ciencias sociales y religión ciências sociais e religião

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ciencias sociales y religión ciências sociais e religião
Año 13
Número 14
Septiembre de 2011
ISSN 1518-4463
ISSN 1982-2650
(eletrônico)
CIENCIAS SOCIALES Y RELIGIÓN
CIÊNCIAS SOCIAIS E RELIGIÃO
Publicación de la Asociación de Cientistas Sociales de la Religión del Mercosur
Publicação da Associação de Cientistas Sociais da Religião do Mercosul
Asociación de Cientistas Sociales de la Religión del Mercosur
Presidente Fortunato Mallimaci (Argentina)
Vice-presidente Ricardo Salas (Chile)
Secretaria General Verónica Giménez Beliveau (Argentina)
Pro-Secretario Emerson Giumbelli (Brasil)
Tesorero Néstor da Costa (Uruguay)
Consejo Directivo
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Pablo Semán (Centro de Investigaciones Etnográficas-UNSAM/CONICET, Argentina)
Pierre Sanchis (Universidade Federal de Minas Gerais , Brasil)
Renzo Pi Hugarte (Universidad de la República, Uruguay)
Ricardo Salas Astrain (Universidad Academia de Humanismo Cristiano, Chile)
Comité Editorial Ejecutivo
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Emerson Giumbelli (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil)
Editor Gerente
Daniel Alves (Universidade Federal de Goiás, Brasil)
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CIENCIAS SOCIALES Y RELIGIÓN
CIÊNCIAS SOCIAIS E RELIGIÃO
Missão – Ciencias Sociales y Religion/ Ciências Sociais e Religião é um periódico
anual, publicado pela Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Seus números divulgam textos científicos inéditos sobre o tema
da religião decorrentes de pesquisas realizadas por seus sócios sobre o campo
religioso nos países da América Latina e/ou sobre a religião de populações de
migrantes latino-americanos em outros continentes.
Ciencias Sociales y Religión /Ciências Sociais e Religião / Asociación de
Cientistas Sociales de la Religión del Mercosur. Año 13, n. 14 (2011). Porto
Alegre: 1999.
ISSN 1518-4463
ISSN 1982-2650 (eletrônico)
Revista semestral
Adquisición: acceso libre
SUMÁRIO
Apresentação
Daniel Alves
Para além da metáfora do mercado:
uma análise não utilitarista da competição
religiosa a partir de duas regiões de Minas Gerais
Paulo Gracino Junior
09
13
O global e o nacional num encontro
evangélico internacional em Buenos Aires
Ari Pedro Oro
43
As aparições de Nossa Senhora em Jacareí:
continuidade e modelagem
Lilian Sales
67
Uma religião em trânsito:
o papel das lideranças brasileiras
na formação de redes espíritas transnacionais
Bernardo Lewgoy
93
O acordo Brasil-Santa Sé e as relações
entre Estado, sociedade e religião
Emerson Giumbelli
119
“Desenhando com terços” no espaço público:
relações entre religião e arte a partir de uma controvérsia
Paola Lins Oliveira
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SUMMARY
Presentation
Daniel Alves
Beyond the metaphor of the Market:
a non-utilitarian analysis of religious
competition from two regions of Minas Gerais
Paulo Gracino Junior
09
13
Concepts of “global” and “national” brought by
an international evangelical meeting in Buenos Aires
Ari Pedro Oro
43
Our Lady’s apparitions in Jacareí:
Continuity and modeling
Lilian Sales
67
A religion in transit:
The role of Brazilian leaders in the
creation of transnational spiritist networks
Bernardo Lewgoy
The agreement between Brazil
and the Holy See and the relations
between state, society and religion
Emerson Giumbelli
“Desenhando com Terços” in public space:
relations between religion and art from a controversy
Paola Lins Oliveira
93
119
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APRESENTAÇÃO
Nas análises produzidas pelos cientistas sociais que se dedicam ao
tema da religião na contemporaneidade, questiona-se, de maneira geral, qual
será seu lugar. Não se confunda essa problemática com outra, sobre o local da
religião, recorrente nos estudos monográficos tradicionais que postulavam
a identidade entre uma localidade, uma língua, uma cultura e uma religião.
Quando se perguntam sobre o lugar da religião, os teóricos e pesquisadores
da área elucubram sobre qual seu papel dentro de configurações societárias
complexas, e também sobre o próprio estatuto do conceito de religião operacionalizado na análise, por vezes considerado demasiado monolítico para
dar conta dos intrincados processos sociais em andamento na atualidade.
Pertencimentos religiosos que atravessam localidades, situações locais
prenhes de identidades religiosas ou nacionais contrastantes e lugares onde
não se esperava que a religião (ainda) estivesse. Ciencias Sociales y Religión/
Ciências Sociais e Religião, revista que atinge com este número sua décima
quarta edição, traz à luz pesquisas e reflexões em torno dessas problemáticas
gerais, embora sejam diversos os temas e objetos abordados nos artigos,
dado que foram submetidos por meio de chamada aberta aos sócios da
Associação dos Cientistas Sociais da Religião no MERCOSUL (ACSRM).
O artigo de Paulo Gracino Júnior apresenta um estudo em profundidade sobre as relações entre religião e identidade social no qual o
autor compara duas regiões do Estado de Minas Gerais, de acordo com
suas composições demográficas religiosas, peculiares no que diz respeito
à distribuição de católicos e pentecostais. Articulando dados quantitativos
e qualitativos numa perspectiva histórica, o autor encontra argumentos
para refutar tendências interpretativas que associam identidade religiosa à
escolha racional. No decorrer do artigo, Gracino Júnior encontra espaço
para discutir questões prementes como a relação entre identidade católica
e pentecostal, e o fenômeno amplamente reconhecido no Brasil, ainda que
talvez pouco aprofundado teoricamente, da dupla pertença religiosa.
Se o artigo de Gracino Júnior apresenta-nos uma comparação de
configurações religiosas em duas localidades, Ari Pedro Oro revela, a partir
de um evento evangélico argentino de escopo internacional direcionado
a pastores e lideranças, tensões simbólicas entre uma visão globalizada da
cristandade pentecostal e as identidades localizadas presentificadas nos
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DANIEL ALVES
cultos pelas bandeiras nacionais. Descreve-se e analisa-se, nesse artigo, a estrutura ritual e características organizacionais do Breakthrough, sediado em
2008 pela igreja argentina Rey de Reyes, e que agrega anualmente, em sua
maior parte, líderes provenientes da América Latina, e em menor medida,
pastores vindos de países africanos, da América do Norte, Europa e Ásia.
Expõe-se no artigo de Oro a biografia dos condutores do evento, no sentido de evidenciar, na formatação biográfica que esses sujeitos fazem de
si mesmos, a mesma tensão entre local e global expressa pelas bandeiras
no Breakthrough, na medida em que se projetam, como ícones do cenário
evangélico-pentecostal argentino, num circuito de pregadores itinerantes
com participações em eventos e cultos pentecostais em todo o mundo.
Esse pentecostalismo globalizado, visto sob uma perspectiva êmica,
compõe-se de uma cena de agentes religiosos que se deslocam de um lugar
a outro, instaurando/restaurando em cada local a mediação entre a comunidade local e a experiência íntima e efusiva do Espírito Santo, através da
pregação e de toques físicos que prometem curas e libertações espirituais.
Lilian Sales, no terceiro artigo que publicamos neste número, explora uma
articulação diferente no que tange aos códigos simbólicos do local e do
global, agora dentro do âmbito do catolicismo. Em cada aparição mariana irrompe um fenômeno coletivo de amplitude considerável na história
do catolicismo, o qual, sem ser a princípio mediado institucionalmente,
estabelece-se em locais para onde os fiéis convergem, visões acontecem,
mensagens são dadas, e marcas desse contato são instauradas na paisagem
agora sacralizada pela presença: fontes, montes e árvores. A despeito da
aparente espontaneidade de seu surgimento, a construção da legitimidade
da aparição segue um padrão vigente desde o Século XIX. Sales denomina
modelagem o processo de convergência das aparições marianas a esse padrão,
observando-o em específico numa localidade do interior de São Paulo.
O que se adapta e o que se atenua quando uma religião irrompe para
fora de uma localidade? Segundo o artigo de Bernardo Lewgoy, o espiritismo brasileiro imprimiu, nos últimos anos, um esforço centralizado de
transformação interna, com vistas a uma presença mais intensa no exterior;
ao mesmo passo, teve de abrir mão da epígrafe Brasil, Pátria do Evangelho.
Simultaneamente, organizou-se uma federação internacional espírita nos
moldes da federação nacional brasileira, dedicada à modelagem das práticas
espíritas em muitos países de acordo com uma abordagem selecionada
com denodo pelos principais propagadores. Esses dois processos conco-
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APRESENTAÇÃO
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mitantes abriram espaço para a circulação internacional de líderes espíritas
brasileiros em direção aos países do Norte e da América Latina, atuando
como palestrantes e conferencistas, num circuito em muito semelhante ao
descrito por Oro a respeito dos pentecostais. Apesar dessa semelhança em
termos da circulação e do prestígio social, deve-se observar que o caso que
Lewgoy inventaria com acuidade aponta para a atuação de líderes como
Divaldo Franco em circuitos não-denominacionais de palestras e conferências, ligados a temas mais amplos associados à psicologização religiosa
propiciada pela Nova Era.
Os dois últimos textos refletem sobre as relações entre o lugar da
religião na contemporaneidade, especialmente no que tange a outros campos
sociais como a política ou a arte. Desde, pelo menos, a promulgação da
Constituição Brasileira de 1988, foram apresentadas nos foros legislativos
federais projetos de lei que procuravam regular a liberdade de culto, o uso
de símbolos religiosos e o estatuto jurídico das organizações ou associações
religiosas. Emerson Giumbelli analisa o texto do acordo Brasil-Vaticano,
estabelecido por decreto-lei, em vigência desde 2010 e considerado pelos
seus proponentes como uma “consolidação” de uma relação já dada entre
Estado e Igreja Católica Apostólica Romana. Assim, o autor desenvolve
uma análise retrospectiva das iniciativas legislativas em relação à regulação
religiosa, perguntando-se sobre o que havia de efetivo que ainda não tinha
sido “consolidado”, no intuito de vislumbrar, por meio da análise de tais
“segredos públicos”, definições sociais acerca da religião em vigência na
sociedade. Traçam-se ainda comparações interessantes, por exemplo, com
as polêmicas acerca dos símbolos religiosos em repartições públicas e os
livros didáticos de ensino religioso.
A arte moderna, pelo menos desde os ready-made de Marcel Duchamp,
desenvolveu uma certa ironia iconoclástica caracterizada pelo deslocamento
de imagens para fora dos entornos que comumente lhes oferecem sentido,
para induzir o espectador a lançar outro olhar sobre o mundo e sobre sua
própria maneira de pensar. O que pode acontecer quando a imagem deslocada numa obra remete a um símbolo religioso? Paola Lins Oliveira, por
meio de um estudo de caso acerca de uma exposição no Rio de Janeiro,
rastreia linhas de conflito discursivas em torno a uma polêmica oriunda da
(des)apreciação de uma obra de arte de autoria de Márcia X., que deslocava
objetos cultuais católicos (terços) para o terreno da erótica. Envolvendo
ativistas religiosos, artistas e intelectuais, deflagrada na mídia impressa nas
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DANIEL ALVES
redes sociais eletrônicas, a controversia gerada e a ação determinada de
políticos apoiados pela Igreja Católica acarretaram a retirada da obra da
mostra. A autora ainda compara essa polêmica religiosa a outras, como as
charges do profeta Maomé, o “chute na santa” do pastor Von Helde e a
publicação de “Versos Satânicos” de Salmon Rushdie. Configurações sociais
e consequências diversas para uma mesma situação, na qual a liberdade de
expressão artística choca-se com formas de controle dos símbolos operada
por instituições ou ativistas religiosos. Desta forma, limites entre campos
sociais que a modernidade fez acreditar isolados tornam-se zonas de polêmica e disputa simbólicas na contemporaneidade.
Daniel Alves
Editor-Gerente
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PARA ALÉM DA METÁFORA DO MERCADO:
UMA ANÁLISE NÃO UTILITARISTA
DA COMPETIÇÃO RELIGIOSA
A PARTIR DE DUAS REGIÕES
DE MINAS GERAIS
Paulo Gracino Junior
Universidade de Vila Velha 1
Resumo: Este trabalho analisa a diversidade religiosa brasileira a partir das estratégias que suas diversas denominações empreendem para se adaptar às demandas
sócio-culturais da sociedade contemporânea. Diversamente do que é postulado
por alguns teóricos nos anos recentes, que adotam interpretações ligadas à escolha racional, não acreditamos que as análises de custo-benefício dêem conta do
fenômeno religioso. Pensamos que o processo de diversificação religioso brasileiro
guarda estreita relação com as mudanças vividas pela sociedade nos últimos cinqüenta anos, bem como com as respostas dadas pelas instituições religiosas a esse
novo contexto. Nesse sentido, acreditamos que a estrutura leve e menos burocrática
das igrejas pentecostais consegue se adaptar melhor à liquidez dos tempos atuais,
respondendo de forma mais imediata à diversidade de demandas das populações
em questão. Atentaremos ainda para as respostas que o catolicismo tem dado ao
crescimento evangélico, bem como às articulações entre ethos pentecostal e culturas
locais. Tomamos como foco central de nossas atenções duas regiões do estado de
Minas Gerais, Brasil, uma refratária ao pentecostalismo e outra em que o mesmo
encontra significativa acolhida.
Palavras-chave: mercado religioso; Minas Gerais; pentecostalismo; cultura local
Abstract: This paper analyzes the Brazilian religious diversity from the strategies
that they undertake their various denominations to suit the socio-cultural demands
of contemporary society. Unlike what is postulated by some theorists in recent
years, adopting interpretations related to rational choice, do not believe that the
cost-benefit of showing the religious phenomenon. We believe that the process
of diversifying the Brazilian religious closely related to the changes experienced by
society in the last fifty years, and answers provided by religious institutions in this
new context. We therefore believe that the structure lighter and less bureaucratic
the Pentecostal churches can adapt better to the liquidity of the times, responding
to more immediate demands of the diversity of the populations concerned, paying
attention to the answers that Catholicism has given the evangelical growth, as well
as the joints between Pentecostal ethos and cultures. We take as the central focus
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PAULO GRACINO JUNIOR
of our attention two regions of the state of Minas Gerais, Brazil, a refractory to
Pentecostalism and another in which it is significantly rejected.
Keywords: religious market; Minas Gerais; Pentecostalism; local culture
1. Introdução
Neste artigo, discutiremos os principais indicadores da diversidade
religiosa no território de Minas Gerais, em especial os números que se referem à diversificação institucional religiosa levada a cabo pelo crescimento
do pentecostalismo protestante, bem como as áreas em que o catolicismo
se mostra resistente. Neste sentido, avaliaremos as principais interseções
entre a expansão do pentecostalismo protestante e as culturas locais que
são alvo de sua ação evangelizadora. Mais especificamente, pretendemos
demonstrar, a partir dos números apresentados pelo Instituto de Geografia
e Estatística (IBGE) e de alguns trabalhos de campo, de que forma certas
conformações culturais mostram-se extremamente refratárias à implantação e limitam o crescimento das igrejas pentecostais. Nesse sentido, o que
objetivamos analisar neste artigo são justamente os motivos do crescimento
desigual do pentecostalismo, através de duas regiões do estado de Minas
Gerais, que se apresentam como verdadeiros antípodas neste quesito.
A interação entre fluxos religiosos e culturas locais enquanto evento
não constitui fato singular, na medida em que acompanha a história da
humanidade desde o seu alvorecer. São profusos os relatos históricos que
narram conflitos, assimilações, hibridações e invenções de idéias religiosas,
motivadas pelo contato entre povos e culturas diversas, do confucionismo
ao islamismo. Talvez a mais clássica das narrativas seja a da expansão do
cristianismo, em especial do catolicismo que, na esteira das conquistas do
Império Romano e posteriormente das Grandes Navegações, conseguiu
expandir para o mundo seu projeto de uma ética universal, promovendo
um dos primeiros processos do que poderíamos chamar globalização, ao
ser veículo da padronização de crenças, costumes e língua (Cf. Robertson,
1993 e 1999; Mariz e Theije, 2008). Este caráter universalizante da cultura
judaico-cristã tornou-se ponto nodal para um dos paradigmas basilares da
Sociologia, que vê afinidade entre a racionalização ocidental e a difusão
do cristianismo, principalmente em sua vertente protestante pietista (Cf.
Weber, 2004).
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Nesse sentido, o fato de algumas regiões resistirem à penetração das
igrejas pentecostais e até mesmo mostrarem-se hostis às suas investidas e
presença não deixa de ser um fato sociológico bastante invulgar, porém
sistematicamente negligenciado pela literatura sócio-antropológica, que
prefere se debruçar sobre os seus efeitos solventes e destradicionalizantes
da cultura (Cf. Martin, 2001, Pierucci, 2006).2 Fato inteiramente justificável,
principalmente se levarmos em conta que o movimento pentecostal tem
convertido milhões de pessoas ao redor do mundo, da China à África, passando pela secular Europa. Com mais de meio bilhão de adeptos, segundo
estimativas mais positivas,3 o pentecostalismo é, junto com o Islã, um dos
responsáveis diretos pela virada teórica das últimas décadas nos estudos
sobre a religião.
Diante deste quadro, diversos programas teóricos têm sido sugeridos para equacionar tal realidade, em sua maioria contendo propostas que
relativizam ou julgam obsoletas as contribuições clássicas da sociologia.
Dentre elas, nenhuma chama mais a atenção do que o projeto alcunhado
de “paradigma da escolha racional em religião”, em especial por propor um
salto para fora da teoria sociológica de entendimento da religião e buscar na
Economia seus principais fundamentos. De forma diversa, neste trabalho
defender-se-á que processos histórico-estruturais influenciam a demanda
por religião e que a produção e principalmente o consumo dos bens religiosos estão imersos nas relações sociais face-a-face. Desta maneira, não
acreditamos serem as regulações estatais a principal variável quando se
trata de diversidade religiosa. Outrossim, pensamos que este papel cabe às
relações societais, que limitam e regulam o trânsito dos indivíduos entre as
denominações religiosas.
Ainda que o cerne de nosso argumento resida em mostrar como
elementos sócio-culturais atuam como reguladores do trânsito religioso,
vinculando o sucesso numérico das agências religiosas à sua capacidade de
mobilizar as demandas locais, não é nosso objetivo reduzir o trânsito religioso única e exclusivamente a variáveis tributárias do estrutural-funcionalismo.
Ao contrário, chamamos a atenção para a paulatina subjetivação nas escolhas
e elaborações das formas religiosas, sem, contudo, acreditar que consistem
em escolhas baseadas em decisões puramente “racionais” de um indivíduo
subsocializado (Granovetter, 2007) – o que, neste caso, significa buscar a
satisfação de um interesse próprio ao menor custo possível.
Ao contrário, acreditamos que as escolhas religiosas são permeadas
por muito mais que a busca por interesses individuais, imbricadas, muitas
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PAULO GRACINO JUNIOR
vezes, nas densas relações sociais, constituindo-se como lugares privilegiados para se pensar não só processos de destradicionalização, mas as novas
formas de vínculos sociais na atualidade.
De nossa parte, compreendemos o processo de pluralização religiosa
como um processo duplo, pois, se por um lado, as religiões se organizam
para corresponder às demandas efetivas de seus fiéis, por outro, a racionalização instrumental corrói o sentido das grandes narrativas, tornando
aguda a subjetivação, e franqueando ao indivíduo a possibilidade de pertença a uma variedade de grupos identitários que nem mesmo precisam
guardar coerência entre si. Dito de outra forma, a crise que se abateu sobre
as instituições produtoras de sentido (entre elas as religiosas), reflexo da
racionalização e independência das esferas sociais, tornou factível para o
indivíduo filiar-se fortemente a um grupo, pertencer frouxamente a vários,
ou mesmo não se engajar em nenhum.
Como veremos mais adiante, acreditamos que a pluralização das
formas de pertença religiosa na sociedade brasileira contemporânea guarda
intensa relação com o processo de destradicionalização por ela vivido, bem
como seus matizes em cada região do Brasil. Afinal, se olharmos a literatura sócio-antropológica, vemos que o que chamamos genericamente de
modernização é um processo descontínuo e heterogêneo, que suscita respostas diversas por parte das populações a ela submetidas (ver, entre outros:
Sahlins, 1997; Hannerz, 1997; Canclini, 2003 e Berger & Huntington, 2004).
Assim, focaremos tanto as estratégias das quais as instituições religiosas lançam mão para mobilizar as demandas de seu público alvo, quanto
o ambiente sócio-cultural no qual estas instituições e indivíduos estão inscritos. Nesse sentido, avaliaremos os reguladores locais que interferem nas
escolhas dos indivíduos, bem como os entraves institucionais que limitam a
flexibilização dos conteúdos teológicos, em busca de adaptação às demandas.
Ao contrário do que fizeram a maioria dos trabalhos anteriores, neste
trabalho não se pergunta somente por que crescem os pentecostais, mas,
antes, por que crescem os pentecostais em determinadas regiões, ao passo
que os católicos se mantêm fortes em outras. Nessa perspectiva, elegemos
duas regiões mineiras como modelos exemplares para nossas hipóteses: a
região da Zona da Mata Norte e Campos das Vertentes, em que os pentecostais não atingem 5% do total da população, e o Vale do Aço, no qual
ultrapassam a casa dos 22%.
Antes de prosseguir em nossa argumentação, convém dissertar brevemente sobre o percurso metodológico seguido neste trabalho. Neste sentido,
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o caminho que seguimos até aqui nos leva a um duplo viés metodológico:
de um lado, baseado em dados quantitativos, provenientes, principalmente,
dos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e; de
outro, de caráter qualitativo, centrado, sobretudo, em depoimentos orais
(Entrevistas Temáticas), análise de textos de jornais e revistas.
Através desse duplo expediente de pesquisa, procuramos: 1. Traçar
uma visão panorâmica do campo religioso atual mineiro, o que foi possível
através dos dados do IBGE; 2. Reconstruir o contexto histórico-religioso
típico de algumas regiões mineiras – que, como veremos à frente, sustentará uma de nossas hipóteses; 3. Balizar as formas como elementos desse
passado histórico-religioso e de presente crivado de elementos extra-locais
se condensam nas falas dos indivíduos. Neste ponto, podemos dizer que
as entrevistas foram cruciais para compreensão do contexto ora estudado,
uma vez que emanam dos depoimentos dos indivíduos pesquisados relatos
de conversões morosas, processos de ressignificação, negociações entre
fiel e instituição religiosa, bem como o peso exercido pela cultura local nas
condutas dos indivíduos em sua vida quotidiana.
Recorremos a entrevistas temáticas, utilizando questões pré-estabelecidas. Este procedimento permitiu que a narrativa se ativesse à temática
central e os detalhes da vida pessoal do entrevistado fossem considerados
à medida que se vinculavam ao assunto proposto pelo pesquisador. A
técnica do gravador utilizada possibilita captar adequadamente o discurso
do informante e/ou seu diálogo com o pesquisador. Essa metodologia,
comumente chamada pelos cientistas sociais e historiadores de “história
oral”, foi o locus privilegiado para obtenção de respostas plausíveis a nosso
objeto de estudo. Lembrando o que nos diz Regina Novaes (1998), cada
pesquisa em religião permite que nos aproximemos de certas dimensões
de uma mesma e complexa realidade social.
Desta forma, tomamos a história oral como uma metodologia capaz
de acessar alguns sentidos da realidade social que abarca nosso estudo,
proporcionando elementos para compreender as maneiras como as pessoas
recordam e ressignificam suas memórias.
A partir da experiência de campo, procuramos focar nossas atenções
nos seguintes grupos:
•Indivíduos cujas histórias de conversão se ligam a processos morosos, que se arrastaram por longos períodos de tempo e envolvem tensões
entre congregação evangélica pentecostal e núcleo familiar;
•Pessoas cujas conversões foram fracassadas, resultando no abanCiencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 13-41, setembro de 2011.
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dono das denominações pentecostais alguns anos após sua conversão;
•Relatos de conversões que envolvem processos de negociação entre
indivíduo e denominação evangélica;
•Pastores que flexibilizaram as doutrinas de suas denominações na
tentativa de diminuir o conflito com o ethos familiar e local;
•Depoimentos de clérigos e leigos católicos, no intuito de mapear
a percepção destes a respeito do ethos local. Este grupo de entrevistados
ainda nos possibilita observar a reação católica à presença pentecostal, bem
como, as possíveis estratégias para conter seu crescimento.
Esse último grupo de entrevistados ainda nos possibilita observar a
reação católica à presença pentecostal, bem como as possíveis estratégias
para conter seu crescimento.
Faz-se imperativo ressaltar que, em um trabalho dessa envergadura,
não é nosso objetivo esgotar as possibilidades de análise que o material
empírico levantado nos enseja. Pretendemos tão somente balizar as questões que serão tratadas nesta e em outras oportunidades. Contudo, antes de
abordarmos o caso da resistência mineira ao pentecostalismo, passaremos
em revista rapidamente algumas interpretações do crescimento pentecostal
no Brasil.
2. Ofertas e Demandas
Ainda no ano de 2001, propus um trabalho que visava pesquisar as
estratégias de inserção pentecostal na cidade mineira de Mariana, bastante
conhecida por sua tradição católica. Naquele trabalho, tentava estabelecer
a relação entre a estrutura organizacional pentecostal e o acoplamento de
alguns elementos da cultura local, que possibilitavam a interlocução entre a
cosmovisão pentecostal e a variante autóctone do catolicismo, tal como já
propuseram, de perspectivas diferentes, autores como Rolim (1995), Segato
(1991) e Mariz (1997).
Percebi, à medida que o trabalho avançava, que as adesões ao pentecostalismo eram bastante complexas e matizadas, distanciando-se muitas
vezes das clássicas análises sobre conversão enquanto uma ruptura drástica
com o ethos individual e grupal. Na verdade, a cada entrevista, percebia
o quão havia sido difícil o processo de conversão e em que medida foi
preciso uma negociação entre indivíduo e instituição para que o mesmo
ocorresse e perdurasse.
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Durante as entrevistas, foram comuns histórias como a de Dona
Marcelina, que, mesmo depois de convertida à Assembléia de Deus, ainda
mantinha em sua casa várias imagens e quadros de santos, que eram cobertas
com um lençol durante os cultos que eram ali realizados. Contabilizamos
ainda uma série de outros relatos de pessoas que freqüentaram as denominações pentecostais durante anos, sem, no entanto, aderir formalmente a elas
através do batismo. Porém, nenhum relato nos chamou mais a atenção que
o do senhor Adauto, que trabalhava como “santeiro”: convertido à Assembléia de Deus, ele mantinha um ingrato dilema de permanecer no credo e
perder seus fregueses – na maioria das vezes paróquias da região – ou abrir
mão da nova pertença religiosa em prol do seu sustento e de sua família.
Antes tinha pastor que proibia a gente de pegar nas imagem de escultura, e
ficava muito difícil... a bíblia dizendo que tava errado, a gente ali tendo que
trabalhar, então ficava difícil. A gente não sabia fazer outra coisa!(...) Eu
pensava assim, é pra ganhar o pão de cada dia, Jesus há de me perdoar, e ia
trabalhando, ganhado meu dinheirinho. Num adorava image não, fazia como
fazia com uma mesa, uma cadeira, nem ligava. Só o pastor num pudia saber,
se não tomava advertência na igreja (...) isso atrapalhava, a gente ficava com
aquele dilema dentro do coração.4
Adauto não era o único a enfrentar tal dilema: uma série de membros
antigos e neófitos das igrejas pentecostais da cidade de Mariana partilhava
de uma história de vida um tanto similar. Instalados em uma cidade que
se faz lembrar católica em cada esquina e monumento, onde os principais
empregadores de mão de obra são a indústria mineradora e o turismo
histórico – estreitamente ligado ao catolicismo – não lhes restava muita
alternativa: escolher entre o trabalho, a sociabilidade familiar e a freqüência
a uma igreja pentecostal.
Nesse sentido, não constituiu surpresa quando o Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou dados do Censo de 2000, mostrando
que a ampla maioria das cidades do interior mineiro era extremamente refratária à mensagem pentecostal. Parte significativa da população de regiões
importantes do ponto de vista econômico e populacional, como as regiões
da Zona da Mata e Campos das Vertentes, mostram-se reticentes quanto a
deixar o catolicismo e migrar para o pentecostalismo.
Um exame mais criterioso do mapa religioso brasileiro (Jacob, 2006),
no entanto, revela que, a despeito da significativa diversificação religiosa
das últimas décadas, essas regiões mineiras não se fazem exceção quanto
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 13-41, setembro de 2011.
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à resistência ao crescimento pentecostal. Embora os pentecostais atinjam percentual importante do conjunto da população em alguns estados
(Rondônia, 17,97%; Espírito Santo, 14,05% e Rio de Janeiro, 13,72%),
mostram-se pouco representativos em outros, ficando bem abaixo da média
nacional em estados do Nordeste. Nos estados de Sergipe e Piauí, os que
apresentam o menor número de pentecostais, o percentual não atinge 5%
do total da população.
Se dissecarmos ainda mais esses dados, perceberemos que o pentecostalismo tem avançado de forma mais contundente em regiões receptoras
de população migrante, enquanto nas regiões doadoras desse contingente
populacional o catolicismo ainda se faz forte. Estudos recentes mostram
que, mesmo em regiões metropolitanas com altos índices de pessoas que
se declaram pentecostais, sua distribuição não é homogênea por todo o
território (Jacob, 2006). Na região metropolitana do Rio de Janeiro, por
exemplo, vemos que os pentecostais se concentram mais nos municípios da
Baixada Fluminense (17,1%) que na capital (11,3%): existem nichos quase
impenetráveis aos pentecostais, como as regiões da Barra da Tijuca, Zona Sul
e Central, onde eles oscilam entre 0,7 e 5,6 %, enquanto nos municípios da
Baixada Fluminense, como Belford Roxo, Nova Iguaçu e Duque de Caxias,
os que se declaram pentecostais podem chegar a 30% da população (Ver
Jacob, 2006, p. 147-148).
Fixando-nos ainda nos dados fornecidos por Jacob (2006), vemos
que mesmo a distribuição das diversas denominações pentecostais não
é coincidente dentro do território. Observando regiões metropolitanas
como Belo Horizonte, São Paulo, Salvador ou Rio de Janeiro, podemos
notar um interessante padrão na forma como os pentecostais se distribuem
territorialmente, pois, enquanto a Assembléia de Deus ocupa a região da
“periferia distante”, a Igreja Universal do Reino de Deus angaria a maior
parte de seus adeptos na “periferia próxima”. Continuando com o exemplo
da região metropolitana do Rio de Janeiro, vemos que, enquanto a Igreja
Universal (IURD) se concentra em bairros da Zona Norte e Oeste, chegando
a atingir 7,4% da população, a Assembléia de Deus tem seu crescimento
mais significativo nos bairros distantes da Baixada Fluminense, nos quais
chega a 18,8% (Jacob, 2006).
Diante deste quadro, podemos nos perguntar: o que faz com que
algumas regiões sejam tão receptivas à mensagem pentecostal, ao passo que
outras se mostram inteiramente inóspitas à sua presença? Por que algumas
denominações adaptam-se melhor a certos contextos e não a outros?
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 13-41, setembro de 2011.
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Existiria uma realmente uma afinidade entre os estratos sociais menos
privilegiados economicamente e a mensagem pentecostal?
Como qualquer empreendimento humano, a ciência parece ser fruto
tanto do tempo histórico em que está inserido o pesquisador, quanto dos
achados empíricos sobre os quais erguem seus paradigmas, não sendo diferente com as ciências sociais e, portanto, com as teorias que se ocuparam
do fenômeno religioso. Nesses mais de quarenta anos que nos separam da
primeira tentativa de compreender a dinâmica de crescimento evangélico
pentecostal no Brasil – empreendida por Emilio Willems (1967)5 – foram
propostas várias fórmulas para responder às indagações acima, que, igualmente, traziam gravadas sobre si a inscrição do tempo em que foram postuladas. Genericamente, já que vamos nos ocupar delas detidamente mais
à frente, destacamos duas: a primeira vertente teórica, fruto de um período
histórico em que os intelectuais estavam preocupados em ver o Brasil livre
das rédeas que o prendiam ao tradicionalismo e, conseqüentemente, ao
subdesenvolvimento, via o pentecostalismo como uma espécie de adaptação das massas recém migradas aos novos contextos urbanos (Ver, entre
outros: Souza, 1969 e Camargo, 1973). Já a segunda vertente, inspirada nas
análises de sociólogos americanos que aplicam a teoria da rational choice ao
fenômeno religioso (Stark e Bainbridge, 1985 e Stark e Iannaccone 1992),
vê este campo enquanto um mercado, em que firmas religiosas entram em
disputa para oferecer um produto cada vez mais atraente a um consumidor
ávido por maximizar seus ganhos ao menor custo possível (Ver: Chesnut,
1997 e 2003; Guerra, 1999 e Mariano, 2001).
Olhando de forma retrospectiva, podemos dizer que ambas as análises conseguem dar conta, mesmo que de forma perspectiva, das realidades
às quais se dirigem. Nenhum pesquisador duvidaria hoje da estreita relação
entre migração e adesão religiosa pentecostal, embora possa não colocar
essa variável enquanto central para seu estudo, como o fizeram os pesquisadores da década de 1970. Da mesma forma, quase nenhum estudioso,
mesmo aqueles que negam completamente os pressupostos da teoria do
“mercado religioso”, passa ao largo da competitividade que se estabeleceu
entre as agências religiosas, bem como ao caráter crescente da subjetividade
na escolha e composição da religiosidade individual, como tem mostrado
uma série de estudos antropológicos (Duarte, 2005 e 2006; Gomes, 2006;
Gomes e Natividade, 2006).
Nesse sentido, acreditamos ser possível avançar em territórios intocados, revisitar e/ou reconsiderar algumas análises que foram propostas
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para o aumento da diversidade religiosa no Brasil. Parece-nos plausível,
por exemplo, considerar a religião como uma importante forma de vínculo
social, contribuindo para a formação tanto de macro-identidades, tanto
quanto para a constituição de pequenos grupos comunitários, como o fazem
Hervieu-Léger (2005a e 2005b), Bruce (2000 e 2006) e Pace (2006). Ou,
ainda, considerá-la como um dos depositários privilegiados de certezas axiológicas e ontológicas da sociedade, como em Luhmann (2007), para quem
a religião é capaz de transformar a indeterminação gerada pela incessante
especialização social em possibilidades determinadas e determináveis, através da interpretação do mundo e da produção de generalizações simbólicas.
Enfim, o que queremos dizer aqui é que com a relativização das
grandes narrativas sobre as quais erguíamos nossas identidades, enquanto
Ocidente, nação, classe ou indivíduo, abriu-se um espaço novo, do qual
emergiram tanto formas identitárias recalcadas em outras épocas quanto
configurações de pertença social inteiramente novas. Nesse contexto,
instituições dos mais diversos matizes, entre elas – é claro – as religiosas,
enfrentam-se para suprir, de forma mais eficiente, as demandas de uma
sociedade cada vez mais plural. Não se trata de uma re-acomodação definitiva, uma eliminação do caráter anômico da sociedade, como nas clássicas
teses dos anos de 1970, mas, ao contrário, de um rearranjo constante das
estruturas teológicas, rituais e organizacionais dessas instituições, no intuito de atender à diversidade de demandas colocadas pelos diversos grupos
sociais, trabalho facilitado – no caso do pentecostalismo – pelo apego à
exegese pessoal da bíblia.
A hegemonia católica está ameaçada, isto parece certo. Mas, em seu
lugar, não surge – e dificilmente surgirá – outra instituição, religiosa ou não,
capaz de unificar a diversidade de demandas sócio-culturais da sociedade
contemporânea. Por outro lado, pululam formas de organização institucional que visam atender aos interesses específicos de grupos pontuais. Várias
denominações pentecostais – com destaque para a Assembléia de Deus,
maior igreja pentecostal do país – têm sido capazes de arrebanhar uma
boa parte dessa miríade de símbolos e interesses. Mas nada impede que a
própria Igreja Católica ocupe esses espaços, como já vem fazendo através
da diversificação do seu discurso por meio das comunidades leigas, sejam
as Comunidades Eclesiais de Base ou a própria Renovação Carismática
Católica (ver, por exemplo: Mainwaring, 1989; Beyer, 1989 e 1999).
Entretanto, um olhar mais atento sobre a história das religiões e
nas clássicas teses sociológicas da produção e rotinização dos conteúdos
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religiosos mostra-nos que as instituições religiosas não podem flexibilizar
seus conteúdos teológicos ad infinitum, sob o risco de verem suas fronteiras
diluídas. Neste caso, o objetivo inicial da instituição religiosa, que era abarcar um número cada vez maior de fiéis, acaba por gerar uma ambigüidade
que fomenta o trânsito religioso, como bem observaram em seus trabalhos
(Machado e Mariz, 1997 e Steil, 2004; entre outros). Por esse turno, parece-nos claro que a Igreja Católica, por conta de sua organização institucional
dogmática e hierárquica, ou o que Willaime chama de “modelo institucional
ritualista” (1992), tende a encontrar mais dificuldade de acomodar novas
crenças e valores dentro de seu cabedal discursivo que as igrejas pentecostais.
De posse desses argumentos, podemos voltar nossas atenções novamente para os dados sobre a diversidade religiosa, em especial para a
distribuição das instituições religiosas dentro do território brasileiro. Assim,
vemos que, enquanto a Igreja Católica mantém sua hegemonia nos territórios menos dinâmicos – do ponto de vista das transformações culturais,
industriais e deslocamento populacional – os pentecostais têm seu maior
crescimento nas grandes regiões metropolitanas, principalmente em sua
periferia. Esse panorama sugere-nos que as denominações religiosas conseguem maior êxito quando dispõem de um aparato institucional-litúrgico
mais próximo às demandas das populações às quais se dirigem, conseguindo operar a tradução desses anseios para dentro do discurso religioso
que detêm. Seguindo esse raciocínio, podemos compreender o porquê
da “Teologia da Prosperidade” da IURD fazer pouco eco aos ouvidos da
população que vive em condições subumanas na Baixada Fluminense, ao
passo que a “classe média” não se sente atraída pela doutrina de conotação
fortemente moral da Assembléia de Deus (ver Jacob, 2006).
Nesse mesmo sentido, vemos que o catolicismo parece ter mais êxito
em mobilizar as demandas sócio-religiosas nas regiões com baixa dinâmica
demográfica e sócio-cultural, em que o “fio da memória” (Hervieu-Léger,
2005b) entre o grupo social e o catolicismo não foi rompido ou pode ser
restaurado. Como pretendemos deixar claro mais adiante, o corpo de oficiais católicos tenta mobilizar essa “memória religiosa”, fazendo coincidir
o passado da localidade com um passado católico. Esse parece ser o caso
de regiões como o Norte do Rio Grande do Sul e Sul de Santa Catarina,
em que o catolicismo liga-se estritamente à migração italiana para a região
(Oro, 1996), e do interior do Nordeste, no qual o catolicismo popular é
bastante forte, principalmente nas regiões circunvizinhas aos centros de
peregrinação, como Juazeiro do Norte e Bom Jesus da Lapa – como é
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bem demonstrado pelos trabalhos de Steil (1996) e Barros (2008) [1988].
3. Católicos versus pentecostais:
a análise de dois casos paradigmáticos
É justamente por se apresentarem como exemplos paradigmáticos,
quase tipos ideais dos cenários descritos acima, que duas regiões mineiras
nos chamaram a atenção. A Zona da Mata Norte e Campos das Vertentes
mostram-se extremamente reticentes ao crescimento pentecostal – com
números que não atingem a casa dos 5% – enquanto a região do Vale do
Aço apresenta um crescimento surpreendente, mesmo para os padrões
brasileiros, com a cifra de 22,71%.
Tanto Zona da Mata Norte quanto Campos das Vertentes são regiões de ocupação mais antiga do território do Estado de Minas Gerais e
englobam as chamadas “cidades históricas” mineiras, que fizeram parte do
primeiro núcleo de povoamento do estado ainda no século XVII. Figuram
entre as principais cidades dessas regiões Ouro Preto, Mariana, Viçosa (Zona
da Mata Norte), Barbacena e São João Del Rei (Campos das Vertentes).
É interessante observar ainda que a maior parte das cidades acima – exceção feita a São João Del Rei – está sob a jurisdição eclesiástica católica do
Arcebispado de Mariana e, portanto, sentirão pari passu as mudanças de
orientação da arquidiocese.
Não nos cabe, nesse momento, reconstruir toda a história eclesiástica
da Arquidiocese de Mariana, que conta com mais de dois séculos. Por ora,
vale apenas lembrar que esse arcebispado tem um percurso sui generis se
comparado à maioria das prelazias do Brasil. Olhando a trajetória do Arcebispado, vemos que a relação entre os prelados da Sé de Mariana e o laicado
nunca foi das mais amenas, sendo extremamente farta a documentação
que trata de algum litígio entre as instituições laicas – irmandades, ordens
terceiras, ainda ativas na Arquidiocese de Mariana – e algum arcebispo ou
pároco. De fato, a arquidiocese viveu nos anos recentes um período extremamente conservador, em que a política arquidiocesana se voltava para
tornar o catolicismo menos brasileiro e mais romano. Pode-se dizer que, de
D. Antônio Pereira Viçoso (1844-1896) a D. Oscar de Oliveira (1960-1988),
a arquidiocese de Mariana seguiu os passos da romanização. A diversidade
nas práticas religiosas dentro do catolicismo foi combatida a ferro e a fogo.
Nem mesmo os ventos democratizantes do Concílio do Vaticano II peneCiencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 13-41, setembro de 2011.
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traram na sólida muralha formada por uma prelazia “conservadora”, de um
lado, e, de outro, por parte do laicato, ligado às irmandades, acostumado a
um catolicismo extremamente ritualístico e externalista.
No final da década de 1980 (1988), deixa o trono arquiepiscopal Dom
Oscar, passando seu lugar para D. Luciano Mendes, então presidente da
CNBB, cargo que exerceu durante o período de 1987 a 1995. A chegada do
novo Arcebispo representou uma mudança significativa na orientação da
arquidiocese: depois de trinta e oito anos tendo como prelado D. Oscar, a
arquidiocese passou a experimentar o governo de um arcebispo de aspirações “progressistas”. É interessante notar que, como observamos acima,
ao contrário de outras dioceses mineiras, só em 1988 Mariana vai sentir os
ventos da chamada igreja progressista.
No entanto, o contexto de rearranjo da cena político-ideológica6 e
o avanço pentecostal irão fazer com que o novo arcebispo e parte do clero
progressista tenham que barganhar tanto com os potentados locais, quanto
com os remanescentes do clero conservador, ainda ocupando cargos de
prestígio na hierarquia da arquidiocese.
Em consonância com o que já vinha fazendo a Sé Romana através do
“papa peregrino” (Hervieu-Léger, 2005b), Dom Luciano teve a missão de
reconhecer a diversidade do catolicismo local e mobilizá-la. Não se tratava
somente de tolerar as variantes católicas, ou, ao contrário, combatê-las, ou,
ainda, simplesmente, ignorá-las: é preciso apreciá-las positivamente como
partes constitutivas da Igreja, diferentemente de seus antecessores, que
trabalhavam em um contexto onde o “adjetivo católico” funcionava como
um “guarda-chuva identitário” sob o qual se abrigava uma significativa
heterogeneidade crenças e ritos.
Nesse sentido, o que se assiste na década de 1990 é uma pluralização
do papel da Igreja Católica dentro da arquidiocese, na tentativa de mobilizar
as demandas locais – sejam elas espirituais ou não – e traduzi-las para o
discurso católico. Se o bispo anterior era conhecido por seu paroquialismo,
sendo encontrado facilmente em batizados, casamentos e enterros da sociedade marianense, Dom Luciano foi, muitas vezes, tomado sob a alcunha
de bispo ausente, que passava boa parte do seu bispado percorrendo as
paróquias da arquidiocese, sem dar a devida atenção à Sé de Mariana.
No entanto, nesse novo contexto com o qual se defronta a Igreja
Católica, em que os “subsistemas sociais” – nas palavras de Luhmann (2007)
– vão ganhando autonomia e, conseqüentemente, perdendo sua importância
para o todo da população,7 é necessário tentar restaurar a influência pública
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da religião, traduzindo em discurso teológico problemas gerados e não resolvidos em outros subsistemas. É justamente nesse sentido que caminhou
a Sé de Mariana, tentando “acoplar” (Luhmann, 1998) demandas surgidas
em esferas não necessariamente religiosas.
Olhando mais uma vez para o passado da região na qual se inscreve
o Arcebispado de Mariana, podemos dizer que a tarefa da Igreja Católica
nesse ambiente foi extremamente facilitada pela trajetória histórico-cultural
desse pedaço das Minas Gerais. Incrustada em meio a montanhas, assolada
por sucessivos surtos minerais desde o século XVII, que ora traziam e ora
levavam os que vinham apenas em busca de uma vida melhor, a região
viu-se estagnada definitivamente nas últimas décadas do século XIX, com
a transferência da capital da então província de Minas Gerais para a cidade
de Belo Horizonte. Andando pelos pequenos municípios, não é difícil perceber in loco a realidade que a Fundação João Pinheiro (1995, 2000) traduz
em números. Nestas regiões, boa parte da população das cidades vive da
pequena agricultura e do setor de serviços – quase sempre prestado a algum
órgão público –, exceção feita a uma pequena fatia da mão-de-obra alocada
em uma insipiente indústria siderúrgica ou nas mineradoras extrativista de
minério de ferro. Somado a isso, em várias cidades, a queda na produção
industrial, com o fechamento de várias unidades produtivas ou diminuição
da mão-de-obra, empurrou uma leva considerável de trabalhadores para
o setor terciário, setor de serviços. Na chamada “região do ouro”, por
exemplo, o fechamento de postos de trabalho em virtude da diminuição
da produção de minério de ferro, ou da “reestruturação produtiva”, levou
uma gama de trabalhadores, ex-operários das minas, a buscar seu sustento
no comércio, principalmente ligado ao turismo histórico. Temos ainda o
dos ex-agricultores, que viviam e vivem em pequenos distritos de cidades
históricas, como Mariana e Ouro Preto, que, pressionados pela ausência
de incentivos para produção agrícola e atraídos pelo crescente comércio
de bens artesanais, abandonaram a prática agrícola e passaram a produção
e a comercialização desses produtos.
