Guilherme Xavier A Experiência Gamerama metodologia e design

Transcrição

Guilherme Xavier A Experiência Gamerama metodologia e design
Guilherme Xavier
A Experiência Gamerama
metodologia e design de jogos eletrônicos
para futuros produtores nacionais
ANEXO DE TESE DE DOUTORADO
Departamento de Artes e Design
Programa de Pós-Graduação em Design
Rio de Janeiro, abril de 2013
Guilherme Xavier
A Experiência Gamerama
metodologia e design de jogos eletrônicos
para futuros produtores nacionais
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Design da PUC-Rio como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Design.
Orientadora: Prof. Jackeline Lima Farbiarz
Rio de Janeiro
Abril de 2013
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IV - Conteúdo Programático do Gamerama Workplay
Conforme publicado por agendamento durante o Gamerama Workplay.
Primeira Exposição:
Introdução e Composição Basilar
Se o último ser humano precisasse escrever uma breve história
sobre os jogos, sucinta e objetiva o suficiente para resumir a
função social dos jogos ao longo dos milênios, podería dizer
que “jogos foram o ápice da tecnologia humana com o intuito
de permitir a humanidade escapar de sua própria realidade.”
Além do escapismo que lhe é característico, jogos lidam
obrigatoriamente com noções do que existe e do que pode vir a
ser, e por isso, podem ser encontrados em todas as sociedades,
das milenares às virtuais.
No entanto, devido a sua presença histórica misturada
com ritos e valores culturais, é comum que falte aos jogos uma
nitidez maior em termos de definição. E como não vamos
entrar na discussão filosófica sobre o que DEFINE um jogo,
vamos simplesmente ampliar nossos horizontes com conjuntos
de aspectos para poder vislumbrar o que o jogo SIGNIFICA
para nossos interesses. Assim, é mais simples acomodar o jogo
como atividade ou dispositivo em condições de recepção do
que ficar sapateando em volta de reduções determinísticas. A
única certeza é a tautologia que JOGOS SÃO JOGOS e que
algumas coisas que normalmente são tidas como identidades de
jogos não passam de complementos ou suplementos para que
eles sejam percebidos socialmente como tal.
O pintor surrealista René Magrite brincou com a
expectativa do público sobre a essência e a aparência com um
cachimbo no quadro “A traição da imagem” de 1928, e de
modo semelhante, nós podemos contradizer a ideia que se faz
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do jogo alertando para que suas partes constituintes não são o
dito cujo. Para atingir sua essência enquanto atividade, devemos
reconhecer sua presentificação, mas não impor ao jogo
limitações conceituais: pois no fundo ele não ocorre no plano
da realidade, mas somente no plano da recepção e da cognição.
O jogo, seja qual for, só existe mesmo nas nossas mentes.
Figura 1 - Isso não é um jogo
Conforme a imposição de compreender o jogo se torna
necessária, devemos dar conta de situar o mesmo em
perspectivas funcionais e técnicas. Para uma composição que
possa ser compreendida, assim como o público compreendia
que na tela de Magrite havia um cachimbo (embora a legenda
afirmasse com razão o contrário), nosso reconhecimento do
jogo passa pelo cumprimento de alguns pontos, que elencados,
consideram uma composição basilar:
Experiência Interativa: Embora possam ser simplesmente percebidos por
quem não joga como uma atividade a qual se reage, jogos só existem quando
participados por agentes os quais chamamos jogadores, que do evento,
conseguem relatar uma experiência que só é válida se interativa. Jogos lidam
com expectativas de uso e agenciamentos.
Possibilidade Narrativa: Embora possam ser experimentados pela
construção de uma história narrada (anterior, simultânea ou posteriormente
ao ato de jogar), jogos não dependem sine qua non de história para serem
percebidos como tal. Portanto, ainda que auxiliem na recepção da obra,
narrativas elaboradas são dispensáveis ao ato de jogar, servindo como
possibilidade. Jogos lidam com eventos encadeados.
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Resolução de Conflitos: Embora não dependam de histórias, jogos só
funcionam na tentativa de se resolver um desequilíbrio harmônico, o que
deve ser conquistado pela ação intelectual e motriz do jogador. Por isso o
jogador se sente empoderado: cabe a ele dar fim à situação inadequada
agindo contra outros interesses de outros jogadores ou contra o sistema do
jogo. Jogos lidam com contrastes.
Desafios e Recompensas: Embora apresentem conflitos a serem
solucionados para manutenção de uma ordem esperada, jogos providenciam
cenários que salientam a vitória ou a derrota conforme a competência do
jogador em perceber os desafios e objetivar-lhes as recompensas. Jogos
lidam com incentivos gerais e específicos.
Ilusão Sensorial: Embora façam uso prioritário de relações de ganho e
perda do plano da realidade, jogos apresentam suas considerações por meio
de artifícios de engodo dos sentidos, normalmente da audição e da visão.
Sem a supressão da descrença o jogo se estabelece impraticável. Jogos lidam
com a imitação distorcida, com o faz de conta.
Linguagem Visual e Simbólica: Embora a ilusão sensorial não seja
característica exclusiva dos jogos, pois também está presente em outras
obras para que as mesmas possam ser fruídas, nos jogos a atração se dá pelo
reconhecimento de uma gramática visual comum a amostras do universo
lúdico, as quais indicam como o sistema será apreendido. Quando
comparados com seus referenciais, observa-se dos símbolos uma excessiva
funcionalidade, ou seja, seu comportamento e aspectos no jogo dizem mais
sobre a mecânica de uso esperado do que de uma realidade esperada. Jogos
lidam com a operação de signos, denotações e conotações.
Relações Perceptivas: Embora o estabelecimento cultural dos jogos em
nossa sociedade constitua expectativas de uso comuns entre diversos tipos
de entretenimento, jogos dependem que seus jogadores assumam um
contrato de compreensão e uso das relações de causa e efeito de suas
tomadas decisórias. Para isso, as diversas relações perceptivas encontradas
nos momentos de jogo servem como dinâmicas que impelem o jogador ao
cumprimento de objetivos previamente informados seguindo estratégias e
táticas. Jogos lidam com forma, função, tempo e espaço.
Comunhão e Socialização: Embora a participação do jogador no jogo
possa se estabelecer solitariamente em certas amostras, é corriqueiro que
jogos façam pleno uso de comunicação entre os jogadores encolvidos para
que as demandas sejam solucionadas e para que os resultados possam ser
quantificáveis. Ainda que seja percebido como demérito devido a sua
associação com o ócio, jogos ganham notoriedade quando permitem a
comunhão e a socialização de seus participantes em torno de assuntos
comuns, sejam do jogo, sejam da vida. Jogos lidam com diálogos mediados e
relações interpessoais.
Difusão Tecnológica: Embora por tradição jogos se aproximem de
artefatos cotidianos e vernaculares para providenciar trocas simbólicas,
podem também receber incentivos intelectuais para assumirem, em seus
projetos, conformação com as últimas novidades técnicas que a sociedade
pode oferece. Onde quer que se estabeleça em termos de resultado para
questões tecnológicas, jogos expandem usos e providenciam a entrada sutil
de neófitos na plenitude de outros usos, normalmente voltados para a
comunicação e o trabalho. Tomando como exemplo os jogos eletrônicos,
amostras últimas da tradição humana de jogar, os resultados comerciais
dinamizaram investigações científicas acerca da representação visual, do
processamento de dados e da comunicação por redes telemáticas. Não
fossem jogos como fundamental objetivo comercial, dificilmente teríamos
monitores coloridos, som com qualidade e definição ou mesmos leitores de
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mídias ópticas e acesso a redes de troca de informação internacionais... Jogos
lidam com a evolução humana.
Segunda Exposição:
Do Homo Faber, aquele que faz
Olhando bem a nossa volta perceberemos que tudo que existe é
fruto da intenção de alguma pessoa inserida no modo de
produção de uma sociedade. Mas nem sempre foi assim: há
duas centenas de anos, se quiséssemos nos sentar, deveríamos
dispor de dinheiro suficiente para adquirir uma cadeira
produzida completamente (do talho da madeira ao último
prego) por um artesão. Eram caras, não porque o material
usado fosse nobre, mas porque os artesãos não eram ágeis e
nem eram muitos o suficiente para dar conta do suprimento
universal de cadeiras e de muitas outras facilidades
providenciados pela inteligência humana. Algumas coisas
simplesmente não poderiam ser consideradas em grandes
quantidades.
Para nossa satisfação, com a Revolução Industrial, a
máquina tomou a maior parte da responsabilidade de talhar a
madeira e bater os pregos, deixando aos humanos, duas
oportunidades: lidar com a criação intelectual do objeto e
pensar assim nos resultados de suas intenções previamente; e
principalmente, tomar conta das máquinas para que elas dessem
conta do recado. Para não desaparecer da sociedade, os artesãos
foram absorvidos pela indústria e alguns deles se ocuparam
justamente de pensar a técnica da operação das ideias diante de
progressivas evoluções científicas. Esses indivíduos fantásticos,
com um olhar no presente e outro no futuro, se tornaram
aqueles que hoje chamamos designers.
Do contrário do que se pensa, design não é uma
equivalência de desenho, mas um conceito amplo que se
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relaciona com a concepção e o desenvolvimento de projetos. E
conforme os projetos das coisas objetivas se tornaram
progressivamente complexos, também os designers buscaram
especializações para suprir as demandas de uma sociedade que
se voltou para o consumo de bens e serviços especializados.
Conforme a tecnologia avança, novos pensamentos são
requeridos para adequar soluções a demandas originais.
Durante o século XX, o design chegou em sua plenitude,
relacionando conteúdo, forma e função de modo a maximizar a
produção, e como área estratégica, permitir o maior conforto
social possível para o maior número de pessoas. E como o
século da eletricidade substanciou o mundo com todo tipo de
"coisas", atualmente muitos designers avançaram para cima de
outras áreas, lidando também com as "não-coisas",
considerando como projeto não somente objetos mas também
as relações humanas estabelecidas por eles. Não somente os
materiais consumidos no projeto, mas os valores agregados
envolvidos.
Pensar em projetos de jogos atenta exatamente para esse
fato característico de uma profissão cujo foco encontra-se no
outro e em suas necessidades. O jogar é uma necessidade
humana e ao longo da história, o Homo Faber das cadeiras se
aproximou do Homo Ludens dos tabuleiros para atender aos seus
pedidos por sistemas industrializados de diversão. Como a
evolução da indústria gráfica, surgem os primeiros profissionais
cujos projetos visam o entretenimento, e com eles, novas
formas de interagir por meio de regras amparadas por suportes
de informação para satisfação do espírito.
Figura 2 - O tempo não para... "Damas de Copas" de três épocas: da
China milenar, da Revolução Francesa e das atuais impressões
policromáticas de grandes tiragens
O tempo não para... Na medida em que a virtualização
dos objetos se faz cada vez mais presente, pensar a relações
entre os seres humanos e seus dispositivos de divertimento de
uso cotidiano torna-se um desafio que convida ao diálogo com
diversas outras áreas de conhecimento. Os game designers foram
seduzidos por automatismos sensuais promovidos pelos
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computadores na metade do século passado e atualmente os
jogos eletrônicos concentram a maior parte dos profissionais,
domando bits, bytes e gigabytes objetivando a diversão de um
público que aumenta e amadurece a cada dia. Como poucas
atividades, quem joga, não deixa de jogar ao envelhecer. E
jogadores, como representantes de uma população expansiva,
deixam descendentes férteis que seguirão felizes na imitação de
suas atividades favoritas, as analógicas e as digitais.
Figura 3 - Tenha santa paciência...
Um exemplo característico desse fenômeno de
expansibilidade de público devido ao uso de computadores para
jogar se observa no jogo de cartas para computador conhecido
como Paciência (Solitaire, em inglês), criado por Wes Cherry em
1980 a partir de um jogo solitário de cartas chamado Klondike.
Embutido em 1990 no Windows 3.00, tornou-se sucesso
absoluto de público e um dos primeiros productivity killers antes
das redes sociais. Por isso, foi um dos primeiros softwares a servir
de justificativa para demissões por ociosidade comprovada e a
ter clínicas especializadas no tratamento de jogadores
compulsivos.
Devido à facilidade de participação, quase natural, o jogo
Paciência angariou adeptos que jamais o jogariam no plano da
materialidade, e por consequência, fazendo o uso do mouse,
como dispositivo de entrada, ser consagrado nos escritórios
mundo afora. Embaralhar cartas rapidamente e corrigir as
jogadas indevidas eram apontadas como grandes vantagens
sobre jogos de carta convencionais, o que nos mostra que a
evolução tecnológica dos jogos não deve ser encarada com
melancolia, mas como curiosidade. Afinal, jogos lidam com
projetos e projetos devem respeitar conceitos e contextos para
o melhor dos mundos.
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Terceira Exposição:
Ao Homo Ludens, aquele que joga
Nossos ancestrais começaram a se comunicar apropriadamente
por meio de um sistema de linguagem entre 200 mil e 100 mil
anos atrás, com o estabelecimento do Homo sapiens a partir do
Homo heidelbergensis. Cientistas divergem nas estimativas de
tempo envolvidas do binário uga buga ao polissêmico bla bla bla,
na profundidade do vocabulário envolvido nos discursos e se
havia uma única língua geral oriunda de uma sortuda mutação
genética, ou várias línguas evoluídas progressivamente. Mas o
cruzamento de diversas áreas de estudo, da biologia e da
genética, passando pela paleontologia, arqueologia e
antropologia, apontam que humanos da Metade da Idade da
Pedra já fofocavam nas cavernas sobre novidades como um
inverno desgraçado cobrindo o planeta, sobre novas danças
rituais para aplacar a fúria do invisível, sobre planos infalíveis de
caçar mamutes e sobre os perigos de se cutucar tigres-dente-desabre com vara curta.
O subproduto da linguagem é a atribuição de valores
abstratos a observações objetivas, o que deve ter recebido um
implemento intelectual poderoso com a invenção e
desenvolvimento da escrita, por volta de 5 mil e 200 anos atrás.
Muito antes disso, uns 33 mil anos, sistemas simbólicos de
preservação de experiências cotidianas já eram explorados pelos
homens das cavernas franceses, mas somente em épocas
simultâneas a escrita, os primeiros jogos apareceram por
dispositivos característicos, no Egito e na Mesopotâmia, o que
colocam os jogos como sistemas de atribuição simbólica
monitorada no meio do caminho da evolução das primeiras
cidades há 4 mil e 600 anos mais ou menos. Por essa época, o
Homo Sapiens se torna o Homo Ludens, com seus tabuleiros,
regras e questões filosóficas acerca da vida e da morte, dos
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deuses e das guerras, das relações de causa e efeito e de tempo e
espaço.
Princípios a serem seguidos
Os egípcios e os mesopotâmicos trouxeram consigo para as
cidades, recém inauguradas, expectativas e simbolismos
ancestrais e condensaram experiências típicas de sua época em
modelos de participação mediada. Jogos de então não lidavam
com nenhuma grande novidade de uso ou inovação de
conteúdo, mas sim com a extrapolação de uma realidade mística
e amparada em padrões recorrentes. Imagine que fôssemos
transportados magicamente para época tão interessante,
misteriosa e perigosa: em um primeiro momento, seríamos
prejudicados pelo nosso pensamento excessivamente
dependente de nosso conhecimento tecnológico, o que não
valeria de muita coisa. Se quiséssemos alcançar uma mínima
existência, teríamos de nos ater a certos princípios
fundamentais que nos colocam em igualdade com os nativos de
então. Apesar de distantes na história em milhares de anos,
teríamos em comum o fato de todos sermos terráqueos e por
isso termos atitudes a serem assumidas:
Cinco princípios para um
Manual de Existência para Terráqueos:
1.
2.
3.
4.
5.
Sobreviva e deixe descendentes
Os desafios serão mentais e físicos
Todo conforto é limitado
As objeções serão naturais, individuais e coletivas
Acate o risco conforme a recompensa
Figura 4 - Homens das Cavernas moravam em... cavernas.
Sem nos aprofundar filosoficamente nas implicações da
situação, no aceite desses cinco princípios fundamentais,
estaríamos recorrendo a uma estratégia exemplar que nos
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garantiu sobreviver como Homo sapiens aos nossos competidores
diretos neandertalenses na corrida evolutiva cerca de 500 mil
anos atrás. Tornamo-nos melhores coletores, caçadores e
pensadores, pois elaboramos formas de armazenar e distribuir
conhecimento experiencial ao longo de gerações descendentes.
E se hoje falamos, escrevemos e mandamos foguetes ao
espaço, é porque nos tornamos exímios jogadores de um jogo
cósmico pela distribuição de nossa genética pela superfície do
planeta. Não é somente porque uma mutação rotacionou nosso
polegar e mudanças climáticas nos fizeram descer das árvores,
mas porque recentemente (alguns milhares de anos)
conseguimos extrair dos cinco princípios fundamentais acima
certos simbolismos que nos permitiram ensaiar nossa existência
além da mera sobrevivência instintiva.
Figura 5 - Mamute!
O próprio ato de nos organizar socialmente para caçar criaturas
muitas vezes maiores que nos reflete a noção estratégica
envolvida nos itens 1, 2 e 3. Considerando que a falha
representa a carência de alimento necessário para a manutenção
do item 1, e mesmo sem tal carência, que o item 3 é inexorável,
aprendemos na marra a nos organizar e prezar uns pelos outros
em termos de famílias e posteriormente clãs, que vagando pela
padrarias, vez ou outras, se estranhavam. Afinal, recursos serão
sempre mais escassos que o ideal, e não bastando um mundo
tão perigoso como o pleistoceno, com glaciações constantes e
terríveis felinos gigantes rondando nossos filhotes, tínhamos
que lidar com a construção de nossas próprias diferenças
culturais.
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Figura 6 - Fujam! Um Tigre-Dente-de-Sabre!
Imagine o estresse de morar numa caverna insalubre, sair vez
ou outra para caçar mamutes gigantes debaixo de neve e fugir
de monstruosidades que tinham os mesmos objetivos que nós...
Não é de admirar que a expectativa de vida de nossos ancestrais
de então não ultrapassasse cerca de 40 anos. Violência, ossos
quebrados e cicatrizes foram a norma, e somente a capacidade
de abstrair da própria existência diante dos ritos e da fantasia
garantiam a sanidade para levar o item 5 adiante, e no futuro,
ter descendentes vendo surgir as primeiras cidades.
Figura 7 - Senet, um dos jogos mais antigos já registrados. Esse era
de Amenhotep III, que segundo consta na mitologia egípcia, deve
estar jogando até hoje.
As primeiras organizações humanas complexas exigiam mais do
indivíduo do que uma primeira observação pode supor. Surge a
ideia de trabalho como entendemos hoje. Com as famílias e clãs
parando de correr de um lado para o outro com a invenção da
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agricultura e da domesticação dos animais selvagens para corte
e transporte, a organização das atividades de cerâmica e fiação
dividiu as responsabilidades de homens de mulheres de modo
sistemático. Com as atividades executadas para promoção
de trocas de bens e valores entre indivíduos, há reconhecimento
de um momento vago paralelo ao momento que ocorria entre
as ações. As atividades inseridas nesses “vazios entre
importâncias”, chamamos “entretenimento”. E o objetivo do
entretenimento é divergir sua atenção do foco de demais
atividades. Por isso dizemos que os jogos são (ou deveriam ser)
divertidos.
Jogos e consequências
Os primeiros jogos dos quais se tem conhecimento oriundos do
Egito e da Mesopotâmia (mais precisamente Ur, no atual
Iraque) eram jogos de corrida baseados em sorte mas com
características estratégicas. Os egípcios gostavam de sorte
porque para eles o que era furtuito era da administração dos
deuses e um bom jogador garantia o reconhecimento público
de estar sob a proteção de um deles. Tanto que para a viagem
ao pós-vida, egípcios eram enterrados munidos de bens
pessoais entre os quais uma caixinha de Senet, seu mais antigo
jogo, era comum.
Do contrario dos Egípcios, que não deixaram regras
escritas sobre o Senet, só as caixinhas, os babilônios deixaram
recentemente (cerca de 2170 anos atrás), textos cuneifórmicos
explicando como se deveria jogar o Jogo Real de Ur. O fato de
um jogo não ter regras explicitas ainda assim ser percebido
como tal, é uma das principais características dos jogos na nossa
cultura: a recorrência representacional. A compreensão de que
Senet seja um jogo se deve a sua configuração por meio de um
conjunto de objetos, no quais figuram aspectos diferenciadores
e recorrentes, e portanto, dos quais se subentende
relacionamentos lógicos. Não fosse a similaridade com outros
jogos da atualidade, por outro lado, talvez não fosse possível
estabelecer para o jogo suas regras atuais. Afinal, como vimos
anteriormente ser impossível chegar a uma definição única do
que É um jogo, podemos fazer por aproximações tangenciais:
Como definir o indefinível?
• jogo como produto
• jogo como processo
Como produto, entendemos o jogo como “coisa” que
será manipulada; e como processo, entendemos que a
manipulação da “coisa” se dará como uma série de eventos
correlatos e coerentes entre si. Para nós, considerar o jogo além
da expectativa de objeto de consumo e resolver questões
abstratas e relacionais, implica em pensar obrigatoriamente no
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jogador antes do comércio do objeto. Infelizmente, a cultura de
consumo também fez do jogo um alvo predileto e os
despropósitos são notórios. Basta ver a quantidade de
revisitações licenciadas de jogos ditos “tradicionais” como se
fossem coisas completamente diferentes entre si, quando são
somente maquiagens estéticas. Evitar que se use o jogo como
maquiagem de qualquer outra atividade de dedicação deve ser
nossa principal bandeira como game designers. Jogos são
importantes culturalmente por serem instigantes e as
decorrências do seu discurso não devem se interpor ao objetivo
da diversão que dele emerge, e nem às consequência por sua
participação.
Das consequências:
• Win-Lose: alguém vence se outro perder
• Win-Win: todos vencem
• Lose-Lose: todos perdem
Figura 8 - Win-Lose | Ganhar-Perder
Figura 9 - Win-Win | Ganhar-Ganhar
Figura 10 - Lose-Lose | Perder-Perder
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Seja qual for o contexto político e social, jogos foram
eleitos em diversos momentos históricos como objeto de
estudo para resultados que pudessem ser replicado em outras
situações. Na época moderna, partidas de xadrez podiam
substituir a movimentação de tropas no campo de batalha,
evitando-se assim conflitos tidos como concluídos antes mesmo
que os tiros de canhão pudessem ser ouvidos pelos soldados.
No século passado, matemáticos se debruçaram sobre as
implicações de se compreender jogos como tomadas de
decisões, dando origens a teorias elaboradas com aplicações que
vão da sociologia ao mercado financeiro. Delas extraímos a
noção de consequência de nossa participação nos jogos, que
podem ser exemplificados nas ilustrações com os burrinhos
amarrados acima. Todas são válidas e conforme nossas
decisões, elas podem ou não ir de encontro a expectativas de
resolução de conflitos por parte dos jogadores.
Nos casos, Win-Lose (Ganhar-Perder), há apenas um
vitorioso em detrimento de derrotados, normalmente devido a
sua habilidade e competência exclusivas na resolução do
conflito do jogo, sendo os tipos mais comuns de jogos
competitivos que conhecemos.
Nos casos Win-Win (Ganhar-Ganhar), todos estão
envolvidos e se satisfazem da vitória pois não há derrotados,
sendo os tipos de jogos cooperativos que privilegiam a
colaboração entre os jogadores para ganhos comuns.
Por fim, nos casos Lose-Lose (Perder-Perder), nenhum
jogador envolvido obtém retorno da resolução do conflito, ou
seja, qualquer resolução é pior do que nenhuma. Um exemplo
dessa condição foi magistralmente apresentado no filme Jogos de
Guerra (Wargames, no original de 1984) no qual um
supercomputador militar é colocado para simular conflitos
nucleares entre potências, para sempre concluir o jogo em um
holocausto nuclear. E exclama: “Um jogo estranho. O único
movimento vencedor é não jogar”.
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Quarta Exposição:
Círculo Mágico do Contexto
Nossas investigações acerca dos jogos devem ter um
ponto de partida circunstancial para que, além de compreendêlos como fenômenos, possamos criá-los e desenvolvê-los. Até
aqui, compreendemos que jogos estão intrinsecamente
relacionados com a evolução das sociedades humanas, mas
pouco é dito do reconhecimento do jogo enquanto processo
segundo seus limites dentro dos próprios grupos sociais. É
corriqueiro vermos os jogos etiquetados com dois adesivos
redutores: 1) jogos são X ou 2) tudo é jogo. Tais simplificações em
nada nos ajudam, pois conferem aos jogos essências que não
lhes caracterizam e pelo contrário, os colocam hierarquicamente
ou abaixo de outras atividades ou pior, como uma ubiquidade
banalizada da qual nenhuma profundidade pode ser obtida.
Para nossa alegria, no século XX, os estudos sobre os
jogos sob uma perspectiva cultural por Johan Huizinga e Roger
Caillois consideraram o ato de jogar além da matemática e dos
resultados de conflitos e conferiram aos mesmos uma
relevância histórica singular. Jogos só ocorrem como contextos
devidamente delimitados por seus participantes, observadores
de sua interação no tempo e no espaço.
Huizinga identificou no jogar um estabelecimento DA
cultura e não um estabelecimento NA cultura, ou seja,
promoveu certa controvérsia tentando esclarecer em seu livro
Homo Ludens, de 1938 o que o jogo significa e quão suficiente é
para explicar determinados comportamentos sociais. Além de
expor as nuances na caracterização de atividades tidas como
jogos a partir da polissêmica palavra play (ou Spiel, do original
em alemão), o historiador holandês se dedicou a investigar o
jogar nas mais variadas ocorrências: das manifestações na
natureza, passando pelas relações com a lei, as guerras, o
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conhecimento, a poesia, a filosofia e a arte. Para Huizinga,
cinco aspectos caracterizam o jogar (abaixo em inglês para
evidenciar o problema da tradução do termo):
1. Play is free, is in fact freedom.
2. Play is not “ordinary” or “real” life.
3. Play is distinct from “ordinary” life both as to
locality and duration.
4. Play creates order, is order. Play demands order
absolute and supreme.
5. Play is connected with no material interest, and no
profit can be gained from it.
Embora atualmente possa sofrer críticas quanto aos
fundamentos apresentados (pois jogos eletrônicos só iriam
aparecer vinte anos depois) a lista acima sintetiza um
pensamento sobre os jogos que os permite se manifestar em um
locus distinto da realidade. Desse modo, nosso ponto de partida
é na verdade um plano, circular, no qual o jogo transcorre e
fora do qual estamos cientes de nossa condição humana,
limitada e cotidiana. Chamamos esse espaço de potências
simbólicas de “Círculo Mágico” e sobre ele iremos construir
nossos jogos. Os autores Eric Zimmerman e Katie Salen
expressam muito bem os fundamentos do termo em seu
famoso livro Rules of Play, de 2003, no trecho que traduzo:
“(...) o termo é usado aqui como uma simplificação à
idéia de um lugar especial no tempo e no espaço
criado pelo jogo. O fato de que o círculo mágico é
apenas isto – um círculo – é uma característica
importante este conceito. Como um círculo fechado, o
espaço que ele circunscreve é fechado e separado do
mundo real.”
(SALEN & ZIMMERMAN, Rules of Play, 2003 p.95)
Ao entrar no jogo, o jogador acata o contrato contextual
de seguir as regras estabelecidas no Círculo Mágico sob a pena
de ser preterido na brincadeira e assim se ver expulso dele. O
círculo não existe propriamente como um desenho no chão:
consolida-se na participação dos jogadores, que segundo o
outro autor, Roger Caillois, ira perceber o jogo sob quatro
diferentes categorizações:
• Agon, ou competição. Quando se estabelece
vencedores e perdedores.
