Guilherme Xavier A Experiência Gamerama metodologia e design
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Guilherme Xavier A Experiência Gamerama metodologia e design
Guilherme Xavier A Experiência Gamerama metodologia e design de jogos eletrônicos para futuros produtores nacionais ANEXO DE TESE DE DOUTORADO Departamento de Artes e Design Programa de Pós-Graduação em Design Rio de Janeiro, abril de 2013 Guilherme Xavier A Experiência Gamerama metodologia e design de jogos eletrônicos para futuros produtores nacionais Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Design da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Design. Orientadora: Prof. Jackeline Lima Farbiarz Rio de Janeiro Abril de 2013 3 IV - Conteúdo Programático do Gamerama Workplay Conforme publicado por agendamento durante o Gamerama Workplay. Primeira Exposição: Introdução e Composição Basilar Se o último ser humano precisasse escrever uma breve história sobre os jogos, sucinta e objetiva o suficiente para resumir a função social dos jogos ao longo dos milênios, podería dizer que “jogos foram o ápice da tecnologia humana com o intuito de permitir a humanidade escapar de sua própria realidade.” Além do escapismo que lhe é característico, jogos lidam obrigatoriamente com noções do que existe e do que pode vir a ser, e por isso, podem ser encontrados em todas as sociedades, das milenares às virtuais. No entanto, devido a sua presença histórica misturada com ritos e valores culturais, é comum que falte aos jogos uma nitidez maior em termos de definição. E como não vamos entrar na discussão filosófica sobre o que DEFINE um jogo, vamos simplesmente ampliar nossos horizontes com conjuntos de aspectos para poder vislumbrar o que o jogo SIGNIFICA para nossos interesses. Assim, é mais simples acomodar o jogo como atividade ou dispositivo em condições de recepção do que ficar sapateando em volta de reduções determinísticas. A única certeza é a tautologia que JOGOS SÃO JOGOS e que algumas coisas que normalmente são tidas como identidades de jogos não passam de complementos ou suplementos para que eles sejam percebidos socialmente como tal. O pintor surrealista René Magrite brincou com a expectativa do público sobre a essência e a aparência com um cachimbo no quadro “A traição da imagem” de 1928, e de modo semelhante, nós podemos contradizer a ideia que se faz 4 do jogo alertando para que suas partes constituintes não são o dito cujo. Para atingir sua essência enquanto atividade, devemos reconhecer sua presentificação, mas não impor ao jogo limitações conceituais: pois no fundo ele não ocorre no plano da realidade, mas somente no plano da recepção e da cognição. O jogo, seja qual for, só existe mesmo nas nossas mentes. Figura 1 - Isso não é um jogo Conforme a imposição de compreender o jogo se torna necessária, devemos dar conta de situar o mesmo em perspectivas funcionais e técnicas. Para uma composição que possa ser compreendida, assim como o público compreendia que na tela de Magrite havia um cachimbo (embora a legenda afirmasse com razão o contrário), nosso reconhecimento do jogo passa pelo cumprimento de alguns pontos, que elencados, consideram uma composição basilar: Experiência Interativa: Embora possam ser simplesmente percebidos por quem não joga como uma atividade a qual se reage, jogos só existem quando participados por agentes os quais chamamos jogadores, que do evento, conseguem relatar uma experiência que só é válida se interativa. Jogos lidam com expectativas de uso e agenciamentos. Possibilidade Narrativa: Embora possam ser experimentados pela construção de uma história narrada (anterior, simultânea ou posteriormente ao ato de jogar), jogos não dependem sine qua non de história para serem percebidos como tal. Portanto, ainda que auxiliem na recepção da obra, narrativas elaboradas são dispensáveis ao ato de jogar, servindo como possibilidade. Jogos lidam com eventos encadeados. 5 Resolução de Conflitos: Embora não dependam de histórias, jogos só funcionam na tentativa de se resolver um desequilíbrio harmônico, o que deve ser conquistado pela ação intelectual e motriz do jogador. Por isso o jogador se sente empoderado: cabe a ele dar fim à situação inadequada agindo contra outros interesses de outros jogadores ou contra o sistema do jogo. Jogos lidam com contrastes. Desafios e Recompensas: Embora apresentem conflitos a serem solucionados para manutenção de uma ordem esperada, jogos providenciam cenários que salientam a vitória ou a derrota conforme a competência do jogador em perceber os desafios e objetivar-lhes as recompensas. Jogos lidam com incentivos gerais e específicos. Ilusão Sensorial: Embora façam uso prioritário de relações de ganho e perda do plano da realidade, jogos apresentam suas considerações por meio de artifícios de engodo dos sentidos, normalmente da audição e da visão. Sem a supressão da descrença o jogo se estabelece impraticável. Jogos lidam com a imitação distorcida, com o faz de conta. Linguagem Visual e Simbólica: Embora a ilusão sensorial não seja característica exclusiva dos jogos, pois também está presente em outras obras para que as mesmas possam ser fruídas, nos jogos a atração se dá pelo reconhecimento de uma gramática visual comum a amostras do universo lúdico, as quais indicam como o sistema será apreendido. Quando comparados com seus referenciais, observa-se dos símbolos uma excessiva funcionalidade, ou seja, seu comportamento e aspectos no jogo dizem mais sobre a mecânica de uso esperado do que de uma realidade esperada. Jogos lidam com a operação de signos, denotações e conotações. Relações Perceptivas: Embora o estabelecimento cultural dos jogos em nossa sociedade constitua expectativas de uso comuns entre diversos tipos de entretenimento, jogos dependem que seus jogadores assumam um contrato de compreensão e uso das relações de causa e efeito de suas tomadas decisórias. Para isso, as diversas relações perceptivas encontradas nos momentos de jogo servem como dinâmicas que impelem o jogador ao cumprimento de objetivos previamente informados seguindo estratégias e táticas. Jogos lidam com forma, função, tempo e espaço. Comunhão e Socialização: Embora a participação do jogador no jogo possa se estabelecer solitariamente em certas amostras, é corriqueiro que jogos façam pleno uso de comunicação entre os jogadores encolvidos para que as demandas sejam solucionadas e para que os resultados possam ser quantificáveis. Ainda que seja percebido como demérito devido a sua associação com o ócio, jogos ganham notoriedade quando permitem a comunhão e a socialização de seus participantes em torno de assuntos comuns, sejam do jogo, sejam da vida. Jogos lidam com diálogos mediados e relações interpessoais. Difusão Tecnológica: Embora por tradição jogos se aproximem de artefatos cotidianos e vernaculares para providenciar trocas simbólicas, podem também receber incentivos intelectuais para assumirem, em seus projetos, conformação com as últimas novidades técnicas que a sociedade pode oferece. Onde quer que se estabeleça em termos de resultado para questões tecnológicas, jogos expandem usos e providenciam a entrada sutil de neófitos na plenitude de outros usos, normalmente voltados para a comunicação e o trabalho. Tomando como exemplo os jogos eletrônicos, amostras últimas da tradição humana de jogar, os resultados comerciais dinamizaram investigações científicas acerca da representação visual, do processamento de dados e da comunicação por redes telemáticas. Não fossem jogos como fundamental objetivo comercial, dificilmente teríamos monitores coloridos, som com qualidade e definição ou mesmos leitores de 6 mídias ópticas e acesso a redes de troca de informação internacionais... Jogos lidam com a evolução humana. Segunda Exposição: Do Homo Faber, aquele que faz Olhando bem a nossa volta perceberemos que tudo que existe é fruto da intenção de alguma pessoa inserida no modo de produção de uma sociedade. Mas nem sempre foi assim: há duas centenas de anos, se quiséssemos nos sentar, deveríamos dispor de dinheiro suficiente para adquirir uma cadeira produzida completamente (do talho da madeira ao último prego) por um artesão. Eram caras, não porque o material usado fosse nobre, mas porque os artesãos não eram ágeis e nem eram muitos o suficiente para dar conta do suprimento universal de cadeiras e de muitas outras facilidades providenciados pela inteligência humana. Algumas coisas simplesmente não poderiam ser consideradas em grandes quantidades. Para nossa satisfação, com a Revolução Industrial, a máquina tomou a maior parte da responsabilidade de talhar a madeira e bater os pregos, deixando aos humanos, duas oportunidades: lidar com a criação intelectual do objeto e pensar assim nos resultados de suas intenções previamente; e principalmente, tomar conta das máquinas para que elas dessem conta do recado. Para não desaparecer da sociedade, os artesãos foram absorvidos pela indústria e alguns deles se ocuparam justamente de pensar a técnica da operação das ideias diante de progressivas evoluções científicas. Esses indivíduos fantásticos, com um olhar no presente e outro no futuro, se tornaram aqueles que hoje chamamos designers. Do contrário do que se pensa, design não é uma equivalência de desenho, mas um conceito amplo que se 7 relaciona com a concepção e o desenvolvimento de projetos. E conforme os projetos das coisas objetivas se tornaram progressivamente complexos, também os designers buscaram especializações para suprir as demandas de uma sociedade que se voltou para o consumo de bens e serviços especializados. Conforme a tecnologia avança, novos pensamentos são requeridos para adequar soluções a demandas originais. Durante o século XX, o design chegou em sua plenitude, relacionando conteúdo, forma e função de modo a maximizar a produção, e como área estratégica, permitir o maior conforto social possível para o maior número de pessoas. E como o século da eletricidade substanciou o mundo com todo tipo de "coisas", atualmente muitos designers avançaram para cima de outras áreas, lidando também com as "não-coisas", considerando como projeto não somente objetos mas também as relações humanas estabelecidas por eles. Não somente os materiais consumidos no projeto, mas os valores agregados envolvidos. Pensar em projetos de jogos atenta exatamente para esse fato característico de uma profissão cujo foco encontra-se no outro e em suas necessidades. O jogar é uma necessidade humana e ao longo da história, o Homo Faber das cadeiras se aproximou do Homo Ludens dos tabuleiros para atender aos seus pedidos por sistemas industrializados de diversão. Como a evolução da indústria gráfica, surgem os primeiros profissionais cujos projetos visam o entretenimento, e com eles, novas formas de interagir por meio de regras amparadas por suportes de informação para satisfação do espírito. Figura 2 - O tempo não para... "Damas de Copas" de três épocas: da China milenar, da Revolução Francesa e das atuais impressões policromáticas de grandes tiragens O tempo não para... Na medida em que a virtualização dos objetos se faz cada vez mais presente, pensar a relações entre os seres humanos e seus dispositivos de divertimento de uso cotidiano torna-se um desafio que convida ao diálogo com diversas outras áreas de conhecimento. Os game designers foram seduzidos por automatismos sensuais promovidos pelos 8 computadores na metade do século passado e atualmente os jogos eletrônicos concentram a maior parte dos profissionais, domando bits, bytes e gigabytes objetivando a diversão de um público que aumenta e amadurece a cada dia. Como poucas atividades, quem joga, não deixa de jogar ao envelhecer. E jogadores, como representantes de uma população expansiva, deixam descendentes férteis que seguirão felizes na imitação de suas atividades favoritas, as analógicas e as digitais. Figura 3 - Tenha santa paciência... Um exemplo característico desse fenômeno de expansibilidade de público devido ao uso de computadores para jogar se observa no jogo de cartas para computador conhecido como Paciência (Solitaire, em inglês), criado por Wes Cherry em 1980 a partir de um jogo solitário de cartas chamado Klondike. Embutido em 1990 no Windows 3.00, tornou-se sucesso absoluto de público e um dos primeiros productivity killers antes das redes sociais. Por isso, foi um dos primeiros softwares a servir de justificativa para demissões por ociosidade comprovada e a ter clínicas especializadas no tratamento de jogadores compulsivos. Devido à facilidade de participação, quase natural, o jogo Paciência angariou adeptos que jamais o jogariam no plano da materialidade, e por consequência, fazendo o uso do mouse, como dispositivo de entrada, ser consagrado nos escritórios mundo afora. Embaralhar cartas rapidamente e corrigir as jogadas indevidas eram apontadas como grandes vantagens sobre jogos de carta convencionais, o que nos mostra que a evolução tecnológica dos jogos não deve ser encarada com melancolia, mas como curiosidade. Afinal, jogos lidam com projetos e projetos devem respeitar conceitos e contextos para o melhor dos mundos. 9 Terceira Exposição: Ao Homo Ludens, aquele que joga Nossos ancestrais começaram a se comunicar apropriadamente por meio de um sistema de linguagem entre 200 mil e 100 mil anos atrás, com o estabelecimento do Homo sapiens a partir do Homo heidelbergensis. Cientistas divergem nas estimativas de tempo envolvidas do binário uga buga ao polissêmico bla bla bla, na profundidade do vocabulário envolvido nos discursos e se havia uma única língua geral oriunda de uma sortuda mutação genética, ou várias línguas evoluídas progressivamente. Mas o cruzamento de diversas áreas de estudo, da biologia e da genética, passando pela paleontologia, arqueologia e antropologia, apontam que humanos da Metade da Idade da Pedra já fofocavam nas cavernas sobre novidades como um inverno desgraçado cobrindo o planeta, sobre novas danças rituais para aplacar a fúria do invisível, sobre planos infalíveis de caçar mamutes e sobre os perigos de se cutucar tigres-dente-desabre com vara curta. O subproduto da linguagem é a atribuição de valores abstratos a observações objetivas, o que deve ter recebido um implemento intelectual poderoso com a invenção e desenvolvimento da escrita, por volta de 5 mil e 200 anos atrás. Muito antes disso, uns 33 mil anos, sistemas simbólicos de preservação de experiências cotidianas já eram explorados pelos homens das cavernas franceses, mas somente em épocas simultâneas a escrita, os primeiros jogos apareceram por dispositivos característicos, no Egito e na Mesopotâmia, o que colocam os jogos como sistemas de atribuição simbólica monitorada no meio do caminho da evolução das primeiras cidades há 4 mil e 600 anos mais ou menos. Por essa época, o Homo Sapiens se torna o Homo Ludens, com seus tabuleiros, regras e questões filosóficas acerca da vida e da morte, dos 10 deuses e das guerras, das relações de causa e efeito e de tempo e espaço. Princípios a serem seguidos Os egípcios e os mesopotâmicos trouxeram consigo para as cidades, recém inauguradas, expectativas e simbolismos ancestrais e condensaram experiências típicas de sua época em modelos de participação mediada. Jogos de então não lidavam com nenhuma grande novidade de uso ou inovação de conteúdo, mas sim com a extrapolação de uma realidade mística e amparada em padrões recorrentes. Imagine que fôssemos transportados magicamente para época tão interessante, misteriosa e perigosa: em um primeiro momento, seríamos prejudicados pelo nosso pensamento excessivamente dependente de nosso conhecimento tecnológico, o que não valeria de muita coisa. Se quiséssemos alcançar uma mínima existência, teríamos de nos ater a certos princípios fundamentais que nos colocam em igualdade com os nativos de então. Apesar de distantes na história em milhares de anos, teríamos em comum o fato de todos sermos terráqueos e por isso termos atitudes a serem assumidas: Cinco princípios para um Manual de Existência para Terráqueos: 1. 2. 3. 4. 5. Sobreviva e deixe descendentes Os desafios serão mentais e físicos Todo conforto é limitado As objeções serão naturais, individuais e coletivas Acate o risco conforme a recompensa Figura 4 - Homens das Cavernas moravam em... cavernas. Sem nos aprofundar filosoficamente nas implicações da situação, no aceite desses cinco princípios fundamentais, estaríamos recorrendo a uma estratégia exemplar que nos 11 garantiu sobreviver como Homo sapiens aos nossos competidores diretos neandertalenses na corrida evolutiva cerca de 500 mil anos atrás. Tornamo-nos melhores coletores, caçadores e pensadores, pois elaboramos formas de armazenar e distribuir conhecimento experiencial ao longo de gerações descendentes. E se hoje falamos, escrevemos e mandamos foguetes ao espaço, é porque nos tornamos exímios jogadores de um jogo cósmico pela distribuição de nossa genética pela superfície do planeta. Não é somente porque uma mutação rotacionou nosso polegar e mudanças climáticas nos fizeram descer das árvores, mas porque recentemente (alguns milhares de anos) conseguimos extrair dos cinco princípios fundamentais acima certos simbolismos que nos permitiram ensaiar nossa existência além da mera sobrevivência instintiva. Figura 5 - Mamute! O próprio ato de nos organizar socialmente para caçar criaturas muitas vezes maiores que nos reflete a noção estratégica envolvida nos itens 1, 2 e 3. Considerando que a falha representa a carência de alimento necessário para a manutenção do item 1, e mesmo sem tal carência, que o item 3 é inexorável, aprendemos na marra a nos organizar e prezar uns pelos outros em termos de famílias e posteriormente clãs, que vagando pela padrarias, vez ou outras, se estranhavam. Afinal, recursos serão sempre mais escassos que o ideal, e não bastando um mundo tão perigoso como o pleistoceno, com glaciações constantes e terríveis felinos gigantes rondando nossos filhotes, tínhamos que lidar com a construção de nossas próprias diferenças culturais. 12 Figura 6 - Fujam! Um Tigre-Dente-de-Sabre! Imagine o estresse de morar numa caverna insalubre, sair vez ou outra para caçar mamutes gigantes debaixo de neve e fugir de monstruosidades que tinham os mesmos objetivos que nós... Não é de admirar que a expectativa de vida de nossos ancestrais de então não ultrapassasse cerca de 40 anos. Violência, ossos quebrados e cicatrizes foram a norma, e somente a capacidade de abstrair da própria existência diante dos ritos e da fantasia garantiam a sanidade para levar o item 5 adiante, e no futuro, ter descendentes vendo surgir as primeiras cidades. Figura 7 - Senet, um dos jogos mais antigos já registrados. Esse era de Amenhotep III, que segundo consta na mitologia egípcia, deve estar jogando até hoje. As primeiras organizações humanas complexas exigiam mais do indivíduo do que uma primeira observação pode supor. Surge a ideia de trabalho como entendemos hoje. Com as famílias e clãs parando de correr de um lado para o outro com a invenção da 13 agricultura e da domesticação dos animais selvagens para corte e transporte, a organização das atividades de cerâmica e fiação dividiu as responsabilidades de homens de mulheres de modo sistemático. Com as atividades executadas para promoção de trocas de bens e valores entre indivíduos, há reconhecimento de um momento vago paralelo ao momento que ocorria entre as ações. As atividades inseridas nesses “vazios entre importâncias”, chamamos “entretenimento”. E o objetivo do entretenimento é divergir sua atenção do foco de demais atividades. Por isso dizemos que os jogos são (ou deveriam ser) divertidos. Jogos e consequências Os primeiros jogos dos quais se tem conhecimento oriundos do Egito e da Mesopotâmia (mais precisamente Ur, no atual Iraque) eram jogos de corrida baseados em sorte mas com características estratégicas. Os egípcios gostavam de sorte porque para eles o que era furtuito era da administração dos deuses e um bom jogador garantia o reconhecimento público de estar sob a proteção de um deles. Tanto que para a viagem ao pós-vida, egípcios eram enterrados munidos de bens pessoais entre os quais uma caixinha de Senet, seu mais antigo jogo, era comum. Do contrario dos Egípcios, que não deixaram regras escritas sobre o Senet, só as caixinhas, os babilônios deixaram recentemente (cerca de 2170 anos atrás), textos cuneifórmicos explicando como se deveria jogar o Jogo Real de Ur. O fato de um jogo não ter regras explicitas ainda assim ser percebido como tal, é uma das principais características dos jogos na nossa cultura: a recorrência representacional. A compreensão de que Senet seja um jogo se deve a sua configuração por meio de um conjunto de objetos, no quais figuram aspectos diferenciadores e recorrentes, e portanto, dos quais se subentende relacionamentos lógicos. Não fosse a similaridade com outros jogos da atualidade, por outro lado, talvez não fosse possível estabelecer para o jogo suas regras atuais. Afinal, como vimos anteriormente ser impossível chegar a uma definição única do que É um jogo, podemos fazer por aproximações tangenciais: Como definir o indefinível? • jogo como produto • jogo como processo Como produto, entendemos o jogo como “coisa” que será manipulada; e como processo, entendemos que a manipulação da “coisa” se dará como uma série de eventos correlatos e coerentes entre si. Para nós, considerar o jogo além da expectativa de objeto de consumo e resolver questões abstratas e relacionais, implica em pensar obrigatoriamente no 14 jogador antes do comércio do objeto. Infelizmente, a cultura de consumo também fez do jogo um alvo predileto e os despropósitos são notórios. Basta ver a quantidade de revisitações licenciadas de jogos ditos “tradicionais” como se fossem coisas completamente diferentes entre si, quando são somente maquiagens estéticas. Evitar que se use o jogo como maquiagem de qualquer outra atividade de dedicação deve ser nossa principal bandeira como game designers. Jogos são importantes culturalmente por serem instigantes e as decorrências do seu discurso não devem se interpor ao objetivo da diversão que dele emerge, e nem às consequência por sua participação. Das consequências: • Win-Lose: alguém vence se outro perder • Win-Win: todos vencem • Lose-Lose: todos perdem Figura 8 - Win-Lose | Ganhar-Perder Figura 9 - Win-Win | Ganhar-Ganhar Figura 10 - Lose-Lose | Perder-Perder 15 Seja qual for o contexto político e social, jogos foram eleitos em diversos momentos históricos como objeto de estudo para resultados que pudessem ser replicado em outras situações. Na época moderna, partidas de xadrez podiam substituir a movimentação de tropas no campo de batalha, evitando-se assim conflitos tidos como concluídos antes mesmo que os tiros de canhão pudessem ser ouvidos pelos soldados. No século passado, matemáticos se debruçaram sobre as implicações de se compreender jogos como tomadas de decisões, dando origens a teorias elaboradas com aplicações que vão da sociologia ao mercado financeiro. Delas extraímos a noção de consequência de nossa participação nos jogos, que podem ser exemplificados nas ilustrações com os burrinhos amarrados acima. Todas são válidas e conforme nossas decisões, elas podem ou não ir de encontro a expectativas de resolução de conflitos por parte dos jogadores. Nos casos, Win-Lose (Ganhar-Perder), há apenas um vitorioso em detrimento de derrotados, normalmente devido a sua habilidade e competência exclusivas na resolução do conflito do jogo, sendo os tipos mais comuns de jogos competitivos que conhecemos. Nos casos Win-Win (Ganhar-Ganhar), todos estão envolvidos e se satisfazem da vitória pois não há derrotados, sendo os tipos de jogos cooperativos que privilegiam a colaboração entre os jogadores para ganhos comuns. Por fim, nos casos Lose-Lose (Perder-Perder), nenhum jogador envolvido obtém retorno da resolução do conflito, ou seja, qualquer resolução é pior do que nenhuma. Um exemplo dessa condição foi magistralmente apresentado no filme Jogos de Guerra (Wargames, no original de 1984) no qual um supercomputador militar é colocado para simular conflitos nucleares entre potências, para sempre concluir o jogo em um holocausto nuclear. E exclama: “Um jogo estranho. O único movimento vencedor é não jogar”. 16 Quarta Exposição: Círculo Mágico do Contexto Nossas investigações acerca dos jogos devem ter um ponto de partida circunstancial para que, além de compreendêlos como fenômenos, possamos criá-los e desenvolvê-los. Até aqui, compreendemos que jogos estão intrinsecamente relacionados com a evolução das sociedades humanas, mas pouco é dito do reconhecimento do jogo enquanto processo segundo seus limites dentro dos próprios grupos sociais. É corriqueiro vermos os jogos etiquetados com dois adesivos redutores: 1) jogos são X ou 2) tudo é jogo. Tais simplificações em nada nos ajudam, pois conferem aos jogos essências que não lhes caracterizam e pelo contrário, os colocam hierarquicamente ou abaixo de outras atividades ou pior, como uma ubiquidade banalizada da qual nenhuma profundidade pode ser obtida. Para nossa alegria, no século XX, os estudos sobre os jogos sob uma perspectiva cultural por Johan Huizinga e Roger Caillois consideraram o ato de jogar além da matemática e dos resultados de conflitos e conferiram aos mesmos uma relevância histórica singular. Jogos só ocorrem como contextos devidamente delimitados por seus participantes, observadores de sua interação no tempo e no espaço. Huizinga identificou no jogar um estabelecimento DA cultura e não um estabelecimento NA cultura, ou seja, promoveu certa controvérsia tentando esclarecer em seu livro Homo Ludens, de 1938 o que o jogo significa e quão suficiente é para explicar determinados comportamentos sociais. Além de expor as nuances na caracterização de atividades tidas como jogos a partir da polissêmica palavra play (ou Spiel, do original em alemão), o historiador holandês se dedicou a investigar o jogar nas mais variadas ocorrências: das manifestações na natureza, passando pelas relações com a lei, as guerras, o 17 conhecimento, a poesia, a filosofia e a arte. Para Huizinga, cinco aspectos caracterizam o jogar (abaixo em inglês para evidenciar o problema da tradução do termo): 1. Play is free, is in fact freedom. 2. Play is not “ordinary” or “real” life. 3. Play is distinct from “ordinary” life both as to locality and duration. 4. Play creates order, is order. Play demands order absolute and supreme. 5. Play is connected with no material interest, and no profit can be gained from it. Embora atualmente possa sofrer críticas quanto aos fundamentos apresentados (pois jogos eletrônicos só iriam aparecer vinte anos depois) a lista acima sintetiza um pensamento sobre os jogos que os permite se manifestar em um locus distinto da realidade. Desse modo, nosso ponto de partida é na verdade um plano, circular, no qual o jogo transcorre e fora do qual estamos cientes de nossa condição humana, limitada e cotidiana. Chamamos esse espaço de potências simbólicas de “Círculo Mágico” e sobre ele iremos construir nossos jogos. Os autores Eric Zimmerman e Katie Salen expressam muito bem os fundamentos do termo em seu famoso livro Rules of Play, de 2003, no trecho que traduzo: “(...) o termo é usado aqui como uma simplificação à idéia de um lugar especial no tempo e no espaço criado pelo jogo. O fato de que o círculo mágico é apenas isto – um círculo – é uma característica importante este conceito. Como um círculo fechado, o espaço que ele circunscreve é fechado e separado do mundo real.” (SALEN & ZIMMERMAN, Rules of Play, 2003 p.95) Ao entrar no jogo, o jogador acata o contrato contextual de seguir as regras estabelecidas no Círculo Mágico sob a pena de ser preterido na brincadeira e assim se ver expulso dele. O círculo não existe propriamente como um desenho no chão: consolida-se na participação dos jogadores, que segundo o outro autor, Roger Caillois, ira perceber o jogo sob quatro diferentes categorizações: • Agon, ou competição. Quando se estabelece vencedores e perdedores. • Alea, ou sorte. Quando os resultados não podem ser previstos mas ditados pelo acaso. • Mimicry, ou imitação. Quando se interpreta personagens e suas atitudes. • Ilinx, ou vertigem. Quando se altera a percepção e os sentidos. 