Assim, a partir de meados da década de 1990, essa região, principalmente as cidades inscritas no “circuito histórico”, vai viver novo alento
econômico com a implementação de uma série de políticas voltadas para
comercialização de “bens culturais”. Esse novo contexto não se contenta
em comercializar apenas pacotes que prometem fazer o turista viajar na
história e reviver grandes momentos cívico-religiosos do país, prometem
também um encontro com a “sociabilidade do homem simples” (Martins,
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2000), que já não mais encontramos nas grandes cidades; em outras palavras,
prometem “uma viagem ao pitoresco”. Os circuitos turísticos tornam-se
cada vez mais sofisticados, saindo das óbvias visitas a Ouro Preto, Tiradentes
e Mariana para uma verdadeira odisséia pelas pequenas cidades e lugarejos
há muito esquecidos. A promessa aqui, além do contato tête-à-tête com
as comunidades idílicas que imaginamos, é o “sabor inigualável do queijo”
ou a visão da procissão da Sexta-Feira Santa, ambas revestidas da aura de
que nos falou Walter Benjamin (1992). Nesse sentido, podemos observar
a entrevista da secretária de Estado da Cultura de Minas Gerais, Eleonora
Santa Rosa:
(...) É importante dizer que o apoio ao artesanato deve ir além do apoio
singelo às manifestações “populares”. Precisamos ter a consciência de que o
artesanato envolve uma cadeia de produção e uma atividade econômica que
pode significar a redenção de regiões ou territórios com graves problemas
econômicos e sociais. Por isso, o artesanato, como política pública, está
vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Econômico do governo estadual
e não à Secretaria de Estado de Cultura. Configurar esse setor na esfera do
desenvolvimento econômico é uma visão positiva, porque reconhece o artesanato como um importante instrumento de geração de renda e inclusão
social. Mas a cultura não pode, de forma alguma, passar ao largo, à margem,
ou considerar isso de uma maneira menos importante. Nós, da Secretaria
de Estado da Cultura, fazemos um trabalho que busca, evidentemente, a
questão da dimensão artística do artesanato, reconhecendo-o como um fator
de identidade, memória e preservação cultural.8
Diante deste contexto, não é difícil imaginar que a Igreja Católica
tenha sido, talvez, a grande beneficiada desse processo de mobilização da
memória histórica mineira, uma vez que o passado dessa região liga-se de
forma intestina às organizações leigas católicas – irmandades, confrarias,
etc. – e suas numerosas e suntuosas igrejas. Exemplo disso é a imagem de
Minas veiculada nos mais de uma centena de sítios espalhados pela rede
de computadores para promover o turismo em terras mineiras: ao abrimos
uma página, a imagem que nos recepciona, invariavelmente, é a de uma
igreja barroca. Assim, o ambiente que já era pouco convidativo ao trânsito
religioso devido ao imbricamento entre memória familiar e religiosa, agora
torna a opção a-católica desestimulante por razões econômicas (Gracino
Junior, 2008 e 2010).
No entanto, não basta somente mobilizar a memória cívico-religiosa,
uma vez que não são todos os estratos da população que partilham desse
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passado e, principalmente, das benesses desse presente. É necessário diversificar as formas de atuação no intuito de abarcar as demandas dos diversos
grupos inscritos na Arquidiocese de Mariana. Pensando nisso, a parte do
clero ligada à Teologia da Libertação – beneficiada pela mitigação de sua
faceta iconoclasta das décadas passadas – conseguiu mobilizar importantes
demandas sócio-políticas da população. Um exemplo disso é a recente eleição de padres para cargos legislativos e executivos em municípios da região,
sem falar na intensa capitalização dos anseios dos pequenos lavradores que
tiveram suas terras invadidas pelas águas das inúmeras barragens construídas
ao longo dos rios locais. Nesse sentido, alguns trabalhos mostram o papel
preponderante da Igreja Católica, especialmente após a chegada de Dom
Luciano Mendes, na organização de movimentos sociais como o Movimento
dos Atingidos por Barragem (MAB) (Oliveira, 2005).
Podemos interpretar tal contexto como uma tentativa de estabelecer
uma influência pública da religião, pelo que Beyer (1999) – inspirado na
teoria de Luhmann – denomina de desempenho, ou seja, a tentativa de um
subsistema de resolver problemas gerados em outros subsistemas; no caso
em questão, a tentativa do subsistema religioso de solucionar uma questão
gerada no âmbito sócio-econômico. Para Beyer (1999), essa tradução de
problemas não necessariamente religiosos para o discurso religioso pode
acarretar dificuldades, porque as soluções serão dadas com referência aos
subsistemas dos quais se originam – economia, política, direito, etc. – e existe
uma clareza de que questões sociais ou políticos não serão solucionadas por
engajamento em novenas ou penitências, mas sim pela mobilização social e
política. No entanto, ao buscar maior desempenho, a religião corre o risco
de perder o que lhe é mais característico, ou seja, a comunicação religiosa é
essencialmente redução da complexidade e atribuição de sentido último, no
esquema de Luhmann, da eterna subdivisão social em sistemas. Antevendo
de certa forma a questão colocada por Beyer, Roberto Romano (1979), ainda
em finas da década de 1970, chama nossa atenção para a impropriedade das
análises que traduzem de forma simples e imediata a linguagem teológica
para a linguagem política.
Há ainda outro aspecto, talvez o mais importante de todos para a
mobilização religiosa na Arquidiocese de Mariana, que seria a mobilização
da “memória religiosa” (Halbwachs, 1994) popular. Como bem nos lembra
Pace (2006), os símbolos religiosos não são produzidos necessariamente pela
instituição religiosa; às vezes – diríamos muitas vezes – são produzidos por
grupos multifacetados e imprevisíveis, cujo produto excede a capacidade
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do sistema de crença para transformá-los em meio eficaz de comunicação,
uma vez que a definição do ambiente sócio-religioso com o qual o sistema
interage é o domínio da contingência. Para o autor, o que nós convencionamos chamar religiosidade popular é o excesso de sentido que o funcionário
dos sistemas de crença é incapaz de levar de volta para a regularidade de
crença. Nesse turno, a religiosidade popular mantém aberto um espaço
que poderia ser reduzido dentro das funções da religião oficial (Deconchy,
1971, citado por Pace, 2006) e, assim, dá espaço a novas práticas rituais, que
muitas vezes foram deliberadamente separadas e distintas dos ritos oficiais
presididos por uma autoridade clerical. Acreditamos ser possível interpretar
assim o contexto descrito por Ferreira (2005), em que os dançadores negros
da Festa do Rosário da cidade de Brás Pires passaram a ser incorporados
ao contexto litúrgico da festa, inclusive sendo a congada o seu ponto alto.
A nosso ver, aqui temos um bom exemplo da confluência entre memória
religiosa e cultura, uma vez que, ao racionalizar a Congada como uma expressão cultural, retira-se dela a dramaticidade, mitigando-se os elementos
que remetem à sua origem inegavelmente não-católica, ao mesmo tempo
em que, com esta ação, a Igreja Católica se coloca como portadora de uma
valorizada sensibilidade frente à diversidade cultural (Hervieu-Léger, 2005a).
Na mesma trilha parece seguir a forma como a arquidiocese se
colocou frente às aparições da Virgem na cidade de Mercês, das quais nos
falam Camurça e Barreto (2003). Mesmo tendo encontrado resistência do
clero local nos primeiros anos, as aparições e todo o contexto simbólico
que as envolviam foram paulatinamente capitalizados pela Igreja, através
da realização de missas nos locais das aparições e de párocos à frente das
caravanas de fiéis que se dirigiam ao santuário. A posição da CNBB diante
das aparições marianas ilustra bem esse quadro de “racionalização cultural”
(Hervieu-Léger, 2005b): “As aparições e devoções particulares, não exigem,
portanto, adesão de fé divina ou católica, mas de ‘fé humana’ (…) as aparições circunscrevem-se dentro de um quadro cultural e religioso, dentro
do qual as pessoas recebem mensagens” (CNBB-CED, 1990. Citado por
Camurça e Barreto, 2003: 224).
Se o “Vale do Ouro” se caracteriza por um aglomerado de cidades
onde a população foi se enraizando ao longo de três séculos, com poucos
percalços e quase nenhuma movimentação populacional, o Vale do Aço,
ainda na década de 1960, era parcamente habitado e, em quatro décadas,
passou a ter uma população de mais de meio milhão de habitantes. Hoje, a
região metropolitana do Vale do Aço é a segunda mais populosa do estado
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de Minas Gerais, congregando as cidades de Coronel Fabriciano, Ipatinga,
Santana do Paraíso e Timóteo.
A região do Vale do Rio Doce, onde se inscreve o Vale do Aço, teve
sua ocupação retardada, primeiro pela ausência de atrativos comercias,
como minerais, e depois pela resistência dos povos indígenas que ocupavam a região. Essa parte dos “sertões mineiros” vai começar a receber um
fluxo populacional no início do século XX, com a construção da Ferrovia
Vitória-Minas, mas é somente depois de receber duas usinas siderúrgicas9
que a região será fortemente ocupada, através de instalações planejadas
pelas próprias companhias, como alojamentos e bairros que pudessem
abrigar o contingente de operários que chegava para trabalhar nas usinas
(Guatimonsin Júnior, 1987). Estas, antes mesmo de serem colocadas em
funcionamento, atraíram para a região um sem número de pessoas – trabalhadores de pouca ou nenhuma qualificação, ex-sitiantes que tiveram suas
terras desapropriadas para instalação das usinas – que iam construir suas
plantas, em especial da USIMINAS.
Vários depoimentos contam-nos que “os caminhões chegavam
cheios de gente, vindas de todo lugar; na porta da fábrica só perguntavam:
o que você sabe fazer? E já te empregavam, mas tinha que fazer qualquer
tipo de trabalho, né. Assim foi entrando muita gente pra usina e acabaram
ficando nas empreiteiras, muitos até hoje”.10 Nesse ambiente, com cidades
nascidas praticamente do nada, compostas em sua maioria por operários,
não é surpresa que já na década de 1960 (mais precisamente em 1963)
houvesse um movimento operário organizado, sendo a USIMINAS palco
de um dos maiores atos de violência contra os direitos civis de que temos
notícia em nosso país. Naquele ano, os trabalhadores, descontentes com as
constantes e humilhantes revistas a que eram submetidos a cada troca de
turno, organizaram um piquete na porta da empresa. A polícia militar, que
era responsável pela vigilância patrimonial da empresa, entrou em confronto
com os operários, atirando sobre eles, inclusive com metralhadoras, deixando
vários mortos. Esse episódio é considerado por muitos pesquisadores como
uma demonstração de força, uma prévia do que aconteceria nos anos de
Regime Militar, sempre lembrando que a repressão teve ordem expressa do
Governador Magalhães Pinto, um dos futuros apoiadores do golpe de 1964.
Ao contrário da Arquidiocese de Mariana, que vai manter-se ligada à ala “conservadora” da Igreja Católica até final da década de 1980, a
Diocese de Itabira, criada em 1965, vai nascer sob a jurisdição eclesiástica
de um bispo identificado com a ala progressista da Igreja, que se engajou
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francamente no Concílio do Vaticano II. Dom Marcos Noronha, primeiro
bispo da Diocese de Itabira, participou do Concílio do Vaticano II e pôde
implantar, sem muitos obstáculos, seu plano pastoral na nova diocese.
Nessa ocasião, a Igreja Católica local tentou mobilizar a consciência
da população com um discurso voltado para demandas que não estavam
no âmbito necessariamente religioso: Dom Marcos, por exemplo, enfatizava em seus pronunciamentos públicos a distribuição de renda, a reforma
agrária e melhoria de vida da classe trabalhadora, numa região composta
majoritariamente por operários (Melo, 2006). No entanto, a repressão política e ideológica do Regime Militar, somada à parte do clero ainda ligada
a uma visão romana, fez com que a prelazia literalmente se dividisse. De
um lado, os párocos “progressistas” e a parcela da população mobilizada
por esse discurso; do outro, os vigários mais antigos ainda formados sob a
jurisdição do Arcebispado de Mariana – do qual fazia parte anteriormente a
diocese de Itabira –, que se opunham firmemente à tradução dos problemas
sociais em discurso teológico, como podemos ver nesse excerto do Jornal
Arquidiocesano:
(...) muitos sacerdotes modificam textos e gestos litúrgicos para seguir sua
própria inclinação, o seu gosto pessoal ou desejo dos fiéis (...) Recordando
para a preocupação do Papa Paulo VI, para essa anarquia no campo litúrgico,
o Cardeal convida os presidentes das conferências episcopais para fazerem
o possível para que essas iniciativas perigosas para a paz e a ordem da Igreja
cessem e a Reforma litúrgica prossiga segundo o plano traçado pelo Papa.11
Em trabalho exploratório, levantou-se, através de depoimentos, que
vários trabalhadores afastaram-se das práticas católicas durante o Regime
Militar, devido à repressão e a atuação de alguns padres ligados à Teologia
da Libertação. Constatamos, em algumas entrevistas preliminares, que
alguns padres, deslocados de grandes centros como Rio de Janeiro e São
Paulo, enfatizavam em suas homilias o engajamento político e se colocavam
explicitamente contra o Regime Militar:
A gente ouvia aquilo, mas ficava quieto né, ficava até com medo, por que
na empresa tinha muita gente vigiando né, saída da missa assim (…) meio
desconfiado (…) os padres lá pressionando para se organizar, essas coisas,
ai pensei é melhor deixar de ir às missas.12 (…)
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Mais tarde, já na década de 1990 (1991), com a privatização da USIMINAS, o ritmo das cidades no seu entorno sofre significativas mudanças:
grande parte da mão-de-obra é terceirizada e o setor de serviços apresenta
um crescimento contundente, uma vez que vários operários são estimulados
a adiantar suas aposentadorias e migrar para este setor, o que pode ser constatado nos estudos da Fundação João Pinheiro (1995 e 2000) para a região.
As igrejas evangélicas pentecostais chegam aos municípios do Vale
do Aço por intermédio de operários e técnicos que vêm para trabalhar nas
usinas siderúrgicas, não sendo raro encontrarmos vários pastores ocupando
cargos de chefia dentro das companhias. Nesse contexto, é comum observarmos setores da linha de produção comandados por evangélicos em que a
imensa maioria dos operários acaba por aderir ao pentecostalismo enquanto
estratégia de permanência na equipe e, conseqüentemente, na empresa.
Em um ambiente de franca instabilidade no emprego, como o que
se apresentou no período pós-privatização, o discurso sindical de fundo
católico soava pouco atraente, pelo menos para uma parcela do operariado,
ligada diretamente aos setores terceirizados – será justamente este o alvo
preferencial do proselitismo pentecostal. Mesmo diante dessa conjuntura,
o Partido dos Trabalhadores, que assenta suas bases firmemente na parcela
da Igreja Católica mobilizada pelo discurso da Teologia da Libertação, ainda
continuou ocupando a maioria das prefeituras da região, sendo somente
derrotado nas eleições municipais de Ipatinga em 2004, exatamente por
um pastor evangélico. Aqui, vemos um panorama diverso do descrito
por Francisco Rolim (1995), onde o parco avanço pentecostal nas classes
operárias é atribuído ao caráter apolítico do mesmo, que não cooptava os
anseios das massas trabalhadoras sedentas por justiça social:
Assim, os trabalhadores urbanos, mergulhados na mobilização social que é
uma prática política, a luz de uma visão história (…) eram fortemente impelidos à recusa de um tipo de religião dissociado das transformações sociais.
Tivesse a religião pentecostal outro comportamento em face à mobilização
operária da época, não seria exagero pensar que fosse vista com simpatia
pelos trabalhadores que lutavam contra injustiças e construções desumanas
de trabalho. (Rolim, 1995 p.112-113)
Ao contrário, dentro de um ambiente de “flexibilização do trabalho”,
as características esperadas são diametralmente opostas àquelas pregadas
pelo engajamento político-religioso católico: espera-se um trabalhador
“dinâmico”, que compartilhe com as empresas o “ônus” do trabalho. TenCiencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 13-41, setembro de 2011.
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do que enfrentar a escalada do desemprego, os trabalhadores trocam suas
pautas de reivindicações por melhores salários e condições de trabalho por
pautas de manutenção dos postos de trabalho (Santana, 2003).
No entanto, não era somente a prelazia “conservadora” e a mudança
no perfil do operariado que dificultava os planos pastorais na nova diocese;
toda uma gama de pequenos sitiantes, “lavradores”, praticantes do chamado
catolicismo rústico, estavam tendo suas rotinas de ritos e festas religiosas
alteradas pelo “tempo novo da fábrica”. Por exemplo, as festas do Rosário,
com a Congada, exigem um considerável tempo dos participantes, não
só na preparação, mas também nos ritos e danças; com a entrada na dura
rotina dos turnos exigida pelo trabalho nas usinas, os agora operários eram
submetidos ao tempo da fábrica – sobre o qual nos fala E. P. Thompson
(2002) –, que desagregava o tempo no qual organizavam suas rotinas religiosas. O rompimento dessa “descendência de fé” (Hervieu-Léger, 2005b)
fez com que as gerações mais novas, socializadas com a face moderna e
os atrativos da vida da cidade, se desinteressassem pela manutenção das
tradições, devoções e ritos de seus antepassados (Sá, 2006).
4. Considerações finais
Neste artigo, procuramos demonstrar de que forma em contextos
culturais mais regulados a dinâmica religiosa – entendida tanto como aumento da diversidade religiosa institucional, quanto como possibilidade de
trânsito religioso – é mais baixa quando comparada à apresentada por regiões
cortadas mais intensamente por fluxo de idéias e pessoas. Neste sentido,
procuramos ressaltar não só a idéia de que a modernidade tem múltiplas
direções (Eisenstadt, 2001) e é assimilada de forma diversa em regiões
diferentes, mas, principalmente, a de que tal processo pode tanto solapar
as cultura locais, quanto dar-lhes uma nova roupagem, ao serem inseridas
em contextos comerciais. Assim, procuramos chamar a atenção para uma
região em que o processo de modernização e a inserção em cenários mais
amplos, marcados por fluxos culturais mais intensos, não significou o retraimento das culturas locais; ao contrário, nesta região, observou-se que a
inclusão de bens simbólicos tradicionais nos circuitos massivos (Canclini,
2003) levou ao fortalecimento das identidades regionais das quais esses
bens eram provenientes.
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Ao nos debruçarmos sobre o caso da região “histórica” de Minas
Gerais, procuramos mostrar como esse processo de patrimonialização de
traços culturais regionais imbricados ao catolicismo levou ao fortalecimento
da identidade entre indivíduo e culto católico, mesmo que esta identificação
tenha sido vivida de forma vicária (Davie, 2006). Neste sentido, tentamos
deslocar o eixo explicativo de uma teoria que privilegia fatores internos ao
campo religioso para compreender a intensidade dos trânsitos religiosos,
para outra que considera não só as dinâmicas internas às agências religiosas,
mas também os processos sociais envolvidos na maior ou menor pluralidade religiosa.
Tal entendimento nos levou a questionar o projeto teórico filiado
à escolha racional, primeiro pelo peso excessivo que é dado ao “egoísmo
psicológico” (Baier, 1990), depois pelo enfoque unilateral no grau de regulação estatal dos mercados religiosos como principais fatores explicativos
para um maior ou menor pluralismo religioso (cf. Jerolmack, 2004; Mellor,
2000). Neste mesmo sentido, podemos imaginar que o fato de alguns indivíduos agirem abertamente de forma instrumental no que diz respeito a
suas pertenças religiosas não nos habilita a acreditar que todas as formas
de pertença religiosa são conduzidas tendo por base os frios cálculos de
custos e benefícios.
Ainda, acreditamos ser pouco verossímil a idéia de que um poder
supra-comunitário exercido pelo Estado possa regular as condutas desviantes dos indivíduos. Se assim fosse, resolveríamos o problema do dissenso
social através de um aumento no custo da ação desviante, como bem nota
Granovetter (2007). No entanto, o que observamos, é que, na maioria das
vezes, um aumento na repressão não leva automaticamente ao recalque dos
tipos desviantes, mas a conflitos, processos de resistência ou negociação de
sentidos, tais como os que observamos no campo dos cultos afro, ou no dito
catolicismo popular, para ficarmos apenas com exemplos do campo religioso.
Tal afirmação não quer dizer que desconsideremos o papel do Estado
enquanto regulador e produtor do que Foucault (1996) chamou de “regimes
de verdade”, porém, tentamos demonstrar que para além desses reguladores estatais, os laços gerados por contados sociais mais intensos cumprem
importante papel de limitadores dos fluxos religiosos. Como vimos, não
obstante a repressão estatal, a religião e, principalmente, sua significação
(ou a religiosidade vivida), desloca-se para os interstícios do discurso estatal, ressemantizando os estímulos supra-comunitários e reapropriando-se
deles localmente.
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Desta forma, procuramos nas conformações sócio-culturais típicas Minas Gerais exemplos de locais que conflitavam com a mensagem
pentecostal, ou, ao contrário, tinham-lhe afinidade. Tais conflitos se dão
simultaneamente pelo caráter destradicionalizante da mensagem pentecostal;
pelas conformações culturais locais adversas ao pentecostalismo, tributárias
de uma história imbricada à história católica; e pela capacidade da Igreja
Católica de mobilizar a memória, imbricando seu passado ao passado da
localidade, tarefa que foi facilitada, como vimos, por algumas políticas de
patrimonialização.
Por outro lado, o fato de reconhecermos que existem regiões com
conjunturas desfavoráveis ao pluralismo religioso, especificamente ao representado pelas igrejas pentecostais, não nos habilita a postular que tal
cenário vai perpetuar-se ao longo dos anos.
Neste sentido, observamos que algumas cidades de Minas Gerais que
se mostravam extremamente refratárias ao pentecostalismo já começam a
dar sinais de abertura. Na cidade de Mariana, por exemplo, o Encontro
Regional Evangélico de Mariana (EREM), que acontece desde o ano de
2003, reuniu na última edição de 2010, mais de dez mil pessoas durante os
três dias de evento. É interessante observar que, apesar de algumas animosidades e contestações por parte da população da cidade, o evento faz parte
do calendário oficial da cidade, fruto do Projeto de Lei de um vereador
evangélico que obteve nas últimas eleições (2008) a expressiva votação de
1.837 votos, sendo o mais votado da história da cidade de Mariana.
Neste sentido, não seria surpresa caso os números do IBGE e INE
que estão sendo fechados nos anos de 2010 e 2011, mostrassem um panorama já diverso para estas regiões.
Notas
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.
Exceções feitas aos trabalhos de: Marie-Christine Doran (2003), que trata da resistência
da cultura católica mexicana, em especial a ligada ao culto à Virgem de Guadalupe, como
um dos entraves ao crescimento da IURD no México; Paul Freston (2003 e 2007), que
chama atenção para as dificuldades de inserção da IURD em um ou outro país asiático de
maioria muçulmana. Neste mesmo sentido, vão os trabalhos de Marion Aubrée (2003), que
relata as dificuldades da IURD na França; e Ray Miller e Allan Anderson, que constatam
um panorama similar para a Inglaterra. Ainda temos o trabalho de Michel Gherman (2007)
sobre as dificuldades da IURD em Israel.
1
2
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Para maiores informações consultar o World Christian Database que fornece estatísticas
sobre religiões, denominações cristãs e grupos de pessoas em diversos países do mundo.
[http://www.worldchristiandatabase.org]. Página consultada em 12/12/2009.
4
Entrevista de Adauto. Entrevista concedida ao autor, em 18 de novembro de 2006.
5
Notamos que no trabalho de Willems (1967) este não distinguia pentecostais dos evangélicos
ditos tradicionais, como a maioria dos pesquisadores faz hoje seguindo tipologia cunhada
por Ferston (1996) e Mariano (1997).
6
Referimo-nos aqui a todo um panorama que marcou o fim da década de 1980, com o fim
do socialismo real, retração das organizações de massa, sem falar no crescente avanço do
pentecostalismo, o que levou a Igreja a repensar algumas de suas práticas, fazendo o pêndulo pesar para seu lado moderado, principalmente a partir de 1994, quando Dom Luciano
Mendes é substituído no cargo de Presidente da CNBB por Dom Lucas Moreira Neves,
arcebispo da ala moderada.
7
É interessante observar que para Luhmann, ao contrário do que postularam autores como
Berger (1985), a retirada da religião para o espaço privado, através de uma autonomia cada
vez maior perante aos outros subsistemas sociais, não é privilégio da religião e acontece
igualmente com a tomada de decisões políticas etc. (Ver Beyer, 1999)
8
Entrevista ao repórter Rodrigo Narciso, da revista O Brasil Feito À Mão (http://www.
cultura.mg.gov.br/?task=interna&sec=1&cat=39&con=1007, capturado em 16/08/2007 )
9
Companhia de Aços Especiais de Itabira (ACESITA), em 1944, em Timóteo, e Usina
Siderúrgica de Minas Gerais (USIMINAS), em 1958, no então distrito de Ipatinga.
10
Depoimento de Antônio José, concedido em 19/05/2007
11
Arquidiocesano, Mariana dia 9 de julho de 1968. Nº 459. p 3. AEAM.
12
Entrevista com senhor Antônio, ex-trabalhador da USIMINAS, concedida ao autor em
08/09/2007.
3
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O GLOBAL E O NACIONAL NUM
ENCONTRO EVANGÉLICO
INTERNACIONAL EM BUENOS AIRES
Ari Pedro Oro
Universidade Federal do Rio Grande do Sul 1
Resumo: A questão central deste texto é a articulação entre o global e o nacional
observada num encontro evangélico internacional ocorrido em Buenos Aires, em
setembro de 2008. O texto inicia com a apresentação de uma etnografia dos diferentes aspectos envolvendo o encontro - chamado de “Breakthrough 2008” - como
a infra-estrutura da igreja anfitriã, a organização do evento, seus principais rituais
e o perfil social dos participantes. Na seqüência é analisada a trajetória de vida dos
seus quatro principais protagonistas. Ver-se-á que a abertura ao global constitui a
sua vocação, tendo sido ela bastante destacada durante o evento, conjuntamente à
dimensão nacional, esta última acionada sobretudo pelos fiéis, através da ostentação
das bandeiras nacionais. A aproximação e a tensão entre as dimensões do global
e do nacional, neste evento religioso, que reuniu mais de dois mil evangélicos, de
treze países, constituem, portanto, o foco central do presente texto.
Palavras-chave: Mercosul, globalização, Igreja Rey de Reyes, evangélicos.
Abstract: The subject of this paper is the articulation between the global and
the national in an international Evangelical meeting called “Breakthrough 2008”,
held in Buenos Aires in September, 2008. It begins by presenting an ethnographic
account of the meeting’s various aspects, such as the event’s organization, its main
rituals, and the participants’ social profile. Next, it analyzes the life story of its four
chief protagonists. One sees that an opening to the global is part of their calling,
something that was much highlighted throughout the event. Simultaneously, the
national dimension was evoked especially by the faithful, through the waving of
national flags. The approximation and tension between the global and the national
dimensions in a religious event which gathered over two thousand Evangelicals
from thirteen countries are thus the central focus of this study.
Keywords: Mercosul, Globalization, Rey de Reyes Church, Evangelicals.
Este texto resulta de uma observação etnográfica de um encontro
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
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ARI PEDRO ORO
evangélico internacional ocorrido entre os dias 22 e 24 de setembro de
2008, na Igreja Rey de Reyes, localizada na rua Ciudad de la Paz, número
2.330, no Bairro Belgrano, em Buenos Aires. O encontro se chamava
“Breakthrough 2008 – tiempos de avivamiento”2. Nele, a exaltação da sua
dimensão global, promovida sobretudo pelos seus protagonistas, foi igualmente acompanhada pelo enaltecimento do nacional, principalmente pelos
fiéis presentes ao evento. Essa relação de complementaridade, mas também
de alguma oposição, entre o global e o local (nacional), entre as dimensões
internacional e nacional, observadas nesse evento religioso, constituirá o
foco deste texto. Antes, porém, faz-se necessário relatar o evento, sua organização e desenvolvimento, e a trajetória pessoal dos seus promotores.
1. “Breakthrough 2008 – Rey de Reyes, Buenos Aires,
Argentina – 22 a 24 de setembro”
Este era o nome oficial do evento, que tinha como sub-título “Tiempos de Avivamiento – Revival Times”. Tratava-se de uma promoção da
Igreja Rey de Reyes, uma denominação pentecostal fundada em fevereiro de
1986 e dirigida pelos pastores pertencentes à Assembléia de Deus Cláudio
Freidzon e sua esposa Betty Freidzon. Essa igreja conta hoje com cerca de
25.000 membros regulares, possui uma Escola Bíblica com aproximadamente 1.600 estudantes e administra e controla em torno de 2.500 células
de discipulado e evangelização, conhecidas como “Igrejas em célula”3.
As inscrições para o Breakthrough 2008 podiam ser feitas via internet4, mediante o preenchimento de uma ficha5 e pagamento de uma
taxa, cujos valores variavam segundo a origem geográfica do participante
e a data da inscrição6.
Na manhã do dia de abertura do encontro duas grandes filas se
formaram diante da Igreja: uma composta de pessoas que já haviam feito
a inscrição - estes se dirigiam a um conjunto de guichês para retirar o material do encontro (sua programação, uma pequena revista da Igreja Rey
de Reyes e um crachá de identificação) - e outra composta de pessoas que
iriam fazer a inscrição naquele momento. Esta fila era maior e avançava
lentamente. Havia ainda outras pequenas filas de pessoas que se dirigiam
a diferentes mesas com recepcionistas, separadas por idiomas: espanhol,
português e inglês.
O cenário montado naquela manhã diante da igreja Rey de Reyes fazia
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
O GLOBAL E O NACIONAL NUM ENCONTRO EVANGÉLICO...
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jus ao termo “conferência”. Assemelhava-se à organização de um evento
acadêmico. Isto, para quem observava da rua para a frente da igreja, ou
da entrada da igreja para fora, porque após as mesas receptoras o cenário
mudava: adentrava-se num templo evangélico moderno e portador de uma
boa infra-estrutura.
De fato, o ambiente no interior da Igreja Rey de Reyes era agradável
e impressionava. Havia dois telões, nos quais eram projetadas as letras das
músicas cantadas, bem como exibidos vídeos. A sonorização era de boa
qualidade e jatos de luzes coloridas eram enviados em direção ao palco/
altar. Diversas câmeras espalhadas em locais estratégicos do templo filmavam
tudo. Algumas horas após cada pregação os DVDs das mesmas já podiam
ser adquiridos pelos participantes, o que revela a eficiência do pessoal técnico
e de apoio. Enfim, os fiéis podiam se instalar confortavelmente nas 2.300
poltronas vermelhas distribuídas de forma semi-circular em dois andares
no interior do recinto e desfrutar de um eficiente sistema de ar refrigerado.
Tratava-se, o evento de setembro de 2008, do undécimo breakthrough
celebrado anualmente pela Igreja Rey de Reyes. A primeira “Conferência
Internacional de Avivamiento Breakthrough”, como é também chamado
esse encontro, ocorreu em 1998 e na maioria de suas edições contou com a
presença de quatro importantes líderes e pregadores evangélicos argentinos,
a saber: o evangelista Carlos Annacondia, o pastor Sergio Scataglini, e os
pastores Claudio e Betty Freidzon. O objetivo das conferências, como se
pode ler em folders e no site da Igreja Rey de Reyes (www.claudiofreidzon.
com), é permitir com “que cada asistente salga renovado, transformado y
lleno del poder de Dios”. Realizadas em sua maioria nas dependências dessa
igreja, as conferências crescem a cada nova edição, tendo já recebido pastores
e fiéis de vários países do mundo, tais como: Japão, Suíça, Alemanha, Espanha, Itália, Estados Unidos, Brasil, Uruguai, Bélgica, França, Dinamarca,
Noruega, África do Sul, Canadá, México, Panamá, Guatemala, Colômbia,
Chile, Inglaterra, República Tcheca, Paraguai, Angola e Moçambique.
Esses pregadores tem também realizado conferências Breakthrough
em outros países, além da Argentina, como Austrália, China, Indonésia,
Índia, Malásia, Filipinas, Rússia, Singapura, Taiwan, Tailândia, Canadá e
Estados Unidos (estados de Texas, Louisiana, Indiana e Califórnia) (Grams,
2007, p. 71).
O evento de setembro de 2008 em Buenos Aires ocorreu durante
três dias e esteve assim organizado. Dia 22, entre 8 e 11 horas, registro
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ARI PEDRO ORO
dos participantes; o reverendo7 Sergio Scataglini foi o primeiro a efetuar a
pregação, das 11.05 até as 13.15 horas; à tarde, a pregação foi realizada pelo
reverendo Cláudio Freidzon, das 15.45 até as 18.30 horas; o Evangelista
Carlos Annacondia pregou das 21.25 até as 23.45 horas. No dia 23, novamente Sergio Scataglini pregou das 10.30 até as 12.40 horas; à tarde a Sra.
Betty Freidzon pregou das 16.15 até as 18.30 horas e à noite novamente
Cláudio Freidzon ocupou o microfone por duas horas a partir das 21.15
horas. Enfim, no dia 24, Betty Freidzon pregou das 10.40 até 12.30 horas;
à tarde Carlos Annacondia pregou das 16 às 18.30 horas e à noite, a partir
das 20.45 horas, todos os pregadores compareceram mas usaram a palavra
somente Annacondia e Cláudio Freidzon; no mais, foi uma noite consagrada
à louvação e ao avivamento.
Todas as pregações foram proferidas em espanhol, com tradução
simultânea para o inglês, realizada por três norte-americanos fluentes em
espanhol, cada um sendo tradutor de um palestrante. Não se tratava, porém, somente de traduzir os pregadores, mas de imitá-los nos seus gestos,
posturas corporais, oscilações da tonalidade de voz. E os tradutores realizaram essa tarefa com tal capacidade performática que por vezes pareciam
ser seus “sombras”.
A opção pelo inglês como língua privilegiada para tradução das
pregações não corresponde ao atendimento de uma demanda majoritária
de anglófilos no recinto. Expressa, antes, o reconhecimento da importância adquirida por esse idioma na atualidade - idioma que se impôs como
língua franca em tempos de globalização - e a possibilidade das gravações
realizadas neste encontro poderem ser retransmitidas pelas mídias em diferentes partes do mundo. Aliás, diga-se de passagem que o próprio nome
do evento, Breakthrough, se inscreve nesta lógica.
Todas as falas obedeceram, até certo ponto, a um modelo comum,
composto, fundamentalmente, de duas partes. Na primeira, os pregadores
discorriam e interpretavam uma passagem bíblica, sempre associando-a
com narrativas de situações práticas, suas ou de outras pessoas. Nestes
momentos aproveitavam para falarem de si, de suas experiências e vivências
religiosas, relatando graças e milagres alcançados pelos seus ministérios.
A segunda parte ocorria quando o pregador chamava as pessoas para se
aproximarem do palco (altar) para receberem a unção. Chegava-se, então,
ao momento mais aguardado por muitas pessoas, pois podiam ser tocadas
pelos pregadores, ocasião em que muitas caiam ao solo, outras tremiam,
outras cambaleavam, muitas, no altar, se encontravam visivelmente em
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estado de transe, tudo isto ocorrendo num ambiente musical eletrizante e
contagiante. Nestes momentos, tidos como de unção e bênção, o pregador
contava com diversos colaboradores que lhe apresentavam as pessoas para
serem tocadas e as amparavam para não se ferirem quando caíam.
Importa frisar que antes de cada pregação havia cerca de meia hora
de louvor musical, momento de “alabanza”, animado por corais ou bandas e
por destacados cantores gospels. As músicas mais cantadas durante o evento
foram: “Yo soy libre”; “La salvación está aqui”; “Seremos la generación que
danza”; “Manda la lluvia”; “Gloria a Dios, alabanza te daré”; “El tiempo de
cantar llegó”; “El gozo está aqui”; e a mais repetida de todas: “Poderoso
Dios”, um hino composto no Brasil, bastante cantado e muito conhecido
nos meios evangélicos internacionais. Excetuando-se este último hino, que
consiste numa melodia suave, lenta e introspectiva, os demais constituem
músicas alegres, estruturados em compassos binário e quaternário, o que
conduz os presentes a se envolverem corporalmente.
Nas duas primeiras noites do evento foram solicitadas ofertas para
apoiar os ministérios dos pastores e evangelistas que levam à frente os Breakthroughs. “Se preparen para dar generosamente, para dar con fé”, dizia
o solicitante. Obreiros passaram recipientes brancos de plástico nos quais
foram postas as ofertas em dinheiro. Notei que nas duas oportunidades
cerca da metade dos participantes realizaram este gesto.
O evento de 2008 contou com cerca de 2.100 pessoas inscritas,
provenientes de treze países, assim distribuídas: 1.128 da Argentina; 431 do
Brasil; 148 do Uruguai; 73 dos Estados Unidos; 52 do Chile; 26 da China; 16
do Peru; 15 do Paraguai; 9 da Colômbia; 7 do País de Gales; 3 do Canadá;
3 da Bolívia e 1 da França. Além desses havia cerca de 150 convidados, em
sua maioria da Argentina e dos Estados Unidos.
O perfil social predominante dos participantes era de indivíduos
pertencentes às camadas sociais médias baixas; no que tange ao gênero
havia uma distribuição relativamente eqüitativa entre homens e mulheres.
2. Os protagonistas do Breakthrough 2008:
suas trajetórias de vida
Veremos agora a trajetória de vida cada um dos protagonistas do
Breakthrough 2008, a saber: Carlos Annacondia, Sergio Scataglini e o casal
Cláudio e Betty Freidzon.
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ARI PEDRO ORO
Carlos Annacondia provém de uma família de evangélicos da igreja
dos Hermanos Libres, uma linha fundamentalista não pentecostal (Wynarczyk, 1993, p. 90). Nasceu em 12/3/1944, em Quilmes, província de
Buenos Aires.
Em 1979, aos 35 anos, se converteu, por ocasião de uma Cruzada
Evangelística realizada pelo Rev. Manuel A. Ruiz, do Panamá, em San Justo,
Argentina. Em 1982, ano em que o governo militar argentino desencadeou
a Guerra das Malvinas contra a Inglaterra, decidiu tornar-se evangelista. Na
ocasião era empresário do ramo metalúrgico.
Conforme consta em seu site (http://www.carlosannacondia.org),
atualmente Annacondia vive em Buenos Aires e preside o ministério “Misión
Cristiana Mensaje de Salvación”, da União das Assembléias de Deus, e é
membro da igreja liderada pelo pastor Pedro Sebastián Ibarra.
Annacondia não cursou nenhum instituto teológico (Id. Ibid., p. 91).
Nos primeiros anos de seu ministério, conta Grams, “el hermano Annacondia predicaba donde se le presentaba la oportunidad” (Grams, 2007,
p. 55). Ainda segundo este autor, o início do ministério de Annacondia
está associado ao pastor Alberto Scataglini, da cidade de La Plata, capital
da província de Buenos Aires, que, em 1984, recebeu o recém-convertido
Carlos Annacondia. Juntos iniciaram uma cruzada no norte da cidade, com
destaque para a tenda de “terapia intensiva”. Esta campanha durou oito
meses e “los resultados fueron asombrosos: cincuenta mil decisiones por
Cristo” (Id. Ibid., p. 52). O ano de 1984 corresponde ao primeiro ano do
retorno da democracia na Argentina, após oito anos de ditadura militar.
Como ocorre com os demais predicadores, o Ministerio de Annacondia tem um site próprio, através do qual se pode adquirir 11 diferentes
DVDs de suas campanhas, ao preço de 30 pesos argentinos cada um, ou
seja, cerca de 9 dólares norte-americanos; 23 CDs, ao custo de 10 pesos
cada um; e seus livros, com destaque para o célebre “Oíme bien, Satanás”,
ao custo de 20 pesos, traduzido para o português, pela Editora Vida, com
o titulo: “Escute aqui, Satanás”.
Sergio Scataglini é filho do pastor Alberto Scataglini, sediado em La
Plata. Casou em 1986 com a norte-americana Kathleen, que conheceu no
Seminario Teológico Fuller; em 1987 fundaram o “Ministerios Scataglini”.
De retorno à Argentina, desencadearam o Proyecto EOL (Escuela, Orfanato, Programa de Formación de Líderes), em La Plata; também abriram
uma escola cristã (Colégio “Príncipe de Paz”) e um lugar para crianças
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
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abandonadas (“El Refugio del Rey”), entre outras iniciativas. Durante anos
trabalhou na igreja de La Plata presidida pelo seu pai.
Em seu testemunho intitulado “capturado por su fuego”, composto
de cinco partes, que se encontra no seu site (www.scataglini.com/), Sergio
explica que sua conversão se deu nos Estados Unidos, no dia de Pentecostes
de 1997. Na ocasião, diz, Deus estampou em seu coração “la pasión por
la santidad”.
Sergio Scataglini é autor de dois livros, traduzidos em vários idiomas.
São eles: El Fuego de Su Santidad e Las Doce Transgresion, que podem ser
comprados, através do seu site, ao custo de 10 dólares cada um. Também
podem ser adquiridos 7 Cds contendo seus sermões, ao custo de 6 dólares
cada um, e o DVD “La Ultima Transgresion”, vendido por 15 dólares.
Cláudio Freidzon, conforme consta em seu site (www.claudiofreidzon.com), nasceu em Buenos Aires, em 19 de setembro de 1955, é casado
com Betty Freidzon e têm três filhos. Afirma que conheceu o Senhor ainda
jovem. Iniciou o curso de Engenharia, abandonado após ingressar no Seminario Bíblico Río de la Plata, das Assembléias de Deus, onde se formou
em 1977. Conheceu sua esposa Betty justamente neste Instituto, onde ela
também se graduou. Atuou como professor em alguns Institutos Bíblicos,
concluiu estudos de pos-graduação no Instituto de Superación Ministerial
de las Asambleas de Dios (ISUM) e doutorou-se em Filosofía Teológica
na Visión International University, nos Estados Unidos.
Em 1986 fundou, juntamente com sua esposa, a Igreja “Rey de
Reyes”. Em 1992, como se pode ler em seu site, “su búsqueda personal lo
llevó a tener un poderoso encuentro con el Espíritu Santo, el cual revolucionó su vida y su ministério”. Trata-se do encontro com o evangelista
norte-americano Benny Hinn, nos Estados Unidos. Segundo Grams, após
a leitura do livro Buenos Dias, Espiritu Santo, de Benny Hinn, viajou, com
Betty, para Orlando para participar de uma cruzada realizada por esse pregador. Segundo Grams, este momento se tornou um marco em sua vida. De
retorno a Buenos Aires, sua igreja deslanchou. Quando predicava, pessoas
caíam ao solo, supostamente tomados pelo Espírito Santo, e “pastores de
toda la Argentina viajaban para estar en las reuniones” (Grams, 2007, p. 90).
Além de ministrar regularmente na Igreja Rey de Reyes, com capacidade para abrigar cerca de 2.500 pessoas, Freidzon tem alugado grandes
espaços para celebrar campanhas de fé, ocasiões em que lota estádios de
futebol, como do Vellez Sarsfield, com capacidade para 50.000 pessoas.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
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Evidentemente que contribui para tanto o fato dos pastores amigos cancelarem nesses dias seus cultos para que seus fiéis participem das campanhas
(Id. Ibid., p. 105).
Cláudio Freidzon é autor de três livros: “Espíritu Santo, tengo
hambre de Ti”, traduzido para nove idiomas; “Tesoro en Vasos de Barro”;
e ¨Rendido Totalmente¨. Também tem evangelizado através da radio e da
televisão (Enlace Daystar, Canal Luz y Canal 43, de Miami).
Betty Freidson se graduou no Instituto Bíblico Río de la Plata, em
1978, é co-fundadora da Iglesia Rey de Reyes, tem ensinado em vários institutos bíblicos de Buenos Aires e tem proferido conferências e participado
de diversas campanhas internacionais, juntamente com seu esposo. Segundo
consta no site www.claudiofreidzon.com, Betty foi presidente do Consejo
Misionero Femenino de la Ciudad de Buenos Aires (C.M.F.), da União das
Assembléias de Deus e durante muitos anos tem trabalhado junto a esposas
de pastores. Sua dedicação ao crescimento espiritual das mulheres a conduziu
a criar células de discipulado para mulheres, mais tarde chamados “grupos
de crecimiento de mujeres”. Enfim, Betty participa do programa televisivo
“Nueva Mujer”, transmitido por Enlace Day Star, nos Estados Unidos, e
retransmitido para todo o mundo por TV a cabo.
Importa neste momento sublinhar que o estilo e o método de evangelização postos em prática por esses pregadores por ocasião das Conferências Breakthrough se inscrevem na seqüência histórica do avivamento
pentecostal iniciado na Argentina na década de 1950, cujo resultado foi o
crescimento de congregações já existentes e o surgimento de muitas outras
novas, contribuindo, assim, fortemente, para o avanço do campo evangélico
nesse país, que hoje alcança em torno de 3 milhões de pessoas, ou seja,
cerca de 7% da população (Grams, 2007, p. 73)8.
Ora, a inscrição dos protagonistas do breakthrough na paisagem
evangélica nacional certamente contribui para o seu sucesso, de forma
semelhante ao que ocorre na Africa, onde, segundo André Mary, os pentecostalismos “ne sont pas le pur produit de la mondialisation de la culture
évangélique américaine, mais une production “indigène” qui se greffe sur
une longue histoire (africaine) de Réveils spirituels...” (Mary, 2008, p. 15).
Porém, os protagonistas do Breakthrough, talvez mais do que outros
importantes líderes do avivamento argentino9, se inscrevem num espaço
transfronteiriço e detém uma vocação internacional. É o que veremos a
seguir.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
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2.1. A circulação internacional dos protagonistas
do Breakthrough e a sua dimensão global
Os quatro protagonistas do Breakthrough não somente compartilham o lema “conquistar as nações do mundo inteiro para Cristo”, caro ao
segmento pentecostal, como também o associam ao “espírito de época”,
isto é, do mundo globalizado. Sabe-se, porém, por um lado, que a transnacionalização religiosa não consiste numa novidade do presente - pois ela
integra a vocação histórica do cristianismo e de outras religiões, universalistas ou não10 - e, por outro lado, que a globalização possui uma longa
história, não alcançando todos os países uniformemente11. Seja como for,
o pentecostalismo constitui, nos dias atuais, como sublinha J. Noret, um dos
fenômenos emblemáticos da transnacionalização (Noret, 2005, p. 417), e
os promotores do Breakthrough, também eles pentecostais, aderem fortemente ao “imaginário da globalização” (Abelès, 2008, p. 39)12. Isto porque
eles pensam o mundo e pretendem evangelizar todas as nações, de forma
semelhante a outros atores religiosos e a outras igrejas neo-pentecostais de
diferentes países e continentes13. Todos expressam uma vontade de expansão para além das fronteiras nacionais, acompanhando, assim, o imaginário
da globalização. Como veremos a seguir, este aspecto sobressaiu fortemente
no breakthrough 2008. Iniciemos pelo casal Freidzon.
O interesse que transcende o local e alcança o global é tão significativo
na sua filosofia religiosa que eles possuem um “Ministerio a las Naciones”,
cujo objetivo é “impartir la unción a cada rincón del mundo”, ou seja,
“transmitir el fuego, el avivamiento y la devoción por Dios a través de
cruzadas y conferências multitudinarias de bendición evangelística, de las
predicas y los libros escritos por el Pastor traducidos a varios idiomas, y
también a través de los programas de televisión transmitidos vía satélite por
Enlace Day Star desde norteamerica para todo el mundo, y de su ministerio
de alabanza, cuya música transmite la unción y el poder del Espíritu Santo”.