• Alea, ou sorte. Quando os resultados não podem
ser previstos mas ditados pelo acaso.
• Mimicry, ou imitação. Quando se interpreta
personagens e suas atitudes.
• Ilinx, ou vertigem. Quando se altera a percepção e
os sentidos.
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Desse modo, criticando a superstimada atenção que
Huizinga deu a competitividade nos jogos, o sociólogo francês
em seu livro Les jeux et les hommes, de 1958, amplia o sentido de
jogar para uma atividade estruturada baseada em regras (o ludus
do jogo) contrapondo uma atividade desestruturada baseada em
diversão (a paideia do jogo). Ambos os conceitos estão presentes
em muitas atividades humanas que não são jogos, mas nestes
últimos se observa uma recorrente tentativa de alcançar a paideia
por meio do ludus. Ou seja, de por meio de brincadeiras até
então sem finalidade aparente além do brincar, se chegar a
resultados quantificáveis cuja experiência possa ser
compartilhada pelo contexto.
Quinta Exposição:
Triângulo das Ênfases na Criação:
temática, regras e experiência
Conforme nossa compreensão dos jogos avança
geometricamente, podemos nos apropriar de formas também
geométricas para exemplificar relações que precisam ser
estabelecidas para que o jogo aconteça. Partindo do Círculo
Mágico, que delimita as apropriações de tempo e espaço para o
jogo, passaremos pela tríade das considerações prévias que
orientam a ênfase do game designer no que tange as
oportunidades de criação. Afinal, não basta ao game designer
ter boas ideias e achar que elas serão suficientes para que o jogo
milagrosamente divirta: é imprescindível considerar um
encadeamento lógico que garanta ao jogo se estabelecer com
profundidade na vida dos seus jogadores. O triângulo que
resume as ênfases de criação deve antecipar a produção com
algumas questões que resolvidas, irão caracterizar uma
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identidade para a obra, como produto e como processo. Cada
elemento no triângulo evoca influência diretamente em outro
elemento, garantindo a tríplice disposição uma importante
dinâmica para a superfície do jogo:
Temática: Requer de experiência e explica as regras. Temática corresponde
ao conjunto de assuntos cobertos no jogo de modo a evidenciar como o
jogo deve ser participado. Como jogos apresentam conteúdo diverso, as
temáticas também deveriam ser variadas. No entanto, como jogos lidam
com simplificações dos valores do cotidiano, as temáticas acabam sendo
excessivamente recorrentes. O importante de se pensar em temáticas
inovadoras é que como as regras são explicadas pelos assuntos, novas e
interessantes situações de escolha podem ser evidenciadas.
Regras: Definem a experiência e justificam a temática. Regras
correspondem ao conjunto predeterminado de ações que podem ou não ser
executadas nos jogos de modo a premiar ou castigar a conduta do jogador.
De acordo com as regras, a percepção do jogo pelo jogador pode mudar, e
assim, a experiência do jogador se torna particularíssima se comparada com
a de outros jogadores. O importante de se pensar em regras coerentes é que
as experiências são delimitadas pela profundidade das disposições lógicas
apresentadas como instruções do jogar, logo, a atividade se apresenta
instigante.
Experiência: Satisfaz à temática e torna coerentes as regras. Experiência
corresponde ao conjunto de sensações obtidas antes, durante e mesmo
depois da participação no jogo, sendo a principal conquista do ato de jogar.
Todos os projetos de jogos buscam estabelecer em seus jogadores
experiências memoráveis, seja pela habilidade no entendimento e ação
coerente com as as regras, seja pela inépcia em se alcançar os objetivos
propostos aceitando uma derrota momentânea. É preciso que o jogar
produza sensações positivas e negativas para valorizar as temáticas e que
tenha protocolos de uso coerentes com os assuntos apresentados. O
importante de se pensar em experiência como principal consequência da
relação entre temática e regras é permitir ao jogador a oportunidade de
refletir sobre suas próprias decisões e ações.
Por se tratar de um triângulo, fica aparente a nossa
incapacidade de se equilibrar o mesmo de modo a evidenciar
mais de uma ênfase apontando para cima. Girando o triângulo
para a direita ou para a esquerda, podemos estabelecer novas
ênfases ao nosso jogo, orientado ao uso para evidenciar sua
temática ou suas regras. No entanto, sendo uma ou outra ponta
destacada como ápice do jogo, ela terá obrigatoriamente de
contar com o suporte e influência das duas outras.
20
Sexta Exposição:
Quadrado Fundamental no Desenvolvimento:
estética, narrativa, mecânica e tecnologia
Enquanto o Triângulo das Ênfases resume as três principais
orientações do game designer em relação ao jogo quando
criado, quatro fundamentos irão reger o desenvolvimento do
mesmo. Para serem usufruidos como obras expressivas, os
jogos apresentam ao jogador a apreciação de resultados de
pensamento meticuloso em escolhas justificativas que lidam
com o teor do conteúdo e de como esse conteúdo é
conformado. Os fundamentos inferiores do quadrado,
mecânica e tecnologia, sustentam os fundamentos superiores,
estética e narrativa. O jogador é capaz de reconhecer todos os
quatro fundamentos em seus jogos, mas no momento de
emissão de uma crítica, depende mais das relações interfaciais
dos elementos superiores (a superfície do jogo) do que da
solidez dos elementos inferiores (o lastro do jogo). Observe
doravante os diálogos entre os jogadores que constantemente
remetem à representação audiovisual e às histórias construídas
no ato de jogar e compare com os diálogos entre outros
jogadores, que constantemente remetem ao uso de recursos
técnicos e à qualidade das condições de uso. Perceberemos que
as motivações dos primeiros jogadores irão de encontro ao
conteúdo apresentado e as motivações dos segundos, irão de
encontro à forma pela qual essa apresentação ocorre. Por isso,
para estabelecer um Círculo Mágico enfático em termos de
experiência, regras e temática é preciso substanciar as escolhas
sobre quaisquer componentes que fundamentem a estética, a
narrativa, a mecânica e a tecnologia presentes no projeto.
Estética: A estética do jogo compreende a qualidade representacional dos
seus elementos conteudísticos em termos de sedução dos sentidos. Quando
21
nos referimos à estética, não estamos discutindo o jogo pela sua "beleza" ou
"verdade", como aprendemos com a filosofia, mas especialmente estamos
discutindo o jogo pela sua capacidade de iludir o jogador fazendo-o acatar o
contrato de participação. A estética do jogo deve ser característica o
suficiente para impelir o jogador no engajamento dos problemas a serem
resolvidos e portanto, sugerem ao jogo sua unicidade, quando muito
semelhantes entre si são os demais fundamentos.
Narrativa: A narrativa do jogo compreende a sequência lógica de eventos
encadeados no tempo e no espaço do jogar, sejam eles diacrônicos
(anteriores a participação) ou sincrônicos (durante a participação). A
narrativa pode se apresentar embutida ou emergente e mesmo que o jogo
não conte com a primeira, sempre apresentará a segunda. Como nossa
cultura privilegia o conhecimento transmitido, e a melhor forma de
transmitir é pela reportagem, a narrativa cumpre um importante papel para
que haja interesse do jogador pelas consequências de suas ações no tempo e
no espaço do jogo.
Mecânica: A mecânica do jogo compreende a coleção de disposições
cabíveis de serem operadas pelo jogador para solução adequada de um
problema proposto, normalmente, da interpretação de padrões a serem
reconhecidos e interpretados. O termo nos remete a parte da física que dá
conta dos fenômenos observados nos objetos a partir de forças e
deslocamentos e também da engenharia, na qual a acomodação de peças
entrosadas permite transformar trabalho em resultados intencionados. Nos
jogos, a mecânica resulta especialmente no alinhamento das regras de modo
a tornar o processo do jogo uma atividade interessante, respondendo pela
noção funcional das ações envolvidas.
Tecnologia: A tecnologia do jogo compreende a totalidade de sistemas,
máquinas, ferramentas, técnicas e práticas cuja manifestação dá ao jogo sua
substancialidade. Conforme as ferramentas, técnicas e práticas se modificam
evolutivamente no decorrer dos anos, compete ao game designer determinar
dos cenários de produção a melhor maneira de abordar um determinado tipo
de jogador. Embora com os jogos eletrônicos a tecnologia se apresenta
indicernível do modo pelo qual ele é participado, é preciso pensar tecnologia
não como finalidade em si, mas como possibilidade decorrente de uma
atenção ao público e seus contextos. Tecnologia não determina a qualidade
da experiência do jogador, somente indica sobre qual técnica o jogo como
processo será construído e participado.
Assim como em nosso Triângulo de Ênfases, é possível
girar nosso quadrado para direita e para esquerda, observando
novas superfícies e lastros. Jogos que apresentam sua mecânica
e sua estética amparadas pelo peso de narrativas e tecnologias
não são raros, bem como não são raros jogos cujo
desenvolvimento colocou narrativa e tecnologia acima da
estética e da mecânica. No Quadrado Fundamental do
Desenvolvimento, conforme o apresentamos, colocamos maior
responsabilidade na mecânica e tecnologia porque jogos lidam
mais com escolhas interessantes permitidas pela configuração
dispositiva do que com histórias reativas adornadas por
balangandans que em nada colaboram com a experiência do
jogo. Como seguimos com nossos estudos uma linha mais
ludológica do que narratológica, nosso quadrado pode deitar de
lado, mas nunca poderá ficar de cabeça para baixo.
Comentaremos essa e outras abordagens em exposições
seguintes.
22
Sétima Exposição:
O Polígono do Game Design
Vamos reunir agora toda nossa geometria compondo um
diagrama elucidativo de como um locus, ênfases e fundamentos
podem ser articulados para a criação e o desenvolvimento dos
jogos. O polígono resultante que ilustro, confere conexões
interessantes que podem ser investigadas de modo a nos
permitir a produção de obras expressivas e interessantes. No
entanto, é preciso que assumamos alguns termos para evitar
confusões entre as liberdades e restrições normalmente
encontradas nos projetos de jogos. O primeiro termo que
iremos desmontar é o miolo essência do jogo em sua produção,
ou seja, o game design. As coisas complicam porque o Homo
Faber e o Homo Ludens não concebem o mundo da mesma
forma, o que na semiótica chama-se Unwelt (ambiente, no
original alemão), ou seja, o fato de que, mesmo partilhando o
mesmo ambiente, participam de mundos completamente
diferentes. Para o Homo Faber, design se aplica ao projeto de
“coisas” materiais e de então percebe o jogo como produto.
Para o Homo Ludens, design se aplica ao projeto de “não-coisas”
imateriais e de então, percebe o jogo como processo. O
paradoxo reside em como encontramos o design no design de
jogos. Sabemos como encontrar o jogo no projeto do jogo (que
mesmo não definindo já delimitamos). Para encontrar o design
no game design, devemos procurar por perto, mas especialmente
nos arcos e cordas do polígono acima. Afinal, um polígono tem
muitos lados e o que nos importa é como podemos dividir uma
superfície com ele.
Design no game design
Quando falamos sobre o design, consideramos uma área de
conhecimento de características transdisciplinares e vocação
23
tecnológica porque surge com a sistematização da tecnologia
voltada para a produção de bens e serviços. Assim sendo, o
design no game design diz respeito à inserção de teorias de
saberes distintos para solução de um problema metodológico
que ao término dará origem a uma “coisa” chamada jogo e uma
“não-coisa” chamada jogar. A simultaneidade é antes de um
problema uma bênção: como lidamos com o jogo segundo sua
presentificação consoante com o espírito histórico vigente,
também lidamos com o jogo nas relações culturais que deles
podem ser percebidas. O design no game design, desse modo, é
mais uma iniciativa filosófica que investiga as motivações por
trás das atividades que ele convida a participar do que somente
sua materialidade e imaterialidade. Por isso, para se alcançar
profundidade no gesto projetivo, é preciso realizar-se das...
Considerações históricas do design como termo e área, para sabermos
como dialogar os assuntos com os nossos interlocutores da forma mais
sincera possível.
Artes visuais aplicadas e das ciências sociais aplicadas, para
instituirmos no projeto valores de barganha entre as tecnologias de
representação e os conhecimentos sociológicos pragmáticos do sistema e
dos usuários.
Expectativas de um design do mundo objetivo, considerando a
proxemia, ou relação afetiva que os usuários guardam dos produtos que
manipulam no plano da atualidade.
Expectativas de um design do mundo subjetivo, considerando a práxis,
ou atividade teórico-prática, capaz de transformar as circunstâncias no plano
da virtualidade.
As questões são mais complicadas do que aparentam
porque para os jogos, o design se responsabiliza pela sua
instrumentalização do jogo e pela maneira como os
instrumentos devem ou não ser utilizados. Antes de localizar o
designer como o indivíduo que concentra os poderes de como
o jogo será produzido, ou seja, criado e desenvolvido, é mais
importante que ele se atenha ao jogo pelo jogar, uma ação que
dependerá da qualidade das relações entre sistema e usuário.
Como ações e relações ocorrem entre os elementos do jogo, é
também responsabilidade do designer em sua mediação dar
conta das necessidades do projeto. Em um primeiro momento
o design no game design está anterior ao projeto, justificando-o.
Em um segundo momento o design no game design está no
projetar, realizando-o.
24
Figura 11 - A Black Lotus, por apenas US$ 1788,22 a unidade! Uma
pechincha!
Como exemplo de como essa relação entre objetividade e
subjetividade do ponto de vista do design de um jogo pode
gerar situações curiosas, apresentamos a carta de um jogo de
cartas colecionável (e comerciável) chamado Magic: The
Gathering, criado por Richard Garfield em idos de 1993,
conhecida como Black Lotus. Atualmente, por contar com um
sistema de expansão constante de seus componentes, o jogo
apresenta mais de uma dezena de milhares de cartas únicas, das
quais algumas são tidas como muito raras e portando, muito
caras. Como o jogo passa por revisões constantes, o excesso de
relações faz com que algumas cartas apresentem poderes tidos
como excessivos e por isso, um jogador que contasse com tais
cartas poderia vencer quaisquer outras (ou ter uma vitória
facilitada) pela sua simples posse. Embora não possam ser
retiradas do compêndio oficial, as tiragens de tais cartas são
mínimas, o que as faz valer algumas centenas de dólares. A
Black Lotus, por exemplo, custava em valores de 2010,
US$1.788,22 em sua versão B.
Do ponto de vista do design do jogo por sua
objetividade, cada carta é uma fração de conjuntos de outras
cartas, todas elas feitas de pedaços de papel cartão impresso por
policromia, medindo 88mm x 64mm, empacotadas e
distribuídas em lojas e por contrabandistas especializados em
abrir os pacotinhos e montar coleções específicas. As cartas são
organizadas pelo jogador que tenta fazer os valores hierárquicos
das suas cartas serem melhores que os valores hierárquicos das
cartas de seus adversários durante as partidas. Eis nosso arco
inferior do polígono do game design considerando temática,
mecânica, tecnologia e regras.
Do ponto de vista do design do jogo por sua
subjetividade, cada carta é uma entrada para um universo
25
fantástico de relações humanas previstas, mas não
determinadas, nas quais pressões de ofertas e demandas do
capitalismo permitem um único pedação de papel valer mais do
que o computador usado no projeto de todas as cartas. Eis
nosso arco superior do polígono do game design considerando
estética, experiência e mecânica.
Etapas de um projeto
Compreendida a dicotomia, consideremos a sequência de
eventos que encadeados transforma uma ideia em uma
concretude. Quando falamos de projeto, definimos um médodo
que será viabilizado por técnicas. Método pode ser comparado
com um caminho e as técnicas com os veículos para se
percorrer o caminho. Há caminhos longos e curtos e veículos
rápidos e lentos. Caminhos esburacados podem exigir um
veículo lento e com boa tração. Caminhos muito sinuosos
demandam maior atenção pois uma agilidade excessiva pode
tirar o veículo do traçado... A escolha do melhor caminho
possível chama-se metodologia e a escolha do melhor veículo
possível chama-se tecnologia.
Percorremos uma série de caminhos para realizarmos
uma viagem e toda viagem tem um destino bem definido.
Como os caminhos podem variar durante qualquer viagem, é
importante demarcarmos nos nosso progresso por etapas. Cada
etapa é um posto que nos permite (re)avaliar o nosso percurso a
cumprir e a escolha dos (próximos) caminhos e dos (próximos)
veículos, daí compreender que qualquer projeto irá contar com
um mínimo de etapas de nosso primeiro passo ao nosso
sucesso em chegar onde quisermos.
Etapas de uma simples metodologia de projeto:
•
•
•
•
•
proposta
pesquisa
produção
testes
aplicação
26
Figura 12 - Em japonês fica tudo mais fácil!
Muitas atividades podem ser encaradas como desafios
metodológicos, bastando para nós definirmos a etapas e as
técnicas a serem envolvidas para cumprimento dos nossos
objetivos. Cozinhar é um exemplo, pois assume que uma
mistura desorganizada de ingredientes, por mais saborosos que
sejam individualmente, vão culminar em uma gororoba
repulsiva. Cozinhar, muitos dizem, é uma arte. Mas como
projetistas consideramos que cozinhar envolve uma série de
técnicas e tecnologias que transformam matéria orgânica em
refeição levando em conta uma expectativa do cozinheiro.
Culinária, é uma metodologia. Na culinária diferentes alimentos
demandam diferentes tipos de preparo e a habilidade do
cozinheiro em descascar, picar, moer, refogar, fritar, flambar,
assar e servir faz a diferença entre “um salgadinho de
botequim” e a “comida da vovó”, ainda que ambos sejam
comestíveis.
Minhas incríveis habilidades de cozinheiro me permitem
no máximo fazer um miojo. Eis minha proposta e com ela
definida vou ler na embalagem de plástico como faço aquele
pedaço de massa sólida se transformar em um molengo
aglomerado de fios amarelos. Essa foi minha pesquisa e dela
começo a produção, colocando os ingredientes informados na
minha pesquisa nas quantidades e momentos corretos. Depois
de certo tempo, avalio o grau de dureza da massa e se
satisfatória, instalo no conjunto o pozinho do tempero, jogo o
resultado no prato e devoro. Esta finalização no cumprimento
do meu objetivo chamo “aplicação”; e ao conjunto de
instruções que segui para chegar ao meu miojo no prato, chamo
de “método”. Como-o. E prefiro a comida da vovó.
27
Oitava Exposição:
“Hora de se Jogar! Nos Dados”
Na oitava exposição os agentes se viam às voltas com o primeiro projeto de
jogo enquanto prática, no caso, munidos de dados, não os podendo usar
como objetos definidores de resultados de vitória ou derrota pelo acaso, mas
como instrumento de promoção de dinâmicas por conta de seu formato e
informações obtidas aleatoriamente.
O detalhamento dessa atividade conforme anunciada pode ser encontrado
na seção que lida especificamente com as práticas. Cabe destacar que
normalmente há o estranhamento da atividade, pois os jogadores nem
sempre sabem lidar com a revisão das particularidades de algo banal como
um poliedro regular usado sempre da mesma maneira: para obter um valor
pela sorte. O objetivo da exposição, portanto, é promover um pensamento
lateral sobre como jogos podem ser dinamizados de formas inusitadas,
considerando causas e consequências.
Nona Exposição:
Ludologia versus Narratologia
Uma das principais confusões feitas a respeito de jogos é
compará-los em equivalência a histórias que contam, ou seja,
interpretá-los como se fossem somente veículos oportunos para
a sua própria coleção de eventos relatáveis. O problema não é
exclusivo de uma má impressão divulgada pela mídia não
especializada do presente, que sobrepõe conteúdo ao modo
como o conteúdo é percebido: no passado, como forma de
tornar coerente a interação dos jogadores com os sistemas dos
jogos, estes recebiam uma pesada carga simbólica de situações
que antecipavam e convidavam a ação, ou apareciam a partir
dela. Dessa forma, sua situação dicotômica em essência de
28
interesse dos seus jogadores convida a uma abordagem
investigativa: seriam jogos atividades importantes por si, pelo
lúdico evidente, ou somente um acessório da necessidade
humana de construir e partilhar experiências pela narração de
fatos?
Tomemos daí o problema sobre duas definições de
perspectiva investigativa: a ludologia e a narratologia. Ambas as
linhas de estudo admitem uma teorização dos jogos com base
em suas manifestações tipificadas, mas divergem em relação aos
motivos e consequências dos mesmos segundo bibliografias e
orientações ideológicas e mesmo filosóficas.
A ludologia surge da lacuna na percepção dos jogos
segundo sua importância como processo de envolvência do
jogador com regras e procedimentos. Até a década de 1980,
jogos não eram percebidos de modo independente, sendo
estudados a partir de outras áreas de conhecimento como
História e Antropologia, conforme vimos os trabalhos de Johan
Huizinga e Roger Caillois... Mas em virtude de uma entrada
progressiva dos jogos eletrônicos no cotidiano da sociedade, se
revelou a ludologia essencial para explicar comportamentos e a
evolução das formas do jogar. Oriundos da área das ciências
sociais aplicadas, os ludólogos, como chamados, esperam
sujeitar o jogo ao escrutínio das ciências humanas, reclamando
para tais sistemas sua importância histórica, psicológica e
cultural. A ludologia considera o jogo como forma de expressão
característica da produção de sentido de uma sociedade e
portanto, importante pelas relações que estabelece com os
jogadores pela forma pela qual o conteúdo dos mesmos é
apreendido. Seu principal representante acadêmico é Gonzalo
Frasca.
A narratologia, por sua vez, é um pouco mais antiga e
remonta aos estudos sistemáticos da narratologie de Tzvetan
Tudorov, por volta dos anos de 1960, baseado nos formalistas
russos como Vladimir Propp e portanto, na poética de
Aristóteles: se a narração é um sistema construído, pode ser
considerada de modo estrutural, da qual se separa discurso de
história. Assim sendo, foi natural que os estudos das narrativas,
inicialmente voltados para a literatura e para o cinema sob o
viés da narratologia, acabassem por chegar aos jogos
eletrônicos, destacando dos sistemas eletrônicos e sua
característica notoriamente interativa uma oportunidade
investigativa. Oriundos da área da comunicação e da
sociolinguística, os narratólogos, como chamados, esperam
sujeitar o jogo aos escrutínios das artes comunicacionais,
reclamando para tais sistemas sua importância como vetor da
expressividade de seus autores. A narratologia considera o jogo
com meio pelo qual as histórias podem ganhar novos e
profundos significados e portanto, importante pelas relações
que estabelece com os jogadores pelo o conteúdo dos mesmos,
sendo as maquinações das regras e procedimentos menores se
29
comparadas a narrativa na qual os interatores estão envolvidos.
Sua principal representante acadêmica é Janet Murray.
Ainda que concordem com a importância de se estudar
os jogos além de sua tecnologia (pois normalmente os estudos
sobre os jogos de modo qualitativo são corriqueiros na
matemática com a teoria dos jogos e na computação com a
automação e a representação gráfica), ludólogos e narratólogos
costumamam se entregar aos sopapos terminológicos e
ideológicos sempre que tem oportunidade de se encontrar.
Jogos e Histórias lidam com semelhantes estruturas de
agenciamento, mas em essência, consideram a escolha decisória
de seus atores de forma distintiva.
Na ludologia, jogos são matrizes de decisão na qual a
ação do jogador determina novas ramificações de sentido no
jogo. Em termos plásticos, esse entendimento se aproxima do
segundo labirinto como o observado no diagrama acima: de
cada ponto permitido, cabe ao jogador na consideração de seus
interesses particulares, optar por uma ação dentre possíveis.
Conforme os jogos apresentam a questão da escolha de modo
diferente e em profundidades consequentes distintas, um
estudo das escolhas é determinante para entender como o jogo
pode influenciar os estados de espírito dos seus participantes.
Nesse caso, não é tão fundamental a camada narrativa dos
jogos, pois ela não interfere diretamente em como as regras se
apresentam ou como os objetos do sistema irão se integrar
qualitativamente por relações internas e com o ambiente. Não
importa ao jogo de xadrez que suas peças sejam feitas de vidro,
madeira ou caracterizadas como soldadinhos de chumbo pois o
jogo será o mesmo em essência, pois suas regras independem
da narrativa embutida ou emergente.
Na narratologia, jogos são canais de expressão na qual a
ação do jogador determina um fluxo de participação aristotélica
interna ao jogo, por início, meio e fim. Em termos plásticos,
esse entendimento se aproxima do primeiro labirinto como o
observado no diagrama acima: de uma situação prévia ao
convite a conclusão da demanda, o interator passa por uma
série de percalços que dão a ele um entendimento encadeado
dos eventos. Mesmo que haja subversão na ordem dos
acontecimentos, eles sempre trarão o conhecimento e
reconhecimento de causalidades previamente estabelecidas e a
qual o interator não pode corromper. Por mais elaborada que
seja a interrelação entre os eventos, se recontados, sempre
evocarão uma finalidade rígida de exposição, argumentação e
descrição. No entanto, os narratólogos defendem que a forma
pela qual a história é desenvolvida nos jogos, as relações entre
sistema e jogador são profundamente adulteradas. Assim, em
um jogo de xadrez, saber das motivações entre reis, rainhas e
bispos, da profunda amizade entre os peões e da história de
superação dos cavalos brancos e pretos que conseguem saltar
sobre seus adversários com elegância, traria ao jogo outras
percepções das regras e dos procedimentos.
30
Para fins de estudo, tanto a ludologia quanto a
narratologia dependem de uma posição estratégica em relação
ao projeto. Alguns jogos suportam a simplicidade excessiva e
descaracterizante enquanto outros precisam de envolvimento
afetivo para serem melhor compreendidos por seus jogadores.
Como tenderemos para uma abordagem mais ludológica do que
narratológica, convém destacar as diferenças entre as linhas de
estudo para que nossos projetos não sejam excessivamente
voltados para situações onde prevalece o enredo pois o que nos
importa no momento é chegar a resultados a serem participados
como jogo e dos quais, de uma maneira ou de outra, irão
emergir narrativas incríveis. Mas isso é uma decorrência e não
um fim... Para a realidade do presente público, que me perdoem
os narratólogos, mas ludologia é fundamental.
Décima Exposição:
Sistemas e Usuários
Quando falamos em jogos, falamos em formas de
relacionamento entre componentes que assemelham ao
funcionamento de uma máquina: de um lado se colocam
sensações, e do outro saem escolhas. Pareceria uma máquina de
produzir experiências, caso existisse uma.
Como toda máquina, o jogo deve ser orientado para
permitir que suas peças funcionem juntas de modo integrado
para benefício de um indivíduo muito especial que chamaremos
usuário. A visão sistêmica do jogo para participação de seus
31
usuários lembra outras atividades nas quais há necessidade de
uma mediação específica de um profissional que entenda tanto
daqueles que usarão a máquina, quanto da tecnologia necessária
para a máquina cumprir o que se espera dela. Esse profissional
é chamado designer, e como vimos, dele depende o projeto do
jogo em atenção aos controles, fluxos, ambiente e adaptações
que emergem do sistema, e em atenção aos comportamentos,
atividades, tarefas e ações que partem do usuário. O diagrama
acima exemplifica esse fluxo constante de alimentação e retroalimentação entre sistema e usuário, modificado ligeiramente
por mim de um diagrama original feito por Fred Von Amstel
do site Usabilidoido (www.usabilidoido.com.br).
Para compreender melhor como jogos envolvem sistemas
e usuários, tomemos suas definições conceituais.