18 Desse modo, criticando a superstimada atenção que Huizinga deu a competitividade nos jogos, o sociólogo francês em seu livro Les jeux et les hommes, de 1958, amplia o sentido de jogar para uma atividade estruturada baseada em regras (o ludus do jogo) contrapondo uma atividade desestruturada baseada em diversão (a paideia do jogo). Ambos os conceitos estão presentes em muitas atividades humanas que não são jogos, mas nestes últimos se observa uma recorrente tentativa de alcançar a paideia por meio do ludus. Ou seja, de por meio de brincadeiras até então sem finalidade aparente além do brincar, se chegar a resultados quantificáveis cuja experiência possa ser compartilhada pelo contexto. Quinta Exposição: Triângulo das Ênfases na Criação: temática, regras e experiência Conforme nossa compreensão dos jogos avança geometricamente, podemos nos apropriar de formas também geométricas para exemplificar relações que precisam ser estabelecidas para que o jogo aconteça. Partindo do Círculo Mágico, que delimita as apropriações de tempo e espaço para o jogo, passaremos pela tríade das considerações prévias que orientam a ênfase do game designer no que tange as oportunidades de criação. Afinal, não basta ao game designer ter boas ideias e achar que elas serão suficientes para que o jogo milagrosamente divirta: é imprescindível considerar um encadeamento lógico que garanta ao jogo se estabelecer com profundidade na vida dos seus jogadores. O triângulo que resume as ênfases de criação deve antecipar a produção com algumas questões que resolvidas, irão caracterizar uma 19 identidade para a obra, como produto e como processo. Cada elemento no triângulo evoca influência diretamente em outro elemento, garantindo a tríplice disposição uma importante dinâmica para a superfície do jogo: Temática: Requer de experiência e explica as regras. Temática corresponde ao conjunto de assuntos cobertos no jogo de modo a evidenciar como o jogo deve ser participado. Como jogos apresentam conteúdo diverso, as temáticas também deveriam ser variadas. No entanto, como jogos lidam com simplificações dos valores do cotidiano, as temáticas acabam sendo excessivamente recorrentes. O importante de se pensar em temáticas inovadoras é que como as regras são explicadas pelos assuntos, novas e interessantes situações de escolha podem ser evidenciadas. Regras: Definem a experiência e justificam a temática. Regras correspondem ao conjunto predeterminado de ações que podem ou não ser executadas nos jogos de modo a premiar ou castigar a conduta do jogador. De acordo com as regras, a percepção do jogo pelo jogador pode mudar, e assim, a experiência do jogador se torna particularíssima se comparada com a de outros jogadores. O importante de se pensar em regras coerentes é que as experiências são delimitadas pela profundidade das disposições lógicas apresentadas como instruções do jogar, logo, a atividade se apresenta instigante. Experiência: Satisfaz à temática e torna coerentes as regras. Experiência corresponde ao conjunto de sensações obtidas antes, durante e mesmo depois da participação no jogo, sendo a principal conquista do ato de jogar. Todos os projetos de jogos buscam estabelecer em seus jogadores experiências memoráveis, seja pela habilidade no entendimento e ação coerente com as as regras, seja pela inépcia em se alcançar os objetivos propostos aceitando uma derrota momentânea. É preciso que o jogar produza sensações positivas e negativas para valorizar as temáticas e que tenha protocolos de uso coerentes com os assuntos apresentados. O importante de se pensar em experiência como principal consequência da relação entre temática e regras é permitir ao jogador a oportunidade de refletir sobre suas próprias decisões e ações. Por se tratar de um triângulo, fica aparente a nossa incapacidade de se equilibrar o mesmo de modo a evidenciar mais de uma ênfase apontando para cima. Girando o triângulo para a direita ou para a esquerda, podemos estabelecer novas ênfases ao nosso jogo, orientado ao uso para evidenciar sua temática ou suas regras. No entanto, sendo uma ou outra ponta destacada como ápice do jogo, ela terá obrigatoriamente de contar com o suporte e influência das duas outras. 20 Sexta Exposição: Quadrado Fundamental no Desenvolvimento: estética, narrativa, mecânica e tecnologia Enquanto o Triângulo das Ênfases resume as três principais orientações do game designer em relação ao jogo quando criado, quatro fundamentos irão reger o desenvolvimento do mesmo. Para serem usufruidos como obras expressivas, os jogos apresentam ao jogador a apreciação de resultados de pensamento meticuloso em escolhas justificativas que lidam com o teor do conteúdo e de como esse conteúdo é conformado. Os fundamentos inferiores do quadrado, mecânica e tecnologia, sustentam os fundamentos superiores, estética e narrativa. O jogador é capaz de reconhecer todos os quatro fundamentos em seus jogos, mas no momento de emissão de uma crítica, depende mais das relações interfaciais dos elementos superiores (a superfície do jogo) do que da solidez dos elementos inferiores (o lastro do jogo). Observe doravante os diálogos entre os jogadores que constantemente remetem à representação audiovisual e às histórias construídas no ato de jogar e compare com os diálogos entre outros jogadores, que constantemente remetem ao uso de recursos técnicos e à qualidade das condições de uso. Perceberemos que as motivações dos primeiros jogadores irão de encontro ao conteúdo apresentado e as motivações dos segundos, irão de encontro à forma pela qual essa apresentação ocorre. Por isso, para estabelecer um Círculo Mágico enfático em termos de experiência, regras e temática é preciso substanciar as escolhas sobre quaisquer componentes que fundamentem a estética, a narrativa, a mecânica e a tecnologia presentes no projeto. Estética: A estética do jogo compreende a qualidade representacional dos seus elementos conteudísticos em termos de sedução dos sentidos. Quando 21 nos referimos à estética, não estamos discutindo o jogo pela sua "beleza" ou "verdade", como aprendemos com a filosofia, mas especialmente estamos discutindo o jogo pela sua capacidade de iludir o jogador fazendo-o acatar o contrato de participação. A estética do jogo deve ser característica o suficiente para impelir o jogador no engajamento dos problemas a serem resolvidos e portanto, sugerem ao jogo sua unicidade, quando muito semelhantes entre si são os demais fundamentos. Narrativa: A narrativa do jogo compreende a sequência lógica de eventos encadeados no tempo e no espaço do jogar, sejam eles diacrônicos (anteriores a participação) ou sincrônicos (durante a participação). A narrativa pode se apresentar embutida ou emergente e mesmo que o jogo não conte com a primeira, sempre apresentará a segunda. Como nossa cultura privilegia o conhecimento transmitido, e a melhor forma de transmitir é pela reportagem, a narrativa cumpre um importante papel para que haja interesse do jogador pelas consequências de suas ações no tempo e no espaço do jogo. Mecânica: A mecânica do jogo compreende a coleção de disposições cabíveis de serem operadas pelo jogador para solução adequada de um problema proposto, normalmente, da interpretação de padrões a serem reconhecidos e interpretados. O termo nos remete a parte da física que dá conta dos fenômenos observados nos objetos a partir de forças e deslocamentos e também da engenharia, na qual a acomodação de peças entrosadas permite transformar trabalho em resultados intencionados. Nos jogos, a mecânica resulta especialmente no alinhamento das regras de modo a tornar o processo do jogo uma atividade interessante, respondendo pela noção funcional das ações envolvidas. Tecnologia: A tecnologia do jogo compreende a totalidade de sistemas, máquinas, ferramentas, técnicas e práticas cuja manifestação dá ao jogo sua substancialidade. Conforme as ferramentas, técnicas e práticas se modificam evolutivamente no decorrer dos anos, compete ao game designer determinar dos cenários de produção a melhor maneira de abordar um determinado tipo de jogador. Embora com os jogos eletrônicos a tecnologia se apresenta indicernível do modo pelo qual ele é participado, é preciso pensar tecnologia não como finalidade em si, mas como possibilidade decorrente de uma atenção ao público e seus contextos. Tecnologia não determina a qualidade da experiência do jogador, somente indica sobre qual técnica o jogo como processo será construído e participado. Assim como em nosso Triângulo de Ênfases, é possível girar nosso quadrado para direita e para esquerda, observando novas superfícies e lastros. Jogos que apresentam sua mecânica e sua estética amparadas pelo peso de narrativas e tecnologias não são raros, bem como não são raros jogos cujo desenvolvimento colocou narrativa e tecnologia acima da estética e da mecânica. No Quadrado Fundamental do Desenvolvimento, conforme o apresentamos, colocamos maior responsabilidade na mecânica e tecnologia porque jogos lidam mais com escolhas interessantes permitidas pela configuração dispositiva do que com histórias reativas adornadas por balangandans que em nada colaboram com a experiência do jogo. Como seguimos com nossos estudos uma linha mais ludológica do que narratológica, nosso quadrado pode deitar de lado, mas nunca poderá ficar de cabeça para baixo. Comentaremos essa e outras abordagens em exposições seguintes. 22 Sétima Exposição: O Polígono do Game Design Vamos reunir agora toda nossa geometria compondo um diagrama elucidativo de como um locus, ênfases e fundamentos podem ser articulados para a criação e o desenvolvimento dos jogos. O polígono resultante que ilustro, confere conexões interessantes que podem ser investigadas de modo a nos permitir a produção de obras expressivas e interessantes. No entanto, é preciso que assumamos alguns termos para evitar confusões entre as liberdades e restrições normalmente encontradas nos projetos de jogos. O primeiro termo que iremos desmontar é o miolo essência do jogo em sua produção, ou seja, o game design. As coisas complicam porque o Homo Faber e o Homo Ludens não concebem o mundo da mesma forma, o que na semiótica chama-se Unwelt (ambiente, no original alemão), ou seja, o fato de que, mesmo partilhando o mesmo ambiente, participam de mundos completamente diferentes. Para o Homo Faber, design se aplica ao projeto de “coisas” materiais e de então percebe o jogo como produto. Para o Homo Ludens, design se aplica ao projeto de “não-coisas” imateriais e de então, percebe o jogo como processo. O paradoxo reside em como encontramos o design no design de jogos. Sabemos como encontrar o jogo no projeto do jogo (que mesmo não definindo já delimitamos). Para encontrar o design no game design, devemos procurar por perto, mas especialmente nos arcos e cordas do polígono acima. Afinal, um polígono tem muitos lados e o que nos importa é como podemos dividir uma superfície com ele. Design no game design Quando falamos sobre o design, consideramos uma área de conhecimento de características transdisciplinares e vocação 23 tecnológica porque surge com a sistematização da tecnologia voltada para a produção de bens e serviços. Assim sendo, o design no game design diz respeito à inserção de teorias de saberes distintos para solução de um problema metodológico que ao término dará origem a uma “coisa” chamada jogo e uma “não-coisa” chamada jogar. A simultaneidade é antes de um problema uma bênção: como lidamos com o jogo segundo sua presentificação consoante com o espírito histórico vigente, também lidamos com o jogo nas relações culturais que deles podem ser percebidas. O design no game design, desse modo, é mais uma iniciativa filosófica que investiga as motivações por trás das atividades que ele convida a participar do que somente sua materialidade e imaterialidade. Por isso, para se alcançar profundidade no gesto projetivo, é preciso realizar-se das... Considerações históricas do design como termo e área, para sabermos como dialogar os assuntos com os nossos interlocutores da forma mais sincera possível. Artes visuais aplicadas e das ciências sociais aplicadas, para instituirmos no projeto valores de barganha entre as tecnologias de representação e os conhecimentos sociológicos pragmáticos do sistema e dos usuários. Expectativas de um design do mundo objetivo, considerando a proxemia, ou relação afetiva que os usuários guardam dos produtos que manipulam no plano da atualidade. Expectativas de um design do mundo subjetivo, considerando a práxis, ou atividade teórico-prática, capaz de transformar as circunstâncias no plano da virtualidade. As questões são mais complicadas do que aparentam porque para os jogos, o design se responsabiliza pela sua instrumentalização do jogo e pela maneira como os instrumentos devem ou não ser utilizados. Antes de localizar o designer como o indivíduo que concentra os poderes de como o jogo será produzido, ou seja, criado e desenvolvido, é mais importante que ele se atenha ao jogo pelo jogar, uma ação que dependerá da qualidade das relações entre sistema e usuário. Como ações e relações ocorrem entre os elementos do jogo, é também responsabilidade do designer em sua mediação dar conta das necessidades do projeto. Em um primeiro momento o design no game design está anterior ao projeto, justificando-o. Em um segundo momento o design no game design está no projetar, realizando-o. 24 Figura 11 - A Black Lotus, por apenas US$ 1788,22 a unidade! Uma pechincha! Como exemplo de como essa relação entre objetividade e subjetividade do ponto de vista do design de um jogo pode gerar situações curiosas, apresentamos a carta de um jogo de cartas colecionável (e comerciável) chamado Magic: The Gathering, criado por Richard Garfield em idos de 1993, conhecida como Black Lotus. Atualmente, por contar com um sistema de expansão constante de seus componentes, o jogo apresenta mais de uma dezena de milhares de cartas únicas, das quais algumas são tidas como muito raras e portando, muito caras. Como o jogo passa por revisões constantes, o excesso de relações faz com que algumas cartas apresentem poderes tidos como excessivos e por isso, um jogador que contasse com tais cartas poderia vencer quaisquer outras (ou ter uma vitória facilitada) pela sua simples posse. Embora não possam ser retiradas do compêndio oficial, as tiragens de tais cartas são mínimas, o que as faz valer algumas centenas de dólares. A Black Lotus, por exemplo, custava em valores de 2010, US$1.788,22 em sua versão B. Do ponto de vista do design do jogo por sua objetividade, cada carta é uma fração de conjuntos de outras cartas, todas elas feitas de pedaços de papel cartão impresso por policromia, medindo 88mm x 64mm, empacotadas e distribuídas em lojas e por contrabandistas especializados em abrir os pacotinhos e montar coleções específicas. As cartas são organizadas pelo jogador que tenta fazer os valores hierárquicos das suas cartas serem melhores que os valores hierárquicos das cartas de seus adversários durante as partidas. Eis nosso arco inferior do polígono do game design considerando temática, mecânica, tecnologia e regras. Do ponto de vista do design do jogo por sua subjetividade, cada carta é uma entrada para um universo 25 fantástico de relações humanas previstas, mas não determinadas, nas quais pressões de ofertas e demandas do capitalismo permitem um único pedação de papel valer mais do que o computador usado no projeto de todas as cartas. Eis nosso arco superior do polígono do game design considerando estética, experiência e mecânica. Etapas de um projeto Compreendida a dicotomia, consideremos a sequência de eventos que encadeados transforma uma ideia em uma concretude. Quando falamos de projeto, definimos um médodo que será viabilizado por técnicas. Método pode ser comparado com um caminho e as técnicas com os veículos para se percorrer o caminho. Há caminhos longos e curtos e veículos rápidos e lentos. Caminhos esburacados podem exigir um veículo lento e com boa tração. Caminhos muito sinuosos demandam maior atenção pois uma agilidade excessiva pode tirar o veículo do traçado... A escolha do melhor caminho possível chama-se metodologia e a escolha do melhor veículo possível chama-se tecnologia. Percorremos uma série de caminhos para realizarmos uma viagem e toda viagem tem um destino bem definido. Como os caminhos podem variar durante qualquer viagem, é importante demarcarmos nos nosso progresso por etapas. Cada etapa é um posto que nos permite (re)avaliar o nosso percurso a cumprir e a escolha dos (próximos) caminhos e dos (próximos) veículos, daí compreender que qualquer projeto irá contar com um mínimo de etapas de nosso primeiro passo ao nosso sucesso em chegar onde quisermos. Etapas de uma simples metodologia de projeto: • • • • • proposta pesquisa produção testes aplicação 26 Figura 12 - Em japonês fica tudo mais fácil! Muitas atividades podem ser encaradas como desafios metodológicos, bastando para nós definirmos a etapas e as técnicas a serem envolvidas para cumprimento dos nossos objetivos. Cozinhar é um exemplo, pois assume que uma mistura desorganizada de ingredientes, por mais saborosos que sejam individualmente, vão culminar em uma gororoba repulsiva. Cozinhar, muitos dizem, é uma arte. Mas como projetistas consideramos que cozinhar envolve uma série de técnicas e tecnologias que transformam matéria orgânica em refeição levando em conta uma expectativa do cozinheiro. Culinária, é uma metodologia. Na culinária diferentes alimentos demandam diferentes tipos de preparo e a habilidade do cozinheiro em descascar, picar, moer, refogar, fritar, flambar, assar e servir faz a diferença entre “um salgadinho de botequim” e a “comida da vovó”, ainda que ambos sejam comestíveis. Minhas incríveis habilidades de cozinheiro me permitem no máximo fazer um miojo. Eis minha proposta e com ela definida vou ler na embalagem de plástico como faço aquele pedaço de massa sólida se transformar em um molengo aglomerado de fios amarelos. Essa foi minha pesquisa e dela começo a produção, colocando os ingredientes informados na minha pesquisa nas quantidades e momentos corretos. Depois de certo tempo, avalio o grau de dureza da massa e se satisfatória, instalo no conjunto o pozinho do tempero, jogo o resultado no prato e devoro. Esta finalização no cumprimento do meu objetivo chamo “aplicação”; e ao conjunto de instruções que segui para chegar ao meu miojo no prato, chamo de “método”. Como-o. E prefiro a comida da vovó. 27 Oitava Exposição: “Hora de se Jogar! Nos Dados” Na oitava exposição os agentes se viam às voltas com o primeiro projeto de jogo enquanto prática, no caso, munidos de dados, não os podendo usar como objetos definidores de resultados de vitória ou derrota pelo acaso, mas como instrumento de promoção de dinâmicas por conta de seu formato e informações obtidas aleatoriamente. O detalhamento dessa atividade conforme anunciada pode ser encontrado na seção que lida especificamente com as práticas. Cabe destacar que normalmente há o estranhamento da atividade, pois os jogadores nem sempre sabem lidar com a revisão das particularidades de algo banal como um poliedro regular usado sempre da mesma maneira: para obter um valor pela sorte. O objetivo da exposição, portanto, é promover um pensamento lateral sobre como jogos podem ser dinamizados de formas inusitadas, considerando causas e consequências. Nona Exposição: Ludologia versus Narratologia Uma das principais confusões feitas a respeito de jogos é compará-los em equivalência a histórias que contam, ou seja, interpretá-los como se fossem somente veículos oportunos para a sua própria coleção de eventos relatáveis. O problema não é exclusivo de uma má impressão divulgada pela mídia não especializada do presente, que sobrepõe conteúdo ao modo como o conteúdo é percebido: no passado, como forma de tornar coerente a interação dos jogadores com os sistemas dos jogos, estes recebiam uma pesada carga simbólica de situações que antecipavam e convidavam a ação, ou apareciam a partir dela. Dessa forma, sua situação dicotômica em essência de 28 interesse dos seus jogadores convida a uma abordagem investigativa: seriam jogos atividades importantes por si, pelo lúdico evidente, ou somente um acessório da necessidade humana de construir e partilhar experiências pela narração de fatos? Tomemos daí o problema sobre duas definições de perspectiva investigativa: a ludologia e a narratologia. Ambas as linhas de estudo admitem uma teorização dos jogos com base em suas manifestações tipificadas, mas divergem em relação aos motivos e consequências dos mesmos segundo bibliografias e orientações ideológicas e mesmo filosóficas. A ludologia surge da lacuna na percepção dos jogos segundo sua importância como processo de envolvência do jogador com regras e procedimentos. Até a década de 1980, jogos não eram percebidos de modo independente, sendo estudados a partir de outras áreas de conhecimento como História e Antropologia, conforme vimos os trabalhos de Johan Huizinga e Roger Caillois... Mas em virtude de uma entrada progressiva dos jogos eletrônicos no cotidiano da sociedade, se revelou a ludologia essencial para explicar comportamentos e a evolução das formas do jogar. Oriundos da área das ciências sociais aplicadas, os ludólogos, como chamados, esperam sujeitar o jogo ao escrutínio das ciências humanas, reclamando para tais sistemas sua importância histórica, psicológica e cultural. A ludologia considera o jogo como forma de expressão característica da produção de sentido de uma sociedade e portanto, importante pelas relações que estabelece com os jogadores pela forma pela qual o conteúdo dos mesmos é apreendido. Seu principal representante acadêmico é Gonzalo Frasca. A narratologia, por sua vez, é um pouco mais antiga e remonta aos estudos sistemáticos da narratologie de Tzvetan Tudorov, por volta dos anos de 1960, baseado nos formalistas russos como Vladimir Propp e portanto, na poética de Aristóteles: se a narração é um sistema construído, pode ser considerada de modo estrutural, da qual se separa discurso de história. Assim sendo, foi natural que os estudos das narrativas, inicialmente voltados para a literatura e para o cinema sob o viés da narratologia, acabassem por chegar aos jogos eletrônicos, destacando dos sistemas eletrônicos e sua característica notoriamente interativa uma oportunidade investigativa. Oriundos da área da comunicação e da sociolinguística, os narratólogos, como chamados, esperam sujeitar o jogo aos escrutínios das artes comunicacionais, reclamando para tais sistemas sua importância como vetor da expressividade de seus autores. A narratologia considera o jogo com meio pelo qual as histórias podem ganhar novos e profundos significados e portanto, importante pelas relações que estabelece com os jogadores pelo o conteúdo dos mesmos, sendo as maquinações das regras e procedimentos menores se 29 comparadas a narrativa na qual os interatores estão envolvidos. Sua principal representante acadêmica é Janet Murray. Ainda que concordem com a importância de se estudar os jogos além de sua tecnologia (pois normalmente os estudos sobre os jogos de modo qualitativo são corriqueiros na matemática com a teoria dos jogos e na computação com a automação e a representação gráfica), ludólogos e narratólogos costumamam se entregar aos sopapos terminológicos e ideológicos sempre que tem oportunidade de se encontrar. Jogos e Histórias lidam com semelhantes estruturas de agenciamento, mas em essência, consideram a escolha decisória de seus atores de forma distintiva. Na ludologia, jogos são matrizes de decisão na qual a ação do jogador determina novas ramificações de sentido no jogo. Em termos plásticos, esse entendimento se aproxima do segundo labirinto como o observado no diagrama acima: de cada ponto permitido, cabe ao jogador na consideração de seus interesses particulares, optar por uma ação dentre possíveis. Conforme os jogos apresentam a questão da escolha de modo diferente e em profundidades consequentes distintas, um estudo das escolhas é determinante para entender como o jogo pode influenciar os estados de espírito dos seus participantes. Nesse caso, não é tão fundamental a camada narrativa dos jogos, pois ela não interfere diretamente em como as regras se apresentam ou como os objetos do sistema irão se integrar qualitativamente por relações internas e com o ambiente. Não importa ao jogo de xadrez que suas peças sejam feitas de vidro, madeira ou caracterizadas como soldadinhos de chumbo pois o jogo será o mesmo em essência, pois suas regras independem da narrativa embutida ou emergente. Na narratologia, jogos são canais de expressão na qual a ação do jogador determina um fluxo de participação aristotélica interna ao jogo, por início, meio e fim. Em termos plásticos, esse entendimento se aproxima do primeiro labirinto como o observado no diagrama acima: de uma situação prévia ao convite a conclusão da demanda, o interator passa por uma série de percalços que dão a ele um entendimento encadeado dos eventos. Mesmo que haja subversão na ordem dos acontecimentos, eles sempre trarão o conhecimento e reconhecimento de causalidades previamente estabelecidas e a qual o interator não pode corromper. Por mais elaborada que seja a interrelação entre os eventos, se recontados, sempre evocarão uma finalidade rígida de exposição, argumentação e descrição. No entanto, os narratólogos defendem que a forma pela qual a história é desenvolvida nos jogos, as relações entre sistema e jogador são profundamente adulteradas. Assim, em um jogo de xadrez, saber das motivações entre reis, rainhas e bispos, da profunda amizade entre os peões e da história de superação dos cavalos brancos e pretos que conseguem saltar sobre seus adversários com elegância, traria ao jogo outras percepções das regras e dos procedimentos. 