(http://www.claudiofreidzon.com).
É importante frisar que a pretensão globalizante não permanece
somente no propósito. Assim, Cláudio Freidzon, bem como os demais
protagonistas, reserva à circulação internacional um tempo importante de
seus ministérios. Consultando a agenda de Cláudio Freidzon, a partir de
junho de 2008 (extraído do site do próprio pastor), fica-se sabendo que ele
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esteve nos dias 28 e 29 de junho na International Church of Las Vegas, de
Paul Goulet, em Las Vegas, Estados Unidos; em 1 e 2 de agosto em Dallas,
também Estados Unidos; no dias 5 de setembro em Mendoza, Argentina;
de 9 a 11 de setembro na Cidade do México, na igreja de Juan José Aguilar;
de 22 a 24 de setembro em Buenos Aires, justamente no Breakthrough
Conference 2008; de 16 a 18 de outubro em Palermo, Itália, na igreja de
Dario Scuotto; de 8 a 11 de novembro em Red Deer, Alberta, Canadá;
de 26 a 28 de novembro em Barranquilla, Colômbia, na Iglesia Ministero
International El Camino; de 3 a 4 de dezembro em Springfield, Estados
Unidos, na Assemblies of God; e de 12 a 14 de dezembro em Madrid.
Para o ano de 2009, como também se pode ver em seu site, a agenda, embora incompleta, esclarece que Cláudio Freidzon esteve em 27 e 28
de março em Málaga, Espanha; de 6 a 10 de abril na Operação Vida, na
Argentina; em 15 e 16 de abril em New Jersey, Estados Unidos, e em 21 de
maio na Finlândia. De sua parte, Betty Freidzon esteve em Enlace, Costa
Rica, nos dias 16 a 18 de março14.
Durante o Breakthrough 2008, por ocasião da sua primeira pregação,
Cláudio Freidzon iniciou dizendo: “antes de predicar voy a mostrar un vídeo
en Dallas”. Tratava-se de um DVD de uma celebração, com duração de
uma hora, realizada nesta cidade norte-americana, em que ele próprio fora
o protagonista principal. Evidentemente, estava ele, desta forma, dando
uma demonstração e trazendo a prova de sua atuação internacional, nada
menos do que nos Estados Unidos, na maior potência mundial. Na mesma
pregação relatou sua viagem aos Estados Unidos, em 1992, para participar
da campanha de Benny Inn, que considera um momento fundante da sua
carreira evangelística.
Relativamente a Carlos Annacondia, consultando a sua agenda de
2008, embora incompleta, constante do seu site15, fica-se sabendo que
além de realizar várias campanhas evangelísticas em cidades do interior da
Argentina esteve também em cidades de outros países como em Montevidéu, no Uruguai; Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia; Palermo, na Itália;
Robledo, no México; Kiev, na Ucrânia.
Em sua primeira pregação no Breakthrough, Annacondia fez várias
vezes menções à sua circulação internacional. Disse, por exemplo: “Acabo
de llegar de Suíça...”; “Quando fue a los Estados Unidos...”; “En Malásia,
me encontre con...”.
Sergio Scataglini, por seu turno, parece privilegiar o global ainda mais
do que os demais pregadores. De fato, o alcance internacional figura como
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
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objetivo do seu ministério, como se pode ler em seu site: “el propósito de
Scataglini Ministries, Inc. es propagar el mensaje y fuego de santidad en
las naciones del mundo” (http://www.scataglini.com/espanol/acerca.htm)
Além disso, o site informa que “él viaja y ministra en diversas naciones a través del mundo. Ha ministrado en los Estados Unidos, Europa,
Latinoamérica, Oceania y el Lejano Oriente”.
Um olhar sobre a sua agenda para o ano de 2009, ainda que incompleta, dá uma dimensão da trajetória internacional deste evangelista. Em
janeiro, dias 25 a 28, e em fevereiro, dias 1 e 22, em Las Vegas, Estados
Unidos; em 29 de março, no “virtual meeting”, intitulado “All Spanish
Meeting - Open Heavens”; em 29 de março e em 3 de maio, novamente
em Las Vegas, na International Church of Las Vegas; nos dias 17 a 19 de
julho, em Wachington, no “Fire of His Holiness Conference”; nos dias 11
e 18 de outubro e 22 de novembro, novamente em Las Vegas. (http://www.
scataglini.com/espanol/itinerario.htm).
Por ocasião do Breakthrough Sergio Scataglini também fez várias
menções às suas andanças internacionais. Assim, no primeiro encontro
disse, por exemplo: “Venimos de Austrália ahora”; “Estuvimos en Malásia...”; “Ahora en Zingapura me encontre con...”; “Estive pregando en
Nova Zelandia...”.
Como se pode ver, todos os pregadores deixaram claro, de saída,
seu status e qualificação de pregadores internacionais, ouvidos por públicos
de países diferentes, mesmo naqueles em que predominam outras culturas
e outras religiões. Note-se, também, que nenhum dos pregadores - e não
por acaso - mencionou publicamente suas viagens para países da América
Latina. Isto é demasiadamente trivial para eles, mesmo porque a maioria dos
que os ouviam na Igreja Rey de Reyes provinham da América Latina. Eles,
ao contrário, inscrevem seu discurso na política de um imaginário muito
mais amplo. Por isso, falam de países distantes, mencionam contatos com
pessoas de outros continentes, deixando claro, desta forma, sua distinção,
o prestígio de que são detentores.
Porém, a importância atribuída aos países do norte pelos promotores
do Breakthrough, expressa em suas falas, revela uma concepção geo-política
peculiar das nações, considerando-as mais modernas do que as nações do
sul, mais especificamente as da América latina. Assim, não por acaso mencionam seguidamente suas incursões e passagens pelos Estados Unidos,
Canadá e alguns países europeus tidos como mais “evoluídos” (Suíça, Itália,
França, Inglaterra, Espanha). Assim procedendo os líderes do Breakthrough
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
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ARI PEDRO ORO
estão reproduzindo, sem questionarem, uma ideologia recorrente na sociedade que concebe os países do norte como sendo os mais desenvolvidos,
assegurando-lhes, consequentemente, maior prestígio e status.
Uma questão sociológica fica, porém, em aberto, a saber: haveria alguma relação entre a circulação internacional dos líderes religiosos argentinos
mencionados e a migração argentina de classe média, ou, mais amplamente,
com a imigração de latino-americanos para os Estados Unidos e para a
Europa? Somente uma pesquisa mais aprofundada poderia dar conta da
relação entre a atuação transnacional dos líderes pentecostais argentinos e
os movimentos migratórios.
Seja como for, vale registrar que os pastores argentinos em questão,
ao darem tanta importância às suas carreiras internacionais, estão, de alguma
forma, seguindo um modelo de prática evangelística norte-americana, na
qual se espelham. Basta ver, por exemplo, a ampla circulação internacional do
pastor Benny Hinn (http://www.bennyhinn.org), tido, em grande medida,
como o ministério modelo para os Freidzon e para Scataglini. Ademais, o
know-how evangélico norte-americano aparece também em outros procedimentos ritualísticos, como o “desmaio, a queda, no Espírito”.
Não iremos aqui abordar a questão das redes religiosas transnacionais16, em tempos de globalização (Abelès, 2008; Colonomos, 2000). Mas,
é importante frisar que a lógica associativa vincula os protagonistas do breakthrough a redes transnacionais que repousam nas relações de cumplicidade
e bom relacionamento com agentes religiosos de outros países. Neste caso, a
observação feita por Noret acerca das redes evangélicas personalizadas africanas valem também para os promotores do breakthrough e seus vínculos
internacionais. Diz aquele autor: “La dimension transnationale que peuvent
acquérir de tels réseaux contribue incontestablement à la (re)production du
capital symbolique des “hommes de Dieu” engagés” (Noret, 2005, p. 431).
Além da circulação internacional, outro aspecto que expressa a abertura global dos protagonistas do breakthrough reside no uso importante
que fazem da internet.
2.2. A circulação internacional e a Internet
Coerentes com uma das características do que normalmente se denomina de neo-pentecostalismo (Mariz, 1995; Oro, 1996; Mariano, 1999), ao
longo de suas carreiras os protagonistas do Breakthrough fizeram imporCiencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
O GLOBAL E O NACIONAL NUM ENCONTRO EVANGÉLICO...
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tante uso dos meios de comunicação de massa, especialmente do rádio, da
televisão e da mídia impressa, como veículos de divulgação da mensagem
religiosa. Mas, além desses meios, eles também fazem uso importante da
internet. Ela está se tornando a ferramenta privilegiada, tanto nas comunicações interpessoais, mediante o uso de programas como Massenger e
skype, quanto no portal como forma de divulgação dos seus ministérios.
De fato, todos eles possuem um site bem construído, que permite
inclusive acesso a reuniões ao vivo, escuta de programas de rádio, acesso
a vídeos, efetuar compras, etc. Exemplifiquemos com o site de Freidzon,
que contém os seguintes itens: home; acerca de nós (Dr. Cláudio Freidzon,
Betty Freidzon e Ministério das Nações); agenda (de ambos); multimídia
(contendo devocionais, reuniões ao vivo, galerias de fotos e vídeos); células
(contendo material passível para ser baixado para uso nas “igrejas em célula”)
e contate-nos (sub-dividido em convites, pedidos de oração e informações
gerais). Além disso, oferece em destaque a agenda 2009, galeria de fotos,
tenda online e bookstore.
Entre os pastores e evangelistas aqui referidos, Scataglini é sem dúvida
aquele que levou mais à frente o uso da internet, pois fundou, em abril de
2003, uma igreja virtual chamada ComunioNet, que pode ser acessada no
site http://www.comunionet.com/.
Segundo se pode ler no próprio site, ComunioNet consiste numa
“iglesia internacional que fue fundada en la internet. Está formada por
grupos de personas de distintos lugares que se “reúnen” vía computadora.
El fundador y Pastor de la iglesia es el Reverendo Sergio Scataglini. Actualmente, la congregación consiste de personas que se conectan desde Argentina, Italia, España, Perú y varios lugares en los Estados Unidos. Para más
información, escríbenos. También se están formando líderes en la Escuela
de Líderes cada semana”.
Trata-se de uma igreja virtual onde predomina a impessoalidade e o
anonimato dos fiéis. Esse modo de ser religioso - que lembra as missas televisivas - além de ser compatível com a modernidade religiosa - caracterizada
pela individualização do crer, recuo das práticas e busca da emoção - revela
que “dans la modernité religieuse, il n´y a plus vraiment de lieu spécifique
du religieux, qui peut se vivre partout” (Jonveaux, 2007, p. 173).
No site de Sergio Scataglini pode-se ler uma carta aberta dirigida
aos pastores, na qual afirma que fará das reuniões virtuais sua prioridade,
posto que assim
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
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ARI PEDRO ORO
“Usaremos la internet para alcanzar nuestra audiencia virtual con la computadora como nuestro pulpito. En vez de viajar durante dias a través del
mundo en avión, nos conectaremos ahora virtualmente con compañeros
cristianos, iglesias y todos aquellos en necesidad de Cristo en cada continente,
virtualmente”!
Se, continua ele,
“personas con ideas seculares han infectado la internet, promoviendo sus
agendas corruptas, las cuales incluyen inmoralidad sexual, ataques contra la
institución de la familia y la defensa de una cultura anti Jesús, el Señor nos
ha llamado a usar la internet para confrontar y oponernos a esta corrupción.
Usamos la internet para orar, predicar y expandir el santo Reino de Dios a
través de un discipulado virtual”.
A carta finaliza com um convite, e mesmo convocação, aos pastores,
para se engajarem no projeto “Cielos Abiertos” na internet”17. Pode-ser
ler no site: “Sea parte de lo nuevo que Dios está haciendo en el mundo!
Después de varios años de viajar a las naciones, Dios llamó al Pastor Sergio
Scataglini a “conquistar la Internet”.
No site deste pastor nota-se que a sua igreja virtual, se por um lado
parece substituir a prática religiosa comunitária, por outro não desconsidera
as comunidades locais, que são convidadas a se conectarem com a igreja
virtual. Para tanto, esclarece aos pastores quais são os equipamentos necessários para a sua congregação participar da igreja virtual18.
Coerente com a ênfase dada à internet e, por suposto, ao computador,
durante o breakthrough Scataglini realizava suas pregações fazendo uso de
um “laptop” Apple, colocado sobre uma pequena mesa. Nele figurava não
somente o roteiro da sua pregação, mas, também, a bíblia, de tal sorte que
enquanto ele solicitava aos fiéis para que abrissem suas bíblias, ele lia a bíblia
na tela do seu laptop. Portanto, ele não manuseava a bíblia e sim o laptop,
no qual se encontrava a bíblia, agregando, assim, ao laptop um significado
simbólico, sacralizando-o, em certa medida.
3. A simbólica da Nação no breakthrough
Até aqui vimos a importância que a dimensão global assume tanto no
breakthrough quanto nas trajetórias dos seus protagonistas. Mas, o mesmo
evento encerra também outra dimensão, ou seja, a ênfase no local e no naCiencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
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cional, revelando que nele o global e o nacional andam juntos; o primeiro
não ofusca o segundo, não elimina as identidades nacionais. Vejamos alguns
indicadores que atestam a ênfase no local e no nacional no breakthrough.
Logo no primeiro dia, antes de Scataglini iniciar sua pregação, um
pastor norte-americano, que atuou como seu tradutor, tomou a palavra para
informar não somente o número de inscritos existentes até aquele momento,
mas, também - e sublinhou este aspecto - as suas diversas procedências nacionais. O mesmo fez Cláudio Freidzon e Carlos Annacondia ao iniciarem
suas pregações. Exaltaram e nominaram os vários países ali representados.
Se, por um lado, assim procedendo estavam, simultaneamente, expressando
a grandiosidade do evento e destacando a idéia de nação, por outro lado, o
fato de darem mais ênfase aos países do Norte, quando nominados, revela
novamente, como já mencionamos acima, as suas representações de reconhecimento diferenciado de atribuição de status e poder entre as nações.
O enaltecimento das nações também ocorreu durante as pregações,
na forma de “vivas” e “salves” aos diferentes países que naquele ano estavam
representados no Breakthrough. Mas, as formas mais visíveis da presença
do nacional, e do local, ocorreram por ocasião das preces e na ostentação
das bandeiras nacionais.
De fato, além de diversas orações endereçadas aos fiéis e aos pastores
individualmente e a seus ministérios, para alcançarem as graças esperadas
e retornarem cheios do Espírito Santo, os protagonistas fizeram várias
preces dirigidas às cidades e às nações das quais os participantes do evento
provinham. Neste sentido, ouviu-se durante o evento frases como estas:
“Vas a ver tu ciudad de forma diferente” (Scataglini);
“Vas a ver tu nación de forma diferente” (Scataglini);
“Levanta la cruz en tu pais” (Scataglini);
“Voy cambiar mi pais; mi nación” (Scataglini);
“Dios bendiga Bolívia, Chile, Brasil...” (Cláudio Freidzon);
“Dios bendiga Argentina, Peru, Estados Unidos, los paises de Europa”
(Claudio Freidzon);
“Que Jesús sea el centro de nuestra ciudad, de nuestra nación” (Annacondia);
“Levanten las manos para cambiar tu ciudad, para cambiar tu nación”
(Annacondia).
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
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ARI PEDRO ORO
Desta forma, nesse encontro religioso internacional, o nacional e o
local são recordados nas orações e preces pronunciadas. Mas, a mais significativa evocação da nação ocorreu através da ostentação de bandeiras dos
diferentes países representados no evento.
A bandeira como símbolo nacional, de uma nação, seu governo,
sua gente e suas instituições, data da Revolução Francesa, que a instituiu
como símbolo de todo governo republicano (Orlove, 1982, p. 142). R.
Oliven sustenta, a partir de Durkheim e seu estudo sobre o totemismo,
que a bandeira, enquanto símbolo de um país, consiste num “emblema que
acaba se tornando mais sagrado que a realidade que representa” (Oliven,
2006, p. 18)19.
As bandeiras nacionais foram fartamente desfraldadas, expostas e
vistas por ocasião do breakthrough, numa demonstração clara dos distintos
pertencimentos nacionais dos seus participantes.
Porém, paradoxalmente, não havia bandeiras nacionais expostas no
palco, ou altar, do evento. As bandeiras foram trazidas e ostentadas pelos
participantes. Isto pode estar revelando que os organizadores do breakthrough pretendiam afirmar e fortalecer sobretudo o caráter transnacional do
evento - por isso não expuseram bandeiras nacionais (elas evocariam as
nações em particular) - enquanto que os fiéis, embora não se opusessem
à dimensão internacional do evento, desejavam que nele também fossem
expressos publicamente os seus pertencimentos nacionais.
Com efeito, a observação etnográfica revela que as bandeiras foram aparecendo aos poucos na paisagem do recinto. No início não se via
nenhuma bandeira. Mas já na primeira hora, do primeiro dia, surgiu uma
bandeira brasileira, de tamanho normal, no segundo andar do recinto. Pouco
depois, no mesmo andar, mas no lado oposto, duas bandeiras uruguaias
foram expostas numa espécie de parapeito. Ato contínuo, no segundo
andar, onde eu me encontrava, pude ver bandeiras de outros países nas
mãos de fiéis em oração: do Uruguai, do Paraguai, da Argentina, da Bolívia, dos Estados Unidos. Já no final da primeira pregação notava-se várias
bandeiras, de diferentes nacionalidades, ostentadas e plenamente visíveis
em diferentes locais da igreja. Com o passar das horas, outras bandeiras,
de tamanho normal ou pequenas - estas seguradas em cabos de madeira
- eram erguidas, evidenciando outras nacionalidades, como Chile, País de
Gales, Canadá, China.
Pode-se perceber no gesto mimético de desfraldar as bandeiras a expressão da identidade contrastiva, ou seja, o pensamento “nativo” segundo
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
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o qual se “eles” expõem suas identidades nacionais através das bandeiras,
“nós” também a externamos, ostentando a nossa bandeira. Isto ocorreu
numa atmosfera cordial, mas que deixava transparecer no ar também a
existência de um certo desafio e tensão social, embora sutis.
O espetáculo das bandeiras continuou ao longo de todo o evento,
sejam elas pequenas, carregadas nas mãos, ou maiores, seguradas por uma
ou mais pessoas ou, ainda, envolvidas nos corpos dos fiéis.
Neste particular, há um dado relevante que revela a sensibilidade de
Cláudio Freidzon. Como já disse, este pastor, em cujo templo estava sendo
realizado o breakthrough, não por acaso não expôs nenhuma bandeira no
palco, contrariamente ao que é de praxe em encontros internacionais semelhantes20. Ora, na tarde do primeiro dia do encontro, quando ele estava
ocupando o microfone, ao notar que aumentava cada vez mais o número
de bandeiras nacionais entre os fiéis, convidou os seus portadores a se
aproximarem do palco e brandirem suas bandeiras, ocasião em que dezenas
de pessoas fizeram um belo espetáculo de bandeiras se encontrando e se
cruzando. Assim, o que poderia ter sido motivo de tensão entre o grupo
dirigente e os fiéis constituiu-se numa vigorosa e apoteótica expressão das
identidades nacionais neste evento internacional.
Desta forma, a articulação entre o global e o local, o transnacional
e o nacional, pode constituir uma chave explicativa para o êxito desse modelo de prática evangélica, de forma semelhante ao que ocorre na África,
cuja explicação do sucesso dos pentecostalismos transnacionalizados não
pode ocorrer “sans comprendre comment les chrétiens africains y trouvent
la reconnaissance de leur congolité, de leur akanité ou de leur ivoirité...”
(Mary, 2008, p. 14).
Esta afirmação de André Mary se inscreve na perspectiva contrária
ao imperialismo cultural, o qual “suppose une passivité totale des sujets,
alors que la réalité s´avère plus complexe” (Abelès, 2008, p.45). De fato,
como lembra Ruben G. Oliven, “a criação de manifestações culturais
mundializadas não significa que as questões locais estejam desaparecendo.
Ao contrário, a globalização torna o local mais importante do que nunca”
(Oliven, 2006, p. 206)21.
Trazendo esta questão para o breakthrough, pode-se reafirmar que a
sua face transnacional e globalizada não ofusca, antes provoca, a emergência
do sentimento de nacionalidade dos seus participantes, ou seja, seu vínculo
ao Estado-nação. Assim, em tempos de globalização, em que “on assiste à
une fragilisation non seulement de la puissace étatique, par le jeu conjugué
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
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du marché et des organisations transnationales, mais aussi des représentations qui s´atttachent à l´Etat (Abélès, 2008, p. 141-143), e do surgimento
de nacionalismos que não tomam o Estado como referência, vemos, num
evento evangélico internacional, aflorar o sentimento de pertencimento
coletivo a uma “comunidade de sentimento” – que é muito mais do que um
aparato jurídico, segundo nos ensina M. Weber - a um “ideal de Estado”,
chamado Estado-nação (Id. Ibid., p. 139).
Portanto, no âmbito de uma comunidade transnacional em que a
identidade religiosa (evangélica pentecostal “de fogo”) se apresenta robusta, num evento religioso (breakthrough) em que a globalização é explícita
e constantemente evidenciada, vemos, também, ou, quem sabe por essa
mesma razão, o Estado-nação ser simbolicamente acionado e, com ele, o
sentimento de pertencimento nacional. Isto mostra, como destaca René
Otayek, a partir de estudos de eventos religiosos internacionais africanos, que
“l´Etat-Nation reste un cadre d´analyse pertinent de l´étude des réseaux
religieux essentiellement parce que les ressources matérielles, symboliques
et sociales de la mondialisation religieuse sont largement réinvesties dans un
contexte local/national, et dans l´espace public/politique” (Otayek, 2005,
p. 186).
Conclusão
A abertura internacional dos protagonistas do Breakthrough visando
conquistar as nações para o Senhor, ou seja, a sua circulação transnacional
e o uso intenso da internet como meio de comunicação e de divulgação
da mensagem religiosa, inscrevem-nos no “espírito do tempo”, ou seja, no
mundo globalizado. Por diferentes aspectos, essa dimensão do global foi
trazida para o evento de Buenos Aires simultaneamente à dimensão nacional.
Por isso, nele se pensa o global, mas, também, se fortalece o local: a nação,
as nações. E mais, tudo indica que ali o global é pensado a partir do local.
Assim sendo, este estudo de caso reproduz o que parece ser a tônica
do processo atual de globalização da cultura, a qual, ao mesmo tempo em
que “dá a impressão de que vivemos numa aldeia global, acaba repondo a
questão da tradição, da nação e da região” (Oliven, 2006, p. 208).
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Notas
Este texto resulta do apoio obtido pela bolsa produtividade do CNPQ. Também foi discutido no âmbito do projeto “Transnacionalização religiosa”, do acordo CAPES/NUFFIC,
em desenvolvimento desde 2009, entre o PPGAS da UFRGS e a Universidade Livre de
Amsterdam.
2
No final do mês de setembro do ano seguinte acompanhamos, no mesmo local, a edição
do “Breakthrough 2009”, o que nos permitiu aprofundar certas observações e análises realizadas no ano anterior. Em ambas as observações etnográficas participou comigo o então
doutorando Daniel Alves, do PPGAS da UFRGS, que, em março de 2011, defendeu sua tese
intitulada: “Conectados pelo Espírito”: redes pessoais de contato e influência entre líderes
carismáticos e pentecostais ao sul da América Latina. Várias idéias constantes neste texto
foram previamente discutidas com Daniel Alves. Ele também leu a primeira versão deste
texto e deu sugestões, razão pela qual deixo registrado a ele, assim como aos pareceristas
anônimos da revista, o meu agradecimento.
3
Originada no pentecostalismo sul-coreano, tal forma organizacional está se espalhando nos
meios evangélicos latino-americanos na forma de encontros de um certo número de fiéis nas
casas dos membros desses grupos enquanto atividades complementares aos cultos realizados
nos templos. Assemelham-se a outro modelo, conhecido como grupo “G12” (“grupo de
doze apóstolos”), desenvolvida pelo colombiano Carlos Castellanos, com a diferença de
que enquanto este último possui como “missão” compor outros grupos “G12”, a “igreja
em célula” se restringe a um pequeno número de fiéis que se reúnem, geralmente nas casas
dos fiéis, para uma atividade religiosa.
4
Isto é, no Site: <http://srv9nexolife.com/claudiofreidzonsite/index.php?option=com_co
ntent&task=blogcategory&id=10&Itemid=47> (acesso em 22 de setembro de 2008).
5
Tratava-se de uma ficha simples, onde deveriam ser preenchidos os seguintes itens: nome,
sobrenome, e-mail, endereço, cep, país, telefone, igreja de pertencimento e atividade que
executa na igreja.
6
Até o dia 15 de setembro os argentinos pagavam 50 pesos, os demais latino-americanos 80
pesos e os provenientes de outros países 80 dólares norte-americanos. (Na oportunidade 1
dólar norte-americano correspondia a 3,20 pesos argentinos). Após o dia 15 de setembro os
valores subiam para 60 pesos para os argentinos, 100 pesos para os provenientes de outros
países latino-americanos e 100 dólares norte-americanos para os participantes de outros
países. Havia ainda preços especiais para casais: até o dia 15 os argentinos cada casal pagava
85 pesos, os demais casais latino-americanos 135 pesos e os de outros países 130 dólares.
Após essa data, o preço subia para 95 pesos para casais argentinos, 150 pesos para casais de
outros países da América latina e 150 dólares para os casais provenientes de outros países.
Enfim, pastores argentinos estavam isentos do pagamento da taxa de inscrição.
7
Uso aqui os termos êmicos de referência aos protagonistas, ou seja, os termos como
constam na programação do evento.
8
Para uma recuperação histórica da implantação do protestantismo na Argentina, especialmente do avivamento pentecostal, ver Frigerio, 1994; Wynarczk e Semán, 1995; Saracco,
1993; Semán, 2000; Grams, 2007, Wynarczk, 2009.
1
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
62
ARI PEDRO ORO
Citamos, entre outros, os seguintes pastores: Hector Gimenez, Omar Cabrera, José Manuel Carlos, Osvaldo Carnival, Guilhermo Prein, Hugo Weiss, Omar Olier, Jorge Marquez,
Alberto Scataglini, Pedro Ybarra.
10
De fato, como sustenta R. Otayek, os fluxos religiosos “ont toujours su transcender les
logiques territoriales. C´est non seulement le cas des religions monothéistes, universalistes
par nature, mais également, et de plus en plus, des cultes traditionnels... ” (Otayek, 2005, p.
186). Por seu turno, Mary e Fourchard, referindo-se às igrejas proféticas ou independentes,
de origem africana, sustentam que elas “n´ont pas attendu la “mondialisation” pour affirmer
leur vocation transnationale et ont depuis plusieurs décades une implantation attestée non
seulement dans de nombreux pays africains, limitrophes ou non, mais aussi en Europe et aux
Etats-Unis, au moins par le biais de la migration et de la formation de “diasporas” religieuses
africaines” (Mary e Fourchard, 2005, p. 9-10). No que concerne a América Latina, como
destacou R. Segato, a globalização ocorre mais devido à transnacionalização de produtos e
práticas culturais (entre as quais as religiões), do que pela mobilidade espacial de populações
através de fronteiras nacionais” (Segato, 1997, p. 223). Tal transnacionalização religiosa ocorre
tanto no campo evangélico, especialmente com igrejas como Universal do Reino de Deus
e Deus e Amor (Oro, Corten e Dozon, 2003), quanto com os cultos afro-brasileiros (Oro
1999; Frigerio, 1998; Pi Hugarte, 1997) e com o espiritismo. Trata-se de dinâmicas religiosas
que ocorrem há várias décadas, especialmente a que concerne as religiões afro-brasileiras,
sobretudo em seu processo de expansão do Rio Grande do Sul para os países do Prata.
11
Optei, neste texto, por associar os termos globalização e transnacionalização, embora saiba
que tal associação, ampliada ainda pelo conceito de mundialização, tem provocado debates
entre os especialistas da questão. S. Capone analisa este debate e mostra, por exemplo, que
Stuart Hall rejeita a noção de globalização e U. Hannerz mantém preferência pelo termo
transnacionalização, o qual é, por seu turno, rejeitado por Jonathan Friedman. Ela própria
parece preferir o termo transnacionalização ao analisar o processo de desterritorialização
das religiões afro-americanas, isto porque “l´approche transnationale permet, entre autres,
de révéler la nature essentiellement politique de la religion (...). L´analyse des relations
transnationales ne fait pas nécessairement l´impasse sur le rôle joué par l´Etat... ”, destaca
a autora (Capone, 2004, p. 17).
12
Para M. Abelès, a globalização deve ser compreendida como “une accélération des flux
de capital, d´êtres humaines, de marchandises et d´images et d´idées” (Abelès, 2008, p. 2728). Em outras palavras, como fato e como imaginário. Aliás, vários autores chamaram a
atenção para o aspecto não empiricista da globalização. Assim, para E. Pace, trata-se menos
de descrevê-la e defini-la e mais de entendê-la como “um instrumento metodológico de
pesquisa e de compreensão da realidade social contemporânea” (Pace, 1997, p. 26); um “texto,
um recurso cultural, acionável por diferentes agentes e em diferentes contextos”, diz O.
Velho (Velho, 1997, p. 54); uma “vontade de agentes situados em posições de influência no
campo da política e das finanças internacionais”, sustenta R. Segato (Segato, 1997, p. 221).
13
A título de exemplo, as igrejas latino-americanas mais representativas deste perfil são as
brasileiras Universal do Reino de Deus e Deus é Amor, e a mexicana Luz Del Mundo. Na
África destaca-se a Church of Pentecost, de Gana, e a Eglise du Christianisme Celeste, de
Nigéria.
9
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Segundo Grams, Freidzon já esteve nos cinco continentes e em mais de cinquenta países
do mundo. Afirma este autor que “más de tres millones de personas han estado involucradas
en alguna campana con él (Freidzon), tratándose de ministración cara a cara, sin contar el
ministerio extensivo de televisión y vídeo” (Grams, 2007, p. 108).
15
<http://www.carlosannacondia.org/default.asp?pagina=agenda> (acesso em 30/10/2008)
16
Desde Barnes, na década de 1950, o tema das redes sociais ocupa um lugar importante nas
Ciências Sociais. Ariel Colonomos define rede social como uma “organização social composta
de indivíduos ou grupos cuja dinâmica busca a perpetuação, a consolidação e a progressão
das atividades de seus membros numa ou várias esferas sociopolíticas” (Colonomos, 1995,
p. 22). Segundo a literatura, as redes podem ser formais, informais e ilícitas e, via de regra,
se desenvolvem tanto de forma paralela ao Estado quanto atuando com ele (Saltalamacchia
e Tickner, 2007, p. 12-13; 76-77). Mitchell chamou a atenção para a importância assumida
por certos líderes de redes que atuam como “âncoras” ou figuras “nós” (Mitchell, 1974).
17
Esclarece que “Cielos Abertos” “Es otra estratégia del Espíritu Santo para preparar las
iglesias para un gran avivamiento, interconectándolas para que cada congregación pueda
participar del mover de Dios que esperamos”. “Cielos Abiertos” consiste en reuniones
“unidas” entre siete iglesias interconectadas por la Internet. Las congregaciones y el Pastor Sergio pueden verse y oírse mutuamente y son ministradas a la vez. Contáctenos para
<http://www.scataglini.com/espanol/invitacion/Cielos%20Abiertos%20Brochure.pdf>
(Acesso em 29/6/2009).
18
Trata-se de um computador, uma conexão rápida de Internet, um projetor (para projetar
do computador a uma tela), uma tela grande, um sistema de som e uma câmera de video
ou webcam. No site ainda é esclarecido em que locais do templo devem ser colocadas as
câmeras de vídeo e as caixas de som Ver <http://www.scataglini.com/espanol/invitacion/
Requisitos%20y%20Procedimientos.pdf> (Acesso em 29/6/2009).
19
R. Oliven recorda ainda outra colocação de Durkheim, a de que o soldado que cai defendendo sua bandeira certamente não o faz acreditando ter se sacrificado por um pedaço
de pano (Oliven, 2006, p. 18). Nesta mesma perspectiva de sacralização da bandeira, enquanto símbolo da pátria, Orlofe relata que por ocasião da guerra do Pacífico, entre Peru
e Chile, entre os anos de 1879 e 1883, Alfonso Ugarté, vendo que a batalha em Arica, em
1880, estava sendo definitivamente vencida pelos chilenos, “jura qu´il défendrait le drapeau
péruvien jusqu´à la mort. Il saisit le drapeau, sauta sur un cheval et se precipita, du haut
de la falaise, dans l´Océan Pacifique. Son corps ne fut jamais retrouvé” (Orlove, 1982, p.
142-143). Evidentemente, hoje Alfonso Ugarté ocupa um lugar importante na martirologia
política nacional do Peru.
20
No continente africano, por exemplo, esclarece André Mary, nas grandes concentrações
evangélicas, especialmente nas “missas das nações”, ostenta-se em torno dos altares bandeiras
de cada país africano (Mary, 2008, p. 19).
21
Esse debate acerca do imperialismo cultural e sua relativização se tornou famoso com a
ilustração da tese da McDonalisation do mundo e a “inéluctable homogénéisation des styles
de consommation et de l´imaginaire à l´échelle planétaire”, de um lado (tese de George Ritzer), e suas reservas, expressas por James Watson, mostrando como, no continente asiático,
“la réception du système McDonald´s varie selon les pays d´accueil” (Abelès, 2008, p. 43).
14
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
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ARI PEDRO ORO
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Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 43-65, setembro de 2011.
AS APARIÇÕES DE NOSSA
SENHORA EM JACAREÍ:
CONTINUIDADE E MODELAGEM
Lílian Sales
Universidade Federal de São Paulo - Unifesp
Resumo: Neste artigo analisamos o processo de modelagem realizado na aparição de Nossa Senhora na cidade de Jacareí, no interior do Estado de São Paulo.
Observamos como, por meio deste processo, acontece a aproximação entre este
fenômeno e um padrão de aparições formado durante o final do século XIX na
Europa, destacando a centralidade do reconhecimento dos elementos simbólicos
recorrentes em aparições marianas para a construção da legitimidade da manifestação de Jacareí.
Palavras chave: Aparições de Nossa Senhora; Igreja Católica; Santuários.
Abstract: This paper analyzes the modeling process performed in the apparition of
Our Lady in the city of Jacareí, São Paulo State. The links between this phenomenon and a pattern of apparitions formed during the late 19th century in Europe
were observed though this process. The symbolic elements were also central and
fundamental to give legitimacy for Virgin Mary’s appations in Jacareí.
Keywords: Our Lady’s appartitions; Catholic Church; Sanctuaries.
Introdução
As aparições de Nossa Senhora são fenômenos antigos no cristianismo. Imagens e pinturas da Idade Média já retratavam as visões de Maria
para monges e religiosas. No entanto, apesar de sua antiguidade, estas manifestações permanecem atuais, havendo, inclusive, autores que defendem
a existência de um novo “surto” de aparições marianas a partir da década
de oitenta do século passado, que teve origem e se fortaleceu a partir da
aparição da Virgem Maria na Vila de Medjugorje, na antiga Iugoslávia. Esta
aparição transformou a pacata localidade em um dos maiores Santuários
marianos da atualidade.
A devoção a Nossa Senhora, em suas diversas denominações e
invocações, é característica marcante da religião católica. Especialistas que
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LILIAN SALES
analisaram as aparições na atualidade destacam que esses fenômenos têm
aumentado nas últimas duas décadas (Mariz, 2000; Steil, 1995). Zindards-Swartz (1991), ao analisar as aparições de Nossa Senhora em Medjugorje,
afirma a existência de um surto de aparições marianas nos últimos anos
- vale à pena destacar que esse surto de aparições, a partir da década de
oitenta, é simultâneo ao momento em que o movimento católico Renovação Carismática Católica (RCC) se expande e ganha força, não apenas no
Brasil, mas em todo o mundo. De acordo com estes estudiosos, centenas
de aparições vêm sendo relatadas nas últimas décadas, várias delas no Brasil
(Steil, 2003; Almeida; 2004).
Surto semelhante foi constatado na França durante o século XIX, em
que uma série de manifestações foram sucessivamente reconhecidas pelo
Vaticano. Neste período houve a constituição de um modelo de aparições
marianas, um conjunto de características destes fenômenos foi sistematizado, constituindo um padrão (Gillet, 1994). Neste artigo analisaremos dois
elementos centrais deste padrão: o relato das aparições e o santuário, o local
em que Nossa Senhora se manifesta a um vidente, capaz de vê-la e de receber
as suas mensagens. Estes dois elementos se mostraram fundamentais no
processo de construção da legitimidade das aparições de Nossa Senhora
na cidade de Jacareí, interior do São Paulo, caso específico a ser estudado.1
O relato das aparições (sua história) e o seu santuário serão analisados,
demonstrando como suas características vão sendo construídas de forma
a legitimar as visões por meio da aproximação ao padrão constituído na
modernidade. As novas manifestações, como Jacareí, para serem percebidas
como legítimas devem possuir elementos de proximidade com o padrão
formado no século XIX, sendo o reconhecimento dos elementos simbólicos
e de características das manifestações modernas central para a constituição
da veracidade da crença nas aparições contemporâneas.
Importa destacar que este não é o único fator legitimador destes
fenômenos. Ampla bibliografia demonstra a importância das peregrinações, da circulação de pessoas, símbolos e idéias, muitas vezes por meio
do movimento Renovação Carismática, para a constituição da legitimidade
das aparições. Em artigo anterior (Sales, 2009) abordamos dois aspectos
centrais destes fenômenos: a circulação das manifestações e a circulação de
pessoas para os Cenáculos – rituais em que acontecem as manifestações.
Nosso esforço consistiu em sistematizar toda a mobilização que caracteriza
estes fenômenos e que se mostrou fundamental para a existência de uma
série de manifestações marianas.
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Se, por um lado, essa circulação tem características de peregrinação,
pois se trata da locomoção de pessoas para os locais onde ocorrem aparições da Virgem, por outro lado, porém, não se trata apenas de mobilidade
de pessoas para um Santuário. Os próprios fenômenos também circulam,
e junto a ele circulam símbolos, idéias e práticas.
As manifestações marianas atuais são marcadas pela fluidez: no que
se refere ao espaço – ocorrendo onde estiverem os peregrinos – como
também no tempo, sendo que várias delas não possuem uma periodicidade
fixa. Para serem realizadas dependem da eficiência de uma rede, bastante
ampla, que se articula para a organização do Cenáculo e das peregrinações –
responsabilizando-se pela divulgação, contatos e financiamento dos rituais.
Assim, pessoas e das manifestações circulam, e nesta circulação,
que se faz em forma de rede, destaca-se a intermediação do movimento
carismático. Ele é o responsável pelo preparo das peregrinações, pela disseminação de informações e contatos e pela organização financeira dos
eventos. Esta rede é complexa e extensa, utilizando-se de toda a estrutura
da RCC, suas redes de rádio e televisão para a divulgação de roteiros turísticos para Santuários Marianos, bem como de seus recursos financeiros
para providenciar viagens de videntes a esses Santuários, ou para trazê-los
para comunidades carismáticas.
A inserção nesta rede, marcada pela intensa circulação e troca de
contatos por diferentes meios - redes de televisão e rádio, sites na internet,
jornais e revistas – mostrou-se central para a existência do fenômeno,
demonstrando aspectos de inovação das aparições contemporâneas em
relação às aparições modernas (Sales, 2009).
Entretanto, neste artigo deveremos analisar outro aspecto fundamental das aparições marianas no mundo contemporâneo: os elementos
de continuidade entre as manifestações da atualidade, como no caso do
fenômeno de Jacareí, e um modelo de aparições formado durante o final
do século XIX e início do século XX na Europa, demonstrando como a
adequação a este modelo constitui parte fundamental do processo de legitimação das novas manifestações, possibilitando, inclusive, a sua inserção
no circuito de aparições aceito e divulgado pela RCC, sendo concebido
como uma das manifestações para as quais a peregrinação é incentivada.
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LILIAN SALES
1. Continuidade Simbólica e Modelagem
nas Aparições Contemporâneas
Os estudiosos marianos afirmam a existência de um modelo de aparições de Nossa Senhora formado no século XIX. No entanto, esta questão
não é consensual, não havendo sequer unanimidade sobre a concepção de
que as aparições marianas são fenômenos característicos do período mencionado. Syvie Barnay (2000) em sua obra “Le ciel sur la terre: les apparitions
de la vierge au moyen age” afirma que as aparições de Nossa Senhora estão
presentes de forma significativa no catolicismo há muitos séculos, tendo
surgido no século IV e nunca deixando de existir, contabilizando mais de
5000 relatos entre o século IV e o século XX.
No ocidente as visões se intensificam por volta do século X, e ocorrem principalmente para os monges, através de sonhos. Nesse período são
construídas várias catedrais dedicadas a Nossa Senhora, é o momento de
grande difusão da devoção a Maria no ocidente. Importa destacar que a
figura da mediadora entre Deus e os homens começa a se constituir neste
momento. Ela é considerada responsável pelas relações entre os homens e
a hierarquia celeste, por isso lhe pedem clemência, pois ela se encarregará
de estabelecer o contato com o mundo divino. Segundo Barnay, são os
monges de Cluny que começam a chamá-la de Mãe de Misericórdia, por
ser a responsável pelos pedidos de clemência realizados pelos homens.
A concepção de Maria como mediadora e como Mãe de Misericórdia
é central nas aparições contemporâneas, sendo parte importante da simbologia mariana nestes eventos. Há, pois, elementos importantes presentes nas
aparições que possuem origem bastante anterior ao período de formação
de um modelo para estes fenômenos: o século XIX - elementos simbólicos
de longa duração no imaginário católico e que permanecem presentes nas
manifestações atuais.
Entretanto, apesar da permanência dos traços de longa duração, vários elementos das aparições marianas têm origem nas aparições modernas,
como demonstraremos a seguir. Porém, há também elementos centrais destes eventos que já estavam constituídos e presentes no imaginário católico
no século XIX. Ou seja, apesar deste momento ser considerado inaugural
por alguns autores, importantes elementos simbólicos que as constituem
não são novidades estabelecidas pelas aparições modernas. Pelo contrário,
estudos sobre as aparições marianas deste período demonstram que elas
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apenas obtêm legitimidade devido ao reconhecimento dos elementos simbólicos por parte da população local.
Vale a pena nos aprofundarmos neste tema. Para isso nos reportamos ao estudo realizado por Ruth Harris (2001) sobre a aparição de Nossa
Senhora de Lourdes. Em sua análise a autora expõe as condições políticas,
sociais e religiosas que possibilitaram que as declarações realizadas pela
vidente Bernadette fossem aceitas pela população local. Harris demonstra
que “aquilo” que a pastora afirma ter visto se inscreve perfeitamente na
“velha tradição dos Pirineus, repleta de histórias maravilhosas”. Há lendas, almas,
feitiços, aparições em grotas, todo um imaginário do entorno das aparições
que permite a sua aceitação pelos moradores locais.2 Nesse sentido, a autora
demonstra a sacralização da paisagem existente nos Pirineus, combinando
velhas crenças e as práticas cristãs – como histórias de pastores que encontram imagens de Nossa Senhora que lhes pede a construção de capelas, entre
outras. Além disso, destaca que Bernadette e os moradores locais tinham
conhecimento destas histórias, citando dois relatos de aparições de Maria
para pastores ocorridos próximos a Lourdes, sendo que um deles estava
retratado na capela da vila.3 Ou seja, os habitantes sabiam da possibilidade
deste tipo de fenômeno, fato que serviu para legitimar a visão da pastora.
Ainda no que se refere à importância do imaginário local, Bernadette
vê Maria como uma jovem de cerca de quatorze anos, muito pequena e branca. Essa descrição a associa as fadas e aos seres fantásticos da floresta, não
correspondendo a imagem corrente da Virgem nos Pirineus – a juventude
de Maria pode lembrar o momento da anunciação, mas esta representação
não estava presente no contexto católico de Lourdes, e sim em suas lendas.
A visão de Bernadette na grota de Lourdes estava, pois, repleta de
elementos simbólicos presentes no imaginário local, que possibilitaram o
seu reconhecimento pelos habitantes e facilitando a sua aceitação. Esta
continuidade simbólica foi central para que o relato da pastora fosse considerado verídico.
Notamos a importância de duas características das aparições marianas: a preexistência de um imaginário que permite o reconhecimento e a
aceitação das manifestações, e a formação de um padrão para as aparições de
Nossa Senhora a partir da segunda metade do século XIX, ao qual a aparição
deve se assemelhar. Por hora nos deteremos no padrão estabelecido para
as aparições marianas e na modelagem das manifestações contemporâneas.
Dessa forma, a concepção de que as aparições do século XIX inauguram um novo tipo de evento, com características específicas, merece ser
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nuançada. Há um fenômeno específico sendo constituído neste momento,
do qual a aparição de Lourdes é o exemplo mais significativo – ao lado das
outras duas aparições marianas francesas do século XIX, La Salette e Pontmain – porém, alguns elementos destas manifestações já estavam presentes
anteriormente, como colocado por Barnay. A existência dos elementos de
continuidade e o seu reconhecimento pela população são centrais para a
aceitação das aparições do século XIX, como bem demonstrado por Harris
em seu estudo sobre a aparição de Lourdes, e também das manifestações
posteriores, como o caso de Medjugorje estudado por Claverie (2003).
Há, pois, elementos inovadores, mas também elementos de continuidade nas aparições do século XIX – consideradas por alguns autores como
inaugurais. Os estudos que consideram o século XIX como o momento
de inauguração das aparições marianas não mencionam essa continuidade
simbólica. Tomamos como exemplo o questionamento de Albert Lorca
(2002) sobre o trabalho de Sylvie Barnay (2000). Para Albert Lorca há uma
distinção entre visão e aparição que não é abordada por Barnay. Segundo
ela, as visões possuem o caráter privado, ocorrendo para uma única pessoa,
geralmente um monge ou religiosa, que retira apenas benefício pessoal
deste fenômeno. Já as aparições têm um caráter público, ou seja, apesar de
ocorrerem apenas para poucos videntes, elas devem ser divulgadas para toda
a humanidade, atraindo devotos e formando-se Santuários nos locais em
que elas aconteceram. Por isso Albert-Lorca afirma que apenas a partir do
século XIX as aparições ganham centralidade no catolicismo, pois considera
que as manifestações anteriores são apenas visões.
Já Barnay (2000) concebe como aparição a crença no contato entre
a Virgem Maria e os homens, não importando seu caráter público ou privado. Por isso afirma a presença das aparições marianas no cristianismo
no ocidente desde o século X, contestando os autores que defendem a
proliferação destes fenômenos na era moderna.
Nosso objetivo não é tomar partido neste debate, mas sim reter destes
relatos históricos a continuidade simbólica entre as aparições medievais, as
aparições do século XIX e as aparições contemporâneas, embora lembrando que elas possuam elementos e características inovadores. As aparições
modernas destacam as crianças videntes, bem como as aparições junto à
natureza; as aparições contemporâneas circulam, ocorrendo onde o vidente
estiver. Estes são alguns exemplos das inovações. Assim, concordamos em
parte com a tese de Barnay, segundo a qual a crença no contato entre Nossa
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Senhora e os homens é também significativa no período anterior a Idade
Moderna – porém sem ignorar, como faz a autora, que estas manifestações
possuem novas características a partir do século XIX.
