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1 INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS: TERRITÓRIOS SELETIVOS DO CAPITAL
Alcides dos Santos Caldas
Departamento de Geografia
Instituto de Geociências
Universidade Federal da Bahia
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RESUMO
Um dos principais acordos estabelecidos com o fim da Rodada do Uruguai da Organização
Mundial do Comércio (1994) foi sem dúvida o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos da
Propriedade Intelectual relacionadas com o Comércio, ou como ficou conhecido “Acordo
TRIPS”, o qual teve como “objetivo reduzir as distorções e obstáculos ao comércio
internacional e levando em consideração a necessidade de promover uma proteção eficaz e
adequada dos direitos de propriedade intelectual e assegurar que as medidas e
procedimentos destinados a fazê-los respeitar não se tornem, por sua vez, obstáculos ao
comércio legítimo”. Essa decisão coloca em igualdade de posição a circulação da produção
na escala mundial, ou seja, foram estabelecidos normas e procedimentos para que a
produção circule, de forma normatizada, entre os países membros da OMC. Essa medida
traz impactos territoriais significativos, os quais envolvem instituições no âmbito
internacional, nacional, regional e local tendo como foco principal o setor produtivo. Nesse
mesmo acordo, no artigo 21 as indicações geográficas ganham relevo. Nada mais são que a
modernização do “terroir” já estudado nos primórdios da Geografia, tendo como uma das
referências os estudos de Vidal de la Blache, quando estudava a singularidade dos lugares.
A OMC resgata esse conceito e o traz como referência na circulação da produção, ou seja,
um território que apresenta características singulares na forma e nos processos de
produção, gestão, circulação e distribuição da mercadoria, que na atual fase do capitalismo
torna-se uma vantagem competitiva territorial. As indicações geográficas definidas na forma
do Acordo TRIPS são “indicações que identifiquem um produto como originário do território
de um membro, região ou localidade deste território, quando determinada qualidade,
reputação ou outra características do produto seja essencialmente atribuída à sua origem
geográfica” (art. 22, Acordo TRIPS). Esses territórios seletivos do capital estão obrigando
aos gestores locais e corporativos a buscarem novas formas de qualificação territorial
visando a inserção no contexto das relações sociais de produção e da globalização. Na
virada do século XX para o XXI a produção acadêmica e científica foi significativa e é uma
referência para os estudos atuais sobre os condicionamentos, normas e padronização das
produções locais visando atingir os ditames das decisões globais e sistematizada pela
Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI).
Palavras-chaves: território; indicações geográficas; singularidade, seletividade territorial.
2 1 INTRODUÇÃO
A compressão tempo-espaço (HARVEY, 1989) intensificada a partir do paradigma
tecnológico e da informação muda substancialmente as formas de ser, viver e sentir (IANNI,
1995) das pessoas nesse mundo “comprimido” e envolvido pelas desigualdades
socioespaciais, riqueza, consumo, coexistindo indissoluvelmente com a miséria, violência,
desemprego, trabalho infantil, tráfico de mulheres, guerras, destruição cada vez mais
acelerada da natureza, desrespeito aos direitos humanos, e que necessita de uma reflexão
renovada sobre as contradições desse mundo contemporâneo em busca de uma outra
globalização (SANTOS, 2004), na qual o ser humano seja o centro das preocupações de um
novo mundo que precisa ser construído a partir do desenvolvimento das capacidades
humanas baseado nos ideais da cooperação, da solidariedade e da democracia
participativa, numa perspectiva transescalar.
Segundo Chesnais (1996), a globalização é apresentada como um processo
benéfico e necessário, mas é preciso que a sociedade se adapte (esta é a palavra-chave,
que hoje vale como palavra de ordem) às novas exigências e obrigações (CHESNAIS, 1996,
p. 25) do mundo contemporâneo.
O capitalismo, como modo de produção e reprodução, sobrevive das suas próprias
crises, sendo operado em um universo de diversidades, desigualdades, tensões e
antagonismos (IANNI, 1995) integrando, subsumindo e recriando singularidades. Quando se
fala de adaptação essa palavra de ordem atinge a todos os lugares e a todos os indivíduos,
de forma seletiva, em graus diversos e tempos diferentes.
No processo de incorporação de pessoas, saberes e porções do espaço à esteira
do capitalismo, na base do desenvolvimento geograficamente desigual (SMITH, 1988), as
heranças e permanências da sociedade humana estão na ordem do dia, para sua conversão
na agregação de valor à mercadoria. O retorno ao passado acontece para integrar as pautas
da formação de preços, no qual a história, os costumes, o saber-fazer, o patrimônio material
e imaterial podem ser envelopados com uma nova máscara e etiqueta, na qual o marketing
territorial passa a ser uma ferramenta fundamental para a promoção de mercado.
A normatização comandada pelos organismos internacionais, a exemplo da
Organização Mundial do Comércio (OMC), chancelada, no caso do Brasil, pelos organismos
nacionais - Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e o Ministério da Agricultura,
Pecuária e Alimentação (MAPA) - impõe aos indivíduos e lugares formatos de como as
mercadorias devem ser produzidas e comercializadas, transformando os espaços da
produção em Territórios Normatizados, nos quais as regras devem ser cumpridas.
As Indicações Geográficas, na forma de Denominações de Origem1, sobre as quais
venho refletindo em minhas pesquisas em busca de respostas, desde 2000 é o seu conceito
e sua aplicação.
Dessa forma, o problema investigado é em que condições na fase atual do
capitalismo um território dotado de características individuais, particulares, singulares, de
saber-fazer vinculados à tradição pode seguir caminhos que possibilitem o desenvolvimento
territorial, ou se os conteúdos desses territórios tornam-se meros elementos de apropriação
de valor por uma ordem dominante localizada nos centros de gestão do sistema capitalista?