30 Para fins de estudo, tanto a ludologia quanto a narratologia dependem de uma posição estratégica em relação ao projeto. Alguns jogos suportam a simplicidade excessiva e descaracterizante enquanto outros precisam de envolvimento afetivo para serem melhor compreendidos por seus jogadores. Como tenderemos para uma abordagem mais ludológica do que narratológica, convém destacar as diferenças entre as linhas de estudo para que nossos projetos não sejam excessivamente voltados para situações onde prevalece o enredo pois o que nos importa no momento é chegar a resultados a serem participados como jogo e dos quais, de uma maneira ou de outra, irão emergir narrativas incríveis. Mas isso é uma decorrência e não um fim... Para a realidade do presente público, que me perdoem os narratólogos, mas ludologia é fundamental. Décima Exposição: Sistemas e Usuários Quando falamos em jogos, falamos em formas de relacionamento entre componentes que assemelham ao funcionamento de uma máquina: de um lado se colocam sensações, e do outro saem escolhas. Pareceria uma máquina de produzir experiências, caso existisse uma. Como toda máquina, o jogo deve ser orientado para permitir que suas peças funcionem juntas de modo integrado para benefício de um indivíduo muito especial que chamaremos usuário. A visão sistêmica do jogo para participação de seus 31 usuários lembra outras atividades nas quais há necessidade de uma mediação específica de um profissional que entenda tanto daqueles que usarão a máquina, quanto da tecnologia necessária para a máquina cumprir o que se espera dela. Esse profissional é chamado designer, e como vimos, dele depende o projeto do jogo em atenção aos controles, fluxos, ambiente e adaptações que emergem do sistema, e em atenção aos comportamentos, atividades, tarefas e ações que partem do usuário. O diagrama acima exemplifica esse fluxo constante de alimentação e retroalimentação entre sistema e usuário, modificado ligeiramente por mim de um diagrama original feito por Fred Von Amstel do site Usabilidoido (www.usabilidoido.com.br). Para compreender melhor como jogos envolvem sistemas e usuários, tomemos suas definições conceituais. Conceito: sistema Sistemas estão por toda parte e mesmo dentro de nós: partes organizadas para cumprimento de uma função especifica. A ideia de sistemas como conjuntos integrados é facilmente percebida nos jogos devido a sua complexidade variável e a presença de um objetivo geral a ser alcançado. Apresentam estrutura, comportamento e interconectividade e embora tenham sido definidos por diferentes filósofos gregos do passado, somente com René Descartes aprendemos a considerar sistemas como coisas que envolvem o pensar sistematizante e agregador, o que foi posteriormente desenvolvido conceitualmente por Robert Wiener e Ross Ashby para aplicações na computação e cibernética, ao final dos anos de 1940. De modo resusmido, um sistema é um conjunto integrado de: • • • • Objetos Atributos Relações Ambientes Todos os sistemas estão divididos em componentes objetos, que apresentam características notórias como dimensão, forma, cor, textura, quantidade... que por sua vez permitem que entre eles se estabeleça relações internas que possasm ser valoradas e hierarquizadas na ocorrência em determinado ambiente. Mesmo que um sistema lide com componentes subjetivos, eles irão se integrar conforme os termos acima. Por exemplo, um jogo de xadrez é composto de dois exércitos antagônicos compostos por diferentes peças (objetos) que guardam diferentes características formais qualitativas e quantitativas (atributos) que se distribuem e percorrem o espaço do tabuleiro de modo a realizar condições de posições intencionadas (relações) que irão determinar e são determinadas pela apresentação do contexto (ambiente). 32 Conceito: usuário Usuário é como chamamos aquele que em algum momento faz uso de algo. Como o termo consumidor nem sempre era percebido como quem consumia (mas de quem no século XX começou a consumir de modo influenciado e sistematizado nas barganhas de compra e venda) os usuários surgem com as investigações ergonômicas de quem opera determinado dispositivo, sobretudo os informáticos. Desse modo, usuário nos parece ser um termo bem restrito a computação, aparelhos de telecomunicação como telefones celulares e drogas (mera coincidência...). Ao tratarmos de sistemas, recebem a denominação de operadores (quando podem intervir no sistema) ou audiência (quando não podem). De modo resumido, um usuário é alguém que participa de... • Produtos • Processos Usuários e consumidores nem sempre são a mesma pessoa, ainda que ambos entrem em contato direto com um produto. Toma-se no uso de softwares o usuário como usuáriofinal, de modo a diferenciá-lo daqueles que concebem e permitem o sistema. Essa especificidade não nos restringe no momento, pois trataremos usuários e usuários-finais como jogadores, pois consideramos os mesmos envolvidos com a participação não somente de algo como um produto, mas principalmente de um processo característico desse algo que chamamos de “jogo”. Diferentes jogadores apresentam diferentes níveis de dedicação ao jogo e trataremos de suas expectativas em próxima exposição. Por hora basta-nos salientar sua importância pois todo o sistema deve ser voltado para dialogar com o seu usuário da melhor maneira possível. Quando isso acontece, temos uma sinergia, ou seja, o todo construindo resultados que não seriam obtidos independentemente por suas partes. É pela sinergia que podemos estabelecer a qualidade de uma integração entre sistema e usuário. Isso explica o sucesso de muitos jogos cujos aspectos isolados não satisfazem as críticas mas quando integrados, mostram-se excepcionais. Décima Primeira Exposição: Elenco de Elementos Formais: Procedimentos, Regras, Recursos e Conflitos Todo jogo apresenta claramente um objetivo, que resume a motivação dos jogadores em direção a uma meta a ser alcançada. Para isso, procedimentos, regras, recursos e conflitos 33 precisam ser determinados, ou o jogo se apresenta incompleto pela insuficiência de parâmetros para que haja interesse na atividade. Sem procedimentos, o jogar derrapa pela falta de parâmetros de monitoria do que é necessário para a atividade. Sem regras, o jogar capota pela falta de parâmetros que permitam aos jogadores acatar ou refutar determinados comportamentos e atitudes. Sem recursos, o jogar paralisa-se pela falta de parâmetros que informem aos jogadores se estão distantes ou próximos do cumprimento dos objetivos. E sem conflito, o jogar inexiste pela falta de parâmetros que tornem a situação original um problema que convide a uma solução engajada por parte dos jogadores. Dessa forma: Procedimentos: São as tarefas necessárias para se cumprir as demandas apresentadas pelo jogo, ou seja, as ações que o jogador deve direcionar ao sistema para cumprir os objetivos propostos. Regras: São as determinações e impedimentos para se cumprir as demandas apresentados pelo jogo, ou seja, o que pode e o que não pode ser feito pelo jogador de modo comportamental e por atitude. Recursos: São os ativos que permitem que o jogo seja percebido pelas escolhas estratégicas envolvidas na sua manutenção, ou seja, tudo que garante ao jogador, pela sua administração, benefícios em direção ao cumprimento dos objetivos propostos. Conflitos: São as situações obstaculosas e os dilemas que impelem a resolução do desequilíbrio original do qual todo jogo tem início, ou seja, são as situações que dependem de solução para que o jogo apresente resultados quantificáveis que irão consagrar o melhor jogador dentre os competidores. Quando amparados pela dedicação dos autores na atenção ao elenco de elementos formais, os jogos se destacam qualitativamente uns dos outros, conforme procedimentos, regras, recursos e conflitos são estabelecidos criativamente. Trata-se, sobretudo, de um ensaio de combinações para que o ato de jogar seja interessante ao jogador como uma melodia é interessante ao instrumentista, mesmo contando este unicamente com o arranjo de restritas notas musicais em sequência. O que torna uma música agradável aos ouvidos não é portanto um excesso de tons, mas a maneira adequada de colocar os sons em sequência. 34 Figura 13 - Um casamento se aproxima... Como proceder com a gravata? Ao falarmos de procedimentos, estamos atentando para aquele que se apresentam de forma direta na ação de jogadores mas também daqueles que ocorrem nos bastidores dos jogos eletrônicos como automatismos que fogem da nossa certeza imediata e na qual confiamos pelas regras. Como os jogos lidam com alterações próprias de seus estados e respectiva monitoria de seus jogadores para perceber o que mudou e porque, é importante que tenhamos atenção nas facilidades de procedimentos intuitivos e que são pensados de modo natural pelos jogadores. Pense na imagem acima e considere o método sobre duas perspectivas: como a do jogador analógico que vê um salto da gravata emaranhada para a gravata pronta para ser usada como trapaça; e a do jogador digital que vê no salto do emaranhado da gravata para a gravata pronta para ser usada como agilização: o primeiro pode se sentir tolido da monitoria enquanto o segundo estará agradecido da agilidade. Para considerar os procedimentos de um jogo de modo correto, pense em como a informação deve ser administrada, se antes ou depois e de como ela irá impactar o processo do jogo se excessivamente simples ou complexa. 35 Figura 14 - O que pode e o que não pode As regras do jogo definem o entendimento das coisas que acontecem e sobre as quais os jogadores irão se estabelecer durante o jogar. Muitos jogos estão baseados mais em exceções do que em certezas, o que é um risco para sua manutenção de recorrência. Vale dizer que as regras de um jogo são um contrato e como tal, devem admitir certa flexibilidade, mesmo que isso não seja uma orientação direta dos seus autores. Entretanto, existe um acordo mais poderoso que qualquer manual que se chama “Regras da Casa”, ou seja, o contexto é o que irá determinar o que vale e o que não vale para os seus jogadores. Regras servem para definir dos objetos suas relações e servem para restringir dos jogadores suas ações, como filtros. Mesmo que nossa sociedade esteja amparada pelo bom senso, é importante ser claro e objetivo quando instruímos por meio de regras: na imagem acima, a anedota é justamente o bizarro como consequência do que não se pode fazer com um bebê. Ainda assim, você e eu conhecemos pessoas que não dão a mínima para advertências e proibições, as quais brechas nas regras são exploradas sem dó. 36 Figura 15 - Recursos são sempre finitos... Os recursos nos jogos podem ser de diferentes naturezas: tentativas, peças, pontos, dinheiro, ações, implementos, tempo... enfim, quaisquer elementos que são escassos ou que precisam de administração contínua de seus valores. Muitos jogos pecam pelo uso excessivo de recursos, e pior, pela micro administração dos mesmos. Dependendo do jogador, longe de uma sensação de controle sobre suas decisões, uma quantidade excessiva de componentes a serem administrados com uma quantidade excessiva de variáveis a serem computadas leva a uma terrível frustração. A administração de recursos, portanto, não deve ser pensada como uma tarefa burocrática, mas como uma metáfora para as implicações de uso. Racionamento e fartura andam juntos, mas cabe ao jogador conquistar pelos seus méritos uma ou outra condição. Recursos são sempre finitos, e nos jogos, sua finitude deve ser um instrumento para instigar soluções e não para penalizar as decisões indevidas. Como nos Pinos Mágicos Elka, as peças possuem diferentes cores e quantidades de furos e saliências, fato que aquele que os deseja montar deve supor previamente. Caso contrário, o objeto construído será uma monstruosidade multicolorida e mambembe com diversas faltas. 37 Figura 16 - O maior dos conflitos Conflitos não precisam ser pareados, e sua dinâmica mais contundente, ocorre justamente aos trios. Como na teoria da composição fotográfica, a “Regra dos Ímpares” pode ser instalada nos conflitos presentes nos jogos de modo a evidenciar-lhes um ponto médio entre uma ou outra estratégia, fazendo a balança do poder pender para um lado ou para o outro, de modo interessante. A oposição entre forças característica de muitos jogos tem raízes ancestrais na luta do bem contra o mal, mas pensamentos mais modernos consideram não uma relação binária de ápices, mas sim uma relação espectral de interesses gradientes. Tomemos por exemplo o famoso jogo Janken-pon (ou pedra-papel-tesoura, conforme o conhecemos no Brasil). Nas regras, cada elemento vence e é derrotado por outro, cabendo como procedimento definir previamente qual elemento lançar contra o adversário. Em uma primeira partida, o jogo se apresenta extremamente aleatório, mas com novas partidas, os jogadores antecipam implicações lógicas em suas escolhas e resultados de metaescolhas podem ser previstas entre os jogadores que se conhecem as recorrências de apostas. Outros jogos de conflitos simultâneos são o Micatio (que deu origem ao nosso jogo Porrinha de bar) e o Zerinho ou Um (que se acredita ser originariamente brasileiro). Nos jogos, para se evitar situações nas quais o conflito se aproxime de uma estratégia dominante de uma das partes, é importante que cada elemento possua autoridade sobre outro, mas fragilidade para com um terceiro. Em alguns casos, o conflito é resultante das ações do jogador 38 contra seus oponentes e em outros, surgem das ações do jogador contra o sistema. Cabe ao designer definir nos conflitos resultados condizentes com a profundidade do envolvimento competidor. Décima Segunda Exposição: Escolhas Interessantes Que porta escolher? Que arma usar? Que direção tomar? Durante o processo de jogo, o tempo todo, os jogadores são convidados a tomar decisões, e o que caracteriza o jogo como uma atividade que lhes é importante é o fato deste permitir escolhas que dependendo dos resultados, consagram (ou castigam) quele que escolhe. Sid Meier, famoso game designer dos jogos Civilization e Pirates! define assim os jogos: uma série de decisões significativas. O ato de escolher é um processo mental ponderado, ou seja, fruto de julgamento de méritos de múltiplas opiniões por vezes conflitantes. Algumas escolhas são mais relevantes do que outras, mas dentro do jogo, é comum esperar retornos imediatos daquilo que decidimos. A isso chamamos retroalimentação (feedback, no original em inglês), ou seja, o processo de reinjetar no sistema ações processadas pelas nossas intenções, estratégias e táticas. Na psicologia, a “Teoria das Escolhas” admite que todos nós devemos ter controle de nossas próprias vidas, mesmo que as ecolhas anteriores tenham sido completamente equivocadas. Daí a importância dos jogos como um ensaio de escolhas possíveis e de suas consequências, que podem ser, muitas vezes, desastrosas. Na liberdade de escolher sem sermos afetados fisicamente pelas resultantes, assumimos o papel de quem 39 decide com ímpeto, aproveitando a sensação de segurança que o sistema do jogo é capaz de nos fornecer. Por isso jogos estão presentes em muitas culturas relacionados diretamente à criança em suas brincadeiras, pois é quando começam a compreender que a realidade é feita das soluções circunstanciais de nossas tomadas de decisão. Figura 17 - Múltiplas escolhas, um único resultado? Como? O ato de projetar um jogo também envolve escolhas, algumas muito profundas, fundamentadas em questões ideológicas e filosóficas. Para que um jogo seja projetado, cabe aos seus autores definir previamente em escalas amplas e pontuais regras, procedimentos, recursos e conflitos. A preocupação que o game designer deve ter com as mecânicas apresentadas no jogo é se elas oferecem escolhas condizentes com as expectativas suas em relação aos eventuais jogadores. Jogos lidam com oximoro de liberdade restrita, ou seja, o jogador tem a sensação de escolher, embora seu repertório seja sempre muito mais restrito do que se esperaria da situação em ocorrência similar no plano da realidade. Isso pode ser explicado ontologicamente, pois um subsistema não podem conter todas as mesmas informações do sistema no qual reside. É como um mapa de um território que sempre terá uma escala menor do que 1:1, caso contrário o mapa seria o território, e portanto, porque um mapa? A liberdade restrita presente nos jogos tem como fundamento direcionar as intenções do jogador para previsibilidades de suas ações, ainda que o jogo não seja capaz de dar conta de todas as possíveis ações e repercussões de ações, o designer as deve planejar de modo a providenciar surpresa e prazer. Dessa forma, a sensação de liberdade é muito mais interessante que a completa liberdade. Nas redes de lanchonetes fast-food, por exemplo, é comum encontrarmos aquelas máquinas de sorvetes com apenas dois sabores, normalmente creme e chocolate. A restrição aos sabores, longe de um problema de insuficiência, é uma inteligente solução, 40 pois é mais fácil decidir-se entre creme ou chocolate (ou um sabor misto dos dois, para os indecisos) do que por muitos sabores, e assim, se obter maior agilidade na fila de consumidores. É provável que sorveterias de muitos sabores e coberturas tenham no curto prazo clientes muito mais insatisfeitos com o peso de suas próprias decisões momentâneas. Decidir, para muitos, é uma tarefa árdua. Daí diz-se que em casa de indecisos só pode haver um banheiro. Diferente das sorveterias de muitos sabores e coberturas, o jogador pode retomar o jogo para decidir novamente de outro modo, pois não há ônus ao erro, fora casos no qual será necessário se repetir determinada passagem como punição (ou a compra créditos de acesso, no caso dos jogos de azar e fliperamas). Há uma moderna tendência para jogos menos punitivos, mas falaremos sobre isso mais tarde. No momento, atenderemos que o problema das sorveterias de muitos sabores e coberturas é que elas estão presas ao fato dos seus clientes terem diante de si um problema que na economia chama-se trade off: um conflito de escolha cuja opção exclui as demais. Mantenho meu dinheiro, ou compro um sorvete? E se compro um sorvete de um sabor, não compro o de outro sabor... Como escolher? Esse constante dilema de investimento é observado também entre os produtores de jogos. Havendo tantas possibilidades de jogos a criar e desenvolver, como começar? Para compreender as escolhas de projeto como escolhas interessantes, consideraremos as seguintes necessidades a serem observadas. Workflow Workflow, ou fluxo de trabalho, diz respeito aos termos que precisam ser descriminados para que o projeto do jogo conquiste sua uniformidade de criação e desenvolvimento. Sem um workflow definitivo o projeto é um emaranhado de indecisões que podem comprometer a ideia inicial e assim, atrapalhar todo o time de autores. De modo resumido, workflow vai considerar de modo objetivo uma proposta, um conceito, a criação de aspectos funcionais e ativos e uma orientação de produção e publicação. No ato de projetar um jogo, defina: • Proposta = (tema) • Conceito = (lógica)+(gênero)+(público) • Criação = (ludus, condição funcional: regras) + (paideia, atuação ativa: diversão) • Orientação de produção e publicação A proposta pode ser compreendida como o tema do jogo, sendo o tema, um único assunto principal (um conjunto de assuntos nós chamamos “temática”, e já falamos sobre 41 anteriormente). Temas são constantemente confundidos com gênero, e vice-versa, mas são coisas diferentes. Por exemplo, (quase) todos os filmes do Van Dame lidam com o tema “vingança”. Mas para se vingar, Van Dame usa a batata da perna em saltos espetaculares, o que coloca a vingança na perspectiva das artes marciais, típica de filmes de “luta”. Se Van Dame usasse xícaras de chá envenenado, ainda se vingando pela morte do parceiro/irmão/cachorro/mestre o estaria em uma perspectiva da retidão, típica de filmes de “suspense”. Temas, portanto, podem ser os mais variados, tantos quanto forem os interesses do produtor, mas sobretudo, atendendo ao desejo de seus jogadores, pois há temais mais universais (como vingança, heroismo, caridade, roubo, assédio, amor não correspondido, casamento, nascimento, morte etc.) e temas mais particulares (como corte de cabelo, marca de automóvel, esporte obscuro favorito, festival da colheita do quiabo etc.). O tema, em resumo, é um ponto de partida, não um ponto de chegada. Conceito é a menor unidade de sentido sobre alguma coisa, acordada entre as partes de um contexto. No nosso workflow, o tema será coordenado por um conceito amplo que envolve lógica, gênero e público, ao mesmo tempo e sem hierarquias entre eles. Lógica atende a coesão e coerência do conceito para com o tema. Gênero, como visto acima, vai considerar o repertório de valores e situações que darão lastro para o tema, destacando sua ocorrência em especificidade. Público envolve um grupo de pessoas que (se espera) irá compreender a lógica e o gênero no qual o tema está erigido. No caso Van Dame, faz mais sentido que ele se vingue daqueles que mataram seu parceiro/irmão/cachorro/mestre e não que lhes mande flores perfumadas (o que seria curioso, mas não lógico, no nosso contexto ocidental e belicoso). No mesmo caso, o público que admira a qualidade da interpretação do artista Van Dame irá se satisfazer de vê-lo dar pernadas pelo ar e não de matar seus adversários com chazinhos envenenados travestido de mordomo. A criação dará conta de relacionar tema, lógica, gênero e público em condições funcionais, ou seja, daquilo que é ditado por regras sob condições ativas, ou seja, daquilo que é tido como brincadeira. Vimos com Roger Caillois como ambos os aspectos estão misturados nos jogos, mas cabe ao autor ponderar sobre como um aspecto se entrelaça com o outro. No caso Van Dame, poderíamos ter um jogo de vingança por lutas com adversários progressivos os quais para serem abatidos, deveriam perder certas quantidades de pontos conforme o protagonista os atinge com diferentes tipos de chute. Nas nossas supostas regras, Van Dame retiraria mais pontos dos oponentes sempre que seus chutes se mostrassem mais “poéticos” (com direito a caretas em câmera lenta). Isso tornaria a brincadeira mais enfática, usando comandos nos controles para promoverem outras graças sobre nosso jogo hipotético e só um pouco inovador. 42 A orientação para uma produção e publicação é considerada a importância de se avançar além das ideias iniciais tendo em rumo uma construção, inicialmente prototipada para em seguida ser refinada. Um dos principais entraves à conclusão de projetos é a falta de perspectivas de uso posterior, ou seja, como ninguém joga, o jogo não se manifesta como algo a ser progressivamente melhorado e assim se permitir alcançar outros jogadores. Por isso é importante considerar no trabalho duas abordagens que irão tornar o processo mais controlado. Abordagens Abordar é se aproximar pela borda. É, portanto, diferente de enfrentar, algo que se faz de frente. Usar os flancos para se chegar a um objetivo pode ser mais seguro do que disparar contra um alvo em velocidade total. A criação e desenvolvimento de um jogo por suas escolhas não pode desconsiderar um cenário que se descortina ao lado, em paralelo ao projeto e na ocorrência deste. Daí atenção a duas formas de se alinhar os interesses dos autores com a objetividade do projeto. A primeira forma de abordar o projeto é por meio de uma prerrogativa de totalização. Nesse caso, o jogo é pensado de modo amplo, completo, que vai receber os refinamentos conforme as decisões vão sendo oportunizadas no diálogo. O projeto se mostra semelhante à pintura de uma parede: não usamos um pincel de aquarela, detalhista, mas sim um rolo largo com bastante tinta. Nessa abordagem olhamos para o muro e não para cada tijolo, tendo atenção aos limites de nossa atuação. Chamamos essa abordagem de “Broadstrokes”. Broadstrokes (totalização): • “a estrutura é sempre maior que as partes que a compõe.” • “comendo da casca para o miolo.” • “é melhor arrastar o banquinho que o piano.” A segunda forma de abordar o projeto é por meio de uma prerrogativa de modularidade. Nesse caso, o jogo é pensado de modo sintético, nodal, que vai receber os componentes necessários para sua configuração conforme as decisões vão sendo oportunizadas no diálogo. O projeto se mostra semelhante a um brinquedo de blocos de montar: como as peças se encaixam de diferentes maneiras, diferentes possibilidades de organização irão resultar em estruturas mais sólidas. Nessa abordagem olhamos para cada tijolo e não para o muro, tendo atenção ao foco de nossa atuação. Chamamos essa abordagem de “Buildingblocks”. 43 Buildingblocks (modularização) • “criação controlada pela standartização das peças.” • “variabilidade quantitativa gera emergência qualitativa.” • “complexidade gerada pela soma de simplicidades.” As abordagens se alternam e podem ser compreendidas de modo complementar. O mais importante é considerá-las dentro de um escopo que irá satisfazer as expectativas da produção orientada, conforme saliento acima. E para que haja um projeto a ser criado e desenvolvido com base nas nossas escolhas é preciso que haja de nossa parte, investimentos. Investimentos Na economia, investir é aplicar ativos visando retorno multiplicado. Na psicologia, no entanto, há uma termo bem curioso que resume um outro entendimento de investimento: Sempre que há um impulso em termos de energia psíquica, temos investimento como uma “Catexia”. O impulso à realização é inerente ao ser humano, de modo que em consideração bem ampla, as escolhas são modelagens que damos aos nossos impulsos, ou seja, aos nossos investimentos pessoais. Freud explica. As escolhas que fazemos em direção ao projeto, devem admitir um respaldo realístico muito alto, pois é notório que, embora haja atualmente muita facilidade em se produzir, poucos são produtores efetivamente. Desconsidero aqui aquele seu primo que passa os finais de semana subindo videos ao Youtube e se considera por isso um cineasta, e aquela sua prima que canta no karaoke da lanchonete e se acha por isso uma cantora. A questão principal é que FAZER demanda extrair as ideias e colocá-las em prática, ou como vimos acima, colocá-las públicas à partir de trade offs. Jogos só podem ser considerados jogos no jogar, e portanto, é preciso que haja para eles REALIZAÇÃO, não só boas ideias. Para realizar, os autores do jogo devem considerar quatro investimentos críticos. E não somente considerar, mas pontuálos quantitativamente em valores para que não haja decepção pela irrealização do projeto por causa da falha ou carência em algum deles. Investimentos a serem considerados em qualquer projeto: 1. 2. 3. 