1.1. O processo de modelagem
O trabalho de Elisabeth Claverie (2003) sobre as aparições de Medjugorje,4 na antiga Iugoslávia, demonstra a importância do reconhecimento
simbólico nas manifestações de Nossa Senhora. A possibilidade da sua
veracidade está presente no imaginário dos protagonistas da manifestação.
“Isso já aconteceu, Ela já apareceu, Ela já veio se comunicar com crianças”, o uso
destas expressões demonstra, segundo a autora, que para os envolvidos
Nossa Senhora pode aparecer para os homens, pois isso já ocorreu em
outros lugares. Ou seja, a aparição não é algo completamente novo no contexto significativo dos Bálcãs, pelo contrário, o contato dos humanos com
seres “sobrenaturais” faz parte do imaginário dos habitantes da localidade.
Entretanto, a construção da aparição não se encontra apenas neste
imaginário, ela é produzida por meio de vários mecanismos, como nos
questionamentos sobre a sua veracidade. É a partir da dúvida e da sua
superação que a aparição se afirma desde os seus primeiros dias. Exemplo
disso é o modo como a afirmação da visão da Virgem, proferida por uma
das videntes, é questionada pelos moradores locais e colocada à prova por
eles. Assim, havia a possibilidade da aparição segundo os moradores, porém,
nada garantia que se tratasse de Nossa Senhora ou de outro “ser extraordinário” – como fantasmas ou outras criaturas capazes de estabelecer uma
ponte entre a dimensão humana e a dimensão sobrenatural, que povoam
o imaginário local. Dessa maneira, foram as “avós” – mulheres idosas e
consideradas detentoras de conhecimento sobre estes seres – que sugeriram
que os videntes jogassem sal sobre a figura que lhes aparecia para saber se
era a Virgem ou um fantasma ou mesmo o demônio. Ou seja, a existência de
um ser sobrenatural que está em contato com os videntes é confirmada pela
intervenção de protagonistas locais, que, apesar de a princípio duvidarem,
acabam por reforçar a possibilidade de veracidade da aparição.
Assim, na medida em que as aparições vão ganhando dimensões
maiores o seu questionamento também se estende. Como no caso dos franciscanos, cuja presença na vila de Medjugorje era importante. No repertório
simbólico destes sacerdotes as aparições da Virgem para os humanos são
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LILIAN SALES
possíveis, isso já aconteceu em outras localidades e outras épocas, eles têm
conhecimento das aparições de Lourdes e Fátima, por exemplo. Ou seja,
não se trata de algo extraordinário, completamente sem referências para
eles, ainda assim, a dúvida sobre a veracidade destes eventos é muito forte.
Por isso um dos padres franciscanos se põe a questionar diariamente os
videntes, em busca de semelhanças com as aparições conhecidas e aceitas.
Para os franciscanos – importantes agentes desde os primeiros
tempos da manifestação – as aparições deveriam estar de acordo com determinados padrões recorrentes neste tipo de evento. Inicia-se, então, um
trabalho de “modelagem” da Virgem de Medjugorje, de forma a torná-la
mais aceitável por meio da sua aproximação com as manifestações conhecidas e, de preferência, reconhecidas. Nos termos de Claverie, a aparição
passa a ser modelada, há um processo simbólico de adequação da aparição
ao modelo de aparições. A existência dos elementos de continuidade e o seu
reconhecimento pela população são centrais para a crença na veracidade das
aparições, sendo a modelagem fundamental neste processo. Neste processo
as aparições da Virgem reconhecidas pelo Vaticano, especialmente aqueles
que se constituíram em santuários marianos de grande peregrinação durante o século XX, como Fátima e Medjugorje, adquirem centralidade. Os
protagonistas deste processo são os franciscanos, e por isso os elementos
da ortodoxia referentes às aparições ganham destaque.
O estudo enfatiza dimensões importantes da aparição: por um lado, a
importância do reconhecimento simbólico – as aparições não representam
uma novidade no sistema simbólico dos locais, moradores ou sacerdotes – e
por outro lado, a centralidade das relações que se estabelecem localmente
na atribuição de autenticidade ao fenômeno. Podemos dizer que a aparição
vai sendo construída localmente, a partir das relações estabelecidas e dos
elementos simbólicos acionados, que se remetem a elementos recorrentes
nas aparições marianas desde séculos.
2. A Igreja e as aparições do século XIX
As aparições de Nossa Senhora para videntes apresentam um aumento significativo a partir da segunda metade do século XIX. Neste período
ocorre o reconhecimento de algumas aparições que se estabelecem como
marcos para o catolicismo. Estas manifestações ocorrem principalmente
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AS APARIÇÕES DE NOSSA SENHORA EM JACAREÍ:...
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na França, onde a Igreja reconhece sucessivamente três episódios: Rue du
Bac, em 1830, La Salette, em 1846, e Lourdes, em 1858.
O envolvimento do clero com as aparições do século XIX foi central
para o reconhecimento destas manifestações. Embora os fenômenos de
contato entre a Virgem e os homens já estivessem historicamente presentes
no catolicismo, representantes da Igreja intervém de forma direta em prol
das aparições neste período.
Essa é uma novidade importante. Segundo Albert Lorca (2002),
especialmente na França, houve uma estratégia da Igreja para reconquistar
seus fiéis por meio da utilização das aparições marianas. Assim, se até aquele
momento as regras instituídas pela Igreja para a análise dos fenômenos
serviam apenas para que ela exercesse o controle sobre elas e evitasse os
chamados excessos, a partir do século XIX essas regras são utilizadas em
benefício das próprias aparições. Nas palavras de Albert-Lorca, as aparições
“dão um novo impulso ao culto mariano e tentam relançar, contra o cientificismo, a crença
nos milagres”. (2001, p. 56). O interesse da Igreja por estas manifestações
ocorre, pois, em um contexto em que o cientificismo vem ganhando espaço,
sendo ele uma forma de reação da Igreja.
A intervenção sobre as aparições marianas ocorre principalmente por
meio de uma rede de clérigos que se envolve com as manifestações. Segundo Gillet (1994), essa rede, composta principalmente por padres e bispos,
engaja-se no reconhecimento e na divulgação do “fato sobrenatural que ocupa
toda a França” e que estabelece relações entre as aparições ocorridas na Rue
du Bac (Paris), La Salette e Lourdes. Especialmente sobre La Salette o autor
demonstra a importância do envolvimento do clero da região e de pessoas
de credibilidade que estão convencidas da veracidade das aparições, como
o bispo de Grenoble, pessoa pública importante e que acredita na manifestação. Segundo este autor, é esta mesma rede que estabelece a conexão
entre La Salette e outras manifestações ocorridas pouco antes na França.
As três aparições mencionadas, conectadas por meio de uma rede de
divulgação estabelecida pelos clérigos, são consideradas pelos historiadores
do catolicismo – como Albert-Lorca (2002), como inaugurais. No entanto,
as três aparições em questão possuem mais elementos de disparidade do que
de continuidade, especialmente a aparição da Virgem para Santa Catarina
de Labouré, na capela da Rue du Bac, em Paris. A conexão e a continuidade
entre elas foram estabelecidas pelos clérigos, como demonstrado por Gillet,
e não constitutivas dos fenômenos em si.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 67-92, setembro de 2011.
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A aparição da Rue du Bac, mais conhecida no Brasil como “Medalha Milagrosa”, possui características mais próximas das visões de Nossa
Senhora para religiosos, como as existentes no período anterior, do que
das aparições modernas. Trata-se de uma aparição privada para uma freira,
dentro de uma capela – segundo os relatos, Nossa Senhora aparece para a
Irmã Catarina de Labouré na capela da Rue du Bac, ou seja, nada de muito
novo em relação às visões medievais. Nesta aparição a Virgem pede que
seja cunhada uma medalha em seu nome, a medalha milagrosa, mas Santa
Catarina mantém a aparição em segredo durante muitos anos. Após relutar
durante alguns anos, ela acaba por revelar ao bispo a “vontade de Maria”,
que não vê nenhum problema na realização da medalha, porém, sem associá-la às aparições. A medalha é então forjada sem a divulgação das visões,
sendo que apenas anos mais tarde, quando ganha a fama de miraculosa, as
aparições para Santa Catarina são reveladas.
A divulgação desta manifestação é então realizada pelo clero, que
contribui para o reconhecimento da aparição e atribuição do poder milagroso à medalha. O estudo realizado por Gillet (1994) demonstra que as
características da aparição da Rue du Bac são semelhantes as das visões
privadas para religiosos - como as visões medievais, ela acontece no âmbito
de um convento, para uma freira, e possui um caráter privado, e não público,
sendo a mensagem destinada exclusivamente para Catarina e não para a
humanidade. A publicidade desta manifestação se deve ao empenho de uma
parte do clero em forjar a medalha e divulgá-la, e, junto com ela, a aparição.
Gillet, porém, não estabelece uma separação entre as aparições
anteriores ao século XIX e as posteriores, detendo-se na semelhança entre as manifestações ocorridas na França durante a chamada restauração,
demonstrando em seu livro “La rumeur de Dieu: apparitions, propheties e
miracles sous la restauration”, que a conexão existente entre elas foi estabelecida pelo clero, o investimento dos representantes da Igreja foi, pois,
central. Os estudos mostram que, por meio de uma rede de contatos, “cria
-se” uma idéia de conexão e de continuidade entre elas.
Sob esse ponto de vista, a aparição da Virgem da Medalha Milagrosa
é um fenômeno de transição, pois, por um lado possui as características
dos relatos de visões para monges comuns na Idade Média, por outro lado,
tornou-se uma aparição pública, forjada e divulgada pelo clero. Vale lembrar
que o seu caráter público – marcado pela transmissão da mensagem de
Nossa Senhora aos homens por meio da Medalha Milagrosa – não está no
fenômeno em si, mas no empenho do clero em difundi-la. Dessa forma,
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 67-92, setembro de 2011.
AS APARIÇÕES DE NOSSA SENHORA EM JACAREÍ:...
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apesar de possuir características bastante distintas das aparições de Lourdes
e La Salette, ela acaba por ser incluída no modelo de aparições modernas.
As semelhanças entre as manifestações se tornam mais evidentes
devido à construção realizada destas aparições pelo clero – Rue du Bac,
Lourdes e La Salette - como um fenômeno milagroso único presente na
Franca neste período. Assim, inclusive a aparição da Medalha Milagrosa, em
que a mensagem é privada e transmitida para uma monja, torna-se pública
pela existência de uma rede dedicada a “causa mariana”.
Esse caso nos chamou a atenção para dois aspectos importantes a
respeito das aparições: os elementos simbólicos que a compõem – e que
estão inseridos em um imaginário de longa duração – e o papel da Igreja
em relação a elas. Ambos são centrais para a constituição da legitimidade
do fenômeno. A atuação Igreja insere esta manifestação no novo modelo
instituído a partir do século XIX. É interessante observar que a aparição
da Medalha Milagrosa é constantemente mencionada nos Cenáculos de
aparições de Nossa Senhora no Brasil, como no caso de Jacareí, sendo a
aparição com transmissão de mensagem mais antiga mencionada nas manifestações contemporâneas.
Apesar das menções a mensagem da Virgem na Rue du Bac nas aparições de Jacareí, os participantes não estabelecem uma continuidade entre
essa manifestação e as aparições da atualidade. Ou seja, suas mensagens são
citadas, porém ela não é considerada o fenômeno inaugural. Esse papel é
atribuído às aparições de Fátima e La Salette, especialmente devido a seus
elementos escatológicos. Assim, embora o clero tenha conseguido fazer com
que ela se tornasse uma manifestação de grande devoção, os participantes
das aparições contemporâneas não atribuem a mesma importância a ela
quanto àquela atribuída aos fenômenos em que a dimensão escatológica é
central, como Fátima e La Salette.
Importa reter, no entanto, a construção de um modelo de aparições,
como um conjunto único de fenômenos, embora a diversidade entre eles. A
Igreja Católica, por meio de seus representantes, como bispos e arcebispos,
desempenhou papel central neste processo, como demonstrado. Várias
aparições posteriores de renome, como Fátima e Medjugorje, repetem
elementos deste modelo. Com a manifestação de Jacareí não é diferente,
como veremos a seguir.
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3. A aparição de Nossa Senhora em Jacareí
A aparição de Nossa Senhora em Jacareí,5 interior de São Paulo, teve
inicio no ano de 1991. Seu vidente era o então adolescente Marcos Tadeu,
de treze anos. A primeira visão ocorreu numa tarde, quando o menino
voltava para a casa após a aula, e desde então se repete todo o dia, quando
a “senhora do céu” lhe transmite alguma mensagem. A aparição acontece
durante os rituais – chamados Cenáculos.
Atualmente os cenáculos atraem cerca de 300 fiéis mensalmente,
vindos de várias localidades, principalmente do estado de São Paulo. Seu
público advém majoritariamente de outras cidades, como São José dos
Campos, São Paulo, Itu, Caçapava. Os organizadores do cenáculo consideram esse número de freqüentadores muito pequeno, pois, em seu auge, no
final da década de noventa, os cenáculos chegavam a contar 5.000 pessoas,
vindos de todo o Brasil.
Estes rituais são realizados na zona rural, mas bastante próxima da
cidade, a menos de dois quilômetros da zona urbana de Jacareí, aos segundos
domingos de cada mês, pela manhã, possuindo aproximadamente quatro
horas de duração. O cenáculo acontece ao ar livre, no alto de uma montanha. Esse é o dia de peregrinação para o local, sendo que, nos demais dias
do mês o local não é freqüentado pelos devotos.
A primeira impressão é a de um grande piquenique, pois os participantes levam uma série de apetrechos consigo – cadeiras de praia, toalhas de
mesa, esteiras, guarda-sóis, cestas com alimentos. Vários pequenos grupos
reunidos em volta de uma cesta de comida, em suas cadeiras, lonas, esteiras...
No “monte”, em frente à capela que está sendo construída, é instalado um pequeno altar improvisado, em sua parte mais alta e visível. Neste
altar há uma imagem de Maria – elaborada de acordo com as descrições de
Marcos – e também microfones e caixas de som, permitindo que as orações
sejam ouvidas por todos os participantes. Neste local permanece o vidente
Marcos Tadeu durante todo o Cenáculo, iniciando o ritual com orações –
terço da libertação, de Nossa Senhora desatadora dos nós, entre outros, que
se estende durante todo o ritual. Por volta do meio dia acontece a aparição,
em que Maria lhe aparece e lhe fala. Esse é o auge do ritual, em que todos
os presentes permanecem de joelhos, havendo um silêncio absoluto - o
único ruído que se ouve é a voz do vidente, “falando com Nossa Senhora”.
Entremeando as orações, Marcos faz referência constante a mensagens proferidas em outras aparições marianas, principalmente de divulgação
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internacional, estabelecendo conexões e aproximações com as mensagens
de Jacareí. A menção a pequenas aparições da Virgem no Brasil também
é recorrente nos Cenáculos. Conforme analisado por Sales (2009) existe
uma rede de contato entre os videntes e freqüentadores deste tipo de manifestação no país. Porém, a referência às aparições de Nossa Senhora de
repercussão internacional, especialmente em torno do qual se formaram
grandes santuários marianos, é também central durante os rituais, estabelecendo uma relação de continuidade entre estas “grandes manifestações”
e a aparição de Maria em Jacareí.
A menção a outras aparições marianas, bem como a relação de continuidade com fenômenos internacionais, é uma constante também entre
os participantes. Exemplo disso é um livro publicado por pessoas próximas
ao vidente – seu grupo de apoio – cujo título significativo é: “As aparições de
Maria em Jacareí: a continuação de Fátima e a conclusão Garabandal”.
Chama também a atenção o consumo de produtos religiosos durante
o cenáculo. Há uma barraca instalada em um “canto” da montanha, na qual
os presentes consomem produtos religiosos referentes às aparições, como
medalhas e terços das aparições locais, mas também uma série de produtos
de outras manifestações marianas, principalmente DVDs, CDs e livros,
sobre fenômenos internacionais, como Fátima, Garabandal, Medjugorge e
Lourdes, e também sobre pequenas aparições locais, como Muriaé e Niterói.
A observação do comportamento dos freqüentadores na banca do
Cenáculo também demonstra a conexão estabelecida entre a aparição Jacareí
e outras aparições marianas. Mesmo que não comprem, os fiéis se informam
sobre variados produtos, perguntando aos vendedores sobre determinado
fenômeno – sobre o qual há algum produto a venda – sua importância, etc.
Inclusive, o tema das conversas dos peregrinos são impressões e informações sobre diversas manifestações marianas.
Há, pois, interesse dos participantes sobre várias manifestações
do mesmo tipo. O Cenáculo de Jacareí pode ser percebido como um dos
“pontos de confluência” de uma rede de manifestações marianas, pela qual
circulam manifestações, peregrinos, informações, práticas rituais, produtos
religiosos e mensagens. Essas relações e conexões tornaram-se ainda mais
evidentes quando nos centramos nas peregrinações realizadas por parte do
público dos Cenáculos de Jacareí, que se estendem para outras manifestações
de Nossa Senhora. Inclusive, o próprio vidente já havia peregrinado para
outras aparições, sendo que mantém contato com outros “mensageiros”
de Maria.
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Mais do que a conexão, a peregrinação e a coleta de informações
demonstram o conhecimento dos participantes sobre outras aparições,
sobre seus elementos simbólicos e características, ou seja, os peregrinos,
por estarem em contato e se informarem, possuem um amplo repertório
sobre manifestações marianas. Eles possuem conhecimento sobre os elementos que compõem esse tipo de fenômeno, e, para crerem na veracidade
de novas aparições, como no caso de Jacareí, é importante que ao menos
algumas destas características “padrão” estejam presentes.6
4. A modelagem e a produção
da legitimidade nas aparições de Jacareí
Nas aparições de Nossa Senhora em Jacareí o reconhecimento dos
elementos simbólicos é parte importante do processo de legitimação das
manifestações. A percepção das semelhanças com as aparições modernas
contribui para a crença em sua veracidade. A semelhança com as aparições
reconhecidas é constante, sendo percebida positivamente pelos participantes
e peregrinos, sendo usada como exemplo da verdade dos fenômenos, e não
como plágio, imitação. O fato da aparição de Jacareí ser muito semelhante
às manifestações reconhecidas serve como “prova” de sua veracidade.7
As semelhanças são construídas em dois aspectos principais: as
características do local da aparição- o Santuário -, e o conteúdo das manifestações – as mensagens proferidas. Importa destacar que várias destas
similaridades não estavam presentes nos primeiros relatos sobre as aparições,
tendo sido acrescentadas ao longo do tempo, já nos primeiros anos dos
eventos e mesmo posteriormente, já nos anos 2000.
Por isso consideramos que a legitimidade deste fenômeno é advinda,
em parte, da sua modelagem ao padrão de aparições reconhecidas. Nesse
ponto notamos a importância da RCC nos primeiros anos das aparições,
quando Marcos ainda era um garoto, os membros do movimento, que
possuíam contato e conhecimento sobre aparições marianas, passaram a
moldar a aparição, acrescentando-lhe elementos simbólicos e características semelhantes aos presentes nos fenômenos reconhecidos - o Santuário
e o relato das aparições foram se aproximando do padrão legítimo. Já na
segunda década dos eventos Marcos rompe com os carismáticos da região,
e devido aos grandes conhecimentos sobre manifestações da Virgem, passa
ele próprio a exercer este papel. Assim, os carismáticos e o vidente, como
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detentores do conhecimento sobre as aparições marianas legítimas e do
contato com outras manifestações semelhantes, possuindo capital simbólico acumulado – obtido pela informação e circulação pelos Santuários
reconhecidos - moldam o evento de Jacareí.
Estas características das aparições marianas nos remetem ao estudo
de Pierre Bourdieu (1975) sobre o costureiro e sua griffe, em que ele aborda
a produção da legitimidade de um produto – no caso estudado os produtos
de griffe – como um processo de “alquimia social”, em que ocorre a trans-substancialização de um produto qualquer em um produto de griffe, por
meio da assinatura do costureiro. O valor simbólico é atribuído a este produto por possuir o nome da maison que lhe concede legitimidade. Embora
estejamos nossa análise esteja centrada em outro campo, as constatações
teóricas deste autor nos são importantes.
Importa-nos reter que a alquimia social somente obtém sucesso
quando o criador possui capital simbólico para que possa transferi-lo ao
produto através de sua assinatura – e que a aquisição deste capital de autoridade somente acontece por meio da relação do criador com as maisons
antigas e legítimas. Segundo Bourdieu, as rupturas de sucesso são aquelas
em que os “novos” criadores são advindos das maisons antigas, sendo que o
seu capital de autoridade foi obtido pela passagem por elas. Para Bourdieu,
os pretendentes acumulam capital de autoridade levando a sério os valores
e virtudes da representação oficial, eles podem acumular capital simbólico
pelo contato e conhecimento com os elementos importantes em um determinado campo. Esses valores devem ser obedecidos – os pretendentes
devem estar de acordo com as necessidades estabelecidas pelo campo – para
a obtenção de sucesso. Assim, a busca da legitimidade dos pretendentes
passa pela submissão às necessidades próprias de cada campo.
A análise dos processos simbólicos de produção de legitimidade nos
ajuda a compreender melhor a centralidade da modelagem na produção
da crença na veracidade da aparição. Para que uma nova aparição adquira
legitimidade é preciso que ela se submeta as regras presentes nessa rede,
sendo que isso ocorre por meio de seus agentes – participantes e videntes.
Em Jacareí a adoção de uma série de símbolos e valores que são característicos desse tipo de fenômeno é central para a constituição da legitimidade
da aparição.
Ressaltamos o importante papel dos membros da RCC nos primeiros anos deste processo, e de Marcos Tadeu posteriormente, já jovem e
sendo parte da rede de aparições marianas contemporâneas. Ambos eram
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 67-92, setembro de 2011.
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detentores do capital de autoridade necessário para inserir esta manifestação na rede das aparições marianas, pois tinham conhecimento sobre esses
fenômenos – suas características e seu conteúdo - e circulavam por outras
manifestações do mesmo tipo.
Esse processo é simbólico e social. A modelagem é parte importante
da produção da autenticidade da crença nas aparições. Os peregrinos, ao
reconhecerem os elementos e símbolos das aparições legítimas, tendem a
crer nos “novos” fenômenos – como Medjugorje e Jacareí. Para uma aparição ser percebida como verídica é fundamental que ela acione elementos
simbólicos dos eventos reconhecidos.
Lembramos que a fonte da sacralidade das manifestações encontra-se na convicção do outro, no caso, dos peregrinos. A modelagem do
fenômeno contribui para a formação desta convicção. A sua realização
permite que os peregrinos percebam o fenômeno como autêntico devido
ao reconhecimento dos elementos simbólicos acionados. Passamos agora
à análise do processo de modelagem, nos detendo, devido aos limites deste
artigo, à modelagem da manifestação, de sua história e de seu santuário.
4.1. A história
a. Quem é esta Jovem?
Segundo o relato canônico, a primeira aparição acontece em sete de
fevereiro de 1991, quando o jovem Marcos Tadeu, na época um menino
de 13 anos, está voltando para a casa e se sente “chamado” a entrar em
uma Igreja e a orar. Enquanto realiza as orações aparece-lhe uma figura,
uma jovem de cerca de dezoito anos, de uma beleza indescritível e toda
iluminada. A jovem não se identifica, apenas o convida à oração.
As manifestações, ainda esparsas, prosseguem durante dois anos,
nos quais a “Senhora” apenas dizia que vinha do Céu, que estava a serviço
de Deus, sendo somente em 19 de fevereiro de 1993, devido à grande insistência de Marcos, que pergunta quatro vezes “quem é a Senhora”, que a
jovem lhe responde: “Eu sou a mãe de Jesus”.
Duas características das aparições já podem ser observadas nesta
história: a demora na identificação da figura e a maternidade de Maria – em
sua frase de identificação ela se coloca como Mãe, no caso mãe de Jesus.8
A demora em se identificar aproxima as aparições de Jacareí das aparições
modernas, em que a aparição não se identifica de imediato. Citamos aqui
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os exemplos de Lourdes e de Fátima, em que a figura que transmite as
mensagens apenas se identifica no último dos encontros com os videntes.
Em Lourdes, é somente na última das dezoito manifestações que a jovem
diz ser a Imaculada Conceição. Em Fátima é também no último dos sete
encontros com os pastores que a Senhora se identifica como Nossa Senhora
do Rosário. Inclusive a forma como ocorre a identificação é semelhante,
a aparição não diz apenas ser Maria, mas acrescenta uma denominação
específica, utilizando os seguintes termos:
“Eu sou a Imaculada Conceição” – Lourdes
“Eu sou Nossa Senhora do Rosário” – Fátima
“Sou a SENHORA DA PAZ! Sou a MÃE DE JESUS! – Jacareí
Assim, no que se refere ao relato da aparição de Jacareí, o suspense
em relação à identidade da “figura luminosa” é semelhante ao ocorrido nas
aparições modernas. Mesmo existindo várias evidências que permitem a
classificação da aparição como Nossa Senhora o relato é construído de forma a deixar clara a demora proposital da Virgem em revelar sua identidade.
Já na segunda aparição, em 19 de fevereiro de 1991, a Jovem – segundo eles não identificada – transmite a seguinte mensagem: “Sim, meu filho,
por que eu o amo... Mas não quero que venha sozinho, traga aqui também muitos dos
meus filhos que Eu amo...” Ora, todos os católicos sabem quem é a “ figura
iluminada” que pode se referir a eles como “meus filhos”! A concepção de
Maria como “Mãe da humanidade” é recorrente e comum no catolicismo,
não sendo preciso ser devoto das aparições para chamá-la de “Mãe”. Assim,
todos já sabiam que a Jovem era, na verdade, Nossa Senhora, entretanto,
isso somente é explicitado cerca de dois anos depois.
Corria na região o comentário de que Maria “estava aparecendo para um
menino em Jacareí”, ele circulava entre os católicos, especialmente os ligados
ao movimento carismático.9 A mídia local – pelos jornais Diário de Jacareí e Vale Paraibano – já tinha dedicado reportagens sobre o fenômeno,
referindo-se a ele como “aparições de Nossa Senhora”. Ou seja, o público
já considerava a figura como Maria, embora isso não tivesse sido ainda
dito pelo vidente.
Esta é, pois, uma primeira característica que demonstra a reiteração
do padrão de aparições reconhecidas. Mesmo as mensagens deixando claro
que se tratava de Nossa Senhora, o “mistério” em torno da sua identidade
permanece.
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4.2. O Santuário
a. As aparições em local ermo
A primeira aparição de Nossa Senhora para Marcos Tadeu ocorreu
na Igreja da Imaculada Conceição, na zona urbana da cidade de Jacareí.
Durante os dois anos seguintes as aparições ocorriam no local onde o
vidente estivesse. Entretanto, a partir de 6 de março de 1993, segundo ele,
Maria lhe avisa que passaria a vir todos os dias, por volta das dezoito horas
e trinta minutos. É neste período também que “Ela” avisa que começará
a aparecer no “Monte”.
O “Monte” é uma localidade próxima à casa de Marcos, na zona rural
de Jacareí. Trata-se de uma montanha como qualquer outra da região, sem
nenhuma característica especial, um local ermo, deserto e de difícil acesso.
Neste local, posteriormente, teve início a construção de um Santuário
dedicado a Nossa Senhora.
Novamente aqui percebemos a aproximação com as aparições
modernas. As aparições de Lourdes, Fátima e La Salette, entre outras,
ocorreram em lugares desertos, na zona rural, para crianças pastoras que
estavam cuidando do gado. Esta é uma característica do modelo de aparições
presente a partir da segunda metade do século XIX.10 Em Lourdes a Virgem
aparece em uma grota, em Fátima na “Cova da Iria”, e seus Santuários foram construídos no exato local onde, segundo o relato dos videntes, Maria
lhes aparecia – em Lourdes houve a construção da catedral sobre a rocha
da grota onde Bernadette dizia ver Nossa Senhora, sendo que no ponto
exato da aparição há uma imagem reproduzindo a Virgem; em Fátima a
Catedral foi construída ao lado da Azinheira sobre a qual Maria aparecia
para os três pastores.
Dessa forma, a transferência do lugar das aparições para uma montanha busca uma aproximação com importantes manifestações marianas.
Por meio dela, cria-se uma história semelhante ao modelo legitimado nas
aparições européias apoiadas pela Igreja – a localidade deserta, próxima
da natureza.
A mudança no local das manifestações ocorre no momento em que
o número de peregrinações para Jacareí aumenta devido à intervenção do
movimento carismático - lideranças da RCC entram em contato com o vidente, se apropriam da manifestação e começam a divulgá-las por meio de
suas redes. Nesse período sendo Marcos ainda um adolescente, os grupos
carismáticos dão o tom das manifestações sendo que o novo local para as
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aparições é estabelecido por intermédio dos membros da RCC.11 Notamos
novamente que essas semelhanças surgem em Jacareí ao longo do tempo,
não estando presentes em um primeiro momento.
b. O ponto da aparição
Há um local específico no Monte onde os peregrinos acreditam que
Nossa Senhora se manifeste, é o ponto em que Marcos diz ver Maria. Este
espaço fica ao lado da capela, e a entrada dos peregrinos é proibida. Somente
as pessoas autorizadas, pertencentes ao grupo de apoio, têm acesso a ele.
A existência de um local específico no Santuário em que a Virgem
se manifesta é também uma característica recorrente nas aparições reconhecidas. Lembramos os Santuários de Lourdes e de Fátima. Em Lourdes,
segundo a crença, Nossa Senhora apareceu para Santa Bernadette em
uma grota, e este local tornou-se ícone de devoção para os peregrinos. A
imagem da Virgem de Lourdes foi colocada no local exato da aparição, e
a passagem diante dela, tocando, beijando o ponto em que acreditam que
a Virgem esteve presente é parte central da visita ao Santuário - diante da
grota foram colocados vários bancos, em que os peregrinos passam horas
orando e pedindo graças para Nossa Senhora de Lourdes.
Em Fátima, segundo os relatos, Nossa Senhora apareceu para os
pastores sobre uma azinheira. Esta árvore também possui uma conotação
importante para os peregrinos - todas as suas folhas e galhos foram arrancados por eles, como uma relíquia. No local foi plantada uma nova azinheira,
entretanto, embora lembre o local em que a Virgem esteve presente, não se
trata de um ponto central para os peregrinos – como a grota em Lourdes
– pois a árvore original, aquela que acreditam ter sido tocada por Maria,
não existe mais, ou seja, o ponto exato do contato desapareceu devido à
devoção dos peregrinos anteriores, que quiseram levar consigo uma folha,
um galho, ou seja, uma parte do que fora tocado pela Virgem.
Em Jacareí também o espaço “tocado por Nossa Senhora” possui
uma importância especial, entretanto, esta relevância é atribuída pelo vidente
e pelos integrantes do grupo de apoio, que restringem o acesso ao local. Os
peregrinos não se importam com esta restrição, não há desejo ou ressentimento por não poderem estar em contato com esta parte do Santuário.
Há, pois, uma ambigüidade no que se refere à importância atribuída
a esse local. Para os responsáveis pelo Cenáculo – vidente e grupo de apoio
– ele é central, não devendo ser tocado por “qualquer um”. Para os peregrinos ele é um espaço sem maior relevância. Os integrantes do grupo de
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apoio, por estarem mais envolvidos com o fenômeno e por possuírem um
maior volume de informações sobre aparições marianas, consideram este
ponto como sagrado, devendo ser preservado – fazem referência à grota
de Lourdes e a árvore de Fátima, entre outros, lembrando a sacralidade
dos locais “tocados” por Maria.12 Este exemplo deixa bastante explícito
este processo de modelagem da aparição, aproximando-a cada vez mais do
padrão de aparições modernas, especialmente as reconhecidas pela Igreja,
sobre as quais os peregrinos possuem mais informações, eventualmente
peregrinando a estes santuários.
Já no caso dos peregrinos há uma indiferença sobre este local, embora
acreditem ser um local “tocado” por Nossa Senhora. Isso ocorre porque,
diferentemente de Lourdes e Fátima, as aparições de Jacareí continuam
acontecendo mensalmente. Dessa maneira, estão lá no mesmo momento
que a Virgem. Essas pessoas sempre mencionam a importância de “estarem
lá” no dia do Cenáculo, ou seja, no mesmo dia e no mesmo horário que
Nossa Senhora. Assim, o local tocado pela Virgem não possui a centralidade
dos Santuários da modernidade devido à simultaneidade no tempo/espaço.
Trata-se do mesmo espaço – o Santuário – e o mesmo tempo – ao meio dia
dos segundos domingos. Nos Santuários marianos citados anteriormente
isso não é considerado possível, pois as aparições deixaram de acontecer
faz muitos anos, sendo que o espaço tocado por Maria é o que resta da sua
presença no Santuário.
Dessa forma, a especificação de um lugar para as manifestações da
Virgem demonstra novamente o funcionamento da operação de modelagem. O vidente e os integrantes do grupo de apoio têm conhecimento da
centralidade do ponto tocado pela Virgem nos Santuários marianos, e, ao
construírem o Santuário de Jacareí, estabelecem um ponto exato para a
manifestação, procurando atribuir valor especial a ele. A importância deste
ponto no Monte é recente – desde 2006, por iniciativa do vidente - segundo
Marcos, Maria passou a se manifestar ao lado esquerdo da capela.
Assim, a proibição do contato dos peregrinos com o local da aparição
coloca em evidência este espaço e o valoriza. Ou seja, ao impedir a permanência dos peregrinos neste local, destaca que ele não é um ponto como os
demais do Santuário, mas sim é o espaço tocado por Nossa Senhora. Com
isso modelam simbolicamente o Santuário a partir dos padrões presentes
nos grandes Santuários de aparições marianas.
Há, porém, uma ambigüidade em relação às manifestações marianas contemporâneas no que se refere à questão do espaço. Atualmente
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as aparições acontecem onde o vidente estiver – esta é uma característica
presente na aparição de Medjugorje e que se repete em Jacareí e em outras
manifestações de Nossa Senhora no Brasil (Sales, 2009). Apesar disso, a
importância da construção de um Santuário, de um local específico para
a realização dos Cenáculos permanece. Ou seja, apesar da circulação de
Marcos Tadeu por paróquias da região e de sua peregrinação para outros
locais de aparição, tendo visões e realizando a peregrinação da própria
Nossa Senhora, a existência de um Santuário, que segue as características
dos Santuários marianos europeus ainda é uma característica marcante
deste fenômeno.
As aparições contemporâneas importantes possuem Santuários,
como é o caso de Medjugorje. Apesar da circulação de seus videntes, a vila
na Bósnia tornou-se um Santuário de peregrinações, como demonstrado
por Claverie (2003) em seu estudo sobre estas aparições. Outras aparições
brasileiras, como a de Piedade das Gerais, analisada por Almeida (2004),
também são marcadas pela circulação das videntes e pela formação de um
Santuário no local. Assim, embora a circulação das manifestações seja uma
característica importante das aparições contemporâneas, a construção de
Santuários nestes locais não pode ser considerada secundária – eles são
destinos de numerosas peregrinações, sendo espacial e simbolicamente
construídos de acordo com o modelo de Santuário das aparições modernas.
c. A fonte
No “Monte” escolhido por Nossa Senhora existe um pequeno riacho,
que mal chega a ser um córrego, que corta o local. A água deste córrego é
considerada miraculosa, e os freqüentadores a consomem durante os Cenáculos e a levam para suas casas, oferecendo-a para pessoas que precisam
de “graças”.
Há uma série de relatos sobre o poder milagroso desta água, considerada capaz de curar males físicos e espirituais. Cito o exemplo de uma
senhora, de São Paulo, que afirma ter superado a depressão após a morte
de seu marido devido à água de Jacareí, por isso vai todo mês ao Cenáculo
para “ver Nossa Senhora” e leva um recipiente da água para sua casa, bebendo um pouco a cada dia e deixando uma reserva constante para amigos
e familiares que eventualmente possam precisar. A água pode curar todo
e qualquer mal, desde um simples resfriado até alcoolismo e desemprego.
Outra peregrina relata que conseguiu curar seu genro, que estava “perdido
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LILIAN SALES
na bebida” fazendo-o beber um pouco a cada dia da água de Jacareí. E o
rapaz, mesmo sem ter conhecimento de que bebia da “água milagrosa”,
acabou por se curar, abandonando o álcool. Estes são apenas dois exemplos
dos “milagres e curas” que a água de Jacareí é considerada capaz de realizar.
Devido à crença em seu poder é comum observarmos vários peregrinos,
no dia do Cenáculo, com recipientes vazios, que serão utilizados para levar
a água do Santuário.
A presença da água e a atribuição de poder milagroso a ela nos
remetem a uma das aparições marianas mais conhecidas no catolicismo:
Lourdes – o Santuário mariano mais visitado no mundo. Em Lourdes, segundo a história, Maria aparece para Santa Bernadette em uma grota e, em
uma das aparições lhe mostra uma mina d’água que diz ter poder de cura.
Desde então a água de Lourdes é central no Santuário, sendo que desde o
século XIX os peregrinos tomam a água e banham-se nela - no local foram
instaladas torneiras e piscinas utilizando a água da fonte.
A crença no poder de cura da água de Lourdes é de grande importância no Santuário, sendo que inúmeras pessoas realizam a peregrinação
para se banharem nas piscinas, acreditando que obterão a cura após a imersão nestas águas. Os peregrinos também levam a água para suas cidades,
oferecem aos amigos e parentes ou usam para quaisquer eventualidades ou
urgências. Os relatos de milagres realizados pela água são inúmeros, estando
presentes desde os primeiros anos do Santuário.13
A história e os relatos presentes em Jacareí são semelhantes aos
presentes em Lourdes. Além da aparição ocorrer em um local ermo, junto
da natureza, há a presença de um riacho, ao qual é associado um poder
milagroso, sendo que a forma de utilização da água e os relatos de curas
também são semelhantes. Nos dois Santuários os peregrinos bebem da
água e a levam para casa, para si e para os conhecidos. Como em Lourdes,
não é preciso que a pessoa doente vá ao santuário; há relatos de que a cura
ocorreu apenas por beber a água transportada por algum peregrino.
O Santuário francês está muito melhor estruturado em torna da
utilização da água do que Jacareí. Há piscinas, e garrafas reproduzindo a
imagem da Virgem são vendidas em todo o Santuário, para que os peregrinos possam transportar a “água milagrosa”. Já em Jacareí tudo ainda é
improvisado, sendo que os peregrinos bebem a água diretamente do córrego
e trazem garrafas de plástico para transportá-la. Entretanto, as torneiras já
estão colocadas – embora ainda não funcionem – e há uma piscina para ser
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instalada; ou seja, a reprodução do padrão de Lourdes não está apenas no uso
da água, mas na própria estruturação física do Santuário. Em Jacareí o uso
milagroso da água é, pois, um elemento a mais na modelagem do Santuário.
Importa destacar que embora os relatos de aparições em grotas e
fontes (ambas relacionadas com a sacralidade da água) ocorram desde a
idade média, em Lourdes o uso da água é institucionalizado. As torneiras
e piscinas são parte importante do Santuário, e a venda de garrafas com a
forma da Virgem disseminada por todas as partes. Especificamente este
aspecto parece se repetir em Jacareí, e não apenas a sacralidade da água de
forma generalizada.
Neste aspecto, a menção a água não estava presente nos relatos dos
primeiros anos das aparições, sendo apenas a partir da transferência do
local dos eventos que ela passa a ser referida pelo vidente e utilizada pelos
fiéis. Antes da mudança das aparições para o “Monte” não havia nenhuma
mensagem da Virgem em Jacareí que se referisse fontes ou poder miraculoso das águas, a sua inserção acontece com o passar dos tempos, primeiro
atribuindo sacralidade às águas do córrego, e atualmente colocando torneiras
e piscinas, exatamente ao modelo de Lourdes.
Dois atores se destacam como únicos na construção das aparições
de Jacareí: os carismáticos e o vidente. Nos primeiros anos da aparição,
quando Marcos é ainda um adolescente, grupos carismáticos da região,
principalmente de São José dos Campos, se apropriam do fenômeno e o
reorganizam. Eles são os responsáveis pela escolha do local para o Santuário, bem como pela elaboração do relato sobre as aparições, que mais
tarde é publicada em livros e CDs, tornando-se a versão “oficial” sobre as
manifestações, hoje reproduzida pelos participantes e pelos integrantes de
Jacareí – vidente e grupo de apoio. Por volta de 2001, quando Marcos já é
um jovem adulto, ocorre a ruptura com a RCC. A partir de então o vidente
passa a exercer a liderança absoluta sobre a aparição, sendo acompanhado
por um pequeno grupo de pessoas, que não possui vínculo com nenhum
movimento da Igreja. Neste momento Marcos já tem conhecimento e contato com outras manifestações marianas no Brasil, bem como já realizou
a peregrinação para os Santuários marianos europeus. A partir de então a
modelagem das aparições passa a ser realizada pelo próprio vidente, que
não admite interferências sobre as suas “ordens”, sempre atribuídas a Nossa
Senhora – como nos casos da atribuição de poder milagroso à água e a
escolha de um ponto específico para as aparições.
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Considerações Finais
Procuramos demonstrar como a aparição de Jacareí foi sendo construída simbólica e socialmente. Neste “novo ciclo de aparições”, iniciado na
década de oitenta do século passado, novos elementos, como a peregrinação em forma de rede e a manifestação de Nossa Senhora no local onde o
vidente estiver se tornaram centrais. Porém, a aproximação com o modelo
de aparições estabelecido no século XIX também se mostrou importante
no processo de legitimação das manifestações contemporâneas.
Neste aspecto, o processo de modelagem, observado nas aparições
de Medjugorje por Elisabeth Claverie e também presente em Jacareí, foi
importante para a adequação das manifestações ao modelo percebido como
legítimo. Foi por meio dele que a crença na autenticidade do fenômeno foi
sendo construída. O capital de autoridade das novas aparições foi sendo
formado levando-se a sério os valores e símbolos presentes nas manifestações consideradas legítimas na rede, sobretudo as aparições reconhecidas,
como Lourdes e Fátima.
Em outras palavras, a construção da legitimidade passou pela conformação às regras presentes nesta rede. Em Jacareí a adoção de uma série de
símbolos e valores que são característicos das aparições marianas modernas
foi central, pois o reconhecimento de elementos simbólicos recorrentes
neste tipo de fenômeno por parte dos peregrinos contribui para a crença
em sua veracidade. A aparição é considerada verídica por acionar elementos simbólicos comuns ao padrão de manifestações marianas. O processo
de modelagem ajudou, pois, a construir a confiança na autenticidade das
aparições.
Vimos que nas aparições da modernidade os responsáveis pelo
reconhecimento e constituição destes fenômenos foram os representantes
da Igreja. Devido a sua intervenção, as aparições francesas do século XIX
passam a ser percebidas como um fenômeno sobrenatural único de manifestação de Nossa Senhora, apesar de suas diversidades. Na atualidade
esse papel é desempenhado pela RCC e pelo vidente, que detém capital
de autoridade sobre aparições marianas, e por isso são atores legítimos e
capazes de contribuir para a construção da legitimidade das aparições de
Jacareí, seja a modelando e a tornando reconhecível simbolicamente pelos
participantes, seja a inserindo na rede das aparições marianas.
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Notas
Os dados para a escrita deste artigo foram obtidos a partir de um longo trabalho de campo,
entre 2003 e 2008, nas manifestações, pela observação dos rituais, conversas e entrevistas
com os participantes, peregrinos e videntes.
2
Nesta obra Harris demonstra também outras características importantes para a formação
da crença e devoção à Virgem de Lourdes, entre elas a postura da vidente Bernadette e o
embate político entre cientificismo/positivismo e a Igreja Católica neste período.
3
A autora menciona a historia de Anglese de Sagazari, muito conhecida dos contemporâneos de Bernadette, e que possui caracteristicas muito semelhantes a da vidente – pobre,
sem instrução, que passa por situações de falta de alimentos e recebe a aparição de Maria.
Inclusive, a autora mostra as representações de ambas, cuja semelhança é impressionante,
sendo que a representação de Bernadette reproduz a de Anglese.
4
A aparição da Virgem Maria em Medjugorje tem inicio na década de oitenta do século
vinte, constituindo-se a partir de então em um dos maiores santuários marianos do mundo
contemporâneo.
5
Jacareí está situada no Vale do Paraíba paulista, no eixo Rio - São Paulo, as margens da
rodovia Presidente Dutra, à aproximadamente 70 Km da cidade de São Paulo. Possui características de uma cidade média, com aproximadamente 120.000 habitantes.
6
Reiteramos que similaridade com o padrão organizado por representantes da Igreja Católica é primordial, entretanto, o não reconhecimento da aparição pela Instituição não é
considerado um problema pelos freqüentadores. Apesar do relacionamento do vidente com
a diocese tenha sido sempre pautado pela tensão, havendo inclusive o desaconselhamento
da participação nos Cenáculos por parte do bispo, o fenômeno consegue se manter. Desta
forma, aqui estamos considerando a legitimidade das manifestações,que se constrói apesar
da discordância dos representantes locais da Igreja, nas quais não nos deteremos.
7
As inovações referentes às manifestações da Virgem no mundo contemporâneo já foram
observadas por outros autores, como Steil (2003) e Sales (2009). Neste artigo, porém, nossa
abordagem está centrada na importância dos elementos de continuidade entre as aparições
modernas na constituição da legitimidade dos fenômenos contemporâneos.
8
A referência à maternidade, inclusive, já estava presente nos relatos de Marcos sobre as
conversas com a “Senhora”, em que ela o chamava de “meu filho”, também se referindo
ao restante da humanidade como “meus filhos”.
9
A RCC tem uma eficiente rede de disseminação de informações. Devido à característica
hierárquica do movimento, idéias, crenças e rituais são rapidamente disseminados do topo
da hierarquia para as suas bases, os grupos de oração presentes nas paróquias.
10
Aparições da Virgem já eram comuns antes da era moderna, a aparição de Nossa Senhora na localidade de Guadalupe, no século XV, é um exemplo. Porém, destacamos que a
constituição destas características como um modelo de aparições de Nossa Senhora apenas
ocorreu no século XIX, como demonstrado anteriormente.
11
Entretanto, não possuímos muitos dados sobre este período, pois o vidente, alguns anos
depois, rompeu com os carismáticos, não nos dando indicações sobre as pessoas envolvidas.
As informações obtidas foram através de conversas com os participantes atuais, mas estes
não conheceram os carismáticos, pois ainda não participavam das manifestações nesta época,
1
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apenas sabem um pouco do que aconteceu, como a apropriação dos Cenáculos pela RCC
e a posterior ruptura entre o vidente e o movimento.
12
Além disso, esta é também uma forma de demarcação de espaços de poder, pois apenas
os iniciados, ou seja, as pessoas que possuem um envolvimento maior com as manifestações
– e não os peregrinos que apenas participam mensalmente dos Cenáculos – podem estar
em contato com o ponto exato em que Nossa Senhora se manifesta.