Partindo de uma abordagem crítica busca-se nesse artigo, a partir das
considerações sobre o significado da ideia das indicações geográficas, refletir as
possibilidades e condições; apresentar o marco regulatório das indicações geográficas e a
sua distribuição no mundo e no Brasil, bem como enfatizar o seu caráter seletivo desse
instrumento no contexto das relações globais.
As Indicações Geográficas, na forma de Denominação de Origem, definida como o nome geográfico de país, cidade,
região ou localidade de seu território, que designe produto ou serviço cujas qualidades ou características se devam
exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos (BRASIL Lei 9.279/1996, art.178)
1
3 2 AS INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS: MARCO REGULATÓRIO E DISTRIBUIÇÃO
ESPACIAL
O conceito de Indicação Geográfica foi paulatinamente desenvolvido através do
processo histórico, na medida em que produtores e comerciantes apresentavam produtos
cujas qualidades particulares podiam ser atribuídas à sua origem geográfica. A primeira
iniciativa remonta ao século XVIII, quando surgiu a Appellation d’origine, Châteauneuf-duPape, reconhecida pelo estado francês.
Inicia-se, assim um processo de valorização de determinados produtos, através da
designação geográfica de procedência, pressupondo um vínculo de qualidade, reputação ou
outras características do produto que poderiam ser atribuídas essencial ou exclusivamente
ao território produtor.
Desde o século XIX, os produtos de origem vêm sendo objeto de discussão e de
regulação de mercado, na tentativa dos governos dos países protegerem os seus produtos,
vinculados ao saber-fazer, através de um eficiente sistema de normas de propriedade
intelectual que evitem as falsificações e suas reaplicações, tornando-se os territórios
produtores obedientes às normas estabelecidas pelos organismos internacionais, uma vez
que esse fato representa garantias de direitos frente a possíveis interesses de violação dos
direitos comerciais.
2.1 O MARCO REGULATÓRIO DA ORGANIZAÇÃO DAS INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS
A Convenção da União de Paris (CUP) em 1883 constitui o marco para a regulação
de mercado, visando preservar o local de origem dos produtos frente à crescente
internacionalização dos lugares, devido à ampliação do incremento da demanda e dos
atrativos preços pagos por esses produtos, constituindo-se dessa forma na primeira
iniciativa para normatizar e coibir o uso da falsa procedência e as falsificações de origem, a
serem observadas por países signatários.
Nesse sentido o Acordo de Madri, celebrado em 1891privilegiou discutir o tema da
procedência dos produtos em âmbito internacional, bem como no campo da política, onde
se passou a discutir os acordos comerciais por meio de tratados multilaterais, como forma
de adequação dos interesses entre países signatários (BLUME; PEDROZO, 2008, p. 3).
Em 1947 o Office International de la Vigne et du Vin (OIV) lançou um conjunto de
princípios para o estabelecimento das denominações de origem para vinhos, na tentativa de
proteger os 47 países participantes dessa organização. Segundo Llopis (1997), estes
princípios são: a) uma Denominação de Origem deve estar consagrada pelo seu uso e por
um comprovado renome; b) esse renome deve ser consequência das características
qualitativas do produto, determinadas por dois tipos de influência ou fatores naturais, cujo
papel deve ser preponderante (clima, solo, variedade de viníferas etc.), permitindo a
delimitação de uma área de produção; os fatores devidos à intervenção do homem, cuja
influência é de maior ou menor importância (sistema de cultivo, métodos de vinificação etc.);
todo o produto vitícola com Denominação de Origem deve ser proveniente de uma área de
produção delimitada e de variedades de videiras determinadas.
Já o Acordo de Lisboa, instituído em 1958, é o marco do reconhecimento das
denominações de origem, assinado por 17 países, do qual o Brasil é signatário.
No final de 1994, na ata de conclusão que incorpora os resultados da Rodada do
Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais (General Agrement of Trade and Tarifs GATT), foram instituídas importantes resoluções que vieram a se formalizar nos Acordos
sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio
(ADPIC), que estabelece a proteção jurídica internacional dos direitos da propriedade
intelectual, do qual as Indicações Geográficas fazem parte. Dessa forma, o território é visto
pela OMC como propriedade intelectual.
Para o conceito de indicações geográficas foi estabelecido que este passou a estar
[...] “vinculado à qualidade ou a características derivadas essencialmente da procedência, o
4 que se diferencia da tendência internacional que prevalecia até então, conferindo à
expressão um sentido mais abrangente” (GUIMARÃES, 1995, p. 23).
Nas Rodadas da Organização Mundial do Comércio, realizadas em Doha (2001) e
Cancun (2003) ocorreram poucos avanços na questão dos registros das indicações
geográficas. Contudo, segundo Josling (2006), os entraves se originam nos interesses
distintos dos países, principalmente nas divergências entre Estados Unidos e União
Europeia. Enquanto os Estados Unidos investem na proteção das marcas como política
privada para a proteção de um produto, os países da União Europeia estão empenhados em
colocar em prática o acordado no ADPIC, por entender que esse mecanismo é de maior
abrangência e representa o interesse coletivo.
Notoriamente, as Indicações Geográficas, em seus distintos tipos hierárquicos
(nacional e/ou internacional reconhecidas) são uma tendência mundial dentro da dinâmica
atual de competitividade dos sistemas agrícolas, agora numa escala global.
No Brasil, o Decreto n° 1355 de 30 de dezembro de 1994, da Presidência da
República promulga e incorpora as decisões estabelecidas na Ata Final os Resultados da
Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT e com isso abre-se o
caminho para a organização do sistema de propriedade intelectual no país, incorporando é
claro as decisões definidas pela Organização Mundial do Comércio. Nesse sentido, em
1996, com a aprovação da Lei da Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/1996) que,
regula os direitos e obrigações da propriedade industrial no Brasil são introduzidos,
nos artigos 176 a 182, os conceitos de indicação de procedência e denominação de
origem. Dessa forma, o Brasil começa a normatizar a implantação das Indicações
Geográficas em todo o território nacional, tendo como órgão responsável pelo seu
registro o Instituto Nacional da propriedade Industrial.