4. Pesquisa * 100 Dinheiro * 3 Tempo * 2 Alvo / 2 Assim, para que os investimentos se transformem em retorno, é importante que haja pesquisa multiplicada por cem vezes a quantidade que os autores acham minimamente 44 necessário. Também é importante que haja dinheiro e três vezes mais do que o esperado pois o tempo a ser consumido pela atividade será o dobro do que se espera, e o alvo atingido, será a metade do inicialmente intencionado. O raciocínio acima é facilmente explicado por qualquer casal que em uma tarde de verão tenha resolvido passear no shopping: são visitadas mais lojas do que o estabelecido antes de sair de casa, se gasta três vezes o combinado do sorvete, leva-se duas vezes mais tempo nas filas para pagar o estacionamento e sempre retorna-se para casa com a metade das compras que se gostaria. Décima Terceira Exposição: Artifícios: constantes e variáveis Para que os jogos projetados permitam escolhas interessantes por parte de seus jogadores, é preciso que pensemos em suas estruturas de modo diacrônico (dependente de evolução com o tempo), ou seja, antecipando as escolhas e as decorrências das escolhas. Não é tarefa simples, sobretudo, por dependerem do fato do jogador ter um comportamento humano e inconstante... Mas não é tarefa impossível, pois para direcionar as escolhas de seus jogadores, jogos contam com artifícios que se estabelecem como constantes e variáveis. Como você já deve ter percebido, a matemática e a informática usam esses mesmos termos, objetivando a implementação dos resultados de suas investigações de modo estruturado. Trata-se, portanto, de uma programação. Estamos aqui considerando a implementação de um projeto de jogo também como sua programação, que não é uma exclusividade dos jogos eletrônicos, mas que será necessária seja qual for o projeto que antecipe ações por parte de seus usuários. Programar, como o nome implica, é organizar previamente visando um fim. Constantes Constante é tudo que não se modifica por ação do tempo ou de outra externalidade, recorrendo ao um uso específico e objetivo. No caso dos jogos, perceberemos as constantes presentes nas definições originais das regras e dos procedimentos, que irão dar conta de se manifestarem como objetos e seus atributos em uma área delimitada de espaço. Se consideramos que um jogo terá certa composição a ser monitorada durante o jogar, ainda que seus atributos se alterem, a composição não deverá ser adulterada por modificações que não sejam previstas pelos jogadores. Por isso os jogos contam com peças, que servem como lastro para os acordos prévios 45 entre os mesmos de modo que não haja dúvida quanto ao seu progresso rumo à meta. Peças em Jogo: • • • • Espaço Dinâmica Agência Estado Figura 18 - O espaço no qual se projetar O espaço no jogo é suporte para as ocorrências e é pensado para dar conta delas da melhor maneira possível. Diferente de uma mídia reativa, jogos não se projetam em seus expectadores, mas o contrário: estes é que se projetam no jogo. Mas o jogo precisa de um anteparo, daí compreendermos a necessidade de que haja uma superfície na qual as escolhas serão projetadas, e portanto, dependem de um locus que pode até não estar visível, mas que existe em contrato dos seus participantes. Sem um espaço apropriado, não pode haver deslocamento simbólico e o exercício de ações, prejudicando o entendimento de causa e efeito. O espaço nos jogos analógicos é compreendido como TABULEIRO, e disto pode admitir duas grandes verdades. A primeira é que o uso lembra o de uma bandeja da qual nos servimos de alimento. A segunda é que como toda bandeja, os tabuleiros apresentam grande variedade de formas e construções possíveis. O espaço no tabuleiro é entendido de modo a restringir o deslocamento de seus habitantes e temos de considerar tais movimentações, atentos a disposição de divisões espaciais como pontos, linhas, casas, ou áreas. Dependendo de como o espaço é dividido, o convite ao posicionamento será determinado, cabendo ao autor considerar a máxima que “forma segue a função”. No caso dos jogos de 46 guerra, uma malha hexagonal facilita o entendimento de navegação em seis direções. Uma malha cartesiana como no tabuleiro de xadrez alterna cores para facilitar a visualização dos deslocamentos finais. Figura 19 - "Alea jacta est" Seja qual for o espaço do jogo, se imaginado, se dividido em pontos, linhas, casas ou áreas, é importante que se defina como ocorre a dinâmica dos movimentos. Ela pode se dar por sequência ou por turnos. Ela pode ser única em uma jogada, ou múltipla até que seja interrompida por algum critério. Seja qual for sua forma, compreendemos que o jogo se manifesta de tal modo que todos os seus participantes atuam dinamicamente na compreensão da significância do espaço. Jogos não podem começar e terminar sem que a monitoria do jogo aponte algum tipo de modificação providenciada pela ação de seus jogadores. Mesmo que impedidos de agir em algum momento, é de se esperar que o jogo lide com diferentes dinâmicas, determinadas por seus participantes ou no acato de valores do imponderável. Muitos jogos lidam com dados para providenciar a saída de um conflito paralisante sem que haja benefício para um ou outro jogador. Dados (do latim datum, “dado pelos deuses”) são poliedros regulares com inscrições que permitem a manipulação dos valores neles obtidos. E justamente de tais valores que o jogo recebe a variação de seu estado vigente pelo deslocamento dos representantes dos jogadores no espaço do jogo. 47 Figura 20 - Ao ataque! Pew! Pew! Pew! Todo jogo busca o agenciamento por seus participantes, ou seja, todo jogo apresenta a demanda filosófica para a intervenção em seu mundo simbólico. É pela agência que o usuário se torna jogador e para que haja essa atuação também simbólica, o jogo conta com totens que carregam a áurea de ser o jogador manifestado. Nos jogos eletrônicos, o totem recebe o nome de avatar, inicialmente significando “incorporação” para os hindus e mais atualmente significando “figurinha personalizada que me representa na Internet.” Como os hindus acreditavam que o avatar era um imortal personificado, também acreditamos que aquelas pecinhas de plástico ou chumbo nos personificam. Mesmo que cientes que não somos os peõezinhos do Banco Imobiliário, sua distribuição entre os jogadores é momento de algazarra pois muitos querem ser o “carrinho” e poucos querem ser o “ferro de passar.” Nós, seres humanos, damos muita importância para nossa representação, seja qual for o suporte. Experimente capturar uma fotografia de um ente querido e tente furar seus olhos impressos com um alfinete. Poucos conseguem sem exalar certa repulsa, o que caracteriza nossa sensibilidade humana de atribuir valor a coisas que em nosso íntimo achamos que somos nós. O mito do voodo com bonequinhos que perfurados fazem seu referente sentir as dores é uma extrapolação dessa sensibilidade empática. 48 Figura 21 - Mudança de estados e seu futuro nas cartas. Por fim, estado diz respeito à condição circunstante na qual se está e da qual se pode mudar. Essa é a principal característica da constante pois presente em todos os jogos, espera-se que mude somente para outros estados previstos e possíveis perante as regras. Jogos são máquinas de estados, ou seja sistemas que alternam suas circunstâncias segundo limitações definidas por escopos as quais monitoradas, condicionam as escolhas de seus jogadores. Tomemos por exemplo as cartas de um baralho. A quantidade de cartas, suas figuras, valores e naipes são limitações que fazem os jogadores dependerem das relações estabelecidas para construir suas jogadas e apostas. O estado do jogo é alterado conforme os jogadores compreendem o estado vigente e desejam mudar para outro estado que lhes satisfaça a intenção. A palavra em latim para estado é status, que ao mesmo tempo nos soa como uma “apresentação” e como uma “condição” da qual se costuma fofocar. As cartas de baralho têm uma tradição de mancia, ou pretensa adivinhação do futuro, da qual muitos se dizem experientes: como as cartas são finitas e o que varia é a forma como são convocadas, o estado presente e futuro do consulente será definido por regras de leitura. O tarô, o qual se costuma destacar tais poderes de previsão, era um jogo de nobres italianos, fruto da entrada de trunfos sobre os baralhos originais vindos da Ásia por volta dos século XIV e só começou a ser usado pelos ocultistas no século XIX. Em resumo, o estado das cartas na circunstância histórica, mesmo ele, mudou ao longo de séculos. Por que um jogo não iria haver de mudar? 49 Variáveis Para elementos que precisem de alteração significativa e posterior a definição original de sua ocorrência, usa-se variáveis. Há quem diga que “nada é mais variável do que uma constante, enquanto poucas coisas sejam mais constantes do que uma variável...” O que precisamos ter em pauta no uso de nossos artifícios para oportunizar escolhas interessantes é compreender que as coisas no jogo irão mudar de modo superficial e profundo: normalmente, as relações estabelecidas entre jogadores e entre jogadores e sistema. Para facilitar o entendimento dessas mudanças, fazemos usos de variáveis, ou seja, colocamos uma carga inicial em algo considerando que essa caraga será aumentada ou reduzida de acordo com os estabelecimentos de uso. As variáveis podem ser: • • Locais ou Restritas Globais ou Absolutas Figura 22 - Para resultados quantificáveis, operação de valores De modo resumido, as variáveis podem ser pontuais em termos de satisfação ao sistema, considerando um termo cujo desconhecimento inicial fará dele outra coisa. Por exemplo, podemos dizer que o jogo de xadrez inicialmente possui um número constante de casas em seu tabuleiro e um número constante de peças a serem movidas. Mas a quantidade das peças de um jogador será variável ao outro jogador de acordo com o progresso de jogo. A quantidade vigente de peças de um jogador não interfere diretamente na quantidade de peças do seu adversário (nem determina quantas peças podem estar 50 presentes no jogo obrigatoriamente), sendo portanto, uma variável local ou restrita. Outro exemplo se dá na quantidade máxima de bolinhas que eu posso ter em estoque na minha máquina de pinball, no caso, cinco. Como durante todo o jogo eu tenho de considerar esse limite máximo de tentativas, a quantidade de bolinhas torna-se uma variável global ou absoluta, na qual toda minha partida estará diretamente determinada. Dependendo de seus valores, são as variáveis e não as constantes que determinam o cumprimento das regras e o alcance dos objetivos. Pensemos as constantes de modo qualitativo e as variáveis de modo quantitativo. Décima Quarta Exposição: Listas de Surpresas e Prazeres O que faz um jogo ser divertido? Por que tanta gente se dedica a ficar diante de um dispositivo, seja ele analógico ou digital, por horas à fio, quando a recompensa pelo tempo despendido não é concreta, mas uma abstração conveniada pelo grupo? Alguns pesquisadores como Raph Koster e Jesse Schell ponderaram sobre em seus livros, pois se precisamos construir um produto ou um processo cujo objetivo seja a manutenção ativa do participante, é importante que o sistema empregado seja atraente e sensual. Muito jogos realizam muito bem seu poder de sedução conforme apresentam narrativa, estética, mecânica e tecnologia. Mas iremos além das motivações funcionais e esperamos algum aporte das medições psicológicas considerando a busca do jogador por resultados para suas investidas interativas. Jogos são divertidos porque lidam com um aprendizado intrínseco, o qual quando dominado, evoca satisfação particular (orientação interna) e reconhecimento público (orientação externa). De maneira geral, podemos dividir esses dois vetores em surpresas e prazeres. Se existissem dois únicos grandes motivos para se jogar, seriam a captação e emergência de supresas e prazeres. Surpresas Quando falamos de coisas surpreendentes uns para os outros, seja qual for a surpresa, se positiva ou negativa, nosso interlocutor interrompe suas ações para nos atender. O ser humano é surprise-driven, ou seja, gosta de ter suas expectativas postas na provação da realidade. As surpresas positivas são aquelas que provocam o riso da comédia. As surpresas negativas são aquelas que provocam o choro do drama. Não cabe ao jogo ou à uma investigação do conteúdo do jogo sempre providenciar a primeira e tolir o jogador da segunda. 51 Não existe som sem silêncio, ou luz sem escuridão. A alegria da vitória constante só é justificável se comparada com pontuações de tristeza profunda pelo derrota, caso contrário, em nada o sistema nos poderia surpreender. Daí certa crítica sobre jogos que impedem a punição ou sobre leituras de jogos exclusivamente competitivos como impedimento de finalidades pedagógicas. O próprio fundamento da surpresa como ato de avaliar o que se espera em sobreposição ao que se tem, já torna a atividade de jogar importante. Até porque, surpresa, para muitos estudiosos, é um reflexo e não uma sensação. Fórmula: Expectativas – Realidade = Surpresa Assim, SURPRESA, é o resultado inesperado de um evento: • • • • • • • • • Recompensa (Cognitiva, Financeira ou Moral) Susto (ou Choque!) Impulso por Atração Repulsa por Aversão Término Abrupto de Sequência Retorno Abrupto de Lapso Novidade Instigante Alteração perspectiva Fuga ao contexto Figura 23 - BSOD Quando algo acontece, lidamos com o acontecimento medindo-o com as nossas experiências e com as consequências da coincidência de nossos pensamentos com o que de fato aconteceu. As famosas “telas azuis da morte” (BSODs, na sigla em inglês) são exemplo característico da surpresa que buscamos nos jogos. Não que desejamos que nosso jogo trave como um PC velho, mas porque tais telas súbitas e fatais provocam o que poderíamos chamar de “micro-infartos-do-miocárdio”: a 52 suspensão de nossa crença de prever os segundos imediatos conforme a perda de previsão percorre o nosso cérebro em busca de alternativas e explicações. Quando uma jogada nos é oferecida por nossos adversários que não contava com nossa agilidade ou esperteza, passamos a surpreender e assim, sentimo-nos poderoso pois temos uma conduta exemplar de agente do destino alheio. De modo resumido, supresas são o desencontro entre nossas apostas e a situação que se estabelece. Diversos são os tipos de surpresas e as ordens as quais pertencem, bem como profundidade e decorrência de sua manifestação. Na lista acima caracterizamos algumas surpresas que podem ser úteis quando envolvidas no uso das regras: quando o jogador recebe algo, seja aprendizado, dinheiro ou valor moral (instruções, moedinhas ou saber quem é amigo e quem é inimigo); quando o jogador leva um susto que se estendido pode paralisá-lo (como nos jogos nos quais o monstro salta da escuridão sobre seu personagem); quando o jogador sente-se irremediavelmente atraído para realizar alguma ação (como apertar um botão desconhecido) ou se vê repelido na direção oposta por avaliar negativamente uma circunstância decorrente (quando descobre que minas explodem quando se aproxima delas certa distância); quando o jogador vê cancelada uma ordenação lógica (como nas cenas que terminam com um ápice de movimento inconcluso) ou quando a mesma ou nova ordem é recuperada após um longo intervalo (como após o término dos créditos aparece uma cena adicional para recuperar algo que aconteceu no meio do filme); quando o jogador percebe uma novidade interessante (um pedaço de algum tesouro brilhando no chão); quando o jogador percebe que sua cosmovisão do jogo é alterada em algum grau (como na inversão de papéis de aliados que viram inimigos e inimigos que viram aliados); ou quando o jogador não é capaz de raciocinar sobre a situação corrente com outra imediata ou mesmo anterior (como no nonsense do humor inglês). Prazeres De modo semelhante, o prazer que sentimos quando jogamos nada mais é do que o encontro de nossas expectativas com a realidade que se apresenta diante de nossas decisões: quando chegamos nos minutos iniciais de um compromisso para o qual não poderíamos nos atrasar, quando o sinal subitamente fica verde quando nos aproximamos dele de automóvel, quando a pessoa amada nos corresponde um sorriso ou aceno, quando lembramos do título de uma música que ninguém mais parece lembrar ou quando temos uma mão com excelentes cartas que nos garantirá a vitória certeira no jogo de biriba... Enfim, sentimos uma alteração profunda pela maneira como os receptores químicos encharcam nosso cérebro, e como decorrência, nos tornamos pessoas melhores. O prazer está localizado no cérebro pela relação de fisiologias bem específicas 53 (como a do nucleus accumbens, da amígdala e da hipófise) que liberam dopaminas e beta-endorfinas do sistema límbico no circuito cerebral, o que explica nosso impulso na busca e no retorno da sensação de prazer. Esperamos intimamente que um determinado evento nos satisfaça quando ocorrer, e esse gatilho auto-cíclico, é suficiente para nos impelir na tentativa de moldar o evento para que de fato sua ocorrência nos satisfaça. Isso amplia a nossa noção de prazer para um acervo de possíveis e diferentes prazeres (pois podem estar envolvidos com finalidades diferentes de origens diferentes). Pesquisadores acreditam que o gosto pelo jogo reside no fato de sentimentos de realização surgirem de modo intenso, porém rápida e recorrentemente. Mesmo não havendo recompensa efetiva, o jogo como meio de realização é suficiente para uma espécie de hedonismo cujo principal revés seria o vício. Como toda atividade na qual o prazer está envolvido, algumas pessoas podem ter dificuldade de intercalar a busca pelo prazer com outras atividades, tornando-se obcecadas. Jogos podem então gerar dependência? Os pesquisadores divergem, mas em princípio, sim. Tanto que há clínicas especializadas no tratamento de casos mais graves. Mas é importante que se atente ao fato de muitos dos casos haver dinheiro envolvido, ou seja, a dependência no jogo é mais pelas perdas e ganhos financeiros do que pelo ato de jogar, mero gatilho. Fórmula: Expectativas + Realidade = Prazer Assim, PRAZER, é o resultado estimado de um evento: • • • • • • • • • Antecipação Infortúnio Alheio União de Desconexos por Mudança Paradigmática (Humor) Abertura de Possibilidades Sensação de Liberdade de Escolha Avanço Ascendente e Orgulho de Conquista Purificação Triunfo sobre Adversidades Espanto e Encantamento (Admiração) 54 Figura 24 - Yeah! Quando uma coisa boa acontece, registramos as causas para uma posterior recuperação da sensação, daí percebemos os jogos como sistemas de aprendizado intrínseco cuja solução dos desafios nos satisfaz. Alcançar um patamar de realização de poucos é motivador, pois somos obrigados a lidar com o risco da frustração em múltiplas oportunidades. É importante que percebamos que o prazer que advém do jogo não pode ser um fluxo sem fim, pois como vimos, a fisiologia do cérebro sabe dar conta dessa tentativa de autodestruição. Depois de rirmos muito de uma piada, por mais que queiramos, não conseguiremos manter o riso constante e como uma lâmpada, a sensação se enfraquece e acaba apagando-se. Da mesma forma, buscamos ampliar nosso horizonte de prazeres de modo progressivo, no intuito de objetivar lâmpadas cada vez mais poderesas ou como na imagem acima, cumes cada vez mais altos. Diversos são os tipos de prazeres e a ordem a qual pertence, bem como profundidade e decorrência de sua manifestação. Na lista acima caracterizamos alguns prazeres que podem ser úteis quando envolvidos no retorno das consequências do acate das regras: quando o jogador espera ansiosamente por algo que vai acontecer (como quando preparamos uma festa, atividade muitas vezes melhor que a ocorrência da mesma); quando um outro se prejudica de algum modo (como quando adversários perdem pontos ou são obrigados a realizar uma ação enfadonha novamente... somos uns mini-sádicos!); quando algo estranho coincide com uma nova forma de ver a ocorrência (como quando ouvimos uma anedota absurda e bem contada); quando descobrimos o aumento súbito de nossas possibilidades de ação (como quando descobrimos que a refeição escolhida dá direito a uma sobremesa desejada); quando nos é oferecido a oportunidade de 55 escolher (como as cores de determinada roupa que nos é presenteada); quando progredimos e alcançamos parâmetros até então para nós limitantes (como o escalar de uma montanha ou o aprendizado de uma técnica circense de salto); quando sentimo-nos seguros ao comparar nossa vida com a de algum personagem dramático (como em peças de teatro grego nas quais o protagonista se aniquila diante dos conflitos... a catarsis); quando ultrapassamos obstáculos paralisantes (como pagamento de contas e imposto de renda); e quando nos percebemos diante de situações ao mesmo tempo inusitadas, ao mesmo tempo curiosas (como diante do ribombar luminoso de fogos de artífício ou espetáculo de um grupo musical que admiramos). Considerando ao longo das regras situações que lidam com surpresas e com prazeres, as chances do jogo projetado envolver positivamente seus jogadores aumentam consideravelmente. Jogos tidos como “chatos” são justamente aqueles nos quais o jogar não acrescenta em nada ao repertório de sensações dos seus jogadores, e portanto, sua experiência de jogo irá depor contra um próximo uso. Jogos ditos educativos sofrem dessa carência, pois como veremos a seguir nem surpreendem (pois a educação lida diretamente com certezas) e nem provocam prazer (pois a educação é tida como um momento focado de seriedade). Que façamos o diferente. Décima Quinta Exposição: Inovando pela Restrição Figura 25 - "The more restrictions you have, the easier anything is to write" (Stephen Sondheim) Não é natural que acatemos restrições pois elas vão contra 56 nossa sensação motriz de liberdade. Desde muito jovens, somos entusiasmados a proceder de modo criativo, ultrapassando limites e agindo nos impulsos da juventude. Mas tão logo crescemos, descobrimos atônitos que o mundo não é uma caixa de areia no qual podemos brincar descompromissadamente. Há uma constelação de situações que nos impedem e nos interrompem e somente por causa delas somos quem somos... Antes de nos sentir tolidos e desanimados, devemos olhar para o outro lado dessa moeda de troco da vida: somente avançamos quando topamos com adversidades. Como diria o filósofo John Dewey: “nós só pensamos quando nos defrontamos com um problema”. E realizar um jogo, de sua criação ao seu desenvolvimento, é um grande e instigante problema! Além da paralisação inicial, devemos aceitar as restrições não como muros mas como escadas que nos permitirão ver além dos muros. Eis a diferença entre os projetistas de jogos sob uma prerrogativa qualitativa. Concordemos que há muitos, muitos jogos por aí, e fazer “mais um”, já não nos bastaria. Precisamos pensar em um motivo maior que o torne único sob algum aspecto. Precisamos ir além das revisitações e das revisões de jogos já publicados rumo à inovação e à originalidade. E por mais estranho que isso pareça, faremos isso somente se nos atermos a algumas restrições. Guarde bem essa verdade: tudo que há é mestre ou vítima de restrições. E seu cérebro adora restrições pois elas fazem seus neurônios estabelecerem outras conexões para os seus pensamentos. Quando falamos de inovação, é comum que em um primeiro entendimento comum estejamos nos referindo ao que é absolutamente novo, mas não é o nosso caso. Algo totalmente novo na contemporaneidade é um disco-voador: acredita-se que exista, mas ninguém consegue provar o que viu realmente. O que quer que exista como artifício humano, é decorrência de criações anteriores. Por isso iremos assumir inovação como uma realização que traz novidade ou renovação, ou seja, que guarda pouca semelhança com coisas anteriores, sem que no entanto, seja algo completamente diferente de tudo que tenha sido criado. Inovar é fazer de novo para que seja melhor. Quando falamos de originalidade, da mesma forma, pensamos naquilo que existe unicamente, mas não é o nosso caso. Algo original é que dá origem a outras coisas por ter em si uma novidade. Mais uma vez, o que quer que exista como artifício humano é decorrência de criações anteriores... logo, a originalidade é um aspecto diferenciador entre o que é inovador e o que já existe. Por isso iremos assumir originalidade como uma realização que traz distinção ou singularidade, ou seja, o que guarda pouca semelhança com coisas parecidas, sem que no entanto, seja algo completamente diferente de tudo que tenha sido criado. Original é um estado entre o estranho e o convencional. E mais do que isso, uma invenção moderna: antigamente a qualidade das ideias é tida pela semelhança com 57 pensamentos de notáveis. Como os românticos o termo ganhou o aspecto que hoje prezamos. Para que haja inovação e originalidade, é preciso primeiro ver e fazer as coisas de modo especial. É um exercício, não um dom. Quanto mais vemos as coisas e fazemos as coisas de modo alternativo ao usual, mais nos aproximamos de um ideal de inovação (porque melhoramos o que poucos perceberam) e originalidade (porque realizamos distinção no que poucos realizaram). O que difere a forma como vemos ou fazemos é o entendimento de um contexto e de um texto que podem ser revistos com alguns instrumentos simples dos quais restringir é um deles. Tome como exemplo um filme hollywodiano e um produtor norte-americano com milhões de dólares na mão: provavelmente o retorno será próximo de uma expectativa financeira do que foi resultante no filme com o dinheiro empregado pois o produtor assumirá uma postura mais comercial e convencional. Agora tome como exemplo um outro filme e um outro produtor, ambos brasileiros e desacreditados, com bem menos recursos capitais: provavelmente, por não ter o que perder, o produtor assumirá posturas mais artística e original para manter o interesse do público pela sua obra de poucos recursos. Não precisamos comentar os insucessos do primeiro e o respaldo do segundo... Muitos são os exemplos de pessoas que fizeram mais com menos, e o que todas têm em comum, foi o fato de terem visto o problema como um morro a ser escalado e não contornado, atuando conforme as restrições se impunham. É possível restringir o sistema (em coisas como objetos, aspectos, relações e ambiente) ou o usuário (em coisas como regras, procedimentos, conflitos e recursos) de um jogo para benefício da criatividade. Imagine um jogo da velha com apenas um símbolo compartilhado entre os jogadores? Como seria? Imagine agora um jogo da velha com uma matriz não de 3x3, mas de 4x4 casas... É mais fácil ou difícil de jogar? Imagine um jogo cujos protagonistas e antagonistas só podem se mover como o cavalo do jogo de xadrez. Como devemos restringir os espaços do tabuleiro para fazer a dinâmica ser mais interessante? Imagine que outro jogo de xadrez só possa ter o combate de peões... Agora imagine um último jogo de xadrez de amazonas, só formados por rainhas, que devem proteger ou matar o último rei... Além de imaginar, podemos testar essas possibilidades e ver como se comportam diante de jogadores. Sempre que se restringe uma forma de participação, se ganha duplamente: o jogo se torna inovador (pois as pessoas tendem a se repetir e assim gastar menos energia criativa) e original (pois novas formas de jogar serão copiadas por outros jogos no futuro em busca de distinção). Lembre-se que em tudo há medida: a carência de restrição no projeto pode nebulizar o jogo com muitas constantes e variáveis, e o excesso de restrição no projeto pode estrangular o jogo tornando-o monótono. O importante que se 58 deve guardar de um exercício de restrição é se impor limites e transformar esses limites em monumentos. Se o personagem MacGyver conseguia de um tudo usando somente fita crepe, seu inseparável canivete suiço e as coisas do cotidiano ao redor para sair de enrascadas, o que você não conseguiria com seus jogos? Décima Sexta Exposição: Hora de se Jogar! Nas Cartas Na décima sexta exposição os agentes se viam às voltas com o segundo projeto de jogo enquanto prática, no caso, munidos de cartas de baralho, e presos a restrições características de quantidade de objetos e limites de informações. O detalhamento dessa atividade conforme anunciada pode ser encontrado na seção que lida especificamente com as práticas. Cabe destacar que o maior repúdio se dá nos grupos que dispõe de poucas cartas (normalmente restrições de cartas com figuras ou somente uma determinada quantidade da mesma carta em especial, como quatro ases). Em tais situações, os agentes buscam atribuir novos valores as cartas disponíveis, muitas vezes subvertendo regras de jogos já existentes. O objetivo da exposição, portanto, é promover versatilidade na composição de produtos baseados em relações estatutárias de seus conteúdos, atentos para a modalidade das funções que carregam. Décima Sétima Exposição: Desafios por Padrões de Demanda Como máquinas humanas somos excelentes reconhecedores de padrões, muito melhores que qualquer sensor ótico de caixa de 59 supermercado. Deve ser por isso que, quando crianças, éramos incapazes de mentir com sucesso para os nossos pais. Havia algo além da nossa verbalização, um detalhe no timbre da voz, um tique nervoso, um menear de cabeça diferente... Não adiantava, éramos pegos mentindo. Criávamos sem querer um padrão que era reconhecido pela sua diferença de outros padrões previamente estabelecidos. Comunicar é um ato que envolve codificação e decodificação de elementos recorrentes e nos comunicamos além da oralidade pois já compreendíamos que a natureza é regida por manifestações padronizadas antes mesmo de ensaiar os nossos primeiros ugas bugas. Dia e noite, sol e chuva, vida e morte, movimento e repouso, dentro e fora, cheio e vazio, alto e baixo, antes e depois, causa e efeito... Se bem percebemos veremos uma redução muito grande de possibilidades de coisas acontecendo ao nosso redor. O que é uma coerência muito bem quista, pois se a cada dia o mundo se apresentasse completamente inusitado, ficaríamos loucos com a árdua tarefa de perceber e pensar sobre tudo o tempo todo e novamente. Percepção e cognição, disso trataremos, tendo os jogos como destino de nossas indagações. Percepção é o ato de tomar conhecimento de algo e o fazemos por conta de sensores espalhados pelo nosso corpo em pelo menos cinco (há outros sentidos, mas isso é uma discussão que não cabe ao momento). São mais do que suficientes, pois o famoso caso da filósofa Helen Keller nos mostra do que o ser humano é capaz de coisas incríveis, pois ela era cega e surda desde muito nova e nem por isso manteve-se isolada pela falta de perceptividade. Ela aprendeu a perceber as coisas de modo diferente, mas tão profundamente quanto qualquer um de nós. A cognição é a consequência do envolvimento mental do que é percebido em termos de memória, atenção, resolução de problemas, linguagem e tomada de decisões. Como o conhecimento é algo que interessa em muitas áreas, da psicologia à computação, iremos considerar aqui o aspecto mais amplo do termo, como uma construção de saberes que nos permite um raciocínio abstrato e conceitual sobre as coisas que nos rodeiam ou que estão dentro de nós. Tanto a percepção quanto a cognição podem ser adulteradas, o que faz do mágico uma profissão e dos jogos algo interessante de ser participado. Percebemos e aprendemos como os elementos dos jogos se relacionam e desse envolvimento intelectual guardamos certo carinho. Satisfazemonos com os jogos porque interpretamos e decodificamos os padrões que eles apresentam e assim, conseguimos não somente tentar provar (para nós e para os outros) nossa maestria de compreensão do sistema como também projetar esse conhecimento para outros jogos. O que minhas pesquisas apontam, para espanto geral, é que a quantidade de padrões que os jogos dispõem em suas mecânicas desafiantes é muito mais restrita do que poderia parecer em uma primeira análise. Como 60 o formalista soviético Vladimir Propp apresenta sua tese de que todas as narrativas que existem podem ser divididas em 31 únicas funções, apresento a seguir os Padrões de Demanda, para que auxiliem nas restrições para inovação de futuros jogos e para que permitam a compreensão de jogos como modelos de variações bem limitadas. Padrões de Demanda são modelos interativos que compelem e motivam o jogador ao jogo como atividade de busca de harmonia. Como o sistema de qualquer jogo está centrado na falta, cabe ao jogador, com base nas suas competências e habilidades, resolver a lacuna lógica e cumprir assim sua demanda. Cada jogo apresenta como substância um conjunto de padrões de demanda que estão hierarquizados em decorrência das relações de afeto estabelecidas com o jogador no contrato de uso. Para que o jogo funcione, a busca pela solução deve ser empreendida com base em metáforas de interação, cujo principal valor é promover a apreciação sensível da situação. A lista de 41 padrões de demanda segue, compreendendo aspectos básicos de conceituação. Como a pesquisa prossegue, tentaremos no futuro construir um modelo que torne os padrões integrados de modo complementar e suplementar. Por hora: Administração. Descrição: Realizar a manutenção de valores e recursos. Fundamento: Mental. Coleta. Descrição: Retirar itens do cenário. Fundamento: Motor. Inventário. Descrição: Colecionar itens em espaço apropriado para uso posterior. Fundamento: Mental. Disparo. Descrição: Lançar ativamente objeto abstrato ou substantivo contra algo ou alguém. Fundamento: Motor. Esquiva. Descrição: Desviar ativamente de objeto abstrato ou substantivo. Fundamento: Motor. Deslocamento. Descrição: Mover-se no cenário em direções permitidas. Fundamento: Motor. Corrida. Descrição: Buscar a vitória por chegar a um local estabelecido em ordinalidade estabelecida, normalmente em primeiro. Fundamento: Motor. Salto. Descrição: Ultrapassar obstáculos deslocando-se na altura e no comprimento. Fundamento: Motor. Memorização. Descrição: Lembrar de valores e aspectos relacionados aos componentes do jogo. Fundamento: Mental. Verificação. Descrição: Relacionar valores e aspectos entre componentes distintos do jogo, normalmente forma e cor. Fundamento: Mental. Encaixe. Descrição: Justapor componentes do jogo segundo verificação de similitudes ou diferenças entre as partes, normalmente forma e cor. Fundamento: Mental ou Motor. 