Conceito: sistema
Sistemas estão por toda parte e mesmo dentro de nós: partes
organizadas para cumprimento de uma função especifica. A
ideia de sistemas como conjuntos integrados é facilmente
percebida nos jogos devido a sua complexidade variável e a
presença de um objetivo geral a ser alcançado. Apresentam
estrutura, comportamento e interconectividade e embora
tenham sido definidos por diferentes filósofos gregos do
passado, somente com René Descartes aprendemos a
considerar sistemas como coisas que envolvem o pensar
sistematizante e agregador, o que foi posteriormente
desenvolvido conceitualmente por Robert Wiener e Ross Ashby
para aplicações na computação e cibernética, ao final dos anos
de 1940.
De modo resusmido, um sistema é um conjunto
integrado de:
•
•
•
•
Objetos
Atributos
Relações
Ambientes
Todos os sistemas estão divididos em componentes
objetos, que apresentam características notórias como
dimensão, forma, cor, textura, quantidade... que por sua vez
permitem que entre eles se estabeleça relações internas que
possasm ser valoradas e hierarquizadas na ocorrência em
determinado ambiente. Mesmo que um sistema lide com
componentes subjetivos, eles irão se integrar conforme os
termos acima. Por exemplo, um jogo de xadrez é composto de
dois exércitos antagônicos compostos por diferentes peças
(objetos) que guardam diferentes características formais
qualitativas e quantitativas (atributos) que se distribuem e
percorrem o espaço do tabuleiro de modo a realizar condições
de posições intencionadas (relações) que irão determinar e são
determinadas pela apresentação do contexto (ambiente).
32
Conceito: usuário
Usuário é como chamamos aquele que em algum momento faz
uso de algo. Como o termo consumidor nem sempre era
percebido como quem consumia (mas de quem no século XX
começou a consumir de modo influenciado e sistematizado nas
barganhas de compra e venda) os usuários surgem com as
investigações ergonômicas de quem opera determinado
dispositivo, sobretudo os informáticos. Desse modo, usuário
nos parece ser um termo bem restrito a computação, aparelhos
de telecomunicação como telefones celulares e drogas (mera
coincidência...). Ao tratarmos de sistemas, recebem a
denominação de operadores (quando podem intervir no
sistema) ou audiência (quando não podem).
De modo resumido, um usuário é alguém que participa
de...
• Produtos
• Processos
Usuários e consumidores nem sempre são a mesma
pessoa, ainda que ambos entrem em contato direto com um
produto. Toma-se no uso de softwares o usuário como usuáriofinal, de modo a diferenciá-lo daqueles que concebem e
permitem o sistema. Essa especificidade não nos restringe no
momento, pois trataremos usuários e usuários-finais como
jogadores, pois consideramos os mesmos envolvidos com a
participação não somente de algo como um produto, mas
principalmente de um processo característico desse algo que
chamamos de “jogo”. Diferentes jogadores apresentam
diferentes níveis de dedicação ao jogo e trataremos de suas
expectativas em próxima exposição. Por hora basta-nos
salientar sua importância pois todo o sistema deve ser voltado
para dialogar com o seu usuário da melhor maneira possível.
Quando isso acontece, temos uma sinergia, ou seja, o todo
construindo
resultados
que
não
seriam
obtidos
independentemente por suas partes. É pela sinergia que
podemos estabelecer a qualidade de uma integração entre
sistema e usuário. Isso explica o sucesso de muitos jogos cujos
aspectos isolados não satisfazem as críticas mas quando
integrados, mostram-se excepcionais.
Décima Primeira Exposição:
Elenco de Elementos Formais:
Procedimentos, Regras, Recursos e Conflitos
Todo jogo apresenta claramente um objetivo, que resume a
motivação dos jogadores em direção a uma meta a ser
alcançada. Para isso, procedimentos, regras, recursos e conflitos
33
precisam ser determinados, ou o jogo se apresenta incompleto
pela insuficiência de parâmetros para que haja interesse na
atividade. Sem procedimentos, o jogar derrapa pela falta de
parâmetros de monitoria do que é necessário para a atividade.
Sem regras, o jogar capota pela falta de parâmetros que
permitam aos jogadores acatar ou refutar determinados
comportamentos e atitudes. Sem recursos, o jogar paralisa-se
pela falta de parâmetros que informem aos jogadores se estão
distantes ou próximos do cumprimento dos objetivos. E sem
conflito, o jogar inexiste pela falta de parâmetros que tornem a
situação original um problema que convide a uma solução
engajada por parte dos jogadores. Dessa forma:
Procedimentos: São as tarefas necessárias para se cumprir as demandas
apresentadas pelo jogo, ou seja, as ações que o jogador deve direcionar ao
sistema para cumprir os objetivos propostos.
Regras: São as determinações e impedimentos para se cumprir as demandas
apresentados pelo jogo, ou seja, o que pode e o que não pode ser feito pelo
jogador de modo comportamental e por atitude.
Recursos: São os ativos que permitem que o jogo seja percebido pelas
escolhas estratégicas envolvidas na sua manutenção, ou seja, tudo que
garante ao jogador, pela sua administração, benefícios em direção ao
cumprimento dos objetivos propostos.
Conflitos: São as situações obstaculosas e os dilemas que impelem a
resolução do desequilíbrio original do qual todo jogo tem início, ou seja, são
as situações que dependem de solução para que o jogo apresente resultados
quantificáveis que irão consagrar o melhor jogador dentre os competidores.
Quando amparados pela dedicação dos autores na
atenção ao elenco de elementos formais, os jogos se destacam
qualitativamente uns dos outros, conforme procedimentos,
regras, recursos e conflitos são estabelecidos criativamente.
Trata-se, sobretudo, de um ensaio de combinações para que o
ato de jogar seja interessante ao jogador como uma melodia é
interessante ao instrumentista, mesmo contando este
unicamente com o arranjo de restritas notas musicais em
sequência. O que torna uma música agradável aos ouvidos não
é portanto um excesso de tons, mas a maneira adequada de
colocar os sons em sequência.
34
Figura 13 - Um casamento se aproxima... Como proceder com a
gravata?
Ao falarmos de procedimentos, estamos atentando para
aquele que se apresentam de forma direta na ação de jogadores
mas também daqueles que ocorrem nos bastidores dos jogos
eletrônicos como automatismos que fogem da nossa certeza
imediata e na qual confiamos pelas regras. Como os jogos lidam
com alterações próprias de seus estados e respectiva monitoria
de seus jogadores para perceber o que mudou e porque, é
importante que tenhamos atenção nas facilidades de
procedimentos intuitivos e que são pensados de modo natural
pelos jogadores. Pense na imagem acima e considere o método
sobre duas perspectivas: como a do jogador analógico que vê
um salto da gravata emaranhada para a gravata pronta para ser
usada como trapaça; e a do jogador digital que vê no salto do
emaranhado da gravata para a gravata pronta para ser usada
como agilização: o primeiro pode se sentir tolido da monitoria
enquanto o segundo estará agradecido da agilidade. Para
considerar os procedimentos de um jogo de modo correto,
pense em como a informação deve ser administrada, se antes ou
depois e de como ela irá impactar o processo do jogo se
excessivamente simples ou complexa.
35
Figura 14 - O que pode e o que não pode
As regras do jogo definem o entendimento das coisas que
acontecem e sobre as quais os jogadores irão se estabelecer
durante o jogar. Muitos jogos estão baseados mais em exceções
do que em certezas, o que é um risco para sua manutenção de
recorrência. Vale dizer que as regras de um jogo são um
contrato e como tal, devem admitir certa flexibilidade, mesmo
que isso não seja uma orientação direta dos seus autores.
Entretanto, existe um acordo mais poderoso que qualquer
manual que se chama “Regras da Casa”, ou seja, o contexto é o
que irá determinar o que vale e o que não vale para os seus
jogadores. Regras servem para definir dos objetos suas relações
e servem para restringir dos jogadores suas ações, como filtros.
Mesmo que nossa sociedade esteja amparada pelo bom senso, é
importante ser claro e objetivo quando instruímos por meio de
regras: na imagem acima, a anedota é justamente o bizarro
como consequência do que não se pode fazer com um bebê.
Ainda assim, você e eu conhecemos pessoas que não dão a
mínima para advertências e proibições, as quais brechas nas
regras são exploradas sem dó.
36
Figura 15 - Recursos são sempre finitos...
Os recursos nos jogos podem ser de diferentes naturezas:
tentativas, peças, pontos, dinheiro, ações, implementos,
tempo... enfim, quaisquer elementos que são escassos ou que
precisam de administração contínua de seus valores. Muitos
jogos pecam pelo uso excessivo de recursos, e pior, pela micro
administração dos mesmos. Dependendo do jogador, longe de
uma sensação de controle sobre suas decisões, uma quantidade
excessiva de componentes a serem administrados com uma
quantidade excessiva de variáveis a serem computadas leva a
uma terrível frustração. A administração de recursos, portanto,
não deve ser pensada como uma tarefa burocrática, mas como
uma metáfora para as implicações de uso. Racionamento e
fartura andam juntos, mas cabe ao jogador conquistar pelos
seus méritos uma ou outra condição. Recursos são sempre
finitos, e nos jogos, sua finitude deve ser um instrumento para
instigar soluções e não para penalizar as decisões indevidas.
Como nos Pinos Mágicos Elka, as peças possuem diferentes
cores e quantidades de furos e saliências, fato que aquele que os
deseja montar deve supor previamente. Caso contrário, o
objeto construído será uma monstruosidade multicolorida e
mambembe com diversas faltas.
37
Figura 16 - O maior dos conflitos
Conflitos não precisam ser pareados, e sua dinâmica mais
contundente, ocorre justamente aos trios. Como na teoria da
composição fotográfica, a “Regra dos Ímpares” pode ser
instalada nos conflitos presentes nos jogos de modo a
evidenciar-lhes um ponto médio entre uma ou outra estratégia,
fazendo a balança do poder pender para um lado ou para o
outro, de modo interessante. A oposição entre forças
característica de muitos jogos tem raízes ancestrais na luta do
bem contra o mal, mas pensamentos mais modernos
consideram não uma relação binária de ápices, mas sim uma
relação espectral de interesses gradientes. Tomemos por
exemplo o famoso jogo Janken-pon (ou pedra-papel-tesoura,
conforme o conhecemos no Brasil). Nas regras, cada elemento
vence e é derrotado por outro, cabendo como procedimento
definir previamente qual elemento lançar contra o adversário.
Em uma primeira partida, o jogo se apresenta extremamente
aleatório, mas com novas partidas, os jogadores antecipam
implicações lógicas em suas escolhas e resultados de metaescolhas podem ser previstas entre os jogadores que se
conhecem as recorrências de apostas. Outros jogos de conflitos
simultâneos são o Micatio (que deu origem ao nosso jogo
Porrinha de bar) e o Zerinho ou Um (que se acredita ser
originariamente brasileiro). Nos jogos, para se evitar situações
nas quais o conflito se aproxime de uma estratégia dominante
de uma das partes, é importante que cada elemento possua
autoridade sobre outro, mas fragilidade para com um terceiro.
Em alguns casos, o conflito é resultante das ações do jogador
38
contra seus oponentes e em outros, surgem das ações do
jogador contra o sistema. Cabe ao designer definir nos conflitos
resultados condizentes com a profundidade do envolvimento
competidor.
Décima Segunda Exposição:
Escolhas Interessantes
Que porta escolher? Que arma usar? Que direção tomar?
Durante o processo de jogo, o tempo todo, os jogadores são
convidados a tomar decisões, e o que caracteriza o jogo como
uma atividade que lhes é importante é o fato deste permitir
escolhas que dependendo dos resultados, consagram (ou
castigam) quele que escolhe. Sid Meier, famoso game designer dos
jogos Civilization e Pirates! define assim os jogos: uma série de
decisões significativas.
O ato de escolher é um processo mental ponderado, ou
seja, fruto de julgamento de méritos de múltiplas opiniões por
vezes conflitantes. Algumas escolhas são mais relevantes do que
outras, mas dentro do jogo, é comum esperar retornos
imediatos daquilo que decidimos. A isso chamamos retroalimentação (feedback, no original em inglês), ou seja, o processo
de reinjetar no sistema ações processadas pelas nossas
intenções, estratégias e táticas.
Na psicologia, a “Teoria das Escolhas” admite que todos
nós devemos ter controle de nossas próprias vidas, mesmo que
as ecolhas anteriores tenham sido completamente equivocadas.
Daí a importância dos jogos como um ensaio de escolhas
possíveis e de suas consequências, que podem ser, muitas vezes,
desastrosas. Na liberdade de escolher sem sermos afetados
fisicamente pelas resultantes, assumimos o papel de quem
39
decide com ímpeto, aproveitando a sensação de segurança que
o sistema do jogo é capaz de nos fornecer. Por isso jogos estão
presentes em muitas culturas relacionados diretamente à criança
em suas brincadeiras, pois é quando começam a compreender
que a realidade é feita das soluções circunstanciais de nossas
tomadas de decisão.
Figura 17 - Múltiplas escolhas, um único resultado? Como?
O ato de projetar um jogo também envolve escolhas,
algumas muito profundas, fundamentadas em questões
ideológicas e filosóficas. Para que um jogo seja projetado, cabe
aos seus autores definir previamente em escalas amplas e
pontuais regras, procedimentos, recursos e conflitos. A
preocupação que o game designer deve ter com as mecânicas
apresentadas no jogo é se elas oferecem escolhas condizentes
com as expectativas suas em relação aos eventuais jogadores.
Jogos lidam com oximoro de liberdade restrita, ou seja, o
jogador tem a sensação de escolher, embora seu repertório seja
sempre muito mais restrito do que se esperaria da situação em
ocorrência similar no plano da realidade. Isso pode ser
explicado ontologicamente, pois um subsistema não podem
conter todas as mesmas informações do sistema no qual reside.
É como um mapa de um território que sempre terá uma escala
menor do que 1:1, caso contrário o mapa seria o território, e
portanto, porque um mapa?
A liberdade restrita presente nos jogos tem como
fundamento direcionar as intenções do jogador para
previsibilidades de suas ações, ainda que o jogo não seja capaz
de dar conta de todas as possíveis ações e repercussões de
ações, o designer as deve planejar de modo a providenciar
surpresa e prazer. Dessa forma, a sensação de liberdade é muito
mais interessante que a completa liberdade. Nas redes de
lanchonetes fast-food, por exemplo, é comum encontrarmos
aquelas máquinas de sorvetes com apenas dois sabores,
normalmente creme e chocolate. A restrição aos sabores, longe
de um problema de insuficiência, é uma inteligente solução,
40
pois é mais fácil decidir-se entre creme ou chocolate (ou um
sabor misto dos dois, para os indecisos) do que por muitos
sabores, e assim, se obter maior agilidade na fila de
consumidores. É provável que sorveterias de muitos sabores e
coberturas tenham no curto prazo clientes muito mais
insatisfeitos com o peso de suas próprias decisões
momentâneas. Decidir, para muitos, é uma tarefa árdua. Daí
diz-se que em casa de indecisos só pode haver um banheiro.
Diferente das sorveterias de muitos sabores e coberturas,
o jogador pode retomar o jogo para decidir novamente de outro
modo, pois não há ônus ao erro, fora casos no qual será
necessário se repetir determinada passagem como punição (ou a
compra créditos de acesso, no caso dos jogos de azar e
fliperamas). Há uma moderna tendência para jogos menos
punitivos, mas falaremos sobre isso mais tarde. No momento,
atenderemos que o problema das sorveterias de muitos sabores
e coberturas é que elas estão presas ao fato dos seus clientes
terem diante de si um problema que na economia chama-se
trade off: um conflito de escolha cuja opção exclui as demais.
Mantenho meu dinheiro, ou compro um sorvete? E se compro
um sorvete de um sabor, não compro o de outro sabor... Como
escolher?
Esse constante dilema de investimento é observado
também entre os produtores de jogos. Havendo tantas
possibilidades de jogos a criar e desenvolver, como começar?
Para compreender as escolhas de projeto como escolhas
interessantes, consideraremos as seguintes necessidades a serem
observadas.
Workflow
Workflow, ou fluxo de trabalho, diz respeito aos termos que
precisam ser descriminados para que o projeto do jogo
conquiste sua uniformidade de criação e desenvolvimento. Sem
um workflow definitivo o projeto é um emaranhado de
indecisões que podem comprometer a ideia inicial e assim,
atrapalhar todo o time de autores. De modo resumido, workflow
vai considerar de modo objetivo uma proposta, um conceito, a
criação de aspectos funcionais e ativos e uma orientação de
produção e publicação.
No ato de projetar um jogo, defina:
• Proposta = (tema)
• Conceito = (lógica)+(gênero)+(público)
• Criação = (ludus, condição funcional: regras) + (paideia,
atuação ativa: diversão)
• Orientação de produção e publicação
A proposta pode ser compreendida como o tema do
jogo, sendo o tema, um único assunto principal (um conjunto
de assuntos nós chamamos “temática”, e já falamos sobre
41
anteriormente). Temas são constantemente confundidos com
gênero, e vice-versa, mas são coisas diferentes. Por exemplo,
(quase) todos os filmes do Van Dame lidam com o tema
“vingança”. Mas para se vingar, Van Dame usa a batata da
perna em saltos espetaculares, o que coloca a vingança na
perspectiva das artes marciais, típica de filmes de “luta”. Se Van
Dame usasse xícaras de chá envenenado, ainda se vingando pela
morte do parceiro/irmão/cachorro/mestre o estaria em uma
perspectiva da retidão, típica de filmes de “suspense”. Temas,
portanto, podem ser os mais variados, tantos quanto forem os
interesses do produtor, mas sobretudo, atendendo ao desejo de
seus jogadores, pois há temais mais universais (como vingança,
heroismo, caridade, roubo, assédio, amor não correspondido,
casamento, nascimento, morte etc.) e temas mais particulares
(como corte de cabelo, marca de automóvel, esporte obscuro
favorito, festival da colheita do quiabo etc.). O tema, em
resumo, é um ponto de partida, não um ponto de chegada.
Conceito é a menor unidade de sentido sobre alguma
coisa, acordada entre as partes de um contexto. No nosso
workflow, o tema será coordenado por um conceito amplo que
envolve lógica, gênero e público, ao mesmo tempo e sem
hierarquias entre eles. Lógica atende a coesão e coerência do
conceito para com o tema. Gênero, como visto acima, vai
considerar o repertório de valores e situações que darão lastro
para o tema, destacando sua ocorrência em especificidade.
Público envolve um grupo de pessoas que (se espera) irá
compreender a lógica e o gênero no qual o tema está erigido.
No caso Van Dame, faz mais sentido que ele se vingue daqueles
que mataram seu parceiro/irmão/cachorro/mestre e não que
lhes mande flores perfumadas (o que seria curioso, mas não
lógico, no nosso contexto ocidental e belicoso). No mesmo
caso, o público que admira a qualidade da interpretação do
artista Van Dame irá se satisfazer de vê-lo dar pernadas pelo ar
e não de matar seus adversários com chazinhos envenenados
travestido de mordomo.
A criação dará conta de relacionar tema, lógica, gênero e
público em condições funcionais, ou seja, daquilo que é ditado
por regras sob condições ativas, ou seja, daquilo que é tido
como brincadeira. Vimos com Roger Caillois como ambos os
aspectos estão misturados nos jogos, mas cabe ao autor
ponderar sobre como um aspecto se entrelaça com o outro. No
caso Van Dame, poderíamos ter um jogo de vingança por lutas
com adversários progressivos os quais para serem abatidos,
deveriam perder certas quantidades de pontos conforme o
protagonista os atinge com diferentes tipos de chute. Nas
nossas supostas regras, Van Dame retiraria mais pontos dos
oponentes sempre que seus chutes se mostrassem mais
“poéticos” (com direito a caretas em câmera lenta). Isso
tornaria a brincadeira mais enfática, usando comandos nos
controles para promoverem outras graças sobre nosso jogo
hipotético e só um pouco inovador.
42
A orientação para uma produção e publicação é
considerada a importância de se avançar além das ideias iniciais
tendo em rumo uma construção, inicialmente prototipada para
em seguida ser refinada. Um dos principais entraves à
conclusão de projetos é a falta de perspectivas de uso posterior,
ou seja, como ninguém joga, o jogo não se manifesta como algo
a ser progressivamente melhorado e assim se permitir alcançar
outros jogadores. Por isso é importante considerar no trabalho
duas abordagens que irão tornar o processo mais controlado.
Abordagens
Abordar é se aproximar pela borda. É, portanto, diferente de
enfrentar, algo que se faz de frente. Usar os flancos para se
chegar a um objetivo pode ser mais seguro do que disparar
contra um alvo em velocidade total. A criação e
desenvolvimento de um jogo por suas escolhas não pode
desconsiderar um cenário que se descortina ao lado, em paralelo
ao projeto e na ocorrência deste. Daí atenção a duas formas de
se alinhar os interesses dos autores com a objetividade do
projeto.
A primeira forma de abordar o projeto é por meio de
uma prerrogativa de totalização. Nesse caso, o jogo é pensado
de modo amplo, completo, que vai receber os refinamentos
conforme as decisões vão sendo oportunizadas no diálogo. O
projeto se mostra semelhante à pintura de uma parede: não
usamos um pincel de aquarela, detalhista, mas sim um rolo
largo com bastante tinta. Nessa abordagem olhamos para o
muro e não para cada tijolo, tendo atenção aos limites de nossa
atuação. Chamamos essa abordagem de “Broadstrokes”.
Broadstrokes (totalização):
• “a estrutura é sempre maior que as partes que a compõe.”
• “comendo da casca para o miolo.”
• “é melhor arrastar o banquinho que o piano.”
A segunda forma de abordar o projeto é por meio de uma
prerrogativa de modularidade. Nesse caso, o jogo é pensado de
modo sintético, nodal, que vai receber os componentes
necessários para sua configuração conforme as decisões vão
sendo oportunizadas no diálogo. O projeto se mostra
semelhante a um brinquedo de blocos de montar: como as
peças se encaixam de diferentes maneiras, diferentes
possibilidades de organização irão resultar em estruturas mais
sólidas. Nessa abordagem olhamos para cada tijolo e não para o
muro, tendo atenção ao foco de nossa atuação. Chamamos essa
abordagem de “Buildingblocks”.
43
Buildingblocks (modularização)
• “criação controlada pela standartização das peças.”
• “variabilidade quantitativa gera emergência qualitativa.”
• “complexidade gerada pela soma de simplicidades.”
As abordagens se alternam e podem ser compreendidas
de modo complementar. O mais importante é considerá-las
dentro de um escopo que irá satisfazer as expectativas da
produção orientada, conforme saliento acima. E para que haja
um projeto a ser criado e desenvolvido com base nas nossas
escolhas é preciso que haja de nossa parte, investimentos.
Investimentos
Na economia, investir é aplicar ativos visando retorno
multiplicado. Na psicologia, no entanto, há uma termo bem
curioso que resume um outro entendimento de investimento:
Sempre que há um impulso em termos de energia psíquica,
temos investimento como uma “Catexia”. O impulso à
realização é inerente ao ser humano, de modo que em
consideração bem ampla, as escolhas são modelagens que
damos aos nossos impulsos, ou seja, aos nossos investimentos
pessoais. Freud explica.
As escolhas que fazemos em direção ao projeto, devem
admitir um respaldo realístico muito alto, pois é notório que,
embora haja atualmente muita facilidade em se produzir,
poucos são produtores efetivamente. Desconsidero aqui aquele
seu primo que passa os finais de semana subindo videos ao
Youtube e se considera por isso um cineasta, e aquela sua prima
que canta no karaoke da lanchonete e se acha por isso uma
cantora. A questão principal é que FAZER demanda extrair as
ideias e colocá-las em prática, ou como vimos acima, colocá-las
públicas à partir de trade offs. Jogos só podem ser considerados
jogos no jogar, e portanto, é preciso que haja para eles
REALIZAÇÃO, não só boas ideias.
Para realizar, os autores do jogo devem considerar quatro
investimentos críticos. E não somente considerar, mas pontuálos quantitativamente em valores para que não haja decepção
pela irrealização do projeto por causa da falha ou carência em
algum deles.
Investimentos a serem considerados em qualquer projeto:
1.
2.
3.
4.
Pesquisa * 100
Dinheiro * 3
Tempo * 2
Alvo / 2
Assim, para que os investimentos se transformem em
retorno, é importante que haja pesquisa multiplicada por cem
vezes a quantidade que os autores acham minimamente
44
necessário. Também é importante que haja dinheiro e três vezes
mais do que o esperado pois o tempo a ser consumido pela
atividade será o dobro do que se espera, e o alvo atingido, será a
metade do inicialmente intencionado.
O raciocínio acima é facilmente explicado por qualquer
casal que em uma tarde de verão tenha resolvido passear no
shopping: são visitadas mais lojas do que o estabelecido antes de
sair de casa, se gasta três vezes o combinado do sorvete, leva-se
duas vezes mais tempo nas filas para pagar o estacionamento e
sempre retorna-se para casa com a metade das compras que se
gostaria.
Décima Terceira Exposição:
Artifícios: constantes e variáveis
Para que os jogos projetados permitam escolhas interessantes
por parte de seus jogadores, é preciso que pensemos em suas
estruturas de modo diacrônico (dependente de evolução com o
tempo), ou seja, antecipando as escolhas e as decorrências das
escolhas. Não é tarefa simples, sobretudo, por dependerem do
fato do jogador ter um comportamento humano e inconstante...
Mas não é tarefa impossível, pois para direcionar as escolhas de
seus jogadores, jogos contam com artifícios que se estabelecem
como constantes e variáveis.
Como você já deve ter percebido, a matemática e a
informática usam esses mesmos termos, objetivando a
implementação dos resultados de suas investigações de modo
estruturado. Trata-se, portanto, de uma programação. Estamos
aqui considerando a implementação de um projeto de jogo
também como sua programação, que não é uma exclusividade
dos jogos eletrônicos, mas que será necessária seja qual for o
projeto que antecipe ações por parte de seus usuários.
Programar, como o nome implica, é organizar previamente
visando um fim.
Constantes
Constante é tudo que não se modifica por ação do tempo ou de
outra externalidade, recorrendo ao um uso específico e
objetivo. No caso dos jogos, perceberemos as constantes
presentes nas definições originais das regras e dos
procedimentos, que irão dar conta de se manifestarem como
objetos e seus atributos em uma área delimitada de espaço. Se
consideramos que um jogo terá certa composição a ser
monitorada durante o jogar, ainda que seus atributos se alterem,
a composição não deverá ser adulterada por modificações que
não sejam previstas pelos jogadores. Por isso os jogos contam
com peças, que servem como lastro para os acordos prévios
45
entre os mesmos de modo que não haja dúvida quanto ao seu
progresso rumo à meta.
Peças em Jogo:
•
•
•
•
Espaço
Dinâmica
Agência
Estado
Figura 18 - O espaço no qual se projetar
O espaço no jogo é suporte para as ocorrências e é
pensado para dar conta delas da melhor maneira possível.
Diferente de uma mídia reativa, jogos não se projetam em seus
expectadores, mas o contrário: estes é que se projetam no jogo.
