento, inclui
diferentes atividades a serem desenvolvidas de acordo com as
possíveis respostas que possam ser dadas pelos alunos.
A mediação provoca mudanças na estrutura interna das
operações intelectuais e, portanto, influencia no uso de signos
por parte dos alunos. A qualidade da mediação depende
também da metodologia que o professor utiliza e, para Vigotski
(2001), há uma relação entre as concepções do professor sobre
o aluno e sua forma de aprender que influencia as formas de
mediação. Portanto, é imprescindível possibilitar a participação
ativa do professor na construção de uma nova metodologia,
que responda às demandas comunicacionais da sociedade
moderna, ao currículo do primeiro ano de escolarização, e seja
sensível aos modos e estilos de construção de conhecimento
das crianças de seis anos.
Considerações finais
O domínio da leitura e da escrita amplia as possibilidades
de comunicação do sujeito, de sua inserção na cultura e,
portanto, de sua participação cidadã. Para Vigotski (2002), a
linguagem é o instrumento simbólico mais importante para a
transformação de cada um de nós. Ora, se a linguagem escrita é
uma potencialidade de ampliação do uso dos instrumentos de
mediação simbólica, podem-se notar conseqüências imediatas
quando um grupo a domina. Luria (1992) nos chama a atenção
para a prática mediacional mais importante da escrita:
aprendemos a escrever e ler à medida que compreendemos
que leitura e escrita têm funções comunicativas.
Neste capítulo, discutimos as práticas de letramento no
processo de alfabetização, considerando o desenvolvimento das
crianças de seis anos, relacionando-os com o ensino dialógico.
As salas de aula compõem microculturas (Alexander, 2003) e
as construções de conhecimento são eventos de negociação
de significados (Pontecorvo; Ajello; Zucchermaglio, 2004),
285
Silviane Barbato
direcionados à compreensão dos processos de leitura e
escrita como cultura letrada e como atividade de construção
de suposições sobre os fatores que contribuem não somente
para o aprendizado, mas para o desenvolvimento social dos
indivíduos. Ao adotarmos uma postura dialógica no processo
de ensino-aprendizado, encorajamos os alunos a descobrirem
e lerem o mundo por meio do engajamento nas discussões a
partir da compreensão e produção de textos, proporcionandolhes e a nós, educadores, a construção de uma mudança social
na sala de aula e na escola.
O processo de ensino-aprendizado da leitura e da escrita
para as crianças de seis anos deve considerar suas formas de
aprender direcionadas por práticas de brincar, mediadas pela
oralidade, com a língua escrita e com o novo conhecimento,
alternando a leitura e escrita de textos, palavras, sílabas
e o trabalho com o conhecimento fonológico da língua e
incentivando a leitura e escrita como prazer, e em atividades
sobre as quais se conversa sobre, se discutem, se comparam
e se interpretam os textos em eventos de negociação com os
colegas e o professor.
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on an emerging pedagogy. In: CONFERENCE OF THE
INTERNATIONAL
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inclusão de crianças de seis anos no ensino fundamental
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286
Letramento: conhecimento, imaginação e leitura de mundo nas salas...
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287
A leitura do texto teatral
na escola
Tania M. K. Rösing*
Personagem
PRACINHA da Força Expedicionária Brasileira. Entre 70 e 75
anos. Homossexual.
Ambientação
Uma máquina de costura Singer (manual). Um banco, caixa de
costura, roupas e retalhos.
CENA ÚNICA
O personagem PRACINHA, sentado junto de sua velha máquina de costura, canta serenamente um trecho da “Canção do
Expedicionário” (letra: Guilherme de Almeida; música: Spartaco Rossi). Ele pontua o trecho da música com os ruídos que
produz com a máquina.
PRACINHA
(cantando)
Você sabe de onde eu venho?
Venho do morro, do Engenho,
Das selvas, dos cafezais,
Da boa terra do coco,
Da choupana onde um é pouco,
Dois é bom, três é demais
Venho das praias sedosas,
Das montanhas alterosas,
Dos pampas, do seringal,
Das margens crespas dos rios,
Dos verdes mares bravios
Da minha terra natal.
Por mais terras que eu percorra
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse “V” que simboliza
A vitória que virá;
Nossa vitória final,
*
Doutora em Letras pela PUCRS. Professora de literatura brasileira no curso
de mestrado em Letras da Universidade de Passo Fundo. Coordenadora do
Centro de Referência de Literatura e Multimeios da UPF. Coordenadora das
Jornadas Literárias de Passo Fundo.