61 Ritmo. Descrição: Atuar segundo observação de recorrência uniforme de um fenômeno. Fundamento: Mental ou Motor. Sincronização. Descrição: Atuar em momento oportuno para cumprimento de um intento. Fundamento: Mental ou Motor. Exploração. Descrição: Deslocar-se para fins de conhecimento do cenário por investigação posicional Fundamento: Motor. Evolução. Descrição: Modificar-se em status positivamente no tempo, visando alguma progressão intrínseca. Fundamento: Interno. Inversão. Descrição: Realizar o inverso de uma ação corrente. Fundamento: Interno. Aceleração. Descrição: Modificar valores de deslocamento mediante progressão aritmética ou geométrica. Fundamento: Motor. Cálculo. Descrição: Processar mentalmente as consequencias de um intento. Fundamento: Mental. Cronometria. Descrição: Realizar a importância do tempo de um fenômeno regressiva ou progressivamente. Fundamento: Mental ou Motor. Dominação. Descrição: Manter-se em uma localidade contrapondo adversidades. Fundamento: Motor. Acumulação. Descrição: Efetuar somatório progressivo de valores para posterior comparação. Fundamento: Interno. Comunicação. Descrição: Cambiar mensagens entre participantes do jogo, jogadores ou não. Fundamento: Mental. Embate. Descrição: Pelejar com base em habilidades matriciadas entre dois ou mais participantes do jogo, automáticos ou não. Fundamento: Motor. Antecipação. Descrição: Prever um determinado fenômeno com base em uma avaliação estratégica ou tática do cenário. Fundamento: Mental. Reflexo. Descrição: Produzir ato escapatório imediato ao revés propiciado pelas adversidades no jogo. Fundamento: Mental ou Motor. Competição. Descrição: Comparar conquistas para premiação do vitorioso. Fundamento: Mental ou Motor. Aleatoriedade. Descrição: Agir em dependência de circunstâncias casuais ou fortuitas, imprevisíveis. Fundamento: Interno. Simulação. Descrição: Imitar com esmero buscando fidedignidade máxima possível. Fundamento: Mental ou Motor. Transporte. Descrição: Realocar um item para outra posição intencionada. Fundamento: Motor. Repetição. Descrição: Repetir uma ação com base em outras oportunidades. Fundamento: Interno. Perseguição. Descrição: Deslocar-se com o intento de realizar ação sobre o outro. Fundamento: Motor. 62 Bonificação. Descrição: Premiar pelo desempenho, astúcia ou acate de risco excessivo. Fundamento: Interno. Defesa. Descrição: Neutralizar, impedir ou repelir a ação adversária. Fundamento: Mental ou Motor. Ataque. Descrição: Ofender o adversário com os próprios meios cabíveis a ação. Fundamento: Mental ou Motor. Confinamento. Descrição: Encerrar um componente de jogo em espaço constrito. Fundamento: Mental ou Motor. Depósito. Descrição: Adicionar itens no cenário Fundamento: Motor. Furtividade. Descrição: Deslocar-se sem ser percebido pelas adversidades ou obstáculos. Fundamento: Motor. Precisão. Descrição: Agir em conduta meticulosa sem a qual o intento não pode ser realizado com destreza. Fundamento: Mental ou Motor. Rebatimento. Descrição: Realizar redirecionamento por impedir a trajetória corrente de algum componente do jogo. Fundamento: Motor. Negociação. Descrição: Realizar correlação de interesses particulares com externos. Fundamento: Mental. Agilidade. Descrição: Realizar determinada ação com mérito de destreza. Fundamento: Motor. Enquanto as pesquisas seguem, os 41 padrões acima podem ser percebidos em maior ou menor número em todos os jogos existentes e o que consideramos com sendo sua inovação e originalidade nada mais é do que a posição relativa entre eles em uma linha abstrata de conjuntos de aspectos: alguns jogos usam padrões de demanda próximos entre si, ou seja, são considerados convencionais (jogos com padrão de demanda salto tendem a ocorrer em conjunto com padrões de demanda agilidade, coleta e antecipação). Outros jogos usam padrões de demanda distantes entre si, ou seja, são considerados inusitados (jogos com padrão de demanda comunicação não tendem a ocorrer em conjunto com padrões de demanda rebatimento, embate ou aleatoridade). Se fóssemos considerar um projeto de jogo desse último exemplo, poderia ser um jogo de repentistas que poderiam pelejar com versos sobre palavras aleatórias... ou com golpes de violões e pandeiros uns nas cabeças dos outros! O importante aqui é considerar que a profundidade reside na concatenação de díspares. 63 Décima Oitava Exposição: Interatividade e Virtualidade Existem três palavras excessivamente recorrentes na atualidade, aquelas que aparecem tanto no bate papo informal de um casal de namorados quanto no discurso formal de um apresentador de telejornal: interatividade e virtualidade são as duas primeiras. Sustentabilidade é a terceira. Acredita-se que de tanto usadas, as palavras perdem a força de seu sentido original e isso é bem verdade no caso da primeira e da segunda: quantas vezes você ouviu que isso é mais “interativo” ou que aquilo é “virtual”? Pior talvez seja a terceira palavra, pois do contrário do que se pensa, poucas coisas são mais insustentáveis do que o uso banalizado da palavra sustentabilidade. No futuro, diz Randall Munroe da webcomic XKCD em seu número 1007, a palavra sustentabilidade estará presente em todas as frases ditas por volta de 2061, até ser a única palavra dita por volta de 2109. O que isso tem a ver com nossos estudos sobre jogos? Nada diretamente. Mas indiretamente... É uma metáfora. Interatividade O vocábulo já nos ajuda bastante: interatividade é tão somente uma atividade intermediada, intermediária ou interna. Daí sua manifestação em tudo que se relaciona ao controle de alguém sobre alguma coisa, nas duas direções possíveis. Tal qual macaquinhos evoluídos, gostamos de tocar as coisas e experimentar seus usos, comportamento que no passado, nos permitiu descobrir coisas incríveis como as armas de pedra lascada, o fogo e a roda (se bem que inventamos o cachorro antes da roda, mas isso é outra história). Somos, portanto, “tecnofílicos” e prezamos por tudo que se possa ser cutucado e como consequência da cutucação, modificado de alguma maneira. 64 Desse modo, quando falamos de interatividade em jogos, abrangemos sua essência, pois como vimos na composição basilar, jogos tem de ser interativos para serem considerados como tais. E para que o sejam, jogos contam com as noções de encontro e interface. Encontro é a ocorrência coincidente de duas ou mais coisas, aquilo que se marca pelo contato da reunião. Interface, por sua vez, é o que fica no meio entre o contato estabelecido, como superfície de adaptação entre sistema e usuário. Seja como for o encontro e seja qual a interface, cabe ao autor do jogo atender à diferentes níveis cabíveis de atitude interativa. Faz-se isso pela atenção aos recursos disponíveis para que a interação ocorra e sobretudo, nas metáforas empregadas para que haja entendimento do que acontecendo durante o processo. Conceituando interatividade: • • • Por encontros e interfaces. Por observação dos recursos de interação. Por metáforas audiovisuais para a interatividade. Níveis de interatividade e atitude interativa: Reativa > Manipulativa > Configurativa Embora guardem diferentes níveis de interatividade, aprendemos a ver os jogos como sinônimo de interação, acima de filmes, desenhos animados, histórias em quadrinhos e livros. Um ledo engano, pois como afirma o game designer Jesse Schell, a interação não acontece somente entre coisas, mas acontece primeiro na mente. Como somos capazes de imaginar, estamos constantemente diante de uma atitude interativa, que pode variar em grau, mas que estará sempre presente. Daí algumas coisas parecerem mais interativas do que outras. Em verdade, é possível que nosso encontro determine reação, manipulação e configuração. No primeiro momento, você somente reage à obra, no segundo momento você pode alterar como você a recebe e no terceiro momento, você a pode modificar a ocorrência... Filmes tendem a serem mais reativos e jogos tendem a serem mais configurativos. Por isso são considerados tão expressivos pois neles se permite um agenciamento que nos filmes é impedido. 65 Figura 26 - Quem me dera ser um peixe... Em função da interatividade, duas ressalvas entram no palco. A primeira é que a interatividade, como adjetivo de uma ação que envolve reciprocidade entre sistemas e usuários, deve ter em objetivo prover o usuário do isolamento do meio para que a interação seja mais forte. É fácil perceber isso no cinema quando as luzes se apagam para que possamos nos distrair do mundo ao redor para que o filme seja projetado em nossa atenção imediata. Daí advém todas as sensações provocadas no cinema como o riso da comédia, o choro do drama e o susto do terror, pois durante a projeção, esquecemos completamente que estamos sentados pacificamente em um ambiente controlado, refrigerado e iluminado para que as várias dezenas de pessoas ali presentes se permitam esse desligamento coletivo. Nos jogos, ainda que não possamos contar com os mesmos benefícios do controle do ambiente, sua refrigeração e iluminação, temos a liberdade de provocar ações naquilo que observamos não mais passivamente, e esse foco nos coloca no mesmo ou semelhante isolamento atencioso. Chamamos isso de imersão, tal qual a dos peixes e animais subaquáticos. Assim como o peixe só se percebe mergulhado em litros de água quando retirado para a atmosfera, nós só nos dedicamos a respirar com empenho quando mergulhados em água. Até então, é uma atividade tão transparente que o próprio fato de pensar sobre ela se torna terrível. Por exemplo, agora sabendo que você deve respirar, sua respiração estará descontrolada. Isso é imersão, aquilo que quando pensado ou raciocinado, deixa de ser. Imersão é um estado a ser sentido sem sentir. 66 Figura 27 - Flow segundo Mihaly Csikszentmihalyi A segunda ressalva é de que a interação é um aprendizado intuitivo que envolve duas coordenadas, a do conhecimento (habilidade) de se realizar uma determinada ação e a do grau de dificuldade (desafio) de se realizar a mesma ação. Muitos cientistas se dedicaram ao impacto que determinadas ações promovem na atenção do usuário, mas foi o psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi quem definiu um parâmetro de compreensão entre o que se espera que seja feito, e o quanto o conhecimento sobre a feitura determina a qualidade da realização. Em diversas situações, nos pegamos tão envolvidos com uma atividade que entramos em um estado de completa imersão e concentração absoluta, quase uma experiência mística de complementaridade entre sistema e usuário. Ess estado é chamado de Fluxo (ou Flow, do original em inglês), e sobre ele há diversos comentários quando aplicado em projetos de jogo. Em teoria, o fenômeno conseguiria produzir jogos ininterruptos, mas como é sutil, o fluxo é pontual e decorrente e não algo que acontece de modo arbitrário. Para que haja Fluxo, é necessário que o jogador tente ultrapassar os desafios com suas habilidades, que geram novos desafios que demandam novas habilidades... em um ciclo relacional. O Fluxo se dá em uma zona que representa a dinâmica do jogador diante das tentativas do sistema em estabelecer um equilíbrio dinâmico entre desafios e habilidades. 67 Figura 28 - Resultados possíveis da interação Para obter essa motivação focada, os jogadores precisam cancelar e canalizar suas emoções para a energização de sua concentração, o que por si provoca uma profunda satisfação. Se os desafios apresentados estão aquém da capacidade do jogador, ele se frustra. Se as habilidades do jogador estão além dos desafios, ele se entedia... Cabe ao sistema, em última análise, promover um dinamismo dos desafios pois o consequente ajuste das habilidades dará conta de manter o jogador empolgado. Até então, jogos tinham níveis de dificuldade (fácil, médio e difícil, como tradição). Projetar os três para atender um grupo é custoso, afinal, poucos são os jogadores que jogam o jogo novamente nos outros níveis... E pior, como definir o que é fácil e o que é difícil, dada a grande variedade de jogadores? Buscando estratégias de integração do sistema com o usuário nas escalas de profundidade e superficilidade das curvas, é possível atender ao maior número de jogadores da melhor maneira possível. Toda interação tem como interessado maior o jogador. Cabe ao autor do jogo definir os instrumentos que serão usados para que a interação seja progressivamente interessante. Para isso, é necessário assumir que tais instrumentos respeitam o que representam e amplificam as ações que produzem. Antigamente, um botão ou alavanca permitia a interação pela similaridade de seu uso com a função esperada. No final do século XX, um fenômeno curioso colocou os instrumentos além de sua manifestação física, para serem usados como metáforas de instrumentos. Esse fenômeno é conhecido como virtualização. E assim, nossos botões e alavancas agora são imagens digitais e por incrível que pareça, por serem somente representações, são mais poderosos que os botões e alavancas tradicionais. 68 Virtualidade Primeiro fato que defendemos nesse texto é de que “virtual” e “real”, não são coisas antagônicas. Afinal, se algo pode ser mensurado, é bem provável que exista. Mas como nos estamos a mais tempo acostumados com coisas presentes ao nosso redor do que imaginadas ou representadas, tomamos uma coisa como o contrário da outra. Como a modernidade, o ato de deslocar a existência de algo por outro tipo de manifestação fez as artes escultóricas e pictóricas florescerem e a força desta “virtualização” explica porque andamos com fotografias de parentes na carteira e presamos muito pela sua manutenção. Mas se virtual não é o oposto do real, o que é? Para o texto, iremos considerar virtual tudo que é representado por algo que não o próprio (afinal, uma coisa representa a si mesma com certa obviedade) além do plano físico. O que nos ocorre é que nos jogos, as coisas que lá estão cumprem o papel de evocação, ou seja, na impossibilidade de tê-las atualmente, as temos virtualmente. Realidade virtual, por exemplo, é o termo que considera uma manifestação que não é a atualidade dos referentes, mas a manifestação controlada e reduzida de contextos reais, algo como uma sub-realidade. Vivemos rodeados de sub-realidades sem nos dar conta, pois sendo filhos da contemporaneidade, nos acostumamos a tomar as coisas não por si mas pelo que as representam. Dinheiro, fotografias em revista, carrinhos em miniatura, bonecas... e mais atualmente, com o uso de computadores e redes telemáticas como a Internet, nos acostumamos a usar uma profusão de espaços virtuais de trocas simbólicas. Para que possamos reconhecer o virtual como potência e não só como cópia menor, convém considerar alguns pontos. Primeiro, que o virtual pode se apresentar para nós como uma tentativa de imitação ou como uma equivalência característica ou caricatural do que é referenciado. Segundo, que é esperado que o autor providencie com os recursos de interação, sensações fidedignas para que o interator, aquele que interage, possa se satisfazer com sua projeção no ato de jogar. Terceiro, que há um ponto ótimo entre a perfeita similitude e a estilização providencial. Afinal, o jogo não deve tender ao realismo excessivo, mas sim ao ilusório e fantasioso. Uma estátua de soldados em uma praça não deve dar tiros nos transeuntes para que seja percebida a expressividade da sua escultura. Cabe ao sistema usar de metáforas adequadas para providenciar, pela virtualização, imersão e fluxo. Conceituando virtualidade: • • • Por simulação e emulação Por observação dos recursos de projeção Por custo da similitude excessiva: imersão e fluxo 69 Princípio de Virtualidade, segundo Proust: “Memória, real mas presente, Ideal mas não abstrata.” Figura 29 - Saudades da escola? Como seres humanos, temos uma excepcional capacidade de construir uma realidade virtual portátil que nos acompanha e permite que nossas impressões do mundo sejam decodificadas pelo filtro da cultura e possam assim produzir imaginação (quando orientadas ao futuro) e memória (quando orientadas ao passado). Esse fenômeno permite que guardemos a experiência como valor, um cume a ser alcançado na íngreme montanha da participação interativa. As sensações evocadas em processos virtuais são tão poderosas quanto se acontecessem atualmente: por exemplo, imagine uma magra e fina mão, com os cinco dedos em forma de garra e em cada dedo uma cumprida unha pintada de vermelho. Agora imagine essa mão ARRANHANDO RUIDOSAMENTE O QUADRO NEGRO DA IMAGEM... Sentiu um calafrio? Não? Lembre-se então do som de gelo sendo moído ou papel alumínio sendo mastigado por um dente molar, ou aquele barulhinho de páginas de um livro, sendo virandas... E agora? Tssss... nos jogos, para recuperar essa e muitas outras sensações, usamos de simulação e emulação. Somos sensíveis ao ponto de recuperar sensações, mesmo desagradáveis, pela sua ocorrência imitada ou equivalente. Está tudo na mente. Por isso, mais uma vez enfatizo, o jogo não acontece diante de nossos olhos, mas sim, dentro da nossa mente. Quando falamos de simulação e emulação, falamos de dois aspectos da virtualidade que dizem respeito à profundidade 70 da relação estabelecida entre jogador e jogo pelo uso estratégico dos custos da similitude. Em alguns jogos, é do interesse do jogador que a ação imitada do referenciado seja executada exatamente como seria no plano da primeira realidade. Simuladores de voo e jogos de corrida prezam pela intenção de colocar os jogadores na administração técnica de inúmeros controles e obter daí, o entretenimento requisitado. Nesses casos, a simulação é o miolo virtual do sistema, que deve providenciar ao jogador um plano de fidedignidade no qual o jogador irá construir realizações. De outra forma, há jogos que restringem de um modelo, apenas os aspectos prioritários compreendidos pelo interesse do jogador em recuperar ou gerar alguma sensação. Jogos de luta e outros jogos de corrida prezam pela intenção de colocar os jogadores no papel simplificado de lutadores que não praticam artes marciais de verdade e pilotos que nem precisam aprender a soltar a embreagem ao afundar o pé no acelerador. Nesses casos a emulação é o miolo virtual do sistema, que deve providenciar ao jogador um plano de estilização do qual o jogador irá extrair emoções. Figura 30 - E ainda temos de pagar o IPVA... Quem dirige lembra como foi custoso o aprendizado nos primeiros momentos de direção. A coordenação de pés e braços e olhos e ouvidos atentos pode ser estressante para muitos, mas com o tempo, entram em automatismo. Quando isso acontece, automóvel e motorista passam a ser uma unidade e disso ocorrem certas bizarrices conotativas como: “aquele flanelinha arranhou minha pintura” ou “estou sem gasolina”. A interação entre coisa movida e controlada e aquele que a controla promove laços tão profundos que entendemos porque nos jogos agimos e reagimos da mesma forma: “você me atingiu com uma bola de fogo” ou “estou sem energia”. Graças 71 à virtualidade, assumimos as sub-realidades como realidades em si e nos posicionamos nelas ativamente e suprimindo nossa essência, podemos ser o que quisermos, e fazer o que quisermos, conforme as regras e os procedimentos. Figura 31 - Rad Racer, para o NES. Quem não dirige, assim como eu, não compreende de que modo alguém pode se sentir livre ao acelerar um veículo de uma tonelada até 120 Km/h sob o risco de chocar-se contra uma árvore ou pior, outro veículo. Ainda o contrário: ficar preso em engarrafamentos quilométricos que exigem a paciência de um monge budista. Talvez, como eu, prefira a verdadeira liberdade de sentir a velocidade sob o controle da destreza sem o risco da colisão ou capotagem (aliás quando existem, são plasticamente espetaculares). Ao lidar com a estilização do uso, os jogos eletrônicos se mostram extremamente cativantes, pois os mesmos apresentam na maioria dos casos, uma dosagem equilibrada de simulação e emulação. Tomando como exemplo a corrida, muito mais importante que o comprometimento com os aspectos de um carro de verdade, está o interesse do jogador em sentir o que um piloto sente e não necessariamente fazer o que um piloto faz. É uma diferença sutil, mas importante no momento do projetar. Sendo metáfora uma ideia que implica em outra cumprindo semelhança sem conectivo, a escolha e o uso dos elementos segundo uma hierarquia de similitudes incrementa nossa forma de pensar sobre conceitos. Nos jogos, conceitos são unidades semânticas que convidam a uma postura participativa. E além de providenciar estilo e estética, metáforas repercutem na forma como as pessoas pensam e agem perante umas as outras. 