Define-se Indicação de Procedência, em conformidade com a LPI, no seu art.177,
da seguinte forma:
[...] Considera-se Indicação de Procedência o nome geográfico de
um país, cidade região ou uma localidade de seu território, que se
tornou conhecido como centro de produção, fabricação ou extração
de determinado produto ou prestação de determinado serviço (INPI,
1996).
Essa mesma Lei define, em seu art. 178, Denominação de Origem:
[...] Considera-se Denominação de Origem o nome geográfico de um
país, cidade, região ou localidade de seu território, que designe
produto ou serviço cujas qualidades características se devam
exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores
naturais e humanos (INPI, 1996).
A Instrução Normativa nº. 25 de 2013 do Instituto Nacional da Propriedade Industrial
estabelece no art. 5º quem pode requerer o registro de Indicações Geográficas no Brasil, na
qualidade de substitutos processuais, são as associações, os institutos e as pessoas
jurídicas representativas da coletividade legitimada ao uso exclusivo do nome geográfico
estabelecidas no respectivo território.
Já no art. 6º. da mesma instrução normativa define que o pedido de registro de
Indicação Geográfica deverá referir-se a um único nome geográfico e nas condições
estabelecidas em ato próprio do INPI, conterá: I – requerimento, no qual conste: a) o nome
geográfico; b) a descrição do produto ou serviço; II – instrumento hábil a comprovar a
legitimidade do requerente, na forma do art. 5º; III – regulamento de uso do nome
geográfico; IV – instrumento oficial que delimita a área geográfica; V – etiquetas, quando se
tratar de representação gráfica ou figurativa da Indicação Geográfica ou de representação
5 de país, cidade, região ou localidade do território, bem como sua versão em arquivo
eletrônico de imagem.
No art. 8º. em se tratando de pedido de registro de Indicação de Procedência, além
das condições estabelecidas no Art. 6º, o pedido deverá conter: a) documentos que
comprovem ter o nome geográfico se tornado conhecido como centro de extração, produção
ou fabricação do produto ou de prestação de serviço; b) documento que comprove a
existência de uma estrutura de controle sobre os produtores ou prestadores de serviços que
tenham o direito ao uso exclusivo da Indicação de Procedência, bem como sobre o produto
ou a prestação do serviço distinguido com a Indicação de Procedência; c) documento que
comprove estar os produtores ou prestadores de serviços estabelecidos na área geográfica
demarcada e exercendo, efetivamente, as atividades de produção ou prestação do serviço.
O art. 9º estabelece as condições específicas para o registro de denominações de
Origem e o solicitante deve, além das condições estabelecidas no Art. 6º, o pedido deverá
conter: a) elementos que identifiquem a influência do meio geográfico, na qualidade ou
características do produto ou serviço que se devam exclusivamente ou essencialmente ao
meio geográfico, incluindo fatores naturais e humanos; b) descrição do processo ou método
de obtenção do produto ou serviço, que devem ser locais, leais e constantes; c) documento
que comprove a existência de uma estrutura de controle sobre os produtores ou prestadores
de serviços que tenham o direito ao uso exclusivo da denominação de origem, bem como
sobre o produto ou prestação do serviço distinguido com a Denominação de Origem; d)
documento que comprove estar os produtores ou prestadores de serviços estabelecidos na
área geográfica demarcada e exercendo, efetivamente, as atividades de produção ou de
prestação do serviço.
Vale ressalta ainda nessa trajetória, Decreto n° 4.062, de 21 de dezembro de 2001,
da Presidência da República que definiu as expressões “cachaça” e “Brasil” e “cachaça do
Brasil” como indicações geográficas, pressionados pela concorrência do mercado do rum e
da tequila.
A diferenciação dos produtos com base na identidade territorial e cultural, expressa
pela IG, representa um ganho de vantagem competitiva, constituindo uma alternativa de
grande potencial na promoção do território produtor.
Tendo o território como fator de diferenciação, os produtos certificados com a IG
refletem, de fato, uma identificação com o território de origem em suas dimensões
sócioprodutivas, geoambientais e histórico-culturais. Em última instância é o saber-fazer que
proporciona a conquista da reputação dos produtos certificados, baseados nas
potencialidades locais.
Diversas regiões no mundo já se adequam a essa nova realidade e, para isso, a
organização dos produtores, a uniformização da produção, sob critérios de qualidade, o
marketing local/regional e a articulação dos processos de comercialização são atividades
que estão sendo incentivadas através de políticas públicas, porque garantem aos
consumidores a qualidade esperada e aos produtores agregação de valor aos seus
produtos.
As IGs vinculam-se às regiões especializadas na produção e elaboração de
determinados produtos, os quais apresentam características semelhantes, seja na forma de
fazê-los, produzi-los, coletá-los e armazená-los.
A utilização de IGs pressupõe a delimitação do território onde a produção, as
práticas culturais, os volumes máximos de produção, os sistemas de elaboração, o controle
de qualidade, a base tecnológica, a qualificação profissional, o marketing, os critérios de
produção e de elaboração, a configuração territorial, reunidos numa marca, garantem a
singularidade do território e a fazem diferenciar-se de outros territórios produtores.
As IGs são um meio eficaz para identificar e assegurar a qualidade de um produto
elaborado em um território com características específicas, homogêneas e bem
demarcadas, com o objetivo de garantir a sua procedência e, o mais importante, para firmar
a relação de confiança que se estabelece entre o consumidor e o produtor, e o seu local de
produção (CALDAS; CERQUEIRA; PERIN, 2005).