289
Tania M. K. Rösing
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A aguado meu cantil,
As asas a do meu ideal,
A glória do meu Brasil.
Pára de cantar. Encara a platéia.
PRACINHA
“Desde que eu me lembro, estou na casa da minha avó. Sou
um dos menores. Por isso, um dos primeiros que ganha comida.
Minha vó fazia questão.
A mesa não cabe. Cada um agarra um prato e senta no chão.
Presto atenção nas conversas: o que precisava ser feito, o que já
tinha acabado, uma mágoa, um combinado, uma comemoração.
E assim se dizia as coisas uns pros outros, sentados abraçados
nos pratos. Minha vó dava risada. Dizia que era uma família
que comia e cagava tudo igual.
Acordar, comer, cagar, aprender a ler, escrever carta, cortar
unha, cortar cabelo, brigar, fazer as pazes, si assustar, fazer
promessa, fazer fogueira, ouvir rádio, dançar em baile, deitar e
dormir. Todo mundo junto. De dia e de noite. A gente sempre
dividiu calor [...]
(BONASSI, Fernando, NAVAS, Victor. Uma pátria que eu tenho.
São Paulo: Scipione, 2003 – (coleção Palavra da Gente; v.5. Peça
Teatral).
Homens e mulheres: diferentes papéis
em sociedade
Qualquer pessoa, desde que desperta a cada manhã pra
cumprir as ações do dia, desempenha diferentes papéis. Começa com os cuidados pessoais: higiene, aparência. Se for mulher ou homem, não interessa: ambos cuidam de si, da organização da casa, dos alimentos, da distribuição das tarefas do dia
– quem vai ao mercado, quem leva e quem busca as crianças
na creche, na escola, quem veste o filho, a filha, quem prepara
o lanche. Falta um medicamento. Quem está menos atarefado,
liga para o serviço de teleentrega. É o dia da consulta ao dentista. Quem acompanhará a filha? Solicitam ajuda do avô, da
avó, da tia... O menino faz caras e bocas para não sair da cama
– está frio! As horas vão passando celeremente.
O homem, já no trabalho, depois de enfrentar um trânsito
complicado, identifica-se através do cartão ponto digital, cria
uma desculpa plausível para justificar o atraso e corre para
ocupar seu lugar. É um setor importante. Não pode apresentar
resultados negativos. Revisa os documentos do mês anterior.
Compara desempenhos. Convoca os integrantes do seu grupo
para uma reunião-relâmpago. Compartilha preocupações.
290
A leitura do texto teatral na escola
Ouve manifestações. Repensa estratégias. Cria coletivamente
novas metas. Mostra-se esperançoso tentando esconder sua
tensão. Não pode perder o emprego. A família. A garantia aos
compromissos assumidos...
Em outro espaço de trabalho, uma mulher precisa desenvolver com muita competência as atividades inerentes à
sua função. Não pode falhar. Todas as tarefas são importantes.
Um descuido pode comprometer a produtividade de todo o
segmento . Enquanto trabalha, demonstrando uma aparente
tranqüilidade, vem à sua mente a imagem do filho em estado
febril... Pensou deixá-lo na creche. Mesmo no início da semana essa mulher está profundamente preocupada, já amplia seu
nível de estresse. Tem consciência de que o terceiro turno de
atividades em casa é inevitável. Mais funções a exercer. Mais
papéis a cumprir. Diferentes pensamentos perpassam-lhe a
mente. Emoções e cansaço mesclados... É uma multiplicidade
de expressões na complexidade dos sentidos.
É profundamente significativa a reflexão do dramaturgo
Alcione Araújo”(2006)1 neste momento:
A expressão teatral está tão profundamente umbricada na natureza humana e na condição humana, que é impossível estabelecer a fronteira de uma atividade mais genérica e o teatro propriamente dito. Pode-se perceber a dificuldade observando o
lúdico jogo teatral presente quando crianças brincam de Papai
e Mamãe, de Mocinho e Bandido ou mimetizando as relações
entre os animais – nesses jogos as crianças já estão assimilando
papéis que poderão desempenhar na vida adulta – note que a
palavra “papéis”veio do teatro.
Quando se observa o que as pessoas fazem, quando se
está muito próximo de cada um desses agentes construtores
da história particular e social, sente-se o quão é difícil, o quão
cansativo, o quão diversificado é o quotidiano das pessoas em
geral. Essas constatações feitas “olho nu” e como uma sensação de “pele” é o que o espectador sente ao vivenciar os sentimentos, as emoções protagonizadas pelos atores nas diferentes cenas. Não se imagina: sente-se. Assistir a um espetáculo
teatral constitui-se na vivência de sentimentos e emoções. Ler
um livro – personagens e suas reações, cenário, tempo – pressupõe muita imaginação.