72 Décima Nona Exposição: Tempo e Espaço Duas certezas em relação aos jogos, sejam quais forem: eles vão lidar obrigatoriamente com o tempo e vão lidar obrigatoriamente com o espaço. Afinal, todo jogo é uma atividade que ocorre no tempo e no espaço e portanto, irá tratar de acontecimentos, suas causas e suas consequências para algum lugar. Não pretendemos aqui esmiuçar conceitos físicos sobre a natureza do tempo ou a natureza do espaço, mas convém ilustrar nossas preocupações com nossos jogos em uma perspectiva histórica pois há muito a ser pensado e feito sobre o assunto. Se nos jogos eu posso me deslocar no espaço de um lado para o outro e para dentro e para fora, por que não posso fazer o mesmo com o tempo, sempre fluindo na direção dos acontecimentos? Tempo e espaço já eram conhecidos e discutidos pelos filósofos e pela gentalha há muito tempo. A regularidade das distâncias e dos ciclos na natureza não são, em si, um mistério, de modo que pensar origem e destino, bem como antes e depois, é algo que se aprende bem cedo na vida. Aprendemos que ocorrências se manifestam por ocorrências anteriores e que as consequências vêem depois, daí a necessidade de ensaio para um perfeito controle. O mesmo nós podemos dizer de matéria e energia, aquilo que sofre as transformações das ações e a capacidade de realização das mesmas. Não só os filósofos, mas também os cientistas se debruçaram sobre problemas oriundos da relação entre o que existe e é experimentado e o que pode ser medido como resultado da submissão dessa matéria manipulada. Jogos também requerem a definição lógica do “quando” e do “onde” pois para funcionarem como sistemas, objetos, seus aspectos e suas relações devem ocorrer em um ambiente. E para ocorrerem, devem ser monitorados em suas 73 mudanças consecutivas. Sem tempo e espaço, não há onde localizar uma ação e nem saber como ela começa e quando ela vai deveria terminar. Tempo, espaço, matéria e energia eram tidos como sustentáculos da realidade conveniada por todos os seres humanos, e somente em 1905, um jovem cientista conseguiu compreender e explicar que os pilares eram na verdade duas grandes colunas. Einstein conseguiu elegantemente provar que tempo e espaço são correlatos bem como matéria e energia (E=mc^2), para espanto da população. Como? Por que demorou tanto tempo para que as pessoas percebessem o que para nós agora parece tão óbvio? Simples: Einstein não foi o único a supor uma teoria, mas foi o primeiro a propor uma construção visual para ela subtraindo do sistema uma crença, então comum, do éter luminífero. Dez anos mais tarde, munidos de estudos de outros gênios como ele só, conseguiu reunir as duas colunas em um grande pilar na teoria geral da relatividade. Façamos como Einstein e pensemos tempo e espaço nos jogos não como coisas absolutas, mas sim, como relatividades. E como relatividades, devemos tirar delas motivos fundamentais que serão compreendidos como regras e procedimentos, bem como diretamente responsáveis por conflitos e recursos. Relações Temporais: • • Lineares Paralelas Quando falamos de relações temporais, nos referimos aos acontecimentos do jogo sob a possibilidade de ocorrerem encadeados ou simultâneos. É comum que em um primeiro momento pensemos em jogos como um cordão de contas ordanado no qual o jogador deve seguir adiante sem poder retroceder na linearidade... Toda a matriz de escolhas providenciada pelo game designer refuta que algumas ações ocorram depois de outras, pois isso fere a lógica de causa e efeito comum não só aos jogos como também as narrativas especialmente as fílmicas. O Príncipe só pode beijar a Branca de Neve depois que ela morde a maçã, não somente porque é esse o ápice da história infantil sobre necrofilia, mas porque o Príncipe não é causa, mas efeito do ato da maçã ter sido mordida pela Branca de Neve. Sim, meus caros, personagens não somente cumprem ações de, mas podem ser eles mesmos causa e efeito de outros personagens. No nosso entendimento lúdico, objetos e seus aspectos podem ser causa e efeito de outros, não somente suas relações serão causa e efeito de outras relações. A programação do jogo deverá contar com elencos de situações e seus gatilhos para que haja, por parte do jogador, 74 um bom entendimento de previsibilidade, mas sem que com isso ele fique preso a um tolo exercício de memória. Logo que percebemos que o tempo pode ser visto no jogo como uma faixa larga de encadeamentos, podemos fatiar a faixa em fitas mais delgadas em busca de simultaneidade, especialmente importante para que o jogo se apresente ao jogador como um espaço persistente. Ainda que o jogador seja o ralo para o qual todos os artifícios entornam, ele só poderá se perceber importante em um espaço no qual o tempo é determinante para o seu progresso. Em jogos de múltiplos jogadores realizados por turno, cabe ao jogador conceber e executar ações em sua jogada que irão sacudir as estratégias de seus oponentes nas jogadas próximas. Ao mesmo tempo, alianças podem ser consolidadas e os desafetos vingados. Cabe a cada escolha a emissão da seguinte pergunta: o que é feito em outro evento durante a ocorrência dese evento? Se o evento A depende do evento B, dizemos que há uma relação de linearidade. Se o evento A independe do evento B e concorre com ele, dizemos que há uma relação de paralelismo. Jogos normalmente irão apresentar ambas as relações, no entanto, alguns jogos apresentam essas relações de modo bem curioso. Figura 32 - Braid, de Jonathan Blow Braid, de Jonathan Blow, brinca com a sensação de causa e efeito apresentando um personagem que explora mundos nos quais o tempo, ou seja, a sequência de situações, ocorre de modo inusitado. Como um jogo eletrônico de plataformas a serem ultrapassadas aos saltos, ao exemplo de Mario, Sonic ou Great Giana Sisters, uma primeira vista não oferece novidade. Além da estética inspiradora, é somente um jogo de vencer obstáculos quicando sobre monstros e escapando de espinhos... Até que se percebe que uma ação indesejada pode ser retrocedida a um ponto anterior a falha, e todo o modo de jogo ganha uma resplandecência única. Revisitar o passado para corrigir os erros não é novidade, muitos dirão. Afinal, Mario, Sonic ou Great Giana Sisters dão ao jogador o direito a novas tentativas por meio de vidas em um estoque. Mas em Braid, o 75 conceito de punição pelo erro é somente um dos aspectos refletidos pela capacidade de se voltar no tempo. Outros aspectos envolvem fases inteiras nas quais o tempo está ao contrário, ou seja, a pista para sua solução é conceber do efeito a causa e estar no ponto certo para que a simetria seja verificada. Em outro cenário, por exemplo, ao se andar para frente, o tempo segue adiante e quando se volta, o tempo retorna... revivendo inimigos mortos previamente, inclusive. A verdade é que o desafio surge da nossa incapacidade de lidar com o tempo do jogo como lidamos com o nosso tempo. Em resumo, ao se projetar o jogo, consideremos tudo que ocorre pela sua relação guardada com todos os outros eventos determinantes. Linear ou paralelo o tempo é uma progressão que pode ser pensada também regressivamente. Relações Espaciais: • • Bidimensionais Tridimensionais Quando falamos de relações espaciais, nos referimos às geometrias do jogo na possibilidade de ocorrerem em um plano cuja normal aponta para a tela ou em altura, largura e profundidade. Nos jogos analógicos, a relação entre planos e sólidos se desenvolveu pela materialidade, pois como os tabuleiros eram projeções de um solo de espaços restritos, as peças podiam erguer-se na tridimensionalidade para facilitar sua manipulação. São poucos os jogos que dependem exclusivamente do volume para serem jogados e mesmo quando isso ocorre, é como uma extensão de regras que poderiam ser manifestadas no plano como uma ilusão perspectiva. Antigamente, devido a limitações técnicas, promover um espaço de participação eletrônica além da projeção bidimensional da tela envolvia um alto custo de computação matemática para os primeiros jogos eletrônicos. Com a evolução tecnológica dos processadores e o surgimento de equipamento dedicado, os jogos eletrônicos contaram com uma quebra dimensional que os permitiu explorarem volumetria. De qualquer modo, como as telas dos televisores e dos computadores são invariavelmente planas, mesmo os jogos tridimensionais ocorrem bidimensionais, o que demanda uma série de cálculos para lidar com projeções das geometrias e assim, iludir o jogador que se imagina estar cada vez mais “dentro” de ilusão topográfica. Quando Brunelleschi desenvolveu as normas da perspectiva linear descoberta pelos gregos e romanos, mas esquecida na Idade Média, os artista do século XIV conseguiram iludir o expectador reproduzindo coisas tridimensionais no plano bidimensional com muita exatidão. Nada muito diferente do que fazemos hoje mais 76 rapidamente com placas de vídeo e computação gráfica. O espaço no jogo, portanto, é somente uma ilusão que determina como os elementos constituintes irão considerar uns aos outros. Nas relações espaciais bidimensionais, os objetos do jogo se interpõem considerando altura e largura em coordenadas cartesianas. Acima, abaixo, na frente ou atrás são facilmente observáveis quando o plano se desloca no sentido horizontal. Acima, abaixo, ao lado direito e ao lado esquerdo são facilmente observáveis quando o plano se desloca no sentido vertical. Mas e quando o plano se desloca no sentido diagonal? Figura 33 - Zaxxon, da Sega Enterprises Zaxxon foi um jogo de participação inovadora, lançado pela Sega em 1982, por contar como uma perspectiva paralela obliqua, ou seja, com o observador situado no infinito sem que as retas paralelas sejam obrigadas a se unir em um ponto de fuga. O problema com essa visualização é que como não há diferença entre as relações de medidas dos eixos de altura, largura e profundidade (daí ser uma isometria) é comum ao jogador se confundir com sua posição no espaço, tendo no fato o desafio do jogo: como não é possível acelerar ou desacelerar a nave, o jogador deve estar atento para destruir ou desviar das armadilhas tridimensionais. No jogo da empresa japonesa, sombras e altímetro foram necessários para o jogador posicionar sua nave em relação aos demais obstáculos que se manifestam também em diferentes pontos do espaço representado. Como primeiro jogo de tiro em isometria axonométrica (vide o seu nome), Zaxxon pavimentou a estrada para outros jogos em relação ao seu deslocamento e representação no espaço “pseudotridimensional”, pois a perspectiva isométrica é considerada uma forma barata (em termos de custo computacional) para promover a sensação de volume em representações. Tomemos o efeito como uma passagem suave para a complexidade da reação a tridimensionalidade sem sairmos da simplicidade de se produzir na bidimensionalidade. Embora o uso maciço de computação gráfica tenha colocado a prática da representação isométrica como estilo e não como necessidade, muitos jogos se 77 beneficiam do imediatismo aos objetos tridimensionais ao quais se referem. Nas relações espaciais tridimensionais, os objetos do jogo se interpõem considerando altura, largura e profundidade, em coordenadas também cartesianas, mas matriciais ou resolvidas por quaternions. Acima, abaixo, na frente, atrás, ao lado direito e ao lado esquerdo, bem como dentro e fora, podem ser facilmente percebidas pela rotação de uma câmera virtual, providenciando ao jogo um novo eixo para manifestar conflitos e recursos e assim, definir regras e procedimentos. Muitos acreditavam que a tridimensionalidade daria fim aos jogos bidimensionais, mas uma ilusão não extingue outra. Como a fotografia não extinguiu a ilustração, ou o cinema não extinguiu o teatro. Cada ilusão é poderosa por si segundo expectativas de uso, e antes de uma obrigatoriedade, usaremos as relações espaciais como estratégicas. Concluindo nossa ponderação sobre relações espaciais bidimensionais ou tridimensionais, pense que independente do número de dimensões que irão apresentar nossos jogos, objetos irão se colocar interrompidos uns sobre os outros ou alinhados uns com os outros. E dessa situação de conflito de localização coisas interessantes deverão acontecer. Vigésima Exposição: Composição Diagramada Agora que as ideias de mecânicas de jogos estão pipocando em sua mente, cabe falar sobre como elas farão parte do sistema ou deverão se relacionar com outras mecânicas previamente concebidas. Mas ideias só o são quando ainda na mente. Tão logo sejam verbalizadas e assim descritas, estarão perdidas no mundo das concretizações. Pobres ideias... Tão belas e 78 infalíveis, agora de desintegram diante da primeira bateria de dúvidas e incertezas. Mas não fique triste: mesmo na mente, as ideias tem um prazo de validade muito curto pois estão em constante conflito com outras ideias, disputando com elas nossas melhores sinapses e a honra de sair de nossa cabeça para vagar pelo mundo. O conjunto de ideias que sobrevivem ao árduo combate por nossa atenção chama-se “criatividade”. Tudo do que precisamos das ideias é do seu poder se aglomerar em criatividade, pois sem criatividade, faz-se o mesmo de sempre ou pior. Para permitir que as ideias vencedoras persistam e virem ideias criativas, elas não podem ficar morando no seu miolo eternamente. Trate com urgência de garantir sua transferência para a concretização transformandoas em símbolos. De então veremos como em um processo de composição, os símbolos serão a manifestação de poder das ideias. Símbolos são as formas de comunicação de sentido mais adequadas para que as ideias sejam mantidas e transmitidas. Por isso não nascemos com eles, pois nascemos sem muitas ideias. As ideias, especialmente as abstratas, são acúmulos de impressões e manipulação de repertórios que conquistamos ao longo da vida, em momentos especiais como diante de um belo por do sol ou corriqueiros como cortando a unha do dedão do pé. O mais importante sobre as ideias é que elas emergem quando menos se espera, dai sua captura ser um exercício constante a ser desenvolvido. Símbolos são aprendidos, e sua universalização depende da facilidade com que transmitem as ideias subjacentes e a qualidade das consequências que seu aprendizado promete. Nos símbolos acima, destacados de um aeroporto qualquer, é fácil perceber a estilização de personagens humanos. Mas lembre-se que isso não é natural pois nossas cabeças são grudadas no corpo por pescoços que nas imagens inexistem. Como a ideia não é referir a pescoços, mas destacar ações que esses personagens podem fazer e principalmente, que eles se diferem entre os que usam calças e as que usam saias, os pescoços não são necessários. Todo símbolo, portanto, é menor que o referido porque não é ele exatamente. E toda ideia é maior que o símbolo porque nele é limitada sua representação. Como forma de operar os símbolos da maneira mais objetiva possível, iremos considerá-los em diagramas. Um diagrama é um esquema, com a diferença que diagramas envolvem linhas e pontos enquanto esquemas tendem a ser mais sintéticos. No fundo, ambos são representações gráficas de relações, no presente caso, simbólicas. Por isso aprenderemos a realizar dos nossos jogos uma composição diagramada. 79 Figura 34 - Mapas Conceituais A primeira forma de satisfazer um elenco conceitual de termos simbólicos para nosso jogo é com o uso de mapas conceituais (ou mapas mentais, conforme traduzem alguns autores). Acredite, é uma ferramenta muito, muito poderosa, que pode ser usada tanto para provocar ignição como também para apagar verdadeiros incêndios mentais. O uso de mapas conceituais é direcionado para os momentos iniciais de criação e desenvolvimento porque estabelece de forma flexível, parâmetros a serem cobertos e editados, facilitando a discussão da equipe em terreno comum e mostrando relações entre ideias que de outra forma seriam transparentes ou muito bem camufladas. Há inúmeras técnicas para a construção de diagramas como mapas conceituais, mas todas têm em comum, fundamentos de distribuição: no centro de uma folha estabeleça o conceito principal e dele expanda pelo menos três ramos principais dos quais frutificarão conceitos relevantes. Por serem hierarquizantes, os mapas conceituais podem depender de anotações, ilustrações, grafismos e outras formas de conectar conceitos uns aos outros. Seja qual for o grau de liberdade, é importante que o mapa conceitual estabeleça, como mapa que é, trajetos a serem percorridos e oásis nos quais é importante se interromper. A principal recomendação é sentir-se solto para ousar nas palavras e obter de cada ramo principal, pelo menos uma trinca de novos conceitos a serem operados como semântica ou livre associação. 80 Figura 35 - Diagramas de Classes A segunda forma de diagramar nossos símbolos é por meio de diagramas de classe. É uma forma de modelar informação de modo a promover comunicação, compreensão de sequência e monitoramento de estados. Usam-se diagramas de classe especialmente na programação, pois o caráter estrutural envolve os objetos em seus aspectos, ou seja, classe é uma abstração para um conjunto de objetos dos quais se determina atributos e métodos (ações e comportamentos). Pelo diagrama de classes, podemos mapear com precisão narrativa uma determinada peça do nosso jogo, sua dinâmica e as implicações de seu uso. Imagine o diagrama de classe como uma tubulação que irriga os diferentes objetos do jogo com condições de escolha e suas decorrências. Como os objetos estão interconectados, é providencial que a hierarquização decorrente de sua diagramação seja negociada com vistas para atalhos e expansões de detalhe. Cada item do diagrama de classe pode dar origem a outros diagramas de classe que são minimizados para facilitar sua compreensão e visualização. 81 Figura 36 - Anotações amparadas por esquemas sintéticos A terceira forma de diagramar símbolos é pelo amparo de esquemas sintéticos. Não se espera que haja inspiração de um Donatelo ou um Caravaggio para ilustrar os símbolos pois o importante é o entendimento dos conceitos e não sua fruição estética. Como os jogos são organizados como planos de situações a serem participados, os esquemas sintéticos facilitam ao autor identificar causas e efeitos, bem como especialidades da mecânica sem com isso perder muito tempo em descrições profundas. A ordem como os esquemas são distribuídos na área de visualização (seja papel ou tela do computador rodando algum aplicativo gráfico) não importa tanto, pois a modularidade é mais conveniente como lógicas isoladas mas coerentes em si. Tome como exemplo os cadernos anatômicos de Da Vinci ou mesmo aqueles planos mirabolantes (os famosos dispositivos pitagóricos ou máquinas de Rube Goldeberg) dos desenhos do Tom e Jerry. O objetivo é dotar a ideia de substância e registro, por mais estapafúrdia possível. Cadernos com folhas milimetradas ou sem nenhuma pauta são excelentes para catalogar impressões. Tenha um sempre a postos. Nunca se sabe quando a próxima ideia mirabolante deverá ser apanhada por ele. 82 Vigésima Primeira Exposição: Documentação é Controle de Quem Realiza Para se perceber a criação e o desenvolvimento de jogos como uma atividade mediada por decisões, é importante se estabelecer, antes de mais nada, o escopo do trabalho. Afinal, jogos são produtos industriais pois tendem a reprodutibilidade, e mesmo se feitos por uma manufatura de única ou poucas unidades, controle de produção é fundamental. Vivemos uma cultura que enaltece o mambembe e as soluções tiradas da cartola, mas para concorrer com outros produtores ao nível profissional, nos obrigamos doravante a assumir uma postura rígida de organização das nossas tarefas enquanto autores. Se não assim, o projeto é vitimado pela volatilidade das decisões imediatas sacrificando, de todos, tempo, dinheiro e juventude. O país é um território fértil para iniciativas, mas as “findativas” ainda são raras. Pense: quantos projetos você iniciou que foram interrompidos pela desorganização dos métodos? Não queiramos que nossos jogos derrapem na falta de norma e informação. Tudo que for necessário para o sucesso do projeto deverá ser meticulosamente arquitetado com antecedência. Não se trata de sorte: todos os jogos que aí vicejam são fruto de um extenso programa de reportagem e registro. O que nos separa de outros primatas não é só a aptidão por ferramentas, mas uma capacidade única de dar como herança para nossos descendentes aquilo que descobrimos em nossas vidas correntes: Registro. O processo de documentação que veremos em seguida, busca dar conta dessa prerrogativa histórica, pois o jogo é um produto localizado em uma cultura e em um mercado simbólico de outros muitos jogos. Além de servir como identidade para nosso jogo, os documentos serão úteis para tornar contratos de criação e desenvolvimento entre as equipes uma certeza 83 compartilhada. Imagine um filme sem roteiro... Imagine uma máquina complexa sem um guia de montagem... Imagine viajar para um país distante sem conhecer nada de seus costumes e geografia. O mesmo nós podemos imaginar dos jogos sem a documentação adequada. Documentos Os documentos envolvidos na construção de um jogo se dividem em três momentos nos quais os autores apresentam as ponderações que irão servir de guia para o projeto inteiro. Antes de sair em disparada trabalhando em narrativas, estéticas, mecânicas e tecnologias, convém observar que é preciso responder as perguntas “o que”, “como” e “porque”, cada uma em um momento preciso. O ato de responder a essas perguntas de modo organizado constitui o gerenciamento do processo, cujo resultado será um jogo, ou melhor dizendo, um jogo possível, pois o documento não realiza o jogo, somente otimiza sua produção. Principais documentos de gerenciamento de processos: • 1 | criação: game concept game proposal • 2 | desenvolvimento: game functional specifications game technical specification • 3 | retroalimentação: post mortem Os dois primeiros documentos são aqueles que estabelecem o jogo por seu argumento e sem os quais, definir parâmetros se torna impossível. No game concept, os autores apresentam as linhas gerais dos jogos e seus aspectos mais interessantes, ou seja, aqueles que representam o jogo em sua essência lúdica e filosófica. Não é necessário entrar em grandes detalhes nesse primeiro documento, pois não se trata de um espaço que admita muitas informações (normalmente um game concept como documento tem, no máximo, duas laudas), mas será suficiente para que o leitor saiba do que se trata o jogo, de que modo será participado e quais as relações culturais que o jogo estabelece com outros jogos semelhantes em um panorama promissor. Como conceito é a menor unidade de sentido de uma ideia, vale a simplicidade e a objetividade nesse primeiro documento. Conceito é o que difere duas obras cujas narrativas aparentam idênticas. Mas de nada adianta uma ideia excelente sem um piso, uma defesa proposital para o desenvolvimento do jogo. No game proposal, então, os autores apresentam as linhas gerais dos jogos como produtos e seus diferencias de mercado. Assim é possível saber “o que” será 84 produzido. Os itens cobertos nos documento de conceito devem dar conta de explanar brevemente sobre o projeto em termos de título, membros da equipe, contexto cultural, características principais e inovações, similitudes e diferenças com jogos parecidos, objetivo do jogo, suas regras (amplas), sua temática (justificada) e sua experiência (esperada). Os itens cobertos nos documento de proposta devem dar conta de explanar brevemente sobre o projeto em termos de título, membros da equipe, contexto econômico, características comerciais, expectativas de valores para o projeto (custos e prazos para cronogramas) e pesquisa estética, narrativa, mecânica e tecnologia para síntese de definições. De posse dos itens respondidos, o jogo pode ser criado. Os documentos intermediários são aqueles que estabelecem os trabalhos com a confecção do jogo a partir de metodologias específicas. Tão específicas, que o documento é dividido em um guia para as especificações funcionais (orientadas as funções mecânicas do jogo a partir de seu conteúdo, suas regras e seus procedimentos) e em um guia para especificações técnicas (orientadas ao funcionamento das tecnologias empregadas a partir de sua forma e programação). Tanto um quanto o outro terá como expectativa organizar tudo que for referente ao jogo enquanto conteúdo e enquanto forma, para que haja desenvolvimento. A expansão dos documentos anteriores e os dois guias no núcleo pulsante do projeto, transforma o texto em um compêndio de definições que recebe o nome de Game Design Document e trata, sobretudo do “como”. Os itens cobertos nos documento de especificações funcionais devem dar conta de explanar sobre as decisões em termos de descrição de modo de jogo e componentes (gameplay, espaço, dinâmicas, agências e estados), interfaces, artes audiovisuais, narrativas e progressões. Os itens cobertos nos documento de especificações técnicas devem dar conta de explanar sobre as decisões funcionais em termos de implementação do jogo pelas tecnologias cabíveis (jogabilidade, plataforma, materialidade, restrições de uso, relações entre dispositivos, e lógicas). Os documentos finais são aqueles que estabelecem uma crítica histórica das conquistas e das faltas, importantes para projetos vindouros, que serão beneficiados da experiência do fazer. Para que haja evolução constante, é precioso saber olhar para trás em perspectiva de aprendizado. Os post mortem são documentos que resumem de forma qualitativa e quantitativas os dados coletados pelos autores para melhores práticas futuras, retroalimentando o processo criativo. Embora gostemos de pensar que tudo pode ser diferente, nos espantamos como alguns erros de avaliação são recorrentes e como detalhes fazem tanta diferença. Tendo isso em vista no momento da redação, ficam claros os “porquês” das escolhas de projeto. Ainda que nos parágrafos acima estejamos referenciando conjuntos de informações como documentos, não pense que haja obrigatoriedade dos mesmos serem distribuídos após 85 impressão para todos os membros da equipe ou como arquivos de texto com extensos números de versão ao final do nome. Há muito debate sobre documentos estáticos (impressos) e documentos dinâmicos (online), cada qual com atrativos e contrariedades. Mesmo modelos oficiais de conceito de jogo, proposta de jogo, especificações funcionais de jogo e especificações técnicas de jogo tendem a mudar, refletindo os parâmetros de certos tipos de jogos que não se observam em outros tipos. O que deve se ter sempre em mente é que o ato de manter coerência nos tópicos faz com que não haja dúvidas nas soluções implementadas e portanto, antes de ser literatura, documentos de criação, desenvolvimento e retroalimentação, devem prezar pela objetividade e pela comunicação das equipes, cujas responsabilidades falaremos em seguida. Equipes Jogos são feitos por pessoas. Na Internet, outras pessoas imaginam que a realização de um jogo de grande sucesso é um ato de vontade: alguém aperta um botão escrito “make me an Angry Birds” e um computador gera automaticamente o código, os gráficos e o marketing para que o dono do dedo ganhe milhões de dólares. Não é assim, e jamais será, pois se os jogos pudessem ser criados automaticamente, o primeiro que aparecesse com algo novo além do que poderia ser automaticamente resolvido ficaria famoso por pensar diferente. São tantas as nuances de um projeto que cada jogo é único por ser resultado dos pensamentos dos envolvidos em sua criação e desenvolvimento. Pessoas são ótimas para resolver problemas por que elas conseguem colocar o raciocínio lógico subjacente a um pensamento mítico, coisa que as máquinas ainda não conseguem fazer. Computadores são ótimos monitores, mas são péssimos professores. Pelo menos por enquanto... Outra verdade sobre as pessoas é que elas funcionam melhor em grupos do que solitárias. Mesmo os gênios do passado, polímatas de mão cheia, tinham em suas equipes talentos diversos para resolver minúcias. A complexidade que observamos hoje em obras como jogos nos faz assumir uma postura de uso de múltiplas competências. Antigamente jogos eletrônicos eram produzidos por engenheiros da computação que trabalhavam solitários e respondiam por questões funcionais e técnicas, misturando arte e ciência para ganhar salários ridículos (programadores de jogos jamais ganharam mais que engenheiros de igual talento). Mas mesmo solitários, sabiam da realidade das divisões de tarefas e assim, responsabilidades diferentes para cada aspecto do jogo. Hoje assumimos que o mais simples dos jogos pode ser decomposto em manifestações essenciais por quatro agentes, a saber: 86 Divisões Funcionais: • • • • Produtor Designer Artista Programador O Produtor é responsável pela organização da proposta e consequente união dos participantes em torno de um ideal de produção comum. Cabe ao produtor documentar o processo, gerenciar administrativamente os recursos, prazos e considerar a orientação do encaminhamento do projeto rumo a sua conclusão qualitativa. Produtores, em termos breves, respondem pelo conjunto da obra, antecipando questões projetuais, artísticas e tecnológicas. Compete ao produtor, por sua responsabilidade de traduzir a ideia em concretude, a palavra final sobre questões de ordem estratégica, sem a qual o projeto é vitimado de interrupção ou cancelamento. O Designer é responsável pela transformação da proposta original em mecanismos intelectuais que se traduzem em situações de atuação lógica e divertida, conforme padrões e visando jogabilidade. Cabe ao designer escolher os instrumentos que o jogo usará para representar por simulação ou emulação situações interessantes a serem exploradas como escolha pelos jogadores. Compete ao designer, por sua responsabilidade de traduzir desafios e recompensas em mecânicas aplicáveis a obra, a palavra final sobre questões de projeto e estrutura de participação, sem a qual o projeto é vitimado de incoerências conceituais e descontextualizações. O Artista é responsável pela transformação da proposta original em estética e sensualidade que desfilam como componentes do jogo segundo critérios previstos de deslumbramento e engajamento pela audiovisualidade. Cabe ao artista escolher e implantar soluções gráficas e sonoras para que a estrutura resplandeça e se diferencie enquanto experiência para o jogador. Compete ao artista, por sua responsabilidade de traduzir as expectativas dos componentes de jogo em elementos singulares interessantes e envolventes, a palavra final sobre questões de representação e tônica, sem a qual o projeto é vitimado de superficialidade e desacato a uma linguagem visual. O Programador é responsável pela transformação da proposta original em codificação exemplar que o sistema fará uso para poder ser participado, interagido e experienciado. Cabe ao programador escolher e implementar tecnologias visando o funcionamento do sistema de jogo como lógica computacional automática, na qual os jogadores irão se envolver para cumprimento das demandas previamente descriminadas. Compete ao programador, por sua responsabilidade de traduzir objetos, aspectos, relacionamentos e ambientes imersivos, a palavra final sobre questões técnicas e restritivas, sem a qual o 87 projeto é vitimado de inviabilidades e impossibilidades tecnológicas de confecção. Como as responsabilidades operacionais podem ser dividias entre os agentes do projeto, em equipes com muitas pessoas, é preciso uma hierarquização das funções desempenhadas. Quanto mais pessoas estão envolvidas no processo criativo, maiores as chances de discórdia entre as soluções e maiores as chances do cancelamento mútuo pelo excesso de zelo (pois inimigos não querem concordar com inimigos e amigos não querem magoar amigos). Para isso, é conveniente que as divisões administrativas definam nos membros da equipe seus diretores, gerentes e coordenadores. Divisões Administrativas: • • • Direção Gerência Coordenação Como o nome indica, diretores dirigem, ou seja, apontam o curso para um horizonte e supervisionam o trabalho de determinada área de execução na obra (artes e design, tecnologia e desenvolvimento, ciência e cultura, produção e conteúdo). Em outras mídias o diretor, de certa forma, assina a obra. No caso dos jogos, no entanto, o diretor não é o responsável final pela produção, mas somente lhe permite uma perspectiva baseada em sua experiência profissional. Diretores tem a visão mais ampla do processo pois definem “o que” e “como” será realizado. Gerentes, por sua vez, gerenciam, ou seja, permitem a gestão por planejamento e controle entre subordinados das suas funções. Normalmente, os gerentes se organizam em torno de um diretor, cuidando de funções intermediárias em responsabilidade decisória imediata. Tome por exemplo uma loja ou restaurante: cabe ao gerente gerir os vendedores ou garçons para que o atendimento seja da melhor qualidade com o mínimo de custos e perdas. E quando o cliente não está satisfeito? Cabe ao gerente decidir o que fazer, não os diretores, que lidam com escopos mais abrangentes. Os gerentes realizam e demandam a realização das definições dos diretores. Por fim, os coordenadores atuam diretamente junto às equipes de execução, servindo estrategicamente aos gerentes como facilitadoreas da organização, mas com restrição as ordens dadas. Coordenar é ordenar conjuntamente, daí sua postura que pode assumir deveres de reportagem dupla entre as divisões administrativas e operacionais, mas com responsabilidades menores em termos decisórios. Os coordenadores realizam e ajudam na realização das decisões dos gerentes. 