6 As IGs asseguram para um conjunto de produtores, reconhecimento, confiança,
aumento da autoestima, uniformização da produção, competitividade intra e extrarregião
produtora e a possibilidade desse território integrar-se no mundo da competitividade
comercial. Entretanto exigem do produtor a responsabilidade de produzir com qualidade, de
seduzir o cliente e de despertar o sentimento de confiança do consumidor em relação à
procedência do produto.
Diversas são as instituições públicas e privadas que vem contribuindo para a
implementação das indicações geográficas no Brasil, vale destacar o papel do Instituto
Nacional da Propriedade Industrial – INPI -, o Ministério de Agricultura, Pecuária e
Alimentação – MAPA, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa -,
universidades e institutos tecnológicos federais e estaduais, Banco do Nordeste do Brasil –
BNB -, Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas e Médias Empresas – SEBRAE -, Serviço
Nacional de Aprendizagem Rural – SENAR-, secretarias estaduais de agricultura, meio
ambiente, ciência e tecnologia, turismo.
2.2 AS INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS NO MUNDO E NO BRASIL
O desenvolvimento mais significativo da cultura e regulamentação técnica e legal
das Indicações Geográficas, indiscutivelmente, é o continente europeu. Legendre (1995)
assinala que é muito antigo o costume de designar os produtos com o nome do lugar de sua
fabricação ou de sua colheita. Por exemplo, o queijo Roquefort adquiriu sua notoriedade sob
o nome de seu local de origem desde o século XIV.
É interessante notar que desde o século XVI já havia a preocupação de se proteger
os vinhos produzidos na Galícia (CALDAS, 2006), especificamente na Comarca do Ribeiro,
conforme foi publicado nas “Ordenanças Municipais de Ribadavia”, em 1579, citado por
Eiján (1920, p. 344) que dizem:
[...] que non se debe meter viño na vila de partes onde non se colle
bo, o que producirá gran dano porque baixo unha cuba de bo viño
que se pode cargar sobre mar, polo tanto, non se pode meter viño
algún na vila en ningún tiempo del año, de la otra parte del rio Miño,
ni dende el rigueiro de Jubín para fuera, ni dende El puente de Paoz
para arriba, ni dende la Lazea de Fontán de Mendo abaixo, ni dende
la Baroza arriba y desde los dichos términos a dentro se pueda meter
en la dicha vila.
O país com maior tradição no estabelecimento das IGs é a França. No referido
país, esse sistema adquiriu uma expressiva importância econômica, cultural, sociológica e
ambiental, sendo considerado parte do patrimônio nacional. A experiência francesa remonta
ao século XVIII, quando surgiu a primeira Appellation d’origine, Châteauneuf-du-Pape, mas
somente em 1935 foi aprovado o sistema jurídico para as denominações de origem e criado
o Institute Nacional de las Appellation de Origine (INAO), vinculado ao Ministério da
Agricultura.
A partir dos anos 1970 a Comunidade Europeia programou esse sistema com o
objetivo de sistematizar, organizar, padronizar, comercializar e promover os vinhos
produzidos nesse continente que visava relacionar o produto ao território produtor e aos
produtores responsáveis pelo processo de elaboração, identificados por características
semelhantes utilizadas em seus processos de produção. São exemplos os vinhos
produzidos sob o sistema de IG: aqueles do Porto e de Dão (Portugal), de Bordeaux,
Provença e da Champanhe (França – appelation d’origine controlée), de La Rioja, Ribera
del Douro, Ribeiro (Espanha – denominación de origen), do Sarre, da Mosela e Fraken
(Alemanha – Gebiet), da Sicilia, Puglia, Toscana (Itália – denominazione controllata) etc.
7 Deve-se ressaltar que apenas doze membros do Acordo de Lisboa têm
denominação de origem protegidas pelo registro internacional e que a Europa reresenta
95% dos registros, com a França concentrando 66,3% dos registros para produtos como
vinhos, bebidas espirituosas e queijos. A República Checa lidera água mineral, cervejas,
malte e produtos ornamentais. Na Europa, existam em torno de 4900 indicações geográficas
reconhecidas pelas instituições da União Europeia (OMPI, 2014).
Analisando os site dos institutos de propriedade intelectual dos países da América
Latina conseguimos identificar que a grande maioria já implementam as leis de propriedade
intelectual, bem como através de legislação complementar institui e regulam as indicações
geográficas em cada país.
No México a tequila é uma indicação geográfica de uma bebida alcoólica obtida de
uma variedade agrícola, produzida numa limitada zona do México el agave azul tequilana
Weber, a qual se protege desde 1942, como figura protegida pela propriedade industrial.
No caso do Peru, as indicações geográficas assumem um status de importância de
Estado e foram instituídas através do Decreto legislativo 823 da Lei de Propriedade
Industrial, que dispõe, em seu Artigo 218, que [...] “es el Estado Peruano el titular de las
denominaciones de origen peruanas y sobre ella se concede autorizaciones de uso”. Em
1990, através da resolución directoral nº 072087, de 12 de dezembro, a República do Peru
declarou que a denominação de origem Pisco é uma denominação exclusiva para os
produtos obtidos da destilação dos caldos resultantes unicamente da fermentação de uva
madura, elaborada na costa dos estados de Lima, Ica, Arequipa, Moquegua e nos vales de
Locumba, Samae Caplina do Departamento (Estado) de Tacna. Em 2007 o Instituto
Nacional de Defensa de la Competencia y de la Protección de la Propriedad IntelectualINDECOPI, registrou sete indicações geográficas: o maíz blanco de Cuzco, as Cerâmicas
Chulucanas, o Café Villa Rica, o Café de Machu Pichu-Huadquiña, o Loche de Lambayeque,
o Pallar de Ica e La Maca Junín-Pasco.
Mediante uma lei de 4 de março de 1992, a República da Bolívia autorizou o uso da
denominação de origem apenas ao Singani, um produto legítimo e exclusivo da produção
agroindustrial boliviana. Trata-se de uma aguardente obtida pela destilação de vinhos de
uva moscatel fresca, produzida, destilada e engarrafada nas zonas de produção de origem
da região de Potosí.