13
Lourdes é o Santuário mariano com o maior número de milagres reconhecidos – sessenta
e oito – sendo que a maioria destes milagres tem relação com a “água de Lourdes”.
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Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 67-92, setembro de 2011.
UMA RELIGIÃO EM TRÂNSITO:
O PAPEL DAS LIDERANÇAS
BRASILEIRAS NA FORMAÇÃO DE
REDES ESPÍRITAS TRANSNACIONAIS
Bernardo Lewgoy
Universidade Federal de Rio Grande do Sul 1
Resumo: De 1990 em diante, houve uma mudança de rumo no movimento espírita
organizado. Impulsionado pelos líderes religiosos brasileiros, o kardecismo dotou-se de uma estrutura internacional, formando redes e organizações baseadas em
imigrantes brasileiros de classe média alta e em acordos com lideranças espíritas
nativas, que redefiniram temas e ênfases nessa religião.
Palavras-chave: espiritismo kardecista, transnacionalização religiosa, globalização
Abstract: From 1990 onwards a change of course inside the organized spiritist
movement took place. Led by its Brazilian leaders, kardecism was endowed with
an international structure, building up networks and organizations which had their
basis on the support of high-class Brazilian immigrants and on deals between native
spiritist leaders, who redefined this religion’s main themes and focuses.
Keywords: spiritist kardecism, religious transnationalization, globalization
Introdução
A participação do espiritismo kardecista – religião neocristã de camadas médias urbanas – no concerto da globalização segue uma agenda
que conjuga a transformação de seu ethos, adaptando-se aos imperativos
de bem-estar (a psicologização da religião) e à pauta de temas bioéticos da
chamada biomedicina, relidos pelos médicos kardecistas. Como religião de
imigrantes de um perfil de estabelecidos de classe média alta na Europa
e nos Estados Unidos, o kardecismo recompõe, de outra parte, suas narrativas e instituições para dar conta da nova realidade de seus seguidores.
Interessa-nos aqui aprofundar dados em torno da criação de um circuito
espírita internacional, através das ações de entidades federativas (Federação
Espírita Brasileira, Conselho Espírita Internacional) e suas parceiras (AssoCiencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 93-117, setembro de 2011.
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BERNARDO LEWGOY
ciações Médicas Espíritas) a fim de entender os meandros desse complexo
processo. Presente em mais de 30 países, concentradas na Europa e nos
Estados Unidos, essas entidades agem de forma articulada e pró-ativa na
tentativa de unificação dos modos de ser e pertencer ao movimento espírita, através de eventos, congressos, encontros e palestras, nas quais os
praticantes kardecistas mantêm um constante e renovado contato com seus
líderes, médiuns e médicos e compartilham informações através da internet,
de boletins, revistas e frequentes trocas interpessoais.
A atuação dos dirigentes kardecistas se dá com força na diáspora
brasileira, onde se funde com a temática específica da migração: projetos,
dilemas e trajetórias específicas de migrantes em termos de classe social e
pertencimento religioso, familiar e nacional (Lewgoy, 2008). Trata-se aqui
de aprofundar esse levantamento identificando os elementos (organizativos,
comunicacionais, narrativos e simbólicos) que entram na construção do
espiritismo como religião globalizada na história recente.
O kardecismo mudou muito desde sua fundação no século XIX:
suas pretensões de afirmar-se como religiosidade herdeira do iluminismo
(Aubrée e Laplantine, 1990) sofreu uma série de percalços, na França e no
Brasil. Hoje em dia, a despeito de esforços de reintegração dos espíritas
no mainstream científico, pelo esforço de seus médicos, ela ainda situa-se no
que Olav Hammer (2004) chamou de rejected knowledge,2 predominando, no
caso brasileiro, uma narrativa hegemônica, acionada pela Federação Espírita
Brasileira. Influenciada por um complexo e muitas vezes contestado sincretismo com os valores católicos, esta narrativa ganhou sua maior expressão
na trajetória do médium Chico Xavier um espiritismo relacional, maternal,
familiar e caritativo, discretamente influenciado pelo intercessionismo
católico (Lewgoy, 2004).
Os espíritas pensam-se simultaneamente como ruptura e renovação
do cristianismo, quando situam a codificação de Kardec como “Terceira
Revelação”. A doutrina da reencarnação como motor do progresso (logo
depois retraduzida em termos da teodicéia do carma) e a negação do dogma
da trindade promoveram ruptura com uma leitura idealizada do cristianismo
e causaram alguma controvérsia na classificação sociológica do kardecismo
em relação ao cristianismo.3
O espiritismo de Allan Kardec foi importado na segunda metade do
século XIX, ainda durante o Império, como um entre outros modismos
importados da França, potência largamente hegemônica no imaginário intelectual e estético das elites brasileiras da época (cf. Laplantine & Aubrée,
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1990). Em pouco tempo o espiritismo converteu-se em alternativa religiosa
de vanguarda, cujo charme estava em sua singular conjugação entre ciência
experimental e fé revelada, associada a um anticlericalismo que agradava
a um público de opositores ilustrados do Império, notadamente os abolicionistas e republicanos.
O espiritismo da Federação Espírita Brasileira, formado ao final do
século XIX congregava uma alternativa religiosa minoritária ao catolicismo,
dentro de um espírito “associativista”. O grupo da FEB, no entanto, só
ganhará o reconhecimento de entidade federativa nacional em 1949, no
chamado Pacto Áureo (Santos, 1997). É desta entidade que se nutre a tendência histórica que alimentará o estilo de organização federativa, com seus
conselhos e congressos, que o movimento espírita internacional utilizará
no processo de transnacionalização. A FEB promoveu o médium Chico
Xavier em símbolo de sua proposta, que conjuga cristianismo, nacionalismo
e racionalismo tendo articulado um conjunto sistemático de referências
para a prática religiosa nos centros e no lar (água fluidificada, atendimento
fraterno, grupos de estudos, palestras, passes, culto do evangelho no lar).
Além disso, a FEB dispõe de uma importante estrutura editorial, que faz o
trabalho de tradução de obras espíritas para diversas línguas.
Sendo o espiritismo atualmente mais uma alternativa religiosa do
que minoria religiosa, a FEB vem capitaneando, neste período pós-Chico
Xavier, a transnacionalização do espiritismo brasileiro em diversos países,
basicamente latinos, onde o espiritismo é uma religião universalista, embora de pequena expressão demográfica, e em países com uma significativa
imigração de brasileiros, como os EUA, a Austrália e o Japão.
A brasilianização do espiritismo transnacional
Originalmente francês, a implantação e sobrevivência do espiritismo
kardecista em terras brasileiras evoluiu para uma tradição religiosa própria,
desde os anos 1880. Sustentei alhures (Lewgoy, 2006) que o kardecismo brasileiro conta com forte identidade religiosa, lastreada em referências comuns
de interpretação doutrinária, conduta ritual, práticas de assistência social
e serviço espiritual muito definidas. Além disso, constituiu um poderoso
patrimônio bibliográfico, que veio a definir uma herança nativa autônoma
desta religião. A brasilianização é a tendência recente de exportação organizada das referências religiosas do espiritismo brasileiro. Este processo
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BERNARDO LEWGOY
modulou-se em estratégias de composição de laços e formação de núcleos,
através de palestras, congressos e congregação em entidades federativas
em diferentes níveis. Esse novo espiritismo transnacional vem suavizando
aquilo que Marion Aubrée e François Laplantine (1990) apontaram como
mito de origem do espiritismo brasileiro: a chamada “brasildicéia”, a idéia
de uma escatologia nacional brasileira do espiritismo mundial, sistematizada no livro “Brasil Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”, de Chico
Xavier/Humberto de Campos. Ora, esse nacionalismo religioso tornou-se
impraticável para a nova diáspora brasileira, formada de imigrantes que
ostentam forte relação com sua origem nacional e com seu destino migratório, muitas vezes formando famílias transnacionais.
As raízes dessa transformação remontam à década de 1980, especialmente através da atividade missionária de Divaldo Franco, que difundiu
um conjunto de estilo e conteúdo para as platéias de simpatizantes do
espiritismo fora do Brasil. Trata-se de uma união entre médiuns poderosos e performáticos, como Divaldo Franco e Raul Teixeira com médicos-intelectuais capitaneados por Marlene Nobre, presidente da influente
Associação Médico-Espírita do Brasil. E, último mas não menos importante,
sustentada pelo protagonismo político dos dirigentes do Conselho Espírita
Internacional, especialmente Nestor João Masotti (presidente da FEB e do
Conselho Espírita Internacional) e de Antonio Cesar Perri de Carvalho,
secretário geral do CEI.
Através de alianças com espíritas locais essa rede objetiva fazer do
kardecismo uma religião globalizada, construindo um denso circuito de
conferências, congressos espíritas, e médico-espíritas, workshops, traduções de livros de Kardec e Chico Xavier e, sobretudo, pela unificação dos
pedagógicos de formação de lideranças e práticas do espiritismo. Houve,
nesse sentido, uma consistente busca por mediadores, brasileiros espíritas
estabelecidos na diáspora, assim como parceiros espíritas de outras nacionalidades. Além disso, a busca por alianças implicou numa abertura a novos
diálogos, que aproximaram a doutrina espírita de referências da galáxia
novaerista, especialmente no eixo que poderia ser qualificado da “espiritualidade-holismo”. Nesse sentido foram integradas temas e parceiros como
as “experiências de quase-morte” (Raymond Moody Jr.),4 a “reencarnação”
(Carol Bowman),5 o cortejo de líderes budistas (lama Padma Samten, etc.)
e físicos (Amit Goswami),6 entre outros.
As novas estratégias institucionais de formação de redes ampliaram
o leque de referências e alianças espíritas. Elas levaram a uma valorização
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de novas ênfases em termos de modelos de pessoa espírita, narrativas da
história do movimento espírita e uma recomposição de sua ortodoxia intelectual em torno da bioética espírita7.
A psicologização da mensagem religiosa:
uma teodicéia do bem-estar
As respostas institucionais específicas do movimento espírita organizado às realidades emergentes desde os anos 80 e 90 do século XX
nascem da destradicionalização da visão de mundo das camadas médias
urbanas brasileiras, marcadas pela perda do lugar hegemônico do catolicismo, pela pluralização religiosa e pela difusão capilar da Nova Era. De
minoria religiosa perseguida, o espiritismo kardecista brasileiro reinventou-se como “alternativa religiosa” (Lewgoy, 2006a) num contexto de avanço
da secularização e de “desregulação do campo religioso” (Pierucci, 2006),
somado ao aprofundamento da autonomização simbólica e institucional das
esferas de sentido não-religiosas (cf. Hervieu-Léger, 2008), ainda que, no
caso brasileiro, isto não tenha significado a imposição de uma tradição laica
no Estado, que exibe um “pluralismo sem laicidade” (cf. Giumbelli, 2002).
O ingresso de tendências psicologizantes, transversais ao campo religioso,
atingiu em cheio ao kardecismo, definindo novas ênfases e possibilidades
de vivenciar o espiritismo.
A obra psicográfica recente de Divaldo Franco – médium símbolo
da produção do espiritismo como religião globalizada – elabora uma sutil
reinterpretação da ética reencarnacionista em que o bem estar psíquico no
presente, mais do que o resgate doloroso do passado, é agora o telos da vida
religiosa para o espírita. Esta mudança de ênfase na produção psicográfica de
Divaldo Franco8 evidencia-se nos 12 livros da “série psicológica de Joanna
de Angelis”, inspirados na psicologia transpessoal.9 As palestras de Divaldo Franco em diversos países seguem esse padrão psicologizante, sendo
comuns títulos como “Saúde Espiritual”, “Mediunidade e Bem-Estar”, “A
Felicidade do Espírito”, etc. A própria caracterização recente da obsessão
(assédio de humano por espírito) como um “transtorno obsessivo” associado à depressão, indica que a psicologização do espiritismo esforça-se em
estar up to date com a linguagem médico-psiquiátrica.
Essa busca da cura individual e do bem-estar subjetivo compõe uma
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inovação em face ao resgate doloroso de dívidas cármicas do passado e
à moralização doutrinária mais rígida, tradicionais motivos religiosos no
espiritismo anterior a Divaldo.
Em face de Chico Xavier, a proposta religiosa de Divaldo se mostra
mais psicologizante, aproximando-se discretamente de uma influência da
Nova Era por sua substituição de uma ênfase cristã dolorista e conformista
– refração espírita de uma influência católica - ainda presente em Chico, pela
busca do bem-estar, da auto-estima e da felicidade como valores emergentes no
espiritismo.10 Nesse sentido, a orientação psicologizante apresenta-se como
uma metamorfose da teodicéia espírita, contrastando com ênfases relacionais anteriores. Ao mesmo tempo, o tradicional discurso reencarnacionista
permanece em sua função tradicional de consolo e explicação religiosa de
aflições, onde a arquicategoria carma (com suas categorias derivadas, como
“expiação”, “dívida”, “programação”, “regeneração” e “missão”) ocupa o
lugar de atribuição de sentido e adequação ao sofrimento expiatório presente em acidentes traumáticos, perdas de entes queridos, mortes violentas
e condições crônicas ou terminais.11 Essa psicologização do ethos espírita
associa-se, nas conferências de Franco, a um deslocamento da interpretação
religiosa da experiência migratória de brasileiros no exterior. Não podendo
mais glorificar o Brasil como destino, há uma transformação nas narrativas espíritas que transformam-no, nas palavras do médium em “bastião
provisório mas decisivo para espalhar a semente do Evangelho através da
palavra de Allan Kardec”. O destino nacional brasileiro é substituído, como
narrativa, por uma ênfase apocalíptica nas tribulações coletivas que virão a seguir e
na passagem do mundo de provas e expiações para uma planeta de regenerações (espécie
de promoção evolutiva da humanidade após grandes desastres anunciados
pelas revelações mediúnicas).
Em síntese, o apostolado do missionário espírita Divaldo Franco é
expressivo e indicativo das novas configurações do espiritismo kardecista,
agora convertido numa religião globalizada (ainda que numericamente
pouco expressiva) aberta a acordos com novos parceiros na cena religiosa
internacional e intérprete religioso privilegiado do sentido das experiências
migratórias da diáspora brasileira. É preciso salientar que não é exclusividade de Divaldo Franco o
teor psicologizante no espiritismo. Analisando o caso do médium Luiz
Antonio Gasparetto, Sandra Stoll (2005) chama atenção para uma proposta
de “mediunidade com fins lucrativos” marcada por uma psicologização
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voltada para resultados pessoais. Também sua mãe, a popular escritora e
comunicadora espírita Zíbia Gasparetto é uma clara adepta da psicologia
bem-estarista, que afirma em sua atuação como jornalista.12
Não se trata de uma influência de mão única da Nova Era sobre o
espiritismo kardecista. A refração deste dispositivo psicologizante/religião
do self no movimento espírita introduziu uma nova ênfase psicológica na
interpretação da doutrina espírita e, de outro lado, um acento kardecista
moralizador para o psicologismo religioso expressivista. Essa inovação está
diretamente relacionada a transformações que acompanham a difusão e
organização do movimento espírita não apenas na diáspora brasileira como
em sua esfera de influência internacional, que inclui espíritas e espiritualistas
não brasileiros na Europa e nos Estados Unidos, incidindo como temática
na pauta dos encontros sobre medicina e espiritualidade, patrocinados
pela AME-Brasil e AME-Internacional. Nessa mudança, a psicologização
funciona como um apoio à teodicéia espírita, que desloca e reposiciona a
experiência migratória do brasileiro e sua relação com irmãos de outras terras,
envolvendo a formação de famílias transnacionais como um plano do mundo
espiritual.
Circuitos e espaços transnacionais
do novo espiritismo globalizado
Para Olav Hammer (2004) a globalização é uma transformação sem
precedentes ,que desloca fronteiras e afeta a correlação entre nação e religião, mudando o regime de produção, distribuição e consumo de produtos
religiosos.13 A globalização privilegia, para Hammer, um estilo específico
de produção de religiões globalizadas, que se valem fortemente dos meios
de comunicação para a sua propagação, transformando suas narrativas
e organização para implementar sua difusão e garantir sua reprodução.
O autor adapta o modelo de Rodney Stark para dar conta do papel dos
porta-vozes e mediadores na recomposição das religiões esotéricas, com
relevantes afinidades com o estilo de crescimento do espiritismo kardecista.
For the Esoteric Tradition, I propose a modified model of this tripartite scheme. Each of the three types of movement proposed by Stark and Bainbridge
corresponds to a successive layer of commitment to religious doctrines,
rituals and organizational forms. At the perimeter are those who come into
contact with practices or beliefs through the narratives of their friends or
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magazine articles. Those who actively seek out a diviner, healer etc. enter the
client cult stage.Further toward the center are those who adopt an Esoteric
worldviewand may even become diviners or healers themselves. A fourth
level, not discussed by Stark and Bainbridge, consists of the innovators or
spokespersons who perform a novel exegesis of the discourse,more or less
subtly modify the received doctrines and ritualsand then propagate them as
authentic teachings. (idem, p. 37)
Nesse papel podem ser encaixados oradores como Divaldo Franco14,
Marlene Nobre e Raul Teixeira, que circulam num público com diferentes
níveis de proximidade com o kardecismo, da mera curiosidade ao compromisso mais intenso. Este proselitismo aproxima o espiritismo no nicho
da espiritualidade global, promovendo valores de uma religiosidade difusa
(“paz”, “amor”, “fraternidade”, “espiritualidade”, “concórdia universal”,
“saúde”), ampla e globalizada, despertando simpatias análogas àquelas
provocadas pelos livros e aparições públicas de Dalai Lama, Fritjof Capra
e Amit Goswami.
As Associações Médicas Espíritas (36 entidades no Brasil, várias nos
países do movimento espírita no exterior especialmente Estados Unidos,
França, Espanha e Bélgica) são talvez o mais eloqüente caso de recomposição doutrinária via ênfase na dimensão científica do espiritismo. Para
Rogers Teixeira Soares (2009)
(...) os profissionais associados às AMEs –, motivados por um certo Zeitgeist,
reacenderam a velha discussão de que o espiritismo é também uma ciência
e que tem muito a contribuir no campo da medicina. Para esses atores sociais, não mais se trata de uma “ciência” concorrente, mas de uma ciência
complementar (pelo menos retoricamente) à medicina acadêmica. (:185)
A médica Marlene Nobre, líder da AME-Internacional, é conferencista freqüente nos congressos internacionais de espiritismo e encontros
médico-espíritas, empreendimentos altamente vinculados entre si. É bom
lembrar que Marlene, colega de faculdade de medicina de Waldo Vieira –
parceiro mediúnico de Chico entre as décadas de 50 e 60 e criador da projeciologia (cf. D’Andrea, 2000) – foi “chamada” para trabalhar com Chico
Xavier ao final dos anos 50, tendo permanecido cerca de cinco anos como
pessoa de confiança ao lado do médium.15 Esse apadrinhamento/mentoria
garantiu-lhe lugar de absoluto destaque no espiritismo brasileiro, assim como
alavancou o crescimento da proposta das AMES, que se encarregariam de
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elaborar a gestão e enquadramento da ciência espírita no modelo acadêmico,
sempre sob a chancela dos ensinamentos de André Luiz.16 As AMEs,17 criadas
a partir dos anos 60, têm realizado diversos encontros nacionais (Mednesp)
e internacionais onde problemas bioéticos, como a luta contra o aborto,
o estatuto e os direitos do embrião, a doação de órgãos, a modificacão
do problema da morte médica em eutanásia, distanásia e ortotanásia, são
questões reelaboradas à luz da doutrina espírita. Os médicos espíritas têm
sempre destaque nos encontros espíritas, nacionais e internacionais, e vêm
ocupando o lugar tutelar e complementar aos dos médiuns, antes preenchido por intelectuais espíritas, como Herculano Pires, Deolindo Amorin
e Hernani Guimarães Andrade. Não que o espiritismo não tivesse sempre
conferido centralidade à sua agencia propriamente terapêutica, como já
destacavam Aubrée & Laplantine (1990): do contrário, essa foi a razão de
seu crescimento no Brasil desde a primeira República. Tamanha é a popularidade das curas espirituais no difuso mundo mediúnico, entre espiritismo,
Umbanda e Nova Era, com suas cirurgias espirituais, incisões de faca cega
e receitismos de toda ordem, que é plausível supor que os espíritas de hoje
vêem essas práticas do mesmo modo que os espíritas do inicio do século XX
olhavam para o “baixo-espiritismo”: uma proliferação descontrolada e um
óbice para o seu projeto de respeitabilidade e aceitação social.18 Assim, no
Brasil os médicos espíritas aliaram-se a dirigentes e médiuns para ordenar
a atualização doutrinária dentro de parâmetros rígidos e percebidos como
“científicos” repudiando como exóticas e anti-doutrinárias as práticas como a
apometria e as chamadas cirurgias de faca cega.
Fora do Brasil, a associação espírita entre medicina e espiritualidade
permite aos kardecistas dialogar com novos parceiros, cientistas espiritualistas ligados à Nova Era, à pesquisa acadêmica sobre reencarnação e às
experiências de quase-morte. O físico Amit Goswami (tal como lideres
budistas) é convidado freqüente nos encontros espíritas, especialmente nos
encontros médico-espiritas como no terceiro Congresso Medico espírita
dos Estados Unidos, realizado em Washington, em junho de 2010. Também
o doutor Raymond Moody Jr, grande responsável pela popularização do
conceito e pelo léxico das “NER” (Near Death Experiences, “experiências
de quase morte”), a partir dos anos 70, esteve em encontro espírita com
Divaldo Franco em Baltimore, em 16 de abril de 2006.
Essa busca de aliados no cenário acadêmico internacional é – junto
com o recrutamento e agrupamento de médicos em torno às Associações
Médicas Espíritas – uma das estratégias mais consistentes de implantação
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do espiritismo em posições socialmente legítimas, embora relativamente
marginais ao núcleo duro do mainstream científico. Ela serve como ponta de
lança da produção de um espiritismo globalizado, em diálogo com parceiros
no interior do mundo acadêmico da Nova Era, sempre num esforço de
tradução, no sentido de demonstrar que a reencarnação, as experiências de
quase morte e mesmo a relação entre física quântica e mundo espiritual já
estavam presentes nas obras de Allan Kardec e André Luiz.
O papel do porta-voz, mediador e articulador é central para a preparação e divulgação das palestras das estrelas itinerantes do movimento
espírita. Em formatos de workshop e conferências, estas palestras quase
sempre contam tradução simultânea de brasileiros residentes nos lugares
visitados, pois é frequente que conferencistas falem apenas o português.
Dada a grande importância do espiritismo brasileiro, mesmo em lugares
como a França – onde não se trata apenas de colônias de brasileiros como
no Europa central, Inglaterra e Escandinávia – a língua portuguesa é hoje
vista como a língua central do espiritismo kardecista, ao lado do esperanto,
cujo papel é, no entanto, simbólico e secundário (a despeito da FEB nunca ter deixado de publicar nessa língua, ela não é falada pela maioria dos
espíritas) e do francês (que é a língua do codificador mas não do espiritismo
internacional).
O papel do Conselho Espírita Internacional:
a internacionalização da agenda da Unificação da FEB
O projeto ou intenção de internacionalização é parte integrante
dos planos do primeiro espiritismo francês. Originalmente, Allan Kardec
buscava uma espécie de fraternidade internacional, projeto que se extinguiu
com a realização do Congresso Internacional Espiritista, em 1934. Restaram
pequenos grupos locais, pouco expressivos nos países em que tiveram a sua
expressão mais vigorosa, como Espanha (onde, pelo caráter livre-pensador,
os espíritas sofreram a sorte dos derrotados pelo franquismo) e França,
onde, conforme Marion Aubrée e François Laplantine (1990) entrou em
decadência após a I Guerra Mundial. Na América Latina, houve uma série
de movimentos espíritas organizados entre fins do século XIX e início do
XX metade do século XX na Argentina (1900), em Porto Rico (Schmidt,
2006), no México, na Guatemala e em El Salvador, envolvendo-se preferencialmente com atividades educacionais e de assistência social.
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Sem desaparecer, os espiritismos trilharam caminhos nacionais e
o contato foi esparso até pelo menos a década de 1960 quando médiuns
famosos, como Chico Xavier e Divaldo Franco, fazem viagens de divulgação doutrinária. Stolow (2006) destaca o papel das novas tecnologias de
comunicação – como telégrafo e mídia impressa, assim como na difusão
internacional e transatlântica do espiritismo, situação aliás análoga, guardadas
as devidas proporções, à relação da transnacionalização atual via Internet .
As tecnologias da informação serviram desde sempre para os espíritas procurarem aliados e constituírem redes e intercâmbios fora do Brasil.
O mercado dos livros sempre foi vital para os espíritas, conhecendo uma
grande explosão na primeira década do século XXI. Na opinião do antigo
livreiro espírita José Rodrigues:
Estima-se que sejam vendidos atualmente no Brasil, pelo menos, oito milhões
de livros espíritas por ano, para um mercado que estaria em torno de 30
milhões de pessoas, os chamados simpatizantes da idéia. A mídia entorta um
pouco esse conceito, chamando-o de “seguidores”, apegada ao entendimento
do espiritismo como religião. Seja como for, esse é o tamanho do mercado a
que se lançam cerca de 180 editoras, chamadas de espíritas, no país.19
Como nas estimativas sobre o numero de espíritas, nunca se sabe
exatamente a diferença entre o wishful thinking e os fatos, mas a explosão de
atual do mercado de livros e filmes espíritas é evidente.
O entusiasmo pelo progresso científico, assim como pelas tecnologias
de informação foi uma constante na história do espiritismo, tendo sido retomado com força e eficácia desde os anos 1990, quando a Internet eclode
como fenômeno global. Quando o fenômeno Chico Xavier entrou em cena,
nos anos 1930 a Federação Espírita Brasileira buscava criar uma matriz
própria à doutrina espírita que compatibilizasse a filosofia evolucionista, o
cristianismo reencarnacionista e o projeto nacional encontrando-o na obra
de Pietro Ubaldi “A Grande Síntese”, publicada em partes nas páginas de
“O Reformador” na época. Ubaldi, com sua retórica científica calcada numa
mística orgânica evolucionista, parecia fornecer a atualização do espiritismo
ao espírito do tempo, onde a fraternidade universal pretendida por Kardec
teria agora uma base biológica mas o motor e o destino seriam as nações
mais do que uma “humanidade abstrata”, pavimentando o caminho para o
profetismo escatológico de Brasil Coração do Mundo Pátria do Evangelho.20
O olhar naturalista sobre os fenômenos mediúnicos (Lewgoy, 2006)
é paralelo, complementar e articulado de forma por vezes tensa, por vezes
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mais concatenada com a pregação “evangélica” do sentido religioso desta.
Este naturalismo foi, mais do que a ênfase cristã o fator decisivo de abertura
de novos lastros e busca de parceiros internacionais na nebulosa místico-esoterica. Em sua histórica aparição no programa Pinga Fogo, em 1971,
(Gomes e Xavier, 2010) Chico Xavier já expressava a busca da sincronização
do espiritismo brasileiro com a pesquisa sobre mediunidade/reencarnação
realizada em outros países como a do psiquiatra Ian Stevenson nos Estados Unidos. A partir desse momento, a busca de aliados e referências do
movimento espírita brasileiro se daria pelo alto através de intercâmbios
com personagens de um mundo em formação, híbrido entre esoterismo e
academia, onde despontava a pesquisa científica do fenômeno da reencarnação. Em contrapartida, o movimento espírita ofereceria sua própria contribuição bibliográfica a este intercâmbio, especialmente através das obras
de do espírito André Luiz, enquanto a interlocução religiosa continuou por
conta das obras de Emmanuel e da constante divulgação de Allan Kardec.
Mais tarde, a partir dos anos 1990, os espíritas descobriram o valor da
articulação virtual, tendo criado inúmeros grupos de discussão e comunidades on-line, explorado habilmente o valor do IRCs, dos grupos virtuais via
Yahoo e Google e, ultimamente, altamente representados nas redes sociais,
como Orkut, Facebook e Twitter. A Internet foi uma ferramenta básica para
a criação de redes espíritas transnacionais, que culminaram na formação do
Conselho Espírita Internacional, atualmente com sede em Brasília.
Na verdade, desde o século XIX o órgão de imprensa da Federação
Espírita Brasileira, “O Reformador”, sempre divulgou o espiritismo internacional através da veiculação de informações sobre intelectuais espíritas como
Gabriel Dellane e Camile Flammarion e médiuns como Charles Richet, sir
Wiliam Crookes, Eusapia Paladino e Ernesto Bozzano, entre outros.
A “Unificação” é a principal bandeira do chamado Pacto Áureo, de
1949, que fundiu diferentes tendências no espiritismo brasileiro e criou um
Conselho Federativo Nacional, que servirá de modelo para a criação do
Conselho Espírita Internacional, em 1992. (Aubrée e Lanplatine, 1990). A
agenda da Unificação implicava na formação de conselhos federativos e
na unificação doutrinária e ritual do espiritismo. Esta se daria tanto pelo
suporte intensivo (jurídico, intelectual, material e normativo) quanto pelo
aumento da influência vertical das federações sobre a formação e a prática
dos trabalhadores, médiuns e oradores dos centros espíritas. Além disso,
incentivou-se a consolidação de referências bibliográficas comuns para os
grupos de estudo espíritas. Logo após Kardec, foram decisivas as parcerias
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Chico Xavier/Emmanuel/Andre Luís, onde esclarecimentos sobre a prática
do espiritismo cristão, a vida nas colônias espirituais e os mecanismos corretos
de prática mediúnica, deveriam nortear a atividade de palestras, interpretação
de sessões e atendimentos nas casas espíritas. Na prática isso significou uma
nova hegemonia da Federação Espírita Brasileira no movimento espírita,
que se estendeu a outros países.
A despeito dessa hegemonia da FEB ainda se registram algumas vozes dissidentes no movimento espírita. O grupo da Confederação Espírita
Pan-Americana (CEPA), minoritário e baseado em Porto Alegre (ainda que
congregando nomes de peso na história do movimento e tendo sua propria
rede de parceiros na América Latina), reivindica uma narrativa dissidente e
crítica em face do Pacto Áureo, alegando que este teria sido realizado nos
bastidores, em reação a um congresso espírita latino-americano por eles
realizado, em 1949. O grupo da CEPA reivindica, além da relação com
parceiros da Argentina, Venezuela e Porto Rico, “uma herança kardecista
laica e livre-pensadora”, mais “científica” e menos “religiosa”, criticando os
rumos tomados da Federação Espírita Brasileira. Outras vozes dissidentes,
como a de Gélio Lacerda e Hernani Guimaraes Andrade (1913-2003) apontavam, desde os anos 1960 para o “religiosismo” e o chamado Roustanguismo
da Federação Espírita Brasileira como desvios doutrinários do movimento
espírita brasileiro.
Os dissidentes não parecem ter hoje a mesma expressão que no
passado – senão através de menção indireta nos órgãos da imprensa espírita, como O Reformador, onde ganharam o apelido de “laicos”21 – nem a
Federação Espírita Brasileira tem a sustentação de Roustaing como uma
suas prioridades na agenda da Unificação Internacional, preferindo silenciar
sobre o assunto.22
As viagens de Divaldo Franco preparam o terreno para a criação
do Conselho Espírita Internacional, em 1992. Como vimos, desde os fins
dos anos 60 Divaldo faz viagens de divulgação doutrinária em vários continentes. A organização espírita, em cada país segue um trajeto semelhante:
grupos familiares e depois centros espíritas, que passam a contatar grupos
espiritualistas ou kardecistas já existentes formando uma rede de trocas
para, posteriormente, organizarem-se em federações nacionais. A FEB e
o CEI entram com um suporte bibliográfico, intelectual (apóia a tradução
de livros, leva seu staff de líderes, médiuns como Divaldo e Raul Teixeira,
médicos como Marlene Nobre) e administrativo que valoriza histórias
anteriores do movimento espírita, proporcionando um ambiente transnaCiencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 93-117, setembro de 2011.
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cional de quebra de isolamento e formação de redes espíritas. Em troca, a
aceitação da agenda da unificação implica na internacionalização das referencias e ícones surgidos no movimento espírita brasileiro, especialmente
Chico Xavier. No ano de 2010, centenário de nascimento do médium,
ocorreram homenagens em lugares tão distintos, como Estados Unidos,
Portugal, Estônia, México, Guatemala e Espanha (onde foi realizado o VI
Congresso Espírita Mundial).23
Vale lembrar que as homenagens a Chico Xavier inscrevem-se na
tradicional política de efemérides do espiritismo, cuja raiz encontra-se na
cultura cívica brasileira, onde datas e biografias de grandes homens são sucedâneos seculares das comemorações de histórias sagradas. Em 2004, ano do
bicentenário de Allan Kardec, o Congresso Espírita Mundial realizou-se em
Paris tendo como foco o criador da doutrina espírita. Filmes e livros foram
lançados, monumentos foram inaugurados, assim como uma nova placa foi
descerrada no dólmen de Kardec. Este ainda é importante referência para
a reanimação de espiritismos nacionais que no século XIX tiveram certa
importância em toda a Europa e que serve de passaporte para a penetração
do espiritismo brasilianizado no leste europeu, de escassa presença brasileira.
Ampla rede de brasileiros espíritas estabelecidos na Europa, para
onde Divaldo viaja há mais de 40 anos, é mobilizada para dar sustentação
aos eventos de que participa. Como sempre, são as mulheres que se destacam: muitas delas são espíritas brasileiras ou estrangeiras que residiram no
Brasil, estabelecidas na Europa e Estados Unidos (várias delas convertidas
por Divaldo) e tradutoras de suas palestras, como Claudia Bonmartin, na
França, Vanessa Anseloni nos Estados Unidos, Edith Burkhard na Alemanha, Regina Zanella na Itália, Vanessa Berry na Nova Zelândia, Claudia
Werdine na Áustria, Nelly Berchtold na Suíça, Cristina Latini na Noruega,
Maria Moraes da Silva na Holanda. Existem também os nativos de outros
países que se converteram ao espiritismo quando moravam no Brasil e na
continuaram a ser espíritas quando retornaram a seus países como Evi
Alborghetti (presidente da União Espírita Italiana),24 o polonês Konrad
Jerzak Vel Dobosz25 (casado com uma brasileira, presidente da Sociedade
Polonesa de Estudos Espiritas), outro polonês, Konrad Jerzak26 e Janet
Duncan, da Inglaterra.27 No leste europeu há pelo menos um caso de um
espírita que não é brasileiro nem viveu no Brasil mas que desempenha o
papel de articulador da difusão doutrinária: o eletricista estoniano August
Kilk, 72 anos, que conheceu o espiritismo, através da tradução de Kardec
para o esperanto, na época da URSS. Todas essas pessoas criaram ou
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dirigem centros espíritas e são atuantes membros do Conselho Espírita
Internacional, mantendo intenso contato com o movimento espírita brasileira. Todas reconhecem o papel central de Divaldo Franco na abertura
dos caminhos para a formação de redes espíritas assim como difundem
a literatura espírita brasileira e francesa através do empreendimento de
traduções de Chico e Kardec.
Os inícios da reativação do kardecismo espiritismo europeu pela
influência dos espíritas brasileiros são esclarecidos nessa entrevista à TV
Mundo Maior (pertencente à webtv do Conselho Espírita Internacional,
a TVCEI), concedida pela brasileira radicada na França e presidente do
Centro de Estudos Espírita Allan Kardec, Claudia Bonmartin
(...)Foi lá por 1972 eu era espírita e fui á Espanha fazer um curso. Divaldo
fez os contatos iniciais e indicou-me o senhor Rafael Molina.... Fui a uma
livraria e o dono pediu-me para voltar as “sete e meia da tarde”. Ele pediu-me
que, caso houvesse outra pessoa, que eu olhasse os livros como uma pessoa
comum. Voltei e fui encaminhada a uma sala do fundo onde havia três pessoas
já reunidas e uma delas era médium. No começo achei tudo muito estranho
mas logo vi que eram pessoas de um coração enorme. Conheci uma senhora
chamada Lolita, que convidou-me a conhecer sua casa. Durante a conversa
soube que ela, esteticista, era perseguida política. Eu então propus a ela: – Na
minha casa, eu e minha mãe nós fazemos o culto doméstico. Eu tenho aqui
o messe de amor, de Joanna de Angelis e Divado, traduzido para o espanhol
pelo Juan Durante, da Argentina. Nós fazemos uma oração, depois vamos
abrir esse livro ao acaso. Depois vamos ler, vamos conversar, depois aplico
um passe na senhora e terminamos. Depois que terminou ele me disse: –
Cláudia, eu quero que você faça isso todos as semanas na minha casa. Outras
pessoas, como Rafael Molina, que tinham medo de mim, passaram a vir e
perderam o medo. Nela, eu acho que os espíritos ajudaram. Eu voltei para
Paris mas o culto continuou lá dirigido pelo senhor Rafael Molina. Em 1975,
com a morte do Franco, houve a liberdade religiosa, o grupo se instalou na
Plaza Del Sol e fundaram o primeiro centro espírita desse recomeço,dessa
retomada do espiritismo na Espanha. Nestor Masotti é aquele que a partir de
1990 chegou para unir essas estrelas e criar a constelação do conselho espírita
internacional e todos temos a necessidade de nos reunirmos periodicamente,
e o CEI permite como os encontros, com os seminários, com os salões de
livros, onde nós nos encontramos.
Sobre a formação do Conselho Espírita Internacional:
(...)O CEI foi criado em 1992. Em outubro de de 1990 Nestor fez uma
visita a Paris de passagem para um congresso que ocorreria em Liège na
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Bélgica. Nessa época começou-se a falar da necessidade de unir de sensibilizar para a necessidade de unir o movimento. Foi em 1990 que começou no
congresso de Liège. Mais tarde veio para o Brasil, houve congressos aqui e
aqui e juntaram-se europeus e americanos e criou-se, em 1992 o Conselho
Espírita Internacional.
Nove países fundaram o CEI, hoje formado por 33 nações, entre as
quais figuram Brasil, Estados Unidos, Argentina, Portugal, França, Inglaterra, Argentina, Guatemala e Itália.
Sua estrutura baseia-se no modelo organizativo da FEB: Federações
Nacionais, Confederações Continentais (América do Sul, América Central
e América do Norte mais Angola e Japão que tem alguns centros espíritas
isolados.28 O CEI publica em seu site um boletim trimestral desde 2000,
onde noticias de seus países e de suas comissões federativas continentais. A
meta do CEI é a unificação das práticas e do movimento espírita, realizando
encontros anuais de sua executiva (formada por representantes do Brasil,
Portugal, França, Estados Unidos e Guatemala) e Congressos Espíritas
Internacionais a cada três anos.29 Sua ação, como anteriormente mencionado é uma negociação que leva em consideração especificidades regionais.
Na Europa e América Latina não lusófona, investe-se na reativação
das referências espíritas nacionais de fins do século XIX e início do XX, cujo
exemplo mais importante é a do espiritismo francês, lugar onde convivem
centros espíritas freqüentados por brasileiros e centros espíritas de franceses, especialmente em Lyon e Tours (ligados ao grupo de Roger Perez).30
A conquista de aliados franceses à volta de Roger Perez e Charles
Kampf levou Divaldo Franco a estabelecer um remanejamento da desagastada narrativa ufanista brasileira, situando o Brasil não mais como destino mas
como guardião provisório do Evangelho – ou seja do cristianismo e da revelação
espírita. Em reunião com espíritas franceses Divaldo afirmou que os espíritos
que encarnaram na França do século XIX e sistematizaram a doutrina espírita são os
mesmos que reencarnaram no Brasil do século XX, enquanto a França sofria com as
guerras mundiais. O médium baiano tem sido pródigo em estabelecer continuidades, pontes e mediações numa nova narrativa mestra, em que todos
os aliados estejam contemplados como parte de uma humanidade comum ao
mesmo tempo em que resgata e revaloriza referências espíritas locais, como
a obra de Kardec e a Revue Spirite.31
A contrapartida do apoio brasileiro ao resgate da religião espírita
francesa, além da clara influência no modo de praticar o espiritismo – Estudo
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Sistematizado da Doutrina Espírita, Atendimento Fraterno, Palestra, Passes,
Reunião de Desobsessão, Evangelização Infantil, Culto do Evangelho no
Lar e prática da caridade – é o reconhecimento das referências históricas
do espiritismo brasileiro, como os médiuns Chico Xavier e Divaldo Franco,
bem como os espíritos de André Luiz e de Emmanuel, agora alçados ao
status de pilares do novo kardecismo transnacional.
Nos Estados Unidos, país de maior contingente de imigrantes brasileiros e, consequentemente, maior país espírita após o Brasil, o laço com a
parapsicologia e a medicina alternativa são altamente enfatizados nos eventos
espíritas. Já para a América Latina o Conselho Espírita Internacional exporta
a tradicional relação brasileira com o cristianismo e a prática da caridade,
com especificidades importantes na Colômbia, país que teve uma simpatia
de primeira hora pelo kardecismo, por conta da importância da pedagogia
pestaloziana em suas reformas educacionais, no início do século XX. Enfrentando a pesada herança de guerras civis, o espiritismo colombiano tem
como bandeira central a paz ou pacificação do país.32
Conclusão
O espiritismo capitaneado pela Federação Espírita Brasileira e
Conselho Espírita Internacional nunca esteve tão prospero, dentro e fora
do Brasil, recomposto através de ações e ênfases no campo doutrinário,
midiático, narrativo, lingüístico e narrativo. Um espiritismo organizado de
acordo com o modelo de espiritismo cristão da FEB, em simbiose com
as Associações Médico Espíritas, altamente congressual, formado de uma
agenda de visitas e eventos, onde pontificam médiuns, dirigentes e médicos,
psicologizante, suavemente apocalíptico, sequioso de inserção e legitimidade
científica, nacional e internacional. As principais características e estratégias
do novo espiritismo transnacional são:
1. A manutenção de seu perfil de recrutamento classes médias e altas estabelecidas, mesmo em se tratando de migrantes brasileiros na Europa e Estados
Unidos, muitos deles mulheres casadas com europeus, que funcionam como
mediadores para o ingresso de uma ação missionária organizada do CEI. Isso
determina um perfil de lócus de encontro de brasileiros, que vai progressivamente tornando-se desconfortável justamente para os imigrantes brasileiros
que lideram o espiritismo nesses países. Estabelecidos na Inglaterra, Holanda,
Alemanha, Suiça, por exemplo, cada vez mais falam, em suas entrevistas em
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superar as barreiras lingüísticas e nacionais através da tradução de obras, do
proselitismo e recrutamento de nativos e da necessidade de fazer sessões e
encontros na língua nacional. Secundariamente, as entrevistas ao Consolador, ao mesmo tempo em que destacam a gratidão ao Brasil, pouco a pouco
começam a falar na necessidade de depender menos do movimento espírita
brasileiro para lançar raízes e desenvolver movimentos espíritas autônomos
em seus países.
2. O Aquecimento de congressos e encontros, nacionais e internacionais
com a participação de um staff de antigas e novas estrelas do espiritismo
especialmente os brasileiros Divaldo Franco, José Raul Teixeira, Marlene
Nobre, Nestor João Masotti e Antonio Cesar Perri de Carvalho mas que
passa a incluir parceiros franceses, hispânicos e brasileiros radicados na
Europa e Estados Unidos. Viaja-se e encontra-se muito os parceiros para
diversas finalidades.
3. A aliança dos CEI com a AME-internacional e o estímulo à formação
de Associações Médicas Espíritas em todos os países de atuação do CEI,
aprofundando e consolidando essa tão característica relação no atual movimento espírita.
4. Uma política de formação de redes que difunde a aceitação do modelo
brasileiro de organização e prática do espiritismo, com internacionalização
de seus ícones (especialmente Chico Xavier) em troca da valorização de
referencias históricas locais do kardecismo. Isso é particularmente visível
na Inglaterra com a valorização dos médiuns e espiritualistas ingleses pelos
espíritas brasileiros, mas também na Espanha (onde o espiritismo é considerado progressista, republicano e antidireitista), na França (pelo patrimônio
intelectual/religioso de Kardec); mas também na Escandinávia, Polônia,
Holanda e Estônia.
5. A difusão de seus veículos de comunicação como o formado pela WEBTV do Conselho Espírita Internacional, que transmite em inglês, francês,
espanhol e português.
6. Isso implica na recomposição das narrativas espíritas recuperando a idéia
de humanidade através de um viés apocalítico: em vez do otimismo do século
XIX trata-se agora, nas palestras de Divaldo Franco, de enfatizar as tribulações da promoção hierárquica da Terra da condição de um planeta de provas e
expiações para o status de um planeta de regeneração, sendo a violência do mundo
e a transformação climática os sinais mais evidentes dessa transformação. Em
termos da narrativa do movimento espírita, o Brasil deixa de ser a “pátria do
evangelho” para se tornar “a pátria que abrigou o consolador e os espíritos
franceses do tempo da codificação na época em que a Europa dilacerava-se em guerras mundiais”. A transnacionalização do modelo de espiritismo
brasileiro (espiritismo cristão, mediunidade com Jesus) ou brasilianização
efetiva-se. Assim, às custas da brasildicéia.
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7. Ao lado dessa narrativa é visível a conversão psicologizante das ênfases
discursivas nas palestras de Divaldo Franco, deslocando o espiritismo anterior, dolorista e sacrificial para um modelo bem-estarista centrado nos temas
da saúde e da felicidade, como espécie de contraponto a equilibrar a dureza
do discurso apocalítico em curso.
8. Uma agressiva política de tradução de obras de Kardec, Chico Xavier
e Divaldo Franco para línguas como inglês, espanhol, holandês, sueco e
russo, sustentada pela participação das editoras espíritas em várias feiras de
livros européias, como em Frankfurt e Mannheim. Assim, o multilinguismo
espírita, para fins de implantação transnacional, parece suceder ao sonho do
universalismo esperantista do século XIX e XX.
Notas
Pesquisador do CNPq.
“Thus, the belief in spirit mediums, in astrology or in the prophecies of Nostradamus
constitute what might be called rejected knowledge, i.e. ideas that flourish in a society
whose institutions take little notice of them, or even attempt to suppress them.”(Hammer,
2004, p. 28)
3
Antônio Flávio Pierucci, em apêndice brasileiro ao Livro das Religiões de Jostein Gaarder
(Cia das Letras, 2005) classificou o espiritismo como religião não-cristã ou posto avançado
do hinduísmo no ocidente, o que lhe rendeu acerba reprovação de espíritas por e-mail.
(Antônio Flávio Pierucci , informação pessoal)
4
Pesquisador parapsíquico americano que popularizou as near-death experiences, tendo já
participando de meetings espíritas.
5
Autora popular no âmbito das terapias de regressão ás vidas passadas. Ver <http://www.
childpastlives.org/>.
6
Físico hindu reencarnacionista, cuja obra A Física da Alma sustenta posições próximas
ao kardecismo.