1
ARAÚJO, Alcione, (Org.) Duas ou três coisas que eu sei dela, a dramaturgia.
Proposta de leitura do mundo através da narrativa dramática / Leia Brasil
– Organização Não Governamental de Promoção da Leitura. Rio de Janeiro:
Argus, 2006
291
Tania M. K. Rösing
A diversidade de público no contexto
da escola
Os diferentes níveis de escolaridade desde a educação
infantil, passando pelo ensino fundamental, atingindo o ensino médio, abrangem alunos de camadas socioculturais as
mais diversas, dependendo, também, do sistema educacional
a que pertence a escola: pública municipal, pública estadual, particular; da faixa etária; do sexo; da situação financeira
desses alunos.
Essa heterogeneidade se revela no baixo desempenho
de leitura da grande maioria desses jovens, paralelamente à
variedade de interesses, de necessidades que, muitas vezes, é
causa maior do seu distanciamento da escola. Um olhar cuidadoso dos professores é capaz de detectar a necessária oferta de
materiais bem selecionados e com grande diversificação para
seduzir os integrantes desse público e melhorar suas condições de compreensão e de interpretação nas possíveis leituras
a serem efetivadas.
A escola convencional não estimula o desenvolvimento
de um processo de formação contínua dos professores. Se o
mesmo for desenvolvido, poderá conscientizar professores e
dirigentes das escolas acerca das mudanças velozes impostas
pelas novas tecnologias, imprimindo um ritmo diferenciado e
rápido ao lado da abertura de horizontes às pessoas que vivem
no século XXI.
Essa escola deve observar com maior rigor o comportamento, as reações de seus alunos, que se afastam com muita
naturalidade dos (não) apelos dessa instituição tradicional.
Esses jovens dificilmente estão prontos com as leituras literárias indicadas pelo professor, mas não perderam o capítulo da
telenovela. Buscam vivenciar experiências on line desinteressando-se pela linearidade típica de uma narrativa clássica literária. Deliciam-se com as múltiplas possibilidades navegação
num hipertexto em meio eletrônico.
Paralelamente a essa sedução, os jovens precisam enfrentar a rotina escolar de leitura – narrativas clássicas se repetem numa trajetória sem emoções, sem novidades. Novas
tribos de escritores não lhes são apresentadas por desconhecimento e acomodação dos professores.
292
A leitura do texto teatral na escola
Textos poéticos aparecem entre leitura “selecionadas”
para os alunos das séries iniciais prioritariamente e, na maioria das vezes, exclusivamente nessas séries. Os professores
mal preparados, não leitores, consideram o gênero literário
poesia de difícil assimilação, linguagem concisa, hermética à
compreensão, à interpretação e à apropriação de leitores/apreciadores da poesia. Também neste caso, quando são oferecidos
textos poéticos para que os alunos leiam, são textos sem nenhum apelo, mal selecionados, apenas por serem canônicos.
Outro aspecto a ser destacado é desconhecimento de
professores e de responsáveis por bibliotecas do conteúdo de
canções populares cujas letras são poesia pura. Eis por que os
jovens “consomem” produtos oriundos da indústria cultural,
ignorando a questão da qualidade nesses poemas cantados.
Da mesma forma, a leitura do texto teatral impresso não
está prevista no “planejamento” das leituras escolares. O que
aparece é a “proposta” de encenação de peças teatrais, às vezes adaptadas de narrativas pelos próprios alunos sem que os
mesmos entendam a natureza da dramaturgia, muito menos
o seu valor.
Alcione Araújo (2006)2 propõe a seguinte reflexão/denúncia:
A dramaturgia, base literária da expressão teatral, é ignorada
pelos currículos acadêmicos mesmo nos cursos de letras e raramente utilizada nos níveis médio e fundamental do ensino no
Brasil. Renuncia-se, assim, à sua utilização pedagógica como
uma maneira de representar, interpretar e conhecer o homem e
a sociedade criada pelos homens. A encenação teatral possibilita cumular vivências do que não se viveu.
Os descaminhos entre o potencial baixo de leitura dos
professores e as necessidades dos alunos impulsionados pela
inventividade, que lhes é peculiar e estimulados pelas novas
tecnologias, desencadeiam uma trajetória sem previsão de etapas a serem cumpridas, por meio da inclusão dos gêneros literários, poesia e teatro ao lado de gêneros textuais necessários
às suas práticas culturais e sociais.