Em novembro de 2000, a República da Venezuela, através da Resolución nº 206,
de 14 de novembro, reconhece Chuao como denominação de origem do cacau proveniente
da zona de Chuao, um dos primeiros povoados fundados na Venezuela, na metade do
século XVI, onde foi instalada uma fazenda de cacau em 1568, pertencente à família Caribe.
Em 2001 e 2003 foram registradas, respectivamente, o Cocuy Pecaya e o Ron de
Venezuela. Outras nove estão em tramitação, a saber: Tabaco de Barinas, Café de Táchira,
Bananas y Piñas de Trujillo, Ganado de Carora, Palma Amazónica, Artesania de Mérida,
Carne Santa Bárbara, Cacao Barlovento, Queso de Guayanés.
Na Colômbia foram registradas como IGs o Café Colômbia (2005), a Cholupa del
Huila (2007), a Cestería de Guacamaya (2009) e a Cerámica Artesanal de Ráquina
Colombia (2009).
No Equador, em 2009, foram registradas as IGs de Cacao Arriba e o Sombrero de
Montecristi, mais conhecido como Sombrero-Panamá.
Na Índia, em 2004, duas IGs foram registradas: o chá Darjeeling e o Ikat
Pochampalli. Nos últimos cinco anos, foram registradas 107 IGs, nesse país, principalmente
dos tradicionais métodos de tecelagem.
A China começa praticamente agora o reconhecimento das IGs com o apoio do
Institute Nacional de las Appellation de Origine (INAO) e já foram identificadas 300 territórios
com potencialidade de serem reconhecidos como IGs.
Na África destacam-se os registros das IGs do azeite de Oliva de Aragan
(Marrocos), da cebola violeta de Galmi (Nigéria), do abacaxi da Guiné e do Chá do Quênia.
Importante destacar a criação, em 2003, da Organization for an International
Geographical Indications Network, a qual integra 350 indicações geográficas de 40 países.
8 Avanços significativos vêm sendo desenvolvidos para definir ou delinear a marca
Brasil. Um exemplo disso foi o recente reconhecimento da cachaça, perante a comunidade
internacional, como produto genuíno brasileiro, diferenciando do rum produzido em Cuba e
em Porto Rico.
O Decreto nº 4.042, publicado no Diário Oficial de 21/12/2001, esclarece que
cachaça é a denominação típica e exclusiva da aguardente de cana produzida no Brasil,
com graduação alcoólica de 38% a 48% em volume, a 20º Celsius, obtida pela destilação do
mosto fermentado de cana-de-açúcar. Já o rum é definido como bebida com graduação
alcoólica de 35% a 54% em volume, a 20º Celsius, obtida do destilado alcoólico simples do
melaço, total ou parcialmente em recipiente de carvalho. O decreto também define a
caipirinha como bebida típica brasileira, com graduação alcoólica de 15% a 36% a 20º
Celsius, obtida exclusivamente com cachaça, servida com limão e açúcar.
As primeiras iniciativas de demarcação de territórios produtores foram
estabelecidas pelo Conselho das Associações dos Cafeicultores do Cerrado (CACCER),
localizado na região de Patrocínio, no estado de Minas Gerais, instituído em 1993 e
contando atualmente com 3500 produtores em 160 mil hectares plantados com pés de café.
A criação do Conselho permitiu a demarcação de uma região de origem que produz café de
alta qualidade e o lançamento de uma marca para o produto, denominada Café do Cerrado.
O CACCER desempenha o papel de representação única de todos os produtores
da região, garantindo a qualidade dos serviços, a padronização do produto, o controle de
estoques, o marketing institucional etc. Também estabelece cotas dos produtores,
acompanha a embalagem, o armazenamento e o embarque do produto.
Vale destacar também a criação da IG Vale dos Vinhedos, na Serra Gaúcha,
produtora de vinhos finos, nos municípios de Bento Gonçalves e Garibaldi, no estado do Rio
Grande do Sul, e a promulgação da Lei nº 12.177, de 07/01/2002, do estado de Santa
Catarina, que dispõe sobre a certificação de qualidade, origem e identificação de produtos
agrícolas.
Atualmente, no Brasil existem trinta e três IGs registradas no INPI (Figura 1).
9 Figura 1 - Indicações Geográficas Registradas no Brasil
Ordem Nome Geográfico Produto Espécie Estado Vinhos e espumante IP RS
2002
Café
IP MG
3 Vale dos Vinhedos Região do Cerrado Mineiro Pampa Gaúcho Carne Bovina IP 4 Paraty Aguardentes 5 6 Vale do Submédio São Francisco Vale do Sinos 7 8 Nome Geográfico Produto Espécie Estado 18
Canastra
Queijo
IP MG 2012
2005
19
Pedro II
IP PI 2012
RS
2006
20
DO RJ 2012
IP RJ 2007 21 DO RJ 2012 Uvas de Mesa e Manga IP PE/BA 2009 22 Região Pedra Carijó Região Pedra Madeira Região Pedra Cinza Opalas preciosas de Pedro II Gnaisse fitado milonítico Gnaisse fitado milonítico Gnaisse fitado milonítico DO RJ 2012 Couro Acabado IP RS 2009 23 Mármore IP ES 2012 Pinto Bandeira Vinhos e espumantes IP RS 2010 24 Cachoeiro de Itapemirim Manguezais de Alagoas Própolis vermelha DO AL 2012 Litoral Norte Gaúcho Região da Serra da Mantiqueira Costa Negra Arroz DO RS 2010 25 Linhares IP ES 2012 Café IP MG 2011 26 DO RS 2012 Camarões DO CE 2011 27 café verde em grão IP PR 2012 TO 2011 28 PB 2012 IP RS 2011 29 Salinas IP MG 2012 Goiabeiras IP ES 2011 30 Porto Digital IP PE 2012 14 Serro Queijo IP MG 2011 31 Altos Montes IP RS 2012 15 São João Del Rei IP MG 2012 32 Divina Pastora IP SE 2012 16 Franca Peças artesanais em estanho Calçados IP SP
2012
São Tiago
Têxteis em algodão colorido Aguardente de cana tipo cachaça Serviços de Tecnologia da Infomação ‐ TI Vinhos e espumantes Renda de agulha em lacê Biscoitos
IP 13 Artesanato Capim Dourado Doces finos tradicionais Panelas de barro IP 12 Região do Jalapão Pelotas Vale dos Vinhedos Norte Pioneiro do Paraná Paraíba Cacau em amêndoas Vinhos e espumante 17 Vales da Uva Goethe Vinho de Uva Goethe IP SC 2012 1 2 9 10 11 Ano Registro Ordem 33
IP MG Ano Registro 2013
Fonte: Instituto Nacional da Propriedade Industrial, 2013.