7
Além disso, os dirigentes espíritas têm incrementado a difusão de sua mensagem nos meios
de comunicação, em revistas, sites, feiras do livro, programas de televisão, filmes e novelas de
televisão. Sempre cioso de sua respeitabilidade o movimento espírita vem também adotando
todas as agendas assistenciais e educativas promovidas pelos governos e Organizações Não
Governamentais, disponibilizando sua infra-estrutura para campanhas no Brasil e fora dele.
8
Inúmeros centros espíritas no Brasil e nos países hispânicos têm o nome de Joanna de
Angelis, Joana Angélica, Joana de Cusa ou Juana Ines de La Cruz, como a Fraternidade
Espírita Sor Juana Ines de La Cruz, na cidade do Mexico. A nominação, juntamente com
a política de remissão, resgates e de homenagens fornece os indícios da importância do
ministério espírita de Divaldo Franco .
9
Conforme relatado pelo psicólogo junguiano Gelson de Oliveira, ligado à Associação
Médico-Espírita do Rio Grande do Sul a “série psicológica de Joanna de Angelis” foi produto
1
2
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de um “estudo feito por Joanna com o espírito de Jung no mundo espiritual.” O informante
participa do trajeto internacional de conferencistas da área médico espírita, que conta com
forte apoio e incentivo de Divaldo Franco.
10
Como de costume, não é sem polêmica que esta inovação entre no meio espírita. Conforme o Coronel Vitor Leonardo, espírita e especialista em psiquiatria: “Esse livro não
passa de uma coletânea de conceitos perfunctórios dessa psicologia exposta em livros de
auto-ajuda. A impressão que temos é: ou que o autor já se submeteu à terapia psicanalítica
ou a alguma de seus discípulos fiéis ou dissidentes, mormente Jung; ou é leitor assíduo de
livros de auto-ajuda, já tendo alguma informação superficial da doutrina de Jung. Divaldo
faz citações de alguns filósofos gregos e da mitologia dessa civilização. Esses conceitos são
vulgares, sendo do conhecimento de qualquer pessoa de cultura mediana, que tenha feito o
clássico ou o científico da Reforma Capanema. Os conselhos apresentados são os mesmos
que aparecem nos livrecos de auto-ajuda. Nada de novo e muito menos de Kardec, o grande
esquecido. Até o título, além de plágio, é mal definido. O leitor fica sem saber aonde o autor
quer chegar. A Doutrina Codificada por Allan Kardec é rica em conceitos de Antropologia
Filosófica. Nenhum desses conceitos é citado. O autor os ignora. Cita apenas o que existe
nas obras vulgares de auto-ajuda e umas citações de Jung, que são de conhecimento leigo. O
lamentável que a série “psicológica” (fazendo um blague, poderíamos dizer “pepsicológica”)
tem influenciado sobremaneira o pensamento do Movimento Espírita Brasileiro.” (Fonte:
<http://fidelidadespirita.blogspot.com/2010/02/sobre-joanna-de-angelis-parte-2.html>,
acesso em 15/10/2010).
11
Há que se salientar que o reencarnacionismo e a categoria “carma” são objeto de um sem
número de investimentos religiosos no âmbito das religiosidades novaeristas, incrementandose com a privatização da expressão religiosa. Para uma discussão do reencarnacionismo
moderno ver Couture (1992), e uma visão etnológica comparada ver Obeyesekere (2002).
12
“Seu espírito chora quando se obriga a fazer algo que não gosta. Esforce-se no sentido de que o “sim” e o
“não” sejam condicionados pelo que sente e deseja”. O título do artigo de Zíbia, na revista popular
Viva.d e 24/09/2010, não poderia ser mais sugestivo da psicologização do espiritismo:”
Faça por prazer e não por obrigação”.
13
“Yet given the scope of contact and the rapidity of influence, it is reasonable to see our
own time as one of unprecedented globalization. The emergence of a mass culture, the
development of electronic media, the emergence of more efficient systems of goods distribution and the increased movement of people across national borders have resulted in
a large-scale interaction of cultures. Globalization is not a single, well-defined entity but a
common term for a set of processes. A first distinction can be made between globalization
as regarding the production, the consumption and the distribution of religious elements”.
(Hammer, 2004, p. 32)
14
“Como orador, Divaldo começou a fazer palestras em 1947, difundindo a Doutrina Espírita e hoje apresenta uma histórica e recordista trajetória no Brasil e no exterior, sempre
atraindo multidões, com sua palavra inspirada e esclarecedora, acerca de diferentes temas
sobre os problemas humanos e espirituais. Há vários anos, viaja em média 230 dias por
ano, realizando palestras e também seminários no Brasil e no mundo. Em um levantamento
preliminar suas atividades no exterior foram: Mais de 11 mil conferências proferidas no Brasil
e no exterior percorrendo mais de 62 países. América: Esteve em 18 países, em mais de 119
cidades, onde realizou mais de 1.000 palestras, concedeu mais de 180 entrevistas de rádio
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e TV para cerca de 113 emissoras, inclusive por 3 vezes na Voz da América, a maior cadeia
de rádio do continente. Recebeu cerca de 50 homenagens de vários países, destacando-se o
honorífico título de Doutor Honoris Causa em Humanidades, concedido pela Universidade
de Concórdia em Montreal, no Canadá, em 1991. Por 3 vezes fez palestras na ONU, no
departamento de Washington e fez conferências em mais de 12 universidades do continente.
Europa: Esteve em mais de 20 países, em mais de 80 cidades, onde realizou mais de 500
palestras, concedeu mais de 50 entrevistas de rádio e TV para cerca de 40 emissoras, tendo
recebido homenagens de vários países; fez conferência em cerca de 10 universidades européias e, por 2 vezes, na ONU, departamento de Viena. África: Esteve em mais de 5 países,
em 25 cidades, realizando 150 palestras, concedeu mais de 12 entrevistas de rádio e TV,
em 11 emissoras; recebeu 4 homenagens. Ásia: Esteve em mais de 5 países, em 10 cidades,
realizando mais de 12 palestras.” Fonte: verbete “Divaldo Franco” na Wikipedia <http://
pt.wikipedia.org/wiki/Divaldo_Pereira_Franco>, acesso em 15 de outubro de 2010.
15
“Como ocorreu a aproximação com Chico Xavier? – Em outubro de 1958, às vésperas
de mudar-se para Uberaba, o que ocorreu em janeiro de 1959, Chico Xavier esteve em
Uberaba e pediu ao Waldo Vieira, meu colega de faculdade, que me levasse até ele, porque
precisava conversar comigo. Durante a entrevista, como não o conhecia, apenas havia lido
suas obras, fiquei muito admirada com o convite que me fez: o de trabalhar com ele nas
sessões públicas da Comunhão Espírita Cristã, a partir de janeiro, quando ele já estaria instalado definitivamente em Uberaba. E foi o que aconteceu. Durante cerca de quatro anos,
de janeiro de 1959 a dezembro de 1962, trabalhei com ele, dando minha pequena parcela de
contribuição na interpretação dos textos de O Livro dos Espíritos e de O Evangelho Segundo o
Espiritismo, obras que eram estudadas nos dias de sessão pública. Mesmo mudando-me para
S.Paulo, em 1963, nossa amizade permaneceu sempre a mesma, até a sua desencarnação,
em 2002. E perdurará, tenho certeza, pela eternidade, porque somos imortais.” Entrevista
concedida por Marlene Nobre ao Jornal Diário do Nordeste (29/03/2009).” Disponível
em <http://www.usejabaquara.com.br/ver-noticia.php?area=18> Acesso em 15/10/2010.
16
A chamada série André Luiz, não por acaso o espírito de um médico, foi psicografada por
Chico Xavier a partir dos anos 40 e representa o que os espíritas acreditam ser uma série de
revelações científicas sobre o mundo espiritual e os mecanismos da mediunidade e da saúde.
17
“A Associação Médico-Espírita do Brasil (AME-Brasil) foi fundada em São Paulo, dia 17
de junho de 1995, durante a realização do Mednesp-95 - 3º Congresso Nacional de Médicos
Espíritas - realizado pela Associação Médico-Espírita de São Paulo instituição pioneira que
existia desde 30 de março de 1968. Até 1991, quando se iniciaram os encontros nacionais
bienais, somente existiam a AME São Paulo e a Associação Mineira de Medicina e Espiritismo (AMME), fundada a 18/4/1986; a partir de então, fundaram-se outras, em vários
Estados do Brasil, possibilitando o surgimento da entidade federal, com a adesão, em 1995,
de 9 instituições. Hoje, são 45, incluindo-se as estaduais e regionais.” Fonte: <http://www.
amebrasil.org.br/2011/node/10>, acesso em 01/08/2011. Saiba mais sobre o histórico da
AME-Brasil no artigo Medicine and Spirituality, assinado pela Dra. Marlene Nobre.
18
Sobre o baixo espiritismo ver Giumbelli (1995).
19
O Mercado Abriu-se ao Espiritismo. E Agora? Fonte : <http://www.feal.com.br/
cronica_internauta.php?men_id=84> acesso em 15/10/2010.
20
Há um estudo interessante sobre o contexto histórico da recepção de Ubaldi no Brasil
em Miguel (2009).
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E a relação com o laicismo com os demais movimentos laicistas - que atravessa o campo
religioso como uma posição e um espectro, como ateísmo foi no passado – não é inusitada.
O grupo do CEPA, mas não apenas ele, combate ativamente a definição de “religião” no
movimento espírita. (Fonte <http://cepabrasil.blogspot.com/>, Acesso em 01/04/2011)
22
Um veículo espírita da maior importância, como O Consolador, em quase todas as entrevistas
que faz com líderes espíritas lança uma questão sobre a polêmica em torno de Roustaing e
nenhum dos muitos entrevistados simpatiza com a tese. A polêmica simboliza a oposição à
ênfase religiosa da FEB em oposição a um kardecismo mais purista e racionalista de alguns
intelectuais. Fonte: <http://www.oconsolador.com.br/ano4/204/principal.html>, acesso
em 01/04/2011).
23
O filme Nosso Lar, baseado na obra mediúnica homônima de Chico Xavier, foi exibido
no Congresso Espírita Mundial da Espanha, assim como o filme Chico Xavier (2008, dir.
Daniel Filho) tem sido exibido em circuito mundial nos encontros espíritas. 24
<http://www.casadelnazareno.it/xav/index.html>, acesso em 15/10/2010.
25
<http://www.oconsolador.com.br/ano3/117/entrevista.html>, acesso em 15/10/2010.
26
A história de Konrad Jerzak é emblemática da formação das redes espíritas na Europa via
mulheres espíritas: “Divaldo tinha um projeto, de há muito acalentado: levar a mensagem
espírita para a Polônia. Durante alguns anos a busca de eventuais contactos, que o auxiliassem
a concretizar tal empreendimento, malograva sucessivamente. Mas, como acima referido,
os Espíritos trabalhavam, e Deus tem pressa, como dizia o apóstolo Paulo ― mas não é
apressado ― como complementa Divaldo. Eis que nesse ínterim, uma carioca viaja para
Varsóvia e casa-se com um jovem polonês, de nome Konrad Jerzak, professor de línguas
latinas. Ela, Espírita. Ele, identificando-se com o mesmo ideal, torna-se um simpatizante.
Falando fluentemente o português do Brasil foi ele o extraordinário tradutor, capaz de captar
com precisão o conteúdo doutrinário que Divaldo projetou em sua fala.” (Fonte: <http://
www.divaldofranco.com/noticias.php?not=7> acesso em 15/10/2010.
27
<http://www.oconsolador.com.br/20/entrevista.html>
28
O SEEAK em Luanda (<http://www.africaespirita.org/contacto.htm>) e alguns centros
no Japão, formados por imigrantes brasileiros, que praticam o espiritismo em português
e japonês.
29
Brasília, 1995; Lisboa, 1998; Ciudad de Guatemala, 2001; Paris, 2004 (bicentenário de Allan
Kardec); Cartagena, 2007; Valencia, 2010 (Centenário de Chico Xavier)
30
Roger Perez, líder da USFF, iniciou-se no espiritismo num centro fundado em Casablanca
por uma refugiada do franquismo Maria Munoz. O movimento posterior foi de retorno
á França. Trata-se de um espiritismo diaspórico que retorna ao centro, mas localiza-se em
cidades do interior da França o que pode estar relacionado à sua aliança com os brasileiros,
em busca de empoderamento e reconhecimento. Para a história de Perez ver <http://spirite.
free.fr/centre.htm>, acesso em 15/10/2010.
31
Os direitos de reprodução e tradução da Revue Spirite, pertencentes ao grupo de Roger
Perez e da USFF desde 1985 (após longa batalha judicial com os detentores dos direitos
autorais) foram adquiridos pelo Conselho Espírita Internacional que a relançou em parceira
com a USFF em francês e espanhol. Fonte: <http://www.spiritist.org/apoio/boletim1.
pdf>, acesso em 15/10/2010.
32
<http://www.confecol.org/>, acesso em 20/10/2010.
21
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Filmes:
Documentário: Divaldo Franco: Humanista e Médium Espírita. Direção de Oceano
Vieira de Melo. Rio de Janeiro: Videoespirite, 2008.
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O ACORDO BRASIL-SANTA SÉ
E AS RELAÇÕES ENTRE ESTADO,
SOCIEDADE E RELIGIÃO
Emerson Giumbelli
Universidade Federal do Rio Grande do Sul 1
Resumo: O texto analisa a assinatura do “Acordo entre a República Federativa do
Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”, em
vigência desde 2010. Além de acompanhar alguns aspectos de seu trâmite e sua
repercussão, privilegia o documento como acesso às formas de reconhecimento
do “religioso” no Brasil. Na sua esteira, são ainda consideradas outras propostas
legislativas e debates sobre o ensino religioso em escolas públicas.
Palavras-chave: laicidade, símbolos religiosos, espaço público.
Abstract: The paper analyzes the “Agreement between the Federative Republic
of Brazil and the Holy See concerning the legal status of the Catholic Church in
Brazil,” in effect since 2010. In addition to tracking some aspects of the lawsuit
and its impact, the document is viewed as a privileged access to the forms of recognition of “religious” in Brazil. In its wake, are still considered other legislative
proposals and debates on religious education in public schools.
Keywords: secularism, religious symbols, public space.
O “Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil” é um documento
composto de 20 artigos que tratam de assuntos diversos: representação
diplomática; personalidade jurídica das instituições eclesiásticas; integração
ao patrimônio histórico, artístico e cultural; proteção de lugares de culto;
assistência espiritual em prisões e outras instituições de internato (exceto
Forças Armadas, cujo regime já é objeto de outro Acordo); reconhecimento
de títulos acadêmicos; instituições de ensino e seminários; ensino religioso
em escolas públicas; efeitos civis do casamento religioso; segredo do ofício
sacerdotal; imunidade tributária; situação trabalhista de sacerdotes e religiosos; concessão de visto para estrangeiros.2 Foi assinado no Vaticano em
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 119-143, setembro de 2011.
120
EMERSON GIUMBELLI
novembro de 2008 entre representantes dos dois Estados e tramitou no
Congresso Nacional ao longo de 2009 como um acordo bilateral. Embora
tenha sido examinado em diversas comissões, uma maior exposição ocorreu
apenas na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, que
promoveu duas audiências públicas. Seguiu em regime de urgência para o
Plenário, onde foi aprovado em agosto de 2009. No Senado, tramitou ainda
mais rapidamente, com aprovação em outubro, sendo finalmente ratificado
por representantes de ambas as partes em dezembro de 2009. Tornou-se,
por meio de um decreto de 2010, parte integrante do ordenamento jurídico
brasileiro, ressalvada a possibilidade de questionamentos judiciais.3
Aqueles que defenderam o Acordo formaram coro em torno de
dois pontos: o respeito à laicidade e outros princípios adotados pelas leis
brasileiras e, portanto, o fato de que o texto apenas “consolidava” em um
instrumento único disposições já existentes acerca da vida institucional da
Igreja Católica no país. “Consolidar” é o verbo utilizado na mensagem enviada ao Congresso pelo secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores
(Brasil, 2009), em artigo do relator na Comissão de Relações Exterior da
Câmara Federal (Andrada, 2009) e em textos de líderes eclesiásticos católicos
(Barbosa, 2009a e 2009b; Tempesta, 2009; Sánchez, 2009). Vejamos alguns
trechos dessas justificativas. A mensagem do Ministério declara respeito às
“disposições da Constituição e da legislação ordinária sobre o caráter laico
do Estado brasileiro, a liberdade religiosa e o tratamento equitativo dos
direitos e deveres das instituições religiosas legalmente estabelecidas no
Brasil”. Para o deputado relator: “É um documento diplomático que não
traz nenhum fato excepcional, mas assegura à religião de maior número de
fiéis em nosso país um conjunto de garantias que, desde o início da República, não estava claramente configurado, embora sob plena obediência aos
preceitos da Constituição e das leis em vigor.” (Andrada, 2009). Enfim, para
o secretário geral da CNBB: “É preciso reafirmar, também, que o Acordo não traz nenhum privilégio à Igreja Católica e nem discrimina outras
confissões religiosas. Ele apenas confirma e consolida o que já estava no
ordenamento jurídico brasileiro, embora, em alguns casos, de uma forma
não totalmente explícita.” (Barbosa, 2009a)
Apesar de seu êxito, o documento gerou amplas reações contrárias,
exteriorizadas nos meios de comunicação. Várias entidades manifestaram-se,
inclusive a Associação Brasileira de Antropologia, a Sociedade Brasileira de
Sociologia e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.4 A noção
de laicidade voltou a aparecer, tanto como ideário que autorizaria criticar
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O ACORDO BRASIL-SANTA SÉ E AS RELAÇÕES ENTRE ESTADO...
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o acordo, frequentemente renomeado como “concordata”, quanto como
princípio ferido pela iniciativa. Uma declaração representativa é a seguinte:
“A mera existência da Concordata (tratado internacional entre um país e o
Vaticano) já macula o artigo 19 da Carta, que veda ao poder público manter
relações de aliança com cultos religiosos.” (Schwartzman, 2009; ver ainda
Fischmann, 2009b; Cunha, 2009b; Zveiter, 2009; CFMEA, 2009). Vários
pontos específicos foram levantados a propósito dos itens que formam o
conteúdo do documento. Interessa-me, no entanto, destacar outro questionamento mais geral, que incide sobre as justificativas do documento.
Pergunta Schwartzman (2009): “por que a insistência de Roma em aprovar
um documento que nada acrescenta? (...) Se o Brasil, como asseveram
nossas autoridades, não está disposto a dar ao Vaticano nada que já não
conste do arcabouço legal, por que a Concordata?” A mesma interpelação
encontramos em Cunha (2009a): “para que tentar garantir o que é líquido
e certo, algo que ninguém discute?”. A resposta que esboçam esses críticos
do Acordo ou Concordata retoma o primeiro ponto, denunciando uma
ruptura no regime de relações Estado-igreja vigente no Brasil, em desrespeito à laicidade.
Vemos então que, a depender das posições, o Acordo se reveste de
menor ou maior gravidade em suas implicações para o regime de relações
entre Estado-igrejas. Para seus defensores, o Acordo nada muda; para seus
críticos, algo drástico está a se processar. O caminho que vou seguir neste
texto procura explorar outra articulação possível. Para tanto, valho-me das
ideias de Taussig sobre o segredo público, definido como “o que é amplamente
conhecido mas não pode ser enunciado” (1999, p. 50). O livro de Taussig
onde essa tese é enunciada consiste em uma exploração sobre o conceito
de sagrado, passando por terrenos que não se restringem à religião.5 Penso
que ela pode ser instigante para pensar elementos que integram a definição do lugar da religião em um ordenamento social. Um dos aspectos do
segredo público é uma espécie de dialética sem solução entre exposição e
ocultação. Taussig explora a sugestão em outro texto (1998), apontando
uma relação complexa entre os dois termos. Uma possibilidade é que a
exposição revele menos do que a ocultação, como procurarei ilustrar mais
adiante ao falar de crucifixos em repartições públicas. Outra é que a exposição transforme aquilo que estava ocultado. No caso do Acordo, penso
que se pode inverter a definição do segredo público sem abandonar a idéia
sugerida pelo conceito. Nesse sentido, se – sem abdicar de uma posição
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EMERSON GIUMBELLI
crítica – levamos a sério o que querem seus defensores, o Acordo enuncia
o que deveria ser amplamente conhecido.
Notemos primeiro, como muitos críticos lembraram, que a negociação dos termos do Acordo foi sigilosa. Houve notícias da imprensa sobre
essa negociação na época da última visita papal ao Brasil em 2007; outras
notícias, apenas no momento da assinatura em 2008. Depois se soube
que antes disso o texto passou pelo crivo de dez ministérios ou setores
do governo federal. É surpreendente que tenha ficado em segredo. Tiro
dessas circunstâncias a pista para investir na direção oposta, adotando a
sugestão de Taussig acerca da dialética entre ocultação e exposição. Reiterando: levemos a sério a alegação de que o documento “apenas consolida”
algo já existente, embora em um sentido diferente daquele expresso por
seus defensores. Consideremos o documento uma revelação e sigamos as
direções em que aponta. Se o documento declara explicitar o que devíamos
saber, configura-se a pergunta: o que então deveríamos saber?
Acordo revelatório
Minhas indicações serão bastante genéricas, não tendo a intenção,
nesse momento, de perscrutar os meandros de cada tema coberto pelo
documento. No próximo item tentarei aprofundar a abordagem de um dos
temas do Acordo. O ponto que me interessa destacar consiste na localização
de dois vetores que recortam as disposições do texto. De um lado, há uma
preocupação em garantir ou reconhecer um espaço próprio às instituições
eclesiásticas. Participam dessa condição as disposições sobre o exercício
público de atividades (art. 2º), sobre personalidade jurídica (art.3º), sobre
proteção dos lugares de culto, liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais
(art.7º), sobre seminários de formação (art. 10), sobre segredo do ofício
(art.13), sobre imunidade tributária (art. 15), sobre natureza da relação trabalhista (art. 16), sobre a entrada de estrangeiros para atividades pastorais
(art. 17). De outro lado, ocorrem medidas que prestam assentimento a que
a religião católica estenda sua presença em outros domínios da sociedade:
representação diplomática (art. 1º), assistência social (art. 5º), patrimônio
histórico, artístico e cultural (art. 6º), assistência espiritual (art. 7º), instituições de ensino (art. 10), ensino religioso em escolas públicas (art. 11),
efeito civil do casamento religioso (art. 12) e planejamento urbano (art. 14).
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O ACORDO BRASIL-SANTA SÉ E AS RELAÇÕES ENTRE ESTADO...
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Se o primeiro vetor é de autonomia, o segundo é de difusão. Mas, a
rigor, em ambos os vetores o que está em jogo é a presença da religião na sociedade, em movimentos invertidos: no caso da autonomia, trata-se de algo
reconhecido pela sociedade; no caso da difusão, trata-se da manifestação da
religião em outras esferas. Se faço questão de sugerir essa abordagem, é para
acentuar que mesmo quando se trata de reconhecer autonomia à religião,
entram em jogo mecanismos e dispositivos que envolvem esferas e agentes
não religiosos. Mas isso não significa que ambos os vetores não possam se
conjugar. O art. 2º, por exemplo, permite as duas leituras: a partir de que
ponto o exercício público de atividades religiosas adentra outras esferas
sociais? O mesmo se pode dizer do art. 14, em sentido inverso: disposições
urbanísticas, ao prever espaços para templos, estariam meramente garantindo as condições de existência para as atividades estritamente religiosas? De
todo modo, se, como dizem os propositores do Acordo, nada disso é novidade, então passamos a saber muito sobre como o catolicismo se instala em
uma sociedade como a brasileira. Não se trata apenas de como pode existir
em esferas não religiosas, mas – reiterando – dos próprios mecanismos e
dispositivos que reconhecem sua existência como “religião”. Insistir nisso
toma inspiração em uma perspectiva preocupada com a definição social e
histórica do que seja “religião” (Asad, 2001 e 2003).
Esses mesmos vetores podem ser ampliados para cobrir não apenas
a relação da Igreja Católica com a sociedade brasileira, mas a relação de
outras confissões, ou de toda e qualquer religião. A distinção é importante,
pois ela procura traduzir dois dos desdobramentos da existência do Acordo.
Um dos pontos recorrentes na defesa do Acordo era a lembrança de que
coisa semelhante ocorre em muitos outros países. Além disso, autoridades
católicas afirmam que seria possível que outras confissões fizessem seus
acordos com o Estado brasileiro. Vejamos as palavras do Secretário da
CNBB: “Defendemos o direito de todas as igrejas e religiões firmarem
acordos com o Estado segundo seus estatutos próprios, a exemplo do que
já acontece em outros países, como o acordo da Itália com a Assembleia
de Deus. Nesse sentido, a Igreja Católica abriu um caminho importante
para as outras denominações religiosas” (Barbosa, 2009b; ver também
Barbosa, 2009a).
No entanto, em meio às reações ao Acordo que surgiram enquanto
tramitava na Câmara Federal, apresentou-se outra solução a fim de responder
à acusação de que o primeiro documento implicava em privilégio à Igreja
Católica. Essa acusação foi levantada no Congresso Nacional sobretudo por
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EMERSON GIUMBELLI
expoentes e lideranças evangélicas (Ranquetat Jr., 2010). Em alternativa à
retirada ou não aprovação do Acordo na Câmara, elaborou-se um projeto
de lei que visava estender as provisões voltadas para a Igreja Católica a
toda e qualquer religião. O projeto foi elaborado por um deputado que é
membro da Igreja Universal do Reino de Deus e levemente modificado por
outro deputado evangélico. Ficou conhecido como Lei Geral das Religiões
e tramita agora no Senado, depois de ter sido aprovado na mesma sessão
da Câmara que aceitou o Acordo com a Santa Sé.
Apesar de seu êxito na Câmara Federal, o projeto da Lei Geral vem
recebendo várias críticas. É bastante ilustrativo um editorial do jornal O
Estado de São Paulo (02/09/2009), um dos mais importantes no Brasil:
“Quando a ratificação do acordo foi encaminhada ao Legislativo, (...), as
bancadas evangélicas aproveitaram a oportunidade para estender a toda
e qualquer ‘instituição religiosa’ as mesmas vantagens legais, trabalhistas
e fiscais concedidas à Igreja Católica. O projeto de lei apresentado com
esse objetivo tramitou em tempo recorde. Seus vícios começam com a
total liberdade dada às ‘denominações religiosas’ para criar, modificar ou
extinguir suas instituições, e avançam com as isenções fiscais para rendas
e patrimônio de pessoas jurídicas vinculadas a quaisquer instituições que
passem por religiosas. Essas concessões abrem uma imensa porteira para
negócios escusos.”6 Reações como essa apóiam-se na desconfiança generalizada que paira sobre a forma como as igrejas evangélicas – ou certas dentre
elas – se organizam e se difundem no Brasil. Como procurei argumentar
em outro trabalho (Giumbelli, 2002), a consolidação dos “evangélicos”
como protagonistas sociais reconhecidos veio acompanhada de um modo
de atuação na sociedade que produzia ao mesmo tempo uma cristalização
da religião como domínio social e uma percepção de que esse religioso
estava fora do lugar. Caso o projeto vier a se transformar em lei, teremos a
coroação desse paradoxo, pois o texto que é proposto para regular todo o
conjunto das religiões vem da iniciativa de um deputado vinculado a uma
das igrejas mais polêmicas.
Outra ironia da história é que o projeto da Lei Geral das Religiões
vem sendo apresentado como uma cópia do texto do Acordo com a Santa
Sé. De fato, a maior parte do texto do primeiro, que também tem 20 artigos,
é uma transcrição do segundo. A extensão para todas e quaisquer religiões é
produzida pelo uso das expressões “instituições religiosas”, “denominações
religiosas”, “organizações religiosas”, “credos religiosos” e “pessoas jurídicas religiosas”. Desse modo, como já assinalei acima, o texto do projeto
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de lei estende os vetores de autonomia e difusão para contemplar todas e
quaisquer religiões. A extensão garantida pela cópia da maior parte do texto
do Acordo permite duas leituras. Por um lado, ela comprova o poder da
Igreja Católica em estabelecer os termos pelos quais se regulam as formas
de autonomia e difusão da religião no Brasil. Por outro, ela confirma o protagonismo dos evangélicos, que foram capazes de reagir às pretensões da
Igreja Católica e de estabelecer uma proposta de marco jurídico que é mais
geral, e de maior poder revelatório – embora se possa notar, considerando
as reações acima mencionadas ao projeto da Lei Geral, que sua aplicação
é ainda mais incerta, e mais oculta, do que a do Acordo.
Nesse ponto, é oportuno fazer uma pausa na exposição para mencionar outra iniciativa legislativa que partiu de uma mobilização predominantemente evangélica. Trata-se de uma alteração na lei que encarna o Código
Civil brasileiro, cuja nova versão passou a vigora em 2003. Em seguida à
promulgação, multiplicam-se protestos contra a nova lei, alegando que os
dispositivos aplicáveis às “associações” implicariam, no caso das instituições
religiosas, em controles que atentariam contra a liberdade religiosa. Como
resultado das mobilizações, uma lei tramitou no Congresso Nacional e
recebeu a aprovação da Presidência da República, produzindo um acréscimo ao número de modalidades de pessoas jurídicas de direito privado.
As igrejas e congêneres estariam agora contempladas pela figura específica
das “organizações religiosas”. A lei não estipula que diferenças existiriam
entre as “associações” e as “organizações religiosas”. A preocupação do
legislador parece ter sido a de reconhecer liberdade para “a criação, a organização, a estrutura interna e o funcionamento das organizações religiosas”,
conforme a outra modificação introduzida na lei original.7 Porém, como
ocorreu a criação de uma figura jurídica específica, só o futuro nos dirá o
que será feito dela. Seu sentido permanece oculto, da mesma forma que
sua criação é revelatória.
Voltando agora ao projeto da Lei Geral, estendo meu comentário
seguindo uma pista deixada por seu trâmite e que vai nos levar a entender
porque não é totalmente verdade que seja apenas cópia do texto do Acordo. Visando favorecer a aprovação acelerada do PL 5598/09, um outro foi
retirado, o PL 1553/07, mas não sem deixar legados. O mais importante
está na finalidade do texto, o que confirma a idéia de que a generalidade do
PL 5598 não reside apenas na sua extensão, mas também na sua pretensão,
exposta no seu caput e também no artigo 1º: trata-se de regulamentar alguns
incisos de um artigo da Constituição Federal em sua parte sobre direitos
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fundamentais, que versa sobre “liberdade de consciência e de crença” e
sobre o “livre exercício dos cultos religiosos”. Em relação ao conteúdo
dos demais artigos da Lei Geral, as diferenças no cotejo com o texto do
Acordo aparecem com mais nitidez em dois momentos.8 Primeiro, no art.
6º, que, ao reproduzir o art. 7º do Acordo, estende a proteção conferida
às instituições religiosas às “celebrações externas”, precisando que “é livre
a manifestação religiosa em logradouros públicos, com ou sem acompanhamento musical”. Segundo, no art. 18, sem correspondente no texto do
Acordo: “A violação à liberdade de crença e a proteção aos locais de culto
e suas liturgias sujeitam o infrator às sanções previstas no Código Penal,
além de respectiva responsabilização civil pelos danos provocados”. Como
se vê, o tema se repete, e se pode constatar que todas as modificações incorporadas ao PL 5598 têm sua origem no texto do PL 1553.
A consulta ao texto do PL 1553, por sua vez, revela ainda mais
coisas.9 Esse projeto de lei é a reedição de outro anterior, o PL 1155/03,
ambos remetendo a outro, o PL 4163/89. Entre eles, existe em comum a
finalidade de regulamentar o inciso VI do art. 5º da Constituição Federal,
pretensão, como se viu, herdada pelo PL 5598, a Lei Geral das Religiões.
Seu conteúdo não sofre nenhuma grande modificação, tendo como objeto
a liberdade de crença e a proteção aos locais de culto e suas liturgias. Isso
abrange os templos e também manifestações externas, incluindo uma
definição de “pregação religiosa” que é assegurada às associações devocionais, às suas autoridades e, no projeto mais recente, a qualquer “cidadão
individualmente”. Um dos artigos demonstra zelo ao prever punições específicas a violações, entre as quais destaco: “utilizar, com a finalidade de
causar escândalo, levar ao ridículo ou expor à execração pública, cerimônia,
vestes, cânticos ou símbolos constantes da liturgia de confissão religiosa”
e, no texto mais recente, “servir-se de [qualquer meio de comunicação]
para aviltar, achincalhar ou denegrir publicamente cultos, liturgia, cânticos,
vestes e símbolos religiosos”. Vale ainda transcrever parte da justificativa
do PL 1553, que se inicia lembrando do preâmbulo constitucional e sua
menção a Deus10: “(...) temos presenciado repetidas vezes a impunidade
ao desrespeito à religião, que na verdade redunda em desrespeito ao próprio Deus. (...) Quem de nós já não se deparou com espetáculos públicos
feitos com o único fim de achincalhar valores religiosos? Quem de nós não
presenciou anúncios comerciais que ridicularizavam símbolos cristãos, com
o único fim de fazer vender seus produtos? Quem de nós já não sofreu
preconceitos pelo simples fato de professar sua fé em Deus e de procurar
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viver em coerência com ela? Quem de nós não viu pessoas religiosas serem
impedidas de se expressar por causa de uma suposta violação à ‘laicidade’
do Estado?” (grifo acrescentado).
A investigação da trilha oculta pela proposta da Lei Geral das Religiões revela assim o tema dos “símbolos religiosos”. Trata-se de um tema de
menor evidência no texto do Acordo, mas que é objeto de alguma polêmica
no Brasil, sobretudo a partir de 2005. A polêmica tem se voltado para a presença de crucifixos em repartições públicas, como parlamentos, tribunais e
outros órgãos estatais – presença que é corriqueira pelo país afora. Iniciativas
propondo sua retirada vêm levantando reações, em geral exitosas, pela sua
manutenção. O detalhamento dessas polêmicas não está entre os objetivos
deste texto.11 Mas será útil a menção a alguns argumentos, pois guardam
relação com o debate sobre o Acordo e seus desdobramentos. Para os que
propõem a retirada dos símbolos religiosos, trata-se novamente de aplicar as
exigências da laicidade ou de resguardar os direitos de pessoas que possam
se ofender diante de crucifixos. Para os que defendem a permanência, não
há atentado à laicidade, mas o reconhecimento de uma tradição incorporada
a um objeto que funciona como emblema de uma formação histórica nacional. Em minha interpretação, também inspirada nas idéias de Taussig, a
presença dos crucifixos depende de uma certa invisibilidade: eles cumprem
seu papel tanto mais quanto menos forem notados. Nesse sentido é que
os argumentos que defendem sua permanência operam inversamente em
relação àquilo que faz o Acordo: se este revela o que deveríamos saber, os
defensores do crucifixo expõem as razões que tornam um objeto oculto.
É importante deixar claro meu argumento quando provoco esse
encontro com o tema dos símbolos religiosos ao perseguir as pistas deixadas pela elaboração do projeto da Lei Geral das Religiões que surgiu como
uma reação ao Acordo com a Santa Sé. A confluência que assinalo permite
afirmar que estamos às voltas com o mesmo assunto. Contudo, mais pertinente é perceber que esse mesmo assunto vem sendo acessado por vias
paralelas. Por um lado, encontramos os símbolos religiosos no caminho de
uma cadeia revelatória, que leva do Acordo à Lei Geral e desta aos projetos
antecedentes voltados à proteção dos cultos. Nesse quadro, os símbolos
atuam exatamente na comutação entre os vetores da autonomia e da difusão. Como deixam claro os textos que tratam dos templos mas também
de manifestações externas, os símbolos frequentam as duas dimensões e o
que se trata de assegurar é sua conotação e suas propriedades religiosas. A
defesa, portanto, procura conferir um caráter inequívoco a lugares, ocasiões e
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objetos. Por outro lado, os crucifixos que aparecem na discussão sobre símbolos religiosos têm a sua presença em tribunais e outros estabelecimentos
estatais amparada em um efeito de invisibilidade, para qual é fundamental a
argumentação de que nunca são apenas religiosos. Esse caminho nos leva
a uma cadeia de ocultação. Nos dois casos, o que está em jogo é, por meio
de muitas ambiguidades, o reconhecimento do “religioso”.
Ensino contencioso
Entre os itens constantes do texto do Acordo, provavelmente o que
desperta maior controvérsia é o do ensino religioso em escolas públicas, tema
do art. 11. A controvérsia precede o Acordo e passa por diversos pontos.
Um deles é a própria compatibilidade entre o regime de separação entre
Estado e igrejas e a existência do ensino religioso. O fato é que a disciplina está prevista em todas as Constituições republicanas brasileiras desde
1934. Entende-se que se trata da sua oferta, pois para os alunos a matrícula
é facultativa, como confirma a Constituição vigente no seu art. 210. Em
1996, a principal legislação sobre educação estipulou que a disciplina não
teria seus custos arcados pelo Estado, o que foi modificado por outra lei do
ano seguinte. Desde então, são as unidades da federação que se ocupam da
definição de regimes de funcionamento, conteúdos curriculares e habilitações docentes, com pouca interferência da União. Em alguns estados, foi
adotado o que se denomina de modelo “confessional”, segundo o qual os
alunos são atendidos de acordo com suas adesões religiosas, conferindo-se
às respectivas “autoridades religiosas” poder de interferência em conteúdos
curriculares e indicação de docentes. Na maioria dos estados, entretanto,
preferiu-se encontrar um currículo único, o que não necessariamente afasta a influência de grupos religiosos ou padroniza os requisitos docentes.
Pode-se dizer que a variação é considerável em ambos os terrenos. Embora
o predomínio de referência e agentes cristãos seja a regra, há forças que
ameaçam ou provocam instabilidades na situação.
Não chega então a ser uma surpresa que o Acordo tenha despertado
grande polêmica nesse item. De um lado e do outro da discussão, encontramos opiniões que consideram o documento como uma proposição a favor
do modelo “confessional” de ensino religioso (Cunha, 2009a; Sánchez, 2009;
Santoro, 2008). Como assinalei, esse não tem sido o modelo implementado
na maior parte dos estados brasileiros. Além disso, os críticos do Acordo
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observam que houve uma alteração em relação ao que prevê tanto a Constituição Federal, quanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
os quais não mencionam especificamente um ensino “católico”. Diante
disso, levanto dois pontos. Primeiro, pode-se ter dúvidas sobre a aplicação
desse item do Acordo na direção do “modelo confessional”, uma vez que as
resistências contra ele são grandes. Essa observação, aliás, pode se aplicar a
praticamente todos os assuntos do Acordo. É isso que constitui a dimensão
oculta do texto. O segundo ponto retoma a idéia acima exposta, ou seja, o
efeito revelatório do documento. Isso se aplica seja em relação a um projeto
da Igreja Católica e sua opção por determinado modelo, seja em relação
ao próprio assunto. É que na divulgação ou na recepção do documento,
notou-se frequentemente a impressão de uma novidade total, como se o
ensino religioso nas escolas públicas já não estivesse previsto em outras leis
brasileiras. Considerando isso, pode-se afirmar que o Acordo é revelatório.
Seu efeito de revelação significa que mais do que instaurar, a lei faz
emergir um assunto que se torna, mais do que antes, aberto a um debate.
Pode-se dizer que é o que está ocorrendo com o ensino religioso. Por ora,
a única interpelação judicial ao Acordo ocorre a propósito exatamente
desse tema. O interessante é que ela venha de uma instância que participa
do Estado, a Procuradoria Geral da República. Em uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI 4439), o órgão dirige-se ao Supremo Tribunal
Federal (STF) solicitando pronunciamento que proíba a adoção do modelo
confessional. De acordo com o texto, o que se espera do ensino religioso
são “práticas educacionais voltadas a municiar crianças e adolescentes
de informações necessárias neste campo, para que cada uma delas possa
fazer as suas próprias escolhas pessoais, em tema tão importante da vida
humana”.12 A defesa do Acordo coube à Advocacia Geral da União, outro
órgão estatal, que aponta a compatibilidade do modelo confessional com
a laicidade e com o “desenvolvimento adequado de todas as religiões”,
estando assegurado “àqueles que não seguem qualquer credo (agnósticos e
ateus) e aos que não tenham interesse no assunto o direito subjetivo de não
participar das aulas.” (cf. Nogueira 2010) O que importa destacar, ao meu
ver, é o engendramento de uma situação que exige o pronunciamento da
mais alta corte do país sobre o ensino religioso. Caso o Supremo Tribunal
Federal indefira as pretensões da ADI, pouco muda, pois há outras forças
que impedem a disseminação do modelo confessional; mas se a decisão
for diferente, esse modelo fica seriamente comprometido. Mesmo que em
seu apoio exista o Acordo entre Brasil e Vaticano.
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Mas o alcance das reações a esse item do Acordo pode ser ainda
maior. O documento da Procuradoria vale-se basicamente de duas fontes.
Primeiro, está amparado em argumentos que também ocorrem em um
texto em favor da retirada de símbolos religiosos de repartições públicas
(Sarmento, 2008).13 Nesse sentido, ele produz o cruzamento de temas
que já notamos a propósito da Lei Geral das Religiões, mas com efeitos
inversos. A outra fonte importante para o documento da Procuradoria é
um livro publicado em 2010, que propõe uma forma de classificar o campo
das implementações do ensino religioso nos diversos estados brasileiros
(Diniz, Lionço e Carrião, 2010). De acordo com essa classificação, todas
as unidades da federação, com exceção de uma, adotaram para o ensino
religioso o modelo confessional ou o interconfessional. O que merece
destaque no argumento é que ele toma o interconfessional como uma
variante do confessional. Ou seja, se no segundo as religiões são mantidas
em separado, no primeiro se produz um referencial unificado através de
um suposto consenso entre elas. Isso, conforme o argumento, não altera o
controle que as instituições e autoridades religiosas teriam sobre conteúdos
e habilitações para o ensino religioso. Baseado nisso, o documento da Procuradoria solicita que o Supremo Tribunal Federal declare que a disciplina
só possa ser oferecida na forma “não-confessional”.
Talvez o STF não se pronuncie sobre isso. Mas vale insistir nas
consequências do argumento para a visão que se constrói sobre o ensino
religioso. A visão ora predominante procura caracterizar o esforço em se
construir um referencial unificado em termos da distância que com ele se
produziria em relação a uma abordagem catequética e missionária. Mas para
as autoras do livro Laicidade e Ensino Religioso no Brasil, a existência de um
referencial unificado não seria garantia de “neutralidade confessional”. Daí
suas críticas ao modo pelo qual o ensino religioso vem sendo implementado nos estados brasileiros, fazendo aproximações entre o confessional
e o interconfessional. Se é impossível avaliar o impacto dessa abordagem
sobre o debate acerca do tema, pode-se no entanto constatar a significativa
repercussão do livro. Provavelmente nenhuma publicação sobre o assunto
tenha recebido tamanha cobertura na imprensa.14 O livro conta ainda com
o apoio do escritório local da Unesco, que ajudou a financiar as pesquisas
que embasam seus resultados. Enfim, pode-se dizer que sua repercussão
se beneficia da própria existência do Acordo, e vimos como ele se torna
uma das fontes básicas da principal reação ao documento assinado entre
Brasil e Vaticano.
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Se isso estiver correto, serve como demonstração das consequências
do que entendo como efeito revelatório do Acordo. Vale reiterar: o Acordo
pode alterar a situação dos temas acerca dos quais se pronuncia, mas não
na direção em que ele mesmo indica. O livro de Diniz, Lionço e Carrião
não faz nenhuma proposta alternativa em termos de padrão curricular.
Suas reivindicações vão no sentido de provocar uma interferência federal
no tema, visando a definição de conteúdos mínimos e o afastamento de
direcionamentos religiosos.15 Isso se estende aos livros didáticos dedicados
à disciplina, assunto de um dos capítulos do livro. A avaliação é também
negativa, denunciando um viés cristão, e vem atrelada à sugestão de que o
Ministério da Educação submeta os livros de ensino religioso aos mesmos
procedimentos destinados ao material didático de outras disciplinas. As
sugestões podem ter um impacto significativo na implementação do ensino
religioso. Não é minha intenção discuti-las aqui, mas sirvo-me delas para
algumas considerações próprias acerca do universo dos livros didáticos
voltados para o ensino religioso. Trata-se efetivamente de um universo
a merecer maior atenção. As observações que faço a seguir decorrem de
uma análise mais ampla (Giumbelli, 2010), da qual destaco comentários que
incidem sobre as atividades propostas em dois livros voltados para crianças
que iniciam a segunda metade do ensino fundamental. Tentarei mostrar
que, como o Acordo e como as sugestões de Diniz, Lionço e Carrião, esses
livros entram no jogo das definições do que seja o “religioso”.
Em uma das lições de Redescobrindo o Universo Religioso (Braga, 2008),
pede-se que o estudante diferencie o que é “costume religioso” de um “costume social”. Há quatro fotos: um desfile de carnaval, duas crianças orando,
um casamento celebrado por padre, crianças abrindo ovos de chocolate (p.
45). Confesso que teria dúvidas pelo menos em relação aos dois últimos
casos; o livro, porém, aposta na possibilidade de se efetuar a distinção entre
“social” e “religioso”. Exercício semelhante é proposto páginas adiante,
novamente supondo a distinção entre, por exemplo, “gestos culturais para
cumprimentar as pessoas” e “o significado do feriado que acontece no
15 de novembro” (Proclamação da República), por um lado, e, por outro,
“símbolos religiosos” (p. 49). As duas atividades são mediadas por uma
exposição acerca de “datas comemorativas” no calendário. Segue-se o exercício: “pesquise e descubra quais são os dias das comemorações religiosas
em destaque no calendário” (p. 47). Um quadro visa explicar “por que há
tantos feriados religiosos”, e destaca a importância que as datas têm na vida
dos fiéis: “... por tornarem-se experiências que se manifestam na vida de
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EMERSON GIUMBELLI
uma sociedade, foram inseridas no calendário anual” (p. 48). Portanto, em
cinco páginas, o livro propõe que os estudantes distingam entre costume
social e religioso e, ao mesmo tempo, explica que um feriado (socialmente
instituído) pode ser a expressão social de uma devoção religiosa...
Se tomamos a ênfase na distinção como característica desse primeiro
livro, é o oposto que constatamos em Descobrindo Novos Caminhos (Cruz,
2006). Nesse segundo livro, predomina uma perspectiva segundo a qual a
religião está imersa na vida em todos os seus aspectos. Dois exemplos de
atividades expressam essa perspectiva no plano das atividades propostas
aos alunos. Não são respostas religiosas o que se espera dessas perguntas:
“Imagine como Deus gostaria que seus profetas anunciassem os caminhos
de salvação nas grandes cidades de hoje?” (p. 71) e “Se você fosse prefeito,
como usaria o dinheiro do povo?” (p. 72). Secular e religioso estão misturados. Vejamos agora como isso aparece no último capítulo do livro, dedicado
aos símbolos. Já em contraponto ao livro anterior, aqui a Páscoa aparece
apenas como celebração religiosa, sinal da “aliança com Deus” (p. 156).