Mas o jogo precisa de um anteparo, daí compreendermos a
necessidade de que haja uma superfície na qual as escolhas
serão projetadas, e portanto, dependem de um locus que pode
até não estar visível, mas que existe em contrato dos seus
participantes. Sem um espaço apropriado, não pode haver
deslocamento simbólico e o exercício de ações, prejudicando o
entendimento de causa e efeito. O espaço nos jogos analógicos
é compreendido como TABULEIRO, e disto pode admitir
duas grandes verdades. A primeira é que o uso lembra o de uma
bandeja da qual nos servimos de alimento. A segunda é que
como toda bandeja, os tabuleiros apresentam grande variedade
de formas e construções possíveis. O espaço no tabuleiro é
entendido de modo a restringir o deslocamento de seus
habitantes e temos de considerar tais movimentações, atentos a
disposição de divisões espaciais como pontos, linhas, casas, ou
áreas. Dependendo de como o espaço é dividido, o convite ao
posicionamento será determinado, cabendo ao autor considerar
a máxima que “forma segue a função”. No caso dos jogos de
46
guerra, uma malha hexagonal facilita o entendimento de
navegação em seis direções. Uma malha cartesiana como no
tabuleiro de xadrez alterna cores para facilitar a visualização dos
deslocamentos finais.
Figura 19 - "Alea jacta est"
Seja qual for o espaço do jogo, se imaginado, se dividido
em pontos, linhas, casas ou áreas, é importante que se defina
como ocorre a dinâmica dos movimentos. Ela pode se dar por
sequência ou por turnos. Ela pode ser única em uma jogada, ou
múltipla até que seja interrompida por algum critério. Seja qual
for sua forma, compreendemos que o jogo se manifesta de tal
modo que todos os seus participantes atuam dinamicamente na
compreensão da significância do espaço. Jogos não podem
começar e terminar sem que a monitoria do jogo aponte algum
tipo de modificação providenciada pela ação de seus jogadores.
Mesmo que impedidos de agir em algum momento, é de se
esperar que o jogo lide com diferentes dinâmicas, determinadas
por seus participantes ou no acato de valores do imponderável.
Muitos jogos lidam com dados para providenciar a saída de um
conflito paralisante sem que haja benefício para um ou outro
jogador. Dados (do latim datum, “dado pelos deuses”) são
poliedros regulares com inscrições que permitem a manipulação
dos valores neles obtidos. E justamente de tais valores que o
jogo recebe a variação de seu estado vigente pelo deslocamento
dos representantes dos jogadores no espaço do jogo.
47
Figura 20 - Ao ataque! Pew! Pew! Pew!
Todo jogo busca o agenciamento por seus participantes,
ou seja, todo jogo apresenta a demanda filosófica para a
intervenção em seu mundo simbólico. É pela agência que o
usuário se torna jogador e para que haja essa atuação também
simbólica, o jogo conta com totens que carregam a áurea de ser
o jogador manifestado. Nos jogos eletrônicos, o totem recebe o
nome de avatar, inicialmente significando “incorporação” para
os hindus e mais atualmente significando “figurinha
personalizada que me representa na Internet.” Como os hindus
acreditavam que o avatar era um imortal personificado, também
acreditamos que aquelas pecinhas de plástico ou chumbo nos
personificam. Mesmo que cientes que não somos os peõezinhos
do Banco Imobiliário, sua distribuição entre os jogadores é
momento de algazarra pois muitos querem ser o “carrinho” e
poucos querem ser o “ferro de passar.” Nós, seres humanos,
damos muita importância para nossa representação, seja qual
for o suporte. Experimente capturar uma fotografia de um ente
querido e tente furar seus olhos impressos com um alfinete.
Poucos conseguem sem exalar certa repulsa, o que caracteriza
nossa sensibilidade humana de atribuir valor a coisas que em
nosso íntimo achamos que somos nós. O mito do voodo com
bonequinhos que perfurados fazem seu referente sentir as dores
é uma extrapolação dessa sensibilidade empática.
48
Figura 21 - Mudança de estados e seu futuro nas cartas.
Por fim, estado diz respeito à condição circunstante na
qual se está e da qual se pode mudar. Essa é a principal
característica da constante pois presente em todos os jogos,
espera-se que mude somente para outros estados previstos e
possíveis perante as regras. Jogos são máquinas de estados, ou
seja sistemas que alternam suas circunstâncias segundo
limitações definidas por escopos as quais monitoradas,
condicionam as escolhas de seus jogadores. Tomemos por
exemplo as cartas de um baralho. A quantidade de cartas, suas
figuras, valores e naipes são limitações que fazem os jogadores
dependerem das relações estabelecidas para construir suas
jogadas e apostas. O estado do jogo é alterado conforme os
jogadores compreendem o estado vigente e desejam mudar para
outro estado que lhes satisfaça a intenção. A palavra em latim
para estado é status, que ao mesmo tempo nos soa como uma
“apresentação” e como uma “condição” da qual se costuma
fofocar. As cartas de baralho têm uma tradição de mancia, ou
pretensa adivinhação do futuro, da qual muitos se dizem
experientes: como as cartas são finitas e o que varia é a forma
como são convocadas, o estado presente e futuro do consulente
será definido por regras de leitura. O tarô, o qual se costuma
destacar tais poderes de previsão, era um jogo de nobres
italianos, fruto da entrada de trunfos sobre os baralhos originais
vindos da Ásia por volta dos século XIV e só começou a ser
usado pelos ocultistas no século XIX. Em resumo, o estado das
cartas na circunstância histórica, mesmo ele, mudou ao longo
de séculos. Por que um jogo não iria haver de mudar?
49
Variáveis
Para elementos que precisem de alteração significativa e
posterior a definição original de sua ocorrência, usa-se variáveis.
Há quem diga que “nada é mais variável do que uma constante,
enquanto poucas coisas sejam mais constantes do que uma
variável...” O que precisamos ter em pauta no uso de nossos
artifícios para oportunizar escolhas interessantes é compreender
que as coisas no jogo irão mudar de modo superficial e
profundo: normalmente, as relações estabelecidas entre
jogadores e entre jogadores e sistema. Para facilitar o
entendimento dessas mudanças, fazemos usos de variáveis, ou
seja, colocamos uma carga inicial em algo considerando que
essa caraga será aumentada ou reduzida de acordo com os
estabelecimentos de uso.
As variáveis podem ser:
•
•
Locais ou Restritas
Globais ou Absolutas
Figura 22 - Para resultados quantificáveis, operação de valores
De modo resumido, as variáveis podem ser pontuais em
termos de satisfação ao sistema, considerando um termo cujo
desconhecimento inicial fará dele outra coisa. Por exemplo,
podemos dizer que o jogo de xadrez inicialmente possui um
número constante de casas em seu tabuleiro e um número
constante de peças a serem movidas. Mas a quantidade das
peças de um jogador será variável ao outro jogador de acordo
com o progresso de jogo. A quantidade vigente de peças de um
jogador não interfere diretamente na quantidade de peças do
seu adversário (nem determina quantas peças podem estar
50
presentes no jogo obrigatoriamente), sendo portanto, uma
variável local ou restrita. Outro exemplo se dá na quantidade
máxima de bolinhas que eu posso ter em estoque na minha
máquina de pinball, no caso, cinco. Como durante todo o jogo
eu tenho de considerar esse limite máximo de tentativas, a
quantidade de bolinhas torna-se uma variável global ou
absoluta, na qual toda minha partida estará diretamente
determinada.
Dependendo de seus valores, são as variáveis e não as
constantes que determinam o cumprimento das regras e o
alcance dos objetivos. Pensemos as constantes de modo
qualitativo e as variáveis de modo quantitativo.
Décima Quarta Exposição:
Listas de Surpresas e Prazeres
O que faz um jogo ser divertido? Por que tanta gente se dedica
a ficar diante de um dispositivo, seja ele analógico ou digital,
por horas à fio, quando a recompensa pelo tempo despendido
não é concreta, mas uma abstração conveniada pelo grupo?
Alguns pesquisadores como Raph Koster e Jesse Schell
ponderaram sobre em seus livros, pois se precisamos construir
um produto ou um processo cujo objetivo seja a manutenção
ativa do participante, é importante que o sistema empregado
seja atraente e sensual. Muito jogos realizam muito bem seu
poder de sedução conforme apresentam narrativa, estética,
mecânica e tecnologia. Mas iremos além das motivações
funcionais e esperamos algum aporte das medições psicológicas
considerando a busca do jogador por resultados para suas
investidas interativas. Jogos são divertidos porque lidam com
um aprendizado intrínseco, o qual quando dominado, evoca
satisfação particular (orientação interna) e reconhecimento
público (orientação externa).
De maneira geral, podemos dividir esses dois vetores em
surpresas e prazeres. Se existissem dois únicos grandes motivos
para se jogar, seriam a captação e emergência de supresas e
prazeres.
Surpresas
Quando falamos de coisas surpreendentes uns para os
outros, seja qual for a surpresa, se positiva ou negativa, nosso
interlocutor interrompe suas ações para nos atender. O ser
humano é surprise-driven, ou seja, gosta de ter suas expectativas
postas na provação da realidade. As surpresas positivas são
aquelas que provocam o riso da comédia. As surpresas
negativas são aquelas que provocam o choro do drama. Não
cabe ao jogo ou à uma investigação do conteúdo do jogo
sempre providenciar a primeira e tolir o jogador da segunda.
51
Não existe som sem silêncio, ou luz sem escuridão. A alegria
da vitória constante só é justificável se comparada com
pontuações de tristeza profunda pelo derrota, caso contrário,
em nada o sistema nos poderia surpreender. Daí certa crítica
sobre jogos que impedem a punição ou sobre leituras de jogos
exclusivamente competitivos como impedimento de finalidades
pedagógicas. O próprio fundamento da surpresa como ato de
avaliar o que se espera em sobreposição ao que se tem, já torna
a atividade de jogar importante. Até porque, surpresa, para
muitos estudiosos, é um reflexo e não uma sensação.
Fórmula: Expectativas – Realidade = Surpresa
Assim, SURPRESA, é o resultado inesperado de um evento:
•
•
•
•
•
•
•
•
•
Recompensa (Cognitiva, Financeira ou Moral)
Susto (ou Choque!)
Impulso por Atração
Repulsa por Aversão
Término Abrupto de Sequência
Retorno Abrupto de Lapso
Novidade Instigante
Alteração perspectiva
Fuga ao contexto
Figura 23 - BSOD
Quando algo acontece, lidamos com o acontecimento
medindo-o com as nossas experiências e com as consequências
da coincidência de nossos pensamentos com o que de fato
aconteceu. As famosas “telas azuis da morte” (BSODs, na sigla
em inglês) são exemplo característico da surpresa que buscamos
nos jogos. Não que desejamos que nosso jogo trave como um
PC velho, mas porque tais telas súbitas e fatais provocam o que
poderíamos chamar de “micro-infartos-do-miocárdio”: a
52
suspensão de nossa crença de prever os segundos imediatos
conforme a perda de previsão percorre o nosso cérebro em
busca de alternativas e explicações. Quando uma jogada nos é
oferecida por nossos adversários que não contava com nossa
agilidade ou esperteza, passamos a surpreender e assim,
sentimo-nos poderoso pois temos uma conduta exemplar de
agente do destino alheio. De modo resumido, supresas são o
desencontro entre nossas apostas e a situação que se estabelece.
Diversos são os tipos de surpresas e as ordens as quais
pertencem, bem como profundidade e decorrência de sua
manifestação. Na lista acima caracterizamos algumas surpresas
que podem ser úteis quando envolvidas no uso das regras:
quando o jogador recebe algo, seja aprendizado, dinheiro ou
valor moral (instruções, moedinhas ou saber quem é amigo e
quem é inimigo); quando o jogador leva um susto que se
estendido pode paralisá-lo (como nos jogos nos quais o
monstro salta da escuridão sobre seu personagem); quando o
jogador sente-se irremediavelmente atraído para realizar alguma
ação (como apertar um botão desconhecido) ou se vê repelido
na direção oposta por avaliar negativamente uma circunstância
decorrente (quando descobre que minas explodem quando se
aproxima delas certa distância); quando o jogador vê cancelada
uma ordenação lógica (como nas cenas que terminam com um
ápice de movimento inconcluso) ou quando a mesma ou nova
ordem é recuperada após um longo intervalo (como após o
término dos créditos aparece uma cena adicional para recuperar
algo que aconteceu no meio do filme); quando o jogador
percebe uma novidade interessante (um pedaço de algum
tesouro brilhando no chão); quando o jogador percebe que sua
cosmovisão do jogo é alterada em algum grau (como na
inversão de papéis de aliados que viram inimigos e inimigos que
viram aliados); ou quando o jogador não é capaz de raciocinar
sobre a situação corrente com outra imediata ou mesmo
anterior (como no nonsense do humor inglês).
Prazeres
De modo semelhante, o prazer que sentimos quando jogamos
nada mais é do que o encontro de nossas expectativas com a
realidade que se apresenta diante de nossas decisões: quando
chegamos nos minutos iniciais de um compromisso para o qual
não poderíamos nos atrasar, quando o sinal subitamente fica
verde quando nos aproximamos dele de automóvel, quando a
pessoa amada nos corresponde um sorriso ou aceno, quando
lembramos do título de uma música que ninguém mais parece
lembrar ou quando temos uma mão com excelentes cartas que
nos garantirá a vitória certeira no jogo de biriba... Enfim,
sentimos uma alteração profunda pela maneira como os
receptores químicos encharcam nosso cérebro, e como
decorrência, nos tornamos pessoas melhores. O prazer está
localizado no cérebro pela relação de fisiologias bem específicas
53
(como a do nucleus accumbens, da amígdala e da hipófise) que
liberam dopaminas e beta-endorfinas do sistema límbico no
circuito cerebral, o que explica nosso impulso na busca e no
retorno da sensação de prazer. Esperamos intimamente que um
determinado evento nos satisfaça quando ocorrer, e esse gatilho
auto-cíclico, é suficiente para nos impelir na tentativa de moldar
o evento para que de fato sua ocorrência nos satisfaça. Isso
amplia a nossa noção de prazer para um acervo de possíveis e
diferentes prazeres (pois podem estar envolvidos com
finalidades diferentes de origens diferentes). Pesquisadores
acreditam que o gosto pelo jogo reside no fato de sentimentos
de realização surgirem de modo intenso, porém rápida e
recorrentemente. Mesmo não havendo recompensa efetiva, o
jogo como meio de realização é suficiente para uma espécie de
hedonismo cujo principal revés seria o vício. Como toda
atividade na qual o prazer está envolvido, algumas pessoas
podem ter dificuldade de intercalar a busca pelo prazer com
outras atividades, tornando-se obcecadas. Jogos podem então
gerar dependência? Os pesquisadores divergem, mas em
princípio, sim. Tanto que há clínicas especializadas no
tratamento de casos mais graves. Mas é importante que se
atente ao fato de muitos dos casos haver dinheiro envolvido, ou
seja, a dependência no jogo é mais pelas perdas e ganhos
financeiros do que pelo ato de jogar, mero gatilho.
Fórmula: Expectativas + Realidade = Prazer
Assim, PRAZER, é o resultado estimado de um evento:
•
•
•
•
•
•
•
•
•
Antecipação
Infortúnio Alheio
União de Desconexos por Mudança Paradigmática (Humor)
Abertura de Possibilidades
Sensação de Liberdade de Escolha
Avanço Ascendente e Orgulho de Conquista
Purificação
Triunfo sobre Adversidades
Espanto e Encantamento (Admiração)
54
Figura 24 - Yeah!
Quando uma coisa boa acontece, registramos as causas
para uma posterior recuperação da sensação, daí percebemos os
jogos como sistemas de aprendizado intrínseco cuja solução dos
desafios nos satisfaz. Alcançar um patamar de realização de
poucos é motivador, pois somos obrigados a lidar com o risco
da frustração em múltiplas oportunidades. É importante que
percebamos que o prazer que advém do jogo não pode ser um
fluxo sem fim, pois como vimos, a fisiologia do cérebro sabe
dar conta dessa tentativa de autodestruição. Depois de rirmos
muito de uma piada, por mais que queiramos, não
conseguiremos manter o riso constante e como uma lâmpada, a
sensação se enfraquece e acaba apagando-se. Da mesma forma,
buscamos ampliar nosso horizonte de prazeres de modo
progressivo, no intuito de objetivar lâmpadas cada vez mais
poderesas ou como na imagem acima, cumes cada vez mais
altos.
Diversos são os tipos de prazeres e a ordem a qual
pertence, bem como profundidade e decorrência de sua
manifestação. Na lista acima caracterizamos alguns prazeres que
podem ser úteis quando envolvidos no retorno das
consequências do acate das regras: quando o jogador espera
ansiosamente por algo que vai acontecer (como quando
preparamos uma festa, atividade muitas vezes melhor que a
ocorrência da mesma); quando um outro se prejudica de algum
modo (como quando adversários perdem pontos ou são
obrigados a realizar uma ação enfadonha novamente... somos
uns mini-sádicos!); quando algo estranho coincide com uma
nova forma de ver a ocorrência (como quando ouvimos uma
anedota absurda e bem contada); quando descobrimos o
aumento súbito de nossas possibilidades de ação (como quando
descobrimos que a refeição escolhida dá direito a uma
sobremesa desejada); quando nos é oferecido a oportunidade de
55
escolher (como as cores de determinada roupa que nos é
presenteada); quando progredimos e alcançamos parâmetros até
então para nós limitantes (como o escalar de uma montanha ou
o aprendizado de uma técnica circense de salto); quando
sentimo-nos seguros ao comparar nossa vida com a de algum
personagem dramático (como em peças de teatro grego nas
quais o protagonista se aniquila diante dos conflitos... a catarsis);
quando ultrapassamos
obstáculos paralisantes (como
pagamento de contas e imposto de renda); e quando nos
percebemos diante de situações ao mesmo tempo inusitadas, ao
mesmo tempo curiosas (como diante do ribombar luminoso de
fogos de artífício ou espetáculo de um grupo musical que
admiramos).
Considerando ao longo das regras situações que lidam
com surpresas e com prazeres, as chances do jogo projetado
envolver
positivamente
seus
jogadores
aumentam
consideravelmente. Jogos tidos como “chatos” são justamente
aqueles nos quais o jogar não acrescenta em nada ao repertório
de sensações dos seus jogadores, e portanto, sua experiência de
jogo irá depor contra um próximo uso. Jogos ditos educativos
sofrem dessa carência, pois como veremos a seguir nem
surpreendem (pois a educação lida diretamente com certezas) e
nem provocam prazer (pois a educação é tida como um
momento focado de seriedade). Que façamos o diferente.
Décima Quinta Exposição:
Inovando pela Restrição
Figura 25 - "The more restrictions you have, the easier anything is to
write" (Stephen Sondheim)
Não é natural que acatemos restrições pois elas vão contra
56
nossa sensação motriz de liberdade. Desde muito jovens, somos
entusiasmados a proceder de modo criativo, ultrapassando
limites e agindo nos impulsos da juventude. Mas tão logo
crescemos, descobrimos atônitos que o mundo não é uma caixa
de areia no qual podemos brincar descompromissadamente. Há
uma constelação de situações que nos impedem e nos
interrompem e somente por causa delas somos quem somos...
Antes de nos sentir tolidos e desanimados, devemos olhar para
o outro lado dessa moeda de troco da vida: somente avançamos
quando topamos com adversidades. Como diria o filósofo John
Dewey: “nós só pensamos quando nos defrontamos com um
problema”. E realizar um jogo, de sua criação ao seu
desenvolvimento, é um grande e instigante problema!
Além da paralisação inicial, devemos aceitar as restrições
não como muros mas como escadas que nos permitirão ver
além dos muros. Eis a diferença entre os projetistas de jogos
sob uma prerrogativa qualitativa. Concordemos que há muitos,
muitos jogos por aí, e fazer “mais um”, já não nos bastaria.
Precisamos pensar em um motivo maior que o torne único sob
algum aspecto. Precisamos ir além das revisitações e das
revisões de jogos já publicados rumo à inovação e à
originalidade. E por mais estranho que isso pareça, faremos isso
somente se nos atermos a algumas restrições. Guarde bem essa
verdade: tudo que há é mestre ou vítima de restrições. E seu
cérebro adora restrições pois elas fazem seus neurônios
estabelecerem outras conexões para os seus pensamentos.
Quando falamos de inovação, é comum que em um
primeiro entendimento comum estejamos nos referindo ao que
é absolutamente novo, mas não é o nosso caso. Algo
totalmente novo na contemporaneidade é um disco-voador:
acredita-se que exista, mas ninguém consegue provar o que viu
realmente. O que quer que exista como artifício humano, é
decorrência de criações anteriores. Por isso iremos assumir
inovação como uma realização que traz novidade ou renovação,
ou seja, que guarda pouca semelhança com coisas anteriores,
sem que no entanto, seja algo completamente diferente de tudo
que tenha sido criado. Inovar é fazer de novo para que seja
melhor.
Quando falamos de originalidade, da mesma forma,
pensamos naquilo que existe unicamente, mas não é o nosso
caso. Algo original é que dá origem a outras coisas por ter em si
uma novidade. Mais uma vez, o que quer que exista como
artifício humano é decorrência de criações anteriores... logo, a
originalidade é um aspecto diferenciador entre o que é inovador
e o que já existe. Por isso iremos assumir originalidade como
uma realização que traz distinção ou singularidade, ou seja, o
que guarda pouca semelhança com coisas parecidas, sem que no
entanto, seja algo completamente diferente de tudo que tenha
sido criado. Original é um estado entre o estranho e o
convencional. E mais do que isso, uma invenção moderna:
antigamente a qualidade das ideias é tida pela semelhança com
57
pensamentos de notáveis. Como os românticos o termo ganhou
o aspecto que hoje prezamos.
Para que haja inovação e originalidade, é preciso primeiro
ver e fazer as coisas de modo especial. É um exercício, não um
dom. Quanto mais vemos as coisas e fazemos as coisas de
modo alternativo ao usual, mais nos aproximamos de um ideal
de inovação (porque melhoramos o que poucos perceberam) e
originalidade (porque realizamos distinção no que poucos
realizaram). O que difere a forma como vemos ou fazemos é o
entendimento de um contexto e de um texto que podem ser
revistos com alguns instrumentos simples dos quais restringir é
um deles. Tome como exemplo um filme hollywodiano e um
produtor norte-americano com milhões de dólares na mão:
provavelmente o retorno será próximo de uma expectativa
financeira do que foi resultante no filme com o dinheiro
empregado pois o produtor assumirá uma postura mais
comercial e convencional. Agora tome como exemplo um outro
filme e um outro produtor, ambos brasileiros e desacreditados,
com bem menos recursos capitais: provavelmente, por não ter
o que perder, o produtor assumirá posturas mais artística e
original para manter o interesse do público pela sua obra de
poucos recursos. Não precisamos comentar os insucessos do
primeiro e o respaldo do segundo... Muitos são os exemplos de
pessoas que fizeram mais com menos, e o que todas têm em
comum, foi o fato de terem visto o problema como um morro
a ser escalado e não contornado, atuando conforme as
restrições se impunham.
É possível restringir o sistema (em coisas como objetos,
aspectos, relações e ambiente) ou o usuário (em coisas como
regras, procedimentos, conflitos e recursos) de um jogo para
benefício da criatividade. Imagine um jogo da velha com apenas
um símbolo compartilhado entre os jogadores? Como seria?
Imagine agora um jogo da velha com uma matriz não de 3x3,
mas de 4x4 casas... É mais fácil ou difícil de jogar? Imagine um
jogo cujos protagonistas e antagonistas só podem se mover
como o cavalo do jogo de xadrez. Como devemos restringir os
espaços do tabuleiro para fazer a dinâmica ser mais
interessante? Imagine que outro jogo de xadrez só possa ter o
combate de peões... Agora imagine um último jogo de xadrez
de amazonas, só formados por rainhas, que devem proteger ou
matar o último rei... Além de imaginar, podemos testar essas
possibilidades e ver como se comportam diante de jogadores.
Sempre que se restringe uma forma de participação, se ganha
duplamente: o jogo se torna inovador (pois as pessoas tendem a
se repetir e assim gastar menos energia criativa) e original (pois
novas formas de jogar serão copiadas por outros jogos no
futuro em busca de distinção).
Lembre-se que em tudo há medida: a carência de
restrição no projeto pode nebulizar o jogo com muitas
constantes e variáveis, e o excesso de restrição no projeto pode
estrangular o jogo tornando-o monótono. O importante que se
58
deve guardar de um exercício de restrição é se impor limites e
transformar esses limites em monumentos. Se o personagem
MacGyver conseguia de um tudo usando somente fita crepe,
seu inseparável canivete suiço e as coisas do cotidiano ao redor
para sair de enrascadas, o que você não conseguiria com seus
jogos?
Décima Sexta Exposição:
Hora de se Jogar! Nas Cartas
Na décima sexta exposição os agentes se viam às voltas com o segundo
projeto de jogo enquanto prática, no caso, munidos de cartas de baralho, e
presos a restrições características de quantidade de objetos e limites de
informações.
O detalhamento dessa atividade conforme anunciada pode ser encontrado
na seção que lida especificamente com as práticas. Cabe destacar que o
maior repúdio se dá nos grupos que dispõe de poucas cartas (normalmente
restrições de cartas com figuras ou somente uma determinada quantidade da
mesma carta em especial, como quatro ases). Em tais situações, os agentes
buscam atribuir novos valores as cartas disponíveis, muitas vezes
subvertendo regras de jogos já existentes. O objetivo da exposição, portanto,
é promover versatilidade na composição de produtos baseados em relações
estatutárias de seus conteúdos, atentos para a modalidade das funções que
carregam.
Décima Sétima Exposição:
Desafios por Padrões de Demanda
Como máquinas humanas somos excelentes reconhecedores de
padrões, muito melhores que qualquer sensor ótico de caixa de
59
supermercado. Deve ser por isso que, quando crianças, éramos
incapazes de mentir com sucesso para os nossos pais. Havia
algo além da nossa verbalização, um detalhe no timbre da voz,
um tique nervoso, um menear de cabeça diferente... Não
adiantava, éramos pegos mentindo. Criávamos sem querer um
padrão que era reconhecido pela sua diferença de outros
padrões previamente estabelecidos.
Comunicar é um ato que envolve codificação e
decodificação de elementos recorrentes e nos comunicamos
além da oralidade pois já compreendíamos que a natureza é
regida por manifestações padronizadas antes mesmo de ensaiar
os nossos primeiros ugas bugas. Dia e noite, sol e chuva, vida e
morte, movimento e repouso, dentro e fora, cheio e vazio, alto
e baixo, antes e depois, causa e efeito... Se bem percebemos
veremos uma redução muito grande de possibilidades de coisas
acontecendo ao nosso redor. O que é uma coerência muito bem
quista, pois se a cada dia o mundo se apresentasse
completamente inusitado, ficaríamos loucos com a árdua tarefa
de perceber e pensar sobre tudo o tempo todo e novamente.
Percepção e cognição, disso trataremos, tendo os jogos como
destino de nossas indagações.
Percepção é o ato de tomar conhecimento de algo e o
fazemos por conta de sensores espalhados pelo nosso corpo em
pelo menos cinco (há outros sentidos, mas isso é uma discussão
que não cabe ao momento). São mais do que suficientes, pois o
famoso caso da filósofa Helen Keller nos mostra do que o ser
humano é capaz de coisas incríveis, pois ela era cega e surda
desde muito nova e nem por isso manteve-se isolada pela falta
de perceptividade. Ela aprendeu a perceber as coisas de modo
diferente, mas tão profundamente quanto qualquer um de nós.
A cognição é a consequência do envolvimento mental do
que é percebido em termos de memória, atenção, resolução de
problemas, linguagem e tomada de decisões. Como o
conhecimento é algo que interessa em muitas áreas, da
psicologia à computação, iremos considerar aqui o aspecto mais
amplo do termo, como uma construção de saberes que nos
permite um raciocínio abstrato e conceitual sobre as coisas que
nos rodeiam ou que estão dentro de nós.