Das 33 Indicações Geográficas brasileiras, 26 estão registradas na modalidade de
Indicação de Procedência e 07 na modalidade de Denominação de Origem. A Figura 1
mostra a distribuição espacial das Indicações Geográficas implantadas no Brasil, registradas
no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), tendo como características principais:
a) Estão concentradas nos estados do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro,
mas já estão presentes nos estados de Alagoas, Espirito Santo, Paraíba, Paraná,
Pernambuco, Piauí, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins;
b) Estão classificadas em agroalimentares (arroz, biscoitos, cacau, camarão, carne bovina,
doces, própolis, queijos), bebidas (café e cachaça), artesanato (renda, cerâmica,
estanho), produção mineral (gnaisse, mármore, opalas preciosas), vestuário (sapatos e
couro) e tecnologia da informação;
c) Foram registradas no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) ao longo dos
anos 2000 e 2010, concentrando-se no ano de 2012, quando foram registradas 18
indicações geográficas;
d) Variam em muito em extensão territorial. Ela garante a proteção de um território, o qual
pode ser um bairro, como é o caso da Indicação de Procedência Porto Digital, localizada
no bairro de Santo Amaro, numa área de 100 hectares do centro histórico da cidade de
Recife, até uma grande região, como é o caso da Indicação de Procedência Uvas e
Mangas do Vale do Sub-médio São Francisco, que abrange uma extensão territorial de
125.755 km², incluindo municípios dos Estados de Pernambuco e Bahia.
10 e) Engloba a proteção de grandes produtores, como é o caso da Indicação de Procedência
Cerrado Mineiro, produtora de café, de pequenos produtores, como é o caso dos
produtores de queijo artesanal de Minas Gerais ou produtores de doces do Rio Grande
do Sul;
f) Estão presentes em sua grande maioria no campo, como por exemplo, as indicações
geográficas, Café do Cerrado (MG), Capim Dourado (Jalapão-TO), cachaça de Salinas
(MG), a carne do Pampa Gaúcho (RS), dentre outras, mas estão presentes nas cidades,
como por exemplo as indicações geográficas Porto Digital (cidade de Recife-PE), Doces
de Pelotas (cidade de Pelotas-RS), Panelas de Barro de Goiabeiras (cidade de VitóriaES).
g) Estão presentes em mais de 200 municípios brasileiros.
3 AS INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS: TERRITÓRIOS SELETIVOS DO CAPITAL
O retorno do território já foi objeto de discussão, principalmente a partir dos anos
1990. Diversos foram os eventos científicos nacionais e internacionais, diversas foram as
teses, dissertações e artigos que foram publicados abordando a discussão sobre a revanche
do território.
O conceito de território, a partir das concepções de Jean Gottmann (1973), Claude
Raffestin (1980), Robert Sack (1986), Bertha K. Becker (1983), Milton Santos (1994), e
Rogério Haesbaert (2004), foram de fundamental importância para pensar essa nova
reinvenção do conceito, numa conjuntura preconizada pelos ditames neoliberais.
O conceito de território ganhou relevância, especialmente a partir dos anos 1960,
quando apareceram as primeiras abordagens mais específicas e cientificamente mais
sistematizadas. Parte da Biologia e da Etologia, a partir da concepção da territorialidade dos
animais, numa visão darwinista. Devido à sua amplitude, ganhou abordagens diversas nas
ciências humanas e sociais. Na sociologia, a sua formulação é abordada a partir das
relações sociais. A Antropologia destaca a sua dimensão simbólica a partir dos estudos das
comunidades tradicionais. Na Ciência Política, a ação do Estado é a referência. Na
Economia, situa-se como base da produção. Na Psicologia, inclui os fatores abstratos da
busca da identidade pelo indivíduo (HAESBAERT, 2004, p. 37).
Mas é na Geografia que esse conceito ganha maior profundidade, especialmente
influenciado pelo movimento de renovação iniciado nos anos 1970. Nas últimas quatro
décadas, os debates foram profícuos e as contribuições dos diversos autores que
alimentaram o debate sobre a ideia do que vem a ser território foram significativas.
O surgimento do conceito de território na Geografia, indiscutivelmente tem por base
as formulações de Friedrich Ratzel, no contexto histórico da unificação alemã em 1871,
divulgado em sua Antropogeografia: fundamentos da aplicação da Geografia à História
(1882) e concomitante à institucionalização da geografia como disciplina nas universidades
europeias. O território, para esse autor corresponde a uma parcela da superfície terrestre
apropriada por um grupo humano, coletividade esta que teria uma necessidade imperativa
de uma base de recursos naturais suficientes para manter sua população, recursos que
seriam utilizados a partir das capacidades tecnológicas existentes. O Estado é referencial
fundamental na concepção ratzeliana de território.