88 Vigésima Segunda Exposição: Métodos Iterativos: Cascatinha ou Agilidade Há duas formas de considerar um projeto de jogo, ambas importadas da investigação em estudos de produção de softwares, embora sirvam para outras requisições. A primeira é oriunda das dificuldades de distribuir acesso amplo aos primeiros, raros e caros computadores, e portanto, exige que se apresente antes do trabalho, certezas finais. A segunda, considera que nenhuma expectativa de trabalho corresponde a certezas finais e portanto, devendo incutir no lapso de tempo de projeto, revisões devidas. Tanto um método como outro, tem por alvo a produção, mas diferem nos trajetos a serem percorridos rumo à meta, porque são iterativos em diferentes graus. Não é um erro de grafia. Queremos dizer ITERATIVO mesmo, não interativo, embora todo método iterativo que lida com decisões pessoais seja também interativo, pois a iteração depende da interação. Iterativo significa “o que se modifica por incrementos”, ou seja, sempre que estamos refazendo algo rumo ao refinamento do ponto final, estamos a iterar. Como métodos são formas de fazer, métodos iterativos permitem a feitura baseada em momentos ou ciclos e sobre como esses ciclos falaremos em seguida. Cascatinha O nome oficial não é esse, mas sim waterfall (ou queda d'água, no original em inglês). Foi estabelecido ao final da década de 1970 como uma sistematização sequencial de funções visando um fim determinado, impulsionada pela realização da função anterior. Tal qual uma cascata, só há uma direção possível, seguindo a gravidade. Nesse método parte-se de requerimentos, projeto, construção, desenvolvimento, testes de aceitação e por fim, o uso em campo. 89 Figura 37 - Cascatinha: sempre em frente! O método cascatinha aplicado a jogos, portanto, depende de definições para avanço, e portanto, tem foco na realização por fases que garantirão a existência do jogo só ao final do cumprimento de todas as etapas. O lado positivo é que não há muito espaço para deslizes. A objetividade do método torna a sequencia incorruptível e portanto, orientada para equipes de menor experiência que desejam a certeza da finalização. Foco no Método Cascatinha: • • • • • Fase Inicial: vai ou não vai Fase de Definição: limites Fase de Design: forma e subjetividade (look’n feel) Fase de Realização: feitura Fase Final: limpeza, implementação e suporte Para controlar o avanço nas etapas da Cascatinha, os gerentes de projeto atendem ao MOQIT, sigla para os principais requisitos do processo sem os quais deve haver uma interrupção (para controle de danos). Como não é possível retornar escada acima, na inadequação de alguma etapa, todo o projeto deve ser reiniciado. Controle por MOQIT: • • • • • Dinheiro (Money) Organização (Organization) Qualidade (Quality) Informação (Information) Tempo (Time) 90 Se não há dinheiro, ou organização, ou qualidade, ou informação ou tempo, não há como prosseguir. Avançar de forma débil só resultará em problemas insolúveis e de custos exorbitantes. Agilidade O nome oficial também não é esse, mas sim agile (ágil, no original em inglês). Foi desenvolvido por empresas de software em meados da década de 1990 em resposta ao modelo pesado e burocrático do waterfall, prometendo com sua leveza e flexibilidade, agilizar desenvolvimentos. Diferente do waterfall, o método agile prioriza a liberdade em ciclos rápidos de planejamento, construção e testes, que darão em novos planejamentos, construções e testes; e assim espiralando-se para fora, em direção ao término do projeto. Figura 38 - Agilidade: sempre flexível! O método agilidade aplicado a jogos, portanto, depende de revisões para avanço e por isso, tem foco na validação por ciclos (arriscados, difíceis e centrais) que garantirão protótipos de jogo, mas não um jogo concluído ao final do cumprimento de todos os ciclos. O lado positivo é que há muito espaço para experimentações. A subjetividade do método torna a malha delicada e portanto, orientada para equipes de maior experiência que desejam a liberdade da atualização. Foco, para em Primeiro Lugar: 1. 2. 3. As partes mais arriscados do projeto As partes mais difíceis do projeto As partes centrais do projeto 91 ... ao mesmo tempo: • • • Manter o rumo e retornar se necessário “Foco no Resultado, Atenção no Processo” Sempre testar entre resultados Uma orientação para o controle do método excessivamente aberto é atender a uma hierarquização de quesitos a serem constantemente atendidos, cuja sigla é MoSCoW. Asssim, ciclos inciais serão substanciados por novos ciclos, nos quais o que é prioritário, uma vez resolvido, permite quesitos menos importantes de serem considerados em execução. Controle por MoSCoW: • • • Tem que ter (Must have) Deveria ter (Should have) Poderia ter (Could have) • Gostaria de ter (Wish to have...) Se não há hierarquia do que é mais importante para o que é supérfluo, não há como finalizar o processo. Avançar de forma anárquica só resultará em confusão ao término do prazo e dos investimentos. Cascatinha ou Agilidade? Mas qual o melhor método para gerenciar um projeto de jogo? Ambos têm características positivas e negativas, e não é aconselhável misturá-los, pois são antagônicos em expectativas e práticas. Pior que não ter um método é ter um método que não oferece segurança. Se o método é um caminho rumo a término do projeto, não é possível se tomar dois caminhos ao mesmo tempo. Dependerá do viajante definir seu percurso e não caberá aqui apontar um ou outro método ótimo. No entanto, como forma de auxiliar na decisão, considere as características a serem comparadas: CASCATINHA • • • • • • O conceito é muito claro As funcionalidades claras O tempo é definido As alterações não são permitidas As equipes são inexperientes Haverá produtos 92 AGILIDADE • • • • • • O conceito é pouco claro Funcionalidades difusas Tempo não definido Alterações necessárias Equipes experientes Haverá protótipos Qual escolher? Que se faça uma lista de perguntas que será respondida pelos dois métodos. A que obtiver maiores constatações positivas, será a vencedora e o projeto será considerado segundo o método iterativo em questão. Vigésima Terceira Exposição: Pergunte para o Protótipo! Não adianta estimar. Em algum ponto do projeto topa-se com a necessidade incontornável de construir em objetividade nossas teorias, e assim, ter uma mínima certeza de estar-se na direção correta. Em certos projetos, a conclusão é a finalização obrigatória definida por um cronograma certeiro. Em outros, a conclusão é um ponto no qual não há mais necessidade de progredir. Tantas são as possibilidades de decisão durante o “fazer” que somente a prática pode servir de lastro para nossas expectativas. Por isso realizamos protótipos, como forma de antecipar respostas que normalmente só viriam ao final do processo, com tudo resolvido. Mas porque então não esperamos para ver o que acontece somente ao final? Por que somente em raras, raríssimas ocasiões, alguém acerta os seis números da Sena, ou onde uma bolinha da roleta irá cair. 93 Como não contamos com a sorte mas com medições e previsões bem justificadas, achamos importante a realização de protótipos. O nome já carrega duas mensagens muito claras: primeiro de que é algo anterior e segundo de que é um modelo. Protótipos são as formas mais baratas de antecipar problemas e suas soluções, auxiliando no refinamento da concretude sem que seja necessário assumir muitos riscos que, dependendo da data, podem ser fatais. Tomemos por exemplo um urinol e uma pia. A que altura um mestre de obras deve posicionar esses objetos em nosso banheiro? Por mais que se especule, que se determine uma altura média para o público alvo com base em pesquisas quantitativas nacionais e internacionais, ou se aplique um valor arbitrário da experiência do pedreiro, só teremos certeza de uma metragem adequada quando fizermos xixi e lavarmos as mãos.1 Essas serão alturas ideais porque refletem nossa realidade prática e não uma teoria. A teoria deve servir a prática, e os protótipos, tem como função dotar as respostas de autoridade. Sistemas diversos usam protótipos como dispositivos de medição de uso e portanto devem respeitar sua essência inacabada. Não cabe ao protótipo desempenhar um papel de produto final, mas somente responder a perguntas objetivas que irão sacrificar seu monolitismo. Nos jogos, usamos protótipos, sobretudo, para parametrizar regras, contando com tentativas de validação rápidas e garantidas. Quer saber se o jogador irá demorar muito para atravessar um tabuleiro? Faça um protótipo de tabuleiro com dimensões convencionais, dividido por certo número de casas e role dados seguidas vezes. Não possui dados? Recorte seis ou doze pedacinhos de papel numerados, embaralhe-os ou dobre-os como os fosse sortear alguém para um concurso. Não tem papel? Considere as placas dos carros que passam diante de sua janela pois o que o protótipo irá responder é que dado uma sequencia de valores aleatórios, um peão levará mais ou menos turnos para percorrer o espaço fornecido. Quer saber se um personagem está muito poderoso? Coloque-o em batalha com todos os outros personagens e identifique em uma tabulação, vitórias e derrotas, e veja como os valores de ataques e defesas podem ser modificados para que ele perca algumas vezes e assim não se destaque como escolha invencível. Quer saber se o jogador entendeu a forma como cartas devem ser dispostas? Use cartas plásticas de baralho chinês de lojas de R$1,99 com etiquetas coladas ou rabisque sobre elas com caneta marcadora de quadro branco (pois podem ser apagadas com álcool). Acredite, qualquer objeto que consolide rapidamente uma visão, torna-se valioso para o projeto sem os ônus dos custos do retrabalho final. 1 Por mais que me esforce não consigo me recordar onde ou de quem ouvi essa anedota ergonômica. Ao verdadeiro autor, minhas desculpas. 94 A prototipação, ou o ato de fazer e usar protótipos, portanto, não surge do nada, mas de expectativas de uso. O mesmo raciocínio é usado na ciência para se levar (hipó)tese a uma síntese ultrapassando uma antítese. Diversos cientistas divergem quanto à essência da inspiração para uma suposição inicial. Alguns dizem que é fruto de uma observação meticulosa diante dos fenômenos e a respectiva curiosidade de repetí-los de modo sistemático, enquanto outros atribuem o efeito a um insight quase místico diante do desconhecido. Prefiro ficar com o autor Robert Pirsig e pensar a lacuna observada como uma falta de harmonia a ser resolvida, com ele coloca no seu famoso livro Zen e a arte da manutenção de motocicletas, de 1974. Assim, a prototipação sugere atenção a uma matriz com quatro elementos qualitativos: no eixo da adequação, ou aplicação do protótipo, a convenção e o contexto no qual ocorre. E no eixo da profundidade, ou plataforma de referencialidade do protótipo, a abstração e a fidedgnidade. Adequação: • Convenção • Contexto Profundidade: • Abstração • Fidedginidade Um assaltante pode entrar em um banco com o dedo apontado escondido no bolso do casaco e pode sair de lá com o dinheiro do caixa ou ser descoberto e tomar uma surra dos seguranças. Em termos de convenção, algo que se aponta e do qual não se tem a informação completa, pode bem ser uma arma de fogo. Dado o contexto do banco, faz ainda mais sentido, por se um espaço que lida com valores e portanto, que atrai esse tipo de investida. Por outro lado, em nossa matriz, é preciso que o segurança abstraia o fato da dita arma poder ser um objeto outro qualquer e pior, no caso do ladrão, que ela não funcione de modo esperado pois até onde se sabe, dedos não disparam. O protótipo de arma do nosso vilão respondeu a algumas perguntas positivamente e outra negativamente: é possível que um dedo possa ter tomado como arma? Sim. É possível que por decorrência da ilusão o dinheiro seja entregue? Sim. O dedo é idêntico a uma arma em forma? Não. Ele atira, ou seja, mesmo não parecendo, se comporta como tal? Não. Protótipos guardam relações funcionais ou técnicas com os objetos e processos que se deseja avaliar. Outros dispositivos respondem perguntas mas os protótipos são certeiros na objetividade da resposta, por isso devem ser usados desde muito cedo no projeto. Mecânicas são rapidamente colocadas à prova e Estéticas evidenciam 95 sensibilidade do público e a comunicação das informações de modo coerente. A Tecnologia empregada se mostra útil ou fútil e as Narrativas podem ser corrigidas caso não não agradem aos participantes do teste. Sim, testes! Todo uso de protótipo constitui-se em um fundamento para a prática de teste, e sobre eles, falaremos em breve. Vigésima Quarta Exposição: “Hora de se Jogar! Nos Tabuleiros” Na vigésima-quarta exposição os agentes se viam às voltas com o terceiro projeto de jogo enquanto prática, no caso, munidos de quaisquer objetos pertinentes a um jogo de tabuleiro de seu interesse (peões, fichas, dados, cartas...), mas restritos a condições e formatos do tabuleiro. O detalhamento dessa atividade conforme anunciada pode ser encontrado na seção que lida especificamente com as práticas. Cabe ressaltar que para muitos dos agentes jogos de tabuleiros são palcos de manifestação de préconcepções acerca de outros jogos, muitas vezes desconsiderando que o que mais importa no mesmo é justamente a validação espacial. Não raro observa-se em alguns projetos o tabuleiro como acessório, e não como suporte, daí a importância da atividade. O objetivo da exposição, portanto, é promover a compreensão da forma que segue a função, ou seja, que conceito e contexto andam lado a lado. Vigésima Quinta Exposição: Simplicidade e Elegância De todas as lendas atribuídas ao tangram (aquele conjunto de pedacinhos de madeira que parecem ter saído de uma aula de 96 geometria do jardim de infância), a que mais gosto relata um pedido de um mestre para que seu discípulo, em viagem, pegasse um espelho e ao retornar, mostrasse no objeto tudo que tivesse visto. Ao espanto do discípulo de não poder realizar tal coisa, o espelho caiu e quebrou-se em sete pedaços que reacomodados, podem fazer figuras de qualquer coisa. Bonito, não? Uma forma tão simples quanto um quadrado ser capaz de se reacomodar em diversas formas... Deveras um dispositivo fantástico justamente por não se transformar nas coisas figuradas, mas evocar tais coisas no repertório e no imaginário do seu observador. Figura 39 - O que existe no mundo são cacos de algo maior O que permite tal mágica? O mínimo possível. Com oito cacos não teríamos maiores oportunidades de figuração (6500 e aumentando rumo ao infinito desde o século XIX em diversos livros e textos). Mas com seis cacos teríamos menos, certamente. A noção de simplicidade que defendemos reside na atenção do que é o suficiente, nem mais, nem menos. A simplicidade, porém, é um ensaio. Tendemos a complicar as coisas, principalmente regras e procedimentos, muitas vezes dando volta em coisas que, se eliminadas, garantiriam agilidade na compreensão. Lembre-se sempre que os melhores jogos não são aqueles com mais instruções, mas aqueles cujas instruções são rapidamente apreendidas e colocadas na prática do jogar. Como não gostamos muito de ler manuais, esperamos que jogos sejam tão intuitivos quanto possível, esperando que se comportem como achamos adequado. A sensação de simplicidade a ser instaurada no projeto é explanada em um livro muito interessante publicado pelo designer John Maeda chamado As leis da simplicidade, de 2006, as quais apresentamos abaixo como forma de refletirmos sobre o nosso projeto. 97 As 10 leis da simplicidade, segundo Maeda Maeda salienta que de todas as leis, a mais importante é a décima, pois engloba as demais. Mas vejamos cada uma delas: Lei 1: Reduza. Simplicidade, de forma simples, é por redução pensada Lei 2: Organize. Organização faz um sistema de muitos parecer que tem poucos Lei 3: Tempo. Economia de tempo faz as coisas parecer simples Lei 4: Aprenda. Conhecimento faz tudo mais simples Lei 5: Diferença. Simplicidade e complexidade se precisam Lei 6: Contexto. O que está na periferia da simplicidade não é periférico mesmo Lei 7: Emoção. Mais emoção é melhor que menos Lei 8: Confiança. Na simplicidade nós confiamos Lei 9: Fracasso. Algumas coisas nunca podem ser simplificadas Lei 10: A única. Simplicidade é sobre subtrair o óbvio e adicionar o significativo Simplicidade é sobre subtrair o óbvio e adicionar o significativo. Pense em soluções que sejam simples em termos interfaciais, sem contudo, reduzirem a complexidade emergente do ato de jogar e estaremos em um bom prognóstico. Use como navalha as leis acima e retire de seu orçamento simbólico aquilo que não acrescenta significação ao que o jogador faz, e ele lhe será grato por todas as escolhas indevidas e irrelevantes que deveria fazer mas não fará. Por que as pessoas antigamente temiam o imposto de renda ou declarações semelhantes? Por que não eram tarefas simples de se realizar, e assim, não lhes proporcionavam nenhum afeto. Considere atividades simples que te fazem se sentir poderoso e inteligente e compare com atividades complicadas que te fazem se sentir submisso e ignorante. A simplificação deve ser uma meta. 98 Figura 40 - Simples No entanto, a simplificação não deve jamais subestimar a capacidade do interator. Pois antes de ser um ponto culminante, a simplicidade é uma comparação dinâmica entre aspectos que remetem a competências e habilidades das pessoas envolvidas na atividade. Um jogo da velha, pode ser considerado o ápice da simplicidade dos jogos de dominação (aqueles em que espaços precisam ser tomados por captura). Porém, esse status é depreciado por aqueles que entendem e dominam todos os recursos estratégicos do jogo e assim, convertem todos os embates para o empate. Crianças gostam de jogos da velha porque imaginam que sua solução se trata de um método heurístico (tentativa e erro) e podem, assim, ganhar umas das outras, ou perder uma das outras, muitas vezes. Mas tão logo percebem que sua capacidade de antecipação das múltiplas escolhas vai além do que o sistema pode oferecer, ficam enfadadas e procuram desafios mais complexos para solucionar. Na literatura de Mark Twain, Tom Sawyer usa da artimanha do desafio para ludibriar seus amiguinhos a pintar uma cerca em seu lugar, e não só Tom Sawyer se esquiva do trabalho, como é recompensado pois conseguiu transformar uma depreciação em desejo. Uma tarefa simples maquiada por uma tênue película de complexidade pode ser uma assunção inicial quando o interator desconfia de nossa incapacidade de medir suas habilidades. Tome como exemplos os verbos comuns aos jogos e veja como todos lidam com ações simples e diretas (correr, saltar, atirar, desviar, coletar, arrastar, empurrar, tocar...). E o contrário também se verifica, quando uma atividade normalmente complexa é desmontada em simplicidade que será reamplificada após a sua execução. Uma coisa seria pedir que o jogador calcule um movimento oblíquo medindo a intensidade do impulso e a força da gravidade chegando a um vetor resultante. Outra coisa seria oferecer um 99 estilingue, alguns projéteis ruidosos e penosos e alvos que ao serem impactados emitem ruídos engraçados como naquele “jogo que sua mãe não para de jogar”. Isso é elegância: a eficácia da simplicidade. O maior dos desafios não é fazer um jogo simples, mas um jogo elegante. Figura 41 - Elegante É fácil reconhecer alguém elegante pois há na pessoa uma áurea de leveza e graciosidade que a destaca das demais. E elegância em nada depende de status quo, poder ou dinheiro. É uma característica que se reconhece na propriedade da beleza, por instauração de um isomorfismo matemático: uma parte de uma estrutura complexa pode ser contemplada em outra parte, funcionando adequadamente em suas respectivas estruturas. Tomemos o xadrez como exemplo de um jogo elegante. Há simetria, duas e suficientes cores, uma grande carga de abstração retórica, peças bem definidas em funções específicas e complementares e muitas maneiras de se abrir e fechar cada partida. Outros jogos tidos como elegantes são Go, Damas, Nim, Hex, Mancala, Ludo, enfim, muitos daqueles que são vendidos em papelarias por um punhado de moedas e os quais poucas pessoas valorizam em sua profundidade histórica e prática.2 Há diversas maneiras de conquistarmos a elegância em nossos jogos, mas dependerá do recorte do jogo em termos de simplicidade. E a melhor maneira de saber se algo está suficientemente simples e ainda assim interessante, é colocar em teste, finalmente. 2 O mesmo ocorre com a música clássica, obra de esfinges da música, banalizada em propaganda de desodorante feminino. 100 Vigésima Sexta Exposição: Testes e mais testes: iterativos e ludocêntricos Há um grande e difundido temor quando falamos de testes é o quero aqui salientar. Não testamos as coisas para saber somente se funcionam ou não, mas para torná-las melhor para próximos testes. Teste são verificações, checagens da verdade; e se os considerarmos como momentos de negativa apreensão nos quais nossas brilhantes conclusões de projeto serão atropeladas pelos fatos, estamos fazendo a coisa da maneira indevida. Vejamos os testes como o grande e especial processo contínuo de concretização de nossas teorias e assim poderemos fazer progresso. Testes, portanto, não são momentos definidos com hora e local combinado onde chegamos atrasados e saímos mais cedo, mas eventos que podem durar uma vida inteira e provocar alterações profundas em nossa maneira de pensar. 101 Figura 42 - Rabiscos delimitadores Não foi sempre assim que vimos os testes e não estamos acostumados a testar as coisas de modo sistemático. Na verdade, testamos as coisas o tempo todo, mas não consideramos isso “testar”. Consideramos isso “usar”. A diferença não é só semântica, é também funcional. Quando envolvidas com a avaliação, as pessoas tendem a reagir de modo muito diferente de quando não estão sendo avaliadas, por isso a ciência é feita de grupos controle, como modo de garantir a isonomia das medições. No caso dos jogos, podemos fazer o mesmo, mas orientando nossos testes como atividades que vão objetivar dois adjetivos: serão iterativos e serão ludocêntricos. Ou seja, farão o objeto do teste se modificar incrementalmente e serão voltados para o cerne da promoção da significação do jogar. Tanto um adjetivo como o outro devem ocorrer desde os primeiros momentos nos quais o jogo ganha sua substância de regras, procedimentos, conflitos e recursos a serem operados. A correção de curso providenciada pelos testes quando iniciais, darão o crivo do percurso. Por isso a iteração é bem quista, pois como uma cebola e os ogros3, jogos têm camadas, que irão se acumular. A paisagem ilustrada acima, ainda que sem detalhe, já apresenta seus limites e confere ao observador a intuição do que se trata por contar com símbolos do seu repertório imagético. 3 Ver Shrek, Dreamworks, 2001 102 Figura 43 - Definindo a atmosfera com cores... Ciclos dentro de ciclos, conforme vimos no método da agilidade. Tão logo os testes são executados, nosso cenário vai sendo substanciado com nuances que permitem escolhas e intervenções mais ou menos sutis. Os testes apontam para uma incompreesão de algum aspecto? Que esse aspecto seja clarificado. Mas como testar? Sendo o jogo um sistema no qual muitas constantes e variáveis estão em conflito por coesão e coerência, qual a melhor maneira de se considerar boas medições do uso? Vamos dividir o processo do “jogar” em etapas e delas extrair uma estratégia de testes. Figura 44 - Alguma pinceladas amplas... Quando o jogo se encontra em suas definições conceituais iniciais, os seus autores têm autonomia e poder para 103 testar o que quer que seja relacionado a ele. Como na pintura acima, foram os autores que definiram que seria uma paisagem bucólica e natural, ampla e distante... Não uma cena urbana opressiva e claustrofóbica. Portanto, para decisões prévias, os autores são os melhores testadores possíveis. Dado seu parecer, o jogo terá suficiência lógica para ser apresentado para avaliação por outros grupos, concêntricos ao interesse dos autores. Aqui a coisa fica perigosa, pois como vimos acima, quando testados, os seres humanos reagem de modo bem curioso. Por exemplo, se perguntados quanto à honestidade, todos são honestos. Se testados sobre a própria honestidade, alguns falham. Por isso há um momento para se expandir o grupo de testes para além da autonomia dos autores e pessoas próximas. Fundamentos e estrutura podem ser testados pelos autores e a estrutura por pessoas próximas. Mas para testar detalhes formais e refinamento, será preciso contar com apoio externo. Figura 45 - Refinamento e a obra concluída! Lembre-se que seu primo distante não é um apoio externo. Ele é só um primo distante que pode trazer segurança com os comentários porque gosta de você (ou pior, porque não gosta). O mesmo dizemos daquele seu amigo de infância. Para neutralidade, procure por pessoas que não se sentirão incomodadas de serem sinceras, o que já é bem difícil, porque tendemos a achar que a outra pessoa quer ouvir coisas boas de suas realizações e não o que elas notam que está inapropriado. A imagem acima, que representa o fim de nossa pintura, terá diferentes opiniões de acordo com os seus observadores. Alguns irão criticar por descordar das cores, outros irão opinar sobre a qualidade das pinceladas... Mas não haverá mudança, pois o quadro estará concluído. Por isso os testes iterativos e ludocêntricos devem ser realizados durante, e não após. Eis a diferença entre testes e críticas. 