Tanto a percepção quanto a cognição podem ser
adulteradas, o que faz do mágico uma profissão e dos jogos
algo interessante de ser participado. Percebemos e aprendemos
como os elementos dos jogos se relacionam e desse
envolvimento intelectual guardamos certo carinho. Satisfazemonos com os jogos porque interpretamos e decodificamos os
padrões que eles apresentam e assim, conseguimos não somente
tentar provar (para nós e para os outros) nossa maestria de
compreensão do sistema como também projetar esse
conhecimento para outros jogos. O que minhas pesquisas
apontam, para espanto geral, é que a quantidade de padrões que
os jogos dispõem em suas mecânicas desafiantes é muito mais
restrita do que poderia parecer em uma primeira análise. Como
60
o formalista soviético Vladimir Propp apresenta sua tese de que
todas as narrativas que existem podem ser divididas em 31
únicas funções, apresento a seguir os Padrões de Demanda,
para que auxiliem nas restrições para inovação de futuros jogos
e para que permitam a compreensão de jogos como modelos de
variações bem limitadas.
Padrões de Demanda são modelos interativos que
compelem e motivam o jogador ao jogo como atividade de
busca de harmonia. Como o sistema de qualquer jogo está
centrado na falta, cabe ao jogador, com base nas suas
competências e habilidades, resolver a lacuna lógica e cumprir
assim sua demanda. Cada jogo apresenta como substância um
conjunto de padrões de demanda que estão hierarquizados em
decorrência das relações de afeto estabelecidas com o jogador
no contrato de uso. Para que o jogo funcione, a busca pela
solução deve ser empreendida com base em metáforas de
interação, cujo principal valor é promover a apreciação sensível
da situação.
A lista de 41 padrões de demanda segue, compreendendo
aspectos básicos de conceituação. Como a pesquisa prossegue,
tentaremos no futuro construir um modelo que torne os
padrões integrados de modo complementar e suplementar. Por
hora:
Administração. Descrição: Realizar a manutenção de valores e recursos.
Fundamento: Mental.
Coleta. Descrição: Retirar itens do cenário. Fundamento: Motor.
Inventário. Descrição: Colecionar itens em espaço apropriado para uso
posterior. Fundamento: Mental.
Disparo. Descrição: Lançar ativamente objeto abstrato ou substantivo
contra algo ou alguém. Fundamento: Motor.
Esquiva. Descrição: Desviar ativamente de objeto abstrato ou substantivo.
Fundamento: Motor.
Deslocamento. Descrição: Mover-se no cenário em direções permitidas.
Fundamento: Motor.
Corrida. Descrição: Buscar a vitória por chegar a um local estabelecido em
ordinalidade estabelecida, normalmente em primeiro. Fundamento: Motor.
Salto. Descrição: Ultrapassar obstáculos deslocando-se na altura e no
comprimento. Fundamento: Motor.
Memorização. Descrição: Lembrar de valores e aspectos relacionados aos
componentes do jogo. Fundamento: Mental.
Verificação. Descrição: Relacionar valores e aspectos entre componentes
distintos do jogo, normalmente forma e cor. Fundamento: Mental.
Encaixe. Descrição: Justapor componentes do jogo segundo verificação de
similitudes ou diferenças entre as partes, normalmente forma e cor.
Fundamento: Mental ou Motor.
61
Ritmo. Descrição: Atuar segundo observação de recorrência uniforme de
um fenômeno. Fundamento: Mental ou Motor.
Sincronização. Descrição: Atuar em momento oportuno para cumprimento
de um intento.
Fundamento: Mental ou Motor.
Exploração. Descrição: Deslocar-se para fins de conhecimento do cenário
por investigação posicional
Fundamento: Motor.
Evolução. Descrição: Modificar-se em status positivamente no tempo,
visando alguma progressão intrínseca. Fundamento: Interno.
Inversão. Descrição: Realizar o inverso de uma ação corrente. Fundamento:
Interno.
Aceleração. Descrição: Modificar valores de deslocamento mediante
progressão aritmética ou geométrica. Fundamento: Motor.
Cálculo. Descrição: Processar mentalmente as consequencias de um
intento. Fundamento: Mental.
Cronometria. Descrição: Realizar a importância do tempo de um fenômeno
regressiva ou progressivamente. Fundamento: Mental ou Motor.
Dominação. Descrição: Manter-se em uma localidade contrapondo
adversidades. Fundamento: Motor.
Acumulação. Descrição: Efetuar somatório progressivo de valores para
posterior comparação. Fundamento: Interno.
Comunicação. Descrição: Cambiar mensagens entre participantes do jogo,
jogadores ou não. Fundamento: Mental.
Embate. Descrição: Pelejar com base em habilidades matriciadas entre dois
ou mais participantes do jogo, automáticos ou não. Fundamento: Motor.
Antecipação. Descrição: Prever um determinado fenômeno com base em
uma avaliação estratégica ou tática do cenário. Fundamento: Mental.
Reflexo. Descrição: Produzir ato escapatório imediato ao revés propiciado
pelas adversidades no jogo. Fundamento: Mental ou Motor.
Competição. Descrição: Comparar conquistas para premiação do vitorioso.
Fundamento: Mental ou Motor.
Aleatoriedade. Descrição: Agir em dependência de circunstâncias casuais
ou fortuitas, imprevisíveis. Fundamento: Interno.
Simulação. Descrição: Imitar com esmero buscando fidedignidade máxima
possível. Fundamento: Mental ou Motor.
Transporte. Descrição: Realocar um item para outra posição intencionada.
Fundamento: Motor.
Repetição. Descrição: Repetir uma ação com base em outras
oportunidades. Fundamento: Interno.
Perseguição. Descrição: Deslocar-se com o intento de realizar ação sobre o
outro. Fundamento: Motor.
62
Bonificação. Descrição: Premiar pelo desempenho, astúcia ou acate de
risco excessivo. Fundamento: Interno.
Defesa. Descrição: Neutralizar, impedir ou repelir a ação adversária.
Fundamento: Mental ou Motor.
Ataque. Descrição: Ofender o adversário com os próprios meios cabíveis a
ação. Fundamento: Mental ou Motor.
Confinamento. Descrição: Encerrar um componente de jogo em espaço
constrito. Fundamento: Mental ou Motor.
Depósito. Descrição: Adicionar itens no cenário
Fundamento: Motor.
Furtividade. Descrição: Deslocar-se sem ser percebido pelas adversidades
ou obstáculos. Fundamento: Motor.
Precisão. Descrição: Agir em conduta meticulosa sem a qual o intento não
pode ser realizado com destreza.
Fundamento: Mental ou Motor.
Rebatimento. Descrição: Realizar redirecionamento por impedir a trajetória
corrente de algum componente do jogo. Fundamento: Motor.
Negociação. Descrição: Realizar correlação de interesses particulares com
externos. Fundamento: Mental.
Agilidade. Descrição: Realizar determinada ação com mérito de destreza.
Fundamento: Motor.
Enquanto as pesquisas seguem, os 41 padrões acima
podem ser percebidos em maior ou menor número em todos os
jogos existentes e o que consideramos com sendo sua inovação
e originalidade nada mais é do que a posição relativa entre eles
em uma linha abstrata de conjuntos de aspectos: alguns jogos
usam padrões de demanda próximos entre si, ou seja, são
considerados convencionais (jogos com padrão de demanda
salto tendem a ocorrer em conjunto com padrões de demanda
agilidade, coleta e antecipação). Outros jogos usam padrões de
demanda distantes entre si, ou seja, são considerados inusitados
(jogos com padrão de demanda comunicação não tendem a
ocorrer em conjunto com padrões de demanda rebatimento,
embate ou aleatoridade). Se fóssemos considerar um projeto de
jogo desse último exemplo, poderia ser um jogo de repentistas
que poderiam pelejar com versos sobre palavras aleatórias... ou
com golpes de violões e pandeiros uns nas cabeças dos outros!
O importante aqui é considerar que a profundidade reside na
concatenação de díspares.
63
Décima Oitava Exposição:
Interatividade e Virtualidade
Existem três palavras excessivamente recorrentes na atualidade,
aquelas que aparecem tanto no bate papo informal de um casal
de namorados quanto no discurso formal de um apresentador
de telejornal: interatividade e virtualidade são as duas primeiras.
Sustentabilidade é a terceira. Acredita-se que de tanto usadas, as
palavras perdem a força de seu sentido original e isso é bem
verdade no caso da primeira e da segunda: quantas vezes você
ouviu que isso é mais “interativo” ou que aquilo é “virtual”?
Pior talvez seja a terceira palavra, pois do contrário do que se
pensa, poucas coisas são mais insustentáveis do que o uso
banalizado da palavra sustentabilidade. No futuro, diz Randall
Munroe da webcomic XKCD em seu número 1007, a palavra
sustentabilidade estará presente em todas as frases ditas por
volta de 2061, até ser a única palavra dita por volta de 2109. O
que isso tem a ver com nossos estudos sobre jogos? Nada
diretamente. Mas indiretamente... É uma metáfora.
Interatividade
O vocábulo já nos ajuda bastante: interatividade é tão somente
uma atividade intermediada, intermediária ou interna. Daí sua
manifestação em tudo que se relaciona ao controle de alguém
sobre alguma coisa, nas duas direções possíveis. Tal qual
macaquinhos evoluídos, gostamos de tocar as coisas e
experimentar seus usos, comportamento que no passado, nos
permitiu descobrir coisas incríveis como as armas de pedra
lascada, o fogo e a roda (se bem que inventamos o cachorro
antes da roda, mas isso é outra história). Somos, portanto,
“tecnofílicos” e prezamos por tudo que se possa ser cutucado e
como consequência da cutucação, modificado de alguma
maneira.
64
Desse modo, quando falamos de interatividade em jogos,
abrangemos sua essência, pois como vimos na composição
basilar, jogos tem de ser interativos para serem considerados
como tais. E para que o sejam, jogos contam com as noções de
encontro e interface. Encontro é a ocorrência coincidente de
duas ou mais coisas, aquilo que se marca pelo contato da
reunião. Interface, por sua vez, é o que fica no meio entre o
contato estabelecido, como superfície de adaptação entre
sistema e usuário. Seja como for o encontro e seja qual a
interface, cabe ao autor do jogo atender à diferentes níveis
cabíveis de atitude interativa. Faz-se isso pela atenção aos
recursos disponíveis para que a interação ocorra e sobretudo,
nas metáforas empregadas para que haja entendimento do que
acontecendo durante o processo.
Conceituando interatividade:
•
•
•
Por encontros e interfaces.
Por observação dos recursos de interação.
Por metáforas audiovisuais para a interatividade.
Níveis de interatividade e atitude interativa:
Reativa > Manipulativa > Configurativa
Embora guardem diferentes níveis de interatividade,
aprendemos a ver os jogos como sinônimo de interação, acima
de filmes, desenhos animados, histórias em quadrinhos e livros.
Um ledo engano, pois como afirma o game designer Jesse
Schell, a interação não acontece somente entre coisas, mas
acontece primeiro na mente. Como somos capazes de imaginar,
estamos constantemente diante de uma atitude interativa, que
pode variar em grau, mas que estará sempre presente. Daí
algumas coisas parecerem mais interativas do que outras. Em
verdade, é possível que nosso encontro determine reação,
manipulação e configuração. No primeiro momento, você
somente reage à obra, no segundo momento você pode alterar
como você a recebe e no terceiro momento, você a pode
modificar a ocorrência... Filmes tendem a serem mais reativos e
jogos tendem a serem mais configurativos. Por isso são
considerados tão expressivos pois neles se permite um
agenciamento que nos filmes é impedido.
65
Figura 26 - Quem me dera ser um peixe...
Em função da interatividade, duas ressalvas entram no
palco. A primeira é que a interatividade, como adjetivo de uma
ação que envolve reciprocidade entre sistemas e usuários, deve
ter em objetivo prover o usuário do isolamento do meio para
que a interação seja mais forte. É fácil perceber isso no cinema
quando as luzes se apagam para que possamos nos distrair do
mundo ao redor para que o filme seja projetado em nossa
atenção imediata. Daí advém todas as sensações provocadas no
cinema como o riso da comédia, o choro do drama e o susto do
terror, pois durante a projeção, esquecemos completamente que
estamos sentados pacificamente em um ambiente controlado,
refrigerado e iluminado para que as várias dezenas de pessoas
ali presentes se permitam esse desligamento coletivo. Nos
jogos, ainda que não possamos contar com os mesmos
benefícios do controle do ambiente, sua refrigeração e
iluminação, temos a liberdade de provocar ações naquilo que
observamos não mais passivamente, e esse foco nos coloca no
mesmo ou semelhante isolamento atencioso. Chamamos isso de
imersão, tal qual a dos peixes e animais subaquáticos. Assim
como o peixe só se percebe mergulhado em litros de água
quando retirado para a atmosfera, nós só nos dedicamos a
respirar com empenho quando mergulhados em água. Até
então, é uma atividade tão transparente que o próprio fato de
pensar sobre ela se torna terrível. Por exemplo, agora sabendo
que você deve respirar, sua respiração estará descontrolada. Isso
é imersão, aquilo que quando pensado ou raciocinado, deixa de
ser. Imersão é um estado a ser sentido sem sentir.
66
Figura 27 - Flow segundo Mihaly Csikszentmihalyi
A segunda ressalva é de que a interação é um aprendizado
intuitivo que envolve duas coordenadas, a do conhecimento
(habilidade) de se realizar uma determinada ação e a do grau de
dificuldade (desafio) de se realizar a mesma ação. Muitos
cientistas se dedicaram ao impacto que determinadas ações
promovem na atenção do usuário, mas foi o psicólogo Mihaly
Csikszentmihalyi quem definiu um parâmetro de compreensão
entre o que se espera que seja feito, e o quanto o conhecimento
sobre a feitura determina a qualidade da realização. Em diversas
situações, nos pegamos tão envolvidos com uma atividade que
entramos em um estado de completa imersão e concentração
absoluta, quase uma experiência mística de complementaridade
entre sistema e usuário. Ess estado é chamado de Fluxo (ou
Flow, do original em inglês), e sobre ele há diversos comentários
quando aplicado em projetos de jogo. Em teoria, o fenômeno
conseguiria produzir jogos ininterruptos, mas como é sutil, o
fluxo é pontual e decorrente e não algo que acontece de modo
arbitrário. Para que haja Fluxo, é necessário que o jogador tente
ultrapassar os desafios com suas habilidades, que geram novos
desafios que demandam novas habilidades... em um ciclo
relacional. O Fluxo se dá em uma zona que representa a
dinâmica do jogador diante das tentativas do sistema em
estabelecer um equilíbrio dinâmico entre desafios e habilidades.
67
Figura 28 - Resultados possíveis da interação
Para obter essa motivação focada, os jogadores precisam
cancelar e canalizar suas emoções para a energização de sua
concentração, o que por si provoca uma profunda satisfação. Se
os desafios apresentados estão aquém da capacidade do
jogador, ele se frustra. Se as habilidades do jogador estão além
dos desafios, ele se entedia... Cabe ao sistema, em última
análise, promover um dinamismo dos desafios pois o
consequente ajuste das habilidades dará conta de manter o
jogador empolgado. Até então, jogos tinham níveis de
dificuldade (fácil, médio e difícil, como tradição). Projetar os
três para atender um grupo é custoso, afinal, poucos são os
jogadores que jogam o jogo novamente nos outros níveis... E
pior, como definir o que é fácil e o que é difícil, dada a grande
variedade de jogadores? Buscando estratégias de integração do
sistema com o usuário nas escalas de profundidade e
superficilidade das curvas, é possível atender ao maior número
de jogadores da melhor maneira possível. Toda interação tem
como interessado maior o jogador. Cabe ao autor do jogo
definir os instrumentos que serão usados para que a interação
seja progressivamente interessante.
Para isso, é necessário assumir que tais instrumentos
respeitam o que representam e amplificam as ações que
produzem. Antigamente, um botão ou alavanca permitia a
interação pela similaridade de seu uso com a função esperada.
No final do século XX, um fenômeno curioso colocou os
instrumentos além de sua manifestação física, para serem
usados como metáforas de instrumentos. Esse fenômeno é
conhecido como virtualização. E assim, nossos botões e
alavancas agora são imagens digitais e por incrível que pareça,
por serem somente representações, são mais poderosos que os
botões e alavancas tradicionais.
68
Virtualidade
Primeiro fato que defendemos nesse texto é de que “virtual” e
“real”, não são coisas antagônicas. Afinal, se algo pode ser
mensurado, é bem provável que exista. Mas como nos estamos
a mais tempo acostumados com coisas presentes ao nosso
redor do que imaginadas ou representadas, tomamos uma coisa
como o contrário da outra. Como a modernidade, o ato de
deslocar a existência de algo por outro tipo de manifestação fez
as artes escultóricas e pictóricas florescerem e a força desta
“virtualização” explica porque andamos com fotografias de
parentes na carteira e presamos muito pela sua manutenção.
Mas se virtual não é o oposto do real, o que é? Para o
texto, iremos considerar virtual tudo que é representado por
algo que não o próprio (afinal, uma coisa representa a si mesma
com certa obviedade) além do plano físico. O que nos ocorre é
que nos jogos, as coisas que lá estão cumprem o papel de
evocação, ou seja, na impossibilidade de tê-las atualmente, as
temos virtualmente. Realidade virtual, por exemplo, é o termo
que considera uma manifestação que não é a atualidade dos
referentes, mas a manifestação controlada e reduzida de
contextos reais, algo como uma sub-realidade. Vivemos
rodeados de sub-realidades sem nos dar conta, pois sendo filhos
da contemporaneidade, nos acostumamos a tomar as coisas não
por si mas pelo que as representam. Dinheiro, fotografias em
revista, carrinhos em miniatura, bonecas... e mais atualmente,
com o uso de computadores e redes telemáticas como a
Internet, nos acostumamos a usar uma profusão de espaços
virtuais de trocas simbólicas. Para que possamos reconhecer o
virtual como potência e não só como cópia menor, convém
considerar alguns pontos.
Primeiro, que o virtual pode se apresentar para nós como
uma tentativa de imitação ou como uma equivalência
característica ou caricatural do que é referenciado.
Segundo, que é esperado que o autor providencie com os
recursos de interação, sensações fidedignas para que o interator,
aquele que interage, possa se satisfazer com sua projeção no ato
de jogar.
Terceiro, que há um ponto ótimo entre a perfeita
similitude e a estilização providencial. Afinal, o jogo não deve
tender ao realismo excessivo, mas sim ao ilusório e fantasioso.
Uma estátua de soldados em uma praça não deve dar tiros nos
transeuntes para que seja percebida a expressividade da sua
escultura. Cabe ao sistema usar de metáforas adequadas para
providenciar, pela virtualização, imersão e fluxo.
Conceituando virtualidade:
•
•
•
Por simulação e emulação
Por observação dos recursos de projeção
Por custo da similitude excessiva: imersão e fluxo
69
Princípio de Virtualidade, segundo Proust:
“Memória, real mas presente,
Ideal mas não abstrata.”
Figura 29 - Saudades da escola?
Como seres humanos, temos uma excepcional capacidade
de construir uma realidade virtual portátil que nos acompanha e
permite que nossas impressões do mundo sejam decodificadas
pelo filtro da cultura e possam assim produzir imaginação
(quando orientadas ao futuro) e memória (quando orientadas ao
passado). Esse fenômeno permite que guardemos a experiência
como valor, um cume a ser alcançado na íngreme montanha da
participação interativa. As sensações evocadas em processos
virtuais são tão poderosas quanto se acontecessem atualmente:
por exemplo, imagine uma magra e fina mão, com os cinco
dedos em forma de garra e em cada dedo uma cumprida unha
pintada de vermelho. Agora imagine essa mão
ARRANHANDO RUIDOSAMENTE O QUADRO NEGRO
DA IMAGEM... Sentiu um calafrio? Não? Lembre-se então do
som de gelo sendo moído ou papel alumínio sendo mastigado
por um dente molar, ou aquele barulhinho de páginas de um
livro, sendo virandas... E agora? Tssss... nos jogos, para
recuperar essa e muitas outras sensações, usamos de simulação
e emulação. Somos sensíveis ao ponto de recuperar sensações,
mesmo desagradáveis, pela sua ocorrência imitada ou
equivalente. Está tudo na mente. Por isso, mais uma vez
enfatizo, o jogo não acontece diante de nossos olhos, mas sim,
dentro da nossa mente.
Quando falamos de simulação e emulação, falamos de
dois aspectos da virtualidade que dizem respeito à profundidade
70
da relação estabelecida entre jogador e jogo pelo uso estratégico
dos custos da similitude.
Em alguns jogos, é do interesse do jogador que a ação
imitada do referenciado seja executada exatamente como seria
no plano da primeira realidade. Simuladores de voo e jogos de
corrida prezam pela intenção de colocar os jogadores na
administração técnica de inúmeros controles e obter daí, o
entretenimento requisitado. Nesses casos, a simulação é o miolo
virtual do sistema, que deve providenciar ao jogador um plano
de fidedignidade no qual o jogador irá construir realizações.
De outra forma, há jogos que restringem de um modelo,
apenas os aspectos prioritários compreendidos pelo interesse
do jogador em recuperar ou gerar alguma sensação. Jogos de
luta e outros jogos de corrida prezam pela intenção de colocar
os jogadores no papel simplificado de lutadores que não
praticam artes marciais de verdade e pilotos que nem precisam
aprender a soltar a embreagem ao afundar o pé no acelerador.
Nesses casos a emulação é o miolo virtual do sistema, que deve
providenciar ao jogador um plano de estilização do qual o
jogador irá extrair emoções.
Figura 30 - E ainda temos de pagar o IPVA...
Quem dirige lembra como foi custoso o aprendizado nos
primeiros momentos de direção. A coordenação de pés e
braços e olhos e ouvidos atentos pode ser estressante para
muitos, mas com o tempo, entram em automatismo. Quando
isso acontece, automóvel e motorista passam a ser uma unidade
e disso ocorrem certas bizarrices conotativas como: “aquele
flanelinha arranhou minha pintura” ou “estou sem gasolina”. A
interação entre coisa movida e controlada e aquele que a
controla promove laços tão profundos que entendemos porque
nos jogos agimos e reagimos da mesma forma: “você me
atingiu com uma bola de fogo” ou “estou sem energia”. Graças
71
à virtualidade, assumimos as sub-realidades como realidades em
si e nos posicionamos nelas ativamente e suprimindo nossa
essência, podemos ser o que quisermos, e fazer o que
quisermos, conforme as regras e os procedimentos.
Figura 31 - Rad Racer, para o NES.
Quem não dirige, assim como eu, não compreende de
que modo alguém pode se sentir livre ao acelerar um veículo de
uma tonelada até 120 Km/h sob o risco de chocar-se contra
uma árvore ou pior, outro veículo. Ainda o contrário: ficar
preso em engarrafamentos quilométricos que exigem a
paciência de um monge budista. Talvez, como eu, prefira a
verdadeira liberdade de sentir a velocidade sob o controle da
destreza sem o risco da colisão ou capotagem (aliás quando
existem, são plasticamente espetaculares). Ao lidar com a
estilização do uso, os jogos eletrônicos se mostram
extremamente cativantes, pois os mesmos apresentam na
maioria dos casos, uma dosagem equilibrada de simulação e
emulação. Tomando como exemplo a corrida, muito mais
importante que o comprometimento com os aspectos de um
carro de verdade, está o interesse do jogador em sentir o que
um piloto sente e não necessariamente fazer o que um piloto
faz. É uma diferença sutil, mas importante no momento do
projetar. Sendo metáfora uma ideia que implica em outra
cumprindo semelhança sem conectivo, a escolha e o uso dos
elementos segundo uma hierarquia de similitudes incrementa
nossa forma de pensar sobre conceitos. Nos jogos, conceitos
são unidades semânticas que convidam a uma postura
participativa. E além de providenciar estilo e estética, metáforas
repercutem na forma como as pessoas pensam e agem perante
umas as outras.
72
Décima Nona Exposição:
Tempo e Espaço
Duas certezas em relação aos jogos, sejam quais forem: eles vão
lidar obrigatoriamente com o tempo e vão lidar
obrigatoriamente com o espaço. Afinal, todo jogo é uma
atividade que ocorre no tempo e no espaço e portanto, irá tratar
de acontecimentos, suas causas e suas consequências para
algum lugar. Não pretendemos aqui esmiuçar conceitos físicos
sobre a natureza do tempo ou a natureza do espaço, mas
convém ilustrar nossas preocupações com nossos jogos em
uma perspectiva histórica pois há muito a ser pensado e feito
sobre o assunto. Se nos jogos eu posso me deslocar no espaço
de um lado para o outro e para dentro e para fora, por que não
posso fazer o mesmo com o tempo, sempre fluindo na direção
dos acontecimentos?
Tempo e espaço já eram conhecidos e discutidos pelos
filósofos e pela gentalha há muito tempo. A regularidade das
distâncias e dos ciclos na natureza não são, em si, um mistério,
de modo que pensar origem e destino, bem como antes e
depois, é algo que se aprende bem cedo na vida. Aprendemos
que ocorrências se manifestam por ocorrências anteriores e que
as consequências vêem depois, daí a necessidade de ensaio para
um perfeito controle. O mesmo nós podemos dizer de matéria
e energia, aquilo que sofre as transformações das ações e a
capacidade de realização das mesmas. Não só os filósofos, mas
também os cientistas se debruçaram sobre problemas oriundos
da relação entre o que existe e é experimentado e o que pode
ser medido como resultado da submissão dessa matéria
manipulada. Jogos também requerem a definição lógica do
“quando” e do “onde” pois para funcionarem como sistemas,
objetos, seus aspectos e suas relações devem ocorrer em um
ambiente. E para ocorrerem, devem ser monitorados em suas
73
mudanças consecutivas. Sem tempo e espaço, não há onde
localizar uma ação e nem saber como ela começa e quando ela
vai deveria terminar.
Tempo, espaço, matéria e energia eram tidos como
sustentáculos da realidade conveniada por todos os seres
humanos, e somente em 1905, um jovem cientista conseguiu
compreender e explicar que os pilares eram na verdade duas
grandes colunas. Einstein conseguiu elegantemente provar que
tempo e espaço são correlatos bem como matéria e energia
(E=mc^2), para espanto da população. Como? Por que
demorou tanto tempo para que as pessoas percebessem o que
para nós agora parece tão óbvio? Simples: Einstein não foi o
único a supor uma teoria, mas foi o primeiro a propor uma
construção visual para ela subtraindo do sistema uma crença,
então comum, do éter luminífero. Dez anos mais tarde,
munidos de estudos de outros gênios como ele só, conseguiu
reunir as duas colunas em um grande pilar na teoria geral da
relatividade.
Façamos como Einstein e pensemos tempo e espaço nos
jogos não como coisas absolutas, mas sim, como relatividades.
E como relatividades, devemos tirar delas motivos
fundamentais que serão compreendidos como regras e
procedimentos, bem como diretamente responsáveis por
conflitos e recursos.
Relações Temporais:
•
•
Lineares
Paralelas
Quando falamos de relações temporais, nos referimos aos
acontecimentos do jogo sob a possibilidade de ocorrerem
encadeados ou simultâneos. É comum que em um primeiro
momento pensemos em jogos como um cordão de contas
ordanado no qual o jogador deve seguir adiante sem poder
retroceder na linearidade... Toda a matriz de escolhas
providenciada pelo game designer refuta que algumas ações
ocorram depois de outras, pois isso fere a lógica de causa e
efeito comum não só aos jogos como também as narrativas
especialmente as fílmicas. O Príncipe só pode beijar a Branca de
Neve depois que ela morde a maçã, não somente porque é esse
o ápice da história infantil sobre necrofilia, mas porque o
Príncipe não é causa, mas efeito do ato da maçã ter sido
mordida pela Branca de Neve. Sim, meus caros, personagens
não somente cumprem ações de, mas podem ser eles mesmos
causa e efeito de outros personagens. No nosso entendimento
lúdico, objetos e seus aspectos podem ser causa e efeito de
outros, não somente suas relações serão causa e efeito de outras
relações. A programação do jogo deverá contar com elencos de
situações e seus gatilhos para que haja, por parte do jogador,
74
um bom entendimento de previsibilidade, mas sem que com
isso ele fique preso a um tolo exercício de memória.