Na década de 1970, o conceito volta a ser discutido, influenciado pelo movimento da
renovação Geografia, como uma contribuição aos debates na explicação da realidade
contemporânea, na qual a revolução técnico-científica-informacional (SANTOS, 1996), a
compressão tempo-espaço (HARVEY, 1989) são processos cada vez mais fortes de
internacionalização da economia que modificara sobremaneira a dinâmica das relações
socais e de produção.
Entre os principais autores que retomam a discussão sobre o conceito de território,
está o geógrafo Jean Gottmann (1973) que centraliza sua abordagem no significado do
território para as nações e sustenta que a relação das pessoas com o seu território
apresenta-se de diversas formas – geográficas, políticas e econômicas –, circunscritas ao
contexto ocidental, tendo como referência a obra The significance of territory. Para este
11 autor, o território possui significado como uma parcela do espaço, caracterizada pela
acessibilidade ou não, em meio à fluidez moderna, resultante dos avanços tecnológicos do
século XX, aumentando as possibilidades de circulação de pessoas e mercadorias a
grandes partes dos lugares do planeta.
Em 1980, o geógrafo Claude Raffestin publicou o livro Por une géographie du
pouvoir, o qual parte de uma crítica que denomina de “geografia unidimensional”, o território
que tem como referência o poder estatal. Como alternativa analítica a esse território estatal,
Raffestin (1980) defende a existência de múltiplos poderes que se manifestam nas
estratégias regionais e locais. Nessa perspectiva, o território para Raffestin (1980) é
entendido como a manifestação espacial do poder fundamentada em relações sociais,
determinadas, em diferentes graus, pela presença de energia, ações e estruturas concretas,
e de informação, ações e estruturas simbólicas. Essa compreensão permite pensar o
processo de territorialização-desterritorialização-reterritorialização (T-D-R), baseado,
sobretudo, no grau de acessibilidade à informação; o que pode fazer surgir novos territórios
(territorialização), destruí-los (desterritorialização) ou reconstruí-los (reterritorialização).
Outra importante publicação que contribui para o debate do conceito de território,
surgida em 1986, também de um geógrafo, Robert Sack, é Human territoriality, que examina
a territorialidade humana na perspectiva das motivações humanas. O autor toma o poder
como a base da territorialidade. O autor parte da crítica da concepção de que a
territorialidade humana é um desdobramento do comportamento animal e, portanto,
instintiva e agressiva. Para Sack (1986), a territorialidade é uma tentativa, ou estratégia, de
um indivíduo ou de um grupo para atingir, influenciar ou controlar recursos e pessoas
através da delimitação e do controle de áreas específicas.
No contexto brasileiro, o conceito de território tem seu retorno marcado no artigo O
uso político do território: questões a partir de uma visão do terceiro mundo, publicado por
Bertha K. Becker, em 1983, o qual a crítica é exclusiva ao poder do Estado-Nação, como
única realidade representativa dos aspectos políticos, a exemplo de Raffestin (1980). Além
da constatação da existência de múltiplos poderes, ela ressalta que, no plano internacional,
as organizações supranacionais como, por exemplo, as empresas multinacionais, vêm
confrontando o poder do Estado de forma cada vez mais vantajosa para as primeiras
(Schneider; Tartaruga, 2004). Nesse sentido, Becker (1983, p.7) afirma: “[...] face à
multidimensionalidade do poder, o espaço reassume sua força e recupera-se a noção de
território. Trata-se, pois, agora de uma geopolítica de relações multidimensionais de poder
em diferentes níveis espaciais”.
Milton Santos (1994) introduz a metáfora do “retorno” do território, no qual os
territórios habitados, pelas pessoas, se confrontam com duas tendências contemporâneas:
de um lado, a tendência de expansão e, consequente imposição para grande parte do
mundo das relações capitalistas de produção e consumo e, de outro, a tendência à
homogeneização dos costumes e usos, sobretudo no que diz respeito ao consumo
individual. Nesse sentido, o novo funcionamento do território é realizado através das
horizontalidades, ou seja, os domínios da contiguidade dos lugares vizinhos reunidos por
uma contiguidade territorial; e verticalidades, correspondendo aos pontos distantes uns dos
outros, conectados pelas redes técnicas, configurando a fragmentação do espaço a serviço,
principalmente, das demandas da reprodução do capital, na escala das grandes
corporações transnacionais. No território, segundo Santos (1994, p. 18), “há um conflito que
se agrava entre o espaço local, espaço vivido por todos os vizinhos, e um espaço global,
habitado por processo racionalizador e um conteúdo de origem distante que chega a cada
lugar com os objetos e as normas estabelecidas”, trazendo a noção de espaços
comandados pelo meio técnico-científico sendo os espaços do mandar, os outros são os
espaços do obedecer (SANTOS, 1996, p.106).
Para Rogério Haesbaert (2004a), pode-se agrupar a concepção de território em três
vertentes fundamentais: a) política - referente às relações espaço-poder, em que o território
é considerado como espaço controlado por um determinado poder, às vezes relativo ao
poder do Estado; b) cultural - que prioriza a dimensão simbólica e mais subjetiva na qual o
12 território é visto como um produto da apropriação simbólica de uma coletividade; c)
econômica - como fonte de recursos, como a dimensão espacial das relações econômicas.
Importante destacar que o território pode ser interpretado como um conceito híbrido
como afirmam Rogério Haesbaert (2004b) e Milton Santos (1999), autores que ressaltam a
conveniência de que dois ou mais conceitos espaciais sejam utilizados em conjunto para
analisar uma determinada realidade social.