A seguir, temos atividades compostas de uma série de perguntas na qual
predomina a continuidade entre eventos religiosos e de outra natureza. Mais
do que a distinção entre eles, importa o sentimento e o comportamento que
se devem ter, seu objetivo comum associado ao reforço de certas escolhas
(p. 157-9). Nesse caso, portanto, uma distinção que pode ser socialmente
significativa é anulada em favor de uma perspectiva que reitera a interferência
mútua entre religioso e secular.
Se trago rapidamente à baila dois entre os inúmeros títulos que frequentam o universo dos livros didáticos voltados ao ensino religioso, não
é apenas para notar diferenças de perspectivas entre eles. O ponto mais
importante, na verdade, é a operação de distinção entre religioso e não
religioso que podemos constatar nas atividades propostas aos estudantes.
Minha preocupação, portanto, é acompanhar as variadas formas pelas quais
essas distinções ocorrem. Podemos voltar às sugestões do livro de Diniz,
Lionço e Carrião e perceber que um de seus principais objetivos é propiciar
um monitoramento do campo do ensino religioso por agentes e saberes
que não compartilham de uma perspectiva religiosa. Por isso as autoras se
insurgem contra o princípio que postula que a religião seria um assunto
sobre o qual apenas crentes podem se manifestar. Enfim, o próprio texto
do Acordo participa do mesmo jogo de operações. No caso específico do
ensino religioso, como mesmo o documento da Procuradoria reconhece,
seu art. 11 provoca várias possibilidades de interpretação visando sua
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 119-143, setembro de 2011.
O ACORDO BRASIL-SANTA SÉ E AS RELAÇÕES ENTRE ESTADO...
133
compatibilidade com outras disposições legais. Considerado na sua totalidade, o texto do Acordo efetiva distinções entre religioso e não religioso a
partir dos vetores de autonomia e de difusão, como procurei demonstrar
na seção anterior.
Notas finais
Retomo, nestas notas finais, uma linha de interpretação que propus
em outro texto, no qual já fazia menção ao Acordo, antes mesmo da sua
assinatura formal (Giumbelli, 2008). A Igreja Católica, a quem coube a
iniciativa na proposição do Acordo, tendo se transformado na sua principal
defensora, declara, através de seus porta-vozes, não reivindicar nenhum
privilégio junto ao Estado e à sociedade. É interessante que haja esse discurso de respeito à igualdade e à laicidade, embora os críticos argumentem
o contrário. Seja como for, importa destacar que a Igreja Católica procure
garantir sua posição e seus interesses por meio de um instrumento particularista – ou seja, por meio de um Acordo que só lhe diz respeito. Na situação
brasileira, isso representa uma mudança significativa, pois historicamente
a Igreja Católica buscou se consolidar apoiando-se em regulações genéricas, contando em seu favor com a associação dominante entre religião e
catolicismo. O que vemos agora são representantes evangélicos apostando
na regulação genérica, como sinaliza diretamente a Lei Geral das Religiões.
Estamos diante de algo cujo sentido e implicações são um desafio para
nossa compreensão do quadro global das relações entre Estado, sociedade
e religião no Brasil. Alguém lembrará que o Acordo entre Brasil e Santa Sé
foi transformado em lei, enquanto que o projeto evangélico, depois de um
começo auspicioso, aguarda uma tramitação incerta. No entanto, se está
correto o que procurei propor ao longo do texto, o impacto do Acordo
não se esgota na sua aprovação; essa aprovação seria, na verdade, apenas
um movimento em circuitos cuja amplitude, por ora, é difícil de determinar.
A existência do Acordo e a possibilidade da Lei Geral das Religiões
precisariam ainda ser entendidas inserindo-se o Brasil em um quadro mais
amplo. Trata-se de considerar globalmente as ações da Igreja Católica em
suas tentativas de consolidar e conquistar posições no interior de formações
nacionais específicas. Trata-se ainda de observar o quadro oferecido pela
América Latina. A plausibilidade de algo como o Acordo entre Brasil e Santa
Sé é propiciada não só pelo fato do Vaticano desfrutar – mesmo que esdruCiencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 119-143, setembro de 2011.
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EMERSON GIUMBELLI
xulamente – do estatuto de sede estatal, mas também pela forte penetração
social e institucional da Igreja Católica nos países latino-americanos, entre
os quais há vários exemplos de dispositivos concordatários e de formas de
reconhecimento do catolicismo. Por outro lado, não se pode desvincular
iniciativas como o Acordo dos desafios que assaltam o catolicismo nesses
mesmos países. Entre esses desafios está a ascensão evangélica, cujos representantes e expoentes passam a desempenhar protagonismo. Seja como for,
creio que estamos diante do desafio de encontrar referências que permitam
articular as diversas dimensões que se manifestam em situações como as
que foram analisadas aqui. Em suma, referências que nos permitam passar
do religioso ao político – e vice-versa, sem excluir o societário.
Notas
Professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista de Produtividade do
CNPq. Email: [email protected]. Este texto desenvolve idéias que constituíam
uma parte do que foi apresentado na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre
os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil.
2
A íntegra do texto do Acordo pode ser consultada ao final deste texto.
3
Para uma descrição mais precisa do trâmite do Acordo, ver Ranquetat Jr. (2010), a quem
agradeço os comentários à versão apresentada na Reunião Brasileira de Antropologia.
4
Para um detalhamento das reações, ver Fischmann (2009a) e Ranquetat Jr (2010).
5
Para uma aplicação da mesma idéia de Taussig em terreno bem diferente, ver Carozzi (2009).
6
Na mesma direção vai o artigo do secretário da CNBB: “Não colocamos aqui, no mesmo
nível, uma série de movimentos religiosos que se autodenominam ‘igrejas’. A muitos deles
faltam tradição histórica e todo um arcabouço que os configure como igreja. Lamentavelmente, a rendosa teologia da prosperidade tem sido motivadora da criação de inúmeras
‘igrejas’, permitindo-nos mesmo afirmar a existência de um perigoso mercado da fé. Daí
ser uma temeridade a Lei Geral das Religiões, que está no Congresso para ser votada, dado
que nivela todas as igrejas e religiões, sem distinguir umas das outras” (Barbosa 2009b).
Ver também Fischmann (2009b), Garcia (2009) e Alencar (2009), que, a partir de outras
argumentações, expressam temores semelhantes.
7
O texto do Código Civil corresponde à Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. A
modificação foi provocada pela Lei no. 10.825, de 22.12.2003). Sobre as mobilizações que
propiciaram a modificação, ver Mariano (2006). Desenvolvo meus argumentos com mais
detalhes em Giumbelli (2008).
8
Para outro contraponto entre os textos do Acordo e do projeto de lei, ver Ranquetat Jr
(2010).
9
Para acesso ao conteúdo dos projetos de lei, bem como ao seu trâmite, ver <http://www.
camara.gov.br>
1
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O ACORDO BRASIL-SANTA SÉ E AS RELAÇÕES ENTRE ESTADO...
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A Constituição Federal vigente no Brasil, de 1988, tem como preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República
Federativa do Brasil”. Há divergências sobre as implicações jurídicas dessa menção a Deus,
cf. Leite (2008).
11
Para uma discussão dos argumentos a favor e contra a permanência de crucifixos em
recintos estatais no Brasil, ver Giumbelli (prelo).
12
Para o documento da Procuradoria, consultar http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=ensino religioso&processo=4439 (acesso em
25.02.2011).
13
Sarmento é procurador federal no Rio de Janeiro. O documento da Procuradoria reconhece declaradamente sua contribuição, juntamente com Waldemar Zveiter, líder de uma
organização maçônica fluminense que apóia a iniciativa da Procuradoria (cf. <http://www.
maconaria-rj.org.br/principal/index.html>, acesso em 28.02.2011).
14
Uma busca no Google gera mais de 3.000 resultados, incluindo registros de reportagens
em jornais e revistas. Acesso em 28.02.2011.
15
Essa tendência a uma interferência federal no tema manifesta-se também em um projeto
de lei apresentado em 2011 na Câmara dos Deputados por Marco Feliciano (PSC-SP), que
é pastor evangélico. O PL 309/2011 vai além do que estipula a LDB ao estabelecer algumas
diretrizes para conteúdo e vários requisitos docentes. Outro exemplo é o levantamento de
dados sobre a oferta da disciplina realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais, órgão do Ministério da Educação, cf. matéria de Folha de São Paulo, 27.02.2011.
Agradeço a Janayna Lui a notícia sobre o PL 309.
10
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Anexo
DECRETO Nº 7.107, DE 11 DE FEVEREIRO DE 2010.
Promulga o Acordo entre o Governo da República
Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto
Jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado na
Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe
confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e
Considerando que o Governo da República Federativa do Brasil e a
Santa Sé celebraram, na Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008,
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um Acordo relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil;
Considerando que o Congresso Nacional aprovou esse Acordo por
meio do Decreto Legislativo no 698, de 7 de outubro de 2009;
Considerando que o Acordo entrou em vigor internacional em 10
de dezembro de 2009, nos termos de seu Artigo 20; DECRETA: Art. 1o O Acordo entre o Governo da República Federativa do
Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil,
firmado na Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008, apenso por
cópia ao presente Decreto, será executado e cumprido tão inteiramente
como nele se contém. Art. 2o São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer
atos que possam resultar em revisão do referido Acordo, assim como
quaisquer ajustes complementares que, nos termos do art. 49, inciso I, da
Constituição, acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio
nacional. Art. 3o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 11 de fevereiro de 2010; 189º da Independência e 122º da
República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Celso Luiz Nunes Amorim
ACORDO ENTRE A REPÚBLICA FEDERATIVA
DO BRASIL E A SANTA SÉ RELATIVO AO ESTATUTO
JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL A República Federativa do Brasil e A Santa Sé
(doravante denominadas Altas Partes Contratantes), Considerando que a Santa Sé é a suprema autoridade da Igreja Católica, regida pelo Direito Canônico; Considerando as relações históricas entre a Igreja Católica e o Brasil e
suas respectivas responsabilidades a serviço da sociedade e do bem integral
da pessoa humana; Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 119-143, setembro de 2011.
O ACORDO BRASIL-SANTA SÉ E AS RELAÇÕES ENTRE ESTADO...
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Afirmando que as Altas Partes Contratantes são, cada uma na própria
ordem, autônomas, independentes e soberanas e cooperam para a construção de uma sociedade mais justa, pacífica e fraterna; Baseando-se, a Santa Sé, nos documentos do Concílio Vaticano II
e no Código de Direito Canônico, e a República Federativa do Brasil, no
seu ordenamento jurídico; Reafirmando a adesão ao princípio, internacionalmente reconhecido,
de liberdade religiosa;
Reconhecendo que a Constituição brasileira garante o livre exercício
dos cultos religiosos; Animados da intenção de fortalecer e incentivar as mútuas relações
já existentes; Convieram no seguinte:
Artigo 1º As Altas Partes Contratantes continuarão a ser representadas, em
suas relações diplomáticas, por um Núncio Apostólico acreditado junto à República Federativa do Brasil e por um Embaixador(a) do Brasil
acreditado(a) junto à Santa Sé, com as imunidades e garantias asseguradas
pela Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 18 de abril de
1961, e demais regras internacionais.
Artigo 2º A República Federativa do Brasil, com fundamento no direito de
liberdade religiosa, reconhece à Igreja Católica o direito de desempenhar
a sua missão apostólica, garantindo o exercício público de suas atividades,
observado o ordenamento jurídico brasileiro. Artigo 3º A República Federativa do Brasil reafirma a personalidade jurídica
da Igreja Católica e de todas as Instituições Eclesiásticas que possuem tal
personalidade em conformidade com o direito canônico, desde que não
contrarie o sistema constitucional e as leis brasileiras, tais como Conferência Episcopal, Províncias Eclesiásticas, Arquidioceses, Dioceses, Prelazias
Territoriais ou Pessoais, Vicariatos e Prefeituras Apostólicas, Administrações Apostólicas, Administrações Apostólicas Pessoais, Missões Sui Iuris,
Ordinariado Militar e Ordinariados para os Fiéis de Outros Ritos, Paróquias,
Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica. § 1º. A Igreja Católica pode livremente criar, modificar ou extinguir
todas as Instituições Eclesiásticas mencionadas no caput deste artigo. § 2º. A personalidade jurídica das Instituições Eclesiásticas será
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140
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reconhecida pela República Federativa do Brasil mediante a inscrição no
respectivo registro do ato de criação, nos termos da legislação brasileira,
vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro do ato
de criação, devendo também ser averbadas todas as alterações por que
passar o ato.
Artigo 4º A Santa Sé declara que nenhuma circunscrição eclesiástica do Brasil
dependerá de Bispo cuja sede esteja fixada em território estrangeiro. Artigo 5º As pessoas jurídicas eclesiásticas, reconhecidas nos termos do Artigo
3º, que, além de fins religiosos, persigam fins de assistência e solidariedade
social, desenvolverão a própria atividade e gozarão de todos os direitos,
imunidades, isenções e benefícios atribuídos às entidades com fins de natureza semelhante previstos no ordenamento jurídico brasileiro, desde que
observados os requisitos e obrigações exigidos pela legislação brasileira. Artigo 6º As Altas Partes reconhecem que o patrimônio histórico, artístico e
cultural da Igreja Católica, assim como os documentos custodiados nos seus
arquivos e bibliotecas, constituem parte relevante do patrimônio cultural
brasileiro, e continuarão a cooperar para salvaguardar, valorizar e promover
a fruição dos bens, móveis e imóveis, de propriedade da Igreja Católica ou
de outras pessoas jurídicas eclesiásticas, que sejam considerados pelo Brasil
como parte de seu patrimônio cultural e artístico. § 1º. A República Federativa do Brasil, em atenção ao princípio da
cooperação, reconhece que a finalidade própria dos bens eclesiásticos mencionados no caput deste artigo deve ser salvaguardada pelo ordenamento
jurídico brasileiro, sem prejuízo de outras finalidades que possam surgir da
sua natureza cultural. § 2º. A Igreja Católica, ciente do valor do seu patrimônio cultural,
compromete-se a facilitar o acesso a ele para todos os que o queiram conhecer e estudar, salvaguardadas as suas finalidades religiosas e as exigências
de sua proteção e da tutela dos arquivos.
Artigo 7º A República Federativa do Brasil assegura, nos termos do seu ordenamento jurídico, as medidas necessárias para garantir a proteção dos
lugares de culto da Igreja Católica e de suas liturgias, símbolos, imagens e
objetos cultuais, contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo.
§ 1º. Nenhum edifício, dependência ou objeto afeto ao culto católico,
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observada a função social da propriedade e a legislação, pode ser demolido,
ocupado, transportado, sujeito a obras ou destinado pelo Estado e entidades
públicas a outro fim, salvo por necessidade ou utilidade pública, ou por
interesse social, nos termos da Constituição brasileira.
Artigo 8º A Igreja Católica, em vista do bem comum da sociedade brasileira,
especialmente dos cidadãos mais necessitados, compromete-se, observadas as exigências da lei, a dar assistência espiritual aos fiéis internados em
estabelecimentos de saúde, de assistência social, de educação ou similar, ou
detidos em estabelecimento prisional ou similar, observadas as normas de
cada estabelecimento, e que, por essa razão, estejam impedidos de exercer
em condições normais a prática religiosa e a requeiram. A República Federativa do Brasil garante à Igreja Católica o direito de exercer este serviço,
inerente à sua própria missão.
Artigo 9º O reconhecimento recíproco de títulos e qualificações em nível de
Graduação e Pós-Graduação estará sujeito, respectivamente, às exigências
dos ordenamentos jurídicos brasileiro e da Santa Sé. Artigo 10 A Igreja Católica, em atenção ao princípio de cooperação com o
Estado, continuará a colocar suas instituições de ensino, em todos os níveis,
a serviço da sociedade, em conformidade com seus fins e com as exigências
do ordenamento jurídico brasileiro. § 1º. A República Federativa do Brasil reconhece à Igreja Católica o
direito de constituir e administrar Seminários e outros Institutos eclesiásticos
de formação e cultura. § 2º. O reconhecimento dos efeitos civis dos estudos, graus e títulos
obtidos nos Seminários e Institutos antes mencionados é regulado pelo
ordenamento jurídico brasileiro, em condição de paridade com estudos de
idêntica natureza. Artigo 11 A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de
liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional
do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação
integral da pessoa. §1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de
matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas
públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural
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EMERSON GIUMBELLI
religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis
vigentes, sem qualquer forma de discriminação. Artigo 12 O casamento celebrado em conformidade com as leis canônicas,
que atender também às exigências estabelecidas pelo direito brasileiro
para contrair o casamento, produz os efeitos civis, desde que registrado
no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração. § 1º. A homologação das sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial, confirmadas pelo órgão de controle superior da Santa Sé, será
efetuada nos termos da legislação brasileira sobre homologação de sentenças
estrangeiras. Artigo 13 É garantido o segredo do ofício sacerdotal, especialmente o da
confissão sacramental. Artigo 14 A República Federativa do Brasil declara o seu empenho na destinação de espaços a fins religiosos, que deverão ser previstos nos instrumentos
de planejamento urbano a serem estabelecidos no respectivo Plano Diretor.
Artigo 15 Às pessoas jurídicas eclesiásticas, assim como ao patrimônio, renda
e serviços relacionados com as suas finalidades essenciais, é reconhecida a
garantia de imunidade tributária referente aos impostos, em conformidade
com a Constituição brasileira. § 1º. Para fins tributários, as pessoas jurídicas da Igreja Católica que
exerçam atividade social e educacional sem finalidade lucrativa receberão
o mesmo tratamento e benefícios outorgados às entidades filantrópicas
reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, inclusive, em termos de
requisitos e obrigações exigidos para fins de imunidade e isenção. Artigo 16 Dado o caráter peculiar religioso e beneficente da Igreja Católica e
de suas instituições: I -O vínculo entre os ministros ordenados ou fiéis consagrados
mediante votos e as Dioceses ou Institutos Religiosos e equiparados é de
caráter religioso e portanto, observado o disposto na legislação trabalhista
brasileira, não gera, por si mesmo, vínculo empregatício, a não ser que seja
provado o desvirtuamento da instituição eclesiástica. II -As tarefas de índole apostólica, pastoral, litúrgica, catequética,
assistencial, de promoção humana e semelhantes poderão ser realizadas a
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O ACORDO BRASIL-SANTA SÉ E AS RELAÇÕES ENTRE ESTADO...
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título voluntário, observado o disposto na legislação trabalhista brasileira. Artigo 17 Os Bispos, no exercício de seu ministério pastoral, poderão convidar
sacerdotes, membros de institutos religiosos e leigos, que não tenham nacionalidade brasileira, para servir no território de suas dioceses, e pedir às
autoridades brasileiras, em nome deles, a concessão do visto para exercer
atividade pastoral no Brasil. § 1º. Em consequência do pedido formal do Bispo, de acordo com o
ordenamento jurídico brasileiro, poderá ser concedido o visto permanente
ou temporário, conforme o caso, pelos motivos acima expostos. Artigo 18 O presente acordo poderá ser complementado por ajustes concluídos
entre as Altas Partes Contratantes. § 1º. Órgãos do Governo brasileiro, no âmbito de suas respectivas
competências e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, devidamente
autorizada pela Santa Sé, poderão celebrar convênio sobre matérias específicas, para implementação do presente Acordo. Artigo 19 Quaisquer divergências na aplicação ou interpretação do presente
acordo serão resolvidas por negociações diplomáticas diretas. Artigo 20 O presente acordo entrará em vigor na data da troca dos instrumentos
de ratificação, ressalvadas as situações jurídicas existentes e constituídas ao
abrigo do Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890 e do Acordo entre a
República Federativa do Brasil e a Santa Sé sobre Assistência Religiosa às
Forças Armadas, de 23 de outubro de 1989. Feito na Cidade do Vaticano, aos 13 dias do mês de novembro do
ano de 2008, em dois originais, nos idiomas português e italiano, sendo
ambos os textos igualmente autênticos. PELA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL Celso Amorim
Ministro das Relações Exteriores PELA SANTA SÉ
Dominique Mamberti
Secretário para Relações com os Estados
Fonte: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7107.
htm>, Acesso em 01.07.2010.
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“DESENHANDO COM TERÇOS” NO ESPAÇO
PÚBLICO: RELAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E
ARTE A PARTIR DE UMA CONTROVÉRSIA
Paola Lins Oliveira
Universidade Federal do Rio de Janeiro 1
Resumo: Em abril de 2006, a obra “Desenhando com terços” da artista plástica
Márcia X. é retirada da mostra “Erotica – Os sentidos na arte”, exibida no Centro
Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro. A decisão foi tomada pelo conselho
diretor da instituição após manifestações de católicos. Dispondo quatro terços
unidos em duplas formando dois pênis entrecruzados, a obra foi considerada
ofensiva por misturar religião e erotismo. A partir do episódio, estabelece-se uma
controvérsia na qual diferentes atores, sobretudo religiosos e artistas, posicionam-se
sobre a retirada da obra. Neste artigo, investigamos como o encontro entre esses
diferentes atores em torno de um objeto de arte produziu um momento-chave de
problematização das relações e das fronteiras entre religião e arte e de como ambas
se relacionam com o espaço público.
Palavras-chave: religião e espaço público, modernidade, objetos religiosos.
Abstract: In April 2006, the piece “Desenhando com terços” of the plastic artist
Márcia X. is removed from the exhibition “Erotica – Os sentidos na arte”, displayed
at the Centro Cultural Banco do Brasil of Rio de Janeiro. The decision was taken
by the director of the cultural institution after public manifestations of Catholics.
With four rosaries united forming two double penis intercrossed, the work was
considered offensive by mixing religion and eroticism. From the episode sets
up a controversy in which different actors, mainly religious and artists, position
themselves on the withdrawal of the work. In this paper, we investigate how the
encounter between the different actors and an art object produced a key moment
of problematization of the relations and boundaries between religion and art and
how both relate to public space.
Keywords: religion and public space, modernity, religious objects.
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PAOLA LINS OLIVEIRA
Figura 1. Desenhando com Terços 2
Em fevereiro de 2006, o Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de
Janeiro recebeu a mostra “Erotica – Os sentidos na arte”. Após passagem por
São Paulo, a exposição chegou ao Rio com suas cento e dez obras de artistas
do cenário nacional e internacional, produzidas em diferentes momentos
históricos. O curador Tadeu Chiarelli destaca que a intenção da exposição é
“... apresentar objetos e objetos de arte que tragam, na constituição material
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
“DESENHANDO COM TERÇOS” NO ESPAÇO PÚBLICO:...
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e imagética de todos eles, componentes eróticos evidentes ou sutis, capazes
de, reunidos, constituírem uma erotica específica” (2005, p. 8).
Dois meses depois da estréia, já no fim de sua estada no CCBB do
Rio de Janeiro, diversos veículos de comunicação começam a noticiar uma
alteração na composição original de “Erotica”. A obra “Desenhando com
terços” da artista plástica Márcia X., que apresenta dois pares de terços
unidos em duplas e formando dois pênis entrecruzados, é retirada da exposição depois de uma ordem do conselho diretor do Banco do Brasil. A
decisão foi tomada após o recebimento de várias reclamações por e-mail e
telefonemas, e também a apresentação em juízo de uma notícia-crime contra
a organização da exposição. O autor da denúncia, Carlos Dias, ex-deputado,
empresário e membro atuante da Renovação Carismática Católica, argumentou que a obra constituía uma afronta à religião católica por misturar
erotismo e religião, além de ser vista por crianças.
A partir da retirada da obra de Márcia X., estabeleceu-se um intenso
debate público no qual artistas, religiosos, políticos, representantes institucionais e outros cidadãos opinaram e se mobilizaram. As repercussões
do caso tomaram tanto a forma de textos disponíveis em canais de comunicação impressa ou virtual, quanto de passeatas e outros atos públicos
organizados. A polarização das posições entre religiosos e artistas marcou
os primeiros momentos da polêmica: de um lado, religiosos alegavam que a
obra ofende a religião católica ao associá-la a elementos eróticos; de outro,
artistas defendiam o seu direito à liberdade de expressão. Paralelamente,
muitos espaços eletrônicos passaram a receber cada vez mais comentários e
manifestações sobre o caso. Além dos defensores e opositores à retirada da
obra, vinculados à posição religiosa ou artística, muitos participantes desses
“fóruns” manifestavam opiniões plurais, dificilmente restritas à escolha de
uma posição definitiva.
Neste artigo, investigamos como o encontro entre esses diferentes
atores em torno de um objeto de arte produziu um momento-chave de
problematização das relações e das fronteiras entre religião e arte e de
como ambas se relacionam com o espaço público. Enfatizamos como
os enunciados em momentos de acusação blasfematória criam lugares de
enunciação passíveis de serem analisados a partir daquilo que Favret Saada
chama de “dispositivo judiciário” (1992). Esse conceito nos ajudou a perceber a variação nos argumentos e nos lugares de enunciação à medida que
alguns atores oscilaram entre projetos “modernos” e “contra-modernos”
de (des)ocupação religiosa do espaço público.
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PAOLA LINS OLIVEIRA
Finalmente, informamos que as fontes utilizadas para a análise da
controvérsia são principalmente duas: matérias publicadas em jornais e
materiais veiculados no espaço eletrônico. A partir de pesquisa em jornais
de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro e também na internet,
foram encontradas matérias (impressas e eletrônicas) publicadas em quatro
jornais da cidade (Extra, O Globo, O Dia e Jornal do Brasil), e também de
São Paulo (Folha de S. Paulo) e de Brasília (Correio Brasiliense).3 Os materiais
divulgados no espaço eletrônico variam entre diferentes formatos de sites ou
blogs focados em temáticas como arte, religião, entretenimento, variedades
ou mesmo de relacionamento, como no caso do Orkut.
1. A controvérsia nos jornais
A cobertura da mídia sobre o caso começa no dia 19 de abril de 2006,
quando o jornal O Globo publica uma matéria a respeito da abertura de um
procedimento apuratório para investigar a notícia-crime apresentada por
Carlos Dias na 1ª Delegacia de Polícia da Praça Mauá, no Rio de Janeiro. A
denúncia se baseia na acusação de “objeto obsceno e ultraje a objeto de culto
religioso” (GB, 19.04.06). No dia seguinte, a obra é retirada da exposição
e os jornais apontam o ex-deputado católico como a figura que inaugura a
controvérsia. Em sua argumentação, Carlos Dias é bastante sucinto: a obra
da artista é agressiva e ofensiva ao sentimento religioso católico, além de
ser vista por crianças (GB, 19.04.06; FSP, 20.04.06). O cardeal-arcebispo
da cidade Dom Eusébio Scheid manifesta apoio à atitude de Carlos Dias
(EX, 20.04.06).
A retirada da obra, determinada pelo Conselho Diretor do CCBB em
Brasília, foi acompanhada por uma nota da assessoria de imprensa informando que a instituição não teve a intenção de ofender os católicos ou criar
polêmica, e que a decisão “não observou só questões de imagem e aspectos
empresariais, mas o ambiente onde atua, já que o banco acredita firmemente
na liberdade de expressão” (FSP, 20.04.06). Além da investigação policial, as
inúmeras reclamações por telefone e por correio eletrônico também foram
usadas como justificativa para a decisão. Em reação, um grupo de artistas
realizou um protesto no CCBB, com faixas que traziam desenhos de pênis
e palavras de ordem, como “Censura não!” (FSP, 21.04.06).
Animado com a retirada de “Desenhando com terços”, João Carlos
Rocha, líder do grupo católico Opus Christi, tenta obter um mandado de
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“DESENHANDO COM TERÇOS” NO ESPAÇO PÚBLICO:...
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segurança para retirar outra obra da mostra a tela sem título de Alfredo
Nicolaiewski (GB, 21.04.06).
Figura 2. Sem título (1983)4
Mesmo com o resultado negativo da solicitação junto ao plantão
judiciário, que negou seu pedido no mesmo dia, João Carlos Rocha apresenta a ação ao Tribunal de Justiça, dessa vez solicitando que todas as
peças com símbolos religiosos católicos fiquem de fora da exposição (GB,
21.04.06). Paralelamente ao apelo à justiça, João Carlos Rocha lança uma
campanha intitulada “Blasfêmia não! Católicos fora do Banco do Brasil”,
convocando os católicos correntistas do banco a encerrarem suas contas no
dia seguinte à estréia da mostra “Erotica” em Brasília, caso ela siga com as
obras que apresentam símbolos religiosos (EX, 24.04.06). Aproveitando o
dia dos festejos de São Jorge (23 de abril), João Carlos Rocha visita a igreja
dedicada ao santo no bairro carioca de Quintino Bocaiúva informando e
mobilizando os devotos a respeito da mostra e do conteúdo das obras de
arte. Nessa ocasião ele recolhe assinaturas para um abaixo-assinado solicitando ao Ministério Público a retirada de todas as obras de cunho religioso
da exposição (EX, 24.04.06).
No mesmo dia, a artista plástica Rosangela Rennó consegue autorização com os colecionadores de suas obras que participam de “Erotica”
para cobri-las com um pano preto. O protesto tem o objetivo de pressionar
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PAOLA LINS OLIVEIRA
o CCBB a reintegrar a obra de Márcia X. à exposição. Rennó ressalta que
somente com esse retorno permitirá que suas obras sigam para a exposição
em Brasília (FSP, 25.04.06). Franklin Cassaro também condiciona a participação de sua “Coleção de vulvas metálicas” (1998) em “Erotica” ao retorno
de “Desenhando com terços” (FSP, 25.04.06).
De Brasília, o então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, publica no
site do ministério uma nota5 a respeito do episódio defendendo que “toda
censura é inaceitável” e que somente critérios estéticos avaliados por curadores ou pessoas designadas para a tarefa devem ser levados em conta
na seleção das obras de uma exposição artística. Além disso, ele acredita
na “capacidade de discernimento crítico dos espectadores e do público
em geral” e que toda “tutela na relação entre obra de arte e espectador é
inaceitável”. A nota termina citando o trecho da Constituição Brasileira
que determina que é “livre a expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, e
portanto espera que a decisão do CCBB seja revista.
No dia 29 de abril, os artistas ligados ao grupo “A Gentil Carioca”
– Márcio Botner, Laura Lima e Ernesto Neto – e o viúvo de Márcia X., o
também artista plástico Ricardo Ventura, realizam uma passeata em protesto.
Usando camisetas com uma estampa reproduzindo “Desenhando com terços” e as frases “Educa-ação/censura não”, os artistas caminham do Paço
Imperial até o CCBB com a intenção de fazer um “enterro simbólico” da
instituição (CB, 28.04.06; EX, 01.05.06).
Finalmente, no dia 3 de maio, o Conselho Diretor do Banco do Brasil
decide cancelar a exposição “Erotica” em Brasília. Em nota, a assessoria de
imprensa da instituição informa que a resolução ocorreu porque os diretores não aceitaram o retorno de “Desenhando com terços” à mostra e com
isso colecionadores e artistas como Rosangela Rennó e Franklin Cassaro
ameaçaram retirar suas obras. “O Banco do Brasil lamenta esse desfecho,
mas o considera um fato isolado, ao tempo em que ratifica sólido apoio à
difusão da arte e da cultura, sempre com respeito à pluralidade e à diversidade”, diz a nota (FSP, 3.05.06).
A cobertura dos jornais sobre o caso da retirada de “Desenhando
com terços” chega ao fim com o cancelamento da exibição de “Erotica”
na cidade de Brasília. Algumas semanas depois, os jornais O Globo, O Dia
e Extra noticiam a fixação de 70 cartazes com a imagem do terço fálico de
Márcia X. e a frase “BB Censura!” em muros e locais públicos da cidade,
retirados imediatamente por ordem do então prefeito, César Maia (26.05.06).
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
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Entretanto, essas notícias não estabelecem continuidade com o debate/
embate produzido nas duas semanas que separam a denúncia pública de
Carlos Dias (19.04.06) e o cancelamento da exposição em Brasília (3.05.06):
não há mais argumentos em jogo ou decisões que possam ser tomadas.
2. Personagens, argumentos, posições e planos dos discursos
Nas narrativas jornalísticas a respeito da retirada da obra “Desenhando com terços”, observamos o delineamento de uma situação de disputa em
torno de um objeto se desdobrar em uma discussão entre dois diferentes
argumentos: de um lado, católicos alegavam terem sido ofendidos em seu
sentimento religioso e, de outro, artistas defendiam a liberdade de expressão.
Resumidamente, o argumento da ofensa religiosa se baseou no
entendimento de que é um grave desrespeito à religião católica usar seus
símbolos e imagens sagrados associados ao sexo e ao erotismo. A religião é
entendida como uma esfera onde o erótico não cabe, e quando ele aparece,
é no sentido de profanar a imagem do que é sagrado. O argumento da liberdade de expressão, por sua vez, defendeu a liberdade irrestrita da produção
artística e cultural, ressaltando suas prerrogativas garantidas por lei. A arte
deve expressar-se de forma livre e independente, tanto em seu conteúdo
quanto em sua forma. Nenhuma instituição ou grupo social pode limitar
ou regular sua produção, cabendo somente aos artistas e “especialistas”
(historiadores, críticos, curadores) os critérios para sua produção e exposição.
Os principais atores que se posicionaram favoráveis à retirada de
“Desenhando com terços” utilizando o argumento da ofensa religiosa
foram Carlos Dias, empresário carioca, ex-deputado estadual e autor da
notícia-crime; João Carlos Rocha, líder do grupo católico Opus Christi então assessor do gabinete do prefeito da cidade do Rio de Janeiro, César
Maia, e responsável pela comissão de formação política do PFL Jovem -; e
Dom Eusébio Scheidt, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro. Do lado que
repudiava o ato, estavam principalmente os artistas Márcio Botner, Laura
Lima e Ernesto Neto, que comandam a galeria de arte “A Gentil Carioca”;
Ricardo Ventura, artista plástico e viúvo da artista; artistas autores de outras obras da mesma exposição; o curador Tadeu Chiarelli e o Ministro da
Cultura Gilberto Gil. Dom Eusébio Scheidt e Gilberto Gil se manifestaram
em apoio à causa de religiosos e artistas, respectivamente, como “representantes” de ambas as especialidades.
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PAOLA LINS OLIVEIRA
A denúncia realizada por Carlos Dias qualificando “Desenhando com
terços” como “objeto obsceno e ultraje a objeto de culto religioso” aciona
dois artigos do Código Penal brasileiro: ultraje público ao pudor com objeto
obsceno (art.234) e ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a
ele relativo (art. 208)6. Embora não tenha havido sanção jurídica durante
a controvérsia7, o enquadramento legal feito na denúncia de Carlos Dias
constitui seu argumento. Desse modo, tão importante quanto observar a
denúncia policial como uma demanda por reparação futura é atentar para
o fato de que ela “atua” durante o debate.
Assim, no texto do artigo 234 do Código Penal sobre ultraje público
ao pudor com objeto (ou escrito) obsceno temos a seguinte descrição: “fazer,
importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de comércio, de
distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho, pintura, estampa ou
qualquer objeto obsceno”. No texto do artigo 208 sobre ultraje a culto e
impedimento ou perturbação de ato a ele relativo, encontramos: “Escarnecer
de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir
ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. Em sua denúncia, Carlos Dias defende
que “Desenhando com terços” é ao mesmo tempo ultrajante para o pudor
público e para o sentimento religioso dos católicos. A obscenidade da obra
estaria em se retratar e exibir publicamente um pênis desenhado com terços
católicos: uma afronta ao sentimento religioso e aos costumes8. Nesse caso,
os limites entre obscenidade e ofensa religiosa são borrados, sugerindo uma
constituição mutuamente imbricada: é obsceno porque mistura referências
religiosas e sexuais e também por isso é ofensivo ao sentimento religioso
das pessoas. Simultaneamente, a obscenidade, enquanto ofensa ao pudor
público, pode ser interpretada também à luz da ofensa religiosa, já que
misturar terços católicos e pênis é ofensivo sobretudo para os católicos.
O enquadramento legal dado por Carlos Dias e os argumentos acionados em defesa da censura da obra indicam que a controvérsia se constrói
como um caso de acusação de blasfêmia, considerando que “o objeto
de ofensa é propriamente um símbolo ou uma sensibilidade de natureza
religiosa” (Giumbelli, 2003, p. 174). Jeanne Fravret-Saada (1992) defende
que a situação de blasfêmia pressupõe um arranjo no qual um denunciador
aciona um determinado arsenal teológico para enquadrar uma fala, imagem
ou representação, que passa a ser considerada “ofensiva para deus”. Nessa
perspectiva, nenhuma mensagem é essencialmente blasfematória e o foco da
investigação recai sobre o modo como o denunciador constrói a acusação
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
“DESENHANDO COM TERÇOS” NO ESPAÇO PÚBLICO:...
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e quais são os “lugares de enunciação” daqueles que têm autoridade para
repreender e daqueles que são repreendidos (idem, p. 254).
No caso da retirada da obra de Márcia X., Carlos Dias e João Carlos
Rocha são os principais responsáveis pela qualificação blasfematória da obra
“Desenhando com terços”, estendendo ainda o julgamento a outras obras
de “Erotica”. Para eles, misturar erotismo e religião é ofensivo. Do outro
lado, os artistas mais próximos ao caso, engajam-se na defesa da obra de
Márcia X. A controvérsia se configura a partir da sanção: o CCBB retira
“Desenhando com terços” à revelia da curadoria e antes mesmo de uma
decisão jurídica, que poderia inclusive não acontecer. O caso se desenrola
enquanto apresenta possibilidades para a reintegração da peça à mostra no
CCBB do Rio de Janeiro ou em sua exibição em Brasília.
Os denunciadores Carlos Dias e João Carlos Rocha falam de “lugares
de enunciação” (idem) semelhantes: ambos são figuras políticas marcadas
pela aliança com o catolicismo. Carlos Dias foi deputado estadual do Rio
de Janeiro entre os anos de 1999 e 2002. Sua atuação era voltada para a
promoção de políticas públicas vinculando Estado e religião, como no caso
da lei que instituiu o ensino religioso confessional nas escolas públicas do
Estado do Rio de Janeiro9. João Carlos Rocha também pautou sua vida
pública pelo ativismo político e religioso: era assessor do gabinete do então
prefeito Cesar Maia, líder do PFL Jovem (atual Democratas) e líder fundador
do Opus Christi10, organização de jovens católicos que procuram mostrar a
“praticabilidade” dos ensinamentos da Igreja Católica, principalmente através das quatorze “obras de misericórdia” e da promoção da vida “dentro
de uma atmosfera da civilização cristã”. Essa agenda que conjuga prática
religiosa e promoção de uma determinada visão de sociedade fornece pistas
para entender o sentido atribuído a ações públicas como a mobilização em
torno de “Desenhando com terços” e também da obra de Nicolaiewski; ou
seja, momentos que viabilizam a atuação em situações sociais não-religiosas
com elementos da doutrina ou prática religiosa.
Em apoio à “Desenhando com terços”, alguns artistas engajam-se
na causa em sua defesa. Vemos nas matérias dos jornais, a mobilização do
curador, Tadeu Chiarelli; de artistas que participavam com trabalhos em
“Erotica”, como Rosangela Rennó e Franklin Cassaro; do viúvo de Márcia,
Ricardo Ventura, e do grupo que comanda a galeria “A Gentil Carioca”.
Esses artistas trabalham com temas e linguagens muito diversas, tão diversas quanto as relações (de amizade, casamento, profissional) que tiveram
com a artista censurada. Podemos apontar três lugares de onde partem
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PAOLA LINS OLIVEIRA
“respostas” ao argumento que embasa a censura de “Desenhando com
terços”. O primeiro seria o espaço de “Erotica”: Chiarelli, Rennó e Cassaro
compartilham as posições de idealizador e participantes da exposição, e
vêem a retirada da obra de Márcia X. como uma ameaça à liberdade de
expressão que atinge a todos, direta ou indiretamente. O segundo seria o
espaço privado da relação de amizade e casamento, como no caso de Ricardo Ventura, para quem é importante cuidar do legado da artista recém
falecida. O terceiro lugar, também envolve pessoas próximas à artista, mas
que assinam em nome da instituição artística “A Gentil Carioca”. Este
grupo foi fundamental na mobilização das passeatas, e na divulgação de
materiais eletrônicos, como veremos na próxima seção. Apesar de os artistas
da “Gentil” terem produções muito diferentes11, a galeria objetiva reunir
artistas que busquem promover em comum a valorização da diversidade
cultural e do potencial pedagógico da arte. Para esse coletivo, a produção
artística se conecta diretamente com o mundo social, na sua relação com
a diversidade, a cultura, a política etc. Por esse motivo, a defesa de uma
obra de arte contra a censura ganha o sentido de preservação da arte como
elemento importante na construção da sociedade.
É importante fazer uma distinção de planos no que se refere a esse
lugar de defesa de “Desenhando com terços” entre, de um lado, a posição
dos artistas, e de outro, a artista acusada de blasfêmia. Pois se do lado dos
artistas os argumentos são elaborados no debate, do lado de Márcia X.
temos uma produção artística que fornece elementos a respeito do seu
lugar de fala. Márcia X. é uma artista reconhecida pela intenção declarada
de transgredir e embaralhar os limites entre temas controversos como
sexualidade, religião e infância.
A noção de “dispositivo judiciário” de Favret Saada (1992) serve
não apenas para localizarmos os diferentes lugares de fala na polêmica,
mas sobretudo para perceber a instável posição de “juiz” ocupado pelo
CCBB. Ao passo que o CCBB retira a obra da exposição, o que poderia
ser considerada uma sanção a partir de um lugar de autoridade, sua legitimidade é freqüentemente questionada. Para os artistas, o CCBB enquanto
uma instituição cultural deveria proteger e não censurar a arte. Sua ação é
considerada ainda mais condenável por não ter se fundamentado em uma
sentença judicial. Nesse sentido, a possibilidade de uma revisão da decisão
do CCBB é o que mobiliza os artistas, que defendem a justiça como instância realmente decisiva para o caso. Já os denunciadores tenderam a não
questionar a autoridade do CCBB, pelo contrário: no decorrer do debate
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
“DESENHANDO COM TERÇOS” NO ESPAÇO PÚBLICO:...
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enfatizaram o caráter corporativo da decisão para justificá-la como ato
em defesa de interesses comerciais. Mas assim como os artistas, também
reconheciam a autoridade das deliberações da justiça, já que apresentaram
denúncias acionando a polícia, o ministério público e o tribunal de justiça.
Além das ações e argumentos mobilizados pelos atores diretamente
envolvidos na controvérsia noticiada pelos jornais, constrói-se um grande
debate no universo virtual. Este ocorre principalmente sob a forma de declarações e manifestos públicos assinados por artistas; reações às matérias
dos jornais copiadas em sites ou blogs; campanhas virtuais; e colunas ou
textos críticos assinados por pessoas reconhecidas, como jornalistas, ou
cidadãos sem reputação pública. Nestas comunicações virtuais, os atores
diretamente envolvidos pormenorizam suas opiniões e argumentos, novos
atores se manifestam e o debate se complexifica em uma discussão pública
que ultrapassa os limites do caso, possivelmente reduzido à questão de
se “Desenhando com terços” constituía ou não ofensa religiosa, ou se,
independentemente disso, o direito à liberdade de expressão artística deveria prevalecer. Portanto, pode-se dizer que se amplia o “espaço crítico”
(Favret-Saada, 1992) inaugurado pela denúncia de blasfêmia. No limite,
os próprios termos que constituem a controvérsia – como a acusação de
blasfêmia – são contestados, e outros são colocados no lugar.
3. O debate virtual
No dia 17 de abril de 2006, Felipe Aquino publica uma nota no portal virtual de notícias da Comunidade Canção Nova12 trazendo o seguinte
título: “Exposição do Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro
ofende fiéis católicos”. O conteúdo consiste em uma breve apresentação
da exposição e da “‘obra de arte’ com o singelo título de ‘Desenhando com
Terços’ em que são representados órgãos sexuais masculinos, utilizando-se
Terços, instrumento de particular apreço dos fiéis católicos para a oração
do Rosário”. Ele lamenta a promoção de “tal blasfêmia” por parte de uma
instituição pública de um país de maioria católica “e que venera Nossa Senhora e é devoto do Terço e do Santo Rosário”. Por fim, conclama a todos
os católicos a darem uma resposta, manifestando-se à direção do Banco
do Brasil. Para isso, publica os e-mails de contato da instituição (diretoria
de marketing, ouvidoria e sede do Rio de Janeiro). No dia seguinte, a mensagem é reproduzida por um missionário católico13 em onze comunidades
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
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PAOLA LINS OLIVEIRA
católicas14 do Orkut15, com o título “Exposição ofende católicos”. Em
reação, várias pessoas publicam recados comentando o caso e informando
que também fizeram suas reclamações através dos contatos disponibilizados
na mensagem de Aquino. Em recado publicado na comunidade “Eu quero
ser santo!” ainda no dia 18 de abril, Carolina Zabisky afirma que enviou
um e-mail ao CCBB e recebeu a seguinte resposta:
Respeitamos a sua opinião e esclarecemos que o centro Cultural Banco do
Brasil acolhe projetos seguindo critérios de seleção que valorizam a diversidade cultural e a livre expressão artística. Essa postura é refletida em todas as
áreas em que o CCBB atua: exposições, cinema, teatro, dança, música e idéias.
Informamos ainda que o centro não interfere na seleção dos trabalhos que
compõem uma determinada exposição. A responsabilidade pela escolha é do
curador do projeto cultural, a qual o CCBB procura respeitar e preservar16.
Carolina, insatisfeita com a resposta, envia outro e-mail, que publica
na mesma comunidade:
Obrigada pela resposta. Porém, preciso levantar uma pequena questão. A
livre expressão artística não pode ferir a liberdade de culto e a liberdade
do outro. Infelizmente, em tempos atuais não é o que acontece em nossa
sociedade em termos de religião. Qualquer pessoa se julga no direito de
ferir a fé e a devoção das pessoas em vista da “liberdade”. Sempre aprendi
que o meu direito termina no momento que o direito do outro se inicia... O
CCBB, que “procura respeitar e preservar” o curador do projeto cultural (que
com certeza tem toda a capacidade e competência de sê-lo) deveria também
procurar “respeitar e preservar” a fé de milhões de brasileiros.
É importante perceber que em seu argumento Carolina não procura defender um “ponto de vista” particular, que diria respeito a algo
que incomoda somente a ela. Assim como na nota de Aquino, ela enfatiza
que “a maioria” da nação ou “milhões de brasileiros” são ofendidos com
“Desenhando com terços”, ampliando a legitimidade de seu pleito. Outro
procedimento discursivo empregado por Carolina é contrapor a liberdade
de expressão à liberdade de crença, o que permite um deslocamento a partir
do argumento inicial da ofensa religiosa.
A obra de Márcia X é retirada de Erotica no dia 20 de abril, logo, dois
dias depois da manifestação de Carolina. Ainda nesse dia, Carolina publica
e comenta na mesma comunidade uma mensagem que recebeu assinada
pela Diretoria de Marketing e Comunicação do CCBB:
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
“DESENHANDO COM TERÇOS” NO ESPAÇO PÚBLICO:...