Logo que percebemos que o tempo pode ser visto no
jogo como uma faixa larga de encadeamentos, podemos fatiar a
faixa em fitas mais delgadas em busca de simultaneidade,
especialmente importante para que o jogo se apresente ao
jogador como um espaço persistente. Ainda que o jogador seja
o ralo para o qual todos os artifícios entornam, ele só poderá se
perceber importante em um espaço no qual o tempo é
determinante para o seu progresso. Em jogos de múltiplos
jogadores realizados por turno, cabe ao jogador conceber e
executar ações em sua jogada que irão sacudir as estratégias de
seus oponentes nas jogadas próximas. Ao mesmo tempo,
alianças podem ser consolidadas e os desafetos vingados. Cabe
a cada escolha a emissão da seguinte pergunta: o que é feito em
outro evento durante a ocorrência dese evento? Se o evento A
depende do evento B, dizemos que há uma relação de
linearidade. Se o evento A independe do evento B e concorre
com ele, dizemos que há uma relação de paralelismo. Jogos
normalmente irão apresentar ambas as relações, no entanto,
alguns jogos apresentam essas relações de modo bem curioso.
Figura 32 - Braid, de Jonathan Blow
Braid, de Jonathan Blow, brinca com a sensação de causa
e efeito apresentando um personagem que explora mundos nos
quais o tempo, ou seja, a sequência de situações, ocorre de
modo inusitado. Como um jogo eletrônico de plataformas a
serem ultrapassadas aos saltos, ao exemplo de Mario, Sonic ou
Great Giana Sisters, uma primeira vista não oferece novidade.
Além da estética inspiradora, é somente um jogo de vencer
obstáculos quicando sobre monstros e escapando de espinhos...
Até que se percebe que uma ação indesejada pode ser
retrocedida a um ponto anterior a falha, e todo o modo de jogo
ganha uma resplandecência única. Revisitar o passado para
corrigir os erros não é novidade, muitos dirão. Afinal, Mario,
Sonic ou Great Giana Sisters dão ao jogador o direito a novas
tentativas por meio de vidas em um estoque. Mas em Braid, o
75
conceito de punição pelo erro é somente um dos aspectos
refletidos pela capacidade de se voltar no tempo. Outros
aspectos envolvem fases inteiras nas quais o tempo está ao
contrário, ou seja, a pista para sua solução é conceber do efeito
a causa e estar no ponto certo para que a simetria seja
verificada. Em outro cenário, por exemplo, ao se andar para
frente, o tempo segue adiante e quando se volta, o tempo
retorna... revivendo inimigos mortos previamente, inclusive. A
verdade é que o desafio surge da nossa incapacidade de lidar
com o tempo do jogo como lidamos com o nosso tempo. Em
resumo, ao se projetar o jogo, consideremos tudo que ocorre
pela sua relação guardada com todos os outros eventos
determinantes. Linear ou paralelo o tempo é uma progressão
que pode ser pensada também regressivamente.
Relações Espaciais:
•
•
Bidimensionais
Tridimensionais
Quando falamos de relações espaciais, nos referimos às
geometrias do jogo na possibilidade de ocorrerem em um plano
cuja normal aponta para a tela ou em altura, largura e
profundidade. Nos jogos analógicos, a relação entre planos e
sólidos se desenvolveu pela materialidade, pois como os
tabuleiros eram projeções de um solo de espaços restritos, as
peças podiam erguer-se na tridimensionalidade para facilitar sua
manipulação. São poucos os jogos que dependem
exclusivamente do volume para serem jogados e mesmo
quando isso ocorre, é como uma extensão de regras que
poderiam ser manifestadas no plano como uma ilusão
perspectiva.
Antigamente, devido a limitações técnicas, promover um
espaço de participação eletrônica além da projeção
bidimensional da tela envolvia um alto custo de computação
matemática para os primeiros jogos eletrônicos. Com a
evolução tecnológica dos processadores e o surgimento de
equipamento dedicado, os jogos eletrônicos contaram com uma
quebra dimensional que os permitiu explorarem volumetria. De
qualquer modo, como as telas dos televisores e dos
computadores são invariavelmente planas, mesmo os jogos
tridimensionais ocorrem bidimensionais, o que demanda uma
série de cálculos para lidar com projeções das geometrias e
assim, iludir o jogador que se imagina estar cada vez mais
“dentro” de ilusão topográfica. Quando Brunelleschi
desenvolveu as normas da perspectiva linear descoberta pelos
gregos e romanos, mas esquecida na Idade Média, os artista do
século XIV conseguiram iludir o expectador reproduzindo
coisas tridimensionais no plano bidimensional com muita
exatidão. Nada muito diferente do que fazemos hoje mais
76
rapidamente com placas de vídeo e computação gráfica. O
espaço no jogo, portanto, é somente uma ilusão que determina
como os elementos constituintes irão considerar uns aos outros.
Nas relações espaciais bidimensionais, os objetos do jogo se
interpõem considerando altura e largura em coordenadas
cartesianas. Acima, abaixo, na frente ou atrás são facilmente
observáveis quando o plano se desloca no sentido horizontal.
Acima, abaixo, ao lado direito e ao lado esquerdo são
facilmente observáveis quando o plano se desloca no sentido
vertical. Mas e quando o plano se desloca no sentido diagonal?
Figura 33 - Zaxxon, da Sega Enterprises
Zaxxon foi um jogo de participação inovadora, lançado
pela Sega em 1982, por contar como uma perspectiva paralela
obliqua, ou seja, com o observador situado no infinito sem que
as retas paralelas sejam obrigadas a se unir em um ponto de
fuga. O problema com essa visualização é que como não há
diferença entre as relações de medidas dos eixos de altura,
largura e profundidade (daí ser uma isometria) é comum ao
jogador se confundir com sua posição no espaço, tendo no fato
o desafio do jogo: como não é possível acelerar ou desacelerar a
nave, o jogador deve estar atento para destruir ou desviar das
armadilhas tridimensionais. No jogo da empresa japonesa,
sombras e altímetro foram necessários para o jogador
posicionar sua nave em relação aos demais obstáculos que se
manifestam também em diferentes pontos do espaço
representado. Como primeiro jogo de tiro em isometria
axonométrica (vide o seu nome), Zaxxon pavimentou a estrada
para outros jogos em relação ao seu deslocamento e
representação no espaço “pseudotridimensional”, pois a
perspectiva isométrica é considerada uma forma barata (em
termos de custo computacional) para promover a sensação de
volume em representações. Tomemos o efeito como uma
passagem suave para a complexidade da reação a
tridimensionalidade sem sairmos da simplicidade de se produzir
na bidimensionalidade. Embora o uso maciço de computação
gráfica tenha colocado a prática da representação isométrica
como estilo e não como necessidade, muitos jogos se
77
beneficiam do imediatismo aos objetos tridimensionais ao quais
se referem.
Nas relações espaciais tridimensionais, os objetos do jogo
se interpõem considerando altura, largura e profundidade, em
coordenadas também cartesianas, mas matriciais ou resolvidas
por quaternions. Acima, abaixo, na frente, atrás, ao lado direito
e ao lado esquerdo, bem como dentro e fora, podem ser
facilmente percebidas pela rotação de uma câmera virtual,
providenciando ao jogo um novo eixo para manifestar conflitos
e recursos e assim, definir regras e procedimentos. Muitos
acreditavam que a tridimensionalidade daria fim aos jogos
bidimensionais, mas uma ilusão não extingue outra. Como a
fotografia não extinguiu a ilustração, ou o cinema não extinguiu
o teatro. Cada ilusão é poderosa por si segundo expectativas de
uso, e antes de uma obrigatoriedade, usaremos as relações
espaciais como estratégicas.
Concluindo nossa ponderação sobre relações espaciais
bidimensionais ou tridimensionais, pense que independente do
número de dimensões que irão apresentar nossos jogos, objetos
irão se colocar interrompidos uns sobre os outros ou alinhados
uns com os outros. E dessa situação de conflito de localização
coisas interessantes deverão acontecer.
Vigésima Exposição:
Composição Diagramada
Agora que as ideias de mecânicas de jogos estão pipocando em
sua mente, cabe falar sobre como elas farão parte do sistema ou
deverão se relacionar com outras mecânicas previamente
concebidas. Mas ideias só o são quando ainda na mente. Tão
logo sejam verbalizadas e assim descritas, estarão perdidas no
mundo das concretizações. Pobres ideias... Tão belas e
78
infalíveis, agora de desintegram diante da primeira bateria de
dúvidas e incertezas. Mas não fique triste: mesmo na mente, as
ideias tem um prazo de validade muito curto pois estão em
constante conflito com outras ideias, disputando com elas
nossas melhores sinapses e a honra de sair de nossa cabeça para
vagar pelo mundo. O conjunto de ideias que sobrevivem ao
árduo combate por nossa atenção chama-se “criatividade”.
Tudo do que precisamos das ideias é do seu poder se aglomerar
em criatividade, pois sem criatividade, faz-se o mesmo de
sempre ou pior. Para permitir que as ideias vencedoras
persistam e virem ideias criativas, elas não podem ficar
morando no seu miolo eternamente. Trate com urgência de
garantir sua transferência para a concretização transformandoas em símbolos. De então veremos como em um processo de
composição, os símbolos serão a manifestação de poder das
ideias.
Símbolos são as formas de comunicação de sentido mais
adequadas para que as ideias sejam mantidas e transmitidas. Por
isso não nascemos com eles, pois nascemos sem muitas ideias.
As ideias, especialmente as abstratas, são acúmulos de
impressões e manipulação de repertórios que conquistamos ao
longo da vida, em momentos especiais como diante de um belo
por do sol ou corriqueiros como cortando a unha do dedão do
pé. O mais importante sobre as ideias é que elas emergem
quando menos se espera, dai sua captura ser um exercício
constante a ser desenvolvido. Símbolos são aprendidos, e sua
universalização depende da facilidade com que transmitem as
ideias subjacentes e a qualidade das consequências que seu
aprendizado promete. Nos símbolos acima, destacados de um
aeroporto qualquer, é fácil perceber a estilização de personagens
humanos. Mas lembre-se que isso não é natural pois nossas
cabeças são grudadas no corpo por pescoços que nas imagens
inexistem. Como a ideia não é referir a pescoços, mas destacar
ações que esses personagens podem fazer e principalmente, que
eles se diferem entre os que usam calças e as que usam saias, os
pescoços não são necessários. Todo símbolo, portanto, é menor
que o referido porque não é ele exatamente. E toda ideia é
maior que o símbolo porque nele é limitada sua representação.
Como forma de operar os símbolos da maneira mais
objetiva possível, iremos considerá-los em diagramas. Um
diagrama é um esquema, com a diferença que diagramas
envolvem linhas e pontos enquanto esquemas tendem a ser
mais sintéticos. No fundo, ambos são representações gráficas
de relações, no presente caso, simbólicas. Por isso
aprenderemos a realizar dos nossos jogos uma composição
diagramada.
79
Figura 34 - Mapas Conceituais
A primeira forma de satisfazer um elenco conceitual de
termos simbólicos para nosso jogo é com o uso de mapas
conceituais (ou mapas mentais, conforme traduzem alguns
autores). Acredite, é uma ferramenta muito, muito poderosa,
que pode ser usada tanto para provocar ignição como também
para apagar verdadeiros incêndios mentais. O uso de mapas
conceituais é direcionado para os momentos iniciais de criação
e desenvolvimento porque estabelece de forma flexível,
parâmetros a serem cobertos e editados, facilitando a discussão
da equipe em terreno comum e mostrando relações entre ideias
que de outra forma seriam transparentes ou muito bem
camufladas. Há inúmeras técnicas para a construção de
diagramas como mapas conceituais, mas todas têm em comum,
fundamentos de distribuição: no centro de uma folha estabeleça
o conceito principal e dele expanda pelo menos três ramos
principais dos quais frutificarão conceitos relevantes. Por serem
hierarquizantes, os mapas conceituais podem depender de
anotações, ilustrações, grafismos e outras formas de conectar
conceitos uns aos outros. Seja qual for o grau de liberdade, é
importante que o mapa conceitual estabeleça, como mapa que
é, trajetos a serem percorridos e oásis nos quais é importante se
interromper. A principal recomendação é sentir-se solto para
ousar nas palavras e obter de cada ramo principal, pelo menos
uma trinca de novos conceitos a serem operados como
semântica ou livre associação.
80
Figura 35 - Diagramas de Classes
A segunda forma de diagramar nossos símbolos é por
meio de diagramas de classe. É uma forma de modelar
informação de modo a promover comunicação, compreensão
de sequência e monitoramento de estados. Usam-se diagramas
de classe especialmente na programação, pois o caráter
estrutural envolve os objetos em seus aspectos, ou seja, classe é
uma abstração para um conjunto de objetos dos quais se
determina atributos e métodos (ações e comportamentos). Pelo
diagrama de classes, podemos mapear com precisão narrativa
uma determinada peça do nosso jogo, sua dinâmica e as
implicações de seu uso. Imagine o diagrama de classe como
uma tubulação que irriga os diferentes objetos do jogo com
condições de escolha e suas decorrências. Como os objetos
estão interconectados, é providencial que a hierarquização
decorrente de sua diagramação seja negociada com vistas para
atalhos e expansões de detalhe. Cada item do diagrama de classe
pode dar origem a outros diagramas de classe que são
minimizados para facilitar sua compreensão e visualização.
81
Figura 36 - Anotações amparadas por esquemas sintéticos
A terceira forma de diagramar símbolos é pelo amparo de
esquemas sintéticos. Não se espera que haja inspiração de um
Donatelo ou um Caravaggio para ilustrar os símbolos pois o
importante é o entendimento dos conceitos e não sua fruição
estética. Como os jogos são organizados como planos de
situações a serem participados, os esquemas sintéticos facilitam
ao autor identificar causas e efeitos, bem como especialidades
da mecânica sem com isso perder muito tempo em descrições
profundas. A ordem como os esquemas são distribuídos na área
de visualização (seja papel ou tela do computador rodando
algum aplicativo gráfico) não importa tanto, pois a
modularidade é mais conveniente como lógicas isoladas mas
coerentes em si. Tome como exemplo os cadernos anatômicos
de Da Vinci ou mesmo aqueles planos mirabolantes (os
famosos dispositivos pitagóricos ou máquinas de Rube
Goldeberg) dos desenhos do Tom e Jerry. O objetivo é dotar a
ideia de substância e registro, por mais estapafúrdia possível.
Cadernos com folhas milimetradas ou sem nenhuma pauta são
excelentes para catalogar impressões. Tenha um sempre a
postos. Nunca se sabe quando a próxima ideia mirabolante
deverá ser apanhada por ele.
82
Vigésima Primeira Exposição:
Documentação é Controle de Quem Realiza
Para se perceber a criação e o desenvolvimento de jogos
como uma atividade mediada por decisões, é importante se
estabelecer, antes de mais nada, o escopo do trabalho. Afinal,
jogos são produtos industriais pois tendem a reprodutibilidade,
e mesmo se feitos por uma manufatura de única ou poucas
unidades, controle de produção é fundamental. Vivemos uma
cultura que enaltece o mambembe e as soluções tiradas da
cartola, mas para concorrer com outros produtores ao nível
profissional, nos obrigamos doravante a assumir uma postura
rígida de organização das nossas tarefas enquanto autores. Se
não assim, o projeto é vitimado pela volatilidade das decisões
imediatas sacrificando, de todos, tempo, dinheiro e juventude.
O país é um território fértil para iniciativas, mas as “findativas”
ainda são raras. Pense: quantos projetos você iniciou que foram
interrompidos pela desorganização dos métodos? Não
queiramos que nossos jogos derrapem na falta de norma e
informação. Tudo que for necessário para o sucesso do projeto
deverá ser meticulosamente arquitetado com antecedência. Não
se trata de sorte: todos os jogos que aí vicejam são fruto de um
extenso programa de reportagem e registro. O que nos separa
de outros primatas não é só a aptidão por ferramentas, mas
uma capacidade única de dar como herança para nossos
descendentes aquilo que descobrimos em nossas vidas
correntes: Registro.
O processo de documentação que veremos em seguida,
busca dar conta dessa prerrogativa histórica, pois o jogo é um
produto localizado em uma cultura e em um mercado simbólico
de outros muitos jogos. Além de servir como identidade para
nosso jogo, os documentos serão úteis para tornar contratos de
criação e desenvolvimento entre as equipes uma certeza
83
compartilhada. Imagine um filme sem roteiro... Imagine uma
máquina complexa sem um guia de montagem... Imagine viajar
para um país distante sem conhecer nada de seus costumes e
geografia. O mesmo nós podemos imaginar dos jogos sem a
documentação adequada.
Documentos
Os documentos envolvidos na construção de um jogo se
dividem em três momentos nos quais os autores apresentam as
ponderações que irão servir de guia para o projeto inteiro.
Antes de sair em disparada trabalhando em narrativas, estéticas,
mecânicas e tecnologias, convém observar que é preciso
responder as perguntas “o que”, “como” e “porque”, cada uma
em um momento preciso. O ato de responder a essas perguntas
de modo organizado constitui o gerenciamento do processo,
cujo resultado será um jogo, ou melhor dizendo, um jogo
possível, pois o documento não realiza o jogo, somente otimiza
sua produção.
Principais documentos de gerenciamento de processos:
•
1 | criação:
game concept
game proposal
•
2 | desenvolvimento:
game functional specifications
game technical specification
•
3 | retroalimentação:
post mortem
Os dois primeiros documentos são aqueles que
estabelecem o jogo por seu argumento e sem os quais, definir
parâmetros se torna impossível. No game concept, os autores
apresentam as linhas gerais dos jogos e seus aspectos mais
interessantes, ou seja, aqueles que representam o jogo em sua
essência lúdica e filosófica. Não é necessário entrar em grandes
detalhes nesse primeiro documento, pois não se trata de um
espaço que admita muitas informações (normalmente um game
concept como documento tem, no máximo, duas laudas), mas
será suficiente para que o leitor saiba do que se trata o jogo, de
que modo será participado e quais as relações culturais que o
jogo estabelece com outros jogos semelhantes em um
panorama promissor. Como conceito é a menor unidade de
sentido de uma ideia, vale a simplicidade e a objetividade nesse
primeiro documento. Conceito é o que difere duas obras cujas
narrativas aparentam idênticas. Mas de nada adianta uma ideia
excelente sem um piso, uma defesa proposital para o
desenvolvimento do jogo. No game proposal, então, os autores
apresentam as linhas gerais dos jogos como produtos e seus
diferencias de mercado. Assim é possível saber “o que” será
84
produzido. Os itens cobertos nos documento de conceito
devem dar conta de explanar brevemente sobre o projeto em
termos de título, membros da equipe, contexto cultural,
características principais e inovações, similitudes e diferenças
com jogos parecidos, objetivo do jogo, suas regras (amplas), sua
temática (justificada) e sua experiência (esperada). Os itens
cobertos nos documento de proposta devem dar conta de
explanar brevemente sobre o projeto em termos de título,
membros da equipe, contexto econômico, características
comerciais, expectativas de valores para o projeto (custos e
prazos para cronogramas) e pesquisa estética, narrativa,
mecânica e tecnologia para síntese de definições. De posse dos
itens respondidos, o jogo pode ser criado.
Os documentos intermediários são aqueles que
estabelecem os trabalhos com a confecção do jogo a partir de
metodologias específicas. Tão específicas, que o documento é
dividido em um guia para as especificações funcionais
(orientadas as funções mecânicas do jogo a partir de seu
conteúdo, suas regras e seus procedimentos) e em um guia para
especificações técnicas (orientadas ao funcionamento das
tecnologias empregadas a partir de sua forma e programação).
Tanto um quanto o outro terá como expectativa organizar tudo
que for referente ao jogo enquanto conteúdo e enquanto forma,
para que haja desenvolvimento. A expansão dos documentos
anteriores e os dois guias no núcleo pulsante do projeto,
transforma o texto em um compêndio de definições que recebe
o nome de Game Design Document e trata, sobretudo do “como”.
Os itens cobertos nos documento de especificações funcionais
devem dar conta de explanar sobre as decisões em termos de
descrição de modo de jogo e componentes (gameplay, espaço,
dinâmicas, agências e estados), interfaces, artes audiovisuais,
narrativas e progressões. Os itens cobertos nos documento de
especificações técnicas devem dar conta de explanar sobre as
decisões funcionais em termos de implementação do jogo pelas
tecnologias cabíveis (jogabilidade, plataforma, materialidade,
restrições de uso, relações entre dispositivos, e lógicas).
Os documentos finais são aqueles que estabelecem uma
crítica histórica das conquistas e das faltas, importantes para
projetos vindouros, que serão beneficiados da experiência do
fazer. Para que haja evolução constante, é precioso saber olhar
para trás em perspectiva de aprendizado. Os post mortem são
documentos que resumem de forma qualitativa e quantitativas
os dados coletados pelos autores para melhores práticas futuras,
retroalimentando o processo criativo. Embora gostemos de
pensar que tudo pode ser diferente, nos espantamos como
alguns erros de avaliação são recorrentes e como detalhes fazem
tanta diferença. Tendo isso em vista no momento da redação,
ficam claros os “porquês” das escolhas de projeto.
Ainda que nos parágrafos acima estejamos referenciando
conjuntos de informações como documentos, não pense que
haja obrigatoriedade dos mesmos serem distribuídos após
85
impressão para todos os membros da equipe ou como arquivos
de texto com extensos números de versão ao final do nome. Há
muito debate sobre documentos estáticos (impressos) e
documentos dinâmicos (online), cada qual com atrativos e
contrariedades. Mesmo modelos oficiais de conceito de jogo,
proposta de jogo, especificações funcionais de jogo e
especificações técnicas de jogo tendem a mudar, refletindo os
parâmetros de certos tipos de jogos que não se observam em
outros tipos. O que deve se ter sempre em mente é que o ato de
manter coerência nos tópicos faz com que não haja dúvidas nas
soluções implementadas e portanto, antes de ser literatura,
documentos de criação, desenvolvimento e retroalimentação,
devem prezar pela objetividade e pela comunicação das equipes,
cujas responsabilidades falaremos em seguida.
Equipes
Jogos são feitos por pessoas. Na Internet, outras pessoas
imaginam que a realização de um jogo de grande sucesso é um
ato de vontade: alguém aperta um botão escrito “make me an
Angry Birds” e um computador gera automaticamente o código,
os gráficos e o marketing para que o dono do dedo ganhe
milhões de dólares. Não é assim, e jamais será, pois se os jogos
pudessem ser criados automaticamente, o primeiro que
aparecesse com algo novo além do que poderia ser
automaticamente resolvido ficaria famoso por pensar diferente.
São tantas as nuances de um projeto que cada jogo é único por
ser resultado dos pensamentos dos envolvidos em sua criação e
desenvolvimento. Pessoas são ótimas para resolver problemas
por que elas conseguem colocar o raciocínio lógico subjacente a
um pensamento mítico, coisa que as máquinas ainda não
conseguem fazer. Computadores são ótimos monitores, mas
são péssimos professores. Pelo menos por enquanto...
Outra verdade sobre as pessoas é que elas funcionam
melhor em grupos do que solitárias. Mesmo os gênios do
passado, polímatas de mão cheia, tinham em suas equipes
talentos diversos para resolver minúcias. A complexidade que
observamos hoje em obras como jogos nos faz assumir uma
postura de uso de múltiplas competências. Antigamente jogos
eletrônicos eram produzidos por engenheiros da computação
que trabalhavam solitários e respondiam por questões
funcionais e técnicas, misturando arte e ciência para ganhar
salários ridículos (programadores de jogos jamais ganharam
mais que engenheiros de igual talento). Mas mesmo solitários,
sabiam da realidade das divisões de tarefas e assim,
responsabilidades diferentes para cada aspecto do jogo. Hoje
assumimos que o mais simples dos jogos pode ser decomposto
em manifestações essenciais por quatro agentes, a saber:
86
Divisões Funcionais:
•
•
•
•
Produtor
Designer
Artista
Programador
O Produtor é responsável pela organização da proposta e
consequente união dos participantes em torno de um ideal de
produção comum. Cabe ao produtor documentar o processo,
gerenciar administrativamente os recursos, prazos e considerar
a orientação do encaminhamento do projeto rumo a sua
conclusão qualitativa. Produtores, em termos breves,
respondem pelo conjunto da obra, antecipando questões
projetuais, artísticas e tecnológicas. Compete ao produtor, por
sua responsabilidade de traduzir a ideia em concretude, a
palavra final sobre questões de ordem estratégica, sem a qual o
projeto é vitimado de interrupção ou cancelamento.
O Designer é responsável pela transformação da
proposta original em mecanismos intelectuais que se traduzem
em situações de atuação lógica e divertida, conforme padrões e
visando jogabilidade. Cabe ao designer escolher os
instrumentos que o jogo usará para representar por simulação
ou emulação situações interessantes a serem exploradas como
escolha pelos jogadores. Compete ao designer, por sua
responsabilidade de traduzir desafios e recompensas em
mecânicas aplicáveis a obra, a palavra final sobre questões de
projeto e estrutura de participação, sem a qual o projeto é
vitimado de incoerências conceituais e descontextualizações.
O Artista é responsável pela transformação da proposta
original em estética e sensualidade que desfilam como
componentes do jogo segundo critérios previstos de
deslumbramento e engajamento pela audiovisualidade. Cabe ao
artista escolher e implantar soluções gráficas e sonoras para que
a estrutura resplandeça e se diferencie enquanto experiência
para o jogador. Compete ao artista, por sua responsabilidade de
traduzir as expectativas dos componentes de jogo em elementos
singulares interessantes e envolventes, a palavra final sobre
questões de representação e tônica, sem a qual o projeto é
vitimado de superficialidade e desacato a uma linguagem visual.
O Programador é responsável pela transformação da
proposta original em codificação exemplar que o sistema fará
uso para poder ser participado, interagido e experienciado. Cabe
ao programador escolher e implementar tecnologias visando o
funcionamento do sistema de jogo como lógica computacional
automática, na qual os jogadores irão se envolver para
cumprimento das demandas previamente descriminadas.
Compete ao programador, por sua responsabilidade de traduzir
objetos, aspectos, relacionamentos e ambientes imersivos, a
palavra final sobre questões técnicas e restritivas, sem a qual o
87
projeto é vitimado de inviabilidades e impossibilidades
tecnológicas de confecção.
Como as responsabilidades operacionais podem ser
dividias entre os agentes do projeto, em equipes com muitas
pessoas, é preciso uma hierarquização das funções
desempenhadas. Quanto mais pessoas estão envolvidas no
processo criativo, maiores as chances de discórdia entre as
soluções e maiores as chances do cancelamento mútuo pelo
excesso de zelo (pois inimigos não querem concordar com
inimigos e amigos não querem magoar amigos). Para isso, é
conveniente que as divisões administrativas definam nos
membros da equipe seus diretores, gerentes e coordenadores.