As Indicações Geográficas objeto de discussão desse artigo, podem ser definidas
como o território onde se processam as relações capitalistas de produção, as quais buscam
também o lugar como expressão da singularidade, do saber fazer, da experiência na
elaboração de determinado produto, agregando-lhes valor e dando-lhes um diferencial
competitivo, qualificando esses lugares da produção e do consumo para atuarem nas
escalas nacional e internacional do mercado (Caldas, 2012, pg. 127). As indicações
geográficas também devem ser entendidas como uma salvaguarda do patrimônio material e
imaterial inerente à singularidade do saber fazer da sociedade local. As indicações
geográficas são os territórios do saber fazer o vinho, o café, a cachaça, o artesanato, o
sapato, a carne, o queijo etc, nos quais os elementos singulares, físicos e humanos, são os
protagonistas desse processo.
A apropriação dos aspectos que caracterizam a singularidade (o único, o
excepcional, o diferente, fora do comum) é que o buscam os atuais sistemas produtivos
mundiais como agregação de valor, diferenciação e competitividade territorial, estabelecidos
por um sistema global de referência, fortalecidos pelos mecanismos das instituições estatais
de cada membro do sistema OMC. Dessa forma, as indicações geográficas estão na ordem
do dia, processo que implica, principalmente para os produtores, a adaptação às novas
normas de circulação da produção na escala mundial. Na escala do território de procedência
as transformações são significativas, tanto na base produtiva, tecnológica, política,
econômica, social e ambiental, portanto, as indicações geográficas são territórios
caracterizados:
a) por cumprirem os acordos, leis e procedimentos definidos na escala internacional;
b) por cumprirem as normas estabelecidas pelo Estado nacional, determinadas pelos
acordos internacionais, os quais pressionam os sujeitos das ações na implementação das
normas internacionais;
c) por apresentarem uma base física comum (solo, relevo, vegetação, hidrografia, geologia)
e contígua de produção, a qual particulariza e individualiza a origem do produto;
d) por apresentarem o saber-fazer tradicional com características homogêneas e se
diferenciam de outros locais de produção;
e) pelo uso do nome do lugar, consagrado pela fabricação do produto com consequência
das características qualitativas do produto;
f) por uma base física e cultural de produção, cartograficamente delimitadas;
g) pela regulação padronizada pelas instituições locais (associações de produtores),
regionais e internacionais;
h) pelo impedimento de outros produtores, não incluídos no território de produção
delimitado, utilizarem o nome da indicação geográfica reconhecida;
i) por contribuir para a conservação do meio ambiente, com o sentido de associar a
produção à ideia de defesa/cuidados com a natureza.
Nesse contexto, a pressão maior está por conta da exploração dos produtores, da
apropriação das suas heranças e permanências, do pagamento dos custos das operações,
os quais devem, em todos os sentidos, se adaptar às novas regras do mercado para serem
integrados à lógica capitalista.
13 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sem a pretensão de propor uma finalização da reflexão sobre as relações entre
indicações geográficas e o seu caráter seletivo, a apropriação do patrimônio material e
imaterial pela lógica do capital, a regulação do território numa perspectiva transescalar,
ainda é necessário aprofundar questões desses territórios normatizados. Portanto, faz-se
necessário um aprofundamento maior dessas questões antes de arriscarmos em
finalizações prematuras.
Dessa forma, devem ser colocadas, preliminarmente, as seguintes questões na tentativa
de buscar responder ao problema proposto:
a) Considerar que existe um entusiasmo das correntes localistas em afirmar que o local
é a instância de preocupação para o desenvolvimento socioeconômico e que o local
pode tudo, tem possibilidades ilimitadas e pode vencer todas as barreiras da
produção, da circulação e da distribuição da mercadoria, confiando apenas na
capacidade empreendedora e nas vontades e iniciativas dos agentes locais, em
articulação com o estado e a iniciativa privada.
b) Considerar que existe um eficiente sistema de regulação transescalar que pressiona
o território produtor a seguir as normas e procedimentos para que as mercadorias
possam circular no mercado;
c) Reconhecer a tendência do aumento do interesse dos países em implantar o sistema
de indicação geográfica como diferencial de competitividade territorial.
d) Considerar mesmo preliminarmente que existe uma agregação de valor dos produtos
da cultura local tradicional diferenciando das commodities, verificado, por exemplo,
no aumento do preço da terra, na elevação da autoestima dos produtores, da
organização social em associações e cooperativas, melhoria da infraestrutura de
produção e dos sistemas de comunicação e transporte;
e) Reconhecer a valorização do patrimônio material e imaterial e, consequentemente,
territorial;
f) Considerar que o marketing territorial é uma ferramenta fundamental na produção e
divulgação da imagem do território a partir dos produtos de origem
Diante do exposto, é fundamental apontar caminhos para um aprofundamento e
continuidade dos estudos sobre o patrimônio material e imaterial, a partir das indicações
geográficas, no sentido de buscar responder e/ou entender o desenvolvimento
socioeconômico local, numa visão de totalidade. Para isso, quatro dimensões devem ser
aprofundadas, numa perspectiva transdisciplinar:
a) Espacial: estudo das modificações espaciais dos territórios locus das indicações
geográficas, o grau de internalização dos centros de comando e decisão e as
respostas dos agentes locais;
b) Econômica: estudo da Economia Política, para melhor entender a agregação de valor
à mercadoria, agora com a condicionante de valorização e visualização dos
protagonistas do saber-fazer;
c) Política: estudo do papel do Estado, das empresas privadas e da sociedade civil no
processo de produção, circulação e distribuição da mercadoria o seu caráter
regulador e de apropriação de valor, respectivamente;
d) Social: estudo das modificações na qualidade de vida dos produtores, na melhoria da
renda, no bem-estar, na participação, no exercício da cidadania, na qualificação
profissional, na educação formal dos produtores e produtoras e de seus filhos e
filhas.
Muito há que se caminhar e devemos entender que a tradição e a criação não se opõem,
mas se unem mutuamente. Há que se desconstruir as alianças predatórias do EstadoNação e as hegemonias do atraso, que beneficiam poucos em detrimento de muitos.
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