2
ARAÚJO, Alcione (Org.) Teatro: educar para sentir, pensar e agir. Proposta de
leitura do mundo através da narrativa dramática / Leia Brasil – Organização
Não Governamental de Promoção da Leitura. Rio de Janeiro: Argus, 2006.
293
Tania M. K. Rösing
A complexidade da realidade visualizada
no exercício da troca de papéis
PADRE: (Dá alguns passos de um lado para o outro, de mão no
queixo e por fim detém-se diante de Zé-do-Burro, em atitude
inquisitorial.)
Muito bem. E que pretende fazer depois... depois de cumprir
a promessa?
ZÉ: Que pretendo? Voltar pra minha roça, em paz com minha
consciência e quite com a santa.
PADRE: Só isso?
ZÉ: Só.
PADRE: Tem certeza? Não vai pretender ser olhado como um
novo Cristo?
ZÉ: Eu?!
PADRE: Sim, você. Você acaba de repetir a via crucis, sofrendo
o martírio de Jesus. Você que, presunçosamente, pretende imitar o Filho de Deus...
ZÉ: (Humildemente) Padre eu não quis imitar Jesus!
PADRE: Mentira! Eu gravei suas palavras! Você mesmo disse
que prometeu carregar uma cruz tão pesada quanto a de Cristo
[...].
(DIAS GOMES. O pagador de promessas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003 ) Literatura em minha casa. 8ª série; v. 4.
Peça Teatral.
As crianças, desde muito cedo, desenvolvem jogos
dramáticos: Agora eu sou a mãe e você é a filhinha. Ah! não!
Agora eu quero ser a rainha má e você, a Branca de Neve. Não,
não! Agora você faz as compras e paga pra mim. Sou caixa do
supermercado.
Entre as adolescentes, acontece, repetidas vezes, que
algumas garotas tentam imitar top models, começando por
deixar de comer para ficarem com uma aparência corporal
próxima às mais famosas e bem-sucedidas financeiramente.
Não estão preocupadas em construir sua própria identidade.
Imitam por imitar. É a aparência exterior que interessa. Projetos
de vida, sentimentos, emoções ficam de lado.
Constata-se também uma grande preocupação com a
aparência exterior por parte do sexo masculino. Submetemse a tratamento estéticos, a experiências com novos produtos
rejuvenescedores... não se importam com a paralisia de
determinados músculos responsáveis pela expressão facial
que lhes conferem identidade por muitos anos. Modelam os
cabelos causando espanto. Esses comportamentos nada têm
a ver com as personalidades assumidas de determinados
personagens pelos atores enquanto encenação do espetáculo
teatral (inclusive da própria telenovela). O diretor de teatro
294
A leitura do texto teatral na escola
lidera um grupo de atores para selecionar as personagens a
serem assumidas no contexto de uma peça teatral. Estudam,
investigam muito. Assumir uma determinada personagem
requer muito empenho. É preciso interiorizar o modo de ser
dessa personagem, seu agir, seu pensar, seu sentir, a fim de
interpretar com precisão a personagem.
Essa complexidade deve ser entendida pelos
espectadores que integram a platéia desse espetáculo. Se o
público espectador não conseguir participar profundamente
desses sentimentos, dessas emoções, não está envolvido na
atmosfera da arte teatral.
Paralelamente à reflexão sobre os papéis assumidos pelos
atores no espetáculo teatral, a retomada dos papéis exercidos
em sociedade faz-se necessária em relação ao que desejariam
os jovens assumir na escola e não conseguem: autonomia no
processo de seleção de leitura de produção de textos sobre temas específicos de seu interesse; compartilhamento de idéias,
de sentimentos a partir de uma leitura; participação no processo de organização do espaço da sala de aula, nos debates
ora como coordenadores, ora como relatores, ora como observadores críticos; respeito dos professores à história específica
de cada aluno, considerando este último um ser inteligente
com história; tratamento dos alunos como sujeitos e não como
seres passivos na comunidade de aprendizes em que devem se
integrar professores e alunos; estímulo ao desenvolvimento da
prática da investigação.
Ao contrário, de forma inconsciente, professores estimulam alunos a se organizarem em orkuts, espaço de discussão,
de denúncia, de crítica séria ou leviana.
Não seria a hora de aprofundar o debate entre professores,
alunos e pais sobre o distanciamento dos jovens da escola?
Que medidas estão sendo tomadas para diminuir o analfabetismo funcional, referido como desempenho inaceitável
de leitura? É pertinente a proposta de Alcione Araújo (2006):
“Enfim, o que se pretende é sugerir o uso do processo de dramaturgia como estratégia para superar o analfabetismo funcional. A leitura de peças teatrais induz de maneira lúdica e
natural à atitude intelectiva de compreender o que se lê para
compreender o que acontece.”