104 Figura 46 - Crianças Brincando, por Pieter Bruegel Os testes, portanto, devem ser realizado com controle da situação e postura aberta para registro e comentários. Peça para seus testadores pensarem em voz alta durante a sessão do jogo e sempre que possível, anote o tempo que levam para que determinada ação seja executada ou o objetivo seja alcançado. Tente separar nos testes o que se corresponde à estética, narrativa, mecânica e tecnologia. Talvez uma dificuldade não seja das regras, mas de como alguma instrução foi interpretada. Talvez algo esteja confundindo o testador porque sua intuição levou-o a supor, e não a seguir, algum procedimento. Durante a atividade de teste, destaque os minutos iniciais para salientar que o que está sendo testado é o jogo e não a capacidade deles como jogadores. E não os subestime de modo algum, explicando o que eles devem identificar. Os testes não devem ser momentos de prova, mas de diversão direcionada, por isso, se achar pertinente, peça para que os testadores repitam um procedimento específico de várias maneiras. Se não é necessário ao diretor assistir todo o filme para editar um determinado trecho, não é necessário aos testadores jogarem partidas exaustivas até que um erro se manifeste. Force sua descoberta sempre que necessário. O mesmo nós podemos dizer das situações que finalizam a partida, de como uma partida começa ou de como uma situação especial ocorre. Não perca um dia inteiro de testes com os mesmos testadores. Faça sessões de trinta a quarenta minutos com espaço ao final para impressões além do jogar, mas que ficaram retidas como experiência. Como no quadro de Bruegel, muitas são as brincadeiras, mas que só existem como ação, e portanto, o autor irá se maravilhar quando o testador realizar uma coisa 105 que não foi pensada mas que emergiu durante o seu agenciamento. Lembre-se que há diferença entre a expertise dos autores e a expertise dos jogadores e que obviamente há muito mais jogadores que game designers. Pense que nessa relação qualitativa e quantitativa, o que se espera é que o jogo atenda e divirta o maior número de pessoas interessadas, e não somente aquelas que se envolveram na criação e no desenvolvimento do jogo. Portanto, não se desaponte se algum elemento do seu jogo foi criticado excessivamente, mal interpretado ou simplesmente ignorado pelos testadores, sobretudo se forem representativos do público ao qual o jogo se destina. Veja o quanto isso pode ser importante para melhorias e não leve para a pessoalidade as opiniões coletadas se explicando excessivamente para o testador. Pois segundo a máxima dos objetivos gerais dos testes: “o game designer não vem junto com a caixa”. Vigésima Sétima Exposição: Variação e Balanceamento Uma boa maneira de experimentar é adulterar um estabelecimento e ver o que acontece. Tomemos a natureza. A variabilidade do que existe é fruto de pequenos desvios de um padrão original dinamizado pelas pressões dos cenários nos quais o padrão ocorre. Isso nos explica muito de certos jogos: embora se pareçam uns com os outros, há hierarquias nos fundamentos que apresentam que os fazem únicos de alguma forma. O modo como nos relacionamos com as variações dos jogos pela modificação de suas regras, que podem ser ou não admitidas como as regras finais, determinam a qualidade da obra. Faça a experiência: pegue um jogo clássico qualquer realize suposições e imediatamente verá surgir um novo 106 produto com processos semelhantes ao original. Depois pondere: O que melhorou? O que piorou? A variação sobre um projeto de jogo, portanto, determina o seu tom. O jogo pode ser mais grave ou mais agudo. Como vimos anteriormente, um dos principais objetivos dos testes realizados é considerar melhorias no que está sendo feito conforme realizamos sua estética, narrativa, mecânica e tecnologia. O principal subproduto do teste é a variação. Quanto maior a quantidade de testes, interativos e ludocêntricos, maiores são as possibilidades de promoção de variações a serem criticadas para determinação do jogo final. Não é um ensaio de gosto, mas um resultado determinado por matrizes de avaliação que podem ser amparadas pelos conceitos originais do jogo ou pela orientação de sua construção. A variação como forma de convergência rumo ao resultado final é uma necessidade do projeto, tanto quanto a definição dos valores das constantes e variáveis. É possível que ao término do projeto de jogo não haja apenas um, mas vários jogos. Caberá aos autores definir qual deles é o canônico, com base em suas prerrogativas de projeto e intenções de publicação. Figura 47 - A busca pelo equilíbrio dinâmico Para a variação ser realizada, o balanceamento do jogo é prioritário. Acredite: nenhum jogo que aí está foi criado e desenvolvido sem que os testes aplicados solicitassem a revisão de valores nas constantes e variáveis. Balancear é providenciar ao jogo a afinação do tom, fazendo de um monte de ruídos, uma sinfonia. É bem provável que o balanceamento seja evocado como uma forma de concluir uma bateria de testes, mas sob outra perspectiva, é definir os parâmetros ótimos para a sua fruição. Imagine-se em uma partida de cabo-de-guerra. Não sei o seu peso, mas suponho que se no time adversário eu colocasse 107 Maguila, Terry Crews e Bolo Yeung haveria grande chance de você perder. A certeza dos poderes dos jogadores em relação ao sistema deve ser pesada como se fosse o fiel de uma balança na qual o equilíbrio deve ser uma dinâmica sutil. O sistema deve oferecer automatismos que desafiem o intelecto do jogador, mas sem com isso torná-lo uma extensão de um problema insolúvel. Vários jogos consideram a situação sob a perspectiva de vitimizar o jogador, o que não é interessante (jogos cuja abertura se apresenta excessivamente fácil, para em seguida, desencadear obstáculos impossíveis de serem ultrapassados). Outros, de maneira oposta, apresentam características que colaboram com os jogadores menos experientes tornando o jogo automaticamente competitivo pela revisão dos valores vigentes, o que é mais adequado (jogos de corrida que reduzem a velocidade dos adversários mais despontados para que o jogador os alcance). Seja qual for a estratégia, o balanceamento automático deve ser tão transparente quanto possível para o jogador, caso contrátio, completamente interativo a ponto de fazer parte das seleções opcionais do jogo. Balancear é garantir isonomia, ainda que um desejo, também uma ilusão. É possível criar um obstáculo impossível de ser ultrapassado ou um inimigo tão forte que exija que o jogador sacrifique horas para se tornar suficientemente competitivo em um combate contra ele. Mas qual o benefício real dessa postura de projeto para o jogador? Se o objetivo do jogo é divertir, as regras devem privilegiar sensações de poder e possibilidade, não de impotência e frustração. Os desafios do jogo, portanto, deve se adequar por um processo meticuloso de ponderação de quantidades e características e muito tempo do projeto deve ser alocado para o cumprimento dessa premissa sem a qual o jogo terá grande inclinação para o fracasso. Durante o balanceamento, serão encontrados os dois maiores vilões dos projetos de jogos: os furos e os becos-sem-saída. Nem ouse se explicar antecipadamente: furos não são características, ainda que alguns permitam ao jogador extrapolar certas regras. Lembro de meus alunos tentando me provar que uma margem muito próxima da borda da folha ou uma impressão inadequada são “linguagens”, quando na verdade são erros crassos de comunicação visual. A margem no papel deve ser suficiente para que os dedos não se interponham à informação e uma impressão bem feita faz do documento algo oficial. Características surgem da compreensão das limitações, e não da ausência de conhecimento. Jogos têm furos quando fundamentos não correspondem aos detalhamentos. Algo incoerente ocorre e o jogo é interrompido ou terrivelmente danificado em uma partida. O balanceamento do jogo, portanto, deve providenciar resposta a situações nas quais surgem estratégias dominantes (ações “matadoras” as quais não se pode vencer) e objetos dominantes (dispositivos no jogo os quais garantem imediatamente a vitória ou benefícios incontornáveis). Tanto problemas com estratégias dominantes 108 quanto com objetos dominantes podem ser sanados por triangulação de características: uma assimetria rotacional na qual uma caractéristica é melhor ou pior, de acordo com o relacionamento. Aquele jogo com pedra, papel e tesoura é um exemplo perfeito de uma assimetria rotacional. Figura 48 - Um Tetris Monodimensional! Não... Jogos assimétricos são aqueles nos quais as condições de jogo, especialmente os objetivos, são distintos, ainda assim, justos. Normalmente, os problemas com becos-sem-saída surgem quando a assimetria coloca a necessidade da ocorrência de um evento para a execução de outro, criando para o jogador paradoxos difíceis (senão impossíveis) de serem contornados, travando a partida por completo. Jogos ditos simétricos são aqueles nos quais as condições de jogo são idênticas para todos os envolvidos, portanto, mais difíceis de se interromper por completo dado o caráter normalmente binário dos agenciamentos. Por fim, públicos diferentes exigem balanceamentos diferentes e é importante considerar a habilidade do jogador como um espelho dos termos balanceados. O balanceamento de um jogo deve, sobretudo, não permitir que o sistema se mostre excessivamente fácil, aquele que faz do jogador uma espécie de ascensorista do sistema, levando-o somente para cima e para baixo, nunca para os lados ou para dentro e para fora. Isso faz do jogo um brinquedo como aqueles de pilha que parecem brincar sozinhos... Jogos não devem ser exercícios exclusivos de memória, de reflexo ou de exaustão, como normalmente são pensados por neófitos em um primeiro entendimento de uso. O aprimoramento do jogador como usuário de um sistema que é elucidativo por si, deve extrair do mesmo indivíduo uma produção de sentido, não contar com ele como uma extensão orgânica de laço infinito que em nada lhe 109 acrescenta. Daí a pergunta fundamenta a ser feita durante o balancear: O jogo funciona? Funciona. Mas qual a sua graça? Vigésima Oitava Exposição: Tenha Outras Ideias Por um breve momento, reflita sobre os objetos que são vendidos em lojas como jogos e brinquedos e responda à seguinte pergunta: porque aqueles tidos como educativos não alcançam, nem de leve, o interesse que os de entretenimento ostentam? Há um conflito silencioso quando falamos de uso de jogos em outras instâncias que não o folguedo e cabe destacar um espaço para que esse e outros entendimentos sejam clarificados. Todo jogo é educativo. A ressalva é que a maioria, justamente daqueles que interessam ao público consumidor, é educativo para sua própria estrutura e finalidade. Até aqui, colocamos jogos como superfície para atividades e comentamos que temática e regras sustentam a experiência. O problema com jogos que buscam ir além do entretenimento esperado, como os jogos pedagógicos (educativos e educacionais), os jogos sérios (aberração parodoxista para serious games) e os jogos ditos advergames (promocionais e propagandísticos) é que a carga excessiva na ênfase temática não permite as regras amparar a experiência, que desaba sobre si mesma levando consigo o gosto do jogador pelo sistema. Toda forma de coerção de um modelo para um uso que não lhe cabe, sobretudo nos jogos, é fatal. Veja a maquiagem evidente dos exemplos acima e chore comigo: um dominó é um jogo clássico que envolve a interpretação de valores combinados e probabilidades de valores desconhecidos garantirem aos jogadores benefícios conforme as peças vão sendo descobertas e inseridas no circuito. A mecânica de 110 pareamento, apesar de simples, demanda uma boa dose de avaliação de risco (de se colocar uma peça que garantirá a vitória do adversário se este tiver dela um par). O lapso dos jogos educativos de dominó é que dependem única e exclusivamente da noção de par, colocando nela qualquer símbolo, seja letra, placa de trânsito, operação matemática ou forma. O que há de errado nisso? Não há conhecimento gerado no jogo que promova a produção de sentido do símbolo pois ele está além da fundamentação do jogo, servindo somente como pintura de valores a serem comparados. E convenhamos, comparar valores por comparar valores não torna o jogo mais divertido do que um jogo clássico de dominó. Se o objetivo é comparar formas, que elas se encaixem como em Tetris. Se é para comparar operações matemáticas, que elas determinem o vencedor de uma disputa de forças numéricas de exércitos de Age of Empires. Placas de trânsito e letras, que não ocorrem no trânsito ou no texto, são símbolos tão vazios como quase todo discurso político em prol da educação. Se o objetivo do jogo é divertir (entendendo diversão como o que se abre na atenção focada, ao contrário do que se se fecha em um único ponto, ou seja, conversão), é importante destacar de qualquer atividade o que a caracteriza como próxima ou distante de um afeto sugerido ou esperado. Somente assim poderemos ter outras ideias que alimentarão nossas perspectivas de projetos. Diversão Antes de destacar os pontos em comum das coisas que são divertidas, concordemos entre elas. Dificilmente coisas que são divertidas para uma pessoa, são igualmente divertidas para outras, e ainda que concordem, poderá ser por coincidência de valores cobertos na atividade e não pela atividade em si. Diversão não é como uma piada que todos riem do mesmo absurdo manifestado ao final, que expõe a tolice, a ignorância, a loucura, o erro, o grotesco, a confusão e a ironia. A diversão é diferida por repertórios, que depois dos telefones celulares, devem ser as coisas mais pessoais que existem. Mais do que escovas de dentes e roupas íntimas, os repertórios, como veremos em próxima exposição, determinam nossa unicidade identificatória. Eu sou a memória que você tem de mim pelo repertório que trago. Lembre-se disso no momento de me presentear e jamais cometerá uma gafe de me dar o que não gosto. 111 Figura 49 - Ampare-se nos conceitos da animação Nossos repertórios são constituídos de coisas simples em um primeiro plano ideal, uma superfície que pelo passar dos anos vai sendo progressivamente acumulada por impressões e emoções. Uma tonelada de conceitos sobre conceitos, que impede a visão deles de modo isolado. No ato da diversão, no entanto, o peso conceitual se esvai na leveza de uma simplificação direta e emergente e vemos as coisas como elas realmente nos foram injetadas inicialmente. Divertidos, pasme, vemos as coisas como crianças. Por isso buscamos a simplicidade das ficções, sobretudo, das que podemos interagir. Divirto-me das coisas duras, as quais me empenam em direção ao onírico dos contornos destacados. Pensar, contar, medir, analisar... coloca o cérebro em constante rebuliço de processamento. Na diversão, boa parte das impressões existe por si e isso aplaca a fúria da mente, como o contorno dos desenhos animados e dos recortes do cotidiano sem a dependência das necessidades fisiológicas. A animação é divertida porque destaca dos movimentos, não sua mecânica fidedignidade, mas suas intenções invisíveis. Nas ficções, barbas e cabelos não crescem, não há sede, ou fome ou estafa, ninguém urina ou defeca, pode-se sangrar sem morrer e tanto tecnologia como magia não se explicam. A simplificação é a base para a diversão. Eta vida boa! Pergunte-se: o que faz um jogo ser “divertido”? • • • • • Motivações Poder de Controle Mudanças de Estados Monitoradas Amplificações de Ações e Valores Suspensão de Descrença 112 • Envolvimento e Engajamento • Ser parte de algo maior Um jogo, conforme podemos defender, pode ser divertido por uma série de valores graves e agudos. Ele pode ser divertido porque promove a motivação do jogador em direção a uma concretização cujo convite foi acatado. Ele pode ser divertido porque nele há algo se pode controlar, como há poucas coisas na vida. Ele pode ser divertido porque as mudanças superficiais e profundas, das cosméticas as do caráter ocorrem de tal forma que podem ser acompanhadas e compreendidas. Eles podem ser divertidos porque o que é feito repercute e ecoa nas trocas simbólicas que o sistema permite. Ele pode ser divertido porque o que nele existe é uma ilusão conhecida e medida, sob uma realidade que se aceita momentaneamente esquecer. Ele pode ser divertido porque promove a participação eficaz, aquela que realmente faz diferença para si e para o resto... Mas sobretudo, o jogo pode ser divertido porque permite ao jogador sentir-se fazendo parte de um todo maior, que abraça não só outros jogadores, mas universos persistentes inteiros, com suas geografias, histórias, mitos e conhecimentos intrínsecos. Quando chegar o momento de realizar, portanto, tenha outras ideias. Ideias que permitam a diversão, não ideias que colaborem para reduzir o jogo ao pequeno apartamento das atividades suprimíveis. Vigésima Nona Exposição: Repertórios e Referências Quando menos percebemos, agimos movidos por construções 113 ideárias anteriores a nós mesmos e sob as quais fomos criados e educados. Somos seres culturais e por isso é tão difícil para nós pensar fora de uma caixinha, verde amarela, pequena em alguns casos, meio amassadinha em outros. Quando precisamos, podemos beber de outras fontes e isso é muito necessário. A instrução doravante não é rechaçar impulsos os quais nos impedem de ir e ver além, mas fazer deles escadas para que possamos, por meio de referências, ampliar nossos repertórios. O termo repertório pode ser confundido aqui com a lista de piadas de um comediante ou a lista de músicas que aquele cantor de barzinho pretende tocar ao violão. Iremos além. Para nós, repertório é o acumulo de impressões que nos tornam únicos, e portanto, nos permite estabelecer comunicação com outras pessoas igualmente únicas com maior ou menor facilidade. Tomo como exemplo um argentino girando o dedo em volta de uma orelha enquanto aponta para uma terceira pessoa. Você irá achar que ele está se referindo a ela como sendo louca, mas na verdade, está dizendo que há para ela uma ligação telefônica. Muitos lapsos como esse promovem incidentes de comunicação curiosos (alguns até muito perigosos), mas ilustram tão somente que devido à variabilidade das referências, repertórios costumam também ser muito variados e portanto, necessitamos constantemente ampliar os nossos. O que sabemos desde muito cedo é que não pecamos por sermos curiosos e de onde menos esperamos, conquistamos mais uma figurinha para nosso álbum interativo da existência. Veja a imagem acima: uma coleção de dezesseis amostras de jogos conhecidos como First Person Shooters (ou jogos de Tiro em Primeira Pessoa). Como as referências para tais jogos são muito próximas, pois a temática militar é famosa em jogos há muito tempo, criam um repertório comum, permitindo aos jogadores transitar entre eles com facilidade: todos apresentam algum dispositivo bélico que aponta para o centro da tela, alguns elementos visuais flutuando diante do campo de visão do jogador e mesmas escalas acromáticas variando do ocre ao cinza. Embora não sejam militares por excelência (pois não foram construídos para servir aos militares), jogos como esses se inspiram em valores oriundos de uma expectativa do sensocomum do que é “militar”. Nos jogos, temos a relação entre referentes e repertórios apresentada como um excesso, quase um impressionismo: mais vale a impressão do que a verdade. Sabe aqueles carros que se dizem off-road (qualquer coisa cross) mas que cujo projeto os fazem mais baixos que os carros de passeio comuns e os impedem de andar na lama e no barro? Pois então, dizemos aqui o mesmo. Eles buscam, como veículos, infligir nos seus motoristas um perfume de aventura e tudo que é carregado com isso, quando na verdade, ficarão presos no primeiro buraco. O que os marketeiros fizeram foi identificar em um público que tem como repertório o espírito aventureiro (mesmo de terno e gravata e com sobrepeso), e 114 baseados em referências, dotar-lhes de um veículo que parece o que eles desejam mas sem com isso arcar com o preço de um carro efetivamente off-road. A maioria das pessoas quase sempre é ignorante do truque, por isso ele funciona tão bem. Não fosse assim, falsificações como Pulman (Puma), Mike (Nike), Abidas (Adidas) jamais seriam vendidas. Se as referências alimentam nossos repertórios, como podemos nos beneficiar delas para criar e desenvolver nossos jogos? Afinal, se buscamos de um público o entendimento prévio do uso, o que nos garante que irão jogar os nossos jogos se forem muito semelhantes aos que aí já estão? Ou pior, como jogarão nossos jogos se forem completamente diferentes do que eles já conhecem, e portanto, estão acostumados? O que qualifica uma atividade tão profunda como o jogar é o aceite de um contrato que como vimos, surge em uma delimitação conceitual e parte de ênfases em experiência, temática e regras; e cuja estrutura, apresenta estética e narrativa, suportadas por mecânicas e tecnologias. Cada um desses pontos concentra uma infinitude de possíveis referências que devem ser coerentes com o repertório dos seus jogadores. Saber quem são, o que fazem, do que gostam, permite que nossas relações interpessoais sejam aproximadas em conjuntos de oportunidades mutualísticas. Jogos lidam com a comunicação em seu durante e principalmente, em seu momento anterior, no momento que os seus autores escolhem que referências serão usadas para se adequar e depois ampliar, os repertórios envolvidos. O jogo trata de assuntos urbanos ou históricos? Os personagens presentes nos jogos são vagos para serem impersonados pelos jogadores ou profundos e consequentes de um espaço vital do qual fazem parte na ficcionalidade? No livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, a cadela da família de retirantes se chamava Baleia, o maior dos seres aquáticos. Baleia vivia na pior das secas e o absurdo servia para contrapor o conceito por trás do nome com o ambiente no qual a história se sucederia. Apesar de obra prima literária, confesso que até hoje nunca li Vidas Secas, mas quando éramos crianças, assistimos ao filme na escola e o que me marcou, aquilo que hoje faz parte do meu repertório, foi o reconhecimento do paradoxo de um personagem cujo nome resumia toda a questão dramática de um grupo familiar lutando para sobreviver no mais inóspito do sertão. Referência alimenta repertório. Repertórios alimentam cultura. Culturas alimentam conhecimento. Como obter referências? Abra-se a mente para “tudo o que faz lembrar”. Ao falarmos sobre um determinado assunto, o que vem em sua mente? Que sensações são evocadas e que imagens, sons, cheiros, texturas remetem aos valores identificados?... Cataloga-se e hierarquiza-se. Conecta-se com verbos e complementa-se com adjetivos. Aos poucos as referências irão delimitar a abrangência a ser editada para simplicidade e elegância, e frases confeccionadas pela relação entre as referências poderão definir ludus e paideia, tornando os 115 fundamentos do jogo aparentes como em um rígido andaime. E sobre tal andaime construiremos o nosso jogo. Trigésima Exposição: “Hora de se Jogar! Nos jogos eletrônicos.” Na trigésima exposição os agentes se viam às voltas com o último e mais importante projeto de jogo enquanto prática, no caso, usando seus conhecimentos técnicos para adequar restrições e conceitos a um jogo digital. O detalhamento dessa atividade conforme anunciada pode ser encontrado na seção que lida especificamente com as práticas. Cabe ressaltar a dificuldade da atividade por ser o resultado uma especificação de software, e portanto, uma evolução considerável sobre as práticas anteriores em termos de finalização. Além dos conhecimentos oriundos do curso, também é necessário a articulação de conhecimentos externos, sobretudo tecnológicos, adequando ferramentas aos propósitos da atividade. O objetivo da exposição, portanto, é promover o entendimento do escopo da demanda frente às possibilidades interativas promovidas pela tecnologia computacional. Fazer crer que jogos digitais não são melhores ou piores que jogos analógicos, somente mais específicos nos detalhamentos técnicos fundamentados. Trigésima Primeira Exposição: Reportagem Já temos tudo que é necessário em termos teóricos, já elaboramos muitas práticas para aprimorar nosso conhecimento... Acabou? Não! Agora nos é preciso colocar os resultados no mundo. A maior dificuldade encontrada por muitos entusiastas, e mesmo por profissionais, é saber sobre as coisas, é obter conhecimento. Por isso convido o leitor e a leitora que nos acompanhou até aqui a colocar tudo o que puder em papel, arquivo, desenho, esquema, música, enfim, da maneira que achar mais interessante e conveniente, suas impressões e críticas sobre criação e desenvolvimento de jogos. A troca de informações só se justifica como lastro para práticas de promoção. Promover jogos, portanto, deve ser feito em dois vetores: na produção dos mesmos como produtos e processos e na divulgação das expressões que eles contem de forma tão rica e plural. Cabe a cada produtor, separar momentos para conversar, ler e escrever sobre o que faz e o que tem sido feito. Não como mero expectador de uma mídia, mas como seu mediador. Há na Internet, muito espaço em ocupação para publicidade de jogos, comentando sobre suas narrativas e tecnologias, mas pouco para sua estética e mecânica. Talvez estejamos no momento de termos um 116 aumento substancial de críticas aos modelos vigentes de produção e distribuição, as mesmas que fizeram do cinema e da televisão veículos tão poderosos e abrangentes que ainda são. Não precisamos de comentários rasos desta ou daquela pseudonovidades que em nada alimentam ou incrementam o multiverso dos jogos em suas múltiplas ocorrências. Precisamos de agentes, não somente de jogadores. Como povo flexível, criativo e recentemente reconhecido internacionalmente por nossas conquistas sociais e econômicas, podemos angariar ainda mais interesses locais e distantes pela forma como tratamos nossos valores culturais. A cada quatro anos, colocamos um único jogo acima de todas as nossas responsabilidades pessoais e coletivas e pergunto: porque não podemos fazer o mesmo em outros intervalos de tempo, quando elegemos nossos representantes ou realizamos as escolhas dos que consumimos e no que iremos acreditar? Jogos, em suas mais amplas manifestações. Jogadores por suas mais amplas expressões. Eis um lema. Somente a reportagem poderá garantir nosso sucesso sobre as tentativas frustradas e nossas reflexões sobre as vitórias conquistadas. Comente, escreva, demonstre. Comecemos imediatamente pois estamos no “onde”, sabemos o “que” e sabemos “como”. E o “quando” nos será uma contínua oportunidade. Trigésima Segunda Exposição: Autores Nessa exposição, são apresentados os nomes, contatos e resumos biográficos dos mentores envolvidos na Instalação e avaliação das atividades dos participantes do Gamerama Wokplay. No caso da primeira Instalação do Gamerama Workplay, além de mim, atuaram Rian Rezende, Arthur Protasio e Bruno Baère. Rian Rezende é game designer e pesquisador com interesse na área de jogos, com ênfase em RPG, Alternate Reality Games, cardgames e narrativa. Rian atua no desenvolvimento de processos colaborativos através do jogo, narrativas interativas aplicadas para educação e projetos transmídias e entre os projetos em que trabalhou, incluem-se os realizados para a Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro, Biblioteca Infantil Maria Mazetti da Casa de Rui Barbosa e Projeto Incorporais pela FAPERJ. Arthur Protasio é Coordenador do Projeto Game Studies do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas e presidente da IGDA RIO. Como escritor, pesquisador e produtor de narrativas e jogos, a atuação de Arthut varia desde palestras sobre a importância da liberdade de expressão para o 117 reconhecimento do jogo eletrônico como mídia cultural e artística até episódios de seu videolog LudoBardo, voltado para análise de narrativas nos jogos. Bruno Baère é pesquisador do TeCGraf/PUC-Rio, e pesquisa em seu mestrado técnicas de dificuldade dinâmica adaptativa em jogos e seus impactos na experiência do jogador. Nas horas vagas, Bruno atua como desenvolvedor independente e seus interesses de pesquisa são inteligência artificial, interação humano-computador e arquitetura de computadores voltados para jogos eletrônicos.