Divisões Administrativas:
•
•
•
Direção
Gerência
Coordenação
Como o nome indica, diretores dirigem, ou seja, apontam
o curso para um horizonte e supervisionam o trabalho de
determinada área de execução na obra (artes e design,
tecnologia e desenvolvimento, ciência e cultura, produção e
conteúdo). Em outras mídias o diretor, de certa forma, assina a
obra. No caso dos jogos, no entanto, o diretor não é o
responsável final pela produção, mas somente lhe permite uma
perspectiva baseada em sua experiência profissional. Diretores
tem a visão mais ampla do processo pois definem “o que” e
“como” será realizado.
Gerentes, por sua vez, gerenciam, ou seja, permitem a
gestão por planejamento e controle entre subordinados das suas
funções. Normalmente, os gerentes se organizam em torno de
um diretor, cuidando de funções intermediárias em
responsabilidade decisória imediata. Tome por exemplo uma
loja ou restaurante: cabe ao gerente gerir os vendedores ou
garçons para que o atendimento seja da melhor qualidade com
o mínimo de custos e perdas. E quando o cliente não está
satisfeito? Cabe ao gerente decidir o que fazer, não os diretores,
que lidam com escopos mais abrangentes. Os gerentes realizam
e demandam a realização das definições dos diretores.
Por fim, os coordenadores atuam diretamente junto às
equipes de execução, servindo estrategicamente aos gerentes
como facilitadoreas da organização, mas com restrição as
ordens dadas. Coordenar é ordenar conjuntamente, daí sua
postura que pode assumir deveres de reportagem dupla entre as
divisões administrativas e operacionais, mas com
responsabilidades menores em termos decisórios. Os
coordenadores realizam e ajudam na realização das decisões dos
gerentes.
88
Vigésima Segunda Exposição:
Métodos Iterativos: Cascatinha ou Agilidade
Há duas formas de considerar um projeto de jogo, ambas
importadas da investigação em estudos de produção de softwares,
embora sirvam para outras requisições. A primeira é oriunda
das dificuldades de distribuir acesso amplo aos primeiros, raros
e caros computadores, e portanto, exige que se apresente antes
do trabalho, certezas finais. A segunda, considera que nenhuma
expectativa de trabalho corresponde a certezas finais e portanto,
devendo incutir no lapso de tempo de projeto, revisões devidas.
Tanto um método como outro, tem por alvo a produção, mas
diferem nos trajetos a serem percorridos rumo à meta, porque
são iterativos em diferentes graus.
Não é um erro de grafia. Queremos dizer ITERATIVO
mesmo, não interativo, embora todo método iterativo que lida
com decisões pessoais seja também interativo, pois a iteração
depende da interação. Iterativo significa “o que se modifica por
incrementos”, ou seja, sempre que estamos refazendo algo
rumo ao refinamento do ponto final, estamos a iterar. Como
métodos são formas de fazer, métodos iterativos permitem a
feitura baseada em momentos ou ciclos e sobre como esses
ciclos falaremos em seguida.
Cascatinha
O nome oficial não é esse, mas sim waterfall (ou queda d'água,
no original em inglês). Foi estabelecido ao final da década de
1970 como uma sistematização sequencial de funções visando
um fim determinado, impulsionada pela realização da função
anterior. Tal qual uma cascata, só há uma direção possível,
seguindo a gravidade. Nesse método parte-se de requerimentos,
projeto, construção, desenvolvimento, testes de aceitação e por
fim, o uso em campo.
89
Figura 37 - Cascatinha: sempre em frente!
O método cascatinha aplicado a jogos, portanto, depende
de definições para avanço, e portanto, tem foco na realização
por fases que garantirão a existência do jogo só ao final do
cumprimento de todas as etapas. O lado positivo é que não há
muito espaço para deslizes. A objetividade do método torna a
sequencia incorruptível e portanto, orientada para equipes de
menor experiência que desejam a certeza da finalização.
Foco no Método Cascatinha:
•
•
•
•
•
Fase Inicial: vai ou não vai
Fase de Definição: limites
Fase de Design: forma e subjetividade (look’n feel)
Fase de Realização: feitura
Fase Final: limpeza, implementação e suporte
Para controlar o avanço nas etapas da Cascatinha, os
gerentes de projeto atendem ao MOQIT, sigla para os
principais requisitos do processo sem os quais deve haver uma
interrupção (para controle de danos). Como não é possível
retornar escada acima, na inadequação de alguma etapa, todo o
projeto deve ser reiniciado.
Controle por MOQIT:
•
•
•
•
•
Dinheiro (Money)
Organização (Organization)
Qualidade (Quality)
Informação (Information)
Tempo (Time)
90
Se não há dinheiro, ou organização, ou qualidade, ou
informação ou tempo, não há como prosseguir. Avançar de
forma débil só resultará em problemas insolúveis e de custos
exorbitantes.
Agilidade
O nome oficial também não é esse, mas sim agile (ágil, no
original em inglês). Foi desenvolvido por empresas de software
em meados da década de 1990 em resposta ao modelo pesado e
burocrático do waterfall, prometendo com sua leveza e
flexibilidade, agilizar desenvolvimentos. Diferente do waterfall, o
método agile prioriza a liberdade em ciclos rápidos de
planejamento, construção e testes, que darão em novos
planejamentos, construções e testes; e assim espiralando-se para
fora, em direção ao término do projeto.
Figura 38 - Agilidade: sempre flexível!
O método agilidade aplicado a jogos, portanto, depende
de revisões para avanço e por isso, tem foco na validação por
ciclos (arriscados, difíceis e centrais) que garantirão protótipos
de jogo, mas não um jogo concluído ao final do cumprimento
de todos os ciclos. O lado positivo é que há muito espaço para
experimentações. A subjetividade do método torna a malha
delicada e portanto, orientada para equipes de maior experiência
que desejam a liberdade da atualização.
Foco, para em Primeiro Lugar:
1.
2.
3.
As partes mais arriscados do projeto
As partes mais difíceis do projeto
As partes centrais do projeto
91
... ao mesmo tempo:
•
•
•
Manter o rumo e retornar se necessário
“Foco no Resultado, Atenção no Processo”
Sempre testar entre resultados
Uma orientação para o controle do método
excessivamente aberto é atender a uma hierarquização de
quesitos a serem constantemente atendidos, cuja sigla é
MoSCoW. Asssim, ciclos inciais serão substanciados por novos
ciclos, nos quais o que é prioritário, uma vez resolvido, permite
quesitos menos importantes de serem considerados em
execução.
Controle por MoSCoW:
•
•
•
Tem que ter (Must have)
Deveria ter (Should have)
Poderia ter (Could have)
• Gostaria de ter (Wish to have...)
Se não há hierarquia do que é mais importante para o que
é supérfluo, não há como finalizar o processo. Avançar de
forma anárquica só resultará em confusão ao término do prazo
e dos investimentos.
Cascatinha ou Agilidade?
Mas qual o melhor método para gerenciar um projeto de jogo?
Ambos têm características positivas e negativas, e não é
aconselhável misturá-los, pois são antagônicos em expectativas
e práticas. Pior que não ter um método é ter um método que
não oferece segurança. Se o método é um caminho rumo a
término do projeto, não é possível se tomar dois caminhos ao
mesmo tempo. Dependerá do viajante definir seu percurso e
não caberá aqui apontar um ou outro método ótimo. No
entanto, como forma de auxiliar na decisão, considere as
características a serem comparadas:
CASCATINHA
•
•
•
•
•
•
O conceito é muito claro
As funcionalidades claras
O tempo é definido
As alterações não são permitidas
As equipes são inexperientes
Haverá produtos
92
AGILIDADE
•
•
•
•
•
•
O conceito é pouco claro
Funcionalidades difusas
Tempo não definido
Alterações necessárias
Equipes experientes
Haverá protótipos
Qual escolher? Que se faça uma lista de perguntas que
será respondida pelos dois métodos. A que obtiver maiores
constatações positivas, será a vencedora e o projeto será
considerado segundo o método iterativo em questão.
Vigésima Terceira Exposição:
Pergunte para o Protótipo!
Não adianta estimar. Em algum ponto do projeto topa-se com a
necessidade incontornável de construir em objetividade nossas
teorias, e assim, ter uma mínima certeza de estar-se na direção
correta. Em certos projetos, a conclusão é a finalização
obrigatória definida por um cronograma certeiro. Em outros, a
conclusão é um ponto no qual não há mais necessidade de
progredir. Tantas são as possibilidades de decisão durante o
“fazer” que somente a prática pode servir de lastro para nossas
expectativas. Por isso realizamos protótipos, como forma de
antecipar respostas que normalmente só viriam ao final do
processo, com tudo resolvido. Mas porque então não
esperamos para ver o que acontece somente ao final? Por que
somente em raras, raríssimas ocasiões, alguém acerta os seis
números da Sena, ou onde uma bolinha da roleta irá cair.
93
Como não contamos com a sorte mas com medições e
previsões bem justificadas, achamos importante a realização de
protótipos. O nome já carrega duas mensagens muito claras:
primeiro de que é algo anterior e segundo de que é um modelo.
Protótipos são as formas mais baratas de antecipar problemas e
suas soluções, auxiliando no refinamento da concretude sem
que seja necessário assumir muitos riscos que, dependendo da
data, podem ser fatais.
Tomemos por exemplo um urinol e uma pia. A que altura
um mestre de obras deve posicionar esses objetos em nosso
banheiro? Por mais que se especule, que se determine uma
altura média para o público alvo com base em pesquisas
quantitativas nacionais e internacionais, ou se aplique um valor
arbitrário da experiência do pedreiro, só teremos certeza de
uma metragem adequada quando fizermos xixi e lavarmos as
mãos.1 Essas serão alturas ideais porque refletem nossa
realidade prática e não uma teoria. A teoria deve servir a prática,
e os protótipos, tem como função dotar as respostas de
autoridade.
Sistemas diversos usam protótipos como dispositivos de
medição de uso e portanto devem respeitar sua essência
inacabada. Não cabe ao protótipo desempenhar um papel de
produto final, mas somente responder a perguntas objetivas que
irão sacrificar seu monolitismo. Nos jogos, usamos protótipos,
sobretudo, para parametrizar regras, contando com tentativas
de validação rápidas e garantidas. Quer saber se o jogador irá
demorar muito para atravessar um tabuleiro? Faça um protótipo
de tabuleiro com dimensões convencionais, dividido por certo
número de casas e role dados seguidas vezes. Não possui
dados? Recorte seis ou doze pedacinhos de papel numerados,
embaralhe-os ou dobre-os como os fosse sortear alguém para
um concurso. Não tem papel? Considere as placas dos carros
que passam diante de sua janela pois o que o protótipo irá
responder é que dado uma sequencia de valores aleatórios, um
peão levará mais ou menos turnos para percorrer o espaço
fornecido. Quer saber se um personagem está muito poderoso?
Coloque-o em batalha com todos os outros personagens e
identifique em uma tabulação, vitórias e derrotas, e veja como
os valores de ataques e defesas podem ser modificados para que
ele perca algumas vezes e assim não se destaque como escolha
invencível. Quer saber se o jogador entendeu a forma como
cartas devem ser dispostas? Use cartas plásticas de baralho
chinês de lojas de R$1,99 com etiquetas coladas ou rabisque
sobre elas com caneta marcadora de quadro branco (pois
podem ser apagadas com álcool). Acredite, qualquer objeto que
consolide rapidamente uma visão, torna-se valioso para o
projeto sem os ônus dos custos do retrabalho final.
1
Por mais que me esforce não consigo me recordar onde ou de quem
ouvi essa anedota ergonômica. Ao verdadeiro autor, minhas desculpas.
94
A prototipação, ou o ato de fazer e usar protótipos,
portanto, não surge do nada, mas de expectativas de uso. O
mesmo raciocínio é usado na ciência para se levar (hipó)tese a
uma síntese ultrapassando uma antítese. Diversos cientistas
divergem quanto à essência da inspiração para uma suposição
inicial. Alguns dizem que é fruto de uma observação meticulosa
diante dos fenômenos e a respectiva curiosidade de repetí-los
de modo sistemático, enquanto outros atribuem o efeito a um
insight quase místico diante do desconhecido. Prefiro ficar com
o autor Robert Pirsig e pensar a lacuna observada como uma
falta de harmonia a ser resolvida, com ele coloca no seu famoso
livro Zen e a arte da manutenção de motocicletas, de 1974.
Assim, a prototipação sugere atenção a uma matriz com
quatro elementos qualitativos: no eixo da adequação, ou
aplicação do protótipo, a convenção e o contexto no qual
ocorre. E no eixo da profundidade, ou plataforma de
referencialidade do protótipo, a abstração e a fidedgnidade.
Adequação:
• Convenção
• Contexto
Profundidade:
• Abstração
• Fidedginidade
Um assaltante pode entrar em um banco com o dedo
apontado escondido no bolso do casaco e pode sair de lá com o
dinheiro do caixa ou ser descoberto e tomar uma surra dos
seguranças. Em termos de convenção, algo que se aponta e do
qual não se tem a informação completa, pode bem ser uma
arma de fogo. Dado o contexto do banco, faz ainda mais
sentido, por se um espaço que lida com valores e portanto, que
atrai esse tipo de investida. Por outro lado, em nossa matriz, é
preciso que o segurança abstraia o fato da dita arma poder ser
um objeto outro qualquer e pior, no caso do ladrão, que ela não
funcione de modo esperado pois até onde se sabe, dedos não
disparam. O protótipo de arma do nosso vilão respondeu a
algumas perguntas positivamente e outra negativamente: é
possível que um dedo possa ter tomado como arma? Sim. É
possível que por decorrência da ilusão o dinheiro seja entregue?
Sim. O dedo é idêntico a uma arma em forma? Não. Ele atira,
ou seja, mesmo não parecendo, se comporta como tal? Não.
Protótipos guardam relações funcionais ou técnicas com os
objetos e processos que se deseja avaliar.
Outros dispositivos respondem perguntas mas os
protótipos são certeiros na objetividade da resposta, por isso
devem ser usados desde muito cedo no projeto. Mecânicas são
rapidamente colocadas à prova e Estéticas evidenciam
95
sensibilidade do público e a comunicação das informações de
modo coerente. A Tecnologia empregada se mostra útil ou fútil
e as Narrativas podem ser corrigidas caso não não agradem aos
participantes do teste.
Sim, testes! Todo uso de protótipo constitui-se em um
fundamento para a prática de teste, e sobre eles, falaremos em
breve.
Vigésima Quarta Exposição:
“Hora de se Jogar! Nos Tabuleiros”
Na vigésima-quarta exposição os agentes se viam às voltas com o terceiro
projeto de jogo enquanto prática, no caso, munidos de quaisquer objetos
pertinentes a um jogo de tabuleiro de seu interesse (peões, fichas, dados,
cartas...), mas restritos a condições e formatos do tabuleiro.
O detalhamento dessa atividade conforme anunciada pode ser encontrado
na seção que lida especificamente com as práticas. Cabe ressaltar que para
muitos dos agentes jogos de tabuleiros são palcos de manifestação de préconcepções acerca de outros jogos, muitas vezes desconsiderando que o que
mais importa no mesmo é justamente a validação espacial. Não raro
observa-se em alguns projetos o tabuleiro como acessório, e não como
suporte, daí a importância da atividade. O objetivo da exposição, portanto,
é promover a compreensão da forma que segue a função, ou seja, que
conceito e contexto andam lado a lado.
Vigésima Quinta Exposição:
Simplicidade e Elegância
De todas as lendas atribuídas ao tangram (aquele conjunto de
pedacinhos de madeira que parecem ter saído de uma aula de
96
geometria do jardim de infância), a que mais gosto relata um
pedido de um mestre para que seu discípulo, em viagem,
pegasse um espelho e ao retornar, mostrasse no objeto tudo
que tivesse visto. Ao espanto do discípulo de não poder realizar
tal coisa, o espelho caiu e quebrou-se em sete pedaços que
reacomodados, podem fazer figuras de qualquer coisa. Bonito,
não? Uma forma tão simples quanto um quadrado ser capaz de
se reacomodar em diversas formas... Deveras um dispositivo
fantástico justamente por não se transformar nas coisas
figuradas, mas evocar tais coisas no repertório e no imaginário
do seu observador.
Figura 39 - O que existe no mundo são cacos de algo maior
O que permite tal mágica? O mínimo possível. Com oito
cacos não teríamos maiores oportunidades de figuração (6500 e
aumentando rumo ao infinito desde o século XIX em diversos
livros e textos). Mas com seis cacos teríamos menos,
certamente. A noção de simplicidade que defendemos reside na
atenção do que é o suficiente, nem mais, nem menos. A
simplicidade, porém, é um ensaio. Tendemos a complicar as
coisas, principalmente regras e procedimentos, muitas vezes
dando volta em coisas que, se eliminadas, garantiriam agilidade
na compreensão. Lembre-se sempre que os melhores jogos não
são aqueles com mais instruções, mas aqueles cujas instruções
são rapidamente apreendidas e colocadas na prática do jogar.
Como não gostamos muito de ler manuais, esperamos
que jogos sejam tão intuitivos quanto possível, esperando que
se comportem como achamos adequado. A sensação de
simplicidade a ser instaurada no projeto é explanada em um
livro muito interessante publicado pelo designer John Maeda
chamado As leis da simplicidade, de 2006, as quais apresentamos
abaixo como forma de refletirmos sobre o nosso projeto.
97
As 10 leis da simplicidade, segundo Maeda
Maeda salienta que de todas as leis, a mais importante é a décima, pois
engloba as demais. Mas vejamos cada uma delas:
Lei 1: Reduza.
Simplicidade, de forma simples, é por redução pensada
Lei 2: Organize.
Organização faz um sistema de muitos parecer que tem poucos
Lei 3: Tempo.
Economia de tempo faz as coisas parecer simples
Lei 4: Aprenda.
Conhecimento faz tudo mais simples
Lei 5: Diferença.
Simplicidade e complexidade se precisam
Lei 6: Contexto.
O que está na periferia da simplicidade não é periférico mesmo
Lei 7: Emoção.
Mais emoção é melhor que menos
Lei 8: Confiança.
Na simplicidade nós confiamos
Lei 9: Fracasso.
Algumas coisas nunca podem ser simplificadas
Lei 10: A única.
Simplicidade é sobre subtrair o óbvio e adicionar o significativo
Simplicidade é sobre subtrair o óbvio e adicionar o
significativo. Pense em soluções que sejam simples em termos
interfaciais, sem contudo, reduzirem a complexidade emergente
do ato de jogar e estaremos em um bom prognóstico. Use
como navalha as leis acima e retire de seu orçamento simbólico
aquilo que não acrescenta significação ao que o jogador faz, e
ele lhe será grato por todas as escolhas indevidas e irrelevantes
que deveria fazer mas não fará. Por que as pessoas antigamente
temiam o imposto de renda ou declarações semelhantes? Por
que não eram tarefas simples de se realizar, e assim, não lhes
proporcionavam nenhum afeto. Considere atividades simples
que te fazem se sentir poderoso e inteligente e compare com
atividades complicadas que te fazem se sentir submisso e
ignorante. A simplificação deve ser uma meta.
98
Figura 40 - Simples
No entanto, a simplificação não deve jamais subestimar a
capacidade do interator. Pois antes de ser um ponto culminante,
a simplicidade é uma comparação dinâmica entre aspectos que
remetem a competências e habilidades das pessoas envolvidas
na atividade. Um jogo da velha, pode ser considerado o ápice
da simplicidade dos jogos de dominação (aqueles em que
espaços precisam ser tomados por captura). Porém, esse status
é depreciado por aqueles que entendem e dominam todos os
recursos estratégicos do jogo e assim, convertem todos os
embates para o empate. Crianças gostam de jogos da velha
porque imaginam que sua solução se trata de um método
heurístico (tentativa e erro) e podem, assim, ganhar umas das
outras, ou perder uma das outras, muitas vezes. Mas tão logo
percebem que sua capacidade de antecipação das múltiplas
escolhas vai além do que o sistema pode oferecer, ficam
enfadadas e procuram desafios mais complexos para solucionar.
Na literatura de Mark Twain, Tom Sawyer usa da
artimanha do desafio para ludibriar seus amiguinhos a pintar
uma cerca em seu lugar, e não só Tom Sawyer se esquiva do
trabalho, como é recompensado pois conseguiu transformar
uma depreciação em desejo. Uma tarefa simples maquiada por
uma tênue película de complexidade pode ser uma assunção
inicial quando o interator desconfia de nossa incapacidade de
medir suas habilidades. Tome como exemplos os verbos
comuns aos jogos e veja como todos lidam com ações simples e
diretas (correr, saltar, atirar, desviar, coletar, arrastar, empurrar,
tocar...). E o contrário também se verifica, quando uma
atividade normalmente complexa é desmontada em
simplicidade que será reamplificada após a sua execução. Uma
coisa seria pedir que o jogador calcule um movimento oblíquo
medindo a intensidade do impulso e a força da gravidade
chegando a um vetor resultante. Outra coisa seria oferecer um
99
estilingue, alguns projéteis ruidosos e penosos e alvos que ao
serem impactados emitem ruídos engraçados como naquele
“jogo que sua mãe não para de jogar”. Isso é elegância: a
eficácia da simplicidade. O maior dos desafios não é fazer um
jogo simples, mas um jogo elegante.
Figura 41 - Elegante
É fácil reconhecer alguém elegante pois há na pessoa uma
áurea de leveza e graciosidade que a destaca das demais. E
elegância em nada depende de status quo, poder ou dinheiro. É
uma característica que se reconhece na propriedade da beleza,
por instauração de um isomorfismo matemático: uma parte de
uma estrutura complexa pode ser contemplada em outra parte,
funcionando adequadamente em suas respectivas estruturas.
Tomemos o xadrez como exemplo de um jogo elegante.
Há simetria, duas e suficientes cores, uma grande carga de
abstração retórica, peças bem definidas em funções específicas
e complementares e muitas maneiras de se abrir e fechar cada
partida. Outros jogos tidos como elegantes são Go, Damas,
Nim, Hex, Mancala, Ludo, enfim, muitos daqueles que são
vendidos em papelarias por um punhado de moedas e os quais
poucas pessoas valorizam em sua profundidade histórica e
prática.2
Há diversas maneiras de conquistarmos a elegância em
nossos jogos, mas dependerá do recorte do jogo em termos de
simplicidade. E a melhor maneira de saber se algo está
suficientemente simples e ainda assim interessante, é colocar em
teste, finalmente.
2
O mesmo ocorre com a música clássica, obra de esfinges da música,
banalizada em propaganda de desodorante feminino.
100
Vigésima Sexta Exposição:
Testes e mais testes:
iterativos e ludocêntricos
Há um grande e difundido temor quando falamos de testes é o
quero aqui salientar. Não testamos as coisas para saber somente
se funcionam ou não, mas para torná-las melhor para próximos
testes. Teste são verificações, checagens da verdade; e se os
considerarmos como momentos de negativa apreensão nos
quais nossas brilhantes conclusões de projeto serão atropeladas
pelos fatos, estamos fazendo a coisa da maneira indevida.
Vejamos os testes como o grande e especial processo contínuo
de concretização de nossas teorias e assim poderemos fazer
progresso. Testes, portanto, não são momentos definidos com
hora e local combinado onde chegamos atrasados e saímos mais
cedo, mas eventos que podem durar uma vida inteira e
provocar alterações profundas em nossa maneira de pensar.
101
Figura 42 - Rabiscos delimitadores
Não foi sempre assim que vimos os testes e não estamos
acostumados a testar as coisas de modo sistemático. Na
verdade, testamos as coisas o tempo todo, mas não
consideramos isso “testar”. Consideramos isso “usar”. A
diferença não é só semântica, é também funcional. Quando
envolvidas com a avaliação, as pessoas tendem a reagir de modo
muito diferente de quando não estão sendo avaliadas, por isso a
ciência é feita de grupos controle, como modo de garantir a
isonomia das medições. No caso dos jogos, podemos fazer o
mesmo, mas orientando nossos testes como atividades que vão
objetivar dois adjetivos: serão iterativos e serão ludocêntricos.
Ou seja, farão o objeto do teste se modificar incrementalmente
e serão voltados para o cerne da promoção da significação do
jogar. Tanto um adjetivo como o outro devem ocorrer desde os
primeiros momentos nos quais o jogo ganha sua substância de
regras, procedimentos, conflitos e recursos a serem operados. A
correção de curso providenciada pelos testes quando iniciais,
darão o crivo do percurso. Por isso a iteração é bem quista, pois
como uma cebola e os ogros3, jogos têm camadas, que irão se
acumular. A paisagem ilustrada acima, ainda que sem detalhe, já
apresenta seus limites e confere ao observador a intuição do
que se trata por contar com símbolos do seu repertório
imagético.
3
Ver Shrek, Dreamworks, 2001
102
Figura 43 - Definindo a atmosfera com cores...
Ciclos dentro de ciclos, conforme vimos no método da
agilidade. Tão logo os testes são executados, nosso cenário vai
sendo substanciado com nuances que permitem escolhas e
intervenções mais ou menos sutis. Os testes apontam para uma
incompreesão de algum aspecto? Que esse aspecto seja
clarificado. Mas como testar? Sendo o jogo um sistema no qual
muitas constantes e variáveis estão em conflito por coesão e
coerência, qual a melhor maneira de se considerar boas
medições do uso? Vamos dividir o processo do “jogar” em
etapas e delas extrair uma estratégia de testes.
Figura 44 - Alguma pinceladas amplas...
Quando o jogo se encontra em suas definições
conceituais iniciais, os seus autores têm autonomia e poder para
103
testar o que quer que seja relacionado a ele. Como na pintura
acima, foram os autores que definiram que seria uma paisagem
bucólica e natural, ampla e distante... Não uma cena urbana
opressiva e claustrofóbica. Portanto, para decisões prévias, os
autores são os melhores testadores possíveis. Dado seu parecer,
o jogo terá suficiência lógica para ser apresentado para avaliação
por outros grupos, concêntricos ao interesse dos autores. Aqui
a coisa fica perigosa, pois como vimos acima, quando testados,
os seres humanos reagem de modo bem curioso. Por exemplo,
se perguntados quanto à honestidade, todos são honestos. Se
testados sobre a própria honestidade, alguns falham. Por isso há
um momento para se expandir o grupo de testes para além da
autonomia dos autores e pessoas próximas. Fundamentos e
estrutura podem ser testados pelos autores e a estrutura por
pessoas próximas. Mas para testar detalhes formais e
refinamento, será preciso contar com apoio externo.
Figura 45 - Refinamento e a obra concluída!
Lembre-se que seu primo distante não é um apoio
externo. Ele é só um primo distante que pode trazer segurança
com os comentários porque gosta de você (ou pior, porque não
gosta). O mesmo dizemos daquele seu amigo de infância. Para
neutralidade, procure por pessoas que não se sentirão
incomodadas de serem sinceras, o que já é bem difícil, porque
tendemos a achar que a outra pessoa quer ouvir coisas boas de
suas realizações e não o que elas notam que está inapropriado.
A imagem acima, que representa o fim de nossa pintura, terá
diferentes opiniões de acordo com os seus observadores.
Alguns irão criticar por descordar das cores, outros irão opinar
sobre a qualidade das pinceladas... Mas não haverá mudança,
pois o quadro estará concluído. Por isso os testes iterativos e
ludocêntricos devem ser realizados durante, e não após. Eis a
diferença entre testes e críticas.
104
Figura 46 - Crianças Brincando, por Pieter Bruegel
Os testes, portanto, devem ser realizado com controle da
situação e postura aberta para registro e comentários. Peça para
seus testadores pensarem em voz alta durante a sessão do jogo
e sempre que possível, anote o tempo que levam para que
determinada ação seja executada ou o objetivo seja alcançado.