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VITÓRIA!!!!!!! Com certeza muitos católicos enviaram seus e-mail... e olha
a vitória alcançada... recebi este e-mail do Centro cultural do Banco do
Brasil. Confiram:
Lamentamos profundamente que a reprodução (fotograma) da obra “Desenhando em terços”, de autoria de Márcia X, integrante da mostra “Erótica
– Os sentidos na arte”, com acervo já exposto em outros locais, tenha ferido
a sua fé religiosa, fato pelo qual expressamos nossas desculpas. O Banco do
Brasil não compactua com manifestações artísticas que ofendam qualquer
religião ou crença e frisa que não houve, em nenhum momento, essa intenção
com a realização da mostra no Centro Cultural Banco do Brasil. O Banco do
Brasil decidiu retirar da mostra a obra que causou polêmica, em respeito às
manifestações de parcela da sociedade que sentiu-se atingida por sua exibição.
A peça estava junto a mais de 100 trabalhos de artistas como Anita Malfati,
Auguste Rodin, Ismael Nery e Pablo Picasso (...).
Ainda no dia 20 de abril, mensagens assinadas por João Carlos Rocha
(Presidente da Opus Christi-Brasil) são publicadas em vinte comunidades
católicas17 do Orkut. Em todas elas o corpo do texto é idêntico, mas variam
entre os títulos, “OC retira Blasfêmia do BB”, “Blasfêmia Não!”, “Blasfêmia Gay contra Nossa Senhora”, “Blasfêmia no CC Banco do Brasil”,
“Vitória - contra Peça Sodomita”; ou ainda, na presença ou ausência do
subtítulo “Dia 20 de Abril - Jornal do Brasil e Folha SP – Materia de Capa
JB”. Segue o texto18:
A Opus Christi ganhou na Justiça o direto de retirar da exposição no CCBB,
no Rio, um quadro onde dois orgão genitais masculinos eram reproduzidos
por quatro rosários, simulando um sexo sodomita. A Opus Christi, com esta
petição pretende proibir a exposição em todo territorio nacional da peça blasfema, entitulada “desenhando com terços”, de autoria de Marcia X. A Opus
Christi, é vitoriosa em questões similares, uma vez que obtivemos setença
favorável no pleito contra a exibição do espetaculo teatral “O Evangelho
de Jesus Cristo, segundo Samarago” que foi retirado do cartaz em janeiro
do ano passado no teatro Villa-Lobos. E a proibição da peça “em nome do
pai” com rodrigo galbert. “A luta é nossa, a vitória e de Cristo”.
Os títulos, assim como o texto da mensagem, trazem informações
que complementam o enquadramento blasfematório examinado nas
narrativas jornalísticas, além de invocar seu protagonismo na retirada de
“Desenhando com terços” de “Erotica”. A obra não aparece simplesmente
como “uma ofensa”, mas sofre uma interpretação mais detalhada: os terços
não somente desenham dois “órgãos genitais masculinos”, como simulam
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
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PAOLA LINS OLIVEIRA
um “sexo sodomita”. A alusão à homossexualidade aparece ainda em dois
títulos utilizados em algumas publicações.
Max Weber (1974) defende que as rejeições religiosas a respeito da
sexualidade se fundamentam na oposição à conformação de uma esfera
erótica, na qual o gozo individual é privilegiado em detrimento de uma
ética fraterna compartilhada com a comunidade religiosa. Nessa leitura, o
erotismo surge como uma ameaça à religião, já que constitui uma “salvação
alternativa” alcançável pela experiência do prazer individual. No catolicismo,
assim como em outras religiões, a esfera erótica é carregada não somente
de princípios éticos, como também de códigos morais que prescrevem
comportamentos sexuais e corporais autorizados e proibidos, na lógica do
conhecimento e controle. Entre os comportamentos sexuais autorizados
estão os que se realizam entre um homem e uma mulher, sob o sacramento
do matrimônio e com fins de reprodução e constituição de uma família.
Todos os outros são proibidos, mas especial ênfase é dada ao ato sexual
entre pessoas do mesmo sexo principalmente porque ele inviabiliza a reprodução. Weber (1978) destaca ainda que mesmo no casamento predomina
uma visão negativa do erotismo, considerando que a expressão sexual não
deve ultrapassar os interesses da reprodução da família.
Assim, pode-se compreender porque a sexualidade expressa em
“Desenhando com terços” soa ainda mais aviltante quando se alude a uma
sexualidade homossexual. O artifício de João Carlos Rocha enfatiza o caráter
sexual negativo da obra, cobrindo-o com uma dose extra de “sexualidade
negativa”. É interessante observar que a interpretação do presidente do
Opus Christi não conseguiu adeptos entre os defensores da censura: não
foi encontrado qualquer outro comentário reconhecendo uma referência
homossexual nos pênis cruzados19. De um modo geral, os argumentos
alegando ofensa religiosa faziam poucas elaborações sobre como a união
entre órgão sexual e objeto religioso constitui uma ofensa. O procedimento
geral era contrapor o “sexo” ao sentido sagrado do terço.
Por outro lado, para os artistas e outros atores que defendiam a
permanência da obra de Márcia X. em “Erotica”, a questão da sexualidade
era fundamental para compreender a censura religiosa. Num comentário
publicado no abaixo-assinado pelo retorno da obra à exposição veiculado
no site Canal Contemporâneo20, Antonio Braga postula:
Não existe vida sem o Pênis. Logo, o Pênis é um Objeto Sagrado. Deus
criou o homem, com o Pênis, a sua imagem e semelhança. É certo que
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
“DESENHANDO COM TERÇOS” NO ESPAÇO PÚBLICO:...
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Jesus Cristo tinha um e não sentia vergonha, pudor ou pecado. O caminho
do Amor incondicional é a essência do Cristianismo. A pureza sagrada do
Pênis é revelada pela artista Marcia X através do uso do terço, objeto de
uso cotidiano da fé cristã. Aquele que vê no Pênis algo de profano, impuro
renega a própria vida, o Amor e a Criação Divina...
Antonio Braga utiliza o vocabulário religioso para expor um ponto
de vista alternativo, implodindo a oposição sexo versus sagrado presente nos
argumentos religiosos. O manifestante propõe uma sacralização de todos os
elementos que conformam a vida humana e se relacionam com o amor. De
maneira semelhante, num comentário publicado ainda no abaixo-assinado,
Yolanda Freyre afirma21:
Não consigo compreender qual a ofensa em relacionar o pênis com a oração.
O que há demais no sentido da sacralização do sexo? O casamento não é um
sacramento? O desenho da Márcia dignifica e não é uma pornografia como
querem colocar. O Centro Cultural tem uma função de educar e esclarecer.
Retirar a obra da exposição é se inclinar a uma deformação de olhar.
Ambos os comentários vão no mesmo sentido, porém Yolanda Freyre
procura ainda ressaltar os efeitos da decisão do CCBB sobre a obra: retirar
“Desenhando com terços” da exposição a pedido dos católicos que a interpretam como uma ofensa corrobora com tal interpretação “deformada”,
contrariando principalmente a função pedagógica de um centro cultural.
Mesmo entre os católicos, a retirada da obra não foi celebrada em
uníssono. Na comunidade “Consolação e Correia”, dedicada à paróquia
de Nossa Senhora da Consolação e Correia no bairro carioca do Engenho
Novo, Alexandre publica o seguinte comentário22 em reação à mensagem
de João Carlos Rocha:
Vitória???!!! De Cristo???!!! Como diz o ditado: “posso não concordar com o
que diz, mas lutarei até o último minuto pra que vc tenha o direito de dizer.”
Por isso como artista e cristão, digo NÃO a toda forma de proibição. Blasfemia também é dizer que a vitória é de cristo ou de maria, como se nosso
pai e nossa mãe celeste não tivessem com o que se ocupar, como milhões
de pessoas que não tem sequer comida na mesa. Mas claro que isso é uma
matéria vasta e o assunto não se esgotaria jamais aqui. Mas que fique clara
minha postura como ARTISTA e como CATÓLICO praticante que sou.
Em resposta, João Carlos Rocha publica a seguinte mensagem:
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
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PAOLA LINS OLIVEIRA
caro sr. catolico praticante a sua posição esta em total discordancia com os
7 cardeais, 172 bispos e mais de 700 padres que assinaram a petição23. Vc
se esqueceu do principal: “Nem so de Pão o homem viverá”. não responderei mais ao Sr. pois entre um fiel e o Magisterio da Igreja, seremos fieis
ao Magisterio da Igreja.
João Carlos Rocha desqualifica a posição de Alexandre ressaltando a
legitimidade de sua “causa”, amparado no apoio da hierarquia católica. Em
resposta, Alexandre mantém sua posição contrária à iniciativa e também
ao uso da “escritura sagrada” como justificativa. A respeito da posição de
todo o clero mencionado por João Carlos Rocha, Alexandre responde:
“Com relação a todo o apoio que possui para prejudicar a vida de tantos
artistas, já dizia Nelson Rodrigues ‘toda unanimidade é burra’, não importa
se composta por cardiais ou mendigos”. Por fim, ele lamenta que “atitudes
como essa, colocam a Igreja da qual sem dúvida sou mais um dentre tantos
fiéis, como uma Igreja severa, medieval, que pune e não procura dialogar,
que manda”.
Diferentemente de Alexandre, muitos comentários publicados em
comunidades católicas comemoraram a retirada de “Desenhando com
terços” de “Erotica”. Entre eles, há também elogios à participação direta
da hierarquia no caso, como no comentário de Márcia24, publicado na comunidade “Pastorialis”:
ÊÊÊÊ!!!! Queridos irmãos, vejam que noticia legal que recebi por email!!!!
Estimados em Cristo, agradecendo o seu apoio para reparar e desagravar a
Nossa Senhora pela ofensa do Banco do Brasil, devo comentar com vocês
que a pedido de nosso Arcebispo Dom João Braz de Aviz em conversa com
o presidente do Banco do Brasil, o quadro que ofende a Nossa Senhora e a
todos nos católicos, foi HOJE retirada da exposição. Deus lhes abençoe e
continuemos unidos em Cristo Jesus amando a nossa fé e defendendoa com
valor e amor. Um abraço em Cristo, Pe. Marcos Hurtado de Mendoza, LC
Não somente a atitude de João Carlos Rocha, mas a possível intervenção do arcebispo de Brasília, dom João Braz de Aviz, e o envio de e-mails
e telefonemas denunciando a obra foram bem avaliados, principalmente
por seu caráter de exemplaridade:
Penso que seja uma tomada de consciência importante e a descoberta, para
muitos, de um caminho muito interessante para defesa da fé. De fato, algo
para se comemorar! Que Deus abençoe a todos!
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
“DESENHANDO COM TERÇOS” NO ESPAÇO PÚBLICO:...
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Marcelo Gaúcho (Comunidade Católicos)25
Vamos todos agradecer a Deus o bom-senso da direção do Banco do Brasil,
mesmo que a direção do CCBB não tenha mostrado muito disto. Mais, vamos
lembrar que juntos somos FORTES, e temos de zelar pelo respeito à nossa Fé.
Sue (Comunidade Pastorialis)26
Para esses católicos, o engajamento em uma causa exitosa contra
uma ofensa à fé católica tem o sentido estimulante de uma ação que abre
precedente para outras. Além disso, estreita os laços entre todos os membros
da comunidade religiosa que compartilham a mesma intenção.
No dia 21 de abril, em outra frente de ação, o grupo de artistas
responsáveis pela galeria de arte “A Gentil Carioca” divulgam uma “Carta
Aberta”27, no site Mapa das Artes, na qual repudiam a atitude do CCBB,
exigindo o retorno da obra à exposição e um pedido de desculpas. O objetivo
central era “estimular a todos a mandarem e-mails para o CCBB de modo a
reverter a perigosa situação na qual nossa liberdade de expressão está sendo
censurada” (“Carta Aberta”). Para os artistas, os motivos que levaram o
CCBB a censurar “Desenhando com terços” eram incompatíveis com uma
instituição cultural, já que se ancoravam na recusa em “criar polêmica” ou
ofender religiosos, assim como na defesa dos seus interesses econômicos
diante da possibilidade de perder clientes. A ilegitimidade do ato residiria
na associação da instituição a interesses de “fanáticos religiosos” membros
de uma “seita” católica engajada em uma agenda moralista e autoritária, em
detrimento do trabalho de uma artista “consagrada na recente história da
arte brasileira”. Os artistas defendem ainda que o evento abre precedente
para que se estabeleça uma “arte oficial” no CCBB, selecionada não mais
por critérios unicamente estéticos, mas econômicos, morais ou políticos.
Respondendo a esses outros interesses e evitando possíveis problemas
advindos de trabalhos artísticos mais provocadores, o CCBB se desvia de
sua função:
Um centro cultural é exatamente o lugar que possui a responsabilidade de
velar pela arte, pela cultura e pela liberdade de expressão, reconhecendo que
o aspecto crítico de qualquer obra de arte é parte da lógica básica da arte em
si. Portanto, criar polêmica é a condição natural da arte e da cultura, e é através destes dois campos que poderemos debater e dar continuidade ao nosso
processo histórico, enquanto povo e nação no mundo! (idem). Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
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PAOLA LINS OLIVEIRA
Para os artistas que assinam a “Carta Aberta”, a arte tem um papel
fundamental a desempenhar na sociedade, assim como o centro cultural,
quando cumpre sua função de mediador e fomentador cultural. Ao aderir
a argumentos externos, sejam eles religiosos ou econômicos, a instituição
cultural desvia-se de seus propósitos e intervém diretamente na produção
artística, escolhendo e promovendo um tipo de “arte oficial” acrítica que
neutraliza seu potencial transformador.
Também em defesa da autonomia do “espaço da arte”, Marcelo
Negromonte, editor de cinema do portal UOL, publica um texto no dia
21 de abril sobre o episódio, intitulado “Caso Márcia X: Museu deveria
ser território livre do alcance de qualquer Igreja”28. Negromonte ressalta
a ineficácia do gesto censor, uma vez que “o impedimento provoca uma
exposição exacerbada daquilo que se pretendia eliminar”. Seu argumento
geral se constrói em duas frentes diferentes: de um lado, a distinção entre
a referência religiosa contida na obra de arte e a reivindicação de ofensa à
fé católica; e de outro, o direito à livre expressão. Para Negromonte, a ação
da Igreja Católica, executada “por meio de uma obscura facção reacionária”
interfere em uma esfera que não lhe compete. Isto porque, a manifestação
“religiosa” encarnada em “Desenhando com terços” “não diz respeito aos
valores sacros, mas ao que eles representam numa cultura católica (por
enquanto) como a brasileira – e isso vai além do alcance da Igreja”. Além
de reivindicar o respeito aos devidos limites que separam a arte da religião,
Negromonte reclama uma equivalência no tratamento entre os componentes
do universo artístico e religioso:
O que está no espaço expositivo de um museu, “templo das Musas”, deveria ser tratado com a mesma reverência que qualquer obra que integra o
ambiente de uma igreja porque há motivos para que esse ou aquele objeto
esteja lá – e esteja disposto da maneira em que está. Não consta que tenha
havido censura externa de nada do que a Igreja exiba em seus templos. Por
que a violência do caso Márcia X?
O argumento da liberdade de expressão – como “pedra fundamental
da democracia” – complementa a visão mais geral de que a arte é uma instância com suas próprias regras, que são importantes para o desenvolvimento
e a transformação humanas, e também são sagradas.
A estrutura dos centros culturais composta por itens comerciais,
cobrança de ingresso e financiamento de projetos indica a relação estreita
estabelecida entre produção cultural e economia (Dabul, 2008). No caso
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
“DESENHANDO COM TERÇOS” NO ESPAÇO PÚBLICO:...
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do CCBB, a questão é ainda mais evidente considerando que a instituição
pertence ao Banco do Brasil. Amparando-se nesse fato, muitos argumentos
favoráveis à retirada de “Desenhando com terço” de “Erotica” veiculados na
internet deslocaram o foco da acusação de blasfêmia, passando a enfatizar
o caráter comercial da decisão. Foi assim que Luís Afonso Assumpção, em
texto29 publicado em seu blog “Nadando contra a maré vermelha”, justificou a decisão do CCBB. Ele participou do abaixo-assinado promovido
pela Opus Christi para retirar “Desenhando com terços” da exposição, e
nega que tenha havido censura pois “censura é feita pelo governo impedindo qualquer acesso a uma determinada obra”. A ação contra a obra de
Márcia X. não impede sua exibição em galerias de arte, o problema é “usar
dinheiro público para apoiar uma exposição que fere a crença religiosa da
maioria dos usuários do Banco do Brasil”. Quanto à decisão do CCBB, “O
Banco do Brasil simplesmente se rendeu à vontade dos seus clientes. Estes
movimentos acontecem todo o tempo nos EUA com relação à empresas
privadas também. Não é censura, é ‘feedback’. É política de relacionamento
com clientes”.
Luís Assumpção recorre ao princípio liberal da maioria para justificar
a ação do CCBB. Desse modo, a querela passa a significar uma “questão de
negócios”. Quanto às reações contrárias à retirada de “Desenhando com
terços”, ele estabelece um paralelo com outro debate envolvendo ofensa
religiosa e liberdade de expressão:
O segundo ponto é a inevitável comparação com as charges de Maomé,
em que muitos - artistas até - concordavam com a censura para não ferir a
fé muçulmana. Naquele episódio, proteger a fé alheia parecia um compromisso verdadeiro e emocionado. Agora, se a tal fé é cristã, tudo não passa
de obscurantismo...
As manifestações públicas favoráveis e contrárias à publicação das
charges retratando o profeta Maomé foram intensas até meados do ano de
2006, período em que ocorre o debate em torno da retirada de “Desenhando
com terços” de “Erotica”. É provável que a simultaneidade entre os casos
tenha provocado comentários como o de Luís Assumpção, entre outros que
encontramos no Orkut, em sites e blogs. É interessante observar que essas
alusões ao caso das charges aparecem nos discursos favoráveis à liberdade
de expressão e também nos que alegam ofensa religiosa. Os primeiros
geralmente igualam os “fanatismos” de católicos e muçulmanos. Entre os
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
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PAOLA LINS OLIVEIRA
últimos, a comparação resulta em distinções em dois planos: no que se refere à aceitação pública das demandas religiosas e nas modalidades de ação
dos atores das diferentes religiões. De acordo com argumentos como o de
Luís Assumpção, a causa da “fé muçulmana” encontrou aceitação pública
ao passo que a causa católica foi desconsiderada. Outras falas distinguem a
atuação dos católicos em relação àquela dos muçulmanos, como no comentário de Rodrigo30, publicado na comunidade “Guardiões da Theotokos”:
“Sorte desses artistas sermos pacatos, fico me lembrando das charges de
Maomé o que causaram pelo mundo. Mas como Cristo, vamos vencê-los
com palavras e amor”. Os discursos em ação revelam que assim como no
caso das charges retratando Maomé, a controvérsia envolvendo a obra de
Márcia X. movimenta uma série de questões políticas e culturais relativas à
“acomodação pública dos sentimentos religiosos” (Nielsen, 2007).
4. Argumentos em ação: religião,
arte e espaço público na modernidade
O levantamento das modalidades de ação religiosa consideradas (i)
legítimas e suas possíveis interferências no universo das questões artísticas
foi o ponto de partida para elaborações que, ao longo do debate, procuraram delimitar as fronteiras entre religião e arte. Nesse sentido, um vetor que
perpassa a discussão diz respeito à distinção entre as esferas da sociedade,
com principal ênfase na crítica sobre lugar social da religião.
A percepção de que o mundo atual baseia-se em divisões rígidas entre
as diferentes esferas da vida - tais como “a arte”, “a religião”, “o Estado”, “a
ciência”- encontra-se enraizada no ideário corrente sobre a modernidade. De
acordo com Talal Asad (2003), tal ideário considera que a modernidade seria
ainda um estágio de evolução social onde, por um lado, a religião sofreria
um “enxugamento” (ou privatização), e por outro, o Estado, liberado das
pressões religiosas, desempenharia seu papel de regulador dos direitos e
deveres individuais. A característica saliente da modernidade seria então o
princípio da secularização, inaugurando a ruptura entre religiões e Estado.
Em alguns argumentos contrários à retirada de “Desenhando com
terços” de “Erotica” que defendiam a necessidade de estabelecer os limites
entre arte e religião, encontramos o recurso à idéia de laicidade para desqualificar o lugar religioso dos denunciadores da obra:
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
“DESENHANDO COM TERÇOS” NO ESPAÇO PÚBLICO:...
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A obra não está numa igreja, sim numa galeria de arte. Não somos um Estado
laico? Indignação com a atitude do BB.31
Taíssa Gonçalves Arruda
É realmente lamentável a posição omissa que o CCBB assumiu (...) Como o
CCBB se submete à opinião de um bando de fanáticos religiosos? O CCBB
não é uma instituição laica?
Celso Fioravante
A laicidade do Estado ou do CCBB, como instituição pública, é invocada para frisar a inadequação de uma demanda religiosa em um espaço
público democrático, no qual a lei vigente é (ou deveria ser) a da liberdade
de expressão. Ao mesmo tempo em que alguns argumentos enfatizavam a
dimensão privada e empresarial da decisão do CCBB sem opô-la à dimensão
pública, esses discursos em defesa da liberdade de expressão ressaltaram seu
caráter público em oposição aos interesses privados. Enquanto instituição
voltada para a difusão da cultura, o CCBB deveria ser livre de interesses
privados tanto religiosos quanto financeiros, como apreendemos do seguinte
trecho do “Manifesto de repúdio. Erguei as mãos... fechais os olhos...”32:
Até quando aceitaremos, calados, em pleno século XXI, a Igreja ou qualquer
outro sistema dogmático dizendo o que podemos ou não ver? O que podemos ou não pensar? Por que diabos os beatos e moralistas se sentem no
direito de impedir que toda a sociedade possa conhecer o que eles julgam
bom ou mau? (...) A obra não estava em um templo, mas sim num lugar
apropriado à ARTE, à produção de olhares divergentes e à reflexão crítica.
Se o Banco do Brasil não tem capacidade ou interesse em divulgar a arte,
que não faça discurso de empresa comprometida com a sociedade, com a
pluralidade e com a vanguarda. Que assuma logo sua condição vendida a
interesses minoritários! Que não se diga democrático! Que aceite sua posição
de empresa de visão medíocre”.
As opiniões estabelecem um vínculo positivo entre arte e sociedade,
ao passo que destacam a ingerência inapropriada da religião na vida social. O
nexo negativo entre religião e sociedade remete ainda à relação entre religião
e política, como vemos no comentário a respeito do envolvimento de João
Carlos Rocha, no manifesto “Márcia X – 60 dias de censura no CCBB”33:
Nos bastidores, a figura de João Carlos Rocha, assessor de César Maia, articulador político do PFL Jovem, fundador da Opus Christi, e aliciador de
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
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PAOLA LINS OLIVEIRA
menores e jovens via Orkut para aumentar o rebanho religioso fundamentalista e engrossar o caldo de jovens na política via PFL
No mesmo sentido, o jornalista João Ximenes, ao tomar conhecimento do vínculo político de João Carlos Rocha, publica em seu blog34:
“provavelmente a ação da Opus Christi não foi tão infantil, tão ingênua,
quanto pensei. Mais uma vez, o que parece estar em jogo é a mistura de
política e religião”.
Essas falas giram em torno da expectativa de que, nos Estados seculares, democráticos e modernos, a religião se restrinja à dimensão privada,
ou seja, às igrejas e à vida particular dos religiosos. Qualquer combinação
entre religião e política, ou religião e Estado aparece como indício de falência da secularização, e conseqüentemente do modelo de Estado moderno.
No plano ideal, a ocupação do espaço público pela religião é considerada problemática para a constituição de uma civilidade plural, onde
indivíduos de diferentes credos possam compartilhar os espaços de convivência comum. Na prática, as políticas seculares dos Estados nacionais,
ao mesmo tempo em que restringem o espaço de atuação das religiões,
revelam-se práticas de relação e até mesmo de definição do religioso.
Em outra chave, a aversão à religiosidade experienciada no espaço
público se fundamenta em uma visão peculiar do que constitui o Estado
e a religião na modernidade. No momento em que o Estado passa a ser
regulador da vida pública como intermediador político, condensando práticas concretas e princípios abstratos, seu poder ultrapassa e transcende os
limites de atuação e interesse dos governantes e governados (Asad, 2003).
Nesse sentido, os comportamentos públicos religiosamente motivados são
tomados como ameaça à soberania do Estado-nação, justamente porque
constituem adesões alternativas e passionais, “externas” ao bem comum e
fundadas na idéia de uma transcendência divina (Asad, 2006).
Portanto, para atingir a transcendência, o Estado moderno desqualifica o caráter transcendental da religião. Um desdobramento do mesmo
argumento seria a ênfase no caráter privado dos interesses religiosos, asssim
a religião não deve ser retirada do espaço público somente por representar
uma ameaça ao bem comum, mas por constituir uma “razão privada” (Asad,
2003, p. 8), um conjunto de idéias, crenças e princípios individuais que não
dizem respeito ao universo público.
Asad afirma que a própria modernidade conspirou para “enfatizar
a fé prioritariamente como um estado mental e não como constituindo
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
“DESENHANDO COM TERÇOS” NO ESPAÇO PÚBLICO:...
167
atividade no mundo” (1993, p. 47, tradução pessoal). Onde a ênfase recaía
sobre um conjunto de práticas a respeito do estar no mundo, transformações no cenário político e social, a formação dos Estados Nacionais, e o
surgimento de idéias secularizantes, converteram a religião em (mais uma)
“perspectiva”, em um mundo farto de opções (idem, p. 49): “de um aparato
de regras práticas ligadas a processos específicos de poder e conhecimento, a
religião foi abstrativada e universalizada” (idem, p. 42, tradução pessoal). As
religiões tiveram papel ativo na elaboração de tal visão pois, segundo Asad,
(...) com a ascensão triunfante da ciência moderna, da produção moderna e do
Estado moderno, as igrejas também deveriam ser claras sobre a necessidade
de distinguir o religioso do secular, mudando, como elas fizeram, o peso
da religião mais e mais para disposições e motivações do crente individual.
Disciplina (social e intelectual) deveria, nesse período, gradativamente abandonar o espaço religioso, deixando ‘crença’, ‘consciência’, e ‘sensibilidade’
tomarem o lugar (idem, p.38, tradução pessoal)
O procedimento de espiritualização da religião se coaduna com um
movimento mais geral de subjetivação do indivíduo, transitando em um
espaço social cada vez mais diverso, que enfatiza as liberdades individuais
(de consciência, escolha, expressão) e produz novas experiências – de espaço, tempo, crueldade, saúde, consumo e conhecimento. A “modernidade”
– ambiente onde esse indivíduo subjetivado se produz e é produzido – segundo Asad, não constitui realidade empiricamente verificável, resultando
em variações mais ou menos conectadas com um projeto comum que
abarca princípios, tais como “autonomia moral”, “democracia”, “direitos
humanos”, “secularismo”, e tecnologias “de produção”, “guerra”, “entretenimento”, transformando o modo como as pessoas experimentam o
mundo (2003, p. 13). Nesse sentido, a arte como espaço de livre expressão
exerce um papel fundamental na constituição do indivíduo subjetivado
moderno, e seu grau de autonomia social geralmente é tido como indício
de uma maior eficácia do projeto de modernidade em curso.
Controvérsias públicas como a que envolve a obra de Márcia X.
ou a publicação das charges do profeta Maomé mobilizam, junto com os
argumentos de ofensa religiosa e liberdade de expressão, um conjunto de
princípios e práticas religiosas preferencialmente privadas e um conjunto
de princípios e práticas artísticas promovidas publicamente. Asad esmiúça
essas questões ao examinar diversos argumentos em jogo no caso das reações à publicação dos “Versos Satânicos” de Salman Rushdie (1993, cap. 8).
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PAOLA LINS OLIVEIRA
Para Asad, a cultura moderna burguesa consagrou a literatura como
“um espaço quintessencial para produzir reflexões sobre as mais profundas
experiências dos modernos”, elevando-a à categoria de “escrita edificante”
a tal ponto que “o discurso chamado literatura pode preencher o papel previamente desempenhado pela textualidade religiosa” (1993, p. 287, tradução
pessoal). Em uma apresentação pública, Rushdie defende a literatura como
“o único lugar em qualquer sociedade onde, no espaço secreto de nossas
próprias cabeças, nós podemos ouvir vozes falando sobre tudo, de todas
as formas possíveis”, ao passo que Asad lapida:
A razão para assegurar que a arena privilegiada [o campo da literatura] é
preservada não é porque os escritores queiram liberdade para falar ou fazer
o que lhes aprouver. Mas porque nós, todos nós, leitores e escritores e cidadãos e generais e homens de bem, precisamos daquele espaço pequeno e
aparentemente desimportante (1993, p. 289, tradução pessoal).
De forma semelhante, “Christus” publica um comentário35 na comunidade “Encontro da Nova Consciência” a respeito de “Desenhando
com terços” e da “função” da arte:
A arte não traz uma verdade, traz uma incerteza. (...) Se Márcia X juntou
na obra Desenhando com Terços dois símbolos fortes de nossa cultura, o
PÊNIS e o TERÇO ela nos faz um convite para a reflexão sobre essas duas
coisas. É um convite para que nós pensemos! A obra é um discurso aberto
e não um axioma! Então, voltando a falar do pênis e do terço, será que não
há pontos de convergência e divergência entre esses símbolos? Será que
esses são assuntos que não devemos falar? Nem pensar? A arte nos excita a
ver o mundo por parâmetros ainda não vistos. É um exercício a libertação
de nossos paradigmas e de nossas verdades sólidas. (...) Se a obra é impura,
desonrosa, agressiva, não é a obra em si... mas o juízo de valor que o humano
a atribui. Se a arte está no centro das atenções que bom... pois a arte não
tendo vínculos com a “moral e os bons costumes” pode ajudar o humano
a romper suas barreiras culturais, a ir além de suas verdades já fortemente
estabelecidas... fazê-lo despertar para novos sentimentos... para novas percepções... pensar o pensamento... experienciar!
Do mesmo modo como a literatura européia passa a desempenhar
um papel redentor, tornando-se um símbolo sagrado da cultura moderna
(Asad, 1993), as artes visuais ou plásticas também são reconhecidas como
lócus de produção de uma libertação e transformação individuais. Neste
ponto, a questão da sexualidade estabelece ainda outra ponte entre as conCiencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 13, n. 14, p. 145-175, setembro de 2011.
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trovérsias. Assim como em “Desenhando com terços”, “Versos Satânicos”
mistura religião e sexualidade, ao narrar relações sexuais do profeta Maomé.
Da mesma maneira como alguns artistas envolvidos em nossa controvérsia
propuseram uma sacralização do sexo, através da ênfase na noção de fertilidade aproximando humanidade e divindade, muitos argumentos favoráveis à
obra de Rushdie alegaram que os episódios sexuais serviram para humanizar
o profeta. Asad destaca entretanto que as bases “pós-cristãs” do debate
desconsideram outros modos de compreender a humanidade, como no
caso da própria tradição cristã, que “defende que sexualizar algo é extirpá-lo da verdade divina, pronunciá-lo meramente (pecaminosamente) humano”
(1993, p. 291, tradução pessoal). Outra semelhança reside no modo como
os defensores da “arte pela arte” definem seus oponentes religiosos. Assim
como os artistas acusam os religiosos contrários a “Desenhando com terços” de “fundamentalistas”, cidadãos ingleses utilizaram o mesmo termo
para se referir àqueles que se opuseram à obra “Versos Satânicos”. Assim,
a novelista Penelope Lively afirma:
Eu acho que, infelizmente, isto coloca uma confrontação básica: aqui está um
romancista tentando explicar suas intenções para fundamentalistas os quais
não podem, ou não querem, compreender o que a ficção é ou faz (1993, p.
283, tradução pessoal).
Em ambas as controvérsias, vemos a defesa da autonomia da arte
embasada, entre outros elementos, em princípios essenciais e endógenos
de produção artística e na desqualificação dos opositores, o que revela
uma intenção de “moralizar” ou ainda “sacralizar” a esfera artística. O
estabelecimento de regras de conduta e fronteiras de competência no
universo artístico, inspirado tanto na “crença” inefável no talento dos “de
dentro” quanto na inquestionável função social da arte, sugere a tentativa
de afastamento do universo artístico daquilo que corresponderia ao espaço
ordinário de atuação da religião, principalmente quando este se conjuga
com o engajamento político. A religião, da forma exercida pelos “obscurantistas” católicos e endossada pela postura da diretoria do CCBB, é vista
como um elemento cerceador e aprisionador da arte que, por sua vez, tem
como princípio fundamental estimular o diálogo e formar o senso crítico.
Dessa forma, o resultado aponta para a
Vitória do capital sobre a cultura. Vitória dos obscurantistas. Vitória dos
jovens politiqueiros que fazem da religião palanque eleitoreiro. Vitória das
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PAOLA LINS OLIVEIRA
manobras e do poder. Vitória de um Brasil analfabeto, atrasado e hipócrita
(“Márcia X – 60 dias da censura no CCBB”).
Artistas brasileiros e cidadãos britânicos compartilham o ponto de
vista de que, nas diferentes querelas, católicos e muçulmanos desempenharam papéis tradicionais, defendendo princípios atrasados, com posturas
fundamentalistas. É possível inferir que a adjetivação “fundamentalista”,
freqüentemente associada aos muçulmanos, tenha sido usada pela proximidade temporal entre os casos da retirada da obra de Márcia X. de “Erotica” e
da publicação das charges de Maomé, como já foi dito. De qualquer modo,
é importante ressaltar que ambas as demandas religiosas são amparadas
nos aparatos legais modernos, que prevêem punições para crimes contra
o sentimento religioso. Muito embora as modalidades de aplicação sejam
bastante diferentes, já que na Inglaterra a legislação anti-blasfêmia se aplica
somente aos fiéis da religião oficial anglicana, e no Brasil todos os credos
são contemplados.
A universalidade da aplicação das leis é o ponto onde se assentam as
diferenças fundamentais entre ambas as controvérsias, justamente porque
revela a (in)adequação das demandas e seus “lugares de enunciação” (Favret-Saada, 1992). Se no jogo democrático de lutas por direitos políticos, os
muçulmanos britânicos contrários à publicação da obra de Rushdie representam uma minoria na Grã-Bretanha e o “outro” no ocidente moderno, os
“fundamentalistas” católicos falam freqüentemente “em nome da maioria”.
Os resultados também são bastante diferentes: enquanto os muçulmanos
obtiveram pouco (ou nenhum) êxito em suas demandas contrárias aos
“Versos Satânicos”, aqui, os católicos conseguiram retirar “Desenhando
com terços” da exposição sem que fosse preciso uma sanção judicial.
O motivo explícito da atuação católica se fundamenta na alegação
de que misturar terço com sexo é ofensivo. Isto porque o elemento sexual
profana a sacralidade do objeto religioso. Ou seja, uma demanda pública
pelo retorno do terço ao espaço sagrado da devoção e do universo religioso.
Nesse sentido, o pleito atualiza o princípio moderno da separação entre
as diferentes esferas, negociando a desvinculação com o universo artístico
e afirmando a existência de algo propriamente religioso. O procedimento
utilizado em tal empreitada é o engajamento de diferentes atores intervindo
em um espaço ligado à arte simultaneamente público e privado. Liderando
as mobilizações, agentes simultaneamente políticos e religiosos acionam
inúmeros mecanismos de divulgação e visibilidade, por vezes disputando
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o protagonismo da conquista. Ao recurso à justiça são combinados métodos que se revelaram mais eficientes, tais como a incitação de católicos
correntistas do Banco do Brasil e intervenções diretas da hierarquia, como
sugerem comentários no Orkut a respeito do contato entre o Bispo de
Brasília e o presidente do Banco do Brasil. Por meio de um artifício retórico que veicula a ação à defesa de “milhões” de católicos ou da “maioria”
católica da população brasileira, constrói-se uma questão pública religiosa
ainda que amparada na lógica privada e empresarial. Como conseqüência,
a ação estimula uma (re)aproximação com o objeto religioso, defendido do
“ultraje” artístico por religiosos; aproxima ainda os católicos em torno de
uma “causa” comum, insuflada diante da “vitória”; e finalmente aumenta
a visibilidade pública da causa católica levada a cabo por políticos como
Carlos Dias e João Carlos Rocha, amparados no apoio da hierarquia católica.
Os resultados são semelhantes àqueles constatados por Giumbelli
(2003) a propósito do episódio que ficou conhecido como “chute na santa”,
envolvendo um processo judicial por ofensa religiosa encabeçado por católicos, contra um bispo evangélico da Igreja Universal do Reino de Deus que
desferiu golpes contra uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, em um
programa de televisão. Portanto o modo de atuação dos católicos em ambos
os casos aposta no “fortalecimento religioso com o avanço sobre esferas
não religiosas” (Giumbelli, 2003, p. 195). Com isso, podemos apreender que
as intenções modernas, expressas nos argumentos católicos de contenção
e controle do religioso articulam-se com os métodos e as conseqüências
de sua atuação, que se fundamentam em uma proposta contra-moderna de
ocupação religiosa do espaço público.36
Quanto à obra de Márcia X., mesmo com a exclusão de “Erotica”
apontando para um resultado negativo, sua proibição divulgada e reproduzida em diversos meios de comunicação gerou enorme visibilidade,
como destaca Clarissa Borges em comentário publicado no site do Canal
Contemporâneo:37
Graças a Deus essa obra foi divulgada pela maioria dos jornais brasileiros e
agora é conhecida em todo o país!!! GRAÇAS A DEUS!!! Graças aos católicos! Viva! 146 mil no CCBB! MILHÕES em todo o país! Já é um marco
na história da arte brasileira! Essa foi a melhor estratégia de marketing que
já vi! Podem gritar, se descabelar, protestar...CENSUROU DANÇOU!
Quem saiu perdendo foram os outros artistas da exposição...o que NÃO foi
censurado, não era “ofensivo”, provavelmente será esquecido. É uma pena
eram trabalhos maravilhosos!
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Clarissa constata o efeito de inúmeras replicações de “Desenhando
com terços” capturadas e difundidas nos jornais e na internet, que despertaram o interesse de muitos curiosos atraídos pela imagem proibida. Em
grande medida, a multiplicação da obra de Márcia X. deve ser atribuída a
uma estratégia de publicização de sua imagem promovida pelos artistas, que
protestaram com cartazes contendo desenhos de terços formando pênis
(FSP, 21.04.06), estamparam sua imagem em camisetas (CB, 28.04.06) e
outros cartazes afixados em muros pela cidade (EX, 26.05.06). Tal procedimento, ao ocupar os espaços públicos com as imagens e demandas artísticas,
assemelha-se àquele dos religiosos contra-modernos, já que extrapola os
limites do “espaço da arte”. Por outro lado, a intervenção dos artistas põe
em movimento um preceito que fundamenta a lógica da proibição, percebida
por Clarissa e refinada por Georges Bataille (1987), para quem o interdito
se complementa com sua transgressão. Assim, a proibição atiça o desejo de
ver a imagem controversa: os terços católicos desenhando pênis.
Notas
1
Doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ e pesquisadora do ISER – Instituto de Estudos da Religião.
2
A imagem da fotografia foi disponibilizada no site oficial da artista (<http://www.marciax.uol.com.br>) no momento imediatamente seguinte à retirada da fotografia da mostra
“Erotica – os sentidos na arte”. Atualmente, foi retirada do site. Pode ser encontrada no site
do Canal Contemporâneo, que cobriu o episódio. Link: <http://www.canalcontemporaneo.
art.br/brasa/archives/marcia.jpg>. Consultado em 9.01.09.
3
Daqui em diante, utilizaremos as seguintes abreviações para nos referirmos aos jornais:
Extra (EX), O Globo (GB), O Dia (Dia), Jornal do Brasil (JB), Folha de S. Paulo (FSP) e Correio
Brasiliense (CB).
4
Reprodução disponível em: <http://www.artewebbrasil.com.br/artistasconvidados/
Alfredo/imagemabertura.jpg>. Consultado em 9.01.09.
5
A nota foi publicada no dia 25 de abril e está disponível no site do Ministério da Cultura.
Link: <http://www.cultura.gov.br/site/2006/04/24/nota-a-imprensa/>. Consultado em
27.04.07.
6
Os artigos foram consultados na versão eletrônica do Código Penal disponível no site da
Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Link: <http://www.amperj.
org.br/store/legislacao/codigos/cp_DL2848.pdf>. Consultado em 10.01.09.
7
No mês de agosto de 2008, realizamos consultas com os nomes dos diretamente envolvidos
na controvérsia (curador, artistas, religiosos e do centro cultural) nos sites do Ministério
Público, Superior Tribunal Justiça, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e nenhum processo
foi encontrado a respeito do caso. Apresentamos em novembro de 2008 uma petição solici-
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tando informações sobre o registro de ocorrência da notícia-crime feita por Carlos Dias na
1ª DP da Praça Mauá, Rio de Janeiro, mas até o presente momento não obtivemos resposta.
8
O crime de atentado ao pudor consta da seção do Código Penal que versa sobre os crimes
contra os costumes.
9
Lei estadual n. 3459/2000.
10
Blog Opus Christi – Apostolado Católico. Link: <http://apostoladocatolico.blogspot.
com/>. Consultado em 2.03.08.
11
O endereço do site da galeria A Gentil Carioca é <http://www.agentilcarioca.com.br/
indexpor.html>. Consultado em 20.03.08.
12
A nota está disponível em <http://www.cancaonova.com/portal/canais/news2/news.
php?id=20010>. Consultada em 20.01.08.
13
Em seu perfil no Orkut, Beto Bernardi descreve-se como missionário do Projeto Amazonas, na Ilha de Breves, Pará. O perfil pode ser consultado em <http://www.orkut.com.br/
Main#FullProfile.aspx?rl=pcb&uid=17786477841256327476>. Data da consulta: 27.07.07.
14
As comunidades são “Católicos”, “Eu quero ser santo!”, “Vaticano”, “Crisma Coração
de Maria”, “Sou Católico Apostólico Romano”, “Eu amo ouvir o momento de fé”, “Movimento Sacerdotal Mariano”, “Nossa Senhora do Carmo”; “Igreja Católica”; “Imaculado
Coração de Maria”; “Católicos Online”. Para consultar as comunidades do Orkut basta
acessar <http://www.orkut.com> e adicionar o nome da comunidade na seção de pesquisa
de comunidades. Colocaremos os links no caso de citação do comentário. A pesquisa nas
comunidades do Orkut foi feita durante o mês de abril de 2008.
15
O Orkut é um site de relacionamentos contendo perfis individuais e comunidades coletivas.
Para conhecer o Orkut, visitar <http://www.orkut.com> .
16
Mensagem disponível em <http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=
540349&tid=2459595906335901319&kw=%22desenhando+com+ter%C3%A7os%22>.
Consultado em 20.04.08.
17
As comunidades são “Católicos”, “Vaticano”, “Consolação e Correia”, “Ah! Eu sou
católico”, “Cardeal Dom Eugênio Salles”, “Sou Católico Apostólico Romano”, “Arautos
do Evangelho”, “Católicos tradicionais”, “Canto Gregoriano”, “Opus Christi”, “Coroinha
– acólito (oficial)”, “Coroinhas”, “D. Estêvão Bettencourt”, “Papa Bento XVI (Oficial)”,
“Acólitos”, “Bento XI (oficial)”, “Amigos do Pe Robson Cristo”, “Consagrados à Nossa
Senhora”, “Grupo Católico Fundamentalista” e “Católicos RJ”.
18
Uma das publicações do texto pode ser acessada na comunidade “Ah! Eu sou católico”.
Link: <http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=83129&tid=245997376
0377479127&kw=%22Desenhando+com+ter%C3%A7os%22>. Consultada em 20.04.08.
19
Entre os comentários das pessoas contrárias à retirada da obra de Márcia encontramos
algumas referências à alusão homossexual, como no comentário de Clarissa Borges “É claro
que não foi um trabalho que foi censurado! Foi a opção sexual possível retratada na imagem...resultado de
descriminação velada! HOMOFOBIA!”. Disponível em <http://www.canalcontemporaneo.art.
br/brasa/archives/2006_04.html>. Consultado em 3.05.07.
20
Disponível em <http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/000711.html>.
Consultado em: 27.04.08.
21
Disponível em <http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/2006_04.html>.
Consultado em: 3.05.08.
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174
PAOLA LINS OLIVEIRA
Disponível em: <http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=113550
3&tid=2459886748635029463&kw=172+bispos+e+mais+de+700+padres&na=3&n
id=1135503-2459886748635029463-0&nst=1>. Consultado em 20.04.08.
23
João Carlos Rocha refere-se ao abaixo-assinado organizado pelo Opus Christi solicitando
ao Ministério Público a retirada de todas as obras com conteúdo religioso de “Erotica”.
24
Disponível em <http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=1900081&tid
=2458378978889884246&kw=%22desenhando+com+ter%C3%A7os%22>.
25
Disponível em <http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=58612&tid
=2459886102242451415&kw=%22desenhando+com+ter%C3%A7os%22>. Consultado
em 20.04.08.
26
Disponível em <http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=1900081&tid
=2458378978889884246&kw=%22desenhando+com+ter%C3%A7os%22>. Consultado
em 20.04.06.
27
O documento está disponível em: <http://www.mapadasartes.com.br/setoresnn.
php?not=1&notid=50>. Consultado em 29.11.06.
28
Disponível no Portal UOL. Link: <http://diversao.uol.com.br/arte/ultnot/2006/04/21/
ult988u607.jhtm>. Consultado em 6.04.08.
29
Publicado em 3.05.06. Disponível em <http://la3.blogspot.com/2006/05/bb-cancelaexposio-erotica-em-braslia.html>. Consultado em 02.11.06.
30
Disponível em <http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=10733060&ti
d=2460934873137521348&kw=%22desenhando+com+ter%C3%A7os%22>. Consultado
em 20.04.08.
31
Os três comentários estão disponíveis no abaixo-assinado veiculado no site do Canal
Contemporâneo. Link: <http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/000711.
html>. Consultado em 27.04.08.
32
Publicado no blog anônimo “Observatório da Censura” em 14.05.06. Link: <http://
observatoriodacensura.blogspot.com/>. Consultado em 27.09.06.
33
Publicado no blog anônimo “Observatório da Censura” em 15.07.06. Disponível em
<http://observatoriodacensura.blogspot.com/2006/07/mrcia-x-60-dias-da-censura-noccbb.html>. Consultado em 27.04.08.
34
D i s p o n í ve l e m < h t t p : / / o g l o b o. g l o b o. c o m / b l o g s / x i m e n e s / d e f a u l t .
asp?a=10&periodo=200604>. Consultado em 27.04.08.
35
Publicado em 22.05.06. Link: <http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm
=1256853&tid=2465414493951738699&kw=%22A+arte+n%C3%A3o+traz+uma+verd
ade%2C+traz+uma+incerteza%22>. Consultado em 20.04.08.
36
Este procedimento pode ainda ser observado nas recentes reivindicações da hierarquia
católica no sentido de recuperar os sentidos propriamente religiosos do monumento ao
Cristo Redentor (Giumbelli, 2008).
37
Disponível em <http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/2006_04.html>.
Consultado em 3.05.07.
22
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