Os programas governamentais de distribuição do livro
didático aos alunos do ensino fundamental e, agora, do ensino
295
Tania M. K. Rösing
médio não conseguem provocar mudanças nesses alunos,
uma vez que o problema maior encontra-se entre professores
não leitores. Considerando que as bibliotecas escolares,
quando existem, também são conduzidas por professores
despreparados, o estímulo à leitura, a dinamização dos
acervos, a mediação da leitura não acontecem.
Outros materiais de apoio ao professor têm sido preparados cuidadosamente por equipes técnicas do Ministério
da Educação. Ao chegarem na escola, esses recursos não são
criticados, sequer são analisados por número significativo de
professores. A acomodação, o desestímulo pelo exercício da
profissão são maiores do que a curiosidade de aprender sempre mais para compartilhar mais.
O desafio de ler o texto teatral na escola
[...]
LORDE
Está certo, Bufo. Mas peço-lhe: não venha por este caminho. A
cidade tem muitos atrativos e muitas tentações... E, infelizmente, somos fracos... Inventaram por lá uma sedução diabólica e
irresistível chamada glória.
BUFO
E o que é a glória?
BELA
Uma mulher, Bufo! Fico feliz, Lorde!
LORDE
Não, não é mulher! É difícil explicar, mas a sensação é a mesma
de fazer amor o dia todo, fazer amor a vida toda...
BUFO
E artista, Lorde, ainda há por lá?
LORDE
Claro. Há glorificados, como eu e os que lutam pela glória. Talvez existam outros, mas desconheço.
BUFO
E por que não devemos seguir o seu caminho?
LORDE
Porque é preciso preservar artistas como vocês. Vocês são a
esperança de ressurreição da arte, depois do apocalipse. Não
devem se contaminar. Vocês e a arte são uma única coisa, pura,
simples, bruta, indestrutível. Lá, a glória fez os artistas maiores
que a arte se salvarem só saberão ensinar a glória, não a arte
[...].
(ARAÚJO, Alcione. A caravana da ilusão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000 (Dramaturgia de Sempre).
O fragmento anterior provoca a curiosidade dos leitores.
Quem são essas personagens? De onde vieram? Por que falam
de glória e de arte?
296
A leitura do texto teatral na escola
Em sala de aula, noticiar esse texto dramático para estimular a leitura do texto complexo é a tarefa importante e
desafiadora a ser cumprida pelo professor.
O jogo entre as operações mentais e os sentimentos, as
emoções precisam acontecer durante a leitura. Há dois caminhos a serem percorridos: se forem leitores iniciantes, a leitura poderá ser compartilhada entre professor e alunos. Se já
forem leitores experientes, poderão realizar a primeira leitura
individualmente. Num momento posterior, há a explicitação
das marcas dos texto teatral, a escolha de personagens, a identificação do tema em questão e a avaliação de sua importância,
as reações dos personagens, o cenário, o tempo, as situações,
tudo na perspectiva da imaginação.
A partir do entusiasmo pelo envolvimento com a leitura
do texto teatral, pode-se realizar, muitas vezes, a leitura do
texto em voz alta, o que desencadeará uma leitura interpretada
a partir das personagens e do envolvimento interior dos alunos
com as mesmas, diferentemente da encenação no palco.
As razões apresentadas sugerem a professores,
bibliotecários, alunos, leitores em geral o quão enriquecedor é
o envolvimento com o teatro. O diálogo entre os personagens
constitui-se numa polifonia caracterizada pela diversificação
dos modos de pensar, de agir, de sentir. A decisão de ler o
texto teatral é uma atitude firme em direção ao entendimento
da condição humana através da ampliação do imaginário.
É imprescindível que cada integrante da instituição
escola, que abrange, para quem não sabe, a biblioteca, concedase essa oportunidade ímpar de pensar e sentir a complexidade
e a riqueza da condição humana pelo viés da imaginação, de
forma competente, viabilizada pela leitura de textos teatrais. A
resposta “eu não gosto de ler peças teatrais” deve ser entendida
como “eu não tive a oportunidade de ler textos teatrais na
escola, na biblioteca, em casa...”.
É incompatível com a escola no processo de
desenvolvimento educacional e cultural dos alunos a não
criação de oportunidades aos alunos de desenvolvimento com
a dramaturgia, iniciando-se pela leitura de textos teatral para
ampliar a imaginação desses jovens leitores.
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