Tente separar nos testes o que se corresponde à estética,
narrativa, mecânica e tecnologia. Talvez uma dificuldade não
seja das regras, mas de como alguma instrução foi interpretada.
Talvez algo esteja confundindo o testador porque sua intuição
levou-o a supor, e não a seguir, algum procedimento. Durante a
atividade de teste, destaque os minutos iniciais para salientar
que o que está sendo testado é o jogo e não a capacidade deles
como jogadores. E não os subestime de modo algum,
explicando o que eles devem identificar.
Os testes não devem ser momentos de prova, mas de
diversão direcionada, por isso, se achar pertinente, peça para
que os testadores repitam um procedimento específico de várias
maneiras. Se não é necessário ao diretor assistir todo o filme
para editar um determinado trecho, não é necessário aos
testadores jogarem partidas exaustivas até que um erro se
manifeste. Force sua descoberta sempre que necessário. O
mesmo nós podemos dizer das situações que finalizam a
partida, de como uma partida começa ou de como uma situação
especial ocorre.
Não perca um dia inteiro de testes com os mesmos
testadores. Faça sessões de trinta a quarenta minutos com
espaço ao final para impressões além do jogar, mas que ficaram
retidas como experiência. Como no quadro de Bruegel, muitas
são as brincadeiras, mas que só existem como ação, e portanto,
o autor irá se maravilhar quando o testador realizar uma coisa
105
que não foi pensada mas que emergiu durante o seu
agenciamento.
Lembre-se que há diferença entre a expertise dos autores
e a expertise dos jogadores e que obviamente há muito mais
jogadores que game designers. Pense que nessa relação qualitativa
e quantitativa, o que se espera é que o jogo atenda e divirta o
maior número de pessoas interessadas, e não somente aquelas
que se envolveram na criação e no desenvolvimento do jogo.
Portanto, não se desaponte se algum elemento do seu jogo foi
criticado excessivamente, mal interpretado ou simplesmente
ignorado pelos testadores, sobretudo se forem representativos
do público ao qual o jogo se destina. Veja o quanto isso pode
ser importante para melhorias e não leve para a pessoalidade as
opiniões coletadas se explicando excessivamente para o
testador. Pois segundo a máxima dos objetivos gerais dos testes:
“o game designer não vem junto com a caixa”.
Vigésima Sétima Exposição:
Variação e Balanceamento
Uma boa maneira de experimentar é adulterar um
estabelecimento e ver o que acontece. Tomemos a natureza. A
variabilidade do que existe é fruto de pequenos desvios de um
padrão original dinamizado pelas pressões dos cenários nos
quais o padrão ocorre. Isso nos explica muito de certos jogos:
embora se pareçam uns com os outros, há hierarquias nos
fundamentos que apresentam que os fazem únicos de alguma
forma. O modo como nos relacionamos com as variações dos
jogos pela modificação de suas regras, que podem ser ou não
admitidas como as regras finais, determinam a qualidade da
obra. Faça a experiência: pegue um jogo clássico qualquer
realize suposições e imediatamente verá surgir um novo
106
produto com processos semelhantes ao original. Depois
pondere: O que melhorou? O que piorou?
A variação sobre um projeto de jogo, portanto, determina
o seu tom. O jogo pode ser mais grave ou mais agudo. Como
vimos anteriormente, um dos principais objetivos dos testes
realizados é considerar melhorias no que está sendo feito
conforme realizamos sua estética, narrativa, mecânica e
tecnologia. O principal subproduto do teste é a variação.
Quanto maior a quantidade de testes, interativos e
ludocêntricos, maiores são as possibilidades de promoção de
variações a serem criticadas para determinação do jogo final.
Não é um ensaio de gosto, mas um resultado determinado por
matrizes de avaliação que podem ser amparadas pelos conceitos
originais do jogo ou pela orientação de sua construção. A
variação como forma de convergência rumo ao resultado final é
uma necessidade do projeto, tanto quanto a definição dos
valores das constantes e variáveis. É possível que ao término do
projeto de jogo não haja apenas um, mas vários jogos. Caberá
aos autores definir qual deles é o canônico, com base em suas
prerrogativas de projeto e intenções de publicação.
Figura 47 - A busca pelo equilíbrio dinâmico
Para a variação ser realizada, o balanceamento do jogo é
prioritário. Acredite: nenhum jogo que aí está foi criado e
desenvolvido sem que os testes aplicados solicitassem a revisão
de valores nas constantes e variáveis. Balancear é providenciar
ao jogo a afinação do tom, fazendo de um monte de ruídos,
uma sinfonia. É bem provável que o balanceamento seja
evocado como uma forma de concluir uma bateria de testes,
mas sob outra perspectiva, é definir os parâmetros ótimos para
a sua fruição.
Imagine-se em uma partida de cabo-de-guerra. Não sei o
seu peso, mas suponho que se no time adversário eu colocasse
107
Maguila, Terry Crews e Bolo Yeung haveria grande chance de
você perder. A certeza dos poderes dos jogadores em relação ao
sistema deve ser pesada como se fosse o fiel de uma balança na
qual o equilíbrio deve ser uma dinâmica sutil. O sistema deve
oferecer automatismos que desafiem o intelecto do jogador,
mas sem com isso torná-lo uma extensão de um problema
insolúvel. Vários jogos consideram a situação sob a perspectiva
de vitimizar o jogador, o que não é interessante (jogos cuja
abertura se apresenta excessivamente fácil, para em seguida,
desencadear obstáculos impossíveis de serem ultrapassados).
Outros, de maneira oposta, apresentam características que
colaboram com os jogadores menos experientes tornando o
jogo automaticamente competitivo pela revisão dos valores
vigentes, o que é mais adequado (jogos de corrida que reduzem
a velocidade dos adversários mais despontados para que o
jogador os alcance). Seja qual for a estratégia, o balanceamento
automático deve ser tão transparente quanto possível para o
jogador, caso contrátio, completamente interativo a ponto de
fazer parte das seleções opcionais do jogo.
Balancear é garantir isonomia, ainda que um desejo,
também uma ilusão. É possível criar um obstáculo impossível
de ser ultrapassado ou um inimigo tão forte que exija que o
jogador sacrifique horas para se tornar suficientemente
competitivo em um combate contra ele. Mas qual o benefício
real dessa postura de projeto para o jogador? Se o objetivo do
jogo é divertir, as regras devem privilegiar sensações de poder e
possibilidade, não de impotência e frustração. Os desafios do
jogo, portanto, deve se adequar por um processo meticuloso de
ponderação de quantidades e características e muito tempo do
projeto deve ser alocado para o cumprimento dessa premissa
sem a qual o jogo terá grande inclinação para o fracasso.
Durante o balanceamento, serão encontrados os dois maiores
vilões dos projetos de jogos: os furos e os becos-sem-saída.
Nem ouse se explicar antecipadamente: furos não são
características, ainda que alguns permitam ao jogador extrapolar
certas regras. Lembro de meus alunos tentando me provar que
uma margem muito próxima da borda da folha ou uma
impressão inadequada são “linguagens”, quando na verdade são
erros crassos de comunicação visual. A margem no papel deve
ser suficiente para que os dedos não se interponham à
informação e uma impressão bem feita faz do documento algo
oficial. Características surgem da compreensão das limitações, e
não da ausência de conhecimento. Jogos têm furos quando
fundamentos não correspondem aos detalhamentos. Algo
incoerente ocorre e o jogo é interrompido ou terrivelmente
danificado em uma partida. O balanceamento do jogo,
portanto, deve providenciar resposta a situações nas quais
surgem estratégias dominantes (ações “matadoras” as quais não
se pode vencer) e objetos dominantes (dispositivos no jogo os
quais garantem imediatamente a vitória ou benefícios
incontornáveis). Tanto problemas com estratégias dominantes
108
quanto com objetos dominantes podem ser sanados por
triangulação de características: uma assimetria rotacional na qual
uma caractéristica é melhor ou pior, de acordo com o
relacionamento. Aquele jogo com pedra, papel e tesoura é um
exemplo perfeito de uma assimetria rotacional.
Figura 48 - Um Tetris Monodimensional! Não...
Jogos assimétricos são aqueles nos quais as condições de
jogo, especialmente os objetivos, são distintos, ainda assim,
justos. Normalmente, os problemas com becos-sem-saída
surgem quando a assimetria coloca a necessidade da ocorrência
de um evento para a execução de outro, criando para o jogador
paradoxos difíceis (senão impossíveis) de serem contornados,
travando a partida por completo. Jogos ditos simétricos são
aqueles nos quais as condições de jogo são idênticas para todos
os envolvidos, portanto, mais difíceis de se interromper por
completo dado o caráter normalmente binário dos
agenciamentos.
Por fim, públicos diferentes exigem balanceamentos
diferentes e é importante considerar a habilidade do jogador
como um espelho dos termos balanceados. O balanceamento
de um jogo deve, sobretudo, não permitir que o sistema se
mostre excessivamente fácil, aquele que faz do jogador uma
espécie de ascensorista do sistema, levando-o somente para
cima e para baixo, nunca para os lados ou para dentro e para
fora. Isso faz do jogo um brinquedo como aqueles de pilha que
parecem brincar sozinhos... Jogos não devem ser exercícios
exclusivos de memória, de reflexo ou de exaustão, como
normalmente são pensados por neófitos em um primeiro
entendimento de uso. O aprimoramento do jogador como
usuário de um sistema que é elucidativo por si, deve extrair do
mesmo indivíduo uma produção de sentido, não contar com ele
como uma extensão orgânica de laço infinito que em nada lhe
109
acrescenta. Daí a pergunta fundamenta a ser feita durante o
balancear: O jogo funciona? Funciona. Mas qual a sua graça?
Vigésima Oitava Exposição:
Tenha Outras Ideias
Por um breve momento, reflita sobre os objetos que são
vendidos em lojas como jogos e brinquedos e responda à
seguinte pergunta: porque aqueles tidos como educativos não
alcançam, nem de leve, o interesse que os de entretenimento
ostentam? Há um conflito silencioso quando falamos de uso de
jogos em outras instâncias que não o folguedo e cabe destacar
um espaço para que esse e outros entendimentos sejam
clarificados. Todo jogo é educativo. A ressalva é que a maioria,
justamente daqueles que interessam ao público consumidor, é
educativo para sua própria estrutura e finalidade.
Até aqui, colocamos jogos como superfície para atividades e
comentamos que temática e regras sustentam a experiência.
O problema com jogos que buscam ir além do
entretenimento esperado, como os jogos pedagógicos
(educativos e educacionais), os jogos sérios (aberração
parodoxista para serious games) e os jogos ditos advergames
(promocionais e propagandísticos) é que a carga excessiva na
ênfase temática não permite as regras amparar a experiência,
que desaba sobre si mesma levando consigo o gosto do jogador
pelo sistema. Toda forma de coerção de um modelo para um
uso que não lhe cabe, sobretudo nos jogos, é fatal. Veja a
maquiagem evidente dos exemplos acima e chore comigo: um
dominó é um jogo clássico que envolve a interpretação de
valores combinados e probabilidades de valores desconhecidos
garantirem aos jogadores benefícios conforme as peças vão
sendo descobertas e inseridas no circuito. A mecânica de
110
pareamento, apesar de simples, demanda uma boa dose de
avaliação de risco (de se colocar uma peça que garantirá a
vitória do adversário se este tiver dela um par). O lapso dos
jogos educativos de dominó é que dependem única e
exclusivamente da noção de par, colocando nela qualquer
símbolo, seja letra, placa de trânsito, operação matemática ou
forma. O que há de errado nisso? Não há conhecimento gerado
no jogo que promova a produção de sentido do símbolo pois
ele está além da fundamentação do jogo, servindo somente
como pintura de valores a serem comparados. E convenhamos,
comparar valores por comparar valores não torna o jogo mais
divertido do que um jogo clássico de dominó. Se o objetivo é
comparar formas, que elas se encaixem como em Tetris. Se é
para comparar operações matemáticas, que elas determinem o
vencedor de uma disputa de forças numéricas de exércitos de
Age of Empires. Placas de trânsito e letras, que não ocorrem no
trânsito ou no texto, são símbolos tão vazios como quase todo
discurso político em prol da educação.
Se o objetivo do jogo é divertir (entendendo diversão
como o que se abre na atenção focada, ao contrário do que
se se fecha em um único ponto, ou seja, conversão), é
importante destacar de qualquer atividade o que a caracteriza
como próxima ou distante de um afeto sugerido ou esperado.
Somente assim poderemos ter outras ideias que alimentarão
nossas perspectivas de projetos.
Diversão
Antes de destacar os pontos em comum das coisas que são
divertidas, concordemos entre elas. Dificilmente coisas que são
divertidas para uma pessoa, são igualmente divertidas para
outras, e ainda que concordem, poderá ser por coincidência de
valores cobertos na atividade e não pela atividade em si.
Diversão não é como uma piada que todos riem do mesmo
absurdo manifestado ao final, que expõe a tolice, a ignorância, a
loucura, o erro, o grotesco, a confusão e a ironia. A diversão é
diferida por repertórios, que depois dos telefones celulares,
devem ser as coisas mais pessoais que existem. Mais do que
escovas de dentes e roupas íntimas, os repertórios, como
veremos em próxima exposição, determinam nossa unicidade
identificatória. Eu sou a memória que você tem de mim pelo
repertório que trago. Lembre-se disso no momento de me
presentear e jamais cometerá uma gafe de me dar o que não
gosto.
111
Figura 49 - Ampare-se nos conceitos da animação
Nossos repertórios são constituídos de coisas simples em
um primeiro plano ideal, uma superfície que pelo passar dos
anos vai sendo progressivamente acumulada por impressões e
emoções. Uma tonelada de conceitos sobre conceitos, que
impede a visão deles de modo isolado. No ato da diversão, no
entanto, o peso conceitual se esvai na leveza de uma
simplificação direta e emergente e vemos as coisas como elas
realmente nos foram injetadas inicialmente. Divertidos, pasme,
vemos as coisas como crianças. Por isso buscamos a
simplicidade das ficções, sobretudo, das que podemos interagir.
Divirto-me das coisas duras, as quais me empenam em direção
ao onírico dos contornos destacados. Pensar, contar, medir,
analisar... coloca o cérebro em constante rebuliço de
processamento. Na diversão, boa parte das impressões existe
por si e isso aplaca a fúria da mente, como o contorno dos
desenhos animados e dos recortes do cotidiano sem a
dependência das necessidades fisiológicas. A animação é
divertida porque destaca dos movimentos, não sua mecânica
fidedignidade, mas suas intenções invisíveis. Nas ficções, barbas
e cabelos não crescem, não há sede, ou fome ou estafa,
ninguém urina ou defeca, pode-se sangrar sem morrer e tanto
tecnologia como magia não se explicam. A simplificação é a
base para a diversão. Eta vida boa!
Pergunte-se: o que faz um jogo ser “divertido”?
•
•
•
•
•
Motivações
Poder de Controle
Mudanças de Estados Monitoradas
Amplificações de Ações e Valores
Suspensão de Descrença
112
• Envolvimento e Engajamento
• Ser parte de algo maior
Um jogo, conforme podemos defender, pode ser
divertido por uma série de valores graves e agudos. Ele pode ser
divertido porque promove a motivação do jogador em direção a
uma concretização cujo convite foi acatado. Ele pode ser
divertido porque nele há algo se pode controlar, como há
poucas coisas na vida. Ele pode ser divertido porque as
mudanças superficiais e profundas, das cosméticas as do caráter
ocorrem de tal forma que podem ser acompanhadas e
compreendidas. Eles podem ser divertidos porque o que é feito
repercute e ecoa nas trocas simbólicas que o sistema permite.
Ele pode ser divertido porque o que nele existe é uma ilusão
conhecida e medida, sob uma realidade que se aceita
momentaneamente esquecer. Ele pode ser divertido porque
promove a participação eficaz, aquela que realmente faz
diferença para si e para o resto... Mas sobretudo, o jogo pode
ser divertido porque permite ao jogador sentir-se fazendo parte
de um todo maior, que abraça não só outros jogadores, mas
universos persistentes inteiros, com suas geografias, histórias,
mitos e conhecimentos intrínsecos.
Quando chegar o momento de realizar, portanto, tenha
outras ideias. Ideias que permitam a diversão, não ideias que
colaborem para reduzir o jogo ao pequeno apartamento das
atividades suprimíveis.
Vigésima Nona Exposição:
Repertórios e Referências
Quando menos percebemos, agimos movidos por construções
113
ideárias anteriores a nós mesmos e sob as quais fomos criados e
educados. Somos seres culturais e por isso é tão difícil para nós
pensar fora de uma caixinha, verde amarela, pequena em alguns
casos, meio amassadinha em outros. Quando precisamos,
podemos beber de outras fontes e isso é muito necessário. A
instrução doravante não é rechaçar impulsos os quais nos
impedem de ir e ver além, mas fazer deles escadas para que
possamos, por meio de referências, ampliar nossos repertórios.
O termo repertório pode ser confundido aqui com a lista de
piadas de um comediante ou a lista de músicas que aquele
cantor de barzinho pretende tocar ao violão. Iremos além. Para
nós, repertório é o acumulo de impressões que nos tornam
únicos, e portanto, nos permite estabelecer comunicação com
outras pessoas igualmente únicas com maior ou menor
facilidade. Tomo como exemplo um argentino girando o dedo
em volta de uma orelha enquanto aponta para uma terceira
pessoa. Você irá achar que ele está se referindo a ela como
sendo louca, mas na verdade, está dizendo que há para ela uma
ligação telefônica. Muitos lapsos como esse promovem
incidentes de comunicação curiosos (alguns até muito
perigosos), mas ilustram tão somente que devido à variabilidade
das referências, repertórios costumam também ser muito
variados e portanto, necessitamos constantemente ampliar os
nossos. O que sabemos desde muito cedo é que não pecamos
por sermos curiosos e de onde menos esperamos,
conquistamos mais uma figurinha para nosso álbum interativo
da existência.
Veja a imagem acima: uma coleção de dezesseis amostras
de jogos conhecidos como First Person Shooters (ou jogos de Tiro
em Primeira Pessoa). Como as referências para tais jogos são
muito próximas, pois a temática militar é famosa em jogos há
muito tempo, criam um repertório comum, permitindo aos
jogadores transitar entre eles com facilidade: todos apresentam
algum dispositivo bélico que aponta para o centro da tela,
alguns elementos visuais flutuando diante do campo de visão
do jogador e mesmas escalas acromáticas variando do ocre ao
cinza. Embora não sejam militares por excelência (pois não
foram construídos para servir aos militares), jogos como esses
se inspiram em valores oriundos de uma expectativa do sensocomum do que é “militar”. Nos jogos, temos a relação entre
referentes e repertórios apresentada como um excesso, quase
um impressionismo: mais vale a impressão do que a verdade.
Sabe aqueles carros que se dizem off-road (qualquer coisa cross)
mas que cujo projeto os fazem mais baixos que os carros de
passeio comuns e os impedem de andar na lama e no barro?
Pois então, dizemos aqui o mesmo. Eles buscam, como
veículos, infligir nos seus motoristas um perfume de aventura e
tudo que é carregado com isso, quando na verdade, ficarão
presos no primeiro buraco. O que os marketeiros fizeram foi
identificar em um público que tem como repertório o espírito
aventureiro (mesmo de terno e gravata e com sobrepeso), e
114
baseados em referências, dotar-lhes de um veículo que parece o
que eles desejam mas sem com isso arcar com o preço de um
carro efetivamente off-road. A maioria das pessoas quase sempre
é ignorante do truque, por isso ele funciona tão bem. Não fosse
assim, falsificações como Pulman (Puma), Mike (Nike), Abidas
(Adidas) jamais seriam vendidas.
Se as referências alimentam nossos repertórios, como
podemos nos beneficiar delas para criar e desenvolver nossos
jogos? Afinal, se buscamos de um público o entendimento
prévio do uso, o que nos garante que irão jogar os nossos jogos
se forem muito semelhantes aos que aí já estão? Ou pior, como
jogarão nossos jogos se forem completamente diferentes do
que eles já conhecem, e portanto, estão acostumados?
O que qualifica uma atividade tão profunda como o jogar
é o aceite de um contrato que como vimos, surge em uma
delimitação conceitual e parte de ênfases em experiência,
temática e regras; e cuja estrutura, apresenta estética e narrativa,
suportadas por mecânicas e tecnologias. Cada um desses pontos
concentra uma infinitude de possíveis referências que devem
ser coerentes com o repertório dos seus jogadores. Saber quem
são, o que fazem, do que gostam, permite que nossas relações
interpessoais sejam aproximadas em conjuntos de
oportunidades mutualísticas. Jogos lidam com a comunicação
em seu durante e principalmente, em seu momento anterior, no
momento que os seus autores escolhem que referências serão
usadas para se adequar e depois ampliar, os repertórios
envolvidos. O jogo trata de assuntos urbanos ou históricos? Os
personagens presentes nos jogos são vagos para serem
impersonados pelos jogadores ou profundos e consequentes de
um espaço vital do qual fazem parte na ficcionalidade? No livro
Vidas Secas, de Graciliano Ramos, a cadela da família de
retirantes se chamava Baleia, o maior dos seres aquáticos. Baleia
vivia na pior das secas e o absurdo servia para contrapor o
conceito por trás do nome com o ambiente no qual a história se
sucederia. Apesar de obra prima literária, confesso que até hoje
nunca li Vidas Secas, mas quando éramos crianças, assistimos ao
filme na escola e o que me marcou, aquilo que hoje faz parte do
meu repertório, foi o reconhecimento do paradoxo de um
personagem cujo nome resumia toda a questão dramática de
um grupo familiar lutando para sobreviver no mais inóspito do
sertão. Referência alimenta repertório. Repertórios alimentam
cultura. Culturas alimentam conhecimento.
Como obter referências? Abra-se a mente para “tudo o
que faz lembrar”. Ao falarmos sobre um determinado assunto,
o que vem em sua mente? Que sensações são evocadas e que
imagens, sons, cheiros, texturas remetem aos valores
identificados?... Cataloga-se e hierarquiza-se. Conecta-se com
verbos e complementa-se com adjetivos. Aos poucos as
referências irão delimitar a abrangência a ser editada para
simplicidade e elegância, e frases confeccionadas pela relação
entre as referências poderão definir ludus e paideia, tornando os
115
fundamentos do jogo aparentes como em um rígido andaime.
E sobre tal andaime construiremos o nosso jogo.
Trigésima Exposição:
“Hora de se Jogar! Nos jogos eletrônicos.”
Na trigésima exposição os agentes se viam às voltas com o último e mais
importante projeto de jogo enquanto prática, no caso, usando seus
conhecimentos técnicos para adequar restrições e conceitos a um jogo digital.
O detalhamento dessa atividade conforme anunciada pode ser encontrado
na seção que lida especificamente com as práticas. Cabe ressaltar a
dificuldade da atividade por ser o resultado uma especificação de software, e
portanto, uma evolução considerável sobre as práticas anteriores em termos
de finalização. Além dos conhecimentos oriundos do curso, também é
necessário a articulação de conhecimentos externos, sobretudo tecnológicos,
adequando ferramentas aos propósitos da atividade. O objetivo da
exposição, portanto, é promover o entendimento do escopo da demanda
frente às possibilidades interativas promovidas pela tecnologia
computacional. Fazer crer que jogos digitais não são melhores ou piores que
jogos analógicos, somente mais específicos nos detalhamentos técnicos
fundamentados.
Trigésima Primeira Exposição:
Reportagem
Já temos tudo que é necessário em termos teóricos, já
elaboramos muitas práticas para aprimorar nosso
conhecimento... Acabou?
Não! Agora nos é preciso colocar os resultados no
mundo. A maior dificuldade encontrada por muitos entusiastas,
e mesmo por profissionais, é saber sobre as coisas, é obter
conhecimento. Por isso convido o leitor e a leitora que nos
acompanhou até aqui a colocar tudo o que puder em papel,
arquivo, desenho, esquema, música, enfim, da maneira que
achar mais interessante e conveniente, suas impressões e críticas
sobre criação e desenvolvimento de jogos.
A troca de informações só se justifica como lastro para
práticas de promoção. Promover jogos, portanto, deve ser feito
em dois vetores: na produção dos mesmos como produtos e
processos e na divulgação das expressões que eles contem de
forma tão rica e plural. Cabe a cada produtor, separar
momentos para conversar, ler e escrever sobre o que faz e o
que tem sido feito. Não como mero expectador de uma mídia,
mas como seu mediador. Há na Internet, muito espaço em
ocupação para publicidade de jogos, comentando sobre suas
narrativas e tecnologias, mas pouco para sua estética e
mecânica. Talvez estejamos no momento de termos um
116
aumento substancial de críticas aos modelos vigentes de
produção e distribuição, as mesmas que fizeram do cinema e da
televisão veículos tão poderosos e abrangentes que ainda são.
Não precisamos de comentários rasos desta ou daquela
pseudonovidades que em nada alimentam ou incrementam o
multiverso dos jogos em suas múltiplas ocorrências. Precisamos
de agentes, não somente de jogadores. Como povo flexível,
criativo e recentemente reconhecido internacionalmente por
nossas conquistas sociais e econômicas, podemos angariar ainda
mais interesses locais e distantes pela forma como tratamos
nossos valores culturais. A cada quatro anos, colocamos um
único jogo acima de todas as nossas responsabilidades pessoais
e coletivas e pergunto: porque não podemos fazer o mesmo em
outros intervalos de tempo, quando elegemos nossos
representantes ou realizamos as escolhas dos que consumimos e
no que iremos acreditar? Jogos, em suas mais amplas
manifestações. Jogadores por suas mais amplas expressões. Eis
um lema.
Somente a reportagem poderá garantir nosso sucesso
sobre as tentativas frustradas e nossas reflexões sobre as vitórias
conquistadas. Comente, escreva, demonstre. Comecemos
imediatamente pois estamos no “onde”, sabemos o “que” e
sabemos “como”. E o “quando” nos será uma contínua
oportunidade.
Trigésima Segunda Exposição:
Autores
Nessa exposição, são apresentados os nomes, contatos e
resumos biográficos dos mentores envolvidos na Instalação e
avaliação das atividades dos participantes do Gamerama Wokplay.
No caso da primeira Instalação do Gamerama Workplay, além de
mim, atuaram Rian Rezende, Arthur Protasio e Bruno Baère.
Rian Rezende é game designer e pesquisador com interesse na
área de jogos, com ênfase em RPG, Alternate Reality Games,
cardgames e narrativa. Rian atua no desenvolvimento de
processos colaborativos através do jogo, narrativas interativas
aplicadas para educação e projetos transmídias e entre os
projetos em que trabalhou, incluem-se os realizados para a
Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro,
Biblioteca Infantil Maria Mazetti da Casa de Rui Barbosa e
Projeto Incorporais pela FAPERJ.
Arthur Protasio é Coordenador do Projeto Game Studies do
Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas
e presidente da IGDA RIO. Como escritor, pesquisador e
produtor de narrativas e jogos, a atuação de Arthut varia desde
palestras sobre a importância da liberdade de expressão para o
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reconhecimento do jogo eletrônico como mídia cultural e
artística até episódios de seu videolog LudoBardo, voltado para
análise de narrativas nos jogos.
Bruno Baère é pesquisador do TeCGraf/PUC-Rio, e pesquisa
em seu mestrado técnicas de dificuldade dinâmica adaptativa
em jogos e seus impactos na experiência do jogador. Nas horas
vagas, Bruno atua como desenvolvedor independente e seus
interesses de pesquisa são inteligência artificial, interação
humano-computador e arquitetura de computadores voltados
para jogos eletrônicos.

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